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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Di Raimo, Luciana Cristina Ferreira Dias. / Stefaniu, Luciana Fracassi. (Orgs.)

N(os) movimentos de uma articulação: análise de discurso e ensino


Luciana Cristina Ferreira Dias Di Raimo / Luciana Fracassi Stefaniu (Orgs.)
Campinas, SP : Pontes Editores, 2019

Bibliografia.
ISBN 97885-217-0258-0

1. Análise do discurso - ensino 2. Linguística I. Título

Índices para catálogo sistemático:

1. Análise do discurso - ensino- 410


2. Linguística - 410
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2019 - Impresso no Brasil


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO................................................................................................7

SEÇÃO 1 - LEITURA EM FOCO

PROPOSTA DE LEITURA DA CRÔNICA “A CARNE”, DE LUIS


FERNANDO VERISSIMO: AUTORIA E DISCURSO........................................13
Luciana Cristina Ferreira Dias Di Raimo

MEMES NA AULA DE LEITURA: UMA PROPOSTA DISCURSIVA..................37


Gustavo Haiden de Lacerda

A LEITURA NA ESCOLA: NUANCES DISCURSIVAS.......................................63


Paulo Cézar Czerevaty
Cristiane Malinoski Pianaro Angelo
Luciana Cristina Ferreira Dias Di Raimo

O DIGITAL COMO REFERENTE DISCURSIVO E MEIO DE


CIRCULAÇÃO: PRÁTICAS DE LEITURA NO ENSINO FUNDAMENTAL.......75
Michelly Luteski

SEÇÃO 2 - ESCRITA E AUTORIA

ESCRITA E AUTORIA: UM GESTO ANALÍTICO DE UM PROCESSO DE PRODUÇÃO


DE TEXTO MEDIADO PELAS TECNOLOGIAS DIGITAIS................................97
Maristela Cury Sarian

AUTORIA E GESTOS DE LEITURA NA PRODUÇÃO DA RESENHA CRÍTICA


DE UM FILME.....................................................................................121
Vinicius da Silva Zacarias

ARTIGO DE OPINIÃO NAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO VESTIBULAR


DA UEM .....................................................................................141
Cintia Bicudo
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

SEÇÃO 3 - ANÁLISE DISCURSIVA DE MATERIALIDADES DIVERSAS


NA RELAÇÃO COM O ENSINO

TRANSITIVIDADE VERBAL E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA:


O SILÊNCIO SINTÁTICO....................................................................................165
Aline Cristina Schinemann
Luciana Fracassi Stefaniu

OS PREFÁCIOS DE DICIONÁRIOS INFANTIS: UMA ANÁLISE DISCURSIVA 189


Maria Cláudia Teixeira

A POESIA DE MURILO MENDES PELA ÓTICA DISCURSIVA: NOVAS


PRÁTICAS DE ENSINO..............................................................................207
Wellington Stefaniu

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS EM DISCUSSÃO:


UM OLHAR DISCURSIVO PARA O PROGRAMA PIBID...................................223
Dalila Oliva de Lima Oliveira
Luciana Fracassi Stefaniu

SOBRE OS AUTORES

1 LAGAZZI, S. Texto e autoria. In: ORLANDI, E.P.; LAGAZZI-RODRIGUES, S. (Orgs.).


Discurso e textualidade. Campinas: Pontes Editores, 2006. p.81-103.

9
SEÇÃO 1

LEITURA EM FOCO
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

PROPOSTA DE LEITURA DA CRÔNICA “A CARNE”, DE LUIS


FERNANDO VERISSIMO: AUTORIA E DISCURSO

Luciana Cristina Ferreira Dias Di Raimo


Universidade Estadual de Maringá
(UEM)

GESTOS INICIAIS

Neste trabalho, trago à baila uma reflexão sobre os possíveis


mo- vimentos de articulação entre práticas de leitura e/ou escrita e a
Análise de Discurso, considerando o espaço da sala de aula. Uma
vez que me filio à perspectiva discursiva materialista, é preciso ser
consequente com o fato de que o campo da Análise de Discurso nos
demanda relacionar
o texto (sua formulação, em condições imediatas) a suas condições
de produção mais amplas.
Não se trata de defender que as aulas de leituras são/serão
lugares para ensinar/problematizar conceitos da Análise de
Discurso. Acredito que o professor/pesquisador que empreenda um
olhar discursivo para a sala de aula precisa ser analista e esquecer
que é. Nesse caso, antes de empreender práticas de leitura/escrita
com foco em um dado texto, é necessária a produção de análises
prévias à leitura (SERRANI, 2005; BAGHIN-SPINELLI, 2002), visto
que a própria natureza do material não é indiferente ao modo como
uma proposta de leitura pode ser formulada.
Dito de outro modo, tendo em vista as especificidades e a
natureza de cada material, os conceitos a serem mobilizados
precisam ser refina- dos e definidos. Apoiando-me em Orlandi (1999,
p. 27) “cada material
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

PFEIFFER, C. R. C. Que autor é este? 1995. 146f. Dissertação (Mestrado em


Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de
Campinas.
PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso. Uma Crítica à Afirmação do Óbvio.
Trad. Eni P. de Orlandi et all. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988. 288 p.
(1ª. ed. 1975)
PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso: (ADD-69). In: GADET, F.; HAK,
T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra
de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas: Unicamp, 1997. p. 61-161.
PÊCHEUX antes da autora ORLANDI, E. Discurso e texto: formulação e
circulação dos sentidos. Campinas: Pontes Editores, 2001.
PÊCHEUX, M. O papel da memória. In: ACHARD, P. et al. O papel da
memória.
Tradução de José Horta Nunes. 3. ed. Campinas: Pontes, 2010
ORLANDI, E. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas:
Pontes Editores, 2001.
ORLANDI, E. Análise do discurso. Princípios e procedimentos. Campinas: Pontes
Editores, 1999.
ORLANDI, E. Discurso e Leitura. 9.ed. São Paulo/Campinas: Cortez/Editora da
UNICAMP, 1998
LAGAZZI, S. Texto e autoria. In: ORLANDI, E.P.; LAGAZZI-RODRIGUES,
S. (Orgs.). Discurso e textualidade. 1.ed. Campinas: Pontes Editores, v.1, 2006.
P.81-104.
SANTOS, M. J. ; SARIAN, M. C. Das injunções institucionais à constituição
da autoria: uma via para o trabalho com a leitura e escrita na escola. Revista
Investigações. vol. 31, nº 2, DEZEMBRO/2018.
SERRANI, S. Discurso e cultura na aula de línguas: Currículo– Leitura –
Escrita. Campinas: Pontes Editores, 2005.
VERISSIMO, L. F. A carne. 23/03/2017. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/ opiniao/a-carne-21100553. Acesso em: 23 maio
2017.

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

MEMES NA AULA DE
LEITURA: UMA PROPOSTA
DISCURSIVA

Gustavo Haiden de Lacerda


(PIBIC-Universidade Estadual de Maringá)

GESTO DE ABERTURA1

Na condição de sujeitos de linguagem, circunscritos em práticas


sociais delimitadas e determinadas pelas condições sócio-históricas que
determinam certos sentidos e não outros, somos impelidos a interpretar o
mundo à nossa volta, inseridos na “injunção à interpretação”
(ORLANDI, 1999). Diferentes formas de linguagem demandam
diferentes modos de leitura e, portanto, de interpretação, de tal
maneira que, ao lidarmos com o domínio digital, torna-se possível o
surgimento de novas textualidades, que, por sua vez, convocam
novos gestos de leitura.
É nesse sentido que foi produtivo analisarmos os memes virtuais,
em seu caráter emergente, entendidos na sua ligação com as redes
sociais (Facebook, Twitter, Instagram etc.), de modo particular, e com a
Internet, de modo abrangente, em que seria possível analisar os
modos de funcio- namento de tais memes, em sua constituição,
formulação e circulação (ORLANDI, 2005). Por seu aspecto de
“novidade”, fomos motivados a ver nos memes as (im)possibilidades
de serem trabalhados em aulas de leitura, propondo atividades que
imbricassem as práticas digitais com as práticas pedagógicas do
espaço escolar.
1 Este texto resulta do relatório final da pesquisa realizada por mim, sob a orientação da Profª.
Dra. Luciana C. F. Dias Di Raimo (UEM), no projeto de iniciação científica intitulado
“Memes virtuais, leitura e discurso: redes sociais imbricadas à sala da aula”, financiado pela
Fundação Araucária.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

LEVANTANDO PERSPECTIVAS: OS MEMES

Cabe abordar algumas noções já desenvolvidas sobre os memes


em outros campos que não a AD, para, como supramencionado,
revisar o estado da arte e estabelecer nossas ancoragens teóricas. Nessa
perspectiva, historicizaremos brevemente o estado do meme, cuja
origem (enquanto termo) reside nos estudos de Richard Dawkings,
inaugurando a área da memética, com a obra “O gene egoísta”
(2001 [1976]). Nesse livro, o autor traça um paralelo entre gene e
meme, para quem aquele seria a unidade de transmissão biológica e
este a unidade de transmissão cultural, embasado em uma visão
darwinista. O etólogo retira o termo da palavra grega mimeme, que
tem a ver com imitação, abreviada para que soasse como “gene”.
Segundo o autor: “como os genes se propagam no pool gênico
saltando de corpo para corpo através dos espermatozóides ou dos
óvulos, os memes também se propagam no pool de memes saltando
de cérebro para cérebro” (DAWKINS, 2001, p.330).
O autor supracitado, inscrito nos estudos culturais de viés
evolucio- nista, ligados às teorias darwinianas, propôs um paralelo
entre as unida- des transmissoras genéticas – os genes – e as
unidades de transmissão culturais, denominadas por ele “memes”.
Segundo Dawkings (2001, p. 330), “exemplos de memes são
melodias, ideias, slogans, as modas no vestuário, as maneiras
de fazer potes ou de construir arcos”.
Em um salto teórico para a área da Comunicação, respaldando-
se na ascensão da Internet e nas implicações desse fenômeno, Limor
Shifman (2013) traz novas visões para os estudos dos memes. A
autora apresenta, na obra “Memes in digital culture”, uma proposta de
reflexão sobre essa forma de linguagem, inserindo em seu trabalho a
questão do ciberespaço e das tecnologias digitais. Para a
pesquisadora, os memes operariam em “coleções de produções”,
envolvendo um trabalho sobre referenciais pró- prios dos ambientes
virtuais, e que, por estarem submetidos às facilidades de uso de
ferramentas de edição de imagem e à velocidade de circulação, os
mesmos seriam passíveis de serem reformulados/transformados em
grande quantidade, “compartilhando características de conteúdo,
forma e/ou postura em comum” (SHIFMAN, 2013, p. 455).
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

As abordagens discursivas sobre este objeto (o meme) ainda


estão começando, mas podemos destacar o trabalho de Souza (2013),
que busca, nas teorias do texto e do discurso, respaldo para analisar
o que ele deno- mina “textos mêmicos”. Essa definição interessa-nos
na medida em que considera como “texto” aquilo que é “fato
discursivo” (ORLANDI, 1999), unidade linguístico-discursiva,
produzido sob determinadas condições de produção, como objeto
de interpretação. Além disso, Souza (2013) afirma que os memes se
agrupam por apresentaram um tom humorístico, em que a ironia faria
trabalhar uma crítica social. De acordo com o autor, os memes nos
permitem olhar para como as formações ideológicas atuam no
ciberespaço, como uma possibilidade dos sujeitos usuários da internet
socializarem/participarem na rede, uma vez que

Os textos mêmicos carregam em si mensagens que são


deco- dificadas pelos cérebros receptores, analisadas,
interpretadas, adotadas e, por vezes, replicadas, tal que, ao se
familiarizarem com a linguagem contida no componente a
ser replicado, es- tarão dialogando de certa maneira com o
criador do “meme”, ou mesmo com os partícipes das
mesmas interações de trans- missão de ideias. É a
linguagem enquanto fenômeno social, como prática de
atuação interativa. (SOUZA, 2013, p. 137)

De nossa parte, insistimos em uma abordagem outra,


sustentada nas teorias materialistas do discurso, movimentadas por
Michel Pêcheux (1995), na França, e por Eni Orlandi (1999), no
Brasil. Falar da posição de analista do discurso implica tomar a
língua na sua relação com a história, o que é o mesmo que dizer que
os sentidos têm sua historicidade, pois “algo fala (ça parle) sempre
‘antes, em outro lugar e independentemente’” (PÊCHEUX, 1995,
p.162).
Diante disso, o presente texto apresenta análises dos memes
se- lecionados, além de encaminhamentos para aulas de leitura de
cunho discursivo. Iniciaremos as reflexões delimitando as bases
teóricas que sustentam nossas análises, de modo particular as
teorias do discurso de linha francesa (PÊCHEUX 1995; ORLANDI,
1999), para, a partir desse domínio teórico, investigar o
funcionamento discursivo dos memes virtu-
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

ais; em um segundo momento, levantaremos as análises pré-


pedagógicas realizadas a fim de discursivizar, isto é, historicizar os
textos mêmicos escolhidos para o trabalho; por fim, faremos alguns
apontamentos e su- gestões de atividades de leitura para a
promoção de aulas que invistam em gestos de interpretação que
confrontem a língua em sua relação com a histórica e com a
ideologia, dando consequência a um trabalho peda- gógico que
possibilite aos alunos “uma relação menos ingênua com a
linguagem” (ORLANDI, 1999, p. 9).

SITUANDO A ESCUTA: SOBRE A ANÁLISE DO DISCURSO

Ao filiarmo-nos à teoria materialista do discurso, retomamos


com Orlandi (2005, p.181) a afirmação de que “para que nossas
palavras façam sentido é preciso que elas já tenham sentido”. Esse
postulado é basilar em AD, uma vez que (i) trata o texto como objeto
histórico, sujeito aos movimentos do discurso na história, e (ii)
desestabiliza a noção de que o sentido surge no momento da
enunciação, colocando os textos em re- lação a outros textos, já-ditos
e já-lidos. É nesse sentido que o conceito de sujeito trabalhado em
AD é o do inconsciente, pois não tem controle absoluto sobre os
sentidos, que lhe escapam.
Consequentemente, é necessário tomar em conta as condições de
produção que possibilitam a formulação e circulação de textos. Trazemos
à baila as reflexões de Coracini (2005), ao tratar das concepções de
leitura na (pós-)modernidade, dizendo que

[...] não vemos ou não lemos o que queremos (de


forma in- dependente) qualquer momento, ou em qualquer
lugar, assim como não podemos dizer ou fazer o que
quisermos em qualquer lugar e a qualquer momento que
autorizam a produção de certos sentidos e não de outros.
(CORACINI, 2005, p. 27)

Ainda nesse sentido, a respeito das condições de produção de


um discurso, entra em cena o conceito de formação discursiva (FD),
que, mesmo “polêmico”, como apontado por Orlandi (1999), é
imprescindível
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

em AD. As FDs determinam o que pode ou não ser dito, a partir de


uma relação de lugares no interior de uma formação ideológica,
derivadas das condições de produção (PÊCHEUX & FUCHS, 1975).
São dessas relações que os sentidos se constituem, uma vez que as
palavras não significam por si mesmas, mas produzem seus
sentidos no movimento do discurso. Conforme Pêcheux e Fuchs
(1975, p. 169), “o ‘sentido’ de uma sequência só é materialmente
concebível na medida em que se concebe esta sequência como
pertencente necessariamente a esta ou àquela formação discursiva
(o que explica, de passagem, que ela possa ter vários sentidos)”.
Tomando por base a afirmação de Orlandi (2005, p. 33) na
qual, “a constituição determina a formulação”, vale pensarmos a
interpendência entre os eixos da formulação e constituição dos
sentidos. O eixo da constituição (interdiscurso) refere-se àquilo que
foi dito antes, em outro lugar, em condições diferentes, mas que é
mobilizado pela memória discursiva (estruturada pelo esquecimento).
Essa memória sustenta toda possibilidade de formulação
(intradiscurso), atravessada pelo já-dito, de maneira a dar um
contorno material ao discurso (ORLANDI, 2005). É entre retomada e
atualização que os sentidos ganham corpo, em um constante
movimento entre o mesmo (paráfrase) e o diferente (polisse- mia);
daí podermos pensar em deslocamento (movimento) de sentidos,
por exemplo.
Entre idas e vindas de sentidos, em pontos distintos de escuta, é
que levantamos a questão da leitura em AD. Segundo Orlandi (2008),
a leitura é ponto crítico da produção de um texto, pois é o momento
da realização do significante, em que são “produzidos” os efeitos de
sentidos (reprodu- zidos, transformados, deslocados). Ler,
consequentemente, é (re)produzir sentidos. Para Coracini (2005), os
gestos de leitura são atravessados pela subjetividade, que, por sua vez,
é perpassada pelo outro. Esses gestos vão determinando sempre novas
escutas, processando novas leituras. A noção de processo é o que traz
para a discussão a historicidade da leitura, como trabalho a nível
simbólico (ORLANDI, 2005), pois o sentido pode ser outro. Além
disso, é necessário observar que também a história de leituras do
sujeito-leitor virá intervir no processo, já que, interpelado pela
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

ideologia, ele se apropria socialmente do texto, pesando certos


sentidos sobre o acontecimento de leitura, os quais são
determinados pelas posi- ções em jogo. Portanto, ainda segundo a
autora, poderíamos organizar a questão do processo de leitura da
seguinte forma:

[...] diante de um texto, um sujeito x está afetado pela sua


historicidade e se relaciona com o texto por alguns pontos
de entrada, que têm a ver com a historicidade do texto e a
sua. Como o texto não é transparente em sua matéria
significante, há um efeito de “refração” em relação à sua
(do leitor) história de leituras, efeito esse que é função da
historicidade do texto (sua espessura, sua resistência).
Assim se dá o processo de pro- dução dos sentidos, de
forma a que o sujeito leitor se apodere e intervenha no
legível (o repetível). É desse modo, portanto, que se pode
entender a relação dinâmica entre constituição e formulação
do sentido. (ORLANDI, 2008, p. 114)

Considerando a relação entre a constituição e formulação dos senti-


dos, além de apresentar algumas considerações acerca da noção de
leitura como processo discursivo, fechamos esta retomada teórica
com alguns apontamentos sobre a textualidade dos memes que
constituem o corpus de análise, mais especificamente as
materialidades significantes (MS) (LAGAZZI, 2010) que os
compõem. Essa noção permite-nos trabalhar com uma definição de
texto que não se prende à palavra escrita, mas que dá conta das
possibilidades variadas de formulação, por diferentes formas
significantes, que são os modos pelos quais os sentidos se
formulam (LAGAZZI, 2010). Nos memes analisados, foi produtivo
considerar as relações (contraditórias) entre o verbal e o não-verbal,
em imbricação, para refletirmos sobre os diferentes modos de os
significantes se inscre- verem na história.
Os diferentes materiais e as diferentes superfícies determinam
diferentes relações com/de sentidos. Escrito, ou oral, letra
ou sinal, superfície plana ou multidimensional, parede,
papel, faixa, letreiro, painel, corpo. Textura, tamanho. Cor,
densidade, extensão, tudo significa nas formas de
textualização, nas diver-
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sas maneiras de formular. Jogo da formulação, aventuras


dos trajetos que configuram sua circulação. Acaso e
necessidade. (ORLANDI, 2005, p. 205)

MOVIMENTANDO LEITURAS: ANÁLISES PRÉ-PEDAGÓGICAS

Os gestos analíticos depreendidos não tiveram por finalidade


ex- plicitar os sentidos dos memes em questão, como um
“esgotamento” de interpretações. Ao contrário, as leituras prévias
serviram para restituir ao meme a opacidade da linguagem, o que
deu contorno às atividades subsequentes, que se basearam nas
análises descritas a seguir.
Os sentidos dos memes circulam e fazem seus trajetos
(ORLANDI, 2005) no/pelo digital, o que implica compartilhamento,
replicação. Con- forme Dias (2018), a replicação está sustentada pela
memória metálica (horizontalidade), em que importa a quantidade (o
viral seria um exemplo de eficácia de circulação pela replicação) e
não necessariamente a his- toricidade, a inscrição na história,
afastando-se da memória discursiva, imprescindivelmente histórica. A
autora entrevê, no entanto, que pela memória digital – acontecimento
da tecnologia no urbano – é possível o deslocamento, o “resíduo”, já
vinculado ao interdiscurso (memória dis- cursiva), que “escapa a essa
simples re-atualização” da memória metálica.
No que concerne à seleção dos memes para análise, a mesma
foi guiada por uma percepção da constituição e formulação dos textos
mêmi- cos, notando que alguns memes mantinham relações muito
próximas com outros, seja por retomarem as mesmas imagens ou
enunciados verbais similares ou mesmo por abordarem temáticas
relacionadas. Com isso, seguindo as regularidades apresentadas,
separamos uma família de memes para compor o corpus desta
pesquisa, representada por quatro memes.
Esse movimento de identificação de regularidades no
agrupamen- to em “famílias mêmicas” foi favorecido pelo
conceito de paráfrase (PÊCHEUX, 1997 [1975]; ORLANDI, 2005)
que nos possibilitou pensar em redes de memes que se formulam
em relação a outros já-vistos. A paráfrase é descrita por Pêcheux
(1997 [1975]) como “matriz do sentido” (p. 169), construindo
sentidos na relação entre o mesmo (identificação,
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

estabilidade) e o diferente (sentido outro, deriva). Orlandi (2005)


também reafirma que é nessa conjugação do mesmo com o diferente, no
batimento entre a repetição e a transformação, que os sentidos se
constroem. Além disso, do ponto de vista discursivo, entende-se a
paráfrase como noção histórica e também ideológica, sem limitar-se
a critérios puramente lin- guísticos. Já a análise dos dados surge
com a mobilização dos conceitos estudados em relação com os memes
escolhidos para o corpus, compondo famílias mêmicas. As práticas de
leitura sobre os memes em sala de aula buscam “fazer valer” no
espaço escolar uma preocupação com a vivência em linguagem (digital)
dos sujeitos-alunos fora dos limites da escola, desenvolvendo
propostas de material didático.
Família de memes “Coisas com sentimentos”:
Figura 1 - Sistema nervoso autônomo

Fonte: http://www.museudememes.com.br

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Figura 2 – Vinho seco

Fonte: http://www.museudememes.com.br

Figura 3 – O lápis desapontado

Fonte: http://www.museudememes.com.br

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Figura 4 – Sabão Neutro

Fonte: http://www.museudememes.com.br

O critério, portanto, que envolveu esse agrupamento em famílias


mê- micas, conforme exposto acima, leva em consideração tanto os
elementos estruturais dos enunciados, no que diz respeito às
formulações verbais e imagéticas que se relacionam à textualização
– ordem da formulação verbal e visual – quanto os aspectos
discursivos, isto é, os discursos que eles retomam, reformulam,
repetem e/ou transformam. Quanto a isso, Orlandi (2005), ao tratar
da formulação dos sentidos, assevera que formular significa
realizar um possível, na colocação do discurso no texto
(textualização), indicando que um texto é, enquanto materialidade
linguística e histórica, um gesto de interpretação, o
comprometimento com uma versão, na tentativa de traçar um
contorno ao discurso, no efeito imaginário de unidade. Isso reforça
novamente a ideia de paráfrase, mo- bilizando uma memória
discursiva ou interdiscurso (já-visto e esquecido) que constitui os
sentidos. Ao formular um possível, atravessamos o nível da
constituição (interdiscurso), atualizando essa memória, estabelecendo
um “ponto de escuta”.
Nossa análise não propunha simplesmente aplicar conceitos sobre
os memes, mas, ao depreendermos em leitura, manter um olhar
atento ao modo como se constituem, formulam e circulam. Nessa
perspectiva,
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

os conceitos centrais em cada família de memes foram eleitos não


por força de uma aplicação exterior meramente, mas numa relação de
leitura, de um gesto de interpretação, frente ao material
selecionado.
Dessa forma, explanaremos as análises pré-pedagógicas que
faziam parte do cronograma do projeto. As análises pré-pedagógicas
têm a fina- lidade de apresentar, a partir de um levantamento de
aspectos discursivos da textualidade dos memes, conceitos que
foram demandados no gesto analítico e que são produtivos de serem
trabalhados em práticas de leitura.
Destacamos que os títulos que usamos para agrupar os memes
em famílias são propostos de acordo com o modo como os
mesmos são percebidos/nomeados pelos sujeitos-usuários das redes
sociais de compartilhamento, além de tomar em consideração
algumas divisões em grupos de memes propostas pelo site “museu
de memes”�, uma iniciativa de membros do corpo docente e
discente da Universidade Federal Fluminense.
Como próprio da maioria dos memes, os textos mêmicos que
fazem parte da série “coisas com sentimentos” apresentam
materialidades dis- tintas na composição textual, imbricando
linguagem verbal e imagética. Dessa forma, cada materialidade vai
conduzir a uma especificidade de formulação e, portanto, de
constituição, mobilizando não apenas o já-dito (ORLANDI, 1999),
mas também o já-visto. Conforme Lagazzi (2009, p. 68),

Não temos materialidades que se complementam, mas que se


relacionam pela contradição, cada uma fazendo trabalhar
a incompletude na outra. Ou seja, a imbricação material se
dá pela incompletude constitutiva da linguagem, em suas
dife- rentes formas materiais. Na remissão de uma
materialidade a outra, a não-saturação funcionando na
interpretação permite que novos sentidos sejam
reclamados, num movimento de constante demanda.

Nessa conjugação entre imagem e palavra, desloca-se uma


noção de texto enquanto prática puramente escrita para dar espaço a
uma pers-
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47
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

pectiva discursiva, a qual conceitua o texto como parte de um


processo discursivo, em que as linguagens (seja verbal, imagética
etc.) tendem a “dar-se corpo” (ORLANDI, 2005), linearizando
(organizando) o discur- so. O texto é compreendido, assim, como
unidade significante, a forma material do discurso, que, para a AD, é
unidade de análise, deslocando o texto de um lugar estável,
sustentado pela palavra, para localizá-lo no real da língua, isto é, no
equívoco, em que as palavras não têm sentido nelas mesmas, mas
porque são amparadas por um discurso que fornece “realidade
significativa” (ORLANDI, 2005). Assim, o meme é apreen- dido,
nesta pesquisa, como texto.
A título de descrição, notamos que os memes da família “coisas
com sentimentos” se estruturam, basicamente, em três partes: (1)
título,
(2) imagem e (3) enunciados espalhados ao redor ou mesmo sobre
a imagem. Esse modo de textualização em que há o investimento
em uma composição regular (título/imagem/enunciados verbais
dispersos) está em contradição justamente com o sentido
estabilizado, seja para um esquema relativo ao sistema autônomo do
organismo humano, seja uma taça de vinho, um lápis desapontado ou,
ainda, uma barra de sabão. Os sentidos que jogam com os
enunciados não produzem a reiteração da evidência, mas
justamente vão produzir deslizamentos, a possibilidade de o sentido
ser outro. Ainda que a separação desses elementos seja feita para
fins didáticos, uma vez que o texto mêmico é formulado na
totalidade dos significantes, que trabalham concomitantemente, os
sen- tidos se produzem na relação com o adjetivo “autônomo”, por
exemplo, que convoca uma memória de trabalho, de atividade
informal ou liberal, no caso dos enunciados dispersos na página e
não em um sentido que se liga à biologia. Esse processo de
transferência de sentidos entre uma formação discursiva (biológica)
e outra (uso cotidiano da expressão relacionada ao trabalho) permite
pensar que o sentido desliza, produz a deriva. Assim, nem os
sentidos, nem os sujeitos são fixos, mas marcados pelo movimento;
os sentidos não estão presos à literalidade, mas sim podem
percorrer diversas formações discursivas.
A relação entre o título (1) e a imagem (2) é, poderíamos dizer,
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
literal e se assenta na evidência do sentido, uma vez que a imagem
representa

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

o referente “direto” mencionado pelo título (sistema nervoso,


vinho, lápis, sabão). Já a relação do título (1) com a imagem (2) em
associação aos enunciados dispersos na página (3) joga com a
polissemia, com a possibilidade de o sentido ser outro: há o
rompimento de uma expectativa de literalidade, ao “brincar” com as
palavras, investindo na ironia. Ao defrontar-se com os adjetivos dos
respectivos títulos (nervoso autônomo, seco, desapontado, neutro), os
enunciados que rodeiam as imagens são significados, justamente, por
“ganharem” um enunciador imaginário (posição-sujeito) para o qual
se atribuem as falas, que em alguns casos inclusive são marcadas
com aspas, atribuindo essas palavras a uma voz que não é a do
autor diretamente.
Essa “voz” materializa por meio das falas um sujeito-tema, que
é construído pelo estereótipo, que nada mais é do que a mobilização
de sentidos constitutivos de uma formação imaginária a respeito do
que se espera de um sujeito que possua/se identifique com as
características indicadas pelos respectivos adjetivos (nervoso
autônomo, seco, desa- pontado, neutro). A respeito da memória
discursiva (interdiscurso), esta é entendida como o “saber discursivo
que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-
construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada
tomada de palavra” (ORLANDI, 1999, p. 31). Sendo assim, o meme
04 (“sabão neutro”), por exemplo, produz o efeito de que um “sujeito
neutro” se identificaria com as seguintes falas: (i) “não sou capaz de
opinar”; (ii) “não quero me envolver”; (iii) “nem esquerda, nem
direita”; (iv) “não sei de nada” e (v) “numa briga, sou aquele que
separa!” Isso significa que uma atitude neutra – aqui fortemente
atrelada a uma conotação política – pode ser expressa (formulada) por
meio de expressões do tipo acima transcritas.
Além disso, retomando as relações de polissemia (deslocamento;
jogo do equívoco), ainda no meme 04, notamos que há um trabalho
de linguagem sobre o trocadilho, que desestabiliza uma oposição “x
ou não-x”, evidenciando a não-transparência da língua, como uma
“crítica ao elogio do único.” (ORLANDI, 2005). Nesse sentido,
ocorre um jogo de ambiguidade entre o “sabão neutro”, sendo
“neutro” um adjetivo que caracteriza tanto o sabão (sem cheiro,
simples) quanto o “sujeito-neutro”,
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

ou seja, aquele que não formula sua opinião, que se mostra apartidário,
na tentativa de sair isento de responsabilidade/culpa. É sobre essa
posição- sujeito neutra a que o meme faz ironia, criticando um
posicionamento que se pretenda imparcial, uma vez que não há
prática de linguagem que não seja política, isto é, que não tenha um
direcionamento de sentido (ORLANDI, 2005). Trabalhando contra a
evidência, notamos o convívio dos sentidos outros (plurais).
Ainda no que tange a relação entre formulação verbal e
formulação visual, trazemos à baila as reflexões de Nunes (2012) ao
tratar do discurso do infográfico, de modo particular, suas
observações acerca da relação palavra-imagem. A autora afirma, ao
tratar da geometrização do dizer no discurso do infográfico, sobre as
relações entre enunciados verbais e imagéticos quando formulados
dentro do discurso jornalístico, que é perceptível que as formulações
verbais e visuais trabalham produzindo efeitos de síntese, ou seja,
“quando a formulação verbal é reiterada na formulação visual e vice-
versa” (p. 127). Conforme apontado, nos memes em questão, a relação
entre palavra e imagem não produz um efeito de síntese, uma vez que
as relações de sentidos entre ambos não funcionam pela literalidade
esperada. Na verdade, o que encontramos é um efeito de deslize,
de fissura na própria expectativa. A imagem não “direciona” para o
enunciado verbal, ela “brinca” com ele e vice-versa.
Entretanto, outro efeito de síntese é notado, através de um “pro-
cedimento reiterativo que garante o efeito de síntese verbal e/ou
visu- al” (NUNES, 2012, p. 170). Este procedimento acontece por
meio da repetição dos enunciados verbais, apreendidos como
paráfrases, que funcionam pela retomada do mesmo, neste caso,
um mesmo imaginário de sujeito. No meme 02 (“vinho seco”), por
exemplo, os enunciados (i) “ata”, (ii) “kk legal”, (iii) “blz”, (iv)
“hm”, (v) “ok”, (vi) “vc q sabe” e
(vii)“que bom”, retomam um mesmo pré-construído sobre “ser
seco”, entendido como “ser grosseiro” ou “ser desinteressado”. Ao
invés de formular apenas um desses enunciados, são formulados sete,
investindo no contorno que se tenta dar aos sentidos e, em decorrência,
aos sujeitos. Por meio de formulações enxutas e sintéticas (no
sentido lexical), é re- tomado o estereótipo da “secura”, do
desinteresse, em que o excesso do
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
50
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

dizer aparece como tentativa de garantir um efeito de evidência.


Como postulado por Pêcheux (1995, p. 171), sobre o pré-construído,
este remete “‘àquilo que todo mundo sabe’, isto é, aos conteúdos de
pensamento “do sujeito universal” suporte da identificação e àquilo
que todo mundo, em uma “situação” dada, pode ser e entender, sob
a forma das evidências do ‘contexto situacional’”, como uma ideia já
pré-afirmada e estabilizada.
Sobre os enunciados do meme 04 (“sabão neutro”),
separadamente, notamos uma intertextualidade com outro meme viral,
formulado a partir de uma declaração de Glória Pires durante os
comentários da premiação mais famosa do cinema, o Oscar, em 2016:
“não sou capaz de opinar”. Devido a suas respostas curtas/secas sobre
os filmes, tomadas por muitos como despreparo para comentar o
evento, várias das frases de Glória passaram a compor memes, sendo
a mais “reconhecida” a declaração acima. Nesse sentido, ao
pensarmos as condições de produção dos dis- cursos (PÊCHEUX,
1975; ORLANDI, 1999), inclusive na dimensão textual, no caso do
meme 04, notamos um intertexto com o meme abaixo:
Figura 5 - Meme “não sou capaz de opinar”

Fonte: http://www.museudememes.com.br

Caso similar é notado na figura 2, mais precisamente na


palavra “ata”, que recupera o meme da figura 6, protagonizado pela
personagem Mônica, da Turma da Mônica, de autoria de Maurício de
Souza. O meme da figura 2 estabelece suas relações de sentido
com aquele da figura 6,
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51
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

buscando nele um sentido (secura, ser grosso) que beneficie seu


próprio texto. Essa intertextualidade “inter-memes” pode ser
apreendida, então, como uma forma da retórica do meme, que
explora os limites do texto e da argumentação, procurando em um
texto conhecido – que gerou certa repercussão nas redes sociais –
uma forma, inclusive, de legitimação de circulação.
Figura 6 – Meme “ata”

Fonte: http://www.museudememes.com.br

Difere-se, portanto, intertextualidade de interdiscursividade, visto


que esta ocorre sobre o que foi dito antes, em outro lugar e
esquecido, enquanto aquela não se estrutura sobre o esquecimento
(ORLANDI, 1999), mas sobre o apontamento acerca de um dizer
anterior do qual se sabe sobre. Esse recurso vai em direção ao que
Shifman (2013) afirma ao tratar das características que ela considera
gerais nos memes virtuais, a saber, “que foram criados cientes uns
dos outros” (p. 455), o que aponta para uma tendência de resgate de
memes em outras formulações mêmicas.
Outro enunciado aspeado também ganha destaque na imagem
04 (“sabão neutro”), por inclusive tomar lugar no centro da imagem:
“nem esquerda, nem direita”. Considerando, então, o trabalho com a
ironia, é possível averiguar a afirmação de Orlandi (1999), para quem
as palavras não têm um sentido nelas mesmas, mas que os sentidos
são circunscritos/ direcionados pelas posições discursivas nas quais as
palavras são empre-
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

gadas. Isso fica claro nesse meme, pois, as palavras que são
formuladas no texto (meme 04: “sabão neutro”) fazem uma crítica a
uma postura neutra, em vários sentidos. Contudo, ao declarar “nem
esquerda, nem direita”, percebemos que a crítica se especifica, ganha
nuances, marcando um po- sicionamento que se coloca como
apartidário, numa tentativa, talvez, de mostrar imparcialidade. A
ironia é trabalhada, portanto, sobre a constatação de que, ao
“habitarmos” (em) a linguagem estamos já comprometidos com o
sentido e com o político; somos determinadores de e determinados
pelo que dizemos, uma vez que o sujeito é “pego” pelo esquecimento
nº 2 de que fala Pêcheux (1995, p. 175), encobrindo “o
funcionamento do sujeito de discurso na formação discursiva que o
domina, e que é por aí, preci- samente, que se apóia sua ‘liberdade’
de sujeito-falante”, no jogo entre a transparência (imaginária) e a
opacidade da linguagem.

MEMES EM SALA: DIRECIONAMENTOS PARA AULAS DE


LEITURA

As análises pré-pedagógicas expostas anteriormente possibilitaram


um discurso sobre os memes virtuais, norteando as atividades
subse- quentes. A partir dos conceitos movimentados dentro do
campo da AD, elaboramos algumas atividades de cunho discursivo,
que visam abrir espaço para leituras mais atentas das
materialidades em questão e dos discursos movimentados em/por
elas. Desse modo, dois conceitos foram chave para deslocarmos as
propostas de leitura de uma visão textual para dar visibilidade aos
aspectos discursivos (linguístico-históricos) e merecem destaque:
(i) as histórias de leitura e (ii) a autoria.
Em AD, consideramos que toda leitura tem sua história
(ORLANDI 2008), pois todo texto possui sua própria história, o que
equivale a dizer que todo gesto de leitura acontece sob determinadas
condições. Nessa visão, o sentido é sempre passível de ser outro.
Contudo, as possibilidades de leitura estão ligadas às materialidades:
os tipos de textos estabelecem relações diferentes com a abertura da
leitura. Um manual de instruções, por exemplo, ofereceria pouca
brecha para interpretação. No caso dos memes, foi produtivo, como
apontado pelas análises, refletir sobre leituras que dão escuta à
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
polissemia constitutiva da linguagem.

53
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Assim como o texto, o sujeito-leitor é histórico, situado no


mundo, em certas posições, que o levam a ter suas histórias de
leitura, as quais podem estabelecer diferentes pontos de escuta sobre
um mesmo texto. Um mesmo leitor, ao ler um texto pela segunda
vez, em outras condições, convocando outras histórias de leitura,
mobilizará outros sentidos para sua leitura. Porém, isso nem sempre é
levado em conta em aulas de lei- tura. Nas palavras de Orlandi
(2008), para as escolas, os sujeitos-alunos chegariam à instituição no
“grau zero” de leitura e interpretação, em busca de um “grau dez”,
figurado na leitura oficializada pelo professor. Recusa-se que ele (o
aluno) seja leitor fora dos muros da escola, bem como que seja leitor
de outras formas de linguagem. Por isso, ao tratarmos da leitura de
memes, deslocamos uma posição que pensa o aluno como sujeito-
leitor de textos verbais exclusivamente, mas que tenha contato e que
se relacione com diferentes materialidades, com diferentes gestos de
leitura.
Sobre um texto pesam relações de força, que direcionam os sen-
tidos a uma leitura autorizada (pela instituição escolar), em que certos
sentidos podem ser lidos, enquanto outros, não: uma leitura
parafrástica, que supostamente reproduziria “o que o texto diz”,
sentidos previstos e cristalizados (ORLANDI, 2008). Cabe ao
professor expor seus alunos a essas condições de leitura autorizadas,
sem, contudo, deixar de apontar para as possibilidades de deslize. A
consequência de que o sentido pode ser deslocado é o que sustenta a
possibilidade de leituras polissêmicas, em que múltiplos sentidos
podem ser atribuídos, convivendo concomi- tantemente (e
conflituosamente) (ORLANDI, 2005). Ler, assim, será construir outro
texto.
O papel do professor, desse modo, é o de oferecer condições
para que seus alunos deem sentido a suas leituras por meio da
significação de suas próprias vivências, sejam elas sociais, culturais
ou ideológicas, sem desconsiderar a historicidade da materialidade
textual. Um trabalho consequente com a leitura deve pensar o aluno
como leitor, afirmação que, embora pareça óbvia, não seja efetivada
com frequência em práti- cas escolares. A leitura, portanto, deve ser
compreensiva (ORLANDI, 2008), isto é, atenta não apenas ao
conteúdo de um texto, mas às maneiras
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

pelas quais o sentido se formula, o que implica diferentes modos de ler


materialidades distintas.

A contribuição do professor, em relação às leituras


previstas para um texto, é modificar as condições de
produção da leitura do aluno, dando oportunidade a que ele
construa sua história de leitura e estabelecendo, quando
necessário, as relações intertextuais, resgatando a história
dos sentidos do texto, sem obstruir o curso da história
(futura) desses sentidos. (ORLAN- DI, 2008, p. 88)

Então, será possível pensar na autoria pela leitura, na passagem


da posição de sujeito-ouvinte para a de sujeito-leitor, em semelhança
à passagem de sujeito-locutor para sujeito-autor. Conforme Pfeiffer
(1995, p. 128), “a autoria só se dá se os sentidos fazem sentido para
o sujeito a ponto de sentir-se controlador e origem destes”, de tal
forma que a assunção da autoria ocorre quando o sujeito se coloca na
origem do seu dizer, tornando-se responsável e responsabilizado pelos
sentidos que produz (e os que não produz) (ORLANDI, 1999). A
autoria é o que confere ao texto seu efeito de unidade (coerência,
coesão, progressão, não-contradição, fim), limitando o acaso do
discurso. Nas palavras de Orlandi (1999, p. 76), a assunção da autoria
requer do sujeito “constituir- se e mostrar-se autor”. Assim,
posicionamo-nos de acordo com Gallo (1990), ao postular:
A única garantia que podemos ter, como professores de
língua portuguesa, é a de propiciar condições para que nossos
alunos possam se inscrever em posições sujeito de
discursos onde o efeito AUTOR é possível, ou seja, em
outros discursos que não sejam somente circulares e auto-
avaliativos, como é o caso do discurso didático-
pedagógico. (GALLO, 1990, p. 25)

Visamos a uma aula de leitura que dê conta de expor os


sujeitos- alunos a diferentes posições-sujeito, construindo gestos de
interpretação plurais (polissemia). Alinhados a Coracini (2005, p. 33),
diríamos que “cada leitura realiza um corte na superfície
aparentemente una e ho-
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

mogênea do texto, corte que, como na cirurgia, é suturado a cada


nova leitura, a cada momento em que o leitor produz sentido,
interpreta, ou seja, traduz”, de modo que possamos, do lugar de
professores, oferecer bases para discussões que considerem as
condições de produção dos discursos, dando visibilidade a deslizes de
sentidos e a outras posições. Em AD, como aponta Bolognini (2009,
p. 44), “o deslocamento está na possibilidade de produzir efeitos de
sentido diferentes daqueles estabi- lizados em seu grupo social”, na
não-evidência do sentido.
Assim, organizamos, em seguida, três encontros de leitura,
discu- tindo diferentes aspectos da discursividade dos memes em
questão. O primeiro encontro trabalha com o meme “ata”, fazendo
ligação também aos memes “coisas com sentimentos”, o que nos
permitiu trabalhar com relações de intertextualidade e, assim, de
polissemia. O segundo discute a noção de equivocidade, as
contradições que constituem o dizer, na sé- rie de memes “coisas
com sentimentos”. No último encontro proposto, destacando-se a
importância de dar sentido às práticas de leitura, caberá um momento
para oferecer condições à assunção da autoria aos alunos, por meio
de uma atividade de publicação online, voltando a atenção para o
ambiente que possibilitou a própria formulação e circulação dos
memes.

Encontro 1:
Sugerimos trazer os memes selecionados e analisados
anteriormente e solicitar que os alunos se envolvam com os memes
não como objetos de um questionário de perguntas, como ocorre no uso
de algumas apostilas e livros didáticos, mas como tema de pesquisa.
Divididos em grupos, cada equipe de alunos seria provocada a
compreender determinados pontos sobre um determinado meme
(desde estruturas recorrentes até relações de sentidos evidentes e
polissêmicos – outras possibilidades – e elos intertextuais, por meio de
pesquisas que possibilitassem a construção de arquivos de leitura –
construindo redes intertextuais entre os memes e os assuntos sobre
os quais esses discursivizam). Os diferentes arquivos de leitura seriam
constituídos por meio de buscas por: (i) textos que dialogam com o
meme estudado em termos de temática; (ii) memes semelhantes,
tomados em uma relação parafrástica. Ao tomarmos a relação
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intertex-

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

tual presente entre os memes das figuras 2 e 5 (em anexo), por


exemplo, que repetem a construção “ata”, poderia ser produtivo
questionar, por essa relação, maneiras pelas quais as mesmas palavras
podem significar diferentemente em outros textos.

Aos alunos:
Atividade 1:
Comente a respeito da construção “ata” que se relaciona ao
meme da personagem Monica, criada por Maurício de Souza, e que
passa a ser formulada e a circular em outros memes. Que efeitos o
“ata” produz no meme “Vinho seco” e no meme protagonizado
pela filha do criador?
Caro(a) professor(a),
Propomos uma abordagem das condições de produção dos memes,
suas formas de circulação e as relações intertextuais que esses
podem estabelecer. A ideia é trabalhar com a dimensão da
circulação do texto, ou seja, é interessante nos perguntar pelos
efeitos que se produzem na leitura pelo fato de o meme – por
diferentes meios (compartilhamentos, viralizações, hashtags) – se
formular e produzir efeitos no efêmero e na rapidez das informações
que nos chegam. Ademais, é importante tomar em perspectiva os
modos de leitura em batimento com as condições dessas leituras,
atentando-se para as diferentes posições de que se in- vestem os
próprios alunos ao lerem memes. Em outras palavras, ao ler um
meme na condição de usuário de redes sociais, por exemplo, como
consumidor “descompromissado” desse tipo de textos, certos (e não
outros, nem quaisquer) sentidos são mobilizados; da mesma forma,
a leitura dos memes como objeto de estudo, em sala de aula, na
posição de alunos, exigirá outras formas de ler, desde as previsíveis
(mais admitidas, frequentemente, pela instituição escolar) às
polissêmicas, deslocando os sentidos na margem da evidência.

Encontro 2:
Como já foi exposto, estamos buscando trabalhar nessa proposta de
leitura não com um dado sentido transparente, óbvio, preso à literalidade.
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

O propósito é o de articular a formulação e circulação dos memes


com as possibilidades de inscrição do sujeito em certas posições
nas quais se reconheça com um sentido e não com outro, fazendo
emergir um sentido já-dito e/ou produzindo deslocamentos.
Considerar as posições em jogo é trabalhar com um social dividido,
marcado por um confronto de senti- dos, o que atesta o papel do
equívoco. Nas palavras de Orlandi (2005), o equívoco é constitutivo
da linguagem e diz respeito ao fato de que as palavras em
funcionamento são passíveis de sentidos contraditórios, de
diferentes interpretações.
Assim sendo, buscamos formular, a partir da noção de equivocidade
(divisão de sentidos), a atividade a seguir, a partir dos sentidos de
ser patrão/ser empregado, movimentados pelo meme da figura 1 (em
anexo):

Aos alunos

Atividade 2:
Defenda um ponto de vista e apresente os motivos:
a) As vantagens de ser o próprio patrão.
b) As vantagens de ser empregado.

Encontro 3:
Enfim, dentre as diversas possibilidades de leitura que seriam
inte- ressantes de se levantar sobre os memes em questão, propomos
um fecho para as atividades sugeridas, que leve em conta a
mobilização da autoria em sala de aula, além do trabalho com o
equívoco, com a possibilidade de deslize. No trabalho de leitura com
a série de memes “Coisas com sentimentos” caberia o jogo com
adjetivos/locuções adjetivas, não por um mero significado contrário
já dicionarizado, mas pela possibilidade de essas palavras opostas
funcionarem nos limites da textualidade, pelo trocadilho.
Esse gesto interpretativo daria consequência ao fato de que é
preciso promover condições para a autoria dos alunos, visto que
“essa prática de interpretação pode e deve ser, ao mesmo tempo,
uma prática de publi-
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

cação na própria internet, o que confere o efeito-autor ao sujeito


aluno” (GALLO, 2012, p.63), ousando serem autores, por meio da
publicação online em suas redes sociais, por exemplo. Diversas
plataformas onli- ne para edição de imagens oferecem suporte de
fácil utilização para a criação de memes.

