Você está na página 1de 307

Todos os direitos desta edição reservados a Pontes Editores Ltda.

Proibida a reprodução total ou parcial em qualquer mídia


sem a autorização escrita da Editora.
Os infratores estão sujeitos às penas da lei.
A Editora não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta publicação.

Pareceristas ad hoc

Aline Peixoto Gravina (UFFS)


Ani Marchesan (UFFS)
Karina Zendron da Cunha (FURB)
Leonor Simioni (UNIPAMPA)
Marcelo Amorim Sibaldo (UFPE)
Pablo Nunes Ribeiro (UFSM)
Rafael Dias Minussi (UNIFESP)
Sabrina Casagrande (UFFS)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)

G936g Guesser, Simone; Rech, Núbia Ferreira (org.).


Gramática, Aquisição e Processamento Linguístico: subsídios para o professor de Língua
Portuguesa / Organizadoras: Simone Guesser e Núbia Ferreira Rech.– 1. ed.– Campinas, SP :
Pontes Editores, 2020.
308 p.; il.; tabs.; fotografias.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-062-0

1. Educação. 2. Ensino de Língua Portuguesa. 3. Pedagogia. 4. Processamento Linguístico.


I. Título. II. Assunto. III. Guesser, Simone. IV. Rech, Núbia Ferreira.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846


Copyright © 2020 - Das organizadoras representantes dos colaboradores
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Editoração: Eckel Wayne
Capa: Monique Oliveira de Melo (August)
Revisão: Joana Moreira

PARECER E REVISÃO POR PARES


Os capítulos que compõem esta obra foram submetidos
para avaliação e revisados por pares.

Conselho editorial:
Angela B. Kleiman
(Unicamp – Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR – Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA – Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
(Unicamp – Campinas)
Glaís Sales Cordeiro
(Université de Genève - Suisse)
José Carlos Paes de Almeida Filho
(UnB – Brasília)
Maria Luisa Ortiz Alvarez
(UnB – Brasília)
Rogério Tilio
(UFRJ – Rio de Janeiro)
Suzete Silva
(UEL – Londrina)
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
(UFMG – Belo Horizonte)

PONTES EDITORES
Rua Francisco Otaviano, 789 - Jd. Chapadão
Campinas - SP - 13070-056
Fone 19 3252.6011
ponteseditores@ponteseditores.com.br
www.ponteseditores.com.br

2020 - Impresso no Brasil


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .....................................................................................................7
Simone Guesser
Núbia Ferreira Rech

LINGUÍSTICA E ENSINO: O DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE TEORIAS


FORMAIS E A PRÁXIS PEDAGÓGICA .................................................................15
Paulo Medeiros Junior
Leonor Simioni

OS ESTUDOS LINGUÍSTICOS E A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DA


EDUCAÇÃO BÁSICA: UMA PROPOSTA CONCRETA .......................................43
Maria José Foltran
Patrícia Rodrigues
Marcus Vinicius Lunguinho

SOBRE O USO DE MATERIAIS MANIPULÁVEIS NAS AULAS DE


GRAMÁTICA, APRENDIZAGEM ATIVA E METACOGNIÇÃO ........................87
Eloisa Pilati

ENSINO DE COESÃO TEXTUAL EM UM PARADIGMA FORMAL:


UMA ABORDAGEM ATIVA ...................................................................................109
Luiz Fernando Ferreira
Maria Eugênia Martins Barcellos

SELEÇÃO, CONSTITUÊNCIA E PONTUAÇÃO: UMA PROPOSTA FORMAL


PARA O ENSINO DA VÍRGULA EM PORTUGUÊS .............................................139
Marcus Vinicius Lunguinho
Helena Guerra Vicente
Paulo Medeiros Junior
A CARTOGRAFIA SINTÁTICA NAS AULAS DE GRAMÁTICA: POR UMA
METODOLOGIA DE ENSINO DA CLASSE DOS ADVÉRBIOS .........................191
Aquiles Tescari Neto
Mariana Perigrino

CONTRIBUIÇÕES DA AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM PARA O ENSINO:


O CASO DAS ORAÇÕES RELATIVAS ..................................................................217
Maria Cristina Figueiredo Silva

O EFEITO DA LACUNA PREENCHIDA FRENTE A FATORES DISCURSIVOS:


TEORIA, EXPERIMENTAÇÃO E REFLEXÕES SOBRE O PENSAMENTO
LINGUÍSTICO E A METACOGNIÇÃO NA EDUCAÇÃO ....................................245
Amanda de Moura
Marcus Maia

PASSIVAS EM ENUNCIADOS MATEMÁTICOS: RELAÇÃO ENTRE


LINGUAGEM E OUTROS DOMÍNIOS DA COGNIÇÃO ......................................277
Marina Rosa Ana Augusto

SOBRE AS ORGANIZADORAS .............................................................................299

SOBRE OS AUTORES ..............................................................................................300


gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

APRESENTAÇÃO

Simone Guesser
Núbia Ferreira Rech

No artigo intitulado Ensinar gramática na escola?, Borges Neto


(2013) argumenta que a escola deve ter por objetivo qualificar os alunos
em relação a três grupos de conteúdo. O primeiro seria o dos conteúdos
essenciais, “úteis”. Um exemplo desse tipo de conteúdo é a aritmética,
sem a qual um indivíduo encontraria enormes dificuldades para viver
no mundo contemporâneo. O segundo grupo, o de conteúdos culturais,
refere-se aos conhecimentos de fundo, que identificam o indivíduo como
membro de uma determinada comunidade, que lhe atribuem uma identi-
dade sociocultural e o situam dentro das estratificações sociais. História,
cultura nacional e regional são exemplos de conhecimento que entram
nesse conjunto. Nas palavras do autor, “[e]mbora desnecessários, de
certo ponto de vista, esses conteúdos separam os indivíduos ‘cultos’ dos
‘incultos’, são indicadores de escolaridade e muitas vezes determinam se
o indivíduo pode ou não exercer determinadas profissões”. Por fim, os
conteúdos de iniciação científica são aqueles transmitidos por disciplinas
como Química, Física, Biologia, que dão aos alunos a possibilidade de
entender o mundo que os cerca.
No que tange ao trabalho com a disciplina de Língua Portuguesa nas
escolas, Borges Neto defende que o letramento pertence ao conjunto de
conteúdos essenciais: “[é] fácil perceber a dificuldade que uma pessoa
analfabeta encontra para viver no mundo contemporâneo. Uma escola
que não consegue levar seus alunos ao letramento fracassa completamen-

7
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

te” (p. 69). O ensino da norma-padrão e o da ortografia oficial, por sua


vez, são colocados dentro dos conteúdos culturais, pois, apesar de não
ser imprescindível ter domínio desses conteúdos, o seu conhecimento
insere o falante em certos grupos sociais ou o exclui deles. O ensino de
gramática, por fim, entendido como reflexão sobre a língua, é colocado
pelo autor no âmbito dos conteúdos de iniciação científica. A justifica-
tiva para o trabalho com gramática na escola é apresentada pelo autor
de maneira bem clara:

Ninguém contesta a possibilidade que o estudo da gramática


nos dá de desenvolver nos alunos as habilidades de observa-
ção, de levantamento de hipóteses explicativas, de testagem e
avaliação dessas hipóteses (e de hipóteses propostas por outros
investigadores), de construção de sistemas explicativos, etc.,
que são atividades próprias da iniciação científica. Ninguém
contesta, também, que o desenvolvimento dessas habilidades
no estudo dos fenômenos linguísticos é muito mais simples e
barato do que seu desenvolvimento em custosos laboratórios
de física ou de química. A língua é uma importante faceta do
mundo que nos rodeia, é objeto de curiosidade por parte dos
alunos, e seu estudo pode ser um ótimo local de disciplina-
mento intelectual (p. 70).

O que se depreende dessa abordagem de Borges Neto para o ensino


é que, quando se trata de Língua Portuguesa, diferentes perspectivas
podem ser colocadas: a do letramento; a do domínio da norma-padrão e
da ortografia, e a da reflexão gramatical. Dentro desse quadro, torna-se
consenso que áreas como a Linguística Aplicada, a Sociolinguística e a
Análise do Discurso podem contribuir para sanar o famoso problema do
fracasso escolar no Brasil; o que não parece ainda ser visto como natural
é o fato de linguistas gerativistas atuarem no campo do ensino básico.
Considerando o conceito de gramática internalizada adotado pela
Linguística Gerativa, assim como suas refinadas descrições e análises,
não há dúvida de que esta área tem muito a contribuir para o ensino,
como bem evidenciam trabalhos como o de Possenti (1996), Franchi
(2006), Guerra Vicente e Pilati (2012), Lobato (2015), Ferreira e Guerra

8
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Vicente (2015), Kenedy (2016), Pires de Oliveira (2016), Pires de Oli-


veira e Quarezemin (2016), Avelar (2017), Pilati (2017) e Pilati, Naves
e Salles (2019), entre muitos outros. O presente livro vem se inserir
nesse cenário, mostrando como pesquisas gerativistas podem contribuir
para a qualificação da educação básica, em cada um dos três grupos de
conteúdo de ensino identificados em Borges Neto (2013).
Em 2019, durante o XII Encontro Intermediário do Grupo de
Trabalho de Teoria da Gramática (GTTG) da Associação Nacional de
Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), realizado
na Universidade Federal de Roraima (UFRR), linguistas gerativistas de
diferentes instituições de ensino superior do Brasil debateram, com base
em pressupostos e achados da Teoria e Análise Gramatical, de estudos
sobre Aquisição da Linguagem e da Psicolinguística, diferentes formas
de promover uma aproximação maior entre a Universidade e a Educação
Básica. O objetivo desse debate foi construir propostas que avizinhassem
a teoria moderna acerca dos fenômenos linguísticos e a prática do ensino
da norma-padrão da Língua Portuguesa e que incitassem professores de
português da Educação Básica a abordar os fenômenos da língua de forma
não instrumental, considerando aspectos para além daqueles postos nas
gramáticas tradicionais e nos livros didáticos. Desse debate, emerge o
presente volume, que em nove capítulos contempla as propostas socia-
lizadas no Encontro do GTTG de 2019.
Escrito de maneira acessível, o livro tem como público-alvo estu-
dantes de graduação e pós-graduação em Letras, bem como professores
que já atuam no ensino básico. Os capítulos foram organizados de forma
a apresentar, inicialmente, discussões mais amplas sobre o ensino de
língua portuguesa e, na sequência, estudos que focam em um aspecto
linguístico em particular. Além disso, exceção feita para o primeiro texto,
cada capítulo contempla uma seção intitulada Sugestões para o professor
da Educação Básica, em que os autores propõem reflexões ou atividades
práticas concernentes ao tópico abordado.
O volume abre com Linguística e ensino: o diálogo possível entre
teorias formais e a práxis pedagógica, de autoria de Paulo Medeiros e

9
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Leonor Simioni. O objetivo dos autores é introduzir algumas das noções


centrais da Linguística Gerativa, em especial no que se refere aos estudos
gramaticais, de aquisição da linguagem e de processamento de frases.
Além disso, os autores procuram mostrar como a perspectiva gerativista
pode contribuir para o trabalho do professor de Educação Básica.
Na sequência, Maria José Foltran, Patrícia Rodrigues e Marcus Vini-
cius Lunguinho assinam o capítulo Os estudos linguísticos e a formação
do professor da Educação Básica: uma proposta concreta. Os autores
observam que o desenvolvimento dos estudos linguísticos, sobretudo das
pesquisas gerativistas, possibilitou um acúmulo de detalhadas descrições
e análises sobre o português. Porém, tal conhecimento geralmente tem
ficado no ambiente universitário, entre os pesquisadores. Nesse sentido,
se hoje existe o consenso de que é preciso “reintroduzir” o trabalho com
gramática na escola, contemplando os desenvolvimentos recentes da
Linguística e de modo que o ensino não se apresente exclusivamente de
forma instrumental, é preciso ter em mente que, para que isso ocorra, um
longo caminho deve ser traçado e percorrido. Isso se deve, em especial, ao
fato de haver uma carência de materiais que contemplem as propriedades
do português falado culto do Brasil que seja voltado para a formação do
professor. Dentro desse quadro, os autores apresentam um projeto que
envolve a confecção de material didático com descrições de fenômenos
gramaticais do português brasileiro que possa ser utilizado por um pú-
blico constituído de graduandos em Letras, professores de educação e
autores de livros didáticos. Os autores apresentam, a título ilustrativo,
uma abordagem do pronome você e uma do pronome seu para mostrar
como poderiam ser esses trabalhos.
No capítulo 3, Sobre o uso de materiais manipuláveis nas aulas de
gramática, aprendizagem ativa e metacognição, Eloisa Pilati propõe a
utilização de materiais manipuláveis nas aulas de gramática, entendendo
como “manipulável” qualquer tipo de material que possa ser tocado, de
forma concreta ou virtual, e que tenha sido elaborado especificamente
para a reflexão linguística. Como destaca a autora, no Brasil, as aulas
tradicionais de gramática, além de fazerem com que os alunos vejam
a língua como um conjunto de regras a serem seguidas – levando-os à

10
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

memorização de fatos desconexos – não dão protagonismo aos estudan-


tes. A autora argumenta que a utilização de materiais manipuláveis na
sala de aula colabora para explicitar o funcionamento das propriedades
gramaticais do sistema da língua, propicia a aprendizagem ativa dos es-
tudantes e, além disso, pode ser ferramenta útil para o desenvolvimento
de habilidades metacognitivas e para o estabelecimento de relações entre
a reflexão linguística/gramatical e atividades de leitura e de escrita.
O quarto capítulo é de autoria de Luiz Fernando Ferreira e Maria
Eugênia Martins Barcellos e intitula-se Ensino de coesão textual em um
paradigma formal: uma abordagem ativa. Recorrendo a pressupostos
da Linguística Textual e da Linguística Formal para tratar de coesão,
e adotando a Metodologia Ativa, os autores se propõem a fornecer a
profissionais do ensino de Língua Portuguesa os instrumentos necessá-
rios para facilitar e ressignificar o processo de ensino-aprendizagem de
diferentes mecanismos criadores de coesão, a fim de fornecer aos alunos
ferramentas para a escrita de textos bem estruturados.
O capítulo 5, foi escrito por Seleção, constituência e pontuação:
uma proposta formal para o ensino da vírgula em português, é escrito
por Marcus Vinicius Lunguinho, Helena Guerra Vicente e Paulo Me-
deiros Junior. Segundo os autores, dois problemas emergem da prática
por vezes adotada para o ensino do uso de vírgula nas escolas. Um
deles é o fato de se propagar a ideia de que a vírgula está relacionada a
questões como pausa, respiração ou melodia. O outro problema é que,
ao se adotar uma lista de regras para o emprego da vírgula, o resultado
acaba sendo a falta de compreensão, por parte dos alunos, das situações
de emprego da vírgula, ou seja, quando esta é optativa, obrigatória ou
proibida. Nas palavras dos autores, “[t]al prática é inócua, uma vez que
não permite que o aluno desenvolva consciência linguística acerca do
emprego correto da vírgula”. Concentrando-se no período simples, os
autores, a partir de conceitos da Linguística Moderna, mostram de que
forma a noção de seleção semântica e a de constituência sintática – desde
muito cedo presentes no conhecimento linguístico intuitivo do falante
– podem contribuir para o ensino/aprendizagem da vírgula, tanto para
os alunos quanto para os professores.

11
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

O sexto capítulo, de Aquiles Testari Neto e Mariana Perigrino,


denomina-se A cartografia sintática nas aulas de gramática: por uma
metodologia de ensino da classe dos advérbios. A proposta apresentada
pelos autores enfoca a classe dos advérbios e tem por base o modelo
cartográfico. Tal proposta consiste na realização de atividades comple-
mentares, desenvolvidas sob forma de miniprojeto, em turmas dos ensino
fundamental ii e do ensino médio, empregando testes de precedência e
transitividade combinados com julgamentos de gramaticalidade (CIN-
QUE, 1999). A partir dessas atividades, os autores visam introduzir
alunos nas técnicas de experimentação típicas de teorias linguísticas e
fornecer aos professores subsídios metodológicos para analisar fenôme-
nos linguísticos.
O capítulo sétimo, de autoria de Maria Cristina Figueiredo Silva, se
intitula Contribuições da aquisição da linguagem para o ensino: o caso
das orações relativas. Neste texto, a autora torna acessível aos profes-
sores do ensino fundamental e médio conhecimentos construídos pela
linguística teórica, mais especificamente pela gramática gerativa, sobre
orações relativas. Além disso, mostra como tais sentenças se constroem
no português brasileiro, buscando explicar problemas na aprendizagem
dessas estruturas pelos estudantes do ensino fundamental e médio. Como
estratégia de ensino dessas construções, a autora propõe que se traga à
consciência dos alunos quais são as regras que todos os falantes de Por-
tuguês Brasileiro usam para construir as orações relativas em sua língua
nativa e quais são as regras que regem a construção dessas sentenças no
português padrão.
O oitavo capítulo – O efeito da lacuna preenchida frente a fatores
discursivos: teoria, experimentação e reflexões sobre o pensamento lin-
guístico e a metacognição na Educação Básica –, de Amanda de Moura e
Marcus Maia, aborda construções interrogativas -QU. Nesse texto, a partir
do uso de experimentos psicolinguísticos, é explorada a interface entre o
Processamento de Frases e a Sintaxe Experimental, buscando evidências
empíricas para o curso temporal das operações da sintaxe em relação a
fatores semânticos e discursivos. O autor se volta, então, para a Educação
Básica, sugerindo ações pedagógicas que desenvolvam o senso crítico e

12
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

a criatividade, através do exercício do pensar linguisticamente e do uso


de ferramentas metacognitivas, como a técnica do rastreamento ocular.
Por fim, no capítulo 9, Passivas em enunciados matemáticos: re-
lação entre linguagem e outros domínios da cognição, Marina Augusto
assume a perspectiva de Kato (2005), segundo a qual o falante letrado
de português brasileiro possui uma gramática nuclear e uma periferia
marcada. Essa última, com formalidade que se acomuna à da língua es-
crita, se desenvolve por meio do ensino na escola. Sob essa perspectiva,
Augusto aponta que é previsível que a modalidade escrita e a linguagem
formal imponham dificuldades aos alunos no aprendizado de outras
disciplinas. Tal previsão é testada pela autora, levando em conta o uso
de frases passivas em enunciados da disciplina da Matemática. Passivas
são estruturas pouco utilizadas na fala, em especial a chamada passiva
pronominal, mas são encontradas com certa frequência em problemas
matemáticos. Por meio dos resultados do estudo experimental de Augusto
e Souza (2017, 2016) – baseado em Correia (2003) –, a autora responde
a duas questões. A primeira é se a presença de frases passivas em um
enunciado matemático traz impacto para a resolução do problema por
parte do aluno. O segundo questionamento é sobre em que momento da
escolarização tal impacto se verifica.
Encerramos esta apresentação agradecendo aos autores de cada um
dos capítulos, por socializarem suas pesquisas, e à comissão científica
que colaborou com este projeto. Agradecemos também ao Programa de
Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina
pelo auxílio financeiro para a publicação desta obra.

REFERÊNCIAS

AVELAR, J. O. Saberes gramaticais – formas, normas e sentidos no espaço escolar.


São Paulo: Parábola Editorial, 2017.
BORGES NETO, J. Ensinar gramática na escola? Revista Virtual De Estudos da
Linguagem – ReVEL, edição especial, v. 11, n. 7, p. 68-83, nov., 2013. Disponível
em: http://www.revel.inf.br/files/e5c43b98325ed8dae986eca642e5c3d2.pdf. Acesso
em: 20 jun. 2020.

13
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

FERREIRA, E. L. M.; GUERRA VICENTE, H. S Linguística gerativa e “ensino” de


concordância na educação básica: contribuições às aulas de gramática. Linguagem
& Ensino, Pelotas, v. 18, n. 2, p. 425-455, jul./dez., 2015.
FRANCHI, C. Mas o que é mesmo gramática? São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
GUERRA VICENTE, H.; PILATI, E. Teoria gerativa e “ensino” de gramática: uma
releitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Verbum: cadernos de pós-graduação,
n. 2, p. 4-14, 2012.
KENEDY, E. O status da norma culta na língua-I dos brasileiros e seu respectivo
tratamento na escola: algumas contribuições de estudos formalistas à educação. In:
GUESSER, S. (org.). Linguística: pesquisa e ensino. Boa Vista: Editora da UFRR,
2016, v. 2. p. 173-192.
LOBATO, L. O que todo professor da Educação Básica deve saber de Linguística.
In: LOBATO, L. Linguística e ensino de línguas. Brasília: Editora da UnB, 2015.
p. 14-30.
PILATI, E. Linguística, gramática e aprendizagem ativa. Campinas: Pontes Editores,
2017.
PILATI, E.; NAVES, R.; SALLES. H (org.). Novos olhares para a gramática na
sala de aula: questões para estudantes, professores e pesquisadores. Campinas:
Pontes Editores, 2019.
PIRES DE OLIVEIRA, R. Linguística, um laboratório a céu aberto. Reflexões sobre
o ensino. In: GUESSER, S. (org.). Linguística: pesquisa e ensino. Boa Vista: Editora
da UFRR, 2016, v. 2. p. 155-172.
PIRES DE OLIVEIRA, R.; QUAREZEMIN, S. Gramáticas na escola. Petrópolis:
Vozes, 2016.
POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de
Letras, 1996.

14
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

LINGUÍSTICA E ENSINO: O DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE


TEORIAS FORMAIS E A PRÁXIS PEDAGÓGICA

Paulo Medeiros Junior


Leonor Simioni

INTRODUÇÃO

Em Lobato (2018), encontramos a evidenciação do que parece me-


diar a relação entre Linguística e Ensino: uma primeira atitude de expec-
tativa e certo otimismo, segundo a qual à linguística caberia a renovação
das bases do ensino de língua, e uma segunda, mais pessimista, que atribui
à linguística toda a responsabilidade pelo baixo rendimento desse ensino
(LOBATO, 2018, p. 14). O texto de Lúcia Lobato, publicado postuma-
mente, é resultado de uma palestra proferida no âmbito do I Seminário
de Linguística e Ensino de Língua portuguesa na Universidade Federal
de Goiás (UFG), ainda nos idos dos anos 1980, mas surpreende como,
mais de 30 anos depois, a discussão ainda se mostra extremamente atual.
De forma específica, Lobato discute a relação entre linguística for-
mal e ensino e propõe que, embora não se possa transportar determinados
elementos de análise formal para a sala de aula na educação básica, é
possível que esses dois eixos dialoguem e que, com isso, o ensino de
língua materna seja aprimorado.
O presente livro volta-se para essa questão: a relação entre linguística
formal e o ensino de língua. Neste capítulo especificamente, propomo-
nos a debater de forma breve as contribuições da linguística gerativa em

15
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

perspectivas como a da teoria da gramática, a da aquisição da linguagem


e a do processamento de frases, com vistas a iniciar uma discussão da
relação dessas áreas com a prática pedagógica.
Este capítulo de introdução estrutura-se como segue: na seção 2,
apresentamos noções gerais de linguística gerativa, que vão guiar as dis-
cussões nos demais capítulos deste livro. A seção 3 traz uma discussão
que procura apresentar alguns pressupostos essenciais de certas áreas de
investigação da linguística formal, a saber, a aquisição da linguagem e o
processamento de frases, buscando suas interfaces com o ensino. A última
seção contém uma retomada das discussões e as considerações finais.

2. NOÇÕES FUNDAMENTAIS DE TEORIA GERATIVA

Adotamos aqui uma visão da linguagem humana como um fenô-


meno da mente. Vamos, inicialmente, apresentar alguns conceitos do
Gerativismo, os quais serão fundamentais para embasar as discussões que
pretendemos desenvolver. Na seção seguinte, colocamos em discussão
algumas teorias formais de investigação linguística, procurando associá-
las ao ensino de língua.
Vamos começar com a dualidade linguagem x pensamento.

2.1 PENSAMENTO E LINGUAGEM

O debate sobre a dualidade pensamento/linguagem, numa perspecti-


va mentalista, toma o centro das discussões na ciência linguística; seria a
linguagem determinada pelo pensamento ou este é que seria determinado
por aquela? Essa questão remonta às bases da hipótese Sapir-Whorf do
determinismo linguístico, cuja proposta é a de que as pessoas têm seus
pensamentos moldados pelas categorias disponíveis em sua língua, ou a
ideia de que as diferenças existentes entre as línguas acabam por estabe-
lecer diferenças nos pensamentos dos falantes (relativismo linguístico).
A verdade é que não parece muito lógico que o raciocínio dependa
necessariamente da linguagem. Pinker (2002) argumenta que a ideia de

16
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

que pensamento e linguagem sejam uma mesma coisa constitui o que ele
chama de “absurdo convencional”, que o autor caracteriza como sendo
“[…] uma afirmação totalmente contrária ao senso comum, mas em que
todos acreditam porque têm a vaga lembrança de tê-la escutado em al-
gum lugar e porque ela tem muitas implicações” (PINKER, 2002, p. 62).
Pretendemos defender aqui que Pinker está correto e que há razões
convincentes para crer que pensamento e linguagem são elementos que
constituem módulos diferentes na mente. Vamos aos argumentos.
Comecemos por observar nossos animaizinhos domésticos. Qual-
quer pessoa que já tenha tido um cachorrinho de estimação (algumas
raças são muito inteligentes) sabe que esses bichinhos são afetuosos e
demonstram carinho e respeito por seus cuidadores; algumas pessoas são
capazes mesmo de jurar que seus cãezinhos conseguem compreender
cada palavra do que falam. Quando o cuidador chega da rua, o cãozinho
certamente corre até ele abanando o rabinho, em demonstração de que
sentiu a sua falta. Não é incomum que o seu bichinho perceba quando
você está chateado e venha deitar-se perto ou demonstrar carinho. Com
certeza, esse tipo de atitude por parte dos cães pode ser uma evidência
de que eles raciocinam, que compreendem os comandos dos cuidadores,
que estão atentos ao comportamento das pessoas com as quais convivem.
Esses animais domésticos, entretanto, não possuem linguagem articulada.
Mas não parece prudente tratar apenas dos pets, quando sabemos por
experiência que o domínio de línguas naturais é uma habilidade exclusi-
vamente humana1. Vamos, então, tratar dos bebês humanos. É possível
perceber em bebês ainda bem novos, com poucos dias de vida, diversas
demonstrações de raciocínio, como quando sorriem ao reconhecerem o
rosto do pai ou da mãe, ou quando expressam por meio do choro algum
tipo de sensação como fome ou descontentamento pela “fralda cheia”,
apesar de ainda não dominarem uma língua. Se é verdade que esses
humanos em miniatura já raciocinam, mesmo que ainda não dominem
1 Não vamos adentrar aqui a discussão sobre estudos que atestam que alguns primatas sejam
capazes de se comunicar utilizando as línguas de sinais, como os de Gardner e Gardner (1969).
Para discussões sobre esse assunto, indicamos a leitura de Hess (2008) e as críticas a estudos
dessa monta como a que se encontra em Pinker (2002).

17
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

uma língua particular, este é mais um argumento que podemos usar em


favor de uma autonomia dessas duas entidades (a saber, pensamento e
linguagem) em oposição a uma visão que proponha a existência de uma
como dependendo necessariamente da outra. Com bases nesse tipo de
observação, estudos como os de Pinker (2002) e Medeiros Júnior e Ma-
rinho (em preparação) argumentam que o pensamento não parece estar
associado ao conhecimento de uma língua específica. Para além dessas
observações empíricas cotidianas, a Neurologia também registra as
chamadas afasias, condições de inaptidão para o uso da linguagem que
podem trazer luz sobre a relação linguagem/pensamento. Os estudos de
Broca (1861; 1864; 1865) e Wernicke (1874) atestam que, embora haja
uma relação estreita entre pensamento e linguagem, essas duas entidades
encontram-se em módulos separados no cérebro. Pacientes estudados por
Broca, que tinham determinada região do cérebro lesionada, passavam a
não mais ter condições de relacionar palavras para dizer o que queriam;
esses pacientes tinham consciência de que estavam com a linguagem
limitada, mas não conseguiam lidar com ela. Ficou claro na observação
dessa condição que o raciocínio desses pacientes estava preservado, mas
a linguagem lhes faltava. Wernicke, por sua vez, observou que pacientes
que tinham lesionada a primeira circunvolução temporal esquerda não
conseguiam mais simbolizar, ou lidar com cores, ou mesmo nomear
objetos, apesar de terem o raciocínio preservado, o que demonstravam
pela execução de tarefas outras que não as relacionadas à linguagem.
Assim, quando consideramos as afasias, parece haver suficiente
evidência também do ponto de vista científico para afirmar que, embora
se impliquem, pensamento e linguagem não determinam um ao outro;
a existência de um não é necessariamente condicionada pela existência
do outro.
Mas então, onde está a convergência entre pensamento e linguagem?
Na perspectiva que adotamos aqui, entende-se que a mente seja mo-
dular e que a soma de seus diversos módulos, cada um com uma função,
mas interagindo entre si, constitua o que chamamos mente-cérebro. Pois
bem, sendo a mente modular, haveria aí um módulo especificamente

18
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

destinado à linguagem. Na perspectiva do que propomos aqui, esse mó-


dulo responsabiliza-se por habilitar os seres humanos a adquirirem um
conhecimento implícito das regras que governam a língua da comuni-
dade em que estão inseridos (que será a sua língua materna), bem como
os habilita a colocarem essa língua em uso nas mais diversas situações
cotidianas, numa dicotomia a que Chomsky chamou competência e
desempenho. A competência seria o domínio das regras abstratas da
língua, enquanto o desempenho constituiria a capacidade de colocar
esse conhecimento em uso.
Ora, se a linguagem é um módulo da mente (tanto quanto o pensa-
mento), entende-se que seja esta a relação entre esses dois elementos:
pensamento e linguagem interagem, tocam-se em algum momento, ainda
que um não determine necessariamente o outro.
Quando remetemos a essa visão sobre a aptidão humana para a
linguagem, estamos falando de uma faculdade mental, aquilo que cha-
mamos de Faculdade da Linguagem, uma determinação biológica dos
membros da espécie humana, que os habilita a adquirir uma língua e
produzir e compreender as estruturas dessa língua (KENEDY, 2013). A
linguagem, como módulo independente, teria seu funcionamento garan-
tido, a despeito do raciocínio, e vice-versa, sendo que, nessa perspectiva,
em algum momento do processo de domínio da linguagem, esses dois
módulos começam a dialogar de modo a permitir que algumas informa-
ções adquiridas por meio de processos cognitivos outros (que não aqueles
especificamente atinentes ao domínio de uma língua) sejam acessadas
pelo módulo da linguagem.
Na subseção a seguir, passamos a analisar o termo Gramática, suas
acepções e aplicações.

2.2 CONCEPÇÃO DE GRAMÁTICA

O termo gramática pode ser tomado de perspectivas diferentes.


Na visão tradicional, a gramática de uma língua constitui o conjunto de
regras que conduzem o bem falar e o bem escrever (CUNHA; CINTRA,

19
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

2008). Claramente prescritiva, essa concepção baseia-se no binômio


acerto/erro, e é comum nos compêndios tradicionais, de uma forma mais
ou menos regular. A visão normativa prioriza a variedade padrão do
português, em detrimento de outras (MIOTO; FIGUEIREDO E SILVA;
LOPES, 2000), e acaba por centrar-se em um modelo de organização que
remonta estágios anteriores da língua, ou mesmo algo que se assemelha
em diversos aspectos muito mais ao português europeu (KATO, 2005).
Mas gramática também pode remeter ao conjunto de regras abstratas
que compõem o repertório de uma língua particular, regras que – ao serem
internalizadas pelos falantes de uma comunidade de fala – constituem o
que chamamos Língua-I2. A Língua-I constitui então o repertório de co-
nhecimentos que formam a competência de um falante. Com base nessa
competência, entende-se que todo falante consiga articular enunciados
e expressões linguísticas diversas, interpretar tantos outros construtos
linguísticos e determinar que tipo de combinação é ou não possível em
sua língua materna, mesmo sem ter acesso à instrução formal. Assim,
tem-se que a Língua-I seja uma espécie de entidade abstrata, a qual se
materializa por meio daquilo que chamamos Língua-E3, que nada mais
é do que a Língua-I posta em uso, algo que caracteriza aquilo que cha-
mamos desempenho do falante. Entende-se, portanto, que a Língua-E
materialize a Língua-I, mas essa Língua-E é, antes de tudo, um fenômeno
histórico-social, sujeita a uma série de fatores exógenos e que, em razão
de efeitos como a escolarização, por exemplo, pode assumir contornos
que não representam exatamente os parâmetros da gramática nuclear;
isso implica dizer que a Língua-E de um dado falante pode não revelar
exatamente sua gramática nuclear, e sim representar uma materialização
dessa gramática nuclear acrescida daquilo que Kato (2005) chamou de
periferia marcada.
Um bom exemplo da distinção entre gramática nuclear e periferia
marcada, no português brasileiro, é o emprego de pronomes pessoais
2 Na expressão Língua-I, I está para interna, individual, porque reflete o conhecimento interna-
lizado do falante quanto às regras abstratas que governam o funcionamento da gramática de
sua língua materna.
3 Na expressão Língua-E, E está para externa, porque externaliza o conhecimento implícito que
o falante tem das regras da sua língua.

20
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

de terceira pessoa em posição de objeto direto. Diversos estudos (DU-


ARTE, 1989; CYRINO, 1997) evidenciam que os pronomes átonos
o(s) e a(s) vêm desaparecendo no português brasileiro falado, sendo
substituídos pelas formas do caso reto ele(s), ela(s), ou então deixando
a posição sem preenchimento, de forma análoga aos sujeitos ocultos.
Duarte (1989), analisando a fala de 50 paulistanos de diferentes idades
e níveis de escolaridade, encontra 4,9% de pronomes átonos, 15,4% de
pronomes retos e 62,6% de nulos. Assim, é bastante normal ouvirmos
frases como a seguinte:

(1) A Maria viu o Pedro, mas não cumprimentou ele.


(2) Eu comprei a blusa sem experimentar.

A autora mostra que a escolha entre o pronome reto e o nulo é


condicionada por diferentes fatores linguísticos, como a semântica
do referente. Já a escolha entre essas duas formas e o pronome átono
depende especialmente da escolarização, sendo que jovens cursando o
ensino fundamental jamais empregam esses pronomes em sua fala. Isso
indica que a criança não adquire as formas átonas de 3ª pessoa antes da
escolarização, e sim que as aprende na escola. Evidência adicional de
que essas formas estão associadas à variedade padrão vem da observação
de que, em contexto de fala natural, os falantes empregam pronomes
átonos de 3ª pessoa apenas em 4% dos casos, enquanto a análise de fala
mais monitorada realizada por Duarte aponta para 11,4% de uso dessas
formas (ainda um número baixo).
Os fatos observados evidenciam que a gramática que a criança traz
para a escola (gramática aí entendida como conhecimento tácito das regras
abstratas da língua – a Língua-I) não é igual à gramática com a qual ela sai
da escola4; por outro lado, as normas aprendidas na escola não conseguem
substituir o conhecimento internalizado previamente à escolarização – e
isso nem seria possível, pois a criança, ao chegar à escola, já dispõe de
um robusto conhecimento gramatical. O efeito da escolarização é apenas
expandir o repertório gramatical, ampliando a gramática internalizada da
4 Para mais estudos nessa perspectiva conferir Corrêa (1998; 2000).

21
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

criança por meio da constituição de uma periferia marcada. Mas como


se dá o processo de aquisição da linguagem? Como a criança chega a
esse conhecimento tão robusto e sofisticado de sua língua mesmo antes
de chegar à escola? Falaremos sobre isso na próxima seção.

3. LINGUÍSTICA GERATIVA: ABORDAGENS E VIESES DE PESQUISA

A partir dos escritos de Noam Chomsky, ainda em meados do sé-


culo XX, dois pontos ou questões passaram a ser essenciais no estudo da
linguagem humana: 1) a compreensão de como a linguagem funciona na
mente; e 2) como os seres da espécie são habilitados a utilizar esse aparato
altamente arrojado. Com base nessas cogitações, a pesquisa linguística
de cunho gerativista passou a buscar respostas para tais questionamentos,
direcionando suas ações em dois campos específicos: a Aquisição da
Linguagem e o Processamento Linguístico.
Vamos conversar um pouco sobre cada uma dessas áreas.

3.1 AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM

Não sei se você já parou para pensar na complexidade da linguagem


humana: com base em uma quantidade pequena de sons, somos capazes
de gerar e interpretar uma quantidade imensa de termos e um montante
virtualmente infinito de sentenças e discursos. A dinâmica em que um
falante tem a capacidade de unir sons e constituir significados ao mesmo
tempo em que o seu interlocutor decodifica esses significados e responde
também organizando os sons em unidades articuladas complexas é algo
espantoso, aptidão que traça uma linha divisória clara entre os seres
humanos e todas as outras espécies animais do planeta.
O mais espantoso nessa questão é a rapidez com que os indivíduos da
espécie humana se apropriam de uma língua natural e põem a linguagem
em uso. Em geral, e com pouquíssimas variações, por volta dos 4 anos
de idade, as crianças já dominam todo o sistema de sua língua materna
(GUASTI, 2002; GROLLA; FIGUEIREDO SILVA, 2014), sendo ca-

22
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

pazes de articular enunciados com significados literais ou mesmo com


conotações inesperadas. O domínio desse código vem naturalmente, de
maneira rápida e precisa.
Além da rapidez observada no processo de aquisição da língua
oral pelos indivíduos da espécie humana, outro aspecto surpreendente
é a sua uniformidade: independente do lugar onde a criança nasceu, de
sua condição socioeconômica ou da língua sendo adquirida, as etapas da
aquisição são essencialmente as mesmas, e acontecem em uma ordem
regular e num tempo relativamente igual.
Tal capacidade, em certo sentido espantosa, para adquirir linguagem
levou Chomsky (1986) a formular aquilo que ele chamou de Problema
de Platão para a aquisição da linguagem, que consiste em procurar res-
postas para a questão: como a criança pode saber tanto em relação a sua
língua materna em tão pouco tempo?
A resposta satisfatória para essa pergunta precisa necessariamen-
te considerar a existência de um dispositivo inato de organização da
linguagem, que habilita os membros da espécie humana a adquirirem
uma língua particular de forma natural e rápida, sem qualquer evento
de instrução formal, pela simples inserção do bebê humano em uma
comunidade de fala.
Os estudos de aquisição da linguagem nessa perspectiva fazem
interface com uma série de outras áreas de estudo: a Neurologia, a Psi-
cologia e, por que não dizer, a educação.

3.1.1 A aquisição da língua oral

O domínio da linguagem pelos membros da espécie humana, como


dissemos, é natural. Embora algumas outras espécies animais desen-
volvam algum tipo rudimentar de procedimento de comunicação ou
mesmo um código até certo ponto organizado (cf. VON FRISCH, 1967;
RYABOV, 2016), nada se compara ao uso que os seres humanos fazem
da linguagem; trata-se de uso criativo, governado por regras, as quais
possibilitam que, com um pequeno repertório de sons, organize-se um

23
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

código complexo que permite a interação entre os membros de uma dada


comunidade de fala. A empiria acaba por revelar que a aptidão para a
linguagem é algo codificado no DNA da espécie.
A atenção dos bebês humanos, desde muito cedo, está voltada para a
linguagem. Estudos recentes como os de Mampe et al. (2009) atestam que
o choro dos bebês humanos tende a repetir a prosódia da língua materna,
o que é uma evidência de que, já antes de os bebês nascerem, ainda em
condição intrauterina, o mecanismo de aquisição desses bebês já está em
funcionamento5. Além disso, Martin e Fabes (2009) mostram que, com
apenas quatro dias de idade, um bebê humano já consegue distinguir entre
sua língua materna e uma língua estrangeira sendo falada no ambiente
a seu redor. À medida que vão amadurecendo e avançando no processo
de apropriação da linguagem, os bebês humanos vão sistematizando um
conhecimento implícito arrojado das regras abstratas que governam o
funcionamento de sua língua materna. Um exemplo desse conhecimento
sofisticado é o uso dos pronomes pessoais de 3ª pessoa. Sabemos que es-
ses pronomes podem ser usados para retomar um substantivo mencionado
anteriormente. O que provavelmente não sabemos (ou, melhor dizendo,
não temos consciência de que sabemos) é que essa retomada responde a
restrições bastante sofisticadas. Vejamos o exemplo (3):

(3) O João disse que o Pedro machucou ele.

Há aí dois referentes possíveis para o pronome ele: João e Pedro.


No entanto, seguramente todos concordarão que ele não pode se referir a
Pedro, certo? A frase pode significar que Pedro machucou João ou, então,
que Pedro machucou um outro indivíduo do sexo masculino (alguém
para quem o falante esteja apontando, por exemplo). Crucialmente, não
é possível entender que o Pedro machucou a si mesmo.
A simples observação desse fato já nos indica que o funcionamento
dos pronomes de 3ª pessoa talvez não seja tão simples quanto pensáva-
mos. Poderíamos, a partir de (3), depreender que, quando houver dois

5 Conferir discussão detalhada em Medeiros Júnior e Marinho (em preparação).

24
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

antecedentes possíveis, o pronome ele só pode retomar aquele que esti-


ver mais distante. Mas uma regra como esta desmorona rapidamente ao
observamos o exemplo (4):

(4) O irmão do João machucou ele.

Aqui, novamente há dois referentes possíveis para o pronome ele,


mas agora o pronome só pode retomar João. Isto é, a frase pode significar
que o irmão de João machucou João ou machucou um outro indivíduo do
sexo masculino, mas não a entendemos como se o irmão de João tivesse
machucado a si mesmo. Portanto, a regra formulada no parágrafo anterior
não se sustenta: agora, o pronome ele só pode referir-se ao substantivo
mais próximo de si6. Uma discussão aprofundada sobre o funcionamen-
to dos pronomes está além do escopo deste texto7. Importa aqui notar
algumas coisas. Em primeiro lugar, essa retomada de um substantivo
anteriormente mencionado não é tão simples quanto poderia parecer à
primeira vista; apesar disso, todos nós, falantes de português, indepen-
dente do grau de escolarização, sabemos perfeitamente que retomadas
são ou não possíveis. Note que não recebemos instrução explícita sobre
as possibilidades de retomada em dados do tipo (3) e (4) na escola8, e
menos ainda durante o processo de aquisição da linguagem. Ainda assim,
as crianças, mesmo as muito pequenas, não costumam cometer erros
como associar ele a Pedro em frases como (3).
Para o Gerativismo, o que explica as características da aquisição da
língua oral é a existência da Faculdade da Linguagem, já mencionada
em seções anteriores: uma dotação genética, específica da espécie huma-
6 Alguém poderia imaginar que a diferença entre (3) e (4) se deva ao fato de que, em (4), um
dos candidatos a referente do pronome é um nome comum. Esse não é um fator relevante; os
exemplos a seguir, estruturalmente análogos a (3) e (4), apresentam as mesmas possibilidades
de retomada pronominal: O manifestante disse que o policial machucou ele e O irmão do
padeiro machucou ele.
7 Remetemos o leitor interessado a Mioto, Lopes e Figueiredo Silva (2000). Para evidências
de que a criança não comete erros na atribuição de referência, ver Grolla e Figueiredo Silva
(2014).
8 Apesar de aprendermos muitas coisas sobre pronomes na escola, como o emprego de pronomes
átonos nesses contextos. Note-se, a esse respeito, que a substituição de ele por o nos exemplos
não altera as possibilidades de retomada.

25
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

na, que nos permite desenvolver um conhecimento linguístico sofisticado


(como as possibilidades de retomada dos pronomes), de forma rápida
e uniforme. Em seu estado inicial, chamado Gramática Universal, a
Faculdade da Linguagem é composta por um conjunto de princípios
universais invariantes e por um conjunto de parâmetros, que podem
ser entendidos como propriedades subespecificadas, cujo valor positivo
ou negativo deverá ser fixado pela criança no processo de aquisição. A
tarefa da criança no processo de aquisição da língua oral, portanto, é
fixar os valores paramétricos com base em sua experiência linguística,
ou seja, no contato com a língua.
Voltando ao nosso exemplo sobre os pronomes, é interessante notar
que o mesmo tipo de restrição parece ser verdadeiro também em outras
línguas, como inglês, italiano, espanhol, holandês, japonês… na verdade,
parece ser universal – um princípio, no sentido apresentado acima. A
tarefa da criança, no processo de aquisição, seria essencialmente apren-
der o repertório de pronomes da sua língua; seu funcionamento “vem de
graça” na Faculdade da Linguagem.
A hipótese inatista assume, portanto, que, apesar de parecerem
muito diferentes superficialmente, as gramáticas das línguas humanas
são consideravelmente homogêneas, e é isso que “facilita” a aquisição
da linguagem. Mas sabemos que as línguas não são iguais. Então de
onde vêm as diferenças?
Dissemos anteriormente que a Faculdade da Linguagem é composta
por princípios e parâmetros. Se os princípios são o que há de invariável,
os parâmetros são a fonte da diversidade linguística. Entendidos como
conjuntos de propriedades que uma língua pode ou não ter, cada parâmetro
pode ter um valor positivo (a língua tem uma determinada propriedade)
ou negativo (a língua não tem uma determinada propriedade).
Um exemplo bastante estudado em diferentes línguas é o parâmetro
do sujeito nulo. Sabemos que as línguas variam quanto à necessidade
de que a posição de sujeito de uma frase seja preenchida; em línguas
como inglês, francês e alemão, a posição de sujeito sempre deve estar
preenchida por um substantivo ou pronome, enquanto em línguas como

26
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

italiano e espanhol não há essa obrigatoriedade. Observe o que aconte-


ce com um verbo meteorológico como chover, que forma as chamadas
“orações sem sujeito”. Os exemplos estão em português, italiano e inglês,
respectivamente:

(5) Choveu ontem.


(6) È piovuto ieri.
(7) It rained yesterday.

Note que em (5) e (6) não há sujeito9, mas em (7) temos o pronome
it. Crucialmente, em inglês não é possível produzir frases em que não
haja algum elemento na posição de sujeito – nem mesmo em orações
“sem sujeito”! Ou seja, enquanto em português podemos ter sujeitos
expressos ou ocultos/desinenciais, em inglês toda frase precisa ter um
sujeito expresso.
Apesar de aprendermos na escola que o português permite (ou mes-
mo favorece) o uso de sujeitos ocultos, diversos estudos têm mostrado
que o português falado no Brasil vem, na verdade, empregando cada vez
mais sujeitos preenchidos10. Isso significa que, embora nosso julgamento
possa considerar que (8) é uma frase perfeitamente possível, na prática,
quando falamos, tendemos a usar frases como (9)11:

(8) Comprei um carro.


(9) Eu comprei um carro.

Simões (2012) mostra que as crianças adquirindo o português


brasileiro se comportam como os adultos: sua fala apresenta as mesmas
tendências e restrições observadas na língua adulta. Comparando os
9 È piovuto é uma perífrase verbal que equivale a choveu.
10 Segundo Berlinck, Duarte e Oliveira (2015), a taxa de preenchimento de sujeito no português
brasileiro falado culto gira em torno de 80% (p. 100).
11 Frases como (8) são bastante adequadas em contextos de elipse, quando o sujeito pode ser
recuperado contextualmente (por exemplo, em resposta à pergunta O que você comprou?). No
entanto, são pouco ou nada utilizadas quando não há um contexto do qual se possa recuperar
a referência do sujeito – mesmo que a desinência verbal, nesse caso, aponte inequivocamente
para a primeira pessoa do singular.

27
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

resultados de sua pesquisa aos de Magalhães (2006), a autora mostra


também que há diferenças significativas entre a fala de crianças brasileiras
e portuguesas: as crianças portuguesas realizam taxas de sujeito oculto
muito mais altas do que as crianças brasileiras. Isso se explica pelo fato
de o português europeu seguir sendo uma língua que tem o parâmetro do
sujeito nulo marcado positivamente; isto é, apesar do que possa pensar o
senso comum, o português falado no Brasil e o português falado em Por-
tugal são línguas bastante diferentes, com valores paramétricos diferentes.
A partir dessa constatação, e do fato de que o português escri-
to, baseado na variedade padrão propalada pela gramática tradicional,
conserva a tendência ao emprego de sujeitos ocultos (distanciando-se,
portanto, da língua falada no Brasil), Simões (2012), assim como Kato
(2005), pondera que a aprendizagem da escrita, para a criança brasileira,
implica algum nível de bidialetalismo. A criança brasileira, ao chegar
à escola, já tem sua gramática nuclear estruturada, já tendo fixado o
parâmetro do sujeito nulo com base em sua experiência linguística; por
isso, a obediência às normas mais conservadoras da escrita passará, ne-
cessariamente, por uma “reaprendizagem”, agora consciente, relacionada
a esse parâmetro.
Passemos então à questão da sistematização da escrita.

3.1.2 A aprendizagem da escrita

Como já sugerimos acima, quando o assunto é a aquisição da escri-


ta, a coisa muda de panorama. De acordo com a perspectiva que vimos
assumindo até aqui, o domínio da escrita não se dá de maneira natural,
como o que ocorre com a oralidade; o processo de apropriação da escri-
ta implica instrução formal e depende do desenvolvimento de algumas
capacidades cognitivas por parte da criança.
Kato (2005) argumenta que escrita e fala são restritas pelos mesmos
princípios da GU; ainda para a autora, além de ser restrita pelos mesmos
princípios da GU, a escrita utiliza as mesmas categorias e funções, além
do fato de que as opções gramaticais presentes na escrita são previstas

28
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

pelos parâmetros da GU (p. 7). Kato entende que a Língua-I do falante


letrado contenha uma periferia marcada, que assimila elementos de uma
gramática não nuclear, o que o torna em sua língua materna uma espécie
de bilíngue, nas palavras da autora, um bilíngue desigual, se comparado
ao falante não-letrado. Seja como for, percebe-se a relação de certo modo
estreita entre os processos de aquisição da língua oral e da língua escrita.
A ideia é, portanto, a de que a língua escrita e o processo de apro-
priação desse artefato tecnológico estão diretamente relacionados aos
mecanismos que governam a língua oral. Vamos então assumir, com Kato
(2002; 2005), que, sendo as línguas particulares realizações de um mes-
mo desenho abstrato (a Gramática Universal), e sendo a escrita definida
como um “conjunto de opções dentro da gramática particular” (KATO,
2002, p. 101), as formas dessa língua escrita precisam ser determinadas
pelo mesmo esquema que governa a oral.
Nesse sentido, é necessário que uma discussão sobre a aprendizagem
da língua escrita esteja necessariamente centrada nas especificidades
atreladas à organização desse sistema como um processo de natureza
cognitiva (FERNANDES, 2015). Se entendemos que fala e escrita
são apreendidas por meio de acesso à GU, enxergando aproximações
necessárias entre os dois processos, é fundamental que – de alguma for-
ma – conectemos essas duas realidades quando da execução de práticas
pedagógicas.
Fernandes (2015) vai propor que o processo de apropriação da escrita
pela criança passa necessariamente por uma tomada de consciência das
estruturas da língua oral. Por exemplo, para que a criança consiga associar
dado grafema (letra) a um som específico, de modo a ser competente para
organizar a escrita, ela precisa ter a consciência do funcionamento da
fonologia de sua língua. Ou seja, o processo de aquisição oral da língua
habilita a criança de forma inconsciente a lidar com as possibilidades
fonológicas do idioma e, mais tarde, no processo de apropriação da escrita,
é necessária uma tomada de consciência sobre a organização fonológica
da língua para que seja possível a sistematização do sistema ortográfico.
Nesse sentido, a apropriação da oralidade e da escrita se distanciam, uma

29
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

vez que a segunda pressupõe certo grau de reflexão consciente sobre


o processo, ao passo que a primeira não. Mas repare-se que, mesmo
que se observe essa “separação”, parte-se necessariamente – segundo a
visão de Fernandes – de um conhecimento implícito da funcionalidade
da língua oral (de sua estrutura na oralidade) para uma sistematização
do funcionamento da escrita. Ou seja, o conhecimento da língua escrita
passa por uma reflexão consciente, mas está de certo modo embasado
no funcionamento e nos padrões da língua oral.
Ainda segundo Fernandes (2015), na aprendizagem da escrita, pre-
cisam ocorrer o que a autora chama de procedimentos instrucionais com
vistas a estimular e trabalhar o desenvolvimento cognitivo da criança,
dentre eles: “[c]apacidade de categorização e descoberta de princípios na
organização de elementos; [e] [c]apacidade de abstração e representação
por meio de atividades com marcas simbólicas; […]” (FERNANDES,
2015, p. 174).
Assim sendo, para Fernandes (2015), a construção do conhecimento
da língua escrita precisa necessariamente ser permeada pelo desenvolvi-
mento de “habilidades metalinguísticas” (FERNANDES, 2015, p. 173).
Essa consciência metalinguística estaria diretamente relacionada com a
capacidade de pensar sobre o sistema e de manipular de forma consciente
os elementos da língua.
Nessa esteira de raciocínio, Medeiros Junior (2020) também propõe
que a tomada de consciência das estruturas da língua e dos mecanismos
de articulação da fonologia, da morfologia e da sintaxe precisam ser an-
teriores ao desenvolvimento da competência escrita. Considerando que
o domínio da escrita precisa ser mediado por uma reflexão consciente
sobre os processos de organização da língua, o autor também propõe
que a atividade de reflexão metalinguística é fundamental no processo
de constituição do conhecimento da modalidade escrita de uma língua12.
O que se vê do cenário das discussões até aqui é o seguinte: língua oral
e língua escrita são apreendidas por procedimentos cognitivos restritos
pelos mesmos mecanismos gerais, regulados pela GU, mesmo que
12 Para mais discussões e a articulação de propostas para o trabalho com gramática em sala de
aula, cf. Pires de Oliveira e Quarezemin (2016).

30
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

haja certas distinções na efetivação dos dois processos. Essa distinção,


entretanto (que tem a ver com uma organização consciente no caso da
constituição da escrita e um processo inconsciente no caso da língua
oral) não impede que ambos os percursos, como o quer Kato (2005),
conectem-se de alguma forma.
Estamos considerando que o falante, ao chegar à escola, já domina
o repertório de regras abstratas que regulam a organização da língua que
ele tem como materna. A fonologia, a morfologia e a sintaxe dessa língua
não são mistérios (de maneira mais ou menos homogênea) para nenhuma
criança com mais de 4 anos de idade. Estamos considerando também que
haja um tipo de conexão entre as modalidades oral e escrita da língua,
não a de uma correspondência biunívoca entre as duas, mas o fato de
serem governadas pela mesma GU, entidade radicada nas mentes dos
falantes. Se são verdades essas duas premissas, espera-se naturalmente
que o processo de aquisição da escrita reflita de algum modo o processo
de aquisição da língua oral; ou, ainda, espera-se que o conhecimento sobre
os caminhos de constituição da língua oral sirvam de pista para as ações
de sistematização do conhecimento da escrita (as ações educacionais).
Podemos tentar debater essa questão com dois exemplos claros. Sa-
bemos, pelos estudos de Morais (1995), sobre a organização da ortografia,
que a consciência fonológica surge simultaneamente ao conhecimento das
noções alfabéticas13; a interação dessas duas noções contribui para uma
aquisição bem sucedida da escrita. Além disso, quando o assunto são as
construções sintáticas complexas, estudos como o de Brown (1973) nos
mostram que o domínio das estruturas coordenadas é uma das últimas
coisas a acontecer no processo de aquisição da língua oral. Pois bem,
a questão nesse ponto é: a reflexão sobre esse tipo de questão precisa
preceder a organização de uma práxis pedagógica quanto ao ensino de
língua; mas, por quê? Se Morais está correto, o conhecimento de tais
noções pode ser altamente relevante para a constituição de estratégias
de ensino de língua materna no que tange à organização ortográfica
original. Além disso, se estão corretas as observações de Brown quanto
ao surgimento da coordenação na língua oral, e se está correta a intui-
13 Conferir debate completo dessas questões em Fernandes (2015).

31
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

ção de Kato quanto à relação necessária entre a língua oral e a escrita


(relação mediada pela GU), professores da educação básica deveriam
trabalhar com seus alunos a subordinação anteriormente à coordenação
(contrariamente ao que normalmente fazem), de modo a seguir na escrita
a sequência natural de organização da língua oral.
Retornemos, agora, ao nosso exemplo sobre o uso de pronomes
para retomar substantivos anteriormente mencionados, relacionando-o
ao parâmetro do sujeito nulo. Comecemos por analisar os exemplos a
seguir, cuja diferença é a presença ou não de um pronome sujeito na
oração subordinada:

(10) O João disse que vai viajar.


(11) O João disse que ele vai viajar.

Em (11), o pronome ele pode retomar João ou pode referir-se a


outro indivíduo do sexo masculino. Já (10), sem o pronome, é adequada
apenas em contextos nos quais João é o viajador. Ou seja: as duas formas
não são totalmente equivalentes, pois a interpretação do sujeito oculto é
mais restrita do que a interpretação do sujeito pronominal.
Retomando a comparação com o inglês (que marca negativamente o
parâmetro do sujeito nulo) e com o italiano (que o marca positivamente),
vemos que em italiano dados como (11), com o pronome expresso, jamais
podem receber a interpretação na qual ele retoma João. Já em inglês,
um exemplo como (10) seria impossível, pois a posição de sujeito não
pode ficar vazia.
Observemos agora o par a seguir; novamente, a única diferença
entre os dois exemplos é a presença ou não de um pronome sujeito na
oração subordinada:

(12) O irmão do João disse que vai viajar.


(13) O irmão do João disse que ele vai viajar.

32
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Note que ele pode retomar João ou o irmão do João, ou ainda


referir-se a um outro indivíduo, enquanto o sujeito oculto novamente é
mais restrito, apenas podendo retomar o irmão do João.
Ao chegar à escola, a criança, ao escrever, reproduz as características
gramaticais de sua fala. O trecho a seguir, retirado de um texto produzido
por um aluno de 5ª série14, é bastante ilustrativo disso:

(14) Um dia um menino chamado Pedro foi ao


espaço para achar outro planeta.

No dia seguinte ele achou um pla-


neta mas ele não sabia o nome
do planeta então ele o Pedro decidiu colocar
um nome a esse planeta o nome desse
planeta é o Mundo dos (rasura)* ET. que sig-
nifica estra terrestre.

Então ele descidiu ir até o planeta


lá ele viu um ET. o ET era verde
com a cabeça achatada com 5 olho e com
cabelos até os pé. […]

A repetição do pronome ele na posição de sujeito reflete a alta


taxa de preenchimento da posição de sujeito verificada na língua falada.
Além disso, também opera para garantir a manutenção da referência
a Pedro, personagem principal da narrativa. Possivelmente, é isso o
que explica o emprego do pronome ele em orações coordenadas cujos
sujeitos têm o mesmo referente (por exemplo, na linha 4), contexto em
que, mesmo na fala, o falante brasileiro tende a deixar vazia a posição
de sujeito. Destaque-se também que, quando há um potencial candidato
a antecedente para o pronome ele (o planeta, na linha 5), o pronome ele
é reforçado por o Pedro, de forma a não deixar dúvidas.

14 O texto foi retirado do Banco de Dados de Escrita do Ensino Fundamental II (TENANI, s.d.).
Código de identificação: Z08_5A_07M_05. Os destaques (sublinhado) são nossos.

33
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Para apropriar-se da escrita, a criança deverá, portanto, aprender


a “cortar pronomes”, pois, como vimos, a gramática da escrita ainda
conserva características de uma língua marcada positivamente para o
parâmetro do sujeito nulo. Além disso, a elipse (de modo geral) é um
importante mecanismo de coesão no texto escrito.
Colocada desta forma, a questão parece reduzir-se a mera opção
estilística. Contudo, a observação dos dois pares de exemplos em (10) a
(13) permite perceber que a decisão entre empregar sujeitos ocultos ou
pronominais nem sempre é questão de escolha.
Retornando às considerações feitas ao final da seção 3.1.1, con-
cluímos que não bastará à criança que chega à escola aprender a “cortar
pronomes” na posição de sujeito para se adequar à gramática da escrita.
Antes, será necessário reconhecer o comportamento da língua falada em
relação ao parâmetro do sujeito nulo e as diferentes interpretações even-
tualmente associadas ao uso ou não dos pronomes sujeito, para que seja
possível, enfim, selecionar, no momento da escrita, aqueles pronomes
que podem ser “cortados” sem prejuízo ao sentido pretendido.
Entende-se, com o que se argumentou até aqui, que os estudos de
aquisição de língua oral e aprendizagem da língua escrita trazem contri-
buições relevantes para a questão do ensino de língua, e os conhecimen-
tos baseados nos pressupostos de tais estudos constituem-se ferramenta
poderosa na formação de professores.

3.2 PROCESSAMENTO DA LINGUAGEM

Vamos considerar o dado a seguir:

(15) Conheci a filha da professora que ganhou o prêmio.

O que você interpreta quando lê ou ouve o período sintático acima?


Alguns leitores vão responder que entendem que uma certa professora
ganhou um prêmio; outros vão entender que a filha da professora é que
foi beneficiada com a honraria. Isso acontece porque o composto sintático

34
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

que constitui o período é estruturalmente ambíguo, ou seja, há mais de


uma interpretação possível para a conexão da frase relativa (que ganhou o
prêmio): é possível conectá-la ao núcleo do sintagma nominal complexo
filha da professora, o nome filha (o que implicaria a leitura de que a filha
ganhou o prêmio), ou conectá-la ao nominal mais baixo, professora (o que
determina a leitura de que a professora ganhou o tal prêmio, e não a filha).
A área do conhecimento denominada Processamento da Linguagem
(ou Processamento de Frases) se debruça sobre a questão posta no dado
acima, a saber, a investigação de como produzimos e compreendemos
frases (MAIA, 2015)15. O objetivo dessa perspectiva de trabalho é, por-
tanto, o de constituir investigação que visa a avaliar os processos mentais
envolvidos na interpretação de períodos como o de (15) acima. Parte-se,
segundo essa visão de coisas, do pressuposto de que procedimentos men-
tais específicos entram em ação para transformar esse material linguístico
ao qual temos acesso em sentidos (LEITÃO, 2015). Essa área de estudo,
que se organiza com base na premissa da existência de um processador
modular responsável por produzir uma análise sintática inicial da frase,
estrutura que deve ser interpretada em um segundo estágio do processo
de compreensão (MAIA, 2015)16, desenvolve-se principalmente com base
em estudos de natureza experimental. Maia (2015) escreve:

O estudo das ambiguidades estruturais é bastante revelador do


processamento de frases. Com base em estudos experimentais
de construções com ambiguidades de aposição sintática, os
psicolinguistas puderam estabelecer diferentes princípios que
regulam o processo de análise e compreensão de frases […]
(MAIA, 2015, p. 14).

15 Neste capítulo vamos enfocar apenas a questão da aposição de frases relativas, embora os
estudos sobre processamento abranjam diversos outros tipos de construção, cf. Maia, (2015),
Leitão (2015), Garcia (2015), Maia (2018), dentre outros.
16 Maia (2015) aponta outras questões que se somam a esse modelo de análise baseado em dois
estágios, como a interferência de fatores semânticos, pragmáticos, discursivos e de frequência
no processamento. Não vamos nos demorar nessa questão por entender que um aprofundamento
de discussões dessa monta acaba por extrapolar os objetivos e o escopo deste capítulo, além
de jamais (ainda que detalhados) fazer jus à profundidade das discussões e às possibilidades
e vieses de pesquisa na área de processamento de frases. Recomendamos a leitura atenta de
Maia (2015; 2018) para um aprofundamento de tais noções.

35
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Se estamos avaliando o funcionamento da mente humana (que é


uniforme na espécie) no que tange ao processamento dos enunciados,
deveríamos supor que os processos de interpretação fossem mais ou me-
nos semelhantes em todas as línguas. Mas a questão não é tão simples.
Os mecanismos de interpretação que estão relacionados a capacidades
mentais são os mesmos, entretanto, características específicas das línguas
conduzem a processos diferentes.
Fernández (2002) argumenta, por exemplo, que o fato de a língua
inglesa apresentar uma menor sensibilidade a processos anafóricos na
associação de frases relativas (isso em decorrência da substituição gene-
ralizada dos pronomes relativos como who e which pelo complementador
that) conduz os falantes dessa língua a uma preferência pela conexão da
relativa no nominal mais baixo em construções como (16) a seguir, sendo
esses falantes guiados por noções de localidade (sobre a questão da aposição
local, cf. FRAZIER, 1979). Assim, falantes do inglês tendem a associar a
relativa (who was shot on the balcony) ao sintagma nominal the actress (a
atriz) em vez de associá-la ao sintagma the servant (a empregada):

(15) Someone shot the servant of the actress who was on the balcony.
Alguém atirou na empregada da atriz que estava na varanda.
(FERNÁNDEZ, 2002, p. 12).

Essa questão seria diferente em alemão, língua com uma forte sen-
sibilidade a processos de conexão anafórica envolvendo a aposição de
orações relativas (FERNÁNDEZ, 2002, p. 30); nessa língua, os falantes
tendem a preferir a associação da frase relativa ao nominal mais alto no
SN complexo.
Para falantes monolíngues do português, a preferência pela aposição
da frase relativa que modifica um SN complexo, como ocorre no período
em (15), tende a ser semelhante ao que acontece em alemão (aposição
ao SN mais alto); é o que atesta o trabalho de Maia (2005). Os dados de
Maia ainda corroboram os resultados de Fernández (2005) para falantes
monolíngues do inglês, quanto à preferência pela aposição da relativa
ao SN mais baixo.

36
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

A discussão de como os falantes de uma língua processam a relação


entre a frase relativa e o nominal que ela modifica é algo de valor incon-
teste para as reflexões e a práxis de professores da educação básica, uma
vez que tal reflexão pode conduzir à compreensão de problemas comuns
aos estudantes, como a questão da dificuldade em identificar as diferenças
semânticas entre relativas restritivas e apositivas (explicativas, nos termos
da Gramática Tradicional), algo que, ao fim e ao cabo, se refletirá em difi-
culdades de proceder à pontuação do texto escrito17. Para além da questão do
processamento de frases relativas, há também trabalhos, como os de Silva et
al. (2017), que fazem interface com o ensino. Silva e seus colegas debatem
exclusivamente questões atreladas às dificuldades de processamento que
crianças podem carregar e aos problemas que advêm dessas dificuldades
para a apreensão de conteúdos no processo educacional.
Maia (2018), por seu turno, avalia a maneira como estudantes da
educação básica processam a relação entre as orações em um período,
apontando que a percepção do leitor é sempre prioritariamente voltada
para a oração principal em detrimento da sentença que se subordina a ela.
Tais contribuições podem agregar valor singular à avaliação de estratégias
de ensino sobre a organização escrita de períodos sintáticos, por exem-
plo, o que certamente facilitará o trabalho do professor em sala de aula.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentamos aqui uma breve introdução ao arcabouço teórico e


às teorias formais que embasam as discussões nos capítulos da presente
obra. Não foi nossa intenção esgotar cada um dos pontos abordados
aqui porque, seja do ponto de vista teórico, seja no tocante à análise dos
dados que nos serviram de exemplos, o espaço de um capítulo seria ab-
solutamente insuficiente. A ideia foi apresentar ao leitor uma discussão
breve sobre as bases de alguns estudos de linguística formal e de como
esses estudos podem contribuir (nas abordagens de cada uma das áreas
específicas debatidas) para auxiliar em questões atinentes ao ensino.
17 A esse respeito, conferir discussão em Lunguinho, Guerra Vicente e Medeiros Júnior neste
volume.

37
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Debatemos aqui os fundamentos da teoria da linguística gerativa,


tratando do que concerne à relação entre linguagem e pensamento, e aos
pressupostos básicos da teoria da gramática; procuramos debater como
questões atinentes a essas áreas podem receber algum tipo de aplicação
pedagógica. Também trouxemos os elementos básicos das áreas de
pesquisa em linguística formal denominadas aquisição da linguagem e
processamento de frases, igualmente com o intento de evidenciar como
as contribuições dos estudos dessas áreas podem ser úteis para o ensino
da língua escrita.
Retomando as palavras de Lobato (2018), “o ensino gramatical deve
se beneficiar com os resultados incontestes e consagrados da pesquisa
linguística” (LOBATO, 2018, p. 26); acreditamos fortemente nisso; as
palavras do título deste capítulo, portanto, refletem o pensamento dos
autores e das organizadoras deste volume. Consideramos que não precisa
haver uma cisão entre teorias linguísticas e ensino; pelo contrário, este
último deve e precisa munir-se do arsenal teórico produzido por aque-
las, em uma interação harmônica entre teoria e prática. A esse respeito,
acreditamos que as teorias formais têm importante papel na qualificação
das práticas de ensino.
Essas primeiras reflexões representam apenas o “pontapé inicial”
para as discussões que integram este livro. Nos capítulos que seguem,
diversas questões situadas na interface linguística/ensino serão enfocadas.
Nossa expectativa é a de que o leitor tenha vislumbrado um pouco das
noções básicas que servirão para embasar a leitura dos outros textos e do
potencial que a abordagem gerativa tem para contribuir com o ensino.
Também esperamos que o livro como um todo contribua para a reflexão
sobre as práticas do ensino de língua em nossas escolas.

38
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

REFERÊNCIAS

BERLINCK, R.; DUARTE, M. E. L.; OLIVEIRA, M. Predicação. In: KATO, M.;


NASCIMENTO, M. (org.). A construção da sentença. São Paulo: Contexto, 2015.
p. 81-149.
BROCA, P. P. Nouvelle observation d’aphémie produite par une lésion de la
troisième circonvolution frontale. Bulletins de La Société D’anatomie (Paris), v. 6,
p. 398–407, 1861.
BROCA. P. P. Sur les mots aphemie, aphasie et aphrasie: Lettre a M. le professeur
Trousseau. Gazette Des Hôpitaux Civil et Militaires, n. 37, jan. 1864.
BROCA. P. P. Sur le siège de la faculté du langage articulé. Bulletin de La Société
d’Anthropologie, v. 6, p. 337–393, 1865.
BROWN, R. A First Language: the early stages. Cambridge, Mass.: Harvard
University Press, 1973.
CHOMSKY, N. Knowledge of Language: Its nature, origin, and use. New York:
Praeger, 1986.
CORRÊA, V. R. Oração Relativa: O que se Fala e o que se Aprende no Português
do Brasil. Orientadora: Dra. Mary Aizawa Kato. 1998. Tese (Doutorado) – Curso
de Linguística, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.
CORRÊA, V. R. Variação Sintática em Portugal e no Brasil: Orações Relativas.
In: Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, 16., 2000, Lisboa.
Actas… Lisboa: APL e Colibri, 2000. p. 615-665.
CYRINO, S. O objeto nulo no português brasileiro: um estudo sintático-diacrônico.
Londrina: Editora da UEL, 1997.
DUARTE, M. E. L. Clítico acusativo, pronome lexical e categoria vazia no português
do Brasil. In: TARALLO, F. (org.) Fotografias sociolinguísticas. Campinas: Pontes,
1989. p. 19-34.
FERNANDES, S. D. O Jogo das representações gráficas. In: DEL RÉ, A. (org.).
Aquisição da Linguagem – Uma abordagem Psicolinguística. São Paulo: Contexto,
2006.
FERNÁNDEZ, E. M. Bilingual sentence processing – Relative clause attachment
in English and Spanish. John Benjamins Publishing Compagny: Amsterdam/
Philadelphia, 2002.
FRAZIER, L. On Comprehending Sentences – Syntactic Parser Strategies. 1979.
Tese (Doutorado) – University of Massachusetts, Connecticut, 1979.

