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Perspectiva Enunciativa
Autor: Profa. Mônica Oliveira Santos
Professora conteudista: Mônica Oliveira Santos
A professora Mônica Oliveira Santos nasceu em Campina Grande‑PB e é doutora em Linguística (2004), com
ênfase nas áreas da Semântica e Análise do Discurso, pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Mestre em
Linguística Aplicada (2000), com ênfase na área de Ensino de Língua Materna, também pela Unicamp. Graduou‑se
no curso de Letras (1997) pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), tendo desenvolvido trabalhos de iniciação
científica na área de Análise do Discurso, durante a graduação.
Dentre outras produções nas áreas de estudo do Texto e da Análise do Discurso, é autora do livro Um Comprimido
que Anda de Boca em Boca: os Sujeitos e os Sentidos no Espaço da Enunciação Proverbial (2007) e coautora dos
livros Em Torno da Língua(gem): Questões e Análises (2007), Território da Linguagem (2004) e Texto, Discurso,
Interpretação: Ensino e Pesquisa (2001). De modo bastante direcionado, seu percurso teórico‑produtivo focaliza‑se
nas questões pertinentes às teorias do Texto e do Discurso, centralizando‑se sobremaneira nas abordagens do ensino,
da enunciação, dos sujeitos e da construção/produção de sentidos.
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Informática: Tecnologias Aplicadas à Educação. / William
Antonio Zacariotto - São Paulo: Editora Sol.
il.
681.3
© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
Reitor
Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)
Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos
Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto
Revisão:
Juliana Mendes
Sumário
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
Introdução............................................................................................................................................................7
Unidade I
1 Gramática e História: o processo de gramatização............................................................9
1.1 Do percurso histórico da gramática às gramáticas portuguesas e brasileiras............. 12
1.1.1 A gramática pelo olhar estruturalista de um brasileiro: Mattoso Câmara....................... 18
1.1.2 Gramática e seu conceito..................................................................................................................... 18
1.1.3 Variabilidade e invariabilidade na língua....................................................................................... 20
1.1.4 A técnica da descrição linguística..................................................................................................... 21
1.2 Diferentes concepções de linguagem, de ensino e de gramática..................................... 22
1.2.1 Objetivos do ensino de língua materna.......................................................................................... 22
1.2.2 Concepções de linguagem................................................................................................................... 24
1.2.3 Concepções e tipos de gramática..................................................................................................... 25
1.2.4 Tipos de gramática.................................................................................................................................. 25
1.2.5 Tipos de ensino......................................................................................................................................... 27
1.3 Perspectivas enunciativas de análise
da linguagem: contribuições de Bakhtin, Benveniste e Ducrot................................................. 28
1.3.1 A enunciação sob a ótica de Bakhtin.............................................................................................. 29
1.3.2 Enunciação sob a ótica de Benveniste............................................................................................ 39
1.3.3 Enunciação sob a óptica de Ducrot.................................................................................................. 41
Unidade II
2 Reflexões críticas sobre a Gramática Normativo‑Tradicional................................ 49
2.1 Critérios de classificação.................................................................................................................... 49
2.1.1 O critério semântico............................................................................................................................... 50
2.1.2 O critério morfológico........................................................................................................................... 51
2.1.3 O critério sintático................................................................................................................................... 51
2.1.4 A conjunção dos critérios seria uma solução?............................................................................ 52
2.1.5 Um exemplo concreto............................................................................................................................ 53
2.2 Revisitando as dez classes de palavras a partir dos três critérios de classificação.... 53
Introdução
7
8
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
Unidade I
1 Gramática e História: o processo de gramatização
Nesta discussão de abertura, você vai acompanhar uma reflexão sobre o nascimento das ciências da
linguagem e sobre o processo tecnológico da gramatização. Seguiremos os apontamentos de Sylvain
Auroux, filósofo da linguagem, que acredita que esse processo de gramatização mudou os rumos da
comunicação humana e deu ao Ocidente um instrumento de conhecimento e dominação sobre as
outras culturas. Ele chama tal processo de revolução tecnológica da gramatização, nome, inclusive,
dado ao seu livro que traz estas reflexões.