Aos alunos

Atividade 3:
Após o trabalho de leitura com os memes “Coisas com
sentimentos”, foi possível perceber como diferentes palavras jogam
com sentidos e posições distintas, principalmente, nesse caso, pelo jogo
com os sentidos de expressões adjetivas. Agora é você quem
produzirá um meme. Para isso, em grupos:
a)pesquise na Internet imagens de objetos, lugares, animais
ou qualquer outro elemento que instigue um trocadilho pela
relação do nome com um adjetivo.
b) feito isso, elabore falas que poderiam ser atribuídas a uma
pessoa que possuísse as características relacionadas ao adjetivo
selecionado.
c)por meio do uso de um editor de imagens, formule um
meme reunindo, ao modo dos memes “Coisas com sentimentos”, a
imagem selecionada com as falas elaboradas. Lembre-se de usar
um título para produzir um efeito de quebra de expectativas.

ACABA O TEXTO, CONTINUA O DISCURSO

Em suma, propondo um recorte discursivo como nosso ponto


de escuta, nossas investigações mobilizaram diferentes conceitos
dentro da Análise de Discurso a fim de dar visibilidade à espessura
da histo- ricidade da linguagem e dos sentidos. Partindo da revisão
da literatura sobre os memes até um embarque nas teorias
discursivas que se filiam aos estudos de Pêcheux, podemos tomar
os memes como texto, através de um olhar para as materialidades
significantes (LAGAZZI, 2009) que
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

os constituem. Essa tomada tem por consequência um estudo do


texto como unidade imaginária, contorno material do discurso, que
leva em consideração que a língua tem história, possibilitando-nos
abordar o sentido como relação de interpretação.
Em nosso percurso de análise, tendo em mente a família de
memes selecionada para este momento (“coisas com sentimentos”),
pudemos observar o funcionamento das regularidades tanto no que
diz respeito à formulação quanto à constituição dos sentidos
(ORLANDI, 2005) nesse grupo de memes, levando em conta as
relações entre forma e conteúdo, bem como a imbricação entre
linguagem verbal e imagética. Em decor- rência disso, foi possível
analisar as tensões entre o mesmo (paráfrase) e o diferente
(polissemia), investindo em jogos de palavras (trocadilhos) e
formações discursivas e imaginárias, que no caso dos memes em
questão, pelas construções adjetivas, “brinca” com imaginários de
sujeitos (este- reótipos), que operam por meio de pré-construídos
(PÊCHEUX, 1995), retomados pelos enunciados, de maneira a
reforçar um efeito de evidência.
As análises de memes permitiram-nos investigar a
discursividade dessas materialidades, que colocam em funcionamento a
possibilidade de a língua falhar, nos limites da interpretação e da
contradição. Além disso, o funcionamento discursivo dos memes
apontou para diferentes posições, alinhadas, entre si, por um caráter
“subversivo”, isto é, que joga com opacidades e des-naturalizações,
em que a palavra “resistência” caberia com muita propriedade. Resistir
pela linguagem, entendida como forma de poder, é contra-
identificar-se, marcar outra posição também possí- vel. Resistir
porque os sentidos são disputados, disputa que é regulada pelas
regras de alguns, que devem ser analisadas e discutidas. Resistir
expondo-se às histórias dos sentidos.
Além disso, retomando Gallo (2012), é válido apontar para a
ne- cessidade de práticas de leitura e de escrita cujos objetivos não
sejam circulares (em que o texto não seja um pressuposto para o
ensino de gramática, e nem que as atividades de interpretação
sirvam a um pro- pósito puramente pedagógico), mas que se
inscrevam como discursos de escrita, que se caracterizam como
aqueles em que há o efeito autor
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

(efeito de fecho), alinhando-se a um lugar discursivo já legitimado,


em contraposição ao discurso de oralidade, praticado amplamente,
no qual os sentidos são provisórios, pois não efetivam a autoria.
Com isso em mente, seria interessante propor aos alunos que
publiquem os textos produzidos após leitura e análise em grupo em
suas redes sociais, por exemplo, “ousando” serem autores, na
medida em que “essa prática de interpretação pode e deve ser, ao
mesmo tempo, uma prática de publi- cação na própria internet, o que
confere o efeito-autor ao sujeito aluno” (GALLO, 2012, p. 63).
Julgamos relevante mostrar os efeitos que mobilizar uma
abordagem discursiva pode trazer ao trabalho com leitura. Muito
provavelmente, os sentidos trabalhados com as atividades que
propomos seriam ignorados em trabalhos convencionais de aula.
Dessa forma, a leitura discursiva é um caminho produtivo em muitos
aspectos e deve ser pensada para o contexto da educação, pois
possibilita um trabalho com a diferença, com o outro (e também
possível) sentido e com a heterogeneidade de textos e identidades
em sala de aula.

REFERÊNCIAS

BOLOGNINI. O desafio para o professor a exemplo do filme 2001: Uma


Odisséia no espaço. In: BOLOGNINI, C. Z. PFEIFFER, C. LAGAZZI, S.
Discurso e Ensino: Práticas de Linguagem na Escola. Campinas: Mercado
das Letras, 2009.
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P. (Org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas: Mercado das Letras, 2005, p. 15-
44.
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das letras, 2001.
DIAS, C. Análise do discurso digital: sujeito, espaço, memória e arquivo.
Campinas: Pontes Editores, 2018.
GALLO, S. L. Discurso da Escrita e Ensino. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1992.
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linhas, nº 53. Porto alegre, 2012, p. 53-64.
LAGAZZI, S. Linha de passe: a materialidade significante em análise. In. Rua,
n. 16. Campinas: 2010, p. 172-182.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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Tese (Doutorado em Linguística). Campinas: UNICAMP, 2012.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas:
Pontes Editores, 1999.
ORLANDI, E.P. Discurso e leitura. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
ORLANDI, E. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas:
Pontes Editores, 2005.
PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes
Editores, 1990.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.
Trad. de Eni Orlandi. Ed. da UNICAMP: Campinas, 1995.
PÊCHEUX, M., FUCHS, C. (1975). A propósito da análise automática do
discurso: atualização e perspectivas. In: GADET & HAK (Orgs.). Por uma
análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux.
Campinas: Ed. da Unicamp, 1993.
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Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de
Campinas.
SHIFMAN, L. Memes in Digital Culture. Cambridge: MIT Press, 2013.
SOUZA, C. F. Memes: formações discursivas que ecoam no ciberespaço.
In:
Vértices – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense. Vol. 1,
n. 1. Campos dos Goytacazes: Essentia Editora, 2013.

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

A LEITURA NA ESCOLA: NUANCES DISCURSIVAS

Paulo Cézar Czerevaty


Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)

Cristiane Malinoski Pianaro Angelo


Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)

Luciana Cristina Ferreira Dias Di Raimo.


Universidade Estadual de Maringá
(UEM)

As relações entre o modo como o professor pensa a leitura e o


fazer pedagógico em sala de aula já foram objetos de reflexão de
diversos lin- guistas. Coracini, por exemplo, afirma que a leitura
sempre traz consigo uma postura teórica, ao partir dos pressupostos
de que teoria e prática encontram-se sempre entrelaçadas e de que
é no “espaço de tensão” (2005, p.15) – espaço que as separa e ao
mesmo tempo as une – que acontece o processo de leitura. Nesse
sentido, subjacentes às práticas de ensino da leitura na escola e
norteadores de toda a ação docente, encontram-se sempre um
conceito, uma postura teórica, que se atrela ao desenvolvimento das
pesquisas das ciências da linguagem, e uma postura política, que
corresponde à importância que a prática da leitura adquiriu
historicamente nas sociedades urbanas e modernas.
Assim sendo, interessa-nos, neste capítulo, discutir as relações
entre a Análise do Discurso, definida como uma teoria de leitura, e
as práticas escolares de leitura, principalmente por pensarmos o ler
não como um trabalho de recepção, mas de produção de sentidos, o
que implica em
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considerar nas aulas de leitura a exterioridade, os embates e tensões dis-


cursivos, as memórias (os interdiscursos) que atravessam o texto e o
leitor como produtor de leitura(s), advindas de sua inscrição na
dinâmica social
A Análise do Discurso de orientação francesa (AD), erigida a
partir dos postulados de Michel Pêcheux, nos fins dos anos sessenta,
e ampliada, no Brasil, pelas contribuições de Orlandi (2000; 2001),
Coracini (1995; 2005), Lagazzi (2009), dentre outros analistas,
contrapõe-se às bases teórico-conceituais que tomam a língua como
um sistema de formas normativas idênticas (meio de comunicação)
ou como resultado de um processo de criação individual (expressão
do pensamento), tendências linguísticas que Volochinov (2017
[1929]) definiu como Objetivismo Abstrato e Subjetivismo Idealista,
respectivamente. A AD, como “es- tudo da discursivização”
(FIORIN, 1990, p.175), coloca o processo de constituição do discurso
como o cerne da discussão acerca da realidade fundamental da
linguagem, isto é, interessa-lhe a abordagem dos “proces- sos
constituintes do fenômeno linguístico e não meramente seu produto”
(ORLANDI, 1988, p.17). Nesse sentido, conforme Menegassi e
Angelo, (2010) nas práticas de leitura ou de análise de texto
indagações como O texto atende aos preceitos da língua? Quais as
principais ideias contidas no texto? O que o autor quis dizer? cedem
espaço para reflexões que colocam em relevo os movimentos, o
percurso que o sujeito faz para ler como lê. Por isso, interessa à AD
explicitar Como os sentidos são negociados entre o leitor e o texto.
Na tendência discursiva de linguagem, aborda-se o texto não
como mero produto linguístico, mas como instância de um processo
discursivo que abrange as condições de produção, as relações de poder e
as memórias no/ pelo discurso. Para tanto, problematiza-se a relação
texto e produção de sentidos no interior de um espaço sócio-
histórico, de forma a trazer à tona questões sociais, culturais e
ideológicas, mas sem perder de vista a materialidade da língua. A
leitura é, então, “um processo discursivo no qual se inserem os
sujeitos produtores de sentido – autor e leitor – am- bos sócio-
historicamente determinados e historicamente constituídos”
(CORACINI, 1995, p. 15).
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

De modo a fundamentar a perspectiva discursiva de leitura,


torna- se imprescindível recuperar os princípios basilares da AD, na
qual a abordagem da linguagem, em contraposição ao Objetivismo
Abstrato e ao Subjetivismo Idealista, insere-se no quadro mais
amplo das relações sociais. O primeiro princípio diz respeito à
concepção de sujeito. Para a AD, não há um sujeito fonte de
sentido, senhor da língua, mas um sujeito cindido, inconsciente,
interpelado pela ideologia, portanto, sem liberdade discursiva –
noção que provém do fato de a AD pretender-se uma teoria da
subjetividade (não-subjetiva) de natureza psicanalítica. O sujeito é
afetado pelo “esquecimento ideológico”; ele tem a ilusão de que é
origem de seu dizer quando na verdade o seu dizer nasce em e com
outros. Esta é uma ilusão necessária para que o sujeito se constitua
em sujeito (ORLANDI, 2001).
Imbricada à concepção de sujeito, encontra-se a concepção de
discurso, que é, para a AD, ao mesmo tempo, estrutura e
acontecimento (PÊCHEUX, 1997). Quer dizer, a estrutura é
condição de base sobre a qual se desenvolvem os processos
discursivos e não funciona como uma proposição estabilizada, mas
se encontra suscetível ao movimento histórico, social e ideológico.
Desse modo, texto e discurso constituem noções distintas. O discurso
apresenta-se como a produção de efeitos de sentidos múltiplos e
diversos entre interlocutores (PÊCHEUX, 1990) ou um processo de
significação em que se entrelaçam a língua, a história e o sujeito,
determinado histórica e ideologicamente. O texto materializa a
discursividade; é o objeto de interpretação. “Um texto é só uma peça
de linguagem de um processo discursivo bem mais abrangente e é
assim que deve ser considerado. Ele é um exemplar do discurso”
(ORLANDI, 2000, p. 72); um lugar de jogo de sentidos, de trabalho
da linguagem.
Alguns conceitos de que se ocupa a AD – condições de
produção, memória, interdiscurso, formação discursiva, formação
imaginária – são cruciais para clarificar os princípios supracitados e
favorecer um olhar mais aprofundado para a visão discursiva de
leitura. Esses conceitos têm em comum o fato de terem como ponto
de partida a consideração de que linguagem e sociedade são
indissociáveis: “todo falante e todo ouvinte ocupa um lugar na
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sociedade, e isso faz parte da significação.

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[...]. O lugar assim compreendido, enquanto espaço de representações


sociais, é constitutivo das significações” (ORLANDI, 1998, P.18).
As- sim, os sentidos não estão nas formas das palavras, mas na
relação das palavras com o que está fora do texto, nas condições em
que eles são produzidos - o lugar ocupado pelos interlocutores, a
situação, o contexto sócio-histórico e ideológico, elementos que
remetem à exterioridade e propiciam conceber o funcionamento do
discurso.
Nessa perspectiva, Gregolin (1995, p. 20) afirma que “empreender a
análise do discurso significa tentar entender e explicar como se
constrói o sentido de um texto e como esse texto se articula com
a história e a sociedade que o produziu”. Por isso, em situações
escolares de leitura, na perspectiva da AD, é essencial levar em
conta a compreensão não só das diversas relações internas no texto
– especificamente linguísticas, mas também das diversas relações
externas – relativas ao contexto sócio-histórico, pois estas
autorizam a produção de certos sentidos e não de outros, como se
fossem regras, leis do momento e do espaço (CORACINI, 2005).
As relações externas ao texto, mas constitutivas dos sentidos,
reme- tem às formações discursivas e às formações ideológicas, nas
quais se inserem o autor e o leitor. A formação discursiva representa
o conjunto do que pode e deve ser dito de acordo com uma posição
em uma con- juntura dada (ORLANDI, 1988, P.18), noção
indissociável da formação ideológica, que diz respeito às atitudes,
valores, representações, não individuais e nem coletivas, porém
representativas das posições de classe em tensão e conflito umas com
as outras (ORLANDI, 1988, P.18). Sen- do assim, o que pode e o
que deve ser dito é designado a partir de uma formação discursiva.
Não se diz qualquer coisa, em qualquer lugar, em qualquer momento;
diz-se alguma coisa com base em uma posição em uma dada
conjuntura; esta conjuntura está representada no interior dos processos
discursivos e determina sentidos diferenciados (PÊCHEUX, 1990). No
entanto, essa representação não consiste numa reprodução ou
dublagem de lugares sociais, mas numa espécie de “jogo de imagens
de lugares sociais” (PÊCHEUX, 1990, p. 83), de modo que “as
imagens que o sujeito vai construindo ao enunciar vão definindo e
redefinindo o
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

processo discursivo” (MUSSALIM, 2001, p. 138). Mussalim, com


base em Pêcheux, sintetiza o jogo de imagens que se constitui na
medida em que os sujeitos constituem os próprios discursos:

1. A imagem que o sujeito, ao enunciar seu discurso, faz:


a. do lugar que ocupa;
b. do lugar que ocupa seu interlocutor;
c. do próprio discurso ou do que é enunciado.

2. A imagem que o sujeito, ao enunciar seu discurso, faz da imagem


que seu interlocutor faz:
a. do lugar que ocupa o sujeito do discurso;
b. do lugar que ele (interlocutor) ocupa;
c. do discurso ou do que é
enunciado. (MUSSALIM, 2001, p.
137)

Todo processo discursivo implica da parte do sujeito-autor uma


antecipação das representações do sujeito-leitor, sobre a qual se
funda- menta a estratégia do discurso (PÊCHEUX, 1990), isto é, por
meio das imagens, o sujeito-autor põe-se no lugar de seu
interlocutor e, assim, orientado pelo mecanismo de antecipação,
constitui, na textualidade, um leitor imaginário (ORLANDI, 2001).
Quando o leitor real aborda o texto, depara-se com um outro leitor
aí constituído, com o qual deve se relacionar.

Se se deseja falar de processo de interação da leitura, eis aí


um primeiro fundamento para o jogo interacional: a relação
básica que instaura o processo de leitura é o jogo entre o
leitor virtual e o leitor real. É uma relação de confronto.
[...] O leitor não interage com o texto (relação
sujeito/objeto), mas com outros sujeitos (leitor virtual, autor,
etc.). [...] a relação [...] sempre se dá entre homens, são
relações sociais, acrescentaria, históricas ainda que (ou
porque) mediadas por objetos (como o texto). (ORLANDI,
1988, p.9)
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Nesse sentido, o texto construído pelo leitor real quase nunca


corres- ponde ao texto produzido por um determinado autor. Daí ser
inútil buscar as ideias principais, bem como as intenções do autor;
estas, no entender de Coracini (1995), são sempre construções, produto
da interpretação de um dado leitor num dado momento e lugar, e
orientado pelas ideologias, sejam elas aceitas ou não.
O conceito de formação discursiva remete também para seus
inters- tícios, a interdiscursividade ou memória discursiva, que é “o
conjunto de dizeres já ditos e esquecidos que determinam o que
dizemos, sustentando a possibilidade mesma do dizer” (ORLANDI,
2001, p. 59). Assim, a for- mação discursiva se vê invadida por
outras formações discursivas, outros veios discursivos, constituindo-
se, então, na confluência entre a memória e a atualidade/formulação.
É dessa confluência que se movem os sentidos. Por essa razão, o
texto “não se apresenta como um conjunto de enunciados uni- ficados
por posições ideológicas não-conflitantes, como algo homogêneo. Ao
contrário, o texto se constitui de discursos divergentes cujas
fronteiras se intersectam [...]; o texto é heterogêneo, não é possível
definir um dos discursos sem remeter ao outro” (MUSSALIM, 2001,
p. 124). Cabe, então, ao sujeito leitor romper os efeitos de evidência
e expor-se à opacidade do texto, e verificar “o que é dito em um
discurso e o que é dito em outro, o que é dito de um modo e o que é
dito de outro”.

NUANCES DISCURSIVAS DA LEITURA: ANÁLISE DE UMA ATIVI-


DADE ESCOLAR

Discutidos alguns conceitos fundamentais de AD, a questão passa a


ser a seguinte: como esses conceitos podem informar a prática de
ensino da leitura na escola? Para tecermos novos fios que
interconectem a AD e a leitura, apresentamos uma atividade
trabalhada com alunos de um 2º ano do Ensino Fundamental, no
contexto de uma escola pública. Essa atividade, intitulada “Horário”,
foi coletada1 de um caderno escolar e consiste de uma fotocópia de
atividades do livro didático “Português: uma
1 A coleta desse material se deu ao longo do desenvolvimento do Projeto “Extensão e formação
docente colaborativa na escola: aspectos teóricos, metodológicos e práticos para o ensino da
leitura e da escrita nas séries iniciais” (UNICENTRO).
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

proposta para o letramento – 1ª série”, de autoria de Magda Soares.


No caderno escolar, foi acrescentada ainda uma outra proposta,
relacionada à mesma temática da atividade do livro didático.
Figura 1 – Atividades do caderno escolar do aluno

Fonte: acervo do Projeto de Extensão

Figura 2 – Atividades do caderno escolar do aluno (continuação)

Fonte: acervo do Projeto de Extensão

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Percebemos que as atividades propostas (figura 1) não provocam


reflexões e se limitam a exigir da parte dos alunos a mera
localização, no texto, da resposta “correta”, o que os mantêm presos a
uma atitude de reprodução. O texto é abordado como um objeto
completo, que tem fim em si mesmo, e como um portador da verdade
– definitiva e única – a ser assimilada passivamente pelo aluno. Desse
modo, a organização das atividades contribui para “ficar na
‘objetalidade’ do texto [...] fixar-se na mediação, absolutizando-a,
perdendo a historicidade dele, logo, sua significância” (ORLANDI,
1988, p. 9).
Assim, na atividade, o aluno não é levado a entender o texto
em sua dimensão discursiva de significado, ou seja, como um
conjunto de sinais que só têm sentido se forem contempladas as
suas condições de produ- ção, nem entende as atividades de leitura
como construção de sentidos determinados pelo contexto sócio-
histórico e ideológico em que o leitor está inserido e pela história de
leituras do leitor. A visão de texto como documento revelador de
ideologias, de crenças e de valores é ignorada.
O conteúdo veiculado no texto e reforçado pela “interpretação”
escrita enraíza-se no imaginário do aluno, mostrando-se como parte
do dia-a-dia da sala de aula como se esta não pudesse ser concebida
de outra maneira. Inconscientemente, o aluno reproduz o discurso
escolar hegemônico, aceitando-o como único, verdadeiro, indiscutível.
É o que acontece quando o aluno é orientado a escrever “Como é o
seu dia na escola”, ao que o aluno responde, repetindo a estrutura da
atividade anterior, as tarefas que lhe são determinadas: “Terça
Educação Física, Integradas Livro”.
Coerentemente com uma perspectiva discursiva em sala de
aula, apontamos alguns caminhos que poderiam ser tomados para que a
escola rompa a didática do silenciamento de sentidos e constitua-se
como um lugar de reflexão, questionamento e debate, deixando
emergir a multi- plicidade de sentidos. O que se propõe não é que o
professor descarte o texto apresentado e selecione outro em que o
posicionamento ideológico esteja claramente explícito. Pelo contrário,
o texto pode e deve ser tra- balhado, mas como possibilidade de
críticas, dúvidas e contestação. De acordo com Orlandi,
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

A leitura é o momento crítico da constituição do texto, o


mo- mento privilegiado do processo de interação verbal,
uma vez que é nele que se desencadeia o processo de
significação. No momento em que se realiza o processo da
leitura, se configura o espaço da discursividade em que se
instaura um modo de significação específico. (ORLANDI,
1988, P.38)

Nesse sentido, em primeiro lugar, devem ser examinadas as


con- dições em que o texto foi produzido (o contexto imediato e o
contexto sócio-histórico) e as imagens de lugares sociais
depreendidas a partir do texto (a imagem do aluno, do professor, da
instituição escolar, dos conhecimentos repassados), pois estas são
determinantes para a forma e o conteúdo apresentados. Também, torna-
se fundamental problematizar as regras de funcionamento da escola
(horários rígidos; a separação de conteúdos: língua portuguesa,
matemática..., visto que em situações da vida real, esses saberes
aparecem interligados), responsáveis pelo efeito de homogeneidade.
Cabe, aqui, discutir com os alunos se a escola, ocu- pando a posição
(formação discursiva) que ocupa na sociedade, poderia agir de outra
forma, sem impor regras de conduta, e se os alunos, nessa posição,
poderiam deixar de cumpri-las. Ainda, é importante problemati- zar a
concepção de escola veiculada no texto: não como lugar de interação
entre os sujeitos, mas como lugar em que dois papéis se destacam:
o do professor, como o mandante e o controlador da disciplina, e o
do aluno, como cumpridor de tarefas. Trabalhado dessa forma,
[...] texto não seria, pois, um objeto fechado em si mesmo
e autossuficiente, mas sim, uma forma de articulação da
lin- guagem; como tal, não pode mais ser tomado como
unidade de sentidos pré-existentes, pois o sentido não está
inscrito no texto, tampouco, o “sentido do texto não se
aloja em cada um dos interlocutores separadamente, mas
está no espaço dis- cursivo criado pelos (nos) dois
interlocutores.” (ORLANDI, 1988, p.22)

Assim conduzindo a leitura, a escola funda-se num espaço de


forma- ção para a criticidade, pois “a leitura remete a processos de
significação
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

determinados ideologicamente e a consciência crítica refere-se à reflexão


sobre esses processos” (CARMAGNANI, 1995, p.100). Aprender
desde cedo a descobrir (tirar as cobertas) a ideologia, permite que a
criança torne-se mais atenta, desconfiada e, consequentemente,
torne-se um adulto menos manipulável.
A linguagem do texto é outro aspecto a ser observado.
Entretanto, os alunos precisam ser instigados a não apenas
classificar gramatical- mente as palavras ou verificar a sua
semântica, mas examinar os efeitos de sentido que o uso de
determinadas palavras e expressões causam no texto. Expressões
em 1ª pessoa do plural, como em “nosso dia”, “vamos conversar”, não
são neutras, mas são reflexo de uma posição ideológica. Por isso, é
necessário trazê-las à tona e discuti-las.
Portanto, por meio de uma metodologia menos diretiva e
dominado- ra, o professor pode permitir que se questionem as verdades
que parecem “naturais”. Mas, para isso, é preciso que o professor
passe a interrogar essas mesmas verdades, o livro didático e suas
próprias ações em função do objetivo mais importante que deveria
orientar todo ensino: colaborar para que o aluno tenha a
possibilidade de se posicionar criticamente no mundo.
Enfim, em situações de ensino-aprendizagem, é papel do professor
criar situações para que o aluno-leitor seja capaz de perceber que
todo texto se constrói a partir de determinadas condições de produção,
ou seja, os sentidos de um texto dependem do momento em que foi
produzido, do local em que foi divulgado, da ideologia em que se
enquadra, da posição dos sujeitos; que os sujeitos sofrem coerções
dos efeitos ideológicos e que, por isso, nossa interpretação dos
sentidos previstos para um texto não é fruto de intenções, mas é
fruto das formações discursivas e da ideologia que os constituem
como sujeitos; que nem os sentidos nem os sujeitos estão prontos e
acabados, mas estão sempre se formando. Esses são, certamente, os
primeiros passos para a construção de leitores críticos, do “dito” e do
“não dito”.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

OBSERVAÇÕES FINAIS

As reflexões propostas neste capítulo nos permitiram elencar


algu- mas características da concepção discursiva de leitura:

-toda leitura envolve uma produção – e não uma extração – de


sentidos, constituídos nas circunstâncias que envolvem o leitor e a
situação de leitura;

- tanto “os ditos” como “os não ditos” fazem parte do texto;
assim, saber ler significa perceber a incompletude do texto,
desfazer os efeitos de transparência e apreender o que fala antes,
em outro lugar, por outro sujeito;

- a ideologia é inerente a toda e qualquer produção de linguagem,


isto é, que a linguagem não é dissociada dos sujeitos e das
condições de produção.

Ao assumir a concepção discursiva, a tarefa da atividade peda-


gógica será a de favorecer que os alunos manifestem seus
discursos, despertados pela relação com o texto e o lugar social,
como também a de torná-los cientes dos mecanismos manipulatórios
presentes no texto, de modo explícito ou implícito, para que, com isso,
forme cidadãos mais conscientes e capazes de compreender a
razão de ser dos fatos sociais. Esse trabalho deve atravessar todas
as séries do ensino fundamental e não deve recair sobre o professor
de português, apenas; compete a todos os professores selecionar e
trabalhar textos e atividades que permitam ao aluno o exercício
da consciência crítica.

REFERÊNCIAS

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do 3º grau. In: CORACINI, M. J. (Org.) O jogo discursivo na aula de leitura.
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73
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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T. (Orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra
de Michel Pêcheux. Trad. de Bethania S. Mariani, et al. 3.ed. Campinas:
UNICAMP, 1990.
VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da
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Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017,
373p.
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

O DIGITAL COMO REFERENTE DISCURSIVO E MEIO


DE CIRCULAÇÃO: PRÁTICAS DE LEITURA NO
ENSINO FUNDAMENTAL

Michelly Luteski
(PROFLETRAS-Universidade Estadual de Maringá - UEM)
Professora da rede pública do Estado do Paraná

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste presente artigo, será apresentada parte do percurso


desenvol- vido em nosso trabalho de mestrado, no âmbito do
Profletras (unidade UEM). A dissertação está inserida no campo da
Linguística Aplicada, com o aporte teórico da Análise de Discurso de
linha francesa, ancorada nos estudos de Orlandi (1999) e Dias (2018).
O objetivo do artigo é apresentar as bases de uma prática de
leitura de base discursiva para alunos do nono ano do Ensino
Fundamental, tendo em vista a temática das tecnologias e o
meio digital, possibili- tando aos alunos condições de leitura
diferenciadas. Para isso, foram selecionados dois textos para a
análise, nesse caso, dois memes. Tais textos discursivizam sobre o
digital e, por isso, possibilitam ampliar a reflexão sobre
“posicionamentos” acerca desse meio, tomando por base os conceitos
de condições de produção e circulação, bem como a tensão
paráfrase e polissemia.
Partindo do pressuposto de que os sujeitos adolescentes
estão inseridos no contexto digital e que novas formas de ler e
escrever cons-
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tituem tais sujeitos, pretendemos desenvolver uma proposta de


leitura significativa para tais sujeitos, ao justamente enfocar
materialidades que circulam no espaço digital. Nesta proposta, a
tecnologia é tomada tanto como referente discursivo (tema sobre o
qual se fala) quanto lugar de circulação de sentidos.

ANÁLISE DE DISCURSO: UM CAMPO PARA O ENSINO

Para Orlandi, sempre houve muitas maneiras de se estudar a


lingua- gem, seja por meio sistema de signos ou de regras formais. A
Análise de Discurso, por sua vez, não trata da língua nem da
gramática, mas do dis- curso. E segundo a autora: “a palavra
discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso,
de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em
movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso
observa-se o homem falando” (ORLANDI, 1999, p. 15).
A Análise de Discurso, tomada como disciplina de entremeio,
não trabalha a língua de Saussurre, a língua da transparência, da
autonomia, da imanência (LEANDRO-FERREIRA, 2003, p. 42). A
língua para AD é um sistema passível de falha, uma língua em que se
reconhece uma historicidade inscrita na linguagem.
Assim sendo, na perspectiva da AD, a linguagem é concebida
como mediação necessária entre o homem e a realidade social. Tal
mediação é feita pelo discurso, ou seja, pelas práticas discursivas
nas quais o ho- mem está inserido, sendo capaz de significar e
significar-se. Por meio do discurso é possível tanto a permanência e
a continuidade, bem como o deslocamento dos sentidos.
De acordo com Orlandi, a AD pecheuxtiana não trabalha
com a língua enquanto sistema abstrato, mas com a língua no
mundo, em movi- mento, com homens expressando-se e interagindo.
Por meio do discurso produzem-se sentidos e a linguagem acaba
tornando-se indissociável da história e da sociedade. Dessa forma, a
AD tem relação direta com a exterioridade, levando em conta que os
sentidos são produzidos em uma relação da língua na história.

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Desse modo, um mesmo enunciado pode assumir diferentes signifi-


cados de acordo com a formação discursiva na qual é (re)produzido. E,
de fato, pensar a leitura e a escrita, em um olhar discursivo, é ser
consequente com o fato de que os sentidos não são literais ou já
estão prontos, mas precisam ser tomados em suas condições
de produção.
Sendo assim, a linguagem está atrelada à ideologia, que, por
sua vez, manifesta-se na língua, visto que não há discurso sem
sujeito (o sujeito se submete à língua e aos sentidos para significar e
ser alçado à condição de sujeito), tampouco há sujeito sem
ideologia, assim como nem os sujeitos nem os sentidos estão
completos.
No que diz respeito ao sentido, este é fundamental para a AD,
vis- to que a linguagem é linguagem porque faz sentido, e a
linguagem só faz sentido porque se inscreve na história: “O dizer
não é propriedade particular. As palavras não são só nossas. Elas
significam pela história e pela língua” (ORLANDI, 1999, p.32).
Pêcheux (1988, p. 173) denominou “ilusão subjetiva do sujeito”,
ou esquecimento número 1, da ordem do inconsciente, a ilusão que o
sujeito cria para si mesmo de que é um ser uno, integral, colocando-
se como centro e origem do seu dizer.
Dessa maneira, também é ilusória a ideia de que o mesmo
sujeito cria para si mesmo, de que aquilo que diz tem apenas um
significado, isto é, a ilusão de que todo interlocutor captará suas
intenções. Isso porque o sujeito, na seleção entre o dito e o não dito,
não tem controle total de seu dizer e deixa resvalar significados
indesejáveis. Esse esquecimento é o denominado número 2,
caracterizado por Pêcheux (1988, p.175) como ilusão da realidade de
pensamento, da ordem do pré-consciente.
Em outras palavras, o sujeito diz, pensa que sabe o que diz,
mas não tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos
se constituem nele (ORLANDI, 1999). Dessa forma, temos a
ilusão de que tudo o que dizemos é nosso, de que somos a origem
do que dizemos, é aquilo que Orlandi chama de assujeitamento.
Trata-se de um efeito ideológico elementar no qual o sujeito se
coloca como origem do que diz (efeito da evidência do sujeito),
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produzindo um sentido único (efeito da evidência

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do sentido). Diante da exposição de tais conceitos-chave,


acreditamos que investir em tais ilusões discursivas pode trazer
outros redimensio- namentos na leitura na escola.
Para abordar o processo de produção de sentidos e sua relação
com a ideologia, Orlandi introduz a chamada noção de formação
discursiva. Se as palavras não têm um sentido em si mesmas, é
porque derivam seus sentidos das formações discursivas em que se
inscrevem. Estas, por sua vez, representam no discurso as formações
ideológicas. Desse modo, os sentidos sempre são determinados
ideologicamente.
A noção de formação discursiva permite-nos compreender o
pro- cesso de produção dos sentidos no texto sem cair no
conteudismo, abre espaços para que trabalhemos a relação da
linguagem com a ideologia e também nos possibilita estabelecer
regularidades no funcionamento do discurso, isto é, o que determina
o que pode e o que deve ser dito, em determinadas condições de
produção e circulação.
Segundo Orlandi, para que minhas palavras façam sentido, é
preciso que já façam sentido. Nessa perspectiva, há uma relação
entre o já-dito e o que está se dizendo. Isso é determinado pela
história, pelo acaso, por nossa experiência simbólica e de mundo,
por meio da ideologia. Para a autora,

o fato de que há um já-dito que sustenta a possibilidade


mesma de todo dizer, é fundamental para se compreender
o funcio- namento do discurso, a sua relação com os
sujeitos e com a ideologia. Disso se deduz que há uma
relação entre o já-dito e o que se está dizendo que é a que
existe entre o interdiscurso e o intradiscurso ou, em outras
palavras, entre a constituição do sentido e sua
formulação. (ORLANDI, 1999, p. 32)

Para a autora supracitada, o que determina a formulação é a


consti- tuição, pois só podemos dizer (formular) se nos colocamos
na perspec- tiva do dizível (interdiscurso, memória). Todo dizer é
determinado pela memória (constituição) e pela atualidade
(formulação). Para analisar a linguagem na perspectiva da ideologia,
leva-se em conta o homem na
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sua história, considerando os processos e as condições de produção


da linguagem. Com isso, a memória é um fator importante em
relação ao discurso, sendo tratada como interdiscurso, pois este é
definido como aquilo que fala antes, em outro lugar,
independentemente. A isso dá-se o nome de memória discursiva:

o saber discursivo que torna possível todo dizer e que


retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está
na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra.
O interdiscur- so disponibiliza dizeres que afetam o modo
como o sujeito significa em uma situação discursiva dada.
[...]. (ORLANDI, 1999, p.31)

As condições de produção, que constituem os discursos, funcionam


de acordo com certos fatores. Um deles se chama relação de
sentidos, a qual define que não há discurso que não se relacione
com outros. Os sentidos resultam de relações: um discurso aponta
para outros que o sustentam, assim como para dizeres futuros.
Assim, todo discurso é visto como um estado de um processo
discursivo mais amplo e contínuo, o qual tem relação com outros
dizeres realizados, imaginados ou possíveis.
Dessa forma, podemos dizer que o sentido é determinado pelas
posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico
em que as palavras são produzidas. As palavras mudam de sentido
segundo as posições daqueles que as empregam.
Para Orlandi:

Todo o funcionamento da linguagem se assenta na tensão


entre processos parafrásticos e processos polissêmicos.
Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo
dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a
memória. A paráfrase representa assim o retorno aos
mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes
formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase está
do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o
que temos é deslocamento, rup- tura de processos de
significação. Ela joga com o equívoco. (ORLANDI, 1999,
p. 36)
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Assim, todo discurso se faz nessa tensão: entre o mesmo e o


diferen- te. Para Orlandi “toda vez que falamos, ao tomar a palavra,
produzimos uma mexida na rede de filiação dos sentidos, no
entanto, falamos com palavras já ditas” (ORLANDI, 1999, p. 36).
Diante desse jogo entre pa- ráfrase e polissemia, entre o mesmo e o
diferente, entre o já dito e o a se dizer que os sujeitos e os sentidos se
movimentam, fazem seus percursos, se significam. Acreditamos que
compreender esse movimento pode trazer um outro olhar para
práticas de leitura na escola.
Como a língua está sujeita ao equívoco e à ideologia é
considerada um ritual com falhas, a condição da linguagem é a
incompletude, visto que nem os sujeitos nem os sentidos, logo,
nem o discurso, já estão prontos e acabados, ou seja, os sentidos
podem se desdobrar em outros. Dessa forma, ocorre um trabalho
contínuo, um movimento constante do simbólico e da história. Esta é
a condição dos sujeitos e dos sentidos, que se constituem na
relação tensa entre paráfrase e polissemia. Por isso, os sentidos e os
sujeitos sempre podem ser outros, dependendo de como são afetados
pela língua, de como se inscrevem na história, de como trabalham e
são trabalhados pelo jogo entre paráfrase e polissemia.

ANÁLISE PRÉVIA À LEITURA: GESTOS DE LEITURA DE MATE-


RIALIDADES QUE CIRCULAM/QUESTIONAM (N)O DIGITAL

Nossa análise prévia à leitura das materialidades digitais


dividiu-se em duas etapas: a) num primeiro momento, observarmos
regularidades no material selecionado, o que nos permitiu pensar a
respeito de que conceitos teóricos foram sendo demandados no
gesto de análise e que seriam relevantes nas práticas de leitura; b)
posteriormente, empreen- demos a formulação de atividades de
leitura com tais materialidades, considerando uma sala de aula de
nono ano do Ensino Fundamental. Em resumo: a análise prévia à
leitura objetivou trazer reflexões em torno de uma abordagem
discursiva da textualidade dos textos para depois pensá- los em
práticas de leitura
Considerando materialidades que circulam e discursizam (n)
o ciberespaço e que trazem a necessidade de pensar acerca da
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leitura

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desses materiais em sala de aula, foi válido trabalhar com as


condições de produção de leitura dos textos a que o sujeito teve
acesso na leitura.
Após esse processo de mobilização das condições de produção
constitutivas dos sentidos no/do texto, buscamos construir um arquivo de
leituras “já-feitas” e “ainda por fazer” de textos relacionados à
temática dos memes trabalhados. Os memes não abordavam
somente o filósofo Rene Descartes ou a tragédia do navio Titanic, mas
problematizam temas como o exagero no uso das mídias digitais,
exibicionismo, exposição, falta de pensamento crítico. Construir
arquivos foi um gesto necessário no sentido de oferecer contextos
para que os alunos e alunas pudessem estabelecer relações de
sentidos e ter elementos sobre o que dizer. Com efeito, defendemos
a construção de um arquivo como “um espaço de interpretação no
qual seja, de fato, possível um gesto interpretativo” (PFEIFFER,
2003, p.100).
Texto 1 – Posto, logo existo

Fonte: https://pt.dopl3r.com/memes/engra%C3%A7ado/faco-um-selfie-penso-posto-no-
FACE-LOGO-EXISTO-ARTES-DEPRESSAO/42691

O primeiro texto analisado diz respeito ao meme “Posto,


logo existo”, o qual circulou em uma página do Facebook
intitulada “Artes depressão”. O meme é um gênero discursivo que
tem no digital o espaço
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de circulação de sentidos. O que sustenta a formulação dos dizeres


no digital é a circulação, assim o meme tem um caráter efêmero.
Neste momento inicial da abordagem, julgamos relevante
trabalhar com os sujeitos-alunos suas histórias de leitura. Uma vez
que as histórias de leitura dos alunos constituem o sujeito-leitor
ideológica e socialmente e vão permitir que o texto seja visto como
espaço aberto à significação, um exercício produtivo foi o de
investir em um trabalho de acionar as histórias de leitura dos
alunos, nesse caso do nosso estudo, recuperando com eles as
formulações verbais e visuais já lidas e já vistas que vêm carregadas
de sentidos anteriores que constituem seus trajetos de leituras sobre o
filósofo Rene Descartes. Ademais, além de acionar as histórias de
leitura dos sujeitos-alunos, a proposta foi a de também permitir a
construção de uma história de leitura sobre o tema relacionado ao
uso das redes sociais que se desdobra em práticas como exagero
no uso das mídias digitais, exibicionismo, exposição, falta de
pensamento crítico, ou seja, a constituição de um arquivo de textos,
nesse caso, verbais e visuais, visto que nem sempre todos e todas
alunos(as) têm o que dizer sobre o tema.
As condições de produção devem ser analisadas tanto em seu
con- texto mais imediato de produção do discurso: quem fala, o que,
para quem e quando; quanto em seu contexto social e histórico mais
amplo. Elas são parte constitutiva da produção dos efeitos de
sentido.
Desse modo, tomada como conceito fundamental na aula de leitura,
buscamos discutir com os leitores, em rodas de leitura, algumas questões
sobre o meme. No que diz respeito às condições de produção, o
meme, em questão, ao mesmo tempo em que convoca uma
memória visual (a formulação visual já vista do Filósofo) e a verbal
(o já-dito) que reverbera uma célebre frase dita pelo filósofo
Descartes, formula novos sentidos ao se relacionar com o contexto
sócio histórico contemporâneo, visto que faz referência ao uso da
tecnologia e à necessidade da constante exposição da vida privada
nas redes sociais.
As condições de produção, que constituem os discursos, funcionam
de acordo com certos fatores. Um deles se chama relação de
sentidos,
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

a qual define que não há discurso que não se relacione com outros.
Os sentidos resultam de relações: um discurso aponta para outros
que o sustentam, assim como para dizeres futuros. Assim, todo
discurso é visto como um estado de um processo discursivo mais
amplo e contínuo, o qual tem relação com outros dizeres realizados,
imaginados ou possíveis.
Com efeito, analisar os fatos da língua, nesse caso memes, a
partir de suas condições de produção implicou examinar as condições
histórico- sociais nas quais eles foram produzidos, o que leva a uma
análise do funcionamento da linguagem. Nesse caso, as condições de
produção da sociedade contemporânea apontam para relações tensas
entre o uso da tecnologia e a falta de reflexão/pensamento crítico,
sendo que emerge como sentido predominante que, no mundo
virtual, o mais importante muitas vezes é postar e não pensar.
Para Orlandi, outro aspecto igualmente importante na produção
da leitura é a incompletude. Nessa perspectiva, nem os sujeitos,
nem os sentidos e nem os discursos estão prontos, portanto não
podem ser tra- tados como encerrados, finalizados. Segundo a
autora, “[...] da noção de incompletude derivam o ‘implícito’ e a
‘intertextualidade’. [...] Quando se lê, considera-se não apenas o que
está dito, mas também o que está implícito: aquilo que não está
dito e que também está significando” (ORLANDI, 1996, p. 11).
O meme em tela traz um movimento de incompletude que se dá
na/ pela imbricação verbal e visual. A composição visual (a figura do
homem representando o filósofo fazendo selfies, usando o celular)
relaciona-se com a composição verbal (a frase “Posto, logo existo”),
dando visibili- dade à contradição. O enunciado verbal remete à
memória a célebre frase “Penso, logo existo”, dita pelo filósofo
Descartes.
Essa contradição entre pensar/postar se produz justamente
pela formulação visual do filósofo reconhecido como figura célebre,
por ser um pensador, afirmar que “pensa”, mas em seguida, no
segundo quadro e terceiro quadros, aparecer usando óculos,
fazendo uma selfie e postan- do no Facebook para, então, o
enunciado “logo existo” ser novamente retomado.
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Além de ter o digital como espaço de circulação, o meme


também discursiviza sobre o digital com base no jogo entre paráfrase e
polissemia. Com efeito, o enunciado verbal traz uma “paródia” da
frase do filósofo, visto que repete/retoma a primeira parte do
enunciado “Penso” para, na sequência, produzir a polissemia, ao
encaixar o enunciado “Faço uma selfie, posto no Face”, após a
vírgula, e, novamente, retomar a segunda parte “logo existo”. Este
movimento entre retomar/dialogar com a frase e ao mesmo alterá-la
demanda que contemplemos o conceito de paráfrase e polissemia.
Para Orlandi (1999), o funcionamento da linguagem está funda-
mentado na tensão entre processos parafrásticos e processos
polissê- micos, isto é, tudo o que se diz está relacionado a algo
que já “foi dito” (a memória discursiva), nesse caso um “discurso
fundador” ligado ao filósofo Rene Descartes. Eni Orlandi esclarece
que a paráfrase é o que se manteve do “já dito” no novo dizer.
Por outro lado, a polissemia é o que se desloca, é o sentido que
se rompe, gerando a tensão entre o mesmo e o diferente. Nesse
sentido, o meme justamente opera entre um discurso fundador que é
recuperado (Pensar, logo existir, que remonta ao pensamento
cartesiano) e a produção do novo, do efeito cômico em que a ação
de pensar/existir está ligada ao gesto de tirar uma selfie e fazer
uma postagem.
Diante desse jogo entre paráfrase e polissemia, entre o mesmo
e o diferente, entre o já dito e o a se dizer que os sujeitos e os
sentidos se movimentam, fazem seus percursos, se significam.
Desse modo, com- preender esse movimento pode trazer um outro
olhar para práticas de leitura na escola.
Como a língua está sujeita ao equívoco e à ideologia é
conside- rada um ritual com falhas, a condição da linguagem é a
incompletude, visto que nem os sujeitos nem os sentidos, logo,
nem o discurso, já estão prontos e acabados, ou seja, os sentidos
podem se desdobrar em outros. Dessa forma, ocorre um trabalho
contínuo, um movimento constante do simbólico e da história. Esta
é a condição dos sujeitos e dos sentidos, que se constituem na
relação tensa entre paráfrase e po-
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lissemia. Por isso, os sentidos e os sujeitos sempre podem ser


outros, dependendo de como são afetados pela língua, de como se
inscrevem na história, de como trabalham e são trabalhados pelo
jogo entre pa- ráfrase e polissemia.
Nesse caso, em relação à materialidade verbal do meme,
“Penso, faço uma selfie, posto no face, logo existo”, a frase
inicial e a final re- mete à memória a frase dita pelo filósofo
Descartes enquanto a segunda e a terceira frase trazem outros
sentidos, ao trocar o verbo pensar por postar, que se associam aos
nossos dias. Nessa perspectiva, o meme produz a evidência de um
sentido ligado aos limites/exageros do uso da tecnologia e produz
um efeito- crítica que produz a evidência de que as pessoas, muitas
vezes, apresentam uma constante necessidade de postar tudo o
tempo todo, a fim de existirem para os outros no mundo virtual,
ao invés de aproveitarem o presente, os momentos vividos e a
interação com as pessoas do mundo real. Dessa forma, muitos
acabam sendo influenciados pela falsa ilusão de socialização que as
redes sociais promovem, cercados por milhares de seguidores, mas
por poucos amigos. No jogo entre o pensar e postar, o meme retoma
uma frase clássica do Racionalismo de Descartes- entendida com o
discurso fundador- e ao mesmo tempo a desloca, tendo em vista
a tecnologia tomada como única e exclusiva possibilidade de
existência ou mesmo a superficialidade do uso das mídias digitais,
das postagens, das fotos como sintoma de um sujeito
contemporâneo que deseja ser visto e ter muitas curtidas.
Em termos de condições de produção do digital, vale destacar
que muitos sujeitos fazem bom uso da ferramenta, pois utilizam as
redes so- ciais como um meio de aproximação, de resgate e de
compartilhamento, com isso possuem o controle do seu tempo e não
trocam o real pelo virtual. No entanto, muitas pessoas, também, perdem
o controle no uso das redes sociais, o que pode levar ao exagero, ao
exibicionismo, à necessidade de uma exposição exacerbada para
ter sua existência comprovada e se tornar alguém notável e
aceito.
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PRÁTICAS DE LEITURA COM O MEME 1.

Tendo em vista o tripé: condições de produção, histórias de


leituras dos(as) alunos(as) e os processos de paráfrase e polissemia,
buscamos enfocar, no entrelaçamento desses conceitos, a construção de
um arqui- vo de leituras a partir do qual foi solicitado que os(as)
alunos e alunas pesquisassem sobre dois temas imbricados: textos
ligados ao filósofo e materiais diversos sobre os temas suscitados
pelo meme tais como: o exagero no uso das mídias digitais,
exibicionismo, exposição, falta de pensamento crítico. Nesse caso,
buscamos enfocar textos verbais e não verbais ou imbricados tais
como: imagens, fotografias, textos, charges, memes no sentido de
permitir o estabelecimento de relações intertextuais e interdiscursivas
e a produção de um “ter o que dizer” de modo que o aluno
pudesse se inscrever na leitura como sujeito desse processo. Su-
gerimos algumas questões de ordem discursiva:

1. Pesquise sobre o filósofo Rene Descartes e suas ideias.


Procure criar um banco de imagens e de textos sobre ele e sua
visão racionalista. Apresente aos/às colegas de turma os textos de sua
pesquisa sobre Rene Descartes e sua célebre frase.