39
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

GARCIA, D. C. de. Processamento de palavras. In: MAIA, M. Psicolinguística,


psicolinguísticas – Uma introdução. São Paulo: Contexto, 2015. p. 59-70.
GARDNER, R. A.; GARDNER, B. T. Teaching sign language to a chimpanzee.
Science, New series, v. 165, n. 3894, p. 664-672, ago., 1969. Disponível em: https://
pdfs.semanticscholar.org/a4d2/8094c9e41b753cfdcf51bc9a9b5ba2a0c219.pdf.
Acesso em: 16 abr. 2020.
GROLLA, E.; FIGUEIREDO E SILVA, M. C. Para conhecer – Aquisição da
Linguagem. São Paulo: Contexto, 2014.
GUASTI, M. T. Language Acquisition – The growth of grammar. Cambridge,
Massachusetts; MIT Press, 2002.
HESS, E. Nim Chimpsky – The chimp who would be human. New York: New York
Times best sellers, 2008.
KATO, M. No mundo da escrita – Uma perspectiva psicolinguística. São Paulo:
Ática, 2002.
KATO, M. A gramática do Letrado: Questões para a teoria gramatical. In: MARQUES,
M. A.; KOLLER, E.; TEIXEIRA, J.; LEMOS, A. S. (org.). Ciências da Linguagem:
trinta anos de investigação e ensino. Braga: CEHUM (U. do Minho), 2005.
KENEDY, E. Curso Básico de Linguística Gerativa. São Paulo: Contexto, 2013.
LEITÃO, M. Processamento Anafórico. In: MAIA, M. Psicolinguística,
psicolinguísticas – Uma introdução. São Paulo: Contexto, 2015.
LOBATO, L. M. P. Sintaxe Formal e Ensino de Língua Portuguesa. Caderno de
Squibs: Temas em estudos formais da linguagem, v. 4, n. 1, p. 14-26, 2018.
MAGALHÃES, T. M. V. O sistema pronominal sujeito e objeto na aquisição do
português europeu e do português brasileiro. 161 f. Tese (Doutorado) – UNICAMP,
Campinas, 2006.
MAIA, J. M. M. Aposição de orações Relativas no Português e no Inglês: O
Processamento no bilinguismo. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ, 2005.
MAIA, M. Processamento de frases. In: MAIA, M. Psicolinguística, psicolinguísticas
– Uma introdução. São Paulo: Contexto, 2015.
MAIA, M. Computação Estrutural e de Conjuntos na Leitura de Períodos: Um Estudo
de Rastreamento Ocular. In: MAIA, M. Psicolinguística e educação. Campinas, SP:
Mercado das Letras, 2018.
MAMPE, B.; FRIEDERICI, A. D.; CHRISTOFHE, A.; WERMKE, K. Newborns’ cry
melody is shaped by their native language. Current Biology 19(23): 1994-1997, 2009.
MARTIN, C. L.; FABES, R. Discovering child development. 2. ed. Boston: Houghton
Mifflin Company, 2009.

40
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

MEDEIROS JUNIOR, P. Gramática sim, e daí? Reflexões acerca do ensino de


gramática nos anos da educação básica. Curitiba: CRV, 2020.
MEDEIROS JUNIOR, P.; MARINHO, G. A matemática da linguagem: como a
linguagem se organiza na mente. (em preparação).
MIOTO, C.; FIGUEIREDO E SILVA, M. C.; LOPES, R. E. V. Novo Manual de
Sintaxe. 2. ed. rev. Florianópolis: Insular, 2000.
MORAIS, J. A arte de ler. São Paulo: EDUNESP, 1995.
PINKER, S. O instinto da linguagem – Como a mente cria a linguagem. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
PIRES DE OLIVEIRA, R.; QUAREZEMIN, S. Gramáticas na escola. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2016.
RYABOV, V. A. The study of acoustic signals and the supposed spoken language
of the dolphins. In: ScienceDirect, St. Petersburg Polytechnical University Journal:
Physics and Mathematics 2. 231–239, 2016. Disponível em: www.sciencedirect.
com. Acesso em: 16 abr. 2020.
SILVA, D. C. de L; ENEAS, E. L. S.; FERRARI NETO, J.; LIMA, H. M. de.
A Relação de Problemas no Processamento da Linguagem com Dificuldades de
Aprendizagem. In: Revista de Pesquisa Interdisciplinar, Cajazeiras, v. 2, n. 2, 149-
156, jun/dez. de 2017.
SIMÕES, L. J. Aprendizagem da gramática do português escrito: algumas reflexões a
partir da aquisição da língua falada. In: GUEDES, P. C. (org.). Educação linguística
e cidadania. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012. p. 63-86.
TENANI, L. E. Banco de Dados de Escrita do Ensino Fundamental II. Disponível
em: http://www.convenios.grupogbd.com/redacoes/Login. Acesso em: 07 jun. 2020.
VON FRISCH, K. The Dance Language and Orientation of Bees. Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1967.
WERNICKE, C. Der aphasische Symptomencomplex. Breslau: Kohn and Weigert;
1874.

41
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

OS ESTUDOS LINGUÍSTICOS E A FORMAÇÃO DO PROFESSOR


DA EDUCAÇÃO BÁSICA: UMA PROPOSTA CONCRETA

Maria José Foltran


Patrícia Rodrigues
Marcus Vinicius Lunguinho

1. INTRODUÇÃO

Tem-se firmado entre os linguistas o consenso de que é necessário


“reintroduzir” o ensino de gramática nas escolas. A ideia é que esse
ensino não se dê com fins exclusivamente instrumentais, mas que se
constitua também em uma prática autônoma, que coloque o conhecimento
da língua como um fim em si mesmo. As questões de ordem gramatical
nunca foram, de fato, deixadas de fora dos livros didáticos, mas sempre
estiveram fortemente apoiadas nas descrições propostas nas gramáticas
tradicionais. Por essa razão, a discussão sobre o ensino gramatical tem
levado os linguistas a se debruçarem criticamente sobre essas gramáticas
e a apontarem vários problemas relativos à descrição dos fatos da língua,
que englobam questões tratadas de forma incompleta, confusa e mesmo
errônea, até questões totalmente ignoradas, seja pelo fato de pertencerem
a variantes consideradas “erradas”, seja pelo fato de serem efetivamente
desconhecidas dos gramáticos. Além dessas inadequações, há igualmente
críticas a respeito do fato de a escola trabalhar com um padrão de língua
excessivamente artificial.
Essas críticas só se tornaram possíveis a partir do desenvolvimento
dos estudos linguísticos, em especial dos estudos gerativistas, que permi-

43
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

tiram nos últimos 50, 60 anos o acúmulo de um extenso corpo de conhe-


cimentos sobre as línguas em geral e sobre o português em particular. No
entanto, esse conhecimento ainda está, em quase sua totalidade, muito
restrito aos pesquisadores nos centros universitários. Como já apontava
Lobato (2015)1, há uma grande defasagem entre esse conhecimento e
o conhecimento veiculado nos livros didáticos e gramáticas escolares.
Assim, há um extenso caminho a ser percorrido, se o objetivo é implan-
tar nas escolas um ensino de gramática que contemple as descobertas
recentes da Linguística. Para tanto, além de se pensar na transposição
didática desses conhecimentos linguísticos recentes para a sala de aula na
Educação Básica, deve-se pensar também na transposição didática desses
conhecimentos nos cursos de formação dos professores que vão atuar na
Educação Básica, lembrando-se de que não é necessário “transformar em
linguista todo professor de língua do ensino básico” (LOBATO, 2015).
Este trabalho defende a necessidade da transposição didática no nível
da formação dos professores da Educação Básica e propõe uma discussão
inicial sobre o conteúdo a ser introduzido nessa formação, o qual, por
um lado, deve ser articulado a um programa de ensino que respeite os
objetivos visados pelo ensino de gramática e, por outro, deve ser detalhado
sem, no entanto, conter tecnicalidades em excesso. Pretende-se que essa
discussão seja o ponto de partida para um projeto de trabalho que vise a
contribuir para a confecção de um material – na forma de uma coleção
de livros ou fascículos – que possa servir de apoio e de referência tanto
para professores e alunos dos cursos de Licenciatura em Letras, como
para professores que já atuam na Educação Básica e também para autores
de materiais didáticos.
Para que se possa, no entanto, iniciar a discussão sobre a formação
do professor da Educação Básica, algumas questões devem ser esclareci-
das. Qualquer que seja a posição adotada quanto ao ensino de gramática
na Educação Básica – o ensino com finalidade instrumental ou como
prática autônoma –, é consenso que o professor deve dominar a norma
culta brasileira e ser capaz de cotejá-la com as outras normas presentes
na comunidade em que trabalha, pois um dos objetivos centrais da escola
1 Esse texto corresponde à publicação de conferência proferida pela autora em 2003.

44
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

é viabilizar a proficiência do aluno na norma culta, além de torná-lo


consciente da existência de outras variedades. Assim, para enquadrar
a discussão da nossa proposta, julgamos necessário discutir primeira-
mente qual é a norma culta brasileira e de que forma ela se distingue
de outras normas. Na sequência, abordamos a questão dos diferentes
posicionamentos relacionados ao ensino de gramática, que estamos de-
signando de instrumental e científico, e defendemos que esses diferentes
posicionamentos podem ser contemplados com o projeto de elaboração
de material para suporte didático proposto no presente trabalho. Dado
que a perspectiva instrumental é aquela que fundamenta as orientações
presentes nos documentos oficiais, abordamos igualmente a questão do
ensino de gramática nesses documentos e mostramos a necessidade de
retomar essa discussão de forma mais especializada. Em seguida, para
ilustrar a proposta sobre o projeto de trabalho voltado para a formação do
professor da Educação Básica, elencaremos uma série de temas a serem
desenvolvidos e discutiremos mais detalhadamente um desses temas,
com o objetivo de propor um modelo para o material a ser elaborado.
Este trabalho seguirá o seguinte esquema: na seção 2, discutimos
questões referentes aos conceitos de norma; na seção 3, identificamos
diferentes posicionamentos relacionados ao ensino de gramática e apre-
sentamos a discussão sobre ensino de gramática em documentos oficiais;
na seção 4, delineamos o projeto proposto no presente trabalho e apre-
sentamos a abordagem de um tema nos moldes que temos em mente, já
como primeiro passo de realização do projeto. Na seção 5, apresentamos
algumas sugestões dirigidas ao professor da Educação Básica voltadas
para a organização do material de ensino. Por fim, na seção 6, apresen-
tamos as considerações finais.

2. NORMA E GRAMÁTICA

Desde que os linguistas começaram a participar das discussões re-


ferentes ao ensino de língua materna – mais ou menos nos idos dos anos
1960 –, observa-se pelo menos um consenso em suas posições: é tarefa
da escola levar os alunos a dominar as normas de prestígio. A questão

45
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

fundamental que se coloca nesse âmbito é discernir de forma realista


que norma é essa.
Embora a expressão norma culta, algumas vezes, seja usada de
maneira equivalente à expressão norma-padrão, é importante distinguir
esses dois conceitos, porque eles compõem o cerne dos encaminhamentos
metodológicos para o ensino do português no Brasil e estão fortemente
relacionados ao que se entende por gramática e seu ensino. Faraco (2008)
nos dá as bases para fazer tal distinção. O autor observa que a expressão
norma culta passou a exprimir diferentes sentidos a partir do momento em
que especialistas começam a tecer severas críticas ao ensino tradicional
calcado em exercícios de pura identificação e classificação de palavras
e de funções sintáticas. Esses sentidos preenchem os vazios provocados
pela condenação de um ensino eminentemente gramatical, constituindo
um termo novo que, no fundo, só servia para dar uma roupagem nova
à tradição conservadora. Em outras palavras, ensinar norma culta ficou
sendo, na prática, ensinar gramática nos moldes conservadores. Esse
mecanismo de mudar a palavra mas não a prática serve apenas para
encobrir um dilema que fundamenta as questões linguísticas no Brasil.
Essas questões, segundo o autor, são não só de natureza linguística, mas
também de natureza política. Para clarear esses conceitos, continuamos
nos baseando em Faraco (2008).
A noção de norma estabelecida por Coseriu (1979) no quadro es-
truturalista vem para fornecer um amparo teórico para a heterogeneidade
linguística observada em todas as línguas, como mostram, à exaustão,
os estudos científicos da linguagem. Com base nesse construto teórico,
norma seria um conjunto de fatos linguísticos que são recorrentes numa
determinada comunidade de fala. É fato comprovado que toda norma é
estruturalmente organizada e regida por regras. Dizendo de outro modo,
não há norma sem gramática e isso passou a colocar em xeque a noção
de erro em língua.
A diversidade observada nas línguas reflete a própria organização
social de que fazem parte os falantes. Quanto mais diversa a socieda-
de, maior o número de normas linguísticas. E mais, a língua não varia

46
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

apenas nos estratos sociais e nas diferentes comunidades, mas varia no


próprio indivíduo, que pode dominar mais de uma norma, resultado de
sua interação com diferentes grupos. Essas diferentes normas se entre-
laçam, influenciando-se mutuamente. Portanto, as normas são também
híbridas – não há norma pura. Diante desse quadro, é possível dizer que
o conceito de norma está relacionado com normalidade, ou seja, aquilo
que é costumeiro, característico de uma determinada comunidade.
A norma culta, por sua vez, compreende as variedades (sim, porque
ela também não é homogênea) utilizadas por populações que apresentam
algumas características: são populações tradicionalmente urbanas, com
nível de renda de médio para alto, o que lhes confere maiores e melhores
oportunidades de escolaridade e de acesso à cultura escrita. É a norma
predominante nos meios de comunicação social, o que lhe dá notoriedade
e relevância diante das demais.
Vale observar, no entanto, que é ingênuo pensar que a norma culta
é a norma apresentada nas gramáticas tradicionais. Segundo Faraco, “a
norma culta brasileira falada pouco se distingue dos estilos mais moni-
torados da linguagem urbana comum”2 (FARACO, 2008, p. 46). Ela se
aproxima muito pouco das prescrições de uma tradição mais conservado-
ra. Isso se dá a ponto de termos de pensar em uma norma culta falada e
em uma norma culta escrita. Responder como é na realidade essa norma
e quem é o falante culto brasileiro é um desafio que Faraco propõe em
seu livro. A própria noção de “erro” é minimizada quando se trata de
avaliar “desvios” produzidos por esse falante culto.
Como fica, nesse quadro, a norma-padrão? A instalação desse
conceito se confunde com a história da gramática tradicional já larga-
mente descrita por muitos especialistas. Não vamos apresentá-la aqui
por restrição de espaço3. Interessa-nos mais de perto saber que essa
norma-padrão toma forma em instrumentos linguísticos que adquiriram,
dentro do contexto histórico em que foram feitos, a forma de documentos
2 Faraco usa o termo norma culta/comum/standard para denominar essa variedade de língua.
3 A história do conceito de norma-padrão bem como a história da gramática podem ser recupe-
radas em vários trabalhos como: Lyons (1979), Neves (1987), Fávero (1996), Leite (2007),
Faraco (2008), Faraco e Zilles (2017), Vieira (2018), Borges Neto (no prelo) dentre outros.

47
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

padronizadores, normatizadores. Esses documentos passam a regular o


comportamento linguístico do falante. Nessa visão, a noção de norma é
confundida com normatividade (ao contrário de normalidade, exposto
anteriormente) e a língua fica atrelada a esse padrão, um padrão anacrô-
nico e extremamente artificial.
Faraco narra como essa norma-padrão ganhou força no Brasil, no
século XIX. Embora já houvesse variedades populares com traços bra-
sileiros bem característicos, a imposição de um padrão excessivamente
artificial calcado no modelo lusitano de escrita (com base nos escritores
portugueses da época) foi impingido pela elite letrada conservadora, cujo
principal desejo era dar à nova terra ares de um país europeu, combaten-
do, dessa forma, as variedades que aqui se manifestavam. Embora esse
projeto não tenha alterado a realidade linguística brasileira, desde então
ele vem assombrando os cenários social, cultural e educacional do nosso
país. Ainda que alguns gramáticos modernos já tenham flexibilizado sua
posição em relação a esse padrão (cf. FARACO, 2008), essas gramáticas
ainda estão longe de refletir a real norma culta brasileira. Convivemos
frequentemente com posições puristas, principalmente em manifestações
na mídia impressa, que retomam incessantemente aquele padrão estrita-
mente conservador para criticar usos que, em muitos casos, são correntes
na fala culta brasileira, fortalecendo o imaginário de que não sabemos
falar português. Essa percepção é fortemente disseminada na escola,
dificultando a apreensão de nossa real identidade linguística. Se a escola
discernisse norma culta dessa norma-padrão excessivamente artificial e
diferenciasse norma culta falada de norma culta escrita, acreditamos que
seria mais bem-sucedida na sua tarefa de ensinar.
Nesse cenário, a noção de gramática se limita exclusivamente a esses
instrumentos linguísticos que assumem, de maneira quase hegemônica,
a difusão dessa norma-padrão. E é essa gramática que acaba servindo
de base para os manuais escolares, muitas vezes em adaptações mal
formuladas e ainda mais limitadoras.
Os estudos acadêmicos, no entanto, já a partir dos meados do século
passado, redimensionaram o conceito de gramática. Como vimos anterior-

48
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

mente, todas as normas que constituem uma língua são estruturalmente


organizadas, ou seja, são providas de uma gramática. Essa gramática é
o conhecimento que o falante possui e que o torna proficiente em sua
língua. É, na realidade, o que sabemos de forma inconsciente, intuitiva.
No entanto, não temos acesso direto a esse conhecimento. Vamos chamar
esse conhecimento de gramática do falante ou gramática internalizada, ou
Língua-I, tal como discutido no primeiro capítulo. Ao assumirmos que
todo falante tem em sua mente essa gramática internalizada, o pressuposto
de que ninguém sabe a sua língua cai por terra. A partir dessa assunção,
podemos dizer que há um conhecimento já construído e que deve servir
de base para aprendizagens linguísticas adicionais.
A ciência da linguagem passa a ter, a partir dessa constatação, um
novo objeto de estudo: descrever as regras codificadas na mente do
falante e que norteiam sua fala. Assim, teremos não só uma gramática,
mas tantas quantas necessárias para descrever as diferentes normas e, no
limite, tantas quantos são os falantes de uma língua. A sistematização
desses conhecimentos em regras e estruturas constitui o que conhece-
mos por gramáticas descritivas. Uma gramática descritiva, ao contrário
das gramáticas tradicionais, são descrições que tentativamente buscam
retratar o conhecimento dos falantes. Esse tipo de gramática não é pa-
dronizadora ou normatizadora. Ao contrário, está calcada nos diferentes
usos linguísticos que permitem entrever o conhecimento que torna aquele
falante (ou comunidade de falantes) proficiente em sua língua. Atual-
mente, é possível constatar uma produção já significativa de descrições
das várias normas da língua, inclusive da norma culta, incluindo aí a
produção de gramáticas descritivas (MATEUS et al., 2003; CASTI-
LHO, 2010; PERINI, 2010, 2016; NEVES, 2011, 2016; BAGNO, 2012;
ABAURRE, 2013; RAPOSO et al., 2013; ILARI, 2014, 2015; JUBRAN,
2015; KATO; NASCIMENTO, 2015; RODRIGUES; ALVES, 2015;
VITRAL, 2017). Essa produção crescente cria um quadro favorável para
as mudanças necessárias em termos de acesso a instrumentos linguísticos
que possam servir de base para os materiais didáticos. Nesse sentido, é
importante que os linguistas, a partir do extenso corpo de conhecimentos
sobre o português brasileiro acumulado nas últimas décadas, também se

49
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

envolvam na tarefa de transpor esse conhecimento para a sala de aula.


Como parte dessa tarefa, vislumbramos a produção de material que dê
suporte à formação do professor da Educação Básica e à produção de
material didático; é nesse nicho de trabalho que se insere o projeto que
delineamos neste capítulo.

3. POSICIONAMENTOS SOBRE O ENSINO DE GRAMÁTICA

A partir da vasta literatura sobre ensino de gramática, salientamos


dois posicionamentos correntes: (i) o ensino com finalidade instrumen-
tal, que propõe o ensino da gramática a partir de textos; (ii) o ensino
científico, que toma a gramática como forma de divulgar metodologias
utilizadas pelas ciências. Vamos delinear os fundamentos de cada um
desses posicionamentos, argumentando que, independentemente do
encaminhamento adotado, a formação do professor é sempre o elemento
fundamental que permite passar de uma concepção passiva para uma
visão crítica.

3.1 O ENSINO COM FINALIDADE INSTRUMENTAL

O ensino de gramática sempre foi o suporte preferido para ensi-


nar o padrão referenciado por uma determinada comunidade. Com essa
finalidade, o ensino de gramática sempre teve um foco instrumental, pri-
vilegiando acima de tudo conteúdos que apresentam divergências entre a
forma padrão e outras formas da língua, como a sintaxe de concordância,
de regência, de colocação. Tradicionalmente, esse ensino se dava com
base na utilização direta da gramática tradicional como material didático,
travestida muitas vezes nas chamadas gramáticas pedagógicas. Mais
modernamente, com a introdução dos estudos linguísticos nas universi-
dades brasileiras, o ensino gramatical tradicional é colocado em xeque
e privilegia-se o estudo gramatical a partir do texto. Discutimos a seguir
essas duas perspectivas.

50
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

3.1.1 O ensino com base na gramática tradicional

Quando se critica o ensino baseado na gramática tradicional, a crí-


tica está muito mais voltada para os pressupostos que subjazem a essa
metodologia, do que para o tipo de gramática em si. A história da tradição
gramatical explica a construção e constituição da gramática tradicional,
em especial seu caráter prescritivista. Esse tipo de gramática surgiu como
um instrumento para divulgação de uma variedade linguística assumida
como modelar – a língua dos bons escritores – e construiu boas descri-
ções que são usadas até hoje. Conhecer essas descrições, saber de suas
vantagens e de seus limites é fundamental para qualquer profissional da
linguagem, em especial, para os professores. Quando se fala, no entanto,
em ensino tradicional, não se deve entender que a referência é exclusi-
vamente a esse aparato descritivo, mas, acima de tudo, essa referência
se volta para alguns pressupostos que embasam essas análises e para
metodologias utilizadas em seu ensino.
O primeiro desses pressupostos diz respeito à concepção de língua,
entendida nesse quadro como uniforme, homogênea. Há um modelo de
língua a ser seguido e tudo que se afasta desse modelo é entendido como
desvio, como forma a ser condenada. Desse modo, a dicotomia certo
versus errado norteia o uso da língua.
Com base nessa dicotomia, podemos elencar o segundo pressuposto:
todas as falas desviantes desse padrão são usos errados da língua. Além
de serem avaliados como errados, tais usos são também tratados como
feios, desagradáveis (porque fazem o ouvido doer) entre outras atitudes
linguísticas de cunho negativo. Como esse padrão é excessivamente
artificial, há um distanciamento significativo entre o padrão e as normas
efetivamente usadas (inclusive aquelas usadas pelas pessoas letradas).
Desse distanciamento, resulta o sentimento de que os falantes não sa-
bem falar a sua língua. Essa conclusão é e sempre foi nefasta. Ela é tão
forte no contexto brasileiro que, ainda hoje, é bastante comum encontrar
pessoas, mesmo com ensino superior, que afirmam não saberem falar
bem português.

51
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Além da vigência dessas concepções, o ensino conservador de


gramática buscava desenvolver a capacidade de escrita do aluno, e, para
tanto, se valeu de uma metodologia pouco eficiente, como os exercícios
para identificar e classificar as palavras e as funções sintáticas, privile-
giando uma abordagem da gramática excessivamente centrada em aspec-
tos metalinguísticos. Além disso, em vez de ressaltar as regularidades da
língua, o ensino de português deu sempre mais valor às irregularidades
(presentes nas gramáticas como as conhecidas exceções). Isso também
ajuda a fortalecer a sensação de que não sabemos a língua.
É importante observar, no entanto, que a gramática tradicional vai
persistir ainda por muito tempo como eixo central no ensino de língua.
E não há nenhum problema que seja assim, desde que possamos aliar
a muitas de suas descrições os novos conhecimentos construídos pela
Linguística. Para dar um exemplo, a compreensão da estrutura argumental
dos verbos torna a análise sintática mais palpável, mais concreta. Além
disso, há de se ampliar a nomenclatura, pois não faz mais sentido pensar
a estrutura de uma sentença sem ter clareza de noções como constituintes,
sintagmas nominais, sintagmas verbais, etc.

3.1.2 O ensino de gramática a partir do texto

Quando o ensino de gramática tal como proposto no ensino tradi-


cional foi colocado em xeque, alegou-se que esse ensino não ajudaria em
nada na formação dos alunos como leitores proficientes. Um dos argu-
mentos a favor dessa tese sempre foi o depoimento de alguns escritores
dizendo que sabiam muito pouco de gramática. Novamente, a palavra
gramática é usada de forma não qualificada. O que significa não saber
gramática nesses casos? Certamente, refere-se a certas classificações que
não contribuem para uma reflexão sobre a língua. Neste caso, podemos
concordar que isso não é crucial para ler ou escrever um texto. Mas qual-
quer reflexão mais especializada que se faz sobre a língua permite-nos
manipulá-la com maior eficiência.
Numa forma de contornar essas críticas, optou-se por dar ao texto
o caráter nuclear do ensino: como a língua é entendida como forma de

52
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

interação social, comunicamo-nos através de textos. Por isso, trabalhar


com o texto passa a ser a atividade nuclear. Qualquer atividade gramatical
deveria ser proposta a partir do texto e para o texto. Para fazer referência
a este trabalho, o termo análise linguística passa a ser recorrente. Na
concepção de Geraldi (1984), a análise linguística deveria contemplar
especialmente o texto produzido pelos alunos. A partir de uma produção
textual, o texto se transformaria em objeto de análise. Nessa atividade,
um item gramatical era escolhido para estudo e o aluno era instado a
reescrever seu texto a partir dessas reflexões. Assim, o ensino se estrutu-
rava a partir de três eixos: a produção/leitura de textos, a reflexão/análise
de tópicos gramaticais e a reescrita do texto. Em Geraldi (1997), essa
prática é ampliada. O autor passa a afirmar que as atividades de análise
linguística não se limitariam à produção textual do aluno. Ao contrário, o
professor deveria organizar atividades sobre o ponto gramatical escolhido,
apresentando aspectos sistemáticos da língua portuguesa.
A prática de análise linguística permitiu recuperar três níveis de
atividades propostas em Franchi (2006)4:

• a análise linguística – exercícios de atividade oral e escrita;

• a atividade epilinguística – prática que opera sobre a própria lingua-


gem, transformando-a, experimentando novos modos de construção,
brincando com a linguagem e buscando formas linguísticas com novas
relações de significação; e

• a atividade metalinguística – exercícios de sistematização, classifica-


ção e denominação dos fatos da língua à luz de uma teoria gramatical.

Essa prática foi implementada utilizando-se como alicerce o conhe-


cimento desenvolvido pela linguística textual, que acabou adquirindo uma
importância fundamental no ensino de português na Educação Básica.

4 Esse texto foi inicialmente publicado em 1988 pela Secretaria da Educação/Coordenadoria de


Estudos e Normas Pedagógicas (CENP) do estado de São Paulo.

53
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Assim, embora a adoção do trabalho com o texto como atividade


nuclear não exclua as atividades voltadas ao ensino especificamente gra-
matical, a transposição dessas noções e desses conteúdos para o material
didático ficou limitada à exploração de certos aspectos em detrimento de
outros. A impressão que dá é que se criaram fórmulas que foram repeti-
das exaustivamente. No campo da linguística textual, privilegiaram-se a
recuperação dos antecedentes de anáforas e o valor semântico das con-
junções e outros elementos de ligação (caracterizados como operadores
argumentativos), na maioria dos casos. Nas atividades metalinguísticas,
privilegiou-se o reconhecimento de classes de palavras, incorrendo nas
velhas práticas de ensino pautadas na gramática tradicional.
Vale ressaltar que esse tipo de orientação para o ensino de língua
constituiu o princípio norteador para a confecção das orientações cons-
tantes nos documentos oficiais. Alguns conceitos assumidos nesses docu-
mentos com relação ao ensino gramatical não são, contudo, explicitados
adequadamente. A seção que segue busca mostrar as inadequações que
se referem ao conceito de “gramática” e argumenta pela necessidade de
se retomar essa discussão de forma mais especializada.

3.1.2.1 O ensino de gramática nos documentos oficiais

A partir do momento em que a linguística questiona o ensino tra-


dicional, por ele não proporcionar uma devida reflexão sobre a língua,
e propõe o estudo do texto como atividade fundamental, instaura-se
entre os pesquisadores um debate sobre a necessidade do ensino de
gramática. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) apresentam um
posicionamento claro a respeito desse debate: “tem-se discutido se há ou
não necessidade de ensinar gramática. Mas, essa é uma falsa questão:
a questão verdadeira é para que e como ensiná-la” (BRASIL, 1997, p.
31). Dizendo de outro modo, o ensino de gramática precisa recuperar
os fundamentos que norteiam a elaboração de gramáticas, quais sejam,
a capacidade de se usar a linguagem para falar da própria linguagem e,
dessa forma, analisar fenômenos observáveis nas línguas, ou em suas
variedades. Esses fundamentos estão claramente pautados nos PCN:

54
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

As atividades de análise linguística são aquelas que tomam


determinadas características da linguagem como objeto de
reflexão. Essas atividades apoiam-se em dois fatores:
• a capacidade humana de refletir, analisar, pensar sobre os
fatos e os fenômenos da linguagem; e
• a propriedade que a linguagem tem de poder referir-se a si
mesma, de falar sobre a própria linguagem (BRASIL, 1997,
p. 53).

Esse posicionamento vai ao encontro das manifestações de lin-


guistas quando falam de análise gramatical ou de análise linguística. É
importante, no entanto, ter clareza do que se deve entender quando se
usa o termo gramática. O domínio desse conceito é crucial no contexto
de ensino de língua. Já é consenso na literatura falar-se de três tipos de
gramática: a gramática internalizada (ou gramática do falante), a gramá-
tica tradicional ou normativa e a gramática descritiva. Esses conceitos
já foram amplamente tratados por diferentes especialistas (POSSENTI,
1996; FRANCHI, 2006; PERINI, 2016, dentre outros). Nos PCN, essa
distinção é trazida à tona e vamos nos servir dela para abordar a questão.
Os PCN+EM5, ao se referirem à competência gramatical, obser-
vam que o “ensino de gramática não deve ser visto como um fim em si
mesmo, mas como um mecanismo para a mobilização de recursos úteis
à implementação de outras competências, como a interativa e a textual”
(BRASIL, 2006, p. 81). Nesse ponto, retomam-se no texto os conceitos
de gramática, com a seguinte elaboração:

Vale aqui retomar a abordagem gramatical adotada neste docu-


mento. Ainda que se reconheça como legítima a conceituação
da gramática como um conjunto de regras a partir das quais
uma língua se corporifica, parece conveniente lembrar que há
pelo menos três visões para esse conjunto de regras:

5 Os PCN se apresentam em três grupos: os de Ensino Fundamental para o I e II ciclos (BRA-


SIL, 1997), os de Ensino Fundamental para o III e IV ciclos (BRASIL, 1998) e os de Ensino
Médio (PCNEM) (BRASIL, 2000). Esse último documento (PCNEM) é desdobrado em outro
documento conhecido como PCN+Ensino Médio: orientações educacionais complementares
aos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 2006).

55
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

• aquelas que são seguidas;


• aquelas que podem ser seguidas;
• aquelas que devem ser seguidas.

Quando se observa que o falante natural de uma língua obedece


minimamente às convenções estabelecidas pelo grupo social
de usuários, respeitando os acordos praticados no nível mor-
fológico, sintático e semântico, temos um quadro de gramática
internalizada.
Quando se observa que esse mesmo falante pode ou não seguir
determinadas convenções linguísticas sem que, com sua atitude
e com as variações adotadas, seja mais ou menos reconhecido
como um legítimo usuário dessa língua, temos um quadro de
gramática descritiva.
Quando se observa que esse falante sofre discriminação por não
seguir as convenções linguísticas adotadas, que estabelecem
na medida do possível o que seria certo ou errado no que diz
respeito ao emprego das regras, percebe-se que está sendo
julgado segundo um ponto de vista gramatical normativo ou
prescritivo (BRASIL, 2006, p. 81).

Há algumas inadequações nessa apresentação que precisam ser


explicitadas. Vamos fazer essa análise por tópicos, para poder esclarecer
essas impropriedades.

a. Ao buscar tipificar os tipos de gramática, o texto reconhece que a


“legítima conceituação de gramática” está atrelada ao “conjunto de
regras a partir das quais uma língua se corporifica”. Essa conceituação
é aceitável se estivermos pensando na gramática internalizada. Assim, o
conhecimento que o falante detém de sua língua, ou mais precisamente
da variedade de língua que lhe serviu de base no momento da aquisição,
é constituído por um conjunto de regras que norteia sua fala. Portanto, a
variedade linguística é corporificada pelas regras inconscientes que todo
falante domina. Em outro trecho do mesmo documento, menciona-se
acertadamente que o conceito de gramática refere-se a “um conjunto
de regras que sustentam o sistema de qualquer língua. Na fala, fazemos
uso de um conhecimento linguístico internalizado, que independe de
aprendizagem escolarizada e que resulta na oralidade” (BRASIL, 2006,

56
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

p. 60). Portanto, esse quadro não comporta três visões sobre esse con-
junto de regras, mas apenas uma: aquelas regras que são seguidas. Como
estamos diante de um conhecimento inconsciente, não é prerrogativa do
falante seguir ou não essas regras. É exatamente isso que o parágrafo
que tipifica a gramática internalizada esclarece: “o falante natural de
uma língua obedece minimamente às convenções estabelecidas pelo
grupo social de usuários, respeitando os acordos praticados no nível
morfológico, sintático e semântico” (p. 81).

b. A partir do exposto acima, somos levados a traçar um paralelo da


segunda visão (regras que podem ser seguidas) com o parágrafo que
busca tipificar gramática descritiva. Observamos aí o maior problema
dessa conceituação. Uma gramática descritiva é a opção metodológica
da linguística moderna para se descrever uma língua ou uma variedade
de língua. Como sabemos que nenhuma língua é homogênea, não haverá
uma gramática descritiva da língua como um todo, mas de alguma varie-
dade que é recortada pelo linguista. Isso fica muito claro na introdução
de uma determinada gramática ou de um trabalho descritivo. Portanto,
ao dizer que “esse mesmo falante pode ou não seguir determinadas
convenções linguísticas sem que, com sua atitude e com as variações
adotadas, seja mais ou menos reconhecido como um legítimo usuário
dessa língua”, o texto credita ao falante a possibilidade de escolher as
regras, o que não acontece. É o linguista que elabora uma gramática
ou um trabalho descritivista que observa a fala das pessoas de uma
comunidade e deduz as regras que estão sendo seguidas. É importante
observar que não se tem acesso direto à gramática internalizada, ao
conhecimento intuitivo. Consegue-se chegar às regras que formam
esse conhecimento por meio da observação da fala. É esse trabalho que
organiza um quadro de gramática descritiva.

c. Continuando com a mesma lógica, podemos agora estabelecer um


paralelo entre o conjunto de regras que devem ser seguidas e a gramá-
tica normativa ou prescritiva. Esse tipo de gramática não se embasa no
conhecimento do falante, mas em avaliações sociais e políticas que ins-
tituem um modelo de língua. Esse modelo de língua se baseia em fatores
extralinguísticos: os escritores de um determinado período, por exemplo.
Para se entender esse processo, basta pesquisarmos de que forma essa

57
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

tradição gramatical se estabeleceu no ocidente. Mas, lembrando o que


discutimos na seção em que falamos de norma, não devemos ter a ilusão
de que esse ideal de língua se realiza efetivamente na fala, mesmo dos
falantes mais cultos. Em muitos casos, quando muito, são regras que
são seguidas apenas em textos escritos mais formais. As gramáticas
normativas também são produtos de estudiosos, mas, diferentemente
das gramáticas descritivas, não se atêm ao conhecimento do falante.

Em suma, os PCN assumem claramente a opção pelo ensino ins-


trumental quando afirmam que “ensino de gramática não deve ser visto
como um fim em si mesmo”. No entanto, confundem os diferentes níveis
que se devem estabelecer quando se discutem os conceitos atrelados ao
termo “gramática”, considerando que esses conceitos estariam todos
diretamente ligados às diversas atitudes da sociedade quando julga um
indivíduo com relação à sua variante linguística. Uma descrição mais
clara e adequada desses conceitos é fundamental em um documento que
pretende orientar o professor em sua atuação profissional. O professor
deve saber que, quando se fala em gramática internalizada, fala-se de
uma gramática própria de cada indivíduo, e que, quando se fala em gra-
mática descritiva, fala-se em instrumentos, em trabalhos descritivos, e
não em uma livre escolha do falante. Ao contrário, se o falante escolhe
usar determinada variante e não outra, isso só é possível porque ele
internalizou as gramáticas dessas variantes. Assim, é necessário, pri-
meiramente, que o professor esteja consciente dessas questões, e, para
que ele possa ensinar a língua adequadamente, adotando uma postura
mais reflexiva, é fundamental que ele detenha conhecimento sobre as
propriedades das diferentes gramáticas que convivem em sua sala de
aula. Esse conhecimento só será possível se o professor tiver acesso a
instrumentos descritivos diversos, minimamente sobre a norma culta tal
como é efetivamente utilizada pelas pessoas cultas na sociedade. Nesse
sentido, há uma lacuna a ser preenchida na produção de trabalhos des-
critivos. O presente trabalho propõe justamente nortear a confecção de
um material que preencha essa lacuna.

58
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

3.2 A GRAMÁTICA COMO INICIAÇÃO CIENTÍFICA

A partir de meados dos anos 1900, desde os trabalhos de Chomsky,


as línguas humanas passam a ser vistas como parte do mundo natural.
Noam Chomsky argumenta que o correto seria ver as línguas como um
objeto natural, análogo a um órgão do corpo humano (CHOMSKY, 2000).
Nessa perspectiva, as línguas não são artefatos, nem são ensinadas ou
aprendidas pelas crianças. Ao contrário, são realidades do mundo natural
cujas propriedades e estruturas são passíveis de serem investigadas como
qualquer outro fenômeno da natureza. Isso faz das línguas naturais um
tema privilegiado para a exploração científica.
A ideia de transpor essa metodologia para a sala de aula é sugerida,
no Brasil, por Perini (1985), reapresentada em Perini (2016). Podemos
encontrar diferentes reformulações dessa metodologia em Vieira e Bran-
dão (2007), Borges Neto (2012a, 2012b), Guerra Vicente e Pilati (2012,
2016), Foltran (2013), Pires de Oliveira e Quarezemin (2016), Foltran
et al. (2017), Pilati (2017), Vieira (2018) inter alia. Esses autores suge-
rem que o ensino de gramática é uma maneira de se fazer uma iniciação
científica inicial, despertando a curiosidade e o espírito investigativo.
De início, a meta é despertar a atenção dos alunos para os fenômenos
linguísticos que ocorrem a sua volta, estabelecendo princípios e regras
que regem os usos da linguagem. Dessa forma, é possível passar pelos
diferentes passos do método científico: identificar problemas, coletar e
analisar dados, formular e testar hipóteses, avaliar essas hipóteses bus-
cando contraexemplos, revisá-las com base em evidências. A observação
de fatos linguísticos, bem como o trabalho de sistematizar sua ocorrên-
cia por meio de regras e generalizações, é uma forma de trazer à tona o
conhecimento implícito que temos. Nesse tipo de trabalho, o ensino de
gramática se distancia sobremaneira do objetivo de ensinar norma culta.
Embora já haja formulações nesse sentido no Brasil, desconhecemos
relatos de uma aplicação mais concreta.
Fora do Brasil, ao contrário, já há registro de experiências nesse
viés bem sucedidas. Citamos aqui os americanos Maya Honda e Wayne
O’Neil, que desenvolveram esse trabalho em escolas de ensino médio.

59
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Esse trabalho pode ser acessado em Honda e O’Neil (2008, 2017). Os


autores buscam aproximar os alunos da atividade científica, por meio da
descrição linguística. O linguista, ou falante nativo, segundo os autores,
teria privilégios sobre outros cientistas porque não precisa de equipamen-
tos ou recursos sofisticados para observar os dados que estuda – isso está
em sua mente. Com esse trabalho, os alunos adquirem um conhecimento
sólido sobre traços da linguagem universal e de línguas particulares. Por
meio do relato dessa experiência, percebemos como os alunos se bene-
ficiam das lições de linguística, deixando de lado uma visão ingênua de
como a ciência funciona.
Outras experiências interessantes são relatadas por David Adger,
professor da Universidade Queen Mary6, em Londres. Juntamente com
estudantes universitários, Adger coordena um curso de verão para alu-
nos de ensino médio. Esses alunos têm de inventar línguas ou analisar
línguas inventadas. A ideia que rege o trabalho é exatamente a que já
apresentamos: observar os dados, criar, avaliar e refazer hipóteses.
Para um trabalho efetivo em sala de aula sob essa perspectiva do
ensino de gramática, que tem o objetivo de contribuir para o letramento
científico do aluno, é fundamental que o professor tenha acesso a trabalhos
descritivos de qualidade, voltados para questões gramaticais. Por isso,
é importante pensarmos na formação do professor. De nada adiantam
técnicas arrojadas, materiais refinados, equipamentos de última geração e
exercícios de ponta se o professor não detiver um corpo de conhecimentos
sólidos sobre o seu objeto de estudo: a língua. Sendo assim, a formação
(inicial e continuada) do professor deve ser preocupação central na for-
mulação das políticas educacionais. Além disso, o professor deve ter em
mente que sua formação é contínua. Assim como a pesquisa linguística
vai revelando fatos novos sobre a dinâmica interna e externa das línguas,
o professor deve sempre aprender coisas novas sobre a língua.

6 Relatos deste trabalho podem ser acessados em https://davidadger.org/2017/05/29/inventing-


languages-how-to-teach-linguistics-to-school-students/ e https://www.psychologytoday.com/
us/blog/language-unlimited/201908/where-do-the-rules-grammar-come.

60
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

3.3 À GUISA DE CONCLUSÃO

Finalizando esta seção, reafirmamos que, independentemente de


qual tipo de ensino gramatical o professor privilegie, é necessário que
ele tenha acesso a bons instrumentos descritivos referentes às variantes
linguísticas presentes na sala de aula, porque, como já afirmava Lobato
(2015), o professor da Educação Básica não precisa ser um linguista
pesquisador, mas deve poder ter acesso ao corpo de conhecimentos
produzidos pelos estudos linguísticos.

4. UM PROJETO PARA SUBSIDIAR O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

Como especificado na introdução, o objetivo deste trabalho é


apresentar a proposta de um projeto voltado à confecção de material
que possa servir de apoio e de referência para professores e alunos dos
cursos de Licenciatura em Letras, professores que já atuam na Educação
Básica e autores de material didático. A ideia que subjaz a esse projeto é
a de que deve haver um trabalho de transposição didática voltado para a
formação de professores de língua portuguesa e de autores de materiais
direcionados ao ensino dessa língua, para que eles possam ter acesso ao
conhecimento sobre a língua portuguesa acumulado nas últimas décadas
sem precisar necessariamente se envolver com um levantamento e uma
compilação desses estudos.
A proposta é a de que o material a ser desenvolvido reúna, essencial-
mente, as principais descrições sobre alguns fenômenos da “linguagem
urbana comum”, que, de acordo com Faraco (2008), balizam o falar culto
no país. Esse material privilegiaria a discussão de temas como: (i) usos e
propriedades (formais e semânticas) das formas linguísticas; (ii) ordem
de constituintes e efeitos semânticos-pragmáticos; (iii) mecanismos e
padrões de concordância (nominal e verbal); (iv) relações de dependência
entre constituintes (seleção argumental, dependências morfossintáticas)
entre outros. Não é nosso objetivo avançar aqui numa lista completa
desses temas, os quais deverão ser selecionados depois de uma cuidadosa
análise dos programas de ensino e da finalidade do ensino de gramática.

61
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

O principal objetivo desta seção é apresentar e discutir um mode-


lo para o material a ser elaborado. No nosso modelo, estudaremos as
gramáticas das formas pronominais do português brasileiro e, dentro
desse domínio, trataremos de alguns aspectos dos pronomes você e seu.
Naturalmente, essa discussão não será exaustiva. Ela servirá apenas para
ilustrar a nossa proposta.

4.1 ASPECTOS DAS GRAMÁTICAS DOS PRONOMES VOCÊ E SEU

O estudo das gramáticas do português permitiu que aprendêssemos


muito acerca das características do sistema pronominal dessas gramáticas.
Diversos estudos mostram, por exemplo, como o quadro pronominal do
português se constituiu, de que forma esse sistema se organiza interna-
mente, que traços fazem parte da estrutura dos pronomes do português
entre outras propriedades. Conhecer os resultados desses estudos é
importante para o professor da Educação Básica, porque, muitas vezes,
as descrições sobre esse quadro pronominal são confusas ou mesmo er-
rôneas e não condizem com os fatos da língua. Nas seções que seguem,
elencamos algumas das principais características dos pronomes você e
seu, bem como análises que consideramos mais consistentes.

4.1.1 Sobre o pronome você

O pronome você entra na gramática do português por meio do pro-


cesso ilustrado em (1)7:

(1) Vossa Mercê > vossemecê > vosmecê > você

O ponto inicial desse processo é o constituinte nominal Vossa Mer-


cê, formado a partir da combinação do pronome possessivo Vossa com
substantivo Mercê e que inicialmente era uma forma de tratamento restrita
ao rei e expressava respeito. Com o passar do tempo, esse constituinte
7 O esquema está simplificado. Para um quadro mais completo, consultar Rumeu (2004) e
Gonçalves (2008), os quais trazem propostas de diferentes autores para o processo de grama-
ticalização de você.

62
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

nominal perde elementos fonéticos, perde propriedades morfológicas,


perde liberdade sintática e perde seu significado original. Desse movi-
mento de perdas sucessivas, resulta a forma você no processo conhecido
como gramaticalização, que é um processo de mudança linguística em
que itens lexicais se tornam itens gramaticais (FARACO, 1996, LOPES;
BROCARDO, 2016). No caso ilustrado em (1), o sintagma nominal
Vossa Mercê, sintagma cujo núcleo é da categoria lexical substantivo
(nome), sofre gramaticalização e se torna o pronome você, uma catego-
ria funcional. Essa alteração de categoria gramatical é ilustrada abaixo:

(2) [ Vossa [ Mercê ] ] > … > você


↓ ↓
Nome Pronome

Em outras variedades, o percurso de gramaticalização foi além e


mais perdas fonéticas produziram outras formas a partir de você (cf.
VITRAL; RAMOS, 2006)8:

(3) você > ocê > cê

Apesar dessa variedade de formas derivadas da gramaticalização de


Vossa Mercê, vamos voltar nossa atenção à forma você e discutir algumas
questões referentes a esse pronome.

4.1.1.1 A NATUREZA MORFOLÓGICA DE VOCÊ

Como vimos acima, o pronome você resulta de um processo diacrô-


nico de mudança linguística no qual a expressão nominal Vossa Mercê
passa a você. Apesar de seu percurso de gramaticalização ser claro e sua
mudança categorial ser inconteste (nome > pronome), sua classificação
como pronome ainda levanta uma discussão que precisa ser esclarecida.
8 Amadeu Amaral (1976) relata que, no dialeto caipira, variedade linguística por ele estudada,
existem diferentes formas derivadas de Vossa Mercê, como mecê, ocê, sunsê, vacê, vamicê,
vancê, vassuncê e vossuncê, as quais são diferentes em termos de uso. A essas formas, Faraco
(1996) acrescenta vosmecê.

63
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Classificamos você como um pronome. As gramáticas também o


fazem, no entanto, diferem quanto ao subtipo de pronome a que você
pertence. Cunha e Cintra (2017, p. 303) analisam você como um pronome
de tratamento. Bechara (2009, p. 140) vai no mesmo caminho e discute
esse pronome no tópico das formas de tratamento, classificando-o como
pronome de tratamento (ou forma substantiva de tratamento ou forma
pronominal de tratamento). Rocha Lima (2011, p. 158 e 386), por sua vez,
difere dos anteriores e trata você como um pronome pessoal, elencando-o
ao lado de pronomes como eu e ele9.
Como se vê, há duas questões relativas à abordagem do pronome
você nas gramáticas acima. A primeira delas é a profusão de termos
usados em sua análise como pronome de tratamento: você é apresentado
como pronome de tratamento, como forma substantiva de tratamento e
como forma pronominal de tratamento. Lendo as gramáticas cuidado-
samente, vemos que todos esses termos se referem a sua classificação
como pronome de tratamento. Trazendo essa questão para o terreno do
ensino de língua, a multiplicidade terminológica pode levar a confusão
interpretativa por parte de professores e alunos se não for esclarecida
desde o início de sua apresentação. Ou seja, se há vários nomes para de-
terminado fenômeno, isso deve ser imediatamente apontado para evitar
dúvidas e erros.
A segunda questão é a própria natureza do pronome você. Apesar
de os gramáticos concordarem em relação à sua classificação como
pronome, eles discordam quanto ao tipo de pronome: Rocha Lima
(2011) o analisa como pronome pessoal ao passo que Cunha e Cintra
(2011) e Bechara (2010) o analisam como pronome de tratamento.
Estamos diante de duas possibilidades e, infelizmente, os gramáticos
não apresentam argumentos para sustentar suas posições. É importante
apresentar esses argumentos por duas razões: a) para que se resolva
a dúvida em relação à classificação de você e b) para que o professor
9 Das gramáticas acima, estamos citando as edições de que dispomos, no entanto destacamos
que, em termos da data de sua primeira edição, essas gramáticas são bem antigas: Rocha Lima
publicou sua gramática pela primeira vez em 1957; Bechara publicou a sua em 1961 e Cunha
e Cintra publicaram a sua em 1985. Dessas gramáticas, a de Bechara é que vem passando por
sucessivas revisões e atualizações de conteúdos e de posturas.

64
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

veja como se constrói a argumentação em Linguística, se familiarize


com essa maneira de pensar os fatos da língua e possa usá-la em alguns
momentos de suas aulas10.
Na falta desses argumentos, vamos elencar algumas propriedades
que possam nos ajudar a definir com clareza a que categoria de pronome
pertence você. Antes, é importante lembrar que as categorias são defi-
nidas a partir de propriedades semânticas, morfológicas e sintáticas (cf.
CÂMARA JUNIOR, 1970; BASILIO, 1987, 2004). Sendo assim, vamos
apresentar algumas propriedades, verificá-las em pronomes pessoais e
em pronomes de tratamento e, em seguida, vamos ver como se comporta
você frente a tais propriedades.
Do ponto do vista semântico, parece não haver diferenças entre
um pronome pessoal e um pronome de tratamento, uma vez que ambos
os tipos de pronomes se referem às pessoas do discurso. Os pronomes
pessoais se referem à pessoa que fala, o falante, a 1ª pessoa; à pessoa com
quem se fala, o ouvinte, a 2ª pessoa; e à pessoa/a coisa de que se fala, a
3ª pessoa, a não-pessoa, segundo Benveniste (1988). Os pronomes de
tratamento, por uma característica própria, referem-se apenas à 2ª pessoa
do discurso, marcando diferentes relações entre os interlocutores, tais
como: respeito, distanciamento, proximidade e solidariedade. Por ser um
pronome, você também apresenta a categoria pessoa como uma de suas
propriedades, nesse caso, a 2ª pessoa.
Embora não possamos distinguir os pronomes pessoais e os prono-
mes de tratamento no que se refere à categoria pessoa, outra propriedade
semântica ainda pode ser usada para diferenciar o comportamento desses
pronomes: a possibilidade de referência indefinida (cf. DUARTE, 1995,
2007). Os pronomes pessoais podem ser usados com referência definida
(seu uso mais comum), mas também podem ser usados com referência
indefinida como nos exemplos abaixo:

10 Isso só quando a situação permitir. É importante ter em mente que não é nosso objetivo trans-
formar os professores de português em linguistas.

65
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(4)
a. Na faculdade é bom porque eu posso aprender novas coisas, discutir
ideias de grandes pesquisadores sem medo. Em que outro lugar eu tenho
liberdade de fazer isso senão na faculdade?
b. Se tu liga para reclamar, tu fica esperando na linha um montão de
tempo até tu se cansar e desligar.
c. Nós estamos vivendo um momento bonito. Todos nós precisamos ver
as coisas direito e avaliar. Só depende de nós. É para nosso crescimento!
d. A situação está complicada… eles estão matando, eles estão roubando,
eles estão fazendo trote… eles estão sem dó de ninguém.

Os pronomes eu, tu, nós e eles nos exemplos acima são usados sem
que seu referente seja identificado no texto ou no discurso. Nesse caso,
dizemos que sua referência é indefinida.
Vejamos exemplos com pronomes de tratamento11:

(5)
a. #Imagina o senhor gritar por socorro na rua e não conseguir ninguém
para ajudar o senhor.
b. #Difícil quando Vossa Senhoria não está preocupada com outras
pessoas.

Diferentemente dos pronomes pessoais, os pronomes de tratamento


não podem ser usados com referência indefinida. Não há como interpretar
os pronomes nos exemplos em (5) com referência indeterminada. A única
possibilidade é a de interpretar esses pronomes como fazendo referência
a pessoas específicas12.
O pronome você admite uso com referência indefinida:

11 Na apresentação dos exemplos, utilizaremos a seguinte notação:


*: exemplo agramatical
?: exemplo de aceitabilidade duvidosa entre os falantes
#: exemplo gramatical, mas cuja interpretação não corresponde àquela que é relevante para
a argumentação
12 A sentença (5a), ainda apresenta a possibilidade de o constituinte o senhor ser analisado como
um sintagma nominal (e não como pronome), o qual faz referência a um determinado senhor
de quem o locutor está falando.

66
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(6)
É muito triste quando você chega num lugar e você num é bem atendido.
Até parece que você tá pedindo favor.

No exemplo em (6), o pronome você não apresenta referência


definida, isto é, não se refere à segunda pessoa com quem se fala. Sua
referência é indefinida, servindo para designar um alguém indeterminado.
Do ponto de vista morfológico, não se identificam diferenças entre
os pronomes pessoais e os pronomes de tratamento. Nos pronomes pes-
soais, há casos de pronomes pessoais invariáveis, como eu, tu, nós, e de
pronomes pessoais variáveis, como ele, eles, ela, elas. Nos pronomes
de tratamento, também é possível identificar pronomes de tratamento
invariáveis (em gênero), como Vossa Alteza, Vossa Senhoria, entre
outros, e pronomes de tratamento variáveis, como senhor, senhores,
senhora, senhoras. Nesse aspecto, você se apresenta como um pronome
invariável para gênero, mas variável para número: você, vocês.
Do ponto de vista sintático, encontramos outras propriedades
que ajudam a propor diferenças entre os pronomes pessoais e os
pronomes de tratamento13. A primeira propriedade tem a ver com a
possibilidade de uso do artigo diante de pronomes pessoais e pro-
nomes de tratamento:

(7)
a. Elas falaram bem ontem.
b. *As elas falaram bem ontem.

(8)
a. Vossa Alteza falou bem ontem.
b. A Vossa Alteza falou bem ontem.

13 As propriedades sintáticas apresentadas foram baseadas nos seguintes trabalhos: a) uso de artigo
diante de pronomes pessoais e de pronomes de tratamento - Bhat (2004) e Lopes (2007); b)
combinação de pronomes pessoais e de pronomes de tratamento com numerais - Bhat (2004);
e c) modificação de pronomes pessoais e de pronomes de tratamento - Bhat (2004) e Heine
e Song (2011). A propriedade relativa ao emprego de pronomes possessivos com pronomes
pessoais e com pronomes de tratamento é de nossa autoria.

67
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(9)
a. Você falou bem ontem.
b. *O você falou bem ontem.

Os pronomes elas e você não admitem ser antecedidos de artigo


definido, enquanto o pronome de tratamento Vossa Alteza admite que o
artigo definido o anteceda14.
A segunda propriedade diz respeito à combinação de pronomes
pessoais e pronomes de tratamento com numerais:

(10)
a. Nós vamos sair por ali.
b. Nós cinco vamos por ali.
c. *Cinco nós vamos por ali.

(11)
a. Os senhores vão sair por ali.
b. Os nove senhores vão sair por ali.
c. ?Os senhores nove vão sair por ali.

(12)
a. Vossas Majestades vão sair por ali.
b. Vossas duas Majestades vão sair por ali.
c. *Vossas Majestades duas vão sair por ali.

(13)
a. Vocês vão sair por ali.
b. Vocês três vão sair por ali.
c. *Três vocês vão sair por ali.

Aqui se ilustra um caso curioso. Embora todos os pronomes acei-


tem se combinar com numerais, há diferenças quanto à ordem em que o
numeral aparece: com os pronomes nós e vocês, o numeral vem depois

14 Para esse argumento, não usamos o pronome o senhor devido ao fato de já haver o artigo
definido em sua estrutura.

68
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

desses pronomes; com os pronomes de tratamento os senhores e Vossas


Majestades, o numeral vem antes do substantivo senhores e Majestades,
ou seja, o numeral vem no meio do pronome de tratamento15.
A terceira propriedade se relaciona ao emprego de pronomes pos-
sessivos com pronomes pessoais e pronomes de tratamento:
(14)
a. Eu preciso de muita ajuda.
b. #Meu eu precisa de muita ajuda16.

(15) a. O senhor precisa de muita ajuda.


b. O meu senhor precisa de muita ajuda.
(16)
a. Vossa Excelência precisa de muita ajuda.
b. Minha Vossa Excelência precisa de muita ajuda.

(17)
a. Você precisa de ajuda.
b. *Meu você precisa de ajuda.

Os pronomes pessoais eu e você não aceitam se combinar com


o pronome possessivo, diferentemente dos pronomes de tratamento o
senhor e Vossa Excelência, que aceitam tal combinação.
A quarta propriedade se refere à modificação de pronomes pessoais
e pronomes de tratamento:
(18)
a. Ele já decidiu o que vai beber?
b. *Ele nobre já decidiu o que vai beber?
c. *Ele de refinado gosto já decidiu o que vai beber?
15 O fato de numerais e adjetivos poderem se interpor entre os membros do pronome de trata-
mento o senhor e os membros dos pronomes de tratamento de tipo Vossa + N mostra que esses
pronomes ainda não estão plenamente gramaticalizados. Estudar o grau de gramaticalização
desses pronomes constitui um interessante tópico de investigação.
16 Essa oração é gramatical se tomarmos a expressão meu eu significando algo como “meu
interior”, “meus sentimentos”, “meu estado psicológico”. Nesse caso, o pronome eu não se
refere, de fato, à 1ª pessoa do singular.

69
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(19)
a. O senhor já decidiu o que vai beber?
b. O nobre senhor já decidiu o que vai beber?
c. O senhor de refinado gosto já decidiu o que vai beber?

(20)
a. Vossa Senhoria já decidiu o que vai beber?
b. Vossa nobre Senhoria já decidiu o que vai beber?
c. Vossa Senhoria de refinado gosto já decidiu o que vai beber?

(21)
a. Você já decidiu o que vai beber?
b. *Você nobre já decidiu o que vai beber?
c. *Você de refinado gosto já decidiu o que vai beber?

Para exemplificar a modificação, usamos exemplos com modifica-


ção por adjetivo (nobre) e modificação por um sintagma preposicional
(de refinado gosto). A modificação é agramatical quando aplicada aos
pronomes ele e você, mas é perfeitamente gramatical quando aplicada
aos pronomes de tratamento o senhor e Vossa Senhoria.
Os resultados a que chegamos podem ser agrupados no seguinte
Quadro:
Quadro 1: Propriedades usadas para analisar você como pronome pessoal

pronomes
propriedades Pessoais Você Tratamento
Leitura indefinida   O
Combinação com artigo O O 
Combinação com numeral   
Combinação com possessivo O O 
Modificação O O 
Fonte: Elaboração dos autores.

70
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

As propriedades estudadas acima mostram que o pronome você


compartilha todas as características com pronomes pessoais e apenas
uma com pronomes de tratamento17,18. Isso quer dizer que você reúne
todas as propriedades de um pronome pessoal. Sendo assim, não se sus-
tenta a prática de analisar você como um pronome diferente de outros
pronomes como eu, ele. Em resumo: você é um pronome pessoal como
todos os outros.

4.1.1.2 OS TRAÇOS DE VOCÊ

Passemos agora a discutir uma segunda questão relativa ao pronome


você: seus traços. Como pronome, você apresenta traços semânticos e
morfossintáticos. Seu traço semântico já foi abordado acima, quando
dissemos que esse pronome se refere ao interlocutor, aquele com quem
se fala, ou seja, a 2ª pessoa.
Você apresenta dois traços morfossintáticos: número e pessoa.
Em relação ao traço de número, você é um pronome variável,
apresentando a forma você para o singular e a forma vocês para o plural.
Em relação ao traço de pessoa, os gramáticos sempre observam a
homofonia resultante da concordância do verbo com sujeito você e com
sujeitos de 3ª pessoa:

17 Você compartilha com os pronomes de tratamento a possibilidade de combinação com nu-


merais. Como vimos nos exemplos (10) – (13), essa semelhança de comportamento é apenas
aparente, uma vez que a ordem em que os numerais ocorrem com você não é a mesma em que
eles ocorrem com os pronomes de tratamento.
18 A comparação das propriedades dos pronomes pessoais e dos pronomes de tratamento chegou
a dois resultados importantes. Um deles se refere especificamente ao pronome o senhor e
outro se refere à classe dos pronomes de tratamento como um todo. Em relação ao pronome
o senhor, mostramos que o senhor é, de fato, um pronome de tratamento e não um pronome
pessoal, contrariamente à proposta de Neves (2008), para quem o senhor poderia ser incluído
no quadro de pronomes pessoais do português (p. 525). Em relação aos pronomes de tratamen-
to, contrariamos algumas análises que concebem esses pronomes como um tipo de pronome
pessoal. Nossos dados mostram que os pronomes de tratamento constituem uma subclasse de
pronomes com comportamento distinto do comportamento dos pronomes pessoais.

71
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(22)
a. Você chegou a tempo.
b. Ele / ela chegou a tempo.
c. O grupo chegou a tempo.
d. O livro chegou a tempo.

(23)
a. Vocês chegaram a tempo.
b. Eles / elas chegaram a tempo.
c. Os grupos chegaram a tempo.
d. Os livros chegaram a tempo.

Por conta dessa homofonia/sincretismo no tocante à concordância


verbal, os gramáticos são unânimes ao dizer que, em relação ao traço de
pessoa morfossintática (ou pessoa gramatical), você é um pronome de 3ª
pessoa. Resultante dessas características semânticas e morfossintáticas,
aparece nos livros didáticos a descrição de você como um pronome de 2ª
pessoa semântica e de 3ª pessoa morfossintática. O traço morfossintático
de 3ª pessoa é o que ativaria a concordância verbal.
Como se vê, na descrição do pronome você, verifica-se um des-
compasso entre o seu traço semântico de pessoa (2ª pessoa) e o seu traço
morfossintático de pessoa (3ª pessoa).
Essa descrição não é muito positiva para o ensino de língua portu-
guesa, uma vez que traz para o ensino gramatical pouca uniformidade –
pelo menos no que se refere ao pronome você. No lugar dessa descrição,
adotamos as propostas de Said Ali (1937), Monteiro (1994) e de Menon
(1995) e propomos que se trate você como um pronome de 2ª pessoa,
tanto do ponto de vista semântico como do ponto de vista morfossintático.
Essa não é uma proposta ad hoc, uma vez que, se usarmos o ar-
gumento da concordância verbal, veremos que existe homofonia (ou
sincretismo) entre formas verbais em outros tempos e modos verbais,
como se ilustra no quadro 2:

72
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Figura 1: Homofonia/sincretismo no paradigma verbal do português

Fonte: Elaboração dos autores.

Como se vê, a homofonia/sincretismo é um fenômeno comum no siste-


ma verbal do português. Se a análise do pronome você como pronome de 2a
pessoa semântica com traço morfossintático de 3a pessoa estivesse correta,
deveríamos rever a descrição do sistema de flexão verbal do português e
propor o mesmo raciocínio para o pronome eu no pretérito imperfeito do
indicativo, no pretérito mais-que-perfeito do indicativo, no futuro do pre-
térito do indicativo, no presente do subjuntivo, no pretérito imperfeito do
subjuntivo, no futuro do subjuntivo e no infinitivo flexionado.
Não é o caso complicarmos a descrição gramatical. Por isso, somos
contrários a manter a análise tradicional de você com diferentes traços
de pessoa (pessoa semântica e pessoa morfossintática). Propomos que,
na formação dos professores da Educação Básica, é importante ressaltar
as características do pronome você como definidas na Figura 1 a seguir:

73
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Figura 1: Propriedades do pronome você propostas para o ensino

Fonte: Elaboração dos autores.

Essa proposta contribui para uma formação coerente com os fatos da


língua, que não se baseie em uma descrição confusa entre noções como
2a pessoa semântica versus 3a pessoa morfossintática e mesmo errônea
por tratar um item como pronome pessoal versus pronome ou expressão
de tratamento.

4.2.2 Sobre o pronome seu

O quadro pronominal do português brasileiro vem passando por


um conjunto de mudanças e reorganizações, das quais apontamos as
seguintes relacionadas especificamente à 2ª pessoa (cf. SILVA, 1982;
PERINI, 1985; MONTEIRO, 1994; MENON, 1995; LOPES, 2007; RU-
MEU, 2013; SCHERRE et al., 2015; GALVES et al., 2016; SCHERRE;
DUARTE, 2016)19:

19 Algumas mudanças e reorganizações apresentadas constituem características gerais do portu-


guês brasileiro enquanto outras são características de apenas alguns dialetos.

74
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(24)
Mudanças e reorganizações na 2ª pessoa do português brasileiro
a. existência dos pronomes de 2ª pessoa tu e você;
b. identificação de subsistemas pronominais: subsistemas em que se usa
exclusivamente você (com formas variantes você, ocê, cê); subsistemas
em que se usa exclusivamente ou majoritariamente tu e subsistemas em
que se verifica variação entre tu e você;
c. desaparecimento do pronome vós e uso de vocês (e suas variantes
ocês e cês) como a 2ª pessoa do plural;
d. utilização dos pronomes acusativos o, a, os e as com referência à
2ª pessoa;
e. emprego do pronome lhe como acusativo de 2ª pessoa e
f. uso dos pronomes seu, sua, seus e suas como possessivos de 2ª pessoa
e consequente variação com teu, tua, teus e tuas.
Em relação ao pronome seu (e suas variantes seus, sua e suas), a
análise tradicional o apresenta como pronome possessivo de 3a pessoa:

(25)
[A Maria]1 entrou no seu1 quarto, mexeu nas suas1 coisas e saiu.

Em (25), os pronomes seu e suas têm como antecedente o sintagma


nominal A Maria. Esse é o uso do pronome como possessivo de 3ª pes-
soa. Essa relação de correferência é indicada pela atribuição de mesmos
índices subscritos ao sintagma A Maria e aos pronomes seu e suas.
Como mostramos no último aspecto relativo às mudanças e reorga-
nizações do quadro pronominal do português, o pronome seu também é
afetado e passa por reorganização em suas possibilidades interpretativas.
No português brasileiro falado, esse pronome continua sendo usado como
pronome possessivo, mas sua referência muda, uma vez que deixa de ter
como referente uma 3ª pessoa e passa a ter um referente de 2a pessoa,
variando com o pronome teu em algumas regiões:

75
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(26)
[Ana]1 , [a Maria]2 entrou no seu1 quarto, mexeu nas suas1 coisas e saiu.

Quando usado no português falado, as relações de correferência dos


pronomes seu e suas no exemplo (26) são diferentes daquelas prescritas
pela gramática tradicional. Diferente de (25), em (26), os pronomes seu
e suas têm como antecedente o sintagma nominal Ana, o vocativo da
oração, isto é, os pronomes se referem ao constituinte de 2ª pessoa, que
denota o interlocutor.
Isso é um dado importante, uma vez que mostra que, ao chegar à es-
cola, os alunos trazem como parte de sua gramática a caracterização de seu
como um pronome possessivo de 2ª pessoa. O papel da escola vai ser o de
apresentar ao aluno uma gramática em que seu é um pronome possessivo
de 3ª pessoa. Diante disso, na sala de aula, o aluno vai se deparar com duas
realidades distintas: uma caracterizada por sua gramática internalizada, na
qual seu é um pronome possessivo de 2a pessoa, e outra caracterizada pela
gramática da norma culta na qual seu é um pronome possessivo associado à
3a pessoa. Esse conflito de gramáticas pode ser flagrado na Figura 2 abaixo:
Figura 2: Duas gramáticas do pronome seu na escola

Fonte: Internet.
A figura acima é muito conhecida. Apareceu em diversos sites e blogs
de língua portuguesa e foi usada, na maioria das vezes, com fins cômicos
para ressaltar o “erro”20 do estudante que, em vez de escrever o nome de cada
20 Estamos grafando a palavra erro entre aspas para mostrar que algumas respostas dos alunos
não deveriam ser consideradas erradas, porque são fruto de um raciocínio guiado por uma

76
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

numeral, escreveu o seu próprio nome ao lado dos numerais apresentados.


Poucos pararam para raciocinar e pensar sobre o que estaria conduzindo
o estudante a escrever seu nome. Olhando para o enunciado do exercício,
fica claro onde está o elemento que induziu a resposta “errada”:
(27)
Agora escreva ao lado de cada numeral o seu nome.
O pronome seu foi o elemento-chave para entendermos o comporta-
mento do estudante. Ao responder o exercício, esse estudante seguiu sua
gramática internalizada na qual seu é um pronome de 2ª pessoa. Além
disso, houve o emprego do imperativo escreva, a forma associada a você.
Essas duas informações juntas contribuíram para que o aluno pensasse
que era um contexto voltado para a 2ª pessoa: escreva o seu próprio
nome na frente de cada numeral. E foi o que ele fez. Apesar de coerente,
o estudante “errou” porque o exercício empregava outra gramática, a
da norma culta, na qual seu é um pronome de 3ª pessoa. Sendo assim,
no enunciado da questão, o pronome seu se refere ao antecedente cada
numeral. Cada um dos raciocínios interpretativos é apresentado abaixo:
(28)
Enunciado do exercício: “Agora escreva ao lado de cada numeral o seu nome”

a. Raciocínio do aluno
Base: sua gramática internalizada, na qual seu = de você, do interlocutor
Interpretação feita pelo aluno: “Agora escreva ao lado de cada numeral
o seu (= de você) próprio nome”

b. Raciocínio pressuposto no exercício


Base: gramática da norma-padrão, na qual seu = dele, de uma
terceira pessoa
Interpretação exigida pelo exercício: “Agora escreva ao lado de
cada numeral o nome de cada numeral”

gramática internalizada e que, portanto, têm coerência gramatical. Tais respostas, dependen-
do do contexto, podem ser inadequadas ou inesperadas em relação àquilo que se cobra nas
atividades, mas não erros.

77
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Esse exercício é valioso porque ele nos mostra essas diferentes


gramáticas convivendo na sala de aula. Além disso, ele nos mostra que
a gramática internalizada do aluno é diferente da gramática da escola,
isto é, a gramática da norma-padrão21.
Apesar das diferenças entre as gramáticas em relação ao uso do
pronome seu, podemos apontar, no entanto, uma coincidência entre essas
gramáticas (CERQUEIRA, 1993; NEGRÃO; MÜLLER, 1996; MÜL-
LER, 1997; MENUZZI, 2003; TORRES MORAIS; RIBEIRO, 2014):

(29)
a. Vai ter festa lá em casa hoje. Cada pessoa traz só suas bebidas.
b. Ninguém sai sem sua identificação.
c. Todas as pessoas têm que saber seu lugar.

