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Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)

R934e Ruiz, Eliana Maria Severino Donaio (org).


Escrita como Prática Social (não) Escolar/ Organizadora: Eliana Maria Severino Donaio Ruiz; Prefácio
de Renilson José Menegassi.– 1. ed.– Campinas, SP : Pontes Editores, 2021.
il.; tabs.; quadros; fotografias.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-204-4.

1. Educação. 2. Letramento. 3. Linguística. 4. Prática Docente.


I. Título. II. Assunto. III. Ruiz, Eliana Maria Severino Donaio.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:

1. Educação. 370
2. Didática - Métodos de ensino instrução e estudo – Pedagogia. 371.3
3. Linguagem, Línguas – Estudo e ensino. 418.007
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PARECER E REVISÃO POR PARES


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2021- Impresso no Brasil
SUMÁRIO

PREFÁCIO.....................................................................................................................7
ESCREVER É VERBO DO PRESENTE
Renilson José Menegassi

APRESENTAÇÃO.........................................................................................................11
ESCRITA COMO PRÁTICA SOCIAL (NÃO) ESCOLAR
Eliana Maria Severino Donaio Ruiz

PARTE 1
O TRABALHO COM GÊNEROS DISCURSIVOS EM SITUAÇÃO DE ENSINO

PROJETO DE LETRAMENTO PARA O ENSINO DA ESCRITA: POSSIBILIDADE


DE TRABALHO ESCOLAR.........................................................................................19
Ana Paula da Silva

ESCRITA E CIDADANIA: UMA PRÁTICA PARA ALÉM DOS MUROS


DA ESCOLA..................................................................................................................41
Franciela Silva Zamariam

ENSINO DE PRODUÇÃO TEXTUAL VIA GÊNEROS DISCURSIVOS: UMA


PROPOSTA PARA O GUIA DE VIAGEM .................................................................67
Andressa Aparecida Lopes

LETRAMENTO E AGÊNCIA: A PRODUÇÃO COLABORATIVA DE UM BLOG


NO CURSO DE LETRAS..............................................................................................93
Bruna Carolini Barbosa

PARTE 2
O TRABALHO COM PRODUÇÕES ESCRITAS ESPECÍFICAS

O GÊNERO SUI GENERIS REDAÇÃO DE VESTIBULAR NO DISCURSO DE


SUJEITOS DA EDUCAÇÃO .......................................................................................119
Everton Lima Camargo
Eliana Maria Severino Donaio Ruiz
DISCURSOS SOBRE ESCRITA ACADÊMICA: LINGUISTAS APLICADOS E SEUS
ENUNCIADOS DE (TRANSFORM)AÇÕES...............................................................157
Alex Alves Egido

TRADUÇÃO E RETEXTUALIZAÇÃO NO ENSINO DA PRODUÇÃO ESCRITA


EM LÍNGUA MATERNA: POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES.......................................179
Lucas Mateus Giacometti de Freitas

PROVA PARANÁ: EFEITO RETROATIVO NAS PRÁTICAS DE ENSINO DE


PRODUÇÃO ESCRITA DA EDUCAÇÃO BÁSICA...................................................199
Cecília Gusson Santos

A REESCRITA NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR............................221


Carla Giovana de Campos

SOBRE OS AUTORES..................................................................................................239
Eliana Donaio Ruiz (org.)

PREFÁCIO

ESCREVER É VERBO DO PRESENTE

Escrever é verbo do tempo presente. Um autor escreveu um texto


que é referência atual a outro autor. Um autor escreve um texto que é
referência a outro autor. Mesmo no futuro, a escrita do texto já é refe-
rência para outros, pois é assim pensada antes de sua própria produção.
Portanto, escrever é verbo que se conjuga no presente.
Eliana Ruiz escreve no presente. Um de seus textos mais conhecidos,
Como se corrige redação na escola, se manifestou, se manifesta e se
manifestará vivo e presente nas pesquisas sobre o desenvolvimento da
produção textual escrita nas práticas sociais1, sejam escolares ou além
dela. Justamente essas práticas são descritas e analisadas nesta obra ora
apresentada por Ruiz, a partir da reunião de trabalhos produzidos no
Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da UEL junto a
seus alunos e orientandos. Nela, a escrita é o escopo de constituição de
cada indivíduo, que se manifesta em suas idiossincrasias sobre o mesmo
foco investigativo: a produção textual. É a escrita já escrita presente no
momento atual, pensada para o futuro; portanto, a escrita é do tempo
presente, passado e futuro.
No processo de produção de um texto acadêmico, como os artigos
aqui exarados, cada autor constrói sua escrita a partir de orientações
determinadas por um conjunto teórico que equaliza a pesquisa descrita,
inclusive em suas análises. É possível notar como a individualidade
1 RUIZ, Eliana Maria Severino Donaio. Como se corrige redação na escola. Campinas:
Mercado de Letras, 2001.

7
escrita como prática social (não) escolar

é presente em cada texto, em cada maneira como as teorias são lidas,


absorvidas e aproveitadas, em como as análises se consubstanciam por
elas e pelas próprias práticas individuais. Isto é a magia da produção
textual, a possibilidade de se constituir como sujeito social pela escrita,
com o auxílio e a orientação seguros de um par competente, neste caso,
Eliana Ruiz.
Na realidade, cada texto produzido por um indivíduo, seja na situa-
ção escolar ou não, é sempre um ganho pessoal e social. É ganho pessoal,
pois o indivíduo, ser único na sociedade – uma vez que sua reduplicação
completa ainda não é possível pela ciência –, é capaz de manifestar sua
vida pela produção textual, a permitir sua exposição pessoal à sociedade
de forma aceitável e aplaudida, como solicitam os exigentes padrões de
escrita atuais. Por sua vez, o ganho social é justamente permitir que seja
conhecido, que suas ideias sejam expostas de forma material aos demais
indivíduos, a construir uma corrente ininterrupta de comunicação, pois
cada um é um elo dessa corrente, e seus textos são a magia invisível que
permite que os elos se fortaleçam a aperfeiçoar a sociedade almejada.
Nesse sentido, cada texto exposto neste livro é um elo mágico que permite
a ligação de cada autor com a sociedade, a formar um todo que estude o
desenvolvimento da produção textual escrita como prática social escolar
e não escolar.
A obra apresenta um conjunto de artigos que enfocam três aspectos
escolhidos para sua constituição: 1) o trabalho com gêneros discursivos
em situação de ensino, como os textos de Silva ao tratar sobre a reporta-
gem, Zamariam sobre a carta argumentativa, Lopes com o guia de viagem
e Barbosa com o blog literário; 2) o trabalho com produções escritas
específicas, como o de Camargo e Ruiz sobre a redação do vestibular,
Egido com a escrita acadêmica e Freitas com a proposta de retextua-
lização em língua estrangeira; c) o trabalho analítico de documentos
oficiais, como o de Santos sobre a Prova Paraná e o de Campos com a
reescrita na BNCC. Todos com o princípio teórico-analítico de estudar
a produção textual escrita para ser compreendida em seus processos de
produção, desenvolvimento e avaliação como aparelho de comunicação
social, como ação que se conjuga no presente: escrever.

8
Eliana Donaio Ruiz (org.)

A leitura dos trabalhos que compõem o livro permite ampliar a


consciência sobre o processo árduo que se tem na escola e na sociedade
atual: o ensino da produção de textos escritos. Só por esta finalidade, a
obra é recomendada e seus autores são parabenizados pelo empenho e
pela dedicação expostos em cada produção. São textos que foram escritos,
que são lidos e serão utilizados como referências, todos com a noção de
que escrever é tempo do presente, pois seus conteúdos são atemporais e
necessários à compreensão do desenvolvimento da escrita como prática
social (não) escolar, como define o título do livro.

Renilson José Menegassi


Universidade Estadual de Maringá

9
Eliana Donaio Ruiz (org.)

APRESENTAÇÃO

ESCRITA COMO PRÁTICA SOCIAL (NÃO) ESCOLAR

A prática e o ensino-aprendizagem da produção de textos em con-


texto escolar tem sido objeto de análise dos estudos linguísticos desde a
década de 1970 do século XX, quando um grupo de linguistas é convi-
dado pela Fundação Carlos Chagas a dirigir seu olhar investigativo para
a redação de vestibular e publicar os resultados de suas pesquisas em
dois números específicos (19 e 23) do veículo da instituição, o periódico
Cadernos de Pesquisa (PIETRI, 2007)1.
Até então, a performance dos aprendizes da escrita era medida a
partir de critérios endógenos à língua, sob perspectivas fundamentadas
nos estudos tradicionais de linguagem, centrados na gramática normativa
e seu domínio por parte do sujeito. Como os resultados polêmicos dos
estudos realizados por aqueles pesquisadores, na perspectiva científica da
Linguística, colocavam na pauta da discussão acadêmica as condições de
produção da escrita, indicando a concorrência de fatores extralinguísticos
para o que chamavam de “defasagem” comunicativa – ou seja, a copar-
ticipação da própria escola e de seus agentes no processo –, verificou-se
um abalo no paradigma vigente, passando a escrita e seu ensino a serem,
a partir de então, vistos sob novos olhos.

1 PIETRI, Emerson de. A constituição da escrita escolar em objeto de análise dos estudos linguís-
ticos. Trabalhos em Linguística Aplicada. Campinas, v. 46, n. 2, p. 283-297. 2007. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-18132007000200010&script=sci_abstract.
Acesso em: 28 out. 2020.

11
escrita como prática social (não) escolar

Passados quarenta e cinquenta anos da data da publicação dos


números 19 e 23 desse periódico (CADERNOS, 1976; 1977)2, quando,
mais uma vez, assistimos desanimados aos baixos índices de capacida-
de leitora apresentados pelos nossos estudantes em avaliações externas
como o PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes)3,
por exemplo, é forçoso nos perguntarmos: Quais são os avanços mais
significativos conquistados pela pesquisa acadêmica relativamente a
essa pauta, nas últimas décadas? A universidade os tem absorvido, a
ponto de alterar, de fato, a rota da formação do futuro professor que vai
atuar com linguagem escrita em sala de aula? A escola, a seu turno, tem,
efetivamente, incorporado esses avanços em suas práticas de ensino?
E os sujeitos escreventes que se formam na escola básica e no ensino
médio e na universidade mostram-se, realmente, beneficiados por essas
conquistas através dos textos que produzem?
Estas são questões de difícil resposta, sem dúvida, para o que somen-
te uma pá de novas pesquisas, envolvendo várias instâncias e perspectivas
de estudo, e sujeitos pode oferecer. É nesse contexto, portanto, que se
insere a presente coletânea de trabalhos, produzidos, em sua maioria, a
propósito de discussões teórico-metodológicas realizadas no âmbito de
uma disciplina de pós-graduação de uma universidade pública focada
na temática da escrita e seu ensino-aprendizagem (Ensino de Produção
Escrita em Língua Materna), como uma contribuição ao estado da arte
herdado dessa virada pragmática.
Assim, o livro está organizado em nove capítulos. No primeiro,
intitulado Projeto de letramento para o ensino da escrita: possibilidade
de trabalho escolar, Ana Paula da Silva, com a concepção de escrita
enquanto prática social e de escola como lugar para aprendizagens
2 CADERNOS DE PESQUISA. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 19, 1976.
CADERNOS DE PESQUISA. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 23, 1977.
3 Segundo Ana Carla Bermúdez, “Brasil cai em ranking mundial [...] aparece entre as 20 iores
colocações em ranking internacional [...] Em leitura os dados do Brasil apresentam estagnação
nos últimos dez anos [...] conseguindo passar da 59ª posição para a 58ª posição, ficando atrás
de países como México e Romênia”. (Brasil cai em ranking mundial de ciências e matemática
e empaca em leitura. UOL Educação, São Paulo, 3 dez. 2019. Disponível em: https://educacao.
uol.com.br/noticias/2019/12/03/brasil-cai-em-ranking-mundial-de-ciencias-e-matematica-e-
empaca-em-leitura.htm. Acesso em: 28 out. 2020.

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

significativas, apresenta, pelo viés dos Novos Estudos do Letramento e


da concepção sócio-histórica de linguagem, uma proposta de trabalho
docente que alinha questões sociais de interesse dos estudantes com a
produção textual, visando interlocutores reais e circularidade das reali-
zações escritas.
Partindo das dificuldades encontradas na aprendizagem da produção
de textos, devido ao tradicional contato artificial do estudante com a
escrita na escola, o segundo capítulo, Escrita e cidadania: uma prática
para além dos muros da escola, de Franciela Zamariam, objetiva mostrar
como a produção escrita devidamente orientada e motivada pelo profes-
sor, via correção, pode se tornar uma genuína experiência de letramento
(no caso, com o gênero carta argumentativa) que vise a um interlocutor
e a um problema real, impactando positivamente o contexto social dos
alunos enquanto cidadãos que agem pela linguagem.
Sob a ótica dialógica bakhtiniana e à luz da pedagogia histórico-
crítica, Andressa Aparecida Lopes traz, no terceiro capítulo, que tem
como título Ensino de produção textual via gêneros discursivos: uma
proposta para o guia de viagem, uma possibilidade de trabalho específica
com esse gênero, que considere a prática social real de uso da língua.
Trata-se de pensar o ensino da produção textual de modo articulado aos
demais eixos de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, mobilizan-
do, principalmente, estratégias de análise linguística que permitam uma
escrita reflexiva e autônoma.
Com base nos Estudos do Letramento em uma perspectiva sociocul-
tural, o quarto capítulo, Letramento e agência: a produção colaborativa
de um blog no curso de Letras, de Bruna Carolini Barbosa, se propõe
a apresentar as etapas de um projeto de letramento desenvolvido numa
disciplina de leitura e produção de textos em um curso de Letras de uma
universidade pública. O trabalho é um recorte de uma pesquisa mais
ampla em nível de doutoramento.
Qual é a imagem que educadores têm sobre a redação de vesti-
bular? Com essa pergunta norteadora, no quinto capítulo, intitulado O
gênero sui generis Redação de Vestibular no discurso de sujeitos da

13
escrita como prática social (não) escolar

educação, Everton Lima Camargo e Eliana Maria Severino Donaio Ruiz


revisitam, em síntese e profundidade, algumas contribuições da pesquisa
de Camargo (2020)4, que investiga, sob o aporte teórico-metodológico
da Análise do Discurso de orientação francesa, o imaginário discursivo
de professores de educação básica e de corretores de redação de insti-
tuições de ensino superior sobre o fenômeno redação de vestibular. Os
autores problematizam a emergência, no discurso dos entrevistados, de
pré-construídos acerca da redação de vestibular, para entendê-la como
um gênero sui generis cujo habitat é o entre-lugar.
No sexto capítulo, assinado por Alex Alves Egido, Discursos sobre
escrita acadêmica: linguistas aplicados e seus enunciados de (trans-
form)ações, o autor relata um estudo documental inserido na área da
Linguística Aplicada Crítica, nos campos de ensino de escrita acadêmica
e de ética em pesquisa. Egido emprega a análise discursiva foucaultiana
para evidenciar que linguistas aplicados, ao enfocarem suas (transform)
ações, sejam cognitivas ou materiais, têm constituído um discurso de pro-
ximidade, que coexiste com outro, o qual advoga pela escrita acadêmica
por meio do distanciamento entre autor e objeto de estudo.
Percebendo a vitalidade das atividades de retextualização na prática
cotidiana de uso da língua e sua pertinência no ensino, Lucas Mateus
Giacometti de Freitas, no sétimo capítulo, Tradução e retextualização no
ensino da produção escrita em língua materna: possíveis aproximações,
busca transpor da área da Tradução uma ferramenta muito utilizada na
formação de tradutores e também no ensino de Línguas Estrangeiras, para
apresentá-la como instrumental para o ensino-aprendizagem da escrita
em Língua Materna. O autor fornece uma possível convergência entre
as duas áreas na tentativa de auxiliar metodologicamente professores e
alunos em sua jornada.
No oitavo capítulo, Prova Paraná: efeito retroativo nas práticas
de ensino de produção escrita da Educação Básica, a autora, Cecília
Gusson Santos, problematiza a forma como avaliações externas im-
4 CAMARGO, Everton Lima. O imaginário discursivo sobre a redação de vestibular. Orien-
tadora: Eliana Maria Severino Donaio Ruiz. 2020. 237f. Dissertação (Mestrado em Estudos
da Linguagem) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020.

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

pactam as práticas de ensino de língua portuguesa na escola; no caso


da Prova Paraná, com a dissociação entre as práticas sociais de uso da
linguagem, ao não contemplar a produção escrita em Língua Portuguesa
na Educação Básica, contrariando a perspectiva enunciativo-discursiva
de linguagem defendida pela BNCC (BRASIL, 2017)5. A pesquisadora
traz à luz discussões teóricas que conduzem a um repensar crítico sobre
os instrumentos utilizados em avaliações externas na Educação Básica,
suas finalidades e, principalmente, suas consequências para os processos
de ensino e aprendizagem.
Por fim, no nono capítulo, A reescrita na Base Nacional Comum
Curricular, Carla Giovana de Campos procura compreender, por meio de
pesquisa documental, como a atividade de reescrita escolar é apresentada
pelo mais recente documento oficial de ensino. Para isso, a autora discute
teoricamente o conceito de reescrita, bem como recupera a análise de
documentos oficiais anteriores, de modo a reiterar o consenso acerca
do texto prescritivo: um sistematizador de habilidades e competências
esperadas que, entretanto, não indica caminhos, nem mesmo discute a
reescrita e seu papel no ensino-aprendizagem da modalidade escrita da
língua.
Na expectativa de que os trabalhos que aqui comparecem enlaçados
sob o título de Escrita como prática social (não) escolar contribuam
com as reflexões e as discussões desse amplo campo de estudos em Lin-
guística Aplicada, deixamos nosso profundo agradecimento aos alunos
e orientandos do PPGEL (Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Linguagem) da UEL (Universidade Estadual de Londrina), hoje colegas
pesquisadores que gentilmente nos confiaram seus escritos para compor
esta coletânea.

Eliana Maria Severino Donaio Ruiz


Universidade Estadual de Londrina
Verão de 2021

5 BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017.

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PARTE 1

O TRABALHO COM GÊNEROS DISCURSIVOS


EM SITUAÇÃO DE ENSINO
Eliana Donaio Ruiz (org.)

PROJETO DE LETRAMENTO PARA O ENSINO DA ESCRITA:


POSSIBILIDADE DE TRABALHO ESCOLAR1

Ana Paula da Silva

INTRODUÇÃO

As mudanças ocorridas na concepção sobre a linguagem nas últi-


mas décadas, principalmente em decorrência de estudos referentes aos
postulados bakhtinianos, marcaram de forma significativa a passagem do
ensino de redação para o ensino de produção de textos. No campo escolar,
com base na concepção sócio-histórica da linguagem, o texto torna-se o
objeto central no processo de ensino-aprendizagem da língua materna,
já que, requerido e materializado em diferentes práticas sociais, repre-
senta a língua em movimento. Nessa perspectiva, o ensino de produção
textual, considerando os diferentes gêneros discursivos, deslocou-se do
trabalho apenas com a redação – gênero essencialmente escolar – para
o ensino de gêneros que circulam efetivamente nas diferentes esferas
de atividades humanas, destacando seu caráter social, como defendem
os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCN), de
1998 (BRASIL, 1998), e as Diretrizes Curriculares Estaduais do Paraná
(DCE), de 2008 (PARANÁ, 2008).
1 Trabalho apresentado à Profa. Dra. Eliana Maria Severino Donaio Ruiz na disciplina Ensino
de Produção Escrita em Língua Materna do Programa de Pós-graduação em Estudos da Lin-
guagem da Universidade Estadual de Londrina. Agradeço à professora Ruiz pelas incansáveis
leituras e colaboração fundamental no processo de escrita deste artigo. Agradeço também à
Profa. Dra. Ana Lúcia de Campos Almeida pela leitura do trabalho e considerações lapidares
no tocante à discussão teórica sobre os Novos Estudos do Letramento.

19
escrita como prática social (não) escolar

Aliado a esse cenário teórico e considerando a função social da


escola de oportunizar aos alunos uma formação crítica e cidadã voltada
às práticas sociais, o ensino de produção textual de diferentes gêneros
instrumentaliza o aluno para agir socialmente a partir do conhecimento
acerca dos modos de escrita e do acesso aos discursos que ela veicula.
Nesse sentido, produzi-los requer, para além das questões apenas formais,
compreensão da dimensão social, do interlocutor e da intencionalidade
de quem os escreve dentro de um contexto histórico e ideológico.
Em uma concepção tradicional de ensino, havia o entendimento de
texto apenas como produto acabado a partir de um tema, muitas vezes,
abstrato e sem relação com a prática social. A própria função do texto
limitava-se a um objeto para análise e avaliação do professor, funcionando
apenas em contexto escolar para aferição de questões atinentes, muitas
vezes, a um conceito de língua padrão. Nesse paradigma, não havia a
compreensão de que há um processo na elaboração de textos e que, ao
escrevê-los, o sujeito também se marca para agir por meio de sua escritura
(PÉCORA, 1992; GERALDI, 2012).
Tais reflexões destacam o trabalho árduo do professor de língua
materna, já que não basta a ele, dentro das novas concepções de lingua-
gem e de produção textual, saber regras para escrever e transmiti-las.
Ao tornar-se professor de língua materna, a tarefa docente se amplia de
saber escrever para aprender a como ensinar a produção escrita. Aliada
à preocupação com a escrita em situação de ensino, deve estar clara a
concepção de linguagem que subsidiará as atividades nesse processo. E
se já é, de certa forma, consensual a concepção de língua e linguagem
como interação, apontada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais
(BRASIL, 1998) e pelas Diretrizes Curriculares Estaduais (PARANÁ,
2008), documentos orientadores do ensino de língua portuguesa, ainda é
preciso compreender não mais apenas sobre o que fazer, mas, também,
como fazer os processos de ensino da escrita sob tal perspectiva.
Nesse cenário, ao compreender a linguagem como interação, como
considerar e utilizar a escrita que permeia certas ações sociais que existem
fora da escola, uma prática dada socialmente, para que o aluno exercite

20
Eliana Donaio Ruiz (org.)

tais ações, desenvolvendo sua cidadania? Quais são os modos, os meios,


formas de trabalho escolar que podem propiciar uma escrita legítima e
autêntica nos educandos, ampliando seu letramento?
Se diferentes práticas se realizam em diferentes esferas e foram
desenvolvidas pelas necessidades da vida em sociedade, isso significa
que é preciso diferentes letramentos para o exercício da cidadania dos
alunos. Quanto mais eles são inseridos nas práticas sociais permeadas
pela escrita, mais esses letramentos ampliam-se. Nesse sentido, o objetivo
deste artigo é apresentar uma proposta de projeto de letramento voltada
para a produção escrita pelo viés do letramento ideológico e crítico
(STREET, 2014; KLEIMAN, 1995).

1. CONCEPÇÕES DE ESCRITA E METODOLOGIAS DE ENSINO

Bonini (2002) já defendia que, embora houvesse abordagens de en-


sino de produção de escrita bem delimitadas no campo teórico, na prática
havia um descompasso entre tais linhas, desencadeado principalmente
por concepções prescritivistas de linguagem que permeavam fortemente
as ações pedagógicas nas atividades escolares e que se estendiam ao
trabalho com a produção escrita.
Pécora (1992), a partir de análises de redações produzidas por ves-
tibulandos e universitários, no final da década de 1970, já alertava que
o fracasso no ensino de produção textual não estava, necessariamente,
relacionado ao conhecimento de questões técnicas.

Constatava justamente o fracasso daquelas redações para se


instituírem como um espaço de intersubjetividade, como uma
forma de ação entre autor e leitor, como uma experiência de sig-
nificação. […] aquelas milhares de folhas de papel preenchidas à
mão, não tinham de seu senão a forma mais ou menos caprichosa
com que dispunham as letras umas atrás das outras. Tratava-se,
portanto, de uma falsa produção, de uma falsificação do processo
ativo de elaboração de um discurso capaz de preservar a indivi-
dualidade de seu sujeito e de renová-la, desdobrá-la, na leitura
de seus possíveis interlocutores (PÉCORA, 1992, p. 14-15).

21
escrita como prática social (não) escolar

Ao debruçar-se especificamente sobre problemas de elaboração de


orações nesses textos, o autor conclui que o problema da escrita não estava
no aluno, e, sim, na falha de um processo de alfabetização cujo responsável
é a instituição escolar, uma vez que “entre a capacidade de linguagem mais
geral e o desempenho efetivo de um sujeito na escrita existe um processo
escolar de aprendizado dessa modalidade” (PÉCORA, 1992, p. 25).
Dentre as questões levantadas, Pécora (1992) afirma que há uma
contradição no interior do próprio processo de aprendizado da escrita.
Tal processo “gera uma falsa condição de produção da modalidade, uma
falsa necessidade de expressão erudita que apenas dificulta a efetivação do
aprendizado” (PÉCORA, 1992, p. 55, grifo do autor). Em outras palavras,
o autor problematiza que há uma contradição histórica no aprendizado
da escrita que se refere à dificuldade em garantir o domínio das normas
da escrita aos alunos pelo processo escolar. Aliada a essa questão, há
também a restrição da escrita aos domínios da própria escola. Assim, “em
ambos os casos, esse processo escolar contraditório acaba operando uma
redução das virtuais relações entre sujeito e linguagem” (PÉCORA, 1992,
p. 55). Como resultado, a escola nem oferece aos alunos conhecimentos
significativos sobre as normas nem prepara o aluno para que possa agir,
fora do contexto escolar, por meio da escrita.
Nessa linha, o trabalho de Pécora (1992) e as reflexões decorrentes
dele impulsionaram análises no campo acadêmico sobre o ensino de
produção textual. O autor afirma que a origem dos problemas de escrita
por ele analisados não estava em nenhuma questão patológica ou do
produtor, mas sim na ausência de um processo de significação para essa
escrita pelo aluno. Ao criticar o fato de que as questões técnicas das
condições da escrita ainda recebem maior atenção no ensino, destaca que
tais problemas são gerados, na verdade, “pela concepção de linguagem e
de escrita adotada pela escola” (PÉCORA, 1992, p. 117). Acrescenta que

O acesso ao código, o aprendizado de umas quantas normas


que, em si, não oferece dificuldade alguma, era bloqueado pelo
desprezo, menos aristocrático que repressivo, em relação aos
usos de linguagem efetivamente produzidos e experimentados

22
Eliana Donaio Ruiz (org.)

pelos alunos. E, afinal, é nessa atividade ordinária, muito mais


do que nos programas oficiais, que está a linguagem – por-
tanto, é também aí que está o pressuposto de um processo de
conhecimento das especificidades da escrita.

Isso significa que legitimar as práticas letradas dos alunos, suas


ações realizadas por meio da escrita, pode configurar um trabalho escolar
em que as concepções de linguagem e escrita empreendidas considerem,
como defendido nos estudos bakhtinianos, a linguagem enquanto inte-
ração, como dialógica, social, histórica e ideológica. Nesse sentido, “o
efetivo domínio da escrita apenas pode se dar como um desdobramento
da práxis lingüística e jamais como uma mera assimilação de técnicas e
padrões” (PÉCORA, 1992, p. 117).
Esses problemas observados por Pécora (1992) estão atrelados a
concepções prescritivistas de língua, as quais serviram e servem de base
a alguns métodos de ensino de produção escrita que ainda permeiam
o ambiente escolar. Ampliando essa questão, Bonini (2002) apresenta
quatro metodologias do ensino de produção textual que se aproximam
e se distanciam dessa abordagem de língua: o método retórico-lógico,
o textual-comunicativo, o textual-psicolinguístico e o método interacio-
nista.
Para Bonini (2002), o método retórico-lógico corresponderia a
uma concepção de linguagem como expressão de pensamento, sendo
assim a escrita também um modo de organizá-lo. Tomando como base
a gramática tradicional, “é natural que os autores entendam a produção
textual como um substrato direto do raciocínio” (BONINI, 2002, p. 29).
Assim, como adverte Geraldi (2012, p. 41), ao se conceber a linguagem
– e a escrita – como tal, se poderia erroneamente afirmar que “pessoas
que não conseguem se expressar não pensam”. No campo escolar, a
adesão a tais concepções — ainda muito presentes — responsabiliza
exclusivamente o aluno pelas defasagens apresentadas nas modalidades
oral e escrita. Tal método, atrelado a essa concepção de linguagem, não
considera as condições de produção de texto, assim “a leitura não é vista
como parte do processo de escrita, o que apaga a existência de processos

23
escrita como prática social (não) escolar

intertextuais e torna a atuação sobre o texto algo restrito a atividades de


revisão formal de sua superfície” (PIETRI, 2010, p. 136), aproximando o
trabalho com a linguagem do que Street (2014) considera como modelo
autônomo de letramento2.
Ao se referir à abordagem textual-comunicativa, Bonini (2002)
apresenta que, embora os fundamentos didáticos sejam semelhantes aos
da perspectiva anterior, os mecanismos linguísticos que formam o texto
tornam-se o centro do trabalho. O trabalho com a técnica pretende des-
pertar no aluno seu papel de comunicador. A língua como instrumento
de comunicação, como código capaz de, segundo Geraldi (2012, p. 41),
“transmitir ao receptor certa mensagem”.
O terceiro método para o ensino da escrita apresentado por Bonini
(2002) é o textual-psicolinguístico. Nesse, leitura e escrita são compre-
endidas como processos psicolinguísticos complementares. Entendida
como processo, a escrita passa a ser trabalhada a partir de modelos, passo
a passo, para se chegar a um produto final. Como há preocupação com
a audiência, a concepção de escrita se aproxima dos aspectos interacio-
nais e, enquanto processo, a construção do texto é realizada por meio
de momentos de planejamento e revisão textual, com a intervenção do
professor. Por essa perspectiva de trabalho, a ideia de dom é substituída
por atividades de ajustamento durante o processo de elaboração textual.
Já o último método apresentado pelo autor é o interacionista. Tal
abordagem centra-se

[…] na instauração de um ambiente em que a produção textual


do aluno se constitua como uma autêntica produção de sentido,
mediante a execução de uma ação de linguagem. Dessa forma,
é essencial um ambiente propício para a interação, em que a
linguagem preencha a função mediadora entre duas posições
enunciativas, a de um sujeito enunciador e a de pelo menos
um sujeito enunciatário (BONINI, 2002, p. 34).

2 Street (2014) faz referência a dois modelos de letramento: o autônomo e o ideológico. O pri-
meiro, próximo a uma visão tradicional da linguagem, concebe o letramento como uma questão
técnica. Já o letramento ideológico considera a linguagem nas práticas sociais, permeada por
questões históricas, culturais e ideológicas.

24
Eliana Donaio Ruiz (org.)

A abordagem interacionista propõe ao aluno parâmetros para que


sua produção seja legítima, aproximando o uso da escrita das efetivas
práticas sociais, sem as quais o trabalho com a produção de texto perde-
ria autenticidade, voltando-se a uma concepção de linguagem enquanto
instrumento de comunicação, com as atividades de redigir apenas como
forma de utilizar a língua enquanto código para transmitir uma mensagem.
A perspectiva dos novos estudos do letramento aplicada ao ensino
visa justamente a ultrapassar as concepções prescritivistas e tradicionais
da língua, e considerar os aspectos sociais da língua escrita, aproximando-
se do método interacionista do ensino de produção textual (BONINI,
2002). Para Kleiman (2007, p. 1), a assunção de tal perspectiva implica
que a pergunta central do planejamento das aulas seja “quais os textos
significativos para o aluno e para sua comunidade?”, em vez de “qual
a sequência mais adequada de apresentação de conteúdos?”. Em outros
termos, os estudos do letramento assumem a leitura e a escrita como prá-
ticas discursivas, com funções múltiplas e indissociáveis dos contextos
em que se desenvolvem.
Nesse sentido, o trabalho sob a perspectiva do letramento crítico,
ou letramento ideológico, segundo Street (2014), contribui, dentro dos
projetos de letramento, para o desenvolvimento de uma escrita para a
ação social, como prática social. Dessa forma, a concepção subjacente
a este trabalho é a de linguagem como interação e se enquadra em uma
abordagem interacionista de processo de ensino da escrita.

2. POR QUE TRABALHAR A PARTIR DE PROJETOS DE LETRA-


MENTO É IMPORTANTE PARA O ENSINO DA ESCRITA?

Se a escola, de forma geral, busca fazer uma educação diferente e


transformadora, é preciso que se repense as formas de ensino. Geraldi
(2012) discute que há certo fracasso na escola que se estende para as
aulas de Língua Portuguesa pela forma, principalmente, de como elas
são praticadas. Embora haja muitos fatores externos que comprometem
a qualidade do ensino como um todo, o autor acredita que, “no interior
das contradições que se presentificam na prática efetiva da sala de aula,

25
escrita como prática social (não) escolar

poderemos buscar um espaço de atuação profissional em que se delineie


um fazer agora, na escola que temos, alguma coisa que nos aproxime da
escola que queremos” (GERALDI, 2012, p. 40).
Esta é uma possibilidade que se materializa no trabalho com proje-
tos de letramento. Marques e Kleiman (2019), com base nos postulados
freirianos de um ensino crítico e dialógico, consideram tais projetos
inovadores por se constituírem como uma alternativa didática que pos-
sibilita um trabalho contextualizado com a leitura e a escrita, no qual
se redimensiona “o modelo tradicional de ensino e sua forma bancária
de ensinar, em que se abstrai a problematização da prática pedagógica,
desconsiderando a realidade social do aluno” (MARQUES; KLEIMAN,
2019, p. 19). Relacionar os projetos de letramento a um ensino crítico da
língua materna é compreender que, “sob a ótica dos estudos de letramento,
a escrita pode ser vista como instrumento de poder e inclusão social”
(MARQUES; KLEIMAN, 2019, p. 20), à qual o aluno tem direito.
Assim como defende Freire (2018), Geraldi (2012, p. 40) também
acredita “que toda e qualquer metodologia de ensino articula uma ação
política – que envolve uma teoria de compreensão e interpretação da re-
alidade – com os mecanismos utilizados em sala de aula”. Tal ação deve
considerar como direito do aluno a apropriação dos recursos da língua
para que ele possa interagir e agir sobre o mundo, utilizando a escrita
como ferramenta de poder e instrumento de cidadania. Nesse sentido,
“o conhecimento do que a escrita tem de mais específico exige menos
cuidados técnicos, e mesmo pedagógicos, do que os de atualizar uma
concepção ética de linguagem” (PÉCORA, 1992, p. 118).
Marques (2016) defende também a assunção no campo escolar de
uma metodologia dialógica e crítica, por considerar que a formação do
professor e do aluno deva ter caráter político e engajamento nas ques-
tões sociais. Em linhas gerais, tais perspectivas somam-se ao modelo
ideológico de letramento defendido por Street (2014) que, para a autora,
favorece o pensamento crítico e reflexivo fundamental a uma formação
cidadã. Os projetos de letramento são um exemplo disso. Como um
modelo didático (TINOCO, 2008), tais projetos marcam determinada

26
Eliana Donaio Ruiz (org.)

ação política e visão da realidade do professor enquanto um agente de


letramento, ou seja, “um promotor das capacidades e recursos de seus
alunos e suas redes comunicativas para que participem das práticas so-
ciais de letramento, as práticas de uso da escrita situadas, das diversas
instituições” (KLEIMAN, 2006a, p. 8).
Por Projetos de Letramento entende-se

[…] um conjunto de atividades que se origina de um inte-


resse real na vida dos alunos e cuja realização envolve o uso
da escrita, isto é, a leitura de textos que, de fato, circulam
na sociedade e a produção de textos que serão lidos, em um
trabalho coletivo de alunos e professor, cada um segundo sua
capacidade. O projeto de letramento é uma prática social em
que a escrita é utilizada para atingir algum outro fim, que vai
além da mera aprendizagem da escrita (a aprendizagem dos
aspectos formais apenas), transformando objetivos circulares
como “escrever para aprender a escrever” e “ler para aprender
a ler” em ler e escrever para compreender e aprender aquilo
que for relevante para o desenvolvimento e a realização do
projeto (KLEIMAN, 2000, p. 238).

Nesse sentido, pode-se observar que, nos projetos de letramento, há


o princípio do trabalho com a escrita para atingir alguma prática social e
não apenas o estudo de um determinado gênero. Tal compreensão é im-
portante posto que considerar o gênero apenas em seus aspectos formais
significa mudar o objeto e continuar com a mesma prática que consiste
em, no ensino da escrita por meio de gêneros discursivos, estabelecer a
eles um estatuto que não vai além de “sua formulação puramente ver-
bal, plena de didatismo, mas maximamente esvaziada de seu conteúdo
sócio-histórico. Como tais, os modelos fixos acabam por se constituir,
inapropriadamente, no ponto de chegada como finalidade da prática
didática” (CORRÊA, 2013, p. 482).
Ultrapassar as questões apenas formais e buscar uma função social
para o uso da escrita torna o processo de ensino-aprendizagem signifi-
cativo. Kleiman (2006b) argumenta que, com as atividades meramente

27
escrita como prática social (não) escolar

analíticas, o trabalho com os gêneros textuais defendido nos currículos


caracteriza-se como sobreposição de descrições metalinguísticas a se-
rem aprendidas, por isso defende “que é a prática social que viabiliza
a exploração do gênero, e não ao contrário” (KLEIMAN, 2006b, p.
33). Compreender a diferença entre um enfoque metalinguístico de um
determinado gênero discursivo e seu processo de ensino requerido por
uma prática social “equivale à diferença existente entre, de um lado,
saber conhecer os mapas (conhecimento do gênero) e, de outro, con-
sultar o mapa para ir, de fato, a um lugar (prática social)” (KLEIMAN,
2006b, p. 33).
Marques (2016) considera que é por meio dos gêneros discursivos
que há a interação, sendo imprescindíveis à ação social. Assim, o do-
mínio sobre eles é forma de acesso à cultura escrita, ao poder e também
instrumento que o professor deve conhecer para o trabalho efetivo com
a leitura e a escrita. O professor que se apropria de tais conhecimentos
empodera-se e torna-se um agente de letramento, argumenta.
Nos projetos de letramento, como defende a autora, os gêneros
são selecionados considerando-se a sua utilização requerida por alguma
prática social. Nesse aspecto, afirma que a utilização deles no ensino
contribui para uma formação voltada ao uso da escrita em situações reais
do mundo social e à agência cívica.
O fato de reunir, em todo o processo de desenvolvimento e nas
etapas de trabalho de um projeto de letramento, ações mediadas pelos
usos sociais torna a escrita elemento fundamental e distintivo de outros
modos de abordá-la no campo escolar. Além disso, ao conceber a escrita
enquanto prática social, há também a compreensão de uma atitude res-
ponsiva ativa (BAKHTIN, 2000), da presença do interlocutor e de ações
reais e autênticas do uso da escrita. Tais noções propiciam ao aluno a
clareza de que a produção dele não se constitui enquanto inspiração,
mas como ação diante do outro e em resposta a esse outro dentro de um
contexto social.
Nessa linha, desenvolver trabalhos significativos com a escrita
na escola requer a assunção pelo professor de um posicionamento me-

28
Eliana Donaio Ruiz (org.)

todológico que considere tanto as questões teóricas levantadas quanto


um posicionamento político e ético para transpor tais concepções para
ações práticas em sala de aula, mesmo com todas as dificuldades que
nela atualmente se apresentam.

3. PROPOSTA DE PROJETO DE LETRAMENTO: DESAFIOS E FUNÇÕES

Elaborar uma proposta de projeto de letramento com foco no ensino


da escrita é tarefa árdua para os professores de língua materna, seja de-
vido às inúmeras dificuldades que os educadores enfrentam diariamente
(números de aulas trabalhadas por dia, número de alunos em sala de aula,
desprestígio da profissão nos dias atuais, remuneração, falta de condições
de trabalho etc.), seja pelo volume de trabalho produzido quando se de-
senvolve atividades de escrita com os alunos, seja ainda pela dificuldade
de se compreender na prática como desenvolver atividades com a escrita
que ultrapassem as questões técnicas e metalinguísticas e tenham como
foco o agir por meio da linguagem.
Alguns materiais disponibilizados e pesquisas realizadas recaem
sobre a análise do que foi feito, e não em como fazer um projeto edu-
cacional voltado ao trabalho com a escrita. A ideia de que apenas um
grande evento ou uma situação quase fantástica poderiam servir de base à
construção de um projeto, às vezes, também desestimulam os professores
que, talvez, não reconheçam que ações do cotidiano escolar e de seus
alunos possam servir como ponto de partida para esse modo de trabalho.
Kleiman (2006b) orienta que o professor pode levantar questões e
interesses de ordem social dos alunos, assim como temas relacionados
ao campo de atividade desse grupo, pensando nas questões identitárias
e de cidadania para servirem de base para a elaboração de um projeto.
Caso haja muita divergência nessas questões, devido à heterogeneidade
das turmas, a autora ainda acrescenta que há a possibilidade de as ações
serem desenvolvidas pelo próprio programa escolar, identificando temas
que movam os educandos para a ação de pesquisar e produzir o próprio
conhecimento.

29
escrita como prática social (não) escolar

A observação das questões sociais do bairro dos alunos, da cidade


em que vivem, do país, enfim, a problematização desses assuntos também
pode servir como base à elaboração de um projeto. De Grande (2014),
ao apresentar orientações de como trabalhar com temas da comunidade
em projetos de letramento, argumenta que a escolha do problema ou a
questão discutida nos projetos deve partir dos próprios alunos. O pro-
fessor pode, inicialmente, direcionar uma conversa sobre problemas da
escola, do bairro ou do município que afetam e/ou despertem interesse
nos alunos. Pode, ainda, observar questões da própria sala de aula, de um
fato que atinge a turma, como a prática de bullying pelos adolescentes,
a incidência de alunos faltosos por causa de algum problema de saúde
pública, como a dengue, por exemplo. Pode partir da discussão sobre a
merenda escolar, o acesso a uma alimentação saudável e o problema da
má distribuição de renda no país. Todas essas questões, direta ou indi-
retamente, relacionam-se à vida dos educandos, principalmente os que
frequentam os bancos escolares das instituições públicas. Em um país
com tantos problemas sociais, como o Brasil, infelizmente há muitas
questões a serem levantadas que podem ser a mola propulsora para o
desenvolvimento de um projeto de letramento, assim como o desenvol-
vimento de um letramento crítico nos educandos.
O professor pode ainda, em atividades interdisciplinares, propor uma
exploração do bairro com os alunos. Como exemplo dessa atividade, Silva
e Lino (2018) apresenta a aplicação de um projeto de letramento em uma
escola pública a partir do desenvolvimento de um jornal escolar. No de-
senvolvimento do trabalho, uma atividade de destaque foi a participação
da professora de Língua Portuguesa e o do professor de Geografia em uma
turma do Ensino Fundamental II na visita ao bairro. Os alunos decidiram
que locais seriam visitados pelo grupo e desenvolveram na disciplina
de Geografia o mapa com o roteiro. Nessa atividade, puderam trabalhar
com dois conceitos: topofilia e topofobia3 e elencaram, a partir disso,
pautas de possíveis matérias para o jornal escolar. Dos pontos positivos
observados, por exemplo, noticiaram e ajudaram a divulgar a biblioteca
3 Conceitos referentes ao campo da Geografia Social que dizem respeito, respectivamente, à
sensação de bem-estar diante de certos ambientes e à aversão, ao medo de determinados lugares.

30
Eliana Donaio Ruiz (org.)

pública do bairro, espaço para entretenimento e cultura, mas com pouca


participação da comunidade. Assim, com a garantia de circulação das
matérias produzidas pela distribuição dos jornais na comunidade, os
alunos efetivamente usaram a escrita de forma a protagonizarem uma
ação social.
Diante dessas reflexões e para ilustrar o modo de trabalho a partir das
demandas sociais dos educandos por meio de um projeto de letramento,
apresenta-se uma proposta de projeto de escrita com foco na aprendiza-
gem dos alunos e na ação social por meio da garantia de circularidade
dos textos produzidos.

4. PROPOSTA DE TRABALHO: REPORTAGEM SOBRE BULLYING

Os projetos de letramento têm por características a flexibilidade e


as possíveis alterações que podem ocorrer devido ao caráter movente, de
processo e de negociação que ocorrem até a produção escrita dos alunos
serem destinadas aos interlocutores reais, dentro e/ou fora do espaço
escolar. Além disso, nos projetos de letramento, não há o trabalho com
apenas um gênero, mas sim vários deles são acionados para se atingir
uma ação social por meio da escrita.
Assim, a proposta que aqui se apresenta tem como objetivo, além
da discussão da relação entre ensino de escrita e projetos de letramento,
sugerir um possível percurso e discorrer sobre o trabalho específico que
pode ser realizado com um gênero textual, para efeito de exemplificação,
de forma a clarear como o ensino da escrita se processa efetivamente em
um projeto que parece tão abrangente. De outra forma, a preocupação é,
nesse momento, discutir como, por meio desse modelo didático (TINO-
CO, 2008), o ensino das questões atinentes à escrita acontece, a fim de
garantir ao aluno o direito do aprendizado específico dessa modalidade,
função precípua da escola.
Esta proposta de trabalho pode ocorrer em qualquer turma do Ensino
Fundamental II, respeitadas as singularidades de cada uma. Para este
trabalho, sugere-se uma turma do 9º ano de uma escola pública.

31
escrita como prática social (não) escolar

Os alunos que compõem as turmas do último ano do Ensino Funda-


mental II são considerados adolescentes, de acordo com a classificação
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069, de 1990
(BRASIL, 1990). Essa faixa etária é considerada complexa devido ao pro-
cesso de maturação pelo qual as pessoas passam até serem consideradas
adultas. As mudanças corporais, relacionais e psicológicas são intensas
na maioria dos adolescentes. No campo escolar, a complexibilidade
dessa fase se intensifica com a convivência diária de trinta, quarenta
adolescentes em uma sala de aula. Diante desse cenário, não é incomum
os professores depararem-se com problemas desencadeados pela prática
de bullying e de suas consequências na vida de vítimas e agressores. O
problema atinge tal patamar que já há orientações oficiais para o combate
dessa forma de violência nas escolas, como o material4 enviado pela
Secretaria de Estado de Educação do Paraná, em 2014.
Diante desse quadro, um projeto de letramento sobre bullying não
seria apenas pertinente para o ensino de produção textual, como também
se configura como uma necessidade diante dos números crescentes dessa
prática e de suas implicações na própria escola, nas famílias e sociedade.
Assim, o professor, em comum acordo com os alunos, pode propor
atividades para o conhecimento dessa prática e possíveis possibilidades
de enfrentamento dessa questão. Nesse sentido, algumas possibilidades
de trabalho para essa proposta são:
• Os alunos pesquisarem sobre o assunto para formar um re-
pertório. Com leitura, anotações e discussões podem elaborar
conceitos-chave para esse tema.

• Depois, para aprofundar os conhecimentos deles, podem


convidar alguma autoridade no assunto para uma palestra ou
entrevista. Se decidirem por entrevista, terão que produzir o
convite que poderá ser feito via e-mail ou por carta timbrada
da escola. Deverão refletir sobre as escolhas linguísticas
utilizadas considerando o interlocutor real que possuem e a
intencionalidade dessa produção.
4 Material disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/formacao_
acao/2semestre_2014/cage_roteiro.pdf. Acesso em: 19 jan. 2020.

32
Eliana Donaio Ruiz (org.)

• Para a entrevista, precisarão aprofundar-se nesse gênero. O


professor poderá, nesse momento, levar para os alunos trechos
de entrevistas orais, por exemplo, o programa Roda Viva e/ou
o uso da mídia podcast5. Os podcasts podem ser selecionados
considerando-se, sempre que possível, temas de relevância
social de produções que estejam mais próximas dos alunos,
por exemplo, podcasts de jornais locais sobre assuntos relacio-
nados ao bairro, à comunidade na qual a escola está inserida.
Pode-se trabalhar ainda com leitura e discussão de aspectos do
gênero a partir de entrevistas publicadas em revistas.

• A turma, a partir desse conhecimento e do repertório desen-


volvido pelas pesquisas, pode produzir, de forma colaborativa,
as perguntas que serão realizadas na entrevista com o especia-
lista em bullying, assim como podem ensaiar a oralidade para
este evento de letramento.

• Com a entrevista pronta e gravada, podem fazer o processo


retextualização (MARCUSCHI, 2001), ou seja, ao compre-
enderem a relação existente entre oralidade e escrita, pode-se
discutir algumas especificidades dessas modalidades conside-
rando o funcionamento da língua e, por meio de um processo
de editoração, adaptar o texto oral para o texto escrito.

• Os alunos podem ainda, com orientação do professor, produ-


zir as imagens que ilustrarão a reportagem. Caso seja um tema
referente à comunidade escolar, uma atividade de campo com
celulares pode garantir um olhar crítico para o local onde os
estudantes vivem. No caso do tema sobre o bullying, o profes-
sor pode discutir com a turma a relação entre linguagem verbal
e não verbal e a maneira de ilustrar tal matéria sem expô-los.

• Para garantir a autenticidade das produções realizadas


pela turma, a reportagem pode ainda circular nas redes
sociais da escola e, até mesmo, nas dos alunos. Pode ser
impressa e distribuída para a comunidade escolar, enviada
aos pais. Se na comunidade onde a escola está inserida
houver jornais locais, de bairro, uma reportagem pode ser
5 A mídia podcast é uma forma de distribuição de gravações de vídeo e áudio via internet.

33
escrita como prática social (não) escolar

encaminhada para uma possível publicação conjunta. O


professor pode ainda pensar em outras possibilidades de
circulação desses textos.