2. Em qual contexto essa expressão foi usada pelo filósofo e qual


foi o impacto que gerou na época? Quais sentidos estavam em jogo
naque- las condições ligadas à emergência do racionalismo
representado pelo filósofo?

3. O que significa a frase “Penso, logo existo” de acordo com a


posição assumida pelo filósofo?

4.Explique a frase “Posto no face, logo existo”. Crie um arquivo


de textos sobre uso da tecnologia, exageros, os limites, os riscos, a
falta de criticidade, entre outros.

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5.Considerando os sentidos ligados à frase “Penso, logo existo” de


Descartes e o meme, que sentidos estão em jogo quando a frase
“Penso, logo existo” é retomada? Como ela pode ser resignificada,
nas condições de produção de um texto de humor?
Texto 2 – Se o Titanic afundasse hoje

Fonte: HTTPS://BR.PINTEREST.COM/PIN/358106607853849751/VISUAL-SEARCH/

Diante deste meme, é relevante nos perguntarmos: de que


maneira se dá a produção de efeitos de sentidos na/pela imbricação
verbal e visual? Este conceito de imbricação tem respaldo em
Lagazzi (2009) que define como “imbricação material” a forma como
materialidades significantes: o verbal, a imagem, o som, a música, se
entrelaçam na contradição e na incompletude. Segundo a autora, “não
temos materia- lidades que se complementam, mas que se relacionam
pela contradição, cada uma fazendo trabalhar a incompletude na outra
(LAGAZZI, 2009, P.68). Conforme, ainda, Lagazzi (2009) “pode-se
compreender que “na remissão de uma materialidade a outra, a não-
saturação funcionando na interpretação permite que novos sentidos
sejam reclamados, num movi- mento de constante demanda”.
Se a imbricação material se dá pela incompletude constitutiva
da linguagem, em suas diferentes formas materiais, faz-se
necessário, no gesto de análise, buscar pelo procedimento
parafrástico, um exercício constante de remissão de uma
materialidade a outra frente às condições de produção.

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Nesse caso, temos, na imbricação verbal/visual, o enunciado verbal


que funciona como título do meme “Se o Titanic afundasse hoje” e
que faz trabalhar a incompletude da linguagem na relação com a
formulação visual de um barco afundando, remetendo ao
acontecimento histórico ligado ao Titanic (que retorna ao espaço do
meme por um trabalho da memória).
Em termos de condições de produção, o meme “Se o Titanic
afun- dasse hoje” ao mesmo tempo que convoca uma memória,
reverberando a história do acidente significado como uma tragédia
conhecida mun- dialmente, tema inspirador para filmes e
documentário, formula novos sentidos para o naufrágio do barco
Titanic (o seu naufrágio passa a significar espetáculo a ser
fotografado).
Trata-se de um dos maiores desastres marítimos já ocorridos e
que causou uma comoção atravessando gerações: a história do
transatlântico que afundou após colidir com um iceberg no Oceano
Atlântico no dia 15 de abril de 1912. O acidente aconteceu horas
depois de o navio ter deixado o porto de Southampton, na Inglaterra
com destino final para a cidade de Nova Iorque. Considerado a maior
embarcação de passageiros do seu tempo, o Titanic tinha 269 metros
de comprimento, 28 metros de largura e 46 mil toneladas. O navio
possuía 2.224 passageiros a bordo durante sua viagem fatídica.
Destes, mais de 1500 pessoas morreram afogadas ou por hipotermia
devido às águas geladas do Atlântico Norte durante o acidente.
A incompletude nos coloca diante do fato de que os sentidos
não se fecham, isto é, eles podem se tornar outros. Assim, um
sentido (inscrito na memória) evidente/estabilizado de “tragédia”
popularmente conhecida e relacionada ao naufrágio de um barco
colossal que ceifou tantas vidas passa a significar, na relação com as
novas condições de produção de uso da tecnologia (significado como
exagerado, fora de controle) e registro de ações cotidianas, um
acontecimento digno de ser filmado e registrado, ainda que em uma
situação-limite.
O enunciado “Se o Titanic afundasse hoje” joga justamente com
o condicional, isto é, cria-se uma dependência entre uma
circunstância (o
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naufrágio de uma grande embarcação que convoca o sentido da tragédia,


morte, tristeza) e um fato ou resultado (as pessoas à deriva em meio
ao próprio desastre registrando o evento com seus celulares).
Podemos notar, no meme, na formulação visual do barco afundando
e das pessoas ao mar fotografando a cena com seus celulares, o
funcio- namento da contradição em meio à qual o naufrágio do
Titanic joga com sentidos de salvar/perder a vida na tensão com a
necessidade de salvar/ registrar o momento digno de uma foto.
Na remissão de uma materialidade a outra, ao contrapor a
for- mulação visual do meme com uma imagem do naufrágio e de
pessoas sendo salvas por barcos e resgatadas no mar, percebemos
regularidades importantes: as posições dos corpos e do entorno. No
meme, a tensão não é posta, os sujeitos tranquilamente fotografam a
cena da embarcação afundando, isto é, “salvam” a cena. Já a imagem
da Wikipédia formula cenas relativas ao resgate como esforço
empreendido de salvar vidas. Essa formulação faz ressoar a
memória da vida como bem supremo, já o meme joga com os
exageros do uso da tecnologia em situações inusi- tadas. A
formulação dos sujeitos em meio ao resgate da vida x resgate do
momento/cena faz concorrer duas formações discursivas diferentes
que dão visibilidade à contradição do uso da tecnologia: somos
sujeitos da e sujeitos à tecnologia.
Texto 3 – Imagem do naufrágio

Fonte: Wikipédia

89
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

No enlace entre salvar/perder a vida e perder/salvar o click,


pode- mos considerar que os sentidos migram, uma vez que,
mesmo em meio à deriva no mar, o meme produz justamente um
efeito de produzir um sentido de absurdo: os sujeitos usuários da
tecnologia não buscam salvar suas vidas, mas sim se preocupam em
registrar/fotografar a exuberante embarcação afundando. De forma
homogênea, todas as vítimas estão todas portando seus
celulares e tirando fotos.
Assim, o meme cria um efeito cômico- absurdo a partir do
qual o sentido predominante é de que nem mesmo a situação-limite
de salvar/ lutar pela vida está apartada do uso da tecnologia que se
institui na relação com a prática de fotografar tudo e a todos. A
tragédia, num jogo entre a paráfrase e novos sentidos, é significada
também como acontecimento digno de um click, de um registro a
ser postado, compartilhado- algo que não posso “perder”. O efeito-
absurdo que nos coage diz respeito a um sentido no qual a
necessidade de fotografar tudo implica perder até a vida, mas não
perder o click.

PRÁTICAS DE LEITURA COM O MEME 2

De forma semelhante ao que ocorreu com o meme 1, com base


no tripé condições de produção, histórias de leituras dos alunos e os
proces- sos de paráfrase e polissemia, solicitamos que os alunos se
envolvessem com o acontecimento histórico “Naufrágio do Titanic”
não como objeto de um questionário de perguntas, como ocorre no uso
de algumas apostilas e livros didáticos, mas como tema de pesquisa.
Divididos em grupos, sugerimos a cada equipe de alunos uma
pesquisa sobre textos ligados à tragédia do Titanic (produções
audiovisuais) e sobre outros textos que também problematizem o
uso da tecnologia. Nesse movimento, foi interessante aos alunos e
alunas construírem redes intertextuais entre os textos. Sugerimos
algumas questões de ordem discursiva:

1. Pesquise sobre a tragédia do Titanic. Procure criar um banco de


imagens acerca do naufrágio em si e obras (filmes, documentários)
que surgiram em torno deste acontecimento.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

90
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

2. Nos textos selecionados sobre o Titanic, o que significou o


naufrágio do navio?

3. Compare a formulação visual da tragédia disponível na Wikipédia


e a imagem exposta no meme. Crie um arquivo de textos que, assim
como o meme, problematizam a tecnologia.

4. Como o meme (re)formula a tragédia em tempos de mídias


digitais e uso da tecnologia?

Imagem 1 Imagem 2

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tomando-se por base exemplares de materialidades que


discursi- vizam o digital e circulam por/nesse espaço, no caso
memes, buscamos trabalhar práticas de leitura desses materiais em
sala de aula, mobilizando, para tanto, noções como as condições de
produção, as histórias de leitura dos alunos e os processos de
paráfrase e polissemia.
O conceito de condições de produção mostrou-se fundamental
para que seja trabalhada a relação entre o dizer e suas
possibilidades e determinações históricas. Assim sendo, foi preciso
perguntar: por que foi possível dizer isso, dessa forma e não de
outra? Em que condições (imediatas e sócio-históricas em que entra
a memória do dizer), o meme emerge como textualidade que nos
leva a dizer “como isso significa”.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
91
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

A proposta de construção de um arquivo de textos de leituras já


realizadas e aquelas por realizar abriu para a possibilidade de o
sujeito- leitor ter condições de estabelecer relações entre textos,
necessárias para o movimento do sentido e para a construção de sua
história de leitura, na medida em que “toda leitura tem sua história” e
“todo leitor tem sua história de leitura” (ORLANDI, 1996, P.43).
As condições de produção determinam um modo de significar e
ler, isto é, de produzir gestos de leitura em meio à
circulação/discursiviza- ção no digital do próprio digital, na medida
em que o discurso digital se formula ao circular (DIAS, 2018, p. 29).
Desse modo, foi interessante nos perguntar pelos efeitos que se
produzem na leitura pelo fato de o meme – por diferentes meios
(compartilhamentos, viralizações, hashtags)
– se formular a partir do jogo entre a memória do dizer (com
base em formulações já-vistas e já enunciadas em outras condições) e
a produção de novos sentidos- nesse caso, efeitos- humor e ironia tão
característicos dos memes.

REFERÊNCIAS

DIAS, C. Análise do discurso digital: sujeito, espaço, memória e arquivo.


Campinas: Pontes Editores , 2018.
LAGAZZI, S. O recorte significante na memória. In: INDURSKY, F.; FERREIRA,
M. C.; MITTMANN, S. (Org.). O Discurso na Contemporaneidade.
Materialidades e Fronteiras. São Carlos: Claraluz, 2009.
LEANDRO-FERREIRA, M. C. O quadro atual da Análise de Discurso no Brasil.
Letras. Santa Maria. N. 27 (jul./dez. 2003), p. 39-46
ORLANDI, E. Discurso e leitura. 3.ed. São Paulo: Cortez, 1996.
ORLANDI, E. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes
Editores , 1999.
ORLANDI, E. Gestos de leitura: da história no discurso. In: ORLANDI, E.
(Org). [et al.] 3. ed. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 2010.
PÊCHEUX, Ml. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni
P. Orlandi [et al] Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1988.

92
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

PFEIFFER, C. C. O leitor no contexto escolar. In: ORLANDI, E. P. (Org.). A


Leitura e os leitores. 2. ed. Campinas, SP: Pontes Editores , 2003. P.87-104.
PARANÁ, Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Diretrizes curriculares
da educação básica: língua portuguesa. Curitiba, 2008.
PORTAL DO PROFESSOR (MEC). Disponível em: http://portaldoprofessor.mec.
gov.br/fichaTecnicaColecaoAula.html?id=460. Acesso em: 09 de setembro de 2015.

93
SEÇÃO 2

ESCRITA E AUTORIA
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

ESCRITA E AUTORIA: UM GESTO ANALÍTICO DE


UM PROCESSO DE PRODUÇÃO DE TEXTO MEDIADO
PELAS TECNOLOGIAS DIGITAIS

Maristela Cury Sarian


Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT

INTRODUÇÃO

Neste artigo, apresentaremos a análise de uma atividade de produção


de texto em língua portuguesa, denominada “Livro da quarta série”1,
rea- lizada na Escola Estadual de Ensino Fundamental Luciana de
Abreu, em Porto Alegre – RS, como parte das ações do Programa
Um Computador por Aluno (PROUCA), em sua primeira fase2,
momento em que foram distribuídos laptops educacionais doados por
fabricantes a cinco escolas, uma de cada estado - São Paulo, Rio de
Janeiro, Tocantins, Rio Grande do Sul e no Distrito Federal.
Inscrito na perspectiva da Análise de Discurso elaborada por
Michel Pêcheux e Eni Orlandi, este trabalho tem o objetivo de dar
visibilidade ao modo de apropriação do laptop pelos sujeitos da
escolarização e aos efeitos de sentido produzidos nessa prática de
ensino de língua portu- guesa, mediada pelas tecnologias digitais.

1 www.uca.gov.br, endereço no qual foram publicadas as atividades dadas como realizadas


nessa etapa, denominada Fase de Testes.
2 O PROUCA foi significado, na discursividade institucional que o constituiu, como uma
política que objetivava a melhoria do ensino-aprendizagem, a inclusão digital e a inserção do
sujeito na cadeia produtiva (BRASIL, 2008).

97
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Antes, porém, de colocarmos em evidência nosso gesto


analítico, apresentaremos, ainda que de modo breve, as condições
de produção que ensejaram a seleção do material, uma vez que
pretendemos colocar em evidência a relação estabelecida entre os
gestos de interpretação em funcionamento, em sua constituição, e
os efeitos desse processo na leitura desse arquivo.

O BATIMENTO DESCRIÇÃO-INTERPRETAÇÃO NA
CONSTITUI- ÇÃO E LEITURA DE UM ARQUIVO

Em se tratando dos trabalhos filiados à Análise de Discurso


de Pêcheux e Orlandi, aprendemos que a questão do dispositivo de
análise, o dispositivo da interpretação, não é dado a priori, mas se
impõe ao analista por meio da questão que pretende compreender,
a partir de um determinado material, entre idas e vindas ao
dispositivo teórico, corpo teórico e metodológico da análise de
discurso, durante o batimento descrição-interpretação
(ORLANDI, 2007).

Embora o dispositivo teórico encampe o dispositivo analíti-


co, o inclua, quando nos referimos ao dispositivo analítico,
estamos pensando no dispositivo teórico já
‘individuado’ pelo analista em uma análise específica. Daí
dizemos que o dispositivo teórico é o mesmo mas os
dispositivos analíticos, não. (Ibidem, p.27)

Para Orlandi, esse movimento interpretativo da análise


discursiva, no qual se objetiva compreender “como um objeto
simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância
para e por sujeitos” (Ibidem, p.26), ou, em outras palavras, como se
dá o processo de produ- ção de sentidos de um objeto simbólico em
determinadas condições de produção, tem seu início no
estabelecimento do corpus, no qual se leva em conta “a questão posta
pelo analista, a natureza do material que analisa e a finalidade da
análise”. (Ibidem, p.27). É a partir da constituição do corpus,
“delineando-se seus limites, fazendo recortes, na medida mesma em que
se vai incidindo um primeiro trabalho de análise” (Ibidem, p.66-
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
98
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

67) que se busca, na AD, “converter a superfície linguística (o


corpus bruto), o dado empírico de um discurso concreto, em um
objeto teórico, um objeto linguisticamente de-superficializado”.
(Ibidem, p.66):

A Análise do Discurso visa fazer compreender como os


objetos simbólicos produzem sentidos, analisando assim
os próprios gestos de interpretação que ela considera
como atos no do- mínio do simbólico, pois eles intervêm
no real do sentido. A Análise do Discurso não estaciona
na interpretação, trabalha seus limites, seus mecanismos,
como parte do processo de significação. Também não
procura um sentido verdadeiro através de uma ‘chave’ de
interpretação. Não há esta chave, há método, há
construção de um dispositivo teórico. Não há uma verdade
oculta atrás do texto. Há gestos de interpretação que o
constituem e que o analista, com seu dispositivo, deve ser
capaz de compreender. (Ibidem, p.26)

Desse modo é que compreendemos, com a autora, a


delimitação do corpus como o primeiro movimento de análise, a partir
do qual serão formuladas as perguntas não só a partir do problema
de pesquisa que o analista tem em vista compreender, mas também
a partir daquilo que
o material produz, enquanto efeito, no analista. A singularidade de
sua produção vai resultar justamente desse movimento teórico-
analítico:

Como a pergunta é de responsabilidade do pesquisador, é


essa responsabilidade que organiza sua relação com o
discurso, levando-o à construção do ‘seu’ dispositivo
analítico, optando pela mobilização desses ou aqueles
conceitos, esse ou aquele procedimento, com os quais ele
se compromete na resolução de sua questão. Portanto,
sua prática de leitura, seu trabalho com a interpretação,
tem a forma de seu dispositivo analítico. (Ibidem, p.27)

Assim, um mesmo material é passível de mais de uma análise,


pelo mesmo ou por outro analista, em diferentes condições de
produção, ao retomar as perguntas já lançadas, ou ao propor novas
questões, uma vez que, em uma análise, não se encerram as
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
entradas possíveis, pois “todo

99
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

discurso é parte de um processo discursivo mais amplo que


recortamos e a forma do recorte determina o modo da análise e o
dispositivo teórico da interpretação que construímos” (Ibidem, P.64).
Dessa forma,

Cada material de análise exige que seu analista, de acordo


com a questão que formula, mobilize conceitos que outro
analista não mobilizaria, face a suas (outras) questões.
Uma análise não é igual a outra porque mobiliza conceitos
diferentes e isso tem resultados cruciais na descrição dos
materiais. Um mesmo analista, aliás, formulando uma
questão diferente, também poderia mobilizar conceitos
diversos, fazendo distintos recortes conceituais. (Ibidem,
p.27)

Compreendemos, portanto, que um “retorno ao arquivo” (GUI-


LHAUMOU; MALDIDIER, 2010) em Análise de Discurso é sempre
possível, à medida que a AD é uma disciplina que se ocupa do “lugar
da interpretação” (ORLANDI, 2008A, p.19), por se constituir em
“uma teoria da interpretação no sentido forte” (Ibidem, p.21, grifo da
auto- ra), na medida em que “a interpretação é posta em questão pela
análise de discurso” (Ibidem, p.21) e, como tal, “a abertura do
simbólico [...] a questão do sentido é uma questão que não se fecha”
(HENRY, apud ORLANDI, 2008A, p.19).
Com essa compreensão, fazemos um retorno a esta análise, com
o distanciamento permitido pelo tempo e espaço de sua primeira
produção. Distanciando-nos do propósito de “pedagogizar” o processo
de constituição de um corpus e de apresentar uma “metodologia” daí
decorrente para o empreendimento de uma análise, objetivamos
dividir com os leitores parte do trajeto que percorremos para
desenvolver nosso trabalho, de modo a não apagar o processo opaco
dessa constituição. Em outras palavras, intenta- mos dar visibilidade à
“presença do político, do simbólico, do ideológico” (ORLANDI,
2008a, p.21) em funcionamento neste processo.
Nesse sentido, iniciamos colocando em evidência o processo
de seleção das atividades de língua portuguesa disponíveis na
página do PROUCA que seriam objeto de nossa análise, que se deu
após um pro- cesso tenso de constituição do corpus, em meio a
“conflitos explícitos
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

100
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

[que] remetem em surdina clivagens subterrâneas entre maneiras


dife- rentes, ou mesmo contraditórias, de ler o arquivo” (PÊCHEUX,
2010, p.51, grifo do autor) que incidiram no processo de
constituição e de leitura desse arquivo.

UM GESTO DE SELEÇÃO, DESCRIÇÃO E INTERPRETAÇÃO


DA ATIVIDADE “LIVRO DA QUARTA SÉRIE”

Com o objetivo de dar visibilidade ao funcionamento das


chamadas novas tecnologias da informação e da comunicação
(TICs) na escola, em especial, na disciplina de língua portuguesa,
bem como compreender, pela perspectiva discursiva, como a internet
é significada no espaço escolar, encontramos no então recém-
lançado Projeto Piloto Um Computador por Aluno – UCA uma via
para se contemplar as redes de filiações e os trajetos de sentidos
constituídos nas políticas públicas de inclusão digital e de ensino
de língua.
Dessa forma, iniciamos o processo de levantamento de materiais
sobre o UCA na internet, com o uso da ferramenta Google, artefato
que, enquanto espaço de linguagem, espaço político e simbólico de
produ- ção de sentidos, amplia as formas de acesso do sujeito à
produção do conhecimento, efeito de uma abertura às coisas-a-saber
(PÊCHEUX, 2008), e inaugura uma relação outra do sujeito com a
escrita, a leitura e a pesquisa, a partir de uma mudança na divisão do
espaço institucional, instaurada pelo acontecimento da internet (DIAS,
2012).
Dessas buscas, os arquivos iniciais aos quais tivemos acesso,
entre 2008 e 2009, efeito dos mecanismos de filtragem e da não
transparência da circulação dos sentidos, entre arquivos publicados na
internet e arquivos recebidos via e-mail, os materiais disponíveis
eram de cunho documental, por meio dos quais seria possível
desestabilizar a evidência dos sentidos que edificavam a
discursividade institucional do Programa enquanto uma política
pública, compreendida como “instrumentos importantes no sentido de
amenizar as desigualdades originadas no mercado”, no sentido de
constituir “uma ação humanitária que visa a ajudar os menos
favorecidos” (PFEIFFER, 2010, p. 86).
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
101
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Apesar de considerarmos que dispúnhamos de um arquivo


perti- nente sobre nossa questão, no sentido pêcheuxtiano, “no
sentido amplo de campo de documentos pertinentes e disponíveis
sobre uma questão” (PÊCHEUX, 2010, p.51), no início de 2011,
localizamos um edital que nos levou a encontrar o endereço do
portal oficial do UCA na internet. Esse site, disponível até então no
endereço http://www.uca.gov.br, nos dava a conhecer elementos
outros sobre o então Programa Um Com- putador por Aluno -
PROUCA, entre eles, a publicização de atividades realizadas nas
escolas por meio do laptop.
A partir desse acesso, foi possível redimensionar a pesquisa, à
medida que tomamos para análise fatos de linguagem que nos
demanda- ram colocar em relação à discursividade institucional do
Programa em circulação nos documentos, significada como uma
prática inovadora de ensino, com a entrada do laptop com internet na
sala de aula (BRASIL, 2008), e o modo de constituição das práticas
de ensino de língua portu- guesa em funcionamento nas atividades,
de forma a compreender como o ensino, a língua e as tecnologias
foram significados.
Durante o batimento - leitura do material, retorno à teoria, à
análise, retomada das perguntas -, dada a “necessidade de que a teoria
intervenha a todo momento para ‘reger’ a relação do analista com o
seu objeto, com os sentidos, com ele mesmo, com a interpretação”
(ORLANDI, 2007, P.64), pensamos, num primeiro momento, em
estabelecer esse recorte elegendo um determinado fato de linguagem,
oriundo da aquisição de uma competência linguística escrita e de um
saber sobre a língua nacional (SILVA, 2007), uma vez que o trabalho
com a língua recaía sobre o dis- curso escrito, estruturante da nossa
formação social (ORLANDI, 2002), efeito do confronto contraditório
entre línguas de oralidade e línguas de escrita na colonização
(SILVA, 2006) e do modo pelo qual se configurou nosso processo de
escolarização (PFEIFFER, 2000).
A partir daí, traçaríamos alguns eixos, de acordo com as
regularida- des encontradas no material, que se mostrassem produtivas
para colocar em evidência nosso gesto analítico. Nessa perspectiva,
selecionaríamos, pelo menos, cinco atividades, uma de cada escola
participantes da Fase
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

102
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

I. Entretanto, ao lançarmos um olhar ainda mais atento para esses


mate- riais, observamos que havia uma reiteração de sentidos que
atravessavam todas essas práticas de linguagem. Encontramos, então,
as regularidades necessárias que se mostravam nesses gestos de
dizer.
Nesse estágio do trabalho, já compreendíamos o funcionamento
dessas práticas de ensino de língua portuguesa enquanto efeito do
pro- cesso de institucionalização das coisas-a-saber (PÊCHEUX,
2008, P.34) na escola, pois tomávamos as atividades como um
sintoma do modo pelo qual a língua, o ensino e as tecnologias
estavam sendo significa- dos pelas políticas públicas de Estado,
efeito da relação estabelecida entre o conhecimento científico
produzido na universidade, que se dá em condições de produção
específicas, e sua transmissão, por meio do processo de escolarização,
também determinada por uma exterioridade constitutiva. (SILVA,
2007).
Foi com essa compreensão que chegamos a três atividades3,
para as quais formulamos a pergunta para a leitura do material:
o modo de apropriação dos conteúdos autorizados a circular no
Programa mantém e reproduz um saber cristalizado, autorizado,
legitimado pelo Estado ou há, nessas práticas, transformações,
inovações e deslocamentos de sentidos? Dito de outro modo, o que
há de “velho”, de “novo”, do “mes- mo” ou do “diferente” nestas
atividades? Perguntas que, neste artigo, lançamos para a
atividade “Livro da Quarta Série”.
A fim de dar consequência à prática de análise discursiva,
daremos visibilidade, inicialmente, a recortes concernentes à estrutura
da ativi- dade4, tomando a noção de recorte tal como propõe Orlandi
(1984 apud LAGAZZI, 2009).
As atividades da escola Luciana de Abreu foram
disponibilizadas no link Relatos de Práticas, exemplificado na
Figura abaixo:
3 Atividade 1: Uso de laptop no reforço escolar. Atividade 2: Monteiro Lobato e as novas
tecnologias. Atividade 3: Livro da quarta série.
4 Do ponto de vista de sua estrutura, as atividades relacionadas à escola Luciana de Abreu são
apresentadas em links, linearmente organizados: Natureza da atividade; Objetivo; Contexto;
Descrição de Processos; Conteúdo da Aprendizagem; Resultado e Sugestão de Indicadores
para Valoração. Quanto ao modelo do computador empregado, o XO, da OLPC, foi o
utilizado. A atividade, na íntegra, pode ser encontrada em Sarian (2012), no Anexo C.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

103
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Figura 1 - Relação das atividades realizadas na escola Luciana de Abreu

Fonte: http://www6.ufrgs.br/psicologia/lec/bid-uca/indice.html.

Conforme ilustra a Figura 1, do total de dez atividades


publicadas, três se referiam ao ensino de língua portuguesa: “Agência
de notícias”, “Alfabetização” e “Livro da 4ª série”5. Ao lançarmos
nosso olhar para a terceira atividade, lemos:

(R1) Em 2007, no final do primeiro ano letivo do


Projeto UCA, as duas turmas de quarta série da Escola
Estadual de Ensino Fundamental Luciana de Abreu
planejaram a edição de um livro. Decidiram documentar a
experiência redigindo depoimentos a respeito do que
representava o laptop e o pro- jeto para elas. Neste
registro, relatamos seu percurso desde o lançamento da
idéia por uma das professoras até o lançamento oficial do
livro na própria escola. (grifo nosso)6

5 Os recortes serão indicados com (R), acompanhados de uma numeração, de acordo com a
sequência apresentada.
6 Extraído de Natureza da Atividade, no endereço
http://www6.ufrgs.br/psicologia/lec/bid-uca/8/1. html

104
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

A leitura e a escrita, na escola, são constitutivas de um processo


no qual o professor, inscrito numa posição de autoridade referendada
pelo sistema escolar, autoriza o aluno a ler e a escrever (PFEIFFER,
1995). É desse modo que compreendemos, com Gallo (1989), que
escrever um livro legitima a prática da escrita, como um lugar
autorizado em nossa tradição, para o estabelecimento da autoria na
escola. De acordo com Gallo, “o autor, enquanto efeito de sentido, é
concebido imaginariamente pelo aluno como uma figura ‘sempre-já-
lá’, no texto legítimo, livro que ele tenta representar” (Ibidem, p.115).
Ao se produzir um livro, o efeito que se tem é o de um “sujeito
sempre já autor” (Ibidem, p.120).
Uma vez que esse gesto de escrita instaura uma prática
legitimada em nossa tradição escolar, interessa-nos compreender
como a autoria é significada nesta atividade. Em outras palavras, na
produção desse livro, como essa prática autoral é estabelecida?
No R1, embora a iniciativa da proposição tenha sido da
professora, “o lançamento da ideia por uma das professoras”, gesto
que “autoriza o aluno a ser autor de determinados sentidos e não de
outros” (PFEIFFER, 1995, p.120), esse movimento é
contraditoriamente (PÊCHEUX, 1977; 1990) discursivizado por
formulações que sobredeterminam a iniciativa da proposição da
atividade como sendo dos alunos: “as duas turmas da quarta série
planejaram a edição de um livro” e “decidiram documentar a
experiência”. Os sentidos em circulação nessas formulações apagam as
relações de força em funcionamento no espaço escolar, na medida em
que silenciam “as exigências, os limites, as restrições que o
funcionamento escolar [...] impõe a alunos e a professores”
(LAGAZZI, 2006, p.96), legitimando o sentido de uma prática de
ensino significada pelos sentidos de autonomia, independência e
liberdade; sentidos que são reverberados em outros pontos deste
material e reiterados no recorte a seguir:

(R2) Os alunos puderam utilizar os recursos que julgassem


mais convenientes para escrever o texto. Alguns procuraram
escrever no laptop, usando o editor de textos, o editor
de imagens; outros usaram recursos de apresentação do
Squeak Etoys ou o próprio diário que cada um possuía no
Ambiente
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

105
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Virtual de Aprendizagem (AMADIS). Após a finalização


do texto, eles deixavam o mesmo a disposição no
AMADIS, na área de arquivos compartilhados. (grifo
nosso)7

Sabemos que é por meio do funcionamento ideológico que se


instala o sentido de escolha da ordem da liberdade individual – e a
ideologia, em nossa perspectiva, é compreendida como “interpretação
de sentidos em certa direção” (ORLANDI, 1994, p.57). É também
pelo efeito ideo- lógico que as “determinações históricas [...]
aparecem como evidências empíricas” (Ibidem, p.57). Lembremo-nos,
ainda com a autora, que “pela ideologia se naturaliza o que é
produzido pela história”. (Ibidem, p.57).
Compreendemos, nos sentidos em circulação no R2, o
funciona- mento do que Pêcheux (2009, p.162) nomeia de
esquecimento número 1, “que dá conta do fato de que o sujeito-
falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da
formação discursiva que o domina”, o que Orlandi (2007, p.35) vai
explicitar afirmando que,

por esse esquecimento, temos a ilusão de ser a origem do


que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos
pré- existentes. Esse esquecimento reflete o sonho
adâmico: o de estar na inicial absoluta da linguagem, ser o
primeiro homem, dizendo as primeiras palavras que
significariam apenas e exatamente o que queremos.

Assim, optar, dentre as possibilidades oferecidas pelo laptop,


por quais recursos dele se valer, “os alunos puderam utilizar os
recursos que julgassem mais convenientes para escrever o texto”
(R2, grifo nosso), é di- zer da impossibilidade de se pensar em
escolhas livres de determinações. O que se apresenta como escolha,
“escrever no laptop, usando o editor de textos”, “o editor de imagens”,
os “recursos de apresentação do Squeak Etoys” ou “o próprio diário”
(R2, grifo nosso) é, antes, determinado por uma rede de filiações
já-lá estabelecidas por quem está autorizado a dirigir os sentidos
para o funcionamento do PROUCA, cujos efeitos

7 Extraído de Descrição dos Processos, no endereço http://www6.ufrgs.br/psicologia/lec/bid-


uca/8/4.html
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

106
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

reverberam, por exemplo, nas possibilidades autorizadas pela


“assessoria sobre quais recursos do laptop poderiam ser utilizados
neste projeto”8, o que compreendemos como um gesto de
administração dos sentidos que institui o que (não) pode e (não) deve
ser mobilizado nesta atividade. Uma memória que atualiza o sentido
de língua como instrumento de comunicação e a compreensão do
laptop enquanto uma ferramenta; um gesto que se conforma às
condições de produção nas quais a atividade se realiza: a do espaço
escolar, que administra e legitima a produção e o apagamento de
sentidos para os sujeitos.
Desse modo, escrever sobre algo que é significado como da
ordem do experimentado, atualizado na formulação “redigindo
depoimentos a respeito do que representava o laptop e o projeto para
elas” (R1), não se constitui em uma entrada, a priori, para a criação e
a manutenção de espaços de uma autoria inscrita na repetição
histórica na escola, “for- mulação que produz um dizer no meio dos
outros, inscrevendo o que se diz na memória constitutiva”
(ORLANDI, 1998, P.14).
Se, por um lado, publicar um livro institui um lugar para quem
es- creve, que “remete o sujeito ao reconhecimento (ou ausência de
reconhe- cimento) de um seu lugar de construção dos sentidos, do
conhecimento” (PFEIFFER, 2002, p.10), por outro lado, no processo
de elaboração deste livro, instaura-se uma tensão entre um “sujeito-
sempre-já autor (e que como tal sabe escrever um livro)” e um
“sujeito que ainda não assumiu a autoria” (GALLO, 1989, p.120),
porque inscreve seu dizer numa dis- cursividade atravessada pela
repetição de sentidos institucionalizados, sentidos possíveis, sentidos
que podem e devem ser ditos nessas condi- ções de produção.
Vemos, no modo pelo qual essa atividade se textualiza, uma
forma de atualização do processo autoritário instituído pelo discurso
pedagógico, que tende à irreversibilidade (ORLANDI, 2009a): além
do direcionamen- to da proposta dado pela professora – “lançamento
da ideia por uma das professoras” (R1), a temática do livro gira em
torno do Programa – “De- cidiram documentar a experiência
redigindo depoimentos a respeito do
8 Extraído de Descrição dos Processos, no endereço http://www6.ufrgs.br/psicologia/lec/bid-
uca/8/4.html
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
107
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

que representava o laptop e o projeto para elas” (R1), o que produz


um efeito de circularidade. Em outras palavras, o laptop é utilizado
para dar visibilidade ao PROUCA, como forma de referendá-lo. É,
portanto, por meio do funcionamento da contradição que o
planejamento da edição de um livro e a decisão de registrar os
depoimentos são significados nesta atividade, produzindo efeitos no
lugar autorizado para o sujeito ocupar nessa sala de aula.
No que diz respeito ao trabalho com a língua, vejamos como se
deu o processo de produção escrita:

(R3) A partir de texto livre de cada um dos alunos sobre o


pro- jeto, foram trabalhadas questões como produção e
revisão da escrita, utilizando tanto o material tradicional
(lápis, caneta, caderno, papel em geral) quanto editor de
texto, de imagens, fotos e softwares de autoria (Squeak
Etoys). (grifo nosso)

Nesse recorte, faz-se menção à convivência de diferentes


instru- mentos de escrita - “lápis”, “caneta”, “caderno”, “papel em
geral”, ao lado de “editor de texto”, “de imagem”, “fotos” e
“software de autoria”
– materialidades de linguagem que, no entendimento de Lagazzi
(2006, p.99), “se colocam sob a demanda da textualização”, e, no
caso em aná- lise, significam, reiteradamente, a elaboração desse texto
discursivizado como “livre”.
Segundo Orlandi (2008B, P.40), “a convivência com as
linguagens artificiais poderiam nos apontar para uma inserção no
universo simbólico [...] Essas linguagens todas não são alternativas.
Elas se articulam”. No entanto, ainda que tenha havido o convívio de
diferentes instrumentos de escrita que permitem o funcionamento de
“diferentes formas de lingua- gem” (BOLOGNINI; LAGAZZI, 2009,
p.2), “expostas ao trabalho do simbólico, se constituindo em objetos
simbólicos para o sujeito” (Ibidem, p.3), não há uma articulação no
emprego desses instrumentos, o que poderia criar as condições para
um processo significativo de apropriação pelos sujeitos, na medida
em que, ao longo da descrição da atividade, não é mostrada, por meio
de imagens, nem é relatada, na textualização
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

que a apresenta, a forma pela qual se deu esse relacionamento entre


os diferentes modos pelos quais o sujeito se relaciona com a escrita
em suas diferentes materialidades significantes (LAGAZZI, 2017,
p.173): quando escreve, filiando-se à cultura do manuscrito, quando
digita e mobiliza imagens e fotos, ancorando-se na cultura do digital
(DIAS, 2009), como também não são colocadas em evidência as
diferentes memórias em funcionamento em cada um desses gestos
(DIAS, 2008).
Como efeito desse apagamento, o não dito faz significar a
escrita, manuscrita ou no computador, como uma tecnologia
naturalizada, tomada na evidência, destituída de historicidade, à
medida que é discursivizada como “novos recursos para melhorar a
aprendizagem e o desenvolvimen- to de habilidades, competências,
talentos, valores de crianças e jovens” (VOELCKER; FAGUNDES,
SEIDEL, 2008, p.2). No que diz respeito mais especificamente à
escrita no computador, lembra-nos Orlandi (2004, p.131): “pensar as
novas tecnologias da linguagem é pensar novas tecno- logias de
escrita”, na medida em que tomamos o “tratamento eletrônico da
informação apresentada em linguagem natural” (AUROUX, 1998,
p.289) como parte das “revoluções tecnolinguísticas da escrita”
(Ibidem, p.289).
No que diz respeito mais especificamente ao uso de softwares
educacionais, como efeito de uma regularidade, o Squeak Etoys ganha
relevo nos recortes anteriormente apresentados, dos quais destacamos
o modo pelo qual é significado no R3 – “software de autoria”, na
medida em que “permite ao usuário criar muitos tipos de objetos:
apresentações, textos, livros, vídeos, sons, etc” (SCHÄFER; SPERBS;
FAGUNDES, 2011, P.1228).
De acordo com as autoras, o Squeak Etoys foi
desenvolvido por Alan Kay, tido como o precursor do
computador portátil, filiado à memória de sistemas como LOGO,
PARCSmalltalk, Hypercard, StarLOGO e às propostas de Papert,
nome associado ao aprendizado construcionista, que “significa a
construção de conhecimento baseada na realização concreta de
uma ação que produz um produto palpável (um artigo, um projeto,
um objeto) de interesse pessoal de quem pro- duz” (VALENTE,
1999, p.135).
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Vemos esse processo de reprodução de conhecimentos já


estabiliza- dos, produzidos na instância da universidade e que
adentram na escola, reverberar na legislação educacional e na
discursividade do PROUCA. Desse modo, compreendemos a
entrada desse software no Programa como efeito desse processo de
determinações que o afeta, na medida em que estabelece filiações não
apenas com a ONG Fundação Pensamento Digital, mas também com a
OLPC e com o BID, relação que culminou na organização do
Squeakfest Brasil, por parte da Fundação Pensamento Digital9.
No site da Fundação, há uma série de informações disponíveis
em links sobre esses softwares, também denominados de ambientes de
simulação, criados a partir de uma linguagem denominada Squeak, da
qual derivou o Squeak Etoys, no qual “a criança cria modelos a partir
de conceitos e constrói seu conhecimento a partir do que ela
produz”10. Softwares que não exigem, como pré-requisito para sua
utilização, co- nhecimentos sobre programação, o que é tomado como
um ponto positivo para se trabalhar com o ensino de crianças.
Segundo Schäfer, Sperbs e Fagundes (2011, P.1228), “a ideia que
norteia o programa é a de que seja o mais aberto possível, com o
maior número de ferramentas disponíveis para o usuário, não apenas
para acesso, como também para programação”.
O Squeak Etoys é constitutivo do ambiente virtual de
aprendizagem AMADIS, o que direciona nossa atenção para o modo
de funcionamento dessa tecnologia na relação com a
produção do livro:

(R4) O ambiente AMADIS teve por objetivo servir como


re- positório das ações desenvolvidas pela equipe de
professores e alunos da Escola Estadual Luciana de Abreu,
assessorada pelos pesquisadores do Laboratório de Estudos
Cognitivos - LEC/ UFRGS. Sendo assim, propiciou o
registro e a publicação de: projetos de aprendizagem de
autoria do corpo docente [sic]; intervenções pedagógicas
dos orientadores dos referidos pro- jetos; oficinas
especializadas desenvolvidas pelos professores; propostas
interdisciplinares geradas e desenvolvidas pela
9 Em Sarian (2012), discorremos a respeito dessas questões mais pontualmente.
10 Extraído de http://www.pensamentodigital.org.br
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

equipe; discussão sobre o uso inovador e criativo da


tecnologia e sobre o modelo teórico de reestruturação
curricular. Tais registros foram viabilizados através dos
seguintes recursos tecnológicos que constam no
Amadis: Diário, Wiki e envio de mensagens curtas.
(grifo nosso)

Compreendemos que o modo de utilização do ambiente


como repositório das ações, registro e publicação, por meio de
Diário, Wiki e envio de mensagens curtas, sobrepõe-se ao trabalho
do sujeito aluno com a língua, na medida em que é dado relevo à
composição do ambiente virtual de aprendizagem, ao mesmo tempo
em que não nos é dado a co- nhecer o livro produzido pelos alunos.
Entre o “lançamento da ideia por uma das professoras até o
lançamento oficial do livro na própria escola” é silenciado o modo
pelo qual esse recurso foi utilizado na elaboração do livro. O que é
posto em evidência, nesta atividade, é a descrição do ambiente11,
que, segundo Bittencourt et al. (2006), foi criado para dar suporte ao
trabalho com a metodologia projetos de aprendizagem desen- volvida
nessa escola.
Contraditoriamente, embora a plataforma AMADIS seja o
am- biente virtual no qual o livro seria arquivado, local de onde
teria sido retirado para a publicação impressa, a produção dos
alunos, o livro pro- priamente dito, não nos é dado a conhecer. No
entanto, encontramos um recorte, na textualização da atividade, em
que se coloca em circulação a apresentação do livro numa noite de
autógrafos promovida pela escola:

(R5) A atividade proposta pelas professoras da quarta série


cul- minou num grande acontecimento, em que estavam
reunidos a direção da escola, professores, pais, alunos,
pesquisadores do projeto, representantes da Secretaria da
Educação e o pró- prio editor do livro. Isso resultou
num aumento da auto- estima da comunidade como um
todo. No livro, os alunos relataram com propriedade como
estavam utilizando o laptop e o que significava o projeto
UCA para eles. (grifo nosso)

11 Em Sarian (2012), são apresentadas, em forma de Figuras, a descrição do Amadis.


N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Essas pistas nos levaram a sucessivas pesquisas na rede na busca


pela localização desse material. Encontramos, em dois artigos
científicos distintos, assinados, respectivamente, por Schäfer e
Fagundes (2008) e Bittencourt et al. (2011), um texto atribuído a uma
das alunas participantes do projeto “Livro da quarta série”:
Figura 2 - Relato sobre a atividade Livro da quarta série

Fonte: Bittencourt et al. (2011)

No relato, coloca-se em evidência uma prática consoante, além


de usual, aos rituais escolares, aquela de “falar lá na frente”. A
exposição do sujeito ao público faz a língua fluir, a sair da
normatividade – “na hora de falar eu fiquei muito nervosa e errei
algumas palavras”. A fluidez, porém, é contida, à medida que
atravessa, esse dizer, a memória da norma da língua considerada culta,
língua imaginária inscrita na instância que prescreve o certo e o
errado, a que faz lembrar à aluna que cometeu o que a gramática
normativa significa como erro. Sentido que atualiza as divisões que
significam a língua e seu ensino em nossa tradição, filiada à relação
unidade versus diversidade, relação que diz da constituição do
processo de gramatização da língua portuguesa no Brasil
(ORLANDI, 2009b), ao mesmo tempo em que faz lembrar a memória
da escrita na constituição da forma sujeito brasileiro, aquele “que
não conhece bem a sua língua”, imaginariamente construída como
“mal-dita, mal-escrita” (PFEIFFER, 2002, p.13).

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

No texto em análise, chama-nos atenção a imagem que


representa a mão que dói ao repetir, inúmeras vezes, o gesto da
assinatura manual
– “a minha mão ficou doendo de tanto autografar livros e mais
livros”. A mão, aqui representada na imagem, não é a mão de uma
criança de quarta série, mas a mão de um adulto, gesto que nos
leva a refletir sobre o modo de constituição da autoria neste projeto.
Há uma firmeza no gesto da dedicatória projetada na mão adulta
que incide naquilo que se espera enquanto fim, e não enquanto
processo de produção escrita do aluno.
Ao mesmo tempo, ao dizer “agora além de pesquisadora eu
sou escritora”, a aluna se projeta, neste fragmento, com um
acréscimo: além de X, sou Y agora. O que vem ser acrescido? Que
agora é este? O que já estava lá?
No que diz respeito à “pesquisadora”, essa formulação atualiza uma
discursividade em circulação em nosso arquivo, a qual vem dizer do
PROUCA enquanto um Programa que também objetivava a
pesquisa12.
Por meio de um processo de identificação com os sentidos
que circulam sobre a relação do PROUCA com a pesquisa, há uma
projeção da pesquisa como estando em funcionamento na escola
por meio do projeto – a aluna já é pesquisadora-, à medida que nela
se produz um efeito de pertencimento, de participação em uma
pesquisa, o que vem dizer do imaginário também em funcionamento,
por parte dessa aluna, do que seja o pesquisador, o pesquisar
e a pesquisa.
Entretanto, aquilo que é próprio da pesquisa – expor-se,
perguntar- se, enfrentar o material – é insistentemente negado. Há
um dizer que se diz como pesquisa, mas a prática da pesquisa não é
construída, é apenas simulada. O interessante é que a projeção
funciona em um dizer sobre: sou pesquisadora. Há um agora que
permite o acréscimo. Esse agora se
12 Na Portaria que institucionaliza a formação de um Grupo de Trabalho de Assessoramento ao
Projeto Um Computador por Aluno, lemos, no inciso IV do Art. 1º, que, dentro dos objetivos
do GT, consta “promover articulação entre o Projeto UCA e as instituições de pesquisa e de
ensino superior, objetivando a transferência de conhecimentos técnicos e científicos na área
de tecnologia educacional”. (BRASIL, 2008). Cabe destacar que ONG Fundação
Pensamento Digital tem “atuação destacada em pesquisa e inovação no âmbito da
informática na educação”. No que diz respeito à relação entre a ONG e o PROUCA, “a
Fundação apoia e participa do Projeto-Piloto UCA - Um Computador por Aluno,
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
pesquisando o uso do laptop educacional por aluno na rede pública de educação”. Extraído
de: http://www.pensamentodigital.org. br/?q=node/5

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

marca pelo lançamento do livro. É interessante notar que é o


lançamento que temporaliza o ser escritora, e não o processo de
elaboração do livro.
A assinatura vem legitimar o lugar da autoria nesta atividade e,
de forma contraditória, nem no artigo do qual esse relato foi extraído,
nem tampouco no relato da aluna, se dá a ver ao menos pistas do
processo de produção dos textos que configurariam a elaboração do
livro. Assim, não se dá visibilidade para o que Lagazzi (2006,
p.93) compreende como ponto fundamental para o aprendizado da
autoria: uma “prática em concomitância”, na qual “o autor se
constitui à medida que o texto se configura”.
Desse modo, compreendemos que esse relato coloca em evidência
o processo de constituição da escritura nessa atividade inscrito no
“simu- lacro da autoria”, na “repetição sem história” (PFEIFFER,
2000, p.29), pois, ao não se fazer conhecer a voz desse sujeito
aluno, “este sujeito que é insistentemente calado, sob a forma da
exigência de que diga” (PFEIFFER, 2011, p.3), escrever é aqui
significado como um gesto no qual se convoca o olhar do outro para
que haja um reconhecimento desse sujeito como aquele que bem
diz e diz o que pode ser dito. Um modo de se colocar em
evidência a impossibilidade dada a esse sujeito aluno de historicizar
o seu dizer; sintoma que põe à mostra a projeção do bom sujeito do
capitalismo, aquele que tem sua produção “enformada” aos moldes
do que esse projeto, desenvolvido em uma escola, considera o bem
dizer, que, paradoxalmente, não nos é dada a ver.
No processo de elaboração desse livro, no qual se silenciam os
di- ferentes modos pelos quais os alunos se relacionam com a
escrita, com a tecnologia digital e com o Programa,

(R6) Observaram-se assim: Utilização de múltiplas mídias;


Con- texto de letramento; Diferentes formas de produção
textual; Retenção na memória de muitas experiências de
aprendizagem que estão relatadas nos textos.