(30)
a. Os jovens precisam saber sobre seus direitos.
b. O cliente deve escolher seu voo com cuidado.
c. Uma pessoa séria se preocupa só com sua vida.

Esse é um contexto em que o emprego do pronome seu não causa


confusão na interpretação, uma vez que não há possibilidade de inter-
pretar esse pronome como referente a uma 2ª pessoa. Nesse contexto,
seu se refere unicamente a um antecedente de 3ª pessoa22. Conhecer as
gramáticas de seu permite ao (futuro) professor que sua prática não seja
norteada por uma prescrição de padrões de exatidão e correção (“certo” e
“errado” ou “bonito” e “feio”), nem que ela se baseie em uma abordagem
dos fatos linguísticos limitada tanto em seu alcance descritivo (apenas
uma variante) como em seu julgamento acerca dos dados.

21 Calindro (2019) mostra como o conhecimento das diferentes gramáticas dos pronomes
possessivos do português brasileiro pode ser usado proveitosamente no ensino desse tópico
gramatical nas aulas de português como segunda língua.
22 Embora sendo de 3ª pessoa, a literatura mostra que esses referentes apresentam propriedades
semânticas específicas: são sintagmas quantificados, como em (29), ou sintagmas genéricos,
como em (30). Remetemos o leitor interessado às referências apresentadas para mais detalhes.

78
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

5. SUGESTÕES PARA O PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Nossa proposta é a de montar um material para auxiliar o professor


em sua tarefa de ensino ou para auxiliar os editores de material didático.
Para além de uma simples descrição, o material didático proposto por nós
deve apresentar também os principais argumentos em favor das análises,
bem como suas consequências, o que contribuiria para o desenvolvimento
da capacidade de reflexão crítica do professor sobre os fatos da língua.
Veja que, para analisar os exemplos apresentados na seção ante-
rior, não foi preciso um laboratório ou um material de ensino complexo
para fazer nosso trabalho. Foram necessários o conhecimento presente
nas gramáticas e alguns conhecimentos da teoria linguística moderna.
Assim, nos casos em que o professor da Educação Básica não puder
contar minimamente com um material de auxílio como o defendido neste
artigo, sugerimos que o próprio professor pode organizar seu material
de ensino. Para tanto, chamamos a atenção para alguns passos na hora
de preparação de suas aulas.
Como a escola, felizmente, se abriu a pessoas de variadas classes
sociais e como há migrações no Brasil, a escola se caracteriza por ser
espaço de múltiplas gramáticas. Sendo assim, o primeiro passo é o
professor conhecer seus alunos, especificamente as características da
gramática que esses alunos trazem para a escola. Isso pode ser feito de
diversas maneiras: por meio de uma conversa informal com os alunos,
por meio de um instrumento formal como um teste de sondagem, por
meio da observação dos usos dos estudantes em sua fala e em sua escrita.
O segundo passo é a formação do professor. Temos insistido aqui
em um professor que estuda. Não é mais possível o professor ficar res-
trito apenas ao livro didático. Como dissemos, o professor precisa estar
ciente de que ele precisa estar sempre aprendendo. Ele precisa estar em
dia com o conhecimento produzido nas universidades e pode acessar esse
conhecimento de formas variadas: participando de oficinas produzidas
pelas secretarias de educação, participando de atividades de extensão
produzidas pelas universidades e voltadas para os professores, partici-

79
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

pando de seminários acadêmicos nas universidades, e mesmo cursando


cursos de pós-graduação (especialização, mestrado, doutorado) ou lendo
resultados de pesquisas produzidas nas universidades (artigos, trabalhos
de conclusão de curso, monografias de especialização, teses, dissertações,
artigos, relatórios de pesquisa).
O terceiro passo é a preparação de suas aulas. Conhecendo a gramá-
tica internalizada pelos seus alunos e conhecendo a pesquisa linguística,
o professor terá condições de preparar uma aula rica e coerente com a
língua portuguesa, qualquer que seja a posição adotada quanto ao ensino
de gramática – o ensino com finalidade instrumental ou como prática
autônoma. Como ambas as abordagens apresentam objetivos e roteiros
distintos, não é nosso objetivo discutir o que será feito em sala, pois isso
pode vir a tolher a criatividade do professor em relação à sua prática e
em relação às características de seus alunos.
É importante ter em mente que a escola busca ensinar a gramática
da norma culta, logo o professor da Educação Básica e o autor de livros
didáticos devem ter claras essas diferenças de gramáticas. O professor
precisa conhecer as gramáticas do português para, diante de “erros” dos
seus alunos, simplesmente indagar-se acerca da raiz desses erros grama-
ticais e tentar intervir para corrigi-los. O autor de livros didáticos precisa
conhecer essas diferentes gramáticas para calcular com mais cuidado a
apresentação de conteúdos e de exercícios e para (re)pensar o que vai
ser apresentado como erro ou inadequação.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, argumentamos que, para implementar nas escolas um


ensino de gramática compatível com o extenso corpo de conhecimentos
sobre o português brasileiro acumulado nas últimas décadas, é necessá-
rio primeiramente que esse corpo de conhecimentos seja acessível aos
professores da Educação Básica, sem, contudo, que esses professores
se envolvam necessariamente com um levantamento e uma compilação
desses estudos. Constatamos, no entanto, uma carência de materiais que

80
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

apresentem as principais descrições sobre fenômenos que delineiam o


falar culto no país. Tendo em vista essa lacuna, propusemos um projeto
de confecção de material didático – na forma de uma coleção de livros
ou fascículos – que reúna as descrições de alguns desses fenômenos
e que possa ser utilizado tanto por professores e alunos dos cursos de
Licenciatura em Letras quanto por professores da Educação Básica e
autores de livros didáticos.
Com o objetivo de melhor enquadrar essa discussão, procuramos
inicialmente esclarecer algumas questões relativas tanto ao conceito de
norma e ao de norma culta brasileira quanto aos diferentes posiciona-
mentos com relação ao ensino de gramática. A partir dessa discussão,
apresentamos alguns temas que poderiam ser privilegiados na confecção
do material proposto, desenvolvendo, a título de exemplo, uma discussão
sobre aspectos das gramáticas das formas pronominais do português
brasileiro, com foco nos pronomes você e seu. Esse exemplo ilustra
bem a nossa proposta, porque, ainda que o sistema pronominal já tenha
sido objeto de várias pesquisas linguísticas, muitas vezes, as descrições
disponíveis sobre o quadro pronominal são confusas ou mesmo errôneas
e não condizem com os fatos da língua.
Acreditamos que este estudo pode contribuir para um melhor enqua-
dramento do debate sobre ensino de gramática nas escolas, pois propõe
um trabalho de construção de uma ponte entre as descobertas recentes
da Linguística e o ensino de gramática nas escolas.

REFERÊNCIAS

ABAURRE, M. B. M. (org.) Gramática do Português Culto Falado no Brasil.


Volume VII: A construção fonológica da palavra. São Paulo: Editora Contexto, 2013.
AMARAL, A. O Dialeto Caipira. 3. ed. São Paulo: HUCITEC/Secretaria da Cultura,
Ciência e Tecnologia, 1976.
BAGNO, M. Gramática Pedagógica do Português Brasileiro. São Paulo: Parábola
Editorial, 2011.
BASILIO, M. Teoria Lexical. São Paulo: Editora Ática, 1987.

81
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

BASILIO, M. Formação e Classes de Palavras no Português do Brasil. São Paulo:


Editora Contexto, 2004.
BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2009.
BENVENISTE, E. A natureza dos pronomes. In: BENVENISTE, E. Problemas de
Linguística Geral I. Campinas: Pontes, 1988. p. 277-283.
BHAT, D. N. S. Pronouns. Oxford: Oxford University Press, 2004.
BORGES NETO, J. Alguns comentários sobre a iniciação científica na área dos
estudos linguísticos. Texto de conferência proferida no X Encontro do CELSUL,
Cascavel, Unioeste, 28 de outubro de 2012a.
BORGES NETO, J. Algumas observações sobre o ensino de gramática. Texto de
conferência proferida no VI ELFE, Maceió, 12 de novembro de 2012b.
BORGES NETO, J. História da Gramática. Curitiba. No prelo.
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: primeira à
quarta série – Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1997.
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e
quarto ciclos do ensino fundamental – Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino
Médio. Brasília: MEC/SEF, 2000.
BRASIL. Ministério da Educação. PCN+Ensino Médio: orientações educacionais
complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Volume 2. Brasília: MEC/
SEMTEC, 2006.
CALINDRO, A. R. Os desafios para o ensino de português como segunda língua em
contexto de mudança – o caso dos pronomes possessivos de terceira pessoa. Revista
Letras, Curitiba, n. 99, p. 127-153, jan./jun. 2019.
CÂMARA JR., J. M. Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis: Editora Vozes,
1970.
CASTILHO, A. T. Nova Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Editora
Contexto, 2010.
CERQUEIRA, V. C. A forma genitiva “dele” e a categoria de concordância (AGR)
no português brasileiro. In: ROBERTS, I.; KATO, M. (org.). Português Brasileiro:
uma viagem diacrônica. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. p. 129-161.
CHOMSKY, N. New Horizons in the Study of Language and Mind. Cambridge:
Cambridge University Press, 2000.

82
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

COSERIU, E. Teoria da Linguagem e Linguística Geral. Rio de Janeiro/São Paulo:


Presença/Editora da Universidade de São Paulo, 1979.
CUNHA, C.; CINTRA, L. F. L. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 7.
ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2017.
DUARTE, M. E. L. A Perda do Princípio Evite Pronome no Português Brasileiro.
1995. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995.
DUARTE, M. E. L. Termos da oração. In: VIEIRA, S. R.; BRANDÃO, S. F. (org.).
Ensino de Gramática: descrição e uso. São Paulo: Editora Contexto, 2007. p. 185-203.
FARACO, C. A. O tratamento você em português: uma abordagem histórica.
Fragmenta, n. 13, p. 51-82, 1996.
FARACO, C. A. Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola
Editorial, 2008.
FARACO, C. A.; ZILLES, A. M. Para Conhecer Norma Linguística. São Paulo:
Editora Contexto, 2017.
FÁVERO, L. L. As Concepções Linguísticas no Século XVIII: a gramática portuguesa.
Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.
FOLTRAN, M. J. Ensino de sintaxe: atando as pontas. In: MARTINS, M. A. (org.).
Gramática e Ensino. Natal: EDUFRN, 2013. p. 163-184.
FOLTRAN, M. J.; KNÖPFLE, A.; CARREIRA, M. A gramática como descoberta.
Diadorim, v. 19, n. 2, p. 27-47, 2017.
FRANCHI, C. Criatividade e gramática? In: POSSENTI, S. (org.). Mas o que é
mesmo “gramática”? São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 34-101.
GALVES, C.; AVELAR, J.; BRITO, D.; CARVALHO, D.; LOPES, C.;
MARCOTULIO, L. Morfossintaxe e uso dos pronomes pessoais na sincronia e na
diacronia do português brasileiro. In: SÁ JÚNIOR, L. A. de; MARTINS, M. A. (org.).
Rumos da Linguística Brasileira no Século XXI: historiografia, gramática e ensino.
São Paulo: Blucher, 2016. p. 123-154.
GERALDI, J. W. O Texto na Sala de Aula: leitura & produção. 2. ed. Cascavel:
ASSOESTE, 1984.
GERALDI, J. W. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
GONÇALVES, C. R. Uma Abordagem Sociolinguística do Uso das Formas você,
ocê e cê no Português. 2008. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2008.
GUERRA VICENTE, H.; PILATI, E. Teoria gerativa e “ensino” de gramática:
uma releitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Verbum: cadernos de Pós-
Graduação, v. 2, p. 4-14, 2012.

83
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

GUERRA VICENTE, H.; PILATI, E. Teoria gerativa e formação de professores de


Língua Portuguesa. In: LEAL, M. do S. P.; BAPTAGLIN, L. A.; LANES, E. (org.).
Estudos de Linguagem e Cultura Regional: linguagem, sociedade e ensino. Boa
Vista: EDUFRR, 2016. p. 115-130.
HEINE, B.; SONG, K.-A. On the grammaticalization of personal pronouns. Journal
of Linguistics, v. 47, n. 3, p. 587-630, nov. 2011.
HONDA, M.; O’NEIL, W. Thinking Linguistically: a scientific approach to language.
Oxford: Blackwell, 2008.
HONDA, M.; O’NEIL, W. On Thinking Linguistically. Revista Lingüí฀tica, v. 13,
n. 1, p. 52-65, jan. 2017.
ILARI, R. (org.). Gramática do Português Culto Falado no Brasil. Volume III:
Palavras de classe aberta. São Paulo: Editora Contexto, 2014.
ILARI, R. (org.). Gramática do Português Culto Falado no Brasil. Volume IV:
Palavras de classe fechada. São Paulo: Editora Contexto, 2015.
JUBRAN, C. S. (org.). Gramática do Português Culto Falado no Brasil. Volume I:
A construção do texto falado. São Paulo: Editora Contexto, 2015.
KATO, M. A.; NASCIMENTO, M. do (org.). Gramática do Português Culto Falado
no Brasil. Volume II: A construção da sentença. São Paulo: Editora Contexto, 2015.
LEITE, M. Q. O Nascimento da Gramática Portuguesa. Uso e norma. São Paulo:
Editora Humanitas/Editora Paulistana, 2007.
LOBATO, L. O que todo professor da Educação Básica deve saber de Linguística.
In: LOBATO, L. Linguística e ensino de línguas. Brasília: EDUnB, 2015. p. 14-30.
LOPES, C. R. dos S. Pronomes pessoais. In: VIEIRA, S. R.; BRANDÃO, S. F.
(org.). Ensino de Gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2007. p. 103-119.
LOPES, C. R. dos S.; BROCARDO, M. T. Main morphosyntactic changes and
grammaticalization processes. In: WETZELS, W. L.; COSTA, J.; MENUZZI, S. (ed.).
Handbook of Portuguese Linguistics. Malden: Wiley-Blackwell, 2016. p. 471-486.
LYONS, J. Introdução à Linguística Teórica. São Paulo: EDUSP, 1979.
MATEUS, M. H. M.; BRITO, A. M.; DUARTE, I.; FARIA, I. H.; FROTA, S.;
MATOS, G.; OLIVEIRA, F.; VIGÁRIO, M.; VILLALVA, A. Gramática da Língua
Portuguesa. 5. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.
MENON, O. P. S. O sistema pronominal no português do Brasil. Revista Letras,
Curitiba, n. 44, p. 91-106, 1995.
MENUZZI, S. Escopo e “variáveis ligadas típicas” do português brasileiro. Revista
Letras, Curitiba, n. 61, especial, p. 211-244, 2003.

84
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

MONTEIRO, J. L. Pronomes Pessoais: subsídios para uma gramática do português


do Brasil. Fortaleza: Edições UFC, 1994.
MORAIS, M. A. T.; RIBEIRO, I. Possessivos de 3ª pessoa: o português arcaico e o
português brasileiro contemporâneo. Filologia e Linguística Portuguesa, v. 16, n.
esp., p. 15-51, 3 dez. 2014.
MÜLLER, A. L. de P.; NEGRÃO, E. As mudanças no português brasileiro:
substituição ou especialização? D.E.L.T.A., v. 12, n. 1, p. 125-152, 1996.
MÜLLER, A. L. de P. A Gramática das Formas Possessivas no Português do Brasil.
Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997.
NEVES, M. H. de M. A Vertente Grega da Gramática Tradicional. São Paulo:
Hucitec/Fapesp, 1987.
NEVES, M. H. de M. Os Pronomes – Pronomes Pessoais. In: ILARI, R.; NEVES,
M. H. de M. (org.). Gramática do Português Culto Falado no Brasil. Volume II:
Classes de palavras e processos de construção. Campinas: Editora da UNICAMP,
2008. p. 507-562.
NEVES, M. H. de M. Gramática de Usos do Português. 2. ed. atualizada conforme
o novo Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa. São Paulo: Editora UNESP, 2011.
NEVES, M. H. de M. (org.). Gramática do Português Culto Falado no Brasil.
Volume V: A construção das orações complexas. São Paulo: Editora Contexto, 2016.
NEVES, M. H. de M. A Gramática do Português Revelada em Textos. São Paulo:
Editora UNESP, 2018.
PERINI, M. A. O surgimento do sistema de possessivo do português coloquial: uma
interpretação funcional. D.E.L.T.A., n. 1-2, p. 1-15, 1985a.
PERINI, M. A. Para uma Nova Gramática do Português. São Paulo: Editora Ática,
1985b.
PERINI, M. A. Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
PERINI, M. A. Gramática Descritiva do Português Brasileiro. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016.
PILATI, E. Linguística, Gramática e Aprendizagem Ativa. Campinas: Pontes, 2017.
PIRES DE OLIVEIRA, R.; QUAREZEMIN, S. Gramáticas na Escola. Petrópolis:
Editora Vozes, 2016.
POSSENTI, S. Por Que (não) Ensinar Gramática na Escola. Campinas, São Paulo:
Mercado de Letras, 1996.
ROCHA LIMA, C. H. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. 49. ed. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 2011.

85
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

RAPOSO, E. B. P.; NASCIMENTO, M. F. B. do; MOTA, M. A. C.; SEGURA, L.;


MENDES, A. (org.). Gramática do Português. Volumes I e II. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2013.
RODRIGUES, Â.; ALVES, M. I. (org.). Gramática do Português Culto Falado
no Brasil. Volume VI: A construção morfológica da palavra. São Paulo: Editora
Contexto, 2015.
RUMEU, M. C. B. Para uma História do Português no Brasil: formas pronominais
e nominais de tratamento em cartas setecentistas e oitocentistas. Volumes I e II.
2004. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2004.
RUMEU, M. C. B. Língua e Sociedade: a história do pronome “você” no português
brasileiro. Rio de Janeiro: Ítaca, 2013.
SAID ALI, M. De “eu” e “tu” a “majestade”: tratamentos de familiaridade e
reverência. Revista da Cultura, v. 11, n. 22, p. 137-151, 1937.
SCHERRE, M.; DIAS, E. P.; ANDRADE, C.; MARTINS, G. F. Variação dos
pronomes “tu” e “você”. In: MARTINS, M. A.; ABRAÇADO, J. (org.). Mapeamento
Sociolinguístico do Português Brasileiro. São Paulo: Editora Contexto, 2015. p.
133-172.
SCHERRE, M. M. P.; DUARTE, M. E. L. Main current processes of morphosyntactic
variation. In: WETZELS, W. L.; COSTA, J.; MENUZZI, S. (ed.). Handbook of
Portuguese Linguistics. Malden: Wiley-Blackwell, 2016. p. 526-544.
SILVA, G. M. O. Estudo da Regularidade na Variação dos Possessivos no Português
do Rio de Janeiro. 1982. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 1982.
VIEIRA, F. E. A Gramática Tradicional: história crítica. São Paulo: Parábola
Editorial, 2018.
VIEIRA, S. R. (org.). Gramática, variação e ensino: diagnose e propostas
pedagógicas. São Paulo: Blucher, 2018.
VIEIRA, S. R.; BRANDÃO, S. F. (org.). Ensino de Gramática: descrição e uso. São
Paulo: Editora Contexto, 2007.
VITRAL, L. Gramática Inteligente do Português do Brasil. São Paulo: Editora
Contexto, 2017.
VITRAL, L.; RAMOS, J. Gramaticalização: uma abordagem formal. Belo Horizonte/
Rio de Janeiro: FALE-UFMG/Tempo Brasileiro, 2006.

86
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

SOBRE O USO DE MATERIAIS MANIPULÁVEIS NAS


AULAS DE GRAMÁTICA, APRENDIZAGEM ATIVA E
METACOGNIÇÃO

Eloisa Pilati1

1. INTRODUÇÃO

Neste capítulo, proponho a utilização de materiais manipuláveis nas


aulas de gramática como uma opção metodológica para abordagem e evi-
denciação das propriedades abstratas do sistema gramatical do português.
Materiais manipuláveis podem ser definidos como quaisquer materiais
que possam ser tocados (de forma concreta ou virtual) e cujo uso tenha
sido planejado para evidenciar e explicitar propriedades linguísticas2.
De forma geral, as aulas tradicionais de gramática seguem sequências
didáticas que não favorecem a compreensão de língua como um sistema,
não são centradas na aprendizagem, nem no protagonismo do estudante
(cf. PILATI, 2017). Numa aula tradicional de gramática, as etapas são
as seguintes: conceituação do fenômeno, apresentação de exemplos,
listagem de exceções (se for o caso) e resolução de exercícios. Quando
se trata dos livros didáticos, à sequência acima é acrescentada a apresen-
tação de pequenos textos ou tirinhas antes da apresentação do conceito

1 Agradeço ao CNPq pelo apoio à realização deste trabalho por meio da concessão de bolsa de
pesquisa, 309250/2018-8.
2 Para conceituar materiais manipuláveis no campo da gramática, estabeleço um paralelo com o
conceito de materiais manipuláveis da matemática. Cito, por exemplo, a definição de Moyer
(2001): “Math manipulatives are physical objects that are designed to represent explicitly and
concretely mathematical ideas that are abstract”.

87
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

do fenômeno3. Neste capítulo dou um passo adiante na Metodologia da


Aprendizagem Linguística Ativa (PILATI, 2017, 2019) descrevendo
concepções teóricas e metodológicas para o uso de materiais manipu-
láveis nas aulas de Língua Portuguesa, como ferramenta pedagógica
para evidenciar as propriedades da língua como sistema, proporcionar o
desenvolvimento do pensamento crítico e criativo e do metacognitivo.
Antes de iniciar a fundamentação teórica deste capítulo, gostaria
de dizer que a proposta do uso de materiais didáticos manipuláveis foi
formulada por mim, com a ajuda dos meus alunos, durante os dez anos
em que ministrei a disciplina “Laboratório de Gramática para Ensino
Fundamental e Médio”, no Curso de Letras: Português, noturno, na Uni-
versidade de Brasília. Essa disciplina tinha entre seus objetivos construir
uma ponte entre os conhecimentos linguísticos teóricos e as práticas que
teriam de se desenvolver na educação básica.
Sem dúvida, o uso de materiais manipuláveis nas aulas de gramática
foi uma das descobertas mais interessantes que fizemos nesses anos de
pesquisa, reflexões e práticas. Esses materiais surgiram a partir de duas
inspirações básicas: i) as representações arbóreas usadas por pesquisa-
dores gerativistas para evidenciar relações e operações gramaticais que
ocorrem no nível da sentença e ii) os materiais didáticos manipuláveis
usados para ensinar os estudantes as operações e relações fundamentais
do pensamento matemático.
Pela minha experiência no ensino de gramática por meio de materiais
manipuláveis, pude atestar que esses materiais podem auxiliar estudantes
no processo de compreensão das operações básicas de organização do
sistema da língua. Materiais manipuláveis podem ser úteis para explicitar
aspectos do funcionamento das línguas naturais, que por serem regidos
por princípios de natureza abstrata, não são facilmente identificáveis.
Após testarmos a efetividade do uso materiais manipuláveis no nível da
sentença, passamos a criar materiais para auxiliar em atividades de leitura,
análise e produção textual, pois concluímos que, por meio da manipula-
ção de elementos linguísticos, os estudantes podem tomar consciência
3 Para uma análise crítica de livros didáticos sob a ótica dos objetivos educacionais, ver Santana
e Pilati (no prelo).

88
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

de vários aspectos do processo de produção textual, tais como: efeitos


de sentido relacionados ao uso de verbos, efeitos da ordem dos temos
da oração no texto, revisão textual4. Ao final desse capítulo, também
veremos alguns exemplos5.
O objetivo geral do uso de material concreto na sala de aula é o de
promover situações de interação, produção, análise e reflexão linguística,
auxiliando os estudantes a “pensar linguisticamente”, ou seja, ajudar os
alunos a compreenderem o funcionamento do sistema da língua ou das
línguas em questão e a desenvolverem habilidades para que possam ma-
nipular esse(s) sistema(s) com consciência e autonomia, de forma crítica
e criativa. Materiais concretos também são úteis: i) para desenvolvimento
do pensamento metacognitivo ii) para a criação de situações-problema
em que o estudante seja motivado a investigar, observar, manipular e
compreender as diferentes propriedades das línguas naturais.
Vale ressaltar que materiais manipuláveis, em geral, são simples,
de baixo custo, podem ser usados com materiais do dia a dia, tais como
materiais recicláveis, dominós, cartas de baralho, papéis coloridos etc.
Este capítulo, em termos teóricos, remete à proposta original de
Lobato (2015[2003]) para o ensino de Língua Portuguesa, em que a
autora defende que se deve manter os estudos gramaticais na educação
básica. Lobato afirma que:

existem pelo menos dois conceitos de gramática – segundo


um deles, gramática é algo estático, externo ao indivíduo e
taxionômico; segundo o outro, gramática é algo dinâmico,
interno ao indivíduo e com propriedades que explicam o
caráter criativo do uso das línguas naturais. No meu modo de
ver as coisas, é fundamental que o professor de língua perceba
essa diferença e trabalhe em sala de aula com gramática nessa
última acepção – como algo dinâmico, interno ao indivíduo e
com propriedades explicativas do caráter criativo do uso das
línguas naturais (LOBATO, 2015[2003] p. 18).

4 No capítulo 4 de Pilati (2017), há alguns exemplos de sequências didáticas de ensino de gra-


mática vinculadas a leitura e produção de texto..
5 Outros exemplos podem ser encontrados no Canal do YouTube Gramaticoteca2.0.

89
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Em Linguística, gramática e aprendizagem ativa (2017), seguindo as


concepções propostas por Lobato, tive o objetivo de dar um passo adiante
numa proposta de renovação do ensino de gramática de base gerativista.
Para tanto propus o desenvolvimento de aspectos metodológicos para
abordar a gramática em sala de aula. Conforme defendi em 2017, as dis-
cussões sobre o ensino de gramática, além de levarem em consideração
os avanços e descobertas das pesquisas linguísticas, devem estar em
diálogo com as chamadas ciências da aprendizagem: as neurociências e
as ciências cognitivas, a fim de que nos beneficiemos dos resultados já
encontrados nessas áreas e, dentro do possível, façamos as adaptações
necessárias para o campo da linguística.

2 PRINCÍPIOS DA APRENDIZAGEM LINGUÍSTICA ATIVA

2.1 PRINCÍPIOS LINGUÍSTICOS

Nesta seção, retomo alguns princípios fundamentais da Abordagem


da Aprendizagem Linguística Ativa, que propus no livro Linguística,
Gramática e Aprendizagem Ativa (2017). Pretendo apresentar, de forma
resumida, os princípios dessa abordagem para a gramática na sala de aula,
explicitando conceitos e opções teórico-metodológicas. O objetivo dessa
síntese é fornecer embasamento para o uso de materiais manipuláveis,
que apresentaremos adiante. Veremos a seguir uma proposta que pretende
estabelecer uma articulação entre linguística, gramática e descobertas
recentes das neurociências sobre a aprendizagem.
No trabalho de 2017, defendi que dois tipos de conhecimentos
advindos da Teoria Gerativa são extremamente importantes para sala
de aula: o conceito de Faculdade da Linguagem e a concepção explícita
da gramática de uma língua, como um sistema, regido por operações
gramaticais básicas. Nos parágrafos a seguir, retomo esses conceitos,
tendo em vista sobre sua relevância para o ensino de gramática.

90
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

A) Sobre o inatismo linguístico: Noam Chomsky, desde o final


da década de 60, tem defendido a hipótese de que seres humanos
possuem uma capacidade biológica, que lhes permite desenvolver a
gramática de uma língua. Essa capacidade biológica, portanto, inata
e geneticamente determinada, é denominada Faculdade da Lingua-
gem. Uma língua, na concepção gerativista, é o resultado da união
de fatores genéticos, uma predisposição característica da espécie
para a aquisição de uma língua – a Faculdade da Linguagem – e de
fatores do meio ambiente, ou seja, a língua a que a criança é exposta
durante a infância.
Entre os argumentos elencados a favor da existência dessa Faculdade
da linguagem, podemos citar: as fases de aquisição são relativamente
uniformes dentro da espécie humana; os seres humanos compartilham
propriedades tais como preparação biológica para a fala, todas as comu-
nidades humanas possuem uma língua e falam essa língua e as crianças
aprendem a falar qualquer língua, bastando para isso serem expostas aos
dados linguísticos durante um certo período de tempo.
Apesar de o conceito de inatismo linguístico ser amplamente divul-
gado atualmente (o que para os gerativistas corresponde ao conceito de
Faculdade da Linguagem), é importante notar que documentos oficiais,
currículos, formação de professores, livros didáticos, não têm levado
esse pressuposto em consideração, e que é rara a menção à Faculdade
da Linguagem. A omissão de temas ligados a essa característica das
línguas humanas, que define nossa espécie tanto biologicamente quanto
culturalmente, tem como consequências o uso de algumas práticas pre-
judiciais para o ensino de língua. Há milhares de professores de línguas
que ou não conhecem o conceito de Faculdade da Linguagem ou que
ainda acreditam que vão “ensinar” gramática aos seus alunos, porque
eles não “sabem nada de gramática”. Como sabemos, quando entram
na educação básica, as crianças já falam, elas já possuem, portanto, um
vasto conhecimento gramatical. Desconsiderar esse conhecimento nos
faz perder tempo no ensino de gramática.

91
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

B) Gramáticas como sistemas: uma segunda contribuição que a


Teoria Gerativa nos apresenta e que é muito útil para o entendimento
do funcionamento das línguas é a ideia da possibilidade de represen-
tação concreta da “gramática como sistema”, por meio das famosas
representações arbóreas. Essa forma de se compreender as gramáticas
das línguas é oposta, por exemplo, à ideia presente no senso comum de
que “gramática é uma lista de regras”. Por terem entre seus objetivos
de investigação a explicação acerca do funcionamento da Faculdade da
Linguagem na mente humana, os pesquisadores gerativistas têm se de-
dicado, nos últimos 60 anos, a constituir uma representação gramatical
que dê conta de explicitar as propriedades que diferenciam as línguas
humanas, ou seja, os diferentes sistemas linguísticos, e ao mesmo tempo
explicar os princípios compartilhados entre os diferentes sistemas. Uma
das formas já bastante conhecidas para representar esses sistemas são as
representações arbóreas.

Retomo abaixo uma adaptação da concepção gerativista para forma-


ção da oração feita para a educação básica, proposta em Pilati (2017)6:
I. seleção do verbo;
II. seleção dos complementos verbais (quando houver);
III. seleção do sujeito;
IV. estabelecimento de relações de concordância entre verbo e sujeito
e inserção da flexão de tempo.
V. inclusão dos adjuntos (quando houver);
IV. movimento dos constituintes (quando for o caso)7.

6 Considerando que a presente obra pretende fazer uma “transposição didática” entre o conhe-
cimento científico e o conhecimento linguístico necessário para que os usuários da língua
compreendam processos sintáticos básicos, optei por não trazer discussões teóricas acerca
dos fenômenos analisados. Para aprofundamento nessas questões sugiro que o leitor pesquise
nos excelentes manuais de linguística gerativa que temos no país.
7 É importante ressaltar que o passo a passo apresentado acima possui fins didáticos e traz a
discussão sobre a formação da oração em um nível adequado aos objetivos da educação básica,
para compreender a teoria sugiro os manuais de Teoria Gerativa, como Kato & Nacimento
(2001) e Mioto, Silva e Lopes (2007).

92
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Nas conhecidas representações arbóreas dos gerativistas, tal ordenação


pode ser representada da seguinte forma. Usaremos o verbo ver como
exemplo8:

8 Para uma avaliação crítica do método tradicional de ensino dos termos da oração e uma proposta
alternativa a esse modelo, recomendo a leitura do capítulo Termos da oração, Duarte (2007).

93
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

O passo a passo acima representa a formação de uma oração da


língua portuguesa. A concepção dos gerativistas se distingue, em vários
aspectos, da abordagem da oração apresentada nas gramáticas tradicio-
nais. Vejamos algumas diferenças entre a concepção da Teoria Gerativa
e das gramáticas tradicionais:

a. A formação da oração é concebida a partir das propriedades lexicais


do verbo, e não da tradicional distinção entre sujeito e predicado;

b. É o verbo que trará informações sobre os complementos (ou, usando


a terminologia gerativa, os “argumentos”) que aparecerão na frase. Cada
verbo traz informações sobre o número de argumentos que seleciona,
o tipo sintático e o tipo semântico;

c. Ao representar a formação da oração, passo a passo, é possível obser-


var o sistema linguístico em funcionamento, as propriedades sintáticas
dos elementos, o caráter composicional da sentença e as interpretações
semânticas decorrentes da construção sintática9.
9 Nas aulas de gramática tradicionais, o sistema linguístico nunca é visto de forma completa,
pois a cada dia se estudam temas diferentes de forma desconexa. Dar mais ênfase às partes da
oração do que ao funcionamento das partes no sistema linguístico reforça a noção tradicional
de que a gramática é um sistema de regras e prejudica a compreensão das línguas humanas
como sistemas organizados.

94
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Ainda em relação aos saberes que todos os falantes da língua por-


tuguesa têm sobre sua língua, os professores podem levar os alunos a
perceber que as seleções gramaticais dos verbos ocorrem em dois níveis:
a) no nível semântico e b) no nível categorial. Assim, um verbo seleciona
o número de argumentos (ou complementos) que irão entrar na oração
bem como estipula a forma desse complemento (se é um substantivo ou
uma expressão formada por substantivo + artigo, se é uma expressão
iniciada por uma preposição ou se não vai haver argumentos) e os seus
significados. Por exemplo, um verbo como ver irá selecionar como com-
plementos sintagmas nominais e não, sintagmas preposicionados. Uma
oração como [da menina] viu [para o Pedro] é considerada agramatical
devido às propriedades sintáticas do verbo ver em português, que sele-
ciona dois sintagmas nominais.
Essa “seleção argumental” que o verbo faz, ao especificar o
número de argumentos que poderão ocorrer na sentença em que o
verbo está e o tipo semântico desses argumentos, poderá estar sujeita
à variação linguística. Um exemplo dessa variação ocorre com os
verbos assistir, implicar, entre outros, que, na variedade coloquial
da língua, são usados com uma regência distinta da prescrita pelas
gramáticas normativas. O verbo assistir é usado de forma direta na
variedade coloquial do português brasileiro, como em Assisti o fil-
me, apesar de sua regência nas gramáticas tradicionais ser de verbo
transitivo indireto, regido pela preposição a. Quando este tipo de
verbo for enfocado nas aulas de gramática, o professor terá uma
boa oportunidade para discutir variação linguística e conhecimento
prévio do falante, por exemplo. A variação linguística é inevitável,
as mudanças linguísticas também, mas não é por não saber a regência
de alguns verbos dentro de uma determinada variedade linguística,
que o falante desconhece o português.
Por meio dos exemplos adequados, é possível mostrar aos estudan-
tes que o conhecimento que eles já possuem sobre o funcionamento da
gramática da língua portuguesa é muito maior do que o conhecimento
que eles ainda não possuem. Não há necessidade de levarmos aos
estudantes da educação básica as representações arbóreas, tal como

95
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

fazemos na teoria, mas é importante levar o aluno a compreender a


língua como sistema e a oração como a projeção das propriedades de
seleção de um verbo.
Antes de passarmos para a próxima seção, é importante lembrar que
as gramáticas tradicionais e os materiais didáticos usados nas escolas do
país trazem os conceitos gramaticais de forma fragmentada, ou seja, em
uma unidade, estudam os tipos de sujeito, em outras, o tipo de verbo, em
outras, as orações coordenadas; no ano seguinte, a concordância verbal…
Além disso, os conhecimentos gramaticais raramente estão vinculados à
leitura, análise e produção de textos. Essa forma de se conceber e de se
apresentar a gramática não evidencia a organização básica do sistema da
língua e não revela uma estruturação lógica que leve o aluno a perceber
o que está em jogo no sistema da língua.
Uma solução possível para que o conhecimento gramatical seja
aprendido como um sistema, com valores determinados (ordem, con-
cordância, seleção sintática e seleção semântica, organização sintag-
mática), em que um número limitado de elementos gera um número
ilimitado de construções, é o uso de materiais manipuláveis. Materiais
manipuláveis podem tornar mais explícito o funcionamento do sistema
linguístico e serem alternativas ao ensino fragmentado, como veremos
a seguir.

2.2 PRINCÍPIOS NEUROCIENTÍFICOS DA APRENDIZAGEM ATIVA

Em Linguística, gramática e aprendizagem ativa (2017), defendi


que as descobertas das neurociências e das ciências cognitivas acerca
de princípios da aprendizagem devem ser levadas ao ensino de línguas,
mediante algumas adaptações. As adaptações se fazem necessárias por-
que, no caso da língua materna, não vamos ensinar algo totalmente novo
para o aluno, pois ele já domina sua língua antes mesmo de ir à escola.
Não se pode esquecer que há certos conhecimentos que não são
desenvolvidos de forma natural como a fala. Entre os objetivos do pro-
cesso de escolarização, estão aqueles relacionados com o conhecimento

96
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

das propriedades da gramática de uma língua, o desenvolvimento de


habilidades de leitura, de escrita e de pensamento crítico etc.
Traçando, portanto, um paralelo entre estudos das neurociências e da
psicologia cognitiva sobre aprendizagem e os conhecimentos linguísticos,
selecionei três princípios da aprendizagem elencados por Bransford et
al. (2007) para a aprendizagem em geral e propus uma adaptação destes
princípios para o ensino de língua materna. Vejamos esses princípios e,
posteriormente, alguns esclarecimentos sobre como podemos adaptar
esses princípios nas aulas de gramática.

I) Levar em consideração o conhecimento prévio do aluno;

II) Desenvolver o conhecimento profundo sobre o assunto;

III) Promover a aprendizagem ativa por meio do desenvolvimento de


habilidades metacognitivas.

No que se refere ao primeiro princípio – Levar em consideração o


conhecimento prévio do aluno –, os autores defendem que os conheci-
mentos prévios dos alunos podem influenciar sua forma de compreender
o conteúdo a ser estudado. Para que o professor possa saber de que con-
ceitos prévios seus alunos partem, é importante investigar e identificar os
conhecimentos anteriores dos alunos sobre os temas a serem ensinados.
Em relação ao conhecimento prévio, a hipótese da Faculdade da
Linguagem nos remete às seguintes reflexões:

a) O conhecimento prévio dos alunos é muito complexo e profundo,


pois, ao chegarem à educação básica, todos dos alunos já dominam sua
língua com perfeição, portanto, já possuem um conhecimento linguístico
vasto. No entanto, os alunos não têm consciência de seu vasto conhe-
cimento linguístico e não possuem critérios objetivos para analisar o
conhecimento que têm nem para avaliarem produções escritas10;

10 Sobre conhecimento prévio do estudante na sala se aula, sob uma ótica gerativista, conferir
também Vicente e Pilati (2012).

97
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

b) O conhecimento pedagógico do aluno também é importante. O pro-


fessor deve procurar verificar o nível de conhecimento gramatical do
estudante para esse conhecimento avançar. O aluno pode ainda partir
de concepções incompletas ou problemáticas sobre língua, gramática
e sobre a organização do sistema linguístico. Para entender o nível de
conhecimento dos estudantes sobre esses temas é importante fazer, por
exemplo, diagnósticos.

Em relação ao segundo princípio – Desenvolver o conhecimento


profundo dos fenômenos estudados –, Bransford et al. (2007) afirmam
que é comum que escolas privilegiem listas e listas de conteúdos sobre
um tema. Essas listas muitas vezes devem ser memorizadas, porque os
elementos que as compõem não fazem sentido para os estudantes. Para
desenvolver conhecimentos profundos, é preciso que os conteúdos sejam
apresentados de forma que façam sentido e de modo que se possa ver as
conexões das partes entre si e do todo com a realidade. Segundo Bransford
et al. (2007), para que se desenvolva o conhecimento profundo é neces-
sário: aprender a identificar os padrões que se revelam dentro daquela
determinada área do saber; desenvolver uma compreensão profunda
do assunto; e aprender quando, onde e por que usar tal conhecimento,
levando em contas as condições.
Os autores citam como exemplo as diferenças existentes entre
jogadores de xadrez especialistas, os mestres do xadrez e os jogadores
de xadrez não especialistas. Segundo os autores, os “mestres” em qual-
quer área, ou mesmo os mestres numa dada área, não são pessoas mais
inteligentes ou com uma capacidade superior de memorização. A maior
diferença entre esses dois tipos de pessoas é que os especialistas, por
terem dedicado muito mais tempo no estudo ou na prática de uma dada
atividade, conseguem perceber os padrões específicos daquela área do
saber e sabem usar esse conhecimento de acordo com a necessidade da
situação.
O terceiro princípio diz respeito à promoção da aprendizagem
ativa por meio do desenvolvimento de habilidades metacognitivas. O
conceito de conhecimento metacognitivo pode ser entendido da seguinte

98
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

forma, conforme Flavell (1976, p. 232), como “o monitoramento ativo”


com “regulação e orquestração dos processos cognitivos” a serviço de
alguma meta ou objetivo. A metacognição é portanto a ação consciente
de pensar sobre o próprio pensamento, por meio do monitoramento de
ativo, regulado e organizado de processos cognitivos, a fim de aprender
dados ou informações relevantes.
Para desenvolver essas habilidades cognitivas, é importante que na
sala de aula sejam usados métodos e técnicas que favoreçam a apren-
dizagem ativa com metacognição. Para que haja o aprendizado com
metacognição, é importante que os estudantes aprendam a identificar
quando aprendem algo e quando precisam de mais alguma informação,
ou seja, possam monitorar seu processo de aprendizagem, aprendendo a
pensar sobre suas próprias atividades de aprendizagem. Para garantirmos
aprendizado ativo com metacognição, é necessário que, nas práticas de
sala de aula, haja momentos para a criação do sentido, para a autoavalia-
ção e para a reflexão sobre o que funciona e o que precisa ser melhorado
dentro do processo de aprendizagem.

3. FAZENDO A TRANSIÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA: MATERIAIS


MANIPULÁVEIS

Como vimos na seção anterior, no processo de aprendizagem é


importante: i) levar em consideração o conhecimento prévio do aluno;
ii) desenvolver o conhecimento profundo dos fenômenos estudados;
iii) promover o desenvolvimento de habilidades metacognitivas. Como
transformar esses princípios teóricos em atividades linguísticas efe-
tivas? Uma das soluções que podemos propor para garantir que esses
princípios da aprendizagem sejam alcançados é o uso de materiais
manipuláveis.
O uso de materiais manipuláveis nas aulas de gramática pode ajudar
os alunos a pensar linguisticamente, a representar conceitos sintáticos, a
avaliar os efeitos semânticos das diferentes formas linguísticas e aprender
a refletir sobre eles. Com os materiais em mãos, que podem ser, inclusi-
ve, construídos pelos próprios alunos e feitos de materiais recicláveis, é

99
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

possível visualizar a gramática como sistema (e não como conjunto de


regras), testar os efeitos semânticos das escolhas lexicais feitas etc. Além
disso, o material manipulável, quando usado na resolução de problemas,
traz uma oportunidade real para discussão de conceitos gramaticais e uma
oportunidade de verificação da aprendizagem, porque, ao manipular os
materiais e ao expor seus pensamentos sobre a atividade proposta, o aluno
deixará claro para si mesmo e para o professor o nível de compreensão
alcançado.
Como visto nas sessões anteriores, possuímos uma faculdade da
linguagem inata, uma predisposição genética para adquirir língua, mas
muitas das operações sintáticas que ocorrem numa sentença da língua se
dão de forma abstrata. Uma solução que temos para tornar esse sistema
abstrato em algo palpável, visível, é torná-lo manipulável.
Antes de passar para a apresentação de atividades que podem ser
desenvolvidas com materiais manipuláveis, é importante dizer que
apenas usar tais materiais não é suficiente para garantir o sucesso na
aprendizagem. O professor deve ter em mente concepções claras dos
conceitos de língua e de gramática que pretende ensinar, assim como os
objetivos educacionais da aula. Também é importante que os materiais
sejam usados nos contextos adequados.
Thompson (1994), dirigindo-se seu texto a professores, afirma:

[…] materiais manipuláveis são usados de forma apropriada


para dois propósitos. Primeiro, eles habilitam vocês e seus
alunos a terem diálogos contextualizados. Seu uso provê algo
concreto sobre o que você ou eles podem falar. […] Segundo,
materiais concretos proveem algo no qual os estudantes podem
agir (THOMPSON, 1994, p. 8).

Ainda de acordo com o autor, o objetivo é que os estudantes reflitam


sobre suas ações em relações às ideias apresentadas. Esses materiais
auxiliam alunos a pensar sobre os materiais e sobre os significados
das várias ações feitas com eles, o que o autor denomina “instrução
conceitualmente orientada”. As perguntas sugeridas para esse tipo de

100
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

atividade seriam: “Como nós pensamos sobre isso? Como nós podemos
pensar sobre isso? Como nós devemos pensar sobre isso?”.
Fazendo uma interpretação da afirmação de Thompson (1994),
podemos dizer que o uso de materiais manipuláveis auxilia o
desenvolvimento de habilidades metacognitivas dos alunos em
relação ao seu saber linguístico e gramatical. Além disso, auxilia no
desenvolvimento de habilidades metacognitivas, que será importante
para os alunos terem maior autonomia nas atividades que envolvem seus
conhecimentos linguísticos, tais como a escrita, leitura e interpretação
de textos.
Levando as reflexões de Thompson para a área da gramática,
sabemos que os alunos têm de fazer operações mentais complexas, com
base somente nas orações apresentadas na lousa, ou no livro didático. A
representação dos termos da oração em estruturas concretas permite aos
alunos manipular as estruturas sintáticas, avaliar os resultados de suas
escolhas lexicais, entender as relações entre períodos e textos e analisar
os resultados de suas opções. Nesse contexto, os materiais manipuláveis
tornam-se oportunidades lúdicas e interessantes para diversos tipos de
atividades em sala de aula.

4. SUGESTÕES PARA O PROFESSOR DE EDUCAÇÃO BÁSICA: A


GRAMATICOTECA

Articulando os pressupostos teóricos vistos nas seções anteriores, em


que apresentamos uma visão de língua como um sistema mental – fruto de
uma Faculdade da Linguagem, organizado em nossas mentes – com uma
concepção de aprendizagem ativa, em que o ato de aprender está vinculado
à identificação de padrões, ao desenvolvimento de conhecimento
profundo sobre o assunto com metacognição, apresentaremos a seguir
alguns artefatos do acervo da Gramaticoteca. A Gramaticoteca consiste
em um projeto de pesquisa e extensão da Universidade de Brasília,
coordenado por mim, em que são investigados, propostos e avaliados
materiais manipuláveis para a educação e experimentação linguística,
sob a ótica da Metodologia da Aprendizagem Linguística ativa.

101
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

As imagens abaixo representam três artefatos distintos do acevo da


Gramaticoteca. Nos materiais apresentados, as atividades de reflexão
gramatical estão vinculadas a práticas de leitura ou produção de texto. No
entanto, os materiais manipuláveis podem ser usados como ferramentas
para a investigação científica das línguas naturais A sugestão é que haja
nas aulas de língua portuguesa momentos para se pensar nos fenômenos
linguísticos e momentos para se pensar os usos, sentidos e práticas sociais
de leitura e escrita.
Os artefatos representam, por meio de diferentes materiais, a
sequência de formação da oração, apresentada acima, em I a VI. Na
figura 1, temos o Gira-gira da gramática. Um artefato que desenvolvi
para representar a organização básica do sistema linguístico do
português. O Gira-gira representa a estrutura básica da sentença do
português com espaços a serem preenchidos pelos estudantes, trazendo
à tona as etapas de formação da oração. Este material foi construído
com círculos de MDF, pregados pelo centro numa base de madeira,
para que girem. Cada círculo foi pintado de uma cor diferente, para
evidenciar as diferentes funções gramaticais, com tinta para quadro-
negro. A tinta para quadro-negro foi escolhida para possibilitar que
se possa escrever e apagar palavras, utilizando-o várias vezes. Por
meio desse material, podem ser discutidos com os alunos temas como:
conhecimento linguístico prévio, formação de sentenças, tipos de verbo,
efeitos de sentido decorrentes do uso de diferentes verbos, sujeitos,
complementos e adjuntos11.

11 Uma outra possibilidade do Gira-gira da gramática é o uso de círculos coloridos de papel,


pregados em uma placa de isopor.

102
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Figura 1 – Gira-gira da Gramática

Fonte: Acervo Gramaticoteca.

Na figura 2, abaixo, há uma outra forma de discutir com os estudan-


tes as etapas de formação da oração, por meio da criação de sentenças.
Essa atividade foi realizada pelo Professor Moacir Natércio Junior, em
suas aulas na Escola Pública, CED 104 do Recanto das Emas, Brasília
DF, seguindo a sequência didática proposta em Pilati (2017). Os estu-
dantes receberam as diferentes cartelas com palavras escritas e foram
estimulados a formar orações com o material recebido. Após formarem
as orações, foram convidados a refletir sobre elas, levando em conta
elementos em comum entre todas as orações, elementos diferentes, pos-
sibilidades e impossibilidades sobre a formação de orações no português.
Figura 2 – Tabela gramatical

Fonte: Foto do Professor Moacir Natércio Junior, acervo Gramaticoteca.

Na figura 2, estão representados com diferentes cores os argumentos


verbais e os adjuntos ou termos apositivos. Esta pode ser uma atividade

103
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

de criação de orações ou de análise de orações presentes em algum texto.


O material pode ser construído com diferentes matérias primas: placas de
madeiras, peças de Lego, dominós encapados, fichas de papel colorido,
caixas de materiais etc. As diferentes cores podem representar diferen-
tes classes de palavras ou sintagmas diferentes (sintagmas nominais,
sintagmas verbais, sintagmas adverbiais…), pode haver manipulação
da ordem para avaliação dos efeitos de sentido etc. Os temas sintáticos
que podem ser apresentados, discutidos ou analisados numa atividade
com esse tipo de material são: formação de orações, concordância ver-
bal, seleção lexical, núcleos predicadores, organização sintagmática,
relações de complementação e de adjunção, ordem e efeitos de sentido,
uso da vírgula etc.
A atividade abaixo representa um tipo de atividade que pode ser feita
com material manipulável, em contextos de leitura e análise textual. Essa
atividade que veremos a seguir12 faz parte de um conjunto de oficinas
ministradas por mim e pelo Professor Alexandre Pilati, da Universidade
de Brasília, denominada Poemática: poesia e gramática. A atividade
proposta foi a seguinte: após a apresentação dos conceitos de formação
de oração pela ótica da teoria gerativista, tal como apresentado acima,
os estudantes foram convidados a analisar as estruturas sintáticas usadas
por João Cabral de Melo Neto, em um trecho de seu poema Os três mal
amados. Os estudantes também foram convidados a analisar a seleção
sintática, a seleção semântica do verbo escolhido pelo poeta, assim como
os efeitos estéticos e de sentido gerados por essas escolhas. Todas as per-
cepções dos estudantes deveriam ser representadas por cores distintas, a
fim de que as regularidades e as estruturas sintáticas do poema ficassem
evidentes. Para representar as estruturas da oração encontradas, assim
como suas considerações sobre o uso estético da língua em textos poéti-
cos, os estudantes fizeram um painel, denominado “Varal Gramatical”.
Vejamos abaixo o poema e a criação dos estudantes:
12 O Projeto Poemática: poesia e gramática consiste numa série de oficinas ministrada pelos
professores da Universidade de Brasília, Eloisa Pilati e Alexandre Pilati, em que diversos po-
emas são analisados por meio de uma metodologia que conjuga os princípios da aprendizagem
ativa e da crítica literária dialética, com o objetivo de levar os estudantes a terem contato com
a materialidade poética.

104
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Os três mal amados (João Cabral de Melo Neto)


O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato
O amor comeu meus cartões de visita
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minha dieta
O amor comeu todos os meus livros de poesia
O amor comeu meu Estado, minha cidade
O amor comeu minha paz, minha guerra, meu dia e minha noite
Meu inverno, meu verão
Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça
O meu medo da morte

Figura 3 – Varal Gramatical

Fonte: Acervo Gramaticoteca.

No varal gramatical acima, os estudantes escolheram cores distin-


tas para representar os termos das orações: amarelo para os sujeitos das
orações, rosa escuro para os verbos e rosa claro para os complementos
dos verbos. Após essa representação dos termos por diferentes cores,
os estudantes puderam observar que, nos versos representados, há uma
estrutura que se repete, que é a estrutura Sujeito+Verbo+Complemento.
Os estudantes também puderam perceber que os sujeitos da oração po-
dem não estar manifestos (sujeitos nulos), mas sua referência pode ser
retomada ou pelo contexto, ou pela desinência do verbo.

105
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Outro aspecto do poema discutido pela análise foram os efeitos de


sentido e estéticos decorrentes do emprego do verbo comer, com um
sujeito com traços não humanos e não animados, pois o substantivo
amor não possui tais traços, tal como em “O amor comeu meu nome,
minha identidade, meu retrato”. Uma pergunta que se colocou foi se a
conotação do verbo comer foi positiva ou negativa, e sobre as possíveis
interpretações e sinônimos para o verbo.
Em relação aos complementos verbais em cada oração, os estudantes
puderam criar hipóteses e debater sobre os diferentes domínios da vida
do eu lírico afetados pela relação amorosa, pois, no primeiro verso, o
“amor” consumiu elementos relacionados à identidade do eu lírico, de-
pois elementos relacionados à saúde, à cidade. Além disso, foi possível
fazer reflexões sobre novas formas de expressão, efeitos de sentido etc.
Ao final da atividade, os alunos foram motivados a reescrever o poema,
mantendo a mesma estrutura do poema original, mas modificando o verbo
e escolhendo um outro que tivesse conotação mais positiva, exercitando
assim seus conhecimentos adquiridos e sua criatividade. Inúmeras outras
atividades e reflexões poderiam ter sido feitas com base nesse poema,
tanto sob o ponto de vista da investigação e análise literária, quanto sob
a ótica gramatical.
Em síntese, por meio da compreensão do funcionamento da forma-
ção de sentenças da língua e do reconhecimento dos padrões dos proces-
sos gramaticais essenciais, os alunos poderão usar seus conhecimentos
gramaticais para a elaboração de orações, textos, atividades de leitura
crítica de pequenos textos, elaboração de parágrafos, revisão e análise de
textos. Uma vez compreendida, por exemplo, a importância da seleção
argumental, o aluno poderá avaliar os efeitos de sentido das diferentes
opções tomadas pelos usuários da língua. Por fim, os estudantes também
poderão alcançar maior nível de consciência e de controle de suas próprias
produções escritas, pois terão as ferramentas e critérios mais claros para
produzir e analisar textos.

106
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, descrevi uma concepção teórico-metodológica para


o uso de materiais manipuláveis na sala de aula, sob a perspectiva da
Aprendizagem Linguística Ativa. Foram apresentados três artefatos do
Projeto Gramaticoteca, um projeto que reúne materiais concebido para
propiciar a compreensão dos princípios que organizam as gramáticas das
línguas naturais e entender o desenvolvimento do saber gramatical como
ferramenta indispensável para o desenvolvimento da leitura, da escrita e
do pensamento crítico. Quanto à transposição didática dos conhecimentos
linguísticos para as aulas de gramática, a presente proposta segue Pilati
(2017), que utiliza orientações advindas da linguística gerativista e das
demais ciências cognitivas para o desenvolvimento de atividades de
ensino de gramática. Concluo o capítulo apontando que uso de materiais
manipuláveis nas aulas de línguas são campo promissor, com agenda de
pesquisa vasta e interessante. Há necessidade de pesquisas tanto para
desenvolvimento de novos materiais quanto para investigações sobre as
relações sobre o uso de materiais manipuláveis e o desenvolvimento do
pensamento crítico, criativo e metacognitivo na educação linguística.

REFERÊNCIAS

BONWELL, C. C.; EISON, J. A. Active Learning: Creating Excitement in the


Classroom. ASHE-ERIC Higher Education Reports, n. 1, 1991.
BRANSFORD, J. D. et al. (org.). Como as pessoas aprendem: cérebro, mente,
experiência e escola. São Paulo: Editora Senac, 2007.
DUARTE, M. E. L. Termos da Oração. In: BRANDÃO, S. F.; VIEIRA, S. (org.)
Ensino de Gramática. Descrição e uso. São Paulo: Editora Contexto, 2007. p. 186-
204.
FLAVELL, J. H. (1976). Metacognitive aspects of problem solving. In: RESNICK,
L. B. (ed.). The Nature of Intelligence. Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum Associates,
1976. p. 231–235.
LOBATO, Lucia Maria Pinheiro. Linguística e ensino de línguas. Brasília: Editora
UnB, 2014.

107
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

KATO, M. A.; NASCIMENTO, M. (org.). Gramática do português culto falado no


Brasil – Volume III – A construção da sentença. Campinas: Editora da UNICAMP,
2001.
MIOTO, C.; SILVA, M. C. F.; LOPES, R. E. V. Novo Manual de Sintaxe. 3. ed.
Florianópolis: Insular, 2007.
MOYER, P. S. Are we having fun yet? How teachers use manipulatives to teach
mathematics. Educational Studies in mathematics, v. 47, n. 2, p. 175-197, 2001.
PILATI, E. Linguística, gramática e aprendizagem ativa. Campinas: Pontes Editores,
2017.
PILATI, E. Teorias linguísticas e educação básica: proposta congregadora. In:
BOECHAT, A.; NEVINS, A. (org.). O apelo das árvores. Campinas: Pontes Editores,
2018. p. 347-375.
SANTANA, L.; PILATI, E. Sobre a categoria gramatical “verbo” nos livros didáticos:
investigações conceituais e metodológicas. No prelo.
THOMPSON, P. W. Concrete materials and teaching for mathematical understanding,
Arithmetic Teacher, v. 41, n. 9, p. 556-558, 1994.
VICENTE, H.; PILATI, E. Teoria gerativa e “ensino” de gramática: uma releitura
dos parâmetros curriculares nacionais. Verbum: cadernos de pós-graduação, n. 2,
p. 4-14, 2012.

108
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

ENSINO DE COESÃO TEXTUAL EM UM PARADIGMA


FORMAL: UMA ABORDAGEM ATIVA

Luiz Fernando Ferreira


Maria Eugênia Martins Barcellos

1. INTRODUÇÃO1

Apresentamos neste capítulo sugestões para se trabalhar a coesão


textual em escolas de ensino fundamental e médio. As propostas de
exercício apresentadas aqui fazem uso de um arcabouço teórico e de
uma metodologia que não são usualmente empregadas no tratamento de
coesão. O objetivo é instrumentalizar os profissionais de ensino de língua
portuguesa com ferramentas conceituais e metodológicas das diferentes
abordagens científico descritivas da linguística, a fim de facilitar e res-
significar o processo de ensino-aprendizagem de gramática e redação
em escolas regulares.
Examinamos um corpus de textos escritos de alunos do ensino fun-
damental e médio. Desse corpus, selecionamos textos nos quais havia
comentários, feitos por professores que foram responsáveis pela correção,
1 Gostaríamos de agradecer, primeiramente, aos professores participantes dos cursos de extensão
“A gramática e a linguística em sala de aula” e “Ensino de Gramática – Reflexões Semânticas”
oferecidos pelo Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo. Os comentários
feitos pelos professores sobre as dificuldades enfrentadas em lecionar coesão motivaram a
escrita deste capítulo. Além disso, o feedback desses professores ajudou no aprimoramento
dos exercícios apresentados aqui. Por fim, gostaríamos de agradecer ao público do GTTG da
ANPOLL em Boa Vista, evento no qual este trabalho foi apresentado, pelas sugestões e comen-
tários adicionais, bem como ao revisor anônimo deste capítulo, que contribuiu com diversos
comentários valiosos. Obviamente, eventuais erros aqui presentes são de responsabilidade dos
autores.

109
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

como: “há muita repetição de palavras”, “há muito uso de aí, então”,
“os alunos não usam o ponto final”. Tais comentários são geralmente
associados a um texto no qual “falta coesão”. Alegamos, neste capítulo,
que essa “falta de coesão” se refere, na realidade, a mecanismos coesivos
da língua falada menos monitorada transferidos e usados na produção da
língua escrita mais monitorada – por essa razão, as aspas. É sobre isso
que falaremos na seção seguinte. É relevante dizer que o corpus foi tra-
zido por professores da rede pública que frequentaram, entre os anos de
2017 e 2019, o curso de extensão “A gramática e a linguística na sala de
aula”, ofertado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
Na segunda seção deste capítulo, apresentamos os arcabouços teóri-
cos que embasam a nossa proposta, a saber: a linguística textual (KOCH,
1989; LOPES FÁVERO, 1991; ANTUNES, 2009) e a linguística formal
(FREGE, 1948; DAVIDSON, 1967; PARSONS, 1990; CHIERCHIA;
MCCONNELL-GINET, 2000). Nessa seção, também apresentamos
a metodologia ativa (JOHNSON; JOHNSON; SMITH, 1998; JOHN-
SON; JOHNSON, 2008; BACICH; MORÁN, 2015; MORÁN, 2015;
PILATI, 2017) a qual temos no horizonte na elaboração dos exercícios
apresentados aqui.
Mais adiante, na seção Sugestões para o professor da educação
básica, trazemos uma série de exercícios para se trabalhar mecanismos
coesivos por reiteração (e.g. hiperônimos, hipônimos, sinônimos e profor-
mas) e por conexão (e.g. mas, e, etc.). O entendimento desses conceitos
se dará por meio da discussão dos conceitos de sentido e referência – tão
caros à linguística formal. Tudo isso, com propostas de atividades que
são dinâmicas, focam na cooperação em grupo e colocam os alunos como
agentes de seu aprendizado.
Esperamos que este capítulo contribua para refletirmos, enquanto profis-
sionais do ensino de língua portuguesa, sobre onde e como localizar e analisar
a questão da “falta de coesão” nos textos dos nossos alunos. Que o professor
entenda por que ela ocorre e consiga conscientizar seus alunos, através de uma
abordagem ativa, acerca dos mecanismos coesivos das diferentes modalidades

110
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

da língua (oral e escrita) nos diferentes graus de monitoramento (menos a


mais monitorado). Também esperamos que, a partir dessa conscientização,
o aluno seja capaz de escolher os mecanismos coesivos que deseja empregar
em seu texto de acordo com o contexto de produção, dominando-os de forma
suficiente para que atue como revisor do próprio texto.

2. A PROPOSTA

Nesta seção, falamos das teorias linguísticas que embasam os exer-


cícios propostos neste capítulo, bem como da metodologia empregada
no desenvolvimento desses exercícios. Em relação ao arcabouço teórico,
defendemos que as descrições e análises provenientes da linguística
conseguem explicar fenômenos de uma maneira mais intuitiva do que
as descrições provenientes da gramática normativa. Dessa forma, a
linguística tem um grande potencial para facilitar a compreensão dos
alunos de qualquer fenômeno linguístico e auxiliar o docente em seu
trabalho em sala de aula.
Já em relação à metodologia, os estudos da área de psicologia e
pedagogia mostram que a forma como o conteúdo é apresentado exer-
ce grande influência em como ele é assimilado pelo aluno. Portanto, a
metodologia deve ser escolhida com cuidado, de modo a potencializar
a eficácia das propostas. Escolhemos a metodologia ativa, uma vez que
ela ajuda a tornar fenômenos linguísticos abstratos mais tangíveis e
palpáveis para os discentes.

2.1. ARCABOUÇOS TEÓRICOS: LINGUÍSTICA TEXTUAL E


LINGUÍSTICA FORMAL

No Brasil, a linguística textual é a corrente comumente empregada


para descrever a coesão e coerência (KOCH, 1989; LOPES FÁVERO,
1991; ANTUNES, 2009). Assumimos que esses são fenômenos distintos
e abordaremos neste capítulo apenas a coesão, por questões de espaço2.
2 Para uma exposição de por que elas são fenômenos diferentes, ver Koch (1989) e Lopes Fávero
(1991).

111
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Para aqueles interessados em coerência, Shimoda e Ferreira (2019)


apresentam propostas de exercícios que seguem os mesmos princípios
teóricos e metodológicos deste capítulo. A motivação para a criação
dessa proposta se deve ao fato de que o ensino de coesão enfrenta alguns
problemas na sala de aula, como afirma Antunes:

A questão da coesão tem sido, em geral, pouco ou quase nada


tratada pelas gramáticas e, só muito recentemente, um ou
outro livro didático traz observações acerca dessa proprie-
dade textual. Em geral, essas observações são apresentadas
de forma superficial, incompletas e, por vezes, com algumas
inconsistências (ANTUNES, 2009, p. 16).

Além disso, Marcuschi (2009, p. 9) ressalta que conceitos teóricos


e técnicos presentes nos sisudos manuais de linguística textual passam
para os livros didáticos, muitas vezes, sem qualquer mediação explica-
tiva, o que prejudica o entendimento do material pelos professores e,
consequentemente, prejudica a aula.
Resumindo os apontamentos feitos pelos autores, podemos dizer que:
(i) o tratamento de coesão tem pouco espaço nos materiais didáticos e,
quando esse tema é abordado, é feito de modo inadequado e insuficiente;
e (ii) a transposição dos termos técnicos para os livros didáticos não é feita
de maneira satisfatória. A edição do livro no qual os autores relatam esses
problemas é de 2009. No entanto, pelos textos trazidos pelos professores
de Língua Portuguesa que frequentaram o curso de extensão nos anos de
2017, 2018 e 2019, e também pelos comentários tecidos por esses profes-
sores, é seguro dizer que esses problemas ainda persistem. Assim, tendo no
horizonte os apontamentos feitos por Antunes (2009) e Marcuschi (2009),
este capítulo se embasa no tratamento da linguística textual para elaborar
exercícios para a sala de aula, usando também insights de descrições pro-
venientes da linguística formal, na tentativa de fornecer explicações mais
intuitivas aos conceitos necessários para se entender coesão3.
3 Antunes (2009) menciona outros fatores que são relevantes para entender as dificuldades dos
alunos ao escrever textos. Esses outros fatores estão relacionados a questões do modo como
os textos são trabalhados em sala de aula. Mencionamos alguns desses fatores nas propostas
de exercícios.

112
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Antunes (2009, p. 47) define coesão como “propriedade pela qual


se cria e se sinaliza toda espécie de ligação, de laço, que dá ao texto
unidade de sentido ou unidade temática”. Os trabalhos da linguística
textual no Brasil (KOCH, 1989; LOPES FÁVERO, 1991; ANTUNES,
2009) usam, principalmente, os conceitos de coesão provenientes de
Halliday e Hassan (1976) ou de Beaugrande e Dressler (1981). Para
Halliday e Hassan (1976, p. 4), “a coesão ocorre quando a interpretação
de algum elemento no discurso é dependente da de outro. Ou seja, um
não pode ser efetivamente decodificado exceto pelo recurso do outro”4.
Já para Beaugrande e Dressler (1981, p. 11), a coesão “está relacionada
às maneiras pelas quais os componentes da superfície textual (i.e. as
palavras que ouvimos e vemos) estão mutuamente conectadas em uma
sequência”. O que as definições de diferentes autores parecem concor-
dar é que a coesão está relacionada à maneira como se estabelece uma
conexão no decorrer do texto.
Antunes (2009) apresenta três modos como a coesão pode se es-
tabelecer no texto, a saber: por reiteração, associação e conexão5. Na
reiteração o mesmo elemento é recuperado através de um recurso (e.g.
pronomes, advérbios, sinônimos, hiperônimos, elipse etc.). A associa-
ção ocorre quando não necessariamente o mesmo elemento é retomado,
mas quando os elementos de diferentes sentenças estão relacionados
por pertencerem ao mesmo campo semântico (e.g. antonímia). Por fim,
a conexão é a relação que se estabelece entre sentenças (e.g. através de
preposições, conjunções etc.).
A visão de Antunes (2009), adotada neste capítulo, é que a coesão
depende de diversas categorias semânticas (hiperônimos, sinônimos,
antônimos) e de algumas categorias sintático-semânticas (proformas,
elipse). Na escola, os alunos costumam entrar em contato com esses
conceitos como pronomes, sinônimos, hiperônimos etc. No entanto,
como os livros didáticos deixam o ensino de coesão em segundo plano,
uma finalidade importante desses elementos é ignorada: a de elementos
4 Todas as traduções são dos autores.
5 A classificação dos mecanismos coesivos varia de acordo com o autor. Para outras classifica-
ções, ver Koch (1989) e Lopes Fávero (1991).

113
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

criadores de coesão. Nesse sentido, concordamos com Pilati (2017)


quando a autora afirma que um problema atual no ensino de português
é que as coisas são desmembradas e ensinadas em anos diferentes de
modo que não é possível para o aluno ver toda a complexidade do sistema
linguístico em ação.
A nossa proposta é que esses elementos linguísticos (pronomes,
sinônimos etc.) sejam ensinados, paralelamente às suas funções no
texto, como mecanismos coesivos. A coesão é embasada pelo viés da
linguística textual. A linguística formal entra neste capítulo para definir
os elementos criadores de coesão, tais como pronomes, elipse, sinônimos,
hiperônimos etc.
Seguimos a semântica fregeana, ou seja, uma semântica que assume
que empregamos a linguagem para falar das coisas no mundo. Nesse
paradigma, o significado das expressões linguísticas é descrito através da
referência (i.e. a coisa no mundo para qual a expressão linguística apon-
ta) e do sentido (i.e. a forma como ela é apresentada) (FREGE, 1948)6.
Abaixo, apresentamos algumas definições para mecanismos coesivos
relevantes para os exercícios apresentados na seção 3.
Pronome: refere-se a diferentes coisas em diferentes situações
(PORTNER, 2005). Sua referência não é fixa, mas varia segundo o valor
que lhe é atribuído (e.g. contexto extralinguístico ou relação anafórica)7:

(1)
Jorge achou que o cargo era ideal para ele. (MÜLLER; VIOTTI, 2003,
p. 153).

Sinonímia: expressões podem ser consideradas sinônimas quando pode-


se substituir uma pela outra sem alterar o valor de verdade.
6 Por motivos de espaço, não discutimos em detalhes o tratamento que os fenômenos apre-
sentados aqui recebem na linguística formal. Assim, alguma familiaridade com o paradigma
formal está pressuposta neste capítulo. Para os leitores não familiarizados, recomendamos os
materiais introdutórios de Oliveira (2001), Müller e Viotti (2003), Cançado (2008) e Gomes
e Sanchez-Mendes (2018), em português, e Chierchia e McConnell-Ginet (2000) e Portner
(2005), em inglês.
7 Quando se descreve pronomes, há aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticos que devem ser
considerados. Para este capítulo, somente levaremos em consideração os aspectos semânticos.

114
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(2)
a. A roupa está seca.
b. A roupa está enxuta.(MÜLLER; VIOTTI, 2003, p. 149).

Hiponímia: uma relação que se estabelece entre duas expressões linguís-


ticas, sendo o hipônimo a expressão linguística cuja referência pertença
ao conjunto denotado por outra expressão linguística.
Gato (hipônimo) Felino8

Hiperonímia: uma relação que se estabelece entre duas expressões lin-


guísticas, sendo o hiperônimo a expressão linguística cuja referência é
o conjunto ao qual a referência de outra expressão linguística pertence.

Gato Felino (hiperônimos)

Nesta subseção, apresentamos alguns conceitos necessários para


se trabalhar coesão em sala de aula, bem como a definição que estamos
assumindo para cada um deles. A próxima subseção apresentará os
preceitos da metodologia ativa, que embasa as propostas de exercícios
apresentadas na seção 3.