Vale ressaltar que, ao se propor um projeto de letramento com


foco na modalidade escrita da língua, vários gêneros são requeridos
para que se realize uma ação social. O contato com a leitura e escrita
permeiam todo o processo, e os alunos têm, dessa forma, familiaridade
com gêneros que realmente circulam socialmente, ultrapassando na
aprendizagem questões apenas metalinguísticas e puramente técnicas.
Essas especificidades do projeto tornam o aprendizado significativo
e propositivo.
Assim, outras atividades podem ser desenvolvidas nessa forma de
projeto educacional, como enquetes sobre a prática de bullying na escola,
as quais podem ser tabuladas na disciplina de Matemática, entrevistas
com alunos, professores e comunidade escolar. Todos esses gêneros
podem ser utilizados para dar base na elaboração da reportagem sobre
tal tema. Com o caráter movente dessa proposta, os professores podem
analisar quais outras atividades seriam oportunas de ser desenvolvidas
para dar suporte à produção dos alunos.
Outro aspecto importante a ser considerado nos projetos de letra-
mento, ao conceber a produção de texto enquanto processo e prática
social, é a mediação do professor. Tal mediação pode possibilitar a
reflexão do aluno sobre sua escrita, contribuindo para o desenvolvi-
mento e aperfeiçoamento do texto, com o propósito de circulação em
situações reais. O modo como o professor intervém no texto do aluno
é fator determinante para o sucesso do processo de aquisição da escrita
(RUIZ, 2013).

Na escrita, a mediação ocorre desde as atividades com o traba-


lho de leitura, em que o mediador contribui para a construção
de sentidos do texto, continua durante as discussões realizadas,
ao possibilitar a voz e a vez do aluno, e prossegue em todo
o processo da produção escrita (MENEGASSI; OHUSCH,
2007, p. 234).

34
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Com a função de mediador, o professor participa efetivamente do


processo e deixa de ser apenas o avaliador de textos.

5. O PROCESSO DE PRODUÇÃO TEXTUAL: A ELABORAÇÃO DE RE-


PORTAGEM COM FUNÇÃO SOCIAL E A MEDIAÇÃO DO PROFESSOR

Depois das reflexões apresentadas sobre o que fazer em um pro-


jeto de letramento, para se fazer o que se propôs, passa-se a discutir o
como fazer. Com o objetivo de compreender os processos da produ-
ção escrita de um gênero textual para uma ação social, este trabalho
ampara-se nas propostas de mediação do professor no texto do aluno
de acordo com Ruiz (2013, 2019). A autora argumenta a favor dos
processos de produção textual, sendo eles: planejamento, primeira
versão, correção, segunda versão e dos cuidados das estratégias de
intervenção do professor6.
Figura 1 – Processos de produção textual

Fonte: Com base em Ruiz (2013, 2019).


6 E, sobretudo, pela publicação em situações reais e autênticas, como destacou Ruiz (2019), em
sala de aula, na disciplina de Ensino de Produção Escrita em Língua Materna, do Programa
de Doutorado em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina (UEL), no
período de agosto a dezembro de 2019.

35
escrita como prática social (não) escolar

É preciso destacar que tais processos, embora sigam uma lógica de


desenvolvimento do texto, podem ser acionados no momento em que o
professor identificar que seja necessária sua mediação para a continui-
dade do trabalho do aluno. Depois da primeira escrita, talvez seja mais
eficiente refazer o planejamento para reorganizar as ideias do texto, ou
o texto passar por mais de um momento de revisão e aprimoramento.
Tais questões devem ser analisadas diante das produções realizadas, e
cabe ao professor a maneira de conduzir esses passos.
O que é preciso destacar também, no momento de produção efetiva
dos textos e da mediação do professor, é que, considerando a circulação
e o endereçamento do texto, as intervenções no texto do aluno devem
ultrapassar questões meramente ortográficas e textuais, intervenções que
apenas chamem a atenção ou até corrijam desvios pontuais referentes à
utilização da norma culta e à estrutura textual.
Nos projetos de letramento, a produção sempre tem como objetivo
uma ação social; assim, ao considerar o interlocutor real e a atividade
responsiva dele, o professor poderá chamar a atenção para aspectos que
foquem a circulação dessa produção. Desse modo, pode-se destacar,
por exemplo, se a escolha lexical é coerente com o interlocutor daquele
texto. É possível também, sempre considerando o leitor, refletir se a
informatividade presente é suficiente para uma ação eficiente por meio
da escrita. Nesses momentos de reflexão sobre a própria produção es-
crita, o professor poderia ajudar os alunos a pensarem sobre a própria
linguagem, sobre as escolhas possíveis dentro dos recursos que a língua
dispõe, considerando o interlocutor, o contexto de produção, o objetivo
do texto dentro do projeto, entre outras questões importantes para o
desenvolvimento da autoria dos alunos.
Nessa linha, destaca-se também que, além de o professor fazer
suas mediações e intervenções na produção escrita dos alunos visando
à publicação e à circulação, há uma mudança circunstancial na maneira
como tal produção é avaliada. Pela perspectiva apresentada, a avaliação
do texto passa a ser formativa, voltada ao aprimoramento da escrita,
considerando o interlocutor e a intencionalidade da produção, e não a

36
Eliana Donaio Ruiz (org.)

aferição de erros para atribuição de nota, ou melhor, para descontar nota


das possíveis inadequações gramaticais. Aliás, os conteúdos gramati-
cais, por sua vez, devem ser abordados a partir de seus usos em textos
que circulam socialmente e, preferencialmente, discutir com os alunos
questões dessa natureza que serão necessárias para uma determinada
produção. Para planejar ações didáticas voltadas ao aprimoramento dos
textos, é preciso partir das necessidades comuns dos alunos, mediante
um trabalho de análise de suas produções.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Os projetos de letramento têm se configurado como uma pos-


sibilidade de trabalho contextualizado, voltado à ação social e que
pode garantir a circulação das produções escritas dos alunos. Nesse
sentido, torna-se uma maneira de superar o artificialismo com que
a escrita tem sido trabalhada na escola, pois, ao desenvolver textos
autênticos, o processo de ensino por meio de projetos configura-se
como significativo para o aluno, que, ao aprender, também protago-
niza uma prática social.
O que se destaca nessa metodologia é que a possibilidade de cir-
culação garante ao texto sua autenticidade. No contexto escolar, esse
aspecto contribui para o aprendizado da modalidade escrita enquanto
prática social e ferramenta para um agir de forma consciente e crítica
na sociedade. O aluno, diante desse contexto, desenvolve sua autoria
porque compreende a escrita para além de questões apenas gramaticais
e de utilização de regras. Ele, ao ter um interlocutor real, passa a tomar
decisões diante dos recursos da modalidade escrita, os quais ultrapassam
a aplicação de normas, muitas vezes, utilizadas apenas para mostrar
ao professor certo domínio das convenções da escrita pela variante da
norma culta.
Para o professor, a escolha pelo trabalho com projetos também marca
um lugar e posicionamento político diante da árdua tarefa de ensinar. Ao
assumir um trabalho como esse no seu cotidiano escolar, o professor não

37
escrita como prática social (não) escolar

opta apenas por modificar sua forma de dar aulas; ele toma uma decisão
consciente de qual aluno gostaria de formar. Sabendo do poder da escrita
e das restrições a ela a que grande parte dos estudantes brasileiros estão
submetidos, esse professor tenta garantir ao seu aluno o direito de agir
socialmente mediante o uso da linguagem escrita.

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40
Eliana Donaio Ruiz (org.)

ESCRITA E CIDADANIA:
UMA PRÁTICA PARA ALÉM DOS MUROS DA ESCOLA1

Franciela Silva Zamariam

INTRODUÇÃO

Durante os quatorze anos em que atuamos no magistério, temos


enfrentado inúmeras dificuldades no ensino da produção escrita, princi-
palmente porque os estudantes tendem a ver o texto escrito como algo
muito formal, de difícil realização e, consequentemente, descolado de
suas realidades. Por outro lado, vimos observando que a modalidade
escrita da língua não é desconhecida dos alunos, mas determinados
gêneros da esfera pública geram desconforto aos aprendizes, por serem
trabalhados de forma muito superficial na escola, com um olhar do
professor/corretor, em geral, mais voltado às regras gramaticais que aos
seus aspectos discursivos. Somados a isso, temos os diversos problemas
de ordem estrutural, tanto relacionados à organização física das escolas,
como às condições de trabalho dos professores, como a falta de tempo
para planejamento e correção de textos, por exemplo.
Como consequência desses entraves, os estudantes têm demons-
trado, nas avaliações escolares e externas, entre elas ENEM e Prova
Brasil, um resultado aquém do esperado quando o que está em jogo é a
produção de textos. Obviamente, não se trata apenas de aprovações em
1 Artigo produzido no contexto da disciplina Ensino de Produção Escrita em Língua Materna
(PPGEL - UEL), ministrada pela Profa. Dra. Eliana Maria Severino Donaio Ruiz, em 2019.

41
escrita como prática social (não) escolar

provas e exames escolares, mas de algo maior, relacionado à realização


pessoal, profissional e sociopolítica do indivíduo, pois as sociedades
contemporâneas são quase totalmente baseadas na escrita. Aqui encon-
tramos a justificativa para este trabalho, uma vez que ajudar os jovens
a produzir bons textos significa, portanto, contribuir para a efetivação
de sua cidadania, no que, infelizmente, a escola tem deixado a desejar.
Chegamos, assim, à seguinte problemática: como levar o estudante
ao desenvolvimento satisfatório da escrita, em meio às diversas exigências
escolares (conteúdos específicos, avaliações quantitativas etc.) e diante
de vários obstáculos estruturais presentes nas instituições de educação
básica pública? Trabalhamos com a hipótese de que um projeto de le-
tramento, com a correção dos textos voltada para seu sentido global e
para a intencionalidade dos alunos-autores aprimoraria tanto o trabalho
com a escrita na escola quanto essa habilidade dos aprendizes. Por isso,
levamos para uma de nossas turmas, estudantes de primeiro ano do Ensino
Médio, uma prática de letramento com a carta argumentativa, partindo
dos anseios discentes e de uma visão de texto como forma de interação.
Tendo sempre em vista a hipótese levantada, usamos o projeto de
letramento como ponto de partida e fio condutor do processo. Todavia,
nosso foco, para este artigo, encontra-se na metodologia de correção
textual, ou seja, no tratamento que o professor (neste caso, nós), como
primeiro interlocutor, dá ao texto do aluno, debruçando-se sobre seus as-
pectos discursivos prioritariamente. Destarte, objetivamos mostrar como
uma experiência de letramento, devidamente orientada desde a proposta
até, principalmente, a correção dos textos, possibilita o aperfeiçoamento
da escrita e impacta o contexto social dos alunos enquanto cidadãos que
agem pela linguagem.
Antes de iniciarmos o tratamento dos textos discentes e em face de
um compromisso educacional tão importante, é fundamental refletirmos
sobre as concepções de linguagem em evidência na escola e as práticas
de escrita ali realizadas, bem como a respeito do impacto de ambas na
formação do aluno e em seu entorno, para, então, conduzirmos as ativi-
dades de letramento, em sala, de maneira eficaz. Por isso, propomo-nos a

42
Eliana Donaio Ruiz (org.)

discutir, na próxima seção, as bases teóricas que nortearam nossa prática


descrita nesta pesquisa; a seguir, explicitaremos a metodologia utilizada
na constituição do nosso corpus; na terceira seção, analisaremos os dados;
e, por fim, discutiremos os resultados.
Esperamos, a partir da investigação realizada, contribuir para a
melhoria do ensino da produção escrita no meio escolar.

1. A LINGUAGEM COMO INTERAÇÃO E O PROFESSOR INTERLO-


CUTOR: BASES TEÓRICAS

A linguagem foi vista por diversos prismas ao longo da História. A


partir dos estudos de Geraldi (1984), significativos ainda nos dias atu-
ais, verificamos três de suas concepções, que circulam, nas escolas, em
maior ou menor grau, até hoje: expressão do pensamento; instrumento
de comunicação; e forma de interação.
Segundo o autor, a primeira concepção alicerça os estudos tradicio-
nais, os quais enxergam o enunciado/texto como um produto do pensa-
mento do autor. O equívoco dessa visão reside no fato de que, entendendo
a linguagem como tal, conclui-se que pessoas que não conseguem se
expressar não pensam (GERALDI, 1984, p. 43).
Por esse viés, o texto – representação mental do sujeito-autor – é
transmitido ao interlocutor com a finalidade de ser entendido da mesma
forma como foi imaginado. Ler, portanto, não passaria de “uma atividade
de captação das ideias do autor” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 10), na qual
as experiências e o conhecimento prévio do leitor não são considerados,
cabendo a ele somente a tarefa de decodificar a mensagem pronta, pois
o foco está no autor. Assim, o produtor de textos, por sua vez, teria pou-
ca responsabilidade sobre seus escritos, pois, se sua produção recebeu
interpretações diversas da que ele concebeu, em nenhum caso seria por
problemas de ambiguidade ou de construção do próprio texto, mas por
incapacidade do leitor.
Com relação à segunda concepção, Geraldi (1984) a relaciona à
teoria da comunicação, que vê a língua como código (conjunto de signos

43
escrita como prática social (não) escolar

que se combinam segundo regras) capaz de transmitir ao receptor uma


certa mensagem. Em livros didáticos, geralmente essa é a concepção
indicada na apresentação e no Caderno do Professor, embora constan-
temente ceda lugar aos exercícios puramente normativos (GERALDI,
1984, p. 43). Nessa linha de raciocínio, linguagem é estrutura, sendo
o sujeito que dela se utiliza caracterizado por uma espécie de “não
consciência” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 10), pré-definido pelo sistema.
A língua aqui, conforme explica Koch e Elias (2010), é tida como có-
digo, e a linguagem, como simples instrumento de comunicação. Por
conseguinte, esta última seria o produto da codificação do emissor que
deve ser decodificado pelo receptor, tendo como necessário somente
o conhecimento do código que está sendo usado. Leitor e autor são
apagados para dar lugar ao texto. Como consequência, a compreensão
passa a ser uma atividade que exige o foco do leitor no texto/enun-
ciado, devendo ser do leitor o reconhecimento dos sentidos, baseados
nas adequações da língua, não em suas experiências ou no contexto
do produtor.
Ambas as concepções têm em comum o fato de que entendem o
leitor/ouvinte como alguém que opera por reconhecimento e repro-
dução (KOCH; ELIAS, 2010). Já a concepção de linguagem como
interação, em consonância com Geraldi (1984), mais do que possibi-
litar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor, é
vista como um lugar de intercâmbio. Corroborando essa ideia, Koch e
Elias (2010) entendem o texto/enunciado como lugar de interação de
sujeitos sociais que se constituem e são constituídos dialogicamente
pelo discurso e a ele dão diversas possibilidades de sentidos, os quais
só serão desvendados se envolvidos no contexto em que se movem
os atores sociais. Por isso, a produção de texto é mais eficaz quando
realizada sob condições de reais necessidades do produtor, que leva
em conta seus anseios e objetivos.
Com esse entendimento, chegamos à concepção social da escrita
e às práticas de letramento, cujas atividades, quando aplicadas no am-
biente escolar, possibilitam a concretização da linguagem e do texto
como formas de interação, pois “os estudos do letramento partem de

44
Eliana Donaio Ruiz (org.)

uma concepção de leitura e de escrita como práticas discursivas, com


múltiplas funções e inseparáveis dos contextos em que se desenvolvem”
(KLEIMAN, 2007, p. 4).
Conforme a mesma autora,

[...] é na escola, agência de letramento por excelência de nossa


sociedade, que devem ser criados espaços para experimentar
formas de participação nas práticas sociais letradas e, portan-
to, acredito também na pertinência de assumir o letramento,
ou melhor, os múltiplos letramentos da vida social, como o
objetivo estruturante do trabalho escolar em todos os ciclos
(KLEIMAN, 2007, p. 4).

No entanto, o problema tem sido as nossas dificuldades em localizar


a escola como parte de um todo, ou seja, da comunidade em que está
inserida. Comumente, enxergamos as instituições de ensino como lugares
apartados da “vida”, onde ensina-se, avalia-se, classifica-se, muitas ve-
zes, sem que o corpo docente ou discente entenda bem a utilidade dessas
ações. O trabalho como o letramento, ao contrário, pressupõe transpor a
forma como nós, professores, nos relacionamos, em geral, com as práticas
educacionais, ao “questionarmos a tradicional cultura escolar, deixando
um tanto de lado a fragmentação dos saberes e a rígida disciplinariza-
ção”, além de possibilitarmos a transgressão do lugar pré-estabelecido
de professor-transmissor e aluno-depósito de conteúdos (OLIVEIRA;
TINOCO; SANTOS, 2014, p. 15).
Para Oliveira, Tinoco e Santos (2014, p. 18), não há como falar em
educação cidadã, preparando aulas de Língua Portuguesa com foco ainda
em conteúdos gramaticais isolados. E do mesmo modo como os alunos
não veem sentido em aprender regras descontextualizadas, também não
obtêm sucesso com propostas de produções textuais desvinculadas de um
objetivo e de um interlocutor. Contudo, quando essa visão se modifica,
temos agentes do ensino e da aprendizagem, com o professor no papel
de mediador e, no caso do ensino de escrita, de interlocutor/leitor de
textos, que tem a função de auxiliar os estudantes a deixar seus textos

45
escrita como prática social (não) escolar

mais claros, interessantes e fundamentados, conduzindo-os como um


participante mais experiente desse processo.
É nesse sentido que Marques (2016, p. 123), sobre o trabalho com
projetos de letramento, discorre em favor das mudanças de perspectivas
dos atores escolares, os quais podem romper com as tradicionais barreiras
de seus próprios papéis – alunos e professores – e serem conduzidos a
“outras esferas sociais”, pelos gêneros textuais, que passam a funcionar
como instrumento de poder para a ação social.
Dessa forma, podemos dizer que

[…] o desenvolvimento de projetos na escola pode ser uma


alternativa de ressignificação do fazer docente e discente [...].
Além dessa ação coletiva, os projetos também podem nos
aproximar mais do tempo, do espaço e das práticas sociais da
vida real e isso pode trazer como consequência um novo olhar
da comunidade escolar e do entorno acerca da importância da
escola e do que nela se faz (OLIVEIRA; TINOCO; SANTOS,
2014, p. 20).

Com base nesse pressuposto e buscando contextualizar as práticas de


escrita na escola, propusemos aos sujeitos desta pesquisa o trabalho com
a carta argumentativa de reclamação/solicitação, a fim de que pudessem
exercitar, de modo efetivo, sua cidadania, uma vez que, além de incluir
nos textos os conteúdos trabalhados na série, como a argumentação, os
elementos coesivos etc., as cartas seriam enviadas a destinatários reais,
em busca da solução de problemas enfrentados pelos alunos.
As vantagens desse gênero vão desde sua função cidadã até o exer-
cício da argumentação em uma situação comunicativa real, habilidade
frequentemente exigida em nossa sociedade. Partindo dos estudos de
Koch, Leal (2003) reconhece que a argumentação é o ato linguístico
fundamental, pois a todo discurso subjaz uma ideologia. Daí a relevân-
cia dessa estrutura textual para a formação discente, cuja essência está
presente em muitos aspectos de sua vida. Prova da importância de se
dominar a prática do argumentar é a criação, na escola, de um gênero

46
Eliana Donaio Ruiz (org.)

específico, ainda que artificial, para avaliar a capacidade argumentativa


do estudante: a dissertação escolar.
No entanto, mesmo partindo da premissa de que argumentação
é uma propriedade geral do discurso e de que todo texto tenha a in-
tenção de provocar algum efeito no interlocutor, de acordo com Leal
(2003), existem alguns textos que apresentam, de forma mais explícita,
o objetivo de defender uma ideia. Dito isso, é pertinente ressaltar que
há determinados contextos em que tais gêneros emergem, partindo
sempre de uma controvérsia, de um incômodo, de um problema. Esse
é o caso da turma em que lecionamos, na qual diversos alunos se
incomodavam com as condições precárias do ambiente escolar a que
estavam submetidos.
Definida a escolha do gênero que atenderia às necessidades co-
municativas do grupo naquele momento, verificamos não ser suficiente
nos restringir ao ensino de seus elementos composicionais: para haver
o alcance dos objetivos discentes, era necessário ir além. Após realizar
a leitura da obra da professora Eliana Ruiz (2010), constatamos que o
processo de condução da prática de letramento poderia ser potencializado
se realizássemos um trabalho com a correção textual-interativa dos textos
produzidos em sala.
Segundo a autora, esse é um dos modelos possíveis de correção de
textos pelo professor e um dos mais eficazes ao ensino da produção escrita
na escola. Consiste em “bilhetes” que o professor deixa no pós-texto ou
mesmo no corpo do texto, comentando as possíveis adequações a serem
realizadas na produção do aluno. Longe de permanecer nos tópicos gra-
maticais ou na estrutura frasal, a correção textual-interativa busca dialogar
com o estudante, sempre de forma motivadora, apresentando sugestões
de melhorias, no papel de um leitor especialista, não um reles corretor.
Conforme já mencionado na introdução deste artigo, esse olhar docente
para o texto do aprendiz, como parte do processo de ensino de escrita
baseado em práticas de letramento, contribui com o aperfeiçoamento
discursivo em produções textuais, auxiliando o estudante a atingir seus
objetivos por meio da linguagem.

47
escrita como prática social (não) escolar

As outras formas de intervenção no texto discente são: a correção


indicativa, a resolutiva e a classificatória. A primeira se refere aos traços
e círculos desenhados pelo professor em torno de um problema pontu-
al, ortográfico ou estrutural. Apesar de agilizar o trabalho docente, a
dificuldade dessa forma é a imprecisão de como o aluno pode realizar
a revisão de seu texto, ou seja, as ambiguidades que podem ser geradas
pelas indicações sem comentários específicos.
A correção resolutiva é aquela em que o professor soluciona o
desvio do aluno, acrescentando um acento, uma palavra ou um sinal de
pontuação, por exemplo. Em alguns casos, esse tipo de intervenção pode
dificultar a aprendizagem, por impossibilitar a reflexão do estudante
sobre a incorreção.
Finalmente, a correção classificatória é a aplicação, pelo professor,
de uma série de códigos, previamente combinados com a turma, que
classificam os problemas do texto, como A, para acentuação, CN, para
concordância nominal, entre outros. Visa, principalmente, a otimizar
o trabalho do professor, dado que é um modo rápido de apontar erros.
Todavia, essas três últimas formas de intervenção, em si mesmas,
não são suficientes, conquanto sejam válidas em determinados casos.
Há momentos em que um código ou um traço não dá conta de dizer ao
aprendiz como ele deve proceder para tornar o texto inteligível e eficaz
ou o quanto sua construção foi bem realizada:

A linguagem codificada é, pois, a tentativa, na prática, de o


professor superar as barreiras do tempo, sempre tão curto,
para a tarefa de correção. Entretanto (e isso os dados tam-
bém nos dizem), essa saída ainda deixa a desejar. Ela não
se aplica a qualquer circunstância. A correção codificada
só é interessante para determinados tipos de problema: os
da frase, não para os outros; porque todos esses outros, os
do texto, ao contrário (e isso os dados também nos dizem),
demandam um outro tipo de correção, a não codificada: os
“bilhetes” (RUIZ, 2010, p. 185).

48
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Tendo esclarecido nossa visão de linguagem e de texto, a impor-


tância da argumentação e nossa postura diante da correção de textos
– ressaltando que todas são confluentes –, vejamos agora como isso se
revela em nossa prática, no papel de professora interlocutora.

2. METODOLOGIA E CONSTITUIÇÃO DO CORPUS

A investigação feita para este artigo é de caráter aplicado, pois visou


a uma intervenção no contexto em que foi realizada, onde atuamos como
professora da disciplina de Língua Portuguesa. Os sujeitos da pesquisa
são estudantes da primeira série do Ensino Médio de uma escola pública
central, conforme já dito.
Durante a ministração de nossas aulas, percebemos que os alu-
nos estavam incomodados com várias questões político-sociais que os
atingiam direta ou indiretamente, desde a organização e a estrutura da
escola, até os problemas do lixo no município e da violência contra as
mulheres no país. Em diversos momentos de aprendizagem, debatiam os
assuntos em sala e apresentavam seus pontos de vista, porém de forma
ainda superficial.
Paralelamente a isso, a ementa da série listava como conteúdos
a serem ensinados: a argumentação, a estrutura de uma dissertação,
os elementos coesivos, os pronomes de tratamento, entre outros. Para
não permanecer em uma estrutura estática e pouco funcional como a
dissertação escolar, decidimos trabalhar com a carta argumentativa
de reclamação/solicitação (que também é prevista como gênero a ser
ensinado na série), cuja propriedade central é ser dirigida a um desti-
natário, o que atenderia mais adequadamente aos objetivos da turma.
Nesse sentido, propusemos aos estudantes que escrevessem uma carta
argumentativa de reclamação/solicitação a uma autoridade competente,
visando à solução de um problema coletivo/social que os estivesse
incomodando. Resumidamente, seguimos as seguintes etapas para a
realização do trabalho:

49
escrita como prática social (não) escolar

• discussões sobre os diversos obstáculos que temos para chegar


a uma sociedade equitativa (carências na educação, na moradia
e no saneamento, violência contra mulher etc.);

• em duplas: seleção de um problema que mais os incomodava;

• estudo dos tipos de argumentos mais persuasivos e dos menos


convincentes;

• leitura de cartas argumentativas enviadas a jornais e outras,


publicadas em meios eletrônicos;

• análise dos elementos que compõem a carta argumentativa


de reclamação e/ou solicitação;

• produção do rascunho;

• orientações da professora via oral, após uma leitura rápida


de cada esquema textual;

• produção da carta;

• correção pela professora, com sugestões de aperfeiçoamento;

• reescrita e envio das cartas.

Após o cumprimento desses passos, retomamos os textos, que


traziam nossas intervenções, com vistas à análise de como elas foram
realizadas. Selecionamos três produções que tiveram relação direta
com o sucesso da atividade escrita como ação pela linguagem (ANE-
XOS A, B, C). Esse olhar sobre nossa própria prática, depois dos
estudos teóricos, oportunizou-nos compreender melhor os fatores que
facilitaram o processo de aprendizagem da produção escrita discente,
além de possibilitar a contribuição para o aperfeiçoamento de estudos
e práticas posteriores.

50
Eliana Donaio Ruiz (org.)

3. ANÁLISE DOS DADOS

Antes de iniciar as análises das correções, é importante lembrar que


nos colocamos, neste texto, em duas posições distintas, mas, por vezes,
indissociáveis: professora, aquela que realizou as práticas de ensino-
aprendizagem; e pesquisadora, a que analisa tais práticas. Buscamos
manter, na medida do possível, o foco no tratamento dos dados, durante
a análise do corpus.
Cabe ainda observar que os textos produzidos em aula, seleciona-
dos para esta pesquisa, já possuem conteúdos e estruturas relativamente
adequados à proposta de produção solicitada aos alunos, pois fizemos
intervenções orais individuais, previamente à entrega dos textos defini-
tivos. Em outras palavras, na ocasião, como um primeiro momento do
trabalho, propusemos aos estudantes que realizassem um rascunho de
suas produções para sua própria revisão e análise inicial, com base em
nossas nas orientações, observando argumentação, coesão, adequação
da variedade linguística ao interlocutor e ortografia. Os três textos aqui
examinados são, portanto, já a segunda versão da produção discente
(ANEXOS A e B), com exceção da Carta 3, que não participou da pri-
meira etapa (revisão prévia), visto que seus elaboradores não estavam
em sala na data em questão.
Passemos agora ao nosso objeto de pesquisa, a correção dos textos, a
fim de verificar como isso auxiliou os estudantes a atingir seus objetivos.
Para melhor analisar a correção que fizemos das três cartas selecionadas,
levamos em consideração as quatro categorias já mencionadas em seção
anterior: correções indicativas; correções resolutivas; correções classifi-
catórias; correções textuais-interativas (RUIZ, 2010).
Tendo em mente a primeira categoria, observamos, em geral, que
não foi aplicada a correção indicativa exclusivamente (ver ANEXOS),
pois todo sinal não verbal de inadequação vem acompanhado de algum
comentário. Apenas na palavra “desEnteresse”, na frase “até mesmo
estresse, desenteresse da aprendizagem [...]” (Carta 1), não fizemos
explicação alguma, por entender que estaria óbvia a indicação de erro

51
escrita como prática social (não) escolar

ortográfico. Fizemos o uso dos comentários, aliados às indicações não


verbais, porque nos preocupamos em manter a clareza da correção,
evitando possíveis ambiguidades, o que nos leva à próxima tipologia
corretiva, a resolutiva, cuja intenção é solucionar uma inadequação de
forma rápida e direta, como exposto na segunda seção.
Sinais de pontuação, acentuação e erros ortográficos são majoritários
em nossas correções resolutivas, mas também aparecem, algumas vezes,
problemas de concordância e de coesão, com acréscimos de expressões,
entre outros. No entanto, a partir da obra de Ruiz (2010), entendemos
que a resolução direta pode causar o apagamento do “erro” aos olhos do
aluno, já que ele pode não perceber um problema em seu texto ou deixar
de aprender como melhorá-lo, se a inadequação estiver corrigida sem
qualquer explicação. Por isso, optamos, na maioria das vezes, pela reso-
lução brevemente comentada, com o intuito de agilizar nossa correção,
mas também de proporcionar a reflexão sobre a norma culta da língua,
fiando-nos na ideia de que, na reescrita, o autor do texto teria, obrigato-
riamente, que se atentar para o motivo de sua incorreção, efetivando sua
aprendizagem. Em outras palavras, entendemos que corrigir diretamente
a inadequação do texto, comentando, de modo resumido, a razão de haver
ali um problema, seria mais rápido para nós, como professora, e mais
claro para o aluno, portanto produtivo para ambos. No quadro abaixo,
verificamos alguns exemplos desse tipo de intervenção, nos trechos em
vermelho (os fragmentos em preto são as partes originais dos textos):

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

Quadro 1 – Correções resolutivas.23

Texto original Correção


Carta 1 Venho São dois autores: vimos
Problemas estes que incluem, Problemas estes que incluem, em sua
em sua maioria infraestrutura... maioria, infraestrutura... (Fechar com
vírgula o adjunto adverbial)
Pixadas PiCHadas
...até mesmo estresse, desente- ...até mesmo estresse dos alunos, além de
resse da aprendizagem... desenteresse3 da aprendizagem...
Carta 2 ... a higiene do colégio em ... a higiene do colégio, em geral, está
geral esta precaria... precária... (Adj. adv. entre vírgulas)
... as descargas não tem bom ... as descargas não têm bom funciona-
funcionamento... mento... (Plural)
Carta 3 ... jogar no Banheiro... ... jogá-la no banheiro...
Lembra que eu falei de uma Em seguida, Lembra que eu falei de uma
viajem, então, os pais do Natan viajem, então, os pais do Natan estavam
estavam combinando de viajar combinando de viajar a muito tempo. gra-
a muito tempo. graças a falsa ças a falsa denuncia, (Já foi dito) os pais
denuncia, os pais do jovem do jovem, que com o “clima” presente no
que com o “clima” presente momento, desmarcaram a viagem atoa...
no momento, desmarcaram a
viajem atoa...
Porem, varias, peripecias, Porém, várias, peripécias, indivíduos...
individuos...
Pré-conceito Preconceito

Fonte: A autora.

Note-se que pouquíssimas correções foram feitas sem nenhum


comentário: a troca da letra maiúscula por minúscula em substantivo
comum no meio da frase (Banheiro), acréscimos de acentos (esta – verbo
–, precaria etc.), troca de CH por X (pixadas) etc.; elas se mantiveram
2 As intervenções de correção estão salientadas por negrito e itálico.
3 O erro ortográfico em “desenteresse” foi mantido, mas grifado, para chamar a atenção do
estudante.

53
escrita como prática social (não) escolar

por entendermos ser óbvio o motivo da resolução a alunos do primeiro


ano do Ensino Médio. As demais alterações sempre vêm acompanhadas
de uma breve explicação para que os estudantes tivessem a oportunidade
de entender onde estão se equivocando e por quê, de modo a aperfeiçoar
suas produções textuais de forma definitiva, não só para uma avaliação, e
assim atingir seus objetivos enquanto cidadãos que agem pela linguagem.
No que tange à correção classificatória, utilizamo-la em quatro
ocasiões: duas ocorrências de (P) na Carta 1, indicando a necessidade
de espaço de parágrafo, e duas ocorrências de Rep. (Cartas 1 e 2), que
sinaliza uma repetição. Os símbolos foram combinados previamente com
a turma e foram compreendidos prontamente pelos autores dos textos.
Por fim chegamos à correção textual-interativa, que, além de acom-
panhar a correção resolutiva, conforme já dito (as marcações não verbais,
reforçadas por comentários explicativos), marcou consideravelmente o
corpo de cada texto e os pós-textos. Analisemos os exemplos a seguir:
Quadro 2 – Correções textuais-interativas.

Texto original Comentário da professora


Carta 1 Falta cabeçalho (local e data)
Excelentíssimo Sr. Secretário de
Educação do Estado do Paraná
Segundo dados da pesquisa 524 se refere a português ou matemática?
“Infraestrutura Escolar e Apren- E o outro número?
dizagem da Educação Básica
Latino-Americana”, Os alunos
poderiam subir as médias de 506
pontos em provas de linguagens
e 457 pontos em matemática,
para 524 pontos, respectiva-
mente, caso tivessem condições
melhores estruturais.
... esperamos que dê mais prio- Esta palavra [prioridade] já inclui o
ridade... “mais”.

54
Eliana Donaio Ruiz (org.)

(Pós-texto) Excelente conteúdo, mas algumas corre-


ções são necessárias.
O uso da pesquisa citada foi uma boa
estratégia argumentativa, que traz cre-
dibilidade ao texto, mas o trecho que
destaquei precisa ser esclarecido.
Em geral, ótima carta!
Carta 2 Concluo que a direção deve ... abordados, e buscar, junto à UEL,
avaliar melhor esses quesitos solucionar os problemas, fazendo...
abordados (apresentar sugestões incluindo a comu-
nidade escolar).
(Pós-texto) O conteúdo do texto é muito pertinente.
Apenas revisar os problemas apontados
e complementar a conclusão para melho-
res resultados com o interlocutor.
Carta 3 ... pois não sou X9 (caguete)... Gírias. Substituir por delator etc.
Um exemplo perfeito disso é ... esforçado, dedicado e muito querido... -
o de nosso jovem Natan, um Não entendi se o elogio é real ou irônico
aluno esforçado, dedicado e (exagerado).
muito querido por todos seus ... coleguinhas – O diminutivo mostra
coleguinhas. ironia.
O que ocorreu foi que um grupo Palavras inadequadas.
de 3 delinquentes, “Vagabun-
dos” fizeram varias travessu-
ras....
Graças ao Pré-conceito dos Baseada em que a afirmação?
professores...
(Pós-texto) Falta concluir. Qual sua solicitação,
então?
E a saudação final, com assinatura?
A reclamação da carta é válida, mas não
ficou claro seu objetivo. O que pretendem
com o texto: apenas reclamar ou esperam
alguma atitude do interlocutor?
Também faltam bases argumentativas
para afirmações como “preconceito dos
professores” e “é fato que professores
tenham seus favoritos”, por exemplo.

Fonte: A autora.

55
escrita como prática social (não) escolar

Os apontamentos corretivos feitos nos textos são das mais diversas


esferas, desde tópicos estruturais do gênero textual (local e data, sau-
dação final, por exemplo), passando pela adequação da linguagem ao
interlocutor (gírias, palavras grosseiras, ironias), até comentários sobre
a coerência e a argumentação. Observemos os exemplos a seguir (já
mencionados no quadro 2), recortados dos textos originais:
Exemplo 1 – Elemento composicional do gênero: Carta 1.

Fonte: Acervo da autora.

Exemplo 2 – Adequação da linguagem: Carta 3.

Fonte: Acervo da autora.

56
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Exemplo 3 – Problema de coesão: Carta 1.

Fonte: Acervo da autora.

Exemplo 4 – Problema de coesão: Carta 2.

Fonte: Acervo da autora.

Exemplo 5 – Problema de argumentação: Carta 3.

Fonte: Acervo da autora.

Não houve, portanto, restrição a um ou outro aspecto da escrita. Os


trechos destacados demonstram que buscamos, enquanto professora, man-
ter a postura de leitora dos textos, não de avaliadora apenas. Esse viés do
papel do professor como interlocutor-mediador demonstra a preocupação
em analisar os aspectos globais do texto e de sua intencionalidade, para o
que não coube ficarmos circunscritas a questões gramaticais/estruturais,
embora esses sejam tópicos que não devam ser ignorados (e não o foram).
Já nos comentários pós-textuais, procuramos condensar os princi-
pais pontos a serem revisados pelos alunos, de maneira respeitosa ao seu
estilo e contexto, além de inserir sempre uma frase elogiosa ao texto do

57
escrita como prática social (não) escolar

estudante, em reconhecimento ao seu esforço (e sucesso, na maioria das


vezes) em organizar suas produções com vistas a um objetivo.
Exemplo 6 – Pós-texto: Carta 1.

Fonte: Acervo da autora.

Exemplo 7 – Pós-texto: Carta 2.

Fonte: Acervo da autora.

Exemplo 8 – Pós-texto: Carta 3.

Fonte: Acervo da autora.

Essa estratégia do comentário também foi pensada para funcionar


como um propulsor de motivação, a fim de que o aprendiz enxergasse
os benefícios de seguir as etapas previstas de planejamento – escrita –
revisão – reescrita, aperfeiçoasse sua produção textual e alcançasse um
objetivo pelo escrever, como foi o caso.

58
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Em suma, por meio do projeto de letramento da carta argumentativa


enviada a autoridades, atravessado por uma correção textual-interativa,
fruto de nossa visão de linguagem como interação e de texto como ins-
trumento de ação, obtivemos resultados profícuos no ensino da escrita,
como veremos na próxima seção.

4. APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS

Ademais de um grande avanço na produção escrita da turma, a


prática de letramento, com a correção textual-interativa, possibilitou o
exercício da cidadania dos estudantes, que puderam agir por meio da
linguagem.
Todas as cartas foram enviadas aos destinatários selecionados pelos
autores, sendo que duas das analisadas foram entregues à própria escola,
conforme a indicação de endereçamento. Estas geraram desconforto na
direção, que mobilizou os funcionários e a instituição mantenedora, a
fim de sanar alguns dos problemas mais pontuais apontados pelos alu-
nos: limpeza dos banheiros e das salas; ausência de papel higiênico e de
sabonete nos banheiros; relacionamento entre professores e alunos etc.
Muitos dos problemas foram resolvidos no dia seguinte ao recebimento
das cartas, como os dos banheiros e a limpeza das salas. Além disso, a
turma obteve o retorno pessoal da diretora auxiliar, que visitou a sala de
aula e se comprometeu com a pauta apresentada nos textos, dedicando
seu tempo a ouvir suas reivindicações.
Conforme pudemos observar, o projeto de letramento realizado na
escola ultrapassou a corriqueira atribuição de nota e configurou-se como
um evento genuíno de ação pela linguagem, intrínseco à vida sócio-
política dos estudantes:

[...] uma situação comunicativa que envolve atividades que


usam ou pressupõem o uso da língua escrita – um evento de
letramento – não se diferencia de outras situações da vida
social: envolve uma atividade coletiva, com vários partici-
pantes que têm diferentes saberes e os mobilizam (em geral

59
escrita como prática social (não) escolar

cooperativamente) segundo interesses, intenções e objetivos


individuais e metas comuns (KLEIMAN, 2007, p. 5).

Assim, verificamos que o texto escrito deixou de ser uma avaliação


inerte, focada na classificação do indivíduo, para se tornar um instru-
mento de realização do sujeito que o produziu, a fim de transformar a si
e ao seu entorno, para lhe oportunizar a melhoria da qualidade de vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos resultados apontados, chegamos à conclusão de que a


correção dos textos é mais eficaz quando voltada ao aspecto argumen-
tativo, coesivo e contextual, não simplesmente às regras gramaticais
ou das estruturas frasais, para o que a intervenção textual-interativa é a
mais eficaz; por isso, durante a análise dos dados, chamamos a atenção
constante para a inserção dos comentários nas correções.
Vimos também, no decorrer deste trabalho, que o aperfeiçoamento
da escrita se dá por meio do estabelecimento de objetivos específicos,
tendo como meta um interlocutor real e uma atitude cidadã, como em
nossa proposta de produção textual: escrever uma carta argumentativa de
reclamação/solicitação a uma autoridade competente, visando à solução
de um problema coletivo/social.
Por fim, constatamos que, no ensino, a visão de linguagem como
interação e de texto como instrumento de ação proporcionou produções
textuais mais bem elaboradas pelos alunos e levou-os a atingir seus obje-
tivos por meio da escrita. Em outras palavras, essas concepções docentes
interferem diretamente e positivamente nos resultados do trabalho em sala
de aula, uma vez que permeiam toda a ação do professor (implementação
do projeto de letramento, em nosso caso) e seu olhar para o texto enquanto
leitor real, não um corretor artificial. Na análise aqui realizada, verifica-
mos que a correção textual-interativa (RUIZ, 2010) foi fundamental para
a efetivação de toda a prática de letramento, culminando na eficácia da
aprendizagem da escrita para um fim determinado.

60
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Dessa forma, podemos dizer que, no caso apresentado, a escrita


cumpriu seu papel de promoção da participação nas esferas sociais e de
formação humana para a cidadania.

REFERÊNCIAS

GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula: leitura e produção. 4. ed.


Cascavel: Assoeste, 1984.
KLEIMAN, Angela B. Letramento e suas Implicações para o Ensino de Língua
Materna. Signo. Santa Cruz do Sul, v. 32, n. 53, p. 1-25, dez. 2007.
KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender o texto: os
sentidos do texto. 3. ed., 4. reimpr. São Paulo: Contexto, 2010.
LEAL, Telma Ferraz. Produção de textos na escola: a argumentação em textos
escritos por crianças. 2003. Tese (Doutorado em Psicologia Cognitiva) ­– Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2003.
MARQUES, Ivoneide B. de A. Santos. A formação de professores de língua
portuguesa: projetos de letramento, agência e empoderamento. In: KLEIMAN, Angela
B.; ASSIS, Juliana Alves (org.). Significados e ressignificações do letramento:
desdobramentos de uma perspectiva sociocultural sobre a escrita. Campinas: Mercado
de Letras, 2016. p. 111-142.
OLIVEIRA, Maria do Socorro; TINOCO, Glícia Azevedo; SANTOS, Ivoneide
Bezerra de Araújo. Projetos de letramento e formação de professores de língua
materna. Natal: EDUFRN, 2014.
RUIZ, Eliana Donaio. Como corrigir redações na escola: uma proposta textual-
interativa. São Paulo:

61
escrita como prática social (não) escolar

ANEXOS

ANEXO A – CARTA ARGUMENTATIVA 1

62
Eliana Donaio Ruiz (org.)

63
escrita como prática social (não) escolar

ANEXO B – CARTA ARGUMENTATIVA 2

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

ANEXO C – CARTA ARGUMENTATIVA 3

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escrita como prática social (não) escolar

66
Eliana Donaio Ruiz (org.)

ENSINO DE PRODUÇÃO TEXTUAL VIA GÊNEROS


DISCURSIVOS: UMA PROPOSTA PARA O GUIA DE VIAGEM1

Andressa Aparecida Lopes

INTRODUÇÃO

Desde a chegada das teorias de texto e discurso e da teoria bakhti-


niana nos estudos linguísticos brasileiros, o ensino de língua materna
tem sido repensado.
É notável que o êxodo rural, a democratização da educação e,
consequentemente, o novo público escolar foram fatores cruciais para
reformular a educação escolar. Linguisticamente falando, a heteroge-
neidade em sala de aula suscitava um novo olhar e um novo objeto de
ensino que permitisse que a aprendizagem da língua ocorresse de modo
significante. O público escolar, não mais elitizado, empregava uma lin-
guagem distinta da que era ensinada pelos manuais formais e tradicionais
da Língua Portuguesa, e essa distância entre o sistema linguístico e a
realidade dificultava o processo de escolarização.
Ainda, no que diz respeito ao ensino de produção de textos, alicer-
çado na concepção de linguagem como instrumento de comunicação,
considerava a escrita como uma mera atividade mecânica, fruto de uma
internalização inconsciente que não apresentava a mobilidade das prá-
1 Artigo produzido a propósito da disciplina Ensino de Produção Escrita em Língua Materna, do
Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL) da Universidade Estadual
de Londrina (UEL), sob orientação da Profa. Dra. Eliana Maria Severino Donaio Ruiz.

67
escrita como prática social (não) escolar

ticas sociais reais. Dessa forma, escrever era o mesmo que reproduzir
modelos prontos, só que rigorosamente adequados segundo os sistemas
gramatical e ortográfico da língua.
Com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,
1997), com ideias norteadoras sobre o processo de ensino-aprendizagem
mediado pelo professor e uma língua mobilizada por meio das práticas
sociais reais, o texto se torna o protagonista no ensino. O texto, como
materialização dos gêneros discursivos – termo cunhado por Bakhtin
(2010) –, carrega consigo o fator reflexivo sobre a língua, uma vez que
pensar em gêneros discursivos, ainda que de forma didatizada, exige uma
análise sobre a sociedade e as suas formas de comunicação.
Pelo caráter dialógico das práticas sociais e na tentativa de propor
um trabalho à luz dos preceitos bakhtinianos e do ensino de gêneros,
nossa proposta didática integra os eixos de ensino de Língua Portuguesa,
especialmente a produção textual e a análise linguística.
Para tanto, escolhemos o gênero Guia de Viagem, uma vez que
constitui uma prática social que permite ao aprendiz explorar os conhe-
cimentos linguísticos e textuais do gênero e, também, se apropriar do
gênero e o contexto sócio-histórico no qual a comunidade escolar se
insere. Assim, mais que interagir com o sistema linguístico, o aprendiz
se relaciona de maneira efetiva com o seu ambiente, com sua cidade
e com conhecimentos que, no âmbito educacional, são considerados
interdisciplinares, efetivando, assim, o que propõem os documentos
oficiais, o que permite a colaboração para a formação escolar e cidadã
dos aprendizes.

1 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

1.1 O trabalho com os gêneros discursivos

Aprovada, e em recente fase de implantação, a Base Nacional Co-


mum Curricular (BRASIL, 2017) dialoga com os documentos oficiais
anteriores no que diz respeito às ideias que norteiam o ensino de Língua

68
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Portuguesa. Assume-se, portanto, a continuação de um trabalho pedagó-


gico pautado na concepção interacionista de linguagem, conforme aponta
Bakhtin (2009). Dessa forma, a linguagem só se materializa por meio da
interação; é nela que locutor e interlocutor reconhecem seus signos2 em
comum e é por meio dela que ambos dialogam.
Partindo do pressuposto bakhtiniano de que o ser humano se cons-
titui na e pela linguagem, o emprego da língua realiza-se sob a forma de
enunciados concretos ou de textos-enunciado que refletem as situações
comunicativas características dos vários campos de atividade humana. As-
sim, os “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2010,
p. 262), designados pelo autor como gêneros discursivos, constituem-se
apresentando regularidades para evitar o caos comunicativo:

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais


e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes
desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enun-
ciados refletem as condições específicas e as finalidades de
cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo
estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por
sua construção composicional. Todos esses três elementos – o
conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão
indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igual-
mente determinados pela especificidade de um determinado
campo da comunicação (BAKHTIN, 2010, p. 261-262).

São essas três características – conteúdo temático, construção


composicional e estilo – que permitem que os gêneros discursivos sejam
reconhecidos e produzidos de maneira adequada.
Como interagimos em diversas esferas sociais, inúmeros são os
gêneros que circulam e que necessitamos conhecer para que possamos
interagir de modo eficiente em qualquer situação ou atividade social.
Dessa forma, um cidadão linguisticamente competente é aquele que

2 A terminologia aqui utilizada se refere aos signos enquanto sistemas de significação, sejam
eles verbais ou não verbais.

69
escrita como prática social (não) escolar

consegue interagir adequadamente em cada situação comunicativa


que lhe surge.

Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente


os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos
neles a nossa individualidade, refletimos de modo mais flexível
e sutil a situação singular da comunicação; em suma, realiza-
mos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso
(BAKHTIN, 2010, p. 285).

Os preceitos bakhtinianos vão ao encontro das propostas oficiais


que almejam a prática social real como protagonista no ensino. Dessa
maneira, compreende-se que o aluno, ao estar em contato com práticas
efetivas do uso da linguagem, conseguirá, ao longo do tempo escolar,
se tornar linguisticamente eficiente em qualquer situação comunicativa
que venha a integrar.
Além da questão do repertório de práticas sociais, o exercício do-
cente, viabilizado por meio de gêneros discursivos, permite um trabalho
muito mais amplo e interdisciplinar, visto que as práticas sociais não são
estanques e são constituídas de conhecimentos de várias áreas.
Portanto, trabalhar com o texto exige, tanto por parte dos docentes
quanto dos discentes, um pensamento amplo que visualize o enunciado
concreto em sua real circulação e que, assim, contemple práticas dis-
tintas e uma organização pedagógica baseada na atuação por meio da
linguagem.
É o que propõem os documentos oficiais – BNCC, DCN, PCN –,
com a configuração do trabalho docente por meio de eixos organizadores
de ensino: leitura, produção de textos, oralidade e análise linguística:

O estabelecimento de eixos organizadores dos conteúdos de


Língua Portuguesa no ensino fundamental parte do pressu-
posto que a língua se realiza no uso, nas práticas sociais; que
os indivíduos se apropriam dos conteúdos, transformando-os
em conhecimento próprio, por meio da ação sobre eles; que
é importante que o indivíduo possa expandir sua capacidade

70
Eliana Donaio Ruiz (org.)

de uso da língua e adquirir outras que não possui em situa-


ções lingüisticamente significativas, situações de uso de fato
(BRASIL, 1997, p. 35).

