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Ensino de Gramática na

Perspectiva Enunciativa
Autor: Profa. Mônica Oliveira Santos
Professora conteudista: Mônica Oliveira Santos

A professora Mônica Oliveira Santos nasceu em Campina Grande‑PB e é doutora em Linguística (2004), com
ênfase nas áreas da Semântica e Análise do Discurso, pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Mestre em
Linguística Aplicada (2000), com ênfase na área de Ensino de Língua Materna, também pela Unicamp. Graduou‑se
no curso de Letras (1997) pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), tendo desenvolvido trabalhos de iniciação
científica na área de Análise do Discurso, durante a graduação.

Atualmente é professora‑titular da Universidade Paulista – UNIP, ministrando as disciplinas de Gramática


Aplicada à Língua Portuguesa, Teorias do Texto, Semântica e Pragmática, Análise do Discurso, Análise de Discurso
Crítica e Semiótica, Relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade e Morfossintaxe Aplicada à Língua Portuguesa. É
coordenadora do curso de Letras da UNIP – campus de Campinas/Swift e atua ainda como líder das disciplinas Teorias
do Texto, Análise do Discurso e Gramática Aplicada à Língua Portuguesa, Morfossintaxe da Língua Portuguesa
e Morfossintaxe Aplicada à Língua Portuguesa. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Semântica,
Texto e Discurso, atuando principalmente nas abordagens relativas a Enunciação Coletiva, Enunciação Proverbial,
Funcionamento Enunciativo‑discursivo, Textualidade‑Discursividade, Relação Sentido e Sujeito e Ensino do Português.

Dentre outras produções nas áreas de estudo do Texto e da Análise do Discurso, é autora do livro Um Comprimido
que Anda de Boca em Boca: os Sujeitos e os Sentidos no Espaço da Enunciação Proverbial (2007) e coautora dos
livros Em Torno da Língua(gem): Questões e Análises (2007), Território da Linguagem (2004) e Texto, Discurso,
Interpretação: Ensino e Pesquisa (2001). De modo bastante direcionado, seu percurso teórico‑produtivo focaliza‑se
nas questões pertinentes às teorias do Texto e do Discurso, centralizando‑se sobremaneira nas abordagens do ensino,
da enunciação, dos sujeitos e da construção/produção de sentidos.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Z13 Zacariotto, William Antonio

?
Informática: Tecnologias Aplicadas à Educação. / William
Antonio Zacariotto - São Paulo: Editora Sol.

il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2-006/11, ISSN 1517-9230.

1.Informática e tecnologia educacional 2.Informática I.Título

681.3

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Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Juliana Mendes
Sumário
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
Introdução............................................................................................................................................................7

Unidade I
1 Gramática e História: o processo de gramatização............................................................9
1.1 Do percurso histórico da gramática às gramáticas portuguesas e brasileiras............. 12
1.1.1 A gramática pelo olhar estruturalista de um brasileiro: Mattoso Câmara....................... 18
1.1.2 Gramática e seu conceito..................................................................................................................... 18
1.1.3 Variabilidade e invariabilidade na língua....................................................................................... 20
1.1.4 A técnica da descrição linguística..................................................................................................... 21
1.2 Diferentes concepções de linguagem, de ensino e de gramática..................................... 22
1.2.1 Objetivos do ensino de língua materna.......................................................................................... 22
1.2.2 Concepções de linguagem................................................................................................................... 24
1.2.3 Concepções e tipos de gramática..................................................................................................... 25
1.2.4 Tipos de gramática.................................................................................................................................. 25
1.2.5 Tipos de ensino......................................................................................................................................... 27
1.3 Perspectivas enunciativas de análise
da linguagem: contribuições de Bakhtin, Benveniste e Ducrot................................................. 28
1.3.1 A enunciação sob a ótica de Bakhtin.............................................................................................. 29
1.3.2 Enunciação sob a ótica de Benveniste............................................................................................ 39
1.3.3 Enunciação sob a óptica de Ducrot.................................................................................................. 41

Unidade II
2 Reflexões críticas sobre a Gramática Normativo‑Tradicional................................ 49
2.1 Critérios de classificação.................................................................................................................... 49
2.1.1 O critério semântico............................................................................................................................... 50
2.1.2 O critério morfológico........................................................................................................................... 51
2.1.3 O critério sintático................................................................................................................................... 51
2.1.4 A conjunção dos critérios seria uma solução?............................................................................ 52
2.1.5 Um exemplo concreto............................................................................................................................ 53
2.2 Revisitando as dez classes de palavras a partir dos três critérios de classificação.... 53
Introdução

As discussões a respeito dos estudos da linguagem e, consequentemente, do ensino de língua, de


gramática, de produção textual constituem um espaço efervescente que se compõe de polêmicas, de
limites e lacunas a serem ultrapassados e de um leque de possibilidades e propostas a serem seguidas,
muitas delas apontando para caminhos diferentes, mediante as diferentes orientações teóricas que
sustentam suas bases. É fato, porém, que todas buscam ir além dos limites do passado na tentativa
de superar as deficiências da gramática e do ensino tradicional, que reconhecidamente não tem
atingido o êxito quanto aos objetivos de ensino de língua. Nesta disciplina, faremos um percurso
sobre os principais marcos teóricos que definiram o estudo da linguagem e da gramática. Na primeira
unidade, perseguiremos o percurso da construção gramatical, entendendo o que foi o importante
processo de gramatização, visto como uma revolução científica e tecnolinguística, cujo parâmetro foi a
gramática latina. Acompanharemos a relação entre esse percurso histórico da gramática e as gramáticas
portuguesas e brasileiras. Aprofundaremos o olhar sobre a relação entre as concepções de linguagem,
de ensino e de tipos de gramática que demonstram uma coerência em suas diferenças. Revisaremos
as principais teorias enunciativas de análise da linguagem, a fim de construir um suporte teórico para
entender as novas propostas de ensino que tencionam sair do limite da frase (e do normativismo
prescritivo) e partir para a amplitude do enunciado em relação ao seu espaço enunciativo (numa análise
descritiva que observa a língua em funcionamento, em sua interacionalidade). Na segunda unidade,
buscaremos relacionar mais efetivamente a tríade gramática, enunciação e ensino, apresentando
reflexões críticas sobre os problemas conceituais da gramática normativo‑tradicional. Refletiremos sobre
algumas propostas alternativas de ensino, observando inclusive a sua conformidade com os Parâmetros
Curriculares Nacionais. Demonstraremos que é possível fazer uma abordagem dos fatos gramaticais em
funcionamento no discurso, a partir de uma perspectiva enunciativa.

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Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

Unidade I
1 Gramática e História: o processo de gramatização

Nesta discussão de abertura, você vai acompanhar uma reflexão sobre o nascimento das ciências da
linguagem e sobre o processo tecnológico da gramatização. Seguiremos os apontamentos de Sylvain
Auroux, filósofo da linguagem, que acredita que esse processo de gramatização mudou os rumos da
comunicação humana e deu ao Ocidente um instrumento de conhecimento e dominação sobre as
outras culturas. Ele chama tal processo de revolução tecnológica da gramatização, nome, inclusive,
dado ao seu livro que traz estas reflexões.

Em sua obra, A Revolução Tecnológica da Gramatização (1992), Sylvain Auroux chama a atenção
para os mitos difundidos pela historiografia das ciências da linguagem, expandidos no século XIX
sob o signo hegemônico do comparativismo, e, dentre estes, julga que um dos mais prejudiciais tem
sido o da cientificidade. Conforme o autor, os estudos referentes à linguagem adquiriram o estatuto
científico no século XIX com a gramática comparada moderna. Os comparativistas entendiam que a
“ciência” da linguagem correspondia ao programa da gramática histórica e comparada que se prestava
à descrição da evolução das línguas. Só recentemente é que filósofos e historiadores desenvolveram
estudos sobre o desenvolvimento das ciências da linguagem a partir de uma óptica diferente da que
vinha sendo parâmetro.

Em seu trabalho, o autor aponta para as circunstâncias em que nasceram as disciplinas consagradas
à linguagem e seu impacto no desenvolvimento cultural humano, bem como para a gramatização, que
foi seu grande movimento. Sua reflexão sustenta duas teses de interesse filosófico: a primeira, à qual
o autor dedica o primeiro capítulo, diz respeito ao nascimento das ciências da linguagem – reflexões
sobre a linguagem humana; e a segunda tese, objeto central do segundo e do terceiro capítulo, refere‑se
ao fenômeno da gramatização que revolucionou a tecnologia da comunicação humana e ofereceu ao
Ocidente uma forma de conhecimento/dominação em relação às outras culturas.

Sobre o nascimento das metalinguagens, o autor remonta um panorama histórico sobre os


conhecimentos linguísticos, que, a partir do século XIX, desenvolveram‑se institucionalmente, mantendo,
em sua maioria, o preconceito de fazer a história da linguística concebida como ciência. Ele também
explica que nos últimos vinte anos esse conceito evoluiu e que a linguística como forma de saber e
prática teórica tornou‑se uma forma de estruturação transitória que está desaparecendo e dando lugar
às ciências da linguagem. Nesse sentido, o autor procura responder a duas questões: “Sob que formas se
constitui, no tempo, o saber linguístico?” e “Como essas formas se criam, evoluem, se transformam ou
desaparecem?” (AUROUX, 1992, p. 13).

Auroux (1992) afirma enfaticamente que o saber linguístico é múltiplo e que este é epilinguístico
(atividade condizente com a reflexão sobre a língua em contexto de uso) antes de ser metalinguístico
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Unidade I

(utilização do código para falar dele mesmo), considerando‑se de muita importância um continuum entre
estes dois saberes. Tal continuum pode ser comparado à continuidade entre percepção e representação
física das ciências da natureza. O autor aponta quatro tipos de saber metalinguístico que dizem respeito:

• à natureza especulativa;

• à natureza prática;

• à constituição de técnicas;

• às competências específicas.

Ele diz que o esforço em deslocar o saber linguístico para o saber especulativo é o que em geral põe
em discussão a cientificidade deste ou daquele saber linguístico.

Nesse sentido, o limiar da escrita é fundamental para a história das representações linguísticas e é
marcado pela passagem do epilinguístico para o metalinguístico. A tradição do saber linguístico tem na
produção de textos literários um ponto de partida, e o que deslancha a reflexão linguística é a alteridade
(o interesse em compreender e descrever as outras línguas). O autor se opõe à tese de historiadores,
linguistas e filósofos que habitualmente defendem o aparecimento das ciências da linguagem como
uma das causas do nascimento da escrita. Ele acredita que, ao contrário, a escrita é que seja um dos
fatores necessários ao aparecimento das ciências da linguagem e cita vários exemplos de civilizações
orais sem escrita que possuíam técnicas e regras de estética e de classificação linguística, mas que não
tinham uma doutrina elaborada nas artes da linguagem. Conforme o autor, a análise gramatical nasce
em função da compreensão de textos, e não da necessidade de se falar uma língua qualquer. Ele postula
que atualmente a gramática se configura como uma técnica escolar para crianças que mal dominam
sua língua falada (ou uma língua estrangeira) e que esse caráter vem de uma tradição escrita de guiar
e corrigir a língua falada, o que redobra o papel da escrita no desenvolvimento dos saberes linguísticos.

Para tratar do fato da gramatização, o autor traz um apanhado geral do desenvolvimento das
concepções linguísticas europeias que compreende o período do século V até o século XIX. Nesse período,
vê‑se o desenrolar de duas revoluções tecnolinguísticas de fundamental importância para a organização
das sociedades, no que se refere a criar uma rede de comunicação homogênea e dominante centrada
inicialmente na Europa. Aos olhos do autor, tal revolução para a história humana é tão importante e
fundamental quanto foram a Revolução Agrária do Neolítico ou a Revolução Industrial do século XIX.

Conforme o autor, a primeira revolução científica do mundo consolidou‑se com o aparecimento


das ciências da linguagem. As ciências da natureza modificaram a concepção de ciência, e o modelo
dominante incluiu as ciências humanas, mas sem a segunda revolução tecnolinguista isso não seria
possível. Essa segunda revolução, cujo eixo central é o Renascimento, diz respeito a uma gramatização
massiva das línguas do mundo, a partir da tradição linguística greco‑latina. As consequências dessas
revoluções resultaram em algumas transformações: o nascimento e desenvolvimento da gramática
especulativa medieval e da gramática geral clássica, o interesse da gramática deslocando‑se da filologia
para o domínio das línguas maternas, a gramática como uma técnica pedagógica de aprendizagem e
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Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

descrição das línguas, a marginalização da etimologia linguística, que é excluída das ciências humanas,
o aparecimento do dicionário monolíngue e o domínio das línguas neolatinas na Europa.

Não há uma reflexão aprofundada sobre o porquê de a gramatização massiva das línguas ter
acontecido a partir da Europa e de isso ter vindo à tona tão tardiamente (século XIX). Outras civilizações
teriam tido seu desenvolvimento linguístico‑intercultural muito antes (índia, China, Arábia etc.) e não
exerceram o domínio linguístico que teve a Europa. Elas possuíam uma tradição de análise gramatical
forte e autônoma, mas não se interessaram muito pela descrição de outras culturas e outras línguas,
o que impossibilitou a constituição de uma rede tecnolinguística semelhante à que fez nascer o
Renascimento Ocidental (AUROUX, 1992, p. 41). Entre os séculos VII e IX, assistiu‑se a um fenômeno de
dispersão e fragmentação do latim e de insistência por uma unificação deste, que se configurou mais
tarde como a segunda língua na Europa. Essa homogeneidade conceitual pode ser considerada como
sua identidade de metalinguagem. A gramática latina passa a ser parâmetro e espelho aplicável ao
estudo de qualquer outra língua.

Auroux (1992) explica que durante toda a Idade Média manteve‑se o equilíbrio entre um latim
abstrato e teórico, uma língua conceitualmente sofisticada do saber letrado e os vernáculos vulgares,
e que a Igreja assegurou por muito tempo a imponência do latim, mas que este perdia importância à
medida que algumas atividades sociais e religiosas (o protestantismo) ganhavam espaço e reclamavam
o acesso aos textos e às técnicas intelectuais, minimizando o papel de intermediários letrados. Isso
ocasionou a entrada dos vernáculos que contextualiza historicamente três elementos: a renovação da
gramática latina, a imprensa e as grandes descobertas no mundo.