2.2 METODOLOGIA ATIVA

O que eu ouço, eu esqueço. O que eu vejo, eu lembro. O que


faço, eu entendo.
(Confúcio, filósofo chinês)

O provérbio de Confúcio que abre esta subseção resume bem os


princípios da aprendizagem ativa. Nos métodos tradicionais de ensino,
o professor é visto como a fonte do conhecimento. Ele desempenha seu
papel falando e escrevendo no quadro, enquanto o aluno é visto como
receptáculo do conhecimento, devendo absorver aquilo que o professor
está transmitindo. Nesses métodos, o aluno está em um papel mais pas-
sivo no ato de aprender. Metodologias que relegam ao aluno esse papel
passivo são menos eficientes que metodologias que o colocam em um
8 Lê-se: gato contido em felino.

115
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

papel ativo (JOHNSON; JOHNSON; SMITH, 1998; JOHNSON; JOHN-


SON, 2008; BACICH; MORÁN, 2015; MORÁN, 2015). Dessa forma,
como diz o provérbio, o fazer leva melhor ao entender do que somente
o ouvir ou o ver.
Morán (2015) cita as várias maneiras pelas quais o professor pode des-
verticalizar o ensino, tirando o aluno de uma posição passiva e colocando-o
numa posição ativa (como propõe a metodologia ativa), a saber: jogos que
trabalhem o conteúdo de forma inteligente, sala de aula invertida, na qual o
principal conteúdo é adquirido em casa e os exercícios que seriam comu-
mente passados como lição de casa são resolvidos em aula, aprendizagem
por pares (peer instruction), PBL (project based learning – aprendizagem
guiada por projetos), TBL (team based learning – aprendizagem baseado
em times), estudo de casos etc. Não iremos esmiuçá-las aqui por questão
de espaço9, mas o leitor deve estar ciente dessa multiplicidade de técnicas
que são consideradas ativas. Há ainda, segundo Johnson e Johnson (2008),
outra técnica: a aprendizagem cooperativa. Nela, os alunos juntam-se em
pequenos grupos para alcançar objetivos em comum. Espera-se que todos
os alunos participem do trabalho, seja por compartilhamento de ideias,
sugestões para resolver problemas ou outro engajamento – tendo sempre
em mente que devem alcançar juntos o objetivo final. Dinâmicas de grupo
são bons exemplos de atividades que promovem esse tipo de aprendizagem.
Como veremos na prática na seção seguinte, não se sugere que a exposição
do conteúdo seja descartada, mas unida a dinâmicas para facilitar o processo
de ensino-aprendizagem da coesão. Nas dinâmicas em geral, o professor é
mero mediador da situação. Como ilustraremos, no caso da que propomos
mais adiante, fica a cargo dos alunos ajudarem o seu colega, por meio de
dicas, a acertar a referência, para que, assim, todos avancem para a próxima
referência. Além disso, exercícios descontextualizados podem ser trocados
por atividades de pesquisa através das quais o aluno busca o fenômeno em
textos com os quais tem mais contato (letras de música, posts em redes
sociais etc.), como também fazemos mais adiante. Os materiais podem (e
devem) ser adaptados de modo que os fenômenos da língua ganhem uma
representação menos abstrata para os alunos (PILATI, 2017).
9 Para mais acerca de tais técnicas, ver as referências citadas nessa seção.

116
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Pensar propostas de ensino de gramática e linguística que empregam


metodologias mais eficazes é fundamental para potencializar a apren-
dizagem do aluno. A próxima seção apresentará algumas sugestões de
exercícios para se trabalhar coesão nas escolas, empregando os pressu-
postos teóricos e metodológicos apresentados até o momento.

3. SUGESTÕES PARA O PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA

O objetivo desta seção é apresentar ao professor de língua portuguesa


propostas de atividades para se trabalhar o uso de mecanismos coesivos
da língua escrita mais monitorada em salas de aula, tanto do ensino
fundamental quanto do ensino médio. Evidentemente, o professor pode
e deve fazer as modificações que achar mais adequadas à sua turma. No
entanto, a sequência das atividades apresentadas segue um encadeamento
lógico e, desse modo, caso o professor queira fazer alterações, deve ater-
se a essa questão, de forma a não romper tal encadeamento.
Porque os alunos geralmente têm maior contato com textos escritos
mais monitorados na escola, ao passo que entram nela já com ampla
bagagem de textos orais menos monitorados, contrapomos exatamente
os mecanismos coesivos desses dois textos – que são bem distantes
um do outro no continuum fala/escrita (MARCUSCHI, 2008) – para
identificarmos com os alunos a questão da “falta de coesão”. Portanto,
nas atividades a seguir, trabalhamos as diferenças mais salientes do
continuum de modo a deixá-las mais evidentes aos alunos no momento
da apresentação. Contudo, caso seja de interesse do professor, ele pode
trabalhar com outros textos do “meio do caminho”.
Ilustramos quais tipos de problemas com coesão temos em mente
a partir dos textos 1 e 2 a seguir10.
10 Os textos apresentados aqui pertencem ao nosso corpus de atividades escritas por alunos de
ensino fundamental e médio. Um dos requerimentos para a matrícula no curso de extensão
mencionado na introdução foi que os professores apresentassem produções de seus alunos que
eles considerassem problemáticas e para as quais eles gostariam que fossem apontados meca-
nismos de aperfeiçoamento. Assim, o corpus analisado neste trabalho é constituído de textos
de diversos anos e atividades diferentes. Os textos 1 e 2 foram trazidos pelo mesmo professor
e foram produzidos por alunos diferentes para uma mesma atividade. Nessa atividade, eles
leram um texto escrito por uma menina chamada Marina, que apresentava a opinião dela sobre

117
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

“Eu concordo com a altora porque eu acho que as pessoas imitando os


animais é bem semgraçae o mais importante é viver a vida lá fora e siali-
mentar bem fazer muintosezerisios tipo correr, pular, e muitos esportes e a
comida podia ser asimmaçan, água, muintos vegetais tipo salada, tomate,
cenoura, etce assistir televisão faz muinto mau para a saude e os olhos
eu gosto muinto de assistir a TV eu gosto muinto de assistir o SBT tipo o
Bondia e companhia eu só não gosto deses canais de mexicanos e muinto
chato e é essa minha palavrinha sobre a TV.”
Texto 1: Atividade argumentativa sobre televisão (7º ano).

“Eu respeito a opinião da Marina nem todo mundo é igual.


Mas eu prefiro imaginar porque com a imaginação você cria tudo assim
criou as coisas as novelas os desenhos animados porque foi as pessoas que
imaginam se não fose a imaginação das pessoas agente não teria tudo isso
mas também gosto do real que as coisas são mais reais mas do mesmo
jeito prefiro imaginar por e mais criativo mas a minha opinião e que não
concordo com a Marina prefiro a imaginação.”
Texto 2: Atividade argumentativa sobre televisão (7º ano).

Argumentamos que “a falta de coesão” nos textos 1 e 2 apontada por


professores é ilusória (por isso as aspas). O que ocorre é que os alunos
transferem mecanismos coesivos geralmente empregados em uma fala
menos monitorada para o texto escrito mais monitorado11. Dessa forma,
o primeiro passo que recomendamos é diferenciar, com os alunos, textos
falados menos monitorados de escritos mais monitorados. Fiorin (2013)
aponta as seguintes diferenças:

a TV. Após essa apresentação, o professor pediu que eles elaborassem um texto argumentativo
dizendo se concordavam ou não com a opinião da Marina.
11 Uma vez que queremos dar enfoque apenas nos problemas de coesão, os demais problemas
presentes nos textos 1 e 2 (e.g. ortografia) serão ignorados.

118
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Textos Falados Textos Escritos


(A) Recebidos ao mesmo tempo em que (A) Produção completa antes da recepção;
elaborados;
(B) Interlocutores, tempo e lugar marcados (B) Ocorre fora da situação de interlocução,
contextualmente; sendo necessário recriar a cena enunciativa;
(C) Planejamento e execução concomitan- (C) Não apresenta marcas de planejamento;
tes (apresenta marcas de planejamento);
(D) Estrutura em tópicos. (D) Estruturação em parágrafos.

Analisando os textos 1 e 2, é possível perceber que eles possuem as


características (B), (C) e (D) citadas acima para textos falados, ou seja,
não se preocupam em recriar a cena enunciativa, apresentam marcas
de planejamento – o que demonstra que não houve um planejamento
prévio antes da execução – e são apresentados em um único bloco, sem
divisão em período ou em parágrafo, seguindo apenas uma estruturação
em tópico.
Isso ocorre porque esses alunos dos primeiros anos do ensino
fundamental equiparam a atividade de escrever a transcrever seus pen-
samentos no papel. Desse modo, antes de pedir que os alunos escrevam
textos, é necessário que o professor trabalhe com atividades cujo objetivo
é conscientizar os alunos sobre a diferença entre textos escritos (mais
monitorados) e textos falados (menos monitorados). Um exemplo de
atividade com essa finalidade pode ser observado abaixo:

Atividade 1: Textos escritos (mais monitorados) vs. Textos falados


(menos monitorados)

Objetivo: Fazer com que o aluno diferencie essas duas modalidades


de texto

Proposta: (i) Divida a turma em grupos; (ii) Dê para cada grupo textos
nessas diferentes modalidades, mas que abordem o mesmo tópico; e (iii)
Os grupos devem trabalhar para elicitar as diferenças entre tais textos.

119
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Exemplo:

“olha… Ah essa questão… De decisão política… Os governantes assim


é… Não sei… Consigo pensa… Assim em… Sei lá tem que fa/ tem que
da uma olhada/ eu não sei de… De perto como é que anda como é que tá
sei lá a questão da estrutura da polícia do controle… Eh… Consigo pensar
que às vezes a gente tem notícia de abusos assim da da autoridade policial
então tem que te um controle próximo disso faze uma… Fiscalização
uma repressão assim firme… Aquelas coisas assim que o pessoal vê de
inteligência policial mesmo né de… Faze mapeamento de onde… De
zonas… Onde ta sendo mais visado e tal… Isso aí eu não sei dize até que
ponto é… É feito né?… Que o pessoal arriscando a vida… No dia a dia
e… Ganhando… Em condições precárias né?… Eu acho que essa questão
salarial também é importante… […] que se desviem uma corrupção coisa
nesse sentido né?… Mas não sei muito dize o/ o que tem sido feito não…
Não sei… Questões políticas são delicadas né?…”
Texto 3: Exemplo de texto falado transcrito – (Mendes, 2013)

Nas duas últimas décadas, o Brasil presenciou uma crescente preocupa-


ção com as questões relativas à segurança pública e à justiça criminal.
Uma verdadeira obsessão securitária refletiu-se num nível jamais visto
de debates públicos, de propostas legislativas e de produção acadêmica.
Esta última se debruçou sobre as práticas de segurança e de justiça, ao
menos no contexto da redemocratização do país.
Não obstante, pouco tem sido feito, no âmbito político, para que se tornasse
tangível uma efetiva reforma dessas instituições, tendo como preâmbulo
pesquisas e conhecimentos provenientes tanto da maior participação
coletiva na formulação, implantação e acompanhamento de políticas pú-
blicas, quanto da disponibilidade sem precedentes de pesquisadores aptos
a discutir com o universo da política e das instituições […].
Texto 4: Exemplo de texto escrito. (www.observatoriodeseguranca.org/seguranca/politica
[acessado em fev. 2018])

120
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Após um tempo para discussão, o professor pede para que um aluno


de cada grupo apresente as constatações feitas. Entre as respostas dadas,
deve-se salientar e colocar na lousa aquelas que apontarem que: (i) há nos
textos falados menos monitorados certas expressões (e.g. eh…, uhn…,
tipo… né?) que não ocorrem em textos escritos mais monitorados; (ii)
os textos escritos mais formais trazem uma introdução, ao contrário dos
falados menos formais; (iii) os textos falados, quando transcritos e lidos
fora de contexto, são mais difíceis de entender; e (iv) há uma diferença
na estrutura, uma vez que textos escritos seguem a organização em pe-
ríodos, e os textos falados, em tópicos12.
Após a elicitação desses pontos com os alunos, deve-se apresentar
a nomenclatura, evidenciando que as expressões encontradas em textos
falados (e.g. eh…, uhn…, tipo… né?) são marcas de planejamento, que
a dificuldade de compreensão de um texto falado quando está transcrito
e lido fora de contexto ocorre porque não se recupera a cena enunciativa
(enunciador, enunciatário, lugar, tempo etc.) e que as diferenças estrutu-
rais ocorrem devido aos diferentes suportes para esses textos.
Como exercício de consolidação do que foi aprendido em aula, o
professor pode passar para casa um trabalho em duplas. Um membro deve
escolher um texto falado de aproximadamente 5 minutos (e.g. sequências
de áudios de conversa de WhatsApp, fala de youtuber etc.), transcrevê-lo
e enviá-lo para sua dupla. Seu parceiro irá analisar a transcrição fora de
seu contexto de enunciação, anotando quais características dos textos
falados o trecho analisado apresenta.
Uma vez que os alunos já estejam conscientes das diferenças entre
essas modalidades, pode-se então trabalhar com textos escritos mais
monitorados que utilizam mecanismos coesivos de textos falados menos
monitorados. Logicamente que mecanismos coesivos de textos falados
podem aparecer em textos escritos, principalmente quando forem menos
monitorados (e.g. postagens em redes sociais, em aplicativos de men-
sagens etc.). No entanto, o professor deve refletir com seus alunos que
12 O professor poderia simplesmente apresentar de maneira expositiva as diferenças entre textos
escritos e falados. Mas uma proposta na qual essas características devam ser elencadas pelos
próprios alunos leva a uma aprendizagem mais efetiva na metodologia ativa.

121
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

não são todas as modalidades de textos escritos que comportam esse uso
de mecanismos coesivos da fala. Os textos a serem trabalhados agora
podem ter sido escritos anteriormente pelos próprios alunos ou um texto
que o professor tenha. Um exemplo de atividade com essa finalidade é
ilustrado abaixo13:

Atividade 2: Análise de textos escritos mais monitorados que seguem


a estrutura de textos falados menos monitorados.

Objetivo:Fazer com que o aluno perceba a influência de mecanismos


de um texto falado menos monitorado em seus textos escritos mais
monitorados.

Proposta: (i) Peça que alunos tragam um texto por eles anteriormente es-
crito (opcionalmente distribua textos com forte influência da oralidade);
e (ii) Os alunos devem analisá-los e dizer, justificando as respostas, se o
texto se assemelha mais à estrutura de um texto escrito mais monitorado
ou a de um texto falado menos monitorado.

Exemplo:Textos 1 e 2 acima.

Uma vez que as diferenças estejam claras para o aluno, os próximos


passos envolvem o ensino de técnicas que vão ajudá-lo a progredir de
um texto com uma estrutura como a dos textos 1 e 2 para um texto com
uma estrutura de um texto escrito mais monitorado. É nessa parte que
entram os mecanismos coesivos que pretendemos abordar neste capítulo.
Um dos mecanismos coesivos mencionados por Antunes (2009) é
a coesão por conexão, que expressa uma relação aditiva entre sentenças.
Ela é expressa por expressões como e, ainda, também, não só, além de
etc. Esse é um mecanismo coesivo bem relevante para a língua falada.
Como veremos mais adiante, é comum, na língua falada, um amplo uso
de elementos coordenadores que permitem coordenar ideia após ideia sem

13 As correções de textos são usualmente feitas pelos docentes. Aqui, após dar as ferramentas
analíticas aos alunos (textos escritos vs. textos falados), o objetivo é que eles se tornem cor-
retores do próprio texto.

122
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

ceder o turno ao interlocutor14. Observe que textos escritos por alunos


do ensino fundamental podem trazer uma abundância desse mecanismo
coesivo. Enquanto o aluno do texto 1 prefere coordenar suas sentenças
com a conjunção e, o aluno do texto 2 demonstra uma preferência pela
conjunção mas. O que ambos têm em comum é que o excesso de coor-
denação faz com que os textos se apresentem em blocos, sem pontuação
separando as sentenças.
Não analisamos esse uso de coordenação como um erro. Do ponto
de vista sintático, a língua é recursiva por natureza e não impõe limite
no tamanho de uma sentença (HORNSTEIN, NUNES, GROHMANN,
2005). Dessa forma, uma explicação do ponto de vista sintático seria que
os alunos nos textos 1 e 2 estão aplicando a recursividade infinitamente
através de coordenação. Assim, apresentar a recursividade da língua ao
aluno é importante para que ele compreenda sua manifestação em seus
textos escritos mais e menos monitorados. Ilustramos uma atividade com
essa finalidade abaixo:

Atividade 3: Recursividade da língua.

Objetivo:Introduzir a recursividade como característica da língua.

Proposta: (i) Distribua textos que possuem um caráter recursivo para


a classe (e.g. textos 5 e 6 abaixo); e (ii) Os alunos devem identificar
quais itens possibilitam esse caráter recursivo (e.g. de em 5 e que em 6).

14 Antunes (2009) defende que o mas é um recurso coesivo de conexão por oposição. No entanto,
na semântica formal, considera-se mas como um operador de adição com a mesma semântica
que e, e a oposição que percebemos com mas é uma implicatura pragmática convencional.
O texto 2 mostra que seu autor emprega mas como um recurso coesivo de adição, uma vez
que tal expressão, nesse texto, não é empregada pelo aluno para opor ideias. Na fala, o mas
pode aparecer mais naturalmente como mecanismo coesivo de adição (como assumido pela
semântica formal), mas o aluno deve ser conscientizado que, na escrita monitorada, trata-se
de um mecanismo para opor ideias, e não um mero conectivo entre sentenças.

123
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Exemplo:

O cachorro do tio do primo do amigo da minha mãe é um labrador.


Texto 5: Exemplo de texto recursivo

“Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo que
amava Juca que amava Dora que amava […]”
Texto 6: Exemplo de texto recursivo. (Chico Buarque, Flor da idade. Chico 50 anos: o
cronista. Universal, 1999).

Dois jogos que poderiam ser aplicados para promover a consoli-


dação dos conceitos de recursividade da língua estão ilustrados abaixo.
No primeiro jogo, os grupos devem se esforçar ao máximo para usar os
elementos criadores de recursividade para criar a maior sentença possível
e depois para memorizá-la. No segundo jogo, o aluno usa um mecanismo
criador de recursividade para aumentar a sentença e o jogo vai acabar
quando um dos alunos não lembrar mais alguma parte da sentença.

Jogo 1: (i) divide-se a sala em grupos, (ii) o grupo deve usar elementos
criadores de recursividade para criar a maior sentença possível, (iii) o
grupo escolhe o integrante com a melhor memória para falar a sentença,
(iv) o integrante do grupo que falar a maior sentença de memória ganha.

Jogo 2: (i) um aluno fala uma sentença, (ii) o próximo aluno deve inserir
um mecanismo recursivo e torná-la maior, (iii) o próximo aluno deve
inserir mais um mecanismo coesivo e torná-la ainda maior. Segue um
exemplo:
Aluno A: Eu fui ao mercado.
Aluno B: Eu fui ao mercado e comprei batatas.
aluno C: Eu fui ao mercado e comprei batatas que estavam em promoção…

124
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

O que esses jogos deixam em evidência é que o que impõe limites


ao tamanho de uma sentença não é a gramática, mas sim a nossa memó-
ria. Assim, sentenças com muitos encadeamentos, como nos textos (5)
e (6), apesar de serem gramaticais, a depender do objetivo do aluno, não
devem ser empregadas em textos escritos por serem difíceis de processar.
Deve-se deixar claro ao aluno como isso depende também da intenção
do autor e do gênero textual. Por exemplo, essa recomendação não se
aplica ao exemplo (6), uma vez que a recursividade é empregada, neste
caso, com um fim poético.
Uma vez que os alunos já estejam habituados ao conceito de recur-
sividade e como ela funciona, as próximas atividades podem fazer com
que os alunos voltem aos seus textos e vejam se há um uso excessivo da
recursividade ou não. Ilustramos abaixo como essa atividade pode ser
conduzida:

Atividade 4: Recursividade em textos escritos (mais monitorados).

Objetivo:Fazer com que o aluno perceba o emprego excessivo de ele-


mentos recursivos em seus textos escritos mais formais, e cujo grau de
monitoramento deveria ser maior, e aprenda a eliminá-los, a depender
de seu objetivo.

Proposta: (i) Os alunos vão reanalisar os textos empregados na atividade


2; (ii) Eles devem verificar se eles tendem a quebrar seus textos em
várias sentenças ou se eles tendem a empregar recursividade para ligar
as sentenças, não empregando o ponto final com frequência; (iii) Para
os alunos que empregam muito a recursividade, pede-se que eles grifem
em seus textos quais mecanismos mais aparecem gerando essa recursi-
vidade; e (iv) Peça que o aluno remova esses elementos, substituindo-os
por pontos finais, como ilustrado nos textos 7 e 815.
15 Se os conectivos são recursos coesivos, poder-se-ia questionar se retirá-los não implicaria em
reduzir a coesão do texto. Em um primeiro momento, sim. No entanto, esse seria um primeiro
passo necessário para auxiliar os alunos na divisão do seu texto em períodos. Considerando que
os elementos coesivos como as conjunções mas e e estão geralmente localizados nas fronteiras
das sentenças, e que os alunos já aprenderam a identificá-los com os exercícios anteriores,
substituir esses elementos por pontos pode ser a maneira mais rápida de mostrar aos alunos
as fronteiras entre as sentenças para inserção de ponto final.

125
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Exemplo:

Eu concordo com a altora porque eu acho que as pessoas imitando os


animais é bem semgraça. e O mais importante é viver a vida lá fora e sia-
limentar bem fazer muintosezerisios tipo correr, pular, e muitos esportes. e
A comida podia ser asimmaçan, água, muintos vegetais tipo salada, tomate,
cenoura, etc. e Assistir televisão faz muinto mau para a saude e os olhos
eu gosto muinto de assistir a TV eu gosto muinto de assistir o SBT tipo o
Bondia e companhia eu só não gosto deses canais de mexicanos e muinto
chato. e É essa minha palavrinha sobre a TV.
Texto 7: Texto 1 após remoção de itens que causam recursividade.

Eu respeito a opinião da Marina nem todo mundo é igual.


Mas Eu prefiro imaginar porque com a imaginação você cria tudo assim
criou as coisas as novelas os desenhos animados porque foi as pessoas que
imaginam se não fose a imaginação das pessoas agente não teria tudo isso,
mas também gosto do real que as coisas são mais reais. mas Do mesmo
jeito prefiro imaginar por e mais criativo. mas A minha opinião e que não
concordo com a Marina prefiro a imaginação.
Texto 8: Texto 2 após remoção de itens que causam recursividade16.

O professor pode ressaltar que essas conjunções são recursos


coesivos aditivos importantes em textos falados. No entanto, quando
empregadas em excesso em textos escritos, elas deixam a sentença muito
longa. Isso pode causar dificuldades no entendimento, como ocorre nos
textos (5) e (6).
Uma vez que o texto esteja dividido em períodos, o próximo passo é
começar a construir coesão entre esses períodos com itens que sejam mais
16 Perceba que essa eliminação não deve ser generalizada. Por exemplo, no texto 8 o segundo mas
foi mantido, uma vez que ele não tem puramente a função de adição, mas também contribui
com o sentido de oposição. Assim, o professor deve avaliar se os elementos estão presentes
apenas no texto para criar recursividade ou se há alguma contribuição semântico/pragmática
adicional. Caso haja, sua eliminação seria prejudicial, ao invés de ser benéfica a coesão textual.
Agradecemos ao revisor por nos chamar a atenção a esse ponto.

126
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

adequados ao texto escrito mais monitorado. Sugerimos que o professor


comece pelos recursos coesivos de reiteração. A reiteração de um item
pode ser feita de diferentes formas (e.g. proformas, sinônimos, hiperô-
nimos etc.). Para apresentar esses conceitos aos alunos, empregaremos
os conceitos de sentido e referência de Frege (1948). Para esse filósofo,
a linguagem é utilizada para falar das coisas no mundo. A expressão
linguística é chamada por ele de sentido, enquanto a coisa no mundo é
chamada de referência. Para trabalhar esses conceitos com os alunos,
sugerimos a seguinte atividade:

Atividade 5: Sentido e referência.

Objetivo:Apresentar ao aluno os conceitos fregeanos de sentido e


referência.

Proposta: (i) Mostra-se a foto de algo no mundo (e.g. o jogador Pelé na


figura 1); (ii) Pergunta-se aos alunos quais nomes ou expressões apon-
tam exclusivamente para essa “coisa” no mundo; e (iii) Apresenta-se
a coisa no mundo à qual as expressões linguísticas se referem como a
referência dessas expressões, e as várias maneiras de se chegar à mesma
referência como os diferentes sentidos dessa referência.

Exemplo:

127
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Após a introdução da nomenclatura, como exercício de consolidação


pode-se pedir que o aluno analise um texto no qual uma mesma referência
é retomada por diferentes sentidos, como por exemplo, o texto 9 abaixo.
Esse texto pode ser entregue aos alunos, que vão trabalhar em duplas. Eles
devem ser instruídos que há uma determinada referência (e.g. “O escritor no
mundo conhecido como Machado de Assis”) sendo retomada por sentidos
diferentes no decorrer do texto (e.g. “Machado de Assis”, “nosso maior
escritor”, “o bruxo de Cosme Velho”, “o mestre” etc)17. Os alunos devem
identificar qual é a referência e mostrar quais os sentidos empregados para
identificá-la.

Comemora-se este ano o sesquicentenário de Machado de Assis. As co-


memorações devem ser discretas para que dignas de nosso maior escritor.
Seria ofensa à memória do Mestre qualquer comemoração que destoasse
da sobriedade e do recato que ele imprimiu a sua vida, já que o bruxo de
Cosme Velho continua vivo entre nós.
Texto 9: Mesma referência retomada por diferentes sentidos (Folha de S. Paulo apud
Lopes Fávero, 1991, p. 12).

Após esse exercício, o professor pode dizer que a retomada de um


determinado referente no decorrer de um texto, empregando diferentes
sentidos, é um mecanismo que agrega coesão ao texto. A partir do texto
9 acima, o professor pode pedir que os alunos escolham um dos sentidos
e reescrevam o trecho empregando apenas aquele sentido. Possíveis re-
sultados seriam o texto 10 ou o texto 11 abaixo. Pode-se pedir que cada
grupo apresente suas versões após a substituição.

17 É provável que, entre as respostas fornecidas pelos alunos, ocorra o pronome ele. O professor
deve aproveitar para introduzir a propriedade de pronomes de possuírem uma referência
variável conforme o contexto. Para aprofundar esse assunto, sugerimos ao professor a leitura
de Koch (1989) e Marcuschi (2008).

128
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Comemora-se este ano o sesquicentenário de Machado de Assis. As co-


memorações devem ser discretas para que dignas de Machado de Assis.
Seria ofensa à memória de Machado de Assis qualquer comemoração que
destoasse da sobriedade e do recato que Machado de Assis imprimiu a sua
vida, já que Machado de Assis continua vivo entre nós.
Texto 10: Texto 9 com repetição de “Machado de Assis”.

Comemora-se este ano o sesquicentenário de nosso maior escritor. As co-


memorações devem ser discretas para que dignas de nosso maior escritor.
Seria ofensa à memória de nosso maior escritor qualquer comemoração
que destoasse da sobriedade e do recato que nosso maior escritor imprimiu
a sua vida, já que nosso maior escritor continua vivo entre nós.
Texto 11: Texto 9 com repetição de “o nosso maior escritor”.

Após a apresentação, o professor pode perguntar qual efeito se tem


quando o mesmo sentido é retomado. A resposta esperada é que o uso de
um mesmo sentido pode cansar e incomodar o leitor, além de sugerir que
o autor não domina o vocabulário e os mecanismos coesivos da língua
escrita monitorada18. Além disso, sentidos como “o nosso maior escritor”
possuem referência variada a depender do enunciador e do contexto,
uma vez que as pessoas podem não concordar em quem é o nosso maior
escritor. Sendo assim, além dos efeitos já descritos, a repetição do sentido
no texto 11 levaria à perda da referência19. Esse exercício servirá para
demonstrar a influência dos conceitos fregeanos de sentido e referência
quando falamos de coesão. Essa é a ponte que criamos entre linguística
textual e linguística formal, empregando os conceitos da formal para
explicar as relações de sentido estabelecidas entre os enunciados que
compõem o texto (i.e. a coesão), ou, de outro modo, a ligação das palavras
entre si dentro de uma sequência (LOPES FÁVERO, 1991).

18 É importante dizer que a repetição é também um mecanismo coesivo, pois ela causa linearidade
e conexão entre as palavras dos diferentes enunciados do texto; no entanto, como visto, ela é
comum à fala menos monitorada e, na escrita mais monitorada, pode ter objetivos específicos
a depender das intenções do autor. Deve ater-se também aos gêneros discursivos (Marcuschi,
2009), pois, a depender, a repetição pode causar incômodo quando empregada em excesso.
19 Agradecemos a(o) revisor(a) anônimo(a) por pontuar isso em sua leitura.

129
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Até aqui, mostramos ao aluno que a utilidade da coesão e dos me-


canismos coesivos (por reiteração, mais especificamente) é evitar, em
determinados gêneros textuais, problemas como: (i) falta de conexão
entre palavras do texto; (ii) recursividade e repetição de palavras que
podem cansar o leitor; e (iii) aparente falta de vocabulário e de conhe-
cimento de mecanismo coesivos por parte do autor. Em outras palavras,
vimos que substituir mecanismos coesivos mais comumente associados
à fala por outros permite que a leitura do texto flua melhor. Propomos, a
seguir, uma atividade que introduza os outros mecanismos que evitam a
repetição, tais como a hiperonímia, hiponímia, sinonímia e proforma20:

Atividade 6: Elementos criadores de coesão.

Objetivo:Apresentar ao aluno diferentes formas de criar coesão.

Proposta: PARTE I
(i) Os alunos devem pesquisar em casa os conceitos de hiperonímia,
hiponímia, sinonímia e proforma21; (ii) O professor pode começar a aula
usando diagramas de Venn com palavras para verificar o entendimento
do aluno dos conceitos de hiperônimo, hipônimo e sinônimo (e.g. per-
guntar qual é o hipônimo e qual é o hiperônimo na figura 2 abaixo); e (iii)
A fim de verificar o entendimento do conceito de proforma, o professor
pode colocar várias sentenças no quadro, e o grupo pode adivinhar o
tipo de proforma, como ilustrado em (A) abaixo22.

20 Para melhor entendimento de tais conceitos, ver seção 2 deste capítulo.


21 Observe que a metodologia proposta aqui evita ao máximo a aula meramente expositiva e
promove que o aluno seja um agente que busca o conhecimento. O modelo que substitui uma
apresentação do conteúdo em sala de aula pela pesquisa em casa é conhecido como “sala de
aula invertida” (MORÁN, 2015) e é uma maneira de aplicar a metodologia ativa.
22 Algumas proformas como as pronominais em (1a) e as adverbiais em (1c) retomam uma en-
tidade no mundo e podem ser explicadas empregando os conceitos de sentido e referência de
Frege (1948). Já as proformas verbais como em (1b) se referem não a uma entidade, mas sim
a um determinado evento. Ou seja, para explicá-las será necessário complementar a semântica
fregeana com a semântica de eventos (DAVIDSON, 1967; PARSONS, 1990). A apresentação
da semântica de eventos pode ser feita da mesma maneira que fizemos com a semântica frege-
ana, ou seja, mostrando que usamos a linguagem também para se referir a eventos no mundo
e que o mesmo evento pode ser descrito de diferentes formas (e.g. a cidade foi destruída vs.
a destruição da cidade).

130
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Exemplo:

Figura 2: Hipônimo vs. Hiperônimos Figura 3: Sinônimo

(A) Qual o tipo de proforma está sendo utilizada23?


a. Tenho um automóvel. Ele é verde.
(tipo: pronominal)

b. Lúcia corre todos os dias no parque. Patrícia faz o mesmo.


(tipo: verbal)

c. Paula não irá à Europa em janeiro. Lá faz muito frio.


(tipo: adverbial)
Exemplos de Lopes Fávero (1991, p. 19).

Proposta: PARTE II
(i) Uma vez familiarizados com os conceitos, dividem-se os alunos
em grupos; (ii) O professor dá duas sentenças e uma categoria, como
ilustrado nas sentenças em (B) abaixo; (iii) O grupo deve substituir o
item repetido por outro de acordo com a categoria dada, como ilustrado
nos exemplos em (C); e (iv) O grupo que fizer a substituição em menos
tempo marca um ponto.

(B) a. O brasileiro gosta muito de futebol. Não é à toa que o futebol é


praticado nos quatro cantos do país (Categoria: hiperônimo).
b. João é marido da Maria. João é arquiteto. (Categoria: proforma
pronominal).
23 Não é objetivo deste subseção fazer uma lista pormenorizada de exemplos com proformas.
Para tal, ver Lopes Fávero (1991).

131
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(C) a. O brasileiro gosta muito de futebol. Não é à toa que esse esporte
é praticado nos quatro cantos do país (Substituição por um hiperônimo).
b. João é marido da Maria. Ele é arquiteto (Substituição por proforma
pronominal).

Após a apresentação desses conceitos, propomos como exercício


de consolidação uma dinâmica em grupo na qual os alunos devem tra-
balhar conjuntamente, de forma que o professor seja apenas um media-
dor (conforme a metodologia ativa). A dinâmica se chama “Adivinhe
a referência”. Antes de realizá-la, divide-se a sala em grupos com, no
máximo, 5 alunos. Em seguida, explica-se que cada grupo funciona
independentemente, de forma que o desempenho de um não afeta o
desempenho de outro.
A dinâmica funciona da seguinte maneira: a cada rodada, um mem-
bro de um grupo se levanta e fica de frente para seu grupo e de costas
para o quadro, onde o professor projeta a foto de uma referência ou es-
creve um sentido (caso não possua acesso à tecnologia para a projeção).
O membro do grupo deve adivinhar o que está sendo projetado/escrito
através de dicas do restante do grupo. Essas dicas são, na realidade, ou-
tros sentidos para a mesma referência. No entanto, os sentidos não são
livres. Eles têm que fazer parte da categoria de mecanismo coesivo que
o professor disser, sendo elas: hiperonímia, hiponímia e sinonímia ou
sentido exclusivo para uma referência. A seguir, apresentam-se algumas
sugestões de sentidos que o aluno deve adivinhar para cada categoria e,
em parênteses, as possíveis dicas (outros sentidos)24:

Hiperônimos: persa (felino, gato, raça); poodle (canino, cachorro,


raça); kitnet (moradia, apartamento, lar); egg chair (móvel, objeto,
cadeira, assento); cenoura (legume, vegetal, comida)25.
24 Se possível, é interessante o professor mostrar também imagens de cada referência a ser
adivinhada.
25 Uma complementação a “Adivinhe a referência”, com o mesmo intuito de praticar os
mecanismos coesivos por meio de exemplos, é o jogo Stop. Em uma folha em branco, o
aluno desenha uma tabela, sendo que cada coluna da tabela corresponde a uma categoria
de palavras (nome, animal, cidade, carro etc.) e cada linha representa uma rodada do jogo.
De outra forma, cada coluna é um hiperônimo e, em cada linha, o aluno deve escrever um
hipônimo correspondente.

132
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Hipônimos: dinheiro (real, dólar, euro); roupa (vestido, camiseta, saia);


carro (Gol, Fusca, Uno); bijuteria (brinco, anel, pulseira); perfume
(Malbec, 212, Floratta).

Sinônimos e/ou outro sentido exclusivo para uma referência: careca


(calvo, pessoa que não tem cabelos); Rio de Janeiro (Cidade Maravi-
lhosa, cidade onde está o Pão de Açúcar); rápido (veloz, ágil); Sílvio
Santos (dono do SBT, dono da Jequiti).

Essa dinâmica faz com que os alunos pratiquem os conteúdos apre-


sentados até o momento de forma ativa e cooperativa, entendendo que
somente alcançarão o objetivo da dinâmica se trabalharem em conjunto.
Após esse exercício de consolidação, propomos que o professor trabalhe
novamente com os textos dos alunos como ilustrado na proposta abaixo.

Atividade 7: Mecanismos de coesão em textos escritos mais monito-


rados.

Objetivo:Fazer com que o aluno empregue, em seus textos, os meca-


nismos coesivos aprendidos anteriormente.

Proposta: (i) Os alunos vão reanalisar os textos empregados na atividade


4; (ii) Se há coesão por reiteração (item em uma sentença retomado em
outra) e qual tipo; (iii) Caso não haja, o aluno deve construir essa coesão
empregando os diferentes mecanismos estudados até o momento, como
ilustrado no texto 12 abaixo; e (iv) Caso o mecanismo coesivo predo-
minante seja a repetição, o aluno deve substituir por outros mecanismos
que foram estudados até o momento.

133
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Exemplo:

“Eu concordo com a altora porque eu acho que as pessoas imitando os


animais é bem sem graça. Mais importante que imitar (outro sentido
para o mesmo evento) é viver a vida lá fora e sialimentar bem fazer
muintosezercisios tipo correr, pular, e muintos esportes. Na alimentação
(outro sentido para o mesmo evento), a comida podia ser assim maçan,
água, muintos vegetais tipo salada, tomate, cenoura, etc. Assistir televi-
são faz muito mau para asaudee os olhos. No entanto, eu gosto muito de
ver TV (sinônimo). Gosto de assistir programas do SBT tipo o Bondia e
companhia. Da programação (hiperônimo), eu só não gosto desescanais
de mexicano. Eles (proforma pronominal) são muito chatos. É essa a
minha palavrinha sobre a tv.”
Texto 12: Texto 7 após acréscimo de diferentes mecanismos coesivos.

Por fim, a última característica relevante que diferencia um texto es-


crito mais monitorado de um texto falado menos monitorado é a recriação
da cena enunciativa. De modo a conscientizar o aluno da importância da
recriação da cena enunciativa, sugerimos o seguinte exercício.

Atividade 8: Recriação da cena enunciativa.

Objetivo:Conscientizar o aluno da importância da contextualização.

Proposta:(i) Divida a turma em grupos; (ii) Distribua dois textos com


a mesma temática: um escrito e um texto falado transcrito (e.g. textos
3 e 4 da atividade 1); (iii) Distribua perguntas para os grupos sobre
esses textos; e (iv) Os grupos devem tentar responder essas perguntas.

Exemplo:Textos 3 e 4.

Perguntas: A: Qual o problema que o autor aborda?


B: Onde esse problema ocorre?
C: Desde quando esse problema ocorre?

134
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Uma vez que o texto falado não traz nenhuma contextualização, a


previsão é que os alunos tenham bastante dificuldade para responder a
pergunta A e não consigam responder as perguntas B e C com proprie-
dade. O texto 4, por sua vez, traz todas as informações básicas já no pri-
meiro parágrafo, que respondem a todas essas perguntas e permitem que
se acompanhe a discussão, mesmo fora do contexto de produção. Após
essa atividade, pode-se pedir que os alunos voltem aos próprios textos
escritos para analisar se eles recriam ou não a cena enunciativa e, caso
não recriem, uma tarefa será fazê-lo em um parágrafo introdutório, para
que o texto possa ser lido fora de seu contexto de produção. Caso possua
mais de uma turma, uma sugestão é que as turmas trabalhem com temas
diferentes e que haja uma revisão cruzada na qual o aluno de uma turma
deve ler o texto de outro e determinar se a recriação da cena enunciativa
no primeiro parágrafo foi ou não suficiente para se acompanhar o texto.
Essa correção cruzada também faz parte da metodologia ativa que foca
no aprendizado por meio dos pares (peer instruction).
Esta seção apresentou sugestões para o professor trabalhar a coe-
são através de atividades que colocam o aluno em uma posição ativa e
empregam como arcabouço teórico a linguística textual e a linguística
formal. Uma vez que os recursos coesivos são vastos, não é possível
apresentar propostas de exercícios para todos os mecanismos coesivos
que existem. No entanto, esperamos que o professor que ler este capítulo
possa usar os exercícios aqui propostos como inspiração na elaboração
de outros exercícios para os outros mecanismos coesivos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em nosso tratamento da coesão, mostramos que os alunos entram na


escola familiarizados com textos falados menos monitorados que fazem
parte de seu cotidiano, mas com pouca familiaridade com os textos de
uma escrita mais monitorada. Dessa forma, em suas primeiras atividades
de escrita, é comum que eles tratem a escrita como uma mera transcrição
da fala, produzindo, às vezes, textos escritos cuja estrutura se assemelha
à de um texto falado menos monitorado. Vimos que eles fazem, por

135
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

exemplo, conexão entre sentenças através de itens coesivos aditivos (e.g.


e, mas), usam o mesmo sentido para retomar a mesma referência etc.
Defendemos que o professor não se limite ao texto escrito, mas que
estude paralelamente o texto falado, de modo a ressaltar as diferenças
entre essas duas modalidades, atentando-se aos graus de monitoramento
de cada uma. Além disso, para que o aluno aprenda que o texto escrito
não é uma mera transcrição da fala, as diferenças entre as duas moda-
lidades devem ser trabalhadas paulatinamente através de exercícios
específicos que vão ressaltando um determinado aspecto de cada vez.
Todas as atividades propostas neste capítulo estão embasadas em algum
modelo da aprendizagem ativa (jogos, aprendizado por cooperação, sala
de aula invertida, peer instruction etc.) e o que elas têm em comum é
que colocam o aluno em uma posição ativa pesquisando os conteúdos,
aprendendo por meio de jogos e dinâmicas não apenas com o professor,
mas também com os colegas, e atuando como revisor do próprio texto.
Nem todos os problemas apontados aqui vão aparecer nos textos
dos alunos. Assim, cabe ao professor determinar quais as necessidades
de cada turma e quais exercícios devem ser trabalhados de acordo com
suas prioridades.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, I. Lutar com palavras: coesão e coerência. 5. ed. São Paulo: Parábola.
2009.
ANTUNES, I. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola. Editorial,
2005. Resenha de MARCUSCHI, L. A. (2009). Tudo o que você queria saber
sobre como construir um bom texto sem se estressar. Revista Virtual de Estudos da
Linguagem – ReVEL, v. 4, n. 6, mar. 2006. Disponível em: http://www.revel.inf.br/
files/resenhas/revel_6_lutar_com_palavras.pdf. Acesso em: 30 set. 2009.
BACICH, L.; MORÁN, J. Aprender e ensinar com foco na educação híbrida. Revista
Pátio, n. 25, p. 45-46, jun. 2015.
BEAUGRANDE, R.-A. D.; DRESSLER, W. U. Introduction to Text Linguistics.
New York: Longman, 1981.
CANÇADO, M. Manual de Semântica: Noções básicas e exercícios. 2. ed. Belo
Horizonte: UFMG. 2008.

136
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

CHIERCHIA, G.: McCONNELL-GINET, S. Meaning and grammar: an introduction


to semantics. Cambridge: MIT Press, 2000.
DAVIDSON, D. (1967). The logical form of action sentences. In: RESCHER, N.
(ed.). The logical of decision and action. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press.
1967, p. 81-95.
FIORIN, J. L. A linguagem humana: do mito a ciência. In: FIORIN, J. L. (org.).
Linguística? O que é isso? São Paulo: Contexto, 2013, p. 12-43.
FREGE, G. Sense and reference. The philosophical review. v. 57, n. 3, p. 209-230,
May 1948. doi: 10.2307/2181485.
GLASSER, W. (1999). Schooling, Education and Quality Schools. In: GLASSER,
W. Choice theory: a new psychology of personal freedom. New York: HarperCollins
Publishers, 1999, p. 161-194.
GOMES, A. Q.; SANCHEZ-MENDEZ, L. Para conhecer semântica. São Paulo:
Contexto, 2018.
HALLIDAY, M. A.; HASSAN, R. Cohesion in English. London: Longman, 1976.
HORNSTEIN, N.; NUNES, J. GROHMANN, K. K. Understanding minimalism.
Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
JOHNSON, R. T.; JOHNSON, D. W. Active learning: Cooperation in the classroom.
The annual report of education psychology in Japan, v. 47, p. 29-30, 2008. Disponível
em: https://www.jstage.jst.go.jp/article/arepj1962/47/0/47_29/_pdf . Acesso em: 23
jun. 2019.
JOHNSON, R. T.; JOHNSON, D. W.; SMITH, K. A. Active Learning: Cooperation
in the College Classroom. Minnesota: Interaction Book Company, 1998. doi: 10.5926/
arepj1962.47.0_29.
KOCH, I. G. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 1989.
LOPES FÁVERO, L. Coesão e coerência textuais. São Paulo: Ática, 1991.
MORÁN, J. Mudando a educação com metodologias ativas. In: SOUZA, C. A.
de; MORALES, O. E. T. (org.). Coleção mídias contemporâneas. Convergências
midiáticas, educação e cidadania: aproximações jovens. Ponta Grossa: UEPG/
PROEX, 2015, p. 15-33.
MÜLLER, A.; VIOTTI, E. Semântica formal. In: FIORIN, J. L. (org.). Introdução à
linguística II: Princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003, p. 137-159.
OLIVEIRA, R. P. Semântica formal: Uma breve introdução. Campinas: Mercado
de Letras, 2001.
PARSONS, T. Event in the Semantics os English: A study in subatomic semantics.
Cambridge: MIT Press, 1990.

137
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

PILATI, E. Linguística, gramática e aprendizagem ativa. 2. ed. Campinas: Pontes,


2017.
PORTNER, P. What is meaning? Fundamentals of formal semantics. Malden:
Blackwell Publishing, 2005.
SHIMODA, L. T.; FERREIRA, L. O ensino de coerência textual em enunciados
verbais e não-verbais: uma abordagem alternativa. Estudos Semióticos, v. 15,
n. 2, p. 158-180, 2019. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/esse/article/
view/160575. Acesso em 23 jan. 2020. doi: https://doi.org/10.11606/issn.1980-4016.
esse.2019.160575.

138
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

SELEÇÃO, CONSTITUÊNCIA E PONTUAÇÃO:


UMA PROPOSTA FORMAL PARA O ENSINO
DA VÍRGULA EM PORTUGUÊS1

Marcus Vinicius Lunguinho


Helena Guerra Vicente
Paulo Medeiros Junior

1. INTRODUÇÃO

Como tratar a pontuação em sala de aula? Que caminho devo seguir


para levar meus alunos a pontuar corretamente seus textos e assim produzir
os sentidos desejados e, ao mesmo tempo, evitar outros sentidos? Essas são
algumas (das muitas) perguntas que, talvez, você já tenha feito a si mesmo
na hora de preparar suas aulas sobre o tema pontuação. Você certamente
não está sozinho. Todo professor de língua portuguesa seguramente já se
fez esse tipo de questionamento pelo menos uma vez em sua prática.
As dúvidas quanto à pontuação começam muito cedo. Já nas séries
iniciais da Educação Básica, professores alfabetizadores têm de intro-
1 As ideias contidas neste capítulo representam um desdobramento de Lunguinho et alii (2018),
texto escrito a 12 mãos em 2016 (mas só publicado em 2018). Nesse texto, a subseção Pon-
tuação, escrita por Helena Guerra Vicente e Paulo Medeiros Junior, já contempla as ideias
básicas que desenvolvemos na nossa comunicação no Encontro Intermediário do Grupo de
Trabalho em Teoria da Gramática da ANPOLL (UFRR, julho de 2019) e no presente artigo.
Gostaríamos de deixar registrados nossos agradecimentos: às organizadoras Simone Guesser
e Núbia Rech, pelo convite para integrarmos esta publicação e pelo cuidado com o processo
editorial; à audiência do Encontro Intermediário do Grupo de Trabalho em Teoria da Gramática
da ANPOLL (2019), pelo interesse, pelas perguntas e pelas críticas; e ao parecerista anônimo,
pelos comentários e pelas sugestões, sobre os quais nos debruçamos e aos quais tentamos
responder. Assumimos, é claro, toda a responsabilidade pelo que aqui se encontra exposto.

139
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

duzir as crianças no mundo do texto escrito e, para tanto, precisam lidar


com o emprego da pontuação na construção das (pequenas) produções
individuais. É exatamente aí que surgem algumas questões. Como é
possível ensinar pontuação a alunos que ainda não têm a menor noção
da organização sintática das sentenças em língua escrita? O que fazer
quando não se pode acessar o debate pelas vias da sintaxe?
Mesmo nas séries finais da Educação Básica, professores e alunos
se veem às voltas com um conjunto de regras que orientam o emprego
dos diversos sinais de pontuação. Em relação à vírgula, as gramáticas
e os livros didáticos de português seguem o mesmo esquema: pri-
meiramente, apresentam a vírgula, caracterizando-a como um sinal
que marca pausas, e, em seguida, elencam as inúmeras regras de uso
desse sinal de pontuação, dividindo essas regras em contextos (de uso
obrigatório das vírgulas, de uso opcional e de uso impossível). Na
maioria das vezes, a prática docente adota esse esquema no ensino de
vírgula e disso derivam duas consequências. A primeira é a de produzir
e difundir a ideia segundo a qual o emprego da vírgula se resume a uma
questão de pausa, de respiração ou de melodia. A segunda é a de que
a simples listagem de regras de uso da vírgula divididas em ambien-
tes não é eficaz, uma vez que, ao final da apresentação dessas regras,
os alunos ficam sem compreender muito bem quando a vírgula deve
ser empregada, quando a vírgula não pode ser empregada e quando a
vírgula pode ou não ser empregada. Essa é a descrição de uma práti-
ca docente caracterizada pela criação e pela disseminação de ideias
equivocadas acerca da natureza da vírgula e do seu papel na escrita e
pela mera repetição de regras normativas. Tal prática é inócua, uma
vez que não permite que o aluno desenvolva consciência linguística
acerca do emprego correto da vírgula. A falta dessa consciência vai ter
impacto direto em sua produção textual que, em relação a esse aspecto,
apresentará deficiências.
Reconhecendo a importância da vírgula nos textos escritos e veri-
ficando as dificuldades de professores quanto ao seu ensino e de alunos
quanto ao seu correto emprego, este capítulo é dirigido aos alunos de
Letras (futuros professores) e aos atuais professores de português. Co-

140
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

nhecendo o mecanismo por trás do emprego da vírgula em português,


esses (atuais e futuros) professores de português poderão usar esse co-
nhecimento para construir uma prática docente mais efetiva em relação
a esse tópico gramatical.
Nossa reflexão vai considerar apenas o emprego da vírgula no perío-
do simples, deixando a discussão do uso da vírgula no período composto
e no período misto para outro momento. Com base em conceitos da teoria
linguística moderna, procuraremos mostrar: a) como a noção de seleção
semântica e a noção de constituência sintática, presentes desde cedo na
gramática intuitiva das crianças, podem se mostrar fundamentais para
a compreensão do emprego da vírgula e b) como explorar essas noções
pode auxiliar no trabalho docente.
O capítulo está estruturado da seguinte maneira: na seção 2, dis-
correremos brevemente sobre as diferenças entre língua oral e língua
escrita, para, então, defendermos que a pontuação no tocante ao uso da
vírgula não deve ser caracterizada como um sistema de base fonética/
prosódica, mas, sim, de base gramatical (sintática). Ainda nessa seção,
apresentamos a organização do tema nas gramáticas e materiais didáticos
de português, feita em três contextos, a saber, contextos de uso obrigató-
rio, contextos de uso impossível e contextos de uso facultativo da vírgula.
Na seção 3, introduzimos os conceitos gramaticais que, de acordo com
a nossa análise, alicerçam o uso correto da vírgula: seleção semântica
e constituência sintática. Na seção 4, relacionamos os contextos de uso
obrigatório da vírgula ao conceito de constituência sintática e relaciona-
mos os contextos de uso impossível desse sinal de pontuação ao conceito
de seleção semântica. Na seção 5, oferecemos algumas diretrizes para
a discussão desses conteúdos em sala de aula. Finalmente, na seção 6,
tecemos nossas considerações finais.

2. PONTUAÇÃO: O EMPREGO DA VÍRGULA

A língua escrita difere da língua oral em vários aspectos. A primeira


diferença se refere ao fato de a língua oral ser inata ao ser humano e fazer

141
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

parte de sua biologia; já a língua escrita é artificial, uma tecnologia criada


pelo homem, e faz parte da cultura de determinadas sociedades2. A segunda
diferença tem a ver com o fato de todas as crianças adquirirem a língua
oral muito cedo, sem esforço algum e de maneira homogênea (bastando,
para tanto, não apresentarem nenhum distúrbio cognitivo que as impeça de
fazê-lo e estarem em um ambiente em que se fale, pelo menos, uma língua
humana), ao passo que nem todas as pessoas aprendem a língua escrita;
as que a aprendem não o fazem na mesma época da vida; para aprender
a escrever, as pessoas precisam de ensino formal e de treinamento e, por
fim, as pessoas podem apresentar diferenças em sua aprendizagem da
língua escrita. Em outras palavras, todas as pessoas falam, mas nem todas
escrevem. A esse respeito, Ferrarezi Junior (2018, p. 14) comenta:

Enquanto nascemos aparelhados para aprender a falar e para


falar, tivemos que criar os sistemas de escrita, seus sinais
e regras, os objetos tecnológicos que usamos para escrever
(cunhas, canetas de pena, lápis, aparelhos digitais etc.) e os
suportes em que escrevemos (tábuas de argila, pergaminhos,
tiras de couro, papel, telas digitais etc.). O funcionamento do
sistema e uso desse sistema precisam ser aprendidos e domi-
nados da mesma forma que precisamos aprender a tocar piano
ou dirigir um automóvel.

Tratando de língua escrita, é impossível não trazermos a pontuação


para a discussão. Isso acontece porque a pontuação é um recurso próprio
da língua escrita e inexistente na língua oral3. Constitui um sistema de
2 Da oposição entre o caráter natural da língua oral e o caráter artificial da língua escrita, resulta
outra diferença que tem a ver com a precedência histórica da fala em relação à escrita.
3 Kleppa (2019, p. 81) mostra casos em que está havendo lexicalização dos sinais de pontuação
na oralidade, como nos exemplos a seguir:
(i)
a. Ele é organizado entre aspas, né.
b. Vamos botar um ponto final nessa história.
c. Não me venha com esse papo de paizinho. Paizinho vírgula!
O curioso é que a lexicalização de entre aspas e ponto final é, de certa forma, transparente e
deriva do emprego desses sinais de pontuação nas frases. Em (ia), a expressão entre aspas está
sendo usada para ironizar uma característica atribuída a alguém; nesse caso, entre aspas retoma
um dos papéis das aspas na frase, que é o mostrar que determinada palavra, organizado, está
sendo usada em um sentido diferente do original. Em (ib), a expressão ponto final está marcando
a finalização de algo, nesse caso, de determinada história entre os interlocutores; aqui, ponto final

142
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

sinais gráficos dos textos, denominados sinais de pontuação (cf. CATA-


CH, 1980; DAHLET, 2006), e sua principal preocupação é o uso desses
sinais (NUNBERG; BRISCOE; HUDDLESTON, 2002). Nosso interesse
neste trabalho é com um sinal de pontuação específico: a vírgula. Além
disso, vamos abordar esse sinal de pontuação em um contexto delimitado:
o espaço do período simples. No entanto, antes de passarmos às regras
de uso da vírgula no período simples mais especificamente, é necessário
avaliar o que realmente significa empregar vírgula em um texto. Veremos
isso na próxima seção.

2.1 DA FALA PARA A ESCRITA?

Seria a língua escrita apenas uma representação da língua falada?


Caberia à pontuação o simples papel de captar, na escrita, a cadência da
língua oral, seus contornos e suas pausas? Não é incomum encontrar, em
gramáticas e em materiais didáticos de português, a afirmação de que os
sinais de pontuação representam na escrita elementos da língua falada,
como ritmo, melodia, entonação, pausas. Indubitavelmente, o emprego
de sinais como o ponto final, o ponto de interrogação e o ponto de ex-
clamação traz para o texto escrito diferentes interpretações que, na fala,
estariam associadas a entonações diferentes:

(1)
a. Mãe, tem suco na geladeira.
b. Mãe, tem suco na geladeira?
c. Mãe, tem suco na geladeira!

retoma o papel do ponto final como encerramento de uma ideia, um período.


Já em relação à vírgula, o significado de sua forma lexicalizada não é claro. Em (ic), a palavra
vírgula não está sendo usada para separar nada. Ela está sinalizando a recusa (ou a oposição)
de uma pessoa em relação a ser chamada de paizinho. Talvez essa recusa (ou essa oposição)
possa ser vista como algum tipo de separação entre as pessoas no que se refere a suas ideias
ou a seus posicionamentos. Deixamos essa questão e outras para pesquisa futura por esse ser
um tema novo e rico, o qual demanda uma investigação aprofundada que mostre as motivações
por trás da lexicalização dos sinais de pontuação, bem como os significados que emergem
nesse processo de lexicalização

143
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

No exemplo (1a), a oração é interpretada como uma afirmação; no


exemplo (1b), a oração é uma interrogação e, no exemplo (1c), é uma
exclamação. Na escrita, a interpretação é guiada pelos sinais de pontua-
ção, ao passo que, na fala, é a prosódia que nos leva às diferentes inter-
pretações. A existência de casos em que diferentes sinais de pontuação
equivalem a diferentes entonações reforça a caracterização da pontuação
como um sistema de base prosódica.
A vírgula também recebe uma análise fonética/prosódica quando
gramáticos a descrevem como um sinal de pontuação associado a uma
pausa no enunciado. Rocha Lima (2011, p. 551), por exemplo, a situa
no conjunto dos sinais de pontuação que simbolizam “pausa que não
quebra a continuidade do discurso, indicativa de que a frase ainda não
foi concluída”. Cunha e Cintra (2017, p. 658 e 668) a tratam como um
sinal que marca sobretudo e não exclusivamente a pausa. Em suas pala-
vras, a vírgula “marca uma pausa de pequena duração” e “assinala que a
voz fica em suspenso, à espera de que o período se complete”. Bechara
(2009, p. 514), por sua vez, classifica a vírgula como um sinal separador
de pausa inconclusa.
Para avaliarmos o alcance empírico dessa abordagem fonética/pro-
sódica, estudemos três situações que relacionam pausas na fala a vírgulas
na escrita (baseamo-nos em LUFT, 2002; TENANI, 2020 e ZENDRON
DA CUNHA; PORTO, 2020)4:
Quadro 1: Relação entre pausa e vírgula
Situação Pausa Vírgula
Situação1  
Situação2  O
Situação3 O 
Elaboração dos autores

4 Para Luft (2002, p. 75), “[m]ais importante que a pausa é a mudança de tom. A vírgula corres-
ponde muito mais a mudança de tom do que a pausa”. Neste trabalho, manteremos a palavra
pausa por ser o termo que aparece amplamente nas gramáticas e livros didáticos de português.

144
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

A Situação1 prevê casos em que a pausa da fala está associada à


vírgula na escrita, como ilustrado nos exemplos abaixo:

(2)
a. A Adriana, aquela novata do grupo da noite, foi transferida.
b. Crianças, venham jantar!
c. O bolo ficou bonito, macio e gostoso.

Na leitura dos exemplos em (2), fazemos pausas exatamente nos


pontos em que há vírgulas. Há, portanto, coincidência entre pausas e
vírgulas.
A Situação2 prevê casos em que a pausa da fala não está associada
a nenhuma vírgula na escrita:

(3)
Os alunos de sintaxe do semestre passado têm interesse na monitoria.

Na leitura da oração (3), é possível fazermos uma pequena pausa entre


as palavras passado e têm. Essa pausa na leitura não corresponde a uma
vírgula na escrita. Como aponta Tenani (2020), essa pausa pode estar rela-
cionada à extensão do sujeito: um sujeito longo5 pode requerer uma pausa
entre sujeito e predicado para o leitor poder respirar, enquanto um sujeito
curto não. Em relação a sujeitos curtos, consideremos o exemplo abaixo:

(4)
Muitos alunos têm interesse na monitoria.

Independentemente de como se pronuncie a oração (4), uma pausa


entre alunos e têm não parece muito natural, uma vez que o sujeito da
oração é pequeno se comparado ao sujeito da oração (3).

5 Vamos deixar em aberto como se mede exatamente essa extensão: se em termos de segmentos
fonético-fonológicos, se em termos de unidades prosódicas, se em termos da quantidade de
palavras ou se em termos da estrutura sintática.

145
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Finalmente, a Situação3 prevê casos em que não há pausa na fala


apesar de, na escrita, haver vírgula:

(5)
Amanhã, todos estarão descansados.

Na leitura do exemplo (5), não é muito comum a introdução de


uma pausa entre amanhã e todos, apesar haver uma vírgula entre essas
palavras.
Relacionando cada uma das situações apresentadas com a aborda-
gem fonética/prosódica da vírgula, podemos dizer que, em um primeiro
momento, os casos ilustrados na Situação1 poderiam ser usados para
fortalecer a abordagem da vírgula como marcadora de pausas, ao passo
que os casos ilustrados na Situação2 e na Situação3 enfraqueceriam tal
abordagem, considerando que, na Situação2, a pausa existe, mas não há
vírgula e, na Situação3, a vírgula está presente, mas não é para marcar
pausa (porque não existe pausa).
Isso nos faz voltar à Situação1 e perguntar se estariam as vírgulas
sendo usadas nos exemplos em (2) para marcar pausas ou, dizendo de
outro modo, se estariam as pausas motivando o emprego das vírgulas
nesses exemplos. Nossa resposta é não! Como veremos na seção 4, o
emprego das vírgulas em (2) é motivado por questões de natureza sintá-
tica – assim como o emprego da vírgula em (5). As pausas que aparecem
nesses exemplos são elementos secundários associados às vírgulas. É
importante destacar nossa afirmação: para esses casos específicos, a
pausa é secundária e associada às vírgulas e não primária e motivadora
das vírgulas.
Por conta disso, é correto dizermos que o papel da vírgula vai muito
além de uma simples transposição de pausas na fala para o texto. Não há
como usar essa marca de pontuação sem necessariamente recorrermos a
uma reflexão detida sobre a organização sintática dos enunciados. É exa-
tamente aí que começam os problemas com o ensino. Como já apontado
por Ferrarezi Junior (2018), não é tarefa trivial discutir o emprego da

146
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

vírgula no texto com crianças que ainda não têm consciência da sintaxe.
Vejamos os exemplos abaixo:

(6)
a. Logo pela manhã, os jornais traziam os detalhes da tragédia.
b. Ele, um rapaz bondoso, ajudou o pobre homem.
c. Trouxemos do mercado pão, frutas, verduras e suco.

Não é possível fazer os alunos da Educação Básica compreenderem


que a vírgula deve ser empregada em (6a) para marcar o deslocamento
de um termo sintático (nesse caso, o adjunto adverbial) se eles ainda não
conhecem a noção de adjunto adverbial nem a ideia de que, no portu-
guês, os adjuntos adverbiais são elementos que aparecem geralmente em
posição pós-verbal. Não é possível fazer as crianças das séries iniciais
da Educação Básica entenderem as razões do emprego da pontuação em
(6b), se elas ainda não entendem a natureza parentética de uma construção
apositiva (elas ainda nem sequer reconhecem um aposto) e não podem,
portanto, compreender como esse tipo de elemento sintático se insere
entre o sujeito ele e a forma verbal ajudou, devendo esse procedimento
de inserção ser marcado com vírgulas. Finalmente, também não é pos-
sível fazer alunos que ainda não refletiram sobre as possibilidades de
construção de um termo da oração entenderem o emprego da vírgula em
(6c), aí utilizada para marcar um objeto direto complexo, isto é, composto
de mais de um núcleo.
Assim sendo, a primeira conclusão a que chegamos nessa discussão
sobre o emprego da vírgula é a de que o uso desse sinal de pontuação
não é regido por questões de natureza fonética/prosódica baseadas em
fatores como pausa, respiração ou melodia, o que faz com que o ensino
desse tópico específico associado a essas noções seja um grande equívoco.
Concordamos, portanto, com Luft (2002), Dahlet (2002, 2006) e Ferrarezi
Junior (2018), para quem a vírgula é um sinal de pontuação regido pela
gramática. Essa vai ser a premissa que vai guiar nossa reflexão acerca
da vírgula neste capítulo.

147
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Na seção seguinte, vamos descrever as regras de uso da vírgula no


período simples.

2.2 COMO USAR A VÍRGULA: A PRESCRIÇÃO GRAMATICAL

Como dissemos na Introdução, as gramáticas e os materiais didáticos


de português trazem as regras de colocação da vírgula organizadas em
três contextos: contextos de uso obrigatório, contextos de uso impossível
e contextos de uso facultativo6.
Nesta seção, faremos uma breve descrição desses contextos, toman-
do como base gramáticas e textos especializados7.

2.2.1 Contextos de uso obrigatório

Segundo a prescrição gramatical, é obrigatório o emprego da vírgula


em oito situações. Como nosso intuito é apenas apresentar brevemente
as situações, vamos listá-las no quadro abaixo:
Quadro 2: Prescrição gramatical e uso obrigatório da vírgula

Situações de emprego da vírgula

Coordenação (mais descrita como enumeração)


(7)
a. As crianças, os jovens e os adultos devem se vacinar.
b. Todos tivemos que ler livros, artigos e teses para fazer esse trabalho.
c. Cresci em uma casa grande, aconchegante, cheia de amor.

Papel da vírgula: separar termos de mesma função sintática

6 Ao longo da história, podemos detectar diferenças na conceituação da vírgula, nos seus


contextos de uso e na prescrição de seu emprego. Para trabalhos que tratam da diacronia da
vírgula (especificamente ou no contexto mais geral da pontuação), ver: Rosa (1994), Rocha
(1997), Machado Filho (2004) e Yano (2013, 2018) e Rodrigues e Gonçalves (2020).
7 Os trabalhos em que nos baseamos para a presente apresentação foram as gramáticas de
Bechara (2009), Azeredo (2010), Rocha Lima (2011) e Cunha e Cintra (2017) e os livros de
Luft (2002), Camargo (2005) e Ferrarezi Junior (2018).

148
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Repetição
(8)
a. A noiva chegou linda, linda, linda!
b. Ficamos muito, muito tristes com sua história.

Papel da vírgula: separar palavras idênticas repetidas


Objetos pleonásticos
(9)
a. Contei toda a verdade aos meus sócios.
b. Toda a verdade, contei-a aos meus sócios.
c. Aos meus sócios, contei-lhes toda a verdade.

Papel da vírgula: assinalar que o complemento do verbo se encontra em


posição diferente da sua posição normal na oração
Predicativos deslocados
(10)
a. Os jovens ouviam as notícias desanimados.
b. Os jovens ouviam, desanimados, as notícias.
c. Os jovens, desanimados, ouviam as notícias.
d. Desanimados, os jovens ouviam as notícias.

Papel da vírgula: marcar que o predicativo se encontra em posição diferente


da sua posição normal na oração
Adjuntos adverbiais deslocados
(11)
a. Os funcionários terminaram o trabalho no começo da tarde.
b. Os funcionários terminaram, no começo da tarde, o trabalho.
c. Os funcionários, no começo da tarde, terminaram o trabalho.
d. No começo da tarde, os funcionários terminaram o trabalho.

Papel da vírgula: indicar que o adjunto adverbial se encontra em posição


diferente da sua posição normal na oração

149
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Aposto explicativo
(12)
a. Chomsky, um grande nome da atualidade, estará aqui na universidade.
b. Conheci o Chomsky, um grande nome da atualidade.

Papel da vírgula: delimitar o aposto explicativo dentro da oração


Vocativo
(13)
a. Meninos, arrumem agora suas coisas!
b. Arrumem agora, meninos, suas coisas!
c. Arrumem agora suas coisas, meninos!

Papel da vírgula: separar o vocativo na oração


Palavras e expressões de natureza concessiva, conclusiva, continuativa,
corretiva e explicativa
(14)
a saber, afinal, ainda assim, além disso, aliás, com efeito, ademais, digo,
do contrário, então, isto é, mesmo assim, minto, não obstante, ou antes,
ou melhor, ou seja, outrossim, por exemplo…

Papel da vírgula: separar essas palavras do resto da oração

Fonte: Elaboração dos autores, com base na literatura gramatical consultada.

2.2.2 Contextos de uso impossível

As gramáticas e os materiais didáticos ilustram que não se pode


inserir vírgula entre os termos essenciais e os termos integrantes das
orações. Essas situações são apresentadas abaixo:

(15)
As crianças acabaram de chegar.

150
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(16)
a. Entregamos os documentos ao funcionário.
b. As pessoas demonstravam muita necessidade de atenção.
c. O jogador se mostrava certo da vitória.
d. Relativamente a esse assunto, não tenho nada a acrescentar.

(17)
Foi convocada uma reunião pelo diretor.

(18)
a. A nossa coordenadora é competente.
b. As pessoas ouviam os fatos assustadas.
c. Encontrei os livros da biblioteca completamente rasgados.

O exemplo (15) mostra que o sujeito e predicado, por serem de-


nominados termos essenciais da oração, não devem ser separados por
vírgula. Caso se introduzisse uma vírgula após o sujeito as crianças, a
oração estaria gramaticalmente errada.
Os exemplos em (16) ilustram que os complementos (verbais e no-
minais) não podem aparecer separados das palavras que os selecionam
por meio de vírgula: assim, devem vir diretamente ligados o verbo e o seu
objeto em (16a), o substantivo e o seu complemento em (16b), o adjetivo e
o seu complemento em (16c) e o advérbio e o seu complemento em (16d).
O exemplo (17) ressalta que o agente da passiva também não pode
ser separado do verbo na voz passiva.
Por fim, os exemplos em (18) mostram que um predicativo, quando
se encontra em sua posição canônica (ou dentro do predicado), não é
separado por vírgula8.
8 No caso do predicativo, há um descompasso em relação à prescrição segundo a qual a mudança
de posição canônica de um termo oracional é marcada por vírgula. Em predicados nominais o
predicativo pode aparecer em posição diferente da posição canônica sem que isso seja marcado
por vírgula:
(i)
a. A nossa coordenadora é competente.
b. Competente a nossa coordenadora é. E muito!
c. Competente é a nossa coordenadora. Você precisa ver!
Já em predicados verbo-nominais, o predicativo (do sujeito ou do objeto) pode aparecer em

151
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

2.2.3 Contextos de uso opcional

Existe um contexto de emprego opcional da vírgula no período


simples: quando um adjunto adverbial de pequena extensão aparece
deslocado de sua posição básica. Por adjunto adverbial de pequena ex-
tensão, em geral, as gramáticas assumem ser um adjunto que comporta
uma única palavra:

(19)
a. As lojas fizeram uma grande liquidação ontem.
b. As lojas fizeram ontem uma grande liquidação.
c. As lojas fizeram, ontem, uma grande liquidação.
d. As lojas ontem fizeram uma grande liquidação.
e. As lojas, ontem, fizeram uma grande liquidação.
f. Ontem as lojas fizeram uma grande liquidação.
g. Ontem, as lojas fizeram uma grande liquidação.

Como se vê, o adjunto adverbial ontem, quando aparece em outras


posições diferentes da sua posição básica, pode receber vírgula ou não.
Isso se deve ao fato de ser um adjunto de pequena extensão. Nesses casos,
o emprego da vírgula, segundo os gramáticos, está associado a um tipo
de ênfase do advérbio9.
posição não canônica, como abaixo:
(ii)
a. As pessoas ouviam os fatos assustadas.
b. As pessoas ouviam assustadas os fatos.
c. As pessoas, assustadas, ouviam os fatos.
d. Assustadas, as pessoas ouviam os fatos.
(iii)
a. Encontrei os livros da biblioteca completamente rasgados.
b. Encontrei completamente rasgados os livros da biblioteca.
c. Completamente rasgados, encontrei os livros da biblioteca.
Nesse caso, há duas possibilidades:
a) se o predicativo mudar de posição, mas ainda se mantiver dentro do predicado, essa mudança
de posição não será marcada por vírgula, como em (iib) e (iiib), e
b) se o predicativo mudar de posição e sair dos limites do predicado, essa mudança de posição
será marcada por vírgula, como em (iic), (iid) e (iiic).
9 Essa noção também não é nada clara, uma vez que, em momento algum, se define “ênfase”
objetiva e explicitamente. Por conta da falta dessa definição, o entendimento do que vem a
ser ênfase depende muito da perspicácia e da inteligência do leitor (alunos e professores).