Circula como evidente, neste recorte, o sentido de uma


atividade bem sucedida, que aponta para um resultado satisfatório,
significado pelo
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

acúmulo de conteúdos ministrados, na evidência de uma completude ins-


crita no discurso pedagógico, que fragmenta e dissipa o trabalho
com o ensino da língua, ao mesmo tempo em que o aprender é
significado como reter, para não dizer, decorar, reproduzir
informações, sob a roupagem do construir conhecimento.
Uma regularidade observada nessa e nas demais atividades
que analisamos é a inexistência de um espaço para vozes dissonantes;
não há lugar para que outros sentidos, senão aqueles legitimados para
circulação no Programa, façam sentido. Retomando o relato
expresso na Figura 2, a aluna tem seu dizer autorizado a circular – e,
não nos esqueçamos, num espaço particular, o de artigos científicos
referentes ao PROUCA -, porque “seu” dito conforma-se aos
sentidos possíveis nessas condições de produção, prática que
apaga o político e que nos leva a compreender que, nessa atividade,
reverbera um discurso sobre (MARIANI, 1996) a elaboração do livro, e
não um discurso do aluno a respeito de uma sua produção, o que
colocou em evidência não só uma contradição no que toca ao
funcionamento da internet, que, sob o imaginário de que tudo nos
mostra, a rede não nos dá tudo a conhecer, mas também o modo
pelo qual professores e alunos são “falados” nessas propostas,
conformados à regulação autoritária de um discurso
pedagógico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Encaminhando-nos para o efeito de fecho deste texto,


gostaríamos de ressaltar que, nesta atividade, a presença da internet e,
sobretudo, o modo de apropriação do laptop e de seus recursos, na
relação com tec- nologias de escrita de diferentes materialidades
significantes, não afetou os processos de significação da produção de
texto nesta sala de aula, uma vez que não abriu caminhos para a
instauração de acontecimentos discursivos (PÊCHEUX, 2008), o que
compreendemos como um efeito do modo pelo qual o Estado
significa suas políticas de ensino de língua, determinando o quê e
como se pode e deve circular nas práticas de ensino de língua
portuguesa.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Para além da circulação dos sentidos já-lá estabilizados sobre a


pro- dução de texto, o modo de apropriação da produção escrita não
permitiu a irrupção de uma prática de ensino outra, significada
politicamente, o que nos leva a afirmar que, nesta atividade,
reverbera o batimento novas técnicas / velhas práticas, ou, dito de
outro modo, sob a discursividade do diferente, esse Programa
instala o mesmo, ou, ainda, nessa injunção ao novo, repete-se o
velho.
Na medida em que os sentidos não se movimentaram nesse
trabalho com o ensino de língua mediado pelas tecnologias de escrita,
não se auto- rizou aos alunos se constituírem Autores. Um sentido
que, embora nesse material, não tenha sido produzido, nos deu
condições para que, hoje, nos projetos que desenvolvemos, melhor
compreendêssemos os sentidos em funcionamento nas políticas
públicas que regem as práticas de ensino de língua na escola e na
universidade, de modo a buscar ressignificá-las em nossas ações
no ensino, na pesquisa e na extensão.
No que diz respeito ao processo de produção escrita, que não se
dissocia do trabalho com a leitura, pois “a produção (oral ou escrita)
é o meio pelo qual se tem acesso à leitura do aluno” (ORLANDI,
2008B, p.91), compreendemos ser possível criar as condições para o
processo de construção do conhecimento na escola mediado pela
escrita em suas diferentes materialidades. Com Orlandi (2002, P.254)
afirmamos que “a escrita pode ser a tecnologia pela qual uma escola
diferente pode fazer a diferença, ou seja, a escrita entra como
tecnologia do trabalho de re- significação política do espaço urbano
produzida na escola”.
Nessa direção, o trabalho que temos desenvolvido no
Profletras, na Unidade Unemat/Cáceres, tem nos possibilitado
praticar o processo de constituição de autoria, no qual alunos e
professores de escolas públicas são autorizados a instalar seus
dizeres inscritos na repetição histórica, cujos efeitos têm produzido
em nós a compreensão de que é possível criar e manter as
condições para se promover a autoria na sala de aula, legitimar
saberes apagados, dar voz a sujeitos silenciados e produzir outros
sentidos possíveis na instituição escolar, numa relação estreita com
a leitura e a produção de arquivos.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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AUTORIA E GESTOS DE LEITURA NA PRODUÇÃO DA


RESENHA CRÍTICA DE UM FILME

Vinicius da Silva Zacarias


Mestre pelo PROFLETRAS - Universidade Estadual de Maringá - UEM
Professor do IFMS (Instituto Federal de Mato Grosso do Sul)

UM GESTO DE ABERTURA

Este trabalho, inserido no âmbito da Linguística Aplicada


em diálogo com a Análise de Discurso de matriz pecheuxtiana, tem
como objetivo realizar uma análise discursiva de duas produções
escritas do gênero resenha de filme, realizadas por alunos do nono
ano do Ensino Fundamental, tomando por base os pressupostos
epistemológicos da Análise do Discurso (doravante, AD) de linha
francesa apresentados pela pesquisadora brasileira Orlandi (1999),
bem como por Pfeiffer (1995), Pêcheux (1997) e Lagazzi (2006).
A AD é um campo que se relaciona com as fronteiras
disciplina- res da Linguística Aplicada. Nesse caso, não se trata
somente de trazer seus conceitos para iluminar práticas de leitura e
escrita, mas é preciso considerar um percurso transdisciplinar em que
tais conceitos devem ser problematizados na relação com práticas de
linguagem nas condições da sala de aula.

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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Buscamos, durante esta seção, discutir alguns dos


pressupostos trazidos da AD e que se configuram como conceitos
produtivos para a análise que apresentaremos em seguida. Para tanto,
tomaremos como base a obra Análise do discurso: princípios e
procedimentos de Eni Orlandi (1999) por a considerarmos uma
excelente leitora de Michel Pêcheux (uma das grandes referências
em se tratando da AD, de quem também trazemos algumas ideias
nessa seção), sendo capaz de apresentar seus conceitos de maneira
clara e acessível aos profissionais que lidam com a língua,
sobretudo àqueles inseridos no âmbito de seu ensino.
O primeiro dos conceitos dos quais nos valemos em nossas
análises é o de condições produção. É sabido que qualquer discurso,
qualquer texto, tomado fora do contexto em que foi produzido, abre
precedentes para deslocamentos em sua interpretação e, em certos
casos, para uma interpretação totalmente contrária àquela que se faria
considerando seus aspectos contextuais. Assim, nos tornamos capazes
de afirmar que a cre- dibilidade da interpretação de um enunciado se
relaciona estreitamente à consideração de suas condições de
produção.
Segundo Orlandi (1999), as condições de produção incluem,
prin- cipalmente, o sujeito e a situação, sendo possível considerá-las
tanto em sentido estrito – o que corresponde ao contexto imediato de
produção discursiva: quem diz, para quem, quando, onde – como em
sentido amplo
– aquele que se refere ao contexto sócio-histórico e ideológico em
que se dá a produção dos discursos. Consequentemente, todos esses
fatores atuam na significação do texto, determinando os gestos de
leitura que dele serão produzidos por seus leitores.
Outros conceitos que não podemos deixar de ter em vista em
nosso percurso analítico são os de intradiscurso e interdiscurso, já que,
segundo Orlandi (1999) todo o discurso nasce da confluência entre esses
dois con- ceitos. Segunda a autora, o intradiscurso refere-se ao
enunciado presente, ao que se está dizendo, à sua formulação, já o
interdiscurso se relaciona à memória discursiva, à determinação por
enunciados anteriores e, por
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vezes, já esquecidos, sobre os enunciados atuais, o que comprovamos


com mais detalhes por meio das palavras da própria pesquisadora:

Disso se deduz que há uma relação entre o já-dito e o que


se está dizendo que é a que existe entre o interdiscurso e o
intradiscurso ou, em outras palavras, entre a constituição do
sentido e sua formulação. Courtine (1984) explica essa dife-
rença considerando a constituição – o que estamos
chamando de interdiscurso – representada como um eixo
vertical onde teríamos todos os dizeres já ditos – e
esquecidos – em uma estratificação de enunciados que, em
seu conjunto, representa o dizível. E teríamos o eixo
horizontal – o intradiscurso – que seria o eixo da
formulação, isto é, aquilo que estamos dizendo naquele
momento dado, em condições dadas. (ORLANDI, 1999,
p.32-33)

Logo, concluímos que nenhum discurso é neutro, ou está imune


às determinações do já-dito. Mesmo que não esteja consciente
disso, o produtor de um enunciado acaba sendo atravessado por
ideologias já sedimentadas socialmente, que ressoam em seu
discurso. (ORLANDI, 1999). Isso se tornará bastante evidente nas
análises que serão apresen- tadas na próxima seção deste
trabalho.
O conceito de formação discursiva também se revela produtivo
em nossas análises. Orlandi (1999) afirma que “As palavras mudam
de sentido segundo as posições daqueles que as empregam. Elas
‘tiram’ seu sentido dessas posições, isto é, em relação às formações
ideológicas nas quais essas posições se inscrevem” (p. 43).
Há, por exemplo, casos de palavras que são significadas de
forma totalmente diferente quando empregadas em formações
discursivas di- versas, como é o caso de “luz”, que filiada a uma
formação discursiva religiosa pode convocar a ideia de benção,
proteção ou graça divina e quando filiada à formação discursiva
científica se refere ao conjunto de ondas aos quais nossos olhos são
sensíveis e que nos permite enxergar, ou ainda, quando inscrita na
formação discursiva histórico-filosófica convoca a ideia de que ser
“iluminado” é ter conhecimento, ser esclare-
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cido. Vemos, deste modo, que as palavras não carregam sentidos em


si mesmas, mas já nos vêm significadas a depender da posição
ideológica ocupada por quem as utiliza, como propõe Orlandi
(1999, p.43) ao mencionar que “A formação discursiva se define
como aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir
de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada –
determina o que pode e deve ser dito.”
Quando analisamos produções escritas de alunos, caso do presente
trabalho, é necessário nos abrir para a escuta de diferentes
interpretações para um mesmo referente a depender da formação
discursiva na qual o sujeito-discente se inscreve, o que nos leva a
pensar nos sentidos em jogo a partir das posições das quais os
sentidos são produzidos e que vão apontando para modos de
identificação desses sujeitos-alunos. Nesse sentido, é preciso “detectar
os momentos de interpretação enquanto atos que surgem como
tomadas de posição reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de
identificação assumidos e não negados” (PÊCHEUX, 1997, p. 57).
Procuramos, nesta seção que ora se encerra, apresentar os concei-
tos epistemológicos advindos da AD de linha francesa que orientam
as análises das produções escritas de nossos alunos. Detalharemos, a
seguir, as condições de produção da proposta da qual nosso corpus
analítico teve origem.

CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DA PROPOSTA

Os textos que integram nosso corpus foram produzidos por


alunos do nono ano do ensino fundamental de uma escola rural
situada na região sudoeste do Estado de São Paulo, pertencente à
Diretoria de Ensino de Mirante do Paranapanema. As resenhas
foram o produto final de um Projeto Didático de Gênero (PDG) sobre
superação, elaborado especifi- camente para atender às necessidades
daquela turma e aplicado por este professor-pesquisador em 2017.
A escolha do tema justifica-se pelo fato de que, durante as
reuniões pedagógicas, muitos dos docentes da escola onde se
desenvolveu o PDG
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afirmavam perceberem, nos alunos, em geral, uma falta de


perspectiva e de projetos para o futuro, o que nos motivou a dar
nossa parcela de contribuição à comunidade escolar por meio de
um projeto que pudesse trazer reflexões e discussões acerca da
ideia de “superar os desafios” impostos pela vida.
Já quanto à escolha do gênero resenha de filme como objeto
de en- sino no âmbito produção textual, ela deu-se por esse gênero
fazer parte do currículo proposto para a série pela Secretaria
Estadual de Educação. Assim, poderíamos desenvolver o projeto
sem deixar de estar em con- sonância com as orientações oficiais.
No PDG, os alunos tiveram a oportunidade de refletir sobre o
tema proposto, assim como sobre o contexto de produção, conteúdo
temático, estrutura composicional e estilo do gênero resenha de
filme por meio de oficinas preparadas especificamente para essa
finalidade. Após todas as discussões, nas oficinas finais, foi solicitada
aos alunos a produção de uma resenha do filme “Mãos talentosas: a
história de Ben Carson” (Gifted hands: The Ben Carson story).
A obra cinematográfica é uma autobiografia de Benjamin
Solomon Carson, hoje um neurocirurgião bem conceituado, que, no
entanto, é originário de uma família desfavorecida e, por isso,
teve de superar diversos desafios a fim de alcançar seu objetivo de
se tornar médico. A classificação indicativa do filme é para um
público de 12 anos de idade ou mais, portanto, adequada à turma de
nono ano para a qual foi exibi- do. A história mobiliza bem
explicitamente as noções de fé, superação e persistência,
consideradas pertinentes para serem discutidas diante do contexto
vivenciado pelos alunos da escola onde se desenvolveu o projeto.

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Figura 1 – Cada do DVD do filme “Mãos talentosas: a história de Ben Carson”

Fonte: Internet1

A escolha deste filme, especificamente, deveu-se ao fato de


o professor-pesquisador considerar a grande possibilidade de
identificação dos alunos com a personagem principal, já que ambos
enfrentam proble- mas sociais, de aprendizagem escolar, financeiros
e familiares. Nossa intenção, porém, não se esgotou na identificação
personagem-aluno, mas concretiza-se ao mostrar que, embora com
todas as dificuldades, Benja- min Carson consegue concluir seus
estudos de medicina e tornar-se um neurocirurgião reconhecido no
mundo inteiro, mostrando, dessa forma, que também é possível para
nossos discentes alcançarem o sucesso, tal qual o personagem
principal do filme alcançou.
A exibição da obra, realizada durante o horário de aula, foi
ante- cedida por discussões sobre como os alunos costumavam
lidar com as dificuldades enfrentadas em seu dia-a-dia, bem como sobre
alguns gestos
1 http://texte0328.blogspot.com.br/2011/06/maos-talentosas-historia-de-ben-carson.html. Acesso
em: 19 maio 2018.
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de leitura necessários à turma durante a apreciação da obra fílmica


para que pudessem compreender que a leitura é construção de
sentidos, isto é, é preciso relacionar sentidos e, para tanto, é preciso
um dado compro- metimento ao assistir ao filme. Desse modo,
práticas tais como não ir ao banheiro com frequência ou procurar ter
o máximo de concentração eram investimentos importantes para que
pudessem compreender/pro- duzir sentidos sobre o que estavam
assistindo. Além disso, o professor também chamou a atenção dos
discentes para alguns aspectos a serem observados enquanto
assistiam ao filme, como: a) enredo; b) figurino; c) trilha sonora; d)
atuação do elenco; e) direção, entre outros aspectos que serviriam
de base para a construção da resenha posteriormente.
Após a apreciação da obra cinematográfica, houve outra
discussão coletiva a fim de fossem retomados os aspectos mais
importantes do filme, seguida da apresentação aos alunos de uma
sugestão de roteiro de escrita, elaborado pelo professor-pesquisador,
bem como pela disponibilização da ficha técnica do filme para que,
então, a turma pudesse construir suas resenhas, o que foi feito
durante as aulas de Língua Portuguesa, com acompanhamento do
professor- pesquisador durante todo o processo.
Apresentamos, a seguir, as informações constantes da ficha técnica
entregue aos alunos para a escrita de seus textos a fim de que
pudessem melhor contextualizar e realizar a apresentação da obra
aos leitores.
Quadro 1 – Ficha técnica do filme “Mãos talentosas: a história de Ben Carson”

Ficha técnica do filme “Mãos talentosas: a história de Ben Carson”


Título original Gifted hands: The Ben Carson story
Duração 90 minutos
País de origem Estados Unidos
Lançamento 2009
Diretor Thomas Carter
Roteiro John Pielmeier
Produção Bruce Stein, Erin Keating, Margaret Loesch
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Fotografia John B. Aronson


Trilha sonora Martin Davich
Estúdio Hatchet Films, Sony Pictures Entertainment
Montador Peter E. Berger
Distribuição Peter E. Berger
Elenco Alecia Hamilton, Angela Dawe, Aunjanue Ellis, Casey
Tutton, Cuba Gooding Jr., Danny Goldring, Duncan Hursley,
Ele Bardha, Ellington King, Erin Renee Frankfort, Geoffrey
Beauchamp, Gordon Michaels, Gregory Dockery II, Gus
Hoffman, Ithamar Enriquez, Jaishon Fisher, Jesse Christian,
John Hoogenakker, Kimberly Elise, Lesley Bevan, Loren
Bass, Maestro Harrell, Michael Fitch, Rick Uecker, Ron
Coden, Sam Logan Khaleghi, Scott Stangland, Tajh Bellow,
Wayne David Parker, Zac Douglass

Fonte: Elaborado pelo autor com base em informações do site Cineclick2

Depois de produzidos, os textos passaram por revisão do professor-


pesquisador para que os alunos pudessem produzir as versões finais
(duas delas constantes nos apêndices deste trabalho), produções essas
que inte- gram nosso corpus analítico. Os textos foram, mais tarde,
digitados pelo professor, acrescidos de imagens de cenas do filme
escolhidas por cada aluno com suas respectivas legendas, impressos e,
por fim, apresentados à comunidade escolar num evento denominado
“Coquetel literário”, do qual participaram os alunos das demais
séries do ensino fundamental e médio, assim como pais, amigos e
familiares.
Não podemos deixar de ressaltar as especificidades do
contexto de produção das resenhas a serem analisadas neste trabalho,
na medida em que, ao serem tomadas como objeto de ensino e
aprendizagem escolar, sofrem um deslocamento de significações, na
forma de uso da linguagem, assim como na profundidade das análises
e dos argumentos propostos.
Neste caso, não estamos lidando com resenhas produzidas por
su- jeitos-críticos profissionais, detentores de um vasto conhecimento
acerca
2 https://www.cineclick.com.br/maos-talentosas-a-historia-de-benjamin-carson. Acesso em:
19 maio 2018.
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da arte cinematográfica, envolvidos profundamente com esse


ambiente cultural, mas com alunos de uma escola rural, habitantes
de uma região com alto índice de vulnerabilidade, que, certamente,
terão interpretações diversas e são constituídos por histórias de
leituras diferentes daquelas feitas por um crítico renomado
sobre a obra.
Essa discussão corrobora com as ideias de Barros, Mafra e
Storto (2017) ao afirmar que, quando propomos o ensino sistemático
de um gênero em contexto escolar, tentamos ao máximo, simular
sua produção tal qual se dá na realidade, porém, por mais que nos
empenhemos, o gênero, inevitavelmente, sofrerá deslocamentos
quando inserido em um contexto diferente daquele que lhe é
natural.
Apesar da inevitável possibilidade de “artificialização” do
gênero quando trazido para o contexto do ensino escolar,
salientamos que, em nosso caso, o fato de a turma se mobilizar,
desde o início do desenvol- vimento do projeto, e vivenciar o fato de
que suas produções seriam expostas ao público de alguma forma, e
não apenas lidas pelo professor a fim de dar-lhes nota, os ajudou a
assumir, da melhor forma que lhes era possível, o papel de críticos
cinematográficos, bem como a garantir maior empenho na
realização da atividade de produção escrita quando comparado a
outras atividades da mesma natureza realizadas pelo grupo fora do
âmbito do projeto que estava em curso.
Nesse caso, tendo em vista a autoria como evento
interpretativo e não mera repetição de ideias, consideramos
justamente a relevância de efetivação da autoria nessa prática de
produção de resenhas. Assim, acreditamos que, nesta intervenção,
conseguimos abrir espaços para que os alunos pudessem ousar serem
autores. Em sintonia com as palavras de Pfeiffer (1995, p. 127,
grifos da autora), “só no momento em que o sujeito se inscreve
no repetível histórico, representando-se como contro- lador e criador
dos sentidos, e sentindo-se seguro e capaz de dizer aquilo que quer
dizer, que o aluno está se posicionando na função da autoria”.
Tal movimento de o sujeito se colocar como controlador dos
sen- tidos (ainda que não o seja) que produz, isto é, um sujeito que
“ousa ser autor” (LAGAZZI, 2006), que textualiza e organiza um
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“projeto” de

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texto, se responsabilizando pelo que diz, exigiu que o professor


também redimensionasse o espaço da sala de aula. Assim, ao deixar de
ser o único leitor das produções dos alunos ou mesmo permitir ao
aluno assumir uma posição dentro do seu contexto sócio-histórico,
dizendo algo que lhe faça sentido, a produção da resenha trouxe
justamente um percurso de levar esse sujeitos-alunos a se
sentirem autor(izados) a significar.
Assim sendo, buscamos, nesta seção, delimitar ao leitor as condições
em que se deu a produção das resenhas de filme que constituem o
cor- pus de nossa análise neste trabalho. Partiremos, a seguir, para a
análise dos exemplares propriamente ditos, o que faremos seguindo
os passos propostos por Orlandi (1999), ou seja, partindo da
superfície linguística, buscando atingir o objeto discursivo para, por
fim, chegarmos ao processo discursivo – nível no qual nos
empenharemos em identificar as ideologias sobre as quais o
discurso se assenta.

ANÁLISE DAS PRODUÇÕES

Dentre os textos produzidos, selecionamos dois exemplares


para deter nossa análise, pois consideramos que, mesmo tendo sido
produ- zidas em contextos semelhantes, como frutos das mesmas
intervenções pedagógicas, no mesmo espaço e durante o mesmo
período de tempo, eles tornam evidentes formas diferentes de
significar o filme “Mãos ta- lentosas: a história de Ben Carson”,
sendo, portanto, dignos de receber um olhar mais atento de nossa
parte.

ANÁLISE DO PRIMEIRO EXEMPLAR

Neste primeiro exemplar, o aluno materializa, no título de seu


tex- to, uma das mensagens principais a qual o filme intenciona que
o leitor construa: a ideia de superação, o que pode ser observado pela
escolha da formulação “Mãos talentosas- a superação em tela”,
evocando, no nível do interdiscurso, uma ideia de esforço, luta e
conquista que permeia o conceito de superação, tal qual
mostrado no filme.
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Em sua introdução, o sujeito-discente traz informações técnicas


do filme: lançamento, produtora, diretor e ator principal. O fato de
incluir o protagonista entre as informações técnicas também atua na
significação, pois é seu personagem que é apresentado como
exemplo a ser seguido, é ele que está ligado mais diretamente a
uma dada representação de superação proposta como
“mensagem” pelo filme.
Neste primeiro parágrafo e, também em parte do segundo, há,
em nível de intradiscurso, a enumeração de problemas enfrentados
pelo protagonista do filme que se textualizam em marcas linguísticas
tais como “dificuldades”, “bullying” e expressões nominais definidas
como “as notas mais baixas de sua sala”, “a falta de dinheiro”, “a
ausência do pai”.

[...] enfrentou muitas dificuldades na escola porque ele era


o que tirava as notas mais baixas de sua sala. Por isso,
sofria bullying. Já em casa, os problemas eram a falta
de dinheiro e a ausência do pai [...] Outro problema é
que ele precisava de óculos [...]. (APÊNDICE-A)

Esse destaque dado às várias dificuldades tem um efeito de engran-


decimento do valor das conquistas alcançadas pelo protagonista.
Pode também estar relacionada a uma formação discursiva religiosa
na qual o sujeito-autor da resenha se inscreve, convocando sentidos
inscritos na memória do dizer de que aqueles que sofrem no
presente serão recom- pensados no futuro.
Outro aspecto que chama atenção no nível da formulação, isto
é, da textualização, é a repetição/recorrência da figura da mãe como
um dos principais auxílios ao sucesso de Ben Carson. De forma que
a superação não é apenas de Ben, mas acontece na relação com
sua mãe, o que se torna claro pela análise dos excertos a seguir:

Já em casa, os problemas eram a falta de dinheiro e a


ausência do pai, mas sua mãe nunca deixou-o (sic)
desistir. [...] Outro problema é que ele precisava de
óculos, mas logo sua mãe percebeu, então tirou dinheiro
de suas economias para
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comprá-los ao filho. Tudo isso mostra a importância de


sua mãe para o sucesso de seu filho.
[...] e tudo isso por causa de sua mãe, que sempre estava
do seu lado lhe apoiando. (APÊNDICE-A)

Além disso, nota-se, pelos excertos, que o sujeito-aluno


interpreta a mãe não apenas como uma grande incentivadora, mas
também como alguém que ocupa uma posição cuja palavra possui
autoridade no lar ao dizer que a “[...] mãe nunca deixou-o (sic).
desistir.” Isso se relaciona ao fato de que, no filme, Ben e seu
irmão viviam apenas com a mãe, já que o pai havia abandonado a
família, recaindo, portanto, sobre ela toda a responsabilidade e peso
de tomar as decisões do lar. Pode-se notar o pré-construído “a mãe
é quem cuida e não abandona seus filhos” que se relaciona a um
imaginário da presença da mãe/avó (mulher) em muitas famílias e a
ausência do homem (pai) da vida familiar e dos filhos.
A resenha também é atravessada por uma formação discursiva
religiosa, como podemos contemplar em:

Em vários momentos, o filme mostra a importância da


reli- gião na vida da personagem, isso acontece quando ele
enfia o canivete na barriga de seu colega, mas acerta na
fivela do cinto do amigo. Nesse momento ele sai
correndo e pede a Deus o ajude a controlar sua
agressividade.

Aqui, o sujeito-autor escolhe dar destaque a uma cena em que


pre- domina a religiosidade do protagonista, o que se relaciona a um
modo de identificação do sujeito com a religião em sua vida
cotidiana que, mesmo de forma inconsciente, produz efeitos sobre a
leitura que o sujeito-aluno faz do objeto fílmico. O sujeito, ao se filiar
a sentidos que ligam a religião a uma força ou mesmo luz que
permite ao outro seguir pelo caminho certo, nos permite pensar que
o sujeito, na resenha, assume uma posição na filiação de sentidos, isto
é, em redes de sentidos que constituem as possibilidades de
intepretação para o filme.
A significação da obra fílmica se dá, em certos momentos,
pelo contato entre a leitura do filme estabelecida pelo sujeito-autor e
sua sub-
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jetividade, o que se comprova também por excertos como “Essa


atitude é um bom exemplo, não é?” ou em “Assista! Você vai
gostar!”, trechos nos quais o aluno, além de garantir a manifestação
de sua subjetividade, estabelece um diálogo direto com seu
interlocutor.
As adjetivações feitas em relação ao trabalho dos atores e do
diretor do filme é uma forma de o sujeito-autor marcar seu discurso,
demons- trando sua apreciação valorativa positiva em relação à
obra. Analisemos o excerto que segue:

O trabalho dos atores e do diretor foi muito bom, pois


fizeram tudo parecer muito real, além de nos trazer uma
história muito emocionante, e dar a todos boas lições de
vida, e melhor, se baseando na vida de uma pessoa de
verdade.

É possível perceber, também, em uma análise no nível do


interdis- curso, os ecos de sentidos sedimentados na cultura local da
qual faz parte o sujeito-aluno. Percebe-se, no trecho negritado, uma
tendência a valorizar a realidade em detrimento da fantasia, algo
muito comum no contexto da comunidade rural de onde emerge a
posição-sujeito do sujeito-aluno, já que, nela, há uma
supervalorização daquilo que é pragmático, fazendo com que não
haja espaço, em seu cotidiano, para cultivar a fantasia como forma
de reflexão sobre a vida. Esse ressoar de sentidos se materializa
nas tomadas de posição do sujeito-resenhista de que a história se
torna melhor e mais convincente por se tratar de um caso real.
Ao final de seu texto, o aluno expressa, outra vez, sua
significação para o filme como objeto de incentivo à persistência,
significando-o a partir da inscrição em uma formação discursiva
religiosa quando afirma que “[...] sempre devemos ter fé, que um
dia chegaremos lá”. O atra- vessamento do discurso religioso é
constitutivo dos sentidos sobre uma superação que se alcança na
relação do eu (indivíduo) e Deus.
De nossas análises, concluímos que este primeiro exemplar de
pro- dução escrita é fortemente marcado por uma mobilização
subjetiva do sujeito-autor, isso se torna perceptível até mesmo na
forma de organizar os fatos do enredo do filme. Na formulação de
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
seu discurso, o sujeito

133
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

estudante não segue uma linearidade cronológica, ao mencionar os


acon- tecimentos, mas o faz seguindo critérios de sua apreciação em
relação a eles, apresentando os fatos que mais lhe despertaram
interesse. Há um movimento partindo das dificuldades enfrentadas
por Benjamin quando criança (baixo rendimento escolar, bullying,
ausência da figura paterna no lar, visão) para o momento em que ele
toma a decisão de realizar, na condição de médico residente, uma
cirurgia sem nenhuma supervisão, retornando à adolescência da
personagem, quando, por pouco, não fere um colega com um
canivete.
Afirmamos, também, que o sujeito-autor da primeira
produção analisada significa o filme a partir do discurso religioso,
cuja presença foi evidenciada em vários trechos já demonstrados
em nossa análise.

ANÁLISE DO SEGUNDO EXEMPLAR

Ao analisar a segunda produção constituinte de nosso corpus,


ve- mos que o sujeito-autor também inicia seu texto, destacando
sentidos ligados à noção de superação no título de sua produção,
movimento esse relacionado ao referente discursivo do filme que
produz efeitos no sujeito- espectador, o que evidencia que esse
sujeito-aluno, da mesma forma como aquele que produziu o
exemplar analisado anteriormente neste trabalho, se identificou com
sentidos ligados à superação como força para a mudança, mobilizados
pelo enredo da obra cinematográfica. O sujeito-produtor do texto, em
seu primeiro parágrafo, também textu- aliza informações técnicas da
obra, algo já esperado para a estrutura de uma resenha.
Porém, neste segundo exemplar, nota-se, no nível do intradiscurso,
um maior cuidado em relação aos detalhes tomado pelo sujeito-
autor, pois, já no primeiro parágrafo, entre as informações técnicas,
ao men- cionar o personagem Ben Carson, o aluno-produtor da
resenha decide apresentar os nomes dos três atores que o interpretaram
em suas diferentes fases da vida, marcando, dessa forma, a importância,
em sua interpretação, da transformação sofrida por ele ao longo
da trama.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

134
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

As sequências narrativas deste segundo exemplar são bem


lineares, seguindo a sequência/progressão de eventos do filme:
dificuldades en- frentadas por Benjamin – intervenções da mãe –
melhorias nos problemas
– sucesso. No nível do interdiscurso, a produção do aluno é
atravessada por sentidos exteriores e anteriores que se relacionam ao
chamado “sonho americano” de que o sucesso é uma questão de
decisão pessoal, de que basta determinação e esforço para conseguir
chegar aonde se deseja. Para o estudante, foco e determinação são
ensinados ao filho pela mãe, que toma decisões “sérias” sobre seus
filhos. Algo a destacar, neste ponto, é que, num primeiro momento,
essas “decisões” não partem do filho, mas é a mãe quem as toma,
revelando, aí, uma relação intertextual com a no- ção veiculada
popularmente de que a mãe sabe o que é melhor para seu filho e,
consequentemente, de que as crianças não possuem capacidade
suficiente de tomar decisões acertadas quanto a seu futuro, cabendo aos
pais esse papel e aos filhos, consequentemente, o de acatar essas
decisões com obediência, como podemos comprovar no trecho
seguinte:

[...]saindo da escola, Sonya Carson (Kimberly Elise)


pergunta o que está acontecendo com ele. A partir dessa
conversa, ela toma decisões sérias sobre seus filhos. Essa
firmeza da mãe e a obediência de seus filhos são a forma
de sucesso deles. (APÊNDICE - B)

Além disso, também é possível associar a construção “[...] ela


toma sérias decisões sobre seus filhos” ao fato de que Sonya criava
seus filhos sem a presença paterna, recaindo sobre si as decisões da
casa. A mãe não consulta ninguém, ela mesma toma as decisões.
O sujeito-estudante estabelece também, em termos de gesto de
leitu- ra, uma relação entre o apoio da figura materna e o sucesso da
personagem em: “Ao longo do tempo, Ben começa a melhorar,
sua mãe sempre o apoiava [...]”, o que estabelece também uma
relação interdiscursiva com a noção de que o apoio da família é
importante para atingir o sucesso, assim como no trecho seguinte:
“Por mais difícil que tenha sido a vida de Ben, por ter a presença
de sua mãe o apoiando naquilo que ele queria, se tornou um
homem realizado.”
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

135
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

O discente marca sua interpretação para a palavra “sucesso”


quando afirma que a personagem principal “[...] começa a ganhar
diplomas e se dedica cada vez mais até que entre em uma
faculdade de medicina (sic).”, ou seja, sucesso para esse aluno se
relaciona a conquistas no âmbito profissional, não necessariamente
na vida pessoal, religiosa ou familiar. Essa mesma ideia se repete
numa relação parafrástica quando o aluno-produtor da resenha
afirma que ele “[...] se tornou um homem realizado”.
Esse segundo exemplar de resenha não fica imune à forma
como os discursos sedimentados na comunidade local do aluno ressoam
sobre seu próprio discurso, na medida em que, como afirma Orlandi
(1999), nosso discurso está sempre atravessado pela memória
discursiva. Assim, da mesma forma como no exemplar anterior, vê-se
uma valorização do pragmatismo em detrimento à fantasia, quando o
sujeito-autor afirma que o fato de a história ser real “[...] trará mais
inspiração ao público para se dedicarem e batalharem por aquilo
que querem.”, ou, ainda, quando afirma que “[...] o diretor é ótimo
por se inspirador em uma história real e ter transmitido essa ideia
como algo impressionante de se ver.” (sic)
Algo que chama atenção na formulação do texto são alguns ad-
jetivos textualizados no eixo do intradiscurso para referir-se ao filme.
As cenas são descritas como “impressionantes e chocantes”. O uso
da forma “chocantes”, sobretudo, nos intriga, pois trata-se de um
adjetivo forte, porém, podemos estabelecer a hipótese de que a
mensagem do filme choca, no sentido de que gera um embate entre
a forma de pensar predominante na comunidade local, aquela do
conformismo e da falta de perspectivas para um futuro melhor, e a
ideologia veiculada pelo filme, a da superação e da persistência
diante das dificuldades.
Ao final de sua produção, o estudante revela significar o filme
como um forte apelo à persistência ao firmar que: “Esse filme deixa a
mensagem de que nós nunca jamais podemos deixar nossos sonhos
de lado.”(sic), o sujeito marca uma posição na qual se identifica com
sentidos de que é preciso não desistir dos sonhos, mesmo em meio
às barreiras, efeito causado pela sequência “nunca jamais”, palavras
de sentidos próximos
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
136
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

que, ao figurarem ao lado uma da outra, geram essa ideia de


intensifica- ção. Neste gesto final, a subjetividade do aluno emerge
explicitamente marcada na construção que também consagra o
fecho do texto: “Reco- mendo este filme por ser uma história
surpreendente. Só cuidado para você não chorar!”, revelando ao
leitor a forma mais profunda como o filme lhe tocou quando
comparado com o aluno produtor do primeiro exemplar analisado.

CONCLUSÃO

As análises das duas produções escritas empreendidas durante


o percurso deste trabalho evidenciaram diferentes formas de se
apropriar e significar o filme “Mãos talentosas: a história de Ben
Carson” por dois alunos do nono ano do ensino fundamental. Ainda
que expostos ao mesmo referente, no mesmo tempo e espaço,
houve, no primeiro exem- plar analisado, a filiação a sentidos que
ligam o filme a uma formação discursiva religiosa, o que não
aconteceu no segundo exemplar, no qual se verificou que o sujeito-
produtor não se identifica com sentidos liga- dos a uma dada
formação discursiva religiosa, na medida em que sua produção se
inscreve em uma formação discursiva na qual o “sucesso” está
atrelado ao desenvolvimento profissional, e não necessariamente à vida
pessoal ou familiar.
As conclusões aqui apresentadas não visam sugerir ao
professor que realize profundas análises discursivas das produções de
seus alunos, pois sabemos que, no contexto educacional brasileiro
da educação bá- sica, isso não seria possível. Porém, sugerimos
que passe a olhar a sala de aula a partir de posicionamento
discursivo, com o propósito de que possa enxergar e estar aberto às
diversas interpretações e possibilidades de modos de identificação do
sujeito que emergem do discurso dos di- ferentes sujeitos-alunos
com os quais lida cotidianamente.
Essa nova postura pode contribuir para o deslocamento da
atenção voltada exclusivamente aos erros de ortografia e de
gramática durante a correção de textos na escola para uma visão
que se detenha mais ao
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

137
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

conteúdo, bem como aos sentidos e ideologias veiculadas pelo que


o aluno produz.
Além disso, esse tipo de prática analítica chama atenção para o
fato de que o professor precisa dar visibilidade em seu fazer docente
à possibilidade de existência de múltiplas interpretações para os
discursos, algo que raramente acontece no ensino pautado pelos moldes
tradicionais, que tende a legitimar a interpretação do professor e/ou
do livro didático como as únicas adequadas Esse movimento levará
o profissional a en- corajar e validar as diversas significações propostas
pelos discentes para os textos com os quais trabalha em sala de aula
– sejam eles escritos, orais ou multimodais – mostrando que
interpretamos a partir de posições diferentes. Assim, interpretar ou
significar nunca é algo limitador, mas algo livre desde que calcado
em evidências provenientes da superfície linguística do discurso.
Portanto, a AD pode estar presente na formação do professor,
con- tribuindo significativamente para uma ressignificação de sua
prática de ensino, dado que o permite lançar novos olhares ao texto,
em torno do qual se deve centrar todo o ensino de língua materna,
reverberando, assim, em novas possibilidades de trabalho com um
sentido tomado como unívoco ou literal. A partir do referencial
teórico e das análises, observa-se que a AD, apesar de não se
materializar com tanta frequência em forma de conteúdo “ensinável”
em sala de aula do ensino básico, pode contribuir para
deslocamentos/redimensionamentos no ensino de língua portuguesa,
especificamente no que se refere à produção textual, permitindo que
os alunos assumam a sua identidade como um sujeito-autor e não
somente como meros repetidores de sentidos autorizados.

REFERÊNCIAS

BARROS, E. M. D.; MAFRA, G.M.; STORTO, L.J. O gênero “resenha de


filmes”: de objeto social de referência a objeto didático. In: BARROS, E. M. D.;
STORTO,
L.J. Gêneros do jornal e ensino: práticas de letramentos na contemporaneidade.
Campinas: Pontes Editores, 2017, P.151-182.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

LAGAZZI, S. Texto e autoria. In: RLANDI, E.; LAGAZZI-RODRIGUES, S.


(Org.).
Introdução às ciências da Linguagem – discurso e textualidade. Campinas:
Pontes Editores, 2006. p. 81-103.
ORLANDI, E.P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas:
Pontes Editores, 1999.
PÊCHEUX, M. Discurso: Estrutura ou Acontecimento. Campinas, Pontes
Editores,1997.
PFEIFFER, C. R. C. Que autor é este? 1995. 146f. Dissertação (Mestrado em
Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de
Campinas.

139
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

ARTIGO DE OPINIÃO NAS CONDIÇÕES DE


PRODUÇÃO DO VESTIBULAR DA UEM

Cintia Bicudo
(Mestrado PLE/Universidade Estadual de Maringá -UEM)
Professora da rede pública do Estado do Paraná

INTRODUÇÃO

O Artigo de Opinião, na circulação social, é uma textualização


na qual podemos contemplar a tomada de posição do sujeito-autor e
a pro- dução de um efeito-convencimento em leitores diversos
imaginariamente projetados na leitura. Neste gênero, o autor pode
marcar sua tomada de posição histórica e ideologicamente
constituída e determinada, assim como deixar emergir um dado
estilo de escrita, textualizado a partir de recursos como o humor, a
ironia, utilização de metáforas futebolísticas para fidelizar o leitor.
O Artigo de Opinião, historicamente, passou a fazer parte dos
conte- údos ensinados na escola devido aos Parâmetros Curriculares
Nacionais que elegeram os gêneros discursivos como objetos de
ensino em 1998. No que concerne ao nosso contexto de estudo, a
prova de redação do ves- tibular da Universidade Estadual de
Maringá (UEM), tal certame passou a solicitar os gêneros em 2008,
ao adotar o gênero como instrumento de avaliação, foi necessário
estabelecer critérios para a atribuição de nota às redações produzidas
no vestibular.

141
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Há alguns trabalhos que consideraram os gêneros no contexto do


vestibular da UEM: Santos (2012) que analisou quinze redações do
gênero Resposta Argumentativa do vestibular de inverno 2009 da
UEM para descrever a ocorrência das relações retóricas na
superestrutura do gênero; Calicchio (2014) que analisou 100
Respostas Argumentativas mais bem avaliadas pela banca de
avaliação do vestibular de verão de 2011 da UEM com o objetivo de
identificar como a hipotaxe adverbial pode contribuir para a
construção da argumentatividade do gênero; Corsi, Ritter e Hila
(2015) apresentam propostas didáticas voltadas para o ensi- no dos
gêneros solicitados no vestibular; Santos (2016) que analisou 15
relatos produzidos no vestibular de verão 2013 da UEM para
descrever a organização textual do gênero; Hila et al. (2017)
apresentou os critérios para a avaliação do gênero Resumo no
contexto do vestibular; Antonio e Navarro (2017) que abordaram as
características prototípicas dos gê- neros que podem ser solicitados na
situação do vestibular, vale salientar que este trabalho analisou o
Artigo de Opinião produzido no contexto social, não no contexto do
vestibular.
Por esse motivo precisamos construir nosso trajeto,
relacionando o Artigo de Opinião à assunção de autoria, já
trabalhada na Análise de Discurso (AD), com as pesquisas voltadas
para o ensino de gêneros em Análise Dialógica de Discurso
(ADD).
Em termos de material de análise, esta pesquisa tem como
objeto os indícios de autoria no gênero Artigo de Opinião no
vestibular de 2016 da UEM. Para isso consideramos como corpus
bruto 80 Artigos de Opinião produzidos nesse vestibular. As redações
foram disponibilizadas pela Comissão Central do Vestibular (CVU) e
separadas em grupos, com 20 redações cada grupo, categorizados pela
CVU como: ótimas, médias, ruins e zero. Não houve a necessidade
de que esta pesquisa fosse subme- tida ao comitê de ética porque no
manual do candidato, há uma sessão denominada direito de uso das
redações, avisando ao candidato que, após a publicação do resultado
final, a redação passa a ser propriedade da UEM e poderá ser
utilizada em pesquisas; por isso, tivemos apenas o cuidado de digitar
todas as redações ou trechos aqui apresentados para que a caligrafia
original do candidato não fosse exposta.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

142
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Este artigo é constituído por três seções: na primeira, “Análise


de Discurso” apresentamos brevemente alguns conceitos bases para a
AD; na segunda, “As condições de produção no vestibular”
descrevemos como acontece o processo seletivo na UEM; na
terceira seção, “Autoria” demonstramos as diferentes reflexões que
existem na AD sobre autoria e a análise.

ANÁLISE DE DISCURSO

A Língua na AD é a materialização do discurso. Não se


trata de um mero instrumento a ser controlado ou utilizado para
informar con- teúdo, mas sim de um acontecimento no sujeito e o
sentido é atribuído ideologicamente. “Partindo da ideia de que a
materialidade específica da ideologia é o discurso e a materialidade
específica do discurso é a língua, trabalha a relação língua-discurso-
ideologia” (ORLANDI, 2015, p.17).
A Análise de Discurso de linha francesa não entende ideologia
como ocultação da realidade ou visão de mundo, pois, segundo
Orlandi, não há realidade sem ideologia. Assim sendo, a autora
descreve ideo- logia como “[...] fixação de um conteúdo, pela
impressão do sentido literal, pelo apagamento da materialidade da
linguagem e da história, pela estruturação ideológica da
subjetividade” (ORLANDI, 2001, p.22). O sujeito é afetado pelo
inconsciente e interpelado pela ideologia que impõe o sentido como
evidente, de modo que esse é tomado como natu- ral. Althusser
considera que sempre somos interpelados pela ideologia, “somos
sempre já sujeitos e, como tais, praticamos ininterruptamente os
rituais do reconhecimento ideológico [...]” (ALTHUSSER,1980, p.
97). Os sujeitos cumprem funções não por decisão própria, mas por
injunções de classe ou grupo e por estarem afetados por determinada
ideologia, que determinam o que eles podem e devem dizer. “Em
outras palavras, o sujeito não é livre para dizer o que quer, mas é
levado, sem que tenha consciência disso [...]” (MUSSALIM, 2001,
p.110).
A ideologia, assim, produz esse efeito da ilusão referencial no
qual se apaga justamente o caráter material dos sentidos, ou seja, o
sentido
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

143
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

aparecesse como se estivesse atrelado às palavras e não à


inscrição do dizer em formações discursivas.
Dessa forma, o sentido que atribuímos ao que é dito depende da
Formação Discursiva 1na qual inscrevemos nosso dizer. “Desse modo,
os sentidos sempre são determinados ideologicamente [...]. O estudo
do discurso explicita a maneira como linguagem e ideologia se
articulam, se afetam em sua relação recíproca” (ORLANDI, 2015,
p.43). Nesse sentido, as condições de produção do vestibular nos leva
a pensar de que maneira um olhar discursivo pode trazer novas
reflexões para o debate em torno da não transparência do dizer. Na
produção de um texto no vestibular, o sujeito produz certos sentidos e
não outros, na injunção a significar na unidade, se filiando a uma
formação discursiva.

O sentido é assim uma relação determinada do sujeito –


afetado pela língua -com a história. É o gesto de
interpretação que realiza essa relação do sujeito com a
língua, com a história, com os sentidos. Esta é a marca da
subjetivação e, ao mesmo tempo, o traço da relação da
língua com a exterioridade: não há discurso sem sujeito. E
não há sujeito sem ideologia. Ideo- logia e inconsciente
estão materialmente ligados. (ORLANDI, 2015, P.47)

A redução do sentido a um conteúdo é parte da ilusão


referencial, um mecanismo ideológico importante. Segundo Orlandi
(2015), com base em Pêcheux, podemos distinguir duas maneiras
de esquecimentos que constitui o sujeito como social e
ideologicamente constituído. O primeiro esquecimento é o
ideológico; por este esquecimento temos a ilusão de ser a origem do
que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos pré-
existentes. O segundo esquecimento é uma ilusão referencial, que nos
faz acreditar que há uma relação direta entre o pensamento, a
linguagem e o mundo, de tal modo que pensamos que o que
dizemos só pode ser dito com aquelas palavras e não com outras
(ORLANDI, 2015). Para que as palavras tenham sentido em um
enunciado específico, é preciso que
1 Formações Discursivas são concebidas por Orlandi (2015) como regionalizações do interdis-
curso.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

elas já façam sentido. O interdiscurso é o conjunto de tudo o que já


foi dito e a memória discursiva é a atualização do dizer,
possibilitando que os mesmos sentidos se recoloquem ou que sentidos
outros advenham. O interdiscurso ou a memória é, então, esse conjunto
de formulações feitas e esquecidas que determina o que dizemos:
retomamos em nossas palavras o que pertence ao já-dito embora
ignoremos sua existência, repetimos discursos que também
foram repetidos (ORLANDI, 2015).
Em se tratando das condições de produção do vestibular, o
sujeito não é origem/fonte do dizer, na medida em que retoma
sentidos já ditos, tampouco o seu dizer tem um sentido único.
Dessa forma, o mesmo discurso pode causar interpretações
diferentes para o mesmo leitor se as condições de produção forem
diferentes ou uma palavra pode receber sentidos diferentes
dependendo da posição assumida pelo sujeito. Orlandi (2015) classifica
as condições de produção em dois grupos: as condições de produção
do contexto imediato, que se refere às circunstâncias da enunciação
(quem fala, para quem fala, como fala, quando fala? onde o dizer
circula?), e as condições de produção amplas, que incluem o con-
texto sócio-histórico e ideológico. As condições de produção
implicam o que é material, o que é institucional e o mecanismo
imaginário.

Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como


do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-
histórica. Temos assim a imagem da posição locutor (quem
sou eu para lhe falar assim?) mas também da posição
sujeito interlocutor (quem é ele para me falar assim, ou
para que eu lhe fale assim?), e também a do objeto do
discurso (do que estou lhe falando, do que ele me fala?).
(ORLANDI, 2015, P.38)

Por exemplo, quando um médico vai fazer uma palestra de


conscien- tização sobre determinada doença (objeto do discurso) para a
população ele não fala da mesma maneira que conversa com outro
médico. Isso acontece porque a imagem que o médico (locutor) tem
da população (interlocutor) é de que são pessoas que não têm o
domínio dos termos técnicos e nem o conhecimento das enfermidades,
mas ele, como médico, é autorizado socialmente a instruir a população
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
para evitar determinadas

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

doenças. “Como em um jogo de xadrez, é melhor orador aquele que


consegue antecipar o maior número de “jogadas”, ou seja, aquele
que mobiliza melhor o jogo de imagens na constituição dos
sujeitos [...]” (ORLANDI, 2015, p.39). Esse jogo de imagens é o que
estabelece o que pode/deve ou não ser dito, considerando o lugar
que ocupa, e se constitui no funcionamento discursivo.

CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO NO VESTIBULAR

Este trabalho pretende apresentar uma abordagem discursiva das


condições do vestibular, abrangendo o comando, o modelo de prova
da UEM e, especificamente, as ocorrências do gênero artigo de
opinião nos anos de 2012, 2014 e 2016.
A Universidade Estadual de Maringá (UEM), devido à
gratuidade e à qualidade dos cursos, se torna objetivo dos
adolescentes e jovens ao concluírem o Ensino Médio na região norte
do Paraná. A seleção dos candidatos para ingressar na instituição
acontece de duas maneiras princi- pais: o vestibular e o Processo de
Avaliação Seriada (PAS). Selecionamos o vestibular para análise
porque é o processo pelo qual qualquer sujeito que tenha concluído
o Ensino Médio pode passar, enquanto que no PAS só podem
participar alunos que estão cursando o Ensino Médio e que não
reprovaram em nenhuma etapa anterior.
O vestibular da UEM acontece duas vezes ao ano: em dezembro,
denominado vestibular de verão, e em julho, denominado vestibular
de inverno. O vestibular é realizado em três dias e o candidato tem
das 9h. às 13h. para realizar a prova. Em 2008, o processo seletivo
foi reformulado e ficou assim dividido: no primeiro dia, a prova
contém 40 questões de alternativas múltiplas sobre Conhecimentos
Gerais; no segundo, a prova é composta por 15 questões de Língua
Portuguesa e Literatura, cinco de Língua Estrangeira e o comando
para a produção da redação; no último dia, são 40 questões de
Conhecimentos Específicos, que variam de acordo com o curso
escolhido pelo candidato (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
MARINGÁ, 2016).
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Até o ano de 2007, na prova de redação da UEM, eram


solicitadas as chamadas tipologias textuais (narração e dissertação),
que valiam de 0 a 110 pontos. A partir do vestibular de inverno de
2008, a redação passa a valer 120 pontos e pode ser solicitado de
dois a quatro gêneros textuais. Conforme assevera Lopes-Rossi
(2002), o ensino de redação baseado na produção de descrição,
dissertação e narração foi questionado na década de 1980, por causa
da artificialidade da situação da produção. Ninguém precisa escrever
uma narração no seu dia a dia. O educando pode precisar narrar um
fato, que pode resultar em uma notícia de jornal ou um boletim de
ocorrência, por exemplo. Em cada contexto, o tipo de organização do
discurso é diferente, transformando-se, assim, em gêne- ros
discursivos diferentes. O conceito de gênero do discurso refere-se a
formas típicas de enunciados que se realizam em condições e
finalidade específicas nas situações de interação social (LOPES-
ROSSI, 2002). Para Bakhtin (1997), o conteúdo temático, o estilo e a
construção com- posicional são marcados pela esfera de comunicação
em que o enunciado se encontra “[...] cada esfera de utilização da
língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados,
sendo isso que denominamos gêneros do discurso” (BAKHTIN,
1997, p.279). Cientes das discussões acerca de gêneros discursivos e
gêneros textuais, utilizamos os gêneros textuais nesta pesquisa
pautados em Menegassi (2017, p.26): “o termo empregado em
situação de ensino é ‘Gênero Textual’, uma vez que os textos
trabalhados nesse campo de atuação humana são, na maioria dos
casos, trazidos de outros campos da sociedade [...]”.
Ao aderir os gêneros textuais na prova de redação, foi necessário
estabelecer critérios para a avaliação. A prova de redação da UEM
vale 120 pontos, aproximadamente, 16,66% do total de pontos do
vestibular, sendo desclassificado o candidato que não atingir a nota
mínima de 24 pontos e os critérios para atribuição de nota são
divididos em dois grupos: o conteúdo e a forma2 (UNIVERSIDADE
ESTADUAL DE MARINGÁ, 2016). O conteúdo avalia a capacidade
de o candidato produzir o gênero no tema e nas condições de
produção estabelecidas no comando. Já a
2 Manual do candidato do vestibular de inverno de 2016 da UEM. Disponível em:
https://www. npd.uem.br/cvu/relatorios/manual_candidato_8.pdf. Acesso em: 3 jun.2018.
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

forma avalia o domínio da norma culta e a estrutura composicional


do gênero, seguindo as informações do comando.
Dentre os possíveis gêneros que podem ser solicitados no
vestibular, elencamos o Artigo de Opinião devido à variação na
estrutura compo- sicional que acontece no gênero em circulação
social (COSTA, 2009) e a diferença entre o gênero do contexto
jornalístico para o contexto do vestibular.
Na situação do vestibular, a situação que o sujeito autor se
encontra para escrever é muito diferente da situação social. Na
situação social o sujeito autor é um jornalista ou especialista no
assunto, tem de uma se- mana até 15 dias para escrever (dependendo
da empresa), às vezes lhe é solicitado um assunto específico, mas ele,
como autoridade no assunto, pode delimitar o tema priorizando o que
acha importante ou o que tem afinidade, está escrevendo para pessoas
interessadas na sua opinião so- bre o assunto. Já na situação do
vestibular, o sujeito candidato é o autor, tem em média 17 ou 18
anos, e apenas quatro horas para responder a 20 questões de
alternativas múltiplas e produzir duas redações. O tema é imposto
pelo comando da prova e escreve para uma banca de professores de
Língua Portuguesa que tem como único objetivo avaliar seu texto.
Essa banca de professores é que está legitimada para dizer se o texto
que o candidato produziu é ou não um Artigo de Opinião, se aquele
texto está ou não adequado para aquela situação, respeitando aquele
comando.
Considerando essas diferenças entre o contexto em que o Artigo
de Opinião é escrito, observamos que esse gênero foi solicitado na
prova de redação em três vestibulares: verão 2012, inverno 2014 e
inverno 2016. O comando de produção do Artigo de Opinião do
vestibular de verão de 2012 (Quadro 1), além de apresentar o tema e
o gênero, possibilitou ao candidato expressar sua opinião sobre a
influência dos pais na esco- lha profissional dos filhos. O próprio
comando classifica essa temática como polêmica. O conceito de algo
polêmico que temos estabilizado é de algo “que desperta ou é capaz
de despertar polêmica, controverso” e polêmica é definida como
“discussão sobre questão que suscita muitas divergências;
controvérsia” (HOUAISS, 2010, P.608).
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
148
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Quadro 1 - Comando de produção do vestibular de verão

Na sua opinião, a influência dos pais pode ser positiva ou


negativa na escolha profissional dos filhos? Tendo como apoio os textos
1 e 2, responda a essa questão polêmica, produzindo um ARTIGO DE
OPINIÃO, com no mínimo 10 e no máximo 15 linhas. Você deverá dar
um título ao seu artigo. Para orientar sua produção, considere que seu
texto será publicado em um jornal de circulação local, cujos leitores
podem ter uma opinião diversa da sua, ou podem não ter ainda uma
opinião formada sobre a questão em pauta.
Fonte: Universidade Estadual de Maringá.

O Artigo de Opinião “[...] tem como finalidade a persuasão ou


convencimento do interlocutor, com intenções de que ele compartilhe
de uma opinião ou realize uma determinada ação” (UBER, 2008,
P.4). Por isso, o excerto: “cujos leitores podem ter uma opinião
diversa da sua, ou podem não ter ainda uma opinião formada sobre a
questão em pauta” pode parecer redundante para alguns candidatos,
porque produz um efeito de sentido de que há necessidade de
argumentação, mas, ao solicitar este gênero, o comando pressupõe
que o candidato utilizará argumentação. Analisando apenas os
comandos, até este momento, percebemos que um candidato distraído
ou sem conhecimento do gênero poderia produzir uma Resposta
argumentativa no comando de 2012, porque a primeira finalidade
apresentada ao candidato é responder à pergunta.
A prova de redação do vestibular de inverno de 2014 da UEM
teve como texto de apoio dois Artigos de Opinião, sendo o primeiro
a favor e o segundo contra a prática de rolezinho em shopping-
centers. Em seguida, o comando do gênero Artigo de Opinião solicita
que o candidato mani- feste sua opinião sobre os rolezinhos em
shopping-centers (Quadro 2). O tema rolezinho foi muito discutido
meses antes do vestibular. De acordo Maués (2014), o maior volume
de publicações de notícias e reportagens sobre o rolezinho aconteceu
entre os dias 12 e 24 de janeiro de 2014.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
149
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Quadro 2 - Comando de produção do vestibular de inverno 2014

Na condição de frequentador/cliente de shopping-centers, redija um texto,


em até quinze linhas, no qual você manifeste sua opinião a favor ou
contra a prática do rolezinho nesses tipos de estabelecimento. Você
deverá dar um título ao seu artigo de opinião e assiná-lo, usando os
nomes Carlos ou Eva.
Fonte: Universidade Estadual de Maringá.

O comando solicita que o candidato se coloque na condição de


frequentador ou cliente de um shopping. É uma posição social que
mui- tos dos candidatos já ocuparam, que está próxima da realidade
deles. Também temos que considerar a posição discursiva, ou seja,
a imagem que a sociedade tem desse lugar de frequentador de
shopping. A posição de frequentador ou cliente permite que o
candidato possa realmente se posicionar contra ou a favor. Se a
posição apresentada pelo comando fosse de dono de uma loja no
shopping poderia conduzir o candidato a ser contra o rolezinho.
Já no comando do vestibular de 2016 (Quadro 3) o contexto de
produção é apresentado separadamente do comando de produção. A
temática não é polêmica. Como já mencionamos, para ser polêmico
tem que possibilitar divergência de opiniões. O comando de 2016
não apresenta a lógica disjuntiva, fazendo o candidato escolher se
é “a favor ou contra” a empatia. Na “[...] Lógica disjuntiva: é
“impossível” que tal pessoa seja solteira e casada, que tenha
diploma e que não o tenha, que esteja trabalhando e que esteja
desempregado, [...]” (PE- CHEUX, 2015, p.30). Nos comandos de
2012 e 2014 do vestibular, quando se solicita ao candidato que se
posicione contra ou a favor a algo, limitam-se/proíbem-se alguns
dizeres que não se encaixam nessa lógica de é A ou não A.

150
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Quadro 3 - Comando de produção do vestibular de inverno 2016

Contexto de produção: Você é psicólogo(a), especialista em comportamento


humano, e sua atual pesquisa trata da empatia. Convidado(a) a escrever
para um jornal de grande circulação, você tem que defender uma
necessidade urgente em nossa sociedade: a de o ser humano desenvolver
a capacidade de se colocar no lugar do outro, como forma de tentar
compreender seus sentimentos ou seu ponto de vista. Isso para
melhorar a própria vida e transformar o mundo.
Comando de produção: A partir do contexto de produção acima
apresentado, redija um ARTIGO DE OPINIÃO sobre a importância de
as pessoas serem empáticas como forma de melhorar suas vidas e de
transformar o mundo colocando-se no lugar do outro. Sustente sua
tese apoiando-se em, pelo menos, dois argumentos. Você deverá
assinar o artigo como “Colaborador” ou “Colaboradora”. Seu texto
deverá ter o mínimo de 10 e o máximo de 15 linhas.
Fonte: Universidade Estadual de Maringá

Esse comando (Quadro 3) facilita a produção do gênero pelo


can- didato porque ficou tudo explicitado. O candidato é responsável
apenas por elaborar dois argumentos e organizá-los, respeitando as
caracterís- ticas do gênero, favorecendo o candidato considerado
regular, que não tem muito contato com o gênero na circulação
social e apenas aprendeu sua estrutura no colégio ou no cursinho. O
comando de 2016 apresenta como possibilidade de assinatura a
palavra colaborador ou colaboradora que não se referem aos nomes de
pessoas, mas sim às posições ocupadas pelos candidatos para
escrever o texto.
Percebemos que houve mudança nos comandos de 2012 até 2016.
Os comandos passaram a ser mais específicos, delimitando explicitamente
a posição social que o candidato deve ocupar para escrever seu
artigo e apresentando nomes como possibilidades de assinatura.
Observamos que o comando de 2016 propõe um “faz de conta”,
um simulacro de autoria, visto que o candidato não ocupa o lugar
social do psicólogo e seu texto não reflete um dizer legitimado,
dentro das forma-
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
151
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

ções imaginárias constitutivas da posição autor/articulista de um Artigo de


Opinião. Pfeiffer (2000) retoma Gallo (1995) para refletir sobre autoria:

A autoria deve ser construída e não simulada. Se


temos apenas um ponto final como meta- um texto com o
desenho espacial adequado, começo/meio/fim, coesão e
coerência – e não olhamos para o processo de construção
da posição de autoria- atribuir sentidos na inscrição
histórica- manteremos o simulacro da autoria que consiste
no jogo de tentativa e erro do sujeito escolar buscar
alcançar um modelo pré-fixado. O modelo, quando é
apenas modelo, é esvaziado de sentido, estanca-se na
repetição empírica ou formal. (PFEIFFER, 2000, p.20)

“O ‘aprendizado’ da autoria é uma prática no processo da


textuali- dade, prática de textualização. E acrescento: prática em
concomitância. O autor se constitui à medida que o texto se
configura” (LAGAZZI, 2006, p.93). No contexto do vestibular, o
sujeito-candidato, na posição de sujeito-locutor, tem que produzir
seguindo as instruções do comando de produção que irão
estabelecer o contexto fictício (qual papel social deve ocupar para
escrever, qual a finalidade, onde seu texto será publi- cado e quem
são os possíveis leitores do seu texto) e, no caso do Artigo de
Opinião, seguindo tais recomendações, marcar um posicionamento
frente a uma questão polêmica e/ou atual.

A NOÇÃO-CONCEITO DE AUTORIA

Para discutir autoria Orlandi (1988, 2015); Lagazzi-Rodrigues


(2006); Possenti (2002,2013); Chartier (2014) e Mendonça (2016)
trazem para suas discussões as reflexões de Foucault (1999) que se
refere a aula inaugural pronunciada em 1970, hoje disponível na obra
“A ordem do discurso” e Foucault (2009) que se refere a conferência
intitulada “O que é um Autor?” realizada em 1969.
Foucault (2009) chamou de “fundadores de discursividade” au-
tores europeus do século XIX que não podem ser classificados
como
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
152
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

autores literários, nem como autores de textos religiosos, tão pouco


como fundadores das ciências. Os “fundadores de discursividade”
abriram espaço para reflexões diferentes das que eles propuseram
ao mesmo tempo que essas novas reflexões pertencem ao que eles
fundaram. Freud, por exemplo, “tornou possível um certo número
de diferenças em relação aos seus textos, aos seus conceitos, às
suas hi- póteses, que dizem todas a respeito ao próprio discurso
psicanalítico” (FOUCAULT, 2009, p.282).
De acordo com Possenti (2002), se considerar a noção de autor
com base no que foi defendido por Foucault (2009), não seria possí-
vel discutir autoria em textos escolares, pois o aluno/vestibulando,
provavelmente, não escreveu uma obra e não fundou uma discursi-
vidade. Por isso, os pesquisadores com interesse em discutir autoria
vem trabalhando nesse conceito para introduzir uma nova noção de
autoria. Apresentamos, resumidamente, no quadro 4 algumas de
suas contribuições. Dispomos os pesquisadores em ordem
cronológica com base nas referências utilizadas.
Quadro 4 - Reflexões sobre autoria no Brasil

AUTOR REFLEXÕES SOBRE AUTORIA


A função discursiva autor é a que o sujeito falante está mais afetado
pelo contato com o social e suas coerções é do autor que mais se
Orlandi cobra a ilusão de ser origem e fonte de seu discurso (1988).

Um texto com unidade, coerência, progressão, não contradição e fim


(2004).
Autoria acontece quando o sujeito entra na historicização dos
sentidos, isto é, quando o dizer faz sentido para o sujeito
Pfeiffer (2000).
“A dimensão textual do DIZER já implica em ser autor. Porém, nem
sempre, por razões igualmente discursivas, o sujeito consegue se
colocar na posição de autor do seu dizer” (1995, P.45).

153
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

“[...] há indícios de autoria quando diversos recursos da língua são


agen- ciados mais ou menos pessoalmente – o que poderia dar a
entender que se trata de um saber pessoal posto a funcionar
segundo um critério de gosto. Mas, simultaneamente, o apelo a tais
Possenti recursos só produz efeitos de autoria quando agenciados a partir de
condicionamentos históricos, pois só então fazem sentido” (2002,
p.121).
Os textos escolares podem revelar indícios de autoria, mas não
significa que os alunos sejam autores (2013).

Lagazzi-Ro- A autoria é uma prática na configuração de um texto (2006).


drigues A autoria é pautada na legitimação (2006).
O efeito autoria de um texto se alinha a um lugar discursivo
legitimado, de prestígio e produz uma unidade, um efeito de sentido
de fecho (2012).
Gallo
As redações escolares são grafadas, mas inscrevem-se no Discurso de
Ora- lidade porque os “sentidos são inacabados, provisórios, sempre
passíveis de serem corrigidos, alterados, ou seja, sem efeito-autor”
(2012, p.55).

Fonte: a própria autora

Para esta reflexão elencamos a definição estabelecida por


Possenti (2002) apresentada no quadro 4 que é baseada no
agenciamento dos re- cursos linguísticos, caracterizando a autoria
como um efeito simultâneo de um jogo estilístico e de uma posição
enunciativa.
Na concepção de Possenti (2002), quando um texto possui
indícios de autoria ele fundamentalmente realiza dois movimentos
discursivos: apresenta vozes de outros enunciadores e marca um
distanciamento em relação ao próprio texto. Como apresentar vozes de
outros enunciadores é mais comum/natural, analisamos as redações
em busca de marcas de distanciamento em relação ao próprio
texto.
O corpus bruto é composto por 80 redações que estavam
separadas e categorizadas em quatro grupos: ótimas, médias, ruins e
zero. Para facilitar a menção e a referenciação das redações,
numeramos de um até vinte as redações de cada grupo na ordem que
foram recebidas e acres-
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

154
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

centamos a letra M para destacar as médias, R mostrar as que


pertencem ao grupo das ruins e Z nas redações que foram
zeradas.
A partir da descrição de Possenti (2002), constatamos um distan-
ciamento em relação ao próprio texto nas redações ótimas: 7,14; nas
redações médias: 2M, 5M, 10M e na redação zerada: 6Z (Quadro 5).
Os trechos que apresentam esse distanciamento do texto são
apresentados em itálico no quadro 5.

Quadro 5 - Redações que apresentaram reflexões sobre a escrit

REDAÇÃO TRECHO

7 Comum como uma “agulha no palheiro”, a empatia é cada


vez mais difícil de ser encontrada, aliás, sentida!
ÓTIMAS
Dessa forma, reforço a importância de se colocar no lugar do
14 outro, pois o ato fará bem para o próprio empático.
Ouvimos, ou melhor, ouve-se sempre o discurso de que
2M “cada um é cada um”, mas talvez esse pensamento torne
as pessoas extremamente egoístas.
O primeiro passo é tomar cuidado com o que se fala, ajudar
MÉDIAS em casa, dar bom dia e etc, pois eu sei que são
5M exemplos simples e que parece utópico pensar que isso
transformaria o mundo, mas é nessa simplicidade que
precisamos começar a praticar a empatia.
[...] vejo o futuro ideal, caso haja transformação no
10 M pensamento dos homens, na parceria mútua de todos, ouso
ainda dizer: “a união faz a força”, união saudável
obviamente.
[...] talvez voltar ao passado só um pouquinho é a forma
ZERADAS 6Z das pessoas voltar a ser empáticas, [...]. Eu digo voltar ao
passado por motivos óbvios
Fonte: a própria autora

Na redação 7, o trecho “encontrada, aliás, sentida” mostra o


sujeito candidato refletindo sobre possíveis efeitos de sentidos da
palavra “encon- trada” e, para tanto, esse elege a palavra “sentida”
como mais adequada
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
155
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

para o contexto. Observamos que não há uma substituição de uma


pela outra porque para produzir o efeito de sentido de que sentir
empatia é tão difícil quanto encontrar uma agulha no palheiro é
necessário que as duas palavras estejam presentes. Acredito que a
relação parafrástica com base nas formas verbais que se relacionam
semanticamente (encontrada e sentida) produz justamente os
movimentos dos sentidos e aponta para um “sujeito que entra muito
bem no jogo do interdiscurso, colocando-se à vontade para dizer, e
por isso diz com desenvoltura” ( PFEIFFER, 1995, p. 127).
Na redação 14, o candidato utiliza a palavra “reforço” no início
do terceiro parágrafo para retomar o tema marcando que já foi
mencionado anteriormente, mas que devido a sua importância merece
ser retomado. “Também é bastante frequente que os enunciadores
explicitem em que sentido estão empregando certas palavras, ou que
se voltem sobre o que disseram para resumir, retomar, etc.”
(POSSENTI, 2002, P.114).
Na redação 2M, materializa-se justamente a relação de
paráfrase entre as formas verbais “ouve-se” e “ouvimos. A principio,
a oscilação entre uma forma e outra pode produzir um efeito de
que se trata ape- nas de uma opção textual, porém, ao selecionar
“ouve-se” no lugar de “ouvimos”, o sujeito candidato está optando
pelo uso da terceira pessoa do discurso em seu texto. Levantamos
duas possibilidades para que tal troca acontecesse: 1) o imaginário
discursivo no qual candidato significa o gênero como um texto que
deva ser produzido em terceira pessoa, ou seja, para o candidato
um Artigo de Opinião deve ser impessoal; 2)o sujeito candidato não
vê a possibilidade de escrever um texto adequado à norma culta em
primeira pessoa, pois há um discurso que relaciona ao uso da
primeira pessoa com uma linguagem mais informal enquanto o uso
da terceira pessoa é relacionado à língua culta. Na redação 5M,
após citar alguns exemplos, o candidato os classifica como
“simples”. Neste momento, percebemos que é o próprio juízo de
valor do enunciador sobre a sua escolha dos exemplos. Esse trecho
também serve para mostrar uma possível antecipação do autor em
relação ao leitor. O sujeito candidato faz uma possível antecipação
do julgamento de seu interlocutor, pois ele sabe que seu texto será
avaliado por um professor de Língua Portuguesa.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

156
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

O trecho “ouso ainda dizer”, na redação 10M, mostra o


sujeito candidato avaliando como ousado o que será dito,
produzindo o efeito de sentido de que dirá algo com um efeito de
inovador ou polêmico, mas, na verdade, ele menciona um discurso
já conhecido por todos, ou seja, “no clichê o sujeito encontra a
referencialidade segura” (PFEIFFER, 2000,p.20).
A redação 6Z produz um efeito de justificativa, porque o
texto retoma algo já dito. Por tratar-se de um processo seletivo
no qual o autor desconhece seu interlocutor, essa justificativa pode
ter acontecido para delimitar os sentidos, na tentativa de garantir um
único sentido. Na sequência deste trecho, o candidato cita
problemas de relacionamento humano causados pela tecnologia,
produzindo o efeito de sentido de que no passado as relações
pessoais eram melhores. E isso seria os motivos “óbvios” para
voltar ao passado apresentado no trecho.
Enquanto analisávamos as redações em busca de marcas
que mostrassem um distanciamento do autor em relação ao próprio
texto, encontramos uma certa recorrência no uso da palavra “digo”
para se produzir uma paráfrase, isto é, dizer de outra maneira
algo que já foi dito na redação (Quadro 6).
Quadro 6 - Redações que apresentaram reflexões da ordem do texto

REDAÇÃO TRECHO
2M uma, digo, um
7M no, digo, do
atuam, digo, atualmente
6M
MÉDIAS esse, digo, este jornal
popo, digo, populações
9M
ambas, digo, ambos
mo, digo, mais
16 M
nes, digo, necessárias
RUINS 19 R devevam digo deveriam sem digo ser

Fonte: a própria autora

157
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Ao contemplar cada textualização, em suas condições de produção


imediatas, constatamos que a palavra “digo”, na maioria dos textos
em analise, foi utilizada pelo sujeito candidato como uma maneira de
corrigir o que foi escrito. Apesar de ser uma reflexão sobre a escrita,
acredita- mos que essa “reflexão” do candidato está mais ligada ao
texto do que ao discurso. A redação 7 traz uma relação de paráfrase
em que o sujeito autor, ao trabalhar os limites entre “encontrada” e
“sentida”, marca uma posição e ao mesmo tempo entra no efeito de
se sentir dono e controlador do seu dizer, como nos ensina Pfeiffer
(1995, p. 127). Mas, em muitos casos, considerando o contexto do
vestibular, no qual o candidato não pode rasurar nem usar corretivo
na folha definitiva, o “digo” foi usado como um recurso para substituir
a palavra ou letra que o candidato julgou inadequada por outra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisando as redações em busca de marcas de distanciamento em


relação ao próprio texto, percebemos que as redações consideradas
médias pela CVU foram as que apresentaram mais recorrências, ou
seja, dentre as redações analisadas, as redações consideradas médias
foram as que mais marcaram um distanciamento do autor em relação
ao texto. Esse distanciamento permitiu que o candidato refletisse
sobre o próprio texto substituindo, reformulando, retomando e
avaliando seu dizer.

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SANTOS, J. A. As relações retóricas n o gênero resposta argumentativa:
um estudo da superestrutura do gênero e da expressão linguística das relações.
2012. 119
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
160
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Letras, Centro de Ciências Humanas, Letras


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UBER, T. J. B. Artigo de opinião: estudos sobre um gênero discursivo. 2008. 23
f. TCC - Curso de Programa de Desenvolvimento Educacional da Secretaria de
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ. Comissão Central do Vestibular
Unificado. Vestibular Verão 2012 UEM. Prova 2 – Língua Portuguesa e
Literaturas em Língua Portuguesa, Língua Estrangeira e Redação. Maringá, 2012.
Disponível em: http://www.vestibular.uem.br/2012-V/uemV2012p2g1.pdf. Acesso
em: 19 jun. de 2018.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ. Comissão Central do Vestibular
Unificado. Vestibular de Inverno 2014 UEM. Prova 2 – Língua Portuguesa e
Literaturas em Língua Portuguesa, Língua Estrangeira e Redação. Maringá, 2014.
Disponível em: http://www.vestibular.uem.br/2014-I/uemI2014p2g1.pdf. Acesso
em: 19 jun. de 2018.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ. Comissão Central do Vestibular
Unificado. Vestibular UEM Inverno 2016. Prova 2 – Língua Portuguesa e
Literaturas em Língua Portuguesa, Língua Estrangeira e Redação. Disponível em:
http://www. VESTIBULAR.UEM.BR/8/P2G1.PDF. Acesso em: 13 jun. 2017.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ. Comissão Central do Vestibular
Unificado. Vestibular UEM Inverno 2016. Manual do Candidato. Disponível
em: https://www.npd.uem.br/cvu/relatorios/manual_candidato_ 8.pdf. Acesso em:
07 fev. 2018.

161
SEÇÃO 3

ANÁLISE DISCURSIVA DE MATERIALIDADES


DIVERSAS NA RELAÇÃO COM O ENSINO
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

TRANSITIVIDADE VERBAL E O ENSINO DE LÍNGUA


PORTUGUESA: O SILÊNCIO SINTÁTICO

Aline Cristina Schinemann


Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)

Luciana Fracassi Stefaniu


Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)

INTRODUÇÃO

A partir da Análise de Discurso de linha francesa, representada


por Michel Pêcheux, e, no Brasil, por Eni Orlandi, e das Teorias
da Enunciação, relacionadas às pesquisas de Luiz Francisco Dias
(que retoma Émile Benveniste, principalmente), nosso trabalho tem
o ob- jetivo de problematizar as (im)possibilidades de construir um
ensino mais democrático, que se volte para uma língua de fato
usada pelos alunos e pelos falantes de língua portuguesa, e não a
idealizada nas/ das gramáticas normativas.
As teorias enunciativas/discursivas representam, hoje, um novo
caminho para o ensino de Língua Portuguesa nas escolas, isso
porque, diante das tantas discussões que se têm levantado a respeito do
assunto, essas teorias voltam-se para o uso efetivo da língua, não
tendo o objetivo de ditar regras, pelo contrário, buscam compreender o
funcionamento da língua e as derivas que ela possui, por meio de
outros elementos enun- ciativos, ou seja, elementos extralinguísticos
que afetam diretamente o uso da língua, como o contexto sócio-
histórico, a formação discursiva, o

165
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

interdiscurso e, até mesmo, a memória discursiva do falante ao


produzir/ reproduzir e/ou identificar um enunciado.
Durante o período de nossas pesquisas, grandes foram as inquieta-
ções voltadas para a questão do ensino de Língua Portuguesa nas
escolas públicas do Brasil. Percebemos quanto o quadro é
preocupante, isso porque nos deparamos com situações nas quais
alunos afirmam que não sabem português, não aprendem as regras –
mesmo que mínimas – de sintaxe e não conseguem interpretar textos,
sejam estes extensos ou não. Essas inquietações abriram espaço
para outras e, a partir disso, surgiu o interesse de se pensar sobre o
ensino da sintaxe nos níveis Fundamental II e Médio. Nosso
questionamento se direciona para o fato de que, ainda hoje, as
escolas estão voltadas para um ensino extremamente normativo, ou seja,
um cenário em que aprender as regras e exceções da sintaxe são mais
importantes que entender o funcionamento da língua.
Para a Análise de Discurso, segundo Petri (2005, p. 264), a sintaxe
– e ousamos dizer, a língua – é lugar de organização, mas é
também o lugar da não organização, da não estabilização, lugar de
possíveis trans- gressões, e o que encontramos hoje é um ensino de
Língua Portuguesa baseado apenas nas gramáticas normativas, que
deixam de lado essas transgressões que se fazem presentes no
dia a dia do aluno.
Voltando nossos olhos para a questão do ensino da
transitividade verbal, em específico, o que encontramos em sala de
aula é um ensino que, se baseando nas gramáticas tradicionais de
cunho normativo, volta- se apenas para o verbo transitivo como sendo
aquele que necessita de complemento para que haja um sentido
completo e de verbos intransitivos como aqueles que já possuem um
sentido completo, não precisando de um complemento. Porém, o
que encontramos fora das gramáticas são enunciados em que
verbos transitivos não exigem uma ocupação lexi- calizada do objeto
verbal, pois este se faz presente por meio de outros elementos
enunciativos, extralinguísticos, como o contexto em que está
inserido, o interdiscurso, e a memória discursiva dos sujeitos
envolvidos. Essa ocupação não demarcada explicitamente na sentença,
no enunciado, é denominada de silêncio sintático.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
166
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Concordamos com Dias, que “as línguas se constituem numa


rela- ção necessária entre a dimensão material e a dimensão simbólica.
Nessa relação, o simbólico se historiciza e o material se faz
articulável” (DIAS, 2007a, p. 192-193), ou seja, mesmo que não haja
uma ocupação demar- cada organicamente num enunciado [dimensão
material], “na medida em que vislumbro uma sustentação discursiva
[dimensão simbólica] para a sentença, posso projetar um domínio de
referência capaz de dar suporte a uma ocupação” (DIAS, 2007a,
p. 196).
O que queremos expor no presente trabalho é a maneira como a
questão da transitividade, mais especificamente, a questão da ocupação ou
não do lugar sintático objeto verbal é abordada pelas gramáticas e livros
didáticos para, logo após, compará-las com os pressupostos das teorias
enunciativas/discursivas. Para tanto, a partir das últimas, buscamos
explicar o funcionamento do silêncio sintático em diversas materialidades
(propagandas, slogans e provérbios) con- siderando os elementos
enunciativos que as constituem. Procuramos, portanto, analisar “o fato
gramatical não apenas enquanto materialidade linguística, categoria
sintática constituída organicamente, mas também, como elemento que
se constitui nos modos de enunciação que perpassam os usos da
língua” (DALMASCHIO, 2013, p. 21), haja vista que trabalhamos, a
partir dos pres- supostos da AD, “com a língua no mundo,
[considerando] os processos e as condições de produção da
linguagem, tendo em vista o relacionamento entre a língua e os seus
falantes e as circunstâncias em que o dizer é produzido” (ORLANDI,
2001, p. 16).
Tomando como pertinente a separação entre as abordagens
nor- mativas e enunciativo/discursivas da sintaxe, partiremos agora
para o que diz respeito ao viés normativo, apresentando as
gramáticas e o livro didático, para, na sequência, apresentar as
análises do material escolhido – propagandas, slogans e
provérbios – sob o viés enuncia- tivo/discursivo.

A TRANSITIVIDADE NO VIÉS NORMATIVO

Ao enquadrarmos esse trabalho nas pesquisas de caráter


bibliográfi- co e qualitativo, nosso primeiro passo, partindo do
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
interesse em verificar

167
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

a existência da relação (ou não) entre os pressupostos das gramáticas de


cunho normativo, dos livros didáticos e das teorias enunciativas, foi
a busca pelo material que mais se adequasse às nossas necessidades,
que atendesse às nossas ambições.
Logo, buscamos, primeiramente, o aporte teórico que nos
funda- mentasse e, dentro das teorias enunciativas, o que elas trazem a
respeito da transitividade verbal e os efeitos de sentidos ocasionados
pelo silêncio sintático. Para tanto, optamos pelos trabalhos de Luiz
Francisco Dias e Luciani Dalmaschio, principalmente, e dento da
AD, procuramos res- postas nos trabalhos de Eni Orlandi, almejando
entender ainda mais os deslocamentos que são propostos por tais
teorias no tocante ao ensino de gramática e sintaxe, refletindo sobre
as contribuições que essas teorias podem trazer para o ensino e
entender sobre como as teorias da enuncia- ção, em conjunto com a
Análise de Discurso, explicam a (não) ocupação do lugar sintático
objeto verbal.
Após as leituras dos materiais dos autores citados anteriormente,
partimos para a escolha do material que diz respeito à parte
normativa deste artigo, optando pelas gramáticas de Cegalla, Sacconi,
Rocha Lima e Cunha & Cintra. Como o trabalho se volta para o
ensino de sintaxe, mais especificamente, sobre a transitividade
verbal e objeto verbal, consideramos pertinente a explanação de ao
menos um livro didático representando o que é levado para a sala de
aula de fato e, assim, esco- lhemos o volume “Tecendo Linguagens”
(2015) do 8º ano do Ensino Fundamental, livro disponibilizado pela
escola de nosso município e que estará em vigência até 2019.
No processo de escolha das gramáticas, em busca de um
material que representasse mais fortemente o lado tradicional delas,
pudemos encontrar questões que se mostraram pertinentes aos
objetivos de nosso trabalho, principalmente quando comparadas com
o livro didático. Isso porque, nessa busca, encontramos, em duas
dessas gramáticas, rumos que podem ser comparados com os
pressupostos das teorias enunciativas que veremos mais adiante, mas
que, por algum motivo, são deixados de lado, focando-se sempre
em seu lado normativo, mesmo que os autores
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
168
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

já busquem explicar a língua a partir de outros elementos linguísticos


e extralinguísticos, como o contexto em que um enunciado está
inserido ou pensando em seus sentidos a partir do texto e não de
frases soltas.
Na tabela a seguir, mostramos mais detalhadamente o que
encon- tramos a respeito da transitividade verbal e objeto verbal nas
gramáticas em seu lado normativo:

Verbos Objetos Verbais


Transitivos Intransitivos Definição Objeto direto
“[Há verbos] que “São os que “ C h a m a m “É o
para integrar não p r e c i s - s e termos comple- m e
o predicado am d e integran- tes da n t o d o s v
Novíssima Gra- neces- sitam de complemento, oração os que e r b o s d e
mática da Lín- outros termos: pois têm completam a predicação in-
gua Portuguesa são os verbos sentido significação tran- completa, não
(Domingos de predi- cação completo”. sitiva dos regido, nor-
Pas- choal incomple- ta, verbos e malmente, de
Cegalla, denominados Ex.: nomes”. preposição”.
transitivos”. “ Três contos
2008)*
bastavam, insis- Ex.:
*1ª edição: Ex.: tiu ele.” (Macha- As plantas pu-
1965 João puxou a do de Assis). rificam o ar.
rede. “Os guerreiros Houve grandes
“Julgava-o um tabajaras dor- festejos.
aluado.” (Ciro mem.” (José de
dos Santos). Alencar).
“Todo verbo “Todo verbo “ Todo t e “Completa o
que pede um que não pede rmo que, na sentido de
com- plemento com- plemento, oração, ver- bo
Novíssima Gra- se diz por já ter completa o sen- transitivo
mática transitivo”. sentido com- tido de um direto”.
Ilustra- da pleto, é verbo transitivo
(Luiz An- Ex.: intransi- tivo se diz Ex.:
tonio Sacconi, Comprei o livro. (porque ele complemento Comprei o
2008)* O carro atropelou não transita para verbal”. li- vro.
um pedestre. nenhum comple- O carro atro-
mento)”. pelou um pe-
*1ª edição: 2008
destre.
Ex.:
A bo r bo l e t a
morreu.
As crianças brin-
cam.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

169
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

“requerem, para a “que, encerrando “O complemento “é o comple-


cabal integridade em si a forma com o mento que,
do predicado, noção ver- bo uma na voz ativa,
a presença de predicativa, dis- expres- são re- presenta o
Gramática um ou mais pensam quais- semântica, de pa- ciente da
Nor- mativa termos que lhes quer comple- tal sorte que a ação verbal”.
da Lín- gua comple- tem a mentos”. sua supressão
Portuguesa compreen- são. “ou de torna o Ex.:
(Carlos São os verbos predica- ção predicado Castigar o
Henri- que da transitivos”. completa”. incompreensível, fi- lho.
Rocha Lima, “ou de por omisso ou Louvaros
2002)* predicação Ex.: incompleto”. bons.
incompleta”. Neva.
*1ª edição: O soldado mor-
1972 Ex.: reu.
A criança encon-
trou (o quê?).
O professor alu-
diu (a quê?).
“ exigem c e “A ação não “Denominam-se “é o
r - tos termos vai além do complementos comple-
Nova Gramáti- para completar- verbo”. verbais as mento de um
ca do Português lhes o sentido”. [pa- lavras] verbo transiti-
Contemporâ- “o processo Ex.: que inte- gram vo direto,
neo ver- bal não está Sobe a névoa... o sentido do ou seja, o
(Celso Ferrei- inte- gralmente A sombra verbo”. com-
ra da Cunha contido [nas des- ce... plemento que
& Luis Filipe formas ver- normalmente
Lindley Cintra, bais]”. vem ligado
2001)* ao verbo sem
Ex.: pre-
*1ª edição: Ele não me agra- posição”.
2001 dece, nem eu
lhe dou tempo. Ex.;
Vou
descobrir
mundos,
quero glória e
fama!

Fonte: as próprias autoras

A princípio, podemos dizer que, nas gramáticas, a questão da


tran- sitividade verbal e do objeto verbal são abordadas de forma um
tanto limitadas, isso porque insistem em ver a língua como uma
sequência imutável (sujeito + verbo + complemento) e não admitem
variações que vão contra isso, também porque continuam vendo o
objeto verbal como sendo o que completa o sentido de um verbo
e não do predicado por inteiro, como formador de sentidos, parte
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
constituinte dele e, por fim, porque a transitividade verbal é vista
apenas como a necessidade ou não

170
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

de complemento de sentido, considerando que há uma falha, um


déficit de significância no enunciado quando não há um
complemento verbal demarcado explicitamente após um verbo
transitivo.
Mas, ao fazermos uma investigação mais aprofundada, vemos
que isso se dá mais fortemente, nas duas primeiras – Cegalla e
Sacconi – pois, nas demais, como nas de Rocha Lima e de Cunha &
Cintra, encontramos observações feitas pelos autores que, até certo
ponto, se enquadram na linha de pesquisa das teorias da
enunciação, a linha que assumimos. Na de Rocha Lima, há um
parágrafo que explica que

[...] o caráter de cada qual destes tipos [de verbo] se


denuncia na frase. Verbos normalmente intransitivos podem
empregar- se transitivamente, e vice-versa, de acordo com
o sentido especial de determinadas frases. Exemplo: Quem
não ouve, é surdo (ouvir – intransitivo). Ouvi um ruído
(ouvir – transitivo direto). (ROCHA LIMA, 2002, p. 343,
grifo do autor)

Apesar de haver alguns pontos de discordância com as teorias


enunciativas, como, por exemplo a ideia de que somente a
intransitivi- dade possui sentido completo, essa gramática já traz a
noção de que é o sentido que determina o tipo de verbo que será
usado, representando, assim, um avanço diante das gramáticas
de Cegalla e Sacconi.
Na gramática de Cunha & Cintra, por sua vez, apesar da
marcante noção de complementação de sentido do verbo e, ainda
preso à ideia da intransitividade como a única que pode representar
sentido completo, há um subtítulo, “Variabilidade da predicação
verbal”, no qual encontramos traços da noção de texto e não de
frases soltas, e ainda, exemplos em que um mesmo verbo pode
ser usado de várias maneiras:

A análise da transitividade verbal é feita de acordo com o


texto e não isoladamente. O mesmo verbo pode estar
empregado ora intransitivamente, ora transitivamente, ora
com objeto direto, ora com objeto indireto. Comparem-
se estes exemplos: Perdoai sempre. [=intransitivo]
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
Perdoai as ofensas. [=transitivo direto]

171
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Perdoai aos inimigos. [transitivo indireto]


Perdoai as ofensas aos inimigos. [transitivo direto e indireto].
(CUNHA; CINTRA, 2001, p. 138)

A Nova gramática do português contemporâneo, de Cunha &


Cin- tra, se enquadra, assim, em um nível mais elevado de foco
funcional da língua em relação às anteriores, tanto que Luiz
Francisco Dias (1999) cita esse mesmo trecho da obra em um de seus
trabalhos para discorrer sobre a transitividade verbal. Mas,
ressaltamos que o autor ainda a considera insuficiente para solucionar
os problemas que envolvem o tema, pois, segundo ele, “[...] eles não
discutem nem o alcance, nem as consequências dessa afirmação.
Posições como essa, no entender de Perini, tem como consequência o
esvaziamento da noção de transitividade, que se torna supérflua [...]”
(DIAS, 1999, p. 182-183).
Partindo para o livro didático, o que encontramos é ainda
mais preocupante no que diz respeito à transitividade verbal e ao
objeto dire- to, pois, além de o assunto ser tratado de forma
limitadíssima, questões levantadas até mesmo em gramáticas de
cunho normativo como Rocha Lima e Cunha & Cintra são deixadas
de lado, como podemos observar a seguir:

172
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Fonte: (OLIVEIRA et al, 2015, p. 90-91)

173
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Podemos perceber que quando se trata de definir os verbos em


tran- sitivos e intransitivos, o termo que impera é a (in)completude,
ou seja, vemos a mesma limitação que encontramos nas gramáticas de
Cegalla e Sacconi, por exemplo, em que não há nada que traga à
tona as variantes que podemos encontrar na língua efetiva do
falante, ou seja, situações enunciativas, enunciados, em que haja
verbos transitivos sendo usados de maneira em que o objeto direto não
esteja demarcado organicamente.
Nesse contexto, foi possível constatar o que vem sendo discutido
ao longo dos anos no tocante ao ensino de gramática e sintaxe nas
salas de aula: “a imagem da língua representada nas gramáticas
escolares é incorreta, mal dirigida em seus objetivos e deficiente em
seus fundamen- tos teóricos” (PERINI, 2014, p. 49).
Trataremos, agora, da parte analítica do trabalho – a partir
dos pressupostos das teorias enunciativas/discursivas – do que
chamamos de silêncio sintático que, como dito anteriormente, nada
mais é que a não ocupação do objeto direto diante de um verbo
tomado como transitivo dentro de enunciados que estão ao alcance dos
alunos e que acreditamos que possam ser levados para a sala de aula
como exemplos de uso efe- tivo da língua portuguesa, auxiliando,
assim, para que haja um melhor ensino-aprendizagem dentro
das salas de aula.

A TRANSITIVIDADE NO VIÉS ENUNCIATIVO/DISCURSIVO: O


SILÊNCIO SINTÁTICO SOB ANÁLISE

De maneira sintetizada, podemos definir a transitividade verbal, nas


gramáticas normativas, da seguinte maneira: todas consideram os
verbos transitivos como aqueles que necessitam de complemento para que
um enun- ciado seja dotado de sentido e, se em determinado enunciado essa
regra não for seguida, há um déficit de sentido, uma falha no enunciado
em questão.
A partir de nossas leituras sobre as teorias enunciativas/discursivas,
acreditamos que haja outro caminho a ser trilhado no tocante ao que
é ensinado nas salas de aula, a respeito da transitividade verbal. Em
con- formidade com Luiz Francisco Dias, acreditamos que
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

174
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

[...] há geralmente um equívoco nos estudos gramaticais: a


cegueira constitutiva quanto aos limites entre a presença e
a não-presença do complemento. [...] Marcar um lugar não
ocupado organicamente como um possível não realizado é
conceber que é a realização que significa, como
preenchimento de uma falta. (DIAS, 2009, p. 12)

Isso porque, como afirmamos na introdução deste trabalho,


anali- samos enunciados não apenas como lições gramaticais, mas
como fatos gramaticais/fatos discursivos, ou seja, não analisamos um
enunciado somente como sentença orgânica constituída sintaticamente,
mas também a partir dos elementos enunciativos que o envolvem, com
suas condições de produção. Assim sendo, abrem-se espaços para
análises de enuncia- dos em que não há a ocupação do lugar sintático
objeto verbal diante de verbo transitivo, enunciados em que o
silêncio sintático se faz presente de maneira significativa. De
acordo com Dias (2009, p. 12-13),

[...] concebemos o lugar não-ocupado como um lugar


virtual, e não como um lugar do possível que não se
realizou; em outros termos, nós os concebemos como um
lugar cuja não ocupação significa na sua condição
significativa de não ocupação, por si própria. Portanto, o
lugar virtual advém de uma ordem de atualidade que não
requer a ocupação, justamente porque a ordem do sentido-
acontecimento já se interpõe na sintaxe como constituinte
da condição enunciativa da sentença.

Eni Orlandi, em seu livro As Formas do Silêncio (2007, p. 12),


afir- ma que, em todo o dizer, há uma relação fundamental com o
não dizer e que “essa [relação] nos leva a apreciar a errância dos
sentidos [...], o equívoco, a incompletude, [...] não como meros
acidentes de linguagem, mas como o cerne mesmo de seu
funcionamento”.
Assim sendo, acreditamos numa língua que chama para si a
incom- pletude, mas tem a necessidade de significar por si própria,
pelo silêncio. Apesar de já ter sido visto como detrito da
linguagem, o silêncio vem sendo estudado por linguistas das mais
vastas áreas e torna-se, a cada dia, mais instigante e provocativo
tanto quanto o próprio dizer. Para nós,
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

175
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

o silêncio não é o vazio da linguagem, pelo contrário, é constituinte


de sentido e parte fundamental da (re)significação. Capaz de
significar por si mesmo, “o silêncio é contínuo e há sempre ainda
sentidos a dizer” (ORLANDI, 2007, p. 70).
Orlandi (2007, p. 24) divide o silêncio em duas categorias: o
silêncio fundador, “aquele que existe nas palavras, que significa o não
dito e que dá espaço de recuo significante, produzindo as condições
para signifi- car” e a política do silêncio, que, por sua vez, subdivide-
se em silêncio constitutivo, “o que nos indica que para dizer é preciso
não dizer [ou vice-versa] (uma palavra apaga necessariamente as
‘outras’ palavras)” (idem) e o silêncio local, “que se refere à censura
propriamente (àquilo que é proibido de dizer em uma certa
conjuntura)” (ibidem). O silêncio que mais se adequa ao nosso
trabalho é o silêncio constitutivo, partindo da máxima de que para
não dizer é preciso dizer, máxima capaz de definir, também, nosso
objeto de estudo, o silêncio sintático.
Buscamos explicar o funcionamento do silêncio sintático na
órbita da transitividade verbal, em materialidades onde haja a não
ocupação do lugar sintático objeto verbal diante de verbos
transitivos (verbos esses que pelas gramáticas normativas precisam
de complemento – objeto verbal – demarcado organicamente na
sentença), mas que o sentindo ainda assim se faça presente, pois
acreditamos que este se constitui não somente por meio do plano da
organicidade, mas também pelo plano do enunciável, pela
enunciação, entendida, aqui, “a partir da relação entre o presente do
acontecimento do enunciado e as condições históricas que
o sustentam” (DIAS, 2006, p. 56). É essa perspectiva que
buscaremos mostrar nas análises a seguir.