O trabalho com os gêneros discursivos permite uma integração entre


os quatro eixos, contudo destacamos neste trabalho os eixos de escrita
e análise linguística, especialmente, uma vez que um dos objetivos de
nosso estudo se alicerça num trabalho de análise linguística integrado à
escrita, ou seja, que o processo de reflexão sobre a língua contribua para
uma escrita mais eficiente e consciente, considerando todos os aspectos
necessários para a produção de texto.
Além disso, acredita-se que esse trabalho integrado da análise lin-
guística à produção de texto permitirá um avanço no processo de ensino-
aprendizagem da escrita, visto que o objetivo é construir um conheci-
mento linguístico reflexivo, ou seja, que o aluno conduza sua experiência
com a linguagem por meio de uma determinada situação comunicativa e
que isso o faça olhar criticamente para a sua produção textual.
Historicamente, o termo análise linguística surgiu no Brasil, ainda
na década de 1980, quando o professor-pesquisador João Wanderley Ge-
raldi escreveu duas obras fulcrais para os encaminhamentos da pesquisa
sobre o ensino de língua portuguesa. A primeira, O texto na sala de aula
(1997), foi precursora na abordagem do texto como objeto de interação
e de ensino, e a segunda, Portos de passagem (1984), cunhou o termo
análise linguística e trouxe os modos interacionista e didático como a
língua se deixava construir:

O uso da expressão “prática de análise linguística” não se deve


ao mero gosto de novas terminologias. A análise linguística
inclui tanto o trabalho sobre questões tradicionais da gramática
quanto a questões amplas a propósito do texto, entre as quais
vale à pena citar: coesão e coerência internas do texto; adequa-
ção do texto aos objetivos pretendidos; análise dos recursos
expressivos utilizados (metáforas, metonímias, paráfrases,
citações, discurso direto e indireto); organização e inclusão
de informações etc. Essencialmente a prática de análise lin-

71
escrita como prática social (não) escolar

guística não pode limitar-se à higienização do texto do aluno


em seus aspectos gramaticais e ortográficos, limitando-se a
“correções”. Trata-se de trabalhar com o aluno seu texto para
que ele atinja seus objetivos junto aos leitores a que se destina
(GERALDI, 1997, p. 74).

A Base Nacional Comum Curricular também aponta as particula-


ridades no trabalho com a análise linguística, considerando-a como um
trabalho que

[…] envolve os procedimentos e estratégias (meta)cognitivas


de análise e avaliação consciente, durante os processos de leitu-
ra e de produção de textos (orais, escritos e multissemióticos),
das materialidades dos textos, responsáveis por seus efeitos
de sentido, seja no que se refere às formas de composição dos
textos, determinadas pelos gêneros (orais, escritos e multis-
semióticos) e pela situação de produção, seja no que se refere
aos estilos adotados nos textos, com forte impacto nos efeitos
de sentido. Assim, no que diz respeito à linguagem verbal oral
e escrita, as formas de composição dos textos dizem respeito
à coesão, coerência e organização da progressão temática
dos textos, influenciadas pela organização típica (forma de
composição) do gênero em questão. No caso de textos orais,
essa análise envolverá também os elementos próprios da
fala – como ritmo, altura, intensidade, clareza de articulação,
variedade linguística adotada, estilização etc. –, assim como
os elementos paralinguísticos e cinésicos – postura, expressão
facial, gestualidade etc. No que tange ao estilo, serão levadas
em conta as escolhas de léxico e de variedade linguística ou
estilização e alguns mecanismos sintáticos e morfológicos,
de acordo com a situação de produção, a forma e o estilo de
gênero (BRASIL, 2017, p. 78).

De modo integrado à produção textual, todas as particularidades


elencadas pela BNCC (BRASIL, 2017) direcionam o ensino de Língua
Portuguesa a um caminho interdisciplinar e focado ao seu uso real:

72
Eliana Donaio Ruiz (org.)

O Eixo da Produção de Textos compreende as práticas de


linguagem relacionadas à interação e à autoria (individual ou
coletiva) do texto escrito, oral e multissemiótico, com diferen-
tes finalidades e projetos enunciativos (BRASIL, 2017, p. 76).

Desse modo, as ideias norteadoras da BNCC (BRASIL, 2017) no


processo de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa pontuam para
um dinamismo de práticas sociais que envolvam gêneros discursivos
diferentes e, ainda, que permitam que os aprendizes interajam com
textos que possuam configurações discursivas distintas, permitindo que
o processo de produção textual esteja relacionado às multimodalidades
presentes no cotidiano dos mais diversos campos de atividade humana.
Um trabalho de produção textual concebido de modo interdisciplinar
e social só é possível na integração dos eixos de ensino enquanto práticas
também sociais. Por esse motivo, a centralidade das ideias interacionistas
propostas pelo Círculo de Bakhtin e seus pesquisadores está no texto. Isso
garante que o fio condutor de toda a aprendizagem seja a prática real no
uso da língua(gem) e que considere cada particularidade (condições de
produção) comunicativa.
Nesse contexto é que surge este estudo: uma proposta de ensino
que contemple os gêneros discursivos, de modo que a análise linguística
reflita no desenvolvimento do trabalho com a escrita, permitindo, assim,
por parte do aprendiz, seu monitoramento e apreensão do gênero e das
particularidades que a prática da escrita exige.

1.2 O gênero guia de viagem

Historicamente, o gênero guia de viagem é uma transformação co-


municativa. Inicialmente, as informações para se planejar uma viagem
ou, simplesmente, buscar informações relativas ao local de destino só
era possível por meio de agências de turismo, seja por especialistas da
área, seja por meio da leitura de relatos de viagem e narrativas ficcionais
que abordavam uma determinada localização.

73
escrita como prática social (não) escolar

No que diz respeito aos relatos e narrativas, havia um certo pro-


blema em realizar pesquisas sobre tais gêneros: a veracidade e preci-
são das informações que, pelo caráter pessoal dos textos, poderia não
contemplar informações objetivas e detalhadas segundo a necessidade
do viajante.
Ao longo do tempo, o mercado turístico se tornou mais amplo e,
consequentemente, abriu espaço às produções informativas mais especí-
ficas: os guias de viagem. Hoje, com a expansão tecnológica, a facilidade
em se obter guias e orientações é muito maior. Mas isso não retirou o
caráter persuasivo e utilitário do gênero em questão.
Segundo Catherine Lavenir (1999 apud MATOS; SANTOS, 2004),
a transformação do guia de viagem ocorreu em três momentos distintos:
a primeira geração, na qual os guias possuíam um formato muito mais
próximo ao relato de viagem; a segunda, que, com a modernização dos
transportes ferroviários e com a expansão do mercado de turismo, co-
meçou a compreender o formato do guia com as atrações e informações
específicas; por fim, a terceira, que, desde o início do século XX, se
consolida como o padrão atual.3
Com base no esquema de Magalhães (2006), o quadro a seguir
aponta a construção composicional do gênero guia de viagem:

3 Esse “padrão” de guia de viagem, segundo Magalhães (2006), surgiu em Portugal e, diante do
avanço turístico da Europa, acabou se modelizando para os demais países.

74
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Quadro 1 – Categorização do guia de viagem

Apresentação Introdução geral ao lugar: destaques turísticos, dados históricos,


aspecto, características geográficas e arquitetônicas, população,
arredores, localização (incluindo distância para capitais/outras
cidades), recomendação (item essencial, ainda que temerário: é
a indicação ao turista do grau de interesse da visita, quantos dias
são necessários, quais as principais atrações, para qual público
etc.) e recomendações gerais.
Informações gerais Dados extras, que contemplem informações sobre: clima, comuni-
cação, postos de informações turísticas da cidade, serviços básicos.
Transporte Todas as informações referentes à locomoção: localização dos
aeroportos, estações de trem e ônibus, principais companhias lo-
cais/nacionais, preço e duração da viagem para capitais e cidades
próximas, aluguel de carros e características em geral do sistema
de transportes. A depender do tamanho da cidade, alguns guias
também incluem informações sobre transporte urbano (ônibus,
metrô, táxi), preços, existência ou não de passes, horários, rotas
e trânsito.
Acomodação Relação de parte da hospedagem disponível no lugar: hotéis,
pensões e pousadas selecionados, normalmente divididos por
custo, com informações acerca da localização, preço, telefones,
descrição física/aparência, atendimento, nível de conforto e
julgamento – recomendação. Em alguns casos são incluídas ob-
servações sobre faixas de preço, épocas do ano em que reservas
com antecedência são recomendáveis ou regiões que concentram
opções de hospedagem.
Atrações Conjunto de todos os locais de apelo turístico da cidade e seus
arredores: atrações naturais, monumentos, museus, galerias, pra-
ças, bairros e ruas, igrejas, mercados, mirantes, castelos, palácios,
jardins e parques, com indicação de localização. Atrações horário
de funcionamento, preço e descontos, descrição física/ histórica,
destaques, afluência do público por épocas do ano, julgamento e
advertências (riscos à saúde etc.). Dependendo do tamanho e da
quantidade de atrativos na cidade, pode haver uma breve intro-
dução com sugestões dos passeios “imperdíveis”, além de dados
sobre a vida cultural e o aspecto geral da cidade.

Fonte: Magalhães (2006).

75
escrita como prática social (não) escolar

Além da disposição dos elementos, o Guia de Viagem possui um


caráter híbrido, ou seja, apresenta sequências tipológicas distintas: ao
mesmo tempo possui caráter descritivo e instrutivo, algumas vezes, inclu-
sive, configura-se argumentativo. Dessa forma, algumas particularidades
são perceptíveis em suas marcas linguístico-enunciativas, conforme
aponta Magalhães (2006):

– Traços instrutivos: o principal objetivo do gênero guia de viagem é nor-


tear o viajante a realizar seus passeios, planejar sua viagem; dessa forma,
ainda que de uma forma indireta, o produtor do guia está conduzindo,
está instruindo o turista a realizar seu percurso na cidade escolhida. A
principal característica dos textos instrutivos é o uso de verbos no modo
imperativo (Comece o passeio pela manhã para dar tempo de usar todos
os seus tickets!)

– Traços descritivos: Em um guia de viagem, quanto mais detalhada for


a descrição do local ou da atração, mais seguro ficará o turista a realizar
sua viagem. Dessa forma, a precisão e o uso de uma linguagem objetiva
fazem com que cada elemento do guia traga informações suficientes para
a organização da viagem:
[...] Bosque do Alemão é um bom local para ser visitado com
crianças: aos sábados, domingos e feriados tem a Hora do
Conto (11h, 14h e 16h, grátis) e ainda uma sala de concertos,
a trilha de João e Maria, uma biblioteca infantil e um mirante
conhecido como Torre dos Filósofos (BOLSA DE VIAGEM,
2015, p. 1).

– Traços argumentativos: Alguns Guias de Viagem trazem aspectos


valorativos, ou seja, se posicionam sobre a realização de algum passeio ou
destacam alguma atração. Isso, linguisticamente falando, é evidenciado
pelo uso dos adjetivos, sejam eles favoráveis ou não à realização das
atividades propostas. Ainda que o objetivo não seja vender uma viagem
ou um local, os guias podem trazer essas informações com o intuito de
motivar o viajante a reconhecer o valor e a importância de tal localidade:

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

(Visitar Curitiba e não conhecer o Jardim Botânico é quase ir à Roma e


não ver o papa!) (BOLSA DE VIAGEM, 2015, p. 1).
Assim, ainda no que diz respeito às marcas linguístico-enunciativas,
o uso da norma padrão da língua é recorrente, uma vez que o público é
muito amplo. Empregam-se verbos preferencialmente no modo impera-
tivo (aproveite para conhecer os dois pontos em um único passeio) ou
no modo indicativo, tendo, neste último a preferência do tempo presente
(o restaurante oferece requintado cardápio) ou futuro do presente (Cer-
tamente você não irá apenas uma vez à Curitiba). As escolhas verbais
indicam o caráter instrutivo (verbos no imperativo) e descritivo (tempo
presente), conforme a necessidade de apontar os aspectos de uma loca-
lização ou atração.
Ainda referente ao estilo do gênero, os recursos não verbais também
são essenciais para a composição do texto, visto que eles são responsáveis
pela identificação dos pontos turísticos. No Guia de Viagem impresso,
o uso de imagens e fotografias é essencial para ilustrar os locais e in-
formações prestadas. Já no guia on-line, além das fotografias, o uso de
hiperlinks que façam conexões com outras fontes de informações e vídeos
também pode auxiliar na organização de um roteiro ou percurso de via-
gem. Desse modo, a linguagem não verbal selecionada é tão importante
quanto as palavras escolhidas para descrever uma atração.
Imagem 1 – Museu Oscar Niemeyer

Fonte: Bolsa de Viagem (2015, p. 1).

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escrita como prática social (não) escolar

2. O PLANO DE TRABALHO DOCENTE: UMA ABORDAGEM PEDA-


GÓGICA HISTÓRICO-CRÍTICA DOS GÊNEROS DISCURSIVOS

Nossa pesquisa, de cunho qualitativo-interventivo, objetiva apre-


sentar uma proposta de ensino de produção textual via gênero discursivo
Guia de Viagem. Para tanto, utilizamos o Plano de Trabalho Docente
(PTD) proposto por Gasparin (2012), alicerçado na Pedagogia Histórico-
Crítica e, principalmente, nos pressupostos vygotskianos, que vão ao
encontro da perspectiva interacionista de linguagem empregada, também,
por Bakhtin (2009).
Para conhecer brevemente como se constrói o Plano de Trabalho
Docente, é importante considerar que a Pedagogia Histórico-Crítica,
apresentada por Saviani (2003) e abordada em termos didáticos por
Gasparin (2012), incorpora, em seu processo constitutivo, o materialismo
histórico-dialético apontado por Marx (1982).
O materialismo histórico-dialético é assim chamado, pois “a sua
maneira de considerar os fenômenos da natureza, o seu método de in-
vestigação e de conhecimento é dialético e a sua interpretação, a sua
concepção dos fenômenos da natureza, a sua teoria é materialista”
(STALIN, 1978, p. 13, grifos nossos).
Dessa forma, considera-se que nenhum elemento da natureza se
constitui isolado dos fenômenos que o cercam, ou seja, que toda a ativi-
dade humana está indissoluvelmente relacionada aos elementos histórico-
culturais que permeiam sua produção e existência.
Esses preceitos vão ao encontro do que apontam Bakhtin (2009) e
Vygotsky (1989). Para ambos, a linguagem se torna o centro da mate-
rialização das interações sociais.
De acordo com Vygotsky (1989), a linguagem apresenta a função
de intercâmbio social, quando os sistemas de linguagem são criados para
que o homem consiga se comunicar com outros indivíduos. É por meio
dessa necessidade de comunicação que a linguagem se desenvolve.

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

Bakhtin (2009), por sua vez, pressupõe ser a linguagem um con-


junto coerente de signos, carregados de valores histórico-culturais que
emergem nas situações comunicativas. Assim, é por meio da linguagem
que os serem estabelecem relações entre si.
Desse modo, entende-se que o materialismo histórico-dialético se
torna coerente ao processo didático apontado pela pedagogia histórico-
crítica: é um dos papéis da escola apropriar-se de condições e conheci-
mentos, a fim de transformar as atividades humanas e percebê-las so-
cialmente. Para o ensino-aprendizagem da linguagem, é necessário levar
o aprendiz – por meio da mediação docente e de seus instrumentos – à
apropriação dos conhecimentos necessários para o uso efetivo da língua
nas situações reais de comunicação.
A proposta de Gasparin (2012) – o Plano de Trabalho Docente –,
com a orientação da teoria do desenvolvimento de Vygotsky (1989)�,
contempla etapas a serem sequenciadas em sala de aula, as quais consti-
tuem a construção e a reflexão sobre os conteúdos. No quadro a seguir,
é possível verificar como se configura o PTD:

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escrita como prática social (não) escolar

Quadro 2 – Configuração do quadro PTD

PRÁTICA TEORIA PRÁTICA

Nível de Nível de
desenvolvi- desenvolvimen-
mento to atual
Nível de desenvolvimento proximal
atual
(potencial que
(real) se torna real)

Prática Social Instrumentaliza-


Inicial do Problematiza- ção
Conteúdo ção
a) Ações didático- Prática Social
1. Anúncio dos Catarse
Dimensões a pedagógicas Final
conteúdos serem trabalha-
das b) Recursos utili-
2. Vivência zados
dos conteúdos

Fonte: Gasparin (2012).

Com base nessa metodologia, a seguir será apresentada a proposta,


com as atividades e reflexões a serem desenvolvidas tendo como escopo
produção textual e análise linguística na prática docente.

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

3. A PROPOSTA DIDÁTICA: PLANO DE TRABALHO DOCENTE DO


GÊNERO GUIA DE VIAGEM
Quadro 3 – Plano de Trabalho Docente

Plano de Trabalho Docente


Objeto de ensino: Gênero discursivo guia de viagem
Ano escolar: 9º ano do Ensino Fundamental
Duração: 8 horas/aula

Fonte: A autora.

I Prática Social Inicial


Na Prática Social Inicial, estamos em contato com o nível de de-
senvolvimento real do aprendiz. É nessa fase que os alunos demonstram,
por meio de questionamentos que o professor mediará, o que já sabem a
respeito do conteúdo a ser trabalhado e, também, é o momento em que
o docente verifica o que pode ser ampliado.

1) Anúncio dos conteúdos


Esta etapa é o momento em que apresentamos os tópicos a serem
discutidos e trabalhados durante as aulas. Os alunos poderão ser desafia-
dos ao se depararem com conteúdos novos e que se relacionam com sua
prática social; para tanto, serão apresentados alguns Guias de Viagem
para que eles tenham um primeiro contato com o gênero que produzirão.

2) Vivência dos conteúdos


Este momento orienta as ações em sala de aula para que possamos
investigar o que os alunos já sabem e o que mais eles gostariam de saber
sobre aquele determinado conteúdo.
Após um breve contato com os guias disponibilizados para a turma,
perguntamos aos alunos se eles conhecem textos com os quais eles estão
interagindo e o que eles esperam saber a respeito.

81
escrita como prática social (não) escolar

II Problematização
Em seguida, possibilitamos a construção dos conhecimentos acerca
dos gêneros e conceitos sobre o Guia de Viagem e seu papel social. É
nessa fase que levantaremos os questionamentos que devem ser respon-
didos ao longo do trabalho.
Dimensões a serem trabalhadas:
– Conceitual: O que é um guia de viagem?
– Social: Qual a importância do guia de viagem?
– Histórica: Qual a origem do guia de viagem e sua relação com os
aspectos históricos, geográficos e culturais de sua cidade?

III Instrumentalização
a) Ações didático-pedagógicas para a aprendizagem
Na etapa em foco, representamos a efetiva ação de sistematizar o
conhecimento para auxiliar o discente em sua reflexão e apropriação das
características do gênero
As atividades individuais ou coletivas têm como objetivo permitir
que os alunos construam seu conhecimento por meio das diversas lin-
guagens, da interação uns com os outros e, também, por mediação de
instrumentos.
Nesse momento, a mediação tem maior destaque, visto que o objeto
de conhecimento e o aluno estão em maior evidência devido à sistemati-
zação proporcionada pelo professor: “A instrumentalização é o caminho
pelo qual o conteúdo sistematizado é posto à disposição dos alunos para
que o assimilem e o recriem e, ao incorporá-lo, transformem-no em ins-
trumento de construção pessoal e profissional” (GASPARIN, 2012, p. 51).
Na etapa da instrumentalização, serão estabelecidos os conheci-
mentos necessários para que ocorra a produção do Guia de Viagem; no
nosso caso, refletir, por meio do estudo do gênero e da discussão em sala
de aula, sobre os aspectos sociais, textuais e linguísticos desse gênero.

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

1ª etapa: conhecendo o gênero:


Solicitaremos, ao término do levantamento dos conhecimentos
prévios dos alunos, que eles façam a seguinte atividade de pesquisa:

Pesquise nos livros e na internet o que é um guia de viagem. Busque


informações históricas de onde ele surgiu e quais motivos sociais podem
ter possibilitado seu surgimento. Não se esqueça de anotar as principais
informações e, se possível, traga um exemplo de guia. Pode ser impresso
ou digital.

No primeiro momento, então, as pesquisas dos alunos serão dis-


cutidas e haverá uma primeira apresentação do surgimento do Guia de
Viagem e das condições sócio-históricos que levaram ao surgimento
desse gênero.
Para a sequência da atividade, serão disponibilizados dois Guias
de Viagem impressos: um da cidade de Santiago e outro da cidade de
Curitiba.

Agora que você realizou a leitura dos guias disponibilizados, reúna-se


com seus colegas e tentem reconhecer o que há de comum entre eles.
Anotem em tópicos as semelhanças e diferenças.

Ao término, observaremos, por meio de uma discussão oral,


as características apontadas pelos alunos, utilizando os guias como
exemplos para averiguar se as regularidades levantadas são especí-
ficas do guia.
Ainda nessa etapa inicial de conhecer o gênero, solicitaremos que os
alunos realizem algumas atividades relativas às características do gênero
com o objetivo de investigar as regularidades (características) específicas
do gênero Guia de Viagem:

83
escrita como prática social (não) escolar

Observe o guia de viagem da cidade de Curitiba e responda às seguintes


questões:
a) Qual é o assunto principal do texto que você lê?
b) As informações trazidas pelo guia de viagem são claras? Elas dão
informações suficientes sobre um determinado local a ser visitado?
c) O fragmento a seguir traz informações sobre dois locais muito famo-
sos de Curitiba. Quais são os tipos de informações que eles trazem em
comum?
d) Há um determinado padrão ou formato na organização do texto?
Qual seria? Exemplifique com fragmentos do guia.
e) O que não pode faltar em um guia de viagem?
Imagem 2 – Rua 24 horas e Museu Ferroviário

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

Fonte: Curitiba (2017, p. 1).

Após essa etapa, apresentaremos, então, as regularidades que os


discentes não consideraram ou, ainda, reforçaremos as características
apontadas por eles. Isso pode ser realizado por meio do quadro negro,
realizando esquemas ou até mesmo com o auxílio de um Datashow, caso
haja disponibilidade na escola.
Ainda na fase de instrumentalização, os aprendizes realizarão uma
atividade on-line. Para este momento, pode-se utilizar o laboratório de
informática ou, se a escola permitir, o uso dos aparelhos celulares dos
próprios alunos, desde que haja conexão com a internet.
Neste momento, os alunos realizarão a leitura de um Guia on-line
da cidade de Curitiba (BOLSA DE VIAGEM, 2005). O objetivo é que
eles observem se há semelhanças ou distinções entre os dois suportes,
uma vez que os primeiros Guias eram impressos.
Com o intuito de instigar a reflexão e a comparação entre os suportes,
realizaremos os seguintes questionamentos:

Os guias possuem a divisão marcada pelo nome do local e imagens? Há


alguma diferença entre eles?

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escrita como prática social (não) escolar

Cada ponto turístico da cidade possui descrições detalhadas? Justifique


sua resposta com exemplos.

Agora, ainda no processo de instrumentalização, os alunos serão


conduzidos a observar a linguagem empregada e suas particularidades.
Essas marcas linguístico-enunciativas são elementos fundamentais para
a etapa seguinte: a produção textual, e, também, para que os aprendizes
compreendam que cada prática social possui características no alcance
dos objetivos comunicativos.
É importante ressaltar que nesta etapa, muitas vezes, os discentes
podem não se recordar de alguns conceitos da língua. Cabe ao professor,
então, mediar uma revisão dos conceitos, caso contrário não haverá apre-
ensão das particularidades do gênero discursivo. Para isso, realizaremos
uma atividade de retomada das características do Guia de Viagem:

Na leitura dos guias de viagem da cidade de Curitiba, pudemos observar


algumas características específicas no emprego das linguagens. Pensando
nisso, observe as questões a seguir refletindo e exemplificando. Os guias
podem ser consultados.
a) Como você classificaria a linguagem empregada? Ela é formal ou
informal? Justifique sua resposta.
b) Com base na sua resposta anterior, qual seria o motivo de a linguagem
ser empregada da forma como foi?
c) Agora, falando um pouco sobre os verbos, quais são os modos verbais
mais utilizados no texto?
d) Como você pode observar, há uma predominância de modos e tempos
verbais. Qual o motivo de o autor do guia utilizá-los? Há um objetivo
direcionado ao público?
e) Além do texto verbal, reconhecemos a presença de vários elementos
não verbais nos guias. Quais são eles?
f) Qual a importância dos recursos não verbais para o viajante?
g) Se você tivesse que criar um check-list de itens que não podem faltar
em seu guia, quais seriam?
h) O gênero guia de viagem possui vários aspectos instrutivos. Quais
são eles?

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

i) Você considera as descrições das atrações e da cidade adequadas?


Por quê?
j) Quais aspectos textuais auxiliam para que a descrição ocorra de modo
eficaz?

Após a atividade, observamos quais lacunas restaram para que haja


uma intervenção sobre o gênero trabalhado. Isso pode ser realizado com
a leitura conjunta do guia, apontando as características que faltaram ou,
ainda, explicações dos conceitos, desde que aplicadas ao gênero guia
de viagem.

IV Catarse
De acordo com Gasparin (2012), a operação essencial da Catarse
é a de síntese mental, entendida como processo de apropriação ou de
internalização dos conteúdos veiculados durante as etapas de Proble-
matização e Instrumentação.
Nesse momento, o aluno deve mostrar o que realmente aprendeu
durante todo o processo de elaboração mental e material do conhecimento
teórico. Para Gasparin (2012, p. 124), “A catarse é a síntese do cotidiano e
do científico, do teórico e do prático a que o educando chegou, marcando
sua nova posição em relação ao conteúdo e à forma de sua construção
social e sua reconstrução na escola”.
A nova postura do aluno, diante dos conhecimentos científicos
apreendidos, é observada pelas suas ações sociais e na materialização
do que aprendeu.
A catarse de nossa proposta será a produção de um guia de viagem
da cidade em que os alunos residem e será dividida em três momentos
distintos:
1) Pesquisa e busca dos dados necessários para a produção do guia de
viagem.
2) A produção do guia.
3) A refacção textual final.

87
escrita como prática social (não) escolar

A etapa da pesquisa, inclusive, pode ser solicitada logo no início


da aplicação do PTD, para que os discentes consigam reunir um maior
número de informações para a construção do plano. É importante destacar
que eles devem buscar informações sobre os principais atrativos de sua
cidade, bem como selecionar fotografias e imagens que serão anexadas
no processo de refacção textual, uma vez o emprego dos elementos não
verbais auxilia na leitura e na orientação do leitor/viajante.
Após a pesquisa e coleta dos dados, solicitaremos a produção do
Guia. Como ela será impressa ou, até mesmo, divulgada on-line – isso
depende da disponibilidade da escola ou até mesmo do professor de criar
um blogue ou um grupo no Facebook para a troca das experiências entre
os alunos –, é importante que os alunos iniciem a produção4 no laboratório
de informática. Desse modo, eles conseguem dialogar entre si e com o
professor durante o processo de criação, caso as dúvidas venham a surgir.
Após a entrega da primeira versão, seguiremos para a etapa da
correção do texto. Trata-se de um processo muito importante para a
percepção do que os alunos realmente assimilaram e no atendimento à
proposta realizada. Carecemos ter cuidado com os critérios de correção,
que devem, primeiramente, ser apresentados aos alunos, mas, principal-
mente, atender aos objetivos iniciais do processo de ensino-aprendizagem
proposto. Como nosso foco é a vivência do aluno na produção de um Guia
de Viagem, a correção precisa avaliar esses aspectos: se o aluno atende
à proposta e ao gênero discursivo e se as especificidades das linguagens
estão sendo contempladas. Conforme aponta Ruiz (2010), uma correção
dialógica é a forma mais adequada de permitir que o aluno reflita sobre
seu texto, por isso o processo de correção visto como uma “higieniza-
ção” – corrigindo apenas os elementos ortográficos e gramaticais – não
se torna uma prática qualitativa para esse fim.
Após a correção, os discentes reescreverão o texto e prosseguirão
com a versão final, que será materializada conforme o professor desejar.
A etapa de socialização dos textos produzidos é muito importante, pois,
4 Essa prática permite que os alunos vivenciem realmente a produção do Guia. Se o professor
achar conveniente que eles pratiquem a ortografia, pode desabilitar a função de correção
automática, o que permite monitoramento da escrita por parte do discente.

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

além da valorização do trabalho exercido pelos alunos, o texto entrará


em circulação. Ainda que não em sua esfera social, com o objetivo de
instruir viajantes, o texto atingirá seu objetivo de instruir/informar os
leitores do guia sobre as principais características e atrações presentes
na cidade dos alunos.

V Prática Social Final


Nesta última etapa, retornamos à Prática Social Inicial de modo que
os alunos podem refletir sobre os conhecimentos adquiridos. Espera-se
que o processo de ensino proporcione novas posturas no agir social,
porém, conforme aponta Gasparin (2012), não há controle na transposi-
ção do conhecimento para a realidade, visto que as transformações nem
sempre são materializadas, podendo manter-se apenas na consciência
individual.
Sistematicamente, o que esperamos, ao término desse PTD, é que as
perguntas introduzidas na etapa de problematização sejam respondidas
e que, de alguma forma, elas conduzam os alunos a uma vivência com
a linguagem mais ampla, especialmente no que diz respeito à produção
escrita e da consolidação desta prática por meio da análise linguística.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo de práticas pedagógicas via gêneros discursivos tem


sido recorrente no campo do ensino de Língua Portuguesa e nos estu-
dos linguísticos. Isso é justificado pela enorme quantidade de gêneros
existentes nos diversos campos de atuação humana e, principalmente,
pelo entendimento de que é na prática social real que o conhecimento
da língua se materializa.
Desse modo, utilizamos o gênero Guia de Viagem, presente nos
livros didáticos e no contexto escolar, como objeto de ensino, almejan-
do que seu estudo e produção textual aproximem a prática social dos
espaços escolares.

89
escrita como prática social (não) escolar

A proposta também trouxe à tona uma abordagem da Pedagogia


Histórico-Crítica, de modo que houvesse um diálogo teórico-prático
entre a concepção da linguagem proposta pelos estudos bakhtinianos e a
teoria sociointeracionista da aprendizagem pontuada por Vygotsky. Ainda
que fossem contemporâneos, os autores não tiveram contato. Enquanto
a teoria dos gêneros discursivos, emanada da filosofia da linguagem e
dos estudos linguísticos, atende à demanda da observação da língua, os
conceitos vygotskianos abrilhantaram a concepção dos papéis mediadores
na construção dos conhecimentos, permitindo o espaço reflexivo voltado
ao professor e seu protagonismo no percurso de consolidação de saberes.
O objetivo, nesse contexto, é, justamente, permitir que no contato
real com a linguagem que circula socialmente por meio de enunciados
concretos de gêneros discursivos, o aprendiz se torne autônomo e re-
flexivo no seu processo de participação social e desenvolvimento de
conhecimentos linguísticos e textuais. A produção de textos via gêneros
e, alicerçada a uma pedagogia crítica, é um dos passos que torna possível
um ensino plural, interdisciplinar e eficiente na abordagem da linguagem
em seu real contexto de uso.

REFERÊNCIAS

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Martins Fontes, 2010.
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uploads/2018/02/bncc-20dez-site.pdf. Acesso em: 08 dez. 2018.
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segundo ciclos do ensino fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.
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GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
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Eliana Donaio Ruiz (org.)

MAGALHÃES, Adriana Mattos. Guias de viagem como gênero editorial. Rio de


Janeiro: UFRJ, 2006.
MARINELLO, Adiane Fogali; BOFF, Odete Maria Benetti; KÖCHE, Vanilda Salton.
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MARX, Karl. Trabalho assalariado e capital. In: Obras escolhidas de Marx e Engels.
São Paulo: Editorial Avante, 1982.
MATOS, Ana Cardoso de; SANTOS, Maria Luísa F. N. dos. Os Guias de Turismo
e a emergência do turismo contemporâneo em Portugal (dos finais do século XIX às
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STALIN, Josef. Materialismo dialético e materialismo histórico. 1 ed. São Paulo:
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VYGOTSKY, Lev Semenovitch. A formação social da mente: o desenvolvimento
dos processos psicológicos superiores. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
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em: http://www.bolsadeviagem.com.br/curitiba-guia-de-viagem/. Acesso em: 13
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CURITIBA. Prefeitura Municipal. Saiba onde encontrar o novo mapa turístico
de Curitiba. Curitiba, 13 fev. 2017. Disponível em: https://www.curitiba.pr.gov.
br/noticias/saiba-onde-encontrar-o-novo-mapa-turistico-de-curitiba/41191. Acesso
em: 13 dez. 2018.

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

LETRAMENTO E AGÊNCIA: A PRODUÇÃO COLABORATIVA


DE UM BLOG NO CURSO DE LETRAS1

Bruna Carolini Barbosa

INTRODUÇÃO

As pesquisas no campo da Linguística Aplicada, frequentemente,


têm sido desenvolvidas a partir de uma perspectiva não apenas interdisci-
plinar, mas transdisciplinar, em grande parte por conta da complexidade
que compõe o tecido social, o que reflete na linguagem e nas práticas de
letramento. Os usos sociais da leitura e escrita em ambiente acadêmico,
por exemplo, estão cada vez mais híbridos, tanto em relação à materiali-
dade linguística que os compõe, quanto às esferas em que circulam. Em
outras palavras, pode-se afirmar que os gêneros que antes eram escritos e
circulavam apenas entre os intelectuais e eram publicados em veículos de
prestígio, hoje são facilmente encontrados em blogs, jornais e revistas etc.
As mudanças nas práticas de letramento sociais trouxeram implica-
ções para o modo como a leitura e escrita é contemplada na sala de aula,
uma vez que não é coerente que as aulas de Língua Portuguesa fiquem
restritas à apreensão de normas e à produção de textos sem vínculo com
a realidade. Viver em sociedade requer do sujeito a ação por meio da
linguagem nas diferentes esferas de circulação (BAKHTIN, 2003), por
1 Trabalho produzido na disciplina “Ensino de Produção Escrita em Língua Materna”, minis-
trada pela Profa. Dra. Eliana Maria Severino Donaio Ruiz, no Programa de Pós-graduação em
Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina.

93
escrita como prática social (não) escolar

meio dos gêneros discursivos, e a escola, por sua vez, deve formar o
sujeito para a agência cívica, ou seja, deve partir de necessidades reais.
O ensino em uma perspectiva do letramento exige do professor
uma postura diferenciada, em que a sala de aula se transforma em lugar
de interação e criação. Em termos práticos, na área da linguagem, isso
significa que o texto – dos mais diferentes gêneros – passa a ocupar a
centralidade e seu ensino deve se dar de modo que a leitura seja crítica
e a escrita, além de crítica, processual (FIAD, 2011; 2013). A formação
inicial e continuada de professores, deve, portanto, ir ao encontro dessas
exigências. Em face do exposto, surge o questionamento: como promover
a escrita enquanto prática social e agência cívica, considerando a esfera
de letramento acadêmica, em um curso de formação de professores de
Língua Portuguesa?
Considerando o caráter híbrido das práticas de letramento em socie-
dade e sua pertinência no que concerne o ensino de Língua Portuguesa,
bem como a necessidade em articular essas necessidades à formação de
professores, pretende-se propor um projeto de letramento para a produção
colaborativa de um blog literário para postagens de resenhas de obras de
autores negros e relacionadas à negritude. O projeto será desenvolvido
junto a uma turma do curso de graduação em Letras Inglês-Português de
uma Universidade Pública no Paraná na disciplina de Leitura e Produção
Textual. Este artigo, especificamente, compõe parte de uma pesquisa de
doutorado e objetiva delinear o quadro teórico-metodológico, descrever
o contexto no qual se dá o trabalho e apresentar as etapas do projeto.
Neste quadro teórico-metodológico, associamos as teorias que,
dialogicamente, rompem as fronteiras do instrumentalismo que permeia
as práticas de letramento acadêmico. Enfatizamos a importância em se
desenvolver práticas de letramento acadêmico em que a escrita seja com-
preendida a partir de sua função social e agenciamento cívico. Ademais,
o projeto de letramento, a ser efetivado posteriormente, vai ao encontro
dos interesses dos sujeitos da pesquisa em promover na instituição dis-
cussões sobre a temática étnico-racial.

94
Eliana Donaio Ruiz (org.)

1. DO LETRAMENTO AOS LETRAMENTOS

Esta pesquisa está embasada em uma perspectiva sociocultural


do letramento; portanto, faz-se necessário traçar um percurso histórico
dessa área de estudos. Além disso, é preciso situar nesse quadro teórico
o lugar que as novas tecnologias ocupam, bem como seus impactos na
cultura escrita.
Até meados da década de 1970, os Estudos do Letramento ocu-
pavam-se com as discussões sobre a relação entre oralidade e escrita,
contrapondo-se à visão dicotômica que priorizava a escrita em detrimento
da oralidade. As pesquisas que antecedem os Estudos do Letramento
analisavam essas duas modalidades de representação da linguagem a
partir de uma visão que as situava em polos extremos, sendo a escrita
considerada como mera representação da fala (SAUSSURE, 1970 [1916];
BLOOMFIELD, 1964), encarada como superior a esta por possibilitar
a descrição linguística isenta dos “erros” da fala. Essa visão, admitida
pelos gramáticos só foi alterada com o surgimento da Dialetologia, que
adotou a fala como objeto de investigação (GNERRE, 1985). A década
de 80 trouxe duas mudanças consideráveis no campo das pesquisas sobre
a linguagem: a teoria linguística passou a enxergar fala e escrita de modo
não excludente e as pesquisas socioantropológicas tomaram a escrita
como objeto de investigação.
As pesquisas linguísticas ocuparam-se da descrição das característi-
cas que diferenciavam essas duas modalidades comunicativas, contudo os
parâmetros utilizados para tal comparação apresentam um sério equívoco,
uma vez que os gêneros comunicativos que serviram de base à descrição
são muito distintos: “a modalidade oral, analisada e descrita a partir de
transcrições de diálogos informais face a face, e a modalidade escrita
cujo padrão de referência é o texto acadêmico” (BRAGA, 2007, p. 182),
o que culminou em uma visão dicotômica em relação à fala e escrita.
A informalidade da situação comunicativa que serviu como referên-
cia para a descrição da fala e a formalidade dos gêneros acadêmicos utili-
zados para a descrição da escrita deram origem a essa visão dicotômica,

95
escrita como prática social (não) escolar

posteriormente rebatida pelos estudos que a concebem como um continuo


tipológico (MARCUSCHI, 2001), evidenciam que tais diferenças estão
relacionadas à proximidade ou distanciamento das características formais
de textos orais e escritos, sendo que há gêneros mais próximos ou mais
distantes do polo da fala, a depender da situação comunicativa.
As pesquisas socioantropológicas que tiveram início na década de
80 foram privilegiadas na década de 90. As etnografias tomaram o espaço
que, até então, era ocupado pelas pesquisas linguísticas. Os Estudos do
Letramento passaram a priorizar a refutação ao “mito do letramento”,
que atribui à escrita vantagens individuais, socioestruturais e cognitivas.
As pesquisas etnográficas buscavam compreender o valor atribuído à
escrita em diferentes grupos sociais (STREET, 2014); questões identi-
tárias relacionadas ao domínio ou não da escrita (SIGNORINI, 2016);
letramento nos grupos periféricos (KLEIMAN; SIGNORINI, 2001);
relação entre letramento e ensino e formação de professores (KLEIMAN,
1995; KLEIMAN; SIGNORINI, 2001).
A vertente sociocultural dos Estudos do Letramento representa um
novo modo de compreender as práticas sociais de uso da escrita, antes cen-
trada no indivíduo enquanto uma aquisição técnica, agora como práticas
heterogêneas e situadas socialmente, sempre vinculadas às estruturas de
poder na sociedade. O letramento passa a ser compreendido sob um novo
enfoque em que leitura e escrita não são consideradas como um conjunto
de práticas universais, mas como um conjunto de práticas sociais ligadas
aos interesses dos indivíduos envolvidos dentro do processo. Portanto, o
letramento não está exclusivamente ligado às instituições de poder, mas a
todos os contextos sociais em que a leitura e escrita estiverem presentes.
Adequado para compreender as práticas de letramento de acordo
com os contextos é o conceito de esferas da comunicação discursiva (ou
da atividade humana, ou da comunicação social), em que os enunciados
são situados historicamente; desse modo, as esferas definem os modos
de enunciar os gêneros do discurso (BAKHTIN, 2003). Vianna et al.
(2016, p. 40) argumentam sobre a adequabilidade do conceito de esfe-
ras para compreender a relação entre as práticas de letramento em uma

96
Eliana Donaio Ruiz (org.)

perspectiva sociocultural, “uma vez que concebe[m] o discurso como


uma construção sócio-histórica, na qual ecoam vozes que se relacionam
com outros enunciados de maneira dialógica”.
Os anos finais da década de 90 trouxeram um novo enfoque para
as pesquisas na área dos Estudos do Letramento: o “letramento eletrô-
nico” ou “letramento digital”, em grande parte, graças à popularização
dos microcomputadores e à emergência da internet, além das diversas
iniciativas de ensino a distância (EAD). Fora do contexto pedagógico, as
práticas letradas mediadas pela tecnologia transformaram-se em objeto
de pesquisa. Aspectos linguísticos, textuais sociais, como o processo
de globalização, bem como dos impactos da tecnologia na sociedade,
começaram ser observados nas pesquisas.
Na contemporaneidade, as práticas de letramento das mais diferen-
tes esferas da comunicação humana tornaram-se mais sofisticadas, uma
vez que os gêneros discursivos que circulam socialmente e medeiam a
interação são constituídos por múltiplas linguagens ou semioses. É, por-
tanto, a partir dos usos sociais dos gêneros multimodais que é possível
pensar em letramento multissemiótico, letramento multimodal ou, ainda,
multiletramentos.
Esses novos espaços potencializados pelas Tecnologias Digitais
da Informação e Comunicação, doravante TDICs, colocam diante dos
educadores novas possibilidades: uma grande diversidade de linguagens,
semioses e mídias, o que implica a emergência dos multiletramentos. É
nesse contexto que o Grupo Nova Londres começa a questionar:

O que é uma educação apropriada para mulheres, para indí-


genas, para imigrantes que não falam a língua nacional para
falantes dos dialetos não padrão? O que é apropriado para todos
no contexto de fatores de diversidade local e conectividade
global cada vez mais críticos? (NEW LONDON GROUP,
2006, p. 10).

Esses questionamentos levaram os pesquisadores do New London


Group a desenvolver a Pedagogia dos Multiletramentos, que considera

97
escrita como prática social (não) escolar

a diversidade cultural e de linguagens na escola, bem como defende a


criação de “projetos de futuro” para os jovens que vivem esse cenário de
multiculturalidade e multissemioses. O objetivo é transformar os alunos
em criadores de sentido a partir de quatro movimentos pedagógicos: práti-
ca situada, instrução aberta, enquadramento crítico e prática transformada.
Podemos perceber que as mídias digitais caracterizam-se pelo
rompimento de barreiras comuns aos meios de comunicação analógicos
(TV, rádio, cinema, jornais e revistas impressos) e por configurarem
espaços de interação em rede e culturalmente participativos na cibercul-
tura, virtuais por não serem localizáveis no espaço, mas reais em seus
efeitos (FLEW, 2008). A partir dessa convergência possibilitada pelas
mídias digitais, qualquer indivíduo pode ser um produtor de conteúdo,
de cultura, reproduzir ou ressignificar os já existentes, as mídias sociais
são, nesse sentido, “uma possibilidade aberta pelas tecnologias de rede
de aumentar conhecimento produzido de maneira social e coletiva”
(MARTINO, 2014, p. 11).
As muitas linguagens ou semioses exigem capacidades de leitura,
compreensão e produção; é, portanto, a multimodalidade que torna
necessários os multiletramentos. O trabalho envolve, então, os quatro
movimentos sistematizados pelo “Mapa dos Multiletramentos”, consi-
derando alguns aspectos para sua efetivação: i) considerar o contexto
e as práticas de letramento que fazem parte da cultura dos sujeitos de
aprendizagem; ii) analisar os modos de significação (metalinguagem);
iii) a partir de uma perspectiva crítica, interpretar os contextos sociais
e culturais de circulação desses textos, para, por fim; iv) realizar uma
prática transformada.
Ana Elisa Ribeiro (2018), outra importante pesquisadora da área dos
letramentos e multiletramentos, chama a atenção para as várias pesqui-
sas que têm apontado que os sujeitos, em especial os mais jovens, estão
mais habituados a compartilhar (e curtir) informações do que enunciar,
produzir. Segundo a autora,

98
Eliana Donaio Ruiz (org.)

[...] lemos mais do que escrevemos, curtimos mais do que


compartilhamos; compartilhamos muito mais que produzimos.
No entanto, os canais estão aí, à disposição, e as pessoas vão
descobrindo aplicativos, modos de editar e novos modos de
consumir, abertas à participação e à reação (RIBEIRO, 2018,
p. 39).

A Pedagogia dos Multiletramentos visa a ampliar as possibilida-


des dos jovens diante dos novos letramentos. Este trabalho vai além do
domínio da tecnologia; envolve uma nova maneira de pensar as multis-
semioses que significam o mundo e que podem ser redesenhadas pelos
estudantes. A tecnologia não é o foco, mas acaba sendo envolvida no
processo. Knobel e Lankhshear (2007, p. 7) asseveram que “a importância
das novas tecnologias recai principalmente sobre o que elas possibilitam
às pessoas no que se refere à construção de práticas de letramento e em
sua participação”.
Algumas perguntas são de fundamental importância antes de propor
um trabalho em sala de aula: quem são meus alunos? O que eles leem?
De onde vêm? De quais práticas sociais participam? Além de considerar
a multimodalidade e a multiculturalidade, o trabalho se dá a partir de
um enquadramento dos letramentos críticos. Ao considerar o contexto
e práticas sociais e de letramento das quais participam os alunos, o pro-
fessor desenvolve projetos didáticos em que as semioses assumem uma
função social e de agência cívica. Esse tipo de trabalho mostra ao aluno
que é possível agir por meio da linguagem.
Conhecer as práticas de letramento e compreender os novos modos
de enunciar é indispensável para que seja possível a criação de pontes
entre essas práticas e o ambiente educacional. Os desafios enfrentados
pelos educadores ultrapassam os limites tecnológicos, de domínio das
novas tecnologias enquanto aparato mecânico; envolvem, antes disso, a
compreensão de que na cibercultura existem comunidades, pertencimento
desses membros a esses grupos com interesses em comum e, acima de
tudo, existem práticas que podem ser potencialmente exploradas peda-
gogicamente, tornando a sala de aula um espaço de criação.

99
escrita como prática social (não) escolar

2. PROJETOS DE LETRAMENTO

O breve percurso histórico dos Estudos do Letramento apresentado


permite constatar o caráter acadêmico de sua origem. Contudo, aos poucos
esses estudos foram sendo incorporados à área de Letras e Educação, em
especial no que concerne às discussões sobre alfabetização e Linguística
Aplicada, em grande parte graças ao grupo “Letramento do Professor”,
coordenado pela professora e pesquisadora Angela Kleiman.
Com o objetivo inicial de investigar os aspectos e impactos sociais
do uso da língua escrita, os Novos Estudos do Letramento – no Brasil
apenas Estudos do Letramento ­­–, aos poucos, foram infiltrando-se no
discurso escolar, apesar de tais estudos relativizarem a exclusividade
da escola enquanto agência de letramento, bem como a objetificação da
escrita pela instituição escolar tradicional (STREET, 2014; KLEIMAN,
2005). Nesse sentido, a concepção sócio-histórica do letramento opõe-se
à concepção estruturalista de escrita, bem como aos modelos universais
e autônomos de letramento (STREET, 1984).
Os usos sociais da escrita são atravessados pelas relações de poder.
O mundo grafocêntrico, organizado pela escrita, exige que os sujeitos
dominem os mais diversos gêneros do discurso para agir em diferentes
esferas; os textos que circulam socialmente exigem um posicionamento
crítico em relação aos usos da linguagem; assim, o mero domínio da
técnica da escrita não garante a agência cívica e a participação social.
Portanto, o processo de letramento é identitário, pois “a concepção iden-
titária do letramento se opõe a uma concepção instrumental, funcional da
escrita, que se centra geralmente nas capacidades individuais de uso da
língua escrita em cotejo com uma norma universal do que é ser letrado”
(KLEIMAN, 2010, p. 376).
A perspectiva instrumental versus a identitária tem suas raízes nas
concepções de letramento autônomo e letramento ideológico, desenvol-
vidos por Street (2014). O letramento autônomo concebe a escrita como
uma modalidade linguística superior e sustenta-se em uma visão dicotô-
mica entre fala e escrita. Essa concepção assenta-se sobre uma visão que

100
Eliana Donaio Ruiz (org.)

contraria o sociointeracionismo bakhtiniano e defende que a apropriação


da escrita só é possível por meio da análise dos microaspectos da língua.
O letramento ideológico contrapõe-se ao letramento autônomo e com-
preende leitura e escrita como práticas socialmente situadas. Não limita
a língua em sua dimensão estrutural e na análise dos microaspectos, mas
a partir da função social nas situações comunicativas.
Frente à tarefa escolar de propiciar ao alunado a possibilidade de agir
socialmente por meio da linguagem, os Estudos do Letramento passaram
a ter certa influência no contexto educacional. Kleiman argumenta que

Assumir o letramento como objetivo do ensino no contexto


dos ciclos escolares implica adotar uma concepção social da
escrita, em contraste com uma concepção de cunho tradicional
que considera a aprendizagem de leitura e produção textual
como a aprendizagem de competências e habilidades individu-
ais. [...] Na perspectiva social da escrita que vimos discutindo,
uma situação comunicativa que envolve atividades que usam
ou pressupõem o uso da língua escrita – um evento de letra-
mento – não se diferencia de outras situações da vida social:
envolve uma atividade coletiva, com vários participantes que
têm diferentes saberes e os mobilizam (em geral cooperativa-
mente) segundo interesses, intenções e objetivos individuais
e metas comuns (KLEIMAN, 2007, p. 4-5).