152
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

3. AS NOÇÕES DE SELEÇÃO SEMÂNTICA E DE CONSTITUÊNCIA


SINTÁTICA

Nesta seção, abordaremos duas noções da linguística teórica que


consideramos importantes para a formação do professor de língua por-
tuguesa e que o auxiliarão a compreender o emprego da vírgula nessa
língua: trata-se das noções de seleção e de constituência.

3.1 SOBRE A NOÇÃO DE SELEÇÃO SEMÂNTICA

Assim como o conhecimento sintático diz respeito ao modo como


as palavras se combinam para formar orações, o conhecimento semântico
diz respeito ao significado produzido por essas combinações. É fácil
observar que todos os níveis de conhecimento linguístico (fonológico,
morfológico, sintático, semântico…) são indissociáveis e formam um
emaranhado, já que, o tempo todo, o que fazemos é juntar unidades lin-
guísticas menores para, no fim, obtermos unidades linguísticas maiores.
Isso acontece de maneira recursiva e simultânea. Entender como essas
unidades se combinam vai ser crucial para compreendermos a lógica da
pontuação, já que, como visto em 2.2.2, não se deve usar vírgula quan-
do os termos essenciais e os termos integrantes se encontram em suas
posições canônicas, sem inversão.
Como pouco se fala – pelo menos de uma forma mais sistemática –
sobre semântica no ensino fundamental, achamos que vale a pena dar uma
palavrinha aqui sobre esse nível de análise linguística. O trabalho de Gottlob
Frege (1848-1925), importante filósofo, lógico e matemático alemão do
final do século XIX, que marcou o início dos estudos em semântica for-
mal nas línguas naturais, por exemplo, já se questionava sobre a maneira
como é construído o nosso pensamento10. Foi esse autor o responsável pela
introdução da noção linguística de composicionalidade, que corresponde à
maneira pela qual as partes são combinadas de modo que o todo seja mais
do que as partes isoladas. Para Frege, “a combinação lógica de partes que
10 A título de informação, bem antes dele, Aristóteles e seus seguidores também já haviam se
questionado sobre a composição semântica das orações (HEIM; KRATZER, 1998).

153
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

levam ao inteiro é sempre uma questão de saturar algo insaturado” (FRE-


GE, 1923, p. 6 apud HEIM; KRATZER, 1998, p. 2-3). Transferindo esse
raciocínio para o tópico estudado neste capítulo, podemos afirmar que, na
oração, o verbo é a parte insaturada, isto é, incompleta, que necessita ser
saturada, preenchida, para que possa veicular um pensamento completo,
sob a forma de oração. Esse preenchimento se dá pela combinação do
verbo com seus argumentos, isto é, os participantes de um evento que, na
sintaxe, correspondem a sintagmas nominais exercendo diferentes funções
sintáticas na sentença. Como falantes nativos do português, sabemos que,
em muitas situações, é possível omitir elementos das orações sem que o
entendimento dessas orações seja prejudicado. Trata-se de situações nas
quais podemos retomar informações a partir do contexto. Assim, mesmo
estando ausentes na escrita ou na fala, sabemos que os argumentos de um
predicado estão, de alguma forma, presentes sintática e semanticamente na
construção, podendo ser retomados a partir de enunciados anteriores e/ou
conhecimento compartilhado entre os participantes de uma interação. Por
outro lado, há contextos, os quais a linguística denomina out-of-the-blue
(em tradução livre, “contextos com informações vindas do nada”), em que
o período aparece descontextualizado e precisa ter todos os seus elementos
expressos. O que torna a fala do participante P2 em (20) gramatical, por
exemplo, é a possibilidade de se resgatarem os argumentos não expressos
por meio do contexto (seja o situacional seja o sintático-semântico):

(20)
P1: A Maria enviou o e-mail ao aluno?
P2: Enviou.

No entanto, em um contexto out-of-the-blue, o enunciado de P2


não faria o menor sentido, devido à impossibilidade de retomada dos
três argumentos do verbo: quem enviou, o que foi enviado e a quem
foi enviado. Voltaremos a esse assunto na seção 4, na qual fornecemos
sugestões para o professor da Educação Básica.
Note ainda que não fazemos essas combinações de forma aleatória, e
sim a partir do conhecimento de gramática que internalizamos nos nossos

154
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

primeiros anos de vida. Para Chomsky (1998), por exemplo, nosso conhe-
cimento gramatical estaria consolidado aproximadamente aos três anos de
idade. Até mesmo quando aprendemos vocabulário novo, não aprendemos
simplesmente a palavra de forma isolada. Isso não faria o menor sentido,
levando-se em conta toda a bagagem gramatical naturalmente adquirida!
Sendo assim, além de sermos capazes de aplicar essas regras gramaticais
pré-internalizadas ao novo vocábulo – modificando-o para gênero, número
e grau, se se tratar de um elemento nominal, ou acrescentando a ele infor-
mações de pessoa, número, tempo, modo, aspecto, se se tratar de um verbo,
só para citar alguns exemplos – e de sermos capazes de “inventar” novos
vocábulos, tomando emprestadas raízes de outras línguas, por exemplo,
e a elas acrescentando morfemas específicos da nossa própria língua (cf.
GUERRA VICENTE; PILATI (2016), para atividade direcionada à sala de
aula), também possuímos uma habilidade extraordinária e pouco explorada
em sala de aula, que é a de sabermos exatamente quais palavras podem
combinar-se e quais não podem.
Para usar um termo mais técnico, chamaremos essa propriedade
de seleção. Dentro desse raciocínio, um vocábulo seleciona outros que
podem e/ou devem estar associados a ele. Aqui, por estarmos estudando
a estrutura da oração, vamos nos deter nas propriedades de seleção se-
mântica dos verbos. Tomemos como exemplo as seguintes frases:

(21)
a. Ana embrulhou o presente.
b. #O presente embrulhou Ana.
c. *Ana embrulhou.
d. *Embrulhou o presente.

Qualquer falante de português, ainda que desconheça os termos


sintáticos “sujeito”, “predicado”, “objeto”, reconhece que (21a) é uma
oração perfeita na língua. Por outro lado, (21b) é esquisita. Estrutural-
mente, é boa, mas temos dificuldade em aceitá-la porque não consegui-
mos imaginar que um ser inanimado possa embrulhar algo ou alguém.
O símbolo # é utilizado para indicar essa estranheza, apesar de a frase

155
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

se apresentar gramaticalmente boa. As orações (21c) e (21d), entretanto,


são mais que estranhas. São orações ruins, malformadas, porque, como
falantes, notamos que algo está faltando ali. Intuitivamente, sabemos
que embrulhar é um verbo de dois lugares, pois exige a presença de um
“embrulhador” (que está ausente em 21d), e de um “embrulhado” (que
está ausente em 21c). Por convenção, a agramaticalidade dessas orações
é sinalizada pelo símbolo *.
A pergunta que você deve estar se fazendo agora é: como é que uma
criança que ainda não entrou para a escola (ou, ainda, um falante da língua
que nunca teve a chance de estudar) sabe que essa oração é malformada?
A resposta é simples e parece óbvia, mas raramente paramos para refletir
sobre essa nossa capacidade, que, na verdade, é uma dotação genética:
ao adquirirmos um verbo, por exemplo, internalizamos, também, e de
forma automática, a sua grade temática (cf. HAEGEMAN, 1991), isto é,
o número de lugares a serem preenchidos – ou saturados, para usarmos o
termo de Frege – na oração a fim de obtermos um raciocínio completo.
Façamos a mesma experiência com outros verbos, sorrir e enviar, mas
agora enfocando apenas o número de argumentos do verbo, ou seja, de
participantes no evento:

(22)
a. Ana sorriu.
b. *Ana sorriu o livro.
c. *Sorriu.

(23)
a. Ana enviou o e-mail ao aluno.
b. ?Ana enviou o e-mail.
c. *Ana enviou ao aluno.
d. *Enviou o e-mail ao aluno.
e. *Enviou o e-mail.
f. *Enviou ao aluno.

156
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Em sala de aula, esse conhecimento implícito, intuitivo, pode ser


explicitado, ou seja, trazido ao nível da consciência dos estudantes11,
por meio de discussões que levem a uma reflexão sobre verbos/predi-
cados e suas respectivas grades temáticas. Na seção 4, apresentamos de
forma mais detalhada as diretrizes para a execução de uma atividade a
ser mediada pelo professor. Neste ponto, temos informação suficiente
para chegarmos à premissa de que as propriedades lexicais do predicado,
em termos dos argumentos que ele exige, orientam as possibilidades de
pontuação. Essa premissa será desenvolvida em termos de constituência
sintática na próxima seção.

3.2 SOBRE A NOÇÃO DE CONSTITUÊNCIA SINTÁTICA


Quando falamos em constituência sintática, estamos nos referindo
à estrutura das sentenças de uma língua, entendidas como a unidade bá-
sica de análise em sintaxe (cf. MIOTO; FIGUEIREDO SILVA; LOPES,
2013)12. Para começarmos a entender a organização interna das sentenças,
estudemos o seguinte exemplo:

(24)
Os alunos responderam a prova em duplas ontem.

Ao lermos ou ouvirmos essa oração, a primeira constatação que


temos é a de que ela se constrói a partir de um conjunto de palavras: os
artigos os e a, os substantivos alunos, prova e duplas, o verbo respon-
deram, a preposição em e o advérbio ontem. Com base nisso, podemos
propor como básico o fato de que toda sentença é composta de palavras,
afinal, não existem sentenças sem palavras13.
11 Sobre as noções de conhecimento implícito e explícito do falante, remetemos o leitor ao trabalho
de Costa et alii. (2011).
12 Em sintaxe, usa-se a palavra sentença como um termo geral cuja significação envolve a de
período (simples, composto ou misto). Dados os nossos objetivos neste capítulo, vamos usar
essa palavra como sinônimo de período simples (ou oração absoluta).
13 Segundo uma análise teórica mais aprofundada, diríamos que uma sentença é composta,
na realidade, de duas unidades: as palavras e os morfemas (ver HORNSTEIN; NUNES;
GROHMAN, 2005, p. 7). Para não termos de depreender os morfemas constitutivos das
palavras, para os propósitos deste capítulo, continuaremos dizendo que a sentença se forma a
partir de palavras.

157
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Se as palavras constituem elementos importantes para a sintaxe,


como passamos das palavras até chegar às sentenças?
Uma primeira resposta é dizer que as sentenças se organizam
como uma sequência linear de palavras. Essa resposta não é implausí-
vel, levando em conta que a ordem linear é um fator importante para a
interpretação das sentenças:

(25)
a. As crianças elogiaram as professoras.
b. As professoras elogiaram as crianças.

Como se vê, a ordem em que os termos as crianças e as profes-


soras aparecem na oração implica diferenças interpretativas: em (25a),
as crianças realizam a ação de elogiar, e as professoras são as pessoas
elogiadas; em (25b), acontece o contrário, as professoras realizam a ação
de elogiar, e as crianças são as pessoas elogiadas.
Apesar de importante, a visão da sentença como um conjunto de
palavras ordenadas linearmente não explica as intuições que temos acerca
do relacionamento sintático-semântico entre as palavras. Ilustremos essa
afirmação. Consideremos inicialmente o substantivo alunos, na oração
(24). Nessa oração, esse substantivo aparece linearmente próximo tanto
do artigo os como do verbo responderam. Dada essa proximidade, em
princípio, o substantivo poderia manter uma relação sintático-semântica
com o artigo, ou com o verbo ou com as duas palavras. No entanto, apesar
de igualmente possíveis dada a linearidade, apenas uma dessas relações
é sentida como natural pelos falantes de português: aquela que associa
o artigo com o substantivo.
Consideremos agora o advérbio ontem. Esse advérbio constitui a
última palavra da oração, vindo imediatamente depois do substantivo
duplas. Apesar de linearmente próximo desse substantivo, não é possível
estabelecer nenhuma relação sintático-semântica entre duplas e ontem. O
advérbio mantém relação com o verbo responderam, palavra que, do ponto
de vista linear, está separada desse advérbio por quatro outras palavras.

158
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

O que esses exemplos nos mostram é que uma sentença não se


estrutura com base na linearidade das palavras, uma vez que essa noção
não capta as intuições que nós falantes nativos temos acerca das relações
possíveis (e impossíveis) que as palavras mantêm dentro de uma sentença
questão inicial: como se estrutura uma sentença ?
Para elaborarmos uma segunda resposta a essa questão, recordemos
duas informações já apresentadas: a) a sentença é a unidade básica da
sintaxe e b) toda sentença é composta de palavras. Nessas informações,
ficam explícitos dois extremos: de um lado, temos as palavras, que são
as unidades mínimas da sintaxe; do outro, as sentenças, que são sua
unidade máxima. Combinando isso com nossa argumentação de que
uma sentença não é simplesmente um conjunto de palavras dispostas
linearmente, podemos concluir que existem unidades intermediárias.
Mas que unidades são essas e como elas se caracterizam?
As unidades intermediárias são os constituintes sintáticos (também
chamados de sintagmas). Essas unidades são a resposta para a pergunta
sobre a estrutura interna de uma sentença: uma sentença não é um con-
junto de palavras, mas sim um conjunto de constituintes organizados
entre si. Além de ser responsável pela estrutura da oração, a noção de
constituinte representa a nossa intuição acerca das relações sintático-
semânticas entre as palavras.
Quando apontamos haver uma relação clara entre o artigo os e o
substantivo alunos, estamos querendo dizer que nossa intuição trata
essas palavras como membros do mesmo constituinte, o qual contém os
e alunos e nenhuma outra palavra da oração. Um constituinte pode ser
representado entre colchetes (26a) ou em forma de árvore (26b):

(26) a. [os alunos]

b. os alunos

159
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Em (26), as palavras os e alunos são unidades mínimas que se


combinam e formam os alunos, uma unidade maior e mais complexa do
que as palavras que a compõem. A essa unidade maior denominamos
constituinte sintático.
Uma das propriedades fundamentais dos constituintes é o fato de eles
se comportarem como um todo frente a determinadas operações sintáti-
cas, denominadas testes (ou diagnósticos) de constituintes (cf. CARNIE,
2010). Vejamos como se comporta a sentença (24), aqui repetida como
(27), frente a uma dessas operações:

(27)
Os alunos responderam a prova em duplas ontem.
a. Quem respondeu a prova em duplas ontem?
Resposta: [os alunos]
b. O que os alunos fizeram?
Resposta: [responderam a prova em duplas ontem]
c. O que os alunos fizeram ontem?
Resposta: [responderam a prova em duplas]
d. O que os alunos fizeram em duplas ontem?
Resposta: [responderam a prova]
e. O que os alunos responderam em duplas ontem?
Resposta: [a prova]
f. Quando os alunos responderam a prova em duplas?
Resposta: [ontem]
g. Como os alunos responderam a prova ontem?
Resposta: [em duplas]

Quando fazemos determinadas perguntas à oração (27), tiramos dela


algumas sequências de palavras que respondem adequadamente a essas
perguntas. Essa operação sintática é um teste de constituintes denominado
pergunta-Qu, interrogativa ou fragmento de sentença14. O resultado da
14 A denominação pergunta-Qu ou interrogativa dada ao teste é clara, uma vez que usamos pro-
nomes interrogativos (conhecidos como palavras-Qu) para fazer questionamentos, perguntas,
à sentença cujos constituintes queremos identificar. Já a denominação fragmento de sentença
tem a ver com o fato de a resposta a uma pergunta-Qu ser apenas uma parte (um fragmento)
da sentença a que estamos aplicando o teste.

160
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

sua aplicação foi a identificação dos seguintes constituintes: [os alu-


nos], [responderam a prova em duplas ontem], [responderam a prova
em duplas], [responderam a prova], [a prova], [em duplas] e [ontem].
Pergunta-Qu (ou interrogativa ou fragmento de sentença) é apenas um
dos testes propostos na literatura para identificar constituintes. Há outros,
tais como substituição (ou pronominalização), deslocamento sintático (ou
movimento sintático ou topicalização), elipse, sentença clivada, inserção,
coordenação. Como nosso objetivo aqui não é detalhar a aplicação de
cada um desses testes, vamos nos ater apenas à pergunta-Qu15.
A aplicação do teste da pergunta-Qu nos permitiu identificar todos
os constituintes da oração, os quais aparecem identificados por meio do
símbolo • na estrutura de constituintes abaixo16:

(28)

A estrutura em (28) pode ser lida tanto na horizontal como na


vertical: na horizontal, temos a disposição das palavras na linearidade
(da fala ou da escrita); na vertical, temos a organização das palavras em
constituintes. Como dissemos, a organização de constituintes é abstrata,
mas detectável por meio dos testes de constituintes. A partir do exame
dos constituintes detectados, é possível apresentar algumas propriedades
gerais desses objetos sintáticos, relativas aos seguintes aspectos: extensão,
função, hierarquia, núcleo e ordem.

15 O leitor interessado em aprender mais sobre a operacionalização desses testes em português


pode consultar Negrão, Viotti e Scher (2003); Kenedy (2013); Tescari Neto (2017, 2018) e
Kenedy e Othero (2018).
16 A oração em si é um constituinte sintático, mas, para os fins deste capítulo, não vamos
considerá-la. Nossa atenção vai se voltar apenas para os constituintes internos à oração..

161
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Começando pela extensão de um constituinte, verificam-se em (28)


constituintes formados por apenas uma palavra (ontem), por duas (os
alunos, a prova, em duplas), por três (responderam a prova), por cinco
(responderam a prova em duplas) e por seis (responderam a prova em
duplas ontem). Essa descrição mostra que um constituinte pode ser for-
mado por uma única palavra ou por mais de uma, ou seja, um constituinte
tem extensão mínima (uma palavra), mas não tem extensão máxima,
podendo ser formado por mais de uma palavra e, teoricamente, por uma
combinação infinita de palavras.
No que se refere a sua função sintática, é fácil ver que os consti-
tuintes destacados em (28) correspondem a entidades já conhecidas da
análise sintática tradicional: [os alunos] é o sujeito da oração, e [res-
ponderam a prova em duplas ontem] é o seu predicado; dentro desse
predicado, encontramos o objeto direto [a prova], o adjunto adverbial
de modo [em duplas] e o adjunto adverbial de tempo [ontem]. Isso
acontece porque apenas constituintes sintáticos desempenham funções
sintáticas na oração17.
Para tratar da hierarquia, continuemos a estudar o predicado [respon-
deram a prova em duplas ontem]. Esse constituinte engloba outros cinco
constituintes: [responderam a prova em duplas], [ontem], [responderam
a prova], [em duplas] e [a prova]. Em termos descritivos, um constituinte
pode conter outro constituinte, ou, dizendo de outro modo, um consti-
tuinte pode estar contido em outro constituinte. Esse fato ilustra que os
constituintes se constroem segundo uma estrutura hierárquica na qual
palavras se combinam para formar unidades maiores e mais complexas
(os sintagmas), e sintagmas, por sua vez, se combinam para formar outros
sintagmas, maiores e mais complexos.
Em relação ao núcleo de um sintagma, estudemos o constituinte [os
alunos] e destaquemos suas propriedades morfológicas, sintáticas e se-
mânticas. Do ponto de vista morfológico, esse objeto sintático apresenta
17 Interessantemente, embora a gramática tradicional apresente claramente a noção de funções
sintáticas, ela não faz o mesmo em relação à noção de constituintes sintáticos. Por exemplo,
o teste da substituição (pronominalização) e o da pergunta-Qu (fragmento de sentença) são
amplamente usados nas gramáticas tradicionais, mas elas não são explícitas nem quanto ao
funcionamento dessas operações nem quanto às razões do seu emprego na análise sintática.

162
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

três traços: masculino, plural e 3ª pessoa. Do ponto de vista sintático,


ele desempenha a função de sujeito e não pode desempenhar outras
(como predicado e adjunto adverbial, por exemplo)18. Além disso, esse
sintagma pode ser substituído por algumas palavras, como estudantes,
por exemplo, mas não por outras, como os, caso, de e chegaram. Já
do ponto de vista semântico, refere-se a um conjunto – o conjunto dos
alunos. Todas essas propriedades são derivadas do substantivo alunos,
que se comporta, portanto, como o núcleo do constituinte. Por ter como
núcleo um substantivo, o constituinte formado a partir dele recebe o
nome de sintagma nominal19, ou, abreviadamente, SN ou NP20.
Na oração em questão, há outros três sintagmas. O predicado
[responderam a prova em duplas ontem] é um sintagma verbal (SV
ou VP21), uma vez que apresenta características associadas ao verbo
responderam, seu núcleo verbal: a) é associado às categorias tempo,
aspecto, modo e voz; b) desempenha unicamente a função sintática de
predicado; c) pode ser substituído apenas por outros predicados, como
sorriam, chegam tarde, gostarão da atividade e entregaram o trabalho
ao professor e d) refere-se a uma ação. O constituinte [em duplas], por
sua vez, é um sintagma preposicional (SP ou PP22), já que as proprie-
dades provêm da preposição em: a) não se flexiona morfologicamente,
b) desempenha função de adjunto23, c) pode ser substituído por outros
sintagmas preposicionais (com muita animação, a lápis, sem consulta)
e d) sua interpretação decorre da interação do significado da preposição
com outros elementos do contexto sintático; nesse caso, o sintagma
[em duplas] se refere ao modo como os alunos fizeram a prova. Por
fim, o constituinte [ontem] é um sintagma adverbial (SAdv ou AdvP24),
porque suas propriedades são determinadas pelo seu núcleo ontem, a
única palavra do sintagma: a) também não se flexiona, b) funciona
18 É importante destacar também que, em outras orações, esse sintagma pode desempenhar outras
funções sintáticas, por exemplo: objeto direto, predicativo, aposto.
19 Também é um sintagma nominal o constituinte [a prova].
20 A abreviação NP vem do inglês noun phrase.
21 A abreviação VP vem do inglês verbal phrase.
22 A abreviação PP vem do inglês prepositional phrase.
23 Para Mioto, Figueiredo Silva e Lopes (2013, p. 83), “as categorias tipicamente talhadas para
serem adjuntos são os PPs”.
24 A abreviação AdvP vem do inglês adverbial phrase (AdvP).

163
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

como adjunto adverbial, c) pode ser substituído por outros advérbios


(logo, rapidamente) e d) sua interpretação também decorre da interação
do significado desse advérbio com o contexto sintático em que ele se
encontra; nesse caso, ontem designa o momento temporal em que os
alunos fizeram a prova em duplas25.
Chama-se endocentricidade a propriedade segundo a qual se diz que
todo sintagma possui um núcleo, o qual vai determinar as propriedades
(nominais, verbais, preposicionais etc.) desse sintagma como um todo.
Por fim, a última propriedade dos sintagmas é que eles se apresen-
tam em uma determinada ordem. Ilustremos essa propriedade ainda com
base nos sintagmas da oração (23)26. No sintagma nominal, o substantivo
é antecedido de determinantes (categoria mais geral que inclui artigos,
pronomes possessivos, pronomes demonstrativos, pronomes indefini-
dos, pronomes interrogativos e numerais). No sintagma preposicional, a
preposição antecede o substantivo27. No sintagma verbal, é o verbo que
antecede todas as outras palavras que há nele.

25 Existe um outro sintagma, não presente na oração em (25). Trata-se do sintagma adjetival (SAdj
ou AdjP, do inglês adjectival phrase) que aparece em construções como as exemplificadas
abaixo:
(i)
a. O vento [adjunto adnominal forte] agitava as árvores.
b. Os animais tinham água e comida [adjunto adnominal abundantes].
c. As árvores estavam adaptadas àquele solo [adjunto adnominal profundo].
d. O solo tinha sido coberto por folhas [adjunto adnominal secas].
(ii)
a. Com a chegada da primavera, as árvores ficaram [predicativo do sujeito floridas].
b. Os pássaros voavam entre as árvores [predicativo do sujeito felizes].
c. O clima deixava as pessoas [predicativo do objeto esperançosas].
Como se vê, o sintagma adjetival está associado às funções sintáticas de adjunto adnominal e
de predicativo.
26 Sugerimos a leitura de Lemle (1984), Lobato (1986), Othero (2006, 2009) e Kenedy e Othero
(2018), caso o leitor tenha interesse em uma descrição detalhada da organização interna de
todos os sintagmas do português.
27 A preposição é a única palavra do português que, sozinha, não produz um sintagma gramatical.
Um sintagma preposicional gramatical em português precisa ter, além da preposição, pelo
menos, um substantivo (no período simples) ou uma oração (no período composto):
(i)
a. *As pessoas viviam suas vidas sem.
b. As pessoas vivam suas vidas [sem medo].
c. As pessoas viviam suas vidas [sem fazer mal algum aos outros].

164
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Além de os sintagmas terem uma ordem em relação aos seus consti-


tuintes, eles também têm uma ordem entre eles. Em uma oração declara-
tiva do português, a ordem de constituintes mais frequente, denominada
ordem canônica (também denominada comum, regular, básica, natural ou
não-marcada) é aquela na qual o sujeito antecede o predicado e, dentro do
predicado, o verbo antecede o objeto. Havendo algum adjunto adverbial, ele
vem depois do objeto. Caso a oração apresente ainda uma locução verbal,
o verbo auxiliar antecede o verbo principal. Esquematicamente, a ordem
canônica dos constituintes de uma oração em português é a seguinte:

(29)
Sujeito – Verboauxiliar – VerboprinCipal – Objeto – Adjunto adverbial

Deixando de lado o verbo auxiliar e o adjunto adverbial, podemos


dizer que o padrão de ordem dos constituintes em português é sujeito –
verbo – objeto, ou, simplesmente, SVO.
Apesar de haver esse padrão, há outros padrões não-canônicos28:

(30)
a. A prova, os alunos responderam em duplas ontem.
b. Os alunos, em duplas, responderam a prova ontem.
c. Os alunos responderam ontem a prova em duplas.
d. Ontem, em duplas, os alunos responderam a prova.

A oração (27) e as orações em (30) apresentam os mesmos cons-


tituintes. A diferença é que a oração em (27) aparece em uma ordem
não-marcada, ou seja, uma ordem mais frequente e que é tratada pelos
falantes como neutra, ao passo que as orações em (30) são marcadas,
isto é, apresentam ordens menos frequentes e fortemente dependentes
de fatores linguísticos (de natureza lexical, prosódica, morfossintática e
28 Os padrões apresentados em (30) apenas ilustram algumas variações de ordem referentes a
alguns termos da oração em (24). Esses exemplos não esgotam as possibilidades de ordem
entre os termos dessa oração nem todos os padrões de ordem possíveis em português. Acerca
da ordem dos constituintes em português (bem como seus condicionamentos e efeitos), re-
metemos o leitor a Pontes (1987) e Kato e Martins (2016), mas ressaltamos que existe uma
extensa literatura sobre o tema, em diferentes perspectivas teóricas.

165
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

semântica) e extralinguísticos (de natureza pragmático-discursiva) para


ocorrer.

4. UTILIZANDO AS NOÇÕES DE SELEÇÃO E DE CONSTITUÊNCIA


PARA ENTENDERMOS A PONTUAÇÃO

Nesta seção, veremos como usar os conhecimentos sintáticos refe-


rentes à constituência sintática e à seleção argumental para repensarmos
a pontuação de modo a ajudar o professor a entender o que existe, de
fato, por trás do uso da vírgula no período simples do português. Para
tanto, vamos abordar inicialmente os contextos de uso obrigatório e de
uso opcional da vírgula e, em seguida, vamos abordar os contextos de
uso impossível.

4.1 CONTEXTOS DE USO OBRIGATÓRIO E DE USO OPCIONAL DA


VÍRGULA

Como vimos, existem 8 situações de uso obrigatório da vírgula.


Essa descrição pormenorizada é positiva, uma vez que permite que se
conheçam todas as situações em que se exige o emprego da vírgula. Esse
detalhe torna-se negativo no momento em que ele oculta características
mais gerais, comuns a algumas dessas situações. Relembremos as 8
situações: coordenação ou enumeração, repetição, objetos pleonásti-
cos, predicativos deslocados, adjuntos adverbiais deslocados, aposto
explicativo, vocativo e palavras e expressões de natureza concessiva,
conclusiva, continuativa, corretiva e explicativa. Se observarmos bem,
algumas situações compartilham o mesmo processo. Por exemplo, na
coordenação ou enumeração e na repetição, combinamos constituintes
(diferentes ou iguais) que desempenham a mesma função. No caso dos
objetos pleonásticos, predicativos deslocados, adjuntos adverbiais deslo-
cados, todos eles ilustram constituintes que são movidos de sua posição
canônica para outra posição. Por fim, no caso do aposto explicativo, do
vocativo e das palavras e expressões de natureza concessiva, conclusiva,
continuativa, corretiva e explicativa, o que há em comum é que eles ope-

166
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

ram uma inserção na oração. Sendo assim, com base em Lunguinho et


alii. (2018) e em Ferrarezi Júnior (2018), vamos propor que, no período
simples, o emprego obrigatório da vírgula segue três critérios sintáticos29:

(31)
Critérios sintáticos para o emprego da vírgula no período simples
a. Enumeração
b. Inversão
c. Inserção

Cada um desses contextos se refere à noção sintática de constituência


de que tratamos na seção anterior. Vejamos com mais detalhes.

4.1.1 A enumeração

Lembremos o que vimos anteriormente. Em uma oração, todo sin-


tagma é associado a uma única função sintática e todo sintagma tem um
núcleo. Levando em conta a relação entre sintagmas e funções sintáticas, o
caso mais simples é aquele em que um sintagma é associado a uma função
sintática. No entanto, há casos em que isso não ocorre, que é justamente
quando vários sintagmas são associados a uma mesma função sintática.
Esse é o caso das enumerações. Nelas atua um processo gramatical de-
nominado propriamente de coordenação, que combina constituintes de
mesmo tipo categorial que compartilham as mesmas funções sintáticas
e semânticas. O resultado da enumeração ou coordenação é a formação
de uma unidade complexa que tem as mesmas funções dos termos que a
formaram (cf. MATOS, 2003). Uma frase como (32a) pode sofrer coor-
denação em seus termos e, assim, formar as frases complexas em (32b-d):

(32)
a. Os alunos leram o texto ontem.
b. Os alunos, os professores e os coordenadores leram o texto ontem.

29 Como os autores estudam todas as possibilidades de emprego da vírgula (ou seja, no período
simples e no período composto), eles ainda listam mais um contexto, que é o da elipse. Para
mais detalhes, remetemos o leitor a esses trabalhos.

167
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

c. Os alunos leram o texto ontem, discutiram esse texto hoje e o rese


nharão amanhã.
d. Os alunos leram o texto, a resenha e o ensaio ontem.
e. Os alunos leram o texto antes de ontem, ontem e hoje.

Veja que, coordenando alguns constituintes de (32a), resultam


orações com constituintes mais complexos: em (32b), coordenam-se os
sujeitos; em (32c), coordenam-se os predicados; em (32d), coordenam-
se os objetos diretos; e, em (32d), os adjuntos adverbiais. Nesses casos,
a coordenação de constituintes é marcada por meio da vírgula. Ela é a
indicação de que, para uma única função, há mais de um constituinte – e,
consequentemente, mais de um núcleo.
O procedimento sintático de coordenação também é empregado
na repetição. A diferença é que, nesse caso, o que se repete é o mesmo
constituinte:

(33)
a. O céu ficou limpo, limpo.
b. O velocista terminou a corrida bem, bem, bem atrás.

Em (33a), um predicativo é repetido duas vezes e, em (33b), um


adjunto adverbial é repetido três vezes. Por se tratar de constituintes que
são coordenados, a vírgula, mais uma vez, é usada. Diferentemente dos
exemplos em (32), nos exemplos em (33), a repetição do mesmo cons-
tituinte leva a um efeito interpretativo: o de intensidade.

4.1.2 A inversão
Outra propriedade dos constituintes é que eles apresentam uma
ordem externa, isto é, uma ordem em relação aos outros constituintes
da oração. Como consequência disso, as línguas possuem uma ordem
canônica para a organização sintática dos sintagmas dentro das orações.
Vimos que o português é uma língua S-V-O, ou seja, nessa língua, su-
jeitos antecedem verbos, os quais, por sua vez, antecedem seus objetos.

168
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Em sentenças com predicativos, temos a ordem S-V-(O)-Predicativo, ou


seja, sujeitos antecedem verbos, que antecedem seus objetos, e os pre-
dicativos vêm após o verbo ou após o objeto (caso ele esteja na oração).
Em ambos os casos, adjuntos adverbiais ocupam frequentemente o final
das sentenças. Essas ordens dos constituintes correspondem ao padrão
canônico do português. Qualquer alteração desse padrão é denominada
inversão. Tais inversões de ordem são fugas ao padrão canônico do por-
tuguês e, por isso, são marcadas na escrita pela vírgula: o deslocamento
do objeto para o início da oração em casos de objeto pleonástico, os
possíveis deslocamentos do predicativo dentro da oração e os possíveis
deslocamentos do adjunto adverbial:

(34)
a. O professor já ensinou esse conteúdo aos alunos.
b. Esse conteúdo, o professor já o ensinou aos alunos.
c. Aos alunos, o professor já lhes ensinou esse conteúdo.

(35)
a. Os espectadores assistiam ao filme encantados.
b. Os espectadores assistiam, encantados, ao filme.
c. Os espectadores, encantados, assistiam ao filme.
d. Encantados, os espectadores assistiam ao filme.

(36)
a. Os compradores tocavam nos produtos com muito cuidado.
b. Os compradores tocavam, com muito cuidado, nos produtos.
c. Os compradores, com muito cuidado, tocavam nos produtos.
d. Com muito cuidado, os compradores tocavam nos produtos.

Como ressaltamos anteriormente, complementos verbais, predica-


tivos e adjuntos adverbiais têm uma posição canônica dentro da oração.
Quando esses constituintes são deslocados dessa posição para outras
posições, essa alteração de ordem constitui uma inversão e deve ser
marcada por meio da vírgula.

169
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

No caso dos advérbios, vimos que os advérbios de pequena extensão


(uma palavra) constituem exemplos de emprego opcional da vírgula.
No entanto, vamos incluir esse uso aqui como emprego obrigatório e
ressaltamos que usar ou não usar a vírgula com advérbios nesses casos
pode estar relacionado a um efeito pragmático: caso se use a vírgula, a
sentença estará associada a um efeito pragmático (ênfase no advérbio);
caso não se use a vírgula, a sentença não terá nenhum efeito pragmático
associado a ela.

4.1.3 A inserção

O critério da inserção tem a ver com a questão da ordem das pala-


vras. Para entendê-lo, é importante saber que os constituintes se colocam
em determinada posição dentro da oração. Diferentemente do critério
da inversão, na inserção, os constituintes se mantêm em suas posições.
O que vai acontecer é que outras informações podem ser inseridas na
oração. Essas informações podem vir sob a forma de um aposto, de um
vocativo ou de palavras ou expressões com diferentes funções (concessão,
conclusão, continuação, correção e explicação).
Comecemos com o aposto explicativo. Esse sintagma sempre segue
um sintagma nominal e traz uma informação que se configura como um
comentário a mais sobre esse sintagma.

(37)
a. A Lucia, excelente pesquisadora, lançou um novo livro.
b. Não encontrei o Pedro, aquele seu novo vizinho.

Nos exemplos em (37), os constituintes em função de aposto, ex-


celente pesquisadora, em (37a), e aquele seu novo vizinho, em (37b),
constituem informações a mais acerca da referência do sujeito a Lucia
e do objeto o Pedro. É como se funcionassem como uma informação
parentética, inserida na oração para explicar melhor quem são as pessoas
a quem o sujeito e o objeto se referem. A introdução do aposto em (37a)
interrompe a ordem canônica entre sujeito e predicado, ao passo que a

170
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

introdução do aposto em (37b) mantém a ordem dos constituintes. Em


ambos os casos, tais inserções são marcadas por meio de vírgula.
O vocativo faz referência à 2ª pessoa, isto é, à pessoa com quem se
fala. Quando a oração contém esse termo, há mais um caso de inserção:
(38)
a. Prezados colegas de trabalho, conseguimos nosso aumento!
b. Conseguimos, prezados colegas de trabalho, nosso aumento!
c. Conseguimos nosso aumento, prezados colegas de trabalho!

Nas orações em (38), insere-se a figura do interlocutor sob a forma


de um vocativo. Essa inserção deve ser marcada pela vírgula: uma, se o
vocativo tiver sido inserido no começo ou no final da oração, ou duas,
se ele tiver sido inserido no meio da oração.
Finalmente, também é possível inserir na oração palavras e orações
cujo papel é trazer informações como concessão, conclusão, continuação,
correção e explicação:

(39)
a. Mesmo assim, ele saiu de casa.
b. O casal foi, enfim, feliz.
c. Depois de tudo, o colaborador foi demitido.
d. Recebi o recado ontem, aliás, antes de ontem.
e. Eles fizeram muitas coisas para vender, por exemplo, bombons,
balas, bolo, salgados.

Nos exemplos em (39), inserem-se nas orações palavras e expressões


que sinalizam alguns significados: mesmo assim traz a ideia de oposição,
concessão; a palavra enfim remete a uma conclusão; a expressão depois
de tudo denota a continuação de um conjunto de ações; a palavra aliás
traz a ideia de correção e, finalmente, a expressão por exemplo anuncia
uma enumeração. Todas essas palavras e expressões, de certa forma,
são inseridas na oração para trazer informações variadas, consideradas
importantes por parte do escritor do texto. Por essa razão, elas são mar-
cadas por vírgula.

171
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Vamos resumir o que foi dito na Figura 1 abaixo:


Figura 1: Constituência e os usos obrigatórios e o uso opcional da vírgula

Fonte: Elaboração dos autores

Como se vê, os três critérios de colocação (obrigatória) da vírgula


foram explicados com base apenas na noção de constituência sintática e
nas propriedades dos constituintes, a saber, sua constituição e sua posição
na oração. O uso opcional foi tratado como uma possibilidade dentro
do emprego obrigatório de vírgula com adjuntos adverbiais deslocados.
Na seção a seguir, vamos mostrar como o conceito semântico de
seleção pode ser usado para entendermos a impossibilidade de emprego
da vírgula.

4.2 CONTEXTOS DE USO IMPOSSÍVEL DA VÍRGULA

Nesta seção, vamos mostrar como a noção de seleção pode contribuir


para o entendimento dos contextos que a gramática tradicional apresenta
como impossíveis em relação ao emprego da vírgula: é impossível usar
a vírgula para separar os termos essenciais da oração e para separar os
termos integrantes das palavras que os regem.

172
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Os termos essenciais são o sujeito e o predicado. Segundo a gramá-


tica tradicional, não se pode empregar a vírgula entre esses dois termos30:

(40)
a. Os vendedores do bairro reclamam da falta de segurança. 
b. Os vendedores do bairro, reclamam da falta de segurança. O

Em (40), a oração gramaticalmente correta é aquela na qual o sujeito


e o predicado aparecem sem pontuação entre eles. A respeito da natureza
dessa regra, a gramática não é clara e simplesmente a prescreve. Alguns
materiais tentam ir além e apresentar uma motivação para essa regra, como
Camargo (2005, p. 2), que afirma que “entre o sujeito da oração e o verbo
existe um forte vínculo sintático, motivo pelo qual não se usa vírgula entre
tais termos”. Essa tentativa, no entanto, também não é clara. O que significa
a noção de “forte vínculo sintático”? A autora não a explica.
Essa ideia de vínculo sintático fica um pouco mais evidente quando
voltamos nossa atenção para o conceito de seleção semântica. O sujeito
é um argumento do verbo e essa relação entre esses dois constituintes
é o que está por trás da noção de “vínculo sintático”: não se emprega
vírgula entre o verbo e o seu argumento sujeito.
Um termo integrante que tem semelhança com o sujeito é o agente
da passiva. Na gramática tradicional, a relação entre esses termos é re-
cuperada quando se faz a associação entre sentenças ativas e passivas:

(41)
a. O médico examinou o paciente.
b. O paciente foi examinado pelo médico.

Do ponto de vista semântico, o agente da passiva corresponde ao


sujeito da voz ativa. Da mesma forma que acontece na relação entre o
sujeito e o verbo na voz ativa, na relação entre o verbo na voz passiva e
o agente da passiva, a prescrição gramatical é a de que esses constituintes
30 Os símbolos  e O são tratados, respectivamente, como certo e errado segundo a prescrição
gramatical.

173
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

também não sejam separados por vírgula. Sem levarmos em consideração


outras noções, essa é mais uma regra que deve ser decorada pelo profes-
sor e pelos alunos. Retomando a noção de seleção argumental, vemos
que o sujeito (na voz ativa) e o agente na passiva correspondem a um
argumento selecionado pelo verbo. Sendo um argumento, não é possível
a colocação de vírgula entre o verbo e esse argumento.
Entre outros termos integrantes estão os complementos verbais,
ilustrados abaixo:

(42)
a. Os convidados comeram o bolo. 
b. Os convidados comeram, o bolo. O
c. Os convidados gostaram muito da festa. 
d. Os convidados gostaram muito, da festa. O
e. Os convidados entregaram os presentes aos aniversariantes. 
f. Os convidados entregaram, os presentes aos aniversariantes. O
g. Os convidados entregaram os presentes, aos aniversariantes. O
h. Os convidados entregaram, os presentes, aos aniversariantes. O

Os contrastes em (42) mostram que é inapropriada a colocação de


vírgula entre verbo e seus complementos, como se vê em (42b), (42d),
(42f), (42g) e (42h). Essa é mais uma regra que nunca é motivada, caben-
do ao professor internalizá-la, depois ensiná-la aos seus alunos e esperar
que eles não a questionem. Mais uma vez, se voltarmos nossa atenção
para o conceito de seleção semântica, a regra fica esclarecida: os objetos
também são selecionados pelo verbo de uma oração como argumento.
Em resumo: entre o verbo e seus argumentos não se coloca vírgula.
Além dos verbos, outras categorias selecionam complementos: o
substantivo, o adjetivo e o advérbio:

(43)
a. A entrega do prêmio aos ganhadores vai ser mostrada na TV.
b. Aquela pessoa é muito fiel aos seus princípios.
c. Paralelamente àquela rua fica o parque.

174
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Em (43), temos o caso de complementos nominais: dois comple-


mentos selecionados pelo substantivo entrega, um complemento sele-
cionado pelo adjetivo fiel e um complemento selecionado pelo advérbio
paralelamente. Da mesma forma que acontece no caso do verbo e seus
argumentos, em que não há vírgula, também não se coloca vírgula entre
o substantivo, o adjetivo e o advérbio e os seus complementos nominais
(ou seja, seus argumentos).
Da mesma forma que fizemos com os usos obrigatórios e o uso
opcional da vírgula, vamos resumir o que foi dito com uma figura:
Figura 2: Seleção e os usos impossíveis da vírgula

Fonte: Elaboração dos autores

Como se vê, os contextos em que a vírgula não pode ser empregada


se resumem a contextos em que se verifica a relação de seleção.
A partir dos resultados a que chegamos nessas duas seções, pode-
mos apresentar duas propriedades referentes ao emprego da vírgula no
período simples. A primeira propriedade é a de que vírgula é um sinal de
pontuação cujo emprego é sistemático31. Na realidade, essa propriedade
não é nova, pois as gramáticas tradicionais e os manuais de pontuação já
31 Nesse aspecto, concordamos com Nunberg (1990), que afirma exatamente o mesmo em relação
à pontuação da língua inglesa.

175
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

mostram isso. No entanto, essa informação importante se perde em meio


à lista de regras apresentadas. Como dissemos anteriormente, a ênfase
na descrição de regras oculta a explicação dos padrões recorrentes de
emprego desse sinal de pontuação. A segunda propriedade é a de que
o emprego da vírgula se baseia em uma teoria linguística32. Embora na
literatura haja informações esparsas sobre essa relação da vírgula com
conceitos sintáticos, ela não é apresentada em detalhe. Esta é a nossa
contribuição: detalhar a teoria linguística que subjaz aos empregos da
vírgula. Conforme o que apresentamos, qualquer tentativa de explicar
o emprego da vírgula no período simples deve se basear em uma teoria
gramatical que lida com as noções de seleção e de constituência. Na pró-
xima seção, buscamos estabelecer contato mais direto com o professor
da Educação Básica na sua tarefa de ensinar.

5. SUGESTÕES PARA O PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Nesta seção, pretendemos avaliar com o professor da Educa-


ção Básica questões referentes ao trabalho com a pontuação. Nosso
objetivo não é apresentar propostas de trabalho específicas com a
vírgula nem exercícios porque, apesar de serem muito importantes
no trabalho em sala de aula, elas seriam sempre limitadas e ideais.
Limitadas (ou finitas) porque, por mais exemplos e possibilidades
que apresentássemos, elas sempre estariam restritas ao espaço de um
texto, e ideais porque elas sempre estariam pressupondo um conjunto
de situações ideais. O que sabemos, no entanto, é que o professor
lida com um conjunto heterogêneo de situações em sua prática,
conjunto esse que começa com a constituição de suas turmas, o que
já de saída demanda estratégias diversificadas para o trabalho com
cada grupo. Nossa discussão aqui intenta trazer à consciência do
professor seu papel de especialista e conhecedor das propriedades
da língua portuguesa. Essa sua formação é que vai guiá-lo em duas
realidades de sua atividade docente: a) no ensino, desenvolvendo o
32 Tomamos essa ideia emprestada a Aronoff (1985, p. 28), que afirma: “a língua escrita é um
produto da consciência linguística, a objetificação da língua falada. Qualquer ortografia deve,
portanto, envolver uma teoria linguística”.(tradução nossa).

176
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

raciocínio lógico-linguístico em seus alunos para que, de posse desse


raciocínio, eles sejam competentes para empregar a vírgula de ma-
neira apropriada e b) na avaliação, verificando como o emprego da
vírgula aparece nas produções dos alunos e reconhecendo os desvios
de emprego desse sinal de pontuação não como desconhecimento da
língua, mas como características da gramática dos alunos que são
transpostas para os textos escritos.
Não se trata de tarefa simples, quando pensamos que, desde os
primeiros anos da Educação Básica, as crianças já são incentivadas a
produzirem pequenos textos, mas ainda não estão prontas para fazerem
o tipo de reflexão que vimos propondo aqui para o emprego apropriado
da vírgula. Assim, a ideia é que, nas séries iniciais, os gêneros sejam o
norte para fazer com que as crianças empreguem a vírgula em situações
simples, como o isolamento do vocativo (recurso que elas terão de usar na
constituição de cartinhas, e-mails, recados ou bilhetes), ou na separação
dos elementos da datação na abertura de determinados gêneros, para que,
mais adiante, quando já puderem refletir de forma mais aprofundada sobre
a língua, – sejam capazes de passar para a compreensão dos contextos
mais complexos, como o deslocamento de adjuntos ou a topicalização
de argumentos do verbo, por exemplo.

5.1 O PAPEL DO PROFESSOR E A FUNÇÃO DO CONHECIMENTO


GRAMATICAL

Toda a discussão desenvolvida nas seções anteriores evidencia o fato


de que, para que se empregue a pontuação, é necessário lançar mão de
uma série de conhecimentos sintático-semânticos que – segundo a nossa
ótica – são absolutamente fundamentais. Sem o domínio dessas noções,
é praticamente impossível proceder à pontuação apropriada, sem que se
esteja “jogando com a sorte”.
Nossa discussão segue na esteira de trabalhos que propõem que o
professor seja o mediador do processo de transformação do raciocínio do
aluno (cf. LOBATO, 2015 [2003]; GUERRA VICENTE; PILATI, 2012;
FERREIRA; GUERRA VICENTE, 2015; LUNGUINHO et al., 2018;

177
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

MEDEIROS JUNIOR, 2020, entre outros). Sendo assim, nosso objetivo é


mostrar ao (futuro) professor que ele é capaz mediar o “procedimento de
descoberta” (cf. LOBATO, 2015 [2003]; GUERRA VICENTE; PILATI,
2012), por parte dos alunos, dos contextos em que o emprego de uma
marca como a vírgula é autorizado ou daqueles em que ele é proibido.
Por exemplo, o aluno precisa compreender que a língua possui uma
ordem canônica (no caso do português, a ordem SVO) e que alterações
nessa ordem devem ser marcadas com a vírgula em alguns contextos,
podem ser marcadas em outros ou são proibidas em outros (MEDEI-
ROS JUNIOR, 202033). Mas é importante notar que, antes de falar em
deslocamento sintático, o professor precisa trabalhar com seus alunos
as noções de seleção semântica e constituência sintática, evidenciando a
natureza SVO do português, para que só então possa tratar da vírgula em
situações de inversão da ordem. O mais interessante em tudo isso é que
o papel do professor é “apenas” o de tornar explícito esse conhecimento
que o aluno já traz em sua gramática internalizada, antes de ser exposto
ao ensino formal e explícito de português34.
O conhecimento intuitivo acerca da seleção semântica, por exem-
plo, pode ser trazido ao nível de consciência dos estudantes por meio
de discussões que os levem a refletir sobre verbos/predicados e suas
respectivas grades temáticas. Um termo mais técnico que deve ser do
conhecimento do professor, mas que não precisa ser introduzido em sala
de aula, é o de valência, que diz respeito ao número de argumentos que
um verbo/predicado pode tomar, ou seja, zero, um, dois ou três. Assim,
prototipicamente falando, o verbo anoitecer tem valência zero; sorrir
tem valência um; embrulhar tem valência dois; enviar tem valência
três. Para dar início a esse procedimento de descoberta, sugerimos a
construção de um quadro, no qual se faz associação entre sombreamento
(preenchimento da célula em cinza) e saturação (ou seleção). Assim, as
partes que precisam ser saturadas, por sugestão dos alunos, encontram-
33 Acerca dessa discussão mais específica, remetemos o leitor à página 90 da referida obra.
34 As aspas em “apenas” se justificam na argumentação de Guerra Vicente e Pilati (2012, p. 11)
de que “[n]ão se deve achar (...) que, por isso, a função do professor deva ser esvaziada ou que
ela demande menos planejamento. Muito pelo contrário, uma proposta de mudança na tradição
do ensino – basicamente expositivo – vai exigir do professor muita reflexão e criatividade para
propor atividades que demandem uma participação ativa por parte do estudante”.

178
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

se sombreadas, ao passo que as partes que não devem ser saturadas nem
mesmo são projetadas no quadro35:
(44)

Para essa atividade, a ser mediada pelo professor, sugerimos o uso


de técnicas como a eliciação oral e o brainstorming (o famoso “toró de
palpites” ou “toró de ideias”), que culminem na elaboração conjunta,
na lousa, de um quadro como este, em que as partes sombreadas (sele-
cionadas) estejam preenchidas por paradigmas constituídos a partir de
sugestões feitas pelos próprios estudantes:

(45)

35 Note-se que, ao sugerirmos esse tipo de atividade, não estamos querendo “reinventar a roda”.
Trata-se de um recurso básico e intuitivo inspirado em representações de grades temáticas já
presentes em manuais de Linguística Formal (cf. Haegeman, 1991 e Carnie, 2013) e na tabela
abaixo, elaborada por Duarte (2007, p.191) com base no raciocínio de Rocha Lima (1972):

De acordo com a autora, “os predicadores verbais podem projetar estruturas com até três ar-
gumentos. O argumento externo, à esquerda, e dois internos, à direita” (Duarte 2007, p. 191,
grifo da autora).

179
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Em se tratando de um recurso didático, talvez seja interessante o


professor explicar que, num primeiro momento, serão contemplados
apenas contextos out-of-the-blue, ou seja, contextos nos quais falante
e ouvinte não compartilhem certas informações, sendo impossível,
por exemplo, alguém dizer a frase Enviou o e-mail ao aluno sem que
o argumento Ana tenha sido introduzido anteriormente no contexto. A
sentença seria boa como resposta a uma pergunta do tipo O que a Ana
fez?, mas não é o tipo de situação que está sendo contemplada nessa
atividade preliminar. Nesse estágio, o professor deve mostrar ao aluno
que verbo e seus argumentos não devem ser separados por vírgula – a
não ser que haja possibilidade de inversão, o que não será possível no
contexto out-of-the-blue. Aconselha-se, portanto, apresentar construções
com inversão em estágios mais avançados do processo.
A discussão pode avançar até onde for possível ou necessário. Pro-
vavelmente alguns alunos vão observar que, a depender do predicado,
sua valência é variável, pois a maioria dos verbos em português, confor-
me observa Perini (2000), ora exigem ora recusam complementação36.
Além disso, há, nas línguas, um fenômeno conhecido como alternância
sintática, que também pode promover mudança na valência de um verbo/
predicado. Verbos que ilustram essa propriedade são, entre outros muitos,
reprovar, quebrar, rolar:

(46)
a. O professor reprovou a Ana.
b. Ana reprovou.

(47)
a. O Paulo quebrou a janela.
b. A janela quebrou.

36 A esse respeito, remetemos o leitor ao capítulo 6 de Perini (2000). Contudo, desaconselhamos


o leitor a levar ao pé da letra a proposta do autor, dado o seu nível de complexidade, mas
achamos útil a observação de que as gramáticas tradicionais ignoram a existência de um tipo
de transitividade denominada “transitividade de aceitação livre” (p. 164).

180
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(48)
a. Eu rolei a bola.
b. A bola rolou.

Depois de consolidado o estudo do verbo e da sua grade argumen-


tal mais básica, o professor pode pedir que, às sentenças previamente
trabalhadas, sejam acrescentadas informações acessórias, que aparecem
destacadas em itálico:
(49)
Ana sorriu para a plateia de forma simpática.
(50)
Ana embrulhou o presente com um papel de presente florido.
(51)
Ana enviou o e-mail ao aluno dentro do prazo.

O professor pode ainda pedir que os alunos experimentem deslocar


essas informações acessórias na frase. A seguir, apresentamos alguns
exemplos de frases em que se operaram deslocamentos:
(52)
a. De forma simpática, Ana sorriu para a plateia.
b. Ana, de forma simpática, sorriu para a plateia.
c. Para a plateia, Ana sorriu de forma simpática.
(53)
a. Com um papel de presente florido, Ana embrulhou o presente.
b. Ana, com um papel de presente florido, embrulhou o presente.
c. Ana embrulhou, com um papel de presente florido, o presente.

(54)
a. Dentro do prazo, Ana enviou o e-mail ao aluno.
b. Ana, dentro do prazo, enviou o e-mail ao aluno.
c. Ana enviou, dentro do prazo, o e-mail ao aluno.
d. Ana enviou o e-mail, dentro do prazo, ao aluno.

181
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Todo esse procedimento deve culminar em duas conclusões: a) a


de que as informações acessórias podem se deslocar livremente e em
bloco (como um constituinte) pela frase sem comprometer o significado
original, como veremos com mais profundidade na próxima seção e b) a
de que, quando se deslocam na frase, as informações acessórias devem
ser separadas por vírgulas das informações essenciais.

5.2 A AVALIAÇÃO DOS DESVIOS DOS ALUNOS

O docente é aquela pessoa que ensina e também avalia os alunos. A


correção das atividades dos alunos é uma tarefa muito comum na prática
docente. Pensando nisso, imaginemos o que faria um professor se, corri-
gindo uma produção de um aluno, encontrasse as seguintes construções:

(55)
a. Esse bolo de chocolate, ficou muito gostoso.
b. As crianças, brincavam no jardim.

Há duas posturas possíveis nesse caso. Uma delas é o professor


simplesmente marcar esses casos como erros e pensar: “esse aluno não
aprendeu nada do que eu ensinei!”. A outra postura é o professor observar
esses casos e pensar: “por que será que esse aluno está escrevendo assim,
separando sujeito e verbo ou sujeito e predicado?”. A primeira postura
é a de um professor que simplesmente trata os desvios dos alunos como
erros. A segunda postura é a de um professor que quer entender mais sobre
os desvios cometidos pelos alunos para entender o que os está levando
a produzir tais desvios e, assim, organizar sua intervenção em sala de
aula. Infelizmente, muitos de nossos professores (por razões variadas)
têm a primeira atitude perante os desvios de seus alunos, o que torna o
ensino reducionista. O objetivo dos cursos de licenciatura em Letras é
outro. Busca-se formar um profissional conhecedor de sua língua para
poder atuar na sociedade e promover uma mudança no ensino de língua
portuguesa. Por conta disso, os cursos de licenciatura investem na for-
mação de professores para que, diante de desvios como aqueles em (55),

182
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

eles tenham uma postura mais reflexiva. Isso não é novo! Camara Junior
(2004), em 1957, já havia proposto que desvios de estudantes revelam
tendências gerais da língua. Ou seja, um desvio não revela um erro, um
desconhecimento da regra, mas revela como atua a gramática interna a
que tanto nos referimos neste capítulo.
Voltando aos nossos dados em (55), que tendências seriam essas que
fazem surgir exemplos com vírgula separando o sujeito do verbo (ou do
predicado)? Já vimos na seção 1.1 que, com sujeitos pesados, geralmente
fazemos uma pausa entre sujeito e predicado. Nos exemplos em (55),
no entanto, não há sujeitos pesados; logo, a explicação de pausa devido
ao peso do sujeito não pode ser usada para explicar a vírgula nesses
exemplos. O que levaria, então, uma pessoa a colocar vírgulas em (55)?
Nossa ideia é a de que a vírgula tem a ver com a topicalização.
Desde o trabalho de Pontes (1987), sabemos que o português é uma
língua que usa, de modo muito produtivo, a estratégia de topicalização, ou
seja, a presença de um constituinte no início da oração com ou sem pausa:

(56)
a. Raiva e ódio, já basta o meu trabalho.
b. Cada pessoa, ela tem um jeito diferente.
c. A televisão, eu comprei no cartão.
d. Sorvete, eu gosto de morango com calda.
e. Essa casa aqui, eu nunca mais vou passar nem perto.

Por conta disso, o português brasileiro tem sido tratado na literatura


como uma língua de proeminência de tópico ou uma língua voltada para
o discurso (cf. PONTES, 1987; KATO, 1989; NEGRÃO, 1999; GAL-
VES, 2001; ORSINI, 2003; VASCO, 2006 e muitas outras referências).
Quando um aluno escreve (55) e insere uma vírgula entre o sujeito
e o predicado, ele está sendo guiado pela estratégia de topicalização – já
até vista na escola quando são apresentados os casos de deslocamento
de complementos verbais (objeto pleonásticos), de predicativos e de
advérbios. Embora os exemplos em (55) não contenham deslocamento,

183
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

o caso ainda é baseado na topicalização. Em geral, entre o constituinte


topicalizado e o restante da oração, há uma leve pausa, e é essa pausa
que pode estar influenciando o uso da vírgula entre sujeito e verbo. Nas
orações com ordem canônica, o sujeito é o tópico, ou seja, o constituinte
na posição de sujeito acumula a função de sujeito e o papel de tópico.
Trata-se de um tópico não-marcado. Quando coloca a vírgula, separando
esses dois constituintes, o aluno quer, de certa forma, destacar o tópico.
Essa demarcação, no entanto, não está prevista nas gramáticas e, por
isso, o resultado é uma escrita inapropriada.
Vemos, portanto, que existe uma gramática atuando nesses desvios.
Eles mostram tendências da língua, que devem ser compreendidas pelo
professor para ele poder saber de que forma intervir nas produções dos
alunos. Essas tendências só podem ser reconhecidas se o professor tiver
conhecimento das propriedades de sua língua.
No caso em discussão, o papel do professor é dizer que o que impede
o emprego da vírgula é uma questão de prescrição gramatical. Embora
alterações de ordem sejam marcadas por vírgula, essa regra não alcança
a relação sujeito e verbo, entre os quais nunca se coloca vírgula:

(57)
a. Um homem estranho ligou para você.
b. Ligou para você um homem estranho.
c. As encomendas chegaram.
d. Chegaram as encomendas.
e. Todas as pessoas já foram consultadas.
f. Já foram consultadas todas as pessoas.
g. A casa nova ficou muito linda!
h. Ficou muito linda a casa nova!

O caso do sujeito, quando topicalizado, não recebe vírgulas pela


mesma razão prescritiva acima. Além disso, na topicalização do sujeito,
não há alteração visível na ordem de constituintes; logo, a vírgula é, por
mais uma razão, dispensável.

184
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Com esse olhar para os desvios, acreditamos que o professor tem


mais meios de verificar os erros de seus alunos, compreender a raiz desses
erros e propor meios de saná-los.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, voltamos nossa atenção para um tema que constitui


dificuldade para professores de português em sua prática docente e para
alunos em suas atividades de escrita: a pontuação. Dentro desse tema,
selecionamos a vírgula para fazermos uma reflexão sobre seu emprego
no período simples por ser um elemento da língua escrita cujo emprego
se caracteriza por muitos desvios. Elegemos os estudantes de Letras e os
professores de português como nossos interlocutores nessa reflexão por
acreditarmos que eles são uma figura importante no ensino-aprendizagem
de língua e por acreditarmos que um ensino de qualidade começa com
investimento em uma formação sólida dos professores. Nosso trabalho
é, portanto, um passo nessa direção de formar professores com qualidade
para que eles conheçam as propriedades de sua língua.
Voltando à vírgula, tentamos mostrar que, apesar de uma aparente
assistematicidade nas gramáticas, nos livros de língua portuguesa e nos
manuais de escrita, a vírgula é um sinal de pontuação cujo emprego é
sistemático e se baseia em uma teoria linguística. Defendemos a ideia de
que o uso da vírgula está atrelado ao conhecimento que temos da nossa
própria gramática, mais especificamente ao conhecimento implícito, ou
seja, intuitivo, que nós, falantes de uma língua natural, temos das noções
de seleção semântica e de constituência sintática. Enquanto a primeira
noção está relacionada aos contextos de uso impossível, a segunda está
relacionada aos contextos de uso obrigatório da vírgula. A partir do que
foi exposto, convidamos o leitor a se colocar no lugar do estudante, que
precisa aprender a usar a vírgula para pontuar seu texto. Sem esse co-
nhecimento, ele também não saberia por que empregar ou não a vírgula.
Por fim, propusemos diretrizes para o processo de explicitação desse
conteúdo em sala de aula, a ser mediado pelo professor.

185
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Vale lembrar que as diretrizes apresentadas constituem apenas uma


sugestão de organização de conteúdos. É o professor quem sabe que
conteúdo abordar e em que momento tratar dele em sala de aula, levando
em conta um conjunto de informações importantes, tais como o nível de
desenvolvimento cognitivo dos alunos, o ano/série em que eles se encon-
tram e os conhecimentos que já detêm. Esse conhecimento, aliado a uma
formação de qualidade, é importante para que o professor seja capaz de
fazer um bom trabalho com a vírgula em sala de aula.

REFERÊNCIAS

ARONOFF, M. Orthography and linguistic theory: the syntactic basis of Masoretic


Hebrew punctuation. Language, v. 61, n. 1, p. 28-72, mar. 1985.
BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2009.
CAMARA JUNIOR, J. M. Erros de escolares como sintomas de tendências
linguísticas no português do Rio de Janeiro. In: UCHÔA, C. E. F. (org.). Dispersos
de J. Mattoso Camara Jr. Nova edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Lucerna,
2004. p. 87-95.
CAMARGO, T. N. de. Uso da Vírgula. Barueri: Manole Editorial, 2005.
CARNIE, A. Constituent Structure. Oxford: Oxford University Press, 2010.
CARNIE, A. Syntax: A Generative Introduction. 3rd edition. Oxford: Wiley-
Blackwell, 2013.
CATACH, N. La ponctuation. Langue Française, v. 45, p. 16-27, 1980.
CHOMSKY, N. Linguagem e Mente: pensamentos atuais sobre antigos problemas.
Tradução L. Lobato. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998.
COSTA, J.; CABRAL, A. C.; SANTIAGO, A., VIEGAS, F. Guião de implementação
do programa de português do ensino básico: conhecimento explícito da língua.
Lisboa: Ministério da Educação/Direção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento
Curricular, 2011.
CUNHA, C.; CINTRA, L. F. L. Nova Gramática do Português Contemporâneo.
Rio de Janeiro: Lexikon, 2017.
DAHLET, V. As (Man)Obras da Pontuação. São Paulo: Associação Editorial
Humanitas, 2006.
DUARTE, M. E. Termos da oração. In: VIEIRA, S. R.; BRANDÃO, S. F. (org.).

186
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Ensino de Gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2007, p. 185-203.


FERRAREZI JUNIOR, C. Guia de Acentuação e Pontuação em português brasileiro.
São Paulo: Contexto, 2018.
FERREIRA, E.; GUERRA VICENTE, H. Linguística gerativa e “ensino” de
concordância na Educação Básica: contribuições às aulas de gramática. Linguagem
& Ensino, Pelotas, v. 18, n. 2, p. 425-455, jul./dez. 2015.
GALVES, C. Ensaios sobre as gramáticas do Português. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2001.
GUERRA VICENTE, H.; PILATI, E. Teoria gerativa e “ensino” de gramática: uma
releitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Verbum: cadernos de pós-graduação,
n. 2, p. 4-14, 2012.
GUERRA VICENTE, H.; PILATI, E. Teoria gerativa e formação de professores de
Língua Portuguesa. In: LEAL, M. do S. P.; BAPTAGLIN, L. A; LANES, E. (org.).
Estudos de Linguagem e Cultura Regional: linguagem, sociedade e ensino. Boa
Vista: Editora da Universidade Federal de Roraima, 2016, p. 115-130.
HAEGEMAN, L. Introduction to Government and Binding Theory. Oxford:
Blackwell, 1991.
HEIM, I.; KRATZER, A. Semantics in Generative Grammar. Oxford: Blackwell,
1998.
HORNSTEIN, N.; NUNES, J.; GROHMANN, K. Understanding Minimalism.
Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
KATO, M. Tópico e sujeito: duas categorias na sintaxe? Cadernos de Estudos
Linguísticos, v. 17, p. 109-132, 1989.
KATO, M. A.; MARTINS, A. M. European Portuguese and Brazilian Portuguese:
an overview on word order. In: WETZELS, W. L.; COSTA, J.; MENUZZI, S.
(ed). The Handbook of Portuguese Linguistics. Oxford: Wiley Blackwell, 2016,
p. 15-40.
KENEDY, E. Curso Básico de Linguística Gerativa. São Paulo: Editora Contexto, 2013.
KENEDY, E.; OTHERO, G. A. Para Conhecer Sintaxe. São Paulo: Editora Contexto,
2018.
KLEPPA, L. A. Onze Sinais em Jogo. Campinas: Editora Unicamp, 2019.
LEMLE, M. Análise Sintática: teoria geral e descrição do português. São Paulo:
Ática, 1984.
LOBATO, L. M. P. Sintaxe Gerativa do Português: da teoria padrão à teoria da
regência e ligação. Belo Horizonte: Vigília, 1986.

187
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

LOBATO, L. M. P. O que todo professor da Educação Básica deve saber de


Linguística. In: LOBATO, L. M. P. Linguística e ensino de línguas. Brasília: Editora
da UnB, 2015, p. 14-30 (publicação de trabalho originalmente apresentado na 55ª
Reunião Anual da SBPC, Fortaleza, 2003).
LUFT, C. P. A Vírgula. São Paulo: Editora Ática, 2002.
LUNGUINHO, M. V.; NAVES, R. R.; SALLES, H. M. M. L. A.; PILATI, E.;
GUERRA VICENTE, H.; MEDEIROS JUNIOR, P. Contribuições dos estudos
gramaticais à produção de textos. In: DIAS, J. de F. (org.). Ler e (re)escrever textos
na Universidade: da prática teórica e do processo de aprendizagem-ensino. Campinas:
Pontes, 2018, p. 313-337.
MACHADO FILHO, A. V. L. A pontuação em manuscritos medievais portugueses.
Salvador: EDUFBA, 2004.
MATEUS, M. H. M.; BRITO, A. M.; DUARTE, I.; FARIA, I. H.; FROTA, S.;
MATOS, G.; OLIVEIRA, F.; VIGÁRIO, M.; VILLALVA, A. Gramática da Língua
Portuguesa. 5. ed. revista e aumentada. Lisboa: Caminho, 2003.
MEDEIROS JUNIOR, P. Gramática sim, e daí? Reflexões acerca do ensino de
gramática nos anos da Educação Básica. Curitiba: CRV, 2020.
MIOTO, C.; FIGUEIREDO SILVA, M. C.; LOPES, R. Novo Manual de Sintaxe.
São Paulo: Editora Contexto, 2013.
NEGRÃO, E. V. O português brasileiro: uma língua voltada para o discurso. Tese
(Livre Docência) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.
NEGRÃO, E.; SCHER, A. P.; VIOTI, E. Sintaxe: explorando a estrutura da sentença.
In: FIORIN, J. L. (org.). Introdução à Linguística. Volume II: Princípios de análise.
São Paulo: Editora Contexto, 2003, p. 81-109.
NUNBERG, G. The Linguistics of Punctuation. Stanford: CSLI, 1990.
NUNBERG, G; BRISCOE, T.; HUDDLESTON, R. Punctuation. In: HUDDLESTON,
R; PULLUM, G. K (ed.). The Cambridge Grammar of the English Language.
Cambridge: Cambridge University Press, p.1723-1778.
ORSINI, M. T. As construções de tópico no português do Brasil: uma análise
sintático-discursiva e prosódica. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.
OTHERO, G. A. Teoria X-barra: descrição do português e aplicação computacional.
São Paulo: Contexto, 2006.
OTHERO, G. A. A gramática da frase em português: algumas reflexões para a
formalização da estrutura frasal em português. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.
PERINI, M. Gramática Descritiva do Português. São Paulo: Ática, 2000.

188
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

PONTES, E. O Tópico no Português do Brasil. Campinas: Pontes Editores, 1987.


ROCHA, I. L. V. Sistema de pontuação na escrita ocidental: uma retrospectiva.
D.E.L.T.A., São Paulo, v. 13, n. 1, p. 83-118, fev. 1997. Disponível em: https://www.
scielo.br/scielo.php?pid=S010244501997000100005&script=sci_abstract&tlng=pt.
Acesso em: 5 mar. 2020.
ROCHA LIMA, C. H. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2011.
RODRIGUES, A. de A.; GONÇALVES, M. F. “Que cousa he virgula?”: a mudança
nas funções da vírgula em doutrinas gramaticais do século XVII ao XIX. Labor
Histórico, v. 6, n. 1, p. 225-245, jan./abr. 2020. Disponível em: https://revistas.ufrj.
br/index.php/lh/article/view/31955. Acesso em: 9 jun. 2020.
ROSA, M. C. Pontuação e sintaxe em impressos portugueses renascentistas. 1994.
Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 1994.
TENANI, L. Pausa é vírgula? Vírgula é pausa. Roseta, v. 3, n. 1, 2020. Disponível
em: http://www.roseta.org.br/pt/2020/05/06/pausa-e-virgula-virgula-e-pausa/. Acesso
em: 01 jun. 2020.
TESCARI NETO, A. Constituência sintática, ambiguidade estrutural e aula de
português: o lugar da teoria gramatical no ensino e na formação do professor. Working
Papers in Linguistics, Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 129-152, ago./dez. 2017.
TESCARI NETO. A. Análise linguística na Educação Básica com ambiguidade.
In: NASCIMENTO, L.; SOUZA, T. C. (ed). Gramática(s) e discurso(s): ensaios
críticos. Campinas: Mercado de Letras, 2018. p. 173-206.
VASCO, S. L. Construções de tópico na fala popular. 2006. Tese (Doutorado em
Língua Portuguesa) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
YANO, C. T. Um estudo sobre o emprego de vírgula antes de oração completiva
no português europeu clássico: sintaxe, discurso e gramática normativa. 2013.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013.
YANO, C. T. A história do emprego de vírgula do português clássico ao português
europeu moderno. 2018. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Estadual
de Campinas, Campinas, 2018.
ZENDRON DA CUNHA, K.; PORTO, M. Pausa para respirar: o papel da pontuação
na leitura. In: OLIVEIRA, R. P. de; QUAREZEMIN, S. (org.). Artefatos em
gramática: ideias para aulas de língua. Florianópolis: DLLV/CCE/UFSC, 2020. p.
131-164.