Quando aborda o conceito de gramatização, Auroux concebe‑o como “processo que conduz a
descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias: a gramática e o dicionário” (AUROUX,
1992, p. 65). Uma gramática constaria, basicamente, de uma categorização das unidades, dos exemplos e
das regras para construir enunciados, de maneira que os paradigmas completos só passariam a aparecer
nas gramáticas dos vernáculos europeus. Eles são, a rigor, um conjunto de regras que podem, por si, assumir
a função de gramática. Conforme o autor, as gramáticas teriam um conteúdo relativamente estável:
ortografia/fonética, partes do discurso, morfologia, sintaxe e figuras de construção (AUROUX, 1992, p. 67).

Todos os gramáticos precoces mantiveram a noção de regra (AUROUX, 1992, p. 68). Inicialmente a
descoberta dessas regularidades foi um problema que eles tiveram de resolver (a seu modo), uma vez que
trabalharam em espaços de oralidade que apontavam para uma grande variedade linguístico‑dialetal
dos vernáculos que, sem intervenções tecnológicas, teve um forte peso. A gramatização reduziu tal
variação em nome da homogeneidade e do bom uso.

Em relação aos dicionários, essa mesma situação se comprova, pois eles tornam possível a
normatização ortográfica dos idiomas. Esses instrumentos modificaram profundamente “[a] ecologia
da comunicação e as práticas linguísticas humanas” (AUROUX, 1992, p. 70). Os dicionários inicialmente
não faziam parte da tradição linguística: eles são posteriores à imprensa e à gramatização, apesar de
a lexicologia ser mais antiga que a gramática. Segundo o autor, o que oblitera o aparecimento dos
dicionários é a confusão entre enciclopédia e dicionário que torna difícil a distinção entre gramática e
dicionário (AUROUX, 1992t, p. 71‑2).
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Unidade I

O autor afirma que o processo de gramatização que lhe interessa corresponde a uma transferência de
tecnologia de uma língua para outras línguas e que isso também depende da transferência sociocultural.
Ele se refere, mais pontualmente, ao exposto no quadro a seguir.

Quadro 1 – Processo de gramatização, segundo Auroux

Endotransferência/endogramatização Exotranferência/exogramatização Processo contrastivo de gramatização


A gramatização latina dos vernáculos Os missionários que gramatizaram Dota as diferentes línguas da posição de
europeus línguas sem escrita observatório umas diante das outras

Fonte: Auroux (1992, p. 84).

Enfim, Auroux (1992) afirma que a gramática geral teve por finalidade ocupar o lugar que foi da
gramática latina perante as línguas do mundo. Desse contexto é que surge a gramática moderna. O seu
projeto científico no programa de pesquisa procurou, por um lado, afirmar as categorias linguísticas que
poderiam ser reduzidas a categorias de representação, e, por outro lado, criar uma relação das categorias
gerais com as particularidades das línguas que guardam uma subjunção ao universal (AUROUX, 1992, p.
89). Duas consequências desse desenvolvimento científico são a etimologia e a rede de conhecimentos
linguísticos. O autor conclui que não seria “de forma alguma evidente que o saber metalinguístico
se tornasse um produto de um puro interesse do conhecimento: é preciso ver nesta transformação
fundamental um dos frutos tardios da gramatização” (AUROUX, 1992, p. 93).

A nós é pertinente avaliar que uma obra dessa natureza é de fundamental importância para o
conhecimento e o acompanhamento dos processos históricos e das revoluções que delinearam as áreas
de estudo das disciplinas referentes à linguagem e que moldaram a noção de cientificidade, oferecendo,
até mesmo, questionamentos no reconhecimento e na aferição desse valor, e, mais relevante ainda, ter
a clareza de analisar até que ponto garantir o peso da cientificidade para essas disciplinas foi válido ou
prejudicial no contexto mundial.

Uma observação para a qual gostaríamos de chamar a atenção seria o fato de que, no decorrer de suas
considerações sobre a revolução da gramatização, o autor leva magistralmente em conta aspectos como
as inter‑relações humanas e sociais das línguas do mundo, as variedades linguístico‑dialetais que se
mostram fortemente no espaço de oralidade entre as várias línguas, as transferências linguístico‑culturais
e até a presença dos sujeitos que efetuam essa transferência (AUROUX, 1992, p. 74).

1.1 Do percurso histórico da gramática às gramáticas portuguesas e


brasileiras

Vamos agora acompanhar mais pontualmente alguns importantes momentos e aspectos do percurso
histórico de definição e da natureza das gramáticas ao longo dos séculos.

Conforme Dias e Bezerra (2006), num capítulo intitulado “Gramática e Dicionário”, as reflexões sobre
a linguagem já começaram entre o terceiro e o segundo milênio antes de Cristo (na Mesopotâmia, na
China, no Egito), a partir das primeiras práticas de escrita.

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Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

O homem produziu uma visão simultânea e especializada da fala [...] A


escrita proporcionou ao homem uma nova dimensão do conhecimento: ela
permitiu uma observação em escala mais larga da relação entre as unidades
linguísticas [palavras, frases] (DIAS; BEZERRA, 2006, p. 13).

Tais reflexões possibilitaram (através da escrita) a elaboração de procedimentos técnicos de análise


e organização que consistem nos fundamentos básicos da gramática.

Nesse sentido, Dias e Bezerra (2006, p. 13‑4) apontam, em conformidade com Sylvain Auroux (1992),
que a gramática é uma tecnologia intelectual. Os primeiros termos gramaticais, listas de palavras,
palavras agrupadas por características comuns apontam para os rudimentos iniciais de gramáticas, e
isso data do segundo milênio a.C.

No desenvolvimento da configuração da gramática, a lógica e a retórica tiveram papel de destaque.


Segundo Dias e Bezerra (2006), na Grécia antiga, aprofunda‑se a organização das partes do discurso
(classes de palavras), e nesse trabalho a contribuição do filósofo clássico Aristóteles foi importante. Essa
organização auxiliava na preocupação com o uso retórico e com a verdade (acarretamento lógico) na
linguagem. Platão contribuiu para que se preservasse a relação ente a palavra e o ser que ela designa, daí,
por exemplo, temos a construção do conceito de substantivo (tradicionalmente a palavra que nomeia
o ser, conceito que se mantém até hoje) Ainda na Grécia antiga, desenvolvem‑se rudimentarmente os
conceitos de sujeito e predicado que constituem os fundamentos da sintaxe gramatical.

Observação

Os estudos da semântica formal (área da linguística que estuda a


significação), desde os seus primórdios até hoje, mantêm como princípio esta
relação entre as palavras e as coisas, entre a linguagem e os objetos/referentes.
Baseiam‑se em pressupostos lógico‑dedutivos cuja base é a filosofia clássica.

Conforme Maria Helena de Moura Neves (1987 apud DIAS; BEZERRA, 2006), na Grécia, apesar desses
rudimentos do estudo gramatical, ainda não havia propriamente gramática. Conforme a autora, a palavra
gramática vem do grego grammatiké e significa “instrumento de cultivo e preservação de valores”.

Dias e Bezerra apresentam um breve resumo de importantes autores de gramáticas de destaque


histórico ao longo dos séculos. Tais gramáticas eram referentes às línguas grega, sânscrita e latina.
Acompanhe os primeiros autores na citação a seguir:

A primeira gramática grega, no sentido tradicional do termo, foi elaborada


por Dionísio de Trácio, que se supõe tenha vivido entre 170 [a.C.] e 90 a.C.
Essa obra abrange aspectos do estudo dos sons, bem como a estrutura e
[a] classe das palavras da língua grega [...] Outra gramática voltada para o
estudo do grego foi escrita no século II d.C. por Apolônio Díscolo e já aborda
a sintaxe das partes do discurso. Mas é preciso ressaltar que, mesmo antes
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Unidade I

dos gregos, por volta do século V a.C., o gramático hindu Panini escreveu
uma obra detalhada analisando os sons e a estrutura vocabular da língua
sânscrita. Ainda na cultura ocidental, no Império Romano, Varrão (séc. I
a.C.) e Quintiliano (séc. I d.C.) destacaram‑se na elaboração das primeiras
gramáticas do latim. E mais tarde, no século V d.C., já na entrada da Idade
Média, Donato e Prisciano já apareceram com as noções de transitividade
e regência, dois conceitos fundamentais na sintaxe tradicional (DIAS;
BEZERRA, 2006, p. 14).

Fundamentados em Auroux, os autores sustentam que, no fim da Idade Média e no Renascimento,


um marcante processo de gramatização marcou o mundo ocidental com uma produtiva elaboração de
gramáticas fundamentadas na base greco‑latina, sobretudo, em relação às línguas‑filhas, derivadas do
latim. Uma verdadeira revolução tecnológica.

Algumas gramáticas de destaque dessas línguas derivadas do latim são apontadas pelos autores: a
primeira gramática do francês, de J. Barton, em 1409; a primeira gramática do espanhol, de Antônio de
Nebrija (Gramática de la Lengua Castellana), publicada em 1492; e ainda a Gramática de Port Royal, em
1660, “dos enciclopedistas franceses” (DIAS; BEZERRA, 2006, p. 15).

No que corresponde à língua portuguesa, elencam algumas das principais gramáticas dessa língua e
seus destaques. Com base nos autores, organizaremos a seguir um quadro destacando as gramáticas de
língua portuguesa de Portugal e do Brasil, separadamente e cronologicamente.

Quadro 2 – Gramáticas de língua portuguesa (Portugal)

Ano Título Autor Destaque

1536
Grammatica da Lingoagem Fernão de Oliveira Louvor e nobreza das origens de Portugal
Portuguesa

1770
A Arte da Grammatica da Língua Antônio José dos Reis Lobato Consolidação do saber sobre a língua
Portuguesa portuguesa

1822
Grammatica Philosophica da Jerónimo Soares Barbosa Consolidação do saber sobre a língua
Lingua Portuguesa portuguesa

1983
Grammatica da Língua Maria H Mira Mateus, Ana M Totalmente desvinculada dos princípios da
Portuguesa Brito, Inês Duarte, Isabel H Farias gramática tradicional
Totalmente desvinculada dos princípios
1995 Gramática da Língua Portuguesa Mário Vilela da gramática tradicional. Enfatiza os
conhecimentos sobre textualidade e discurso

Fonte: Dias; Bezerra (2006, p. 15).

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Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

Quadro 3 – Gramáticas de língua portuguesa (Brasil)

Ano Título Autor Destaque


Visão integral da língua. Estudo dos sons e
1881 Grammatica Portuguesa Júlio Ribeiro grafia. Constituição da oração
Bastante reeditada até o fim da década de
1907 Gramática Expositiva Eduardo Carlos Pereira 1950
Destaque entre os estudiosos da língua e
1924 Gramática Secundária Said Ali referência para os gramáticos posteriores
Reeditada algumas vezes até o fim da década
1961 Moderna Gramática Portuguesa Evanildo Bechara de 1990

1970
Gramática do Português Celso Cunha Manual para o trabalho didático‑escolar
Contemporâneo
Bastante reeditada até hoje, referência para
1985
Nova Gramática do Português Celso Cunha e Lindley Cintra o trabalho didático nos manuais e fonte para
Contemporâneo concursos públicos – base tradicional
Reedição com mudanças substanciais
advindas da linguística moderna,
1999 *Moderna Gramática Portuguesa Evanildo Bechara rompendo com os padrões tradicionais e
configurando‑se como gramática descritiva
Completamente diferenciada da gramática
1995 Gramática Descritiva Mário Alberto Perini tradicional normativa e fundamentada no
gerativismo de Chomsky
Focalizada nas perspectivas descritiva e
2000 Gramática de Usos do Português Maria Helena de Moura Neves funcionalista

Fonte: Dias; Bezerra (2006, p. 15).

Ainda na perspectiva de ressaltar os importantes momentos históricos do estudo da linguagem, o


processo da gramatização e as rupturas e os avanços teóricos na ciência da linguagem (a linguística),
traçaremos um quadro cronológico com marcos importantes que retratam o passado histórico dos
estudos da linguagem, o corte saussureano (com Ferdinand de Saussure, o pai da linguística moderna)
e o contexto de ruptura pós‑estruturalista. Basearemos as informações sobre o passado histórico
da linguagem (a seguir) no que aponta a autora Margarida Petter (2005), num capítulo intitulado
“Linguagem, Língua, Linguística”. Depois destes apontamentos, veremos como o corte saussureano rompe
com esse passado histórico dos estudos da linguagem, institui a linguística como ciência e estabelece
(entre outras) uma dicotomia decisiva e impactante no que se refere aos estudos gramaticais: gramática
normativa versus gramática descritiva. A partir desse avanço é possível reconhecer que a gramática
normativa está ultrapassada e não é suficiente para analisar os fenômenos de linguagem em toda a
sua extensão e profundidade, bem como somente uma gramática disposta a descrever os fenômenos
de linguagem tal como são pode alcançar os objetivos científicos. Após a segunda metade do século XX,
veremos que se inicia um movimento de ruptura com o estruturalismo, novos parâmetros científicos
se organizam e um novo panorama de investigação da linguagem pós‑estruturalista passa a se definir.