O ensino da língua escrita em uma perspectiva sociocultural do le-


tramento toma como ponto de partida a prática social, ou seja, ocupa-se
com as atividades que possibilitem ao aluno agir socialmente. A obser-
vação etnográfica passa a ser parte indispensável do trabalho docente já
que os usos da escrita estão intimamente ligados ao contexto cultural dos
sujeitos. A observação e a compreensão dos valores atribuídos à escrita
em determinada comunidade permitirão ao professor desenvolver um
trabalho que vá ao encontro dos interesses locais e ampliá-los para outras
esferas de ação social.
É importante reiterar que não existe um conjunto de estratégias ou
método de letramento. O ensino em uma perspectiva do letramento não

101
escrita como prática social (não) escolar

segue um passo a passo, mas orienta-se a partir dos usos da escrita em


um processo de construção identitária por meio da interação para agir
socialmente. O professor, a partir da etnografia2, identifica uma questão
social de interesse local e organiza as atividades com base na resolução
dessa questão. Desse modo, a prática social implica uma mudança signi-
ficativa no ambiente escolar: o planejamento deixa de estar centralizado
nos conteúdos. O princípio organizador deixa de ser os conteúdos curri-
culares para organizar-se com base nos textos significativos aos alunos
e à comunidade.
Nessa perspectiva, os projetos de letramento apresentam-se como
uma possibilidade de organização do trabalho docente, caracterizando-
se como

[…] projetos de trabalho escolar que destacam a centralidade


das práticas sociais de letramento no processo educacional e
por isso tornam-no eixo estruturante das atividades escolares,
da apresentação dos conteúdos curriculares e do desenvolvi-
mento de temas valorizados. […] Os projetos de letramento
requerem um movimento pedagógico que vai da prática
social para o “conteúdo” (seja ele uma informação sobre um
tema, uma regra, uma estratégia ou procedimento), nunca o
contrário […] não substitui os eixos temáticos nem os eixos
conteudísticos relevantes no trabalho escolar (KLEIMAN,
2010, p. 377-383).

Trata-se de um trabalho complexo em que a flexibilidade, crucial,


e a organização prévia durante o desenvolvimento do projeto são indis-
pensáveis. O professor precisa considerar não somente os usos sociais da
escrita na comunidade, como os impactos e transformações decorrentes
das novas tecnologias, mas também ampliar o conjunto de textos que
fazem parte da vida do aluno (KLEIMAN, 2007).
É claro que, dada a tradição escolar em supervalorizar as ativida-
des analíticas da língua, esse tipo de organização didática encontrará
2 Etnografia pode ser definida como a observação de ocorrências reais, particulares, de ação
situada, com vistas à compreensão acerca das perspectivas de construção de sentido e ação de
atores em cenários de interesse investigativo (ERICKSON, 1990).

102
Eliana Donaio Ruiz (org.)

resistência por parte dos coordenadores, pais, professores e até mesmo


alunos. Contudo, é preciso ter em mente que, embora a organização
didática seja diferente e o eixo estruturante não seja os conteúdos curri-
culares, no decorrer das atividades, esses conteúdos são contemplados.
Durante os eventos de letramento “SEMPRE surge a oportunidade
para o professor focalizar de forma sistemática algum conteúdo [...] o
movimento será da prática social para o ‘conteúdo’ a ser mobilizado
para participar da situação, nunca o contrário” (KLEIMAN, 2007, p.
6, grifo da autora)Quando os conteúdos gramaticais deixam de ocupar
o papel central para a elaboração do currículo, o trabalho passa a ser
orientado com base na relevância dos textos para os alunos, o quanto
são significativos para eles. A partir dessa perspectiva, “a prática so-
cial não pode senão viabilizar o ensino do gênero, pois é seu conheci-
mento o que permite participar nos eventos de letramento de diversas
instituições e realizar as atividades próprias dessas instituições com
legitimidade” (KLEIMAN, 2007, p. 8).
Os gêneros se efetivam nas interações humanas nas diferentes
esferas de comunicação; são, portanto, mediadores das interações so-
ciais e são por elas mediados (BAKHTIN, 2003). Na escola, os gêneros
transformam-se em objetos de ensino; entretanto, isso “não significa
que o gênero deva constituir-se no elemento estruturante das práticas
sociais mobilizadas no projeto, sob o risco de reduzir o objeto de ensino
e o trabalho escolar aos seus aspectos formais e analíticos” (KLEIMAN,
2007, p. 14).
A prática do professor baseada em uma concepção social da escrita
parte, portanto, de uma observação de cunho etnográfico para que seja
possível encontrar um tema que estruture o desenvolvimento do projeto
de letramento que requer um movimento que vá da prática social para a
prática escolar, e não o contrário, ou seja, o trabalho parte do ponto de
vista do aluno, e não do professor. Vale enfatizar que a flexibilização
desse planejamento é crucial já que são os interesses dos alunos e da
comunidade escolar que determinarão o ritmo e caminhos do planeja-
mento escolar.

103
escrita como prática social (não) escolar

Outra dificuldade para a implementação dos projetos de letramento


é a falta de flexibilidade curricular dos cursos de formação, além do
distanciamento da realidade social e da atuação profissional. Marques
(2016, p. 117) assegura que,

Como uma organização didática, o projeto de letramento viabi-


liza, no contexto de formação docente, um modelo de formação
voltado para o trabalho e para a cidadania. Esse tipo de projeto
promove o desenvolvimento de práticas pedagógicas numa
perspectiva inovadora, possibilitando maiores oportunidades
de articulação entre a teoria e a prática. Além disso, favorece
a formação do professor numa perspectiva mais crítica e
engajada, voltada para o desenvolvimento da agência cívica.

Partindo do pressuposto de que a organização didática via projeto


de Letramento pode minimizar as lacunas entre formação docente e seu
trabalho em sala de aula é que esta pesquisa se propõe a desenvolver
um projeto de escrita colaborativa de um blog literário com resenhas de
obras de autores negros e relacionadas à negritude. As resenhas serão
produzidas pelos alunos do primeiro ano do curso de Letras na disciplina
Leitura e Produção de Textos.

3. PRODUÇÃO COLABORATIVA DE UM BLOG: PLANEJAMENTO


INICIAL DO PROJETO DE LETRAMENTO

Levando em conta as intersecções entre os Estudos do Letramento


e os do Círculo de Bakhtin, esta pesquisa situa-se no entrecruzamento
de dois contextos: a esfera literária e o ciberespaço (LÉVY, 2010), cada
um com seus modos de enunciar, discursos cristalizados e gêneros relati-
vamente estáveis (BAKHTIN, 2003). O entrecruzamento dessas esferas
compreende um movimento de hibridação cultural, definida por Canclini
(2015, p. 19) como “processos socioculturais nos quais estruturas ou
práticas discretas, que existam de forma separada, se combinam para
gerar novas estruturas, objetos e práticas”.

104
Eliana Donaio Ruiz (org.)

A partir das mesclas culturais advindas dos movimentos de hi-


bridação, argumentamos que as práticas de letramento literário, antes
associadas apenas ao cânone, aos intelectuais, às instituições de prestí-
gio e tendo como maior agência a escola, passaram por um processo de
desterritorialização (fim da relação natural entre espaço e prática cultu-
ral) e descoleção (quebra e mescla das coleções dos sistemas culturais)
(CANCLINI, 2015), e ocuparam o ciberespaço, onde há uma fusão entre
o culto e o popular, uma subversão da ordem ou, como estabeleceu Souza-
Santos (2001), uma coligação contra-hegemônica. Canclini assevera que

O cruzamento entre o culto e o popular torna obsoleta a re-


presentação entre ambas as modalidades de desenvolvimento
simbólico e relativiza, portanto, a oposição política entre hege-
mônicos e subalternos, concebida como se tratasse de conjuntos
totalmente diferentes e sempre confrontados. O que sabemos
hoje sobre as operações interculturais dos meios massivos e as
novas tecnologias, sobre a reapropriação que diversos recep-
tores fazem deles, afasta-nos das teses sobre a manipulação
onipotente dos grandes conglomerados metropolitanos [...]
nos levam a concluir que todas as culturas são de fronteira.
[...] Assim, as culturas perdem a relação exclusiva com seu
território, mas ganham em comunicação de conhecimento
(CANCLINI, 2015, p. 346-348).

As TDICs têm implicação considerável nesse contexto fronteiriço,


uma vez que potencializam o contato entre sistemas culturais diferentes
por meio da conexão em rede. Os letramentos são também descolecio-
nados, estabelecendo novas práticas em que o saber acadêmico é posto
em diálogo com práticas de letramento da esfera literária no ciberespaço,
como um modo de promover a escrita em condições reais de produção e
com um interlocutor/leitor que não se restringe ao professor.
Marques (2016) chama a atenção para a necessidade de uma for-
mação de professores que aproxime teoria e prática. Segundo a autora,
“aquilo que se realiza no contexto de formação docente deve se aproximar
o máximo possível daquilo que deve ser feito em sala de aula” (MAR-
QUES, 2016, p. 113). Nesse sentido, propor um projeto de letramento

105
escrita como prática social (não) escolar

no curso de Letras vai ao encontro de uma perspectiva de trabalho que


minimiza a lacuna entre a formação inicial e a atuação do professor de
Língua Portuguesa.
O letramento acadêmico é, em geral, filiado a uma perspectiva
instrumental. A escrita é trabalhada com um fim em si mesma e elabo-
rada apenas com vistas à avaliação. Raramente situações comunicativas
reais norteiam as aulas de produção textual na universidade, o que faz
com que o aluno não reconheça a função social e de agência da escrita,
e isso é problemático principalmente nos cursos de formação de futuros
professores de Língua Portuguesa, que deverão promover o ensino da
escrita para além da apreensão da técnica. É nesse sentido que o projeto
de letramento na formação de professores é fundamentalmente um modo
de aprender a fazer fazendo (MARQUES, 2016).
Nesta pesquisa, entende-se como letramento acadêmico as práticas
de leitura e escrita desenvolvidas especificamente em ambiente univer-
sitário, embora haja quem considere o letramento acadêmico como as
práticas de letramento de todo o contexto de escolarização (FISCHER,
2008). Sobre isso, Marinho (2010, p. 365) ressalta que há muitos trabalhos
que discutem o letramento no âmbito da educação básica; “ao contrário, a
escrita acadêmica não tem recebido a merecida atenção na universidade,
seja do ponto de vista do ensino, seja como objeto de pesquisa.
O letramento acadêmico no âmbito da universidade é marcado por
diversos problemas, uma vez que o aluno ingressa no curso superior sem
compreender as especificidades das práticas de leitura e escrita daquele
ambiente, levando a afirmações equivocadas, como “o aluno não sabe
escrever”, quando, na verdade, ele já participa de práticas de letramento
de outras esferas. Como apontam Lea e Street (1998), o letramento do
aluno não corresponde ao letramento exigido na universidade, gerando
um conflito que acaba reforçando a dicotomia letrados e iletrados. Lillis
(1999 apud FIAD, 2011, p. 363) argumenta que

[…] não são explicitadas ao aluno as convenções de escrita que


regem especialmente os gêneros da esfera acadêmica [...]. Os
professores esperam que os alunos saibam essas convenções

106
Eliana Donaio Ruiz (org.)

que não lhe são explicitadas. [...] não é suficiente explicitar


como o gênero acadêmico se organiza linguisticamente, o que
muitas vezes é feito sem que alcancem os resultados desejados.
É preciso mais: precisam ficar claros os motivos pelos quais
algumas práticas são privilegiadas no domínio acadêmico em
detrimento de outras, qual significado determinada prática
de letramento tem nesse domínio, o que significa justificar
e argumentar de acordo com as convenções escriturais da
academia, entre outros fatores.

Levando em consideração as especificidades do letramento acadê-


mico, a escrita dos textos que serão publicadas no blog literário parte de
uma condição de produção real em que a leitura das obras e a retomada
discursiva por meio da resenha contemplarão um gênero recorrente no
domínio universitário, discutirão uma problemática social relevante,
verificarão que esse gênero não está restrito ao ambiente acadêmico e
experienciarão uma prática pedagógica que poderá ser desenvolvida
futuramente, quando forem professores.
Este projeto de letramento, fruto de uma pesquisa-ação, começou
com uma etnografia em um curso de graduação em Letras em uma uni-
versidade pública do norte do Paraná. A etnografia, parte fundamental do
trabalho docente em uma perspectiva sociocultural, levou à identificação
da questão social a ser explorada via projeto de letramento: a ausência
de temas relacionados à negritude no espaço acadêmico.
Quadro 1 – Etapas do projeto de letramento.

Etapa 1 Identificação da situação-problema


Etapa 2 Formulário socioeconômico e sobre práticas de letramento dos alunos
Etapa 3 Leitura e registro em diário de leitura
Etapa 4 Leitura e análise de resenhas
Etapa 5 Discussão e apreciação das obras lidas

107
escrita como prática social (não) escolar

Etapa 6 Escrita da resenha. Etapa subdivida em três processos:


- Planejamento;
- Execução;
- Reescrita;
Etapa 7 Publicação no blog e editoração.

Fonte: A autora.

O tema motivador do projeto surgiu no evento “CINEdebate espe-


cial do Mês da Consciência Negra”, promovido pela Ong Musicarte em
parceria com o Movimento Negro de Cornélio Procópio e o projeto de
extensão “Cinema e Comunidade”, da Universidade Estadual do Norte
do Paraná. A programação do evento contou com a exibição do curta-
metragem “Vista Minha Pele”, seguida por mesa-redonda e debate.
Durante o debate aberto aos participantes, alguns alunos da gra-
duação em Letras que estavam presentes manifestaram sua insatisfação
em relação ao ambiente acadêmico que trata das questões da negritude
apenas em datas pontuais, como a programação especial no mês de no-
vembro, em que se comemora o dia da consciência negra, além de possuir
um currículo eurocentrado. A identificação da situação-problema a ser
contemplada no projeto constitui a primeira etapa (Etapa 1).
A questão levantada pelos alunos foi objeto de reflexão, a fim de
relacionar a problemática com o interesse inicial da pesquisa: desenvol-
ver um projeto de letramento que contemplasse as práticas vernaculares
de letramento literário na cibercultura. Dessa reflexão inicial surgiu a
proposta de produção colaborativa de um blog sobre literatura negra e
negritude.
Conhecer os usos sociais da leitura e escrita dos alunos pode
nortear o planejamento do projeto. Diante disso, um questionário será
disponibilizado aos alunos via Google Forms – que constitui a segunda
etapa (Etapa 2) do projeto – a fim de conhecer um pouco sobre o perfil
socioeconômico e as práticas de letramento dos alunos envolvidos.
Este projeto abrange a pluralidade multicultural e multissemiótica,
é pertinente para a reflexão pedagógica sobre as práticas de letramento

108
Eliana Donaio Ruiz (org.)

literário na cibercultura e está situado em um espaço culturalmente


fronteiriço, onde o erudito e o massivo se cruzam e constroem novos
significados e práticas, além de integrarem diferentes mídias.
Os criadores de conteúdo literário na internet utilizam espaços como
o Instagram, podcast, blogs, fanpages, YouTube, entre outros; a partir de
suas necessidades, gostos e objetivos, criam novas formas de desenvolver
conteúdos e negociar significados. Dentre os espaços possíveis, optamos
por trabalhar o blog:

O termo blog foi cunhado por John Barger, em 1997, para


descrever sites pessoais com comentários e links que fossem
atualizados com frequência. Esse tipo de produção ficou
popular a partir de 1999, graças à criação de uma ferramen-
ta – o blogger –, que veio facilitar a edição, atualização e
manutenção de textos. Rapidamente, esse ambiente passou
a ser utilizado na criação de diários virtuais disponibilizados
on-line. A associação dos blogs ao gênero dos “diários pesso-
ais” deve-se principalmente às características das produções
iniciais que ocorrem nesse ambiente digital. No entanto, os
recursos oferecidos pelo blogger, em um espaço de tempo
muito curto, foram apropriados para servir a outros interesses
comunicativos, dando origem a um conjunto muito mais amplo
de manifestações de gênero: blogs-diários, blogs-literários,
blogs temáticos, blogs jornalísticos e metablogs – dedicados
à avaliação e crítica de outros blogs (MILLER; DIONÍSIO;
HOFFNAGEL, 2012, p. 190).

No blog produzido colaborativamente pelos alunos, serão publicadas


as resenhas das obras listadas a seguir:
1. Olhos D´água (Conceição Evaristo)
2. Vozes Anoitecidas (Mia Couto)
3. Nós Matamos o Cão Tinhoso (Luís Bernando Honwana)
4. Eu sei por que o pássaro cata na gaiola (Maya Angelou)
5. As estrelas sob nossos pés (David Barclay Moore)
6. A vida não me assusta (Maya Angelou)
7. Angola Janga: uma história de Palmares (Marcelo D’Salete)

109
escrita como prática social (não) escolar

8. Cumbe (Marcelo D’Salete)


9. Jeremias Pele (Rafael Calça)
10. Mãe África: mitos, lendas e fábulas e contos (Celso Cisto)
11. Contos e lendas afro-brasileiros: a criação do mundo (Reginaldo Prandi)
12. No seu pescoço (Chimamanda Zgozi Adichie)
13. Meio Sol Amarelo (Chimamanda Zgozi Adichie)
14. Hibisco Roxo (Chimamanda Zgozi Adichie)
15. Americanah (Chimamanda Zgozi Adichie)
16. Úrsula (Maria Firmina dos Reis)
17. Quarto de despejo (Carolina Maria de Jesus)

A terceira etapa do projeto constitui a leitura e registro de impressões


em diário de leitura, doravante DL (Etapa 3). As obras serão previamente
disponibilizadas aos alunos para a leitura, acompanhada do registro no
DL, como uma ferramenta de mediação. Para isso, uma aula sobre o diário
de leitura constitui a terceira etapa de desenvolvimento do projeto. O DL
é uma ferramenta que contribui para a leitura crítica de texto e mediação
dos significados. Machado (1998) afirma que o diário de leitura pode
ser entendido como um instrumento didático que possibilita ao leitor a
mobilização de conhecimentos linguísticos, de mundo e sobre o gênero,
além de permitir o posicionamento crítico sobre o que se lê.
Machado (1998) enumera as contribuições do DL: a possibilidade
de detecção das dificuldades individuais de cada aluno, que poderia ser
ajudado de forma mais consistente; a promoção de aprendizado autôno-
mo, o que encorajaria os alunos a assumir responsabilidade diante de seu
próprio aprendizado e a desenvolver suas próprias ideias, o que acabaria
por promover uma avaliação crítica dos cursos; o aumento da confiança
dos alunos em sua habilidade para aprender, para trabalhar com material
considerado como difícil e para ter insigths originais; a possibilidade
de encorajar os estudantes a estabelecer conexões entre o conteúdo do
curso e a sua própria ação; a possibilidade de o curso se tornar mais
orientado pelo processo, com isso o professor conseguiria saber qual é
o real estado do conhecimento do aluno, podendo reestruturar a aula e o
conteúdo do curso de acordo com as reais necessidades; a possibilidade

110
Eliana Donaio Ruiz (org.)

de o professor ter acesso a um contexto mais amplo, dentro do qual ele


poderia avaliar de forma mais adequada o desempenho de cada aluno; a
possibilidade de uma discussão mais produtiva na sala de aula, derivada
da própria responsabilidade que cada um tomaria em relação à sua própria
aprendizagem; a criação de interação mais forte e mais eficiente, tanto
dentro da sala de aula como fora dela.
Os diários, escritos em cadernos que, posteriormente, serão entre-
gues à professora pesquisadora em data pré-estabelecida, deverão ser
iniciados com o registro da referência da obra (primeiro conteúdo a ser
ensinado); anotações sobre a leitura em primeira pessoa (contemplando
forma e conteúdo); relação entre a obra e conhecimentos prévios; ava-
liação da obra lida quanto ao grau de dificuldade, tema, estilo, forma;
avaliação pessoal (discordância, adesão, crítica etc.). É importante
destacar que, além de servir como instrumento mediador da leitura, o
DL constitui uma etapa importante na escritura de uma resenha: a com-
preensão global do texto a ser resenhado, além de ser um instrumento
de avaliação. Essa etapa pode ser compreendida, portanto, como uma
espécie de planejamento da escrita.
A etapa seguinte (etapa 4) constitui o primeiro passo para a escrita da
resenha: a leitura e análise de diferentes resenhas, contemplando estrutura
composicional, estilo e conteúdo temático (BAKHTIN, 2003). Essa etapa
será desenvolvida com base a contemplar os elementos do gênero resenha
conforme proposto por Machado, Lousada e Abreu-Tardelli (2007): as
resenhas em diferentes condições de produção; o plano global da rese-
nha; mecanismos de coesão (organizadores textuais); a subjetividade
do autor da resenha; diferentes formas de menção ao dizer do autor do
texto resenhado e de outros autores. O material de análise, contudo, não
compreende os mesmos textos utilizados pelas autoras, mas resenhas
selecionadas em blogs literários3.
3 R-IZZE.NHAS: um blog de resenhas de livros. Disponível em: https://rizzenhas.com/ Acesso
em: 01 fev. 2019.
LITERATURE-SE: sobre amor pela literatura. Disponível em: http://www.literature-se.com/
Acesso em: 01 fev. 2019.
LITERATAMY: compartilhando experiências literárias. Disponível em: http://literatamy.com/
Acesso em: 01 fev. 2019.

111
escrita como prática social (não) escolar

Após o estudo inicial do gênero, ocorre o momento de interação


entre os integrantes do grupo para a negociação dos sentidos do texto
(com o apoio dos diários de leitura) e apreciação da obra. Essa interação
acontece no tempo de duas aulas (geminadas) e constitui a quinta etapa
do projeto (Etapa 5).
Após o planejamento inicial, ocorrerá a explicação sobre o pro-
cesso de escrita da resenha. Nesse momento, os alunos serão postos em
contato com o Google Docs, orientados sobre como operá-lo e como
deverão utilizar a ferramenta para a escrita. Serão orientados a utilizar
o chat da ferramenta quando precisarem negociar e tomar decisões e a
escolher cores de fontes diferentes para cada autor, já que as resenhas
serão escritas em duplas.
A etapa seis ocupa-se da escrita da resenha (Etapa 6). Diante
disso, ao propor um projeto de letramento na disciplina de leitura e
produção de textos, os professores em formação poderão experien-
ciar a prática pedagógica com vistas à participação social. Um tra-
balho aliado a esse modo de organização didática requer um quadro
teórico-metodológico que compreenda a escrita como um modo de
construir significados e como algo em processo, não como produto,
com fim em si mesmo.
A partir de uma perspectiva que entende que através da interação
social os sujeitos se apropriam da linguagem e constituem-se enquanto
locutores, junto aos seus interlocutores a escrita deixa de ser entendida
como produto e passa a ser entendida como processo, contrariando o
mito de que escrever é resultado de inspiração ou que há uma fórmula
mágica para sua concretização (FIAD, 2013).
Assim, ao mudar o olhar do produto para o processo, assume-se a
“concepção de escrita como um trabalho que se conduz no tempo e a
reescrita como parte desse trabalho, que possibilita, ao analista, observar
as marcas deixadas pelo escrevente e que indicam, de algum modo, o
trabalho realizado” (FIAD, 2013, p. 467). Nesse sentido, a escrita da
resenha compreenderá três momentos distintos: planejamento do texto,
execução e reescrita. O planejamento será realizado em sala no tempo

112
Eliana Donaio Ruiz (org.)

de duas aulas, com o auxílio da professora, caso surjam dúvidas, porém


a execução, ou seja, a escrita da resenha será uma atividade extraclasse.
Após a entrega e correção pela professora, os textos serão projeta-
dos, sem identificação, para a leitura e discussão entre professor e alunos.
Durante esta atividade, soluções para os problemas mais recorrentes
serão encontradas e reescritas, e podem ser feitas no próprio documento
projetado. Os textos são devolvidos aos alunos para que façam a reescrita
e entreguem a segunda versão, que passará por uma nova correção para
os ajustes finais.
A última etapa do projeto (Etapa 7) consiste na publicação da
resenha no blog. Os alunos deverão produzir uma fotografia autoral da
obra resenhada para compor o acesso para a resenha no layout do blog.
Após a produção das imagens, os alunos serão levados ao laboratório
multimídia para a publicação e editoração dos textos, encerrando a se-
quência de atividades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho apresentou o quadro teórico-metodológico do projeto


de produção colaborativa de um blog literário pelos alunos da disciplina
Leitura e Produção de Textos do curso de Letras de uma universidade
pública do Paraná. O blog será o espaço para a publicação de resenhas de
obras de autores negros ou relacionadas à negritude, temática levantada
pelos alunos da instituição em um debate ocorrido durante a programação
da semana da consciência negra.
Primeiramente, discorreu-se acerca dos Estudos do Letramento e
suas implicações para o ensino por meio dos projetos de letramento para,
a partir dessa perspectiva teórica, apresentar as etapas que constituem o
projeto colaborativo aqui proposto: identificação da situação-problema;
aplicação do formulário socioeconômico e sobre as práticas de letramento
dos alunos; leitura e registro em diário de leitura; leitura e análise de re-
senhas com base em aspectos como condições de produção, plano global,
características linguísticas, entre outras; discussão e apreciação das obras

113
escrita como prática social (não) escolar

lidas; escrita da resenha em três processos (planejamento, execução e


reescrita); publicação das resenhas no blog e editoração.
Partimos do pressuposto que, embora os alunos não participassem
de práticas de letramento acadêmico até o momento, eles já participa-
vam de outras práticas de letramento; por isso, o projeto foi elaborado
com vistas a construir significados para os usos de leitura e escrita na
universidade, bem como a promover a prática pedagógica de modo a
minimizar a lacuna entre formação docente e atuação profissional. Nesse
sentido, o projeto priorizou a teoria aliada à prática. Ademais, é relevante
ressaltar que, para a escrita da resenha, privilegiou-se a concepção de
escrita como trabalho.
As práticas de letramento escolar têm sido alvo de muitas pesquisas;
por outro lado, as práticas de letramento acadêmico ainda foram pouco
exploradas, deixando um campo farto para pesquisas com diferentes
bases teóricas, como a apresentada neste artigo. Esta pesquisa não esgota
as possibilidades de investigação, mas aponta um modo possível para
construir significados para os usos da leitura e escrita no curso de Le-
tras que não fiquem restritos à apreensão instrumental de competências
linguístico-estruturais, mas do gênero discursivo para ação social.

REFERÊNCIAS

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

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escrita como prática social (não) escolar

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116
PARTE 2

O TRABALHO COM PRODUÇÕES


ESCRITAS ESPECÍFICAS
Eliana Donaio Ruiz (org.)

O GÊNERO SUI GENERIS REDAÇÃO DE VESTIBULAR NO


DISCURSO DE SUJEITOS DA EDUCAÇÃO1

Everton Lima Camargo


Eliana Maria Severino Donaio Ruiz

O primeiro deslocamento a fazer, de um lado, é o da função-


aluno que escreve uma redação para a função-professor que a
avalia e, de outro lado, o próprio ato de produção escolar de
textos (GERALDI, 1984, p. 128).

INTRODUÇÃO

Há mais de quarenta anos, a redação é um instrumento obrigatório


em todos os exames vestibulares do Brasil (BRASIL, 1977). Por essa
razão, tem-se constituído num poderoso recurso utilizado pelas Insti-
tuições de Ensino Superior (IES) para o processo seletivo mais popular
do país, que acabou se transformando numa verdadeira batalha social,
desde que o número de vagas passou a ser incomparavelmente menor
que o número de candidatos.
Com origem no latim vestibulum, que significa “entrada”2, o vesti-
bular representa o ingresso do jovem no mundo adulto, chegando a ser
associado ao conceito antropológico de rito de passagem (GENNEP,
1 Este trabalho revisita, em síntese e profundidade, algumas contribuições da pesquisa de mes-
trado de Camargo (2020), orientada por Eliana Maria Severino Donaio Ruiz.
2 “Área exterior ou pátio que dá acesso à entrada principal de um edifício; Porta principal de um
edifício; Espaço entre a porta e os demais cômodos de uma residência [...]” (MICHAELIS,
2021, s.v. entrada).

119
escrita como prática social (não) escolar

1977): situação marcada por uma certa solenidade e ou formalidade que


representa a transposição de uma barreira, isto é, a passagem (ou desloca-
mento) de um estado (ou mundo) a outro, mais profundo e amadurecido.
Muito embora se trate mais de uma ritualização da barreira social
que propriamente de um ritual de iniciação típico de culturas tradicionais
ditas primitivas (TEIXEIRA, 1981), é inegável o papel fundamental
desempenhado pela prova de redação nesse processo institucionalizado
de exclusão que é o vestibular. Apesar da aparente igualdade de oportu-
nidades, diversos fatores, desde muito antes de o candidato escrever seu
texto na hora do exame, concorrem para a sua performance e colocação
no ranking: a escola em que estudou (pública ou privada), se frequentou
ou não cursos pré-vestibulares (cursinhos), a metodologia de ensino-
aprendizagem dos professores que teve, por exemplo; todos têm um forte
impacto no seu nível de letramento e podem, portanto, garantir (ou não)
sua entrada na universidade.
Com os olhos postos nesse contexto, seguindo a concepção dialó-
gica de linguagem do Círculo de Bakhtin, com contribuições dos Novos
Estudos do Letramento e sob o aporte teórico-metodológico da Análise
do Discurso de linha francesa (AD), que nos permite compreender os
processos discursivos que subjazem às práticas sociais, pretendemos
traçar o imaginário discursivo acerca da redação de vestibular no interior
do próprio discurso pedagógico.
Nossa análise incide sobre entrevistas realizadas com (ex-)professo-
res de Ensino Médio da rede pública e/ou de cursinhos e com corretores
(avaliadores) de redação de vestibular de dois estados da Federação (PR
e SP), numa investigação de cunho ao mesmo tempo local e nacional.
A escolha desses sujeitos, em tais posições enunciativas, se deve à sua
relação direta com o escopo da pesquisa, já que: 1) é no Ensino Médio
e nos cursinhos que ocorre o maior envolvimento dos professores no
ensino da escrita visando ao exame; e 2) são os corretores de redação,
examinadores das IES, os responsáveis pela avaliação das redações
produzidas nesse contexto. O recorte regional se deve ao fato de: 1) São
Paulo ser o estado que possui duas das três universidades estaduais mais

120
Eliana Donaio Ruiz (org.)

ranqueadas do país nos últimos anos3; e 2) Paraná ser o estado no qual


esta pesquisa tem seu lugar. Como IES representantes do Paraná, sele-
cionamos a Universidade Estadual de Londrina (UEL), nosso contexto
de atuação, e, por estar mais próxima dela no ranking universitário, a
Universidade Estadual de Maringá (UEM)4.
Seguimos com breves considerações teóricas acerca do nosso objeto
de investigação, para, então, apresentar, por meio de algumas análises
dos dizeres dos sujeitos investigados, a emergência de já-ditos que re-
verberam interdiscursivamente.

1. O FENÔMENO REDAÇÃO DE VESTIBULAR

No Brasil, o exame vestibular surgiu em 1911, como um “exame


preparatório” realizado pelo Estado para aqueles que pretendiam in-
gressar nos cursos superiores, apresentando-se explicitamente como
uma “barreira” de acesso para aqueles “que não apresentassem os dotes
intelectuais de excelência que a vida universitária exigia” (WHITAKER,
1983, p. 125). Somente em 1915, ganha a denominação de “vestibular”
(GUIMARÃES, 1984) e, em 1925, quando o número de candidatos
passa a exceder o número de vagas, começa a funcionar, segundo Santos
(1988), para atender a um número pré-estabelecido de vagas pelas IES.
Com esse dispositivo, o sistema capitalista “ao mesmo tempo promete e
nega o sucesso escolar, profissional e econômico à maioria da população”
(WHITAKER, 2010, p. 290).
Tendo sofrido o impacto de várias reformas educacionais e mu-
dado de exame oral para escrito, o vestibular adota, a partir de 1977,
a redação como parte integrante de suas provas, em atendimento ao
Decreto nº 79.298, que prevê “inclusão obrigatória de prova ou questão

3 Na ocasião da pesquisa de Camargo (2020), de acordo com a Ranking Universitário Folha 2018
(FOLHA, 2018), a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) ocupavam, respectivamente, a primeira e a quarta posição entre as melhores
universidades brasileiras.
4 A Universidade Estadual de Londrina (UEL) e a Universidade Estadual de Maringá (UEM)
ocupavam, respectivamente, a 24ª e a 25ª posições entre as melhores universidades brasileiras
(FOLHA, 2018).

121
escrita como prática social (não) escolar

de redação em língua portuguesa” (BRASIL, 1977)5. Mas, em 2001,


uma denúncia-bomba em programa televisivo sobre a aprovação de um
semianalfabeto no certame (FOLHA, 2001)6 acaba por levar o MEC à
Portaria nº 2.941/2001 (BRASIL, 2001), que elimina o candidato que
tirar zero ou não atingir a nota mínima definida pela instituição promotora
do concurso.7 Outras medidas integram a portaria, como a inclusão do
Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que passa a ser obrigatório em
todos os processos seletivos de faculdades ou de centros universitários,
a partir do segundo semestre de 2002.8 Assim, o Enem se torna o maior
vestibular do Brasil, e a redação passa a ser foco de atenção de várias
instâncias e sujeitos: governo, universidades, escolas e cursinhos, de um
lado; pais e alunos, de outro.9

5 “Art. 1º. O concurso vestibular das instituições federais e particulares que compõem o sistema
federal de ensino superior reger-se-á, a partir de 1º de janeiro de 1978, pelo Decreto número
68.908, de 13 de julho de 1971, com as seguintes alterações: a) introdução, a critério da insti-
tuição, de provas de habilidades específicas para Cursos que, por sua natureza, as justifiquem;
b) possibilidade de realização do concurso vestibular em mais de uma etapa; c) utilização de
mecanismos de aferição que assegurem a participação, na etapa final do processo classificatório,
apenas dos candidatos que comprovem um mínimo de conhecimento a nível de 2º grau e de
aptidão para prosseguimento de estudos em curso superior; d) inclusão obrigatória de prova
ou questão de redação em língua portuguesa; e) fixação, pelo Ministério da Educação e
Cultura, de data para início da realização do concurso vestibular nas instituições federais, e
de período em que será realizado o das particulares” (BRASIL, 1977, p. 1, grifo nosso).
6 Conforme notícia da Folha de S.Paulo, “O ministério tomou essas medi­das em resposta a duas
reporta­gens veiculadas no ‘Fantástico’, da Rede Globo, que mostraram que um semi-analfabeto,
o padei­ro Severino da Silva, foi aprovado nos vestibulares das universida­des cariocas Estácio
de Sá, em direito, e Gama Filho, para o curso de letras” (FOLHA, 2001, grifo nosso).
7 “Art. 2º. Todos os Processos Seletivos a que se refere o artigo anterior incluirão necessaria-
mente uma prova de redação em língua portuguesa, de caráter eliminatório, segundo normas
explicitadas no edital de convocação do processo seletivo. § 1 Em qualquer caso será eliminado
o aluno que obtiver nota zero na prova de redação” (BRASIL, 2001, grifo nosso).
8 “[...] Art. 5º. O resultado obtido pelo candidato no Exame Nacional do Ensino Médio -
ENEM realizado pelo Ministério da Educação deverá fazer parte necessariamente do
conjunto de requisitos ou provas dos Processos Seletivos das Faculdades Isoladas, das
Faculdades Integradas e dos Centros Universitários.
§ 1º. Serão considerados apenas resultados do ENEM obtidos pelos candidatos nos três anos
anteriores à realização do processo seletivo” (BRASIL, 2001, grifo nosso).
9 “De acordo com o ministro, a portaria vem resolver o problema do custo da correção da redação
reclamado por muitas instituições. ‘Elas podem adotar o Enem como parte do processo seletivo,
uma vez que a redação do Enem é corrigida pelo Ministério’. O ministro também considera
importante aproveitar esse momento para reforçar a redação em todos os níveis de ensino. Nós
queremos incentivar os alunos a raciocinar, incentivar os professores a ensinar os alunos
a pensar e a redigir e incentivar as escolas de ensino médio a dar prioridade à redação”
(VESTIBULAR1, 2001, grifo nosso).

122
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Ao integrar o exame, na conjuntura socioideológica do sistema


capitalista, a redação torna-se um instrumento privilegiado no processo
de exclusão social, passando a alimentar a verdadeira indústria que se
criou em torno do vestibular, em que colégios particulares e cursinhos
aproveitam-se da demanda gerada pelas brechas do ensino regular para
gerar capital. Pelo fato de ser o exame um poderoso filtro que alça
adolescentes recém-saídos das fraldas familiares ao cobiçado patamar
dos profissionais de sucesso, a redação de vestibular começa a assumir
grande importância no contexto escolar que gira em torno da transição
Ensino Médio-Universidade. Devido a isso, alguns estudos concebem a
competição como um rito de passagem (GENNEP, 1977), em referência
ao conceito tomado de empréstimo do campo da Antropologia:

[...] situação fortemente impregnada de carga ideológica, que


lhe atribui o papel mágico de porta de felicidade: ultrapassar
esse umbral significa obter garantia absoluta de sucesso pro-
fissional e financeiro. O exame ganhou a dimensão de um
rito de passagem, através do qual o jovem adolescente atinge
a categoria de adulto responsável, socialmente integrado e
bem-sucedido (VAL, 1991, grifo nosso).

De acordo com o antropólogo franco-holandês Gennep (1977), as


sociedades modernas apresentam divisões sociais nas quais os indivíduos
se enquadram, verdadeiras “sociedades especiais” mais definidas, em
que o indivíduo se encontra inserido em certas classes, como de idade
ou de atividade, e as transições entre os diferentes domínios mostram-se
muito marcadas. No entanto, existem formas de mobilidade que permitem
que este passe de um estado social a outro (de camponês a operário, de
servente de pedreiro a pedreiro ou de leigo a sacerdote, por exemplo).
Para isso, além de atender a certas condições, é preciso que participe de
certas cerimônias, “passagens especiais”, realizadas em forma de ritos,
batismos, ordenações, entre outros, os chamados ritos de passagem:

Nos lugares em que as idades são separadas, e também as


ocupações, esta passagem é acompanhada por atos especiais,
que, por exemplo, constituem, para os nossos ofícios, a

123
escrita como prática social (não) escolar

aprendizagem, e que entre os semicivilizados em cerimônias,


porque entre eles nenhum ato é absolutamente independente
do sagrado (GENNEP, 1977, p. 24, grifo nosso).

Para o autor, tais atos se materializam em celebrações solenes que


marcam a mobilidade social, a mudança de posição dentro da estrutura
hierárquica de uma sociedade, ou de uma fase de amadurecimento a
outra (como a festa de debutante ou o Bar Mitzvá), na medida em que o
indivíduo, ao mesmo tempo, deixa de pertencer a uma posição anterior,
mas não é maduro o suficiente para a nova posição social a ser assumida.
É assim que o vestibular, como medida de aprendizagem, pode ser
entendido como uma cerimônia ritualística, pela qual o indivíduo, alçado
a candidato, tem de passar para modificar sua realidade social, trans-
pondo uma espécie de margem que separa a educação básica do ensino
superior. Essa noção de liminaridade atrelada aos ritos de passagem e
aprofundada por Turner (1974) autoriza tal interpretação, ao esclarecer
que o sujeito permanece em um estado relativamente estável durante
as fases de sua vida, até que tenha que passar por alguma transição.
Quando em situação de margem, vive uma instabilidade ao mudar para
um domínio cultural que lhe exige atributos novos, porém carregando
velhos atributos. Trata-se, pois, de frequentar um espaço-tempo, em que
“as entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio, e entre
as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções
e cerimoniais” (TURNER, 1974, p. 117). Rito de passagem liminar, o
vestibular estabelece, pois, uma margem entre o passado do candidato
(aprendiz de Ensino Médio e aluno de cursinho) e seu futuro (estudante
universitário, profissional em formação).
Nessa conjuntura, a redação de vestibular, enquanto instrumento pri-
vilegiado de seleção no exame, carrega consigo esse caráter liminar do rito,
em que o candidato vive o “entre-lugar” do qual nos fala Bhabha (1998).
Para o crítico, a identidade cultural na modernidade é marcada pela noção
de fronteira, espaço intersticial e intervalar, “momento de trânsito em que
espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e
identidade” (BHABHA, 1998, p. 19). É nesse momento, então, que o su-

124
Eliana Donaio Ruiz (org.)

jeito se percebe deslocado, descentrado, ocupando um “entre-lugar” social.


Como os exames cobram do aluno egresso do Ensino Médio uma eficiência
escrita supostamente condizente com a de Ensino Superior, o candidato
escreve para um domínio cultural que ainda não é o seu, o que impinge um
caráter conflitante à situação vivida por ele, que tem de produzir um texto
situado, real, empírico, a prova de redação, porém configurado de forma
incerta e não sabida, absolutamente virtual, a depender da organização
retórica do que é solicitado na prova via comando de produção.
Quando, na perspectiva bakhtiniana, falamos em produção textu-
al (GERALDI, 1993 [1991]), consideramos os mecanismos sociais e
interativos da orientação da palavra (escrita ou falada) em função do
interlocutor, uma vez que, no diálogo, conforme Bakhtin/Volochinov
(1992 [1929], p. 113),

[...] toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto


pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se
dirige a alguém. Ela constitui justamente o produto da intera-
ção do locutor e do ouvinte. [...] A palavra é uma espécie de
ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim
numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor.

Assim, para se produzir um texto, é preciso que haja interlocuto-


res reais, com uma função social definida, que se tenha uma finalidade
interativa efetiva, que o produtor seja um sujeito agente comprometido
com o outro, portanto com o que diz, razão pela qual deve escolher es-
tratégias textuais-discursivas que lhe permitam interagir adequadamente
por intermédio da linguagem. A seleção do gênero é determinada pela
situação em que ocorre a interação.
É forçoso considerar que toda atividade escrita tem uma dimensão
processual no contexto das práticas sociais de comunicação, posto que se
trata de um modo de intervenção na/pela linguagem numa dada conjuntura
sociocultural e histórica, uma forma de ação moldada igualmente pelas
relações sociais aí envolvidas. Retomando Silverstein e Urban (1996),
Signorini (2001, p. 126, grifo nosso) esclarece que a escrita é

125
escrita como prática social (não) escolar

[…] vista como uma fase de um processo contínuo, um elo


de uma cadeia em fluxo [...] E sendo a textualização o prin-
cipal vetor dessa intervenção mediada pela escrita, o texto é
simultaneamente resultado de uma etapa e alavanca de outras
[...] “uma fase coisificada”, uma espécie de precipitação ou
resíduo de um processo discursivo mais amplo e sempre fluxo.

O texto escrito, assim, contém tanto “suportes” como “gatilhos”, que

[…] pressupõem e indexam (ou apontam para) elementos do


processo passado de textualização, quanto implicam ou pro-
jetam uma espécie de representação metapragmática da arqui-
tetura indexal deflagadora de um outro processo emergente de
re(con)textualização, seja o da leitura e seus desdobramentos,
seja o de uma nova textualização (ou reescritura) (SIGNORINI,
2001, p. 127).

Esse caráter indexal de toda comunicação linguística, inerente à


escrita, a coloca num fluxo incessante que, no bojo das práticas comu-
nicativas, nos remete à seleção, pelo escrevente, entre os vários gêneros
discursivos disponibilizados pela língua, daquele que melhor se lhe
adéqua aos propósitos. Segundo Bakhtin,

A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na


escolha de um certo gênero de discurso. Essa escolha é deter-
minada pela especificidade de um dado campo da comunicação
discursiva, por considerações semântico-objetais (temáticas),
pela situação concreta da comunicação discursiva, pela compo-
sição pessoal dos seus participantes, etc. A intenção discursiva
do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade, é
em seguida aplicada e adaptada ao gênero escolhido, constitui-
se e desenvolve-se em uma determinada forma de gênero
(BAKHTIN, 2003 [1952-1953], p. 282, grifos do autor).
Ou seja,

[…] o falante ou escrevente adapta sua “vontade discursiva”


a um gênero, levando em consideração o quanto este gênero é

126
Eliana Donaio Ruiz (org.)

apropriado para versar sobre o tema que pretende discorrer e


avaliando também as características do “campo da comunica-
ção discursiva” em que concretizará seu enunciado (MACIEL,
2015, p. 252).

Corrêa (2010, p. 637) enumera uma série de particularidades que


configuram a redação de/no vestibular como um gênero do discurso: “a
interação social específica (avaliado/avaliador)”, “escolhas temáticas
filtradas por um interesse educacional”, “soluções estilísticas essencial-
mente ligadas ao diálogo com a instituição avaliadora”. Isso nos permite
entender que as redações produzidas no contexto do exame são textos
representantes de um gênero discursivo, pois são enunciados reais, ma-
terializados em condições sociais e discursivas definidas.
Compreendida enquanto gênero, a redação de vestibular tem, pois,
vinculação com as práticas sociais, razão pela qual pode ser considerada
uma prática de letramento, tal como apresentada por vários pesquisadores
do campo dos Novos Estudos do Letramento (HEATH, 1982; KLEIMAN
1995; STREET, 1995; BARTON; HAMILTON, 1998; SIGNORINI,
2001; SOARES, 2003a; 2003b). Esse campo preconiza os conceitos de
eventos de letramento e práticas de letramento como unidades básicas
do fenômeno do letramento, portanto como instrumentos de estudo,
constituindo os diferentes lados de uma mesma moeda, de uma mesma
realidade interacional. Tanto as práticas como os eventos envolvem dife-
rentes gêneros de textos escritos e são parte natural da vida das pessoas.
Heath (1982 apud SOARES, 2003b, p. 105) define eventos de
letramento como sendo “as situações em que a língua escrita é parte in-
tegrante da natureza da interação entre participantes e de seus processos
de interpretação”. Já Barton e Hamilton (1998, p. 8) os concebem como
“atividades em que o letramento desempenha um papel. Geralmente
existe um texto escrito, ou textos, que é central para a atividade e falas
em torno do texto. Eventos são episódios que emergem das práticas e
são definidas por elas”. Kleiman (1995, p. 40), por sua vez, apoiando-se
em Heath (1982), afirma que os eventos de letramento são “situações
em que a escrita constitui parte essencial para fazer sentido da situação,

127
escrita como prática social (não) escolar

tanto em relação à interação entre os participantes como em relação aos


processos e estratégias interpretativas”. Trata-se de situações mediadas
pelo texto escrito, seja através da interação face a face ou a distância.
Isso significa dizer que, sempre que um texto escrito for o mediador de
uma atividade social, aí ocorre um evento de letramento, sendo, portanto,
imprescindível que haja diálogo entre os participantes, mesmo que estes
estejam ausentes ou sejam imagináveis.
Isso nos autoriza a entender o vestibular e a prova de redação como
eventos de letramento, com regras específicas, segundo o seu contexto
de ocorrência e os objetivos aos quais se propõem e, ainda, conforme os
papéis dos agentes sociais que neles estão envolvidos.
Relacionadas a esse conceito, as práticas de letramento têm um
sentido mais amplo, já que englobam tanto o comportamento dos en-
volvidos no evento quanto as suas concepções. Baseando-se em Street
(1995), Soares (2003a, p. 105) define práticas de letramento como os
“comportamentos exercidos pelos participantes em um evento de letra-
mento, onde as concepções sociais que o configuram determinam sua
interpretação e dão sentido aos usos da leitura e/ou escrita naquela situ-
ação particular”. As práticas de letramento são, certamente, múltiplas e
diversas, pois dependem das formas como as pessoas e os grupos sociais
usam a língua escrita em seu cotidiano e dos processos e estratégias de
produção de sentido utilizadas pelos participantes de um processo dis-
cursivo, sempre variados.
Seguindo essa linha de raciocínio, tanto a prova de redação quanto a
redação de vestibular podem ser concebidas como práticas de letramento,
a produção de um texto escrito, que, no contexto dialógico do exame,
corresponderiam respectivamente à palavra da banca examinadora e à
contrapalavra do candidato.
Ocorre, contudo, que, ao serem alocadas ambas num evento de
letramento específico, a realização de um exame, opera-se uma notável
incongruência. Isso porque há uma sobreposição curiosa em que ficam
evidenciadas as diferenças entre o letramento escolar, inerente à prova,
e o letramento social, próprio do texto produzido, a redação de vesti-

128
Eliana Donaio Ruiz (org.)

bular, considerando-se a natureza técnica e individual de ambas essas


categorias de letramento.
O letramento escolar é um tipo específico de prática de letramento
que desenvolve apenas determinadas habilidades, não outras. Geralmente,
o que há na escola é uma valorização das habilidades individuais, além
de uma concepção equivocada de que as atividades de leitura e de escrita
sejam neutras, universais e distanciadas tanto do professor quanto do
aluno, como se estes fossem receptores passivos – conforme o modelo
autônomo de letramento proposto por Street (1995), em oposição ao mo-
delo ideológico de letramento, atravessado pelo viés político-ideológico,
que nega a neutralidade da escrita como mera tecnologia e compreende
seus efeitos, considerando as questões sociais, culturais e de poder.
Citado por Soares (2003b, p. 107), Street denomina esse processo
de pedagogização do letramento, isto é, um processo pelo qual a leitura
e a escrita, em contexto escolar, integram eventos e práticas sociais es-
pecíficas, associados essencialmente à aprendizagem; logo, de natureza
bastante diferente dos eventos e práticas sociais associados a objetivos e
concepções não escolares. Ainda segundo Soares (2003b, p. 107, 108),
“essa pedagogização da leitura e da escrita – dos eventos e práticas de
letramento – é, porém, inerente à necessária e inevitável escolarização
de conhecimentos e práticas [...] a escola seleciona para torná-las objetos
de ensino”. As práticas sociais de letramento são, então, aí transformadas
em práticas de letramento a ensinar. Trata-se, pois, tanto de escrever
para aprender a escrever na escola (práticas de letramento ensinadas),
quanto para usar socialmente a leitura e a escrita fora da escola (práticas
de letramento adquiridas).Como a relação entre as práticas de letramento
ensinadas e as práticas de letramento adquiridas não se dá de forma li-
near, mas em função do contexto social em que essas práticas aparecem,
é nesse interstício que a prova de redação de vestibular atua, como um
gênero de tipo injuntivo. No contexto do exame, a prática de letramento
social produção de texto é particularmente distinta: ao realizar sua pro-
va, o candidato responde a um comando de produção, a uma instrução,
por isso não elegerá livremente um gênero a partir de um tema de seu
interesse pessoal para se pronunciar socialmente através da escrita,

129
escrita como prática social (não) escolar

pois a ligação entre gênero e tema já estará necessariamente dada pelo


enunciado da proposta – ainda que haja a possibilidade de uma escolha
entre os gêneros determinados pela prova. Nem o examinador lerá o
texto como um leitor comum, pois ele está na posição enunciativa de
um especialista, um avaliador em busca de marcas textuais(-discursivas)
que indiquem o grau de competência do escrevente manifestado na sua
produção escrita, cuja função precípua é atestar a competência comuni-
cativa no uso da linguagem escrita, enquanto egresso do Ensino Médio
aspirante a Ensino Superior.
Como em todo concurso que solicita prova de redação, tem-se um
interlocutor real, o examinador, e um interlocutor fictício/virtual, o do
texto a ser escrito, pois o gênero discursivo solicitado na prova passa a
atender ao propósito específico de julgar candidatos. Sem outra função
comunicativa que mostrar competência escrita, o escrevente, em situação
de exame, precisa dialogar com as instruções da prova que, em alguns
casos de vestibular, inclui uma coletânea de textos que embasa a proposta
de escrita da redação.
Nessas condições de produção, o vestibulando se encontra numa
posição enunciativa especialíssima, já que tanto escreve para o exami-
nador desconhecido quanto supostamente para o interlocutor visado pelo
gênero imposto, que precisa ser suposto, imaginado como outro a quem
endereça sua palavra, pois é virtual (passível de existência, potencial),
não está, de fato, instaurado na cena interativa do exame cujo único
interlocutor real é o corretor. Ao fazê-lo com consciência de que seu
leitor é a banca, terá uma atenção redobrada para com a textualização
em curso, uma avaliação, na qual tem de convencer esse outro de que
merece ser aprovado e passar na faculdade. E isso altera, evidentemente,
o estatuto do gênero em cena, que se transforma, então, de um organis-
mo vivo – algo que poderia ser uma genuína carta-aberta, ou um efetivo
comentário online, por exemplo, ou, seja lá qual for o gênero solicitado
pela prova –, em matéria orgânica em decomposição, em um cadáver: a
redação de vestibular.