189
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

A CARTOGRAFIA SINTÁTICA NAS AULAS DE GRAMÁTICA:


POR UMA METODOLOGIA DE ENSINO DA CLASSE DOS
ADVÉRBIOS1

Aquiles Tescari Neto


Mariana Perigrino

1. INTRODUÇÃO

Gramáticas normativas luso-brasileiras incorporaram – como heran-


ça dos clássicos – o estudo sobre as classes de palavras (doravante ClPs)
dentre seus principais tópicos de estudo. Assume-se descritivamente
em gramáticas tradicionais dez partes da oração: nome, verbo, adjetivo,
advérbio, conjunção, preposição, artigo, pronome, numeral e interjeição.
Como apontam Tescari Neto e Perigrino (2018), há uma certa confusão
terminológica no que diz respeito ao uso dos termos “classe de palavras”
e “categorias”, muitas vezes tratados como sinônimos. Num sentido es-
trito, o termo “categoria” pode ser usado como sinônimo de “classe de
palavras”. Fala-se, assim, na categoria dos verbos, na categoria dos nomes
(substantivos), na categoria dos advérbios etc. Num sentido mais amplo,
contudo, “categorias” são entendidas como unidades linguísticas agru-
padas por propriedades morfossintáticas e/ou semânticas semelhantes.
Nesse último sentido (mais geral) haveria muito mais categorias do
que a classificação das palavras em dez classes (ou partes do discurso)
1 Agradecemos ao parecerista anônimo que cuidadosamente nos chamou a atenção a alguns
aspectos do texto, o que, certamente, fez o nosso trabalho ganhar muito em qualidade. Agrade-
cemos também às organizadoras do livro pelo apoio e também pela atenciosa leitura do texto.

191
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

poderia prever. Em Cinque e Rizzi (2010, p. 57), estima-se que o número


de categorias gramaticais que fariam parte do inventário de categorias da
gramática universal estaria na ordem de cerca de quatrocentas. Tomemos,
p. ex., a classe dos verbos. Uma forma como am-a-rí-amos teria, para
além do radical am- e da vogal temática de primeira conjugação -a-, os
morfemas modo-temporal -rí- e número-pessoal -amos. Sendo assim, o
exemplo deixa evidente que uma classe de palavras específica deve ser, na
verdade, entendida como um feixe de categorias (em seu sentido amplo),
isso se pensarmos apenas nos verbos. A respeito disso, Lyons (1979, p.
285) já pontuava: “[a]lguns autores referem-se às ‘partes do discurso’
como ‘categorias’; outros, seguindo o uso mais tradicional, restringem a
aplicação do termo a certos traços associados às ‘partes do discurso’ nas
línguas clássicas, como […] pessoa, tempo, modo etc. […]”.
A investigação sobre as partes do discurso ou classes de palavras,
na tradição dos estudos gramaticais, constitui um campo muito amplo. A
motivação inicial para essa importância dada ao tópico (pelos gramáticos
e linguistas) tem suas raízes nos clássicos: Câmara Junior (1970) explica
que Dionísio da Trácia já apresentava um sistema de classificação (mor-
fológica) dos vocábulos. As gramáticas luso-brasileiras incorporaram
o tópico em suas descrições e, consequentemente, a Escola também o
incorporou. Neves (2010) chega mesmo a citar uma pesquisa realizada
na década de 80, junto a professores da educação básica paulista, que
constatou que exercícios de “reconhecimento” de “classes de palavras”
corresponderam a 31,34% dos exercícios de tópicos gramaticais traba-
lhados por professores do Ensino Fundamental II e Médio. Esse foi o
percentual mais alto em um conjunto de quarenta tópicos gramaticais
(trabalhados na forma de exercícios).
Tendo em vista essa constatação, voltamo-nos, nesse trabalho,
ao estudo de uma classe de palavras particular: a dos advérbios. Nosso
objetivo geral é, portanto, primeiramente fazer um levantamento tipo-
lógico junto a dez sites/blogues sobre ensino de gramática (descritos na
seção 3) relativamente às classificações semânticas dos advérbios e pa-
lavras “denotativas”. A escolha por um levantamento em sites e blogues
justifica-se uma vez que, com o avanço da globalização e a popularização

192
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

da internet, se tornou comum professores recorrerem a esses ferramentais


como forma de complementar o material didático que têm disponível e,
consequentemente, de complementar as informações passadas aos alunos
em sala de aula. Ademais, sites e blogues voltados à educação também
são bastante acessados pelos alunos, tornando-se plataformas para sanar
dúvidas teóricas, por exemplo. Dessa forma, a grande inserção de sites e
blogues no contexto de sala de aula torna relevante a análise dos conteúdos
que propagam. O segundo objetivo desse trabalho é propor um conjunto
de atividades complementares às atividades dos livros didáticos, a serem
feitas como um miniprojeto de pesquisa na Escola. Esse projeto poderá
ser desenvolvido, com as adaptações didáticas necessárias, no espírito
da metodologia da Cartografia Sintática.
A escolha da classe dos advérbios se deve a várias razões. Em pri-
meiro lugar, um dos trabalhos fundadores da Cartografia, o de Cinque
(1999) sobre a arquitetura da oração, faz um estudo translinguístico dessa
ClPs para compreender como esses itens se integram à estrutura. Uma
vez que os livros didáticos trazem classificações semânticas de advérbios,
seria possível sugerir um conjunto de atividades didáticas que adotassem
diretrizes-guias da cartografia sintática, no plano metodológico. Ademais,
a literatura linguística, em geral, menciona quão difícil é oferecer um
tratamento uniforme aos itens comumente arrolados como advérbios
(CARNEIRO, 1989). Elaborar um projeto de investigação sobre advér-
bios, a ser feito junto aos alunos, seria uma maneira, então, não só de
introduzi-los a uma metodologia consolidada nos estudos linguísticos –
proporcionando-lhes um primeiro contato com démarches próprias das
investigações científicas – como também de lhes oferecer um estudo
mais uniforme e aprofundado dos itens classificados como advérbios.
Amparando-nos, então, na metodologia da Gramática Gerativa –
uma vez que parte das atividades levarão em conta experimentos de jul-
gamentos de gramaticalidade de sentenças, pautados em ferramentais da
cartografia sintática, como testes de precedência-e-transitividade –, nosso
objetivo específico é propor uma metodologia de análise dos advérbios,
que tenta reproduzir – na forma de projeto a ser desenvolvido junto aos
alunos – a metodologia utilizada por Cinque (1999) e colaboradores (da

193
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Cartografia Sintática). Essa metodologia, uma vez feitas as adaptações


didáticas necessárias, poderá ser aproveitada pelos professores de língua
portuguesa, como atividade complementar à do livro didático. Sugere-
se, em particular, que a metodologia aqui avançada seja aplicada em
contextos de sala de aula tanto do segundo ciclo do Ensino Fundamental
quanto do Ensino Médio, uma vez que o tópico “classes de palavras” é
ensinado aos alunos durante todo esse período escolar.
O trabalho se organiza assim: na seção 2, apresentamos uma
revisão de alguns estudos sobre a classe dos advérbios; em seguida, na
seção 3, fazemos um levantamento, em dez sites/blogues de ensino de
gramática do português, das classes (semânticas) de advérbios e “palavras
denotativas”. Na seção 4, apresentamos a nossa proposta metodológica
de intervenção didática na educação básica, no contexto do fechamento
de uma unidade didática sobre advérbios. Tal proposta fundamenta-se na
Cartografia Sintática cuja metodologia combina testes de precedência-e-
transitividade, através de julgamentos de gramaticalidade. A importância
dessa sugestão de atividade complementar, a ser desenvolvida na forma
de projeto, é introduzir os alunos a técnicas de experimentação típicas
de teorias linguísticas, bem como fornecer aos professores subsídios
metodológicos para o tratamento de aspectos gramaticais. Na seção 5,
trazemos nossas considerações finais.

2. OS ADVÉRBIOS NOS ESTUDOS GRAMATICAIS

A conceituação da classe dos advérbios em nossas gramáticas e


manuais tradicionais é bastante uniforme: os gramáticos definem o ad-
vérbio a partir do seu “papel modificador”, com a indicação de alguma
“circunstância” ampliadora da significação verbal (CASTILHO, 2000).
Sobre esse “papel modificador”, a tradição gramatical tem identi-
ficado processos denominados de “modificação”, com a finalidade de
capturar o estatuto categorial dos advérbios. Segundo Castilho (2000),
o termo “modificação” parece ser, na tradição gramatical, o traço forte
dos advérbios, embora “dificuldades didáticas várias se levantam se ten-

194
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

tarmos explicar por essa propriedade o conjunto de itens habitualmente


arrolados nessa classe” (CASTILHO, 2000, p. 150).
O termo “modificação” começou a aparecer nas gramáticas a partir
do século XVII e teria migrado da gramática francesa de Port-Royal
para as gramáticas românicas, como a de Barboza (1881), editada pela
primeira vez em 1803 (CASTILHO, 2000), que já considerava o advér-
bio um modificador de qualquer palavra suscetível de determinação. As
gramáticas posteriores à de Barboza (1881), contudo, definem o advérbio
a partir da propriedade que representantes dessa classe têm de modificar
o verbo, o adjetivo e o próprio advérbio. Castilho (2000, p. 150) lamenta
o fato de, na tradição posterior a Barboza (1881), ter-se perdido a lição
desse gramático, segundo o qual o advérbio modifica o uerbum, isto é,
qualquer palavra passível de modificação, não apenas o verbo, o adjetivo
e o próprio advérbio.
Contemporaneamente, verifica-se a perda da conceituação proposta
por Barboza (1881) em gramáticas como a de Maciel (1914), Cunha e
Cintra (1985), Rocha Lima (2001) e de Bechara (2001), que, apesar de
tratarem do advérbio como um “modificador”, se limitam a considerá-lo
um modificador do verbo, do adjetivo ou do próprio advérbio, ou mesmo
de toda uma oração, diferentemente de Barboza (1881), que estende a
possibilidade de modificação por advérbios a “qualquer palavra suscetível
de determinação” (BARBOZA, 1881, p. 235).
Vários problemas decorrem, na visão de linguistas contemporâne-
os, de análises que definem os advérbios apenas como modificadores,
seja de constituintes da oração (adjetivo, verbo, advérbio, pronome),
seja da oração como um todo. Ilari et al. (2002) contestam os critérios
da classificação tradicional por duas razões principais: (i) as categorias
que podem ser modificadas por advérbios não são apenas os verbos, os
adjetivos e outros advérbios: os advérbios também podem modificar
numerais e inclusive sentenças inteiras; (ii) a “função” desempenhada
por advérbios não se restringe apenas à de modificador de outras palavras
e expressões, conforme vemos nos gramáticos. Há itens, normalmente
arrolados entre os advérbios (os circunstanciais), p. ex., que podem

195
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

inclusive funcionar como argumentos, em contextos sintáticos bastante


precisos, como em (1), em que os pronominais ali/lá são necessários ao
processo de predicação verbal por saturarem a valência do verbo morar2.

(1)
O Pedro mora lá/ali.

Já em Cunha e Cintra (1985) e Bechara (2001), é mencionada a


dificuldade de classificação dos advérbios, dada a extrema mobilidade
funcional e semântica que os caracteriza (o que tem levado os gramáticos
a reunirem sob o rótulo de advérbios, numa classe heterogênea, palavras
de natureza nominal e pronominal, com funções e distribuição muitas
vezes distintas). Cunha e Cintra (1985) chegam mesmo a citar que mui-
tos linguistas modernos reexaminam o conceito de advérbio semântica
e morfologicamente.
Talvez toda essa problemática seja uma herança da antiguidade
clássica. Escreve Weedwood (2003, p. 31-32) que a definição grega
das “partes do discurso” considerava o significado do enunciado, e não
aspectos formais: “Transmitido a nós em sua versão elaborada pelos
romanos, este sistema levantou para os linguistas posteriores o problema
de conciliar um sistema de classes de palavras de base semântica com
a necessidade, frequentemente incompatível, de classificar a palavra
segundo sua forma”. Essa (in)definição do que é ou possa ser o advérbio
encontra suas raízes no sistema grego das partes do discurso.
2 Não obstante as críticas de muitos linguistas à tradição dos gramáticos, deve-se reconhecer
que algumas das premissas fundamentais das análises tradicionais, no que diz respeito aos
advérbios, estão presentes ainda hoje no tratamento da classe por linguistas contemporâneos. O
traço [modificação] que, conforme comentamos acima, é recorrente nas análises dos gramáticos,
é um traço que parece definir bem a classe dos advérbios, à exclusão, naturalmente, de alguns
circunstanciais como o pronominal lá/ali de (1) – se é que esses itens são de fato adjuntos. O
fato de serem concebidos na análise sintática de Rocha Lima (op. cit.) como “complementos
circunstanciais” já lança por si dúvidas quanto ao estatuto desses adverbiais enquanto “ad-
juntos”. Se pensarmos em termos de Cartografia Sintática, a posição dos circunstanciais – na
hierarquia universal de categorias funcionais da oração – seria uma posição intermediária: a
zona de soldagem (“Merge”) dos circunstanciais (de lugar, tempo e modo) seria imediatamente
acima da zona de inserção dos argumentos e abaixo da zona de inserção dos adjuntos. Vê-se,
pois, que a posição desses elementos na hierarquia universal está associada ao fato de não
serem adjuntos, mas argumentos.

196
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

A situação sobre a categorização dos advérbios nas teorias linguís-


ticas não é diferente3. No âmbito do funcionalismo, merecem destaque,
dentre tantos outros, Ramat e Ricca (1998), com seu trabalho sobre
advérbios sentenciais em línguas europeias. Os autores propõem que os
advérbios sejam entendidos com base em critérios formais e funcionais.
Do ponto de vista formal, os advérbios são lexemas invariáveis e sin-
taticamente dispensáveis. Funcionalmente, atuam como modificadores
de predicados, de outros modificadores ou de unidades sintáticas mais
altas. Assim, em (2), o advérbio atua como modificador de um verbo;
em (3), de um adjetivo; em (4), de um outro advérbio; e, em (5), de uma
sentença (RAMAT; RICCA, 1998, p. 266, nota 3):

(2)
He knocked loudly at the door.
Ele bateu ‘berrantemente’ na porta.

(3)
He wrote an extremely interesting book.
Ele escreveu um livro extremamente interessante.

(4)
He started smoking very heavily.
Ele parou de fumar muito bruscamente.

(5)
You are probably right.
Você está provavelmente certo.

Em relação à propriedade funcional, a de “modificador” de consti-


tuintes, também os adjetivos compartilham com os advérbios essa pro-
priedade. A diferença reside no fato de que adjetivos são modificadores
de nomes, ao passo que advérbios são modificadores de constituintes
3 Obviamente não estamos fazendo uma revisão pormenorizada da literatura sobre os advérbios,
o que seria bastante complexo, dado o espaço reduzido de que dispomos neste capítulo e a
quantidade de trabalhos que mereceriam nossa resenha. Escolhemos apenas alguns, conside-
rando sua importância e os nossos objetivos.

197
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

oracionais, embora as fronteiras funcionais entre adjetivos e advérbios


não sejam de todo claras, posto que os advérbios podem modificar no-
mes, como em (6), ocorrência em que temos um advérbio (même ‘(até)
mesmo’) associado ao foco (les rois ‘os reis’), um nome.

(6)
Francês
Même les roi-s se tromp-ent.
Mesmo os reis RFL estar.errado-
IND:PRS:3PL
‘Mesmo os reis cometem enganos.’
(RAMAT; RICCA, 1998, p. 188).

Também os gerativistas mencionam a dificuldade de oferecer


um tratamento unificador para os itens comumente arrolados entre os
advérbios. Thomas Ernst, um dos teóricos de produção mais relevante
em teoria formal sobre adjuntos, em seu livro The Syntax of Adjuncts,
chega a escrever:

Ninguém parece saber exatamente o que fazer com os advér-


bios. A literatura dos últimos trinta anos em sintaxe e semântica
formal está apimentada de análises da distribuição ou inter-
pretação (ou ambos) de pequenas classes de advérbios, mas
conta com poucas tentativas de uma teoria completa (ERNST,
2001, p. 1, tradução livre).

A citação anterior nos dá uma ideia global sobre o panorama dos


estudos gerativistas sobre advérbios nos últimos trinta anos. Ernst (2001)
lamenta o fato de a literatura formalista contar com poucas propostas
teóricas gerais sobre os sintagmas adverbiais (AdvPs), embora conte com
trabalhos sobre classes de advérbios particulares. Talvez essa falta de
teorias completas que deem conta de explicar questões de interpretação,
posicionamento e licenciamento de advérbios de maneira unificada se
explique já pela dificuldade de reconhecimento dos advérbios, entre os
teóricos, como uma categoria, em seu sentido amplo: a classe dos advér-

198
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

bios tem sido constantemente mencionada, quer na literatura gerativista,


quer nas outras literaturas, como uma classe compósita, que reúne itens
de comportamento sintática e semanticamente diversos. Em Aspects,
Chomsky (1965) sintetiza quão problemática se apresenta a classe dos
advérbios para a explanação teórica: “Os advérbios são um sistema rico
e ainda inexplorado. Qualquer coisa que dissermos sobre eles deve ser
considerada absolutamente como tentativa” (CHOMSKY, 1965, p. 219,
tradução livre).
Inserido na vertente cartográfica da Teoria de Princípios e Parâ-
metros da Gramática Gerativa, Cinque (1999) apresenta uma teoria
bastante abrangente da arquitetura da oração, considerando os ad-
vérbios como categorias funcionais. Para o autor, os advérbios estão
rigidamente ordenados entre si, de acordo com sua classe semântica.
Assim, advérbios de ato de fala precederiam os avaliativos que, por
sua vez, precederiam os epistêmicos, por exemplo. Seriam, de acordo
com Cinque, cerca de trinta as classes de advérbios. Se pensarmos
na classificação dos advérbios em classes semânticas, pela gramática
normativa, tal classificação encontraria alguma correspondência no
trabalho de Cinque (1999), pelo menos em termos do reconhecimento
de várias classes semânticas de advérbios. Cinque, porém, usa de uma
metodologia criteriosa para ordenar rigidamente as referidas trinta
classes de advérbios entre si, o que lhe permite chegar a uma hierarquia
segundo ele de validade universal.
Cinque (1999) explodiu o sintagma da flexão (i.e., o “lugar”, na
representação sintática, que, no modelo de Chomsky (1986a), seria
o lócus de realização das categorias de tempo, modo e aspecto) nas
cerca de trinta classes mencionadas em (7), a seguir. Cada classe cor-
responderia a uma projeção funcional, em termos de teoria X-barra,
com um advérbio na posição de especificador e um núcleo funcional
licenciador à sua direita:

199
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(7)
A hierarquia universal dos advérbios (adaptado de Cinque (1999, p.
106), com base em Santana (2005) e Tescari Neto (2013)):

francamente ModoAto de fala > [surpreendentemente ModoMirativo> [fe-


lizmente ModoAvaliativo > [evidentemente ModoEvidencial > [provavel-
mente ModalidadeEpistêmica > [uma vez TPassado > [então TFuturo > [talvez
ModoIrrealis > [necessariamente ModalidadeNecessidade > [possivelmente
ModalidadePossibilidade > [normalmente AspHabitual > [finalmente AspTardivo
> [tendencialmente AspPredisposicional > [novamente AspRepetitivo(I) > [frequen-
temente AspFrequentativo(I) > [de/com gosto ModalidadeVolitiva > [rapidamente
AspAcelerativo(I) > [já TAnterior > [não … mais AspTerminativo > [ainda AspContinuativo
> [sempre AspContínuo > [apenas AspRetrospectivo > [(dentro) em breve AspApro-
ximativo
> [brevemente AspDurativo > [(?) AspGenérico/Progressivo [quase AspProspectivo
> [repentinamente AspIncoativo(I) > [obrigatoriamente ModoObrigação > [à toa
AspFrustrativo > [(?) AspConativo > [completamente AspSingCompletivo(I) > [tudo
AspPlurCompletivo > [bem Voz > [cedo AspAcelerativo(II) > [do nada AspIncoativo(II)
> [de novo AspRepetitivo(II) > [frequentemente AspFrequentativo(II) > …

Para chegar à hierarquia das classes de advérbios em (7), Cinque


(1999) toma advérbios de duas classes por vez, nas duas ordens possíveis.
Faz isso inicialmente para o italiano e o francês, estendendo a investiga-
ção, ao final do capítulo 1, a outras treze línguas distintas. Ilustramos,
abaixo, o expediente metodológico utilizado por Cinque (1999), tomando
como exemplo os cinco advérbios mais altos da hierarquia, dessa vez em
português brasileiro (PB)4.

(8)
francamente (ModoAto de fala) > surpreendentemente (ModoMirativo):
a. Francamente, surpreendentemente o ladrão foi embora sem ao menos
tentar abrir o cofre.
b. *Surpreendentemente, francamente o ladrão foi embora sem ao menos
tentar abrir o cofre.

4 Nesses exemplos (8-11), o símbolo “>” indica precedência (na hierarquia).

200
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(9)
surpreendentemente (ModoMirativo) > felizmente (ModoAvaliativo):
a. Surpreendentemente, felizmente o ladrão foi embora sem ao menos
tentar abrir o cofre.
b. *Felizmente, surpreendentemente o ladrão foi embora sem ao menos
tentar abrir o cofre.

(10)
felizmente (ModoAvaliativo) > evidentemente (ModoEvidencial):
a. Felizmente, evidentemente o ladrão foi embora sem ao menos tentar
abrir o cofre.
b. *Evidentemente, felizmente o ladrão foi embora sem ao menos tentar
abrir o cofre.

(11)
evidentemente (ModoEvidencial) > provavelmente (ModalidadeEpistêmica):
a. Evidentemente, provavelmente o ladrão foi embora sem ao menos
tentar abrir o cofre.
b. *Provavelmente, evidentemente o ladrão foi embora sem ao menos
tentar abrir o cofre.

O expediente ilustrado em (8-11) são os testes de precedência-e-


transitividade, típicos instrumentos metodológicos para se chegar a hie-
rarquias sintáticas. Tomam-se dois itens por vez nas duas ordens possíveis
e, da combinação geral das ordens parciais chega-se, por transitividade,
à hierarquia completa ou, pelo menos, a um estrato da hierarquia com-
pleta. Em (8-11) ilustramos isso para os cinco advérbios mais altos da
hierarquia. Assim, se francamente (ModoAto de fala) > surpreendentemente
(ModoMirativo) (cf. (8)) e surpreendentemente (ModoMirativo) > felizmente
(ModoAvaliativo) (cf. (9)), por transitividade infere-se que francamente (Mo-
doAto de fala) > felizmente (ModoAvaliativo). Com este expediente, combinando
precedência-e-transitividade, é possível, portanto, chegar à hierarquia
completa (em (7)).
É importante explicar, aqui, que a Cartografia Sintática com fre-
quência se vale desse expediente metodológico na proposição de suas

201
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

hierarquias (dos mais variados domínios (i.e., da expressão nominal à


oração)). Recorre à metodologia clássica de julgamentos de gramaticali-
dade, da Gramática Gerativa, que consistem na elaboração de um corpus
a partir da elicitação de julgamentos de gramaticalidade, baseados nas
impressões de falantes nativos sobre a formação de determinadas ocor-
rências. Vamo-nos valer, na seção 4, dessa metodologia cartográfica (com
as devidas adaptações didáticas) para propor um tratamento da classe dos
advérbios, a ser trabalhado nas aulas do ensino fundamental II e médio,
tratamento esse complementar àquele oferecido nos livros didáticos.

3. DAS CLASSES SEMÂNTICAS DE ADVÉRBIOS E PALAVRAS DE-


NOTATIVAS EM SITES DE ENSINO DE GRAMÁTICA

O estudo do tópico gramatical “classes de palavras” inicia-se, no


sistema educacional brasileiro, nas séries iniciais do Ensino Fundamen-
tal II, estendendo-se até as séries finais do Ensino Médio. Sabe-se que,
para o processo de ensino-aprendizagem desse conteúdo (bem como de
outros), os professores valem-se, sobretudo, do material didático de que
dispõem. No entanto, no contexto de sala de aula atual, não somente
os materiais didáticos têm vez: a inserção de ferramentas tecnológicas
e virtuais (como uso de computadores, internet, sites e blogues) tem
sido cada vez mais evidente, seja de forma direta (com acesso em sala
de aula a essas ferramentas) seja de forma indireta (com a inserção dos
conteúdos dessas plataformas em aula). Esse processo é decorrente dos
avanços tecnológicos gerados pela globalização, avanços esses que ge-
raram mudanças significativas na vida cotidiana (veja-se, a esse respeito,
o interessante livro de LÉVY (2010)). Juntamente a essas mudanças
promovidas pelos professores em sala de aula, há também uma mudança
comportamental dos alunos: uma vez que são inseridos desde muito no-
vos no meio tecnológico (sendo cercados por celulares, computadores e
videogames, por exemplo), torna-se comum, para os estudantes, recorrer
a sites e blogues quando desejam tirar alguma dúvida sobre conceitos e
conteúdos vistos em sala de aula, podendo, com isso, até mesmo abrir
mão de bibliotecas e enciclopédias.

202
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Tendo em vista esse contexto, torna-se relevante analisar de que


forma sites e blogues conceituam as classes de palavras – principalmente
a classe dos advérbios, objeto de estudo deste capítulo –, uma vez que
sites e blogues podem compor as ferramentas levadas para a sala de
aula – e, sobretudo, as ferramentas de estudo extraclasse –, interferindo
(direta ou indiretamente) no processo de ensino-aprendizagem de tópicos
gramaticais.
Sobre a análise realizada, o quadro 1, então, compila nosso levan-
tamento tipológico, junto a dez sites/blogues brasileiros sobre ensino
de gramática5, das classificações semânticas dos advérbios. O quadro
2, por sua vez, traz um levantamento sobre as classificações semânticas
das palavras denotativas, cuja consulta foi feita também a sites/blogues
sobre ensino de gramática6, 7.

5 A consulta foi feita em 9 de abril de 2020 aos sites/blogues abaixo, indicados, no quadro 1,
pelo número colocado diante do site.
1 – https://www.soportugues.com.br/secoes/morf/morf77.php
2 – https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/gramatica/classificacao-dos-adverbios.htm
3 – https://www.normaculta.com.br/adverbio/
4 – https://www.significados.com.br/adverbio/
5 – https://brasilescola.uol.com.br/gramatica/adverbio.htm
6 – https://www.infoescola.com/portugues/adverbios/
7 – https://www.todamateria.com.br/adverbio/
8 – http://www.novagramaticaonline.com/2014/12/gramatica-online-classes-gramaticais_2.html
9 – https://www.materias.com.br/portugues/tipos-classificacao-dos-adverbios.html
10 – https://www.portalsaofrancisco.com.br/portugues/adverbios
6 Para a classificação semântica das palavras denotativas, consultamos, no dia 9 de abril de
2020, os seguintes sites/blogues, cujo número indicado corresponde à sua identificação no
quadro 2:
1 – https://www.soportugues.com.br/secoes/morf/morf79.php
2 – https://www.portugues.com.br/gramatica/palavras-denotativas.html
3 – https://recantodasletras.com.br/gramatica/1080177
4 – https://descomplica.com.br/artigo/o-que-sao-palavras-denotativas/410/
5 – https://www.proenem.com.br/enem/palavras-denotativas/
6 – https://pt.wikipedia.org/wiki/Palavra_denotativa
7 – https://www.portalsaofrancisco.com.br/portugues/palavras-denotativas
8 – https://escolakids.uol.com.br/portugues/palavras-e-locucoes-denotativas.htm
9 – https://professorfabianosales.blogspot.com/2011/01/palavras-denotativas.html
10 – https://www.colegioweb.com.br/classes-gramaticais/adverbios-improprios-ou-palavras-
denotativas.html
7 Uma vez que as assim chamadas “palavras denotativas” apresentam comportamento mor-
fossintático em certa medida distinto do das outras classes de advérbios, são tratadas como
uma subcategoria à parte, o que mais uma vez deixa claro quão compósita é a classe dos itens
comumente arrolados como advérbios.

203
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Quadro 1: Das classes semânticas dos advérbios em dez sites/blogues

Fonte: elaboração própria.

Um exame dos quadros (1 e 2) nos leva a constatar que algu-


mas classes semânticas são mais comuns nos sites consultados, sendo
mencionadas em todos eles: tempo, modo, lugar, dúvida, afirmação,
negação e intensidade. Há também certo consenso no que diz respeito à
assunção das classes de palavras denotativas: encontramos praticamente
as mesmas classes nas discussões dos quatro autores que se propuseram
a tratar dessa subclasse.
Quadro 2: Das classes semânticas de “palavras denotativas” em dez sites/blogues

Fonte: elaboração própria.

204
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

A partir das classificações semânticas dos advérbios – e das pala-


vras denotativas – encontradas no levantamento tipológico apresentado,
proporemos, na seção seguinte, um conjunto de atividades, embasado na
vertente cartográfica da Gramática Gerativa, a ser desenvolvido em sala
de aula, como atividade complementar às atividades do livro didático.
Conforme iremos mostrar, haverá uma ligação entre o trabalho de recolha
de dados – que apresentamos aqui nesta seção – junto a sites/blogues e
o trabalho que, esperamos, o professor faça com seus alunos, trabalho
esse que poderá se dar por pesquisa em blogues e sites ou mesmo por
pesquisa feita junto a outros materiais didáticos. Obviamente, o trabalho
a ser desenvolvido é tão somente complementar ao trabalho sugerido
nos livros didáticos.

4. SUGESTÕES PARA O PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Como já dito, ao oferecer uma metodologia de trabalho para o


tratamento dos advérbios, nossa proposta elege, como marco teórico, a
vertente cartográfica da teoria de Princípios e Parâmetros da Gramática
Gerativa, mais especificamente o trabalho de Cinque (1999). Buscamos,
com isso, propor um conjunto de atividades, no espírito do proposto
em Pires de Oliveira e Quarezemin (2016), Pilati (2017) e Tescari Neto
(2017a), que, com as adaptações necessárias, tomem elementos da dé-
marche de teorias gramaticais em sua aplicação.
Na seção 2, fizemos uma revisão da literatura, citando alguns traba-
lhos sobre advérbios. O último trabalho resenhado, o de Cinque (1999),
apresentava uma metodologia bastante peculiar. Inserido na teoria de
Princípios e Parâmetros, o trabalho de Cinque recorre à elicitação de
julgamentos de gramaticalidade na constituição de seu banco de dados.
Inserido na vertente da Cartografia Sintática – que tem por objetivo
desenhar mapas detalhados da estrutura sintática da oração e de seus
sintagmas (CINQUE; RIZZI, 2010) –, o trabalho de Cinque (1999)
vale-se de um expediente metodológico compartilhado por muitos de
seus colegas cartográficos: os testes de precedência-e-transitividade.
Através de tais testes, os estudiosos da cartografia podem determinar a

205
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

sequência funcional (f-seq), i.e., a hierarquia de categorias gramaticais,


tanto da oração como de outros domínios expandidos (como a expressão
nominal, p. ex.).
Assim, assumindo uma versão forte do princípio de Uniformidade
(CHOMSKY, 2001), combinado com a diretriz-guia da Cartografia, o
Princípio do “Um traço, um núcleo”, de Kayne (2005), a Cartografia parte
do pressuposto de que as categorias do sistema conceitual sejam mapeadas
na estrutura sintática, cada uma em uma posição distinta. Deste modo,
para cada categoria semântico-pragmática, haveria uma única posição
na hierarquia sintática. O modo como o conteúdo de cada projeção é
lexicalizado (i.e., pronunciado ou não) seria uma questão paramétrica e
as línguas poderiam optar por um sistema bastante transparente, como é
o caso do sistema de línguas aglutinantes, em que cada traço do sistema
conceitual tem realização num morfema único e específico, não flexional.
Na seção 2, mostramos como se chega à f-seq, recorrendo a testes
de precedência-e-transitividade com advérbios. Uma vez que as línguas
românicas são sistemas flexionais, não é possível chegar à ordem das
categorias da f-seq, recorrendo a testes de precedência-e-transitividade
com núcleos funcionais (exceção feita a verbos auxiliares, muito embora
não seja possível garantir que cada auxiliar corresponda a uma única
projeção, haja vista o fato de pelo menos o primeiro deles, num estirado
de auxiliares, poder cumular mais de um traço)8.
Como intervenção didático-pedagógica, então, sugerimos que os
professores de língua portuguesa, ao término da unidade didática (ou
capítulo) sobre os advérbios, desenvolvam um miniprojeto de pesquisa,
com os alunos, sobre a classificação semântica dos advérbios em classes,
recorrendo ao expediente cartográfico da precedência-e-transitividade.
A diferença, em relação ao trabalho de Cinque (1999), residiria nas ca-
tegorias (classes semânticas de advérbios) consideradas: não se conside-
rará a f-seq completa, que comporta, no espírito de Cinque, cerca de 30
classes de advérbios; antes, sugerimos que sejam consideradas as classes
semânticas de advérbios descritas no próprio livro didático (advérbios
8 Para mais detalhes a respeito da proximidade dos advérbios com os auxiliares e verbos modais
(como os modais do inglês, p. ex.), consulte-se Tescari Neto (2020).

206
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

de modo, tempo, lugar, etc.) ou em um corpus elaborado para esse fim,


conforme descrito e justificado a seguir.
Relativamente à metodologia, então, o miniprojeto seria realizado
em etapas. Tendo o professor concluído a unidade didática (do livro
didático utilizado) sobre os advérbios, seria então realizado o minipro-
jeto de investigação, em que os alunos, na posição de analistas – e com
a supervisão do professor –, reproduziriam elementos gerais, com as
devidas adaptações didáticas, da investigação cartográfico-cinqueniana
relativa à ordenação dos advérbios.
A primeira etapa – chamemo-la de “levantamento descritivo-tipo-
lógico das classes de advérbios” – consistiria na listagem ou catalogação
das categorias (i.e., das classes semânticas de advérbios). Será necessário
que o professor guie os alunos na escolha das fontes bibliográficas que
servirão de corpora para a atividade descritiva da listagem. É recomendá-
vel que o professor instrua os alunos sobre a importância da seleção das
fontes de pesquisa, que constituirão os corpora (ou banco de dados/base).
Esses corpora podem ser variados. O professor pode optar, recorrendo a
critérios bem precisos, por um único tipo de fonte: p. ex., sites ou blogues
de professores de língua portuguesa; gramáticas normativas; manuais de
linguística; livros didáticos9 etc. Alternativamente, pode pensar numa
combinação de mais de uma dessas (ou outras) fontes. Uma seleção
naturalmente se baseia em critérios e responde a interesses distintos, nor-
malmente relacionados a projetos (teórico-conceituais, epistemológicos,
políticos etc.). É importante o professor propor uma reflexão profunda
sobre essa seleção dos corpora: 1. Quais razões teórico-conceituais le-
9 Sobre a opção por um corpus formado por livros didáticos, cabe ressaltar a importância de
o professor avaliar a viabilidade de introduzir diferentes livros didáticos em seu contexto de
sala de aula. Sabemos que, tanto no contexto da iniciativa privada como no da escola pública,
o professor pode encontrar barreiras (como autorização da coordenação ou direção) para apli-
car um projeto que tenha como um dos objetivos propor um estudo comparativo entre livros
didáticos. Isso se explica pelos potenciais questionamentos que tal estudo pode gerar pelos
alunos e, em alguns casos, pelos pais dos alunos sobre a qualidade do livro didático utilizado e
selecionado pela escola. É importante ressaltar também que tal avaliação, pelo professor, feita
antes do desenvolvimento do miniprojeto, faz parte do fazer do pesquisador que também faz
escolhas – e o professor tem de se ver como investigador, como pesquisador de sua própria
prática –, escolhas essas que respondem a projetos também políticos, ideológicos, econômicos,
sociais e até mesmo pessoais (FOUREZ, 1995; JAPIASSU, 1978).

207
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

vam à escolha dessas fontes específicas? 2. Que motivações políticas ou


sociais levam à escolha dessas fontes฀? Os alunos, então, nessa primeira
etapa, farão uma consulta sobre as classes semânticas dos advérbios men-
cionadas nos corpora, sobre a definição oferecida para cada classe em
cada material e sobre exemplos de ocorrências envolvendo cada classe.
A exemplo dessa primeira etapa, o professor poderia iniciar a
aula questionando os alunos sobre as ferramentas mais utilizadas por
eles para pesquisa de conteúdos teóricos e resolução de dúvidas, o que
impulsionaria uma reflexão sobre os corpora a serem escolhidos. Após
constatar as ferramentas mais usadas e as motivações para o uso, o pro-
fessor, juntamente com os alunos, poderia iniciar o trabalho de pesquisa.
Como exemplo, os alunos poderiam consultar sites e blogues destinados
ao ensino de português฀, analisando de que forma essas plataformas
conceituam os advérbios. Os alunos tomariam notas das classificações
semânticas encontradas nos sites (por exemplo, advérbios de tempo, de
modo, de intensidade, de negação etc.) bem como dos exemplos dados
pelos sites e blogues para cada uma das classes. É importante que, nessa
etapa, se construa um quadro sinótico, similar aos quadros da seção 3,
em que são listadas as classes encontradas. Havendo diferenças, deverão
ser observadas. Daí a importância de criarem um banco com a definição
de cada classe, por autor, além de exemplos prototípicos. Com base na
comparação feita, serão selecionadas as classes de advérbios recorrentes,
as quais, na segunda etapa, entrarão nos testes.
Faz-se necessário justificar a ideia de descrição das classes (de
advérbios) junto a diferentes corpora ou, no caso de professor e alunos
recorrerem a um único tipo de fonte ou gênero (p. ex., blogues de pro-
fessores – como fizemos no levantamento dos quadros 1 e 2 na seção 3),
faz-se necessário justificar a escolha de mais de um representante daquele
gênero ou fonte (p. ex., autores diferentes de gramáticas). A atividade
de descrição tipológica das classes semânticas dos advérbios se justifica
não só pela atividade de descrição tipológica em si, como também pela
elaboração de “critérios” para seleção dos materiais que serão utilizados
para a consulta das classes dos advérbios. Será interessante o professor
elaborar, junto com os alunos, os critérios para a seleção dos materiais.

208
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

O intuito é mostrar que há todo um trabalho humano na seleção dos


próprios critérios. Há critérios mais pertinentes, outros menos. Professor
e alunos podem, p. ex., se optarem pela seleção junto a blogues e sites,
levarem em conta os seguintes critérios: (i) se o blogue ou site informa
claramente qual será seu público pretendido (se voltado a estudantes
do ensino fundamental ou médio; se voltado a professores etc.); (ii) se
o blogue ou site pertence a alguma entidade que confira fidedignidade
às informações; (iii) se o blogue ou site informa a autoria dos textos
(sobretudo a autoria da “postagem” sobre classes de palavras); (iv) se o
blogue ou site é produzido no Brasil etc. Certamente haverá, dentre os
critérios selecionados – p. ex., os critérios (i-iv) e/ou outros –, critérios
mais relevantes e critérios menos relevantes. Pesquisas científicas são
feitas com base em seleção de variáveis e os pesquisadores consideram
tais variáveis tendo em vista projetos de ordem vária, segundo os epis-
temólogos (FOUREZ, 1995). Para um projeto a ser desenvolvido junto
a alunos da educação básica, tal atividade tem o mérito de forjar uma
reflexão epistemológica, reflexão essa que antecipa uma importante etapa
da investigação: a seleção do material.
Para ilustrar essa primeira etapa de trabalho, pelo menos no que diz
respeito ao trabalho tipológico de classificação das classes semânticas
dos advérbios, podem servir os quadros da seção 3, elaborados com base
em um levantamento das classes (semânticas) dos advérbios – quadro
1 – e das classes das palavras denotativas – quadro 2.
A elaboração do quadro é relevante também no sentido de, a de-
pender da quantidade dos materiais consultados, serem detectadas dife-
renças na postulação de classes. Assim, é possível que os alunos notem
diferenças no que diz respeito à classificação dos advérbios de tempo,
p. ex. Haverá classificações que considerarão, como advérbios tempo-
rais, alguns advérbios aspectuais (p. ex. frequentemente). É importante
o aluno ter em mente que a Linguística não lida necessariamente com
categorias de existência real no mundo “físico” (cf. BORGES NETO,
2004; FOUREZ, 1995); antes, os estudiosos lidam com categorias criadas
pelas teorias no contexto da construção do próprio objeto. Tais categorias,
no dizer dos epistemólogos, são atravessadas e moldadas não só pela

209
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

própria teoria como também pela cultura e pela sociedade. A relevância


de tal atividade é a sugestão de que as categorias criadas pela sociedade
refletem um (dentre tantos outros) modo de concepção e organização do
mundo. Algumas categorias são aceitas, outras não. Algumas categorias,
consideradas distintas e específicas por um esquema de classificação,
podem figurar, num outro esquema, de maneira sincrética, i.e., fundidas
numa só.
Terminada a etapa de “levantamento descritivo-tipológico das
classes de advérbios” (“primeira etapa”), parte-se, numa segunda etapa,
a uma descrição das propriedades semânticas de cada classe. Chamemos
essa etapa de “etapa da paráfrase” (pelas razões explicitadas a seguir). Os
alunos podem se basear nas definições encontradas nos corpora selecio-
nados para construir a própria definição de determinada classe, com base
no que encontram de recorrente nas caracterizações feitas por diferentes
autores. Assim, se o material utilizado define advérbio de tempo como
sendo, p. ex., “a classe que especifica/localiza, no eixo temporal, o que se
diz na frase”, o professor pedirá que os alunos expliquem essa definição
com suas próprias palavras. Seria, então, cabível uma definição do tipo:
“advérbio de tempo situa o conteúdo da frase num tempo determinado”.
A importância de tal atividade é o exercício da paráfrase, que se faz ne-
cessária em qualquer atividade acadêmica. Tendo em vista que os PCNs
sugerem que as atividades de leitura, produção e análise linguística (AL)
sejam feitas de maneira harmoniosa, o que se sugere é que o trabalho
de explicitação das categorias já explore a paráfrase. Neste caso, cabe
ao professor instruir os alunos sobre a importância de parafrasearem os
autores consultados.
A terceira etapa do projeto de pesquisa consiste na elaboração dos
testes de transitividade. Vamos chamar essa etapa de “etapa do labora-
tório”. Os testes de transitividade levarão em conta combinações das
classes de advérbios descritas (tipologicamente) pelos próprios alunos,
com base na consulta aos corpora selecionados. Os alunos podem se
dividir em grupos para tal atividade. Cada grupo elaborará testes, com
o auxílio do professor, para a determinação de uma hierarquia de ad-
vérbios. Sugere-se que sejam combinados, no espírito da metodologia

210
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

sugerida na seção 2, dois advérbios por vez, nas duas ordens possíveis:
A>B; B>A. As frases em (8-11), apresentadas na seção 2, são ótimos
exemplos a ilustrarem essa metodologia. Assim, advérbios oracionais
tendem a preferir posições mais altas (antes do sujeito, em português),
de modo que será melhor posicioná-los à esquerda (como nos exemplos
(8-11)). Advérbios predicativos tendem a se colocar ou entre o sujeito
e o verbo (V) ou entre o V e o complemento (como, por exemplo, em
“O João (sempre) compra (sempre) na FNAC” ou “O João (ainda) estu-
da (ainda) no COTUCA”). Advérbios baixos devem ser ultrapassados
pelo V, que se move, nessa língua, até uma posição medial (TESCARI
NETO, 2013) – como percebemos em “O João (*completamente) co-
meu (completamente) o bolo”, em que o advérbio completamente deve
obrigatoriamente ser colocado depois do verbo. Isso deve ser levado em
conta na elaboração dos testes, de modo que fatores externos à ordem
relativa dos advérbios não interfiram no experimento.
Ao final, os alunos deverão chegar a um estrato da hierarquia univer-
sal de Cinque (1999), apresentada na seção 2. Naturalmente lidarão com
menos classes, cerca de doze, apenas: as que identificarem nos materiais
consultados. Mas o trabalho já vale pela sua proposta de introduzir os
alunos a uma interessante metodologia científica que combina, por um
lado, uma formalização reconhecidamente importante, do ponto de vista
da epistemologia da ciência (CHOMSKY, 1986b, cap. 2; PIRES DE
OLIVEIRA, 2010), qual seja, os julgamentos de gramaticalidade, e, de
outro, uma metodologia bastante “matemática”, baseada em relações de
precedência-e-transitividade – os testes cartográficos (tal qual largamente
explorados em Cinque (1999) e colaboradores).
Assim, considerando as classes dos quadros da seção 3, pode-se
elaborar testes de precedência-e-transitividade, que permitam determinar
uma ordem dos advérbios considerados (quadro 1), de um lado, e uma
ordem das palavras denotativas (quadro 2), de outro. É possível ainda,
uma vez estabelecida a ordenação dos itens do quadro 1 e a ordenação
dos itens do quadro 2, combinar ambas as hierarquias, verificando se é
possível estabelecer uma ordenação hierárquica geral, em que as pala-
vras denotativas são integradas à estrutura da oração, entremeando as

211
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

posições dos advérbios. Tescari Neto (2017b) fez isso com os advérbios
focalizadores, ampliando, assim, a hierarquia de Cinque (1999). Vale
ressaltar que a ordem a que se chegará, ao cabo do miniprojeto, deverá
encontrar correspondência, ao menos parcialmente, com a hierarquia de
Cinque, pelo menos para os casos em que as categorias cinquenianas
correspondem às categorias descritas pelos alunos.
O miniprojeto de pesquisa, portanto, tem a importância de propor
uma reflexão sobre um fato linguístico valendo-se, para isso, de elementos
da metodologia da Cartografia Sintática. Para além dessa importância, o
miniprojeto deverá propor reflexões epistemológicas gerais (e o profes-
sor de gramática pode fazê-lo com o auxílio do professor de Filosofia,
numa perspectiva interdisciplinar) sobre o fazer em ciência: sobre a
natureza das variáveis a serem usadas, bem como os critérios utilizados
para determiná-las. Tais reflexões transcendem os limites do puramente
científico e é importante o professor insistir numa reflexão sobre as ca-
tegorias criadas em/pela Sociedade, como gênero, orientação política,
orientação sexual, classe social etc. Isso é promover a cidadania, o que
está na base dos objetivos dos Parâmetros Curriculares Nacionais e da
Base Nacional Comum Curricular.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho teve por objetivo principal sugerir uma metodologia


de trabalho complementar à das atividades do livro didático, a ser desen-
volvida na forma de miniprojeto, seguindo as diretrizes metodológicas
da Cartografia. O palco para a execução do miniprojeto são turmas dos
Ensino Fundamental II e do Ensino Médio.
Tendo feito, na seção 1, uma introdução à problematização das classes
de palavras nos estudos gramaticais, fizemos uma revisão – muito longe de
ser exaustiva – de alguns estudos sobre os advérbios (seção 2). Essa revisão
visou mostrar o ponto de vista de alguns autores, de diferentes abordagens,
acerca das dificuldades que o estudo dos advérbios e dos constituintes ad-
verbiais impõem aos estudiosos, independentemente do paradigma.

212
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Na sequência, na seção 3, foi feito um levantamento, junto a sites/


blogues diversos, das classes (semânticas) de advérbios e palavras deno-
tativas. O objetivo foi puramente descritivo, no sentido de proporcionar
uma visão geral do que se propõe que seja feito na primeira etapa do
miniprojeto sugerido na seção 4. Nossa proposta metodológica de inter-
venção didática na educação básica, no contexto do fechamento de uma
unidade didática sobre advérbios, foi apresentada na seção 4. Tal proposta,
conforme largamente argumentado, fundamenta-se na Cartografia Sin-
tática cuja metodologia combina testes de precedência-e-transitividade,
através de julgamentos de gramaticalidade. Sugerimos que professor
e alunos, no desenvolvimento do miniprojeto, reproduzissem, com as
devidas adaptações, o trabalho metodológico da Cartografia Sintática,
no estudo de um tópico gramatical: a ordem dos advérbios de classes
semânticas distintas.
A importância dessa atividade complementar, a ser desenvolvida
na forma de miniprojeto, é introduzir os alunos a técnicas de experimen-
tação típicas de teorias linguísticas, bem como fornecer aos professores
subsídios metodológicos para o tratamento de aspectos gramaticais. Para
além do miniprojeto em gramática, a ser desenvolvido, é importante,
conforme argumentamos aqui, que o professor proporcione reflexões
epistemológicas sobre o fazer científico que deverão transcender o limite
puramente descritivo/explicativo da atividade dos cientistas: sugerimos
que questões relativas à formação de sujeitos críticos podem ser, numa
perspectiva interdisciplinar, abordadas pelo professor, na realização das
atividades do miniprojeto.

REFERÊNCIAS

BARBOZA, J. S. Grammatica Philosophica da Lingua Portuguesa. Lisboa:


Typographia da Academia Real das Sciencias, 1881.
BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa. 37.ed. Rio de Janeiro: Lucerna,
2001.
BORGES NETO, J. Ensaios de filosofia da linguística. São Paulo: Parábola, 2004.
CÂMARA JR., M. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1970.

213
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

CARNEIRO, I. C. Um recorte dos advérbios em -mente: contribuição para o


estudo dos modalizadores sentencias no português. 1989. Dissertação (Mestrado) –
Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 1989.
CASTILHO, A. T. O modalizador realmente no português falado. Alfa, São Paulo,
v. 44, p. 147-169, 2000.
CHOMSKY, N. Aspects of the Theory of Syntax. Massachusetts: MIT Press, 1965.
CHOMSKY, N. Barriers. Massachusetts: MIT Press, 1986.
CHOMSKY, N. Knowledge of Language: its Nature, Origin, and Use. New York:
Praeger, 1986.
CHOMSKY, N. Derivation by Phase. In: KENSTOWICZ, M. (ed.). Ken Hale: A
Life in Language. Cambridge, MA: MIT Press, 2001. p. 1-52.
CINQUE, G. Adverbs and Functional Heads: a Cross-linguistic Perspective. New
York: Oxford University Press, 1999.
CINQUE, G. The Syntax of Adjectives. Massachusetts: MIT Press, 2010.
CINQUE, G.; RIZZI, L. The Cartography of Syntactic Structures. In: HEINE, B.,
NARROG, H. (ed.) The Oxford Handbook of Linguistic Analysis. 2. ed. Oxford:
Oxford University Press, 2010. p. 51-65.
CUNHA, C., CINTRA, L. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 2. ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
ERNST, T. B. The Syntax of Adjuncts. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
FOUREZ, G. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética da ciência.
Tradução Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edunesp, 1995.
GUIMARÃES, T. Gramática: uma reflexão sobre a língua. São Paulo: Moderna,
2017.
ILARI, R. et al. (2002) Considerações sobre a posição dos advérbios. In: Castilho,
A. T. (org.). Gramática do português falado. v. 1, 3. ed. Campinas: Editora da
Unicamp, p. 63-141.
JAPIASSU, H. Nascimento e morte das ciências humanas. RJ: Francisco Alves, 1978.
KAYNE, R. S. Some notes on comparative syntax, with especial reference to
English and French. In: CINQUE, G., KAYNE, R. S. (ed.). The Oxford Handbook
of Comparative Syntax. New York: Oxford University Press, 2005. p. 3-69.
LÉVY, P. Cibercultura. 3. ed. São Paulo: Ed. 34, 2010.
LYONS, J. Semântica. v. 2. Porto: Presença/Martins Fontes, 1979.

214
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

MACIEL, M. Grammatica Descriptiva baseada nas doutrinas modernas. Rio de


Janeiro: Livraria Francisco Alves e Cia; Lisboa/Paris: Aillaud, Alves e Cia, 1914.
NEVES, M. H. Gramática na escola. São Paulo: Contexto, 1990.
PERINI, M. A. Princípios de linguística descritiva: introdução ao pensamento
gramatical. São Paulo: Parábola, 2006.
PILATI, E. Linguística, gramática e aprendizagem ativa. Campinas: Pontes, 2016.
PIRES DE OLIVEIRA, R. A linguística sem Chomsky e o método negativo. ReVEL,
v. 8, n. 14, 2010. Disponível em: http://www.revel.inf.br/files/artigos/revel_14_a_
linguistica_sem_chomsky.pdf. Acesso em: 1 jul. 2020.
PIRES DE OLIVEIRA, R.; QUAREZEMIN, S. Gramáticas na escola. Petrópolis:
Vozes, 2016.
RAMAT, P.; RICCA, D. Sentence adverbs in the languages of Europe. In: AUWERA,
J., BAOILL, D. P. (ed). Adverbial constructions in the languages of Europe. Berlin/
New York: Mouton de Gruyter, 1998. p. 187-273.
ROCHA LIMA, C. H. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. 41. ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2001.
SANTANA, M. S. (2005) A sintaxe dos advérbios em português. 2005. Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
TESCARI NETO, A. On Verb Movement in Brazilian Portuguese: a Cartographic
Study. 2013. Tesi (Dottorato di Ricerca in Scienze del Linguaggio) – Università di
Venezia, Itália, 2013.
TESCARI NETO, A. Constituência sintática, ambiguidade estrutural e aula de
português: o lugar da teoria gramatical no ensino e na formação do professor. Working
Papers in Linguistics, Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 129-152, ago./dez. 2017a.
TESCARI NETO, A. A posição dos advérbios focalizadores na hierarquia universal.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 25, n. 1, p. 44-84, jan. 2017b.
TESCARI NETO, A. Sintaxe Gerativa: uma introdução à cartografia sintática.
Manuscrito, UNICAMP, 2020.
TESCARI NETO, A.; PERIGRINO, M. O verbo e o substantivo em livros didáticos:
contribuições da gramática gerativa às aulas de português. Revista da Abralin, v. 17,
n. 1, p. 152-191, 2018.
WEEDWOOD, B. História concisa da linguística. 2. ed. São Paulo: Parábola, 2003.

215
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

CONTRIBUIÇÕES DA AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM PARA O


ENSINO: O CASO DAS ORAÇÕES RELATIVAS

Maria Cristina Figueiredo Silva1

1. INTRODUÇÃO

Os estudos de aquisição da linguagem no Brasil são importan-


tíssimos para o mapeamento das propriedades do português brasileiro
(doravante PB) nas suas diferentes variedades. São esses estudos que
têm revelado qual é o conhecimento de língua – e de qual língua – que a
criança adquire e leva consigo para a escola. Ora, uma das funções que a
escola brasileira se coloca é a de ensinar a variedade padrão2 do português
para os alunos. No caso específico das orações relativas restritivas (que
a tradição escolar brasileira chama de orações subordinadas adjetivas
restritivas), o que está em jogo é a existência de construções diferentes na
variedade padrão e nas diversas variedades do português brasileiro, que
é a língua falada no entorno da criança desde o seu nascimento. Nosso
objetivo com o presente texto é duplo, já que quer trazer para o professor
do ensino fundamental e médio certos conhecimentos construídos pela
1 Bolsista de Produtividade 1C – CNPq, processo número 312693/2019-2.
2 Farei aqui uma abstração bastante rasa de toda a discussão em Sociolinguística a respeito dos
termos variedade, dialeto ou norma, e de todos os adjetivos a eles associados, como padrão,
culta e curta, tão bem feita por Faraco (2008), a quem remeto o leitor interessado (especifica-
mente com respeito aos conceitos de variedade culta e padrão, consulte-se BAGNO, 2003, p.
39-70 e FARACO, 2004, p. 37-62). Vou me referir ao suposto objeto de estudo das gramáti-
cas tradicionais como “variedade padrão”, contrapondo-o ao português brasileiro falado em
qualquer de suas variedades, que chamarei de “variedade vernacular”. Embora as distinções
sejam pertinentes e a abstração proposta aqui, no caso geral, passe muito longe da realidade,
para a discussão em pauta não é necessário mais do que uma divisão grosseira.

217
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

linguística teórica a respeito das ditas sentenças subordinadas adjetivas


restritivas, ao mesmo tempo em que mostra como essas sentenças se
constroem no português brasileiro, de modo a tentar explicar os problemas
encontrados na aprendizagem escolar dessas estruturas por crianças e
adolescentes dos últimos anos do ensino fundamental e no ensino médio.
O texto se organiza da seguinte forma: na seção 2, discutimos
a abordagem das gramáticas tradicionais para as sentenças relativas,
mostrando seus problemas e como as teorias linguísticas formais procu-
ram resolvê-los, além de mostrar propriedades dessas construções que
a gramática tradicional nem sonha que existem. Na seção 3, faremos
um resumo do percurso histórico das orações relativas no PB com base
no agora já clássico trabalho de Fernando Tarallo (1983), oferecendo
igualmente uma análise para as orações relativas do PB que explica as
propriedades que elas exibem. A seção 4 se debruça sobre o problema do
ensino, apresentando dados de uma pesquisa de Corrêa (1998), realizada
com alunos de todas as séries escolares sobre o domínio das estruturas
relativas da língua padrão. A seção 5 se volta especificamente para a
apresentação de uma estratégia de ensino específica, e a seção 6 fecha o
texto com uma curiosidade sobre o uso de uma construção relativa do PB.

2. GRAMÁTICA TRADICIONAL E TEORIA LINGUÍSTICA

2.1 PROBLEMAS COM A VISÃO TRADICIONAL DAS ORAÇÕES


SUBORDINADAS ADJETIVAS

Não há dúvida de que vamos à escola para aprender algo que ainda
não sabemos. A função da escola seria diminuta se o que devesse ser
aprendido já fosse de conhecimento geral na sociedade. Assim, por
exemplo, vamos à escola para aprender a ler e a escrever, habilidades que
devem ser treinadas especificamente nas crianças logo nos seus primeiros
anos de escolarização; mas também vamos à escola aprender um padrão
de língua que não está à nossa disposição no círculo familiar. O problema
é que o acesso a esse padrão de língua se faz via uma tradição de estudos
gramaticais que oferece inúmeras dificuldades à aprendizagem.

218
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Tomemos as chamadas orações subordinadas adjetivas restritivas.


Essas construções são apresentadas nas gramáticas tradicionais como
adjetivas porque “valem por adjetivos”, na formulação de Rocha Lima
(1972, p. 268); desempenham, portanto, a função de adjunto adnominal
no período em que aparecem, sempre subordinadas a um substantivo
ou pronome. Isso parece confirmado por um par de sentenças como as
de (1), em que vemos um adjetivo, em (1a), sendo substituído, em (1b),
por uma sentença:

(1)
a. Nesta foto, o homem [sorridente] é o meu irmão.
b. Nesta foto, o homem [que está sorrindo] é o meu irmão.

Contudo, como nota o mesmo Rocha Lima (1972, p. 268), nem


sempre é este o caso, porque há orações adjetivas que não se deixam
traduzir por nenhum adjetivo existente na língua, como vemos em (2):

(2)
Nesta foto, o homem [que está comendo uma melancia] é o meu irmão.

Nota o gramático que, de maneira geral, a língua nos dá a possibilida-


de de construirmos unidades maiores quando não há um item lexical que
expresse o conteúdo que desejamos veicular3. Contudo, o caso contrário
não é sequer aventado pelos gramáticos: existem adjetivos que não po-
dem ser transformados em orações adjetivas, pelo menos não ocupando
a mesma posição nem exibindo a mesma interpretação (mesmo em outra
posição), como vemos nas sentenças em (3) – o asterisco (*) indica que
a construção é impossível na língua; o jogo da velha (#) indica que a
sentença é possível, mas não com a interpretação pertinente:
3 Isso é verdade muito além do domínio das orações adjetivas; por exemplo, temos os itens
lexicais ontem e anteontem para fazer referência respectivamente ao dia que antecede hoje e
ao dia que antecede ontem, mas se quisermos fazer referência ao dia que antecede três dias
atrás, devemos dizer há quatro dias, já que não há um item, no léxico português, para expressar
esse conteúdo diretamente. Não haveria assim porque pensar que, em (2), estaríamos frente a
um caso diferente: na falta de um item lexical único para expressar o conteúdo que queremos
transmitir, construímos um sintagma ou uma sentença para fazê-lo.

219
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(3)
a. Um [velho] amigo abraçou o meu irmão.
b. *Um [que era velho] amigo abraçou o meu irmão.
c. # Um amigo [que era velho] abraçou o meu irmão.
Sempre é possível dizer que os adjetivos que podem aparecer na
posição pré-verbal são poucos e que se trata de uma exceção; de qual-
quer maneira, esse conjunto de fatos mostra que a relação entre o que a
tradição gramatical chama de adjetivos e aquilo que chama de orações
adjetivas é bem menos direta do que os nomes sugerem.
De todo modo, há pelo menos duas observações sobre essas constru-
ções, comuns a todas as gramáticas tradicionais, que parecem relevantes.
A primeira é que as orações adjetivas são introduzidas por um
pronome relativo, que, para Cunha e Cintra (2001, p. 342), são “assim
chamados porque se referem, de regra geral, a um termo anterior – o
antecedente”, o que é sem dúvida uma característica dos pronomes nas
línguas humanas. Mas os pronomes relativos fazem mais do que isso,
reconhecem os gramáticos: eles introduzem a oração ao mesmo tempo
que exercem uma função sintática dentro da sentença em que estão que
é independente da função sintática que o seu antecedente tem. Observe
(4), exemplo adaptado de Rocha Lima (1972, p. 268):
(4)
Havia um homem que era ateu.

No período acima, um homem é o objeto da sentença principal,


mas o pronome relativo que, que tem como antecedente um homem, é
o sujeito da oração adjetiva. As gramáticas, neste ponto, entendem por
bem listar todas as funções sintáticas que o pronome relativo pode de-
sempenhar (sujeito, objeto direto, objeto indireto, …), mas note-se que
cada uma dessas funções do pronome relativo se relaciona igualmente
com um conjunto de funções sintáticas desempenhadas pelo anteceden-
te na oração principal (sujeito, objeto direto, objeto indireto…), o que
resulta num conjunto grande de combinações possíveis, que os estudos
tradicionais ignoram.

220
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

A segunda observação relevante é que as orações adjetivas podem


ser classificadas como orações adjetivas restritivas, exemplificada em
(5a), caso em que limitam ou precisam a significação do nome antece-
dente; ou como orações adjetivas explicativas, exemplificada por (5b),
caso em que apenas acrescentam uma qualidade acessória, muitas vezes
genérica, ao nome antecedente:

(5)
a. O homem [que morreu] era meu vizinho.
b. O homem, [que é mortal], pensa que vai viver para sempre.

O problema aqui é que, embora a gramática tradicional reconheça a


diferença interpretativa dessas orações, não apresenta qualquer proprie-
dade formal que possa diferenciar as construções – o uso obrigatório de
vírgulas no caso de (5b) é frequentemente mencionado, mas não se sabe
bem a razão disso.
Essa breve introdução já deixa entrever que as assim chamadas
orações adjetivas têm muitas propriedades interessantes que não são
devidamente exploradas pelas gramáticas tradicionais, uma tarefa que
devemos tomar para nós agora. Para tanto, vamos assumir uma teoria
mais formalizada da sintaxe do português – a gramática gerativa – e por
isso vamos chamar as orações que são introduzidas por um pronome
relativo de orações relativas.

2.2 ALGUMAS “NOVAS” PROPRIEDADES DAS ORAÇÕES RELATIVAS

Acabamos de observar que as gramáticas tradicionais dão um


tratamento muito superficial às orações relativas, basicamente dando a
elas uma classificação mínima (restritivas versus explicativas) e listando
exemplos do conjunto de funções sintáticas que o pronome relativo pode
assumir.
Parece ter escapado às gramáticas tradicionais uma propriedade
interessantíssima da construção, que é o fato de as relativas permitirem

221
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

que duas sentenças que possuem um núcleo nominal comum possam vir
a constituir uma única sentença complexa. Esse processo pode acontecer
de dois modos, dependendo de qual oração será a sentença principal e
qual será a subordinada. Os exemplos a seguir ilustram esse ponto – em
(6) temos períodos simples, em (7) as duas possibilidades de períodos
compostos, para usar os termos tradicionais:
(6)
a. O Pedro namora [uma moça].
b. [Essa moça] estuda computação.
(7)
a. O Pedro namora [[uma moça] que estuda computação].
b. [[Essa moça] que o Pedro namora] estuda computação.

Aquilo que as gramáticas tradicionais chamam de “anteceden-


te”, vamos chamar de “cabeça da relativa”; trata-se do sintagma
que as duas orações (também chamadas de “sentenças” na literatura
gerativista mais técnica) têm em comum e que permite a elas se
transformarem em um período composto por subordinação – o que
poderíamos chamar de “sentença complexa”. Assim, em (7a), a
cabeça da relativa, uma moça, ocupa a posição sintática de objeto
direto na oração principal (que também podemos chamar de sentença
matriz) e o pronome relativo que, que retoma a cabeça da relativa,
é o sujeito da oração subordinada (que também podemos chamar de
sentença encaixada); já em (7b), a cabeça da relativa, Essa moça,
está na posição sintática de sujeito da oração principal4, e o prono-
me relativo que ocupa a posição sintática de objeto direto da oração
subordinada5.Os exemplos acima ilustram casos em que apenas as
posições de objeto direto e de sujeito, posições que não exibem ja-
4 Como bem nota um parecerista anônimo, a rigor toda a sequência Essa moça que Pedro na-
mora funciona como sujeito do verbo estudar em (7b). Ainda assim, é bastante comum que
a apresentação das funções sintáticas seja feita como está no corpo do texto, razão pela qual
mantemos a formulação dada.
5 Observe que a identidade do sintagma comum às duas orações não precisa ser total: nas
sentenças em (a) dos exemplos (6) e (7) acima temos um sintagma nominal indefinido (uma
moça), enquanto em (b) temos um sintagma definido (essa moça). O núcleo nominal é que
deve ser comum a elas.

222
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

mais uma preposição, estão no processo de relativização. Contudo,


como veremos nas próximas seções, quando a relativização coloca
em jogo um sintagma preposicionado, o PB e o português padrão
divergem no conjunto de estruturas possíveis.
Cabem aqui ainda algumas palavras sobre a diferença entre o
português padrão e o PB. A visão gramatical tradicional no Brasil vê
o PB não como uma língua em si, mas como um dialeto corrompido e
empobrecido do português padrão (que está mais próximo do português
europeu, doravante PE), essa sim, a verdadeira língua, aquela dos gran-
des autores e da grande literatura produzida na língua portuguesa. Nesta
visão, o PB não é uma língua dotada de regras como toda língua; é uma
bagunça, em que cada um faz o que quer – o que não é verdade, é claro,
como um conjunto de exemplos simples é capaz de mostrar.
Retomemos os exemplos (6). No caso de sentenças simples, é pos-
sível interrogar tanto sobre o sujeito quanto sobre o objeto direto, como
mostram as sentenças em (8) – vamos utilizar aqui a forma mais usual
de construir interrogativas do PB, assim como certos termos correntes
do vocabulário específico da variedade vernacular:

(8)
a. Quem que curte essa guria?
a’. Quem que o Pedro curte?
b. Quem que estuda computação?
b’. O que que essa guria estuda?

Porém, quando entramos no domínio das sentenças complexas, não


é mais qualquer interrogativa que pode ser construída. Por exemplo, a
partir de uma declarativa como (7a) é possível interrogar sobre o sujeito
da sentença matriz, como em (9a), mas não sobre o objeto da oração
subordinada, como mostra a agramaticalidade de (9b), representada pelo
asterisco – novamente vamos usar a variedade vernacular para mostrar
o nosso ponto:

223
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(9)
a. Quem que curte [[uma guria] que estuda computação]?
b. * O que que o Pedro curte uma guria que estuda?

Note que não se trata simplesmente de uma proibição geral de


interrogar sobre o objeto de uma oração subordinada, porque em outros
ambientes sintáticos, como em (10), essas interrogativas são perfeita-
mente possíveis:

(10)
a. O que que o Pedro disse [que essa guria estuda]?
b. O que que essa guria [que o Pedro curte] estuda?

Assim, mesmo na variedade vernacular do português brasileiro, o


que se observa é que há muitas construções possíveis, como as interroga-
tivas de (8), (9a) e (10), mas há crucialmente uma impossibilidade nessa
variedade, exemplificada por (9b). Portanto, não vale tudo nessa língua! A
conclusão que devemos tirar desta discussão é que o PB é regrado como
qualquer outra língua humana. O problema é que essas regras ainda não
estão completamente escritas, como supostamente estão as que governam
o português padrão6. Por isso, devemos nos colocar a tarefa de escrever
essas regras, de modo a mostrar que o PB é uma língua como todas as
outras línguas do mundo.
Mas como podemos fazer isso? O primeiro passo é esse que esta-
mos dando aqui: tentar descrever essa língua da maneira o mais acurada
possível, mostrando quais são as sentenças reconhecidas pelos falantes
como pertencentes ao PB. O segundo passo será mostrar quais podem
ser as estruturas gramaticais subjacentes a essas sentenças. Para isso, no
entanto, precisamos de uma teoria melhor que a da gramática tradicio-
nal. Precisamos de uma teoria formal, como a gramática gerativa, por
exemplo.

6 Essa afirmação está longe de ser verdadeira, porque na gramática tradicional faltam inúmeras
informações sobre o que são e que propriedades têm mesmo as construções do português
padrão, aquela variedade da língua que ela se dispõe a tratar.

224
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Não vamos desenvolver uma análise muito técnica aqui para não
tornar o texto incompreensível para quem não domina esse arcabouço
teórico; todavia, ficará claro que estamos usando outra forma de pensar
os fenômenos gramaticais, o que vai nos permitir avançar no conheci-
mento do que é PB, para finalmente podermos conversar sobre o que os
professores do ensino fundamental e médio podem fazer para minimizar
os problemas de aprendizagem dessas estruturas.

3. CARACTERÍSTICAS DAS ORAÇÕES RELATIVAS NO PB

3.1 O TRABALHO SEMINAL DE TARALLO (1983)

A observação de que o PB é uma língua diferente do português


europeu não é nova. Porém, determinar exatamente em que consiste essa
diferença e em que momento histórico ela começou a se construir é uma
tarefa de fôlego. Um dos mais brilhantes linguistas brasileiros, Fernando
Tarallo, foi um dos primeiros pesquisadores a se perguntar quais são os
padrões de orações relativas no PB e como esses padrões emergiram na
língua. Sua tese de doutorado, de 1983, feita nos quadros da Sociolin-
guística laboviana, contém uma descrição detalhada das estratégias de
relativização em PB, que ele distribui em três classes: a estratégia padrão,
da qual vemos um exemplo em (11a), a estratégia resumptiva ou de
pronome lembrete, que se vê em (11b), e a grande inovação do PB, cha-
mada estratégia cortadora, exemplificada por (11c) – note que é preciso
trabalhar aqui com sentenças que contenham uma preposição para que
a diferença entre a estratégia padrão e a cortadora apareça com clareza7:

(11)
a. O menino [com quem eu jogava bola] é o presidente do clube.
b. O menino [que eu jogava bola com ele] é o presidente do clube.
c. O menino [que eu jogava bola] é o presidente do clube.