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Unidade I

Quadro 4 – O passado histórico dos estudos da linguagem,


o corte saussureano e o cenário atual dos estudos

• Os hindus, preocupados em manter a sacralidade da linguagem de seus textos sagrados (orais),


produzem uma transcrição destes textos para a escrita – O Veda
Século IV a.C. • Com base nessa escrita, estudiosos montaram a primeira gramática de que se tem notícia: a
gramática do sânscrito
• O principal nome entre esses estudiosos foi Panini
• Os gregos destacam‑se por defender a relação entre o conceito e a palavra que o designa (Platão)
Conceito + Objeto + Signo = representação simbólica da significação
Século III a.C. • Aristóteles enfatiza a organização das partes do discurso e das categorias gramaticais
• A Gramática é a arte de bem falar e escrever
• A linguagem é a expressão do pensamento
• Os romanos seguem os gregos
• Concepção gramática: a arte de bem falar e escrever (estética), pautada por leis de raciocínio lógico
(ciência/razão)
Século I a.C.
• Influência da filosofia clássica grega
• Gramático que se destaca: Varrão (mais ou menos 100 a.C.)
• Gramática como ciência e arte
• O pensamento científico e literário está completamente subjugado pelo poderio da Igreja Católica
medieval que se caracteriza pelo obscurantismo religioso
Idade Média
• Modistas defendiam a gramática (estrutura) una, universal para todas as línguas
• Prestígio da língua latina: científico e religioso
• Com a Reforma Protestante a população começa a ter um certo acesso às obras
• Tradução de livros sagrados e não sagrados (filosóficos‑científicos)
Século XVI • Viajantes, comerciantes e diplomatas atuavam na desmitificação das línguas desconhecidas
• 1.500: o primeiro dicionário poliglota é produzido
• Apesar de se manter o prestígio do latim já se abre o conhecimento de outras línguas
• Resguardam as preocupações clássicas (razão e lógica): linguagem se funde na razão; é a expressão
do pensamento
Séculos VII e XVIII • Em 1600 a Gramática Geral e Racional, de Port Royal, serve de modelo e influência. Retorno ao
pensamento grego (razão – lógico)
• Defesa de princípios gerais e universais da língua e da gramática

16
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

• Ênfase nas línguas vivas


• Estudo comparativo dos falares (menos abstratos e objetivistas)
• Gramática histórica comparada
• Linguística histórica
• Fonte de inspiração para os estudos contemporâneos
• Análise interpretativa dos fatos linguísticos observados
• As línguas se transformam com o tempo
Século XIX
• Franz Bopp – Estudo comparativo de sânscrito, grego, latim, persa, germânico etc.
• Relação de parentesco entre as línguas da família do indo‑europeu (tronco linguístico que deu
origem a todas estas línguas)
• Língua e produção literária
• Línguas neolatinas (português, espanhol, francês, italiano, romeno, catalão). Mudanças na língua
latina falada originaram outras línguas
• Neste século, a linguística não era autônoma, pois se submetia às exigências de outros domínios:
lógica, filosofia, retórica, crítica literária, história, filologia e até estudos teológicos
• Corte saussureano (final do século XIX e início do século XX): Saussure rompe com o passado
histórico dos estudos da linguagem e cria um novo campo científico: a linguística
• A linguística é a primeira ciência humana reconhecida. Atrás dela se definiram as demais
• A ciência linguística nasce de acordo com os princípios científicos da época: objetividade;
descritivismo e autonomia
Século XX – Primeira
metade • Objeto de estudo: a língua
• Língua + Fala = Linguagem (corta a fala e define a língua como objeto de estudo)
• Corte saussureano
• Níveis estruturais de análise linguística:
Estruturalismo
linguístico — fonético;
— fonológico;
— morfológico;
— sintático;
— semântico (não se desenvolveu suficientemente).
• Mudança no pensamento científico: reflexão sobre os princípios de autonomia e objetividade
• Novos campos investigativos surgem dando origem a mais áreas científicas. A linguística
se desdobra em diferentes áreas (neurolinguística, psicolinguística, etnolinguística,
sociolinguística, semântica, pragmática, análise do discurso, análise da conversação, gramática
gerativo‑transformacional, gramática funcionalista, linguística aplicada, sociointeracionismo,
Século XX – Segunda linguística textual etc.
metade
• Principais problemas apontados no estruturalismo linguístico:
• Ruptura com
o estruturalismo — a unidade máxima é a frase;
linguístico — separação do enunciado de sua enunciação;
Redefinição da — nulidade do sujeito nas análises;
linguística como — insuficiência das análises sobre o sentido;
grande área que
abriga vários campos — ausência da situação/das condições de uso linguístico e dos demais elementos da exterioridade
de investigação da linguística.
linguagem • Objetivos a alcançar nas novas áreas:
— o texto/discurso: objeto de análise linguística e maior unidade de análise do seu funcionamento;
— resgate da fala e do falante (sujeito), bem como da situação comunicativa;
— ampliação da análise sobre a produção de sentido na linguagem.

17
Unidade I

Observação

Sobre a defesa de princípios gerais e universais para a língua e para


a gramática, baseadas em uma estrutura lógica/racional da linguagem, é
bom considerar que esta se dobra a fatores muito mais ideológicos do que
meramente lógicos. Vejam‑se os exemplos: “Ela é pobre, mas é honesta”;
“Ela é loura, mas é inteligente”. Semanticamente não há oposição lógica
entre as concepções de pobreza e honestidade; “lourice” e inteligência.
Mas estes enunciados revelam valores ideológicos que se evidenciam na
estrutura da língua e impõem um valor que é somente ideológico, como se
fosse uma verdade lógica. Conector adversativo constrói um simulado de
lógica. Isso é muito típico na estrutura do provérbio.

1.1.1 A gramática pelo olhar estruturalista de um brasileiro: Mattoso Câmara

Neste subtópico, você vai acompanhar o posicionamento de Joaquim Mattoso Câmara Júnior sobre
o conceito de gramática, sobre a variabilidade e a invariabilidade na língua e sobre a técnica da descrição
linguística. Este autor é um importante linguista e gramático brasileiro cujo trabalho foi bastante
relevante, considerando sua posição teórica estruturalista, voltada para a descrição do português do
Brasil. Câmara Júnior coaduna‑se com a gramática descritiva ou sincrônica – uma dada língua num
dado momento – comunicação, estrutura, forma.

1.1.2 Gramática e seu conceito

Sobre o conceito de gramática, o autor recupera alguns diferentes momentos históricos e concepções
que marcaram os estudos da linguagem (de certo modo, tratamos de alguns desses momentos algumas
páginas antes, então mostraremos de forma mais sintética).

Conforme Mattoso, o modelo greco‑latino influenciou as gramáticas da maioria das línguas oficiais
(inclusive o português). A Gramática Tradicional (GT) das línguas grega e latina (antiguidade clássica) já
se preocupava com um certo descritivismo. Contudo, a GT caracterizava‑se mesmo por normativismo –
a arte de falar e escrever corretamente – e por explicação, organização e funcionamento das formas
linguísticas com objetividade e cientificidade. Essas GTs filosóficas foram bastante criticadas, pois se
pautavam pelo estudo lógico‑filosófico das leis do raciocínio refletidas na língua (língua = expressão do
pensamento) (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 2).

Segundo o autor, “nem a lógica aristotélica, nem a lógica simbólica puderam fazer justiça, por isso, à
organização última de uma língua humana” (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 2). A partir daí, outro caminho
se esboçou sob a égide da psicologia, difundida no século XIX e enfatizando aspectos psicológicos,
românticos, antilógicos.

18
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

Ainda no século XIX, a linguística firma‑se pela comparação das línguas umas com as outras – a
gramática histórico‑comparativa. Tem‑se um grande avanço nos estudos da linguagem com a relação
de parentesco entre as línguas e a elaboração das gramáticas comparadas.

Câmara Júnior mostra que os filósofos, no século XX, tentam remodelar a disciplina pela linha
das matemáticas – a lógica‑simbólica de Bertrand Russell – mediante uma apreensão intuitiva das
vivências humanas, em vez da objetividade.

Contudo, o interesse pelo estudo descritivo, na linguística, firmou‑se nos princípios do século XX.
Saussure dividiu a linguística em diacrônica e sincrônica (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 3). O seu propósito
era o de que a linguística fosse uma disciplina autônoma, independente das outras disciplinas filosóficas,
lógicas, psicológicas.

Paralelamente se desenvolvia nos Estados Unidos outra abordagem de linguística descritiva,


desenvolvida pelos teóricos Franz Boas, Edward Sapir e Leonard Bloomfield.

A tendência da escola de Bloomfield, que a distingue das escolas descritivas


europeias derivadas de Saussure, foi pôr de lado o valor significativo das
formas linguísticas. O motivo, muitas vezes implícito, dessa tendência foi o
medo de entrar através do estudo das significações, novamente, na lógica
e na psicologia... Como, entretanto, a língua existe essencialmente como
meio de comunicação entre os homens e as significações linguísticas estão
evidentemente na base de tal comunicação, a gramática descritiva era assim
levada a um verdadeiro beco sem saída (CÂMARA, JÚNIOR, 1970, p. 3).

Câmara Júnior coloca‑se a questão: “resta‑nos o problema de saber se tal gramática é possível sem
levar em conta as considerações de ordem histórica. Ou, em outras palavras, se o estudo sincrônico é
possível sem um paralelo estudo diacrônico que lhe sirva de apoio.” (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 4). Na
opinião do autor, essa foi uma das grandes contribuições de Saussure – “Muitas vezes o conhecimento
histórico, aplicado à análise sincrônica, a torna absurda” (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 4). Ele argumenta
com o exemplo do verbo comer (do latim cumedere), cuja raiz é ‑ed. O autor mostra que, com a
evolução linguística, a partícula cum, que indicava companhia (pois comer era um ato social na cultura
romana – “comer com”), passou a ser a raiz do verbo comer, e houve a síncope do morfema ‑ed, que
desapareceu. Portanto, uma análise sincrônica desse verbo esclareceria melhor a sua estrutura (com +
e + r – raiz + vogal temática + morfema flexional de infinitivo) do que uma análise diacrônica, que, em
vez de esclarecer e simplificar a análise, complicaria um pouco a vida dos estudantes e seria de interesse
para estudiosos da evolução linguística, e não para a abordagem didática.

Câmara Júnior, em sua obra, apresenta uma gramática descritiva, sem implicações diacrônicas. Ele
esclarece ainda que a gramática descritiva precisa ser um tanto normativa na escola, mas esse caráter
normativo fica restrito à prática social escolar. “A Gramática normativa depende da linguística sincrônica
ou descritiva [...] A norma não pode ser uniforme e rígida. Ela é elástica e contingente, de acordo com
cada situação social específica” (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 6).

19
Unidade I

Refletindo sobre os problemas da gramática normativa, na perspectiva estruturalista, o autor aponta


três problemas do normativismo gramatical:

• imposição de regras praxistas como linguísticas;

• correção às cegas sem refletir linguisticamente sobre aquilo que é corrigido, criando confusão e
distúrbio;

• afirmação de que a norma é sempre a mesma, fixando um padrão social formal dominante como
o que deve ser seguido.

A solução, para Câmara Júnior, é pensar gramática descritiva desinteressada de preocupações


normativas. Se a língua é variável socialmente há de se escolher o campo de observação a ser descrito.
Se o objetivo é o escolar (como o livro desse autor), a descrição se baseará no “uso falado e escrito
considerado ‘culto’, ou melhor dito, adequado às condições ‘formais’ de intercâmbio linguístico”
(CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 6).

1.1.3 Variabilidade e invariabilidade na língua

A língua varia no espaço/território (dialetos regionais), na hierarquia social (dialetos sociais) e ainda
para um mesmo indivíduo conforme a situação de uso (registro). Para aprofundar a visão acerca dessa
discussão, o autor relembra duas correntes clássicas opostas:

• anomalistas: impossibilidade de se estabelecer regras gerais no uso linguístico;

• analogistas: possibilidade e necessidade dessas regras.

Estas correntes sempre foram um embaraço para a linguística. A técnica descritiva estruturalista tenta
neutralizá‑las. “A invariabilidade profunda, em meio de variabilidades superficiais, é inegável nas línguas”
(CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 7). A gramática descritiva/sincrônica tem por objetivo depreender e expor
esse sistema (estrutura), conforme defendeu Saussure: em toda gramática, ao lado de “regularidades”,
há “irregularidades”, ainda que estas sejam exceções da superfície.

O objetivo de Câmara Júnior nesse livro é descrever a língua portuguesa, no Brasil, como é usada
pelas classes ditas “cultas”, no registro “formal”, servindo de gramática normativa para a prática escolar.
O autor critica uma posição extremista (sobre a variabilidade das línguas) que considera o “idioleto” – a
língua de um único indivíduo (ou uma língua para cada indivíduo). Para ele, assim como para Saussure,
a língua está socializada. O intercâmbio verbal requer pelo menos dois comunicantes.

Sobre a diferença entre fala e escrita, o autor enfatiza que o aluno chega à escola na condição
satisfatória de falante e lá deve aprender a escrita de um padrão culto que ele não conhece, mas a
escola tem a ilusão de que ensinar‑lhe a escrita culta é ensiná‑lo a falar, falar bem e corretamente
(tradição normativa clássica). Entretanto, trata‑se de duas modalidades diferentes, e às vezes um aluno
fala muito bem, mas não consegue escrever bem, e vice‑versa. A escola supõe que ensinando a escrever
20
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

também ensine a falar satisfatoriamente, baseada numa crença clássica: “a arte de escrever e falar
corretamente como finalidade da gramática”.

A escola inverte os papéis, em função da nossa sociedade dita “civilizada”, pois, prioriza a escrita
(como superior) em detrimento da fala (como inferior), esquecendo que a escrita decorre da fala, e
não o contrário. Portanto, a fala não pode ser secundária. A crença de que “a escrita é a roupagem da
fala” é preconceituosa. Um exemplo, conforme o autor, é o de que vários grupos indígenas (inclusive
do Brasil), depois de fracassadas tentativas de alfabetização em línguas oficiais impostas, conseguiram
ser alfabetizados a partir da produção de cartilhas em sua língua materna. A aquisição da escrita deve
referenciar‑se pela cultura social e ideológica do falante.

Isso nos impõe a tarefa de fazer a descrição (mesmo tendo em vista um fim
escolar) em função da língua oral. Ora, paradoxalmente, nem em relação à
“fonética”, ou estudos dos sons vocais, isto se dá de maneira coerente em
nossas gramáticas. (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 11).

1.1.4 A técnica da descrição linguística

Os gramáticos greco‑latinos analisavam a língua a partir da unidade do vocábulo como realidade


linguística fonológica, morfológica e semântica. Entretanto, o vocábulo se decompõe em formas
mínimas: os morfemas. A partir de uma reunião de morfemas se constituiriam os vocábulos, que, por sua
vez, agrupam‑se em frases. Câmara Júnior (1970), deslocando‑se da posição inicial do estruturalismo
saussureano, afirma que a frase não é a unidade máxima de análise, dado que esta se junta “a mais uma,
ou a várias, para constituir o discurso”, embora a técnica descritivista não costume ir além da frase”
(CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 13).

O morfema é a menor unidade significativa da língua e pode ser de duas naturezas: o morfema
lexical (o cerne do vocábulo – estrel‑) e o morfema gramatical (configura estruturalmente o vocábulo
– re + cont + a + ra + m). O morfema lexical tem relação com o mundo biossocial da expressão na
língua. O morfema gramatical tem três funções na língua:

• indica classificações formais;

• relaciona os vocábulos dentro da sentença;

• marca pela oposição presença‑ausência relações estabelecidas na língua.

São os morfemas gramaticais, sistemas mais ou menos fechados, que


constituem a gramática da língua. Os morfemas lexicais constituem uma
série aberta, que, no núcleo dos [...] conjuntos léxicos, se alinham nos
dicionários (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 15).