130
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Por conta disso, diferentemente de Lino de Araújo (2006), para quem a


redação de vestibular consiste em um gênero híbrido – conforme Marcuschi
(2001), um gênero sob outro, no qual o gênero “original perde várias de
suas características iniciais, principalmente as relacionadas à circulação e à
interação com a audiência [...]. [e também perde] a marca da autoria identi-
ficada porque a prova exige a não identificação dos candidatos” (LINO DE
ARAÚJO, 2006, p. 5) –, entendemos que a redação de vestibular é mais
do que isso: trata-se de um gênero sui generis, original, peculiar, isto é,
que não apresenta semelhança com nenhum outro, a não ser em princípio,
como todo e qualquer texto que se preste a ser instrumento de avaliação
redacional em contexto de exame ou competição. Ela é um gênero curinga,
versátil, que exerce funções variadas – como num jogo de cartas, mudando
de valor de acordo com a combinação que o jogador tem em mãos – já
que, uma vez descarnado dos elementos que o definiriam enquanto tal,
segundo a concepção dialógica de linguagem – “o conteúdo temático, o
estilo e a construção composicional” (BAKHTIN, 2003 [1952-1953]) –,
o gênero encarna-se textualmente ao sabor dos ventos da prova, podendo,
em princípio, ser qualquer um.
Assim, como as relações dialógicas constitutivas do gênero discur-
sivo solicitado no exame precisam se manifestar no conteúdo temático,
na construção composicional e no estilo do enunciado produzido pelo
candidato (a redação que textualiza o gênero requerido), o que se examina
não é exatamente a contrapalavra do escrevente, mas sua capacidade de
gerenciar o balanceamento entre seu letramento escolar e seu letramento
social. Ou seja, de operar com a requerida indexação em arquiteturas de
textualização do seu pretérito (os “suportes”) e de seu presente/futuro
(os “gatilhos”), preconizadas por Silverstein e Urban (1996 apud SIG-
NORINI, 2001):

O concurso tenta de certa forma restaurar o eco das situações


reais de produção escrita e implicitamente dialoga com as
etapas de escolarização básica, pressupondo que o candidato
dispõe de habilidades suficientes para redigir no tempo estima-
do um texto que atenda às condições de textualidade e autoria
esperadas (LINO DE ARAÚJO, 2006, p. 4).

131
escrita como prática social (não) escolar

Trata-se, então, de um simulacro do que seria a efetiva tomada da


palavra escrita pelo escrevente como um modo de intervenção social, uma
vez que a via é o gênero em questão, o elegido pela prova, não por ele.
A real intervenção social em jogo está em convencer o examinador de
suas capacidades de escrita, não o suposto interlocutor de seu enunciado.
O produtor está, pois, numa posição-sujeito de um locutor especial, um
candidato, não de um locutor comum, o que já estanca o fluxo comuni-
cativo previsto pelo texto produzido no gênero utilizado.
Muito embora o processo discursivo pareça ser preservado na prova
de redação do vestibular, com comandos ou propostas que solicitem textos
desta ou daquela configuração genérica (a depender da IES), repete-se a
cena pedagógica do exame, enquanto evento de letramento tipicamente
escolar, em que o que importa não é exatamente a prática de letramen-
to do escrevente, processual por natureza, mas o texto produto dessa
prática, já que a produção é, na esmagadora maioria das vezes, fictícia,
descontextualizada, artificial – o que, aliás, pode explicar a cobrança de
um gênero tipicamente escolar, a dissertação, como ocorre no caso do
Enem. Está-se, poderíamos dizer, no terreno complexo da imbricação
entre o que a concepção discursiva de Pêcheux (2008 [1983]) chama de
estrutura e acontecimento (conceitos aos quais retornaremos): a redação
de vestibular e a redação no vestibular.
A redação acaba sendo uma mera textualização, produzida apenas
como uma contrapalavra à palavra da IES (banca examinadora) contida
no enunciado da proposta de produção textual, dando curso ao processo
comunicativo instaurado no âmbito do exame, que vai culminar na nota
final obtida pelo candidato e seu posicionamento no ranking. Como
adverte Lino de Araújo (2006, p. 4),

[…] embora esse processo discursivo tente ser preservado, na


prova de vestibular, esse preceito geral dos processos comu-
nicativos parece não se realizar in totum. Pode-se até admitir
que seja um resíduo de um processo discursivo que começa na
escola e de alguma forma é retomado pelo processo seletivo,
mas, em geral, não tem continuidade, seja porque o destinatário
é mesmo a banca examinadora, um interlocutor ‘mudo’, seja

132
Eliana Donaio Ruiz (org.)

porque o vestibular encerra as relações do aluno com a escola


e inaugura outras que tomam essas como implícitas.

Como se verá, a referência a essas condições de produção da reda-


ção de vestibular é fortemente recorrente nos discursos dos sujeitos por
nós entrevistados.
A par desses aspectos, há, entretanto, um fator que deve ser igual-
mente considerado para um entendimento do papel social exercido por
esse fenômeno redação de vestibular no campo educacional: seu impacto
na dinâmica escolar.
Ainda que a pesquisa acadêmica na área da Linguística Aplicada
tenha avançado sobremaneira nos últimos anos, especialmente depois da
década de 1970, quando a redação escolar passou a ter status de objeto
dos Estudos Linguísticos (PIETRI, 2007), ou que os documentos oficiais
que têm regido o ensino no país nas duas últimas décadas - como os PCN
(Parâmetros Curriculares Nacionais), por exemplo - hajam preconizado o
gênero discursivo como objeto de ensino e o texto como objeto de estudo
(BRASIL, 1998), parece-nos que é a prova de redação de vestibular -
sobretudo após ser obrigatória e passar a ser vista, em 2014, a partir de
competências para o Enem (BRASIL ESCOLA, 2014; INEP, 2016)10
– o fator que mais forte impacto tem exercido nas práticas escolares da
educação básica, de modo geral, e no ensino de língua portuguesa, em
particular, num inegável processo de efeito retroativo (SCARAMUCCI,

10 “Os critérios para a correção da redação no Enem ficaram mais rigorosos. Para alcançar uma
boa nota, o candidato deverá ficar atento às cinco competências exigidas. [...] 1) Domínio da
norma padrão da língua escrita: Consiste na aplicação das normas gramaticais aprendidas ao
longo da vida escolar do candidato. Atenção com a ortografia, concordância, pontuação e com
o coloquialismo, que deve ser evitado. 2) Compreensão do tema: Uma leitura atenta dos textos
motivadores poderá (sic) auxiliar o candidato na compreensão do tema. Não entender a proposta
pode provocar efeitos desastrosos na nota. 3) Organizar informações e argumentos: A organiza-
ção das ideias é fator primordial para quem quer expor adequadamente suas ideias. Além de bons
argumentos, o candidato deve saber como apresentá-los de maneira clara e objetiva. 4) Correta
aplicação da lógica: Seus argumentos precisam ser bem elaborados e coerentes. Um dos fatores
que contribuem para a coerência textual é a coesão, por isso, fique atento ao uso dos conectivos,
como advérbios e conjunções. 5) Apresentar uma proposta de intervenção para o problema:
Não basta apresentar argumentos coerentes, é preciso que o candidato apresente uma proposta
de solução para o problema, uma das principais características da redação do Enem” (BRASIL
ESCOLA, 2014, p. 1).

133
escrita como prática social (não) escolar

2004). Entendido como a influência que mecanismos de avaliação po-


dem exercer no processo de ensino-aprendizagem, bem como nos seus
participantes e no produto desse processo, tal impacto também emerge
maciçamente nos dizeres dos professores e avaliadores investigados.
Vai daí que se forma um processo de alimentação cuja via indicia-se
ser de mão dupla: tanto o caráter examinador do vestibular (re)modela as
práticas de ensino e aprendizagem da escrita na escola quanto a pedagogia
do exame (LUCKESI, 2002) que atravessa tais práticas, tornando-se o
centro das preocupações escolares, se consagra no vestibular:

Pais, sistema de ensino, profissionais de educação, professores


e alunos, todos têm suas atenções centradas na promoção, ou
não, do estudante de uma série de escolaridade para outra. [...]
O nosso exercício pedagógico escolar é atravessado mais por
uma pedagogia do exame que por uma pedagogia de ensino/
aprendizagem (LUCKESI, 2002, p. 18, grifo nosso).

Assim como o gênero redação de vestibular refrata as práticas de


escrita e de leitura que circulam na escola (BRITO, 2011, p. 188), ocorre,
na escola, uma inversão no tocante à pedagogia da escrita, em função
do letramento escolar: em vez de se ensinar e aprender a escrever para,
de fato, agir socialmente através da linguagem, dentro e fora da escola,
passa-se a ensinar e aprender visando primordialmente obter sucesso nas
avaliações da escola e fora dela.
Os dados com os quais trabalhamos, acerca do imaginário discursivo
dos sujeitos da educação, atestam, como procuraremos problematizar,
uma interdiscursividade que resvala desse discurso acadêmico aqui re-
plicado. Antes, apresentamos alguns conceitos teórico-metodológicos
da AD importantes para nossa discussão.

2. ANÁLISE DO DISCURSO: UM DISPOSITIVO

A definição do conceito de discurso nos Estudos Linguísticos não


é homogênea; ao contrário, é heterogênea, assim como o próprio dis-

134
Eliana Donaio Ruiz (org.)

curso. Segundo Maingueneau (2015, p. 30), esse conceito possui uma


“plasticidade” característica, afinal ele recebe definições de dentro e de
fora da Linguística.
No interior da Linguística, o discurso se define a partir das opo-
sições discurso/frase, discurso/língua e discurso/texto. A relação entre
texto e língua, no interior da Linguística, é específica se considerarmos
“um discurso a um conjunto de textos” ou “um discurso a cada texto”
(MAINGUENEAU, 2015, p. 35, grifos nossos). No primeiro caso, os
discursos existem para além da unidade do texto.
Já as definições de discurso vindas de fora da Linguística, como
contribuição das Ciências Humanas e Sociais, ainda segundo Maingue-
neau (2015, p. 25), são contribuições “difusas” de “ideias-força”, ou seja,
existem diversas noções acerca do discurso, sem que ele seja definido
em absoluto, de forma homogênea.
De qualquer forma, o discurso possui uma realidade heterogênea,
caracterizada por estar em uma ordem superior à frase e se constituir como
uma forma de ação interativa. É assumido por um sujeito que, a partir
de um contexto e seguindo normas comunicativas, produz enunciados
cujos sentidos se constroem por meio de uma relação interdiscursiva.
Orlandi (2015, p. 13) tem definido o discurso como “palavra em
movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se
o homem falando”, ou seja, para a autora, a prática discursiva é contínua
e dinâmica. De modo que é observando a prática discursiva que se vê a
realidade comunicativa do homem em sua relação com a realidade social,
relação esta que não é neutra, mas determinada por fatores históricos e
ideológicos.
Nessa concepção, o discurso é a possibilidade de debate social,
estando intimamente ligado a aspectos sociais, históricos e ideológicos
existentes na realidade. Isso porque o discurso é, ao mesmo tempo, estru-
tura e acontecimento (PÊCHEUX, 2008 [1983]); ou seja, o acontecimento
social em que determinado enunciado ocorre é tão significante quanto a
estrutura linguística que lhe dá forma.

135
escrita como prática social (não) escolar

O chamado pré-construído, enquanto “conjunto de discursos pos-


síveis”, também é uma das condições de produção do discurso: “corres-
ponde ao ‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que fornece e impõe
a ‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma da universalidade” (PÊCHEUX,
2014a [1969], p. 151); isto é, corresponde a todo conjunto de discursos
possíveis, independente de um discurso em particular.
Diferente do pré-construído, temos o interdiscurso, que corresponde
à relação que os discursos estabelecem entre si, no interior de um discurso
considerado. Então, enquanto o pré-construído corresponde a qualquer dis-
curso pronunciado no decorrer da história de uma sociedade, independente
de um discurso em particular, o interdiscurso coloca em relação discursos
que se relacionam a um determinado discurso em particular. O interdis-
curso não é facilmente observável, isso porque, enquanto “fio do discurso”
(PÊCHEUX, 2014a [1969], p. 154), se oculta na superfície linguística, é
a discursivização do interdiscurso realizada pelo sujeito, “um efeito do
interdiscurso sobre si mesmo” (PÊCHEUX, 2014a [1969], p. 154).
Orlandi (2015) atesta a presença da ideologia no discursivo pela
evidência de que não há sentido sem interpretação, afinal o sentido se
mostra aos sujeitos como evidentes e transparentes, de modo que a relação
entre sentido e história seja vista como naturalizada. Da mesma forma que
a ideologia age sobre os dizeres, gerando a aparência de que os sentidos
são transparentes, ela também age sobre os indivíduos, interpelando-os
em sujeitos (ALTHUSSER, 1985). Essa interpelação promove, no ima-
ginário do sujeito, a evidência de sempre-já sujeito, ou seja, o indivíduo
interpelado não reconhece seu atravessamento ideológico e nem mesmo
o momento quando ele ocorreu.
Em termos discursivos, segundo Pêcheux (2014b [1975]), não há
discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é in-
terpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido,
de modo que o sujeito é uma das condições de produção do discurso, já
que ele é responsável por tomar a palavra e legitimar, a partir de uma
determinada posição-sujeito, ocupada na configuração social, um deter-
minado enunciado.

136
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Em decorrência disso, sujeitos e sentidos estão intimamente ligados,


pois é por meio de gestos de interpretação (ORLANDI, 2015) do sujeito
que ocorre a produção do sentido. O sentido, portanto, só ocorre quando
sustentado por um posicionamento do sujeito, o qual faz referência direta
a formações ideológicas, conforme Pêcheux (2014b [1975], p. 146-147):

[...] as palavras, expressões, proposições etc., mudam de


sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as
empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em
referência a essas posições, isto é, em referência às formações
ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem.

Essa variação dos dizeres, de acordo com a mudança de posiciona-


mentos, é descrita, na AD, pelo conceito de formação discursiva, definida
da seguinte forma por Pêcheux:

Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa


formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição
dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta
de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado
sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto,
de uma expressão, de um programa etc.) (PÊCHEUX, 2014b
[1975], p. 147, grifo no original).

A formação discursiva demonstra um princípio de relação entre


os discursos, estabelecendo um “conjunto semelhante”, nos quais os
discursos conversam entre si, possuem seu espaço na realidade social e
convivem, ainda que também possam se excluir.
Um sujeito, conhecendo as possibilidades dos dizeres da situação
e o posicionamento ideológico do outro, pode projetar uma imagem
acerca da posição enunciativa assumida por esse outro, antecipando seu
dizer. Isso porque

[...] não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos


como tal, isto é, como estão inscritos na sociedade, e que
poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no

137
escrita como prática social (não) escolar

discurso, mas suas imagens que resultam de projeções. São


essas projeções que permitem passar das situações empíricas
– os lugares dos sujeitos – para as posições dos sujeitos no
discurso (ORLANDI, 2015, p. 38).

Assim, no interior da teia ideológica na qual o discurso é produ-


zido, as formações imaginárias aparecem como imagens das pessoas e
das coisas no/do mundo, projetadas pelos sujeitos nos enunciados. Tais
imagens demonstram a forma como os sujeitos significam o mundo à
sua volta, de acordo com seus atravessamentos ideológicos. Ver alguém
emitindo um juízo de valor sobre algo é uma atitude natural no interior
do processo discursivo. Nas palavras de Pêcheux,

[...] o que funciona nos processos discursivos é uma série


de formações imaginárias que designam o lugar que A e B e
atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem
de seu próprio lugar e do lugar do outro. Se assim ocorre,
existem nos mecanismos de qualquer formação social regras
de projeção, que estabelecem as relações entre as situações
(objetivamente definíveis) e as posições (representações dessas
situações) (PÊCHEUX, 2014a [1969], p. 82, grifo no original).

Ainda segundo Pêcheux (2014a [1969]), as formações imaginárias


estão presentes em todos os processos discursivos, projetando a imagem
do locutor, do interlocutor e do objeto do discurso. Tais formações não
são elaboradas exatamente no momento da enunciação. Pelo contrário,
elas são construídas nos sujeitos a partir do atravessamento ideológico
e ficam armazenadas em sua memória discursiva (ORLANDI, 2015),
para serem ativadas no momento da enunciação. A interpelação impede
que o sujeito perceba conscientemente o momento em que absorveu
determinado imaginário.
Dessa forma, o sujeito, por meio de seu discurso, estabelece uma
relação imaginária com o outro, com a situação imediata de produção e
com o objeto do discurso. Este último, por sua vez, possui um sistema
interno de inclusão e exclusão de dizeres, a formação discursiva. Nisso,

138
Eliana Donaio Ruiz (org.)

o sujeito é capaz de se identificar com determinada formação discursiva,


excluindo outras existentes no interior do interdiscurso.
Com base nesses conceitos caros à AD, atrelados ao de imaginário
discursivo, passamos à análise de alguns dados.

3. A INTERDISCURSIVIDADE ACERCA DA REDAÇÃO DE VESTIBULAR

Para investigar o imaginário discursivo que emerge de discursos


da esfera pedagógica acerca da redação de vestibular, realizamos uma
pesquisa qualitativa (FLICK, 2004), que apresenta uma ética formal
(CHRISTIANS, 2006) e utiliza a entrevista como instrumento para
coleta de dados. Foram dezoito os sujeitos da educação investigados,
entre corretores de redação de vestibular e professores ligados direta ou
indiretamente ao tema.11
A análise foi realizada nos limites da interpretação discursiva, pro-
curando compreender os aspectos que levam ao imaginário materializado
nos dizeres dos entrevistados, de acordo com os procedimentos da AD,
ao relacionar o discurso ao interdiscurso e às condições de produção.
Para isso, buscamos traçar as regularidades discursivas (FOUCAULT,
1987), ou seja, um conjunto de enunciados que apresentam relação te-
mática entre si, relacionando-as a fatores sócio-históricos e ideológicos
que determinam a emergência, no fio discursivo, de tal imaginário. Para
Foucault, a partir do momento em que uma regularidade é estabelecida,
há uma formação discursiva.

No caso em que se puder descrever, entre um certo número


de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em
que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as
escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma
ordem, correlações, posições e funcionamentos, transforma-
ções) diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva (FOUCAULT, 1987, p. 43).

11 Para detalhes metodológicos, ver Camargo (2020).

139
escrita como prática social (não) escolar

O modelo de análise que aqui utilizamos é uma adaptação do descrito


por Pêcheux e Fuchs (2014 [1975], p. 182), no qual a análise passa da
superfície linguística (a sequência verbal oral ou escrita, superior à frase
e afetada pela aparência da transparência da linguagem) para o objeto
discursivo (em que a sequência linguística concreta se transforma em
objeto teórico, procurando anular a aparente transparência da linguagem)
e, por fim, para o processo discursivo (no qual se relaciona a superfície
linguística com os objetos discursivos da qual deriva, buscando anular
a aparência do sujeito como fonte dos sentidos).
É importante ressaltar que a característica fundamental dos discursos
é a relação interdiscursiva entre os enunciados dos diversos campos de
utilização da língua. Isso não é diferente com o imaginário discursivo
sobre a redação de vestibular. Tendo em vista que este provém do dis-
curso acadêmico, passa pela escola básica e acaba circulando na mídia,
os discursos sobre ele acabam integrando discursos outros, provenientes
desses e de outros campos de comunicação humana, indo muito além do
discurso educacional. Em decorrência, não há imaginário puro sobre a
redação de vestibular. O que há é uma rede de significações, nas quais
os sujeitos estão inseridos, que circula na sociedade.
Por conta disso, não é de se estranhar que, no imaginário dos pro-
fessores e avaliadores investigados, esteja impregnada a ideia da neces-
sidade de preparar os estudantes para passar pelo rito do vestibular, bem
como arraigadas as concepções acerca do seu impacto na pedagogia da
escrita. Com força de síntese, retomaremos apenas algumas análises dos
excertos mais significativos da pesquisa de Camargo (2020), em que é
possível delinear tais relações interdiscursivas emergentes, iniciando com
os recortes em que se evidencia o imaginário sobre o efeito retroativo do
rito de passagem vestibular na pedagogia do exame:12

12 Nos recortes discursivos (RD), para melhor identificação ética dos sujeitos, desenvolvemos
o seguinte código: X (y - Z), onde X é o nome do sujeito (letras aleatórias do alfabeto); y é
a posição-sujeito por ele ocupada (corretor de redação de vestibular; professor de Ensino
Médio; ou professor de cursinho pré-vestibular); e Z é o estado da federação em que atua
(PR - Paraná ou SP - São Paulo).

140
Eliana Donaio Ruiz (org.)

RD1
Pesquisador: Para você, quais as diferenças entre o professor formador e
o corretor de redação de vestibular?
H (professor de cursinho pré-vestibular - SP): o professor formador é o
professor que vai é:: [+] criar uma [+] uma trajetória pra [+] tentar criar
o repertório argumentativo do aluno [+] o professor corretor é o professor
que vai [+] avaliar se esses percursos foram/ se esse caminho conseguiu bom
resultado [+] então o professor formador é o professor que atua acredito
eu mais [+] de maneira mais direta né’ junto atuando ali aos alunos [+]
funcionando como um [+] né’ um orientador pra que eles consigam [+] é:
associar aquilo que eles aprendem com as discussões dos temas [+] e o cor-
retor o corretor é aquele que vai saber se esse resultado foi atingido ou não
né’ então é aquele que tá mais distante da [+] desse jogo né’ com o aluno.

RD2
Pesquisador: Quais as diferenças entre o professor formador e o corretor
de redação de vestibular?
L (professor de Ensino Médio - PR): Bom [+] o professor formador é aquele
que vai ensinar né’ ensinar os alunos [+] os objetivos ah: o passo a passo
da redação o que você tem que fazer [+] você vai formar aquele aluno [+]
você vai preparar ele para né’ um vestibular [+] pra ele fazer um concurso
[+] sei lá a gente vai preparar [+] mostrando esteticamente o que pode e o
que não pode [+] todos os passos.

No primeiro recorte (RD1), o professor de cursinho H afirma que o


docente tem o objetivo de desenvolver, sistematicamente, as habilidades
redacionais do aluno, por meio de um caminho previamente traçado, um
plano de ação didática (o professor formador é o professor que vai é::
[+] criar uma [+] uma trajetória pra [+] tentar criar o repertório argu-
mentativo), estabelecendo relações, associações, entre os estudantes e os
conteúdos ensinados, na condição de quem orienta (funcionando como
um [+] né’ um orientador pra que eles consigam [+] é: associar aquilo
que eles aprendem com as discussões dos temas). A referência, por H, a
uma coleção de conteúdos relacionados à argumentação (pra [+] tentar
criar o repertório argumentativo do aluno) retoma o pré-construído de
que o tipo de texto mais solicitado nas provas de redação do vestibular é

141
escrita como prática social (não) escolar

o argumentativo, como, de fato, ocorre com o Enem, o maior vestibular


em nível nacional, realizado todos os anos por milhões de estudantes
brasileiros, que cobra a dissertação argumentativa.

A redação do Enem é composta por uma frase-tema, geralmente


de um problema atual da sociedade brasileira, e cobra dos
participantes uma proposta de intervenção. O texto deve ser
escrito em até 30 linhas e na forma de dissertação argumen-
tativa. Diferente de alguns vestibulares, o Enem cobra uma
única estrutura de texto, que é a dissertativo-argumentativa.
A proposta de redação vem acompanhada por textos de apoio,
que podem ser pesquisas científicas, notícias, quadrinhos ou
outras ilustrações (BRASIL ESCOLA, 2018, p. 1).

No imaginário de H (no RD1), enquanto o professor tem a função


de preparar o aluno orientando-o, o corretor é o responsável por julgar
se o texto escrito pelo candidato demonstra resultar num esperado nível
de aprendizagem das habilidades redacionais (o professor corretor é o
professor que vai [+] avaliar se esses percursos foram/ se esse caminho
conseguiu bom resultado). Com isso, a imagem que H tem do corretor
é a de árbitro, não somente do texto da redação em si, como também,
indiretamente, de todo o ensino e aprendizagem de produção textual
na escola básica, formatado pela pedagogia do exame. O que o dizer
de H evidencia é que se espera que esse ensino resulte, como efeito de
consequência, em algumas habilidades que podem ser atestadas, teste-
munhadas, demonstradas pelo instrumento da prova, a redação. Estamos,
pois, diante de uma referência ao efeito retroativo exercido pela prova de
redação no universo escolar, portanto de um imaginário de que a redação
de vestibular é um mero atestado.13
Por sua vez, o professor de Ensino Médio L (no RD2) diz que o
formador não é só aquele que prepara ensinando (o professor formador
é aquele que vai ensinar), mas que o faz de forma didática, processual,
por etapas (o passo a passo da redação o que você tem que fazer), tendo
13 “Declaração escrita em que se atesta a verdade de um fato para servir de documento a alguém;
certidão, certificado [...] Demonstração cabal, inequívoca; prova [...]” (MICHAELIS, 2021,
s.v. atestado).

142
Eliana Donaio Ruiz (org.)

em vista o exame (você vai preparar ele para né’ um vestibular [+] pra
ele fazer um concurso). Do discurso deste professor resvala igualmente
o pré-construído, o já dito por Luckesi (2002), acerca da pedagogia do
exame. A partir do momento em que o processo de ensino comparece,
nesse discurso, voltado para a aprovação de estudantes e consequente
promoção de um nível escolar a outro, tal pedagogia se manifesta. O
discurso do sujeito L se mostra atravessado, portanto, pelos discursos da
instituição escolar, dos pais e dos próprios alunos que, por vezes, veem
o ensino de produção textual na escola como uma mera preparação para
a prova de redação no exame vestibular.
A imagem de redação de vestibular que resvala desses discursos
de sujeitos da educação a ela vinculados direta ou indiretamente é que
se trata de um texto que, se espera, seja adequadamente preparado pela
escola para ser aceito num exame fora da escola como comprovante de
habilidades de escrita.
Passemos agora à análise do imaginário discursivo acerca da peda-
gogia em si mesma, desenvolvida pelos sujeitos da educação em ambas
as instâncias escolares que envolvem a redação de vestibular – a educação
básica e o cursinho pré-vestibular:

RD3
Pesquisador: Para você quais as diferenças entre o professor formador e o
corretor de redação do vestibular?
P (corretor de redação de vestibular - SP): [...] o professor formador é::
[...] no fim das contas ele acaba servindo na maioria das vezes pra ensinar a
formulinha da prova [+] o modelinho da prova [+] o ideal [+] na definição
do que seria um professor formador seria um professor que de fato se preo-
cupa em fazer com que o aluno consiga expressar suas ideias por escrito [...].

RD4
Pesquisador: Quais as maiores dificuldades para o ensino de redação en-
frentados por professores em sala de aula?
A (professor de cursinho pré-vestibular - PR): [...] eu vejo ainda um certo
comodismo por parte dos professores porque dar aula de redação dá trabalho
[+] [...] corrigir dá muito trabalho se as duas coisas não funcionam [+] a

143
escrita como prática social (não) escolar

aula de redação não flui como deveria [+] [...] muitas vezes o professor li-
mita a redação do aluno na sala de aula [+] então olha [+] não usem essas
expressões não usem estes recursos [+] não usem conclusão assim [+] não
usem introdução assim [+] então porque’ trabalha num único roteirinho
fica fácil para corrigir [+] fica fácil pro aluno melhor [+] só naquele mo-
delinho [+] mas o aluno não aprende a escrever de verdade ele aprende a
seguir um roteiro.

Nestes recortes, tanto o corretor P (no RD3) quanto o professor


de cursinho A (no RD4) afirmam, pejorativamente, que a preparação
para a redação de vestibular, na escola, consiste no ensino de regras
precisas, convencionalmente estabelecidas, com o fim de expressar
ideias ou explicar algum conteúdo. No RD3, o corretor P afirma que
o professor, em sala de aula, usa pequenas fórmulas para ensinar a
redação (acaba servindo na maioria das vezes pra ensinar a formu-
linha da prova [+] o modelinho da prova); e o professor de cursinho
A (no RD4) entende que o docente limita o fazer pedagógico com
a redação, trabalhando pequenos roteiros pré-estabelecidos (num
único roteirinho [que] fica fácil para corrigir). O uso, em ambos
os casos, do sufixo -inha(o) em formulinha, modelinho e roteirinho
indica uma valoração negativa desses sujeitos em relação ao signi-
ficado original das palavras empregadas (fórmula, modelo e roteiro,
respectivamente), demonstrando que o conteúdo ensinado torna-se
restrito, por conta da preparação focada na prova de redação do
vestibular, o que pode causar estreitamento de currículo, tal como
percebido por Martins (2018).
Do discurso desses dois participantes desliza o imaginário de que
o ensino de redação acontece como uma preparação, um treinamento,
que ocorre de maneira padronizada e subdimensionada, em função do
exame. Trata-se de um pré-construído: a necessidade imposta socialmente
aos professores de, na escola básica, prepararem, de alguma forma, os
estudantes para o exame.
Essa confluência nos dizeres dos sujeitos entrevistados recupera
interdiscursivamente a imagem de que a redação (não só a de vestibular)

144
Eliana Donaio Ruiz (org.)

é tanto um instrumento de avaliação quanto de ensino, estando, pois, a


serviço da pedagogia do exame, na escola, e do exame, fora da escola.
Portanto, o rito de passagem vestibular comparece necessariamen-
te impregnado no imaginário de professores e corretores, que moldam
suas práticas profissionais em função da promoção e aprovação dos
estudantes. Geralmente não se ouve pessoas dizendo que vão aprender
Química, Biologia ou História por causa do vestibular, mas é comum
ouvi-las dizer que estão praticando redação para prestar o concurso. Isso
ocorre devido à importância atribuída à prova de redação, tendo em vista
tratar-se de uma avaliação específica no interior do exame, possuindo
um espaço exclusivo que potencializa seu status, já que a nota, na prova
de redação, pode ser o diferencial para a aprovação ou não do candidato.
Dando prosseguimento à análise, segue novo recorte:

RD5
Pesquisador: Escrever uma boa redação no vestibular significa escrever
bem? Justifique.
T (corretor de redação de vestibular - PR): não [+] eu acho que não
por que ’ a gente acaba depois de um certo tempo se habituando a alguns
modelos de texto né [+] então talvez eu domine a forma [+] daquele gênero
específico e não domine muitas outras coisas [+] eu esteja preparada pra
fazer aquela prova mas isso não confere a mim por exemplo uma competên-
cia de discurso social ou de fazer alguma diferença na sociedade por meio
daquilo que eu falo, escrevo de como eu me expresso [+] então eu acho que
são coisas bem distintas.

No RD5, o corretor T afirma que escrever no vestibular não sig-


nifica escrever bem, e justifica interdiscursivamente, reavivando o pré-
construído acerca da concepção acadêmica de que a escrita é fruto de uma
prática do sujeito falante voltada a necessidades situadas (BAKHTIN,
2003 [1952-1953]): no caso do vestibular, uma demanda específica de
determinados gêneros ou tipos (a gente acaba depois de um certo tem-
po se habituando a alguns modelos de texto). O uso da palavra modelo
é, ainda, revelador, pois associa-se metonimicamente à ideia de que o

145
escrita como prática social (não) escolar

trabalho pedagógico com o texto na escola pode estar se pautando por


modelos didáticos de gênero (DOLZ; SCHNEUWLY, 1998):

De acordo com os pesquisadores do Grupo de Genebra, para


que os objetivos de ensino-aprendizagem de gêneros possam
ser atingidos, as práticas escolares de produção textual devem
ser norteadas pelo que chamam de modelo didático do gênero
a ser ensinado, isto é, por “um objeto descritivo e operacional,
construído para apreender o fenômeno complexo da aprendi-
zagem de um gênero” (DE PIETRO; ERARD; KANEMAN-
POUGATCH, 1996/1997, p. 108, grifo nosso).

Em tese, segundo o Grupo de Genebra, a construção desse modelo


didático permitiria visualização das dimensões constitutivas do gênero,
bem como a seleção das que podem ser ensinadas e se mostram neces-
sárias para um determinado nível de ensino. Ocorre, contudo, que, por
razões várias, na escola isso tem se restringido, muitas vezes, a aspectos
de mera estrutura composicional (forma), o que pode explicar o enun-
ciado de T (RD5) que contradiz essa ideia teórico-metodológica: então
talvez eu domine a forma [+] daquele gênero específico e não domine
muitas outras coisas [+], numa referência seja a outros aspectos do
gênero ensinado seja a outros gêneros que circulam socialmente. O que
se evidencia, ainda, no discurso do sujeito T, é a convicção de que o
que está em jogo é o letramento escolar, não o social (isso não confere
a mim por exemplo uma competência de discurso social ou de fazer
alguma diferença na sociedade por meio daquilo que eu falo escrevo
de como eu me expresso), em confluência interdiscursiva com o dizer
de H (no RD1) e de R (no RD7). Veicula-se aí a ideia de que, a partir do
momento em que o vestibular exige determinado gênero discursivo na
prova de redação, o que se avalia é se o candidato tem, em potencial, a
competência de mobilizar o gênero e se comunicar por meio dele. Desde
que o exame consiga, em princípio, alcançar esse objetivo, não importa
se o texto produzido realiza ou não a interação entre o sujeito-autor e o
interlocutor a quem se destina naquele gênero.

146
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Nessa medida, o corretor T (no RD5) parece não considerar a re-


dação de vestibular como um gênero do discurso, por estar restrita ao
próprio exame, reforçando nossa hipótese de que a imagem projetada é a
de um esquecimento de que o texto produzido nesse contexto é, também,
uma produção situada relativamente ao evento de letramento vestibular.
Com os olhos voltados ao pré-construído pelo discurso acadêmico, o
sujeito se esquece de que a redação de vestibular se estabelece nesse
entremeio, nesse curioso entre-lugar: enquanto texto de um determinado
gênero, não promove diferença na sociedade (como diz T), mas enquanto
instrumento de avaliação, sim, já que sócio-historicamente exerce uma
função significativa, que é servir ao rito de passagem pelo qual atravessa
o candidato.
A seguir, procederemos à análise das regularidades discursivas
referentes ao imaginário acerca da redação de vestibular enquanto texto
produzido exclusivamente para fins avaliativos:

RD6
Pesquisador: Você gostaria de fazer algum comentário ou sugestão para
esta pesquisa?
H (professor de cursinho pré-vestibular - SP): [...] acho que a redação
é importante né? é um texto que embora não seja [+] muito pertinente à
vida prática depois ela é uma forma relevante de [+] de você construir
argumentação [...].

RD7
Pesquisador: Para você quais as diferenças entre o professor formador e o
corretor de redação de vestibular?
R (corretor de redação de vestibular - SP): [...] a redação do vestibular não
tem uma história [+] quando eu tô em sala de aula o texto tem uma história.

Os dois recortes demonstram discursos que se relacionam. No pri-


meiro (RD6), o professor de cursinho H afirma que a redação de vestibular
é um texto que possui pouca relevância para a realidade social imediata
(é um texto que embora não seja [+] muito pertinente à vida prática);
trata-se de uma referência ao letramento escolar replicado no exame; ou

147
escrita como prática social (não) escolar

seja, ao fato de, em contexto de sala de aula, a escrita não ser, de fato,
produzida para o interlocutor visado pelo gênero solicitado na prova,
mas, sim, apenas para o professor ler e avaliar o texto, ficando restrita
ao âmbito escolar, qual ocorre no exame.
Já no RD7, o corretor R avança fazendo uma comparação. Entende
que o texto produzido em situação de vestibular não estabelece relações
sócio-históricas com seu produtor (a redação do vestibular não tem
uma história), como, segundo ele, ocorre com o texto que se produz em
sala de aula (quando eu tô em sala de aula o texto tem uma história). Os
dizeres do sujeito corretor R indicam, tal como os do sujeito professor de
cursinho H, um imaginário de que a redação no vestibular se configura
como um texto artificial, descontextualizado da realidade do escrevente,
por não vincular efetivamente os participantes entre si (vestibulando e
interlocutor do texto do gênero elegido pela prova). Entretanto, ao se
referir ao texto produzido em situação de sala de aula, R acredita, por
força de concepção – talvez numa referência ao seu trabalho pessoal em
sala de aula como professor14 –, que este carrega relações sócio-históricas,
em razão do suposto contato entre os interlocutores (alunos e leitores).
A falta de história atribuída pelo sujeito R, corretor, ao gênero redação
de vestibular retoma interdiscursivamente os dizeres de H, professor, na
referência ao letramento escolar requerido pela prova – processo avalia-
tivo descarnado de realidade.
Curiosamente, ao mesmo tempo, H, professor, revela entender ser
a redação um texto relevante (a redação é importante né?) para auxiliar
no desenvolvimento da argumentação dos estudantes (ela é uma forma
relevante de [+] de você construir argumentação), já que no RD1 havia
mencionado a redação do Enem, conforme apontamos. Isso significa que
ele considera a redação de vestibular um instrumento legítimo para o en-
sino da língua escrita na escola, de modo que, ao defendê-la, subjetiva-se
à referida pedagogia do exame.
Parece não haver concepção, nesses dizeres, de que a redação é
uma produção situada sócio-historicamente em relação ao evento de
14 R é professor de cursinho e também de Ensino Médio.

148
Eliana Donaio Ruiz (org.)

letramento exame vestibular. Em decorrência disso, o corretor R projeta


apenas o imaginário de que a redação de vestibular se configura como
um texto que não conclui o percurso característico de outros, deixando
de considerar, em seu discurso, a interlocução banca-candidato-banca
própria do concurso.
Finalizemos com mais um recorte:
RD8
Pesquisador: O que é redação de vestibular?
P (corretor de redação de vestibular - SP): [...] é um gênero muito arti-
ficial que só se produz nessa situação [+] nesse contexto no momento do
vestibular [+] diferente por exemplo a a:: a UNICAMP tem uma proposta
um pouco diferente né’ que aí vai ter um vestibular que tenta usar gêneros
que se aproximam mais da do [+] do mundo real mas mesmo assim sempre
é uma situação muito forçada.

Similar ao discurso de T (no RD5), o avaliador P (no RD8) afirma a


artificialidade no uso da linguagem no contexto do exame (é um gênero
muito artificial que só se produz nessa situação [...] muito forçada). A
referência que emerge no emprego de forçada é a do caráter injuntivo da
prova – o candidato está escrevendo para ser avaliado, deve se submeter
aos comandos da prova redação –, provocador da inalienável situação
simulada de produção textual, já comentada.
Ao lembrar que o vestibular da UNICAMP utiliza gêneros
discursivos em sua prova de redação (a UNICAMP tem uma
proposta um pouco diferente né que aí vai ter um vestibular
que tenta usar gêneros que se aproximam mais da do [+]
do mundo real), esse sujeito P realiza uma comparação com
outros concursos que só solicitam a dissertação argumentativa
em suas provas, como o Enem e a Fuvest (USP), por exemplo,
que potencializam a importância desse gênero tipicamente
escolar.15 Evidencia-se aí o grande embate: o de qual efeito
15 No mais novo Manual do Candidato da Fuvest, podemos ver a manutenção do texto dissertativo
na prova de redação do vestibular: “A redação deverá ser, obrigatoriamente, uma dissertação de
caráter argumentativo, escrita em língua portuguesa, na qual se espera que o candidato, visando
sustentar um ponto de vista sobre o tema, demonstre capacidade de mobilizar conhecimentos
e opiniões; argumentar de forma coerente e pertinente; articular eficientemente as partes do
texto e expressar-se de modo claro, correto e adequado” (FUVEST, 2021, p. 35).

149
escrita como prática social (não) escolar

retroativo um modelo de vestibular ou outro pode ter na escola


básica. Segundo a Comissão Permanente para os Vestibulares
(Comvest) (UNICAMP), A prova de Redação busca avaliar
habilidades de leitura e escrita dos candidatos na produção de
textos pertencentes a diferentes gêneros discursivos. Cada uma
das Propostas de redação é acompanhada de tarefas a serem
cumpridas pelos candidatos e de um ou mais textos para leitura,
que visam subsidiar, respectivamente, a proposta temática e o
seu projeto de texto. Ao propor gêneros discursivos, a prova de
Redação procura simular situações reais de escrita, por isso é
importante que os candidatos fiquem atentos à situação de pro-
dução e de interlocução dos gêneros solicitados (COMVEST,
2021, grifo nosso).

A universidade sabe de sua força social, razão pela qual tem a


expectativa de que as escolas moldem sua pedagogia de escrita em
função do exame e, o fazendo, estimulem a produção de gêneros sócio-
historicamente situados na formação cidadã dos aprendizes.16
Seguimos, então, com algumas considerações que se querem finais.

CONSIDERAÇÕES (QUASE) FINAIS

Este trabalho se propôs a recuperar sintética e densamente algumas


das contribuições da pesquisa de Camargo (2020), que investiga o ima-
ginário discursivo acerca da redação de vestibular, analisando discursos
materializados em textos de entrevistas com corretores de redação de
vestibular, professores de cursinho e professores de Ensino Médio.
Apesar dos diferentes posicionamentos enunciativos assumidos
pelos sujeitos participantes, o imaginário que resvala de seus dizeres
apresenta traços em comum, entrelaçando-se interdiscursivamente com
outros discursos, na forma de pré-construídos.
Os resultados da análise nos levam ao gesto interpretativo de que
a redação de vestibular é percebida como um gênero sui generis, por
16 Entendimento igual parece ter sido o do ministro Paulo Renato, em suas declarações acerca
do Decreto nº 79.298, de 24 de fevereiro de 1977 (BRASIL, 1977), conforme aludimos.

150
Eliana Donaio Ruiz (org.)

estar alocada num entre-lugar, espaço-tempo de entremeio, de margem,


característico do rito de passagem enfrentado por milhões de brasileiros
candidatos a uma vaga no Ensino Superior. Embora ideologicamente os
sujeitos repliquem discursos acerca do que é e como deveria ser o ensino-
aprendizagem da escrita na escola (situado, voltado à efetiva interven-
ção sócio-histórica de sujeitos em interação) – ecoando tanto discursos
acadêmicos quanto discursos de seus pares e de documentos oficiais de
ensino –, parecem se esquecer de que a pedagogia do exame tem formata-
do as ações pedagógicas em torno da escrita na escola e que o vestibular
apenas coroa todo um processo, num movimento sem fim de retroação
e mútua alimentação entre instâncias.
Há como ser diferente? – é a pergunta que, no frigir dos ovos, não
quer calar. Em se tratando de processo seletivo, certamente não. Exames
trabalham com produtos. Mas a escola é um processo e alterar esse quadro
de atuação é, antes de tudo, uma questão política e de concepções teórico-
metodológicas – sobre o quê, aliás, não têm faltado alertas e iniciativas
de inúmeros pesquisadores na área da Linguística Aplicada, desde há
muito, apontando equívocos e mazelas que nos mantêm nesse atavismo.
Somos, pois, com base na análise dos discursos desses sujeitos da
educação, levados a reconhecer que nossa escola ainda está longe de
promover a sonhada proposta de Geraldi (1984), no eixo de ensino de
Língua Portuguesa, correspondente ao que designou produção de texto
– muito embora ela tenha surgido para revolucionar o ensino de língua
materna já na década de 1980, isto é, há praticamente quarenta anos.
Desse modo, fazendo coro com Furlanetto (2007), é possível afirmar
que o rótulo produção de texto pode ser novo (ou melhor, seminovo),
mas o produto, infelizmente, é o mesmo de sempre: a velha e conhecida
redação escolar.

151
escrita como prática social (não) escolar

REFERÊNCIAS

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ideológicos do Estado (AIE). 2. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.
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BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHINOV, Valentin Nikoláievitch. Marxismo e filosofia
da linguagem. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992 [1929].
BARTON, David; HAMILTON, Mary. Local literacies: reading and writing in one
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152
Eliana Donaio Ruiz (org.)

CAMARGO, Everton Lima. O imaginário discursivo sobre a redação de vestibular.


Orientadora: Eliana Maria Severino Donaio Ruiz. 2020. Dissertação (Mestrado em
Estudos da Linguagem) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020.
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156
Eliana Donaio Ruiz (org.)

DISCURSOS SOBRE ESCRITA ACADÊMICA:


LINGUISTAS APLICADOS E SEUS ENUNCIADOS DE
(TRANSFORM)AÇÕES1,2

Alex Alves Egido

Writing unfolds like a game that inevitably moves beyond


its own rules and finally leaves them behind (FOUCAULT,
1977 [1969], p. 300).

INTRODUÇÃO3

A epígrafe assinada por Foucault (1977 [1969]) é ilustrativa das re-


flexões que desenvolvo neste capítulo, as quais se referem às concepções
de escrita acadêmica (PENNYCOOK, 1996; BREET et al., 2018), de
autoria (FOUCAULT, 1977 [1969]; POSSENTI, 2002; REICH, 2010;
MULERO-PORTELA; COLÓN-SANTAELLA; BONET-RIVERA,
2011; DAVIES, 2012; CONN et al., 2017; YEAGER, 2017) e de ética
(REIS; EGIDO, 2017; EGIDO; 2019; EGIDO; REIS, 2019). Ao enten-
der esses conceitos como em constante transformação, tendo em vista
sua situacionalidade histórica e cultural, parto de uma visão de história

1 Texto apresentado como trabalho final da disciplina “Ensino de Produção Escrita em Língua
Materna”, ministrada pela Profa. Dra. Eliana Maria Severino Donaio Ruiz, no Programa de
Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Londrina.
2 Agradeço às professoras mestres Giuliana Castro Brossi (UEG) e Mariana Furio (UEL) pelas
atentas leituras às versões preliminares deste capítulo.
3 Todas as traduções neste capítulo são de minha autoria.

157
escrita como prática social (não) escolar

geral4 (FOUCAULT, 1972 [1969]) e desconsidero a necessidade, bem


como a possibilidade, de identificar a origem exata dos discursos que
aqui interpreto.
Na passagem supracitada, Foucault (1977 [1969]) entende o proces-
so de escrita, aqui, especificamente, como inserido em ordens discursivas
(2014 [1970]), ou seja, para poder materializar enunciados (escritos) é
necessário atentar-se às regras apriorísticas postas àqueles que pretendem
materializá-los em certos contextos. No entanto, por ser um processo
fluído, tal escrita extrapola o prescrito e institui novas ordens discursivas,
ao ponto de apagar aquelas.
Neste estudo qualitativo e documental, inserido na área da Linguísti-
ca Aplicada Crítica (doravante, LAC) e nos campos de escrita acadêmica
e ética em pesquisa, interpreto discursos de (transform)ações5 de três
pesquisadores, linguistas aplicados brasileiros (FERRAZ, 2014; LIMA
NETO, 2018; URZÊDA-FREITAS, 2018) no contexto de práticas acadê-
micas. Ao empregar a análise discursiva foucaultiana, viso a responder às
seguintes perguntas de pesquisa: (i) Que enunciados evidenciam práticas
de (transform)ação? e (ii) O que os tornaram possíveis?
Endereço este relato de pesquisa, especialmente, a professores de
línguas em formação, tendo em vista que, em algum momento, precisarão
escrever seus relatos de pesquisa, bem como a orientadores, professores-
formadores, para que possam questionar discursos naturalizados acerca
da escrita acadêmica. Ao partir de uma concepção de escrita em constante
construção, é necessário, periodicamente, revisitar os entendimentos so-
bre tal temática. O argumento que meu foco recai nestes dois públicos ao
considerar que ambos têm frequente contato com relatos de pesquisa, bem
como os produzem, e podem se beneficiar, ao conhecer novos discursos
acerca dessa prática acadêmica (viz., escrita).
Organizado em seis seções, após essas considerações iniciais, dis-
cuto algumas questões voltadas à escrita acadêmica e, particularmente,
a autoria. Em seguida, centro-me em reflexões sobre ética em pesquisa,
4 Emprego itálico para indicar ao leitor o uso de termos do referencial foucaultiano.
5 Adoto o uso de (transform)ações entre parênteses por entender que o conteúdo dos enunciados
a serem interpretados podem ser tanto como transformações quanto como ações.