7 Embora as construções sejam superficialmente idênticas, Kato e Nunes (2009) constroem


argumentos para mostrar que estratégia os brasileiros usam nos casos de relativização do
sujeito, por um lado, e do objeto, por outro. Por se tratar de uma discussão bastante técnica,
vamos omiti-la aqui.

225
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Fazendo um levantamento do uso de sentenças relativas em peças


de teatro, cartas pessoais e outros documentos desde a primeira metade
do século XVIII, o que Tarallo (1983) observa é que a estratégia padrão
preposicionada, exemplificada por (11a), se mantém num patamar alto
de uso (sempre em torno dos 90%) até a metade do século XIX, quando
começa seu declínio, e termina o século com algo em torno de 35% de
incidência; a estratégia cortadora, por outro lado, de menos de 1% na
primeira metade do século XVIII, vai aumentando gradativamente sua
presença nos dados, até dar um salto na segunda metade do século XIX,
atingindo no final desse século a estupenda marca de quase 60%. Esses
dados aparecem resumidos no Quadro 1, a seguir:
Por volta Por volta Por volta Por volta de
de 1725 de 1775 de 1825 1880
89,2% 88,1% 91,3% 35,4%
Estratégia padrão (99) (89) (73) (63)
9,9% 7,9% 1,3% 5,1%
Pronome lembrete (11) (8) (1) (9)
0,9% 4,0% 7,5% 59,5%
Cortadora (1) (4) (6) (106)

Quadro 1: Percentagem de uso das diferentes estratégias de relativização em PB em


quatro períodos de tempo (extraído de TARALLO, 1993, p. 88).

A hipótese que Tarallo (1983) apresenta para explicar essa mudança


na gramática do PB se liga a outro fenômeno de mudança em curso no
período: diacronicamente, é possível correlacionar o momento do apa-
recimento da estratégia cortadora nos processos de relativização com o
momento em que as estratégias de pronominalização estão revertendo
a tendência de uso, isto é, os sujeitos começam a ser mais preenchidos
pronominalmente (por hipótese, fruto da entrada de você no sistema pro-
nominal e a consequente perda de desinências de concordância verbal,
perda essa que não deixa mais entrever na morfologia qual é a pessoa
do discurso em jogo) e os objetos, menos preenchidos (por conta do
crescente desaparecimento dos pronomes oblíquos átonos, sobretudo

226
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

de 3ª pessoa)8. O autor nota que essa tendência começou a se desenhar


no final do século XIX, por volta de 1880, momento em que vimos, no
Quadro 1, o aumento do uso da estratégia cortadora; ora, o Quadro 2,
abaixo, mostra igualmente no final do século XIX o aumento da retenção
pronominal na posição de sujeito e o declínio da retenção pronominal nas
posições de objeto e nas posições oblíquas (isto é, aquelas que põem em
jogo uma preposição) – a exceção notável é a posição de genitivo (isto
é, as estruturas possessivas), que discutiremos mais a frente:

Por volta de Por volta de Por volta de Por volta de


1725 1775 1825 1880
23,3% 26,6% 16,4% 32,7%
SUJEITO (28/120) (41/154) (25/152) (57/174)
OBJETO 89,2% 96,2% 83,7% 60,2%
DIRETO (83/93) (51/53) (36/43) (59/98)
OBJETO 100% 100% 97,9% 79,0%
INDIRETO (49/49) (41/41) (48/49) (49/62)
90% 100% 100% 55,8%
OBLÍQUOS (18/20) (25/25) (4/4) (24/43)
94,4% 96,4% 84,3% 81,4%
GENITIVO (17/18) (27/28) (43/51) (35/43)

Quadro 2: Retenção pronominal segundo a função sintática e o período de tempo


(adaptado de TARALLO, 1993, p. 83).

Para Tarallo (1983), é um processo de elipse o responsável pelo


apagamento que dá ensejo à relativa cortadora: a partir das construções
com pronome lembrete, como (11b), aplica-se um processo de elipse
que elimina o pronome lembrete juntamente com a preposição que o
acompanha, resultando em (11c). Contudo, observa-se no Quadro 1
8 Em Tarallo (1993, p. 82), temos um exemplo desse fenômeno num trecho extraído do corpus
do NURC de São Paulo, transcrito a seguir:
(i) Eu não sei como as pessoas conseguem ouvir o João no telefone. Às vezes eu estou do lado
dele e não estou escutando ___. Parece que ele não está falando. (SP81-1-K-9/10)
Como se pode observar, em (i) todos os sujeitos do período composto aparecem preenchidos
por um pronome lexical (exceto o sujeito da oração coordenada); contudo, o objeto do verbo
escutar não é realizado por qualquer pronome.

227
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

que a estratégia com pronome lembrete sempre existiu na língua (e ela


existe em outras línguas do mundo também), mantendo-se no patamar
máximo de 10% em toda a história do português brasileiro, ao passo que
a estratégia cortadora foi de 1% para 60%, uma diferença substancial
que exige uma explicação.

3.2 UMA NOVA ANÁLISE PARA AS ORAÇÕES RELATIVAS

Ainda que a hipótese de Tarallo (1983) seja bastante interessante


porque liga o aparecimento da relativa cortadora a outro fenômeno de
mudança do PB (qual seja, a mudança nas estratégias de pronominalização
da língua), paira alguma dúvida sobre a plausibilidade dessa análise por
conta da diferença em termos de frequência das construções suposta-
mente relacionadas – a relativa com pronome lembrete como fonte das
relativas cortadoras.
E, embora não seja o caso de adentrar aqui na especificidade técnica
de sua análise, Kato (1993), outro trabalho já clássico sobre relativas,
observa que a elipse é um processo disponível em todas as línguas do
mundo para eliminar partes de estruturas, mas esse processo exige
paralelismo sintático total e identidade fonológica parcial ou total9; no
entanto, a cabeça de uma relativa com pronome lembrete é diferente do
material que é apagado pela elipse, o que também enfraquece a análise
de Tarallo (1983) – o exemplo pertinente é aquele em (11b), em que a
cabeça da relativa, o menino, é um sintagma nominal, mas o que deve
ser elidido, com ele, é um sintagma preposicional.
Kato (1993), por seu turno, faz uma proposta que igualmente
mantém uma conexão clara com outras particularidades do PB. Para
ela, as relativas cortadoras são estruturas que devem sua existência

9 O caso mais clássico de elipse é aquele em que temos identidade total entre o sintagma elidido
e aquele que é o seu “antecedente”, como em (i). Observe a estranheza da elipse quando ela
é aplicada a um sintagma que não tem identidade (categorial, no caso) com aquele que seria
o seu “par” – na primeira oração de (ii), o verbo pede um sintagma preposicional, mas na
segunda, um sintagma nominal:
(i) A Maria gosta de chocolate e o Pedro também gosta [de chocolate]
(ii) ?? A Maria gosta de chocolate e o Pedro ama [chocolate]

228
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

a um tipo de construção que, nos últimos séculos, veio se tornando


extremamente frequente no PB: o deslocamento à esquerda (LD, do
inglês left dislocation), uma construção que consiste em frontear um
constituinte da oração, com retomada pronominal no interior da sentença.
O que há de especial nessa construção é que, se o constituinte em sua
posição original interna à oração é obrigatoriamente preposicionado,
como mostra o contraste entre (12a) e (12b), quando for deslocado à
esquerda ele aparecerá sem a preposição, como exemplificado em (12c):

(12)
a. Eu falei com essa moça por telefone.
b. * Eu falei essa moça por telefone.
c. Essa moça, eu falei com ela por telefone.

A grande inovação da análise de Kato (1993), retomada em Kato


e Nunes (2009) num quadro teórico atualizado, é a hipótese de que, nas
relativas cortadoras e naquelas com pronome lembrete, a posição da
oração a partir da qual ocorre a relativização é a posição de deslocamento
à esquerda, explicando assim por que a preposição “desaparece” da vizi-
nhança do pronome relativo nas relativas cortadoras e nas com pronome
lembrete, como mostram (13a, b); a estratégia padrão, ao contrário, cons-
trói a oração relativa a partir da posição interna à oração (objeto indireto,
complemento nominal, etc…), de modo que a preposição não pode ser
“apagada” da vizinhança do pronome relativo, como se vê em (13c, d):

(13)
a. Essa é a moça [que eu falei por telefone].
b. Essa é a moça [que eu falei com ela por telefone].
c. Essa é a moça [com quem eu falei por telefone].
d. *Essa é a moça [quem eu falei por telefone].

Nessa nova análise, as relativas cortadoras não são casos de elipse,


e portanto não são derivadas diretamente das relativas com pronome
lembrete, mas são ambas derivadas de uma mesma estrutura – com
deslocamento à esquerda. A diferença entre elas é que uma contém um

229
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

pronome realizado internamente à sentença, enquanto a outra é uma


versão com pronome lembrete nulo, uma possibilidade aberta na sintaxe
do PB, fruto da erosão do sistema pronominal oblíquo átono que ocorreu
nessa língua10.
E como essa análise se desenvolve dentro de um quadro teórico
forte, há predições feitas por ela que podem ser comprovadas (como na
ciência em geral). Por exemplo, é esperado que a construção padrão não
seja compatível com a retomada pronominal dentro da sentença, visto
que a sentença com retomada pronominal é derivada por meio de uma
estratégia diferente da estratégia padrão. A predição se confirma, como
atesta a agramaticalidade da sentença (14) a seguir:

(14)
*Essa é [a moça] com que /com quem você falou com ela por telefone.

Adicionalmente, prevê-se que a construção padrão não poderá


ocorrer em certos ambientes sintáticos, mas as construções com pronome
lembrete e também as cortadoras poderão, como se pode confirmar nos
exemplos abaixo:

(15)
a. *Esse é o livro [do qual o aluno [que estava precisando] faltou].
b. Esse é o livro [que o aluno [que estava precisando (dele)] faltou].

Os dados em (15) mostram que uma relativa inserida dentro de outra


relativa não é possível quando temos a construção padrão, e por isso (15a)
é impossível, mas não há qualquer problema em relativas inseridas dentro
de outras relativas se é a estratégia cortadora ou de pronome lembrete
que está sendo usada, resultando numa sentença gramatical como (15b),
já que estruturas LD são possíveis em sentenças subordinadas do PB.

10 Como bem lembra o parecerista do capítulo, Marchesan (2012, p. 27-8) observa que, ao con-
trário do inglês, por exemplo, não é possível usarmos o pronome quem como pronome relativo
a não ser que ele seja precedido de preposição. Daí o contraste entre (13c) e (13d) no texto.

230
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

4. AS RELATIVAS NA ESCOLA

Corrêa (1998) é um trabalho detalhado sobre o que acontece nos


primeiros anos de escolarização com respeito ao uso das estratégias de
relativização. Sua metodologia para a coleta de dados é bastante simples,
mas muito engenhosa: em uma escola pública de São Paulo foi encenada
uma peça de teatro sem diálogos, na qual se representava um roubo em
uma lanchonete. Logo após a encenação, os informantes foram convi-
dados a gravar a sua versão da história, constituindo assim um corpus
de 50 narrativas orais, das quais 40 eram de estudantes de primeiro grau
(cinco de cada série da 1ª à 8ª), 5 de informantes não escolarizados e 5
de pessoas com grau universitário. Imediatamente após as gravações, os
informantes foram convidados a escrever sobre a pequena peça encenada,
resultando em 45 narrativas escritas, provenientes dos estudantes de 1ª
a 8ª série e dos informantes com grau universitário.
Observemos primeiramente os resultados das narrativas orais,
resumidos no Quadro 3 a seguir11 – o que Corrêa chama de relativas
resumptivas são as nossas relativas com pronome lembrete:

Tipo de relativa
Cortadora Sujeito/OD Resumptiva Padrão Total
(preposicionada)
Nº Percent. Nº Percent. Nº Percent. Nº Percent.
Não 3 27% 8 73% - - - - 11
esc.
1ª - - 2 100% - - - - 2
2ª - - 3 100% - - - - 3
3ª 2 40% 3 60% - - - - 5
4ª 1 33% 2 67% - - - - 3
5ª 1 11% 8 89% - - - - 9
6ª 2 18% 9 82% - - - - 11
7ª 2 13% 12 80% 1 7% - - 15
8ª 4 25% 12 75% - - - - 16

11 Não podemos perder de vista que o trabalho foi feito no final dos anos 90, quando a seriação
escolar era um pouco diferente: o 1º grau se compunha de oito séries, para serem cursadas dos
7 aos 14 anos completos; o 2º grau possuía 3 séries, cursadas dos 15 aos 17 anos completos.

231
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Sub- 15 20% 59 79% 1 1% - - 75


total
uni- - - 12 80% - - 3 20% 15
versi-
tários
TO- 15 17% 71 79% 1 1% 3 3% 90
TAL

Quadro 3: Distribuição dos tipos de relativa por série do 1º grau, não escolarizados e
falantes universitários em narrativas orais (adaptado de CORRÊA, 1998, p. 74).

Algumas generalizações são possíveis com base nesses números:


a primeira delas é que relativas de sujeito e de objeto estão presentes na
fala das crianças desde o início da vida escolar, e constituem de longe a
maioria das relativas produzidas em todas as faixas etárias. No entanto,
sua distribuição não é homogênea: o número de relativas de sujeito pro-
duzidas por todos os informantes supera em muito o número de relativas
de objeto direto, como mostra o Quadro 4, a seguir:

Sujeito Objeto direto Total


Não escolarizados 7 (88%) 1 (12%) 8
1ª /2ª 5 (100%) - 5
3ª /4ª 5 (100%) - 5
5ª /6ª 16 (94%) 1 (6%) 17
7ª /8ª 16 (67%) 8 (33%) 24
Nível universitário 10 (83%) 2 (17%) 12
Total 59 (83%) 12 (17%) 71

Quadro 4: Relativas de sujeito e objeto direto por nível de escolaridade nos dados de fala
(extraído de CORRÊA, 1998, p. 76).

Essa não é uma particularidade de crianças e adolescentes brasilei-


ros. Muitos estudos têm revelado que esse é um fato geral das línguas:
relativas de sujeito são adquiridas pelas crianças mais facilmente em

232
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

diversas línguas, como mostram Friedmann et al. (2009) para o hebreu,


Belletti et al. (2012) para o italiano e Costa et al. (2011) para o português
europeu, entre muitos outros estudos. Mesmo considerando apenas o
PB adulto, também Corrêa (1998), investigando os arquivos de cinco
capitais brasileiras no NURC, chega a números similares: de um total
de 701 sentenças relativas encontradas nesse corpus, 390 são relativas
de sujeito (56%), 177 são relativas de objeto (25%) e o restante (19%)
se distribui por todas as outras funções gramaticais.
Assim, observando novamente o Quadro 3, não é tão surpreendente
que as relativas de funções preposicionadas só apareçam no terceiro
ano12 – e, como observa Corrêa (1998, p. 78), a distribuição das funções
é bastante reduzida, pois apenas 5% diz respeito a objetos indiretos, fi-
cando os 95% restantes com as funções adverbiais; o que há de especial
aqui é que elas sempre fazem uso da estratégia cortadora. Na verdade,
há um só caso de uma relativa com pronome lembrete, um exemplo na
7ª série, que Corrêa (1998) diz ser uma relativa com pronome lembrete
em posição de sujeito (um fato muito interessante que mereceria um
estudo independente). Notemos ainda que as relativas padrão preposicio-
nadas aparecerão apenas na fala dos universitários, na faixa dos 20% de
frequência. Observe que os universitários não fazem uso de estratégias
não padrão.
O panorama é ainda mais curioso quando comparamos os números
das relativas em narrativas orais com os números de construções relativas
presentes nas narrativas escritas – o Quadro 5, a seguir, também provém
do trabalho de Corrêa (1998):

12 Note que as relativas padrão preposicionadas não aparecem na fala dos não escolarizados,
apenas as relativas cortadoras; de qualquer modo, sua preferência é por relativas de sujeito e
de objeto direto.

233
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Cortadora Sujeito/OD Padrão Total


o o o
N Percentual N Percentual N Percentual No
1ª - - - - - - -
2ª - - 13 100% - - 13
3ª 1 17% 5 83% - - 6
4ª 7 30% 16 70% - - 23
5ª 1 14% 6 86% - - 7
6ª 1 6% 13 81% 2 13% 16
7ª 3 23% 10 77% - - 13
8ª 2 5% 37 95% - - 39
Universitários - - 25 83% 5 17% 30
Total geral 15 10% 125 85% 7 5% 147
Total de PPs 15 68% 7 32% 22

Quadro 5: Tipos de relativa por nível de escolaridade em narrativas escritas


(adaptado da Tabela 4.4 de CORRÊA, 1998, p. 79).

A primeira coisa que salta aos olhos no Quadro 5 é a ausência total


de orações relativas em narrativas escritas nas crianças do primeiro ano,
mesmo se na fala relativas de sujeito e objeto são produzidas desde a
mais tenra idade. Segundo Perroni (1997, apud GROLLA, 2000), aos 2
anos e 11 meses, a criança já produz relativas de sujeito e, aos 3 anos e 2
meses, ela produz também relativas de objeto direto; ela produz mesmo
relativas de funções preposicionadas com uso de pronome lembrete aos
3 anos e um mês de vida (cf. GROLLA, 2000, para a discussão desses
fatos e uma análise para eles).
A partir do segundo ano do primeiro grau, tanto relativas de sujeito
quanto de objeto começam a aparecer nas narrativas escritas, mas as
relativas de funções preposicionadas só surgem no terceiro ano, tanto
nas narrativas orais quanto nas escritas, sempre fazendo uso da estratégia
cortadora. É apenas no sexto ano do primeiro grau que as relativas pa-

234
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

drão (isto é, relativas de posições preposicionadas) aparecem nos textos


escritos. Lembremos que nas narrativas orais elas só estão presentes na
fala do grupo de universitários. Um exemplo das relativas preposicio-
nadas da sexta série se encontra em (16) abaixo – o exemplo (4.10) de
Corrêa (1998, p. 90):

(16)
… no momento em que sua mão estava perto da carteira …

Claramente, os dados dos Quadros 3 e 5 nos colocam uma questão:


como os jovens aprendizes passam da alta frequência de relativas corta-
doras e baixa frequência de relativas padrão preposicionadas para o seu
exato inverso, observado nas porcentagens de uso dessas duas estratégias
pelos informantes universitários? A resposta deve estar no que se passa
no antigo segundo grau. Corrêa (1998) vai então investigar os textos
dessa população de aprendizes e observa algo muito interessante: os
estudantes aprendem a usar a estratégia padrão durante o último ano do
segundo grau, quando estão se preparando para o vestibular. A frequência
de relativas padrão preposicionadas vai de 7% no primeiro ano a 44% no
último ano, enquanto a frequência das relativas cortadoras cai de 93%
para 56% nesse período, como vemos no Quadro 6 a seguir:

Padrão (preposicionada) Vernacular (cortadora Total


e resumptivas)
Série No Porcentagem No Porcentagem No
Inicial 4 7% 50 93% 54
Final 4 44% 5 56% 9
TOTAL 8 55 63
Quadro 6: Emprego de relativa PP por série do 2º grau (adaptado da Tabela 5.4 de
CORRÊA 1998, p. 92).

Como nota a autora, contudo, o que esse Quadro mostra de espeta-


cular é a queda expressiva no número de relativas produzidas a partir de
funções preposicionadas – de 54 para apenas 9 –, o que significa que os
alunos procuram formular suas sentenças sem usar esse tipo de sentença;

235
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

dito de outro modo, os aprendizes procuram estratégias de esquiva dessa


estrutura que já está tão distante das estratégias vernaculares (a cortado-
ra e a resumptiva). Mas esses resultados não são tão surpreendentes se
retornarmos aos números dos universitários do Quadro 5: num universo
de 30 sentenças relativas, apenas 5 (o que equivale a 17%) são relativas
preposicionadas.
E o que os professores das primeiras séries de escola pensam de
tudo isso?

5. SUGESTÕES PARA O PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Antes de darmos qualquer sugestão para os professores do ensino


fundamental e médio, é preciso perguntar: o que os professores de por-
tuguês aceitam como padrão? Afinal, eles também são falantes de PB!
Essa pergunta também se fez Corrêa (1998) e, por isso, fez uma sondagem
com 27 professores de português que trabalham com as séries finais do
ensino médio: apresentou a eles uma lista de sentenças relativas, todas
fazendo uso de estratégias não padrão. Os resultados são muito interes-
santes: ainda que sentenças como (17a, b) – exemplos (2) e (6) de Corrêa
(1998, p. 102) – não sejam aceitas na escrita por nenhum dos professores
consultados, sentenças como (17c, d) – exemplos (8) e (9) de Corrêa
(1998, p. 103) – são aceitas por pelo menos um terço dos professores:

(17)
a. É aquela a moça que o garçom deixou a carteira em cima da mesa
que ela sentou.
b. Esses professores que a gente vai entrar em contato com eles são
novos.
c. Xadrez é um jogo que nunca pude aprender suas regras.
d. Língua extinta é aquela que não possuímos prova de sua existência13.

13 Não está em discussão o valor de verdade da sentença; obviamente, (17d) é falsa.

236
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Observemos essas orações: de fato, (17a) é uma estrutura comple-


tamente vernacular – os professores tiveram dificuldade em achar um
modo de transformá-la em uma estrutura padrão, a mesma dificuldade
que sentimos eu e você, leitor14. O que ela tem em comum com a sentença
em (17b) é o uso de um pronome lembrete, que em (17a) ocupa a posição
de sujeito da sentença mais encaixada, enquanto em (17b) o pronome
resumptivo está na posição de complemento do nome contato – talvez seja
essa a razão principal da rejeição a (17b), visto que o pronome lembrete
é visto de maneira bastante estigmatizada, sinal de variedade não culta
da língua15.
Por outro lado, as sentenças (17c, d) são exemplos de construções
genitivas, em que, segundo Tarallo (1993, p. 83), de uma maneira geral
a retenção pronominal não caiu tanto na história do PB: em todos os
períodos de tempo examinados a partir de 1725, as posições genitivas
nunca tiveram menos do que 80% de retenção pronominal, tendência
revelada nos exemplos de orações relativas acima pela presença do
pronome possessivo (suas, sua) nas duas frases. A versão padrão dessas
sentenças poderia ser algo como vemos em (18) a seguir:

(18)
a. Xadrez é um jogo cujas regras nunca pude aprender.
b. Língua extinta é aquela de cuja existência não possuímos provas.

14 Há algumas possibilidades, mas todas mudam às vezes radicalmente a estrutura e também o


significado da sentença: É aquela a moça que se sentou à mesa em que o garçom deixou a
carteira (a ordenação temporal dos eventos parece alterada) ou É aquela a moça cuja carteira
foi deixada pelo garçom em cima da mesa na qual se sentou (que atribui a carteira definiti-
vamente à moça e ainda comporta alguma ambiguidade com respeito ao sujeito de sentar-se,
inexistente na sentença original). Agradeço a Mercedes Bonorino pela ajuda com esses dados.
15 Curiosamente, a retomada por um pronome em posição sujeito da sentença relativa não é tão
marcada; embora soe vernacular, não é imediatamente identificada com a fala de pessoas sem
escolaridade e pode mesmo ser encontrada no NURC/SP, como mostra o exemplo abaixo,
extraído de Tarallo (1993, p. 86):
(i) Você acredita que um dia teve uma mulher que ela queria que a gente entrevistasse ela pelo
interfone? (SP81-J-293).
Neste exemplo, se algo é estigmatizado é a presença de um pronome tônico na posição de
objeto do verbo entrevistar, não o pronome ela na posição de sujeito da sentença relativa,
correferente com o sintagma uma mulher que está imediatamente à sua esquerda.

237
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Essas são possivelmente as construções relativas mais difíceis de


ensinar para os alunos de qualquer nível de escolaridade. E o que o tra-
balho de Corrêa (1998) nos revela é que apenas à beira do vestibular os
alunos vão se dedicar a aprender as relativas preposicionadas; observe,
todavia, que não há um só exemplo no corpus de relativas com cujo(a)
(s): apenas aventureiros se lançariam numa construção como essa.
Mas o que nós, professores de português, podemos fazer concreta-
mente para reverter esse estado de coisas?
Não há receitas mágicas; mas há um certo conjunto de estratégias
de ensino que podemos utilizar para tentar tornar essas estruturas mais
transparentes para alunos de qualquer idade. Retomemos uma observação
feita no início deste trabalho sobre uma propriedade muito interessante
das orações relativas: elas permitem que duas sentenças que possuem
um núcleo nominal comum possam vir a constituir uma única sentença
complexa – e há dois modos de construir essa sentença complexa, de-
pendendo de qual oração escolhemos como principal e qual escolhemos
como subordinada. Os exemplos (6) e (7), retomados abaixo como (19)
e (20), ilustram esse ponto: em (19) temos as duas sentenças indepen-
dentes que exibem um núcleo nominal comum – no caso, moça – e em
(20) estão os dois modos diferentes de organizar a sentença complexa16:

(19)
a. O Pedro namora [uma moça].
b. [Essa moça] estuda computação.

(20)
a. O Pedro namora [[uma moça] que estuda computação].
b. [[Essa moça] que o Pedro namora] estuda computação.

Aqui temos casos em que o PB e o português padrão não exibem


diferenças visíveis, porque o sintagma comum entre as orações é o sujeito

16 Observe que, do ponto de vista da comunicação, essas duas maneiras de obter uma sentença
complexa não são em absoluto idênticas, cada uma carregando seu próprio conjunto de pres-
supostos, por exemplo.

238
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

de uma sentença (19b) e é o objeto direto da outra (19a). Portanto, em


(20) não há problema nenhum para ser resolvido durante a escolarização.
Os problemas começam a aparecer quando o sintagma que as orações
têm em comum está em uma posição preposicionada, como vemos em
(21) abaixo:

(21)
a. Eu gostei desse livro.
b . O livro foi escrito pela Maria.

Aqui, a primeira sentença exibe o sintagma comum na posição de


objeto indireto (no caso regido pela preposição de), enquanto a segunda
sentença tem na posição de sujeito o sintagma que será relativizado. O
que podemos esperar dessa combinação? (22) abaixo responde nossa
questão – em (22a) temos a cabeça da relativa, desse livro, na posição de
objeto indireto da oração principal (toda a sequência desse livro que foi
escrito pela Maria é, na realidade, o objeto indireto do verbo gostar) e
o pronome relativo, que, funcionando como o sujeito da sentença subor-
dinada; já em (22b, c) a cabeça da relativa, o livro, introduz a sequência
que está na posição sintática de sujeito da oração principal (o livro de
que eu gostei e o livro que eu gostei (dele) em (22b) e (22c) respectiva-
mente), e o pronome relativo exerce a função sintática de objeto indireto
em ambos os casos:

(22)
a. Eu gostei desse livro [que foi escrito pela Maria].
b. O livro [de que eu gostei] foi escrito pela Maria.
c. O livro [que eu gostei (dele)] foi escrito pela Maria.

(22a) não oferece problema porque, como o sujeito por hipótese


nunca exibe preposição, não há diferença entre o português padrão e o
PB; contudo, (22b, c) são exemplos de um contexto gramatical em que o
pronome relativo, nos termos da gramática tradicional, exerce a função
sintática de objeto indireto que, por hipótese, é sempre preposicionado,

239
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

e aí aparece a diferença entre a versão padrão com a preposição acom-


panhando o pronome relativo, em (22b), e a versão vernacular, sem
preposição ao lado do pronome relativo (embora a retomada pronominal
possa ser feita via um pronome lembrete na posição canônica do objeto
indireto, caso em que a preposição reaparece), em (22c).
Problema similar teremos em relativas com outros sintagmas pre-
posicionados:

(23)
a. O Pedro viu a Maria no parque.
b. O parque faz exposição de flores.

(24)
a. O Pedro viu a Maria no parque que faz exposição de flores.
b. O parque em que/onde o Pedro viu a Maria faz exposição de flores.
c. O parque que/onde o Pedro viu a Maria faz exposição de flores.

Novamente, (24a) não oferece problema porque o pronome relativo


funciona como sujeito na sentença relativa e, por isso, que é um pronome
relativo adequado tanto no português padrão quanto no PB. Contudo,
quando o pronome relativo funciona, sintaticamente, como adjunto ad-
verbial da relativa, a diferença entre essas duas (variedades de) línguas
aparece com clareza: para o português padrão, a preposição obrigatória
no contexto de (23a) deve aparecer em (24b) se o relativo usado for que,
podendo estar ausente apenas se o pronome relativo escolhido for onde.
Por outro lado, no PB, a preposição não é requerida com que, e onde é
também uma possibilidade de realização aqui (cf. 24c). Aliás, cabe aqui
uma observação: onde é hoje um relativo considerado “culto”, que apa-
rece nas mais variadas funções; não é difícil encontrarmos frases como
o tempo onde eu cresci era diferente mesmo em falas de pessoas com
grau universitário.
O caso dramático, no entanto, é quando o sintagma comum às duas
sentenças ocupa a posição de genitivo (isto é, está numa estrutura pos-
sessiva) numa das sentenças, pois este é o caso em que será necessário

240
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

usar um pronome relativo exclusivo desta função gramatical: o relativo


cujo (e suas flexões).

(25)
a. O pai do menino morreu.
b. Eu encontrei o menino.

(26)
a. Eu encontrei o menino [cujo pai morreu].
b. O pai do menino [que eu encontrei] morreu.

Portanto, o problema com cujo é que as condições em que estamos


autorizados a usá-lo são extremamente restritas: podemos usar cujo
apenas quando temos sintagmas expressando posse (em sentido largo, é
verdade, pois inclui relações familiares e relações de parte-todo, dentre
outras), com a cabeça da relativa sendo o “possuidor” do sintagma ori-
ginal. Assim são construções possíveis17:

(27)
a. o livro do menino > … menino cujo livro …
b. o pai do menino > … menino cujo pai …
c. os personagens do filme > … filme cujos personagens …
d. o cabo do pente > … pente cujo cabo …

Portanto, a estratégia de ensino mais eficiente será montar e desmon-


tar as estruturas muitas vezes na frente dos alunos, chamando a atenção
para aquilo que não está presente na língua que eles falam, mas faz parte
da língua escrita exigida deles nos anos subsequentes de escola. Os pro-
fessores podem pensar em atividades mais lúdicas com alunos menores
(como jogos de encaixe) ou atividades mais desafiadoras com alunos
maiores (como a de contar uma história usando apenas cinco períodos
compostos por subordinação).

17 Não são possíveis construções em que o nome preposicionado por de expressa, por exemplo,
material de que é feito (vaso de cerâmica > *… cerâmica cujo vaso …) ou assunto (livro de
química > *… química cujo livro…).

241
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

De toda a discussão apresentada, algumas conclusões saltam aos


olhos do leitor. As que gostaríamos de frisar aqui são basicamente duas:
primeiramente, que o PB é uma língua dotada de gramática como qualquer
outra. Há lógica e sistematicidade interna nela, o que nos permite prever
o que nossos alunos acharão natural no português padrão que estamos
tentando lhes ensinar na escola; permite igualmente prever onde haverá
dificuldade na aprendizagem. A segunda observação diz respeito à ne-
cessidade de atualização e pesquisa por parte do professor: atualização
no sentido de o professor acompanhar o que os estudos linguísticos têm
fornecido como descrição e análise do PB; e pesquisa no sentido de o
professor procurar construir modos de implementar esses conhecimentos
em sala de aula.
Finalmente, noto, com muitos outros linguistas brasileiros, que
as orações relativas cortadoras estão completamente implementadas no
PB, de tal modo que é muito difícil nos darmos conta delas nos discursos
que nos rodeiam, incluindo os discursos da mídia, da publicidade ou dos
políticos.
O caso dos políticos é particularmente notável porque muitos deles
gostam de “falar difícil” ou “falar bonito”, como se diz popularmente.
Um bom exemplo é o do ex-presidente Michel Temer. No seu discurso
de posse18, podemos observar seu gosto por sapecar uma mesóclise na
fala sempre que a oportunidade se lhe apresenta:

(28)
É que nenhuma dessas reformas alterará os direitos adquiridos pelos
cidadãos brasileiros. Como menos fosse sê-lo-ia pela minha formação
democrática e pela minha formação jurídica.

18 Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/veja-integra-do-discurso-de-michel-te-
mer-19296029 (acessado em 28 mar. 2020). Agradeço imensamente a Maria José Foltran por
ter chamado a minha atenção para esse dado, fornecendo-me a referência.

242
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

No entanto, como todos os brasileiros, o senhor ex-presidente faz


relativas cortadoras:

(29)
[…] todos nós compreendemos o momento difícil, delicado, ingrato
que estamos todos passando.

REFERÊNCIAS

BAGNO, M. Por que “norma”? Por que “culta”? In: BAGNO, M. (org.). A norma
oculta: língua & poder na sociedade brasileira. São Paulo: Parábola, 2003. p. 39-70.
BELLETTI, A.; FRIEDMANN, N.; BRUNATO, D.; RIZZI, L. Does gender make a
difference? Comparing the effect of gender on childen’s comprehension of relative
clauses in Hebrew and Italian. Lingua, v. 122, n. 10, p. 1053-69, ago. 2012.
CAMARA JR., J. M. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1970.
CORRÊA, V. R. Oração relativa: o que se fala e o que se aprende no português do
Brasil. 1998. Tese (Doutorado) – Unicamp, Campinas, 1998.
COSTA, J.; LOBO, M.; SILVA, C. Subject-object asymmetries in the acquisition of
Portuguese relative clauses: Adults vs. children. Lingua, v. 121, n. 6, p. 1083-1100,
abr. 2011.
CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001 [1987].
FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola,
2008.
FARACO, C. A. Norma-padrão brasileira: desembaraçando alguns nós. In: BAGNO,
M. (org.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2004. p. 37-62.
FIGUEIREDO SILVA, M. C. Uma história das relativas do português brasileiro. In:
GALVES, C.; KATO, M; ROBERTS, I. (org.). Português brasileiro: uma segunda
viagem diacrônica. Campinas: Editora da Unicamp, 2019. p. 283-312.
FRIEDMANN, N.; BELLETTI, A.; RIZZI, L. Relativized relatives: types of
intervention in the acquisition of A-bar dependencies. Lingua, v. 119, n. 1, p. 67-
88, jan. 2009.
GROLLA, E. Aquisição da periferia esquerda da sentença em português brasileiro.
2000. Dissertação (Mestrado) – Unicamp, Campinas, 2000.

243
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

KATO, M. Recontando a história das relativas em uma perspectiva paramétrica.


In: ROBERTS, I.; KATO, M. (org.). Português brasileiro: uma viagem diacrônica.
Campinas: Editora da Unicamp, 1993. p. 223-261.
KATO, M.; NUNES, J. A uniform raising analysis for standard and nonstandard
relative clauses in Brazilian Portuguese. In: NUNES, J. (org.). Minimalist essays on
Brazilian Portuguese syntax. Amsterdam: John Benjamins, 2009. p. 76-98.
MARCHESAN, A. C. As relativas livres no português brasileiro. 2012. Tese
(Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.
ROCHA LIMA, C. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1972.
TARALLO, F. Relativization Strategies in Brazilian Portuguese. 1983. Tese
(Doutorado) – University of Pennsylvania, Philadelphia, 1983.
TARALLO, F. Sobre a alegada origem crioula do português brasileiro: mudanças
sintáticas aleatórias. In: ROBERTS, I.; KATO, M. (org.). Português brasileiro: uma
viagem diacrônica. Campinas: Editora da Unicamp, 1993. p. 35-68.

244
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

O EFEITO DA LACUNA PREENCHIDA FRENTE A FATORES


DISCURSIVOS: TEORIA, EXPERIMENTAÇÃO E REFLEXÕES
SOBRE O PENSAMENTO LINGUÍSTICO E A METACOGNIÇÃO
NA EDUCAÇÃO1

Amanda de Moura
Marcus Maia

1. INTRODUÇÃO

O objetivo principal da linguagem humana é, sem dúvida, a organi-


zação do pensamento que permite estruturar e enunciar as mensagens que
usamos na troca de informações. Mal começamos a falar, formulamos
perguntas. Temos curiosidade sobre tudo o que nos cerca, perguntamos
aos nossos pais sobre tudo, incluindo os significados das palavras. Per-
guntamos: “o que é uma mariposa?”, “qual o seu nome?”, “quem é ele?”,
“por que o céu é azul?”, “onde você mora?”. Perguntar faz parte da nossa
natureza, assim como compreender aquilo que nos foi perguntado a fim
de que possamos dar respostas plausíveis àquelas perguntas e, assim,
realizar trocas de informações bem-sucedidas.
Para fazer perguntas, precisamos montar estruturas gramaticais
em nossas mentes apenas mensuráveis em unidades de milésimos de
segundo. Por conta desse curso temporal microscópico dos processos
gramaticais, as formulações linguísticas na compreensão e na produção
são, portanto, em grande parte, subconscientes. Perguntas como “Que
1 Os dois experimentos psicolinguísticos inéditos reportados nesse capítulo foram desenvolvidos
no âmbito da dissertação de mestrado da primeira autora, sob a orientação do segundo autor.

245
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

livro o professor escreveu?”, ou até mesmo perguntas sintaticamente


mais complexas, como “Que livro o professor que te deu aula escreveu?”
são produzidas rapidamente, embora sua derivação não seja trivial, fre-
quentemente requerendo deslocamento de constituintes. Em português
brasileiro (PB), há duas construções de perguntas-QU, uma ocorrendo
quando o sintagma-QU está em sua posição de origem (in situ) e outra
ocorrendo quando há uma movimentação do sintagma-QU para a periferia
esquerda da oração, deixando um vestígio em sua posição de origem,
conforme análise clássica na teoria gerativa (cf. CHOMSKY, 1977).
Observem-se as seguintes frases:

(1) O professor escreveu um livro.


(2) O professor escreveu que livro?
(3) Que livroi o professor escreveu __i?

A frase em (1) é uma declarativa afirmativa e as frases em (2)


e (3) são duas possíveis formas de se fazer uma pergunta-QU sobre
o argumento interno do verbo [escreveu]. Em (2), o sintagma-QU
[que livro] está em sua posição de origem e, em (3), este sintagma
está deslocado para o início da oração, deixando um vestígio em sua
posição de origem, caracterizando, dessa forma, um movimento para
posição não argumental ou A-Barra. Comparando-se as duas questões,
pode-se observar que o sintagma [que livro] pode ocorrer tanto no fim
quanto no início da sentença, sem que haja uma alteração substancial
do sentido, além do fato de que a pergunta com o sintagma-QU in situ
é mais marcada em sua distribuição, sendo analisada como pergunta-
eco, geralmente usada quando não se ouviu bem ou quando se quer
confirmar uma afirmação prévia.
Para ocorrer um Movimento A-Barra, como em (3), “Que livro o
professor escreveu?” o elemento movido precisa estar licenciado para tal
movimento, ou seja, precisa receber caso acusativo, tornando-se visível
para receber papel temático, sendo ambos atribuídos pelo verbo. Observe
a representação em árvore sintática na Figura 1:

246
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Figura 1: Árvore sintática de pergunta-QU extraída da posição de objeto

Na frase “Que livro o professor escreveu?” o elemento-QU [que


livro] recebeu caso acusativo e papel temático de tema do verbo, estando
assim licenciado para mover-se para a periferia esquerda da oração, o
SPEC de CP, posição não argumental (A-barra), em que um constituinte
não poderia ser licenciado a não ser pela cadeia com a posição de geração
original, como é o caso da estrutura aqui analisada. Contudo, essa extra-
ção do sintagma-QU de sua posição original nem sempre é possível, pois
alguns contextos, como ilhas sintáticas, bloqueiam este tipo de extração.
A condição de Subjacência (cf. CHOMSKY, 1973) propõe que um mo-
vimento de QU não pode atravessar mais de um nó fronteira, como um
CP ou um DP. Rizzi (1982) posteriormente propõe a parametrização dos
nós fronteiras que poderiam variar nas línguas entre o CP ou o IP. Nas
frases abaixo, pode-se observar o efeito de subjacência em PB:

(4) Pedro gosta do professor [que escreveu o livro].


(5) * O que Pedro gosta do professor que escreveu?
(6) O professor escreveu um livro.
(7) * O que o professor escreveu um?

247
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

A frase em (4) contém uma oração relativa e, ao tentar-se extrair


um elemento de dentro da oração relativa, ocorre uma agramaticalidade,
como em (5). A frase em (6) é uma declarativa afirmativa e, ao tentarmos
extrair um elemento de um DP, também ocorre agramaticalidade, como
ilustrado em (7). Dessa forma, as perguntas em (5) e (7) são agramaticais,
pois violam o Princípio de Subjacência.
Como vimos, existem estruturas gramaticais que possibilitam a
extração de um sintagma-QU e outras estruturas que impossibilitam essa
extração. Contudo, ao processarmos uma frase para compreensão, nos
deparamos primeiramente com o elemento-QU na periferia esquerda da
oração. Como, naquela posição, o constituinte não pode ser interpretado,
precisamos encontrar ao longo da leitura da frase uma lacuna na posição
estrutural de onde este elemento tenha sido extraído, estabelecendo-se a
relação entre a cabeça e o pé da cadeia que licencia a sentença.

2. O PRINCÍPIO DO ANTECEDENTE ATIVO

Como lembramos acima, processamos frases em uma velocidade


tão rápida (milésimos de segundo) que essa unidade ínfima de tempo
dos processos gramaticais impossibilita que exerçamos uma consciência
sintática plena a respeito do que ouvimos ou lemos. Segundo a Teoria
do Garden-Path – TGP (cf. FRAZIER; FODOR, 1978; FRAZIER,
1979; FRAZIER; RAYNER, 1982), modelo clássico de processamento
de frases, a compreensão sentencial se daria em dois estágios, a saber,
parsing e interpretação. Na fase inicial, constrói-se a estrutura sintática
que poderá, então, ser interpretada. No curso temporal do processamen-
to, o parsing sintático precede, portanto, a interpretação semântica, que
dele depende para se realizar efetivamente. Premidas pelas constrições
da memória de curto prazo, as condições de licenciamento gramatical
precisam ser satisfeitas “como primeiro recurso” (as a first resort) para
garantir a interpretação da frase. Entretanto, quando nos deparamos com
uma frase interrogativa-QU, o primeiro sintagma que precisamos analisar
é o elemento-QU deslocado, disparando-se um processo de busca ativa
da posição de onde ele se originou, já que naquela posição inicial, como

248
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

vimos, ele não poderia ser interpretado. Como já dissemos acima, quan-
do um sintagma-QU está deslocado na periferia esquerda da oração, ele
está em uma posição não argumental, que não atribui caso e nem papel
temático. Essa busca ativa tem, portanto, o objetivo de encontrar rapi-
damente, no interior da oração, a posição em que o elemento deslocado
poderia receber caso e papel temático.
De acordo com o Princípio do Antecedente Ativo – PAA (CLIF-
TON; FRAZIER, 1989), ao se deparar com uma estrutura-QU, pressio-
nado pelos limites da memória de trabalho para resolver logo a análise
da construção, o parser dispara uma busca pelo primeiro local onde o
sintagma-QU possa ter sido originado. Observem-se, por exemplo, as
seguintes frases apresentadas pelos autores, neste artigo seminal:

(8) Who did Fred tell Mary left the country?


(9) Whoi did Fred tell ____i Mary left the country?
(10) Whoi did Fred tell Mary ____i left the country?

Em perguntas como (8), existem duas possibilidades de processar


a construção gramatical, a saber, (i) postulando-se o elemento-QU do
inglês [Who] como objeto indireto do verbo [tell] ou (ii) como sujeito de
[left]. A frase em (8) é, portanto, estruturalmente ambígua. Entretanto,
estudos experimentais revelaram que há, em frases assim, uma preferência
dominante para resolver a ambiguidade estrutural como em (9), em que
o elemento-QU é postulado como o objeto indireto do verbo [tell]. De
acordo com o Princípio do Antecedente Ativo (PAA), o parser postula
o elemento QU na primeira lacuna possível, e se esta posição estiver
ocupada, ele permanece em sua busca de uma lacuna para postular esse
elemento. Em consonância com o PAA, os autores observaram que a
frase (9) é, de fato, mais facilmente processada do que a frase (10).
O Princípio do Antecedente Ativo pode ser pensado como um
princípio de processamento sintático em que se pode conceber a sa-
tisfação de condições gramaticais como requisito de primeiro recurso,
permitindo que se identifique logo a lacuna em que um elemento-QU
na periferia esquerda pode ser interpretado. Mas, o que ocorre se essa

249
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

primeira posição estrutural possível já estiver ocupada por um outro


sintagma? A busca deverá continuar até que o processador encontre uma
posição estrutural que permita o licenciamento do elemento movido.
Entretanto, a literatura de processamento descobriu que a surpresa e
a frustração de não resolver logo o licenciamento do Sintagma-QU,
bem como, muitas vezes, a necessidade de reanálise da frase, ampliam
significativamente as latências de parsing, ocasionando um fenômeno
de processamento gramatical denominado de Efeito da Lacuna Preen-
chida (Filled Gap Effect).

3. O EFEITO DA LACUNA PREENCHIDA

Segundo a TGP, ao processarmos uma frase, na compreensão, in-


tegramos incrementacionalmente cada palavra que lemos ou ouvimos à
estrutura em construção, até chegarmos à árvore sintática que permitiria
a interpretação da frase. Entretanto, ao fazermos essa integração, utili-
zando uma métrica de economia em função das restrições da memória de
trabalho, pode ocorrer de montarmos uma estrutura que não dá conta de
analisar apropriadamente a frase, levando-nos a garden-path, o que pode
obrigar a uma reanálise estrutural. Conforme vimos na seção anterior,
de acordo com o Princípio do Antecedente Ativo, ao se deparar com um
elemento-QU em posição não argumental, o parser sintático, premido
pela memória de trabalho, dispara uma busca por uma lacuna onde o
elemento possa receber caso e papel temático e, assim, permitir a inter-
pretação correta da sentença processada. Trata-se de um efeito sintático
tão automático e reflexo que há mesmo evidências de que a projeção da
lacuna acontece hiperativamente no curso temporal do processamento,
antes mesmo de verificar-se a transitividade do verbo (cf. OMAKI et
alii. 2015). A busca rápida por uma posição argumental para licenciar
a sentença faz com que se projete uma lacuna como primeiro recurso,
mesmo sem acesso à informação lexical do verbo. Isso tem levado os
pesquisadores a concluir que há a projeção de lacuna antes mesmo de
se verificar se a mesma está preenchida por outro elemento, daí o efeito
surpresa.

250
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

O Efeito da Lacuna Preenchida (ELP) foi estudado primeiramente


por Stowe (1986). A autora observou que ocorre um efeito surpresa, ele-
vando o custo da leitura, quando o processador sintático se depara com
um outro elemento preenchendo a posição que poderia ter sido ocupada
pelo antecedente ativo. Observe as seguintes frases analisadas pela autora:

(11) My brother wanted to know who Ruth will bring us home to at


Christmas.

(12) My brother wanted to know if Ruth will bring us home to Mom


at Christmas.

A frase em (11) contém o sintagma-QU [who] do inglês, sendo


assim, como já vimos, ele ativamente projeta lacuna. Por outro lado,
a frase em (12) não contém um elemento-QU, e sim o complemen-
tizador [if], que é gerado na base e, portanto, não projeta lacuna. O
segmento crítico analisado em ambas as orações foi o pronome [us].
Os resultados apontaram que, em (11), os participantes do experimento
de leitura automonitorada levaram tempos médios significativamente
mais elevados para ler a palavra [us] do que na frase em (12). Isso
ocorreu porque em (12) não houve necessidade de projetar lacuna após
o verbo [bring], pois [if], gerado na base, não demanda a projeção de
lacuna. Neste caso, não havia, portanto, um antecedente ativo na ora-
ção. Por outro lado, em (11) [who] era o antecedente ativo e projetou
uma busca por uma lacuna, estando a primeira lacuna possível após o
verbo [bring]. Contudo, o pronome [us] estava preenchendo a lacuna
que poderia permitir o licenciamento de [who], o que levou a um efei-
to surpresa e a uma reanálise da estrutura, causando, assim, tempos
médios mais elevados para o processamento da palavra [us] em (11),
comparativamente a (12). A autora chamou esse efeito surpresa de
Efeito da Lacuna Preenchida (Filled Gap Effect).
O ELP vem sendo detectado em diversas línguas desde os trabalhos
seminais de Crain e Fodor (1985) e de Stowe (1986). O efeito já foi
demonstrado também em Português Brasileiro, conforme reportado em

251
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Maia (2014a). O autor realizou experimentos de leitura automonitorada


e de rastreamento ocular em que foram analisadas as seguintes frases:

Figura 2: leitura da mesma frase nas duas condições por 10 sujeitos

Na Figura 2, podemos observar que o sintagma [a tese] aparece


em duas posições diferentes, que destacamos com um círculo preto na
imagem: uma após o segundo verbo e a outra após o primeiro verbo.
Estas frases exemplificam perguntas-QU em que o Sintagma QU ocorre
na periferia esquerda, em posição não argumental. No mapa de calor que
ilustra a leitura das frases, podemos observar que o mesmo sintagma
[a tese] foi mais dificilmente processado na segunda frase do que na
primeira, pois há na segunda frase maior intensidade e quantidade de
fixações na área crítica circulada. Isso ocorreu pois o sintagma [a tese],
nesta segunda frase, estava preenchendo uma possível lacuna para o
sintagma-QU [Que livro].
Em Maia, Moura e Souza (2016) foi investigado se o ELP ocorreria
em contextos sintáticos em que não poderia haver projeção de lacunas,
como em ilhas sintáticas, além de investigar se haveria influências se-
mânticas manipulando a plausibilidade dos sintagmas-QU. Os autores
investigaram frases como:

(13) Que livro o professor que escreveu a tese perdeu na sexta no parque?
(14) Que copo o professor que escreveu a tese perdeu na sexta no parque?
(15) Que livro o professor escreveu a tese e perdeu na sexta no parque?
(16) Que copo o professor escreveu a tese e perdeu na sexta no parque?

252
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Os autores analisaram frases com orações relativas, como as frases


(13) e (14) e frases sem ilhas sintáticas, como as frases (15) e (16). Nas
frases em (14) e (16), o elemento-QU é implausível em relação à seleção-s
do verbo [escreveu], enquanto, nas frases (13) e (15), há plausibilidade.
Os resultados demonstraram que o ELP não se instancia em ilhas sintáti-
cas, mas somente em frases como (15) e (16). Concluiu-se que, tanto os
elementos plausíveis como os elementos implausíveis, apesar de serem
antecedentes ativos, não projetaram lacuna dentro de ilhas sintáticas, ou
seja, o ELP não viola o Princípio de Subjacência. Além disso, fora de
ilhas sintáticas, os autores observaram que ocorre o ELP tanto nas orações
plausíveis quanto nas orações implausíveis, ou seja, o efeito sintático
não se subordina inicialmente às restrições de plausibilidade semântica.
Os estudos até aqui revistos comprovam que o ELP é, portanto, um
fenômeno estritamente sintático, se instanciando, inclusive onde o ante-
cedente seria semanticamente implausível de ser postulado. Colocou-se,
nesse ponto do programa de pesquisa, a questão da influência do contexto
discursivo no processamento de frases: seriam tais contextos capazes de
impedir este efeito sintático?

4. O DISCURSO EM PERGUNTAS-QU

Pesetsky (1987) propõe que exista uma diferença crucial em which-


phrases, como [Which book], e perguntas-Wh, como [What]. Para o
autor, Which-phrases são Discourse-linked (D-linked), ou seja, elas
têm referências discursivas, enquanto perguntas-Wh não têm referências
discursivas (Non D-Linked). O autor argumenta que, quando ouvimos
perguntas como “Que livro o professor leu?”, uma gama de tipos de livros
é acionada na mente do ouvinte e que, se o ouvinte não tem noção de
que tipo de livro está sendo falado, a pergunta pode soar estranha. Por
outro lado, essa estranheza não aconteceria com perguntas como “O que
o professor leu?”, pois o sintagma [O que] não exige referencialidade no
discurso. O ouvinte não terá em mente um grupo de livros em particular
a que o falante possa estar se referindo. Um elemento-QU não referencial
(Non D-Linked) não carrega consigo especificidades semânticas como

253
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

elementos-QU referenciais (D-linked) carregam. O autor apresenta


alguns estudos e defende que QU-referenciais e não referenciais sejam
computados de maneiras diferentes. Segundo Pesetsky (1987), sintagmas-
QU não referenciais respeitam o Princípio de Subjacência, enquanto os
sintagmas-QU referenciais podem não respeitar esse princípio.
Boxell (2012) retoma Pesetsky (1987), apresentando o seguinte
quadro, ilustrando construções no inglês das quais um elemento-QU não
referencial não pode ser extraído e das quais um elemento-QU referen-
cial poderia ser extraído, apesar das mesmas ilhas sintáticas. Observe o
quadro a seguir:

Figura 2: Violações de ilhas sintáticas em perguntas-QU referenciais e não referenciais

Como apresentado na Figura 2, frases como “Which lady did the


doctor wonder what he should send to ___?”, o sintagma [Which lady]
não passaria pelo CP intermediário.. Dessa forma, o elemento-QU refe-
rencial se demonstraria possível de violar o Princípio de Subjacência.
Com o objetivo de reavaliar o que foi proposto por Pesetsky (1987),
Boxell (2012) realizou um experimento de leitura automonitorada a fim
de averiguar se o processamento de QU referenciais realmente se dá de
uma maneira não convencional em dependências de longa distância. O
autor analisou frases como as seguintes:

(17) - D-Linking; + Representação intermediária


The manager wondered who the secretary claimed [CP who that the
new salesman had pleased who] in the meeting.

254
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(18) - D-Linking; - Representação intermediária


The manager wondered who the secretary’s claim about the new sales-
man had pleased who in the meeting.

(19) +D-Linking; + Representação intermediária


The manager wondered which gentleman the secretary claimed [CP
which gentleman that the new salesman had pleased which gentleman]
in the meeting.

(20) +D-Linking; - Representação intermediária


The manager wondered which gentleman the secretary’s claim about
the new salesman had pleased which gentleman in the meeting.

Ao analisar a palavra [pleased] em cada uma das 4 condições, obser-


vou-se que a leitura do segmento [pleased] foi mais rápida nas frases em
(17) e (19), do que nas frases (18) e (20), pois em (17) e (19) o elemento-
QU foi reativado na posição de CP intermediário. Segundo o autor, tanto
QU referenciais quanto não referenciais passam pelo CP intermediário
pois a leitura desta palavra foi muito mais rápida em condições em que
havia uma representação intermediária. Assim, Boxell (2012) refuta a
declaração de Pesetsky de que sintagmas-QU referenciais não passam
por CPs intermediários. Por outro lado, Boxell (2012) observou uma
diferença de tempos de leitura nos segmentos [that/about]. Em frases em
que havia CP intermediário, esses segmentos foram lidos mais lentamente
do que nas que não haviam essa construção. Entretanto, essas palavras
são diferentes e pertencem a classes gramaticais diferentes, além de [that]
marcar o início de uma nova oração e [about] não. Contudo, os autores
decidiram comparar as sentenças com CP intermediário em que havia
ou não elementos-QU referenciais e puderam observar que construções
com QU não referenciais foram lidas mais lentamente do que quando as
construções continham QU referenciais. O autor conclui que sintagmas-
QU referenciais podem ter um efeito facilitador em construções de alta
complexidade sintática.
Nos experimentos a serem apresentados na próxima seção, investi-
gamos o ELP manipulando fatores discursivos. No primeiro experimento,

255
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

de leitura automonitorada, colocamos uma frase contextual adiante da


pergunta-QU, procurando aferir se e em que momento o discurso po-
deria influenciar o processamento. No segundo experimento, agora de
rastreamento ocular, verificamos se um elemento-QU com referência
discursiva poderia exercer influência no processamento e se seu papel na
postulação de lacunas seria o de facilitar ou de dificultar esta postulação.

5. EXPERIMENTO 1

O Experimento 1 pretendeu investigar a influência discursiva no


processamento sintático. Utilizamos o ELP como diagnóstico, ou seja,
manipulamos os contextos sintáticos em que há postulação de lacunas
de objetos após verbos transitivos com interrogativas-QU referenciais.
Utilizou-se, nesse primeiro experimento, a técnica de leitura automo-
nitorada não cumulativa, com pergunta interpretativa ao final de cada
frase. Dessa forma, investigamos a atuação do processador sintático nas
fases de processamento on-line e de interpretação off-line. As variáveis
dependentes do experimento foram duas, a saber, os tempos médios de
leitura (on-line) do segmento crítico e os índices de resposta às questões
interpretativas finais (off-line). Organizamos os materiais testados em um
design 2x2, que cruza o fator Lacuna (preenchida (P) / não preenchida
(N)) com o fator Discurso (elemento-QU (Q) / objeto (O)), como pode
ser observado no seguinte conjunto de frases:

Condições experimentais (segmento crítico em negrito):

(21)
Discurso enfocando DP QU e lacuna preenchida
Discurso: O professor acabou de escrever um livro
PQ – Que livroi / o professor / escreveu/ a tese / sem ler ti / durante /
a pesquisa?
O professor escreveu a tese. SIM

256
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(22)
Discurso enfocando DP QU e lacuna não preenchida
Discurso: O professor acabou de escrever um livro
NQ – Que livroi / o professor / escreveu ti / sem ler / a tese / durante /
a pesquisa?
O professor escreveu o livro. SIM

(23)
Discurso enfocando DP Preenchedor e lacuna preenchida
Discurso: O professor acabou de escrever uma tese
PO – Que livroi / o professor / escreveu/ a tese / sem ler ti / durante /
a pesquisa?
O professor escreveu a tese. SIM

(24)
Discurso enfocando DP Preenchedor e lacuna não preenchida
Discurso: O professor acabou de escrever uma tese
NO – Que livroi / o professor / escreveu ti / sem ler / a tese / durante /
a pesquisa?
O professor escreveu o livro. SIM

Como pode ser observado no conjunto de frases experimentais acima,


antes de os participantes se depararem com a frase segmentada alvo, eles
liam uma frase (discurso) que atribuía contexto à pergunta-QU. Frases
como (21) e (22) tinham o foco do discurso, DP [um livro], no elemento-
QU [Que livro]. Nas frases (23) e (24), o foco do discurso, o DP [uma tese]
está no elemento crítico [a tese], que exerce a função de objeto direto do
verbo “escrever”, em (23), e do verbo “ler” na frase (24). Em (21) e (23),
o segmento crítico [a tese] preenche a lacuna após o verbo “escrever”; por
outro lado, em (22) e (24), a lacuna após o primeiro verbo não está pre-
enchida, e o segmento crítico [a tese] encontra-se após o segundo verbo.
O objetivo desse experimento foi o de verificar a influência que um
contexto poderia exercer em perguntas-QU sintaticamente complexas
e, dessa forma, verificar se as operações sintáticas, de fato, ocorreriam
como primeiro recurso, antes de elementos discursivos, como previsto

257
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

por modelos do tipo Syntax-first. A hipótese sendo a de que poderia


ocorrer uma influência do discurso durante o processamento de frases e
uma interação entre o conhecimento prévio dado pelo discurso e o Efeito
da Lacuna Preenchida.

5.1 MATERIAIS

Neste experimento, foram utilizados 16 conjuntos com 4 frases


experimentais em cada um. Além disso, foram introduzidas 32 frases
distratoras. Foram desenvolvidas 4 versões em que as frases foram dis-
tribuídas em esquema de quadrado latino. Assim, cada participante leu
16 frases experimentais e 32 frases distratoras.

5.2 PARTICIPANTES

32 alunos da graduação da UFRJ participaram voluntariamente,


sendo 13 do sexo masculino e 19 do sexo feminino.

5.3 PROCEDIMENTO

No experimento, os participantes liam primeiramente a frase discursiva


por inteiro e, após a leitura, pressionavam a tecla de espaço para chamar
a pergunta-QU que vinha segmentada em telas diferentes. Por tratar-se de
um experimento de leitura automonitorada não cumulativa, os participantes
viam somente um sintagma na tela e apertavam o espaço para chamar o
próximo sintagma, e o sintagma anterior desaparecia. Portanto, os parti-
cipantes somente viam um sintagma por vez. Ao final de cada pergunta,
o participante lia uma afirmativa sobre a frase anterior e, nesse momento,
o participante deveria apertar a tecla verde, se a frase estivesse de acordo
com a pergunta lida anteriormente, ou a tecla vermelha, se a afirmativa não
estivesse de acordo com a pergunta lida. As frases foram apresentadas em
um laptop MacBook Air, com a tela de 13”. A fonte utilizada foi Chicago,
tamanho 48. O programa utilizado foi Psyscope (COHEN,, MACWHIN-
NEY, FLATT; PROVOST, 1993), versão X B57.

258
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

5.3.1 Resultados e análises

Realizamos uma ANOVA bifatorial por sujeitos nas medidas on-line


na área crítica de cada condição e pudemos observar efeitos principais
altamente significativos de LACUNA (F(1,90) = 30,2 p<0,000001***) e
de DISCURSO (F(1,90) = 26,3 p<0,000002***). Entretanto, não houve
interação entre os dois fatores (F(1,90) = 0,052 p<0,819693).
Como podemos observar no Gráfico 1, a comparação das condições
PQ x NQ gerou diferenças altamente significativas no teste-t (t(90)=6,70
p< 0,0001***), o que apontou que houve o Efeito da Lacuna Preenchida
em contextos sintáticos em que o discurso focava no elemento-QU. Da
mesma forma, a comparação entre PO x NO gerou diferenças significati-
vas (t(90)=4,28 p< 0,0001***) na direção esperada. Assim, foi observado
que houve o Efeito da Lacuna Preenchida em contextos sintáticos em
que o discurso focava no objeto preenchedor da lacuna após o primeiro
verbo na fase on-line de avaliação.

Gráfico 1: Tempos Médios de Leitura da área crítica nas 4 condições

259
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Como pode ser observado no Gráfico 1, a comparação das condições


PQ x PO gerou diferenças altamente significativas no teste-t (t(90)=4,45
p< 0,0001***), o que apontou que houve influência do discurso quan-
do a lacuna após o primeiro verbo estava preenchida, assim o discurso
funcionou como um elemento facilitador quando o discurso focava no
elemento-QU. Ao realizarmos a comparação entre NQ x NO, também
obtivemos diferenças significativas no teste-t (t(90)=2,59 p< 0,0112).
Assim, foi observado que o acesso tardio ao elemento ativado no discurso
causou maiores tempos de processamento em contextos sintáticos em que
o discurso focava no objeto que só então aparecia após o segundo verbo
na fase on-line de avaliação.
Após realizarmos a análise do tempo de leitura do segmento crítico
durante o processamento, fase on-line, analisamos o índice de respostas
das declarativas finais. Desse modo, na fase off-line do processamento, os
participantes acertaram mais nas condições em que a declarativa final era
exatamente igual à frase do discurso apresentada anteriormente, como em:

(25)
O professor acabou de escrever um livro.
NQ – Que livro o professor escreveu sem reler a tese durante a pesquisa?
O professor escreveu o livro

Entretanto, os participantes erraram mais quando a frase de discurso


era diferente da declarativa final, como em:

(26)
O professor acabou de escrever uma tese.
NO – Que livro o professor escreveu sem reler a tese durante a pesquisa?
O professor escreveu o livro.

Note-se que as perguntas QU e as declarativas finais em (25) e (26)


são exatamente iguais, o único diferencial entre elas são as frases do
contexto discursivo introduzidas previamente. Entretanto, os índices de
erro nas frases NO, como em (26), foram muito superiores aos índices

260
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

de erros nas frases do tipo NQ, como em (25). Portanto, os participantes


erraram mais nas condições em que a declarativa final divergia do dis-
curso apresentado antes da frase segmentada, como pode ser observado
na Tabela 1, que mostra o percentual de erro em cada condição.

PQ 67% PQ x NQ X2 = 56, p= 0,0001****


NQ 18% PO x NO X2 = 38,5, p= 0,0001****
PO 20% PQ x PO X2 = 51, p= 0,0001****
NO 59% NQ x NO X2 = 43, p= 0,0001****
Tabela 1: Percentual de Tabela 2: Teste Chi-quadrado com
erro nas 4 condições os índices de erros

Dessa forma, podemos observar que os resultados da fase interpre-


tativa do processamento apontam que houve o que se chama na literatura
de processamento de efeito good-enough (cf. CHRISTIANSON et al.,
2001). Realizamos um teste de Chi-quadrado e obtivemos diferenças
significativas entre as 4 condições, como pode ser observado no teste
de Chi-quadrado apresentado na Tabela 2.
Os resultados off-line foram diferentes da nossa previsão inicial,
pois não esperávamos os altos índices de erros nas condições PQ e NO.
Foi solicitado aos participantes que respondessem as declarativas finais
de acordo com a interrogativa-QU lida anteriormente, mas os resulta-
dos indicaram que as frases contextuais permaneceram na memória de
trabalho, levando o leitor a um efeito de saciação ao ler a interrogativa
QU. Contudo, crucialmente, esse efeito só pode ser notado na fase off-
line do processamento.

5.3.2 Discussão

Nossos resultados trouxeram evidências de que, embora não impeça


a ocorrência do ELP, o discurso exerce efeitos no processamento. Os
resultados desse experimento, portanto, nos levam a concluir que, na

261
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

fase inicial do processamento, podem até ocorrer efeitos semânticos,


mas estes têm uma magnitude inferior aos efeitos sintáticos. Quando o
foco do discurso estava no elemento-QU, o discurso funcionou como
um elemento facilitador no processamento. A expectativa gerada no
discurso pode ter sido saciada pelo antecedente ativo. Entretanto, nas
condições em que o discurso focou no objeto que preenchia a lacuna, o
discurso dificultou o processamento e maiores tempos de leitura foram
obtidos quando o elemento ativado no discurso apareceu tardiamente.
Dessa forma, podemos observar que, manipulando o foco do discurso,
podemos ter diferentes resultados. Pode-se concluir, então, que o foco
do discurso pode funcionar como um elemento facilitador. Entretanto,
crucialmente, a magnitude dessa facilitação não é forte o suficiente para
impedir um efeito sintático tão reflexo, como o ELP.
Na fase interpretativa, acertou-se mais nas condições em que a
declarativa final era semelhante ao contexto inicial devido, como disse-
mos, a um efeito good-enough. Além disso, houve um efeito principal de
discurso na fase interpretativa, posterior ao parsing sintático. A chamada
Hipótese Good-enough foi primeiramente postulada a partir de dados
da língua inglesa por Christianson et al. (2001) e, posteriormente, foi
também testada em português brasileiro por Ribeiro (2008). De acordo
com a Hipótese Good-enough, o processamento de frases pode ocorrer
de forma parcial, e as representações semânticas podem ocorrer de forma
incompleta. Assim, uma primeira análise inicial inadequada do parser,
mesmo que reanalisada e corrigida, pode ainda persistir na memória de
trabalho de modo a influenciar na interpretação final do processamento,
como teria ocorrido no experimento de leitura automonitorada.
Neste Experimento 1, pudemos, portanto, especular que a interpre-
tação inicial do contexto dado antes da pergunta-QU teria persistido na
memória de trabalho, de forma a influenciar a interpretação da declarativa
final que estava relacionada à pergunta-QU, e não ao contexto inicial.
Sendo assim, conclui-se que houve um efeito good-enough e que, por
conta de tal efeito, as declarativas finais foram interpretadas de forma
superficial.

262
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

6. EXPERIMENTO 2

Neste segundo estudo, pretendeu-se verificar uma possível interação


do discurso com o Efeito da Lacuna Preenchida por meio da técnica de
rastreamento ocular. Esta técnica consiste em registrar as fixações e a mo-
vimentação dos olhos durante a leitura das frases. Dessa forma, podemos
capturar os movimentos sacádicos progressivos e regressivos do olhar.
Além disso, pode-se registrar em milésimos de segundo a duração das
fixações oculares e o número total de fixação em determinado segmento.
Neste experimento, buscou-se aferir a influência dos traços discursivos
no QU referencial em contexto de preenchimento de lacuna, compara-
tivamente a condições em que o sintagma QU não é referencial. Assim
como no Experimento 1, buscamos investigar a atuação do processador
sintático nas fases de processamento on-line e de interpretação off-line
de frases. As variáveis dependentes são o tempo da primeira fixação do
olhar no segmento crítico, a duração total de fixação e o índice total de
fixação de olhar (medidas on-line), e os índices de acertos nas declarativas
finais (medidas off-line). Organizamos os materiais testados em um design
2x2 cruzando o fator Lacuna (preenchida (P) / não preenchida (N)) com
o fator Discurso (QU referencial (R) / QU não referencial (NR)), sendo
essas as variáveis independentes. Observe o modelo de um conjunto de
frases experimentais:

(27)
Lacuna preenchida e QU referencial
PR – Que livroi o professor escreveu uma tese sem reler ti durante a
pesquisa?
O professor escreveu uma tese. SIM

(28)
Lacuna não preenchida e QU referencial
NPR – Que livroi o professor escreveu ti sem reler uma tese durante
a pesquisa?
O professor escreveu um livro. SIM

263
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(29)
Lacuna preenchida e QU não referencial
PNR – O quei o professor escreveu uma tese sem reler ti durante a
pesquisa?
O professor escreveu uma tese. SIM

(30)
Lacuna não preenchida e QU não referencial
NPNR – O quei o professor escreveu ti sem reler uma tese durante a
pesquisa?
O professor escreveu uma tese. SIM

Frases como (27) e (28) têm o elemento-QU referencial [Que livro],


e frases como (29) e (30) têm o elemento-QU não referencial [O que].
Além disso, frases como (27) e (29) têm a lacuna após o primeiro verbo
“escreveu” preenchida pelo SN [uma tese]; por outro lado, frases como
(28) e (30) têm a lacuna após o primeiro verbo disponível, o sintagma
[uma tese] aparece após o segundo verbo. O objetivo do experimento 2 foi
o de verificar se sintagmas QU referenciais teriam um efeito facilitador
no processamento de frases sintaticamente complexas, como previsto
por Boxell (2012), e, caso tivessem, se essa facilitação poderia impedir o
Efeito da Lacuna Preenchida. A partir do que foi encontrado no primeiro
experimento, a hipótese desse experimento foi a de que haveria influência
do discurso durante o processamento de frases, mas que esta influência
não seria forte o suficiente para impedir o ELP.

6.1 MATERIAIS

No Experimento 2, foram utilizados 16 conjuntos de frases experi-


mentais, contendo 4 frases em cada conjunto. As frases foram as mesmas
que as do Experimento 1, fazendo apenas algumas adaptações necessárias.

264
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

6.2 PARTICIPANTES

Participaram do segundo experimento 32 voluntários, tendo eles


assinado um termo de consentimento livre e esclarecido. Todos os par-
ticipantes eram estudantes da graduação da UFRJ.

6.3 PROCEDIMENTO

Neste experimento foi utilizada a técnica de rastreamento ocular,


programando-se o experimento no programa Tobii Studio 3.1, que ge-
rencia o eye-tracker Tobii TX300, em que foi rodado o teste. No Expe-
rimento 2, os participantes liam uma frase inteira (não segmentada) e,
após a leitura, pressionavam uma tecla para fazer aparecer uma tela com
frase declarativa de interpretação final. As frases foram apresentadas
em um monitor de 23” e nele estava acoplado o rastreador ocular, que
monitorava as fixações e os movimentos sacádicos dos participantes em
milésimos de segundo.