21
Unidade I

Conforme enfatiza o autor, a dupla articulação da linguagem assim se estabelece:

• segunda articulação = fonologia: os fonemas são os elementos mínimos indivisíveis;

• primeira articulação = morfossintaxe: os morfemas são os elementos mínimos indivisíveis.

A variabilidade linguística manifesta‑se tanto na primeira (alomorfes = estrela/estelar, gatinho/cãozinho)


quanto na segunda articulação (alofones = posição átona/tônica das vogais, o “r” paulista e o carioca).

Mais uma vez, o autor chama a atenção para um exemplo que corrobora a sua opção pela
descrição estruturalista sincrônica da língua. Trata‑se do problema da homonímia – canto (verbo) e
canto (substantivo) –, em relação ao conceito de polissemia – uma forma com variações de sentido:
cabo (acidente geográfico) e cabo (posto das Forças Armadas). Como distinguir uma coisa da outra? A
homonímia teria a mesma forma em português, cada uma derivada de uma raiz diferente. A polissemia
teria dois sentidos para a mesma forma que também é derivada da mesma raiz.

Aí se encontra uma possível justificativa para a intromissão da diacronia nos estudos sincrônicos
pela via da etimologia das palavras. Entretanto essa possibilidade não é segura, pois algumas palavras
não têm registro etimológico exato: pata (membro de locomoção) e pata (fêmea do pato) podem vir de
raízes diferentes, mas também há a possibilidade de virem da mesma raiz onomatopaica.

Câmara Júnior (1970) afirma ser o critério sincrônico o de melhor uso na descrição gramatical, até mesmo
deste problema de homonímia versus polissemia: “a solução, que parece exata, é partir da distribuição
das formas [...] A distribuição diferente indica homonímia. A mesma distribuição é sinal de polissemia”
(CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 18) – cabo é uma forma polissêmica e canto é uma forma homônima.

1.2 Diferentes concepções de linguagem, de ensino e de gramática

Preparamos, para essa discussão, uma retomada e uma reflexão sobre importantes concepções de
linguagem, de gramática e de ensino que sustentam as teorias linguísticas e as práticas de ensino de
língua em geral.

Conforme sintetiza Travaglia (2006), grande é a reflexão acerca dos problemas com o ensino de língua e
gramática e seus conhecidos fracassos. Dentre tantos fatores que concorrem para a composição desse quadro,
é necessário ao pesquisador e professor estar atento às concepções teóricas que fundamentam a pluralidade
de perspectivas sobre a linguagem, o ensino, a gramática. No sentido de tentar esclarecer didaticamente esse
quadro e de seguir em busca de soluções mais efetivas para o ensino, de modo mais consciente e profundo, o
autor nos apresenta as importantes diferenças entre as concepções supramencionadas.

1.2.1 Objetivos do ensino de língua materna

O autor propõe a pergunta: “Para que se dá aulas de uma língua para seus falantes?” ou “Para que
se dá aulas de português para falantes de português?”. Para essa pergunta ele dá quatro respostas que
configuram os quatro mais importantes objetivos do ensino de português:
22
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

• O ensino de língua materna justifica‑se pelo objetivo de desenvolver a competência comunicativa


dos alunos (falante, escritor/ouvinte, leitor). É necessário desenvolver a capacidade de empregar
a língua de forma adequada nas diferentes situações de comunicação. Conforme o autor, a
competência comunicativa compõe‑se de duas habilidades: a gramatical/linguística e a textual.
A primeira diz respeito à capacidade que todo falante tem de gerar sequências linguísticas
gramaticais adequadas, e tal competência está ligada ao que Chomsky chamou de criatividade
linguística, em que, a partir de um número finito de regras na língua, o falante pode criar um
número infinito de enunciados gramaticais. A segunda habilidade relaciona‑se com a capacidade
que tem o falante de produzir e compreender textos bem‑formados, possuindo assim capacidade
formativa (produzir e compreender os mais diversos tipos de texto, avaliando a sua boa ou má
formação), capacidade transformativa (reformular, parafrasear, resumir, enfim, modificar textos
de diferentes maneiras e com diferentes finalidades) e capacidade qualificativa (tipificar os
diferentes tipos de texto – anedota, reportagem, receita, carta, narração, descrição, dissertação,
discurso religioso, discurso político, artigo científico etc.). Tal objetivo está fundamentado, com
papel relevante, nos esforços teóricos da linguística textual (TRAVAGLIA, 2006, p. 17‑8).

• O ensino de língua materna justifica‑se pelo objetivo de levar o aluno a dominar a norma culta/
padrão e ensinar a variedade escrita da língua, uma vez que o aluno, ao chegar à escola, já
domina o português, ao menos coloquialmente, no que diz respeito à fala. É de se concordar que
esses objetivos são importantes, sobretudo, considerando questões sociais, políticas e culturais
relacionadas ao domínio dos usos mais cultos e formais da linguagem.

Todavia, se entendemos que a variedade culta, padrão, formal da língua,


bem como sua forma escrita[,] são formas adequadas ao uso apenas em
determinados tipos de situação de interação comunicativa, temos de
admitir que esses objetivos são mais restritos que o desenvolvimento da
competência comunicativa [subsumidos, portanto na primeira resposta/
objetivo] (TRAVAGLIA, 2006, p. 19).

• Conforme Travaglia (2006, p. 20), o ensino de língua materna justifica‑se pelo objetivo de “levar
o aluno ao conhecimento da instituição linguística, da instituição social que a língua é,
ao conhecimento de como ela está constituída e de como funciona (sua forma e função)”. Tal
conhecimento também é importante no sentido de que o aluno tem direito de tomar conhecimento
das instituições mais importantes da sociedade, como “casamento, religiões, justiça, Congresso,
instituição bancária” e, portanto, da língua, que também é uma importante instituição social e faz
parte do campo da “informação cultural”. Assim como o aluno deve saber que a água ferve a 100
graus, que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil... Também deve saber que “dançar” é um verbo.

• O ensino de língua materna justifica‑se pelo objetivo de ensinar o aluno a pensar, a refletir, a
raciocinar sobre a linguagem de forma científica. Aqui entra o trabalho com as atividades
metalinguísticas. Como defende Perini (1988, p. 24 apud TRAVAGLIA, 2006, p. 20), esse objetivo
estaria no “campo do desenvolvimento das habilidades de observação e de argumentação acerca
da linguagem”. Tal habilidade, evidentemente, é importante e necessária em todos os campos do
conhecimento, e não somente nos estudos da linguagem.
23
Unidade I

1.2.2 Concepções de linguagem

Para compreender o fenômeno da linguagem e consequentemente as diferentes concepções de


gramática e de ensino de língua é fundamental levar em consideração que, ao longo da história dos
estudos da linguagem, a concepção de linguagem mudou. A maneira pela qual se concebe a linguagem
tem tudo a ver com as concepções de ensino e de gramática que sustentam o trabalho feito na escola.
A fim de que esses pressupostos sigam esclarecidos, apresentamos agora as principais concepções de
linguagem que permearam os estudos linguísticos e os tipos de ensino de língua que se apresentam nas
escolas. Conforme sintetiza Travaglia (2006), há basicamente três concepções de linguagem:

• Linguagem como expressão do pensamento: “as pessoas não se expressam bem porque não
pensam [bem]. A expressão se constrói no interior da mente, sendo sua exteriorização apenas
uma tradução. A enunciação é um ato monológico e individual.” (TRAVAGLIA, 2006, p. 21). Tal
concepção entende que há regras relacionadas ao bem falar e ao bem escrever e que a gramática
prescreve a língua como ela tem de ser. É a visão que sustenta os pressupostos da gramática
tradicional clássica, concebida inicialmente pela visão greco‑romana e que perdurou através
dos séculos instituindo muitos preconceitos linguísticos e um olhar pouco científico e pouco
descritivo da diversidade do fenômeno da linguagem.

• Linguagem como instrumento de comunicação: “nessa concepção a língua é vista como um


código, ou seja, como um conjunto de signos que se combinam segundo regras, e que é capaz
de transmitir uma mensagem, informações de um emissor a um receptor” (TRAVAGLIA, 2006, p.
22). Tal concepção orientou os estudos linguísticos no campo estruturalista de Saussure, isolando
a língua da fala, e no gerativismo de Chomsky, separando a competência do desempenho. Desse
modo, essa visão monológica, formalista e imanente da língua desconsiderou a importância dos
sujeitos, interlocutores da linguagem e das situações de uso da língua, atravancando a investigação
da linguagem como um fenômeno efetivamente dialógico, histórico e social. Embora já seja um
avanço em relação à concepção anterior, nessa concepção,

o falante tem uma mensagem em sua mente a transmitir a um ouvinte [...]


para isso ele a coloca em código [...] e a remete para o outro através de um
canal [...] O outro recebe os sinais codificados e os transforma de novo em
mensagem. É a decodificação (TRAVAGLIA, 2006, p. 22).

• Linguagem como processo de interação: o falante realiza ações na linguagem e atua sobre o
interlocutor. “A linguagem é pois um lugar de interação humana, de interação comunicativa pela
produção de efeitos de sentido entre interlocutores, em dada situação de comunicação e em um
contexto sócio‑histórico e ideológico” (TRAVAGLIA, 2006, p. 23). Os sujeitos da linguagem ocupam
lugares sociais e falam/ouvem nesses espaços com base no que a sociedade estabelece/determina
para os diferentes papéis sociais. Nesse sentido, considerando o que nos ensinou Bakhtin, a
linguagem é essencialmente e constitutivamente dialógica. Tal concepção representa os estudos
da linguística da enunciação em geral, incluindo linguística textual, teorias do discurso, análise da
conversação, semântica argumentativa e pragmática.

24
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

1.2.3 Concepções e tipos de gramática

Travaglia (2006) levanta a questão “O que se entende por gramática?” e apresenta as concepções de gramática
em suas diferentes perspectivas que levam a diferentes respostas para tal pergunta. O autor apresenta:

Quadro 5 – Três concepções de gramática

Normativa Descritiva Internalizada


Manual com regras de bom uso para
bem falar e escrever. Variedade culta Aprendida pelo falante a partir das
padrão. O que não está de acordo diversas situações comunicativas em
A língua como ela é
com as regras é erro. O modelo são sociedade que ele experimenta ao
os grandes escritores consagrados. longo da vida
Deprecia as outras variedades
• Estética: elegância, expressividade, • Estudos formalistas: • Saber gramática não depende da
beleza escolarização, nem do aprendizado
— gramática estruturalista (língua versus fala) sistemático, mas diz respeito às
• Elitista: uso de prestígio versus regras de uso da língua que o
uso popular, estratificação — gramática gerativista (competência versus
desempenho) falante de fato aprendeu e das
social, condenação de vícios de quais lança mão para interagir e se
linguagem A gramática “é um sistema de noções mediante comunicar nas diferentes situações
• Política: purismo e vernaculidade, as quais se descrevem os fatos de uma língua, linguísticas
prestígio para as origens clássicas permitindo associar[,] a cada expressão dessa
língua, uma descrição estrutural e estabelecer • Não existem livros dessa gramática
(grega e latina), condenação
aos estrangeirismos e tudo o suas regras de uso, de modo a separar o • Não há erro linguístico, mas
que ameaça a nacionalidade e a que é gramatical do que não é gramatical” a inadequação da variedade
identidade da língua (FRANCHI, 1991 apud TRAVAGLIA, 2006, mal‑utilizada numa determinada
p. 27). Considera‑se a homogeneidade do situação de interação (por exemplo,
• Comunicacional: foco na sistema, que é formal e abstrato. contar piada num enterro), ferindo
comunicação, facilidade de regras sociais
compreensão, clareza, precisão e • A partir de 1960 ganham corpo os estudos
concisão, evita o hermetismo, a de natureza funcionalista, discursiva, • Quando o falante se expõe a
dubiedade, a prolixidade enunciativa: uma boa diversidade de situações
— linguística textual; comunicativas, ele aprende a
• Histórica: a tradição é o critério reconhecê‑las e reproduzi‑las,
para excluir o que não seja culto, — análise do discurso; desenvolvendo um bom nível destas
concepção naturalista da língua, a importantes competências:
sociedade precisa cuidar da língua — semântica argumentativa;
para que ela não definhe e morra, — análise da comunicação: — competência gramatical ou
a gramática deve ser imutável linguística;
— sociolinguística;
— competência textual;
— pragmática.
— competência discursiva.
“Podem ser reunidas sob o título geral de
linguística da enunciação ou do discurso e
[...] tratam não só do sistema formal, mas se
dedicam a fazer também uma linguística da
fala que considera a variação linguística, bem
como a inserção e relação da língua com a
situação de comunicação” (TRAVAGLIA, 2006,
p. 28)

Fonte: Travaglia (2006).

1.2.4 Tipos de gramática

O autor descreve que há diferentes tipos de gramática e que o trabalho com cada um desses tipos resulta
em diferentes atividades. Os três conceitos anteriormente apresentados já designam os descritos a seguir.

25
Unidade I

• Três tipos correlatos (TRAVAGLIA, 2006, p. 30‑2):

— Normativa: estuda apenas os fatos de língua padrão/culta, destaca‑se como norma oficial,
prioriza a escrita, entende os fatos de língua oral como idênticos aos da escrita, dita regras de
como falar e escrever bem, define o que se deve e o que não se pode falar/escrever, segundo
critérios rígidos de correção linguística. É a gramática na qual se baseia tradicionalmente o
ensino nas escolas.

— Descritiva: descreve e registra uma determinada variedade de língua em um dado momento


de sua existência. O linguista descreve a língua como ela é em qualquer variedade, por meio
da observação e da explicitação de seus mecanismos e estruturas, construindo hipóteses
que expliquem seu funcionamento. Duas grandes correntes que se destacam nesse trabalho
pioneiramente são o estruturalismo e o gerativismo, mas após a década de 1960 outras teorias
de descrição gramatical têm ganhado espaço no que se refere aos estudos funcionalistas,
discursivos, enunciativos etc.

— Internalizada: diz respeito à competência linguístico‑gramatical, textual e comunicativa


internalizada do falante. Na verdade, é essa gramática que serve de objeto de estudo aos dois
outros tipos anteriores, sobretudo à descritiva.

• Três tipos relativos à explicação de estrutura e funcionamento da linguagem (TRAVAGLIA, 2006,


p. 33):

— Implícita: gramática inconsciente do falante que inclui unidades, regras, princípios de todos
os níveis linguísticos de constituição e funcionamento (fonológico, morfológico, sintático,
semântico, pragmático e discursivo‑textual). Essa gramática possibilita o uso automático da
língua.