158
Eliana Donaio Ruiz (org.)

com foco nas aprendizagens de pesquisadores durante suas agendas de


investigações, por entender que uma concepção de escrita acadêmica
localmente situada recepciona enunciados sobre aprendizados de pes-
quisadores, seus autores. Na seção subsequente, delineio meu desenho
de pesquisa, para que o leitor compreenda os enunciados que apresento
e interpreto em seguida. Por fim, sintetizo as reflexões construídas ao
longo do capítulo e advogo pela expansão do discurso que conceituo.

1. INSTITUIÇÃO ACADÊMICA E DISCURSOS SOBRE ESCRITA E


AUTORIA

A instituição acadêmica tem “controlado, selecionado, organizado


e redistribuído [...]” discursos que a constituem, muitos dos quais coe-
xistentes (FOUCAULT, 2014 [1975], p. 8). Após apresentar e discutir os
conceitos de instituição, discurso e enunciado, centro-me nos discursos
que coexistem sobre escrita acadêmica e autoria, especificamente.

1.1 Sobre instituição, discurso e enunciado em Michel Foucault

Ao entender o contexto acadêmico como uma instituição, segundo


a concepção foucaultiana, discuto-o por entendê-lo indissociável da
acepção de discurso (FOUCAULT, 1972 [1969]). Em sua obra, o autor
historiou a constituição e mudanças da instituição psiquiátrica (1988
[1961]), da médica (2003 [1963]), da jurídica (2014 [1975]), dentre ou-
tras, e, concomitantemente, os discursos que as constituíam, muitos dos
quais ainda as constituem. No enunciado de Foucault (2014 [1970], p.
7), que disponho a seguir, o filósofo demonstra, em sua própria prática
discursiva, quando assume a cátedra “História dos Sistemas do Pen-
samento”, no Collège de France, que, para ele poder pertencer àquela
instituição, era necessário responder a um conjunto de leis, muitas vezes
implícitas, no meu entendimento:

E a instituição responde: “você não tem por que temer come-


çar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na

159
escrita como prática social (não) escolar

ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição;


que lhe foi preparado um lugar que o honra, mas o desarma;
e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que
ele lhe advém.

A experiência de Foucault, estudioso do discurso, não se distingue


da de linguistas aplicados, considerando as regras discursivas necessárias
de atenção para poderem enunciar um discurso, por meio da escrita aca-
dêmica. Tendo em vista que Foucault enuncia diferentes características
que compõem seu entendimento do que seja discurso e enunciado em
várias obras (FOUCAULT, 1972 [1969], 2014 [1970], para citar algu-
mas), escolho apresentar e comentar somente uma passagem do autor para
cada conceito, considerando a pertinência para este estudo. Em relação
à concepção de discurso, ele diz:

Os discursos religiosos, judiciários, terapêuticos e, em parte


também, políticos, não podem ser dissociados dessa prática de
um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo
tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos
(FOUCAULT, 2014 [1970], p. 37).

Embora no excerto acima o filósofo trate dos discursos religiosos,


judiciários, terapêuticos e políticos, compreendo que suas reflexões
também podem ser, analogamente, pertinentes ao discurso acadêmico,
foco desta minha investigação. Em seu entendimento, todo discurso
está inserido em uma instituição, na qual, para poder ser materializado,
necessita observar as regras, muitas vezes naturalizadas. É sobre essa
perspectiva de instituição acadêmica que busco interpretar a promoção de
determinados discursos, que discuto na seção “Enunciados de linguistas
aplicados sobre suas (transform)ações”.
Sobre o conceito de discurso, propriamente, o filósofo esclarece
que ele

[...] não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta)


o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo [...] o

160
Eliana Donaio Ruiz (org.)

discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os


sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta,
o poder do qual nos queremos apoderar (FOUCAULT, 2014
[1970], p. 10).

Para interpretar os enunciados que apresento neste capítulo, também


me valho do conceito de enunciado, que pode ser interpretado como o
átomo do discurso (FOUCAULT, 1972 [1969], 2014 [1970]):

[...] se o enunciado é realmente a unidade elementar do discur-


so, em que consiste? Quais são suas características distintivas?
Que limites são impostos a um enunciado? Essa unidade é
idêntica àquela a que os lógicos deram o termo ‘proposição’
e à que os gramáticos chamam de ‘sentença’, ou àquela que
os ‘analistas’ tentam mapear com o termo ‘ato de fala’? Que
lugar ocupa entre todas as unidades que a investigação da
língua(gem) já revelou? (FOUCAULT, 1972 [1969], p. 80).

Em linhas gerais, os enunciados podem ser compreendidos como


átomos dos discursos, os quais, por sua vez, circulam dentro de certas
instituições, tendo em vista as ordens discursivas que legitimam alguns
discursos em detrimento de outros. Após discutir brevemente estes três
conceitos foucaultianos, reflito sobre a escrita acadêmica e a autoria,
propriamente.

1.2 Escrita acadêmica e autoria

Diferentes áreas do conhecimento têm investigado a escrita acadê-


mica e a autoria, cujos focos também são distintos, como transposição
de regulações institucionais às práticas de escrita acadêmica (REICH,
2010; MULERO-PORTELA; CÓLON-SANTELA; BONET, 2011) e
introdução de tais práticas a futuros alunos universitários (BECK; JE-
FFERY, 2009), por exemplo, para citar alguns.
Pennycook (1996, p. 213) evidencia um paradoxo sobre a escrita
acadêmica. Por um lado, essa instituição (i.e., academia) espera que os

161
escrita como prática social (não) escolar

autores sejam criativos, evidenciem suas marcas autorais e enunciem


conteúdos inéditos. Por outro lado, essa mesma instituição espera que eles
se atentem a um cânone sobre o que é válido enquanto conhecimento e
que eles se atentem ao que é esperado deles, ou seja, um “conhecimento
disciplinar”, que converge com a perspectiva foucaultiana discutida
anteriormente:

[…] da mesma maneira que as práticas literárias ocidentais se


concentram a noção do criador individual e ainda ecoar cons-
tantemente as linhas de outros, o trabalho acadêmico também
enfatiza o indivíduo, o pensador criativo, e escritor e ainda
enfatiza, constantemente, um cânone fixo de conhecimento
disciplinar (PENNYCOOK, 1996, p. 213).

Ao refletir sobre escrita em termos gerais, é possível encontrar


manuais de pesquisa que disponham capítulos específicos sobre es-
crita acadêmica. Nesses textos (KING; KEOHANE; VERBA, 1994;
GOLDENBERG, 2003 [1997]), é recomendável um distanciamento
daquele que escreve de seu objeto de estudo, em nome de uma pretensa
objetividade e consequente cientificidade. Ao consultar alguns livros
de pesquisa acadêmica6, notei que esse discurso do distanciamento data
de, pelo menos, três décadas, considerando os livros a que tive acesso7.
Contudo, entendo que esse discurso de distanciamento passa a ser
questionado por pesquisadores da linguagem, ao considerarem reflexões
daqueles inseridos na área da LAC, em específico. A esse respeito, colhi
o enunciado abaixo:
Todos/as nós, que trabalhamos diretamente com a produção
de conhecimento, já nos deparamos, em algum momento de
nossas vidas, com a ideia de que o fazer científico deve ser
6 As referências de que aqui lanço mão foram anteriormente interpretadas em minha dissertação
de mestrado (EGIDO, 2019), as quais tiveram como critérios de seleção (i) estarem disponíveis
na Biblioteca Setorial de Ciências Humanas da UEL e (ii) localizadas pelo termo de busca
“pesquisa qualitativa”. De um total de 13 referências encontradas, discuto três delas aqui, em
caráter ilustrativo. Naquele estudo, meu foco recaiu sobre ética em pesquisa. Concomitante-
mente, as mesmas referências são ilustrativas sobre escrita acadêmica.
7 Embora mencione um período mínimo de existência e promoção desse discurso do distancia-
mento, esclareço que Foucault (1972 [1969]) não se preocupava com a origem dos discursos,
mas com suas transformações.

162
Eliana Donaio Ruiz (org.)

objetivo e imparcial. Isso significa que, ao nos debruçarmos


sobre um determinado objeto de pesquisa, devemos olhar
apenas para ele, e jamais para nós mesmos/as. As nossas
experiências, ansiedades, valores e lutas pessoais não devem
construir esse processo. Do contrário, corremos o risco de ser
tarjados/as como não científicos/as e até mesmo como não
éticos/as. Essa é a ideia de ciência que durante muito tempo
dominou e que, de certa forma, ainda domina a produção de
conhecimentos no mundo ocidental (URZÊDA-FREITAS;
PESSOA, 2014, p. 365).

Alinho-me a esses linguistas aplicados críticos por também perceber


fortemente essa visão canônica de pesquisa dita neutra na academia. Essa
passagem dos autores fez-me refletir sobre a ineficiência desse discurso
de produção de conhecimento (i.e., distanciamento) e, principalmente,
de escrita acadêmica como um processo neutro; longe de representar a
realidade, compartilho da ideia que a construímos por meio da escrita.
Assim, entendo ser este capítulo um espaço profícuo para a emergência
e a promoção de um novo discurso acerca da escrita acadêmica e, em
especial, autoria. Rever a concepção de escrita acadêmica está direta-
mente relacionado a revisitar, também, o conceito de autor, como o faço
em seguida.
Ao centrar-me no conceito de autor, os estudos de Pennycook (1996)
e de Kittler (2015) são ilustrativos de sua mutabilidade no decorrer da
história, o que é coerente com a perspectiva foucaultiana.8 Nessas in-
vestigações (PENNYCOOK, 1996; KITTLER, 2015), mudanças sobre
ausência/presença autoral, status do autor e seu espaço discursivamente
marcado no texto escrito ocorrem em três momentos principais, que
são delineados como sendo os períodos pré-moderno, moderno e pós-
moderno.
No primeiro (viz., pré-moderno), os textos são tidos como represen-
tação divina, única e inquestionável da realidade e de caráter reprodutivo9,
8 Lembro ao leitor que Foucault já tratou de outros conceitos de igual modo, ou seja, mutável e
discursivamente constituídos, por exemplo, loucura (FOUCAULT, 1988 [1961]) e sexualidade
(FOUCAULT, 1978 [1976]; 1990 [1984]; 2014 [1984]).
9 No sentido de serem condizentes com uma suposta realidade inflexível.

163
escrita como prática social (não) escolar

cujo papel do autor era secundário, muitas vezes inexistente, e “o único


bom autor era um autor morto” (MINNIS, 1984 apud PENNYCOOK,
1996, p. 205). No segundo (viz., moderno), o texto recebe, então, uma
nova função: a de produção da realidade. Assim, a imaginação, que
impulsiona o autor, passa de um dom divino a um produto da mente
humana. Agora, o autor é individualizado e nomeado. No terceiro (viz.,
pós-moderno), tanto a noção de texto quanto a de autor são ressignifi-
cados e distanciados de interpretações unitárias, estanques e limitadas,
e ganham ressignificações mais fluídas e ilimitadas (KITTLER, 2015).
Assim, “a pergunta torna-se não tanto em quem é o autor de um texto, mas
como somos constituídos pelos textos” (PENNYCOOK, 1996, p. 209).
Interpreto essas três mudanças de perspectiva sob as lentes foucaul-
tianas e, em especial, retomando a epígrafe com a qual iniciei este relato.
Saliento que a epígrafe do filósofo francês enfatiza, justamente, a fluidez
de processos de escrita. Nesse sentido, a concepção de autoria é mutável
no decorrer da história, considerando os períodos pré-moderno, moderno
e pós-moderno, e é sempre vista como um processo, em detrimento de
um produto.
Ao centrar-me na visão pós-moderna de autoria, entendo que o
autor/pesquisador se coloca aberto ao diálogo, ao mútuo aprendizado e
à proximidade para com seu objeto de estudo e seus participantes, ques-
tões essas intrinsecamente relacionadas à visão de ética adotada pelos
pesquisadores, que busco aprofundar na próxima seção.

2. ÉTICA EM PESQUISA COM FOCO NAS APRENDIZAGENS

Ao considerar a emergência de um outro discurso sobre escrita


acadêmica (i.e., pós-moderno), que é processual, fluído e possibilita aos
autores implicarem-se diretamente em seus relatos de pesquisa10, entendo
que o elemento da ética pode passar a ser incluído.

10 Quando compartilhei a versão preliminar deste texto com Lima Neto, o pesquisador bem
salientou que essa concepção de escrita pós-moderna nos possibilita ir além, tendo em vista
que ela mesma nos constitui enquanto autores, ou seja, “é no/com o auxílio da escrita que
elaboramos e mudamos” (LIMA NETO, 2019).

164
Eliana Donaio Ruiz (org.)

O campo de ética em pesquisa, em expansão tanto no Brasil (REIS;


EGIDO, 2015; ANDRADE, 2017; EGIDO, 2019) quanto no exterior
(GUILLEMIN; GILLAM, 2004; KUBANYIOVA, 2008), versa, em
linhas gerais, sobre o atendimento de pesquisadores a normativas de
pesquisa (i.e., ética burocrática) e sobre a atenção e cuidado com os
participantes e demais indivíduos e instituições envolvidas na pesquisa
(i.e., ética emancipatória) (BRITISH EDUCATIONAL RESEARCH
ASSOCIATION, 2018). Em razão da extensão deste capítulo, centro-me
neste segundo escopo da ética em pesquisa.
Orientada por uma epistemologia construcionista social (SCHWAN-
DT, 2006), a ética emancipatória (REIS; EGIDO, 2017) advoga pela
atenção a um rol de práticas (EGIDO, 2019; EGIDO; REIS, 2019) que
visa à garantia do bem-estar de todos os envolvidos na agenda de pesquisa,
em especial os participantes. Uma dessas práticas refere-se ao constante
diálogo entre pesquisadores e participantes, do qual um dos propósitos é
a aprendizagem mútua. Nesse sentido, essa perspectiva de ética entende
que tanto os proponentes de pesquisa quanto aqueles convidados para dela
participar aprendem durante sua condução. Neste capítulo, argumento
que tal aprendizagem resulta em diferentes (transform)ações para ambos
os envolvidos, embora meu foco recaia nos pesquisadores.
A título de exemplo, contatei os autores (viz., Ferraz, Lima Neto e
Urzêda-Freitas) dos três relatos de pesquisa dos quais selecionei enun-
ciados para interpretar e os convidei para conhecer minhas interpretações
sobre seus escritos. Após o aceite e as leituras de dois deles, fiz alterações
neste capítulo, em razão de suas imensuráveis contribuições, as quais
dizem respeito ao meu uso da linguagem, ao conteúdo das interpretações
e às informações contextuais sobre seus enunciados.
Assim, entendo que não me restringi a reflexões teóricas sobre éti-
ca em pesquisa, uma vez que busquei materializá-la também por meio
do compartilhamento do conhecimento construído com aqueles que o
possibilitaram. Marco esse meu cuidado ético, por exemplo, nas notas
de rodapé nº 10 e 17, em que indico a direta contribuição dos autores
dos enunciados interpretados, por meio de suas leituras deste relato. Por

165
escrita como prática social (não) escolar

fim, entendo que esse cuidado ético, ou seja, cuidado com o outro (i.e.,
o modo pelo qual eu discursivamente represento o outro), converge com
a concepção de escrita (acadêmica) que advogo neste capítulo, a qual é
fluída e em constante construção composicional.
Em síntese, tanto a ética emancipatória quanto a escrita (acadêmica),
em sua perspectiva pós-moderna, partem do pressuposto de que o autor
constrói discursivamente a realidade. Assim, é necessário um cuidado
especial sobre o modo como terceiros (i.e., participantes de pesquisa) são
enunciados pelo pesquisador, razão pela qual é importante o proponente
do estudo compartilhar com os demais envolvidos suas análises.

3. DESENHO METODOLÓGICO

Neste estudo, de natureza qualitativa (DENZIN; LINCOLN, 2006),


lanço mão de escolhas ontológicas e epistemológicas orientadas pela
perspectiva hermenêutica (SCHWANDT, 2006), a qual é recorrentemente
empregada em estudos discursivos, tendo em vista os poderes (analíticos)
detidos pelos pesquisadores. Em respeito a uma ética emancipatória
(REIS; EGIDO, 2017), busco compartilhar minhas interpretações com
os três autores dos relatos de pesquisa (FERRAZ, 2014; LIMA NETO,
2018; URZÊDA-FREITAS, 2018), dos quais selecionei alguns enun-
ciados (FOUCAULT, 1972 [1969]) para interpretar nesta investigação.
Em relação ao meu cuidado ético, de natureza burocrática (REIS;
EGIDO, 2017), esclareço que não submeti este desenho de pesquisa à
apreciação de um comitê de ética, via Plataforma Brasil, pois a atual le-
gislação (BRASIL, 2016) somente prevê análise de projetos de pesquisas
que envolvam dados primários, o que não se aplica à minha investigação,
de caráter documental.
Em seu artigo, Ferraz (2014, p. 1) buscou investigar “como a edu-
cação de língua inglesa (ou a área de ensino/aprendizagem de língua
inglesa) se posiciona em relação à sexualidade, à homossexualidade e à
homofobia”. Com duas seções introdutórias, na primeira Ferraz (2014)
apresenta uma narrativa pessoal e, na segunda, reflexões teóricas sobre

166
Eliana Donaio Ruiz (org.)

seu tema de estudo. Os enunciados que selecionei para interpretar neste


capítulo são oriundos da primeira parte.
Em sua dissertação de mestrado, Lima Neto (2018, p. 8) teve como
objetivo central “problematizar o movimento de reprodução social e
resistência num contexto de sala de aula de língua inglesa”. Para tanto,
analisou dados oriundos de aulas ministradas em um centro de línguas de
uma universidade pública, cuja investigação classificou como etnografia
crítica. Em seus resultados, o pesquisador evidenciou a complexidade
com que a reprodução, bem como a resistência, a comportamentos he-
gemônicos se materializa.
Urzêda-Freitas (2018, p. 10), em sua tese de doutorado, buscou
“investigar os desdobramentos de uma experiência com letramentos
queer no campo da formação de professorxs11 de línguas”. Na pesquisa
queer-decolonial sobre letramentos, o pesquisador analisou dados gerados
durante a condução de um curso de formação em um centro de línguas de
uma universidade pública. Urzêda-Freitas (2018) concluiu que um curso
de formação dessa natureza oportuniza oportunidades de transformação,
bem como cria “novos repertórios e novas performances para o fazer
docente no ensino de línguas”.
Meu critério para selecionar as referências supracitadas foi que
elas enfocam questões voltadas à sexualidade, também um dos temas
de interesse de Foucault12 (1978 [1976]; 1990 [1984]; 2014 [1984]).
Adicionalmente, justifico meu interesse nesses estudos em razão da
existência de enunciados em que seus autores se posicionaram sobre o
tema, bem como evidenciaram suas (transform)ações pessoais durante
suas agendas de pesquisa.
No que diz respeito à perspectiva analítica, lanço mão da análise
discursiva foucaultiana (FOUCAULT, 1972 [1969], 2014 [1970]). Assim,
meu objetivo é interpretar alguns enunciados de (transform)ações de pes-
quisadores no contexto de práticas de escrita acadêmica para responder
11 Esclareço ao leitor que este é o modo como o pesquisador se refere aos professores/as parti-
cipantes de seu estudo.
12 Tendo em vista a extensão deste relato de pesquisa, não me foi possível discorrer sobre esse
conceito em Foucault, razão pela qual fiz indicações de bibliografia.

167
escrita como prática social (não) escolar

a duas perguntas de pesquisa, nomeadamente: Que discursos enunciam


práticas de (transform)ação? E o que os tornaram possíveis?

4. ENUNCIADOS DE LINGUISTAS APLICADOS SOBRE SUAS


(TRANSFORM)AÇÕES PESSOAIS

Pesquisadores na área da LAC (CAVALCANTI, 2006; JORDÃO;


MARTINEZ; MONTE MÓR, 2019; KLEIMAN, 2013) têm se preo-
cupado cada vez mais com questões que figuram tanto na esfera social
quanto nas esferas profissional e pessoal, que são (re)desenhadas tendo
em vista demandas relacionadas a classe, gênero, raça, etnia, dentre outros
focos de estudo, que influenciam nas possibilidades de participação e
emancipação social de grupos historicamente reprimidos, por exemplo.
Os enunciados que colhi evidenciam, em linhas gerais, (transform)
ações por parte de seus autores. Os dois enunciados que seguem, assi-
nados por Ferraz (2014), dizem respeito às experiências do autor nos
contextos educacional e social, respectivamente. Em ambas as passa-
gens, há marcas de (transform)ação cognitiva e material. No primeiro
enunciado, por exemplo, a fala do autor, enquanto professor, endereçada
a seus alunos, é uma (transform)ação material, tendo em vista que ele
questiona seus alunos sobre a participação de um terceiro em uma das
edições da parada gay. No mesmo enunciado, identifico uma (transform)
ação cognitiva, uma vez que o autor se questiona sobre a razão pela qual
não abordou o assunto na aula seguinte.

Estava dando aula quando, num determinado momento, meus


alunos começaram a “tirar sarro” uns dos outros, chamando
uns aos outros de gays. A piada, que vinha de um contexto de
parada gay na cidade de São Paulo (ela havia acontecido no
final de semana anterior) era: “E aí, você foi na parada gay
encontrar seus amigos?”, “Ô teacher, o fulano ali é gay e foi
na parada!” Pela primeira vez em tantos anos de sala de aula,
tive a necessidade de interromper essas piadas e disse: “Vocês,
com esses tipos de comentários e piadas, não vão chegar a lugar
algum! É muita falta de respeito e preconceito”. Embora não

168
Eliana Donaio Ruiz (org.)

me lembre agora das palavras exatas que utilizei, lembro-me


perfeitamente da minha reação, de um medo acumulado há
anos, medo da injúria feita ao colega, mas que me atingiu ins-
tantaneamente. [...] Lembro-me ainda que planejei passar um
vídeo do Youtube intitulado “A kid’s reaction to a gay couple”
também extensivamente postado no Facebook, na próxima aula
como uma maneira de dar uma resposta a todas as piadas que
vinham acontecendo repentinamente. Não tive coragem. Mas
uma vez me perguntei: foi medo? (FERRAZ, 2014, p. 2-3).

O segundo enunciado, que disponho abaixo, diz respeito ao ofus-


camento da capa de um livro em espaço público. Embora a ação em
si possa ser entendida pelo leitor como de silenciamento e repressão,
enfoco aqui tratar-se, também, de uma (transform)ação cognitiva, visto
que o autor problematiza o ocorrido, que é de sua esfera pessoal em um
texto acadêmico.

O segundo ocorrido foi em uma das viagens para congressos


afora. Ao preparar minhas malas e os livros que levaria para
ler nos aeroportos enquanto esperava pelos vôos, vi-me enca-
pando esse mesmo livro de Eribon (2008). “Reflexões sobre a
questão gay”, um livro grosso e com letras enormes mostrando
o título na capa, algo que desnuda o assunto para todos à volta.
Medo novamente? Ou seria vergonha? Algum outro sentimento
que não sabia descrever? Percebi, nesse exato momento, que
a injúria está internalizada em mim: envergonhado de mim
mesmo, cobrir a capa do livro para esconder as palavras, na
verdade, escondia o que sou e o que decidi pesquisar e estudar
(FERRAZ, 2014, p. 3).

Ambos os enunciados de Ferraz (2014) possibilitam-me refletir,


mesmo que brevemente, sobre autoria. Embora o pesquisador não ex-
plicite partir de uma visão pós-moderna, como discuti anteriormente, ele
parece-me adotá-la, ao atrelar momentos de sua vida pessoal e profissional
em um de seus textos acadêmicos.
Os dois próximos enunciados, materializados na dissertação de
mestrado de Lima Neto (2018), também são ilustrativos sobre autoria,

169
escrita como prática social (não) escolar

bem como relacionam-se aos enunciados interpretados anteriormente. O


autor relaciona diretamente suas experiências de vida com seu desenho
de pesquisa e agenda de condução, quando enuncia: “Todos os temas
escolhidos por mim para serem discutidos em sala têm a ver com a minha
própria história de vida, de alguma forma” (LIMA NETO, 2018, p. 173).
Veja, por exemplo, o que Lima Neto (2018) materializa discursivamente:

Todos os temas escolhidos por mim para serem discutidos em


sala têm a ver com a minha própria história de vida, de alguma
forma. Eu, assim como milhares de pessoas em diversas partes do
mundo, também tenho inseguranças com relação ao meu corpo
e à minha beleza, sou constituído de histórias únicas e também
já fui testemunha de diversas histórias de violência doméstica,
tendo algumas delas acontecido na minha própria família. Ao
realizar este estudo, portanto, aprendi como os limites entre
a vida profissional e a vida pessoal são, de fato, limites que
criamos socialmente. Por conta disso, hoje mais do que nunca,
acredito que as teorias críticas, pós-estruturalistas e queer são
extremamente relevantes para que possamos viver não apenas
as nossas vidas profissionais ou acadêmicas de uma forma mais
consciente e empoderada, mas que possamos fazer o mesmo nas
nossas vidas pessoais (LIMA NETO, 2018, p. 173).

Com base neste enunciado de Lima Neto (2018), identifico uma


(transform)ação cognitiva, ao esclarecer: “Ao realizar este estudo, portan-
to, aprendi como os limites entre a vida profissional e a vida pessoal são,
de fato, limites que criamos socialmente”, ao passo que também observo
o emprego de uma perspectiva pós-moderna de autoria, ao considerar o
imbricamento pesquisador e pessoa, no enunciado.
No último excerto, a seguir, o autor enuncia (transform)ações
cognitivas (i.e., mudança de percepção) que o levaram à (transform)
ação material (i.e., do cabelo liso ao encaracolado), que foram possíveis
graças à condução de seu estudo. Novamente, saliento o cuidado de Lima
Neto (2018) em abordar a questão identitária, o que entendo partir de
uma visão de pesquisador enquanto aberto à aprendizagem com os seus
participantes de pesquisa:

170
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Em termos pessoais, este trabalho foi relevante para mim,


pois contribuiu para que eu me empoderasse em termos
identitários. Uma discussão que tivemos sobre o porquê de
Precious13 querer ser magra, ter a pele branca e ter cabelos
longos (esse evento semiótico, em particular, não se encontra
discutido neste estudo), juntamente com o fato de ter conhe-
cido Ysabella, aluna que passava pelo processo de transição
[capilar] durante a condução da pesquisa, por exemplo, foi
importantíssimo para que, hoje, passasse a usar meus cabelos
encaracolados. Com essa discussão e com essa aluna, dei-me
conta de que, se meus cabelos eram qualquer coisa (nem lisos
e nem encaracolados), poderia muito bem encaracolá-los e
não alisá-los. Mais que isso, dei-me conta de que, se alisava
meus cabelos, não o fazia porque isso era prático, ou qualquer
coisa do tipo, uma vez que alisá-los era “problemático” (era
relativamente caro, ocupava meu tempo, era dolorido etc.),
mas porque havia sido levado a pensar que ter cabelos lisos
(um traço racial hegemônico) era o mais bonito para mim.
Portanto, basicamente, fui levado a perceber como poderia
me sentir bonito de uma outra forma: agora, com meus cabe-
los encaracolados. Contudo, algo relevante que aprendi com
este estudo é que as identidades não são, de fato, essenciais
ou naturais. [...] Hoje, por ter mais consciência de como o
processo de identificação se dá, dou-me o direito de circular
e de possuir os traços que quiser, mas, agora, obviamente, de
uma forma muito mais consciente do que eles possam significar
tanto em termos sociais quanto em termos subjetivos (LIMA
NETO, 2018, p. 172-173).

Colhi o enunciado a seguir no prólogo da tese de doutorado de


Urzêda-Freitas (2018)14. Assim como nos dois anteriores, identifico neste
o uso da primeira pessoa do singular15, o que também faço neste relato
13 Personagem de filme com o mesmo nome, lançado em 2009, dirigido e coproduzido por Lee
Daniels.
14 Convido o leitor a conhecer e ler na íntegra a tese de doutorado de Urzêda-Freitas (2018), pela
temática e, principalmente, pelas várias marcas autorais representadas em linguagens escrita
e visual.
15 Considero necessário sinalizar este recurso de escrita, bem como refletir sobre os efeitos dis-
cursivos causados por ele. Conforme orientação foucaultiana, ao materializar um enunciado
de determinado modo, escolhemos não o fazer de outro. Assim, ao adotarem a primeira pessoa
do singular, os autores evitam a primeira pessoa do plural, que é geralmente adotada, assim

171
escrita como prática social (não) escolar

de pesquisa16, que visa a sinalizar a relação indissociável entre o autor


da investigação (i.e., pesquisador) e a experiência quando ainda jovem
(i.e., indivíduo). No decorrer do prólogo, o autor continua a desenvolver
a relação entre suas experiências de vida e seu tema de estudo; outros
enunciados que não me foram possíveis incluir neste capítulo, em razão
da extensão:

Recordo-me de ter assistido ao clipe17 sozinho, no mais abso-


luto silêncio e com os olhos vidrados na televisão. Dentro de
mim, uma forte inquietação que parecia mesclar uma gama
de sentimentos. Entretanto, o que mais sobressaía era minha
vontade ferina de compreender o que os meus olhos viam. Foi
a primeira vez que me vi diante de um emaranhado de sentidos
múltiplos, complexos, ambíguos e contraditórios sobre corpo,
sexo, gênero e sexualidade (URZÊDA-FREITAS, 2018, p. 11).

Após interpretar esses enunciados, teço dois comentários, com o


propósito de síntese, sobre o discurso acadêmico e a autoria e sobre a
ética em pesquisa. Antes de fazê-los, esclareço o conceito de comentário,
o qual é entendido, na perspectiva foucaultiana, como “dizer, enfim, o
que estava articulado silenciosamente no texto primeiro” (FOUCAULT,
2014 [1970], p. 24).
Em linhas gerais, em todos os enunciados interpretados, noto o em-
prego da primeira pessoa do singular, o que já demonstra uma mudança
nos parâmetros convencionais de escrita acadêmica, que evitavam tal uso,
assim como trata-se de uma marca autoral específica. Adicionalmente,
Ferraz (2014), Lima Neto (2018) e Urzêda-Freitas (2018) parecem-me ser
estudos ilustrativos de um conjunto maior em expansão que se preocupa,
e marca discursivamente em seus relatos de pesquisa, com a proximidade
como a terceira do singular, que recorrentemente é a forma escolhida para enunciar resultados
de pesquisa. Sobre seus efeitos discursivos, penso tratar-se da emergência do discurso de
proximidade.
16 Justifico meu emprego da primeira pessoa do singular por entender que não me desvinculo do
meu eu da esfera pessoal, ao adentrar a esfera acadêmica. Pelo contrário, elas coexistem.
17 No prólogo de sua tese, Urzêda-Freitas (2018) reconstrói seu primeiro contato com os pensa-
mentos queer, o que aconteceu, segundo o autor, quando, em meados da década de 90, assistiu,
sozinho em sua casa, o clipe da música Justify My Love, de Madonna. Nota de rodapé incluída
após sugestão de Urzêda-Freitas (2019).

172
Eliana Donaio Ruiz (org.)

dos pesquisadores com seus participantes e temas de estudo, que neste


caso foi a sexualidade.
Consequentemente, entendo que esse conjunto de investigações,
por meio de seus enunciados, constituem um discurso de proximida-
de do autor/pesquisador para com o objeto de pesquisa e para com os
participantes18, em detrimento de um discurso de distanciamento – que,
pretensiosamente, diz garantir maior cientificidade à pesquisa ao não
implicar seus pesquisadores diretamente em seus escritos. O discurso de
proximidade, que aqui conceituo, interpreto ser constituído de enunciados
que dizem respeito às (transform)ações de seus autores, as quais podem
ser tanto cognitivas (i.e., inquietações e tomadas de consciência) quanto
materiais (i.e., ações). Ilustro-o na Figura 1.
Figura 1 – Elementos constitutivos do discurso de proximidade

Fonte: Elaborado pelo autor.

O segundo comentário que elaboro se refere à ética subjacente


ao discurso de proximidade. Ao materializarem discursivamente suas
(transform)ações em seus relatos de pesquisa, os linguistas aplicados
parecem-me ser orientados por uma ética emancipatória, uma vez
que reconhecem suas (transform)ações pessoais. Lembro ao leitor que
conceitos relativos à ética em pesquisa também são recentes na área da
LAC, bem como suas menções em relatos de pesquisa (REIS; EGIDO,
2017; EGIDO, 2019).
18 Emprego sublinhado para referência a categorias analíticas criadas por mim.

173
escrita como prática social (não) escolar

5. DAQUILO QUE NOS HUMANIZA

Nesta seção, além de apresentar síntese analítica e retomar minhas


perguntas de pesquisa, convido o leitor a refletir sobre um dos elementos
que entendo ser constitutivo da nossa ética, enquanto seres humanos e
enquanto pesquisadores.
O fato de identificar um discurso de distanciamento em alguns ma-
nuais de pesquisa (KING; KEOHANE; VERBA, 1994; GOLDENBERG,
2003 [1997]), que colocam o pesquisador/autor como distante de seu pró-
prio objeto de estudo e, consequentemente, de seu relato, não representa a
pluralidade de discursos possíveis e emergentes na instituição acadêmica
a respeito da escrita. Nesse sentido, também identifiquei, e aqui recai
a contribuição desta minha investigação, um discurso de proximidade.
Assim o nomeei, tendo em vista a materialização de enunciados pelos
linguistas aplicados citados.
Esses enunciados relatam o que interpretei como (transform)ações
de seus autores, as quais podem ser tanto cognitivas (i.e., inquietações e
tomadas de consciência) quanto materiais (i.e., ações). Tais enunciados
interpretados (FERRAZ, 2014; LIMA NETO, 2018; URZÊDA-FREI-
TAS, 2018), longe de ser raros, entendo serem, na verdade, ilustrativos
de uma ordem discursiva em expansão na área da LAC, assim como
em outras áreas. Ressalto, novamente, a epígrafe com a qual iniciei este
relato, que diz respeito à transgressão de regras de escrita: até que sejam
esquecidas e substituídas por outras. Isso é o que me parece acontecer em
alguns relatos de pesquisa na LAC, visto que pesquisadores se implicam,
se aproximam e se enunciam.
Em resposta à primeira pergunta de pesquisa (viz., Que enunciados
evidenciam práticas de (transform)ação?), identifiquei a emergência de
um discurso de proximidade, que passa a coexistir com o discurso de dis-
tanciamento, que tem estado há mais tempo imbuído da ordem discursiva
da instituição acadêmica. Assim, entendo ser pertinente refletir sobre
a segunda pergunta de pesquisa (viz., E o que os tornaram possíveis?).
Embora o discurso do distanciamento não seja meu foco, pude localizar

174
Eliana Donaio Ruiz (org.)

em manuais de pesquisa enunciados que o sustentam. Sobre o discurso


de proximidade, entendo que ele se torna possível em razão de uma (re)
interpretação dos próprios pesquisadores sobre seus papéis, não somente
acadêmicos, mas, principalmente, sociais.
Para concluir, mudo de uma enunciação em primeira pessoa do
singular para a primeira do plural para me dirigir aos colegas da área.
Nós, enquanto pesquisadores, em especial, linguistas aplicados, sempre
fomos humanos e, por isso, estabelecemos vínculos com o tema que es-
colhemos investigar e com os participantes de nossas pesquisas. Sendo
assim, o que muda do discurso do distanciamento para um discurso de
proximidade? Bem, agora participamos de uma instituição acadêmica
que é também constituída de regras discursivas que possibilitam que nos
impliquemos, que nos enunciemos, enfim que nos desvelemos enquanto
seres humanos com sentimentos em nossos escritos.

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

TRADUÇÃO E RETEXTUALIZAÇÃO NO ENSINO DA


PRODUÇÃO ESCRITA EM LÍNGUA MATERNA:
POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES1

Lucas Mateus Giacometti de Freitas

INTRODUÇÃO

Tudo o que se diz é uma tradução do que já se disse (MURA-


TA, 1996, p. 69).

Muitos teóricos discorrem sobre a dificuldade de se trabalhar em


sala de aula com textos orais e escritos seguindo as recomendações dos
documentos oficiais (anteriormente, os PCNs, e atualmente a BNCC),
utilizando-se de gêneros textuais e pautando-se em conceitos sociointera-
cionistas (BRASIL, 2000). Bouzada, Faria e Silva (2013) versam em seu
trabalho a respeito do enorme abismo presente entre as recomendações
feitas pelo MEC e as verdadeiras práticas e realidades do contexto de
ensino brasileiro. Para os autores, os professores não conseguem transpor
grande parte das teorias e pesquisas relacionadas ao ensino que são pro-
movidas pela academia, criando assim “uma distância comprometedora
entre os conhecimentos teóricos advindos das pesquisas e sua aplicação
na formação do professor” (BOUZADA; FARIA; SILVA, 2013, p. 2).
Nunes e Silveira (2017) também discorrem sobre o mesmo problema.
1 Trabalho realizado para obtenção de nota parcial na disciplina Ensino de Produção Escrita em
Língua Materna do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Londrina, ministrada pela Profa. Dra. Eliana Maria Severino Donaio Ruiz.

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escrita como prática social (não) escolar

De acordo com os autores, “muito do que se produz na academia pouco


dialoga com a realidade de nossas escolas” (NUNES; SILVEIRA, 2017,
p. 1-2). Estes trabalhos servem como exemplo de como esse fenômeno
continua acontecendo mesmo na atualidade. O que podemos fazer e de
que modo podemos ajudar na redução desse distanciamento entre as
práticas propostas pela academia e as práticas que se concretizam em
sala de aula de fato?
Neste trabalho, abordaremos o movimento de retextualização
proposto por Marcuschi (2001) e seu funcionamento em sala de aula
como uma prática pedagógica. Embora a teoria não seja tão recente,
seu uso relacionado com o ensino ainda é um tópico de discussão por
professores, pois, mesmo sendo um movimento de acontecimento quase
que diário, sua utilização como ferramenta pedagógica relacionada ao
ensino da escrita ainda exige um certo conhecimento teórico e prático.
Devido a este fator, fomos à busca de ferramentas que pudessem auxiliar
professores e alunos neste processo e encontramos na área dos Estudos
da Tradução um aparato que poderia auxiliar no desenvolvimento das
atividades de retextualização.
Neste artigo, procuramos primeiramente explorar conceitos básicos a
respeito das atividades de retextualização e de tradução e, como objetivo
do trabalho, adaptar uma ferramenta didática, a tabela pré-translativa de
Nord (2012), inicialmente pensada para o campo da Tradução, e transpô-
la para a área de ensino de escrita em língua materna, de modo a auxiliar
os professores e alunos no processo de retextualização de textos escritos
e orais. Embora seu uso em sala de aula de língua estrangeira e/ou duran-
te aulas de formação de tradutores já tenha sido discutido por diversos
autores, a novidade deste trabalho se dá na proposta de sua utilização de
forma adaptada também nas aulas de língua materna.
Para atingirmos o objetivo citado acima, tornou-se necessário criar
uma pergunta regente de todo o processo. Desse modo, a questão que
rege este trabalho é: como um aspecto/instrumento do campo da tradução
pode potencializar a atividade de retextualização no ensino de produção
escrita em língua materna? Com o intuito de respondê-la, a textualização

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

deste artigo está dividida em uma breve introdução geral sobre o texto,
reflexões sobre o que já foi dito acerca dos processos de retextualização,
conceitos da área da tradução que possam ser relacionados ao tema supra-
citado, possíveis aproximações entre as duas áreas, com a adaptação da
ferramenta didática proposta e, por fim, possíveis contribuições esperadas
para a aplicação prática desta tabela em sala de aula, trazendo benefícios
tanto para o professor como para o aluno.

1. O PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO

Nesta seção, procuramos discorrer sobre o processo de retextualiza-


ção (e conceitos relacionados a ele) discutido por Marcuschi (2001) em
seu livro Da fala para a escrita: atividades de retextualização, visando
deixar clara a natureza desse processo e como ele se relaciona com a sala
de aula e o ensino da escrita. O texto de Marcuschi se tornou um estudo
basilar para a formação de professores que trabalham com o ensino da
escrita em sala de aula e tem sido discutido por diversos autores (MA-
TÊNCIO, 2003; TRAVAGLIA, 2003; DELL’ISOLA, 2007) dentro e
fora da academia.
Para o autor, amparado em conceitos bakhtinianos, as línguas e as
atividades linguageiras não existem de forma isolada, estão sempre atre-
ladas a contextos históricos, sociais, políticos e econômicos, podendo se
materializar em diversas esferas sociais e se apresentar como diferentes
textos, dentro de “algum gênero textual particular” (MARCUSCHI, 2008,
p. 243). Ele mesmo define os gêneros textuais como

[…] os textos que encontramos em nossa vida diária e que apre-


sentam padrões sociocomunicativos característicos definidos
por composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos
concretamente realizados na integração de forças históricas,
sociais, institucionais e técnicas (MARCUSCHI, 2008, p. 155)

Sob uma visão interacionista, indivíduos que produzem língua


podem ser vistos como atores/construtores sociais, sendo “sujeitos ati-

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escrita como prática social (não) escolar

vos que – dialogicamente – se constroem e são construídos no texto”


(KOCH; ELIAS, 2007, p. 10). Os gêneros que aparecem no dia a dia dos
alunos, como artigos de revistas, livros, posts em mídias sociais, e-mails,
e também em situações orais, como entrevistas de emprego, negociação
de produtos, entre outros, devem ser trabalhados no âmbito escolar de
modo a intensificar o exercício com as concepções supracitadas. Dessa
maneira, expor os alunos aos diferentes gêneros orais e escritos, assim
como seu funcionamento na sociedade, seria dar-lhes proficiência alunos
para que ajam nas mais diferentes esferas sociais (BOUZADA; FARIA;
SILVA, 2013). Bouzada ainda defende que

[…] a apropriação dos gêneros textuais é determinante para


a inserção social do indivíduo, e que cabe à educação formal
criar as condições e oportunidades para o desenvolvimento
de atividades que permitam ao aluno perceber como os textos
funcionam no mundo. Assim, por meio do trabalho com dife-
rentes gêneros textuais, esperamos que o aluno compreenda os
fatores linguísticos, textuais e não-textuais que estão presentes
na construção, circulação e ação dos textos e, então, passe a
conceber e usar a língua de forma mais consciente, compe-
tente e, até mesmo, criativa (BOUZADA; FARIA; SILVA,
2013, p. 4).

Uma das maneiras que o indivíduo possui para navegar entre os


diferentes gêneros habituais seria o processo de retextualização. Este
procedimento seria um movimento de construção de um novo texto a
partir de um texto ou textos previamente experienciados, pertencentes ao
mesmo gênero discursivo ou não (MARCUSCHI, 2001). O próprio autor
descreve esse fenômeno: “toda vez que repetimos ou relatamos o que
alguém disse, até mesmo quando produzimos as supostas citações ipsis
verbis, estamos transformando, reformulando, recriando e modificando
uma fala em outra” (MARCUSCHI, 2001, p. 48).
Dell’Isola salienta ainda mais a definição deste método, descreven-
do-o como a “transformação de uma modalidade textual em outra, ou seja,
trata-se de uma refacção e reescrita de um texto para outro, processo que

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envolve operações que evidenciam o funcionamento social da linguagem”


(DELL’ISOLA, 2007, p. 10)
Matêncio (2003) também se preocupou em estudar esse fenômeno
e suas especificidades. A autora chama de texto-base o texto, não neces-
sariamente escrito, que dá origem ao processo de retextualização; dessa
forma, o novo texto a ser produzido está intrinsicamente relacionado a ele.
A pesquisadora tentar estabelecer o processo de retextualização como a

[…] produção de um novo texto a partir de um ou mais textos-


base, o que significa que o sujeito trabalha sobre as estratégias
linguísticas, textuais e discursivas identificadas no texto-base
para, então, projetá-las tendo em vista uma nova situação de
interação, portanto um novo enquadre e um novo quadro de
referências (MATÊNCIO, 2003, p. 3-4).

Tais processos estão presentes no nosso dia a dia, e o fazemos de


forma semiautomática, o tempo todo. A título de exemplo: ao esclarecer
para a turma o conteúdo que está inserido no livro didático, o professor
se utiliza de novas técnicas para explicar oralmente o que está eviden-
ciado de forma escrita no material. Ao fazer isso, outros mecanismos são
acionados na produção desse texto oral, diferentes dos utilizados quando
o autor do livro didático o escreveu. Nas palavras do próprio Marcuschi,
as atividades de retextualização

[…] são rotinas usuais altamente automatizadas, mas não


mecânicas, que se apresentam como ações aparentemente
não problemáticas, já que lidamos com elas o tempo todo nas
sucessivas reformulações dos mesmos textos numa intricada
variação de registros, gêneros textuais, níveis linguísticos e
estilos. Toda vez que repetimos ou relatamos o que alguém
disse, até mesmo quando produzimos as supostas citações ip-
sis verbis, estamos transformando, reformulando, recriando e
modificando uma fala em outra (MARCUSCHI, 2001, p. 48).

O autor defende quatro possibilidades de retextualização, sendo


elas: a) da fala para a escrita, como uma anotação de um recado que foi

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escrita como prática social (não) escolar

passado para o indivíduo oralmente por telefone, por exemplo; b) da fala


para a fala, como durante o relato, para um amigo, de uma notícia que se
escutou na rádio; c) da escrita para a fala, na narrativa de uma história
lida em um livro; d) e da escrita para a escrita, por exemplo, na resenha
de um artigo lido (MARCUSCHI, 2001, p. 48). Os exemplos citados
acima são apenas alguns tipos comuns de eventos comunicativos, onde
as práticas de retextualização acontecem em nosso cotidiano. Bouzada,
Faria e Silva (2013) defendem o uso da retextualização no âmbito escolar,
considerando-a “promissora no desenvolvimento de um trabalho eficaz
de leitura e produção de texto” já que oportuniza momentos de reflexão
sobre os diversos gêneros levando em conta os contextos de produção e
as inúmeras esferas sociais (BOUZADA; FARIA; SILVA, 2013, p. 5).
Na seção a seguir, discorreremos sobre um conceito da área da tra-
dução que, ao nosso ver, conversa com o movimento de retextualização,
com o propósito de promover um mecanismo que facilitará sua prática
em sala de aula.

2. O MODELO E ANÁLISE PRÉ-TRANSLATIVO DE NORD

Até meados dos anos 70, a atividade tradutória possuía uma conota-
ção formalista, isto é, o ato de traduzir ficava preso no âmbito da forma,
da frase e do léxico, com um forte foco no significado, considerando o
texto-base como superior ao texto traduzido. Nessa época, uma nova visão
a respeito da tradução surgiu e foi chamada de Tradução Funcionalista.
Para os funcionalistas, não era possível desprender da tradução caracte-
rísticas essenciais que permeiam qualquer texto: como uma forma de ação
social, dialógica e situada sócio-historicamente (PONTES; PEREIRA,
2017). Na tradução funcionalista, ‘o texto é entendido como um evento
comunicativo, localizado em tempo e lugar, que possui, pelo menos,
dois interlocutores em condições apropriadas e dispostos a se comunicar
para alcançar um objetivo concreto” (PONTES; PEREIRA, 2017, p. 3).
Christiane Nord, um dos grandes nomes do campo de Tradução
Funcionalista, se preocupou em descrever aspectos funcionais do texto e

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

suas relações com o ato tradutório, definindo dois pontos básicos para a
atividade tradutória: o objetivo da tradução e sua função na cultura-alvo
(NORD, 1996). Seguindo esse raciocínio, o que se traduz em um texto
são suas funções comunicativas, não apenas a estrutura e a forma, como
era feito sob o viés formalista. Pensando nisso, Nord refletiu sobre como
um modelo de análise poderia ajudar os tradutores a encontrar as funções
do texto e facilitar o processo tradutório:

Implementando um modelo analítico exaustivo que consi-


dere os fatores intra e extratextuais, o tradutor estabelece a
função-em-cultura do texto base dado, para compará-la com a
(pretendida) função-em-cultura de um texto alvo encomenda-
do, distinguindo os elementos (funcionais) do texto base que
podem ou devem se manter iguais no processo de tradução
daqueles que terão que se adaptar às exigências da cultura
alvo2 (NORD, 2012, p. 23, tradução nossa).

Nord (2012) se preocupou em desenvolver o que ela chama de


Modelo de Análise Pré-Translativo, que possui como objetivo guiar a
tradução de textos, sendo uma ferramenta útil aos tradutores para expor
as funções do texto-base e do texto-alvo (tradução). Demétrio (2014)
discorre sobre como Nord enfatizava a importância de se dominar mais
do que a língua presente em determinado texto.

Para Nord, o tradutor deve considerar efetivamente todos os


elementos envolvidos no processo tradutório, tanto do TF quan-
to do TM: culturas e línguas envolvidas; contextos de produção
e recepção dos textos; leitores/receptores desses; propósitos e
funções desempenhadas (DEMÉTRIO, 2014, p. 41).3

2 Tradução livre de: “Empleando un modelo analítico exhaustivo que considere los factores
intra y extratextuales, el traductor establece la función-en-cultura de un texto base dado, para
compararla con la (pretendida) función-en-cultura del texto meta encomendado, distinguiendo
los elementos (funcionales) del TB que pueden o deben mantenerse iguales en el proceso de
traducción de los que han de adaptarse a las exigencias de la cultura meta” (NORD, 2012,
p.23).
3 TF é a sigla utilizada pela autora para descrever o texto-fonte e TM para descrever o texto-
meta.