6.4 RESULTADOS E ANÁLISES

Uma ANOVA bifatorial por sujeitos foi realizada para obtenção


das medidas on-line na área crítica de cada condição. Ao analisarmos
a duração total de fixação (ms) nas 4 condições, pudemos observar um
efeito principal de LACUNA (F(1,112) = 346 p<0,000001***) e de
DISCURSO (F(1,112) = 11,4 p<0,001015**) e também houve interação
entre os dois fatores (F(1,112) = 10,4 p<0,001660**).
Como pode ser observado no Gráfico 4, ao compararmos as
condições PRxNPR, obtivemos diferenças significativas no teste-t
(t(112)=14,57 p< 0,0001***), o que mostra que houve o Efeito da Lacuna
Preenchida quando o elemento-QU era referencial, como já era esperado.
Ao compararmos PNRxNPNR, também obtivemos diferenças altamente
significativas (t(112)=14,50 p< 0,0001), o que indica que ELP ocorre
mesmo quando o elemento-QU não é referencial.

265
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Gráfico 4: Duração Total de Fixação (ms) na área crítica nas 4 condições

Também foi verificado se haveria diferenças de processamento com


a mesma estrutura, mas com sintagmas QU diferentes, como pode ser
observado no Gráfico 4. Deste modo, comparamos as condições PRxPNR
e obtivemos diferenças altamente significativas no teste-t (t(112)=6,78
p< 0,0001***), o que evidencia que há diferenças de processamento
quando a lacuna está preenchida e o elemento é QU referencial ou não
referencial. Podemos observar no Gráfico 4 que os participantes levaram
mais tempo para processar o segmento crítico quando o elemento QU era
referencial. Dessa forma, podemos concluir que este elemento dificulta
o processamento de uma frase com estrutura sintática complexa e que,
portanto, o elemento discursivo exerce influência no processamento
sintático, mas não de modo forte o suficiente para impedi-lo, como
foi demonstrado anteriormente. Ao realizarmos a comparação entre
as condições NPRxNPNR, não obtivemos diferenças significativas no
teste-t (t(112)=0,23 p< 0,8147). Este resultado nos leva a concluir que o
discurso dificulta o processamento em construções sintaticamente com-
plexas, como o ELP, mas não exerce influência quando a construção é
sintaticamente simples em perguntas-QU no Português Brasileiro.

266
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Também foi analisado o número total de fixações progressivas e


regressivas, e os resultados indicaram um efeito principal de LACUNA
(F(1,106) = 567 p<0,000001***) e de DISCURSO (F(1,106) = 14,8
p<0,000201**), porém não houve interação entre os dois fatores (F(1,106)
= 1,09 p<0,299714).
Ao compararmos as condições PRxNPR, obtivemos diferenças alta-
mente significativas no teste-t (t(106)=12,10 p< 0,0001***), como pode
ser também observado no Gráfico 5. Esse resultado indica que houve o
Efeito da Lacuna Preenchida quando o elemento-QU era referencial. O
mesmo ocorreu quando comparamos as condições PNRxNPNR no teste-
t (t(106)=29,18 p< 0,0001***), pois também ocorreu o ELP quando o
elemento-QU não era referencial.

Gráfico 5: Índice do Número Total de Fixação (ms) na área crítica nas 4 condições

Como pode ser observado no Gráfico 5, ao compararmos as condi-


ções em que a lacuna estava preenchida PRxPNR no teste-t (t(106)=3,71
p< 0,0003***), obtivemos diferenças significativas e, no Gráfico 5,
podemos ver que, quando o elemento-QU era referencial, as pessoas
tiveram maior dificuldade de processar do que quando o elemento-QU
não era referencial. Entretanto, ao compararmos as condições em que não

267
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

havia o preenchimento de lacuna, NPRxNPNR, no teste-t (t(106)=1,28


p< 0,2047), não obtivemos diferenças significativas. Isso demonstra que,
em contextos de complexidade sintática, o elemento-QU não referen-
cial pode facilitar o processamento, mas quando o contexto não impõe
complexidade sintática, não se observam diferenças no processamento.
Após a análise das medidas reflexas do processamento, analisamos
a interpretação que os participantes fizeram das frases experimentais.
Nesta fase off-line do processamento, analisamos os índices de acerto
dos participantes. Observe os resultados na tabela 3:

Condições Acertos (%) Erros (%)


PR 68,2 31,8
PNR 87,2 12,8
NPR 85,6 14,4
NPNR 90,1 9,9

Tabela 3: Percentual de acertos e erros em cada condição.

Como podemos observar na Tabela 3, os índices de acertos foram


bem altos em todas as condições, o que indica que os participantes es-
tavam atentos à tarefa e interpretaram corretamente todas as condições
em sua grande maioria. Contudo, na condição PR o número de erros
foi significativamente mais elevado do que nas outras condições. Isso
demonstra que, quando ocorreu o ELP e o elemento-QU era referencial,
a dificuldade de processamento na fase inicial se estendeu para a fase
interpretativa do processamento.

6.5 DISCUSSÃO

Os resultados do Experimento 2 demonstram que o discurso tem


um papel importante no processamento, pois ao manipularmos os
elementos-QU atribuindo-lhes maior carga semântica, como em [Que

268
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

livro] em comparação com [O que], que tem menor carga semântica,


podemos observar alterações no modo de processarmos frases sintatica-
mente complexas. No entanto, crucialmente, também pudemos observar
que, apesar de exercer influência no processamento, o discurso não é
capaz de, sozinho, impedir que ocorra o ELP, ou seja, o discurso não
sobrepuja o efeito sintático. Na fase off-line, a maioria dos participantes
obteve alto índice de acertos em todas as condições, o que demonstra
que, independentemente das condições apresentadas, os participantes
foram capazes de interpretar corretamente a maioria das frases expe-
rimentais. Entretanto, houve maior índice de erros quando o QU era
referencial e a lacuna era preenchida, ou seja, a informação discursiva
influenciou na interpretação final da pergunta. Dessa forma, contextos
sintáticos mais complexos podem fazer refletir tal complexidade na fase
interpretativa, causando maiores índices de erros em comparação com
as outras condições.
Os resultados apresentados nesse experimento fornecem novas
evidências em favor de modelos do tipo Syntax-first do processamento
de frases. Com base nos resultados obtidos podemos, inegavelmente,
observar em ação um parser estritamente sintático na primeira fase de
processamento. Contudo, também houve efeitos da semântica nas medi-
das on-line, mas de magnitude inferior ao efeito sintático. Se o discurso
guiasse o processamento, ele seria capaz de impedir o ELP, mas isso
não ocorreu. Pode-se, portanto, concluir que, nas frases investigadas no
presente estudo, a sintaxe guiou o processamento em sua fase inicial,
ainda que sem ignorar completamente as informações semânticas. Essas
informações não têm, no entanto, magnitude suficiente para impedir
o efeito sintático. Esses resultados trazem evidências de que o parser
atua rápida e deterministicamente, embora que de forma não totalmente
encapsulada, pois observaram-se efeitos semânticos na fase inicial do
processamento de frases, assim como é proposto pela Teoria da Depen-
dência Local apresentada por Gibson (2000).

269
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

7. SUGESTÕES PARA O PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Nas seções acima, apresentamos e discutimos teórica e experimen-


talmente questões centrais para a Teoria Gramatical e para as disciplinas
Sintaxe Experimental e Processamento de Frases. Em Maia (2015) e em
Maia (2019), reflete-se sobre os recortes epistemológicos dessas três
áreas, cada uma delas com ontologia própria, mas, evidentemente, em
interface estreita, como pretendemos que tenha sido apreciado na discus-
são levada a efeito sobre os estudos sobre construções-QU desenvolvidos
até aqui. Nesta seção, pretendemos apontar brevemente a relevância e a
urgência não só de se associar o pensar teórico ao pensar experimental,
mas também de se buscar ativamente translacionar intravisões desses
estudos para o ensino.
Como revisto em Pilati (2017), Kenedy (2018), Scliar-Cabral (2018),
entre muitos outros estudos, a educação básica está em profunda crise
no Brasil. Evidentemente, há um sem número de fatores por trás dessa
crise e não temos a pretensão de resenhá-los aqui, mas tão somente pre-
tendemos rascunhar algumas possibilidades de renovação de conteúdos
e métodos que poderiam contribuir para vir a impactar positivamente a
educação. Pouquíssimos, se algum, dos importantes achados da Teoria
Gerativa e da Psicolinguística Experimental, de fato, conseguiram chegar
às escolas. Chomsky (1988) fala de uma capacidade científica inata que
todos temos de buscar soluções originais para problemas cujas respostas
desconhecemos. Essa capacidade, que é parte da dotação biológica hu-
mana poderia ser propulsionada a partir da reflexão sistemática e criativa
sobre questões linguísticas, conforme, entre outros pesquisadores, Maya
Honda (1994) procura demonstrar em seu artigo intitulado Linguistic
Inquiry in the science classroom: It’s science but it’s not like a science
problem in a book. Honda propõe que engajar alunos em atividades que
exijam pensar linguisticamente (thinking linguistically) para realizar
análises de dados linguísticos, comparar hipóteses e teorias, possa ser
uma experiência apropriada para o desenvolvimento da capacidade de
formação científica (science forming capacity). Em Honda e O’Neal
(2017) reveem-se as ações desse projeto de mais de duas décadas, que

270
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

tem obtido resultados extremamente positivos nos Estados Unidos,


considerando-se que, uma vez que os alunos são expostos a questões às
quais se propõe que respondam através da pesquisa, da coleta e análise
cuidadosa de dados e da criação de teorias e hipóteses sobre os fenômenos
linguísticos, eles se tornam capazes de transferir esses raciocínios para
outras esferas da cognição, passando a entender os fenômenos naturais
e sociais mais profundamente.
Nesse sentido, tomando em consideração o quadro de questões e
métodos revistos neste artigo, cremos ser pertinente sugerir o desenvol-
vimento de atividades na educação básica que possam despertar o mesmo
entusiasmo de pensamento que motiva os linguistas em suas análises.
Como dissemos na introdução deste capítulo, perguntas são naturais
desde a infância. Assim, por exemplo, fenômenos de movimento sintá-
tico, como os revistos nas diferentes construções interrogativas acima,
podem ser ponto de partida para alimentar o pensar linguisticamente,
com participação ativa dos alunos. Comparar frases com o QU in situ
como (2) com frases com o QU movido, como (3), pode ser o início de
uma aula extremamente interessante, em que a intuição gramatical dos
alunos pode ser provocada para tentar explorar ativamente as diferenças
de distribuição no uso dessas construções. O efeito surpresa da lacuna
preenchida, como demonstrado na Figura 2, também poderia ser iden-
tificado e analisado em aulas, usando-se não apenas as intuições dos
alunos, mas até mesmo os mapas de calor de rastreamento ocular. Esses
equipamentos, verdadeiros microscópios dos processos visuais, como
as fixações e movimentos oculares na leitura, estão cada vez mais aces-
síveis e, como já sugerimos em outro artigo (cf. MAIA, 2017), poderão
vir a se tornar em muito pouco tempo tão presentes nas escolas quanto
os microscópios, que já são encontrados há décadas nos laboratórios de
ciências usados para aulas de Biologia, por exemplo. Os rastreadores
oculares têm o potencial de propiciar metacognição direta da competência
leitora dos alunos e também permitem a formulação de hipóteses a serem
testadas, motivando os alunos a se engajarem em processos de descoberta,
como cientistas que, de fato, potencialmente são. Em Maia (2017), Maia
(2018) e em Maia (2019b), por exemplo, discutimos diferentes aspectos

271
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

do uso de rastreadores oculares na escola, a partir de projeto levado a


efeito durante dois anos com alunos do Ensino Fundamental II em escola
pública do Estado do Rio de Janeiro.
Note-se que as questões gramaticais discutidas nesse artigo são
ainda centrais para se refletir sobre a arquitetura da linguagem humana.
Construções como as apresentadas nos exemplos de (21) a (24), em que
um contexto discursivo antecede um período, podem ser objeto de aulas
em que se pratique o “pensar linguisticamente” liberto de amarras norma-
tivas ou de terminologias e nomenclaturas a serem decoradas. Estimular
os julgamentos intuitivos dos alunos pode ser um passo importante para
desenvolver sua autoestima e motivação, demonstrando na prática que
o mais importante do saber linguístico não vem de normas externas,
mas está dentro de cada um. Também diferenças entre construções QU
referenciais e não referenciais, como as ilustradas nos exemplos de (27)
a (30), podem ser objeto de aulas em que os alunos podem ser protago-
nistas, comparando suas intuições que seriam objeto, ao final da aula,
de sistematizações de bons professores, preparados para o pensamento
linguístico e não para repetirem normas, como se a linguagem fosse um
código legislativo. Questões como ilhas sintáticas e a interface sintaxe/
semântica, discutidas no presente capítulo, sem dúvida também oferecem
todas um ponto de partida interessantíssimo para desenvolver a curiosida-
de e a capacidade científica natural dos alunos e poderão, em um futuro
que esperamos próximo, estarem, de fato, presentes nas práticas escolares.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente capítulo, discutimos construções interrogativas-QU e


reportamos experimentos psicolinguísticos com o objetivo de explorar
a interface entre o Processamento de Frases e a Sintaxe Experimental,
buscando evidências empíricas para a investigação de uma questão
central da arquitetura da linguagem humana, a saber, o curso temporal
das operações da sintaxe em relação a fatores semânticos e discursivos.
Revisamos estudos sobre o chamado Efeito da Lacuna Preenchida e, em
seguida, reportamos dois experimentos inéditos. No primeiro experimen-

272
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

to, observamos que o discurso tem um papel importante no processamento


sintático, mas não foi capaz de impedir a magnitude de um efeito sintático
extremamente forte, como o Efeito da Lacuna Preenchida. Esse estudo nos
levou a concluir que a forma como manipulamos o foco discursivo pode
aumentar ou diminuir a dificuldade com que processamos determinadas
palavras, mas essa influência é, de fato, muito pequena comparada ao
automatismo dos fatores sintáticos, no curso temporal da leitura.
No segundo experimento, manipulamos referências discursivas
dentro de sintagmas e não mais entre orações, como no experimento
anterior. Neste experimento, também obtivemos evidências de que o
discurso pode influenciar o processamento. Crucialmente, no entanto,
demonstramos, através de rastreamento ocular, que a referencialidade
do Sintagma-QU também não é capaz de impedir o ELP.
Finalmente, na seção 7 do capítulo, procuramos explorar a interface
educacional, sugerindo possibilidades de ação pedagógica que poderão
ter lugar em uma escola renovada, capaz de, efetivamente, formar cida-
dãos pensantes e criativos, através do exercício do pensar linguístico e
de ferramentas metacognitivas, como a técnica de rastreamento ocular.

REFERÊNCIAS

BOXELL, O. Discourse-linking and long-distance syntactic dependency formation


in real-time. In: BOONE, E.; LINKE, K.; SCHULPEN, M. (ed.). Proceedings of
ConSOLE XIX. Leiden: SOLE, 2012, p. 151-175.
CHOMSKY, N. Conditions on transformations. A Festschriff for Morris Halle, ed. by
S.R. Anderson & P.Kiparsky. 232-86. New York: Holt, Rinehart & Winston. 1973.
CHOMSKY, N. On Wh-movement. In: Formal syntax. Culicover, P.W., Wasw,
T. & Akmajian, A. (eds.), pages. San Francisco, London: Academic Press. 1977.
CHOMSKY, N. Language and Problems of Knowledge: The Managua Lectures.
Cambridge: The MIT Press, 1988.
CHRISTIANSON, K.; HOLLINGWORTH, A.; HALLIWELL, J.; FERREIRA, F.
Thematic Roles Assigned along the Garden Path Linger. Cognitive Psychology, v.
42, n. 4, p. 368–407, jun. 2001.

273
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

CLIFTON, C.; FRAZIER, L. Comprehending sentences with long-distance


dependencies. In: TANENHAUS, M. K.; CARLSON, G. (ed.). Linguistic structure
in language processing. Dordrecht: Kluwer Academic Press, 1989. p. 273-317.
COHEN, J. D.; MACWHINNEY, B.; FLATT, M.; PROVOST, J. PsyScope:
An interactive graphic system for designing and controlling experiments in the
psychology laboratory using Macintosh computers. Behavior Research Methods,
Instruments, and Computers, v. 25, n. 2, p. 257-271, 1993.
CRAIN, S.; FODOR, J. D. How can grammars help parsers? In: DOWTY, D.;
KARTTUNEN, L.; ZWICKY, A. (ed.). Natural language parsing. Cambridge:
Cambridge University Press, 1985. p. 94-128.
FRAZIER, L. On comprehending sentences: Syntactic parsing strategies. Tese
(Doutorado) – University of Connecticut, Indiana University Linguistics club, 1979.
FRAZIER, L.; FODOR, J. D. The sausage machine: A new two-stage parsing model.
Cognition, v. 6, n. 4, p. 291-325, 1978.
FRAZIER, L.; RAYNER, K. Making and correcting errors during sentence
comprehension: Eye movements in the analysis of structurally ambiguous sentences.
Cognitive Psychology, v. 14, p. 178-210, 1982.
GIBSON, E. The dependency locality theory: a distance-based theory of linguistic
complexity. In: MARANTZ, A.; MIYASHITA, Y.; O’NEIL, W. (ed.). Image,
language, brain: papers from the first mind articulation project symposium.
Cambridge: MIT Press, 2000. p. 95-126.
HONDA, M. Linguistic inquiry in the science classroom: ‘It is science, but it’s not
like a science problem in a book’, MIT Working Papers in Linguistics, n. 6, 1994.
MIT Occasional Papers in Linguistics. Disponível em: http://mitwpl.mit.edu/. Acesso
em: 03 jan. 2017.
HONDA, M.; O’NEIL, W. On thinking linguistically. Revista LinguíStica – Revista
do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, v. 13, n. 1, p. 52-65, jan. 2017.
KENEDY, E. O problema do analfabetismo funcional no Brasil sob uma análise
psicolinguística. In: MAIA, M. (org.). Psicolinguística e Educação. Campinas:
Mercado de Letras, 2018. p. 81-102.
MAIA, M. Teoria Gramatical, Sintaxe Experimental e Processamento de Frases:
Explorando Efeitos do Antecedente e da Lacuna Ativos. Revista da ABRALIN,
v. 13, n.2, p. 95-120, jul./dez. 2014a.
MAIA, M. Processamento de frases. In: MAIA, M. Psicolinguística, psicolinguísticas
– Uma introdução. São Paulo: Contexto, 2015.

274
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

MAIA, M. Panorama da Linguística Experimental no Brasil. Revista de Estudos Da


Linguagem, 2017. v. 25, p. 951-969.
MAIA, M. Computação Estrutural e de Conjuntos na Leitura de Períodos: Um Estudo
de Rastreamento Ocular. In: MAIA, M. Psicolinguística e educação. Campinas, SP:
Mercado das Letras, 2018.
MAIA, M. O Problema de Descartes. In: OTHERO, G.; KENEDY, E. (org.).
Chomsky: a reinvenção da Linguística. 1. ed. São Paulo: Editora Contexto, 2019a.
v. 1. p. 157-174.
MAIA, M. O Problema de Descartes. In: OTHERO, G.; KENEDY, E. (org.).
Chomsky: a reinvenção da Linguística. 1. ed. São Paulo: Editora Contexto, 2019a.
v. 1. p. 157-174.
MAIA, M. Pensando (Psico)Linguisticamente, Experimentalmente, Educacionalmente.
In: PILATI, E.; NAVES, R.; SALLES, H. (org.). Novos olhares para a gramática
na sala de aula: questões para estudantes, professores e pesquisadores. Campinas:
Editora Pontes, 2019b. p. 93-118.
MAIA, M. Efeito da lacuna preenchida e plausibilidade semântica no processamento
de frases em português brasileiro. Cadernos de Letras da UFF, v. 49, p. 23-46,
2014b.
MAIA, M. Um microscópio para ajudar a ler e escrever? Disponível em: http://
cienciaparaeducacao.org/blog/2017/03/13/conecta-eye-tracker-um-microscopio-
para-ajudar-a-ler-e-escrever/. Acesso em: 15 mar. 2019.
MOURA, A. O Efeito da Lacuna Preenchida no Português Brasileiro: operações
sintáticas frente a elementos discursivos. 2019. Dissertação (Mestrado) – POSLING,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
MAIA, M.; MOURA, A.; SOUZA, M. Ilhas sintáticas e plausibilidade semântica –
um estudo de rastreamento ocular de frases com lacunas preenchidas em português
brasileiro. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 20, n. 38, p. 287-305, 2016.
OMAKI, A.; LAU, E. F.; DAVIDSON W. I.; DAKAN, M. L.; APPLE, A.; PHILLIPS,
C. Hyper-active gap filling. Front Psychol, v. 6, n. 384, p. 1-18, Apr. 2015.
PESETSKY, D. Wh-in-Situ: Movement and Unselective Binding. In: REULAND, E.
J.; ter MEULEN, A. G. B. (ed.). The Representation of (In)definiteness. Cambridge,
MA: MIT Press, 1987.
PILATI, E. Linguística, gramática e aprendizagem ativa. 1. ed. Campinas: Pontes,
2017. v. 1.
RIBEIRO, A. A abordagem good-enough e o processamento de frases do português
do Brasil. Veredas/UFJF Online, v. 12, n. 2, p. 62-75, 2008.

275
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

SCLIAR-CABRAL, L. Inter-relação entre o biológico e o cultural: Psicolinguística


e Educação. In: MAIA, M. (org.). Psicolinguística e Educação. SP: Mercado de
Letras, 2018.
RIZZI, L. Issues in Italian syntax. Dordrecht: Foris, 1982.
STOWE, L. Parsing wh–constructions: evidence for on–line gap location. Language
and Cognitive Processes, v. 1, p. 227-245, 1985.

276
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

PASSIVAS EM ENUNCIADOS MATEMÁTICOS: RELAÇÃO


ENTRE LINGUAGEM E OUTROS DOMÍNIOS DA COGNIÇÃO

Marina Rosa Ana Augusto

1. INTRODUÇÃO

Este capítulo tem por objetivo discutir a relação entre linguagem e


outros domínios da cognição, a partir do ponto de vista de que o falan-
te letrado de Português Brasileiro (PB) apresenta, no sentido de Kato
(2005), uma gramática nuclear e uma periferia marcada, constituída por
uma maior formalidade que caracteriza a modalidade escrita da língua.
O desenvolvimento dessa periferia marcada se daria particularmente com
o acesso ao ensino formal, podendo-se prever, assim, que a modalidade
escrita e a linguagem formal, características da escola, possam trazer
dificuldades que se reflitam no desempenho em outras disciplinas. Essa
questão é particularmente explorada em relação ao uso de sentenças pas-
sivas, construções complexas que têm pouco uso na fala, especialmente
em relação a um de seus tipos (ver (2)).

– Passiva verbal (ou perifrástica; ou eventiva)


(1) Os doces foram distribuídos entre os alunos do quarto ano pela
professora.

– Passiva pronominal
(2) Distribuíram-se doces entre os alunos do quarto ano.

277
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

O uso de passivas tem sido, no entanto, encontrado com certa fre-


quência na formulação de enunciados de problemas matemáticos. Assim,
assumindo-se a pouca familiaridade com estruturas como (2) acima,
levantam-se as seguintes questões: (i) o uso de estruturas passivas, em
contraste com sentenças ativas, na formulação de enunciados de proble-
mas matemáticos poderia impactar a sua resolução?; (ii) esse impacto
estaria restrito a séries mais iniciais do ensino formal, podendo perder
seu efeito em séries mais avançadas, a partir da maior familiaridade com
essas construções nesse tipo de enunciados?
A fim de investigar o impacto do uso de estruturas passivas na re-
solução de problemas matemáticos em Português Europeu (PE), Correia
(2003) adotou uma metodologia experimental, apresentando problemas
matemáticos adequados a diferentes séries escolares, com formulações
contemplando sentenças ativas, passivas verbais ou passivas pronomi-
nais. O mesmo tipo de metodologia foi utilizado para o PB por Augusto
e Souza (2017, 2016). Considera-se que as passivas pronominais são
bem pouco frequentes no PB, constituindo-se uma aquisição tardia, ca-
racterística da periferia marcada da língua e que poderiam, assim, vir a
impactar domínios não propriamente linguísticos, como o da resolução
de problemas matemáticos a partir de enunciados linguísticos.
Nas próximas seções deste capítulo, apresentamos considerações
sobre a estrutura passiva, sua aquisição, a noção de periferia marcada,
relatamos os resultados experimentais obtidos, discutindo a importância
de se considerar o impacto que estruturas linguísticas mais complexas
podem trazer para a apreensão de conhecimento ou resolução de proble-
mas dependentes do seu processamento.

2. ESTRUTURA PASSIVA E COMPLEXIDADE SINTÁTICA

As estruturas passivas são geralmente apresentadas nas gramáticas


escolares em seções dedicadas às vozes, quando a voz ativa é diferen-
ciada da voz passiva e da voz reflexiva. Segundo Cunha e Cintra (1985,
p. 373), “exprime-se a voz passiva com o VERBO AUXILIAR ser e o

278
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

PARTICÍPIO do verbo que se quer conjugar”, como em (1) acima, ou


“com o PRONOME APASSIVADOR se e uma terceira pessoa verbal,
singular ou plural, em concordância com o sujeito”, como em (2) acima.
As peculiaridades semânticas das estruturas ativa e passiva também
são comumente citadas em estudos voltados para as funções desempe-
nhadas pelas estruturas da língua, observando-se que, na voz ativa, “o
verbo atribui ao sujeito da sentença o papel de /agente/, e ao objeto direto
o papel de /paciente/” (CASTILHO, 2010, p. 436) (ver (3)), enquanto
na voz passiva o sujeito desempenha o papel de /paciente/, enquanto o
papel de /agente/ é atribuído ao sintagma nucleado pela preposição por
(4)1. Vale salientar que, na voz passiva pronominal, não se admite o
agente da passiva (5).

(3) O gato perseguiu o rato.


(4) O rato foi perseguido pelo gato.
(5) Compraram-se os livros *(pela bibliotecária).

Há uma certa controvérsia em relação à passiva pronominal. Al-


gumas propostas, como a de Duarte (2003), defendem que a passiva
pronominal é efetivamente uma construção passiva, com o “se” como
argumento externo (o que explica a impossibilidade da presença do agente
da passiva no sintagma nucleado por “por”). Raposo e Uriagereka (1996)
e Martins (2005), por outro lado, não consideram essas construções pas-
sivas no PE. Para esses autores, os SNs (sintagmas nominais) pós-verbais
não são sujeitos sintáticos, mas complementos que podem desencadear
a concordância com o verbo, enquanto o clítico -se ocupa a posição de
sujeito sintático. Em relação ao PB, Nunes (1991) chama a atenção para
a perda da concordância nesse tipo de sentenças, dando origem a uma
construção de sujeito indeterminado (Vende-se casas).

1 A questão não é tão simples, pois obviamente outros papéis temáticos podem estar presentes,
a depender do tipo de verbo. Verbos psicológicos, por exemplo, como amar ou admirar, não
apresentam um agente, e sim um experienciador. Na literatura em aquisição da linguagem,
inclusive, tem-se apontado que as passivas de verbos psicológicos são geralmente adquiridas
mais tardiamente do que passivas de verbos agentivos (MARATSOS et al., 1985).

279
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Em suma, em termos gerais, tem sido um consenso admitir que a


estrutura passiva é mais complexa do que a ativa, tida como a estrutura
básica, neutra. Sua aquisição é mais tardia e seu uso menos frequente,
sendo mais comum na escrita do que na fala (FURTADO DA CUNHA,
2000; LIMA JÚNIOR, 2016; GABRIEL, 2001). Assim, trata-se de uma
estrutura associada à escolarização e ao registro mais formal da língua,
de modo geral.

2.1 AQUISIÇÃO DE PASSIVAS

O domínio de passivas na aquisição da linguagem é relativamente


tardio, o que tem sido atestado em diversas línguas (MARATSOS et
al., 1985 (inglês); PIERCE, 1992 (espanhol); TERZI; WEXLER, 2002
(grego); BENCINI; VALIAN, 2008 (italiano); CHOCARRO, 2009
(catalão); RUBIN, 2006; LIMA JUNIOR; AUGUSTO, 2012 (português
brasileiro); ESTRELA, 2013 (português europeu)). Na verdade, tem-se
apontado que a compreensão de passivas eventivas longas (com o agente
da passiva explícito) não está completa até por volta dos 5 anos de idade.
Em relação à produção, não se atestam, de início, passivas peri-
frásticas como (1) acima, surgindo antes o que tem sido denominado
passiva estativa, com o uso do verbo estar (6). Constata-se, também, uma
preferência pelo uso alternativo de estruturas, no PB, no lugar do uso da
passiva perifrástica (GABRIEL, 2001), como a estrutura de tópico (7):

(6) Tá sentada (a boneca – 1;10,21) (MINELLO; LOPES, 2013)

(7) O menino, a menina abraçou ele. (em vez de: O menino foi abraçado
pela menina.)

É ainda necessário observar que a passiva pronominal (ver (2))


não tem sido atestada nas produções espontâneas de crianças jovens.
Trata-se de uma estrutura que está ausente da norma coloquial no PB.
Assim, é correto dizer que o contato com esse tipo de passiva só se dá
por meio da escrita. Para crianças pequenas, ocasionalmente ao ouvir a

280
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

leitura de histórias ou da Bíblia. Por variadas vezes, as crianças só terão


contato com esse tipo de orações em ambiente escolar. Essa distinção
entre a língua falada e a língua escrita, que marca tão profundamente
o português no Brasil, precisa ser discutida no contexto escolar, pois
o contato tardio com determinada estrutura pode gerar dificuldades de
processamento, ou seja, certa dificuldade perante alguns enunciados que
poderá interferir na sua compreensão, impactando a interpretação e o
raciocínio dependente desta.

2.2 GRAMÁTICA DO LETRADO

Kato (2005) chama atenção para essa distância entre a língua falada
e a língua escrita no Brasil, remetendo às noções de gramática nuclear, in-
ternalizada (gramática da fala natural) e a gramática do letrado (gramática
da escrita). O processo de aquisição da linguagem permite a identificação
de uma gramática particular da língua de exposição da criança. Essa
apreensão se dá de maneira natural e espontânea (inconsciente), segundo
o arcabouço gerativista (CHOMSKY, 1986; 1995). Assim, a aquisição
natural (por via das interações verbais) leva a criança a constituir uma
gramática nuclear. No entanto, a exposição a textos escritos e/ou variantes
mais formais pode levar à formação de uma periferia marcada, onde se
situa aquilo que se aprende como restrito à gramática da escrita, a qual
requer uma aprendizagem mais consciente e não apenas a exposição a
dados naturais. É a formação dessa periferia marcada que define o letrado
brasileiro (KATO, 2005, p. 133):

A periferia, para Chomsky (1981), pode abrigar fenômenos de


empréstimos, resíduos de mudança, invenções, de forma que
indivíduos da mesma comunidade podem ou não apresentar
esses fenômenos de forma marginal.

É essa periferia marcada que se encontra expandida na gramática


do letrado, enriquecida por características da norma-padrão da língua,
incentivadas no contexto escolar. Nesse sentido, um falante letrado do
PB seria capaz de transitar entre variantes distintas, pois pode acionar

281
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

os valores armazenados nessa periferia marcada. No entanto, o proces-


samento de estruturas mais complexas, características da escrita, seria
mais custoso do que o processamento de estruturas mais simples, básicas
da língua. Dessa forma, pode-se prever um impacto do uso de estruturas
mais complexas para a compreensão e para raciocínios que dependam da
correta interpretação de determinados enunciados linguísticos.
O experimento a ser reportado a seguir ilustra esse ponto.

3. RESULTADOS EXPERIMENTAIS

Considerando-se que o uso de ativas ou passivas em enunciados de


problemas matemáticos poderia impactar o raciocínio para sua resolução,
Correia (2003) planejou um experimento em que diferentes conjuntos de
exercícios foram aplicados a uma mesma série, compostos de problemas
matemáticos de mesma natureza, distintos, no entanto, em relação ao
tipo de sentença utilizado em seu enunciado. O primeiro conjunto de
exercícios continha enunciados, na formulação do problema matemático,
que contemplavam orações ativas; o segundo, passivas perifrásticas; e
o terceiro e último, passivas pronominais. Esse tipo de experimento foi
adaptado para o PB, sendo alguns dos resultados preliminares reportados
em Augusto e Souza (2017, 2016).
Cada conjunto de exercícios foi aplicado às mesmas turmas dos 4º,
6º e 9º anos do ensino fundamental I e II em três encontros semanais. O
tempo utilizado por cada aluno para a resolução dos problemas foi levado
em consideração na aplicação.
As seguintes previsões foram feitas:

(i) se a passiva é uma estrutura mais complexa que a ativa, capaz de


gerar uma dificuldade de compreensão no PB, o que impactaria o
raciocínio dependente dessa compreensão, menos resoluções equivo-
cadas estariam ligadas aos problemas matemáticos cujos enunciados
contemplem orações ativas;

282
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

(ii) se essa dificuldade de compreensão da passiva é apenas imediata,


sendo superada diante do tempo disponível para a leitura e releitura do
enunciado do problema, pode-se esperar que isso se reflita em tempo
maior consumido na resolução dos problemas cujos enunciados apre-
sentem a voz passiva;

(iii) se há uma distinção entre a passiva perifrástica, mais comum, e


a passiva pronominal, em desuso, pode-se esperar também distinção
de comportamento entre os problemas cujos enunciados contemplem
cada tipo de passiva, com mais resoluções equivocadas para a passiva
pronominal;

(iv) se essa dificuldade com a estrutura passiva pode ser superada,


sendo minimizada via exposição à estrutura na escola, espera-se menor
impacto da estrutura linguística utilizada nas séries mais adiantadas.

Os dados obtidos foram codificados, considerando-se três aspectos:


raciocínio, cálculo e resultado. Essa codificação dos dados permitiu a
submissão ao pacote estatístico ez-ANOVA, tomando-se tipo de enun-
ciado utilizado, contemplando cada uma das sentenças contrastadas
(ativa, passiva perifrástica ou passiva pronominal) e tipo de exercício
(com quatro níveis: ex. 1, ex. 2, ex. 3 e ex. 4) como variáveis indepen-
dentes. Tomou-se como variável dependente o número de acertos para a
resolução dos problemas matemáticos, refletido no total de pontos para
os três aspectos considerados para cada problema. É importante acres-
centar que diferentes valores foram atribuídos aos diferentes exercícios
dependendo da resposta dada pelo aluno: se o educando respondeu de
maneira equivocada o exercício, ele recebia 0 ponto; se o aluno possuiu
um raciocínio incompleto, o mesmo recebeu 0.5 pontos; se o estudante
acertou o problema matemático por completo, ele recebeu 1 ponto.
Considerou-se também como variável dependente o tempo gasto pelos
alunos para a resolução de cada conjunto de exercícios.

283
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

3.1 MÉTODO

Participantes
Participaram 79 alunos, assim distribuídos: 33 alunos, cursando o
4º ano; 27 alunos, cursando o 6º ano; 19 alunos, cursando o 9º ano, em
uma escola particular do subúrbio do Rio de Janeiro.

Material
Os exercícios eram apresentados em uma folha, previamente digi-
tados, com quatro exercícios. À turma do 4º ano, os exercícios propostos
contemplaram subtração com dezenas, divisão com resto, multiplicação e
subtração com centenas. Para a turma do 6º ano, os exercícios propostos
contemplaram subtração com centenas, subtração com fração, multipli-
cação e proporcionalidade (regra de três simples). Para a turma do 9º
ano, os exercícios apresentavam sistemas de equações de primeiro grau
com duas incógnitas, sistema de equações de primeiro grau com sistema
indeterminado, frações e equações de primeiro grau com duas incógnitas.
A seguir, fornecem-se exemplos dos exercícios propostos:

4º Ano Voz Ativa:


A professora repartiu 248 chocolates pelos 80 alunos do 4º ano. Quantos
chocolates inteiros recebeu cada aluno? Quantos chocolates sobraram?

4º Ano Passiva Perifrástica:


375 ovos de Páscoa foram repartidos pelos 7 meninos que ajudaram a
preparar a festa da Páscoa. Quantos ovos ganhou cada menino? Quantos
ovos sobraram?

4º Ano Passiva Pronominal:


Repartiram-se 97 rolos de serpentina pelas 8 turmas do 4º ano da escola
no baile de Carnaval. Quantos rolos recebeu cada turma? Quantos rolos
sobraram?

284
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

6º Ano Voz Ativa:


A livraria Moderna ofereceu 100 livros ao 6º ano. Reservou, para a sala
de leitura, a quarta parte desses livros. Quantos livros ficaram para os
alunos?

6º Ano Passiva Perifrástica:


Foram oferecidos, por uma companhia de Teatro, 100 ingressos ao 6º
ano. A quinta parte dos ingressos foi reservada para os alunos do grupo
de teatro. Quantos bilhetes ficaram para os outros alunos?

6º Ano Passiva Pronominal:


No Natal, ofereceram-se 150 brinquedos à escola da Ana. Reservou-se
a quinta parte dos brinquedos para as crianças da pré-escola. Quantos
brinquedos ficaram para os outros alunos?

9º Ano Voz Ativa:


Um jardineiro contou, num canteiro de um jardim, trevos de 3 folhas e
trevos de 4 folhas. Sabe-se que no total há 22 trevos e 76 folhas. Quantos
trevos de 3 folhas e quantos trevos de 4 folhas existem no canteiro?

9º Ano Passiva Perifrástica:


No jardim zoológico, foram contadas várias girafas e avestruzes. Sabe-se
que, no total, foram contadas 17 cabeças e 56 patas. Quantos animais
de cada espécie foram contados no jardim zoológico?

9º Ano Passiva Pronominal:


Num sítio com ovelhas e galinhas, contaram-se 18 cabeças e 58 pa-
tas, pertencentes a estes animais. Quantos animais de cada espécie
contaram-se no sítio?

Procedimento
As crianças foram submetidas ao experimento na própria escola. O
pesquisador conversou com a turma e esclareceu que os pais/responsá-
veis haviam autorizado que eles participassem da pesquisa2, informando
2 A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UERJ, tendo sido apresentados
o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, aos pais/responsáveis, e o Termo de Assen-
timento aos menores (CAAE: 39974214.4.0000.5282).

285
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

que poderiam escolher se participariam ou não e que poderiam desistir a


qualquer momento. Era também informado que os educandos deveriam
resolver os problemas matemáticos que estavam sendo propostos, sendo
pedido que, assim que terminassem os exercícios, levantassem a mão para
avisar ao pesquisador, visto que o tempo seria marcado (é válido destacar
que os alunos tinham ciência de que deveriam executar os exercícios com
calma e atenção). O Termo de Assentimento e o conjunto de exercícios
eram então distribuídos e, assim que os alunos avisavam ao pesquisador
que haviam terminado os exercícios, o mesmo ia até a mesa do educan-
do e marcava o tempo final da atividade (o tempo inicial era marcado
por todos de maneira conjunta antes de começar o desenvolvimento da
atividade). Cada conjunto de exercícios foi aplicado às mesmas turmas,
com intervalo de uma semana entre cada conjunto. Foram realizados,
então, três encontros com os 4º, 6º e 9º anos do ensino fundamental I e
II, totalizando três semanas de aplicação. Em cada visita à instituição, o
pesquisador gastou aproximadamente 30 minutos para aplicar o experi-
mento em cada série.

3.2 RESULTADOS

Os dados obtidos foram contabilizados e submetidos ao pacote


estatístico ez-ANOVA, programa que permite a análise das médias de
respostas e fornece resultado por condições testadas, verificando se as
diferenças de comportamento são relevantes estatisticamente, além de
mostrar também se há interação entre diferentes fatores.
Retomamos aqui brevemente os resultados do 4º ano e do 6º ano
(AUGUSTO e SOUZA, 2017, 2016) para compará-los com os resultados
do 9º ano e verificarmos se as previsões apresentadas se confirmam ou
não.
A análise estatística para os resultados obtidos para o 4º ano indica
um comportamento diferenciado com efeitos significativos para Tipo
de enunciado utilizado (F(2,64) = 8,36 p<0,000594), com mais acertos
nas ativas e Tipo de exercício (F(3,96) = 18,70 p<0,000001), com mais

286
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

erros para o exercício de divisão, independentemente do tipo de sentença


presente no enunciado. Os gráficos 1 e 2 são apresentados a seguir. O
gráfico 1 mostra as médias de acerto em função de tipo de enunciado
utilizado no problema matemático. O efeito principal de tipo de enunciado
comprova que, estatisticamente, houve um maior número de acertos no
conjunto de exercícios que apresentavam a voz ativa em seus enunciados.

O gráfico 2, a seguir, apresenta os resultados por tipo de exercício


em função do tipo de enunciado. O exercício 2 – exercício de divisão –
configurou-se como o de maior dificuldade para as crianças do 4º ano,
independentemente do tipo de enunciado utilizado no problema matemático.
O exercício 1 – de subtração – mostrou-se o mais fácil para as crianças,
com um bom escore de acertos. A análise estatística revela, no entanto, que
há uma diferença, apenas estatisticamente marginal, nos resultados para
esse exercício na presença da voz ativa em comparação com a presença
de passivas perifrásticas em seus enunciados (t(32)=1,90 p<0,0670), com
vantagem para a ativa. Também se observa uma diferença significativa
para o exercício 3 – de multiplicação. Há diferença entre a ativa e a pas-
siva pronominal (t(32)=4,06, p<0,0003) e entre a passiva perifrástica e
a pronominal (t(32)=3,63 p<0,0010), esta última a que mais impactou a
resolução dos problemas. Para o exercício 4 – de subtração – também se
observou maior número de acertos na comparação entre os exercícios com
enunciados utilizando a voz ativa e aqueles com passivas, tanto a perifrás-
tica (t(32)=5,42 p<0,0001) quanto a pronominal (t(32)=2,80 p<0,0087).

287
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Como mencionado anteriormente, também se procedeu à aná-


lise do tempo de resolução para cada conjunto de problemas. A análise
estatística indica um efeito principal para tipo de enunciado (F(2,64)
= 6,24 p<0,003344), revelando que os exercícios que contemplavam
enunciados na voz ativa foram, na média, respondidos mais rapidamen-
te que os exercícios que contemplavam o uso de passivas perifrásticas
(t(32)=2,96 p<0,0057), que também demandaram mais tempo do que os
exercícios com passivas pronominais (t(32)=3,68 p<0,0008). Os tempos
médios gastos para a resolução dos exercícios na voz ativa e nas passivas
pronominais foram bastante próximos.

288
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

A análise estatística para os resultados do 6º ano também indica


um comportamento diferenciado, com efeito significativo para Tipo
de enunciado utilizado no exercício (F(2,52) = 3,86 p<0,027319), com
mais acertos na ativa e Tipo de exercício (F(3,78) = 16,8 p<0,000001),
com mais equívocos nos exercícios de fração, independentemente do
tipo de sentença presente no enunciado. O Gráfico 4, a seguir, apresenta
as médias de acerto em função de tipo de enunciado, sugerindo que a
resolução dos exercícios foi facilitada na presença de sentenças na voz
ativa nos enunciados dos problemas matemáticos.

O gráfico a seguir apresenta os acertos para cada exercício em


função do tipo de enunciado. Os exercícios 1 – de divisão – e 3 – de
multiplicação – mostraram-se mais fáceis para os alunos, sendo os
exercícios que apresentavam a voz ativa em seus enunciados os que
levaram a melhores escores. Os exercícios 2 – de fração – e o exercício
4 – de proporcionalidade – foram os que impuseram maior dificuldade,
de maneira geral, não sendo observada uma facilitação devido ao uso da
voz ativa para esses tipos de exercícios.

289
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Na avaliação do tempo gasto para a resolução de cada conjunto de


problemas, verifica-se claramente que os exercícios que contemplavam
enunciados na voz ativa foram, na média, respondidos de maneira mais
rápida pelos alunos, obtendo-se um efeito principal para Tipo de enun-
ciado (F(2,64) = 6,24 p<0,003344).

No que diz respeito ao 9º ano, os resultados indicaram efeito de


Tipo de enunciado (F(2,36) = 6,05 p<0,005436), com médias mais al-
tas de acerto, em geral, para os exercícios formulados com sentenças
ativas em comparação com aqueles com sentenças passivas. Não houve
efeito principal para Tipo de exercício. O gráfico a seguir ilustra o efeito
principal obtido.

290
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

De maneira geral, as médias de acerto não foram muito altas, in-


dicando uma certa dificuldade com os exercícios propostos. É preciso
considerar que os tópicos cobrados não haviam ainda sido amplamente
trabalhados em sala de aula. O gráfico a seguir traz as médias de acerto
por tipo de exercício em função do tipo de enunciado. Os exercícios
1 – equações de primeiro grau com duas incógnitas – e 2 – equações de
primeiro grau com sistema indeterminado – apresentaram maior dificul-
dade para os alunos, em comparação com os exercícios 3 – frações – e
4 – equações de primeiro grau com duas incógnitas, com melhores médias
de acerto, particularmente no conjunto de exercícios que contemplavam
a voz ativa:

291
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

A análise de tempo de resolução dos exercícios demonstrou que hou-


ve um efeito principal de tipo de enunciado (F(2,36) = 7,67 p<0,001684),
com maior tempo gasto no segundo conjunto de exercícios apresentando a
voz passiva perifrástica nos enunciados. O conjunto com voz ativa levou
a tempos intermediários para resolução, enquanto o terceiro conjunto de
exercícios apresentando a voz passiva pronominal foi o mais rapidamente
resolvido, embora tenha, de modo geral, recebido alguns dos menores
escores de acerto.

Relatamos, ainda, uma avaliação por turma em relação às médias


de acerto. Esses resultados foram informados aos professores e super-
visores, como parte da palestra final para a escola. Na turma do 4º ano,
97% dos alunos (todos os alunos, com exceção de um) tiveram resultados
acima da média na soma dos três conjuntos de exercícios propostos. Na
turma de 6º ano, 82% dos alunos (22 em 27 alunos) tiveram resultados
acima da média na soma dos três conjuntos de exercícios. Os resultados
dos demais alunos foi mediano. Na turma do 9º ano, obtiveram-se os
resultados menos satisfatórios. Apenas 42% dos alunos (8 em 19 alunos)
obtiveram resultados acima da média na soma dos três conjuntos de
exercícios propostos. Houve alunos com resultados medianos, mas cerca
de 40% dos alunos tiveram resultados abaixo da média. Mais uma vez,
salienta-se que o conteúdo cobrado não havia ainda sido amplamente
trabalhado em sala de aula.

292
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

3.3 DISCUSSÃO

Os resultados aqui obtidos podem agora ser cotejados em relação


às previsões feitas. A previsão (i), de que a passiva poderia gerar uma
dificuldade de compreensão no PB, impactando o raciocínio dependente
dessa compreensão, se confirmou, uma vez que os resultados indicaram
efeito principal de tipo de enunciado para todas as séries, com melhores
resultados para os problemas matemáticos cujos enunciados contempla-
ram orações ativas. A previsão (ii) indicava que a maior complexidade
para o processamento dos enunciados dos problemas matemáticos com
estruturas passivas ocasionaria tempo maior dispendido nesses conjuntos
de exercícios. A análise do tempo consumido na resolução dos problemas
indicou efetivamente um efeito principal de tipo de enunciado para todas
as séries. No entanto, para o 4º e o 6º anos, foi o conjunto de exercícios
contemplando a voz ativa que levou a tempos menores de resolução,
enquanto para o 9º ano, o terceiro conjunto de exercícios, contemplando
a voz passiva pronominal – justamente a de maior complexidade – foi o
mais rapidamente resolvido. Em relação à previsão (iii), não se obtiveram
resultados confirmando uma distinção clara entre a passiva perifrástica,
mais comum, e a passiva pronominal, em desuso. Embora isso tenha se
confirmado para o 6º ano, não foi o caso nas demais séries. Já no que diz
respeito à previsão (iv), de que o impacto da presença da voz passiva em
enunciados matemáticos poderia ser minimizado nas séries mais avan-
çadas, não se obteve resultados claros nessa direção, embora se perceba
que o 9º ano demonstrou dificuldade com os conjuntos de exercícios de
modo geral, parecendo depender menos do tipo de sentença presente
nos enunciados, ou seja, esses alunos já lidam melhor com ambos os
tipos de passivas. Adicionalmente, o fato de que o terceiro conjunto de
exercícios levou a tempos menores de resolução pode indicar que houve
um efeito de aprendizagem, já que os exercícios apresentados eram do
mesmo tipo, mudando-se o tipo de sentença presente em seu enunciado.
Assim, os resultados indicam que a voz ativa é facilitadora, enquanto a voz
passiva, independentemente do tipo de passiva, dificulta, de modo geral,
a compreensão do enunciado do exercício, impactando sua resolução.

293
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

4. SUGESTÕES PARA O PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA

A linguagem tem um papel importante para o raciocínio. É por meio


dela que podemos promover a percepção de múltiplos estados de coisas e
de relações entre esses estados. Pode-se também assumir que a linguagem
tem papel importante como organizadora do pensamento e da tomada
de decisões para empreender ações no mundo que nos rodeia. Desse
modo, no desenvolvimento cognitivo e linguístico de crianças, pode-se
prever uma tensão entre as estruturas linguísticas a serem acessadas na
codificação de certos estados de coisas e a complexidade do raciocínio a
ser desenvolvido para a execução de uma tarefa solicitada verbalmente.
Ademais, como mencionado anteriormente, a distância que separa
a gramática natural, espontânea da fala e a gramática preconizada pela
gramática escolar, que privilegia a norma culta e permeia as atividades
escritas desenvolvidas em sala, é bastante acentuada no português do
Brasil. Assim, há certas construções linguísticas que são típicas do
contexto escolar e com as quais alguns alunos, menos imersos em um
contexto de letramento, só terão contato na escola. Esse é o contexto
em relação à passiva pronominal, ausente dos dados de fala, e mesmo a
passiva perifrástica, considerada de uso pouco frequente na fala natural,
mas comumente encontradas em enunciados de problemas matemáticos.
Desse modo, habilidades necessárias no âmbito escolar incluem certos
usos de normas linguísticas que precisam ser apresentadas e trabalhadas
com os alunos.
Uma preocupação didática que permeia as atuações dos professores
é controlar a relação forma X função na construção do conhecimento. Na
aquisição da fala, tem-se observado (HALLIDAY, 1975, apud KATO,
1986) que formas novas aparecem em função das necessidades comuni-
cativas. Na verdade, Kato (1986, p. 105), remetendo a Vygotsky (1962)
e Slobin (1980), observa que: “uma função nova se adquire através de
uma forma velha e uma forma nova se adquire através de uma função
conhecida”.

294
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Essa preocupação deve transcender os limites estritos de uma área


de conhecimento. No caso aqui discutido, parece ser relevante evitar o
uso de passivas em enunciados matemáticos quando se apresentam novos
conteúdos a serem dominados, reservando para um segundo momento,
em que os conteúdos já estão mais sólidos, a inclusão de sentenças na
voz passiva, a fim de apresentar ao aluno o tipo de enunciado comu-
mente encontrado, para o qual ele deve ser preparado pela escola. Ou
seja, defendemos que o aluno deve ser auxiliado para que direcione seu
esforço ora para um ponto, ora para outro. O uso de sentenças ativas em
enunciados matemáticos deve ser privilegiado em um primeiro momento,
mas o uso de estruturas passivas deve ser incluído em seguida, quando
o domínio do conteúdo matemático já se deu e a energia do aluno pode
ser direcionada para o desafio da complexidade linguística.
Enfatiza-se, assim, a importância de se trabalhar não só conteúdos
específicos de cada disciplina, mas atentar para a forma linguística por
meio da qual esse conteúdo está sendo exposto, pois pode haver um
impacto da falta de familiaridade com a forma linguística na apreensão
do conteúdo ou do raciocínio solicitado a partir dessa exposição. As-
sim, uma nova forma (inclusive linguística) deve ser apresentada com
funções já conhecidas (exercícios já dominados) ou uma nova função
(resolução de novos problemas matemáticos) com formas já dominadas
(linguisticamente falando). Esse cuidado auxiliará o aluno na construção
das operações metalinguísticas e cognitivas necessárias, facilitando o seu
percurso para, por fim, ser capaz de processar com rapidez e facilidade as
formas linguísticas características do discurso formal sem impacto para
os raciocínios subsequentes necessários para a execução da atividade
solicitada.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo focalizou o impacto do uso de determinadas construções


linguísticas, características da escrita e de pouco domínio dos alunos
ainda em fase de letramento escolar, em outras áreas do conhecimento,
particularmente a facilitação ou dificuldade imposta pelo uso de estruturas

295
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

ativas, passivas perifrásticas ou passivas pronominais na resolução de


problemas matemáticos.
Reportaram-se os resultados de um experimento no PB, tendo como
base a investigação de Correia (2003), para o PE. Foram aplicados três
conjuntos de exercícios do mesmo tipo em três semanas sequenciais a
alunos de uma escola particular do Rio de Janeiro, do 4º, 6º e 9º anos
do ensino fundamental I e II, cujos enunciados apresentavam um desses
tipos de sentenças: orações ativas, passivas perifrásticas ou passivas
pronominais.
Os resultados indicaram um efeito estatístico significativo do tipo
de oração usada no enunciado do problema matemático no número de
resoluções adequadas, com maior número de acertos para os problemas
apresentando orações ativas em seus enunciados. O tempo médio para a
resolução dos exercícios também se mostrou menor para o conjunto de
exercícios com enunciados na voz ativa, com exceção do 9º ano, para
o qual o terceiro conjunto de exercícios com voz passiva pronominal
foi mais rapidamente resolvido, embora o número de acertos tenha sido
similar ao obtido no segundo conjunto de exercícios com enunciados na
voz passiva perifrástica e menor do que o do primeiro conjunto, apre-
sentando voz ativa nos enunciados.
A relevância de se considerar aspectos linguísticos na apreensão
de informação necessária para se resolver alguma tarefa escolar foi
problematizada, a partir da noção de que, no Brasil, há uma distância
considerável entre a gramática naturalmente adquirida, a gramática da
fala, e aquela característica da modalidade escrita, pautada na norma
culta e preconizada pela escola. Assim, algumas estruturas são menos
automaticamente processadas, podendo impactar o raciocínio dependente
de sua compreensão/interpretação. A escola precisa estar alerta para esse
fato a fim de garantir que estruturas menos comuns sejam devidamente
trabalhadas para que conteúdos de outras disciplinas que dependam da
compreensão adequada da língua sejam devidamente apreendidos.

296
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

REFERÊNCIAS

AUGUSTO, M.; SOUZA, R. Passivas no português brasileiro: considerações acerca


da estrutura em uma língua de tópico e o ensino. In: Atas do V SIMELP Simpósio
Mundial de Estudos de Língua Portuguesa. Lecce: ESE Publications, 2017. p. 869-
882.
AUGUSTO, M.; SOUZA, R.. O uso de estruturas passivas em enunciados
matemáticos: relações entre domínios linguístico e cognitivo. Revista Letra Capital,
v. 1, n. 2, p. 1-22, jul./dez. 2016.
BENCINI, G.; VALIAN, V. Abstract sentence representations in 3-year-olds:
Evidence from language production and comprehension. Journal of Memory and
Language, v. 59, n. 1, p. 97-113, jun. 2008.
CASTILHO, A. Nova Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Editora
Contexto, 2010.
CHOCARRO, J. The acqusition of actional passives in Catalan. 2009. Tese
(Doutorado) –Universitat Autonoma de Barcelona, Barcelona, 2009.
CHOMSKY, N. Lectures on Government and Binding. Dordrecht: Foris, 1981.
CHOMSKY, N. Knowledge of language. New York: Praeger, 1986.
CHOMSKY, N. The Minimalist Program. Cambridge: The MIT Press, 1995.
CORREIA, D. Passivas e Pseudo-Passivas em Português Europeu – Produção
Provocada e Compreensão. 2003. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Lisboa,
Lisboa, 2003.
CUNHA, C. F.; CINTRA, L. F. L. Nova gramática do português contemporâneo.
2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
DUARTE, I. A família das construções inacusativas. In: M. H. M. Mateus; A. M.
Brito; I. Duarte; I. H. Faria. Gramática da Língua Portuguesa. 6. ed. Lisboa: Editorial
Caminho, 2003.
ESTRELA, A. A Aquisição da Estrutura Passiva em Português Europeu. 2013. Tese
(Doutorado) – Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2013.
FURTADO DA CUNHA, M. A. A complexidade da passiva e as implicações
pedagógicas do seu uso. Linguagem & Ensino, v. 3, n. 1, p. 107-116, 2000.
GABRIEL, R. A aquisição das construções passivas em português e inglês: um
estudo translinguístico. 2001. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, PUCRS, Rio Grande do Sul, 2001.
HALLIDAY, M. Learning how to mean: explorations in the development of language.
London: Edward Arnold, 1975.

297
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

KATO, M. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo:


Ática, 1986.
KATO, M. A gramática do letrado: questões para a teoria gramatical. In: MARQUES,
M. A.; KOLLER, E.; TEIXEIRA, J.; LEMOS, A. S. (org.). Ciências da Linguagem:
trinta anos de investigação e ensino. Braga: CEHUM, 2005. p. 131-145.
LIMA JÚNIOR, J. Aquisição e desenvolvimento de sentenças passivas: da
percepção do infante ao processamento adulto. 2016. Tese (Doutorado) – Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
LIMA JÚNIOR, J.; AUGUSTO, M. Aspectos estruturais de sentenças passivas
relevantes para questões em aquisição da linguagem: uma análise do português. In:
Anais do VIII ENAL/ II EIAL Encontro Inter/nacional sobre Aquisição da Linguagem,
Juiz de Fora: Programa de Pós-Graduação, 2012. p. 186-199.
MARATSOS, M.; FOX, D.; BECKER, J.; CHALKLEY, M. A. Semantic restrictions
on children´s passives. Cognition, v. 19, n. 2, p. 167-191, 1985.
MARTINS, A. M. Passive and impersonal se in the history of Portuguese. In:
KEBATEK, J.; PUCH, C.; RAIBLE, W. (ed.). Corpora and Historical Linguistics:
investigating language change through corpora and database. Tubingen: Gunter Narr
Verlag, 2005. p. 411-430.
MINELLO, C.; LOPES, R. Aquisição da voz passiva no português brasileiro. 2013.
Trabalho apresentado no XXI Congresso Interno de Iniciação Científica da Unicamp
em forma de pôster, Universidade Estadual de Campinas, 2013.
NUNES, J. M. Se apassivador e Se indeterminador: o percurso diacrônico no
português brasileiro. Cadernos de Estudos Linguísticos, v. 20, p. 33-58, 28 out. 2012.
PIERCE, A. The acquisition of passive in Spanish and the question of A-chain
maturation. Language Acquisition, v. 2, p. 55-82, 1992.
RAPOSO, E.; URIAGEREKA, J. Indefinite SE. Natural Language & Linguistic
Theory, v. 14, p. 749-810, 1996.
RUBIN, M. Compreensão da passiva das crianças típicas. In: Anais do 6º Encontro
do Celsul. Florianópolis: Círculo de Estudos Linguísticos do Sul, 2006.
SLOBIN, D. I. Psicolinguística. São Paulo: Nacional, 1980.
TERZI, A.; WEXLER, K. A-Chains and S-Homophones in Children’s Grammar:
Evidence from Greek Passives. In: Proceedings of the North Eastern Linguistics
Society 32. Amherst: University of Massachusetts, 2002.
VYGOTSKY, L. Thought and language. Cambridge, Mass: The MIT Press, 1962.

298
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

SOBRE AS ORGANIZADORAS

Núbia Ferreira Rech


Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1997).
Mestre em Teoria e Análise Linguística pela mesma instituição (2005).
Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – 2009. É
professora do Programa de Pós-Graduação em Linguística e do Departamento
de Língua e Literatura Vernáculas da UFSC. Atua na área de Linguística,
com ênfase em Teoria e Análise Linguística, investigando principalmente
os seguintes temas: núcleos funcionais indicadores de modo, modalidade,
tempo e aspecto.

Simone Guesser
Graduada em Letras - Português pela Universidade Federal de Santa Catari-
na (2004). Mestre em Linguística pela Universidade de Siena, Itália (2007),
instituição em que também se pós-graduou em Ciências Cognitivas (2008) e
obteve doutoramento em Informática, Lógica Matemática e Ciências Cogni-
tivas (2011). Seus interesses de pesquisa incluem teoria e análise gramatical,
aquisição da linguagem e relação entre teoria gramatical e ensino. É professora
da graduação e do mestrado em Letras da Universidade Federal de Roraima e
atua (de 2020 a 2022) como professora visitante do Programa de Pós-graduação
em Estudos Linguísticos da Universidade Federal da Fronteira Sul. Coordena
o LEGAL/PPGL-UFRR (Laboratório de Estudos sobre Gramática e Aquisição
da Linguagem).

299
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

SOBRE OS AUTORES

Amanda de Moura
Doutoranda em Linguística na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
tendo recebido o prêmio de Aluna Nota 10 pela Faperj durante o curso de
mestrado em Linguística na UFRJ. Faz parte do grupo de pesquisadores do
Laboratório de Psicolinguística Experimental (LAPEX) desde 2013, quando
cursava a graduação em Letras: Português/Inglês. Atua principalmente nos
seguintes temas: processamento de frases, interrogativas-QU, Efeito da Lacuna
Preenchida e predição, manipulando adjuntos, a grade argumental dos verbos,
ilhas sintáticas, plausibilidade semântica e discurso. Tem experiência com
experimentos de Leitura Automonitorada e Rastreamento Ocular.

Aquiles Tescari Neto


Professor do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Lingua-
gem da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP. Doutor em Scienze
del Linguaggio/Ciências da Linguagem pela Università Ca’ Foscari di Venezia,
Itália, na área de Gramática Gerativa. É, atualmente, coordenador associado
dos cursos de Licenciatura em Letras da UNICAMP. Suas áreas de interesse
em pesquisas são: Sintaxe Gerativa das Línguas Naturais, Programa Carto-
gráfico, categorias gramaticais da oração, ensino de gramática, ambiguidade
estrutural, português brasileiro, português angolano e português moçambicano.
Um detalhamento das atividades de seu laboratório de pesquisa, o LaCaSa,
encontra-se no link do grupo: https://is.gd/LaCaSaUnicamp. Informações mais
pessoais encontram-se em seu site: https://is.gd/aquilestescarineto.

300
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Eloisa Pilati
Licenciada e Bacharel em Letras: Português (1998), realizou mestrado e douto-
rado em Linguística, na Universidade de Brasília (2000-2006) e pós-doutorado
no Massachusetts Institute of Technology – MIT (2015). É professora da
Universidade de Brasília, no Departamento de Linguística Português e Lín-
guas Clássicas (LIP), atuando na graduação e na pós-graduação. Atualmente
é Coordenadora de Integração das Licenciaturas no Decanato de Ensino de
Graduação da UnB. Lidera os Grupos de Pesquisa: “O Centro-Oeste na história
do Português Brasileiro”, “Novas perspectivas para a língua portuguesa na sala
de aula” e “Observatório do Novo Ensino Médio” registrados no CNPq. De-
senvolve pesquisas em duas áreas principais: linguística teórica e educação. No
campo teórico, investiga a sintaxe da ordem de palavras, ordem verbo-sujeito,
sujeitos nulos e fenômenos de concordância nas línguas naturais e, na área
educacional, pesquisa temas relacionados a metodologias de ensino de língua
portuguesa, neurociências e aprendizagem e uso de materiais manipuláveis no
ensino de gramática. Faz parte do Comitê Científico da Revista da Associação
Brasileira de Linguística e é pesquisadora produtividade PQ, nível 2, do CNPq.
É Pesquisadora Associada da Rede Nacional de Ciência para Educação.

Helena Guerra Vicente


Professora do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clás-
sicas da Universidade de Brasília (UnB). É licenciada em Letras-Inglês
e Respectiva Literatura e mestre e doutora em Linguística pela mesma
instituição. Como bolsista da CAPES, realizou estágio de doutorando no
Departamento de Linguística da Universidade da Califórnia, San Diego
(Doutorado Sanduíche), e pós-doutorado no Departamento de Linguística
da Universidade Harvard (PVEX – Professor Visitante no Exterior, 2018-
2019). Atualmente, é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Linguística da UnB e uma das editoras do Caderno de Squibs: Temas em
estudos formais da linguagem. É líder do Grupo de Estudos em Linguística
Formal do Diretório do Grupo de Pesquisas do CNPq. Sua pesquisa se
concentra na linguística de vertente formal, bem como na aplicação desse
conhecimento ao ensino de gramática.

301
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Leonor Simioni
Licenciada em Letras: Português/Italiano pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Mestre em Linguística pela Universidade Federal de Santa
Catarina, na área de aquisição de linguagem, e Doutora em Linguística pela
Universidade de São Paulo, na área de sintaxe, com doutorados-sanduíche na
University of Maryland e na Universiteit Utrecht. Professora da Universidade
Federal do Pampa desde 2012. Tem se dedicado à investigação de diferentes
fenômenos sintáticos do português brasileiro, à descrição do português uru-
guaio, e à contribuição das teorias formais para o ensino de língua.

Luiz Fernando Ferreira


Bacharel em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Atuou como pro-
fessor de Língua Inglesa para crianças e adolescentes de 2011 a 2015. Mestre
em linguística pela USP e doutorando em linguística pela mesma universidade,
tendo realizado um período sanduíche no Massachusetts Institute of Technolo-
gy (MIT) entre 2019 e 2020. Tanto em seu mestrado quanto em seu doutorado,
dedicou-se a análises de aspectos semânticos da língua indígena Karitiana.
Trabalha com a interface entre linguística e educação desde 2016, ministran-
do aulas em cursos de extensão ofertados pela USP, como “A gramática e a
linguística em sala de aula” e “Ensino de gramática: reflexões semânticas”.
O objeto desses cursos é instrumentalizar professores de Língua Portuguesa
com novos métodos de ensino embasados em propostas provenientes da lin-
guística. Nesses cursos, já ministrou aulas fazendo a ponte da educação com
várias subáreas da linguística (historiografia linguística, linguística histórica,
semântica e pragmática).

Marcus Maia
Doutor em Linguística pela University of Southern California – USC, (1994).
Realizou estágio de pós-doutorado na área de Processamento da Linguagem
como pesquisador visitante na City University of New York – CUNY (2003-
2004). Foi professor visitante no Language Acquisition Research Center da
University of Massachusetts, Amherst (2012), e no Departamento de Lin-
guística da Massey University, Nova Zelândia (2017). Atualmente é profes-
sor titular de Linguística do Departamento de Linguística e do Programa de

302
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

Pós-graduação em Linguística da Faculdade de Letras da UFRJ. É bolsista de


Produtividade em Pesquisa, nível 1B (CNPq) e foi Cientista do Nosso Estado
(FAPERJ). Pesquisa sobre processamento sintático, sintaxe experimental,
teoria da gramática, psicolinguística e educação, línguas indígenas.

Marcus Vinicius Lunguinho


Professor do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas da
Universidade de Brasília. Mestre em Linguística pela Universidade de Brasília
e Doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo. Sua pesquisa toma
como bases teóricas o Programa Minimalista e a Semântica Formal e sua in-
vestigação se volta à análise de fenômenos dos domínios verbal e nominal e de
fenômenos na interface sintaxe-pragmática. Recentemente, tem se interessado
por investigar a articulação entre a Linguística Formal e o ensino de língua. É
líder do “Grupo de Estudos e Pesquisas em Gramática Teórica” (GEGT) do
CNPq e um dos editores do “Caderno de Squibs: Temas em Estudos Formais
da Linguagem”.

Maria Cristina Figueiredo Silva


Possui graduação em Linguística e Português pela Universidade de São Paulo
(1985), mestrado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas
(1988) e doutorado em Letras na Université de Genève (1994). Atualmente é
professora titular da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atua em Teoria e
Análise Linguística, especificamente dentro do quadro da Gramática Gerativa,
pesquisando temas como: a sintaxe do sujeito nulo em português brasileiro,
ordem das palavras na interface fonologia-sintaxe, questões de morfologia
gerativa e também gramática comparada, com vistas ao ensino de português
como língua estrangeira. É bolsista PQ 1C do CNPq.

Maria Eugênia Martins Barcellos


Licenciada em Letras: Português/Inglês pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Foi bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq) por três
anos no Programa de Estudos sobre o Uso da Língua (PEUL). Foi, por dois
anos e meio, monitora de inglês no Curso de Línguas Aberto à Comunidade
(CLAC) da Faculdade de Letras da UFRJ. É mestranda no programa de Se-

303
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

miótica e Linguística Geral da Universidade de São Paulo (USP). Foi, por um


ano e meio, ministrante do curso de extensão “A gramática e a linguística em
sala de aula”, ofertado pela FFLCH-USP, trabalhando com a interface entre
linguística e educação, ministrando aulas de sociolinguística, linguística formal,
linguística textual e a relação entre fonética e ortografia.

Maria José Foltran


Graduada em Letras pela Universidade Federal do Paraná (1975). Tem
mestrado em Letras pela Universidade Federal do Paraná (1988), doutora-
do em Linguística pela Universidade de São Paulo (1999), pós-doutorado
na Universidade Federal de Santa Catarina (2005) e pós-doutorado no
Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Madrid/Espanha (2012).
Atualmente é Professora Titular e Professora Sênior do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná. Tem experiência
na área de Linguística, com ênfase na interface sintaxe-semântica, atuando
principalmente nos seguintes temas: predicação (small-clauses e predi-
cados secundários), estrutura argumental, semântica de eventos e ensino
de gramática. De 2009 a 2011 foi Presidente da Associação Brasileira de
Linguística (ABRALIN).

Mariana Perigrino
Professora de Língua Portuguesa da Educação Básica. Mestre em Linguística
pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), na área de forma e
funcionamento das línguas naturais, com subárea de Gramática. Licenciou-se
em Letras: Língua Portuguesa pela UNICAMP. Integrante do LaCasa (La-
boratório de Cartografia Sintática: Pesquisa e Ensino). Tem experiência em
Letras, Linguística e Educação, sobretudo na área de teoria gramatical, sintaxe
gerativa, ensino de gramática e de Língua Portuguesa.

Marina Rosa Ana Augusto


Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente
é Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atuando na
graduação e na pós-graduação. É integrante do Laboratório de Psicolinguística
e Aquisição da Linguagem (LAPAL/PUC-Rio); membro do corpo editorial

304
gramátiCa, aquisição e proCessamento linguístiCo
subsídios para o professor de língua portuguesa

da D.E.L.T.A. e do Caderno de Squibs. É pesquisadora bolsista do Prociência


da FAPERJ/UERJ. Atua principalmente nos seguintes temas: aquisição da
linguagem, estruturas complexas, movimento sintático.

Patrícia Rodrigues
Professora associada do Departamento de Literatura e Linguística da Universi-
dade Federal do Paraná desde 2010, atuando na graduação e na pós-graduação.
Atuou também como professora da Pontifícia Universidade Católica-PR (2003-
2008) e da Universidade Estadual de Londrina (2008-2010). Possui mestrado
e doutorado em Linguística pela Universidade do Quebec em Montreal, e
pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2017-2018).
Tem experiência na área de Linguística, na abordagem da Teoria Gerativa,
com ênfase em Sintaxe e suas interfaces com a Semântica e com a Pragmática.

Paulo Medeiros Junior


Mestre em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB) e doutor em Lin-
guística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com pesquisa em
sintaxe e mudança linguística. É professor do Departamento de Linguística,
Português e Línguas Clássicas da UnB, onde atua nos níveis de graduação e
Pós-graduação; na Pós-Graduação, desenvolve o projeto “As Propriedades do
Sistema CP no Português Brasileiro: Sintaxe, Aquisição e Mudança Linguís-
tica”. É coordenador de graduação, editor do periódico “Caderno de Squibs:
Temas em estudos Formais de Linguagem” e lidera o grupo de pesquisa inti-
tulado Grupo de Estudos de Sintaxe Cartográfica (GESC).

305

Você também pode gostar