— Explícita ou teórica: refere‑se a todos os estudos linguísticos que, por meio da atividade
metalinguística, explicitam a estrutura, a constituição e o funcionamento da língua. Todas as
gramáticas normativas e/ou descritivas são gramáticas explícitas e/ou teóricas.

— Reflexiva: diz respeito à gramática em explicitação, ou seja, em processo de investigação


propriamente (mais do que aos resultados definidos). Representa as atividades de observação e
reflexão sobre a língua em busca de investigar suas unidades e regras, bem como seus princípios.

Correlatas a estes tipos, vejam‑se as atividades (TRAVAGLIA, 2006, p. 30‑3; 35):

• Atividade linguística: o falante faz ao estabelecer uma interação comunicativa (adequação do seu
texto à situação, desenvolvimento do tópico discursivo, construção textual etc.) – está relacionada
à gramática internalizada/implícita que o falante aprendeu ao longo da sua vida.

• Atividade epilinguística: pode ser ou não consciente e se refere à interrupção do tópico discursivo
para a marcação/descrição dos próprios recursos linguísticos e demais aspectos da interação
26
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

comunicativa (como hesitações, correções, pausas, antecipações, lapsos, repetições, controle


da tomada de turno). Quando inconsciente, diz respeito à gramática implícita do uso; quando
consciente, trata‑se da gramática reflexiva, pois, em princípio, há uma reflexão sobre os
elementos da língua quando estes se destacam na interação comunicativa.

• Atividade metalinguística: refere‑se aos procedimentos em que se usa a língua para analisar a
própria língua – metalinguagem (linguagem sobre linguagem). É uma análise sempre consciente
e está relacionada com a gramática explícita ou teórica. É a construção dos conhecimentos
teóricos e científicos sobre a gramática. Representa “um conjunto de elementos linguísticos
próprios e apropriados para se falar sobre a língua. Nesse caso, a língua se torna o assunto, o
tema, o tópico discursivo da situação de interação” (TRAVAGLIA, 2006, p. 35).

Outros tipos definidos pelos seus objetos/objetivos de estudos:

• constrativa ou transferencial: descreve duas línguas ao mesmo tempo – em comparação uma com
a outra (muito usada para ensino de línguas estrangeiras – diferenças e semelhanças);

• geral: estudo baseado na comparação do maior número possível de línguas para estudar‑lhes todos
os fatos linguísticos realizáveis e que podem vir a se realizar (formula possibilidades previsíveis em
todas as línguas humanas);

• universal: de base comparativa, objetiva formular, descrever e classificar princípios observados e


realizados universalmente, as características comuns a todas as línguas;

• histórica: estuda uma sequência de fases evolutivas de um idioma, sua origem e sua evolução até
o estado atual;

• comparada: estuda uma sequência de fases evolutivas de várias línguas em busca de pontos em
comum (as relações de parentesco nas línguas românicas – sânscrito, latim etc.) (TRAVAGLIA,
2006, p. 35‑7).

1.2.5 Tipos de ensino

Com base em Halliday, McIntosh e Strevens (1974, p. 257‑87), Travaglia (2006) sintetiza que é possível
realizar três tipos de ensino de língua. O autor adverte que tais tipos de ensino estão explicitamente
fundamentados nas três concepções de linguagem e nas três concepções de gramática. São estes:

• Ensino normativo: implica levar o aluno a “substituir seus próprios padrões de atividade linguística
considerados errados/inaceitáveis por outros considerados corretos/aceitáveis”. (TRAVAGLIA,
2006, p. 38). Corresponde à primeira concepção de linguagem, a que entende a linguagem como
expressão do pensamento. Também corresponde ao segundo objetivo de ensino (domínio da
escrita culta) e ainda à concepção de gramática normativa.

27
Unidade I

• Ensino descritivo: quer mostrar como a linguagem “funciona e como determinada língua em
particular funciona. Fala de habilidades já adquiridas sem procurar alterá‑las, porém mostrando
como podem ser utilizadas [...] Trata de todas as variedades linguísticas.” (TRAVAGLIA, 2006, p.
39). Corresponde à segunda concepção de linguagem (Instrumento de comunicação). Também
corresponde ao terceiro objetivo de ensino, embora envolva inclusive aspectos do primeiro e do
segundo objetivo (um pouco de normatividade, mas não só em relação à escrita culta) e ainda
corresponde à gramatica descritiva.

• Ensino produtivo: busca ensinar “novas habilidades linguísticas” ao aluno para que este entenda e
estenda “o uso da língua materna de maneira mais eficiente”. Assim, não pretende “alterar padrões
que o aluno já adquiriu, mas aumentar os recursos que possui e fazer isso de modo tal que tenha
a seu dispor, para uso adequado, a maior escala possível de potencialidades de sua língua, em
todas as diversas situações em que tem necessidade delas” (HALLIDAY; MCINTOSH; STREVENS,
1974, p. 276 apud TRAVAGLIA, 2006, p. 39‑40). Corresponde à terceira concepção de linguagem,
a que defende a interação e o dialogismo. Também corresponde ao primeiro e ao quarto objetivo
de ensino (competência linguística e textual e reflexão crítica sobre a língua) e ainda à concepção
voltada para a interação comunicativa, que também considera a gramática internalizada do aluno.

1.3 Perspectivas enunciativas de análise da linguagem: contribuições de


Bakhtin, Benveniste e Ducrot

Os estudos enunciativos da linguagem, mesmo ainda muito influenciados pela tradição estruturalista,
abrem espaço para as diferentes investigações acerca do texto e do discurso, pois põem em xeque o
postulado de que a frase (sentença/proposição possível no sistema linguístico abstrato) seria a sua maior
unidade de análise e abrem espaço para a configuração da subjetividade na/da linguagem, no sentido de
que considerar a enunciação é considerar também o enunciador e sua contraparte, o enunciatário. Esses
estudos legam uma grande contribuição às investigações textuais e discursivas, uma vez que resgatam
a subjetividade/o sujeito/o falante de volta à investigação linguística.

Partindo do princípio de que a produção de sentidos na linguagem não se verifica em relação ao


estado de coisas, mas se realiza a partir das enunciações anteriores e no acontecimento enunciativo,
faremos algumas observações sobre o fenômeno da enunciação. Para isso, observaremos algumas
reflexões bakhtinianas sobre enunciação e polifonia, bem como as considerações de Benveniste sobre a
enunciação e os dispositivos teóricos concernentes à Teoria Polifônica ducrotiana.

As principais teorias linguísticas da enunciação pautam‑se pelo confronto (definições e redefinições)


das perspectivas de:

• Bakhtin em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2009), que trata a enunciação na esfera social
perante a filosofia da linguagem;

• Benveniste em Problemas de Linguística Geral II (1989), que considera a enunciação a partir da


subjetividade na linguagem;

28
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

• Ducrot em O Dizer e o Dito (1987), que define enunciação a partir de uma atividade psicofisiológica,
ou seja, as influências sociais, como um segmento de discurso e como um aparecimento
momentâneo de um enunciado.

1.3.1 A enunciação sob a ótica de Bakhtin

Para uma primeira abordagem de enunciação, partimos das considerações de Bakhtin (2009), que
concebe a linguagem como dialógica (e não monológica/monofônica), fundamentando‑se no produto
ideológico de ordem social, sob as influências do marxismo e da filosofia da linguagem. A teoria
bakhtiniana considera que a enunciação dá‑se ideologicamente, não possuindo um sentido exato,
unicentrado, transparente, veiculado enquanto informação por uma única voz.

Bakhtin (2009), aprofundando‑se na perspectiva dialética da linguagem, ressalta a consideração de


um sistema linguístico de normas imutáveis e assim analisa criticamente três diferentes perspectivas
diante da linguagem como sistema de normas, em relação ao fenômeno da enunciação:

• O subjetivismo individualista (da consciência individual), a partir do qual a língua se apresenta


como sistema de normas imutáveis e rígidas. Bakhtin (2009) considera que, ao analisar tal sistema,
profundamente, por um ângulo objetivo, é possível notar que tal proposta não procede, por não
se ter encontrado indício desse sistema fechado de normas imutáveis.

• O objetivismo abstrato, em que, conforme Bakhtin (2009), podemos entender a língua podendo
ser percebida distintamente do modo pelo qual se apresenta em um contexto individual num
dado momento, ou seja, a língua se apresenta como uma corrente contínua, passível de evolução,
quando comparada ao imutável, (tal teoria define que todo sistema de normas sociais existe caso
esteja relacionado à consciência subjetiva dos indivíduos e da coletividade em que essas normas
se regulam).

• A relação entre a consciência subjetiva e a língua como sistema objetivo de normas incontestáveis
é desprovida de sustentabilidade; assim, a teoria bakhtiniana não considera a língua como sistema
de normas imutáveis, pois pensar a natureza objetiva da língua, afirma Bakhtin (2009), é incorrer
num grave erro, já que, fechada em seu sistema imutável, a língua não abriria espaço para ser
observada a partir das suas características mais essenciais, no que tange ao dialogismo e à
polifonia nela constitutivos de subjetividade.

Conforme Bakhtin (2009), ao entrelaçar a relação perfeitamente objetiva que a língua constitui com
a consciência relativamente individual de um sistema de normas imutáveis, torna‑se possível entender
que esse pode ser o modo de existência da língua para uma comunidade, embora o autor ressalte que
tais ideias não se definem claramente.

Dessa forma, torna‑se evidente para Bakhtin (2009) o questionamento sobre se a língua existe para
a consciência subjetiva do locutor unicamente como sistema objetivo de formas normativas intocáveis,
pois:

29
Unidade I

Devemos, agora, perguntar‑nos se a língua existe realmente para a consciência


subjetiva do locutor unicamente como sistema objetivo de formas normativas
e intocáveis. O objetivismo abstrato captou corretamente o ponto de vista da
consciência subjetiva do locutor? É realmente este o modo de existência da
língua na consciência linguística subjetiva? A essa questão somos obrigados
a responder pela negativa. A consciência subjetiva do locutor não se utiliza
da língua como de um sistema de formas normativas. Tal sistema é uma
mera abstração, produzida com dificuldade por procedimentos cognitivos
bem‑determinados. O sistema linguístico é o produto de uma reflexão sobre
a língua, reflexão que não procede da consciência do locutor nativo e que
não serve aos propósitos imediatos da comunicação. Na realidade, o locutor
serve‑se da língua para suas necessidades enunciativas concretas (para
o locutor, a construção da língua está orientada no sentido da enunciação
da fala). Trata‑se, para ele, de utilizar as formas normativas (admitamos, por
enquanto, a legitimidade destas) num dado contexto concreto. Para ele, o
centro de gravidade da língua não reside na conformidade à norma da forma
utilizada, mas na nova significação que essa forma adquire no contexto
(BAKHTIN, 2009, p. 93‑4, destaque nosso).

Partindo dessa afirmação, em relação ao uso que o locutor faz da língua para suas necessidades
enunciativas concretas, podemos compreender que Bakhtin (2009) discorre sobre alguns conceitos
básicos definidos por ele como:

• a língua: não se define como um sistema de normas imutáveis, estagnadas, mas sim como uma
corrente passível de evolução contínua que se constitui perante o social, fazendo‑se, desta forma,
variável e flexível em determinado contexto, no que se refere às necessidades de seus falantes;

• a enunciação: define‑se pela comunicação verbal, que se estrutura por meio da relação com
outras enunciações, em um contexto ideológico, uma vez que a enunciação pode ser entendida
como resultado da fala, já que esta tem a função de produzir compreensão.

Ao abordarmos as concepções de Bakhtin (2009) sobre língua, fala e enunciação, é de suma


importância destacar que em seu trabalho teórico ele enfatiza que a enunciação se constitui por
meio das relações que esta estabelece com outras enunciações, ainda na mesma ideologia, ou,
como explana o próprio autor, em um “domínio ideológico”. (BAKHTIN, 2009. p. 97).

Referente, ainda, à enunciação, podemos destacar, segundo a perspectiva de Bakhtin (2009), que
toda enunciação efetiva, seja ela de que natureza for, pode vir a concordar com um fato qualquer ou
discordar dele, uma vez que este pode ser acompanhado de clareza ou não. Assim, podemos acrescentar
que, para Bakhtin (2009), sua teoria da enunciação se apresenta de forma social, e não individual, ao
passo que se torna importante apontarmos estas afirmações nas suas próprias palavras.

Na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação,


não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito
30
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

do termo, não pode ser explicado a partir das condições psicofisiológicas do


sujeito falante. A enunciação é de natureza social (BAKHTIN, 2009. p. 109).

Para o locutor, o que importa é aquilo que permite que a forma linguística figure num dado
contexto, aquilo que torna um signo adequado às condições de uma situação concreta dada, não tendo
importância a forma linguística como sinal estável e sempre igual a si, mas tendo importância o fato de
que o signo é sempre variável e flexível.

De fato, podemos ainda mencionar que a enunciação, segundo Bakhtin (2009), não é capaz de
trabalhar as formas de composição do todo, ou seja, não relaciona os elementos que a constituem e
as formas que a inserem, uma vez que essa enunciação só pode se constituir quando se relaciona com
outras enunciações.

Conforme a Teoria da Enunciação de Bakhtin (2009), o processo de decodificação (compreensão)


não pode ser confundido com o processo de identificação, já que o signo é decodificado, e o sinal,
identificado. Este é uma entidade imutável, não podendo substituir, refletir, nem refratar, dentre outras
ações. De fato, o sinal não pertence ao domínio ideológico, mas sim aos instrumentos simbólicos de
produção, no sentido amplo do termo.

Você pode observar que enquanto uma forma linguística for apenas um sinal e for percebida pelo
receptor como tal, será possível constatar que o sinal não terá nenhum valor linguístico, já que a pura
sinalidade não existe, isto é, a forma é orientada pelo contexto, que, por sua vez, já constitui um signo,
deixando‑nos entender que, assim como um elemento torna a forma linguística, um signo não é a sua
identidade como sinal, e sim sua mobilidade específica.

Para exemplificar essa discussão, tomemos o conhecido “sinal” de trânsito que se refere à mensagem
“Não estacione”.

Figura 1

Como sinal, ele é facilmente identificado, mas não há como referi‑lo em sua pura sinalidade, já que
sua mobilidade no contexto social é tal que o próprio sinal já em sua forma orientada pelo contexto
(na linguagem do trânsito) se constitui em signo dentro de sua simbologia ideológica, histórica e social.

