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Introdução
1.Ancoragem teórico-metodológica
Com efeito, tal articulação entre três campos demanda que a leitura como prática seja
contemplada com base em uma visão de língua que não seja tratada como um sistema fechado
e imanente. Em uma abordagem de leitura discursiva, é preciso nos interrogar justamente
pela não transparência do dizer e mobilizarmos um deslocamento da categoria de sujeito
empírico para operarmos com a noção de um sujeito movido pelo desejo de completude, mas
que é pego na/pela língua- cometendo lapsos, atos, falhas, ambiguidades.
Pêcheux, ao ler Saussure, vai questionar uma abordagem meramente linguística do
texto, própria do estruturalismo. Um olhar que não contempla o sujeito, o social e o histórico
como constitutivos do funcionamento da linguagem. Assim, como consequência, Pêcheux
reformula a categoria língua/fala para ampliá-la à relação língua e discurso. Por conseguinte,
constrói-se um novo objeto que não é mais a língua, mas o discurso- que não pode ser tomado
como sinônimo de texto, pois, segundo Pêcheux (1997, p. 79), “é impossível analisar um
discurso como um texto, é necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis.” Tampouco
o discurso pode ser visto como a língua enquanto sistema fechado. Nesse sentido, “Michel
Pêcheux constitui o discurso como uma reformulação da fala saussuriana, desembaraçada de
suas implicações subjetivas” (MALDIDIER, 2003, p. 22).
Desse ponto de vista, se a noção de discurso implica a exterioridade, o conceito de
condições de produção é bastante produtivo. Para a Análise de Discurso, é preciso tomar as
condições sócio-históricas de um texto não de forma secundária, mas como constitutivas da
própria significação de um texto. Assim, no desenvolvimento da teoria do discurso, um ponto
nodal desde o início da AD e nos desdobramentos posteriores para Pêcheux diz respeito ao
fato de que:
o discurso não pode ser tomado como fala, um ato individual. O discurso
deve ser tomado como um conceito que não se confunde nem com o discurso
empírico sustentado por um sujeito, nem com o texto, um conceito que
estoura qualquer concepção comunicacional de linguagem (MALDIDIER,
2003, p.21).
Pêcheux (1997, p.83) enfatiza, a partir desse quadro, que a posição dos protagonistas
do discurso intervém a título de condições de produção e adverte que o “referente” (R, no
quadro acima, corresponde à situação na qual aparece o discurso), pertence igualmente elas.
produção. O autor destaca que se trata de um objeto imaginário a saber, do ponto de vista do
sujeito e não da realidade física.
Assim sendo, se a leitura é produzida, é preciso nos ater às suas condições de
produção, o que implica a situação, o contexto mais amplo e os leitores. Orlandi (1984, p. 8)
afirma que, na AD: “[...] a leitura é vista como produzida em condições determinadas, ou seja,
em condições sócio-históricas que devem ser levadas em conta”. Ainda segundo Orlandi,
segundo a perspectiva discursiva, todo texto resulta de uma infinidade de outros textos e se
constrói a partir de determinadas condições de produção. Neste caso, o estudo das condições
de produção comporta: a) os participantes na interação linguística (neste caso, autor e leitor),
considerados como sujeitos determinados social e ideologicamente, e b) o objeto discursivo.
Tanto a) como b) funcionam por meio de formações imaginárias, ou seja, são representados,
no próprio texto, os lugares que os interlocutores atribuem a si mesmos e aos outros, a
imagem que fazem do objeto e a imagem que ambos têm da língua.
Para Cazarin (2006, p.301), “pautar a prática da leitura e da interpretação a partir dessa
concepção nos leva a conceber essa prática como um processo de produção de sentidos, isto é,
como um gesto de interpretação do sujeito que lê/interpreta”.
Tendo em vista o sujeito-leitor, Orlandi (2001, p. 9) destaca que há um leitor virtual
inscrito em todo texto. Um leitor que é constituído no próprio ato da escrita. Dentro desse
imaginário discursivo, o leitor imaginário seria aquele para o qual o autor imagina (destina)
seu texto e para quem ele se dirige. Quando um leitor real, aquele que lê o texto, se apropria
desse texto, já encontra um leitor aí constituído com o qual ele tem de se relacionar
necessariamente. A relação básica que instaura o processo de leitura é a do jogo existente
entre o leitor virtual e o leitor real. O leitor, portanto, não interage com o texto (relação
sujeito/objeto), mas com outro(s) sujeito(s) (leitor virtual, autor, etc). A relação sempre se dá
entre pessoas, relação social, histórica, ainda que (ou porque) mediada por objetos (como o
texto).
Para um mesmo texto, Orlandi parte da premissa de que leituras podem ser possíveis
numa época e não em outra e podem variar com o modo como são considerados os diferentes
tipos de discurso. Já quanto à previsibilidade, a autora afirma que os sentidos têm sua história,
ou seja, existe sedimentação em determinadas condições de produção. Também, Orlandi
considera a necessidade de ter em conta a intertextualidade, ou seja, a relação com outros
textos, que foram lidos antes, nas mesmas ou em outras condições de produção. O leitor tem
sua história de leitura, um conjunto de leituras já feitas, que configuram, em parte, a
compreensibilidade de cada leitor específico, noção que para ela se aproxima do que seria a
“[...] capacidade de leitura” (ORLANDI, 2001, p.9).