Análise 1
Na propaganda de um determinado colégio da cidade de
Guarapu- ava-PR, em seu slogan “Quem passa pelo [nome do
colégio], passa!”, há a atuação do silêncio sintático diante do
verbo passar:

Quem passa pelo [nome do colégio], passa!


N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Notemos que, nas gramáticas de perfil tradicional, o verbo


passar, dentre as suas possíveis regências, possui a de verbo
transitivo indireto
– quem passa, passa por/em algum lugar – o que designaria o
enunciado em questão como incompleto, falho, pois não há a
demarcação orgânica do complemento verbal que é exigido para
que o enunciado seja enten- dido em sua totalidade.
De maneira contrária a essa ideia de falha, de déficit de sentido,
explicamos o enunciado acima, por meio das teorias enunciativas,
como sendo um enunciado em que há o acionamento do silêncio
sintático, ou seja, há a não ocupação explícita do lugar sintático
objeto verbal diante de um verbo transitivo indireto, sem que, por
sua vez, haja a falta de sentido.
Queremos demonstrar, com esta afirmação, que, mesmo não havendo
um objeto indireto demarcado explicitamente na sentença, somos capazes
de atribuir significados ao verbo passar, pois acreditamos que o
proces- so de significância não depende tão somente do plano da
organicidade (componentes sintáticos e lineares), mas também do
plano do enunciável (componentes simbólicos e verticais dos dizeres) e,
assim sendo, “na medida em que concebemos uma sustentação discursiva
para a sentença, podemos projetar um domínio de referência capaz de
dar suporte a uma ocupação” (DIAS, 2005, p. 119). Enfim, podemos
construir sentidos para lugares sintáticos não ocupados sintaticamente
a partir de elementos outros, como a relação com o acontecimento
enunciativo e das redes de significação em que o enunciado está
inserido, bem como a partir da ativação de nossa me- mória
discursiva, ou seja, a partir da junção entre o material e o simbólico.
Desse modo, podemos exemplificar como outros elementos
enun- ciativos/discursivos que auxiliam no processo de significação
do slogan, o fato de o colégio em questão oferecer cursos extensivos
preparatórios para vestibulares e para o ENEM, a grande taxa de
aprovação em fa- culdades e universidades de alunos que
estudaram no colégio e a foto vinculada ao anúncio, de alunos
aprovados em cursos das mais diversas áreas em diferentes
universidades, de onde o slogan em questão foi reti- rado. Assim,
poderíamos ocupar o lugar sintático objeto verbal com as seguintes
construções:
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

a. Quem passa pelo [nome do colégio], passa em qualquer


vestibular ou tem a melhor nota do ENEM;

b. Quem passa pelo [nome do colégio], passa nos melhores cursos


e/ou universidades;

c. [Só] Quem passa pelo [nome do colégio], passa em qualquer


vestibular dos melhores cursos e/ou universidades, pois tem o
melhor sistema de ensino preparatório da cidade de
Guarapuava-PR;

Ressaltamos que tal ocupação não se dá de forma aleatória,


pois, como dito anteriormente, está em concomitância com o
acontecimento enunciativo em que está inserida. Os deslocamentos
possíveis dentro dessa ocupação,

[...] embora contínuo[s] e necessário[s] na constituição do


dizer, [são] inevitavelmente contido[s] por uma rede de sig-
nificados que se entrelaçam no acontecimento enunciativo.
E esse entrelaçamento [...] se configura historicamente a
partir de uma tensão entre memória e atualidade, posta em
cena pela posição assumida pelo sujeito no processo de
enunciação. (DALMASCHIO, 2008, p. 60)

Assim, na propaganda analisada, seria quase impossível que


alguém tentasse ocupar esse lugar sintático com construções como:
“Quem passa pelo [nome do colégio], passa roupa”, por exemplo,
salvo em contextos muito específicos (que fugiriam ao propósito da
própria propaganda), em que tal sentença fosse parafraseada com o
objetivo de prejudicar a imagem do colégio em questão ou de
satirizar a própria propaganda.

Análise 2
Na sequência, partimos para a análise dos verbos plantar e
colher
no seguinte provérbio:
Quem planta, colhe.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Quando observamos os diferentes textos que circulam em


nossa sociedade, não podemos deixar os provérbios de fora dessa
lista tão extensa. No entanto, definir os provérbios não é tarefa tão
fácil. Dentre as várias faces características que os constituem, sempre
há aquelas que se destacam em relação às outras, como, por
exemplo, o seu caráter conclusivo: “mediante uma locução breve,
de fácil memorização, o provérbio sintetiza um pensamento que
adquire um tom de verdade, ou de elevação” (DIAS, 2007b, p.
323).
O caráter generalizante do provérbio, advindo da ocupação do
lugar sintático sujeito com pronomes como quem ou aquele, e da não
ocupação do lugar sintático objeto verbal, se torna extremamente
favorável para a explicação do que vem a ser o silêncio sintático, isso
porque abre espaço para muitos deslocamentos, a incompletude se
torna fundamental para a ideia de verdade moralizante do provérbio,
pois é “a incompletude que produz a possibilidade do múltiplo, base
da polissemia. E é o silêncio que preside essa possibilidade”
(ORLANDI, 2007, p. 47). Assim, poderíamos preencher o lugar
sintático objeto verbal do provérbio em questão com construções
como as que se seguem:

a. Quem planta verdade, colhe confiança;

b. Quem planta fidelidade, colhe honra e autoridade;

c. Quem planta maçã, não colhe

bananas; De acordo com Dias,

Com efeito, plantar e colher funcionam efetivamente como


“sustentáculos enunciativos”. Isso significa que os lugares
de objeto desses verbos se mostram abertos para abrigar
as relações constitutivas de um extrato de valores sociais.
Assim, relacionar fidelidade e autoridade numa relação de
conse- quência, [...] produz as condições de eficácia do
provérbio, exatamente na relação entre a memória da
ordem histórica e a atualidade da enunciação. Essa estrutura
de sustentação do
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

lugar do objeto permite a entrada do provérbio, na


condição de texto, no interior de outros textos [...].
(DIAS, 2007b, p. 326 – grifos do autor)

No caso de (c), a relação de consequência e, logo, de sentido,


entre plantar e colher se faz presente a partir do caráter metafórico do
provérbio e, assim sendo, “acreditamos que a constituição dos sentidos em
uma escala que vai do literal ao metafórico é determinada pelo histórico
de enunciações a que se filia a construção linguística” (DIAS, 2010a,
p. 125), ou seja, ao pensarmos na construção (c), associamo-la com
outras, com outros já-ditos, como: “quem planta o bem, não pode
colher o mal”, “quem planta o bem, colhe somente o bem”, entre
tantos outros do mesmo campo semântico.
Não podemos deixar de mencionar que tais condições de
ocupação ou não ocupação do lugar sintático objeto verbal dependem
dos modos de enunciação. Segundo Dias (2005b), há pelo menos dois
modos de enun- ciação: o especificador e o genérico. O que nos
interessa nesse momento é o modo de enunciação genérico, que,
“assim se denomina por ser a base sobre a qual se configuram
predicações cujos campos de referência do lugar de objeto são
generalizadores” (DALMASCHIO, 2008, p. 65).
Devido ao seu caráter generalizante, os provérbios são capazes
de se inserirem, inclusive, em mais de um discurso, em mais de uma
formação discursiva, ou seja, o mesmo provérbio, “quem planta,
colhe”, pode ser usado, por exemplo, tanto em discursos do contexto
jurídico, no sentido de punição por crimes, ou pelos discursos
religiosos, no sentido de pu- nição por pecados ou recebimento de
bênçãos por fazer o bem. Isso só é possível, segundo Dalmaschio
(2008, p. 67), devido às relações entre a atualidade do acontecimento
e a memória de ordem histórica produzidas pela língua.

Análise 3
Passemos agora para a análise da propaganda que, para incentivar
a adoção de animais, emprega dois verbos tidos como transitivos
diretos pelas gramáticas normativas, sem que estes, porém, contenham
objetos verbais lexicalizados:
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Fonte: http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=VEM001. Acesso em: 15 fev. 2018.

Aqui, novamente temos a utilização de verbos – comprar e


adotar
– que são tidos como transitivos nas gramáticas de cunho normativo
(verbos que exigem a utilização de complemento, objeto verbal,
demar- cado explicitamente na sentença para que ela não seja falha
quanto ao sentido) sem complemento demarcado
lexicalmente.
Compreendendo que “o silêncio não é o vazio, ou o sem-sentido;
ao contrário, ele é o indício de uma instância significativa”
(ORLANDI, 2007, p. 68), constatamos que o silêncio sintático,
presente no enunciado em questão, de forma alguma impede que os
efeitos de sentidos sejam construídos, pois, por meio dos outros
recursos enunciativos presentes, principalmente a imagem ilustrativa
de dois animais domésticos (ou de estimação), poderíamos ter os
seguintes constructos, dentre tantos outros:

a. Não compre animais, adote-os.

b. Não compre cães e gatos, adote-os.

c. Não compre animais de estimação, adote cães e gatos.

Outro recurso enunciativo que constitui o enunciado é apresentação


do PRÓ-PL 1277/10, que, para quem é simpatizante e busca mais
conhe- cimento sobre o assunto, sabe que é um projeto de lei que busca
combater
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

a venda de animais em feiras livres, defendendo a adoção de


animais, motivados pelo conhecimento sobre as chamadas “fábricas
de animais”. “Sendo assim, as sentenças só ganham completude na
medida em que são regidas pelo enunciado [e pela enunciação], ou
seja, a forma como a regra se constitui depende do jogo que se
realiza com ela e sobre ela no próprio acontecimento enunciativo”
(DALMASCHIO, 2013, p. 60).
No contexto das análises aqui apresentadas, tentamos mostrar que
o funcionamento desse silêncio é dotado de significância, dotado de
efeitos de sentidos, haja vista que acreditamos numa sintaxe que é
formulada por dois vieses, o sintático (plano da organicidade) e o
enunciativo/discursivo (plano do enunciável). Na esteira de
Dias (2005a, p. 119),

[...] na nossa concepção, o lugar de objeto direto é um


dos lugares de configuração de referência. Mas é preciso
ressaltar aqui que a ideia de configuração de referência
não significa que esse lugar de objeto tenha como contraparte
uma entidade extralinguística. Em outros termos, isso não
significa que a constituição de um lugar objeto é produzida
por uma orientação a um objeto real. E como se constitui
então a referência? O verbo projeta um lugar, isto é, um
espaço no interior do qual se constitui um domínio de
referência. O objeto, enquanto forma linguística, é um
recorte de significação historicamente delimitado que
ganha uma forma na língua através desse lugar projetado.
Assim, o domínio de referência é algo da relação entre um
recorte determinado pelas condições históricas do
acontecimento e uma injunção desse recorte ao lugar
específico de configuração da forma linguística.

Mostramos também, mesmo se tratando de um cenário que nos


en- tristece, o quanto as gramáticas e os conteúdos que são levados
para a sala de aula são limítrofes em relação a uma língua tão rica
em usos quanto a nossa. Gramáticas que não abrangem todas as
variantes e derivas da língua, apenas ditam regras de “bom uso”,
enlouquecem os alunos com suas tantas exceções e casos
particulares, fazendo com que eles saiam da escola odiando a
própria língua, sem conhecer seus mistérios e suas maravilhas. Com
isso, também demonstramos a importância do espaço
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

que as teorias enunciativas/discursivas vêm ganhando no que tange aos


estudos que buscam novos caminhos para o ensino de Língua
Portuguesa nas escolas e por que essas mesmas teorias já deveriam
estar presentes em manuais de gramáticas e nos conteúdos das
aulas.

O campo de manuais didáticos precisa de obras mais


ousadas do ponto de vista teórico. Isso não significa o
abandono da terminologia gramatical apresentada pelas
gramáticas tradi- cionais. O que esperamos é
minimamente um olhar sobre a língua no qual as
dimensões textuais e discursivas sejam mais efetivas no
tratamento do linguístico. [...] Dessa maneira, o
funcionamento seria captado pela organicidade [...] e pela
enunciação [...]. (DIAS, 2010b, p. 207)

No entanto, ao adotarmos essa perspectiva teórica, não


deixamos de acreditar na importância das gramáticas dentro da sala
de aula, muito menos tentamos diminuir ou rechaçar o papel delas
no ensino; apenas queremos demonstrar que, diante de um ensino
como o nosso, hoje, pre- cisamos de um aporte teórico que se volte
mais para a semântica e não apenas para a sintaxe das gramáticas
normativas, para que, ao formarmos um aluno, ele esteja de fato
capacitado para entender a própria língua e possa interpretar as
diferentes materialidades que circulam tanto na escola, quanto fora
dela, sejam elas uma propaganda, uma reportagem, uma notícia,
entre outras.
Quando questionados sobre o assunto, alguns professores costumam
afirmar que são “obrigados” a ensinar gramática nas salas de aula
porque os documentos preveem isso, o que acaba deixando o cenário
ainda pior. Isso porque sabemos que documentos como os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e as Diretrizes Curriculares
da Educação Básica (DCEs) adotam concepções teórico-
metodológicas que pensam a língua como interação social, buscando
um ensino que se volte mais para questões in- terpretativas e não
apenas um ensino que trate somente da metalinguagem.
As Diretrizes Curriculares da Educação Básica – Língua
Portuguesa (2008), por exemplo, deixam de falar em ensino de
gramática para falar em análise linguística que, segundo Geraldi,
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

[...] inclui tanto o trabalho sobre as questões tradicionais da


gramática quanto questões amplas a propósito do texto,
entre as quais vale a pena citar: coesão e coerência internas
do tex- to; adequação do texto aos objetivos pretendidos;
análise dos recursos expressivos utilizados [...]; organização
e inclusão de informações, etc. (GERALDI, 2006, p. 74)

Mais à frente, o documento salienta que o trabalho de


análise linguística deve ser realizado a partir da observação e
reflexão sobre a língua em uso, aquela que está ao alcance do aluno
e com a qual ele já vem operando mesmo antes de entrar para a
escola.

Quando se assume a língua como interação, em sua


dimensão linguístico-discursiva, o mais importante é criar
oportunidades para o aluno refletir, construir, considerar
hipóteses a partir da leitura e da escrita de diferentes textos,
instância em que pode chegar à compreensão de como a
língua funciona e à decorrente competência textual.
(PARANÁ, 2008, p. 60)

Sabemos que esses mesmos documentos salientam que o ensino


de Língua Portuguesa deve estar respaldado nos gêneros textuais, ou
seja, textos que apresentam funções sociais, que estão ao alcance dos
alunos, que representam, assim, a língua de fato usada no seu dia a
dia dentro e fora do âmbito escolar. Por isso, acreditamos que
materialidades como as analisadas no presente trabalho sejam exemplos
de materiais excelentes para se trabalhar com a sintaxe e, mais
especificamente, voltando ao nosso objeto de trabalho, com a
transitividade verbal e o objeto verbal. Isso porque, ao se deparar
com o lugar sintático objeto verbal, não de- marcado lexicalmente
em um enunciado, o aluno terá que refletir sobre o enunciado na
íntegra, analisando os outros recursos enunciativos/dis- cursivos
empregados e, assim, refletirá sobre o funcionamento da língua e os
vários sentidos que se podem encontrar em um mesmo enunciado,
deixando de apenas tentar aplicar as regras que teve que
decorar.
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após as discussões apresentadas, buscamos agora, expor, de ma-


neira resumida, os objetivos propostos e os resultados a que
chegamos. O presente trabalho teve como objetivo geral mostrar
que, por meio da junção de teorias, como as da sintaxe e da
semântica, é possível termos um ensino mais democrático, um ensino
que não esteja pautado somente no repasse de regras e exceções de
uma língua que não é a usada pelos alunos, uma língua
idealizada.
Para isso, buscamos auxílio nas teorias enunciativas/discursivas, que
vêm se mostrando cada vez mais pertinentes aos discursos que afirmam
a necessidade de reformas no ensino da sintaxe. Tomamos como objeto
de nossa análise o silêncio sintático, ou seja, a não ocupação lexicalizada
do objeto verbal em enunciados com verbo transitivo em sua
constituição. Para nós, o silêncio não é o vazio de sentido, pelo
contrário, o silêncio é espaço para a multiplicidade de sentidos, para
a polissemia e, assim sendo, mesmo que um enunciado não possua
objeto direto demarcado explicitamente na sentença, afirmamos que
isso em nada impede que os efeitos de sentido sejam construídos,
pois acreditamos que a língua é formulada a partir de dois eixos, o
da organicidade e o da enunciabilidade, logo, o lugar sintático objeto
verbal pode ser ocupado por meio de outros elementos
enunciativos/discursivos que não somente pelo do léxico.
Até chegarmos à conclusão exposta acima, percorremos um caminho
que passou por um percurso de busca(s) sobre como é tratada a
questão da transitividade verbal nas gramáticas e livro didático,
primeiramente, para, logo após, com o apoio das teorias
enunciativas/discursivas, analisar materialidades em que houvesse o
funcionamento do silêncio sintático.
No que diz respeito às análises das gramáticas e ao livro
pesquisado, pudemos concluir que há um grande déficit no tocante à
transitividade verbal, porque, em ambos os casos, com algumas
exceções, como foi o caso das gramáticas de Rocha Lima e Cunha
& Cintra, o assunto é tratado de forma limitada, ou seja, o verbo
transitivo é aquele que necessita de complemento para que haja
sentido e o objeto verbal é unicamente o
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

complemento necessário desse verbo. Nas gramáticas citadas como


casos diferentes, podemos ver algo de novo, como, por exemplo, a
consideração do contexto e/ou do texto por inteiro e não somente a
frase, contudo, o que ainda impera é a noção de complemento e
necessidade de complemento para que um enunciado possua
sentido completo.
A partir das três análises empreendidas, pudemos concluir que,
ao contrário do que preveem as gramáticas de cunho normativo,
pode haver sim enunciados em que o objeto verbal não esteja
demarcado le- xicalmente num enunciado em que haja verbo
transitivo, sem que isso interfira na (re)produção de sentidos, pois
sabemos que outros recursos linguísticos e extralinguísticos, como o
acontecimento enunciativo, as redes de significação, a ativação da
memória discursiva, por exemplo, auxiliam no processo de
significância.
Por fim, pretendemos que, com essas análises, a partir dos
pressu- postos das teorias enunciativas/discursivas, em concomitância
como os pressupostos de documentos como as DCEs e os PCNs,
possamos de- monstrar como é possível termos um ensino de Língua
Portuguesa que se volte mais para a semântica e não apenas para o
ensino da metalinguagem.

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188
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

OS PREFÁCIOS DE DICIONÁRIOS
INFANTIS: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA

Maria Cláudia Teixeira


Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)

OS DICIONÁRIOS INFANTIS DE LÍNGUA PORTUGUESA E A SUA


CIRCULAÇÃO

Enfocamos, neste estudo, os dicionários infantis de língua portugue-


sa, que foram inseridos nas escolas para atender necessidades
pedagógicas e funcionam como apoio didático aos professores,
principalmente no que se refere à leitura e à escrita. A grande
produção do dicionário infantil escolar no Brasil está ligada à
inserção desse material no Programa Na- cional do Livro Didático
(PNLD), a partir de 2001.
O PNLD, criado em 1985 pelo Ministério de Educação
brasileiro, objetiva a seleção, aquisição e distribuição gratuita de
livros didáticos para alunos de escolas públicas do ensino
fundamental. Desde 2001, os dicionários passaram a fazer parte desse
processo, ocasionando um boom no mercado editorial e despertando o
interesse de estudiosos e pesquisadores.
De 2001 até a atualidade, muitos editais foram publicados
objeti- vando definir os critérios de escolha das obras e a
classificação dessas. Até 2006, por exemplo, os dicionários
escolares eram distribuídos a todos os alunos do ensino público,
com um exemplar igual para todos,
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

independente do nível de ensino. A partir de 2006, as escolas


receberam diferentes tipos de dicionários para atender a públicos
específicos, pois o PNLD classificou os dicionários em três
categorias: tipo 1 – contém de mil a três mil verbetes; tipo 2 - de três
mil e quinhentos a dez mil verbetes e tipo 3 - de dezenove mil a
trinta e cinco mil verbetes. Essa mudança atendia aos alunos de
ensino fundamental do primeiro segmento, sendo que os alunos de 1ª
e 2ª séries recebiam os dicionários de tipo 1; de 3ª série os de tipo 2
e os de 4ª e 5ª séries recebiam os de tipo 3. Quanto à forma de
utilização, os dicionários deixaram de ser individuais e passaram a
ser de uso coletivo; os exemplares recebidos, portanto, ficavam sob
responsabilidade da escola.
No edital do PNLD de 2012, os dicionários escolares passaram
por novas adequações e foram classificados em 4 tipos, conforme o
público ao qual se destinam: tipo 1 – 1º ano de ensino fundamental;
tipo 2 – 2º ao 5º ano de ensino fundamental; tipo 3 – 6º ao 9º ano do
ensino fundamental e tipo 4 – 1º ao 3º ano do ensino médio. Os
acervos de dicionários foram distribuídos em 2006, 2012 e 2015.
Dos 60 dicionários inscritos no PNLD para distribuição em
2005/2006, apenas 18 foram selecionados; desses, 9 eram destinados
ao primeiro segmento do ensino fundamental (1ª a 4ª séries) e 9 ao
segundo segmento e ensino médio. Desse total de 9 que procuram
contemplar o primeiro segmento, escolhemos para análise aqueles
direcionados aos alunos entrantes (1ª e 2ª séries), totalizando 4 obras:
(1) Descobrindo novas palavras: dicionário infantil, assinado por
Gilio Giacomozzi, Gil- dete Valério e Geonice Valério; (2) Meu
primeiro livro de palavras: um dicionário ilustrado do português de A
a Z, de Maria Tereza Camargo Biderman e Carmen Silvia Carvalho;
(3) Meu primeiro dicionário Cal- das Aulete infantil ilustrado, cujo
editor é Paulo Geiger e (4) Aurelinho: dicionário infantil ilustrado da
língua portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.
No PNLD 2012, foram selecionados 19 dicionários, distribuídos
entre os 4 tipos definidos pelo programa. Desses, apenas 3 para o
tipo 1:
(1) Meu primeiro dicionário Caldas Aulete com a Turma do Cocoricó,
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

organizado por Paulo Geiger; (2) Dicionário Infantil ilustrado


Evanildo Bechara, elaborado por Evanildo Bechara e (3) Meu
primeiro livro de palavras: um dicionário ilustrado do português de A
a Z, de Maria Tereza Camargo Biderman e Carmen Silvia
Carvalho.
Os dicionários tomados como objeto neste artigo são
categorizados conforme o público e os objetivos que pretendem
alcançar. Além disso, um dos parâmetros diferenciadores é o número
de palavras-entrada con- forme o tipo de dicionário: tipo 1: no
mínimo 500 e no máximo 1.000 verbetes; tipo 2: no mínimo 3.000 e
no máximo 15.000 verbetes; tipo 3: no mínimo 19.000 e no máximo
35.000 verbetes e os de tipo 4: no mínimo 40.000 e no máximo
100.000 verbetes. O PNLD 2012 acres- centa que os dicionários do
tipo 1 e 2 não se “constituem a rigor, como dicionários. São, antes,
repertórios de palavras organizados como tais com o objetivo de
introduzir (tipo 1) e familiarizar (tipo 2) o aluno do primeiro
segmento” (GUIA PNLD/MEC 2012-Dicionários, p. 21). Esse
acréscimo de informações faz com que questionemos o
funcionamento do dicionário infantil escolar. O que diferencia um
dicionário de um repertório de palavras? Se a diferença é justificada
quantitativamente, ou seja, pelo número de palavras-entrada, os outros
aspectos de caráter lexicográfico não diferem dos de um dicionário
geral de língua?
Para responder a essas questões, filiamo-nos teoricamente à
Análise de Discurso francesa e, por esse viés, tomamos o dicionário
como um objeto discursivo. Inscrevemo-nos, portanto, na
lexicografia discursiva, tal como proposta por Eni Orlandi e José
Horta Nunes. Neste trabalho, especificamente, propomos uma
análise dos prefácios dos quatro di- cionários infantis destinados às
séries iniciais do ensino fundamental, selecionados pelo PNLD
2006. Interessa-nos observar a imagem que os dicionários
constroem de si, dos sujeitos-leitores e da língua.

O QUADRO TEÓRICO DA ANÁLISE DE DISCURSO

A Análise de Discurso (AD) originou-se na França, tendo


como marco inicial o livro do filósofo Michel Pêcheux, Analyse
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
automatique du discours (AAD), 1969, em que o mestre francês
propõe uma teoria do

191
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

discurso e pensa este “como lugar em que se estabelece a relação


entre a língua e a história” (MALDIDIER, [1993] 2011, p. 48). Desde
essa publicação, que é considerada a obra pioneira dos estudos de
análise de discurso, profundas modificações ocorreram devido aos
deslocamentos e (re)leituras que se fizeram e fazem dos estudos
propostos por Pêcheux.
No Brasil, a AD surgiu no final da década de 1970 e tem
como maior referência Eni Orlandi, precursora dos estudos discursivos
em solo brasileiro. Assim como na França, inicialmente, a AD esteve
centrada no discurso político, mas, aos poucos, diferentes discursos
passaram a ser objeto de estudo, o que exigiu deslocamentos
conceituais, fazendo com que a AD praticada no Brasil se
diferenciasse da AD praticada na França sem, no entanto,
abandonar as bases fundacionais.
A AD toma como objeto de estudo o discurso, compreendido
como o lugar de contato entre língua, história e ideologia. É, segundo
Orlandi (2005,
p. 10), “movimento dos sentidos”, lugar de articulação do histórico
com o social e o ideológico, por isso, lugar de materialização da
ideologia. É no discurso que o sujeito se significa ideologicamente,
pois, ao falar, o sujeito significa, mas também se significa, ou seja, ele
não constrói só a imagem do outro, mas também constrói uma
imagem de si mesmo, que se forma a partir de suas posições
ideológicas e do atravessamento pelo inconsciente.
Entendendo o discurso tal qual é definido em Orlandi (2005, p.
21), como “efeito de sentidos entre locutores”, como “palavra em
movimen- to”, é que se pode afirmar que uma mesma palavra, em
textualidades semelhantes e em diferentes condições de produção,
pode significar diferentemente. Ou seja, o sentido está na relação
entre os locutores e não nas palavras, resultando da “relação de
sujeitos simbólicos que par- ticipam do discurso dentro de
circunstâncias dadas” (ORLANDI, 2010,
p. 15). Os efeitos de sentidos se dão, de acordo com Orlandi (2010,
p. 15), “porque são sujeitos dentro de certas circunstâncias e afetados
pelas suas memórias discursivas”. O sujeito e a situação “contam na
medida em que são redefinidos discursivamente como parte das
condições de produção do discurso” (ORLANDI, 2010, p. 15). Assim,
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
não há sentido literal, até porque a língua não é transparente e está
sujeita a falhas.

192
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

É nesse sentido que pretendemos analisar nosso corpus de


estudo, tomando a língua, a palavra, o discurso, o enunciado, como
elementos opacos, passíveis de deriva, de sentido outro, sujeitos ao
equívoco. En- tendemos que o sentido não é literal, mas se constitui
“em processos em que há transferências, jogos simbólicos dos quais
não temos controle e nos quais o equívoco – o trabalho da ideologia
e do inconsciente – estão largamente presentes”. (ORLANDI,
2005, p. 60).
Compreender que a língua funciona no equívoco, que o sentido
deriva e pode sempre ser outro é tomar a polissemia como
fundamento da linguagem, pois é na polissemia que se encontra o
deslocamento e a “ruptura de processos de significação”. De acordo
com Orlandi (2005), todo funcionamento da linguagem se assenta
na tensão entre o mesmo e o diferente, entre aquilo que se repete
(paráfrase) e aquilo que se rompe (polissemia) para instaurar o novo
e produzir diferentes efeitos de sentido. Enquanto a paráfrase
assegura a estabilização, a polissemia promove o deslocamento, e é
neste jogo “entre o mesmo e o diferente, entre o já-dito e o se dizer
que os sujeitos e os sentidos se movimentam, fazem seus
percursos, (se) significam (ORLANDI, 2005, p. 36)”.
O sujeito em AD é chamado à existência pela ideologia,
que “in- terpela o indivíduo em sujeito e este se submete à língua
significando e significando-se pelo simbólico na história” (ORLANDI,
2002, p. 66). Ao submeter-se à língua e à história, o sujeito se
“assujeita” de forma “não quantificável”, já que, conforme a autora,
não se mede o assujeitamento, pois, na perspectiva da AD, só se
pode ser sujeito assujeitando-se, sem isto, “não tem como
subjetivar-se”, ante o simbólico. A subjetividade, vale ressaltar,
refere-se ao modo de constituição do sujeito, o tornar-se sujeito do
discurso.
Da interpelação do indivíduo em sujeito do discurso resulta uma
forma-sujeito, viés pelo qual o sujeito do discurso se identifica
com a formação discursiva (FD) que o constitui e que é, igualmente,
responsá- vel pela ilusão de unidade do sujeito. Neste processo de
interpelação, “o assujeitamento é a própria possibilidade de ser
sujeito. [...] Ele está sujeito à (língua) para ser sujeito de (o que
diz)” (ORLANDI, 2010, p. 19). O
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

193
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

sujeito esquece que não é origem do dizer, assim como esquece


que há diferentes formas para dizer, que há outros sentidos
possíveis. Pêcheux (1997 [1975]) distingue duas formas de
esquecimento no discurso.
Pelo esquecimento número 2, o sujeito acredita que aquilo que
diz só pode ser dito daquela maneira e não de outra; produz-se a
ilusão que há uma “relação direta entre o pensamento, a linguagem
e o mundo”. (ORLANDI, 2005, p. 35). Dessa forma, acredita que
tudo o que diz é porque foi imediatamente organizado pelo
pensamento, esquecendo-se de que é interpelado pela ideologia. O
esquecimento número 1 se refere à ilusão do sujeito em controlar os
seus dizeres, acreditando ser fonte e origem do dizer; quando, na
realidade, sempre são retomados sentidos já existentes.
Discursivamente, o sujeito é pensado como uma posição, um
lugar e o modo como ocupa esse lugar não lhe é acessível, pois “ele
não tem acesso direto à exterioridade (interdiscurso) que o constitui”
(ORLANDI, 2005, p. 49). Da mesma maneira, a língua não é
transparente e o mundo apreensível. Não há forma de estar no
discursivo sem constituir-se em uma posição-sujeito, sem inscrever-se
em uma FD. O sujeito pode ocupar diferentes posições no discurso.
Em se tratando do estudo dos prefácios dos dicionários tomados como
objeto, a posição de sujeito-autor é uma posição de um sujeito
histórico, assujeitado ideologicamente por ocupar uma posição-sujeito
na formação social que o constitui. Assumindo essa posição-sujeito, o
autor projeta outros e diferentes sujeitos, que ocupam diferentes
posições no discurso lexicográfico. Pêcheux (1997 [1975]) aponta
para os desdobramentos da forma-sujeito no interior da FD na qual o
sujeito se inscreve, apresentando três modalidades de subjetivação.
Na primeira modalidade, o sujeito do discurso se identifica com a FD
na qual se inscreve, aceitando, incorporando e reproduzindo os
saberes dessa formação, o que caracteriza o discurso do bom sujeito.
A segunda modalidade abre-se para a oposição, para a
contradi- ção, espaço da diferença que aponta para diferentes posições-
sujeito no interior da mesma FD, o que caracteriza a contra-
identificação com o que rege a FD, designada como mau sujeito,
aquele que questiona, que
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
194
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

tem uma tomada de posição sem, no entanto, romper com a FD,


mesmo incomodado.
Na terceira modalidade, ocorre o processo da desidentificação
e o sujeito toma uma posição e rompe com os saberes da FD na
qual, até então, estava identificado, devido à contradição que se
instaura. Segundo Pêcheux (1997[1975], p. 270), a ideologia continua
a funcionar, mas às avessas: “através do desenvolvimento de
ideologias novas da interpela- ção ideológica”.
Em nossa análise, privilegiamos as imagens que o prefácio
constrói acerca da língua, do dicionário e dos sujeitos-leitores. O
gesto interpre- tativo do texto prefacial nos permitirá compreender
que discursividades sustentam o discurso do dicionário infantil.

O DICIONÁRIO COMO OBJETO DISCURSIVO

A produção de dicionários de língua portuguesa no Brasil,


destinados ao público em idade escolar, ou dicionários infantis,
segundo Martins (2007, p. 32):

[...] inicia-se no final do século XX (1989) e se acentua a


partir de 2003. Há o lançamento de vários dicionários
infantis que remetem à tradição de grandes dicionários de
língua, como o Aurélio, Larousse, Houaiss e Aulete.
Também há a inter- textualidade com vários personagens
infantis, o que marca a construção da nova tipologia.

Considerado como o lugar do saber inquestionável, por apresentar a


definição das palavras, o dicionário, tomado aqui como objeto
discursivo, deve ser lido discursivamente, como passível da
opacidade, de falhas, pois a relação entre as palavras e o que elas
significam não se faz de modo transparente, mas opaco, fazendo-se
presentes a deriva, o sentido outro e o silêncio.
O dicionário funciona como lugar da ‘estabilização’ dos
discursos e eles são consultados/retomados o tempo todo. Por essa
retomada, os

195
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

discursos dos dicionários são reconstruídos, (re)-significados, reme-


morados, temporalizados no discurso. A estabilização dos sentidos
no dicionário é um efeito do movimento histórico e político e
inscreve-se nas divisões do dizer; ele significa, portanto, no
confronto entre unidade e diversidade, o que possibilita observar o
funcionamento da língua e seus efeitos de sentido no
movimento histórico.
Na posição em que nos colocamos, entendemos o dicionário
como um material histórico da língua. Pela sua leitura, é possível
não só co- nhecer a história de uma palavra, mas também flagrar
movimentos na história da língua e da sociedade pelas condições de
produção, pelas quais esse histórico pode ser significado, não como fato
datado, temporalizado, mas como historicidade1, ou seja, não se trata
de pontuar fatos históricos, mas de observar o movimento discursivo da
história produzindo sentidos, historicizando o dizer e significando no
discurso pelo mesmo (paráfrase) ou pelo diferente (polissemia).
Conforme Nunes (2006, p. 18), “como todo discurso, o
dicionário tem uma história, ele constrói e atualiza uma memória,
reproduz e des- loca sentidos, inscrevendo-se no horizonte dos dizeres
historicamente constituídos”. Assim, pode-se dizer que os sentidos são
repetidos e des- locados em diversos momentos históricos. É somente
no nível em que o dizer inscreve-se no repetível e a memória
intervém como constitutiva, como resultado da inscrição do sujeito e
do dizer na história, que a língua significa, produz sentidos.
Dizemos, portanto, que o texto dicionarístico encaminha para a
interdiscursividade, fazendo ressoar um já-dito devido aos furos que
estruturam o intradiscurso, o fio discursivo, e não deixa que a
palavra permaneça em estado de dicionário, estática, mas a devolve
à discur- sividade, ao funcionamento da língua na história, fazendo
com que os sentidos se movimentem.
Ao definir uma palavra, o lexicógrafo, conforme aponta
Nunes (2006), atribui uma unidade imaginária a uma porção do real;
constrói,
1 Segundo Orlandi (2012, p. 44), a noção de historicidade permite “[...] situar a análise de
discurso em relação à análise de conteúdo, à pragmática e à semântica histórica da
enunciação, justamente pela maneira como significa e delimita a natureza e o estatuto do que
é exterioridade”.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
196
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

assim, uma imagem de si e uma imagem do outro. Essa ‘construção’


se dá de forma inconsciente, pois o sujeito é interpelado pela
ideologia e, embora represente as relações sociais, é regulado pelo
histórico. Por isso, a memória social está também representada no
dicionário, irrompendo no fio do discurso, produzindo efeitos de
sentido. Trata-se, portanto, de um modo de significar a historicidade:
o deslocamento da história, enquanto disciplina relacionada à
continuidade, à estabilidade, busca a discursividade do acontecimento
pela historicidade que é, de acordo com Orlandi (2012), a intervenção
da história na língua.

O PREFACIAMENTO DOS DICIONÁRIOS INFANTIS DE LÍNGUA


PORTUGUESA: UMA ANÁLISE DISCURSIVA

O texto prefacial antecede o texto principal e cumpre a função


de apresentá-lo, produzindo um efeito de unidade e de completude
para a obra que se seguirá, como se pudesse indicar todas as suas
característi- cas. No dicionário, o texto prefacial cumpre ainda uma
função didática, sobretudo em se tratando de um dicionário para fins
escolares/peda- gógicos, pois serve também para explicar os modos
de ler desse tipo específico de livro, que exige um conhecimento
prévio da língua, dada a sua organização.
Tomamos como objeto quatro dicionários infantis selecionados
pelo PNLD 2006. São eles: “Meu Primeiro Dicionário Caldas
Aulete” (MPDCA); “Meu Primeiro Livro de Palavras” (MPLP);
“Aurelinho” e “Descobrindo Novas Palavras” (DNP). Partimos da
análise dos prefácios para observarmos que imagens da língua, do
dicionário e do público leitor os dicionários infantis constroem.
Apresentamos as sequências discursivas (sd’s) recortadas,
indicando de qual dicionário se trata por meio das siglas dos
nomes.
Registremos, antes, algo interessante: a significação do texto
introdutório como “prefácio” aparece apenas em dois dos dicionários
analisados. O “Aurelinho” possui um prefácio dos editores e, depois,
a “apresentação” do dicionário. O “Meu Primeiro Livro de Palavras”
apre- senta o prefácio e, na sequência, uma “introdução”. É
relevante notarmos
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197
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

isso, pois há uma especificidade no gesto de interlocução que


explicare- mos a seguir. No “Descobrindo Novas Palavras”, o texto
que “abre” o dicionário é referido como “apresentação”; no “Meu
Primeiro Dicionário Caldas Aulete”, significado como
“apresentação lexicográfica”.

A IMAGEM DO LEITOR

Consideremos as sequências discursivas:

(sd 1) “Este dicionário se dirige a crianças em fase de


alfa- betização, aos alunos da 1º e 2º séries do ensino
fundamental. Foi concebido e elaborado para servir
como introdução do alfabetizando a obras de referência
– mais especificamente aos dicionários, e ao uso destes
como ferramenta diária para o estudo e o
aprendizado.” (MPDCA)

(sd 2) “Elaborado para atender a crianças em fase de


alfabe- tização, mais exatamente aquelas nas duas
primeiras séries do Ensino Fundamental, este
dicionário...” (Aurelinho)

(sd 3) “A esse primeiro núcleo vocabular, adicionamos


termos frequentes em livros escolares das primeiras duas
séries do ensino fundamental [...] Consideramos também o
fato de que palavras de significação como substantivos,
adjetivos e verbos são mais adequadas para iniciar este
público no uso de um dicionário.” (MPLP)2

(sd 4) “Este dicionário [...] destina-se às turmas de


alfabeti- zação e séries iniciais do Ensino Fundamental.
Introduzir o alfabetizando no gênero dicionário é um dos
objetivos desta obra.” (DNP)

As sequências discursivas acima instituem o leitor dos


dicionários. Nas sequências 1, 2 e 3, trata-se de “crianças em fase de
alfabetização”, “alunos das primeiras séries do ensino fundamental”;
na sequência 4, de “turmas”. Há uma relação metonímica entre
“turmas” e “alunos”.
2 Grifos das autoras.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Pelas sequências, podemos ver que os dicionários constroem a


imagem do leitor-escolar. Não se trata de qualquer criança, mas de
crianças em processo de escolarização, ou seja, do sujeito-aluno. Isso
fica evidente quando consideramos a metonímia presente na sequência
4: o dicionário não se dirige às crianças, mas às crianças dispostas em
“turmas”, ou seja, às crianças enquanto ocupantes de um determinado
espaço, o da escola.
As sequências nos permitem ver que as condições de produção
dos dicionários são diretamente afetadas pela inclusão desses materiais
no Plano Nacional do Livro Didático, pois os dicionários: 1)
instituem seus leitores a partir de um critério seriado (“crianças das
séries iniciais do ensino fundamental”) e 2) buscam cumprir uma
determinada função (“introduzir o aluno no gênero dicionário”).
Esses dois aspectos são parte da política de seleção das obras no
PNLD, como mostramos no início do trabalho.Parece óbvio dizer que
o dicionário infantil toma como leitor a criança. No entanto, essa
evidência é desconstruída, pois, como mostramos, não se trata de
qualquer criança, mas do sujeito-aluno. Outro aspecto que concorre para
a desconstrução dessa evidência é o gesto de interlocução do prefácio.
Se o dicionário se dirige às crianças das séries iniciais do ensino
fundamental, supomos que o dizer do prefácio toma como
interlocutores essas crianças. Isso não ocorre. As crianças são
referidas sempre, pelo texto prefacial, em terceira pessoa, tal como
nas sequências discursivas reproduzidas. A quem se dirige, então, o
dizer do prefácio? Outra suposição: se o dicionário toma como leitor
o sujeito- aluno, indicando que sujeito e objeto estão dispostos no
espaço escolar, podemos pensar que o prefácio se dirige a outro
sujeito característico desse espaço, o professor. Tomemos outras
sequências discursivas:
(sd 5) “Há outras dimensões que podem, e devem, ser
explo- radas com alguma orientação do professor ou da
professora.” (MPDCA)

(sd 6) “Ao usar esse recurso, privilegiamos não só os


vocá- bulos mais conhecidos, mas também algumas
palavras menos usuais cujo significado a criança poderá
deduzir com a ajuda do professor” (MPLP)
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

199
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Tal como a criança, o professor também é significado na


terceira pessoa, o que nos permite afirmar que o prefácio não é,
necessariamente, direcionado a ele. No “Descobrindo Novas
Palavras” não há nenhuma marca de endereçamento do texto
prefacial. No “Aurelinho”, o prefácio inicia assim: “Este dicionário que
você tem nas mãos”, mas não há nenhu- ma retomada referencial
desse pronome na sequência. Como dissemos, o “Meu Primeiro Livro
de Palavras” apresenta, depois do prefácio, uma “introdução”, esta
sim dirigida às crianças leitoras. O Aurelinho possui uma
“apresentação” do dicionário, mas que, como o prefácio, também
não se dirige às crianças.
Entendemos que o prefácio se constitui como um “texto em
aberto”, podendo ser lido por qualquer sujeito que ocupe a posição
de seu leitor. A ausência de endereçamento a um público leitor
determinado é interes- sante porque produz uma contradição no
discurso dos dicionários. Se o dicionário constrói a imagem do leitor
sujeito-aluno, por que o texto do prefácio não dialoga diretamente
com ele?

A IMAGEM DA LÍNGUA

Consideremos as sequências discursivas:

(sd) “De modo geral, em cada verbete, [...] foram


empregadas preferencialmente, e quase só, palavras do
próprio elenco, com o objetivo de tornar a linguagem o
mais próxima possível da vivência do aluno, o que,
muitas vezes, ocasionou uma limi- tação do
desenvolvimento da acepção.” (DNP)

(sd) “Perseguimos a clareza e a simplicidade das definições,


o emprego adequado das acepções, e acreditamos que a
re- dação dos exemplos foi particularmente feliz, no
sentido de se adaptar à linguagem e à realidade
infantis.” (Aurelinho)

(sd) “Em consequência, adotamos também as seguintes


práti- cas: linguagem simples e direta, com vocabulário ao
alcance do público-alvo.” (MPLP)
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

(sd) “Os verbetes estão redigidos de modo


suficientemente informal, próximo do registro coloquial
das crianças [...] A simplicidade da redação e a riqueza
dos exemplos tornam os verbetes acessíveis à compreensão
espontânea da criança que ensaia os primeiros passos
da leitura.” (MPDCA)

Vemos, nessas sequências, que os textos dos prefácios privilegiam


a “simplicidade da redação e da linguagem”, a “adaptação ou
proximidade com a linguagem, a realidade ou vivência do aluno”,
“o registro infor- mal, próximo do coloquial”. Instituem, assim, que
língua é a língua do dicionário infantil: a língua em sua modalidade
informal, que se mostra simples, sem rebuscamentos e, por isso,
assemelha-se à realidade do aluno. O discurso que sustenta os
dizeres dos prefácios é o da simplici- dade da linguagem, de
suplantação da língua formal em detrimento do registro informal,
próximo da “realidade”.

A IMAGEM DO DICIONÁRIO

Observemos uma sequência discursiva do “Meu Primeiro Livro


de Palavras”:

(sd) Tais critérios foram baseados no fato de que,


segundo educadores, a maioria das crianças dessa idade
usa dicio- nários basicamente para 1) verificação de
ortografia e 2) entendimento de palavras menos comuns
e com acepções figuradas, mais abstratas ou pouco
usuais.

A sequência mostra o modo como o dicionário é compreendido


pelas crianças no dizer dos educadores. Essa imagem é recorrente
no imaginário do objeto dicionário, tomado, geralmente, como lugar
de consulta à forma correta da grafia ou aos significados
desconhecidos das palavras. Interessante notarmos que o MPLP,
mesmo procurando manter a simplicidade da linguagem e a
proximidade com a realidade infantil, contempla esse aspecto da
abrangência social do dicionário: o de assegurar um conhecimento
novo. Como veremos, não é o discurso do conhecimento que sustenta
com expressividade o dizer dos prefácios.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

201
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Em todos os prefácios, há uma referência exaustiva aos


aspectos técnicos das obras (número, seleção e organização de
verbetes; fonte e tamanho da fonte empregada; presença de
ilustrações, etc.), para sina- lizar a adequação destas ao público
infantil. Ressaltamos, de imediato, que o discurso do dicionário
infantil se sustenta na ressignificação do imaginário acerca do objeto
dicionário, tradicionalmente tomado como erudito. O efeito de
sentido é o de que o dicionário infantil deve ser um dicionário, ao
mesmo tempo em que não o deve, por isso um trabalho de
“adequação”. Ganha destaque nesse processo a simplificação da
linguagem e o uso dos recursos visuais (ilustrações, fotografias e
perso- nagens) para tornar o dicionário um lugar da ludicidade. É o
que vemos nas sequências discursivas:
(sd) “[...] a função deste dicionário não é abarcar uma
extensa parte do vocabulário infantil e ensinar palavras
‘difíceis’” (MPDCA)

(sd) “Em consequência, adotamos também as seguintes


práti- cas: linguagem simples e direta, com vocabulário ao
alcance do público-alvo” (MPLP)

(sd) “A verdadeira aprendizagem passa pelos sentidos, daí a


preocupação em trabalhar o visual, dando um sabor
especial a cada verbete, procurando atrair a atenção da
criança e desper- tar seu interesse. É a aprendizagem ligada
ao prazer.” (DNP)

O “Aurelinho” cita os recursos visuais e técnicos e conclui:

(sd) “E, por fim, uma preocupação permanente em criar


pá- ginas harmoniosas em seu todo, alegres e atraentes,
que con- videm os pequenos leitores para muitas e muitas
consultas.”