31
Unidade I

Ao discorrermos sobre língua, fala e enunciação sob a ótica de Bakhtin (2009), é prudente destacarmos
sua posição sobre a Teoria da Enunciação e seus respectivos problemas sintáticos. No que diz respeito
à Teoria da Enunciação, o problema da sintaxe pode prejudicar a compreensão da língua e de sua
evolução, o que consequentemente acarreta um mau uso quanto às formas devidas dos atos de fala, dos
quais resulta o produto da enunciação: o enunciado, conforme a teoria bakhtiniana.

Perceba que, conforme Bakhtin (2009), a Teoria da Enunciação considera que o processo mais difícil
da decodificação dá‑se nas análises sintáticas do discurso, que de fato constroem o corpo da enunciação.
Como essas análises são sempre vistas por meio da construção fonética e morfológica, tornam‑se algo
complicado quando a intenção é trazê‑las para o objetivismo abstrato. A dificuldade quanto às formas
sintáticas (que também ocorre tanto no nível da construção fonética quanto no da morfológica) deve‑se
ao fato de que tais formas são mais concretas que as demais. Essas formas sintáticas são estreitamente
ligadas às condições de fala, e é exatamente por isso que a teoria bakhtiniana ressalta a prioridade das
formas sintáticas sobre as formas fonético‑morfológicas.

A Teoria da Enunciação de Bakhtin (2009) ressalta que, devido à falta de interesse pelos fenômenos
da enunciação na linguística estrutural, não foi possível tratar da compreensão real, concreta e não
escolástica das formas sintáticas no funcionamento enunciativo. Para o linguista estrutural é mais
confortável lidar com a questão da operação no centro da unidade frasal, na qual é possível ainda
considerar que quanto mais o linguista se aproxima das fronteiras do discurso, mais ele se aproxima
da enunciação, e sua posição não se torna segura (mas sim instável), uma vez que a nenhuma dessas
categorias linguísticas convém a determinação do todo, já que estas só são aplicáveis no território da
enunciação.

Desta forma, para Bakhtin (2009), o interesse da Teoria da Enunciação dá‑se não somente em relação
aos problemas sintáticos, mas também à composição dos parágrafos que constituem um discurso e aos
demais níveis de relação das partes com o todo, importando o que precisamente interessa para analisar
o entrelaçar da voz do falante com a voz do ouvinte, por meio da materialidade enunciativa.

De fato, a teoria bakhtiniana se atém ao olhar objetivo no que diz respeito ao estudo das formas
da comunicação verbal e das formas correspondentes da enunciação completa, já que estas falam
sobre o sistema dos parágrafos e todos os problemas análogos. Em outras palavras, Bakhtin (2009) se
interessa pelos esquemas linguísticos envolvendo discursos direto, indireto e indireto livre, com suas
modificações e suas variantes que são encontradas na língua e que servem como transmissores das
enunciações de outrem (e que integram enunciações de outrem), abrindo a possibilidade do Método
Linguístico‑sociológico.

Quanto aos tipos de discursos apontados, com os problemas sintáticos, a teoria bakhtiniana julga
necessária uma abordagem sobre a conceituação de discurso pela Teoria da Enunciação. Esta irá explicar
o funcionamento do discurso de outrem a partir de seus esquemas específicos, realizados sob a forma
de variantes específicas, incluindo as mudanças possivelmente encontradas nas fronteiras gramaticais
e estilísticas, valendo‑se da forma de transmissão do discurso de outrem, que se define numa relação
funcional de uma enunciação com a outra, diante das possíveis edificações da própria língua. Essa
abordagem do discurso relatado constitui‑se em seus esquemas de base ou em variantes, embora a Teoria
32
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

da Enunciação ressalte que é definitivamente inacessível estabelecer uma fronteira entre a gramática e
a estilística, entre o uso do esquema gramatical e sua própria variante estilística. Para Bakhtin (2009):

O discurso indireto ouve de forma diferente o discurso de outrem; ele integra


ativamente e concretiza na sua transmissão outros elementos e matizes que
os outros esquemas deixam de lado. Por isso transposição literal, palavra
por palavra, da enunciação construída segundo um outro esquema só é
possível nos casos em que a enunciação direta já se apresenta na origem
como uma forma algo analítica – isso, naturalmente, dentro dos limites das
possibilidades analíticas do discurso direto. A análise é a alma do discurso
indireto (BAKHTIN, 2009, p. 159).

Dessa forma, segundo a Teoria da Enunciação de Bakhtin (2009), é de suma importância explanarmos
que a determinação das linhas de marca para definir o discurso indireto possui características que
exprimem uma tendência de apreensão ativa do discurso de outrem e que cada esquema recria, a partir
de seus métodos, a enunciação, proporcionando uma orientação particular. Uma vez que o discurso
indireto se dá de forma analítica, ele possui suas variantes, sendo a primeira o discurso indireto
analisador do conteúdo, a segunda o discurso indireto analisador da expressão e a terceira variante
a impressionista.

A primeira variante do discurso indireto pode ser compreendida como a apreensão da enunciação de
outrem no plano temático, excluindo o que não tiver significação temática, ou seja:

A variante analisadora do conteúdo abre grandes possibilidades às tendências


à réplica e ao comentário no contexto narrativo, ao mesmo tempo que
conserva uma distância nítida e estrita entre as palavras do narrador e as
palavras citadas. Graças a isso, ela constitui um instrumento perfeito de
transmissão do discurso de outrem em estilo linear (BAKHTIN, 2009, p. 161).

Referente à segunda variante do discurso indireto, a analisadora da expressão, esta pode ser entendida
como a integração, de forma indireta, das palavras e das maneiras de dizer do outro, tornando‑se assim
facilmente notória, justamente por sua especificidade se dar mediante ironia, humor ou uso de aspas.

A terceira variante do discurso indireto, a impressionista, transmite os pensamentos e os sentimentos


da personagem, ou seja, o discurso indireto desta, sendo utilizada pelo autor do discurso com uma
intencionalidade de focalizar para ressaltar e abreviar o tema que pretende abordar.

Quanto ao discurso direto (2009), Bakhtin menciona um emprego deste ou de uma de suas variantes
simultâneas, diante do ato de transposição inseparável dessa forma, o que torna justificável a sua
tendência analítica manifestar‑se principalmente pelo fato de os seus elementos serem emocionais e
afetivos. O discurso direto se diferencia do discurso indireto pelo emprego da entonação emocional (apelo
de convencimento), e a variante deste é constituída pela ambiguidade, empregada mais especificamente
na literatura.

33
Unidade I

A construção do discurso direto provém das marcas principais do discurso indireto, exatamente
pela natureza desse discurso se dar por meio de temas básicos que são antecipados pelos contextos
e evidenciados por entonações do autor ou das personagens. Essas entonações quase sempre são
acompanhadas por um enfraquecimento da objetividade do contexto narrativo.

Conforme Bakhtin (2009), o discurso direto e o discurso indireto formam um esquema misto quando
engendram o discurso indireto livre, o qual proporciona um discurso por substituição do contexto
narrativo em si para um contexto narrativo objetivo, ou seja, é a forma de discurso que o autor utiliza
para ressaltar seus conceitos apreciativos, que se dão também por meio de suas entonações.

Enfim, Bakhtin legou‑nos uma importante trilha de reflexões a respeito do dialogismo, da polifonia,
da enunciação, da interdiscursividade e até mesmo da noção de gênero textual e discursivo, defendendo
o princípio do dialogismo como constitutivo da linguagem e a natureza social da enunciação.

Para ele, a enunciação é o produto da interação dos indivíduos socialmente organizados, e ainda
que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social
ao qual pertence o locutor.

O termo diálogo deve ser entendido num sentido amplo, não apenas como a comunicação em voz
alta, de pessoas colocadas face a face, mas também como toda comunicação verbal, de qualquer tipo
que seja. “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros” (BAKHTIN, 2009, p.113), e
em todo enunciado descobriremos que está o outro em diferentes graus de alteridade.

Observação

Existe uma gama dos gêneros mais difundidos cotidianamente, tão


cristalizados, apresentando formas tão padronizadas (por exemplo, os
provérbios), que a expressão individual do locutor praticamente só pode
manifestar‑se na escolha do gênero.

Bakhtin (2009) ressalta que as palavras não são de ninguém, estão a serviço de qualquer locutor e
de qualquer juízo de valor, e podem mesmo ser totalmente diferentes, até mesmo contrárias. Conforme
o autor, em relação às fórmulas estereotipadas da vida corrente, os sistemas ideológicos constituídos da
moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam‑se a partir da ideologia do cotidiano, exercendo, por
sua vez, sobre esta, em retorno, uma forte influência e dando assim normalmente o tom a essa ideologia.

Barros (1997) sintetiza em um capítulo as principais contribuições de Bakhtin às teorias do discurso.


Assim, põe‑se a questão: “De que forma e por quais razões Bakhtin é considerado um precursor ou
antecipador de perspectivas teóricas tão diferenciadas?”. O trabalho da autora procura mostrar que
foram suas reflexões variadas sobre o princípio dialógico da linguagem que anteciparam e influenciaram
os estudos do texto e do discurso, tanto na própria concepção de texto (discurso, ou enunciado) como
objeto das ciências humanas quanto sobre o princípio dialógico e seus diferentes desenvolvimentos nas
diferentes teorias.
34
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

Em primeiro lugar, vamos acompanhar a reflexão crítica feita por Bakhtin (apud BARROS, 1997)
sobre a defesa do texto como objeto das ciências humanas. O autor defende (ao contrário da tradição
estruturalista) que a especificidade das ciências humanas está no fato de que seu objeto é o texto/
discurso, de modo que as ciências humanas voltam‑se para o homem como produtor de textos/discursos.
O homem é posto em evidência e se constitui como objeto de estudos por meio dos textos. Esse aspecto,
inclusive, distingue as ciências humanas das ciências exatas, que tratam o homem fora do texto. Como
ao próprio olhar de Saussure (2003, p. 15), “o ponto de vista cria o objeto”, cada ciência humana trata
de um objeto textual diferente, já que cada uma lança sobre o texto um olhar específico.

Ao tratar, em seus escritos, do texto como objeto das ciências humanas,


Bakhtin aponta já as duas diferentes concepções do princípio dialógico, a do
diálogo entre interlocutores e a do diálogo entre discursos, pois considera
que nas ciências humanas o objeto e o método são dialógicos (BARROS,
1997, p. 28).

De acordo com Bakhtin (2009), o texto se define como:

• objeto significante: o texto significa;

• produto da criação ideológica (da enunciação): contexto histórico, social, cultural etc.;

• funcionamento constitutivamente dialógico, consequente das duas características anteriores:


define‑se pelo diálogo entre interlocutores e com outros discursos/textos;

• materialidade única, não repetível: o arranjo de sua textura é singular (de cada um dos textos
produzidos).

Observação

O texto não existe fora da sociedade e não pode ser reduzido à sua
materialidade linguística (empirismo objetivista), nem diluído no estado
psíquico dos seus interlocutores, falante/ouvinte‑autor/leitor, (empirismo
subjetivista).

Veja que a linguística, entretanto, por fazer abstrações de suas formas de organização e de suas
funções sociais, ideológicas, por fazer dele, ainda, o seu objeto de análise, torna‑o sistematicamente,
teoricamente, repetível enquanto objeto. Nesse sentido, seria a linguística essencialmente uma ciência
humana? É o que pergunta Barros (1997) diante das reflexões propostas por Bakhtin. A autora busca
resposta para sua pergunta no próprio Bakhtin.

Em relação ao método, nas ciências humanas, Bakhtin (1992 apud BARROS, 1997) sustenta que se
trata da compreensão respondente:

35
Unidade I

• nas ciências naturais: o método busca um objeto;

• nas ciências humanas: o método busca um sujeito produtor de textos.

As ciências exatas são uma forma monológica do conhecimento: o intelecto


contempla uma coisa e pronuncia‑se sobre ela. Há um único sujeito: aquele
que pratica o ato de cognição (de contemplação) e fala (pronuncia‑se).
Diante dele, há a coisa muda. Qualquer objeto do conhecimento (incluindo
o homem) pode ser percebido e conhecido a título de coisa. Mas o sujeito
como tal não pode ser percebido e estudado a título de coisa porque, como
sujeito, não pode, permanecendo sujeito, ficar mudo; consequentemente, o
conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico (BAKHTIN, 1992, p. 403
apud BARROS 1997, p. 29).

Para o autor, as relações entre o sujeito da cognição (interpreta e compreende) e o sujeito das
ciências humanas (conhece um objeto) são de comunicação entre destinador e destinatário.

As reflexões de Bakhtin sobre as ciências humanas e a linguagem indicam


já algumas das razões que o tornaram precursor e antecipador dos estudos
do discurso. Seu ponto de partida, seu gesto inicial na concepção da
própria ciência é o de colocar o texto como fulcro, como lugar central de
toda investigação sobre o homem. Ainda hoje, muitos dos estudiosos da
linguagem têm dificuldade em aceitar isso, em reconhecer o papel do texto
(BARROS, 1997, p. 30).

Veja agora, conforme apresenta Barros (1997), alguns conceitos baseados no princípio dialógico,
teorizados por Bakhtin (e por outros autores a partir de seu legado) que são de alto valor para os estudos
do texto e do discurso.

O primeiro que colocamos em destaque é o conceito de dialogismo. Como foi enfatizado, a


concepção de linguagem defendida por Bakhtin é essencialmente dialógica. Se a ciência humana reúne
método e objeto dialógicos, suas ideias sobre o homem e suas práticas são definidas pelo dialogismo.
Conforme o autor, a alteridade (heterogeneidade) define o ser humano, pois o outro é imprescindível
para a sua constituição. É impossível pensar o homem – e, portanto, o sujeito – fora das relações que o
vinculam ao outro. Para Bakhtin, a vida é dialógica por natureza.

É nesse panorama que tomam forma as concepções dialógicas da linguagem e do discurso que
mais de perto interessam aos estudos do texto e do discurso. Por essa via, duas noções de dialogismo
relevam‑se para nossos estudos: o diálogo entre interlocutores e o diálogo entre discursos.