Estamos considerando, conforme Orlandi (2001, p.11), nas práticas de leitura a
(im)possibilidade de pensar:
(i) um autor onipotente cujas intenções controlassem todo o processo de significação;
(ii) a transparência do texto que diria por si só uma significação;
(iii) um leitor onisciente que dominasse as múltiplas determinações dos sentidos que
jogam em um processo de leitura.
Assim sendo, a leitura, sob o viés da Análise de Discurso, rompe justamente com um
ideal de sujeito livre, fonte intencional de um dizer e de uma língua – passível de controle –
que se refira diretamente ao mundo dentro de condições de produção uniformes. De fato, é
preciso considerar a não transparência da língua, o descentramento do sujeito afetado-
atravessado – pelo inconsciente e interpelado pela ideologia e, também, uma noção de sentido
não literal, óbvio. Desse modo, ler um texto é saber que o sentido pode ser outro.
2.No entrelaçamento entre teoria e prática: as relações entre livro, animação e cordel
como exemplar de um percurso analítico
FIGURA 1. Capa do livro O corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo, edição de 2015.
Fonte: https://www.amazon.com.br/dp/B00QSG4EN4/ref=dp-kindle-redirect?
_encoding=UTF8&btkr=1 Acesso em: 14 dez. 2020
2.4 O Cordel
Diante de questões levantadas a partir do breve gesto analítico das capas e do encarte,
que fizemos até o momento, sugerimos duas perguntas de leitura, buscando dar destaque às
condições de produção das obras e aos efeitos de sentidos produzidos.
Atividade prática:
como o romance retorna e é deslocado. Para tanto, considere a cena final tomada na
relação entre o trágico de Victor Hugo, o happy end da Disney e o final errante da
cigana no cordel. De que maneira o final do livro, da animação e do cordel se
conversam e se distanciam. O desfecho de cada textualidade possibilita a identificação
de autorias distintas?
Como podemos notar, a mesma história do corcunda foi (re)contada de diferentes
maneiras. De acordo com sua identificação com a animação ou o cordel e com base
nas ilustrações que seguem (que retratam o momento em que o corcunda é aclamado
no Festival dos Tolos/Concurso do mais feio do Estado), opte por uma das sugestões e
discuta a respeito:
A) o que é específico na/da animação?
ou
B) o que é específico no/do cordel?
FIGURA 4. Cena do Corcunda sendo aclamado no Festival dos Tolos – animação da Disney.
Fonte: https://f5.folha.uol.com.br/voceviu/2019/04/disney-doa-us-5-milhoes-para-restaurar-catedral-de-
notre-dame.shtml. Acesso em: 19 dez. 2020.
Acreditamos que tais propostas de leitura possibilitarão uma espaço de abertura para
os sujeitos leitores materializarem as formações imaginárias que construíram sobre a autoria
do livro, da animação e do cordel, bem como sobre a imagens dos diferentes corcundas
projetadas em cada uma das obras.
Nesse momento, ao identificarem os pontos semelhantes e os pontos de ruptura entre
as materialidades, os sujeitos leitores terão a oportunidade, inclusive, de questionar o modo
como a sociedade reage ao belo, ao diferente, ao poder etc. Aqui, novamente, observamos um
ponto de aproximação com o texto da BNCC, quando esse afirma que “o exercício literário
inclui também a função de produzir certos níveis de reconhecimento, empatia e solidariedade”
(BRASIL, 2017, p.504), envolvendo um movimento de reinventar-se, questionar-se e
descobrir-se por parte dos alunos e alunas frente a situações tão instigantes como a vivida pelo
corcunda.
Considerações finais
BOLOGNINI, Carmen Zink (org.). A leitura no cinema. Campinas, SP; Mercado das Letras,
2011. (Série Discurso e Ensino)
BOLOGNINI, Carmen Zink (org.). O cinema na escola. Campinas, SP; Mercado das Letras,
2010. (Série Discurso e Ensino)
BOLOGNINI, Carmen Zink; PFEIFFER, Claudia.; LAGAZZI, Suzy.(orgs.) Práticas de
linguagem na escola. Campinas, SP; Mercado das Letras, 2009. (Série Discurso e Ensino)
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Curricular Comum. Ensino Fundamental e
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CAZARIN, Ercília Ana. A leitura: uma prática discursiva. Linguagem em (Dis)curso,
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CORACINI, Maria José (org.). O jogo discursivo na aula de leitura: língua materna e língua
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FERREIRA, M. C. L. O quadro atual da Análise do Discurso no Brasil. In: INDURSKY, F.;
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FERREIRA, Maria Cristina Leandro. (Orientadora); GODOY, Ana Boff de. [et al] (Bolsista
de Iniciação Científica). Glossário de termos do discurso: projeto de pesquisa: a aventura do
texto na perspectiva da teoria do discurso: a posição do leitor-autor (1997-2001). Porto
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HUGO, Vitor. O corcunda de Notre-Dame. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Zahar,
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Luiza Kátia. Análise de Discurso no Brasil: pensando o impensado sempre. Uma homenagem
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MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso: (re)ler Michel Pêcheux hoje. Tradução de
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O CORCUNDA de Notre Dame. Direção: Gary Trousdale, Kirk Wise. Produção: Walt
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PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69). Tradução de Eni P. Orlandi
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SÁ, João Gomes de. O corcunda de Notre-Dame em cordel. 2. ed. São Paulo: Nova
Alexandria, 2008.