O prefácio desse dicionário é escrito pelos editores. Vemos


como esse dizer é sustentado pelo discurso editorial, que procura
constituir o dicionário como um objeto “harmonioso, alegre e
atraente”. Ao fazer isso, movimenta a memória acerca do objeto
dicionário, tradicionalmente
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

202
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

ligado ao saber erudito. Como os outros dicionários infantis, o Aureli-


nho – por outra posição-sujeito, a de editor – procura romper com
esse imaginário, para significar o dicionário infantil como um objeto
alegre e atraente. Há, na construção da imagem do dicionário, uma
sustentação do discurso do dicionário infantil pelo discurso lúdico e
de simplificação da linguagem. Em detrimento de uma imagem de
“saber” e de conheci- mento, os prefácios dos dicionários infantis os
apresentam mais como um objeto lúdico, ligado ao prazer e ao
brincar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos, a partir da análise, como o discurso do dicionário infantil


é atravessado por outras discursividades. A construção do leitor
“sujeito- aluno” deixa ver como o discurso do dicionário, enquanto
discurso do conhecimento, é atravessado pelo discurso do ensino
formal. Sujeito e objeto se constituem nesse espaço determinado, o da
escola. A interferên- cia do PNLD nas condições de produção dos
dicionários infantis produz outro atravessamento no discurso desses
dicionários: o do discurso peda- gógico, que se revela em várias de
suas facetas ao longo dos prefácios.
A construção da imagem de língua é sustentada pelo discurso
de simplificação da linguagem. De acordo com essa discursividade,
o em- prego informal da língua aproxima esta da realidade do
sujeito-aluno. Interessante notarmos como esse discurso faz significar o
pré-construído da língua formal como distante da vida dos sujeitos.
Por fim, a imagem do dicionário é significada mais como a
imagem de um objeto lúdico do que propriamente como a imagem
de um objeto de conhecimento.
Acreditamos ter mostrado, com este trabalho, a importância de
se tomar o dicionário como um objeto discursivo e de analisar que
discursos sustentam o discurso do dicionário. Ao partirmos da
análise do dicionário infantil, mostramos como ele movimenta a
memória acerca do objeto dicionário e se constitui a partir da
sustentação em outros discursos, como o discurso lúdico, o discurso
pedagógico e o discurso do ensino formal.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

203
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

REFERÊNCIAS

MALDIDIER, D. (1993) A inquietude do discurso. Um trajeto na história da


análise do discurso: o trabalho de Michel Pêcheux. In: SARGENTINI, V.;
PIOVEANI, C. Legados de Michel Pêcheux. São Paulo: Contexto,
2011.
MARTINS, M. T. Análise discursiva de dicionários infantis de língua
portuguesa.
Dissertação de mestrado. São José do Rio Preto: [s.n.], 2007.
NUNES, J. H. Dicionários no Brasil: análise e história do século XVI ao
XIX. Campinas, SP: Pontes Editores – São Paulo, SP: Fapesp – São José do
Rio Preto, SP: Faperp, 2006.
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ORLANDI, E. P. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos.
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óbvio. Trad. de Eni P. Orlandi. et al. Campinas: Editora da Unicamp,
1997.
PÊCHEUX, M. (1969) Análise automática do discurso (AAD-69). In:
GADET, Françoise; HAK, Tony. Por uma análise automática do discurso:
uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Ed. da
UNICAMP, 1990.

Publicações governamentais consultadas

BRASIL. MEC/FNDE. Edital de Convocação para inscrição no processo de avaliação


e seleção de dicionários brasileiros de Língua Portuguesa para o Programa
Nacional do Livro Didático – PNLD. Brasília: SEF/MEC, 2006. 32 p.
BRASIL. SEF/MEC. Guia de livros didáticos do PNLD 1999 —
Dicionários. Brasília: SEF/MEC, 1999.
BRASIL. SEF/MEC. Guia de livros didáticos do PNLD 2012 —
Dicionários. Brasília: SEF/MEC, 2012.

Dicionários analisados

BIDERMAN, Maria Tereza Camargo; CARVALHO, Carmen Silvia. Meu primeiro


livro de palavras: um dicionário ilustrado do português de A a Z. São Paulo:
Ática, 2005.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
204
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aurelinho: dicionário infantil ilustrado


da língua portuguesa. Curitiba: Ed. Positivo, 2005.
GEIGER, Amir; DAVIES, Vitória. Meu primeiro dicionário Caldas Aulete
infantil ilustrado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
GIACOMOZZI, Gilio; VALÉRIO, Gildete; VALÉRIO, Geonice. Descobrindo
novas palavras: dicionário infantil. São Paulo: FTD, 2005.

205
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

A POESIA DE MURILO MENDES PELA ÓTICA DISCURSIVA:


NOVAS PRÁTICAS DE ENSINO

Wellington Stefaniu
Universidade Estadual de Maringá (UEM)

INTRODUÇÃO

Grande nome da literatura brasileira, em específico do período


referente à geração modernista de 1945, Murilo Mendes revela-se
uma incógnita quando seus poemas são trabalhados na sala de aula. A
leitura truncada e confusa de seus versos, quase sempre trabalhados
por meio de uma interpretação literal, despreza a carga semântica e
simbólica de suas insólitas metáforas, bem como dos possíveis efeitos
de sentido proporcionados por elas.
Partindo dessa premissa, o presente trabalho terá como
alicerce um gesto de leitura da poesia de Murilo Mendes, sustentado
nas teorias provenientes da Análise de Discurso (AD) de linha francesa,
sabendo que ela é, também, um aporte teórico não só de leitura, como de
interpretação, abordando conceitos como a constituição de discursos
pelas condições de produção e formação de sujeitos leitores do poeta
brasileiro em questão, por meio dos estudos elaborados, no Brasil,
por Eni Orlandi, acerca da análise discursiva pecheuxtiana.
Como a Análise de Discurso é herdeira também da Psicanálise
(assim como da Linguística e do Marxismo), outra teoria que
norteará este trabalho será a psicanálise lacaniana, evidenciada pela voz
de Slavoj

207
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Žižek. Dessa forma, ao fazer uso dessas teorias, este artigo buscará
propor uma nova leitura ao ensino da poesia muriliana em sala de
aula, desfa- zendo práticas retrógradas que ainda veem a análise
poética como algo distante da realidade dos discentes, apontando
para os sentidos em fun- cionamento no texto poético recortado para
a elaboração deste trabalho.
Das influências advindas da Geração Heroica de 1922 e do
profun- do fulcro artístico herdado pela vanguarda surrealista, brotou
a semente poética muriliana, repleta de discursos que ressoam efeitos
de sentido complexos no sujeito-leitor. Tal hipótese considera, assim
como propõe Michel Pêcheux, que “uma palavra não possui sentido
próprio vinculado à sua literalidade” (1995, p. 160-164), pois tudo
dependerá das posições sustentadas por aqueles que as empregam,
adquirindo sentido com essas posições. Logo, esse movimento seria
designado pela ideologia.
O movimento analítico dos recortes poéticos selecionados
distan- ciar-se-á da compreensão da língua enquanto um sistema
que objetiva a transmissão de uma informação ou a decodificação
de um símbolo po- ético. Antes, as relações de um sujeito com o
discurso serão abordadas, evidenciando que uma formação discursiva
mantém elos de significação entre a história e as condições de
produção de objetos simbólicos de sentidos para e pelos sujeitos.
Em comunhão a isso, as teorias da psicanálise lacaniana, pela
voz de Žižek, em específico àquilo abordado pelos questionamentos
acerca do “Grande Outro”, acrescentarão elementos para que o discurso
literário em questão não recaia em uma única fonte de sentido, tal como
um sujeito descentrado creria, mas sim na recorrência do já-dito, na
interpelação discursiva suscitada pela memória.
Outrossim, as teorias supracitadas serão usadas com o objetivo
de propor uma nova prática de leitura à poesia de Murilo na sala de
aula, lugar esse que se revela desértico pelo fato de os sentidos
estarem sem- pre encerrados em apenas um, eleito como único e
verdadeiro, o que se resume, em outras palavras, à proposição “o
que o poeta quis dizer...”, deixando de lado fatores importantes
como a história e a ideologia evo- cados pelos atravessamentos.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
208
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Portanto, em um primeiro momento, o presente trabalho


discorrerá sobre os pressupostos teóricos dos quais lançaremos mão
para embasar a tese de uma leitura discursiva da poesia de Murilo
em sala de aula, seguido de uma breve apresentação acerca das
características da poética do escritor brasileiro. Enfim, o recorte do
poema “Exergo” objetivará a identificação de possíveis
regularidades na obra muriliana.

PÊCHEUX E A AD: SUJEITO E DISCURSO

Um dos conceitos que nortearão este artigo é retirado do livro


Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio (1995,
p.160- 164), formulado por Michel Pêcheux e traduzido por Eni
Orlandi. Para Pêcheux, é a ideologia que, por meio da interpelação-
identificação, designa o que é e o que um sujeito deve ser. O
estudioso francês aplica o seguinte exemplo para explicar isso: no
discurso “um soldado francês não recua”, o sujeito se constitui a
partir das características de como um soldado francês deve ser.
Assim, Pêcheux propõe duas teses que, segundo ele, definem a
formulação ideológica.
A primeira tese diz que o sentido de uma palavra não existe em
si mesmo, pois as palavras mudam de sentido segundo as posições
sus- tentadas por aqueles que as empregam, adquirindo sentido
com essas posições. Isso é denominado Formação Discursiva (FD).
Assim, uma palavra não tem um sentido próprio que esteja vinculado
a sua literalida- de. Esses domínios de pensamento se constituem sócio-
historicamente, sob a forma de pontos de estabilização que
produzem o sujeito, somado àquilo que lhes é dado ver, fazer
ou temer.
A segunda tese proposta pelo analista de discurso diz que toda
FD dissimula, pela transparência do sentido que nela se constitui, a
sua dependência ao “todo complexo dominante” emaranhado no
complexo das formações ideológicas. Ele chama isso de
Interdiscurso, que nada mais é que um discurso formulado em cima
de um discurso anterior, caracterizando-o, assim, como a
memória discursiva.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

209
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Logo, o Interdiscurso se divide em dois elementos: o pré-


construído (a ideia universal sobre algo) e a articulação, que
determina a dominação da forma sujeito. Já o Intradiscurso, ao
pensarmos o discurso como uma teia a ser tecida, seria o fio do
discurso de um sujeito, incorporando a possibilidade de substituição
dos elementos. O que está em evidência no Intradiscurso é a formação
de um discurso a partir de uma realidade presente. Vale destacar que
o discurso de e o discurso sobre relacionam- se à memória e
diferenciam-se do discurso relacionado à origem, como dizeres que
vêm de algum lugar (de) ou de algum assunto (sobre), que segundo
Orlandi (1990, p.40), funciona como uma modalidade discursiva que
institucionaliza os sentidos.
Para Orlandi (1990, p. 42), um discurso é constituído pela sua
exte- rioridade, a qual, por sua vez, relaciona-se às formações
discursivas. Tais relações são interligadas pelo interdiscurso, ou seja,
a memória discursiva, em razão do modo de funcionamento do
interdiscurso pelo pré-construído. Assim, o interdiscurso também é
um lugar de constituição de sentidos, que retorna ao intradiscurso
enquanto memória: o “já-dito”. Logo, todo discurso remete-nos à sua
relação com outros discursos e com as deter- minações próprias do
interdiscurso, pensado por três situações, sendo elas: a) natureza do
processo de sua produção; b) espaço; e c) tempo:

a) Essa natureza está – esse é o nosso princípio


desde o início de nossa reflexão em AD -, essa natureza
está na relação entre “paráfrase” e “polissemia”, o que em
outra linguagem se diz o “mesmo” e o “diferente” (o
“outro”). Agora não vendo mais, como víamos, em
primeiro plano, apenas a tensão entre esses dois
processos mas também a con-fusão entre eles. Confusos,
pois obscuros e transparentes, misturados ou combinados,
difusos ou dispersos. O “mesmo” e o “diferente” às vezes
não são passíveis de distinção no discurso.

b) O espaço em que se espraiam os sentidos é o


da multipli- cidade, da largueza mas também da truncação:
um sentido se desdobra em outro, em outros: ou se
emaranha no seu mesmo e dele não solta. Fica à deriva.
Se perde em si mesmo ou se multiplica.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

210
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

c)O tempo é o da fugacidade. O sentido não se deixa pegar.


Instável, errático. O sentido não dura. O que dura é o seu
“ar- cabouço”, a instituição que o fixa e o eterniza. Ele, no
entanto, se move em outros lugares. (ORLANDI, 1990,
P.43)

É necessário, além disso, saber que o discurso torna-se materiali-


dade, pois “é feito materialmente pela textualização, ou seja, o
discurso é colocado em texto” (DIAS DI RAIMO & FRACASSE-
STEFANIU, 2017, p. 42). Para Orlandi (2012), as materialidades
discursivas afetam o sujeito, independentemente das suas vontades: o
dizer não é uma pro- priedade exclusiva dele, visto que significa
tanto pela história quanto pela língua. Portanto, é impossível alcançar
uma resposta à indagação sobre “o que o sujeito quis dizer”, visto
que, para a análise discursiva esse movimento é impossível, mesmo
porque o que ele sabe não basta para se compreender os efeitos de
sentidos presentes no discurso:

O dizer não é propriedade particular. As palavras não são


só nossas. Elas significam pela história e pela língua. O
que é dito em outro lugar também significa nas “nossas”
palavras. O sujeito diz, pensa que sabe o que diz, mas não
tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os
sentidos se constituem nele. Por isso é inútil, do ponto de
vista discursivo, perguntar para o sujeito o que ele quis
dizer quando disse “x” (ilusão da entrevista in loco). O que
ele sabe não é suficiente para com- preendermos que
efeitos de sentido estão ali presentificados. (ORLANDI,
2012, p.32)

Junto a esses preceitos, a teoria psicanalítica lacaniana, que


será exposta a seguir, contribuirá para o entendimento das
regularidades em termos de produção de diversos efeitos de
sentido na poesia de Murilo, em especial a inscrição no discurso
religioso e/ou antropo- cêntrico que revestem as temáticas de
seus poemas mergulhados na insalubridade de seus requintes de
vanguarda, herdados do surrealis- mo e agrilhoado à métrica livre,
lição apreendida de seus precursores da semana de 1922.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

LACAN PELO OLHAR DE ŽIŽEK

Sabendo que Murilo Mendes se distingue de muitos poetas não ape-


nas pelo eterno paradoxo Cristianismo x Antropocentrismo, mas também
pelo seu forte apreço às artes de vanguarda, em especial ao Surrealismo,
a teoria psicanalítica lacaniana, em especial aquela fundamentada
no pilar fixado com a tríade simbólico/ imaginário/real de Lacan,
discutida por Slavoj Žižek, seria uma vertente válida para a análise
que ainda se seguirá no presente texto, principalmente pelas
elucidações a respeito do “grande outro”.
Consoante Žižek (2010, p.16), Lacan defendia que todo ser
falante é regido por uma constituição velada da realidade, composta
pela ordem simbólica, como se todos estivessem sendo
constantemente vigiados por essa “entidade”, nomeada “grande
outro”, a qual atuaria sempre no plano simbólico, um padrão de
comparação em que o homem poderia se “medir”: enquanto falamos
com outras pessoas, nunca agimos como indivíduos que se
comunicam com outras pessoas, pois o “grande outro” sempre
estará lá, velando por aquilo que fazemos.
Contudo, apesar de aparentar ter sua essência própria, como
uma deidade, o “grande outro” existe apenas à medida que as
pessoas creem que ele, de fato, existe. Por isso ele pode ser
personificado como aquilo que fornece o significado para a
existência de quem acredita nele, sendo real apenas se os individuos
passarem a agir de acordo com as suas pres- crições. Por essa razão,
é muitas vezes associado a uma ideologia, a um tipo de fé, a uma
causa capaz de inclinar o homem às suas normativas, por
consequência, tem caráter puramente virtual:

Apesar de todo o seu poder fundador, o grande Outro é


frágil, insubstancial, propriamente virtual, no sentido de
que seu status é o de um pressuposto subjetivo. Ele só
existe na medi- da em que sujeitos agem como se ele
existisse. Seus status é semelhante ao de uma causa
ideológica como Comunismo ou Nação: ele é a substância
dos indivíduos que se reconhecem nele, o fundamento de
toda a sua existência, o ponto de refe- rência que fornece
o horizonte supremo de significado, algo
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212
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

pelo qual esses indivíduos estão prontos a dar suas vidas;


no entanto, a única coisa que realmente existe são esses
indivíduos e suas atividades, de modo que essa substância é
real apenas na medida em que indivíduos acreditam nela e
agem de acordo com isso. (ŽIŽEK, 2010, p. 18)

Outro posicionamento fundamental da obra lacaniana se refere


ao chamado “gesto vazio”, considerado o nível elementar entre a
troca sim- bólica entre os indivíduos. Tal característica poderia ser
explicada como uma espécie de acordo entre cavalheiros, criado
com uma peculiaridade distinta: para não ser aceito por outra pessoa,
para ser rejeitado por aquele indivíduo a quem é oferecido:

Quando, após ser envolvido numa competição feroz com


meu melhor amigo por uma promoção de emprego, acabo
ganhando, a coisa adequada a fazer é oferecer-me para
abrir mão da pro- moção, de modo que ele a obtenha, e a
coisa adequada para ele fazer é rejeitar meu oferecimento –
desse modo, talvez, a nossa amizade possa ser salva. O que
temos aqui é troca simbólica em sua forma mais pura: um
gesto feito apenas para ser rejeitado. A mágica da troca
simbólica é que, embora no fim estejamos no início, há um
anho nítido para ambas as partes em seu pacto de
solidariedade. (ŽIŽEK, 2010, p. 21-22)

Porém, há um deslize claro se o “gesto vazio” for aceito pela


outra pessoa, pois ocorrerá um problema próprio da ordem social,
que desinte- grará as aparências daquela convivência entre os dois
sujeitos, trazendo à tona confirmações sobre a moral do outro
indivíduo que poderiam ser apenas dúvidas anteriormente. Isso,
para o teórico esloveno, define de maneira precisa e segura a figura
de um sociopata: o uso da linguagem por um sociopata é paradoxal
à noção corrente e sensata da linguagem vigente.

213
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

ESPANTO E ESTRANHAMENTO: O POETA QUE ATERRORIZA


OS ANALISTAS

Em relação ao poeta brasileiro Murilo Mendes, pode-se dizer


que o modernista ficou marcado pela ruptura à malha verbal, própria
de um verso. Suas poesias, desprovidas de uma forma lógica em
relação aos padrões vigentes, criam sua própria forma, que beira ao
surrealismo, com descrições responsáveis por causar espanto e
estranhamento a um primeiro olhar, mas, mesmo assim, providas de
inúmeros sentidos, pro- porcionados pelo ato da codificação
simbólica.
Antonio Candido, em seu caderno de análise literária, Na sala de
aula, discorre, no decorrer de toda a obra, que uma análise poética
deve acontecer em três níveis básicos, sendo eles o estrutural, o
alegórico e o simbólico. Assim, o nível estrutural se encarrega dos
prováveis sentidos constitutivos de um soneto, considerado a forma
perfeita da poesia, ou de um verso em prosa; o nível alegórico se
responsabiliza pelas figuras de linguagem e suas prováveis
significações; o último quesito, o nível simbólico, decodifica os
símbolos em sua espessa camada significativa.
Contudo, o mesmo crítico salienta que essa metodologia não se
aplica à poética de Murilo, pois o principal objeto dela é emanar
es- tranhamento para aqueles que a apreciam. Eagleton (2006, p.5)
aborda que o ato de “deformar” a linguagem comum, pelas maneiras
mais va- riadas e improváveis, objetiva causar a “desfamiliarização”
para que as percepções do objeto poético não sejam automatizadas,
pois, quem se incomoda pelo processo de estranhamento buscará
pelos sentidos que parecem obscuros e improváveis.
A partir disso, o movimento de compreensão da obra de
Murilo Mendes circunda a órbita de uma fórmula entendida como
máxima pelos modernistas brasileiros da primeira e da segunda
geração: divergência, ruptura e surpresa. Os elementos que a
compõem devem ocorrer de forma seriada, sempre nessa ordem, pois
o resultado final deverá sempre ser a surpresa do leitor que toma
conhecimento de um poema como os de Murilo. Candido afirma o
seguinte sobre tal método analítico:
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
214
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Seja um poema de Murilo Mendes, poeta que às vezes


pertur- ba o analista, porque não oferece uma superfície
fácil para o levantamento dos recursos usados [...]. Além
disso, é notório o efeito de surpresa, que desde muito é
visto como um dos fa- tores da constituição da linguagem
poética e pode ser expresso pela série: divergência ruptura
surpresa. A surpresa consiste na ocorrência de algo
inesperado, que o leitor não previa e lhe aparece fora da
expectativa possível, mas que graças a isso o introduz num
outro país da sensibilidade e do conhecimento. (CANDIDO,
2009, P.82-83)

Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira (2006,


p. 447) apresenta Murilo Mendes como um poeta que não anseia
destruir o real, mas multiplicá-lo por meio do elevado grau de
fantasia, aplicado às imagens cotidianas. Com isso, sua estética beira
o caos e só não é dominada por ele pela ordenação e recomposição
de sua imaginação surrealista. Por essa razão, mesmo sendo um poeta
que habita a duali- dade paradoxal entre ser cósmico e tematizar o
ser, manteve a sua ânsia libertária fiel ao propósito modernista.
Assim como Antero de Quental, Murilo busca soluções sociais
para o mundo fragmentado pelos destroços das crises de políticas
fracassadas e revoluções cada vez mais intensas e, assim como o
líder do Realismo português elevou a Razão ao grau de deidade, o
brasileiro direcionou ao caos a sua adoração. A diferença entre os
dois poetas é que enquanto Antero buscou forças na filosofia, Murilo
se ocupou da linguagem usada pelo surrealismo para decretar o caos e
causar o espanto necessário para a transformação social
Bosi também afirma que Murilo Mendes é um dos poetas
que melhor remeteu o caráter plástico das imagens ao seu discurso
poético, por meio de um processo que envolvia o fator surrealista,
mesclado aos pensamentos oníricos, ou seja, próprios do sonho
que, quando agrupa- dos sintaticamente por justaposição, resultam
em uma poesia repleta de formas e imagens, centradas no fluxo
pré-consciente:
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
215
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Nessa caracterização reconhecem-se o processo futurista da


montagem e o processo surrealista da sequência onírica; a
combinação de ambos faz-se pelo traço comum,
associativo, que permite se justaponham sintática e
simbolicamente os dados da imaginação. [...] De um lado,
a plasticidade, isto é, o espaço poético cheio de formas e
imagens; de outro, a novidade, isto é, as relações insólitas
que emergem do fluxo pré-consciente. (BOSI, 2006, P.448)

O professor Massaud Moisés descreveu Murilo, na Revista Bra-


sileira da Academia Brasileira de Letras (2001, p. 13), como um
poeta complexo em razão da “densidade do pensamento, ou pela
engenhosidade ou tensão da linguagem, a ser possível a separação entre
as duas camadas do texto poético”. Assim, a marca maior da sua
poética é concentrada no contraste, em especial às questões referentes
ao paradoxo e à antinomia, bem como pelos termos cognatos e
polivalentes:

Razão assiste à crítica, por conseguinte, quando aponta o


con- traste como o eixo em torno do qual gravita a obra de
Murilo Mendes. Com efeito, é preciso recorrer à noção de
antinomia, paradoxo, polivalência e cognatos para
compreendê-la e avaliá-la devidamente. Se fosse o caso de
localizar a matriz da complexa malha de oposições que a
estrutura, diríamos que reside no conflito, jamais resolvido
e sempre renovado, entre forma e transparência, ou signo e
significado, expresso no cor- po dos poemas e no título de
um deles. (MOISÉS, 2001, P.14)

Ainda, para Moisés (2001, p. 16), o existencialismo do poeta


bra- sileiro em questão é voltado à questão essencialista pela “ideia
essencial de Deus”, mas de modo passional, que não abandona o
sensualismo do surrealismo e a poesia de verso livre da Primeira
Geração Modernista. Inclusive, a prevalência do verso livre faz
com que o poeta apele ao poema narrativo, suprindo a falta de
ritmo pela característica abstrata, ocultista, onírica, metafísica,
mítica, almejando o infinito pela transcen- dência surrealista e
teológica.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Murilo Mendes parece ser um tipo de poeta que nega o real a


despeito do imaginário, entretanto, o movimento de preferir o espaço
onírico pelo pincel do surrealismo e pela pena livre modernista fez
com que falsos adjetivos fossem agregados à sua poética, os quais
referenciam a obra do poeta como a própria esfinge de Édipo: decifra-
me ou devoro-te. Contudo, antes de tentar decifrar seus versos, o
leitor precisa mergulhar em novos ambientes criados pelo eu-lírico e
se adaptar a eles, convertendo-os em símbolos próprios da
semântica do existencialismo próprio do ser.

MURILO NA SALA DE AULA: A CONTRIBUIÇÃO DA AD


PARA EVITAR A OBLITERAÇÃO DE SENTIDOS

Um dos grandes nomes da segunda geração de intelectuais que


conduziu o modernismo brasileiro, em 1930, Murilo Mendes fez uso
de uma poética que, consoante aos pensamentos do professor Bosi
(2006, P.447), traça uma linguagem que não se contamina da
apologética da modernidade, antes, busca uma ligação do homem com
a totalidade. A seguir, a análise considerará um recorte feito por meio
do poema “Exer- go”, tomado como materialidade discursiva.

EXERGO

Lacerado pelas palavras-bacantes


Visíveis tácteis audíveis
Orfeu
Impede mesmo assim a sua diáspora
Mantendo-lhes o nervo & a ságoma

Orfeu Orftu Orfele


Orfnós Orfvós Orfeles. (MENDES, 2014, p. 200)

O título desse breve poema já indica que a sua análise ocorrerá


de modo conflitante. A palavra “exergo” é usada, normalmente, para
desig- nar um espaço específico para escrever alguma coisa em
uma medalha, ou a própria escrita contida no objeto de metal.
Entretanto, seria muito simples e vago afirmar simplesmente isso
sobre tamanho signo, ainda
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

mais quando o poeta em questão é Murilo. A maioria dos dicionários


bra- sileiros, dentre eles o “Dicionário Houaiss da língua portuguesa”
(2009, P.856) e o “Dicionário etimológico da língua portuguesa”, de
autoria de Antenor Nascentes (1955, P.244), definem “exergo” como
“1. espaço em moedas ou medalhas destinado à gravação de data ou
de inscrição;
2. essa data ou inscrição; ETIM gr. eks ‘fora’+ gr.érgon ‘trabalho’.
É importante ressaltar a etimologia da palavra, proveniente de dois
termos gregos, sendo eles eks e érgon.
Contudo, se tomarmos essa palavra enquanto discurso, o
interdis- curso mostrar-se-á como uma interpelação de sentidos pela
memória, a partir da união dos dois termos provenientes do grego,
supracitados. Por exemplo, se eks e érgon forem unidos, a tradução
literal seria “fora do trabalho”. Assim, o primeiro sentido parece
atrelado ao fato de que uma medalha cunhada na Grécia Antiga era
entregue aos seus heróis, os quais, por sua vez, estavam “fora” de
qualquer outra atividade de trabalho “comum” daquela sociedade, tal
como o eu-lírico parece considerar-se em relação ao seu ofício
poético. Ademais, érgon foi cunhado por Aristóteles em sua “Política”
para se referir não apenas ao trabalho, mas também a todas as
atividades humanas, as quais determinariam uma pessoa de acordo
com a maneira com a qual seriam usadas, isso porque, assim como a
maioria dos signos helênicos da antiguidade, eks e érgon também
foram usados para determinar conceitos filosóficos:

Con respecto a la primera de estas categorías, el ergon


aparece en el vocabulario aristotélico como la actividad
característica de cada cosa, como la acción que le
corresponde por naturaleza. El ergon se relaciona a un acto,
sin embargo, nada manifiesta sobre el modo en que éste
ha de ser realizado. En ese sentido, un hombre podría
llevar a cabo su actividad de manera mala, o, al menos, no
excelentemente, y no por ello dejar de realizar su ergon.
Simultáneamente, pero a diferencia del ergon, aparece la idea
de que el bien de una cosa, cuya función es conocida,
depende de la calidad con que esa función sea desempeñada.
(BORISONIK, 2011, p. 102)
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Como dito anteriormente, o fim ou o resultado do trabalho de


uma pessoa podem variar de acordo com a forma pela qual o seu
trabalho foi desenvolvido e esse conceito foi abordado pelo
estagirita também para fazer referência ao trabalho de artistas. Logo, a
arte estaria condicionada, exclusivamente, ao modo com que o artista
iria optar para produzi-la, sendo ele definido por esse tipo de
trabalho. Isso é exemplificado pelo professor português António
Manuel Martins, nas seguintes colocações:

Aristóteles tenta definir melhor o conteúdo da felicidade


interrogando-se acerca da autêntica actividade do homem.
O conceito chave é o de ergon, convencionalmente
traduzido por «função». Assim, a função (ergon) de
qualquer coisa é a realização ou actualização das suas
possibilidades próprias. O fim ou bem de um artista reside
no produto do seu trabalho, na sua actividade. É essa a sua
função. (MARTINS, 1994, p. 185)

Assim, Murilo parece relacionar seu ofício de artista poético


como uma função para um fim ou para um bem específico. Logo,
para identificar qual seria esse fim, convém a análise dos versos do
poema em questão. Como na maioria de suas obras, Murilo faz uso
de versos livres, bem como de uma narrativa poética. Nela, tudo
começa com um estado do ser: “lacerado pelas palavras-bacantes” que,
por sua vez, são visíveis, tácteis e audíveis. Na sequência, há a
identificação do sujeito: Orfeu. Logo, é possível afirmar que “Orfeu
foi lacerado pelas palavras-bacantes, que são visíveis, tácteis e
audíveis”.
Há, nessa representação, uma rememoração discursiva explícita de
duas entidades gregas, sendo elas o semideus Orfeu, filho de
Calíope e Apolo, bem como de Baco, forma romana dada ao deus
da embriaguez e da Tragédia Grega, Dionísio. Orfeu era
considerado o mais talentoso poeta/bardo de todos os tempos, capaz
de acalmar as mais terríveis bestas com o seu canto. Baco,
considerado o pai da Tragédia e criador do vinho, está associado à
libertinagem, à purgação, à embriaguez. Surge, desse modo, o
truncamento de sentidos: primeiramente representado por Orfeu,
identificado com sentidos de sobriedade, serenidade, sensatez. Depois,
contaminado pelas palavras de Baco, torna-se ébrio. Logo, a teoria
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
do

219
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

espaço referente à AD demostra que, pelo truncamento, um sentido


acaba desdobrando-se em outro.
O bardo torna-se sátiro à medida que as palavras-bacantes tornam-
se visíveis, tácteis e audíveis. Esses três adjetivos, conferidos às
palavras- bacantes, funcionam como um ciclo crescente de novos
sentidos. Por exemplo, a “palavra visível” está associada ao bardo,
haja vista que a palavra poética projeta imagens na mente de quem
as lê ou escuta, por meio de metáforas, remetendo a uma memória
discursiva. A “palavra táctil” é o meio termo, usado pelo eu-lírico
como um discurso interme- diador. Obviamente que, pelo sentido
literal, uma palavra não pode ser pega, logo, também é uma
metáfora para a materialidade da ebriedade proporcionada por ela.
Porém, essa materialidade momentânea causada pelo etilismo
pertence, também, ao sátiro. Por fim, a “palavra audível” é ligada
apenas ao sátiro, que tende a escutar as “vozes do ser introspectivo”
pelo efeito da alcoolemia: O Grande Outro rege uma orquestra de
para- doxos e contradições no sujeito discursivo, representado pelo
eu-lírico.
Todavia, o relato do poema afirma que Orfeu conseguiu deter a
sua própria diáspora, mantendo-lhes o “nervo e a ságoma”. Pela
presente proposta de análise, esse ato de impedir sua diáspora é,
justamente, um retorno do sujeito refletido em um sátiro, mas
impedido a tempo. Po- rém, não o suficiente, pois o nervo e a
ságoma báquicos prevaleceram. Ságoma é uma palavra italiana,
também de origem grega, e pode ser usada para descrever uma
forma, um padrão, uma medida a ser seguida, mas, também, é usada
para descrever pessoas jocosas e extravagantes, revelando, assim, que
ambos os termos são características de um sujeito báquico vigiado
tanto pelo Grande Outro que acaba sucumbindo a ele.
O fim do poema reafirma esse sentido por meio dos
neologismos “Orfeu, Orftu, Orfele, Ornós, Orfvós, Orfeles”,
desdobrando-se em, pelo menos, dois efeitos de sentido. O
primeiro é aquele que afirma que todos podem ser poetas como
Orfeu. Porém, quando o assunto é Murilo Mendes, esse tipo de
leitura se torna deveras rasa. O segundo, um pou- co mais
filosófico, permite dizer que o eu-lírico foi refletido em outras
pessoas do discurso que assumem a função de alteridade em
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
relação ao

220
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

sujeito, ao passo que se tornam como ele: “eu posso ser como
Orfeu, assim como tu, ele, nós, vós e eles”.
Os sentidos trabalhados até aqui parecem nunca se esgotar,
muito pelo contrário: a cada novo efeito de sentido proporcionado
pela análise, novas significações brotam do poema, discurso
mínimo, em relação ao entrelaçamento linguístico, porém, fonte
máxima de significação em relação aos sentidos e truncamentos
semânticos. Por mais original que um poeta como Murilo pareça ser,
seus versos “inéditos” são, a todo momento, denunciados pela
memória discursiva, pelo interdiscurso, aco- modado entre suas
metáforas insólitas e aspectos históricos/filosóficos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na tentativa de explicar o ser, o homem fundou mitos, totens,


rituais, comportamentos... Murilo Mendes foi um desses intelectuais
que não se contentou apenas com as explicações do senso comum
e buscou, em diversas culturas, respostas aos seus
questionamentos, os quais foram sanados, posteriormente, no
Cristianismo, ainda que de maneira não tão satisfatória, fato esse que o
levou aos inúmeros paradoxos da construção do seu ser.
Sobremaneira, amante da arte, o poeta brasileiro produziu discursos
que atentam a uma memória discursiva que apela à História e à
Filosofia. Em momento algum a tese defendida neste trabalho
procurou encerrar as significações dos sentidos no poema. Antes,
evidencia que um breve texto, tomado enquanto materialidade
discursiva, possui um sem fim de possibilidades analíticas. Ao aproximar
os pronomes pessoais do caso reto com as qualidades de Orfeu, Murilo
demonstra que cada pessoa poderá produzir discursos replenos de
sentido, ainda que ébrios de “palavras bacantes”, ou seja, palavras
que habitam o lado onírico da poesia.
Por essas razões, a Análise de Discurso desmascara o sentido
óbvio do texto. Não há nada original do ponto de vista da memória
discursiva; tudo parece ser um breve fragmento de um discurso
universal interpe- lado pelo interdiscurso. A poesia vista por essa
ótica, parece apenas
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

221
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

submeter-se à rememoração de epopeias, outros discursos, outras vidas,


outras ideologias que, unidas ao intradiscurso, celebram a
perpetuação imagética do homem.

REFERÊNCIAS

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intenacional de filosofia, 2011, Paraíba, vol. 2, n. 1, p. 99-114.
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Trad. Eni Orlandi [et all.]. 3 ed. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 1995.
ŽIŽEK, S. Como ler Lacan. Traduzido de “How To Read Lacan”. Rio de Janeiro:
Zahar, 2010. Traduzido por Maria Luiza de X. de A. Borges.

222
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS EM


DISCUSSÃO: UM OLHAR DISCURSIVO PARA O PROGRAMA
PIBID

Dalila Oliva de Lima Oliveira


Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)

Luciana Fracassi Stefaniu


Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)

O presente trabalho é fruto de nossas reflexões junto ao


Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID),
como coorde- nadoras do Subprojeto Letras-Português, da
Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), campus
Santa Cruz, em Guarapuava-PR, entre março de 2014 a fevereiro de
2018. A partir da vivência semanal dos acadêmicos bolsistas do
Curso de Letras-Português em quatro colégios estaduais de Ensino
Fundamental II e Médio da cidade, tivemos a opor- tunidade de
(re)pensar a prática docente e o processo de formação dos futuros
professores, pelo viés da Análise de Discurso de linha francesa, bem
como analisar o regulamento do programa por meio de dissertação de
Mestrado feita por uma de nós em 2017.
É importante destacarmos que o PIBID é um programa do
Minis- tério da Educação, gerenciado pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e no
período em que fomos coordenadoras, esteve regulamentado1 pela
Portaria no. 096, de 18 de julho de 2013, cuja base legal se estruturou
na Lei no. 9.394/1996, a Lei no. 12.796/2013 e a o Decreto
no.7.219/2010. Essa Portaria trouxe o
1 Atualmente, o PIBID é regulamentado pela Portaria CAPES no. 45, de 12 de março de 2018,
que revogou a Portaria no. 096 de 18 de julho de 2013.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
223
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

regulamento do PIBID na forma de anexos (I e II), dos quais


analisamos, para este momento, o capítulo I, do anexo I, que contempla
as disposições gerais do programa, ou seja, sua definição e
seus objetivos.
Assim sendo, o recorte aqui apresentado refere-se a gestos de
leitura feitos sobre o capítulo I desse regulamento, o qual nos
permitiu compre- ender as condições de produção do programa e os
efeitos de sentido que ele mobiliza no cenário da formação docente
nas universidades brasi- leiras. De início, pontuamos que
compreender a formação do professor sob um olhar discursivo
demanda ser consequente com uma visão na qual o sujeito-
professor não é tomado como o sujeito empírico, mas um professor
que se projeta imaginariamente, um sujeito que não é fonte nem origem
do dizer, mas que se identifica com um gesto de interpretação e não
outro, sujeito à língua na história.
Por meio desse novo percurso, observamos que o efeito de
falta, de lacuna a ser preenchida vem se legitimando ao longo da
história da educação brasileira, sendo, inclusive, objeto de pesquisas
acadêmicas nas universidades, de cursos de capacitação para
professores da educação básica, de temas de congressos nacionais e
internacionais e da proposição de programas governamentais como é
o caso do PIBID, de forma que vai se produzindo um consenso
quanto à necessidade de se encontrar uma saída para que haja
melhoria na qualidade da formação docente.
Numa breve incursão sobre a imagem do professor no
decorrer da segunda metade do século XX, Eckert-Hoff (2002, p.
49) afirma que “nos anos 70, evidenciou-se um período em que os
professores sofreram acusações de estarem contribuindo para a
reprodução das desigualdades sociais”, uma vez que, segundo
Alves (1986), os pro- gramas de formação de professores eram
calcados em referenciais teóricos, curriculares e metodológicos na
perspectiva estruturalista, cuja formação consistia em treinamento,
na qual o professor assumia o papel de mero aplicador de métodos,
sem ter efetivo “comprometi- mento com a prática de ensino
propriamente dita” (ECKERT-HOFF, 2002, p.49).
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Já a década de 1980 foi marcada pela multiplicação das


instâncias de controle dos professores, os quais foram reduzidos a
meros executores de tarefas prescritivas. De acordo com a autora,

a explosão escolar, ocorrida nessa década, trouxe para o


ensino uma massa de indivíduos sem as necessárias
habilitações aca- dêmicas e pedagógicas, o que gerou
desequilíbrios estruturais graves e suscitou a criação de
programas de profissionalização e formação em serviço. É
característico, desse período, o sur- gimento dos cursos de
treinamento, os quais tinham como pre- tensão habilitar o
professor, formado em técnicas e estratégias para
‘transmitir’ – da forma mais eficiente possível – os saberes
socialmente valorizados (ECKERT-HOFF, 2002, P.49-50).

O funcionamento desses programas reforçou uma forma de controle


do Estado na profissão docente, produzindo um efeito de
degradação dessa profissão. Ao entendermos o Estado como uma
instituição, arti- culamos as ponderações feitas por Mariani (1999,
p.51), ao afirmar que ela “é fruto de longos processos históricos
durante os quais ocorre a se- dimentação de determinados sentidos,
concomitantemente à legitimação de práticas ou condutas sociais”.
Tais práticas, ao se legitimarem e se institucionalizarem,
organizaram “direções de sentido e formas de agir no todo social”,
nos permitindo relacioná-las ao controle exercido pelo Estado
quanto à imagem do professor.
Avançando para a década de 1990, percebe-se a implantação
dos cursos de formação continuada, considerados como atualização,
substi- tuindo o caráter de treinamento por uma suposta autonomia
do professor e voltando-se para a relação entre professor e aluno.
Nesse contexto, de acordo com Coracini (1995), o professor passou
a ser considerado como “mediador do conhecimento e como sujeito
no processo de sua forma- ção” e a “formação passou a ser
questionada e não inculcada, ensinada” (ECKERT-HOFF, 2002,
p.50/51).
Ao adentramos no século XXI, com a globalização da economia
e o advento das novas tecnologias, entre outras transformações, a
formação do profissional qualificado nas diferentes áreas deve ser
repensada e os
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

225
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

moldes tradicionais de ensino revistos. Em decorrência desses


novos cenários, identificamos significativas mudanças nas
pesquisas sobre formação inicial e continuada de professores, seja
pelo viés político, pedagógico ou institucional.

DISCURSOS SOBRE A FORMAÇÃO/IDENTIDADE DE PROFESSOR E


POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS

Entre as muitas perspectivas que abordam o tema formação de


professor em nosso país, escolhemos o viés discursivo para
refletirmos sobre o modo de constituição dos discursos que circulam
sobre esse tema e os efeitos que têm sido produzidos em torno da
imagem do sujeito pro- fessor no cenário brasileiro ao longo da
história. Para tanto, começamos pela necessidade de se
compreender a forma sujeito em nosso contexto educacional. De
acordo com Orlandi (2010, p.11), “os sujeitos são seres simbólicos e
históricos, tendo, portanto, necessidade dos sentidos, para viverem
[...], além disso, os sentidos não estão na essência das palavras, na
sua ‘literalidade’”. Portanto, para que a língua produza sentido, é
preciso sua inscrição na história.
Segundo Orlandi (2012, P.48), há interpelação do indivíduo em
su- jeito pela ideologia, resultando daí o apagamento da inscrição da
língua na história, o que leva à produção de um efeito de evidência
do sentido e à impressão de o sujeito ser a origem do que diz. Em
relação a isso, torna-se pertinente trazermos as considerações de
Pêcheux e Fuchs (1997) sobre o sujeito e os dois esquecimentos que
o constituem.
Para os autores, o esquecimento número um é de natureza
incons- ciente, no sentido em que a ideologia é constitutivamente
inconsciente dela mesma, sendo, portanto, inacessível ao sujeito. Já no
esquecimento número dois, o sujeito “pode penetrar
conscientemente” fazendo um re- torno constante de seu discurso
sobre si, uma antecipação de seu efeito, e, por considerar a
existência de uma defasagem, introduz o discurso de um outro, além
de se corrigir para explicitar a si mesmo o que disse ou para
aprofundar “o que pensa” (PÊCHEUX e FUCHS, 1997, p.177). Em
outras palavras, citando as explicações de Orlandi (2012, p.35), o
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

esquecimento número dois é da ordem da enunciação e produz em


nós a impressão de realidade do pensamento, pois “ao falarmos, o
fazemos de uma maneira e não de outra”, esquecendo-nos que o
dizer poderia ser outro. Já o esquecimento número um é da ordem
do inconsciente e resulta da maneira como somos afetados pela
ideologia. Assim, “temos a ilusão de ser a origem do que dizemos
quando, na realidade, retomamos sentidos pré-existentes”.
Portanto, o sujeito da AD é um sujeito ideológico, ou seja, que
se assujeita à língua para compreender sentidos e produzir sentidos,
que inscreve seu dizer em uma formação discursiva, que se
reconhece com um modo de identificação, no entanto, esse sujeito
também é perpas- sado pelo inconsciente. Um sujeito que não tem
controle dos sentidos que produz e, portanto, não pode ser visto
como intencional, dono de seu dizer e de suas vontades, conforme
as discussões feitas no terreno da Psicanálise. Nesse campo,
também, por ser um sujeito do desejo, o sujeito da AD tem a ilusão
da completude, movimentando-se em busca de preencher a falta
que o constitui. Dessa forma, acreditamos, também, que a formação
do professor de língua portuguesa se constitui justamente em um
processo tenso entre o desejo de dominar o conteúdo que ensina e
um sentimento de falta.
Ainda, de acordo com Pêcheux, em Semântica e Discurso: uma
crítica à afirmação do óbvio (2009), a ideologia, que por meio da
interpelação-identificação designa o que é e o que um sujeito deve
ser. Assim, na primeira tese sobre esse assunto, o pesquisador afirma
que o sentido de uma palavra não existe por ele mesmo, visto que as
palavras mudam de sentido segundo as posições sustentadas por
aqueles que as empregam, adquirindo sentido com essas posições.
Surge, assim, uma Formação Discursiva (FD): uma palavra não tem
um sentido próprio atrelado à sua literalidade. A identidade do sujeito
é construída por fa- tores sócio-históricos, pelos quais lhe é “dado
ver, compreender, fazer, temer, esperar, etc” (p. 148).
De acordo com o analista de discurso supramencionado, toda
FD dissimula, pela transparência do sentido que nela se constitui, a
sua de-
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227
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

pendência ao “todo complexo dominante” emaranhado no complexo


das formações ideológicas, ou seja, o Interdiscurso, que nada mais
é que um discurso formulado em um discurso anterior,
caracterizando-o, assim, pela memória discursiva. O Interdiscurso
se divide em dois elementos: o pré-construído (a ideia universal
sobre algo) e a articulação, que de- termina a dominação da forma
sujeito.
Nesse caso, o sujeito professor de escolas públicas parece ser
consti- tuído pelas ideologias libertárias remanescentes, inspiradas no
dialogismo pregado por Paulo Freire, tendo como máxima
interdiscursos como “o professor, além de ensinar, também aprende
com seus alunos”, “o aluno não é um receptáculo de conhecimento”,
dentre muitas outras, as quais funcionam como atravessamentos aos
discursos literais construídos em torno da idealização docente, que o
projetam como o detentor de todo o conhecimento, o disciplinador, a
autoridade maior depois dos pais para uma criança etc. Obviamente,
tais discursos atravessados geram senti- mentos de contradição,
pois, sendo instruído e motivado a tomar mate- riais produzidos pelo
governo como as únicas fontes de conhecimento vigentes, o que o
condiciona e delimita um horizonte a ser seguido pelos discentes, é
interpelado pela ideologia da “pedagogia da libertação”, a qual visa
expandir o conhecimento pela troca de saberes.
É nessa perspectiva que trazemos a fala de alguns
pesquisadores que abordam a formação/identidade do professor
discursivamente, não como um indivíduo empírico, mas como um
sujeito professor que, ao produzir o seu dizer, é atravessado pelos
esquecimentos e não tem, por- tanto, controle do seu dizer e de
suas vontades.
Para Coracini (2003, p. 239), “nos últimos anos, os estudos da
lingua- gem, em particular a linguística aplicada, vêm se preocupando
de maneira mais profunda com a questão da identidade e das relações
entre os homens”. A autora traz reflexões sobre uma visão de
identidade do professor de língua portuguesa como categoria fixa,
tomada como indivíduo ou produto social. No entanto, para ela,
identidade é um “processo complexo e heterogêneo do qual só é
possível capturar momentos de identificação”, ou seja, constitui-se
um processo identitário (CORACINI, 2003, p 198).
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Nesse sentido, ela aponta para uma forma de impropriedade do


termo identidade, já que ele traz a conotação de uno, fixo, retorno ao
mesmo. Assim, a autora defende uma visão que se liga à
identificação (sempre passível de se deslocar) na qual o sujeito é visto
como descentrado, cli- vado, heterogêneo, perpassado por vozes que
provocam identificações de toda sorte” (CORACINI, 2003, p. 244).
Ao colocar em xeque uma visão de identidade como categoria fixa, a
autora defende justamente que a identidade do professor é construída
na linguagem e se dá a partir de processos identificatórios, nos quais
as diversas vozes que constituem o sujeito são marcadas “pela
dispersão, pela heterogeneidade, inteiramente vinculada ao momento
histórico-social e ideológico e atravessam, de forma conflituosa e
dissonante, a constituição identitária” do sujeito (CORACINI, 2003,
p. 113). Se esse sujeito é internamente múltiplo, heterogêneo,
clivado, barrado, não nos é possível falar de identidade como algo
acabado, estável e fixo.
Orlandi (1998, p. 204), ao refletir sobre identidade, afirma que
esta “é um movimento na história [...], isto é, ela não é homogênea e
se transforma”, não havendo, portanto, identidades fixas e categóricas.
A identidade imóvel é uma ilusão, pois, de um lado, é parte do
imaginário que nos garante uma unidade necessária nos processos
identitários, por outro lado, é ponto de ancoragem de preconceitos e
de processos de ex- clusão”. Em outras palavras, a relação entre
unidade e dispersão perpassa crucialmente o viés discursivo e as
reflexões feitas sobre identidade, uma vez que é necessário haver
unidade do sujeito, “para que, no movimento de sua identidade, ele se
desloque nas distintas posições: somos profes- sores na Universidade,
somos pais e mães em casa, [...] somos aquele(a) que dá aula etc.”
Ao falar de contradições que permeiam a identidade dos
professores, Coracini afirma que estes trazem uma identidade
paradoxal oscilando “entre representações utópicas, idealizadas, que
acabam por encobrir as dificuldades do profissional nos dias de hoje e
a realidade de um cotidia- no penoso, que o distancia cada vez mais
da imagem ideal de professor construída ao longo dos anos e das
gerações” e que chega até nós pela memória discursiva (CORACINI,
2003, p. 253-254).
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Nesse sentido, Eckert-Hoff (2015, p. 93) discute a respeito de


cur- sos de formação continuada de professores, que se pautam na
tentativa de preencher as falhas deixadas pela formação profissional
iniciada na universidade. O hiato entre teoria e prática fica ainda
mais difícil de transpor justamente porque tais cursos “atribuem ao
sujeito-professor uma identidade fixa, estável, montada sobre
binarismos – desconsiderando a complexidade que envolve o sujeito,
proveniente de sua história de vida
–, por isso, postulamos a heterogeneidade do sujeito e questionamos
a sua identidade”.
A autora defende que muito mais do que ensinar os professores
a ensinarem, ou, no caso do projeto PIBID, mais que fornecer um
co- nhecimento autorizado que é da “autoria” somente da
universidade, o objetivo da CAPES é o de propor que a formação de
professores (inicial e continuada) seja pautada em suas experiências,
suas histórias de vida, de forma a valorizar o conhecimento que
possuem, reconhecendo a heterogeneidade, a diferença que os
constituem e não podem, portanto, serem apagadas (ECKERT-
HOFF, 2015).
Furlan & Megid apontam que, nesse cenário de contraposição
es- colar entre duas partes específicas, sendo elas o professor e o
aluno, o discurso pedagógico, revestido de autoritarismo, representa
a ideologia defendida por uma instituição de ensino, e da imagem do
professor, que influenciaria diretamente as produções e os efeitos
de sentido dentro das salas de aula:

O discurso pedagógico (DP) seria caracterizado como um


discurso autoritário que se apresenta como próprio de uma
instituição, a escola, na qual ele tem origem e também para
a qual ele garante a estabilidade. Há, também, importantes
imagens que funcionam acerca do próprio discurso
pedagógico e da própria imagem do professor que
determinam a produção dos efeitos de sentido produzidos
em sala de aula. (FURLAN & MEGID, 2009, P.14)

Coracini também aponta que tais assujeitamentos estão imersos


sempre na dualidade vista entre o objetivo e o subjetivo: objetivo, pois o
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

professor é um sujeito que busca formular e ser formulado por


discursos científicos, que exponham o conhecimento, buscando pela
neutralida- de, sendo também subjetivos, percebidos em discursos
que reclamam a valorização do docente como profissional, em meio
às dificuldades enfrentadas diariamente na rede pública de ensino
em nosso país:

Assim, nas falas dos professores, percebem-se ecos de


vozes que se entrecruzam, provenientes de regiões de
conflito: imbricados na ideologia da globalização,
emergem desejos de emancipação, de liberdade e igualdade.
Sob uma aparente e ideal neutralidade, característica da
objetividade científica, emergem marcas que apontam para
a subjetividade. Sob a máscara de um discurso da
eficiência, emergem vozes outras (mas que constituem o
sujeito professor) que apontam para a (in)eficiência e a
(des)valorização do profissional. (CORA- CINI, 2006, P.18-
19)

Para Bolognini (2007, p.19), existem pelo menos dois


interdis- cursos que interpelam o sujeito professor, sendo eles,
primeiramente, o atravessamento ideológico advindo dos discursos de
seus professores no período escolar e da graduação, e o segundo
motivado pelas teorias que propõem uma forma de ensinar os seus
alunos. Com isso, o professor tem uma posição-sujeito tal como
descrito anteriormente, que tende a oscilar entre apregoar suas
ideologias, resumindo o horizonte de seus neófitos à sua própria FD,
assim como busca expandir o conhecimento pelas técnicas de
ensino.
Esse funcionamento contraditório de posições do sujeito
professor em práticas escolares e, também, na formulação e
implementação de políticas e de projetos educacionais é observado
por Silva (2006, p.133) como uma

reatualização de sentidos pelo funcionamento de um


discurso marcado por entraves e bloqueios, negações e
denegações que, de diferentes formas, limitam ou
inviabilizam as possi- bilidades de rupturas, de
transformações reais na distribuição do conhecimento.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

A autora enfatiza que, num contexto de expansão do


capitalismo internacional e dos temas a eles relacionados como
neoliberalismo, glo- balização, nacionalismo, entre outros,

é que as políticas públicas de educação e de língua são


propos- tas por diferentes setores da sociedade nacional em
aliança e articulação, em conflito e confronto com o estado
reformado e modernizado, que vai pouco a pouco,
dissociando-se da sociedade civil, condições e implicações
sociais, políticas e culturais impostas por uma economia
globalizada (SILVA, 2006, p. 133/134)

Ao abordar as políticas de ensino, Pfeiffer (2010, p.85)


compreende- as como “textualização de modos de interpelação dos
sujeitos pela admi- nistração jurídica do Estado”, considerando que
essas políticas

têm sido construídas a partir do lugar do consenso do


multicul- turalismo e de uma ética individualizante das
Instituições que fundam o Estado, que retiram o sujeito
da história e do social, produzindo uma deriva que Orlandi
chama de Liberal em que o real dos discursos desta
Formação Discursiva se desloca, por exemplo, da lei para
o crime.