O diálogo entre interlocutores ingressa no campo dos estudos sobre a interação verbal entre sujeitos
e sobre a intersubjetividade. A respeito do dialogismo entre interlocutores, assegura Barros (1997, p.
30‑1), quatro aspectos devem ser destacados:

36
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

• a interação dos interlocutores é o princípio fundante da linguagem – não só a linguagem é


essencial para a comunicação, mas também a interação dos interlocutores funda a linguagem;

• a significação das palavras, o sentido do texto dependem da relação entre os sujeitos, pois
constroem‑se na produção e na interpretação dos textos;

• a intersubjetividade precede a subjetividade, já que a relação dos interlocutores funda a linguagem


e dá sentido ao texto, construindo os próprios sujeitos enredados no próprio texto que produzem;

• as observações feitas podem conduzir a conclusões precipitadas sobre a noção de sujeito defendida
por Bakhtin, considerando‑a “individualista” ou “subjetivista”. Na realidade, ele enxerga dois tipos
de sociabilidade: a relação entre os sujeitos (interlocutores em interação) e a destes sujeitos com
a sociedade que os abriga.

Considerando a natureza deste dialogismo interacional, reconhece‑se a contribuição de Bakhtin aos


estudos do discurso, da comunicação e da interação verbal, dentre os quais estão assinalados:

• a variação linguística, funcional, discursiva;

• a reversibilidade discursiva (e intersubjetiva);

• a construção dos interlocutores no diálogo;

• o jogo de imagens;

• os simulacros e as avaliações entre eles;

• a questão da competência dos sujeitos da comunicação.

Conforme enfatiza Barros (1997), os estudos da comunicação verbal não nasceram no seio
da linguística puramente ou das teorias do discurso, mas trilharam um percurso aberto pela Teoria
da Informação. Considere‑se que estes esquemas apresentavam lacunas por nunca abrangerem
suficientemente o funcionamento da comunicação.

A concepção bakhtiniana de comunicação é bastante diferente de como a Teoria da Informação a


concebe e, mesmo sendo‑lhe anterior, antecipa‑lhe algumas soluções para os seus principais problemas,
que acabaram servindo de escopo às críticas levantadas para a comunicação verbal por outros autores
em seu tempo.

Observação

A Teoria da Informação, nos anos 1950, influencia a linguística –


vejam‑se os esquemas de comunicação, de Karl Bühler a Jakobson, que
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Unidade I

incluíam funções da linguagem (poética, fática, metalinguística, referencial


etc.) e elementos‑chave nesse esquema (mensagem, emissor, destinatário).

Com base nas críticas já levantadas por Bakhtin, três são as principais objeções que se estabelecem no
que se refere aos esquemas de comunicação mencionados. Seguem junto a elas as reflexões bakhtinianas
que ajudaram a elucidar e resolver estes problemas para tantas teorias:

• Simplificação excessiva da comunicação linguística – sistematização de códigos e subcódigos,


bem como restrição das funções da linguagem, reduzindo‑as à função informativa/referencial:
Bakhtin insiste na variação discursiva, funcional e linguística, bem como na heterologia e na
pluridiscursividade da linguagem – diversidade das vozes, das línguas e dos tipos discursivos.
Nesse aspecto, não se pode ocultar a tentativa de Jakobson (e outros autores) de melhorar os
esquemas de comunicação, tornando‑os mais próximos das diferentes funções da linguagem (a
função poética, por exemplo).

• Modelo linear dos esquemas, que se ocupa apenas, ou, de preferência, do plano da expressão:
Bakhtin vai mais longe nessa questão, já que considera a interação como a realidade fundamental
da linguagem. A interação não deve mais ser pensada como via de mão única, do emissor para o
receptor, mas como um sistema reversível e interacional. Aqui também se colocam os simulacros
intersubjetivos e a avaliação na relação dos interlocutores. Nesse ponto, há uma grande
proximidade das contribuições de Michel Pêcheux (1988) sobre os jogos de imagem entre os
sujeitos no discurso.

• Caráter por demais mecanicista: Bakhtin buscou encaminhar a abordagem da interação verbal
para uma proposta mais “humanizante”, mais “sociologizante”, melhor dizendo. Aqui também se
releva a contribuição bakhtiniana sobre o diálogo entre discursos.

O diálogo entre discursos – aqui se pontuam questões de discurso e enunciação, discurso e contexto
histórico, discurso e ideologia, bem como as noções de intertextualidade, interdiscursividade, polifonia
e heterogeneidade discursiva.

Observação

O dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem e é a condição


para o sentido se efetivar no discurso.

Nessa perspectiva, o discurso não é individual nas duas acepções de dialogismo mencionadas:

• não é individual, pois se constrói entre dois interlocutores, pelo menos (que, por sua vez, são seres
sociais);

• não é individual, pois se constrói como um diálogo entre discursos, mantendo relações com outros
discursos paralelos ou anteriores.
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Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

Por essa óptica, conforme reporta Barros (1997), o texto é tido em Bakhtin tanto do ponto de vista
da sua constituição interna quanto da externa, sendo considerado assim como um objeto completo para
os estudos e métodos linguístico‑discursivo‑social e histórico.

Três pontos devem ser esclarecidos: em primeiro lugar é preciso


observar que as relações do discurso com a enunciação, com o
contexto sócio‑histórico ou com o “outro” são, para Bakhtin, relações
entre discursos‑enunciados; o segundo esclarecimento é o de que o
dialogismo tal como foi concebido [anteriormente] define o texto
como “tecido de muitas vozes”, ou de muitos textos ou discursos,
que se entrecruzam, se completam, respondem umas às outras ou
polemizam entre si no interior do texto; a terceira e última observação
é sobre o caráter ideológico dos discursos assim definidos. Com essa
concepção de dialogismo aproximamo‑nos não mais dos estudos da
comunicação verbal, mas principalmente das teorias pragmáticas, das
teorias do discurso e do texto e até de preocupações psicanalíticas
como o “outro” do discurso (BARROS, 1997, p. 34).

1.3.2 Enunciação sob a ótica de Benveniste

Tão importante quanto a óptica de Bakhtin (2009) sobre a enunciação é o ponto de vista de Benveniste
(1989), que será de fundamental importância quanto ao conjunto de teorias a serem percorridas nesta
reflexão. Émile Benveniste (1989), apesar de preso à tradição estruturalista e de apostar na unicidade
do sujeito locutor, contribuiu para a difusão e a importância dos estudos enunciativos, destacando‑se
por considerar que na enunciação a subjetividade da/na linguagem se funde na ação do próprio ato de
linguagem, sendo este individual, mas que convoca o “outro/tu” para dentro da enunciação.

Cada enunciação é um ato que serve o propósito direto de unir o ouvinte ao


locutor por algum laço de sentimento, social ou de outro tipo. Uma vez mais,
a linguagem, nesta função, manifesta‑se‑nos, não como um instrumento de
reflexão, mas como um modo de ação. (BENVENISTE, 1989, p. 90).

Esse autor afirma que a enunciação coloca em funcionamento a língua por um ato individual de
utilização, por parte de um locutor que mobiliza a língua por sua conta: é o ato mesmo de produzir um
enunciado. A enunciação se caracteriza pela realização vocal da língua, supõe a conversão individual
da língua em discurso (semantização) e apresenta caracteres formais próprios a partir da manifestação
individual que ela atualiza.

Tal mobilização e tal apropriação da língua são, para o locutor, a obrigatoriedade de referir pelo
discurso e para o outro: “a referência é parte integrante da enunciação”. (BENVENISTE, 1989, p. 90). A
emergência dos índices de pessoa (eu/tu) só se produz por meio da enunciação. Como diz o autor, o
presente é propriamente a origem do tempo.

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Unidade I

Observação

A enunciação cria entidades na rede de indivíduos em relação ao


aqui‑agora do locutor.

Émile Benveniste (1989), ao tratar a enunciação e seu aparelho formal, aponta primeiro, como
caráter introdutório, a preocupação em definir emprego das formas na língua como a origem
(linguístico‑descritiva) da remissão do locutor no dizer. Benveniste (1989) buscou conduzir seu estudo
aprofundando a investigação enunciativa sobre a apropriação da língua pelo locutor, colocando‑a em
funcionamento por um ato individual.

Acerca do funcionamento enunciativo, ressaltam‑se três aspectos importantes:

• Realização vocal da língua, na qual os sons emitidos procedem de atos individuais com relação
à produção nativa e sofrem interferência da diversidade das situações nas quais a enunciação é
produzida.

• Semantização da língua, que conduz à Teoria do Signo e à análise da significância.

• Caracteres formais da enunciação, a apropriação da língua pelo locutor por meio da correferenciação
e no consenso pragmático.

Segundo Benveniste (1989), a enunciação provém de um ato individual de linguagem. Nesse ato
individual se introduzem o locutor, a língua e a enunciação, de modo que é na realização individual que
a enunciação se define como um processo de apropriação em que o locutor se “apodera” do aparelho
formal da língua e enuncia de seu lugar de locutor. O locutor assume a língua, na qual implanta “o
outro” diante de si.

Podemos compreender que a situação de toda a enunciação é uma alocução que postula um
alocutário, ou seja:

A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o


locutor, a necessidade de correferir identicamente, no consenso pragmático
que faz de cada locutor um colocutor. A referência é parte integrante da
enunciação (BENVENISTE, 1989, p. 84).

Benveniste (1989) destaca que a presença do locutor na enunciação de seu discurso como um centro
de referência se dá uma vez que o locutor assume a língua na qual ele, ao implantar o outro diante de
si, parte da condição de movimento e posse da língua, resultando na necessidade da correferenciação
para que se constitua um colocutor.

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Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

Segundo a ótica desse autor, a linguística considera que a relação discursiva da enunciação dá‑se
com os receptores reais ou imaginários, individuais ou coletivos, baseando‑se no quadro figurativo da
enunciação, uma vez que ela pode ser encarada como:

• enunciação como interrogação, a qual é constituída para promover resposta;

• enunciação como intimação, a qual procede claramente ordem, asserção que visa comunicar uma
certeza, podendo ser denominada como quadro figurativo da enunciação. (BENVENISTE, 1989, p.
85‑6).

Ainda sobre essas considerações, Benveniste (1989) trata como um caso de “monólogo” aquilo que
define como um diálogo feito de linguagem interior entre um locutor e um ouvinte, no qual acontece
a predominância do eu‑locutor e posteriormente do eu‑ouvinte. Em outras palavras, um diálogo
interiorizado, em que, segundo Benveniste (1989), é necessário invocar a frequência e a utilidade prática
da comunicação entre os indivíduos para então ter a noção de diálogo e originar diversas variedades.
Dentro da perspectiva linguística:

Cada enunciação é um ato que serve o propósito direto de unir o ouvinte


ao locutor por algum laço de sentimento, social ou de outro tipo. Uma vez
mais, a linguagem, nesta função, manifesta‑se não como um instrumento
de reflexão, mas como um modo de ação (MALINOWSKI apud BENVENISTE,
1989, p.89‑90).

Quanto ao que se refere à subjetividade na linguagem, Benveniste (1989) se defronta com dilemas
das considerações semióticas e semânticas, nos quais se entrelaçam o locutor e a língua, definindo a
subjetividade na linguagem como uma condição da mobilização e da apropriação que o locutor faz da
língua ao utilizá‑la. O autor considera fundamental a presença de locutores para elaboração integrante
da enunciação, sendo estes locutores destacados por uma temporalidade que se faz como um quadro
inato do pensamento, o que pode ser compreendido mais explicitamente em seu trabalho, O Aparelho
Formal da Enunciação (1989):

O presente formal não faz sentido se não explicitar o presente inerente à


enunciação, que se renova a cada produção de discurso, e a partir deste
presente contínuo, coextensivo a nossa própria presença, imprime na
consciência o sentimento de uma continuidade que denominam “tempo”;
continuidade e temporalidade que se engendram no presente incessante
da enunciação, que é o presente do próprio ser e que se delimita, por
referência interna, entre o que vai se tornar presente e o que já não o é mais
(BENVENISTE, 1989, p. 85‑6).

1.3.3 Enunciação sob a óptica de Ducrot

Ainda na perspectiva dos estudos enunciativos, Ducrot (1987) elabora o Esboço de uma Teoria
Polifônica da Enunciação, partindo da influência de Bakhtin (2009), acerca do dialogismo e da polifonia
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Unidade I

da linguagem (categorizados por Bakhtin principalmente em textos literários). Nos textos há várias
vozes que falam ao mesmo tempo, sem uma desvencilhar‑se das outras. Para Ducrot, o mesmo que
acontece na literatura popular, carnavalesca, analisada sob a perspectiva dialógica e polifônica de
Bakhtin, acontece de modo generalizado na linguagem, a partir do princípio de que, em cada ato de
enunciação, apresenta‑se um autor/locutor que agrega para si várias vozes implícitas distintas, ocultas
no engendramento linguístico, mas que convocam as enunciações e os enunciadores anteriores.

Compreenda que os estudos de Ducrot (1987, p. 161) na perspectiva da semântica enunciativa/


argumentativa ponderam a existência de uma cadeia de vozes que compõe, de forma implícita, a
enunciação, contestando assim o pressuposto da unicidade do sujeito falante, que Benveniste (1989)
considera, sustentando que cada enunciado possui um e somente um autor.

Podemos notar que a teoria contestadora em relação à unicidade do sujeito é uma das fontes da
ampliação/evolução dos estudos enunciativos, uma vez que o acontecimento enunciativo‑discursivo
efetiva‑se por meio de diferentes gêneros textuais e discursivos, configurando a voz do outro em uma
rede polifônica.

Ducrot (1987) também reflete sobre o estilo indireto livre e ressalta que este não se aplica a
enunciados isolados, voltando‑se novamente para a teoria bakhtiniana, em relação à literatura, a qual
Bakhtin (2009) intitula como uma disciplina “pragmático‑semântica” ou “pragmático‑linguística”. Essa
visão está vinculada ao pressuposto da ação humana em sua totalidade, destacando como objeto de
estudo o uso da linguagem, que acaba por ordenar a razão de certas palavras em determinadas ocasiões
serem constituídas de eficácia, como os atos de fala performativos (por exemplo, um padre, durante
a cerimônia de casamento, enuncia: “eu vos declaro marido e mulher”, e assim o sujeito que entrou
solteiro na igreja sai dela casado).

Ducrot se preocupa com o uso linguístico do ato de fala a partir do próprio enunciado, ou seja,
como aparecem os efeitos da enunciação, considerando que, para isso acontecer de forma teoricamente
sustentável, faz‑se necessário explicitar a diferença entre enunciado e frase, por meio de uma teoria
polifônica.