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escrita como prática social (não) escolar

O modelo é, na verdade, uma tabela preenchida pelo tradutor após


ler o texto-base e antes de realizar o ato tradutório (a versão completa da
tabela proposta por Nord se encontra no fim desta seção). Esse modelo
conversa com ideias de outros autores, como Reiss e Vermeer (1996),
que ditam que a atividade tradutória necessita de uma análise das con-
dições de produção do texto de partida e de uma análise das condições
de produção do texto de chegada.
A tabela é dividida em três colunas: a) características/perfil do
texto-base (onde o tradutor preencheria com informações a respeito do
texto original, sejam elas visíveis ao texto, como a disposição do texto,
ou mais transparentes, como a intenção do autor ao escrevê-lo; b) trans-
ferência (que são os encargos da tradução que podem ter sido exigidos
por quem requereu a tradução, como manter um certo estilo original ou
modificá-lo completamente; c) características/perfil do texto-alvo (que
o tradutor preencheria com informações a respeito do texto traduzido,
do mesmo modo que preencheu sobre o texto-base). O modelo também
é dividido em duas seções para aspectos extratextuais, ou seja, que es-
tão além do que é visível no texto, como a intenção do autor, objetivo
comunicativo, entre outros, e aspectos intratextuais, que estão no âmago
do texto, diretamente relacionados com o modo como o texto foi escrito,
temas presentes, léxico escolhido etc., e efeito comunicativo. O efeito
comunicativo é uma categoria que está relacionada com o receptor do
texto. Ao ler o texto, o leitor traz suas expectativas e conhecimentos
prévios, produzindo assim uma impressão consciente, inconsciente ou
subconsciente sobre o texto.
A respeito dos aspectos extratextuais, o tradutor deve responder,
tanto sobre o texto-base quanto para o texto traduzido, às seguintes
perguntas: Quem escreveu o texto? Qual foi a intenção do autor? Quem
recebeu/leu este texto? Em qual meio ele circulou? Em que local ele foi
publicado/disponibilizado? Em que período? Qual foi a motivação da
escrita do texto? Que função o texto cumpre?
Sobre os aspectos intratextuais, o tradutor deve questionar: Qual
é o tema do texto? Qual o conteúdo do texto? Que pressuposições são

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

feitas no corpo do texto? Como é feita a composição do texto? O texto


apresenta elementos não verbais? Como é o léxico presente no texto?
Como a sintaxe se apresenta no texto? O texto apresenta aspectos su-
prassegmentais?
Em último lugar, o tradutor deve procurar o efeito comunicativo
que o texto apresenta, dividido pela pesquisadora em quatro categorias
e resumidas por Pontes e Pereira (2017) em:

a) função fática: serve para estabelecer, manter ou terminar


contato entre os participantes da comunicação; b) função
referencial, informativa ou descritiva: se refere à representa-
ção, descrição de objetos ou fenômenos do mundo; c) função
expressiva ou emotiva: trata-se da verbalização das emoções
ou opiniões do emissor acerca de objetos ou fenômenos do
mundo; d) função apelativa: pensada para conseguir um deter-
minado efeito extralinguístico nos seus interlocutores. Nesse
sentido, traduzem-se funções comunicativas e não elementos
estruturais isolados de um texto (PONTES; PEREIRA, 2017,
p. 2131-2132).

Nord deixa claro que, muitas vezes, o tradutor não tem acesso à
resposta para todas essas perguntas, porém, mesmo assim, o desenlace
da maioria delas facilitaria enormemente o processo tradutório. O mo-
delo proposto por Nord está explicitado em sua totalidade no fim desta
seção (Quadro 01).
Na próxima seção, tentaremos aproximar o uso da tabela pré-trans-
lativa de Nord e suas possíveis relações com o ensino de escrita. Para tal,
partiremos da dissertação de mestrado de Demétrio (2014), em que a au-
tora faz uso da tabela em uma atividade de tradução, relacionando-a com
o movimento de retextualização. A seguir, faremos nossa contribuição.

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escrita como prática social (não) escolar

Quadro 1 – Tabela pré-translativo de Nord

Perfil do texto-base Transferência Perfil do texto-alvo


Aspectos Extratextuais
Emissor
Intenção
Receptor
Meio
Lugar
Tempo
Motivo
Função
Aspectos Intratextuais
Tema
Conteúdo
Pressuposições
Composição
Elementos não verbais
Léxico
Sintaxe
Suprassegmentais
Efeito Comunicativo
Efeito

Fonte: Nord (2012, p. 167-168).

3. POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES

Propomos neste trabalho uma adaptação da tabela criada por Nord,


que pode ser usada em atividades de retextualização no âmbito escolar.
O processo de retextualização que permeia as atividades de leitura e
escrita em sala de aula trata de vínculos intertextuais (entre textos e
gêneros) como também de relações interdiscursivas (entre discursos). O

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

modelo de Nord trata com eficácia a análise desses pontos cruciais que
perpassam o processo de retextualização no que tange à escrita e poderia
auxiliar os alunos como uma espécie de ponto de partida ou guia durante
as atividades de escrita que permeiam as atividades de retextualização.
Essa premissa se baseia em alguns teóricos que fazem uma aproximação
entre teorias de textualização/retextualização e tradução (TRAVAGLIA,
2003; DEMÉTRIO, 2014).
Marcuschi (2001) já falava sobre como a retextualização pode ser
considerada um tipo de tradução. O teórico afirma que a interpretação
do texto-base no processo de retextualização é extremamente importan-
te e chama esse movimento de “uma espécie de tradução endolíngue
que, como em toda tradução, tem uma complexidade muito grande”
(MARCUSCHI, 2001, p. 70). Em outras palavras, ela seria um tipo de
tradução dentro da própria língua, com relação direta com a interpretação
dos textos.
Dikson (2018), ao interpretar esta noção proposta por Marcuschi,
aponta que

[…] é necessária uma compreensão do texto-base que ative e


encaminhe o leitor a uma interpretação cognitiva projetada ao
texto-fim – ao ler, ao entender, ao compreender o texto-base, o
leitor já inicia os procedimentos cognitivos voltados à tradução
para o gênero que se pretende re-produzir, o gênero-fim. Essa
ação, em processo endolíngue, estaria dessa maneira ligada
diretamente ao texto-base e ao planejamento – mental, em
rascunho, em discussão etc. – no que concerne à interpretação,
e ao texto-fim situado no gênero proposto enquanto atividade
escolar, a retextualização (DIKSON, 2018, p. 514-515).

Travaglia (2003) esboça como a atividade tradutória é, de fato,


uma atividade de retextualização. Em seu trabalho, a autora afirma que
o tradutor, ao construir um texto baseando-se em outro, acaba ativando
os mesmos mecanismos presentes nos movimentos de retextualização.
Para a autora, o tradutor ativa

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escrita como prática social (não) escolar

[…] todos os elementos que conferem textualidade a um texto


e que foram anteriormente acionados pelo produtor do texto
original, com a diferença de que, manejando uma outra língua,
o tradutor estará de certa forma manejando outros elementos,
ou até os mesmos elementos em perspectivas diferentes (TRA-
VAGLIA, 2003, p. 63).

Demétrio (2014) concorda com as ideias de Travaglia e defende


em sua dissertação que a tradução é uma forma de retextualização.
Ancorada na concepção funcionalista de tradução, a autora exemplifica
em seu trabalho que a atividade tradutória realizada por seus alunos foi
resultado de processos de retextualização. Os estudantes assistiram a um
documentário sobre reciclagem (em espanhol) e deveriam escrever uma
carta para jornais locais (em português) relatando suas experiências com
reciclagem e relacionando-as com o vídeo. Desse modo, um texto oral
(documentário) foi retextualizado e traduzido para outro tipo de texto,
dessa vez escrito (carta). A sequência didática onde as atividades estavam
inseridas foi criada levando-se em consideração a teoria de Nord citada
anteriormente. Para a autora,

[…] tanto do ponto de vista interno (organização do corpo tex-


tual) quanto externo ao texto (contexto de produção) resultam
em traduções/retextualizações de textos que se realizaram no
gênero textual carta do leitor, capazes de cumprir seus novos
propósitos comunicativos (DEMÉTRIO, 2014, p. 171).

A pesquisa de Demétrio (2014) mostra como o ato de retextualizar


conversa com o modelo pré-translativo de Nord. A autora salienta em
seu trabalho que Nord (1994) deixa claro que “a escolha lexical de um
texto depende dos fatores extra e intratextuais nos quais ele está inserido”
(DEMÉTRIO, 2014, p. 30). Deste modo, a tabela de Nord é capaz de
conduzir os alunos a refletirem sobre tais elementos de forma controlada
e pontual. Ademais, a escritora retoma Marcuschi ao fazer uma conexão
entre estas escolhas e os gêneros textuais, e como ambos estão intrinseca-
mente relacionados. Nas palavras de Marcuschi, os gêneros “são entidades
poderosas que, na produção textual, nos condicionam a escolhas que não

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

podem ser totalmente livres nem aleatórias” (MARCUSCHI, 2001, p.


18). Em vista disso, ao completar a tabela de Nord, o aluno pode tomar
consciência das limitações que estão implicadas em cada gênero, condu-
zindo seu futuro processo de retextualização. O que a autora chama de
organização do corpo textual, defendido como os aspectos internos do
texto e tendo como base os princípios de textualidade de Beaugrande e
Dressler (1981) e Cassany (2000) – sendo eles a coesão, a coerência, a
adequação e a correção gramatical –, está relacionada com os aspectos
Intratextuais inseridos na tabela de Nord. O que Demétrio chama de co-
erência dialoga com os cinco primeiros tópicos dos fatores Intratextuais
de Nord - sendo eles o tema, o conteúdo, as pressuposições, os elementos
não verbais e os elementos suprassegmentais. Já a coesão, denominada
por Demétrio, se relaciona com os dois tópicos seguintes do estudo de
Nord – a estruturação e o efeito do texto. O que Demétrio chama de
adequação está ligado com o tópico léxico da tabela pré-translativa de
Nord e, finalmente, a então chamada correção gramatical por Demétrio
se conecta com o tópico sintaxe de Nord.
O contexto de produção, fatores externos ao texto, numerados por
Demétrio como a intencionalidade, aceitabilidade, informatividade e
intertextualidade, também baseados nos autores citados acima (BE-
AUGRANDE; DRESSLER, 1981; CASSANY, 2000) dialoga com os
aspectos extratextuais do modelo de Nord. O primeiro tópico presente
na seção de fatores extratextuais do texto, descrito por Nord como inten-
ção, pode ser conciliado com a intencionalidade descrita por Demétrio.
Os tópicos seguintes de Nord, emissor e receptor, se interligam com a
aceitabilidade nomeada por Demétrio. A intertextualidade retratada por
Demétrio se relaciona com os tópicos meio, lugar e tempo no quadro
de Nord, e, por último, a informatividade especificada por Demétrio
conversa com a função textual de Nord. Há, dessa forma, uma possí-
vel aproximação entre as duas teorias, o que seria um indício de que o
preenchimento da tabela de Nord como uma atividade que precede as
atividades de retextualização em Língua Materna poderia se tornar um
grande aliado neste movimento.

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escrita como prática social (não) escolar

De modo a ilustrar de forma mais eficiente essa relação, mostraremos


uma forma adaptada da tabela de Nord, que foi ajustada e modificada de
sua forma original durante a criação de uma sequência didática que foi
posteriormente aplicada aos alunos do primeiro ano de Letras Inglês da
Universidade Estadual de Londrina em 2019, na disciplina Língua Inglesa
I, sequência então utilizada como instrumento de coleta de dados para
a dissertação de mestrado do autor, ainda em andamento. A sequência
didática girava em torno da tradução do poema “The Road not Taken4”,
de Robert Frost, e trabalhava ao longo de seus módulos aspectos intra
e extratextuais do gênero. Os alunos tiveram um momento de produção
inicial e dois momentos de reescrita antes da criação do texto final, que
foi inserido em uma zine de circulação independente distribuída pelo
campus da universidade. A atividade que imediatamente antecede a
primeira versão da tradução dos alunos foi a tabela adaptada de Nord.
Mostrou-se necessária a adaptação da tabela durante o processo devido
à natureza de sua utilização em sala de aula. O contexto em que ela foi
aplicada não foi o contexto para que a tabela foi originalmente pensada:
para tradutores. Desse modo, como os alunos traduziriam o poema de
forma livre, podendo escolher o que manter e o que descartar do texto
original, a coluna referente aos encargos da tradução, isto é, dos reque-
rimentos feitos ao tradutor por quem demandou a tradução (a editora, o
cliente, entre outros) foi excluída da adaptação. O quadro abaixo mostra
de que modo a tabela foi adaptada pelo autor e de que maneira ela foi
completada por um dos alunos5.

4 O poema “The Road not Taken”, escrito por Robert Lee Frost e publicado em 1916, é um dos
grandes clássicos da literatura estadunidense. Seu tema central é sobre as difíceis escolhas da
vida e apresenta grande complexidade em suas interpretações. O poema pode ser encontrado
no site oficial da Poetry Foundation: https://www.poetryfoundation.org/poems/44272/the-
road-not-taken
5 A tabela desta página foi transcrita da imagem original para facilitar o entendimento. A imagem
original se encontra na seção ANEXO.

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Eliana Donaio Ruiz (org.)

Quadro 2 – Tabela adaptada de Nord preenchida por um participante da pesquisa

Categoria Perfil do texto-base Perfil do texto-alvo


Aspectos Extratextuais
Emissor (Quem escreve?) Robert Frost Bia
Intenção (Para quê?) Zuar o amigo Propagar o poema
Receptor (Para quem?) Amigos Todos os interessados
Meio (Que tipo de canal de Carta/nota/diário/oral Portfólio Tradutório/
comunicação?) Zine
Lugar (Onde?) USA Londrina
Tempo (Quando?) 1915 2019
Motivo (Por quê?) Brincar c/ amigo Propagar o poema de
Frost
Função (Com que função?) Expressiva Expressiva
Aspectos Intratextuais
Tema (Sobre o que fala o Escolhas da vida, incer- Escolhas da vida,
emissor?) tezas incertezas
Conteúdo (O quê?) Bifurcação, escolhas de Bifurcação, escolhas de
caminhos caminhos
Pressuposições (Que conhe- Inglês, vocabulário, leitu- Português, vocabulário
cimentos prévios pode ter o ra metafórica
receptor?)
Estruturação (Como está 04 estrofes, título 04 estrofes, título
organizado o texto?)
Elementos não verbais (Apre- - -
senta elementos não verbais?)
Léxico (Que tipo de pala- Complexas Simples
vras?)
Sintaxe (Que tipo de estrutu- Descritivas, poéticas, Descritivas, poéticas,
ras frasais são utilizadas?) número de sílabas número de sílabas
Suprassegmentais (O que dá Travessão, exclamação Travessão, exclamação
tom ao texto?)
Efeito (Com que efeito?) Efeito cômico, reflexão Efeito de reflexão
sobre escolhas
Fonte: Elaborado pelo autor.

Na tabela adaptada, sentimos a necessidade de retirar a coluna


central, que girava em torno dos encargos da tradução (transferência)
por dois motivos: não havia requerimentos tradutórios para se manter

193
escrita como prática social (não) escolar

ou alterar aspectos do texto original, os alunos tiveram a liberdade para


retextualizar do modo que julgassem melhor; buscamos promover um
modo de escrita criativa, em que os alunos se colocassem e se expressas-
sem no texto, principalmente por estarmos lidando com o gênero poema.
Também foram adicionadas perguntas-guia ao lado de cada tópico da
tabela de modo a facilitar o desenrolar da atividade. Por exemplo, ao
lado da categoria Emissor resolvemos adicionar “Quem escreve?”, assim
como ao lado da categoria Receptor foi inserida a pergunta-guia “Para
quem?”. Apesar de cada aluno ter preenchido a tabela individualmente,
após o término da atividade foi promovido um debate para que todos
pudessem compartilhar suas respostas.
Embora a tabela adaptada de Nord tenha sido utilizada em uma dis-
ciplina de língua estrangeira, consideramos que ela possa ser transposta
para aulas que trabalham com a escrita em língua materna. Acreditamos
que seu uso como atividade preliminar ao processo de retextualização
possa facilitar o movimento e deixar evidentes elementos essenciais para
o processo de escrita em língua materna, sendo eles: a interpretação básica
dos elementos textuais mais visíveis no texto (aspectos intratextuais); o
reconhecimento de elementos mais “distantes” do corpo do texto (aspec-
tos extratextuais); e uma análise mais profunda sobre as semelhanças e
diferenças entre o texto-base e o texto-meta a ser produzido.

CONTRIBUIÇÕES ESPERADAS

O trabalho de Demétrio (2014) comprova como a atividade tradutó-


ria se entrelaça com atividades de retextualização. Propomos então, que
o modelo pré-translativo de Nord (2012) possa ser utilizado como guia
no processo de retextualização, não apenas na atividade tradutória ou
em disciplinas de línguas estrangeiras, mas também durante o trabalho
com a escrita em língua materna, de forma adaptada para tal contexto. O
modelo dá apoio para uma melhor interpretação do texto, que Marcuschi
frisa ser um dos pontos-chave no processo de retextualização.

194
Eliana Donaio Ruiz (org.)

O modelo, adaptado em uma linguagem menos acadêmica e mais


escolar, trazendo perguntas-guia para facilitar o entendimento dos alunos,
fornece subsídios suficientes para que o movimento de retextualização
seja realizado de forma mais aprofundada e abrangente, tornando-se
um aliado para os participantes do processo. Ao se realizar a análise a
respeito dos Fatores Extratextuais apontados por Nord, o aluno entra em
contato com aspectos menos materiais do texto, isto é, informações que
fazem parte da produção verbal daquele texto, mas que não são, muitas
vezes, explícitos no texto em si. Procurar saber o contexto de produção
do texto-base, os motivos pelos quais ele foi escrito, quando e onde ele
foi escrito, enfatiza o conceito de que um texto é, na verdade, um even-
to comunicativo, situado sócio-historicamente e dialógico. Ademais, a
análise dos Fatores Intratextuais mergulha o aluno no âmbito das ca-
racterísticas evidentes dos textos, fazendo-o refletir acerca de aspectos
estrutura, forma e léxico.
Ao completar o modelo pré-translativo de Nord, também há espaço
para comparar diferentes textos de diferentes gêneros discursivos. Quando
é requerido que o aluno transforme um texto pertencendo a um gênero
textual em outro de diferente gênero, a tabela se mostra eficaz em expli-
citar as diferenças entre eles, como também suas similaridades. Sabe-se
que é por meio dos gêneros textuais que navegamos comunicativamente
pelo mundo, e o domínio de suas características (e a desenvoltura do
indivíduo ao produzi-los) é um dos grandes focos do trabalho escolar. O
modelo consegue ilustrar como uma função comunicativa do texto não é
inerente a ele, mas sim atribuída por meio de sua recepção (NORD, 1994).
Acreditamos que o modelo de Nord, em conjunto com outras atividades
em sala, como discussões a respeito do texto a ser trabalhado, leituras
de textos pertencentes ao(s) gênero(s) escolhidos e atividades pontuais
que foquem em aspectos mais nítidos do gênero/texto, isto é, elementos
que estão claros e evidentes na construção do texto, possa servir como
um grande apoio em atividades de retextualização em Língua Materna,
funcionando como um auxílio tanto para alunos quanto para professores,
tornando, dessa forma, a distância entre teoria e prática menos abismal.

195
escrita como prática social (não) escolar

REFERÊNCIAS

BEAUGRANDE, Robert-Alain de; DRESSLER, Wolfgang U. Introduction to text


linguistics. Londres: Longman, 1981.
BOUZADA, Cristiane de Paula; FARIA, Marta Deysiana Alves; SILVA, Adriana da.
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São Paulo, v. 34, n. 1, p. 45-68, 2013.
BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua
Portuguesa. Brasília: MEC, 2000. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/
arquivos/pdf/14_24.pdf. Acesso em: 08 jan. 2020.
CASSANY, Daniel. Describir el escribir: Cómo se aprende a escribir. Barcelona:
Paidós Comunicación, 2000.
DELL’ISOLA, Regina Lúcia Péret. Retextualização de gêneros escritos. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2007.
DEMÉTRIO, Ana Paula de Carvalho. A tradução como retextualização: uma
proposta para o desenvolvimento da produção textual e para a ressignificação da
tradução dentro do ensino de LE. 2014. Dissertação (Mestrado em Estudos da
Tradução) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.
DIKSON, Dennys. A retextualização escrita-escrita. Revista Brasileira de
Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 18, n. 3, p. 503-529, 2018.
KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e Compreender os Sentidos
do Texto. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2007.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da Fala para a Escrita: Atividades de Retextualização.
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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção Textual, Análise de Gêneros e
Compreensão. 3. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
MATÊNCIO, Maria de Lourdes Meirelles. Referenciação e retextualização
de textos acadêmicos: um estudo do resumo e da resenha. In: CONGRESSO
INTERNACIONAL DA ABRALIN, 3., 2003, Rio de Janeiro. Anais […]. Rio de
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MURATA, Yasuko. Translation as spiritual community. Tradterm: Revista do
Centro Interdepartamental de Tradução e Terminologia, São Paulo, n. 3, p. 66-75,
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NORD, Christiane. Traduciendo funciones. In: HURTADO ALBIR, Amparo. (ed.).
Estudis sobre la traducció. Castelló de la Plana, Espanha: Universitat Jaume I,
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196
Eliana Donaio Ruiz (org.)

NORD, Christiane. El error en la traducción: categorías y evaluación. In:


HURTADO ALBIR, A. Estudis sobre la traducció. Castelló de la Plana, España:
Universitat Jaume I, 1996. p. 91-107. Disponível em: https://pt.scribd.com/
document/252445991/1996EL-ERROR-EN-LA-TRADUCCION-pdf. Acesso em:
08 jan. 2020.
NORD, Christiane. Texto base-texto meta. Un modelo funcional de análisis
pretraslativo. Castelló de la Plana, Espanha: Universitat Jaume I, 2012.
NUNES, Valfrido da Silva; SILVEIRA, Maria Inez Matoso. Da escrita para a escrita:
processos de retextualização na carta do leitor. Revista Letras Raras, Campina
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PONTES, Valdecy de Oliveira; PEREIRA, Livya Lea de Oliveira. O modelo
Funcionalista de Christiane Nord aliado ao dispositivo de Sequências Didáticas:
norteamentos para o Ensino de Tradução. Revista Estudos da Linguagem, Belo
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REISS, Katharina.; VERMEER, Hans. Fundamentos para una teoría funcional
de la traducción. Tradução: Sandra García Reina e Celia Martín de León. Madrid:
Ediciones Akal, 1996.
TRAVAGLIA, Neuza Gonçalves. Tradução retextualização: a tradução numa
perspectiva textual. Uberlândia: Edufu, 2003.

197
escrita como prática social (não) escolar

ANEXO – TABELA ADAPTADA DE NORD PREENCHIDA.

Fonte: Acervo do autor.

198
Eliana Donaio Ruiz (org.)

PROVA PARANÁ: EFEITO RETROATIVO NAS PRÁTICAS DE


ENSINO DE PRODUÇÃO ESCRITA DA EDUCAÇÃO BÁSICA1

Cecília Gusson Santos

INTRODUÇÃO

Em 15 de fevereiro de 2019, por meio do ofício circular 007/2019,


os atores educacionais da rede pública de ensino do Paraná foram ofi-
cialmente comunicados sobre a implementação da Prova Paraná, uma
avaliação externa, organizada pela Secretaria de Estado da Educação e do
Esporte do Paraná (SEED - PR). Segundo consta no próprio documento:

A Prova Paraná é uma avaliação diagnóstica, com o objetivo de


identificar as dificuldades apresentadas por cada um dos estu-
dantes e apontará as habilidades já apropriadas no processo de
ensino e aprendizagem, nas disciplinas de Língua Portuguesa
e Matemática. Será uma ferramenta para o professor, equipe
gestora da escola, Núcleo Regional de Educação e secretaria
elaborarem a partir de evidências, ações de melhoria da apren-
dizagem (PARANÁ, 2019a, p. 1).

Por meio desse instrumento, a SEED-PR promove o discurso de


que se trata de uma das ações implementadas em 2019 para melhorar
1 Artigo elaborado para a disciplina Ensino de Produção Escrita em Língua Materna do Programa
de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina (PPGEL
- UEL), ministrada pela Profa. Dra. Eliana Maria Severino Donaio Ruiz, no segundo semestre
de 2019.

199
escrita como prática social (não) escolar

a qualidade do ensino ofertado pela rede pública de ensino, garantindo


avanços na aprendizagem dos alunos da rede.
No entanto, a iniciativa também visa a aumentar o Índice de Desen-
volvimento da Educação Básica (IDEB) do estado, que em 2017 (ano
da última aferição, já que acontece de dois em dois anos) havia atingido
a média de 4,6 para o Ensino Fundamental e 3,7 para o Ensino Médio,
num total de 10,0 pontos avaliados, segundo o site do Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).
A nota do IDEB (2020) é calculada com base no aprendizado dos
alunos em português e matemática (Prova SAEB – Sistema de Avaliação
da Educação Básica, antiga Prova Brasil) e no fluxo escolar (taxas de
aprovação e evasão). Por isso, a Prova Paraná contempla uma das ações
idealizadas para contribuir com o desempenho dos alunos na Prova
SAEB, que é aplicada normalmente na rede pública de ensino, no último
trimestre do ano letivo. Os resultados da Prova SAEB de 2019 (a mais
recente) ainda não foram divulgados.
Assim, ao considerar os objetivos da Prova Paraná, é preciso
compreender de que forma ela afeta a organização escolar, com o olhar
direcionado para as aulas de Língua Portuguesa, visando investigar os
possíveis reflexos na elaboração do planejamento e nas práticas de ensi-
no dos professores dessa disciplina, que recebe grande importância nas
atuais políticas que vêm sendo instauradas.
Assim, este artigo tem por objetivo analisar como a avaliação externa
Prova Paraná pode impactar o ensino de produção escrita na Educação
Básica, principalmente no Ensino Fundamental Anos Finais, que com-
preende do sexto ao nono ano, já que esse instrumento avaliativo não a
contempla. Desse modo, destacamos como objetivos específicos:

• problematizar os possíveis impactos de um instrumento


avaliativo, que não contempla a produção escrita, nas práti-
cas de ensino de produção escrita em Língua Portuguesa na
Educação Básica;

200
Eliana Donaio Ruiz (org.)

• investigar como esse instrumento de avaliação externa, no


formato em que é apresentado, pode influenciar a orientação
pedagógica dos professores de Língua Portuguesa, consideran-
do a preparação dos alunos para a realização da prova;

• apresentar a inconsistência existente entre o que dizem os do-


cumentos oficiais vigentes sobre o ensino de produção escrita
e o formato da Prova Paraná como um instrumento objetivo
de mensuração da aprendizagem do aluno.

Tendo em vista esses objetivos, levanto a seguinte inquietação:


Qual é o possível efeito retroativo que uma avaliação externa que não
contempla atividades de produção escrita, uma das práticas de linguagem
essenciais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) aprovada em
2017, pode provocar no processo de ensino e aprendizagem de produção
escrita no componente curricular que compreende a Língua Portuguesa?
Para fornecer subsídios para essa reflexão, analisei os documentos
oficiais vigentes, com foco na BNCC e no Referencial Curricular do
Paraná, para investigar o que eles orientam para o ensino de produção
escrita na Educação Básica. Ainda trago para a discussão Geraldi, Silva
e Fiad (1996) e Pietri (2010), que contribuem com a perspectiva críti-
ca deste artigo no que concerne à produção escrita na escola. Por fim,
amparo-me em Scaramucci (2004; 2011) para discutir as percepções
atinentes ao efeito retroativo.
Em seguida, apresento questões que compõem a avaliação externa
Prova Paraná, instrumento utilizado, segundo a SEED-PR, com o pro-
pósito de diagnóstico da aprendizagem dos alunos. Prossigo discorrendo
sobre o possível efeito retroativo dessa avaliação externa na prática de
ensino de produção escrita em Língua Portuguesa, visando à reflexão
sobre o exposto e seus reflexos para a aprendizagem dos educandos.

1. O ENSINO DA PRODUÇÃO ESCRITA DE ACORDO COM A BNCC

A BNCC, aprovada em 2017 e implementada em 2018, segundo


informações oficiais disponibilizadas no site do MEC, foi construída

201
escrita como prática social (não) escolar

coletivamente com o intuito de organizar o currículo da Educação Bási-


ca. Em 2018, o estado do Paraná elaborou e disponibilizou para a rede
pública de ensino o Referencial Curricular, documento norteador das
ações pedagógicas do Estado do Paraná, construído a partir da BNCC.
Nesse documento constam as orientações para prática docente com o
Ensino Fundamental. O referencial do Ensino Médio ainda está sendo
elaborado pela SEED-PR.
Como a BNCC é o documento maior que norteia a prática peda-
gógica nas escolas, ela é utilizada como referência no que concerne ao
ensino de Língua Portuguesa, especificamente à produção escrita. A
BNCC organiza os demais documentos norteadores da Educação Básica,
de forma que a Secretaria Estadual de Educação (no Paraná a SEED-PR)
adapta seus pressupostos para a realidade do contexto educacional para-
naense, que resultou no Referencial Curricular do Paraná. Este, por fim,
serve como documento norteador para a escola adequar a sua Proposta
Pedagógica Curricular (PPC), que é o documento-base para o professor
elaborar seu Plano de Trabalho Docente (PTD). Desse modo, todos eles
devem estar em consonância.
Logo em sua apresentação, a BNCC traz dez competências gerais
que são descritas como direitos de aprendizagem para a formação in-
tegral do aluno. Segundo o documento, “as aprendizagens essenciais
definidas na BNCC devem concorrer para assegurar aos estudantes o
desenvolvimento de dez competências gerais, que consubstanciam, no
âmbito pedagógico, os direitos de aprendizagem e desenvolvimento”
(BRASIL, 2017, p. 8).
A BNCC (BRASIL, 2017, p. 8) apresenta competência como “a
mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades
(práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver
demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania
e do mundo do trabalho”.
Dessa forma, as dez competências gerais da BNCC, resumidamente,
são: 1) Conhecimento; 2) Pensamento científico, crítico e criativo; 3)
Repertório Cultural; 4) Comunicação; 5) Cultura Digital; 6) Trabalho e

202
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Projeto de Vida; 7) Argumentação; 8) Autoconhecimento e Autocuidado;


9) Empatia e Cooperação; e 10) Responsabilidade e Cidadania (BRASIL,
2017, p. 8-9).
Como este escrito não tem por objetivo discutir as competências,
mesmo compreendendo que todas contemplam as práticas discursivas,
pretendemos limitar a análise às que explicitamente englobam a produção
escrita. Sendo assim, ressaltamo-las nas linhas a seguir para defender
a importância de se considerarem as práticas de produção escrita em
instrumentos de avaliação externa da Educação Básica:

Competência 4:
Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora,
como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –,
bem como conhecimentos das linguagens artística, matemá-
tica e científica, para se expressar e partilhar informações,
experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e
produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo (BRASIL,
2017, p. 9).

Essa competência evidencia a importância da interação do aluno


com o meio social utilizando diferentes linguagens, inclusive a escrita.
Dessa forma, as práticas de escrita ensinadas ao longo da vida escolar
devem fornecer as ferramentas para que ele seja capaz de se expressar
e desenvolver sua criticidade nos contextos em que atua. Devido a isso,
a exclusão da produção escrita em uma ferramenta de diagnóstico da
aprendizagem pode comprometer os resultados obtidos.
Tal fato pode acontecer, pois, quando o aluno responde apenas a
questões objetivas de compreensão textual, ele não utiliza muito de seu
potencial discursivo, visto que esse potencial é evidenciado, tanto nos
pontos positivos como nos negativos, quando o aluno necessita colocá-lo
em prática ao produzir um texto para dissertar sobre algum assunto ou
posicionar-se criticamente.
Assim, os resultados obtidos sobre a aprendizagem do aluno nos
aspectos inerentes aos elementos discursivos e compreensão dos gêneros

203
escrita como prática social (não) escolar

textuais (que defendem os documentos educacionais vigentes) podem


não retratar o conhecimento do aluno e suas formas de interagir com o
mundo, visto que avaliações constituídas por questões objetivas podem ter
sua análise facilmente negligenciada pelo aluno (ele pode simplesmente
‘chutar’ a resposta) ou, ainda, confundir-se ao respondê-la, assinalando
uma resposta incorreta.
O impacto desse tipo de instrumento de avaliação externa, composto
apenas por questões objetivas, pode trazer consequências preocupantes
para o processo de ensino e aprendizagem. Refiro-me ao fato de tal
avaliação passar a servir como base para o planejamento do trabalho do
professor, que é um risco que facilmente pode ser concretizado devido à
pressão, muitas vezes de forma velada, por resultados positivos. Afirmo
isso, pois, os professores de Língua Portuguesa, devido à constante co-
brança institucional pela melhoria dos resultados mensurados por meio
desse tipo de instrumento, podem sentir que devem basear seu trabalho
em práticas que procurem aprimorar o desempenho dos alunos na prova.
Como o instrumento utilizado cobra apenas a compreensão textual,
esse professor pode contemplar mais atividades de compreensão, negli-
genciando os momentos de produção escrita em sala de aula, preenchen-
do a maioria delas com atividades direcionadas à realização da prova,
como revisões, simulados e exercícios de leitura e compreensão textual,
o que causaria prejuízos à aprendizagem do aluno, devido às limitações
pedagógicas e discursivas que isso implica.
Tal fato pode levar o aprendiz a desvincular os processos de leitura
e escrita, compreendendo-as como processos estruturais independentes.
Pietri (2010, p. 136) defende a consideração das condições de produção
escrita na escola, caso contrário “a leitura não é vista como parte do
processo de escrita, o que apaga a existência de processos intertextuais e
torna a atuação sobre o texto algo restrito a atividades de revisão formal
de sua superfície”.
No entanto, ao trazer questões de produção escrita, a Prova Paraná
pode incentivar o trabalho com a produção escrita nas aulas de Língua
Portuguesa, além de ter maior possibilidade de coletar dados que melhor

204
Eliana Donaio Ruiz (org.)

retratem a realidade a aprendizagem dos alunos da rede pública de ensino,


considerando a leitura, a escrita e a compreensão textual como práticas
sociais vinculadas e complementares.
Mais adiante, a competência 7 é apresentada da seguinte forma:

Argumentar com base em fatos, dados e informações confiá-


veis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista
e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos hu-
manos, a consciência socioambiental e o consumo responsável
em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético
em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta
(BRASIL, 2017, p. 9).

Para a análise desse excerto, considero a alegação de Geraldi,


Silva e Fiad (1996), que reiteram que é por meio da linguagem que nos
constituímos como sujeitos sociais. De acordo com esses autores, “é ela
que organiza a nossa atividade mental e funciona como articuladora da
nossa visão de mundo, isto é, as ideias que construímos sobre o real se
concretizam em linguagem dentro de um espaço social e um momento
histórico bem definido” (GERALDI; SILVA; FIAD, 1996, p. 317).
Por esse viés, o processo de argumentação é constituído pela apro-
priação de vários mecanismos linguísticos, sociais e cognitivos que se
articulam para a defesa de um posicionamento ou ideia, por meio do
diálogo, “não o diálogo na sua forma composicional, mas o diálogo en-
quanto elemento constitutivo e inseparável da linguagem” (GERALDI;
SILVA; FIAD, 1996, p. 317). Desse modo, as práticas de escrita desen-
volvidas na escola são partes indissociáveis desse processo, essencial
para desenvolver não apenas a capacidade argumentativa do educando,
mas também sua forma de pensar e interagir com o mundo.
Por isso, as atividades de escrita constituem parte fundamental do
processo de ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa, o que torna
incoerente sua ausência em um instrumento de avaliação que busca
mensurar a aprendizagem do aluno e diagnosticar o que foi aprendido
por ele até a série escolar na qual está matriculado.

205
escrita como prática social (não) escolar

Para que essas competências gerais da BNCC sejam desenvolvidas


na escola sob adequada orientação, o documento para o Ensino Funda-
mental é organizado de acordo com o quadro abaixo:
Quadro 1 – Organização do BNCC – Ensino Fundamental.

Fonte: Construir Notícias (2019).

Essa organização engloba a disciplina de Língua Portuguesa dentro


da Área de Linguagens e apresenta o eixo temático Produção de Textos,
caracterizado pela progressiva incorporação de estratégias de produção
de textos de diferentes gêneros textuais.
Para exemplificar a importância atribuída à produção escrita pela
BNCC, utilizamos o campo das práticas investigativas, um dos campos
contemplados pelo novo documento, idealizado devido às necessidades
contemporâneas de tratamento crítico das informações disponibilizadas,
principalmente no ambiente virtual, que requer habilidades diferenciadas
para que os alunos se percebam como pesquisadores. Para tanto, o do-
cumento enfatiza a essencialidade de produção de textos em diferentes
gêneros.

206
Eliana Donaio Ruiz (org.)

No campo das práticas investigativas, há uma ênfase nos gêne-


ros didático-expositivos, impressos ou digitais, do 6º ao 9º ano,
sendo a progressão dos conhecimentos marcada pela indicação
do que se operacionaliza na leitura, escrita, oralidade. Nesse
processo, procedimentos e gêneros de apoio à compreensão
são propostos em todos os anos. Esses textos servirão de base
para a reelaboração de conhecimentos, a partir da elaboração
de textos-síntese, como quadro-sinópticos, esquemas, gráficos,
infográficos, tabelas, resumos, entre outros, que permitem o
processamento e a organização de conhecimentos em práticas
de estudo e de dados levantados em diferentes fontes de pes-
quisa (BRASIL, 2017, p. 135).

A citação explicita a função do campo das práticas investigativas e


destaca a produção de textos-síntese em diferentes gêneros como relevan-
tes para o processamento e a organização do conhecimento em práticas
de estudo. Assim, concluímos que seja incoerente que os documentos
nacionais vigentes, que organizam o currículo da Educação Básica, des-
taquem essa prática de linguagem como essencial à formação integral do
aluno, juntamente com outros aspectos que compõem as competências
gerais, e o instrumento de avaliação externa Prova Paraná, no âmbito
estadual, não a contemple em sua constituição, composta apenas por
questões objetivas voltadas à compreensão textual.

2. A PROVA PARANÁ

A Prova Paraná foi uma iniciativa do atual governo do estado do


Paraná, por meio da SEED-PR, que objetivou a avaliação diagnóstica
da aprendizagem dos alunos da Educação Básica da rede pública, nas
disciplinas de Português e Matemática, para propor ações de melhoria
do ensino a partir dos resultados obtidos.
Ela foi aplicada em três edições durante o ano letivo de 2019, em
caráter trimestral, sendo a primeira edição apenas para os alunos que in-
gressaram e os concluintes do Ensino Fundamental e Médio; já as outras
duas abarcaram todos os alunos da rede. A terceira edição da Prova do

207
escrita como prática social (não) escolar

Ensino Fundamental foi composta por 22 questões objetivas de língua


portuguesa para o sexto ano e 26 para o sétimo, oitavo e nono anos. Nas
edições posteriores, a língua inglesa também foi inserida.
Com sua implementação, várias ações de apoio pedagógico foram
criadas para contribuir com o trabalho do professor em sala de aula e
a aprendizagem dos educandos, como a disponibilização de um site da
prova com orientações, web-conferências e materiais de apoio para serem
trabalhados com os alunos, reuniões descentralizadas nas escolas e nos
núcleos Regionais de Educação (NRE), com professores, pedagogos e
diretores para o repasse de informações e planejamento das ações espe-
cíficas dentro da escola.
Ainda, o projeto de Tutoria Pedagógica nas Escolas, também imple-
mentado em 2019, em que técnicos pedagógicos dos NRE compareciam
semanalmente à escola para discutir, sugerir e compartilhar informações
sobre o trabalho pedagógico, entre eles, os encaminhamentos realizados
com os resultados da Prova Paraná.
Considerando esse cenário, os reflexos dessas ações para a organi-
zação do trabalho do professor são inevitáveis. Porém, o principal pro-
blema disso tudo é que o instrumento para avaliação diagnóstica Prova
Paraná não contempla questões de produção escrita, como explicitado
nos excertos abaixo.
Questão número 01 da Prova Paraná Primeira Edição, aplicada em
novembro de 2019 para o sexto ano do Ensino Fundamental:

Leia o texto a seguir.


Calor
O verão chegou com tudo e, junto com ele, uma onda de calor
[...]. Por mais que essa seja a época de aproveitar os dias mais
longos e pegar uma praia ou piscina, também é o momento
em que precisamos estar atentos a alguns detalhes para não
descuidar da saúde. 1) Nunca é demais lembrar: beba muita
água para evitar a desidratação. A água ajuda a regular a tem-
peratura do corpo, repõe os minerais e hidrata o organismo
[...]. 2) Cuide da sua alimentação e prefira refeições leves.

208
Eliana Donaio Ruiz (org.)

O ideal é consumir grandes quantidades de frutas e verduras


da estação. 3) Tome quantos banhos você quiser e troque de
roupas com frequência. 4) Evite carregar muito peso ou fazer
algum esforço fora do comum para não suar excessivamente.
5) Outra opção para aplacar o calor é ter um borrifador cheio
de água gelada sempre por perto. Espirre água no rosto e no
corpo -- a evaporação diminuirá a sensação de calor.

01) (P050001H6) Esse texto foi escrito para


A) contar uma história.
B) dar dicas ao leitor.
C) divertir o leitor.
D) vender um produto.
02) (P050003H6) Qual é o assunto desse texto?
A) A diversão durante o verão.
B) A importância da água.
C) O alívio da sensação de calor.
D) O valor da alimentação saudável.
03) (P050004H6) No trecho “Outra opção para *aplacar* o
calor...” (l. 10), a palavra destacada significa
A) aproveitar.
B) diminuir.
C) modificar.
D) perturbar (PARANÁ, 2019a, p. 2)

A análise da “Questão número 1”, extraída da prova aplicada para


o sexto ano do Ensino Fundamental, evidencia o que explicitamos ante-
riormente: um instrumento elaborado apenas com questões objetivas que
exige dos alunos apenas algumas habilidades discursivas concernentes
à interpretação textual, negligenciando as competências trazidas pelos
documentos oficiais analisados. Questão número 02 da Prova Paraná
Terceira Edição, aplicada em novembro de 2019 para o oitavo ano do
Ensino Fundamental:

Leia o texto a seguir.


Juquinha estava chorando muito, quando seu avô, não aguen-
tando mais
aquele chororô, perguntou:

209
escrita como prática social (não) escolar

–- Por que você está chorando, Juquinha?


–- Eu perdi uma moeda de 1 real que ganhei do meu pai.
5 -– Toma lá 1 real. Pronto, nada de choro. Resolvido.
Pouco depois, o Juquinha voltou a chorar.
–- Que é isso, Juquinha? Será que perdeu o real que te dei?
– pergunta o avô.
–- Não, vovô. Tá aqui!
–- Então, por que está chorando de novo?
10-– É que se eu não tivesse perdido o que o papai me deu,
eu teria 2 reais
Disponível em: http://www.piadas.com.brÿpiadasÿpiadas-
para-criancasÿpiada-do-juquinha-e-moeda-de-um-real.
Acesso em: 29 jul. 2014.
05) (P070464F5) O trecho desse texto que apresenta uma
ideia de tempo é:
A) “Juquinha estava chorando
muito,...”. (l. 1)
B) “-- Por que você está chorando,
Juquinha?”. (l. 3)
C) “-- Toma lá 1 real. Pronto, nada de
choro.”. (l. 5)
D) “Pouco depois, o Juquinha voltou a
chorar.”. (l. 6)

06) (P070463F5) O humor desse texto está no fato de


A) o avô dar uma moeda de um real ao
seu neto.
B) o avô querer saber o motivo do
choro do neto.
C) o menino chorar porque poderia ter
mais dinheiro.
D) o menino perder a moeda que o pai
havia lhe dado (PARANÁ, 2019b, p. 5).

A “Questão número 2”, agora da prova aplicada ao oitavo ano do En-


sino Fundamental, segue o mesmo formato, visando apenas à identificação
e compreensão do texto, não contemplando as competências apresentadas
pela BNCC, reforçadas pelo Referencial Curricular do Paraná, principal-
mente ao não apresentar questões que abordem a produção escrita.

210
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Esse fenômeno de exclusão de atividades de produção escrita na Prova


Paraná pode trazer duas consequências importantes: a primeira delas é que,
ao não promover o uso do potencial discursivo do aluno de forma plena,
os resultados obtidos podem ser corrompidos de forma a não retratarem
de forma fidedigna a realidade analisada. Isso pode acontecer quando o
aluno não lê a questão e escolhe aleatoriamente uma resposta, por exemplo.
A segunda se trata do efeito retroativo que essa avaliação externa
pode ter nas aulas de Língua Portuguesa da Educação Básica, visto que
os professores podem voltar o trabalho em sala de aula para melhorar o
desempenho dos alunos na prova e, como ela só contempla compreensão
textual, ele pode redirecionar suas práticas, deixando à margem o ensino
de produção escrita.

3. O EFEITO RETROATIVO DA PROVA PARANÁ NAS PRÁTICAS DE


ENSINO DE PRODUÇÃO ESCRITA DOS PROFESSORES DE LÍNGUA
PORTUGUESA DA EDUCAÇÃO BÁSICA

O efeito retroativo (washback effect) está relacionado ao impacto


que uma determinada avaliação externa tem no processo de ensino e
aprendizagem. Scaramucci define como

[…] observações sobre o impacto ou influência que exames


ou testes e avaliação em geral exerce potencialmente nos pro-
cessos educacionais, seus participantes e produtos do ensino
e aprendizagem — o que tem sido identificado na literatura
como efeito retroativo. (BACKWASH OU WASHBACK)
(SCARAMUCCI, 2004, p. 203).

A autora ainda evidencia hipóteses que podem ser utilizadas para


conduzir a pesquisa sobre o efeito retroativo de forma crítica, que são:

Um teste tem influência no ensino.


Um teste tem influência na aprendizagem.
Um teste tem influência na forma como os professores ensinam.
Um teste tem influência no que os professores ensinam.

211
escrita como prática social (não) escolar

Um teste tem influência no que os alunos aprendem.


Um teste tem influência na forma como os alunos aprendem.
Um teste tem influência na taxa e seqüência de aprendizagem.
Um teste tem influência na taxa e na seqüência de ensino.
Um teste tem influência no grau e profundidade do ensino.
Um teste tem influência no grau e profundidade da aprendi-
zagem.
Um teste tem influência nas atitudes, conteúdo, método, etc.
de ensino e de aprendizagem.
Testes que têm consequências importantes terão efeito retro-
ativo.
Testes que têm consequências importantes não terão efeito
retroativo.
Testes terão efeito retroativo em todos os alunos e professores.
Testes terão efeito retroativo em alguns alunos e em alguns
professores, mas não em outros (ALDERSON; WALL, 1993,
p. 8-9 apud SCARAMUCCI, 2004, p. 209).

Desse modo, entender melhor o efeito retroativo pressupõe “en-


tender os mecanismos operantes na relação entre ensino, aprendizagem
e avaliação, que é muito mais complexa do que apenas a influência de
um teste no ensino e na aprendizagem” (SCARAMUCCI, 2004, p. 204).
Cheng (2004) reitera que

Há evidências convincentes para sugerir que os exames, especial-


mente os de alta relevância, têm forte efeito retroativo no ensino
e na aprendizagem dentro de diferentes contextos educacionais
[...]. Precisamos olhar para o fenômeno em um contexto educa-
cional específico, investigando a fundo diferentes aspectos do
ensino e da aprendizagem (CHENG, 2004, p. 147).

Independentemente da qualidade do instrumento de avaliação, o


efeito retroativo pode ter consequências positivas ou negativas, consi-
deradas quando se analisa um conjunto de variáveis que interferem no
impacto causado por ele. Essas variáveis podem ser os objetivos e valores
da sociedade, do sistema educacional em que é usado, assim como dos
resultados potenciais de seu uso (SCARAMUCCI, 2004, p. 205).

212
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Carroll (1980) acredita que as chances de efeito retroativo positivo


são maiores em testes que verificam o desempenho dos alunos em situ-
ações reais de comunicação, em tarefas autênticas ou outras que avaliem
a capacidade de intervenção em reproduções de situações da vida real.
Por isso, é interessante que a avaliação externa esteja mais voltada ao
desempenho, e não apenas à mensuração do conhecimento.
Scaramucci (2011) também defende a avaliação do desempenho,
pois entende que o que se pretende avaliar é a capacidade do avaliando
de agir no mundo por meio da linguagem, num ato que, embora conjunto,
exige a coordenação de ações individuais:

A avaliação de desempenho pressupõe, portanto, que a melhor


maneira de avaliarmos se alguém é proficiente é colocá-lo em
situação em que ele possa demonstrar diretamente essa pro-
ficiência. Em outras palavras, se o que desejamos é saber se
sabe escrever, a melhor maneira é solicitarmos que escreva um
texto; se é capaz de interagir em situações reais, simularmos
situações reais de interação e fazê-lo desempenhar-se nessas
situações (SCARAMUCCI, 2011, p. 107).

Por isso, ao avaliar o conhecimento do aluno em detrimento do seu


desempenho, a Prova Paraná pode não garantir a validade e a confiabilida-
de dos dados gerados, pois eles podem não corresponder fidedignamente à
realidade que o instrumento pretende investigar, no caso, a aprendizagem
dos alunos da Educação Básica. Scaramucci (2011, p. 107) ressalta que

[…] avaliações de desempenho contrapõem-se às de conhe-


cimento, na medida em que, no primeiro caso, a proficiência
é determinada com base no conhecimento sobre a língua sem
a necessidade de prová-la em situações de uso, enquanto que,
no segundo, é imprescindível a demonstração desses conhe-
cimentos (SCARAMUCCI, 2011, p. 107).

Em se tratando dos impactos do efeito retroativo, um teste de ava-


liação externa pode trazer consequências positivas quando ele promove
mudanças no sistema educacional no qual ele foi aplicado. Essas mu-

213
escrita como prática social (não) escolar

danças podem ser curriculares, instrucionais ou relacionadas à própria


prática docente, visando desenvolver as habilidades cognitivas as quais
o teste foi elaborado para mensurar.
Quando essas mudanças promovem melhorias em habilidades
específicas, após ser utilizado por um período, o teste tem validade
sistêmica para o processo de ensino e aprendizagem (SCARAMUCCI,
2011). Por essa perspectiva, Alderson e Wall (1993, p. 11) reverberam
que, “se o efeito é positivo ou negativo depende principalmente de onde
e como ele é inserido ou se manifesta dentro de um contexto educacio-
nal específico”2. Bailey (1996) explicita o efeito retroativo por meio da
figura a seguir, elencando os atores educacionais passíveis do impacto,
as ações desses atores, compreendidas como processo e o resultado,
reconhecido como produto.
Figura 1 – Modelo básico do Efeito Retroativo

Fonte: (BAILEY, 1996, p. 264).