Conforme a autora, a percepção do multiculturalismo e da ética


individualizante com lugares de produção de consenso que apagam
os sujeitos e dão visibilidade aos indivíduos e a grupos de
indivíduos, “no sentido de se trabalhar sempre com um referencial
pré-construído que produz o lugar da diferença, [...] a premissa parte
de um consenso de indivíduo ideal para abrir espaços para os
indivíduos ‘diversos’”, para al- cançar, novamente, em um segundo
momento, o ideal-indivíduo, ou seja, heterogeneiza-se para
homogeneizar. Assim sendo, ao compreendemos o programa PIBID
como uma política pública educacional, identificamos que, por meio
da formulação de seu regulamento, vai se construindo esse movimento
de sentidos entre a homogeneidade e a heterogeneidade na
construção do ideal da formação de professores.
Orlandi (2010, p.7), ao analisar as políticas urbanas, afirma que
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
232
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

elas estão fundamentadas na seguinte lógica consensual: “elas


visam à constituição de uma ‘maioria’ através do maior índice
possível de ‘participação’ dos ‘excluídos’ e das ‘minorias sociais’
nas diferentes instâncias da vida urbana, como as instituições
jurídicas, culturais, edu- cativas etc.”. No entanto, essa produção do
consenso se sustenta em um vínculo social que também produz a
segregação. Esse efeito, também, procuramos demonstrar ao longo
da análise do documento do PIBID.

UM GESTO DE ANÁLISE SOBRE AS CONDIÇÕES DE


PRODUÇÃO DO PIBID – DISPOSIÇÕES GERAIS E
OBJETIVOS

No que se refere às condições de produção nas quais emerge o


PI- BID, o Artigo 1º, do regulamento do programa, no anexo I da
referida Portaria, trouxe como base legal que constituiu o PIBID a
Lei no. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB), a Lei no. 12.796/2013, que
altera a Lei no 9.394, esta- belecendo as diretrizes e bases da
educação nacional, para dispor sobre a formação dos profissionais da
educação e o Decreto no. 7.219/2010 que dispôs sobre o programa.
Esse funcionamento jurídico do programa impõe um efeito no qual
todos são iguais perante a lei (universalização), o que apagaria a
contradição.
Em termos de condições históricas mais amplas, o programa
re- verbera sentidos ligados ao papel social das universidades em
produzir conhecimento e contribuir para o ensino na educação
básica, sentidos esses inscritos na memória do dizer na qual o
conhecimento deve ser uma ponte entre a academia e a
universidade. Além disso, nota-se que o texto retoma um já-dito sobre
a qualidade do ensino nas escolas com base em avaliações estatísticas
como o IDEB. O programa produz um efeito de preencher uma
lacuna, uma falta no sentido de qualidade, conheci- mentos a serem
construídos em termos de uma identidade profissional sem falhas
(uma competência calcada em um olhar individualizante, como se
todos pudessem de forma inequívoca atingir o mesmo nível de
padrão esperado).
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

233
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Consideramos que o programa PIBID, ao se consagrar como


uma política educacional voltada para a formação inicial de
professores cuja atuação volta-se ao ensino público, está em sintonia
com outros programas que também emergem nas condições atuais em
termos de formação inicial ou continuada, tais com o PDE2
(Programa de Formação Continuada), o Teia do Saber3, desenvolvido
no Estado de São Paulo, o programa PARFOR4, o Prodocência5, o
programa Novos Talentos6, entre outros.
Tendo em vista a institucionalização de um programa como
políti- ca pública que preconiza um diálogo da Universidade com a
educação básica, sob um efeito de evidência, o regulamento vai
colocar em cena representações de identidade do professor, neste
caso, em formação. Conforme Coracini (2007, p.219), as
representações que habitam o imaginário do sujeito-professor são
reveladoras de sua identidade. Para ela, identidade é um “processo
complexo e heterogêneo do qual só é possível capturar momentos de
identificação”, ou seja, constitui-se um processo identitário.
(CORACINI, 2003, p 198). Nesse sentido, ela aponta para uma
forma de impropriedade do termo identidade, já que ele produz o
sentido do uno, do fixo, do retorno ao mesmo, o que a leva a falar
em identificações inconscientes por serem construídas a partir do
outro e que, ao provocarem reações, estão sempre em movimento e
em constante mutação (CORACINI, 2003, p.15). Partindo dessas
conside- rações, conduzimos nosso gesto de leitura refletindo sobre a
identidade do profissional que é projetada pelo programa PIBID, um
professor que precisa ser aperfeiçoado, conforme é regulamentado
pelo Art. 2º:
Art. 2º O Pibid é um programa da Coordenação de
Aperfei- çoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
que tem por
2 O PDE (Programa de Desenvolvimento Educacional) é um programa de formação
continuada oferecido pela Secretaria de Estado da Educação do Estado do Paraná – SEED,
desde o ano de 2007.
3 Programa de Formação Continuada Teia do Saber, promovido pela Secretaria Estadual de
Educação de São Paulo e realizado por meio de parcerias com Universidades.
4 Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica – PARFOR, implantado em
2009 em parceria com a CAPES.
5 O Programa de Consolidação das Licenciaturas, de formação inicial, financiado pela CAPES.
6 Programa Novos Talentos (Programa de Apoio a Projetos Extracurriculares: investindo em
novos talentos da rede de educação pública para inclusão social e desenvolvimento da
cultura científica) proporciona atividades extracurriculares para alunos e professores das
escolas pú- blicas, financiadas pela CAPES.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

234
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

finalidade fomentar a iniciação à docência, contribuindo


para o aperfeiçoamento da formação de docentes em nível
superior e para a melhoria da qualidade da educação
básica pública brasileira.

A partir da leitura desse artigo, compreendemos que o


programa PIBID fomenta a iniciação à docência e a melhoria da
educação básica pública brasileira e, para operacionalizar essa
formação inicial com mais qualidade, legitima-se a universidade
como um espaço autorizado a di- zer o que e como fazer, em
detrimento da escola, que é considerada tão somente como um
lugar, onde os resultados precisam ser mensurados/ quantificados
tendo como meta apresentar essa melhoria. Em outras palavras, de
acordo com Bolognini (2007, p.19), ao falar da divisão do
trabalho de produção de efeitos de sentido, retomando Pêcheux, “a
alguns caberia o papel de definir quais são os efeitos de sentido que
circulam como aceitáveis em uma sociedade, e a outros caberia
segui- los”. Dessa forma, o regulamento vai estabilizando os efeitos
de sentido que o constituem, enquanto representação do imaginário
governamental, materializado na forma de lei, conferindo, à
universidade, o direito de interpretar, e à escola, o direito de
repetir a interpretação.
Assim sendo, vai se colocando ao acadêmico, pelo fio do
discurso, que o conhecimento que irá propiciar esse
aperfeiçoamento no cenário educacional, vem da universidade, uma
vez que é essa instituição a res- ponsável por operacionalizar o
PIBID, e a escola seria apenas o espaço de aplicabilidade/execução
dos subprojetos, sentido reiterado pelo Art.3º:

Art. 3º Os projetos apoiados no âmbito do PIBID são


propos- tos por instituições de ensino superior (IES) e
desenvolvidos por grupos de licenciandos sob supervisão
de professores de educação básica e orientação de
professores das IES.

A instrução quanto ao modo de se operacionalizar o programa


vai distribuindo as funções que instituições e sujeitos devem
desempenhar e, ao mesmo tempo, apaga os sentidos conflitantes
que permeiam as relações entre a universidade e a escola, entre
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
professores das IES e da

235
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

educação básica, e o próprio espaço da escola com sua


historicidade, sua memória, sua heterogeneidade. Em outras
palavras, o programa é concebido como um instrumento destinado a
promover, à semelhança do discurso pedagógico, a
estabilização/harmonia entre esses espaços, a aproximação entre
universidade e escola, entretanto, historicamente, essas
contradições permanecem. Retomando as palavras de Orlandi
(2012, p.10), ao analisarmos o funcionamento do discurso do regulamen-
to do PIBID, encontramos um duplo jogo da memória: “o da
memória institucional que estabiliza, cristaliza, e, ao mesmo tempo,
o da memória constituída pelo esquecimento que é o que torna
possível o diferente, a ruptura, o outro”.
Em nossa análise, consideramos o documento como memória
institucional constitutiva do dizer governamental, ao buscar a qualida-
de da formação docente e, por extensão, dos cursos de licenciatura do
país; todavia, pelo viés do interdiscurso que sustenta a materialidade
do regulamento, sendo esta afetada pelo esquecimento (ORLANDI,
2012, P.34), outros sentidos não se apagam, como a segregação e os
limites demarcados entre escola e universidade.
De acordo com Orlandi (2003, p.15), na memória
institucionalizada (arquivo), “o dizer é documento, atestação de
sentidos, efeito de relação de forças”, ocorrendo, portanto, um efeito
de fechamento. Já no inter- discurso há o que se deve e se pode dizer
e também a possibilidade de se dizer o irrealizado, uma vez que ele
se estrutura pelo esquecimento, enquanto que o arquivo “é o que não
se esquece (ou o que não se deve esquecer)”. No interdiscurso, fala
uma voz sem nome e, no arquivo, fala a voz comum, a de todos
(embora dividida), e essa voz comum aproxima-se das reflexões
mobilizadas por Venturini (2009, P.85) sobre a memória e a história a
partir das considerações de Nora, mostrando que a história tem
vocação para o universal, no qual “há a voz de todos e a voz de
ninguém”.
Trazendo essas considerações para análise, compreendemos que
as prescrições estabelecidas para o programa funcionam como essa voz
comum, de todos, que leva à produção de um consenso quando se
produz
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
236
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

algo como “é preciso valorizar mais os professores, a educação


básica etc”. Ao mesmo tempo, num viés discursivo, sabemos que a
linguagem não é transparente, justamente por ser atravessada pelos
esquecimentos 1 e 2, e estes não são indiferentes em nosso material
de análise, uma vez que o modo da instância governamental se
inscrever, na língua e na história, abre para possíveis sentidos que
podem não ser os esperados pelo Ministério da Educação.
No efeito de ilusão de se poder dizer tudo, o sentido de
saturação vai se produzindo na materialidade do documento por meio
de regularidades como a repetição das formas verbais “incentivar”,
“contribuir”, “elevar” e “inserir” que reforçam a necessidade de
intervenção do Estado. Essa saturação pode ser identificada na leitura
da Seção II – Dos objetivos, no Art. 4º, em seus sete incisos.
Para refletirmos sobre esse efeito da repetição, recorremos a
Orlandi (2004), para quem a interpretação é feita entre a memória
institucional (arquivo) e os efeitos da memória (interdiscurso). No
arquivo, a repetição congela e, no interdiscurso, a repetição “é a
possibilidade de o sentido vir a ser outro, em que presença e ausência
se trabalham, paráfrase e polissemia se delimitam no movimento da
contradição entre o mesmo e o diferente” (ORLANDI, 2004, P.68).
Portanto, na paráfrase, temos a tentativa de
estabilização/saturação/controle dos sentidos, e, na polis- semia, temos
o deslocamento, o equívoco, o contraditório significando.
O inciso I “incentivar a formação de docentes em nível
superior para a educação básica” e o inciso II “contribuir para a
valorização do magistério” produzem um efeito de sentido que aponta
para uma falta, uma falha na “formação de professores” e na
“valorização do magisté- rio”, o que vem justificar a própria
existência do PIBID de uma forma naturalizada, ideologicamente,
em nossa formação social capitalista, na qual a educação está ligada a
um imaginário calcado num fazer prescri- tivo na busca de
resultados mensuráveis à semelhança de um sistema empresarial.
Contudo, do lugar de onde nos posicionamos, consideramos que a
educação é um processo e não um produto, como o intradiscurso do
documento vai sinalizando em suas diferentes seções.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
237
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

De acordo com Fedatto e Machado (2007, p.9), “a escola, como


espaço de possibilidade da relação professor-aluno-conhecimento,
constitui-se no e pelo confronto de sentidos”, portanto, o real da sala
de aula é permeado de heterogeneidade, de instabilidade, sendo um
espaço de litígio, de diferença, de polêmica, e, portanto, contrário a
essa prescrição disseminada nas/pelas políticas públicas que
projetam a fabricação de um consenso, cuja noção “tem sustentando
todo um processo discursivo quando se trata de políticas públicas
urbanas” (ORLANDI, 2010, p.6).
Ainda segundo a autora,

O consenso traz em si, e pelas suas definições no campo


das ciências sociais, a noção de unidade, e constitui a
base para se pensar os grupos humanos sem estacionar
na ideia de um amontoado de indivíduos. Quando se
pensa o consenso, se pensa a ligação que une a
sociedade. (ORLANDI, 2010, p.6)

Ao refletirmos sobre as políticas públicas, devemos considerar


a lógica consensual sobre a qual elas se sustentam que é a
obtenção de uma “maioria” por meio de maior “participação” dos
“excluídos” e das “minorias sociais” nos diferentes espaços sociais
de convívio. No caso do documento em análise, por um efeito de
evidência, o sentido de des- valorização do magistério vai sendo
reforçado em dois aspectos: em um deles, há a necessidade de
contribuição por meio do programa, a qual vem expressamente
demarcada, no inciso II, como um dos objetivos do PIBID; o outro é
que essa desvalorização, consensualmente cristalizada em nossa
formação social, aponta para a falta de interesse para a carreira docente,
sendo, portanto, necessário “incentivar a formação de docentes”. Essa
necessidade posta no/pelo documento pode ser percebida como
aceita por uma “maioria”, produzindo um consenso que se
materializa nos discursos que circulam diariamente nas diferentes
instâncias sociais, como as instituições educativas, tecnológicas,
culturais, jurídicas etc (ORLANDI, 2010, p.7).
Trazendo essas reflexões para a formulação do documento,
com- preendemos que, ao se enfatizar a necessidade de melhoria na
formação
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

238
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

de professores, ou os sujeitos envolvidos com o PIBID


(coordenadores, professores supervisores, pibidianos) se incluem
nas prescrições esta- belecidas pelo documento ou não “servem”
para preencher esse espaço disponibilizado pelo instrumento
jurídico que regula o funcionamento do PIBID. Há, portanto, uma
tensão entre os sentidos de integração e segregação mobilizados
no/pelo regulamento: ao mesmo tempo que o documento busca
integrar, por meio de uma estabilização dos sentidos, ele não
consegue apagar a heterogeneidade, a instabilidade, o confronto que
são constitutivos tanto da educação básica quanto da universidade.
Na disputa de sentidos entre o homogeneizar e o segregar, os
objeti- vos apresentados continuam enfatizando a falta de qualidade na
formação docente em vigor, porque o seu princípio é, justamente,
fomentar essa melhoria para a educação pública básica, por meio da
universidade, como podemos ler no inciso III:

III – elevar a qualidade da formação inicial de professores


nos cursos de licenciatura, promovendo a integração entre
educação superior e educação básica.

Neste inciso, realizamos dois gestos de análise: inicialmente,


se reitera o lugar que a universidade ocupa em relação à
“qualidade da formação inicial” que precisa ser elevada e está “sob
sua responsabi- lidade”, produzindo um efeito paradoxal ao
apontar a existência de falhas/faltas em seu próprio
funcionamento, ou seja, se o objetivo é elevar o que já vem sendo
feito no contexto universitário, é porque esse contexto não tem
propiciado o nível de qualidade esperado pela esfera
governamental. Na sequência, “promover a integração entre
educação superior e educação básica” faz ressoar novamente a
falta, a inexistên- cia de diálogo entre a universidade e a escola que,
historicamente, é marcada, por exemplo, nas dificuldades
encontradas nas situações de estágio da formação inicial.
Tais desencontros não são, entretanto, silenciados, tendo em
vista que o próprio documento não consegue conter o deslize dos
sentidos, considerando, além dos incisos já analisados, a
formulação do inciso IV:
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

239
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

IV – inserir os licenciandos no cotidiano de escolas da


rede pública de educação, proporcionando-lhes
oportunidades de criação e participação em experiências
metodológicas, tecno- lógicas e práticas docentes de caráter
inovador e interdiscipli- nar que busquem a superação de
problemas identificados no processo de ensino
aprendizagem.

Ao mencionar a necessidade de inserção dos licenciandos no


espaço escolar, reforça-se o efeito de distanciamento entre a escola
e a univer- sidade, que é naturalizado por um trabalho da ideologia
que mantém o status quo de cada instituição, no qual as posições não
se alteram, no sentido de que à primeira cabe
interpretar/receber/cumprir/executar o que é determinado pela
segunda e, antes disso, formulado pela instância governamental, por
meio de formação discursiva (FD) jurídica, com leis, regulamentos,
regimentos que legitimam as políticas públicas e, neste caso, o
PIBID.
Um outro gesto de leitura possível refere-se ao fato de que, ao
ser inserido na escola, o acadêmico terá “oportunidade de criação e
partici- pação em experiências metodológicas, tecnológicas e práticas
docentes de caráter inovador e interdisciplinar”. Nesse momento,
observamos que é conferida à escola uma responsabilidade de
efetivamente ser o lugar do “novo” e do “tecnológico”, quando há,
nas condições de produção da escola, uma falta latente quanto a
laboratórios de informática ou qual- quer outro recurso tecnológico,
seja por falta de verbas governamentais, ou mesmo falta de
capacitação para um uso efetivo das tecnologias no contexto
escolar.
Ora, a partir das observações realizadas em sala de aula, tais
anseios mostram-se ineficazes, em primeiro lugar pela precariedade de
aparatos tecnológicos, como a “TV pen drive”, constantemente em
manutenção, e os laboratórios de informática conglomerados de
inacessibilidade, até à falta de conhecimento e disposição dos
professores para a imersão em “novas estratégias” pedagógicas, regidas
pela tecnologia. O funcionamen- to do interdiscurso tecnológico, como
uma forma de facilitar o ensino, em destaque na formulação do
inciso, busca conferir autonomia aos
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

240
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

alunos e a seus professores, contudo tal independência se mostra, antes,


ser fruto de prescrições metodológicas idealizadas no/pelo
documento.
Indo para o trecho final do inciso, é interessante (re)pensarmos
os sentidos que vão se constituindo em torno da prática escolar,
uma vez que o conhecimento produzido na escola, ideologicamente,
não é tido como legitimado porque é prático, mas, no/pelo PIBID
busca-se um deslocamento nesse efeito e, concomitantemente, atribui-
se ao professor da educação básica o encargo de “mostrar” essa
prática como requisito para que haja uma melhor formação inicial
dos licenciandos e, com isso, se propicie a “superação de
problemas identificados no processo de ensino-aprendizagem”.
Cabe aqui nos perguntarmos pelos sentidos que o termo “processo”
produz no texto governamental, uma vez que, como já dissemos
anteriormente, na perspectiva discursiva, tomamos a educação como
um processo, no entanto, não parece haver coincidência de sentidos
entre a formulação “processo de ensino-aprendizagem” tão
cristalizada/saturada em diferentes arquivos (memórias
institucionais) que circulam nos livros, nos documentos oficiais,
nos manuais, nos regulamentos, nas diretrizes, entre outros,
em nosso país.
Com esse funcionamento prescritivo, há uma efeito de
imposição de normas/regras/tarefas que os sujeitos professores e,
também, a escola devem executar, já que ocupam um uma posição
“de fragilidade”, por serem muitas vezes colocados como a-
históricos, vazios, despresti- giados, e, agora, no/pelo PIBID, serão
protagonistas das melhorias esperadas pelo Estado, uma vez que
estão “instrumentalizados”, pela universidade, para fazerem o
programa funcionar. Por esse entendimen- to, consideramos que, se há
“problemas”, há culpados e esses mesmos culpados são
convocados para resolver a situação de conflito/falta. O governo
silencia, portanto, sua (não)participação/responsabilidade, uma vez que
está legitimado pela posição que ocupa como autoridade que legisla
sobre o que cada instituição (universidade e escola) deve assumir
nesse “processo de ensino-aprendizagem”, calcado em um
imaginário no qual educação é “fazer” para se alcançar resultados e
metas. Esses sentidos vão se (re)construindo na textualidade dos
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
objetivos, como é o caso do inciso V:

241
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

V– incentivar escolas públicas de educação básica,


mobilizan- do seus professores como co-formadores dos
futuros docentes e tornando-as protagonistas nos processos
de formação inicial para o magistério.

Nesse objetivo, atribui-se às universidades o ato de incentivar


as escolas públicas e mobilizar os professores da educação básica, de
modo que eles assumam a função também de formadores dos
licenciandos e, além disso, promovam a imagem de protagonista
para a escola pública no tocante à formação inicial dos acadêmicos.
Assim, as ações postas nos objetivos do documento produzem o
efeito de dividir a tarefa entre a escola e a universidade, ou seja,
esta última sabe o quê e o como fazer, e por isso vai ensinar à
escola para que seus professores se tornem “co- formadores” e
“protagonistas nos processos de formação inicial para o magistério”,
produzindo, assim, um efeito de deslocamento benéfico da
universidade para a escola, na formação de professores.
A posição conferida a esse professor produz um efeito de
“salvador da pátria”, ao mesmo tempo em que o MEC/Governo
Federal já fez a sua parte ao produzir o regulamento. Esse
funcionamento nos remete às reflexões trazidas por Furlan e Megid
(2009, p. 9), quando analisam as posições ocupadas pelos sujeitos
envolvidos no processo de ensino- aprendizagem e o controle
exercido pelas Instituições, uma vez que estas são “pensadas como
o resultado de uma história”, a partir de suas relações com a
memória e a ideologia, produzindo “práticas que, aos poucos, vão se
naturalizando, ou seja, passamos a vê-las como naturais e que
determinam os discursos dos sujeitos que a elas se filiam” (FUR-
LAN; MEGID, 2009, p.13). Nesse sentido, as prescrições trazidas
pelo regulamento do PIBID soam com naturalidade nas diferentes
instâncias quando determinam o que os sujeitos professores devem
fazer e, num movimento paradoxal, afirmam que eles devem ser “co-
formadores” e “protagonistas.
Um outro aspecto desse funcionamento paradoxal do
documento consiste na identidade que é projetada para esse
professor, afinal, quem é esse sujeito professor que não tem contribuído
para que os licenciandos
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

242
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

não fossem “protagonistas” na carreira do magistério, antes da existência


do PIBID? E mais, como esse sujeito professor pode ser esse co-
formador num cenário de desvalorização/desprestígio da profissão
docente? Temos aqui um jogo de sentidos quanto às formações
imaginárias em torno do sujeito professor: ao mesmo tempo em que
lhe é atribuída a imagem de protagonista, ou seja, aquele que irá
ocupar uma posição central, de destaque na educação, não se apaga a
imagem de profissional desvalori- zado, desprestigiado, desqualificado
que o próprio documento rememora ao reiterar continuamente a
necessidade de elevar a qualidade docente.
São questões como essas que nos demandam a análise da
formação discursiva que sustenta o regulamento do programa, uma
vez que ele, sendo fruto de determinações histórico-ideológicas, vai
determinando/ dizendo o modo que esse sujeito professor deve
portar-se, e assim ga- rantindo a sua legitimidade/autoridade no
cenário educacional brasileiro, como é possível observar no
inciso VI:

VI– contribuir para a articulação entre teoria e prática


necessá- rias à formação dos docentes, elevando a qualidade
das ações acadêmicas nos cursos de licenciatura.

Os sentidos de negação e falta perpassam a formulação dos


objetivos do documento, uma vez que esse inciso aponta para a
necessidade de “articulação entre teoria e prática” e essa articulação
será mediada pelo PIBID. Essa dicotomia existente entre teoria e
prática ressoa, historica- mente, na formação discursiva
educacional, na medida que, de um lado, está a universidade como
espaço autorizado para a produção e circulação das teorias, e de outro,
a escola, como o lugar onde se deve colocar em prática o
conhecimento produzido na universidade, ou seja, não é o lugar da
produção de conhecimento, porém, pela memória institucionalizada
que sustenta o PIBID, a teoria e a prática deverão ser pensadas em
con- junto, de forma a estabilizar/equilibrar a relação que deve ser
construída entre esses dois espaços. Considerando as ponderações de
Furlan e Megid (2009, p.12) sobre o lugar da ciência em nossa
formação social, vemos que esta é “vista pela sociedade como um
lugar de poder e de legitimação de
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

243
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

dizeres”. Além disso, “seus métodos poucas vezes são questionados,


mas seus resultados são amplamente divulgados pelas mídias e
repercutem”. Nesse contexto, a informação científica que circula nas
instituições de ensino superior é um dizer legitimado, que não é
questionado no docu- mento, uma vez que, por um efeito de
evidência, se presume que o que falta é “apenas” a articulação entre
teoria e prática e, a partir do momento que isso acontecer, as
escolas e as IES terão condições de apresentar resultados, os quais,
necessariamente serão atestados e divulgados em diferentes canais de
comunicação. Essa contínua retomada da necessidade de
mudança/melhora é manifesta também no inciso VII:

VII– contribuir para que os estudantes de licenciatura se


insi- ram na cultura escolar do magistério, por meio da
apropriação e da reflexão sobre os instrumentos, saberes
e peculiaridades do trabalho docente.

Nesse último objetivo, o programa se coloca como


fomentador dessa inserção dos acadêmicos na “cultura escolar do
magistério”. As- sim sendo, os sentidos em funcionamento no
documento do PIBID ins- tauram projeções imaginárias tanto do
sujeito que assina o documento, o Presidente da Capes, se
colocando como porta-voz da universidade, e projetando imagens
da escola - como contexto no qual o projeto deva ser
implementado- e uma imagem do objeto do discurso, o projeto
PIBID. Esse jogo das imagens constitutivo do documento projeta
uma posição-sujeito que vai determinar o que pode/deve ser dito, ou
não, a partir do lugar que cada sujeito ocupa e das representações
que faz de si, do outro e do referente.
Em se tratando da cultura escolar do magistério, o documento
projeta a figura de um sujeito pragmático. Segundo Lagazzi (2003, p.
67), “as afir- mações de Pêcheux (1990) sobre a necessidade de um
sujeito pragmático moderno de estabilização do seu mundo”. Marcado,
consequentemente, por uma necessidade de homogeneidade lógica,
o documento do PIBID não se abre para o equívoco, ainda que o
programa esteja pautado em um diálogo entre Universidade e
escola.
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

244
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

O imaginário, no qual a universidade- lugar reconhecido pelo


sa- ber- é aquela que encaminha o aluno-professor à escola e, por
sua vez, a escola é o lugar no qual esse aluno, dotado de tais
teorias/estratégias, vai se movimentar no sentido de compreender
uma dada cultura, é tão eficaz que apaga justamente a relevância do
contexto escolar como lu- gar que possibilita ao aluno redimensionar
seu saber, deslocar a lógica teoria-prática e trabalhar num vai e
vem entre prática e teoria, entre teoria e prática.
Nessa perspectiva, deslocar a lógica teoria-prática seria (des)estabi-
lizar os sentidos sedimentados que colocam a universidade como aquela
que tem uma missão e um papel de “levar um saber”, posição
legitimada e reconhecida ideológica e historicamente, construída na
relação com a memória e com os sentidos de “receber/ser
preenchida por esse saber”, que estão relacionados à escola. Tal
redimensionamento de uma prática, na qual a universidade abre-se para
uma interlocução com a escola, seria fundamental para que o lugar
autorizado da Universidade fosse revisto: a escola também pode
contribuir com saberes para a universidade.
O que funciona, neste caso, se sustenta em uma relação de
poder/ saber da ciência que é vista na sociedade como lugar de
legitimação de dizeres. E essa imagem de universidade como lugar de
excelência, aquela que detém o saber e está autorizada para dizer
“como se deve fazer” é determinada, como já dissemos, ideológica e
historicamente. Portanto, a escola emerge como mera consumidora
de “teorias” e modelos que a Universidade busca “aplicar”, testar
na escola.
Novamente, o sentido de prescrição é mobilizado na
textualidade do documento, de forma a projetar um efeito de
homogeneidade quanto ao funcionamento da cultura escolar, mesmo
que não apague a heteroge- neidade que a constitui, uma vez que a
cultura de cada escola pode variar conforme suas condições de
produção. O mesmo gesto de interpretação contempla a questão dos
“instrumentos, saberes e peculiaridades do trabalho docente” que
são produzidos nos mais variados contextos em que as escolas estão
inseridas. Também, nesse momento, é possível com- preender que a
escola e o professor são colocados como alvos na função
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
245
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

de articular tanto a apropriação quanto a reflexão, apontados no


inciso para “elevar a qualidade da formação inicial de professores”,
já referida, incisivamente, no inciso III do mesmo artigo, projetando
melhoria na formação dos acadêmicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No gesto de análise aqui realizado, muitas são as inquietações


que nos perpassam e, justamente por isso, sabemos que o ato de
formular um fecho é apenas ilusório. Nessa ilusão necessária,
ponderamos que refletir sobre o funcionamento de um programa de
incentivo à docência e de melhoria e inovação da educação básica
envolve pensar justamente como se produz a relação entre
Conhecimento, Estado e Sociedade.
O PIBID como política de formação inicial e, ao mesmo
tempo voltada para uma melhoria do ensino, está ancorado em um
discurso jurídico/governamental que apaga o político e as
diferenças. O progra- ma parece atender de forma inequívoca a
todas as escolas, instituições e professores em formação.
Nesse entendimento, as palavras de Bressanin (2013, p.3)
corro- boram quando a autora afirma que “a prática consensual
posta pelas políticas públicas de ensino, por meio do discurso da
igualdade, coloca a divisão social como um reflexo de diferenças
individuais de capacidades cognitivas, apagando o próprio processo
que produz essa divisão”. Nesse sentido, é possível dizer, segundo a
autora, que a formação profissional deixa de ser um dever do Estado
e se transforma numa obrigação do indivíduo, no nosso caso, dos
pibidianos, dos professores supervisores, dos coordenadores.
Em termos de formulação do documento, observamos que esse
texto organiza os discursos de textos anteriores, como a própria
LDB, as portarias e decretos relacionados à implantação do
programa, havendo, portanto, uma orquestração dessas vozes. Nesse
contexto, a questão da constituição dos sentidos tem relação com a
memória do dizer, tanto na relação com um já-dito no qual a
educação precisa ser melhorada e
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
246
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

inovada, a docência incentivada, quanto no que se refere às formas como


o saber é distribuído na nossa sociedade.
O texto silencia outras práticas relacionadas à formação de
profes- sores que os colocam na prática da pesquisa, o que se
relaciona às condi- ções da formação acadêmica atuais nas quais os
estudantes estão, desde a graduação, em busca de programas de pós-
graduação ou interessados em tradução e não diretamente envolvidos
com a carreira de professor.
Assim, podemos notar o intercruzamento de dois domínios: o
pri- meiro ligado ao fomento financeiro (graças à destinação de
bolsas aos participantes do programa) e o segundo ligado à formação
profissional nas licenciaturas. Um movimento em que a formação
profissional necessite também do recurso, de verbas no sentido de
“financiar” a construção de uma prática profissional. De fato, as
condições sócio-históricas ligadas a um imaginário no qual o
professor é desprestigiado e desmotivado se relacionam ao
programa que tenta aparar tais arestas.
O documento discursiviza sentidos ligados à necessidade urgente
de uma formação profissional voltada para a escola pública (o que já
silen- cia a particular no bojo da reflexão). Em vez de o aluno da
licenciatura enveredar pela pesquisa e vida acadêmica, o programa
se posiciona no sentido de cumprir um papel de propiciar ao
professor em formação o exercício da prática docente em contextos
reais. Outrossim, o programa está atrelado a uma demanda na
educação: melhorar a qualidade. Podemos notar que a portaria coloca em
cena representações sobre a educação pú- blica brasileira como de baixa
qualidade, com índices aquém do esperado.
A partir desse entendimento, podemos afirmar que a pesquisa
aqui desenvolvida nos mostra que o documento contribui para a
produção de um efeito de univocidade das ações a serem
implementadas em institui- ções de todo o país. Assim as diferenças
são apagadas e as contradições silenciadas. As ações se pautam na
prescrição que deverá atingir os su- jeitos de forma igual. Há
diferenças entre regiões, instituições federais e estaduais,
universidades e institutos. Entretanto, compreendemos que o programa
PIBID não vai produzir essa homogeneidade esperada, uma vez que
ele é institucionalizado nas universidades e institutos na relação
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

247
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

com cada condição de produção específica. Seria o mesmo e o


diferente, pois há um funcionamento comum, mas há a
diferença.
Contudo, é pertinente pontuarmos que os gestos analíticos aqui
esboçados não esgotam os efeitos de sentido que a textualidade do
regulamento pode produzir. Assim sendo, entendemos que o intento
de refletir discursivamente sobre o documento foi alcançado, mas
não saturado e, por isso, está aberto para novos gestos de
interpretação para todos aqueles que, de uma maneira ou outra, são
interpelados a pensar sobre os sentidos ligados à formação de
professor que circulam no con- texto educacional brasileiro.

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VENTURINI, M. C. Imaginário urbano: espaço de rememoração/comemoração.
Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009. 280P.

250
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

SOBRE OS AUTORES

Luciana Cristina Ferreira Dias Di Raimo


Licenciada em Letras Português/Inglês pela Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho (UNESP - 1998), mestre em Letras (Área de con-
centração: Filologia e Linguística Portuguesa) pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP – 2001- Bolsista CAPES),
doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP
– 2009). Atualmente enquadra-se como Professor Associado A da
Universidade Estadual de Maringá (UEM), atuando no curso de Letras,
nas disciplinas de Oficina de leitura e produção de textos e Estágio
supervisionado em Língua Portuguesa. Além disso, é atualmente
coordenadora e Professora Permanente do Programa de Mestrado
Profissional em Letras (PROFLETRAS/UEM). Possui experiência na área
de Linguística e Linguística Aplicada, com ênfase em ensino de língua
materna, Análise de discurso, leitura discursiva, autoria e produção de
textos.
E-mail: diaslucian@yahoo.com.

Luciana Fracassi Stefaniu


Docente na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), em
Guarapuava, Paraná. Licenciada em Letras Português Inglês pela Faculdade
de Filosofia de Filosofia Ciências e Letras de Jandaia do Sul (1999).
Possui Especialização em Língua Portuguesa pela Universidade Estadual de
Londrina (2000), Mestrado em Estudos da Linguagem pela Universidade
Estadual de Londrina (2004), Doutorado em Estudos da Linguagem pela
Universidade Estadual de Londrina (2012) e Pós-doutorado em Linguística
no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de
Campinas (UNI- CAMP), Campinas (SP), (2017). Foi Coordenadora do
Subprojeto PIBID Letras
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Português de março de 2014 a fevereiro de 2018. Tem experiência na área


de Língua Portuguesa/Linguística, com ênfase nos estudos sobre sintaxe,
texto, discurso e ensino, em diferentes materialidades, na perspectiva da
Análise de Discurso de linha francesa e, também, no viés da Semântica da
Enunciação. E-mail: lufracasse@gmail.com.

Gustavo Haiden de Lacerda


Graduando no Curso de Letras Português e Inglês da Universidade Estadual
de Maringá (UEM) desde 2016. É bolsista do Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), de 2017 até o momento,
desenvolvendo pesquisa na área em Linguística, com aporte teórico da
Análise do Discurso de linha francesa, analisando principalmente
materialidades digitais.
E-mail: gustavo.haiden@gmail.com.

Paulo Cézar Czerevaty


Graduado em Letras-Português, 2017, pela Universidade Estadual do Centro-
Oeste. Mestrando em Letras, pela Universidade Estadual do Centro-
Oeste. Pesquisador na área da Linguística Aplicada, com ênfase nos
temas: ensino e aprendizagem de língua portuguesa, produção e revisão
textual, formação docente.
E-mail: pauloivai@hotmail.com.

Cristiane Malinoski Pianaro Angelo


Doutora em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Estadual de Maringá. Docente do Curso em Graduação em Letras
Português da Universidade Estadual do Centro-Oeste –
UNICENTRO/Campus de Irati e do Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Letras da UNICENTRO. Pesquisadora na área da Linguística
Aplicada, com ênfase nos temas: ensino e aprendizagem de língua
portuguesa, formação docente, dificuldades de aprendizagem.
E-mail: cristiane.mpa@gmail.com.

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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Michelly Luteski

Graduada em Letras Português pela Universidade Estadual do Centro-


Oeste (2010). Especialista em Arte, Educação e Terapia pela Faculdade
São Braz (2014). Atualmente cursa o Mestrado Profissional em Letras
(PROFLETRAS) pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) na área
de Teorias da Lingua- gem e Ensino (Linguística Aplicada). É professora
efetiva da disciplina de Língua Portuguesa na rede estadual de ensino,
atuando no Ensino Fundamental e Ensino Médio.
E-mail: michellyluteski@ hotmail.com.

Maristela Cury Sarian


Possui graduação em Letras - Tradutor pela Universidade Estadual
Paulista (UNESP), câmpus de São José do Rio Preto. Especialização em
Didática do Ensino Básico e Superior pelo Centro Universitário do
Norte Paulista (UNORP), de São José do Rio Preto. Mestrado em
Estudos Linguísticos pela UNESP/São José do Rio Preto e Doutorado em
Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É
lotada na Faculdade de Educação e Linguagem - FACEL na Universidade
do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Campus Universitário de Cáceres.
Na gestão da Universidade, atua como Coordenadora Substituta no
Programa de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS
UNEMAT/Cáceres). Na pesquisa, coordena a Linha 1 do Grupo de
Trabalho (GT) de Análise de Discurso (AD) da Associação Nacional de
Pesquisadores em Letras e Linguística (ANPOLL), ao lado de Claudia R.
C. Pfeiffer (LABEURB/UNICAMP) e Ana Cláudia Fernandes Ferreira (IEL/
UNICAMP). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em
Linguística, Língua Portuguesa e Estudos da Tradução.
E-mail: maristelasarian@unemat.br.

Vinicius da Silva Zacarias


Possui graduação em Letras (Português - Inglês) pela Faculdade
Estadual de Educação Ciências e Letras de Paranavaí -
UNESPAR/FAFIPA (2011), especialização em Ensino de Língua Inglesa e
uso de novas tecnologias pela Universidade Gama Filho - UGF (2013) e
mestrado profissional em Letras pela
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

Universidade Estadual de Maringá - UEM (2019). Tem experiência na


área de Letras, com ênfase no Ensino de Língua Portuguesa e Língua
Estrangeira Moderna - Inglês. Atualmente, é professor EBTT no Instituto
Federal de Edu- cação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul -
IFMS - Campus Coxim. E-mail: viniciuszaca@yahoo.com.br.

Cintia Bicudo
Mestra em Estudos Linguísticos pelo Programa de Pós-graduação em
Letras da Universidade Estadual de Maringá. Graduada em Letras pela
Universidade Es- tadual de Maringá (2016) e em Geografia pela Faculdade
Estadual de Ciências e Letras de Paranavaí (2008). Professora da rede
pública do Estado do Paraná. E-mail: cintia.bicudo@hotmail.com.

Aline Cristina Schinemann


Graduada em Letras Português e Literaturas da Língua Portuguesa pela
Uni- versidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) em 2018. Atuou
como bolsista no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência
(PIBID) entre 2015 e 2016 e no Programa Institucional de Apoio a
Inclusão Social Pesquisa e Extensão Universitária (PIBIS) entre 2016 e
2017. Sob orientação da Prof.ª Drª. Luciana Fracassi Stefaniu, o trabalho
resultante do período de participação no PIBIS, intitulado “O Silêncio
Sintático e o Ensino de Lín- gua Portuguesa pela Ótica das Teorias
Enunciativas” apresentado no XXVI Encontro Anual de Iniciação
Científica, que integrou o evento de extensão V SIEPE Direitos Humanos:
dialogando sobre a diversidade, conferiu-lhe menção honrosa da Pró-reitora
de Pesquisa e Pós-graduação.
E-mail: aline.schi.cris@gmail.com

Maria Cláudia Teixeira


Possui graduação em Letras Português e Suas Literaturas pela
Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) (2008);
Especialização em Ensino de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua
Portuguesa pela UNICENTRO (2010); Mestrado em Letras pela
UNICENTRO (2014). Atualmente é professo- ra colaboradora na
UNICENTRO e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística
pela UNICAMP. Tem experiência na área de Linguística, com
N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo
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N (os) MOVIMENTOS De UMA ARTICULAção: ANÁlise De DisCURSO e ENSINo

ênfase em Linguística, atuando principalmente nos seguintes temas: semântica;


enunciação; significação; dicionário e designação; análise de discurso.
E-mail: m_teixeira5@yahoo.com.br.

Wellington Stefaniu
Licenciado em Letras português e suas literaturas, pela Universidade
Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Doutorando em Letras, pela
Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestre em Letras pela
Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Tem experiência
como professor do ensino supe- rior. Colaborou como revisor da revista
Ação Midiática, do curso de Publicidade e Propaganda da Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Foi colaborador como corretor, junto ao
Governo Federal, nos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017. Atua nas áreas de
Literatura Comparada, Literaturas de Língua Portuguesa, com ên- fase em
Literatura Brasileira, e Literatura Portuguesa, Materialismo Lacaniano
aplicado à literatura, teorias da argumentação e sua afinidade com a
Linguística, argumentação jurídica e Análise de Discurso, atuando
principalmente nos seguin- tes temas: Cânone Nacional, Arcadismo,
Romantismo, Realismo e Modernismo brasileiros, Realismo português,
Retórica, Tópica e Poética aristotélica, cons- tituição do sujeito pela
memória discursiva, Teoria da Literatura e Formalismo Russo, Teorias do
Mito, Tragédia Grega, Literatura e jornalismo.
E-mail: WELLS8607@GMAIL.COM.

Dalila Oliva de Lima Oliveira


Docente na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), em
Guarapuava, Paraná. Licenciada em Letras Português Inglês pela mesma
uni- versidade (1975) e graduada em Psicologia pela Faculdade Guairacá
(2014). Especialização em Literatura Portuguesa e Brasileira (1976); em
Educação, Cultura e Sociedade (2003), em Ensino de Língua Portuguesa:
ensino e prática (2003). Mestrado em Letras pela Universidade Estadual do
Centro-Oeste – UNICENTRO (2017). Foi Coordenadora do Subprojeto
PIBID Letras Portu- guês entre março de 2014 a fevereiro de 2018. Possui
experiência na área de Língua Portuguesa e Estágio Supervisionado de
Língua Portuguesa, no curso de Letras-Português, nas modalidades
presencial e a distância, com ênfase nos estudos sobre sintaxe, texto,
discurso, ensino e formação de professores. E-mail:
olivadalila@yahoo.com.br.
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