Ducrot (1987) define frase como o objeto teórico pertencente não ao linguista, e sim, em específico,
à gramática, enquanto o enunciado para ele é a ocorrência de uma frase em diferentes ocasiões,
podendo‑se considerar que uma mesma frase pode ser manifestada por uma única pessoa em
circunstâncias distintas e também por duas pessoas diferentes. Daí é possível compreender a existência
de duas ocorrências de uma mesma frase, enquanto estrutura lexical e sintática (supostamente
subjacente), já que no discurso podem ser consideradas como uma ocorrência contínua de enunciados.
Desse modo, é possível compreender os efeitos de sentido reais da situação enunciativa, ou seja, uma
hipótese interna que permite a explicação, concluindo que o enunciado é parte da enunciação.

Os provérbios, por exemplo, são enunciados que podem circular em diferentes enunciações e,
portanto, podem ser ditos por enunciadores diferentes que produzem sentidos diferentes. Imagine o
enunciado proverbial “Quem não chora não mama” dito por diferentes locutores:

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Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

• uma criança com fome;

• um aluno “cavando” nota com o professor;

• um mendigo pedindo dinheiro na rua;

• uma empregada requerendo aumento de salário;

• um funcionário querendo sair mais cedo do trabalho etc.

Ainda referente à distinção de frase e enunciado, Ducrot (1987) destaca que a enunciação pode ser
compreendida em três aspectos:

• como atividade psicofisiológica, ou seja, as influências sociais;

• como um segmento de discurso, isto é, o enunciado;

• como aparecimento momentâneo de um enunciado, aparecimento esse que constatamos Ducrot


(1987) designar como um acontecimento histórico, podendo entendê‑lo como algo que passa a
existir a partir do momento em que acontece.

Isso nos leva a compreender que a enunciação refere‑se ao aparecimento de um enunciado.

Ducrot (1987) ressalta que não é possível afirmar a definição oposta de frase e enunciado com a
distinção de enunciação sem antes explicitar a diferença entre a significação e o sentido. Conforme
a Teoria Polifônica, a significação está para a frase assim como o sentido está para a caracterização
semântica do enunciado, pois, conforme a concepção polifônica, entende‑se que a significação
pode ser o “algo” que o sujeito falante procura transmitir em uma construção que ocorre em uma
situação de discurso. O sentido, por sua vez, é compreendido como um conjunto de indicações sobre
a enunciação, ou seja, podemos considerar o sentido “algo” ou alguma coisa que se comunica ao
interlocutor, reconhecendo o fato de que o sujeito falante realiza o ato para transmitir um saber ao
interlocutor, levando‑se em consideração que o(s) sentido(s) em um enunciado é(são) passível(is) de
interpretação(ões), sendo, portanto, denominado(s) descrição(ões) pragmática(s).

Observação

Ducrot critica o postulado da “unicidade do sujeito na enunciação”, que


defende a existência de um único autor/sujeito responsável pelo que é dito
no enunciado.

Aprofundemos, então, a definição de sujeito, por Ducrot (1987), em suas propriedades categoriais
específicas:

43
Unidade I

• Sujeito dotado de toda atividade psicofisiológica, ou seja, formação de julgamentos, escolha de


palavras e utilização gramatical.

• Sujeito tomado como autor do enunciado, aquele que ordena, pergunta, afirma etc.

• Sujeito definido por meio da designação que recebe pelas marcas de primeira pessoa, isto é,
quando o sujeito é eu, aquele que produz o enunciado (concepção do discurso relatado direto).
Em relação ao termo sujeito definido por Ducrot (1987), é possível constatarmos duas distinções
de personagens: locutor e enunciador.

— Locutor (L): é o ser responsável pela enunciação (referente ao pronome eu como marca de
primeira pessoa), embora um único enunciado possa apresentar dois locutores distintos
evidenciados pela marca de primeira pessoa, por exemplo: “João me disse: eu virei”.

— Enunciador (E): é o sujeito dos atos ilocutórios fundamentais, como na afirmação, recusa,
pergunta, incitação, exclamação, ou seja, enunciador é o sujeito ao qual são atribuídos os
diversos pontos de vista que se dão pelas palavras.

Aplicando essa tese de vários sujeitos em textos literários, Ducrot (1987) ressalta: “direi que o
enunciador está para o locutor assim como a personagem está para o autor” (DUCROT, 1987, p. 192).

Em síntese, o autor desenvolve mais sistematicamente a Teoria Polifônica da Enunciação, sendo


este passo significativo no que se refere a romper com a unicidade do sujeito falante. Ele conduz uma
reflexão crítica sobre a postura tradicional de algumas linhas teóricas da linguística que concebem
a linguagem como monológica e o sujeito como unicentrado. Conforme Ducrot (1987), sua teoria
polifônica da linguagem desconstrói o postulado teórico acerca do sujeito unicentrado. Ele estabelece
a distinção entre os conceitos de frase (objeto teórico) e enunciado (fato empírico observável no
mundo). A descrição do conceito de enunciação tem três acepções:

• enunciação – atividade;

• enunciação – produto;

• enunciação – acontecimento.

É com a última concepção (mais completa) que Ducrot (1987) se coaduna em sua teoria. Dentro
dessa perspectiva, conforme o autor, sobre os conceitos de sentido e significado, o sentido diz respeito
à enunciação e o significado diz respeito à frase. Na enunciação, o sentido tem natureza instrucional a
partir das variáveis argumentativas.

Note que a concepção polifônica do sentido mostra como o enunciado assinala, em sua enunciação, a
sobreposição de diferentes vozes. Para Ducrot (1987), tal qual uma cena de teatro em que se configuram
diferentes personagens que dialogam entre si, há uma apresentação de diferentes vozes, de vários pontos
de vista, e o locutor tem como função provocar seu aparecimento e mostrá‑los dentro do enunciado:
44
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

estes diferentes pontos de vista o autor vai chamar de enunciadores. Ele aponta diferentes funções
enunciativas para melhor identificar a multiplicidade de vozes presentes na enunciação.

• O sujeito empírico (SE): é o autor efetivo, agente da reprodução de discursos já escutados ou lidos.
O ser empírico que preenche o lugar de sujeito.

• O locutor (L): é o responsável presumido pelo enunciado, inclusive, pelo ato praticado, e não pelo
conteúdo proposicional (marcas em primeira pessoa).

• O locutor (Lp): é o locutor‑enquanto‑pessoa‑no‑mundo, aquele que serve de suporte para


determinadas predicações.

• Os enunciadores (E1, E2...): são os vários pontos de vista que podem ser percebidos em um mesmo
enunciado.

Apagada a mediação do sujeito empírico na enunciação, as figuras enunciativas (SE, L, E1, E2...)
dão lugar à multiplicidade de sujeitos. Dessa forma, podemos compreender que os tipos de locutor
exemplificados acabam por evidenciar a primeira forma de polifonia, uma vez que provam a existência
de mais de um sujeito no enunciado.

Pense, a título de ilustração, no funcionamento enunciativo da ironia: por meio da definição de


enunciador e locutor poderíamos entender a origem da ironia como uma forma de antítese em que,
de maneira esquematizada, dir‑se‑ia A para levar a entender não A. Para Ducrot (1987), porém, a
ironia trata‑se de o locutor “fazer ouvir” um discurso, porém como um discurso sustentável do outro.
Consideramos o fenômeno linguístico da ironia como mais uma forma de se evidenciar a existência da
polifonia na enunciação, uma vez que se dá de forma implícita a voz do outro no enunciado de um
locutor. Ainda segundo Ducrot (1987):

Assumindo a responsabilidade de um conteúdo, não se assume a responsabilidade


da asserção deste conteúdo, não se faz desta asserção o fim pretendido de
sua própria fala, (o que implica a impossibilidade, definidora, para mim, da
pressuposição, de encadear com os pressupostos) (DUCROT, 1987, p. 218).

Resumo

Nesta unidade, você acompanhou um panorama do que foi o processo


de gramatização e da sua importância para os estudos da linguagem.
Sylvain Auroux nos leva a uma reflexão sobre o nascimento das ciências da
linguagem e sobre o processo tecnológico da gramatização. Ele acredita que
esse processo mudou os rumos da comunicação humana e deu ao Ocidente
um instrumento de conhecimento e dominação sobre as outras culturas.
Duas consequências desse desenvolvimento científico são a etimologia e a
rede de conhecimentos linguísticos.
45
Unidade I

Você pôde refletir mais pontualmente sobre alguns importantes


momentos e aspectos do percurso histórico de definição e da natureza
das gramáticas ao longo dos séculos. Mais especificamente, aprendeu a
importância das principais gramáticas portuguesas e brasileiras. Viu que,
conforme Dias e Bezerra (2006), a gramática é uma tecnologia intelectual.
Os primeiros termos gramaticais, listas de palavras, palavras agrupadas por
características comuns apontam para os rudimentos iniciais de gramáticas,
e isso data do segundo milênio a.C. Conheceu algumas das primeiras
gramáticas do francês e do espanhol e, no que corresponde à Língua
Portuguesa, aprendeu sobre as principais gramáticas de língua portuguesa
de Portugal e do Brasil, separadamente e cronologicamente.

Essa discussão foi encerrada com uma reflexão sintética e panorâmica


sobre o passado histórico dos estudos da linguagem, o corte saussureano e
o cenário atual dos estudos.

Em seguida, destacamos rapidamente a importância de um gramático


estruturalista brasileiro, Joaquim Mattoso Câmara Jr., com ênfase na sua
preocupação com o conceito de gramática, o fenômeno da variabilidade e
da invariabilidade na língua e a técnica da descrição linguística.

Na sequência, você acompanhou uma conceituação sobre categorias


importantes para o estudo da linguagem e para os objetivos do ensino:
os diferentes objetivos para o ensino de Língua Materna; as diferentes
concepções de linguagem; as diferentes concepções de gramática; e os
diferentes tipos de gramática.

Por fim, você também acompanhou um percurso pelas teorias


mais importantes da enunciação, visualizando os principais conceitos
no funcionamento linguístico‑enunciativo‑discursivo, mediante
algumas análises.

Você conheceu o trabalho de Mikhail Bakhtin, com o subjetivismo


individualista versus o objetivismo abstrato, autor que nos legou uma
importante trilha de reflexões a respeito da polifonia e da enunciação,
defendendo o dialogismo constitutivo da linguagem e a natureza social da
enunciação. No trabalho desse autor, o termo diálogo deve ser entendido
num sentido amplo, não apenas como a comunicação em voz alta, de
pessoas colocadas face a face, mas como toda comunicação verbal, de
qualquer tipo que seja. Ele nos apresenta o conceito de gêneros, pelos quais
ocorre a expressão individual do locutor, bem como os sistemas ideológicos
subjacentes à estruturação desses gêneros. Outros conceitos abordados são:
os discursos direto, indireto e indireto livre; a variação linguística, funcional,
discursiva; a reversibilidade discursiva (e intersubjetiva); a construção dos
46
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa

interlocutores no diálogo; o jogo de imagens; os simulacros e as avaliações


entre eles; e a questão da competência dos sujeitos da comunicação.

Outro autor abordado foi Émile Benveniste, para quem, na enunciação,


a subjetividade da/na linguagem se funde na ação do próprio ato de
linguagem, sendo este individual, mas convocando o “outro/tu” para dentro
da enunciação. Segundo ele, a enunciação coloca em funcionamento a
língua por um ato individual de utilização, por parte de um locutor que
mobiliza a língua por sua conta: é o ato mesmo de produzir um enunciado.
Além disso, caracteriza‑se pela realização vocal da língua, supõe a conversão
individual da língua em discurso (semantização) e apresenta caracteres
formais próprios a partir da manifestação individual que ela atualiza. Para
esse autor, a mobilização e a apropriação da língua são, para o locutor, a
obrigatoriedade de referir pelo discurso e para o outro: a referência é
parte integrante da enunciação.

Benveniste destaca três aspectos importantes: a realização vocal


da língua, na qual os sons emitidos procedem de atos individuais com
relação à produção nativa e sofrem interferência pela diversidade das
situações nas quais a enunciação é produzida; a semantização da língua,
que conduz à teoria do signo e à análise da significância; e os caracteres
formais da enunciação, a apropriação da língua pelo locutor por meio da
correferenciação e no consenso pragmático. Esse autor também afirma
que a relação discursiva da enunciação dá‑se com os receptores reais ou
imaginários, individuais ou coletivos, baseando‑se no quadro figurativo da
enunciação.

Você também conheceu o trabalho de Oswald Ducrot, que desenvolve


mais sistematicamente a Teoria Polifônica da Enunciação, passo significativo
para romper com a unicidade do sujeito falante. Ele conduz uma reflexão
crítica sobre a postura tradicional de algumas linhas teóricas da linguística
que concebem a linguagem como monológica e o sujeito como unicentrado.
Sua teoria polifônica da linguagem desconstrói o postulado teórico acerca
do sujeito unicentrado e estabelece a distinção entre os conceitos de frase
(objeto teórico) e enunciado (fato empírico observável no mundo).

A descrição do conceito de enunciação, em Ducrot, tem três acepções:


enunciação como atividade, enunciação como produto e enunciação como
acontecimento; é com a última concepção (mais completa) que o autor se
coaduna em sua teoria.

Quanto aos conceitos de sentido e significado, o autor afirma que o sentido


diz respeito à enunciação, e o significado diz respeito à frase. Na enunciação,
o sentido tem natureza instrucional a partir das variáveis argumentativas.
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Unidade I

A concepção polifônica do sentido mostra como o enunciado assinala,


em sua enunciação, a sobreposição de diferentes vozes. Tal qual uma cena
de teatro em que se configuram diferentes personagens que dialogam entre
si, há uma apresentação de diferentes vozes, de vários pontos de vista, e o
locutor tem como função provocar seu aparecimento e mostrá‑los dentro
do enunciado: a esses diferentes pontos de vista o autor vai chamar de
enunciadores.

Ducrot aponta quatro diferentes funções enunciativas para melhor


identificar a multiplicidade de vozes presentes na enunciação: o sujeito
empírico (SE), que é o autor efetivo, agente da reprodução de discursos já
escutados ou lidos, o ser empírico que preenche o lugar de sujeito; o locutor
(L), que é o responsável presumido pelo enunciado a quem se atribui a
responsabilidade por este, além de ser responsável pelo ato praticado, e não
pelo conteúdo proposicional (marcas em primeira pessoa); o locutor (LP),
que é o locutor‑enquanto‑pessoa‑no‑mundo, aquele que serve de suporte
para determinadas predicações; e os enunciadores (E1, E2...), que são os
vários pontos de vista que podem ser percebidos em um mesmo enunciado.

Apagada a mediação do sujeito empírico na enunciação, as figuras


enunciativas (SE, L, E1, E2...) dão lugar à multiplicidade de sujeitos.

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