2 Tradução livre de: “Whether the washback effect is positive or negative will largely depend
on where and how it exists and manifests itself within a particular educational context […]”
(ALDERSON; WALL, 1993, p. 11).

214
Eliana Donaio Ruiz (org.)

No caso da Prova Paraná, esses fenômenos positivos podem ser


observados quando os professores aprimoram as suas práticas visando
obter melhor desempenho do aluno, ao utilizar diferentes competências
e habilidades, incentivando-o a ler mais, a melhorar a escrita e os recur-
sos de compreensão textual, que seja capaz de compreender e analisar
as situações apresentadas no teste e a pensar de forma crítica sobre um
problema para propor intervenções viáveis em sua escrita. Além do
aprimoramento metodológico, o professor também pode pensar mais cri-
teriosamente o processo avaliativo e buscar novos recursos para as aulas,
visando contribuir para o desempenho do aluno na prova em questão.
Outro fator importante do efeito retroativo é o impacto psicológico
e emocional provocado nos alunos e professores com relação a deter-
minado exame. Isso pode fazer com que os alunos se sintam motivados,
determinados e confiantes para realizar o teste e também outras provas a
que sejam submetidos sobre os mesmos conteúdos, pois acreditarão que
estão mais preparados para obter um bom resultado, devido ao trabalho
realizado para aperfeiçoar sua competência linguística durante as aulas.
Assim, quando o professor pensa seu planejamento de ensino tendo
como referência a Prova Paraná, organiza os conteúdos conforme os do-
cumentos oficiais norteadores e alinha os procedimentos metodológicos
e avaliativos de forma a otimizar o processo de ensino e a favorecer a
aprendizagem do aluno.
Uma avaliação externa pode causar um impacto significativo no
contexto escolar quando redireciona ações, influencia práticas docen-
tes, afeta o comportamento dos alunos e a rotina escolar como um todo.
Bailey (1996) explicita de que forma essas avaliações externas podem
influenciar o contexto educacional e ser influenciado pelos atores que o
integram e pelos processos que os constituem. Segundo a autora,

Participantes, processos e produtos influenciam e ao mesmo


tempo são influenciados por testes. Os participantes são os
professores, os alunos, os diretores, elaboradores de material
didático, editores e demais pessoas cujas atitudes e percepções
podem ser alteradas em função de um teste ou avaliação. O

215
escrita como prática social (não) escolar

processo são as ações tomadas pelos participantes que podem


contribuir para o processo de aprendizagem, o que inclui o
desenvolvimento de materiais, elaboração do currículo, mu-
danças na metodologia, uso de estratégias de aprendizagem
e de como se sair bem em testes, dentre outros. Produto, por
sua vez, refere-se ao que é aprendido (fatos, habilidades) e a
qualidade da aprendizagem (fluência, por exemplo) (BAILEY,
1996, p. 259).

Assim, a autora afirma que a natureza do teste pode afetar, primei-


ramente, as percepções e atitudes dos participantes em relação às tarefas
de ensino e aprendizagem. Assim, o processo pode não levar diretamente
à aprendizagem, mas a outros produtos que podem contribuir para que
ela aconteça.
Em contrapartida, o efeito retroativo também pode trazer consequ-
ências negativas para o processo ensino-aprendizagem. Em se tratando de
uma avaliação diagnóstica como a Prova Paraná, que é elaborada apenas
com questões objetivas de múltipla escolha, não abarcando a produção
escrita no processo, ela pode comprometer o trabalho do professor em
sala de aula.
Tal fato pode acontecer, pois o professor, ao planejar suas aulas
visando a atender especificidades da Prova Paraná, como retomadas
de conteúdos, ênfase em outras práticas de linguagem, por exemplo, a
compreensão e análise textual, análise linguística, e ainda, a aplicação
de simulados e outros testes, pode acabar dispendendo grande parte das
aulas com essas atividades, o que reduziria o espaço disponível para o
trabalho com a produção escrita.
Scaramucci (2004, p. 211) reitera que, como efeito retroativo ne-
gativo, é válido considerar o exemplo do professor que passa a ensinar
os conteúdos do exame (avaliação externa) ou a “ensinar para o exame”,
que teria a força e o poder de redirecionar o ensino.
Tal efeito levaria o docente a redefinir objetivos, sem, muitas vezes,
considerar os atinentes à sua disciplina dentro da organização curricular
e os pertencentes ao próprio aluno, reorganizando conteúdos e reconfi-

216
Eliana Donaio Ruiz (org.)

gurando habilidades/ capacidades/ competências desejáveis, utilizando


o processo avaliativo como forma de exclusão e frequentemente em
dissonância com as ações praticadas em sala de aula.
No caso do ensino de línguas, essa situação é ainda mais delicada,
visto que a BNCC e o Referencial Curricular do Paraná pregam o traba-
lho com gêneros discursivos diferenciados, compreendendo o discurso
enquanto uma prática social (BAKHTIN (VOLOSHINOV), 1999).
Nessa perspectiva, a língua se constrói por meio da interação social e
do processo dialógico entre os envolvidos no evento discursivo. Assim,
a organização utilizada no atual formato da Prova Paraná, que é pautada
por questões objetivas, deixando de lado outras práticas de linguagem
indissociáveis à aprendizagem do aluno, como é o caso da produção
escrita, contrapõe-se ao que preconizam esses documentos.
Já o conceito de avaliação de desempenho, que tem por intuito obser-
var a capacidade discursiva do aluno, vai ao encontro das orientações que
constam na BNCC e no Referencial Curricular do Paraná. Quando se usa
um instrumento objetivo em uma avaliação externa na Educação Básica,
algumas variáveis podem interferir na credibilidade dos dados obtidos.
Tal situação pode ser causada por respostas sem a leitura adequada
dos enunciados, falta de interesse do aluno por não se reconhecer como
protagonista no processo, falta de espaço para demonstrar seu conheci-
mento por meio da prática social e do dialogismo e não apenas por meio
de respostas enviesadas que apenas exigem a apreensão superficial dos
conteúdos do texto.
Em avaliações externas, a rara oportunidade que o aluno tem de
demonstrar sua competência discursiva de maneira ativa é por meio da
produção textual e, mesmo assim, ele ainda faz isso de maneira limitada
devido às condições de produção trazidas pela prova, que normalmente
desconsideram a importância de um interlocutor real e a contextualização
adequada para viabilizar maior qualidade na produção do aluno.
Por isso, é essencial que um instrumento de avaliação externa
contemple diferentes práticas de linguagem, dentre as quais a produção
escrita, almejando obter melhor qualidade nos resultados e a melhoria

217
escrita como prática social (não) escolar

do processo de ensino – aprendizagem de Língua Portuguesa como


um todo, servindo como um instrumento para mudança e repensar de
práticas, fomentando o desenvolvimento de todas as competências
apontadas na BNCC, principalmente as que tratam das habilidades
discursivas do aluno.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O efeito retroativo ainda é um fenômeno pouco estudado para


se compreender com clareza seu impacto no sistema educacional. No
entanto, pesquisas têm sido realizadas e têm-se avançado significati-
vamente em vários aspectos para o entendimento de como ele pode de
fato interferir nos processos de ensino e aprendizagem e na sociedade
em geral.
Scaramucci (2004) afirma que grande parte da dificuldade em se
compreender a complexidade desse fenômeno está no fato de que essas
avaliações são inseridas e descartadas sem que uma análise e uma ava-
liação criteriosa de seus efeitos sejam realizadas. Ela lamenta tal fato,
pois a implementação dessas avaliações mobiliza recursos de natureza
diversa, principalmente financeira e sua permanência está mais vinculada
a questões políticas do que educacionais de fato.
No que se refere à Prova Paraná e às ações decorrentes dela que
vêm influenciando as ações pedagógicas no âmbito da Educação Básica
do Paraná, acredito que é necessária a elaboração de instrumentos que
contemplem as práticas de linguagem englobadas pela produção escrita,
para que o aluno reconheça a necessidade de seu protagonismo no pro-
cesso de ensino e aprendizagem, tendo espaços apropriados para exercer
seu posicionamento crítico também nas avaliações externas.
Essa iniciativa é fundamental, pois engloba a produção escrita nas
ações de apoio pedagógico que vêm sendo desenvolvidas pela SEED
e, consequentemente, promove um efeito retroativo positivo, que gera
transformações nos processos de ensino e aprendizagem, pois o profes-
sor passa a planejar com mais frequência atividades para desenvolver

218
Eliana Donaio Ruiz (org.)

as habilidades associadas à produção escrita, englobando os elementos


necessários para trabalhar as competências gerais dos educandos, de
forma integrada e dialógica, considerando a leitura e a escrita como
processos indissociáveis para a aprendizagem.

REFERÊNCIAS

ALDERSON, J. Charles; WALL, Diane. Does washback exist? Applied Linguistics,


v. 14, n. 2, p. 115-129, 1993.
BAILEY, Kathleen. “Working for washback: A review of the wash back concept in
language testing”. Language Testing, 13, p. 257-279. New York, 1996.
BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHINOV, Valentin Nikolaevich. Marxismo e filosofia
da linguagem. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília:
MEC, SAEB, 2017.
CARROLL, Brendan J. Testing communicative performance. Oxford: Pergamon
Press, 1980.
CHENG, Liying. The Washback Effect of a Public Examination Change on Teachers’
Perceptions Toward Their Classroom Teaching. In: CHENG, Liying, WATANABE
Yoshinori; CURTIS, Andy (ed.). Washback in language testing: Research contexts
and methods. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum Associates, 2004. p. 147-170.
CONSTRUIR NOTÍCIAS. Guia Prático da BNCC. Revista Digital, Recife, v. 95,
2019. Disponível em: https://www.construirnoticias.com.br/guia-pratico-da-bncc/.
Acessado em: 10 jan. 2020.
GERALDI, João Wanderley; SILVA, Lilian Lopes Martin da; FIAD, Raquel Salek.
Linguística, Ensino de Língua Materna e Formação de Professores. D.E.L.T.A., São
Paulo, v. 12, n. 2, p. 307-326, 1996.
IDEB. Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Brasília: Ministério da Educação/
INEP, 2020. Disponível em: http://www.inep.gov.br/. Acesso em: jan. 2020.
PARANÁ. Prova Paraná: Língua Portuguesa. Curitiba: Secretaria de Estado da
Educação do Paraná (SEED-PR), 2019a.
PARANÁ. Prova Paraná: Língua Portuguesa. 3. ed. Curitiba: Secretaria de Estado
da Educação do Paraná (SEED-PR), 2019b.
PARANÁ. Referencial Curricular do Paraná: Língua Estrangeira. Secretaria de
Estado da Educação do Paraná (SEED-PR), 2018.

219
escrita como prática social (não) escolar

PIETRI, Emerson de. “Ensino da escrita na escola: processos e rupturas”. Cadernos


de Educação, Pelotas, n. 37, p. 133-160, set./dez. 2010.
SCARAMUCCI, Matilde Virginia Ricard. “Efeito retroativo da avaliação no ensino/
aprendizagem de línguas: o estado da arte”. Trabalhos em Linguística Aplicada,
Campinas, v. 2, n. 43, p. 203-226, 2004.
SCARAMUCCI, Matilde Virginia Ricard. Validade e consequências sociais das
avaliações em contexto de ensino de línguas. Lingvarvm Arena Porto, v. 2, p.
103-120, 2011.

220
Eliana Donaio Ruiz (org.)

A REESCRITA NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR1

Carla Giovana de Campos

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, a educação brasileira tem como um dos focos cen-
trais de discussões a implementação da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC). O documento tem como principal – e talvez utópico – objetivo
balizar a qualidade da educação no país, para que todos os alunos, sejam
de escolas públicas ou particulares, do norte ao sul, tenham as mesmas
condições de aprendizagem.
Surge como um documento normatizador que estabelece o conjunto
de aprendizagens essenciais que todo estudante deve desenvolver ao
longo da Educação Básica. A Base funciona como subsídio para orien-
tar os currículos nos Estados, municípios e escolas; a partir dela cada
escola deverá desenvolver seus currículos, avaliando suas realidades e
necessidades locais.
Com a recente homologação do documento, faz-se ainda mais ne-
cessário que se aprofundem as discussões sobre a Base, buscando com-
preender as minúcias do ensino de escrita que implicaram diretamente
em sala de aula. Nesse cenário, considerando a disciplina de Língua
Portuguesa, a partir da discussão proposta por Fiad (2006; 2009; 2010;
1 Trabalho realizado em função da disciplina Ensino de Produção Escrita em Língua Materna, do
Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem na Universidade Estadual de Londrina
(UEL), sob orientação da Profa. Dra. Eliana Maria Severino Donaio Ruiz.

221
escrita como prática social (não) escolar

2013) e Menegassi e Gasparotto (2014; 2019), surgiu-nos a seguinte


questão de pesquisa: Qual visão de reescrita é apresentada pela Base
Nacional Comum Curricular?
Para responder a esse questionamento, estabelecemos como o obje-
tivo principal deste artigo: investigar como a reescrita é apresentada na
BNCC. Traçamos, para isso, três objetivos específicos: analisar i) quando
e em qual contexto a reescrita está inserida; ii) qual a visão de reescrita
presente no documento; e iii) se há referências a outros documentos,
autores e/ou teorias, acerca da reescrita.
Esse trabalho se insere no campo da Linguística Aplicada (LA), de
caráter qualitativo. Trata-se, mais especificamente de uma análise docu-
mental, pois o foco recai sobre a BNCC (BRASIL, 2018). De acordo com
Lüdke e André (1986), esse tipo de pesquisa busca o estudo de documen-
tos, a fim de identificar informações factuais e descobrir circunstâncias
sociais a ele relacionadas, constituindo-se como uma importante técnica
para pesquisas qualitativas.
Assim, buscamos compreender qual visão da reescrita é adotada pelo
documento. Para isso, tecemos algumas considerações a respeito do pro-
cesso de desenvolvimento da BNCC até sua homologação e de aspectos
referentes à escrita e reescrita; em seguida, detalhamos os procedimentos
metodológicos da pesquisa; e, por fim, apresentamos a análise proposta.

1. A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

A busca por um norte na educação brasileira não é novidade. Por


motivos diversos, que vão desde interesses políticos, econômicos e educa-
cionais, os currículos da escola básica são alvo de constante preocupação
dos órgãos diretores da educação. As informações apresentadas, a partir de
agora, referentes à linha do tempo de acontecimentos diretamente ligados
à BNCC podem ser acessadas no site do Ministério da Educação (MEC).
A primeira menção a uma proposta de base curricular ocorreu em
1988, na Constituição da República Federativa do Brasil, que prevê, no
Artigo 210, a fixação de conteúdos mínimos para o Ensino Fundamental.

222
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Em 1996, foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional


(LDBEN), que também aborda a regulamentação de uma base nacional
comum para a Educação Básica.
Entre 1997 e 1998, consolidam-se os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamental, séries iniciais e finais;
entretanto, apenas em 2000, são lançados os Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM). Entre 2008 e 2014, o ce-
nário da educação passa por diversos momentos importantes, como a
implementação do Programa Currículo em Movimento, a primeira e a
segunda Conferência Nacional de Educação (CONAE), a implementação
das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica
(DCN), do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC),
do Pacto Nacional de Fortalecimento do Ensino Médio (PNFEM) e do
Plano Nacional de Educação (PNE).
Ao longo dos anos, várias discussões e menções à base foram feitas
e, em 2004, ocorreu o I Seminário Interinstitucional para elaboração da
BNCC, reunindo diversos assessores e especialistas, sendo divulgada em
2015 a primeira versão do documento. Após dois anos de mobilização
em escolas e realização de seminários estaduais com participação de
professores, gestores e especialistas, a versão final (Educação Infantil
e Fundamental I e II) foi entregue ao Conselho Nacional de Educação
(CNE) e homologada em 2017, iniciando o processo de formações e
capacitações de professores pelo país. No ano seguinte, o foco recaiu
sobre o Ensino Médio e, após muitos debates e polêmicas, o documento
para essa etapa foi homologado.
A Base indica competências e habilidades que são esperadas para
todos os estudantes ao longo da escolaridade. O documento é estruturado
em textos introdutórios gerais, por área e etapa de escolarização, uma
apresentação das competências gerais de toda a Educação Básica, seguido
de uma indicação das competências específicas previstas para cada uma
das áreas do conhecimento e dos componentes curriculares, e se encerra
pela apresentação dos direitos de aprendizagem relativa aos objetos de
conhecimento da Educação Infantil ao Fundamental.

223
escrita como prática social (não) escolar

A BNCC estabelece, então, como pilares fundamentais da Educação


Básica, dez competências gerais norteadoras do trabalho das escolas e
dos professores em todos os anos e componentes curriculares. De acordo
com o documento, trata-se da “Mobilização de conhecimentos (conceitos
e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais),
atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana,
do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL,
2018, p. 8).
As competências indicam a necessidade de que os estudantes sejam
capazes de utilizar os saberes adquiridos em seu dia a dia, considerando
a ética, os direitos humanos, a justiça social e a sustentabilidade ambien-
tal. Além disso, possuem carácter interdisciplinar; desse modo, cabe a
cada professor avaliar quais aspectos de sua disciplina contribuem para
desenvolvê-las. Por sua vez, as habilidades devem ser trabalhadas em
toda a Educação Básica, para que, ao fim da vida escolar, o aluno as
tenha desenvolvido em sua plenitude (BRASIL, 2018).
A seguir, discutimos aspectos referentes à escrita e reescrita, a
partir das considerações de Fiad (2006; 2009; 2010; 2013) e Menegassi
e Gasparotto (2014; 2019).

2. ESCRITA E REESCRITA

A noção de escrita e reescrita como processo, adotada neste artigo,


começou, de acordo com Fiad (2010), a se difundir e ser incorporada por
documentos oficiais da educação, a partir de um deslocamento no enfo-
que dado às pesquisas sobre a reescrita escolar no Brasil, que deixaram
de focar no produto e passam a focalizar o processo. Segundo a autora,
a partir da década de 1990, “escrever e reescrever passaram a ser con-
siderados como dois aspectos da mesma atividade” (FIAD, 2010, p. 5).
Compreender a reescrita como parte integrante da escrita, um
processo que ocorre naturalmente, tanto na prática de escritores consa-
grados quanto nas produções dos aprendizes, significa entendê-la como
o “conjunto de modificações escriturais pelas quais diversos estados do

224
Eliana Donaio Ruiz (org.)

texto constituem as sequências recuperáveis visando a um texto terminal”


(FIAD, 2009, p.148).
A noção de reescrita apresentada por Fiad (2009) está diretamente
atrelada a uma concepção de escrita como trabalho (FIAD; MAYRINK-
SABINSON, 1994), que ocorre na interação social, pois

[...] os sujeitos vão se apropriando da linguagem ao se consti-


tuírem como locutores, junto aos seus interlocutores; a apro-
priação da linguagem implica um trabalho do sujeito, o que
significa que há um movimento do sujeito e uma recriação da
linguagem em cada situação de interação [...] (FIAD, 2013,
p. 464).

Desse modo, a cada nova produção, seja oral ou escrita, a linguagem


se reconstrói na interação. Porém, na escrita, o processo de reconstrução
é mais consciente, devido às condições de produção que possibilitam
tempos maiores de reflexão e de “maturação” (FIAD, 2013).
Assim, adotar a concepção de escrita como trabalho significa des-
cartar as crenças na escrita como dom, pois o sujeito que escreve não
produz, de uma única vez, um texto finalizado. O texto publicado, que
circula entre os leitores, é fruto de sucessivas versões, modificações,
acréscimos e supressões.
De acordo com Menegassi e Gasparotto (2019), a escrita como
trabalho, “evidencia que a compreensão da escrita em seu processo deve,
necessariamente, levar a uma prática pautada na revisão e na reescrita”
(MENEGASSI, GASPAROTTO, 2019, p. 155). Por sua vez, como aponta
Fiad (2006), a reescrita não se restringe à correção:

Pelo contrário, muito do que se reescreve não tem como


objetivo eliminar formas erradas. Boa parte do trabalho de
reescrita tem outros objetivos: tornar o texto mais interessan-
te, adequá-lo melhor ao leitor, torná-lo mais enfático, enfim,
objetivos que envolvem a exploração dos recursos expressivos
da língua (FIAD, 2006, p. 33).

225
escrita como prática social (não) escolar

O trabalho de reescrita ultrapassa a higienização do texto (JESUS,


1995), de modo que deve se preocupar com questões outras que não
apenas desvios da norma e convenções da escrita. Para Fiad (2009),
aquele que escreve desempenha uma multiplicidade de papéis, pois
escreve, lê, comenta, critica e reescreve o próprio texto. A reescrita se
caracteriza como uma prática social, que ocorre naturalmente durante a
escrita, mas que,

[...] quando provocada e conduzida pelo professor, com a


participação, as contribuições, as decisões dos alunos, as
possibilidades de escolha abrem-se em um leque de opções
muito mais diversificado [...]. Se, por um lado, podemos
constatar, observando os textos das crianças, que ocorrem,
em muitos textos, situações de retomada da própria escrita,
visando efetuar mudanças no texto, não podemos deixar de
enfatizar que o papel do professor é fundamental para que as
crianças incorporem a prática de reler e modificar o seu texto
(FIAD, 2013, p. 36).

O professor caracteriza-se, então, como figura central para o desen-


volvimento da reescrita, potencializando a escrita dos alunos. Entretanto,
para que isso ocorra, é necessário que ele receba orientações e referências
para a sua prática, seja por parte da gestão da escola em que atua ou,
ainda, pelos documentos norteadores da educação.
A fim de averiguar como a BNCC apresenta aos professores a re-
escrita, descrevemos a seguir os procedimentos metodológicos adotados
para a realização desta pesquisa.

3. METODOLOGIA

Para o desenvolvimento dessa pesquisa, seguimos as três etapas


constituintes de uma análise documental, apontadas por Gil (2008): a
pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos dados. No pri-
meiro momento, da pré-análise, foi realizada a escolha do documento;
na exploração do material, fez-se o recorte das unidades e categorias

226
Eliana Donaio Ruiz (org.)

analíticas; e, por fim, no tratamento dos dados, foram feitas as análises


e discussões.
Assim, organizamos no quadro abaixo o recorte das seções do do-
cumento sobre as quais se realizou a análise:
Quadro 1 – Seções de análise na BNCC2
UNIDADES DA BNCC
4. A ETAPA DO ENSINO FUNDAMENTAL................................................................ p.57
O Ensino Fundamental no contexto da Educação Básica................................................. p.57
4.1. A área de Linguagens ................................................................................................p.63
Competências específicas de Linguagens para o Ensino Fundamental ............................p.65
4.1.1. Língua Portuguesa................................................................................................p.67
Competências específicas de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental................p.87
4.1.1.1. Língua Portuguesa no Ensino Fundamental – Anos Iniciais: práticas de linguagem,
objetos de conhecimento e habilidades ............................................................................p.89
4.1.1.2. Língua Portuguesa no Ensino Fundamental – Anos Finais: práticas de linguagem,
objetos de conhecimento e habilidades .........................................................................p.136
5. A ETAPA DO ENSINO MÉDIO...............................................................................p.461
5.1. A área de Linguagens e suas Tecnologias................................................................p.481
Competências específicas de Linguagens e suas Tecnologias para o Ensino Médio.......p.490
5.1.1. Linguagens e suas Tecnologias no Ensino Médio: competências específicas e ha-
bilidades ......................................................................................................................p.491
5.1.2 Língua Portuguesa................................................................................................p.498
5.1.2.1. Língua Portuguesa no Ensino Médio: campos de atuação social, competências es-
pecíficas e habilidades .................................................................................................p.505

Fonte: Com base na BNCC (BRASIL, 2018).

Após uma leitura inicial das unidades selecionadas, utilizamos da


ferramenta de busca no PDF do documento (ctrl+f) para localizar os
trechos nos quais são utilizadas as palavras, reescrita e reescrever. Para
2 As páginas de cada seção analisada do documento são indicadas no quadro 1.

227
escrita como prática social (não) escolar

esse estudo, não consideramos termos como revisão, retextualização,


refacção e outros.
A análise a seguir, correspondente à etapa de tratamento dos dados,
constituiu-se a partir das leituras exploratórias e da busca pelos termos es-
pecíficos, tendo como referencial e suporte as discussões teóricas anteriores.

4 .A BNCC, O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E A REESCRITA

Mantém-se na BNCC (BRASIL, 2018) a concepção enunciativo-


discursiva, que se faz presente em um ensino de Língua Portuguesa
pautado em práticas de linguagem e no texto entendido como unidade
de ensino, e nos documentos oficiais propostos a partir de 1990. Isso
pode ser observado no texto introdutório da área de Língua Portuguesa,
que se inicia afirmando:

O componente Língua Portuguesa da BNCC dialoga com


documentos e orientações curriculares produzidos nas últimas
décadas, buscando atualizá-los em relação às pesquisas recentes
da área e às transformações das práticas de linguagem ocorridas
neste século, devidas em grande parte ao desenvolvimento das
tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC). [...]
Tal proposta assume a centralidade do texto como unidade de
trabalho e as perspectivas enunciativo-discursivas na abordagem,
de forma a sempre relacionar os textos a seus contextos de pro-
dução e o desenvolvimento de habilidades ao uso significativo da
linguagem em atividades de leitura, escuta e produção de textos
em várias mídias e semioses (BRASIL, 2018, p. 67).

Assim, ao afirmar o diálogo com as produções e orientações anterio-


res, a Base assume a retomada teórica realizada a partir de documentos
prescritivos anteriores, como as práticas de linguagem, o discurso e os
gêneros discursivos/ textuais, e as esferas de circulação dos discursos.
Além disso, a Base aponta para a necessidade de se considerarem “no-
vos gêneros e textos cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos”
(BRASIL, 2018, p. 68) que surgem nos ambientes virtuais da Web.

228
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Após a introdução, na qual o documento assume seus referenciais,


a BNCC afirma que,

[…] na esteira do que foi proposto nos Parâmetros Curricu-


lares Nacionais, o texto ganha centralidade na definição dos
conteúdos, habilidades e objetivos, considerado a partir de
seu pertencimento a um gênero discursivo que circula em
diferentes esferas/campos sociais de atividade/comunicação/
uso da linguagem (BRASIL, 2018, p. 67).

Esses conteúdos e habilidades são estabelecidos dento dos eixos de


Leitura, Produção de Textos, Oralidade e Análise Linguística/Semiótica.
No Eixo da Produção de Textos, das séries do Ensino Fundamen-
tal I e II, são apresentadas “dimensões inter-relacionadas às práticas de
uso e reflexão” (BRASIL, 2018, p. 76). Entre essas dimensões estão as
Estratégias de Produção, nas quais espera-se que o estudante consiga

Desenvolver estratégias de planejamento, revisão, edição,


reescrita/redesign e avaliação de textos, considerando-se
sua adequação aos contextos em que foram produzidos, ao
modo (escrito ou oral; imagem estática ou em movimento
etc.), à variedade linguística e/ou semioses apropriadas a esse
contexto, os enunciadores envolvidos, o gênero, o suporte, a
esfera/campo de circulação, adequação à norma-padrão etc.
(BRASIL, 2018, p. 78).

No trecho acima acontece a primeira aparição do termo reescrita


no documento. O fato de a reescrita estar inserida no eixo da produção
de texto, como estratégia de produção, pode indicar a consideração, por
parte da Base, da indissociabilidade entre escrita e reescrita.
A reescrita, então, é mencionada em algumas habilidades esperadas
dos estudantes, do Ensino Fundamental ao Médio. Para melhor visuali-
zação, os trechos nos quais aparecem a palavra reescrita ou reescrever
foram organizados no quadro abaixo:

229
escrita como prática social (não) escolar

Quadro 2 – Reescrita nas habilidades da BNCC3

Habilidades
Séries Campo Trecho
2º ano Ensino Artístico-literário (EF02LP27)3 Reescrever textos narrativos
Fundamental I literários lidos pelo professor (p. 111).
6º ao 9º ano Jornalístico-midiático (EF69LP07) Produzir textos em diferen-
Ensino tes gêneros, considerando sua adequação
Fundamental II ao contexto produção e circulação – os
enunciadores envolvidos, os objetivos, o
gênero, o suporte, a circulação –, ao modo
(escrito ou oral; imagem estática ou em
movimento etc.), à variedade linguística
e/ou semiótica apropriada a esse contexto,
à construção da textualidade relacionada
às propriedades textuais e do gênero),
utilizando estratégias de planejamento,
elaboração, revisão, edição, reescrita/
redesign e avaliação de textos, para, com
a ajuda do professor e a colaboração dos
colegas, corrigir e aprimorar as produções
realizadas, fazendo cortes, acréscimos,
reformulações, correções de concordância,
ortografia, pontuação em textos e editando
imagens, arquivos sonoros, fazendo cortes,
acréscimos, ajustes, acrescentando/ alte-
rando efeitos, ordenamentos etc. (p. 143).
6º ao 9º ano Ensino Jornalístico-midiático (EF69LP12) Desenvolver estratégias
Fundamental II de planejamento, elaboração, revisão,
edição, reescrita/ redesign (esses três
últimos quando não for situação ao vivo)
e avaliação de textos orais, áudio e/ou
vídeo, considerando sua adequação aos
contextos em que foram produzidos, à
forma composicional e estilo de gêneros,
a clareza, progressão temática e variedade
linguística empregada, os elementos rela-
cionados à fala, tais como modulação de
voz, entonação, ritmo, altura e intensidade,
respiração etc., os elementos cinésicos,
tais como postura corporal, movimentos e
gestualidade significativa, expressão facial,
contato de olho com plateia etc. (p. 145).

3 As Habilidades apresentadas pela BNCC são organizadas por meio de um código alfanumérico.
O primeiro par de letras indica a etapa de ensino, o primeiro par de números indica o bloco
de anos a que se refere a habilidade, o segundo par de letras indica o componente curricular
e o último par de números indica a posição da habilidade na numeração sequencial do ano ou
bloco de anos.

230
Eliana Donaio Ruiz (org.)

6º ao 9º ano Ensino Jornalístico-midiático (EF69LP18) Utilizar, na escrita/reescrita


Fundamental II de textos argumentativos, recursos linguís-
ticos que marquem as relações de sentido
entre parágrafos e enunciados do texto e
operadores de conexão adequados aos tipos
de argumento e à forma de composição de
textos argumentativos, de maneira a ga-
rantir a coesão, a coerência e a progressão
temática nesses textos (“primeiramente,
mas, no entanto, em primeiro/segundo/
terceiro lugar, finalmente, em conclusão”
etc.) (p. 145).
6º ao 9º ano Ensino Jornalístico-midiático (EF69LP51) Engajar-se ativamente nos
Fundamental II processos de planejamento, textualização,
revisão/ edição e reescrita, tendo em vista
as restrições temáticas, composicionais
e estilísticas dos textos pretendidos e as
configurações da situação de produção – o
leitor pretendido, o suporte, o contexto de
circulação do texto, as finalidades etc. – e
considerando a imaginação, a estesia e a
verossimilhança próprias ao texto literário
(p. 159).
1º ao 3º ano Ensino Atuação social (EM13LP15) Planejar, produzir, revisar,
Médio editar, reescrever e avaliar textos escritos
e multissemióticos, considerando sua
adequação às condições de produção do
texto, no que diz respeito ao lugar social a
ser assumido e à imagem que se pretende
passar a respeito de si mesmo, ao leitor
pretendido, ao veículo e mídia em que o
texto ou produção cultural vai circular,
ao contexto imediato e sócio-histórico
mais geral, ao gênero textual em questão e
suas regularidades, à variedade linguística
apropriada a esse contexto e ao uso do
conhecimento dos aspectos notacionais
(ortografia padrão, pontuação adequada,
mecanismos de concordância nominal e
verbal, regência verbal etc.), sempre que o
contexto o exigir (p. 509).

Fonte: Com base na BNCC (BRASIL, 2018).

231
escrita como prática social (não) escolar

A primeira habilidade do quadro (EF02LP27), a ser desenvolvida


por alunos do 2º ano do Ensino Fundamental (Reescrever textos narra-
tivos literários lidos pelo professor), prevê que o aluno deva ser capaz
de recontar uma história/texto. Trata-se, nesse caso, de uma visão de
reescrita mais ligada à noção da paráfrase.
As demais habilidades listadas no quadro, ligadas às séries finais
do Ensino Fundamental ao Ensino Médio (EF69LP07; EF69LP12;
EF69LP18; EF69LP51; EM13LP15), apresentam a reescrita como uma
estratégia de produção textual. Como aponta a habilidade EF69LP51,
na qual o aluno deve ser capaz de

Desenvolver estratégias de planejamento, elaboração, revisão,


edição, reescrita/ redesign (esses três últimos quando não for
situação ao vivo) e avaliação de textos orais, áudio e/ou vídeo,
considerando sua adequação aos contextos em que foram
produzidos, à forma composicional e estilo de gêneros, a cla-
reza, progressão temática e variedade linguística empregada,
os elementos relacionados à fala, tais como modulação de
voz, entonação, ritmo, altura e intensidade, respiração etc., os
elementos cinésicos, tais como postura corporal, movimentos
e gestualidade significativa, expressão facial, contato de olho
com plateia etc. (BRASIL, 2018, p. 145).

Além disso, a reescrita quase sempre aparece acompanhada de


outros processos, como na habilidade EF69LP51:

Engajar-se ativamente nos processos de planejamento, textua-


lização, revisão/ edição e reescrita, tendo em vista as restrições
temáticas, composicionais e estilísticas dos textos pretendidos e
as configurações da situação de produção – o leitor pretendido,
o suporte, o contexto de circulação do texto, as finalidades etc.
– e considerando a imaginação, a estesia e a verossimilhança
próprias ao texto literário (BRASIL, 2018, p. 159).

Entretanto, não há explicações na Base sobre o que é, como ou o


porquê realizar cada um desses processos apontados pela habilidade

232
Eliana Donaio Ruiz (org.)

EF69LP51. De modo geral, a BNCC não se aprofunda em discussões


teóricas, metodológicas ou conceituais.
O foco do documento recai sobre as habilidades a serem desenvol-
vidas em cada etapa da escolarização, não detalhando como atingi-las ou
o que significam os conceitos que as perpassam. Assim, a ausência de
detalhes das habilidades previstas pelo documento poderia ser entendida
como indício de que todos esses processos, como a reescrita, a revisão,
a edição e o redesign, já são suficientemente conhecidos e dominados
pelos professores.
Considerando-se a existência dos documentos norteadores da
educação anteriores à Base, é possível que, de fato, alguns conceitos e
processos já estejam claros para os educadores. Entretanto, como apontam
Menegassi e Gasparotto (2014), em uma análise dos PCN do 1º ao 4º
ciclo do Ensino Fundamental, PCNEM, e PCN+, DCE-PR e das Orien-
tações Pedagógicas para os Anos Iniciais, não há um consenso ou uma
completude de discussões sobre a reescrita nos documentos analisados.
Os autores constatam que os documentos, de modo geral, apresentam
a reescrita com diferentes definições, muitas vezes utilizando-se de con-
ceitos diferentes para se referir ao processo em questão (MENEGASSI;
GASPAROTTO, 2014). Dessa forma, as discussões e os documentos
anteriores com os quais os professores entraram em contato não apre-
sentam a reescrita com a profundidade necessária.
A BNCC, por sua vez, aponta a necessidade de que os estudantes
desenvolvam, ao longo de sua vida escolar, as habilidades de reescrita,
revisão, redesign (EM13LP15 - Planejar, produzir, revisar, editar, re-
escrever e avaliar textos escritos e multissemióticos, considerando sua
adequação às condições de produção do texto, no que diz respeito ao
lugar social a ser assumido e à imagem que se pretende passar a respeito
de si mesmo, ao leitor pretendido, ao veículo e mídia em que o texto ou
produção cultural vai circular, ao contexto imediato e sócio-histórico
mais geral, ao gênero textual em questão e suas regularidades, à variedade
linguística apropriada a esse contexto e ao uso do conhecimento dos as-
pectos notacionais (ortografia padrão, pontuação adequada, mecanismos

233
escrita como prática social (não) escolar

de concordância nominal e verbal, regência verbal etc., sempre que o


contexto o exigir), mas não discute as especificidades de cada processo,
suas semelhanças e/ou diferenças.
A Base, ao contrário do que ocorre nos documentos analisados por
Menegassi e Gasparotto (2014), não apresenta qualquer tipo de definição
para a reescrita, ou outros processos como a revisão, a edição ou o rede-
sign, de modo a não contribuir para evidenciar ou esclarecer possíveis
dúvidas com relação às diferentes definições dos documentos anteriores.
Menegassi e Gasparotto chamam, ainda, a atenção para

[...] a necessidade de aprofundar as discussões acerca do pro-


cesso de instrumentalização do professor para o trabalho com
revisão e reescrita em situação de ensino, tanto em sua forma-
ção continuada (GASPAROTTO; MENEGASSI, 2013) como
nos documentos oficiais que devem nortear o planejamento
e a prática de sala de aula (MENEGASSI; GASPAROTTO,
2014, p. 189).

A BNCC não supre as ausências quanto à reescrita em documen-


tos anteriores apontada por Menegassi e Gasparotto (2014); a reescrita
continua pouco debatida, de modo que o professor, em sala de aula, não
encontra nos documentos que prometem orientações o que precisa para
aprimorar sua prática de ensino de escrita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa pesquisa teve como objetivo compreender como a reescrita é


apresentada pela Base Nacional Comum Curricular, quando e em qual
contexto está inserida, e se há referências a outros documentos, autores
e/ou teorias.
De início, constatamos que a Base assume uma retomada de teórica
de documentos anteriores, ao afirmar seguir uma perspectiva enunciativo-
discursiva no ensino de Língua Portuguesa. Porém, no que diz respeito
à reescrita, o documento não apresenta referências a autores ou teorias.

234
Eliana Donaio Ruiz (org.)

A reescrita surge, na Base, dentro de algumas habilidades previstas


aos estudantes, principalmente das séries finais do Ensino Fundamental e
Médio, como uma estratégia parte do processo de escrita. Assim, a noção
de reescrita como processo, atrelada à noção de escrita como trabalho
(FIAD; MAYRINK-SABINSON, 1994), fica implícita no documento
a partir de trechos de habilidades, como “Produzir textos em diferentes
gêneros, [...] utilizando estratégias de planejamento, elaboração, revisão,
edição, reescrita/redesign e avaliação de textos [...]” (BRASIL, 2018,
p.143).
Quanto às séries iniciais do Ensino Fundamental, a reescrita se faz
presente apenas em uma habilidade, específica para o 2º ano do ciclo.
Além disso, como já discutido, a habilidade EF02LP27 apresenta, ao
propor que o aluno reescreva textos lidos pelo professor, uma noção de
reescrita muito mais atrelada à paráfrase.
Portanto, no que diz respeito à reescrita, a Base não se detém em
discutir o que é, como conduzi-la ou sua importância, somente aponta-a
como habilidade a ser desenvolvida. Pressupomos que, sendo apresentada
no campo de estratégias de produção, o documento assume uma visão de
reescrita como parte integrante e indissociável da escrita.
Assim como apontado por Menegassi e Gasparotto (2014), em
documentos norteadores da educação anteriores é possível afirmar que a
Base apresenta a reescrita superficialmente, apenas mencionando-a. Outra
questão a ser observada é a apresentação de diferentes terminologias de
processos/etapas da escrita, além da reescrita, como a revisão, a edição
e o redesign, que também não são explorados pelo documento.
Por fim, percebemos a BNCC, de fato, como um documento
sistematizador de habilidades e competências esperadas dos alunos,
“um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico
e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica [...]”
(BRASIL, 2018, p. 7).
A Base aponta o destino, mas cabe às escolas e professores buscar
e compreender como alcançá-lo. O documento não apresenta, com re-

235
escrita como prática social (não) escolar

lação à reescrita, discussões com profundidade para os professores que


buscam fundamentação para sua prática. Fica, ao professor, apenas a
indicação de que seu aluno deve ser capaz de “Engajar-se ativamente
nos processos de planejamento, textualização, revisão/edição e reescrita
[...]” (BRASIL, 2018, p. 159), de modo que caiba ao próprio professor
e aos promotores da formação continuada a busca pela compreensão da
reescrita e de como ensiná-la.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Histórico da


BNCC. Brasília, DF: MEC, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.
gov.br/historico. Acesso em: 24 dez. 2019.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base
nacional comum curricular. Brasília, DF: MEC, 2018. Disponível em: http://
basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.
pdf. Acesso em: 24 dez. 2019.
FIAD, Raquel Salek. A pesquisa sobre a reescrita de textos. In: SIMPÓSIO
MUNDIAL DE ESTUDOS DE LÍNGUA PORTUGUESA: ultrapassar fronteiras,
juntar culturas. 2., 2010, Évora. Anais […]. Évora: Universidade de Évora, 2010.
p. 1-9.
FIAD, Raquel Salek. Escrever é reescrever. Belo Horizonte: CEALE/FaE/UFMG,
v. 1, 2006.
FIAD, Raquel Salek. Reescrita de textos: uma prática social e escolar. Organon,
Porto Alegre, v. 29, n. 46, p. 147-159, 2009.
FIAD, Raquel Salek. Reescrita, dialogismo e etnografia. Linguagem em (Dis)curso,
Tubarão, v. 13, n. 3, p. 463-480, set./dez. 2013.
FIAD, Raquel Salek; MAYRINK-SABINSON, Maria Laura Trindade. A escrita
como trabalho. In: MARTINS, Maria Helena (org.). Questões de linguagem. 4. ed.
São Paulo: Contexto, 1994. p. 54-63.
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo:
Atlas, 2008.
JESUS, Conceição Aparecida de. Reescrita: para além da higienização. 1995.
Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 1995.

236
Eliana Donaio Ruiz (org.)

LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. A pesquisa em


educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.
MENEGASSI, Renilson José; GASPAROTTO, Denise Moreira. Revisão dialógica:
princípios teórico-metodológicos. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 19, n. 1,
p. 107-124, jan./abr. 2019.
MENEGASSI, Renilson José; GASPAROTTO, Denise Moreira. Revisão e Reescrita
em Documentos Oficiais: conceitos e orientações metodológicas. Signum: Estudos
da Linguagem, Londrina, v. 17, n. 2, p. 166-192, dez. 2014.

237
Eliana Donaio Ruiz (org.)

SOBRE OS AUTORES

Alex Alves Egido é licenciado em Letras - Inglês pela Universidade Estadual


de Londrina (UEL). Mestre e doutorando em Estudos da Linguagem pela
referida instituição. Atualmente, é professor colaborador no Departamento de
Letras Estrangeiras Modernas da UEL, membro da Associação Americana de
Pesquisa Educacional (AERA) e presidente da Associação de Professores de
Língua Inglesa do Estado do Paraná (APLIEPAR) (2020-2021). Autor do livro
Students’ Assumption, prejudice, and discrimination in an English language
class (2018). Seus interesses de pesquisa centram-se em ética na Linguística
Aplicada, metodologia de pesquisa qualitativa e estudos discursivos de orien-
tação foucaultiana.
https://orcid.org/0000-0001-8014-8651
egido@uel.br

Ana Paula da Silva é doutoranda em Estudos da Linguagem pela Universi-


dade Estadual de Londrina (UEL). Mestra em Letras (Profletras) pela mesma
universidade. Possui Especialização em Língua Portuguesa e graduação em
Letras pela Universidade Norte do Paraná (Unopar). Atualmente é professora
da Secretaria de Estado da Educação do Paraná (Seed), atuando no ensino
fundamental e médio.
https://orcid.org/0000-0001-8808-0874
ana.silva2@escola.pr.gov.br

Andressa Aparecida Lopes é doutoranda e mestra em Estudos da Linguagem


pela Universidade Estadual de Londrina. Possui especialização em Língua Por-
tuguesa e graduação em Letras Vernáculas pela mesma Instituição. É docente
do curso de Letras na Unopar e professora de produção de textos no Colégio

239
escrita como prática social (não) escolar

Maxi. Já desenvolveu pesquisas relacionadas à teoria dialógico-enunciativa,


gêneros discursivos e ensino de Língua Portuguesa. Atualmente, concentra seus
estudos nas áreas de Linguística Aplicada, pedagogia dos multiletramentos e
formação de professores de Língua Materna.
https://orcid.org/0000-0002-7786-6836
andressa.lopes@uel.br

Bruna Carolini Barbosa é doutoranda em Estudos da Linguagem pelo Pro-


grama de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual
de Londrina (UEL). Mestra pelo mesmo programa. É professora colaboradora
no curso de Letras da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e
professora de Língua Portuguesa no Ensino Médio em uma instituição privada.
Coordena a área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias em uma escola da
rede privada, em Londrina, atuando na formação de professores. Colaboradora
do projeto “Histórias de Letramento: investigando práticas de letramento locais/
situadas e a relação com o processo de formação de professores de Língua
Portuguesa”. Membro dos Grupos de Pesquisa/CNPQ “Formação e Ensino em
Língua Portuguesa” (FELIP-UEL) e “Diálogos linguísticos e ensino: saberes
e práticas” (DIALE /UENP). Desenvolve pesquisas em Linguística Aplicada,
com foco em Letramentos, Decolonialidade e Educação Antirracista.
https://orcid.org/0000-0002-6454-7270
brunacarolini.barbosa@uel.br

Carla Giovana de Campos é Especialista em Língua Portuguesa e graduada


em Letras - Português, pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Atual-
mente, é professora atuante em todos os níveis da educação básica, ministrando
a disciplina de Habilidades Digitais na Educação Infantil e nas Séries Iniciais
do Ensino Fundamental, e a disciplina de Produção de Texto nas Séries Finais
do Ensino Fundamental e no Ensino Médio.
https://orcid.org/0000-0002-3304-8938
prof.carlacampos@uel.br

240
Eliana Donaio Ruiz (org.)

Cecília Gusson Santos é licenciada em Letras - Inglês pela Universidade


Estadual do Norte do Paraná (UENP). Mestre e doutoranda em Estudos da
Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina (PPGEL–UEL). Atu-
almente, atua como diretora auxiliar do Colégio Estadual Aldo Dallago, no
município de Ibaiti/Paraná. É professora PDE de Língua Estrangeira Moderna
na mesma instituição vinculada à Secretaria de Estado da Educação do Paraná
(SEED-PR) desde 2005. Relações Públicas da Associação de Professores de
Língua Inglesa do Estado do Paraná (APLIEPAR) (2020-2021). Contribui com
a formação de professores em Núcleos Regionais da Educação jurisdicionados
à SEED-PR. Dentre seus trabalhos destaca-se o capítulo da obra Linguística
Contrastiva: Uma Homenagem a Emílio Ridruejo Alonso, intitulado: “O ensino
de língua estrangeira/adicional pelo viés discursivo-contrastivo”. Pesquisadora
com interesse nas áreas de Linguística Contrastiva, Interculturalidade, Estudos
Críticos do Discurso, Decolonialidade e Educação Antirracista.
https://orcid.org/0000-0001-9195-3701
cecilia.gusson@uel.br

Eliana Maria Severino Donaio Ruiz possui Pós-Doutorado em Linguís-


tica Aplicada, Doutorado em Linguística e Mestrado em Linguística pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É professora adjunta do
Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual
de Londrina (UEL), atuando na Licenciatura em Letras e no Programa de
Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL): área de concentração
Linguagem e Educação e linha de pesquisa Ensino-Aprendizagem e Formação
do Professor de Língua Portuguesa e de Outras Linguagens. Dentre seus tra-
balhos, destaca-se o livro Como Corrigir Redações na Escola: Uma Proposta
Textual-Interativa. É membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ “Formação e
Ensino em Língua Portuguesa” (FELIP-UEL). Suas pesquisas concentram-se
na área da Linguística Aplicada e seus interesses atuais estão ligados ao ensino
de português como língua materna, ao ensino-aprendizagem da escrita e às
relações entre tecnologias digitais e educação linguística.
https://orcid.org/0000-0002-7169-8464
elianaruiz@uel.br

241
escrita como prática social (não) escolar

Everton Lima Camargo é Mestre em Estudos da Linguagem e graduado em


Letras Vernáculas pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Atualmente,
atua como professor da educação básica - Ensino Fundamental (anos finais)
e Ensino Médio.
https://orcid.org/0000-0001-5646-6350
everton.lima.camargo@escola.pr.gov.br

Franciela Silva Zamariam é doutoranda em Estudos da Linguagem e Mestre


na mesma área, pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Possui Especia-
lização em Educação, graduação em Letras Vernáculas e outra graduação, em
Línguas Estrangeiras Modernas - Espanhol, também pela UEL. É professora da
educação básica, Ensino Fundamental (anos finais) e Ensino Médio, há quatorze
anos. Colabora ainda como professora formadora no projeto da Secretaria de
Educação do Paraná: “Formadores em ação”. Dentre seus trabalhos, destaca-se
o livro Literatura em jogo: a formação de leitores através do RPG (Pontes,
2020), além de haicais publicados em obras como Antologia de haicaístas
brasileiros (Napoleão Valadares, Editora André Quicé, 2003), Caleidoscópio
(Vários autores, Andross, 2006) e no livro didático Gramática Reflexiva 9º
ano (William Roberto Cereja e Carolina Dias Vianna, Saraiva, 2020). A área
de interesse e concentração de sua pesquisa atual é Linguagem e Educação.
https://orcid.org/0000-0001-6985-9479
franciela.zamariam@escola.pr.gov.br

Lucas Mateus Giacometti de Freitas é professor na área de Letras, com


ênfase em ensino de Língua Inglesa e preparatórios internacionais, e tradutor
freelancer. Graduado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá,
especialista em Ensino de Língua Estrangeira pela Universidade Estadual de
Londrina (UEL) e mestrando em Estudos da Linguagem também pela UEL.
https://orcid.org/0000-0002-5798-6419
giacometti.lucas@uel.br

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