Em sua obra, A Revolução Tecnológica da Gramatização (1992), Sylvain Auroux chama a atenção
para os mitos difundidos pela historiografia das ciências da linguagem, expandidos no século XIX
sob o signo hegemônico do comparativismo, e, dentre estes, julga que um dos mais prejudiciais tem
sido o da cientificidade. Conforme o autor, os estudos referentes à linguagem adquiriram o estatuto
científico no século XIX com a gramática comparada moderna. Os comparativistas entendiam que a
“ciência” da linguagem correspondia ao programa da gramática histórica e comparada que se prestava
à descrição da evolução das línguas. Só recentemente é que filósofos e historiadores desenvolveram
estudos sobre o desenvolvimento das ciências da linguagem a partir de uma óptica diferente da que
vinha sendo parâmetro.
Em seu trabalho, o autor aponta para as circunstâncias em que nasceram as disciplinas consagradas
à linguagem e seu impacto no desenvolvimento cultural humano, bem como para a gramatização, que
foi seu grande movimento. Sua reflexão sustenta duas teses de interesse filosófico: a primeira, à qual
o autor dedica o primeiro capítulo, diz respeito ao nascimento das ciências da linguagem – reflexões
sobre a linguagem humana; e a segunda tese, objeto central do segundo e do terceiro capítulo, refere‑se
ao fenômeno da gramatização que revolucionou a tecnologia da comunicação humana e ofereceu ao
Ocidente uma forma de conhecimento/dominação em relação às outras culturas.
Auroux (1992) afirma enfaticamente que o saber linguístico é múltiplo e que este é epilinguístico
(atividade condizente com a reflexão sobre a língua em contexto de uso) antes de ser metalinguístico
9
Unidade I
(utilização do código para falar dele mesmo), considerando‑se de muita importância um continuum entre
estes dois saberes. Tal continuum pode ser comparado à continuidade entre percepção e representação
física das ciências da natureza. O autor aponta quatro tipos de saber metalinguístico que dizem respeito:
• à natureza especulativa;
• à natureza prática;
• à constituição de técnicas;
• às competências específicas.
Ele diz que o esforço em deslocar o saber linguístico para o saber especulativo é o que em geral põe
em discussão a cientificidade deste ou daquele saber linguístico.
Nesse sentido, o limiar da escrita é fundamental para a história das representações linguísticas e é
marcado pela passagem do epilinguístico para o metalinguístico. A tradição do saber linguístico tem na
produção de textos literários um ponto de partida, e o que deslancha a reflexão linguística é a alteridade
(o interesse em compreender e descrever as outras línguas). O autor se opõe à tese de historiadores,
linguistas e filósofos que habitualmente defendem o aparecimento das ciências da linguagem como
uma das causas do nascimento da escrita. Ele acredita que, ao contrário, a escrita é que seja um dos
fatores necessários ao aparecimento das ciências da linguagem e cita vários exemplos de civilizações
orais sem escrita que possuíam técnicas e regras de estética e de classificação linguística, mas que não
tinham uma doutrina elaborada nas artes da linguagem. Conforme o autor, a análise gramatical nasce
em função da compreensão de textos, e não da necessidade de se falar uma língua qualquer. Ele postula
que atualmente a gramática se configura como uma técnica escolar para crianças que mal dominam
sua língua falada (ou uma língua estrangeira) e que esse caráter vem de uma tradição escrita de guiar
e corrigir a língua falada, o que redobra o papel da escrita no desenvolvimento dos saberes linguísticos.
Para tratar do fato da gramatização, o autor traz um apanhado geral do desenvolvimento das
concepções linguísticas europeias que compreende o período do século V até o século XIX. Nesse período,
vê‑se o desenrolar de duas revoluções tecnolinguísticas de fundamental importância para a organização
das sociedades, no que se refere a criar uma rede de comunicação homogênea e dominante centrada
inicialmente na Europa. Aos olhos do autor, tal revolução para a história humana é tão importante e
fundamental quanto foram a Revolução Agrária do Neolítico ou a Revolução Industrial do século XIX.
descrição das línguas, a marginalização da etimologia linguística, que é excluída das ciências humanas,
o aparecimento do dicionário monolíngue e o domínio das línguas neolatinas na Europa.
Não há uma reflexão aprofundada sobre o porquê de a gramatização massiva das línguas ter
acontecido a partir da Europa e de isso ter vindo à tona tão tardiamente (século XIX). Outras civilizações
teriam tido seu desenvolvimento linguístico‑intercultural muito antes (índia, China, Arábia etc.) e não
exerceram o domínio linguístico que teve a Europa. Elas possuíam uma tradição de análise gramatical
forte e autônoma, mas não se interessaram muito pela descrição de outras culturas e outras línguas,
o que impossibilitou a constituição de uma rede tecnolinguística semelhante à que fez nascer o
Renascimento Ocidental (AUROUX, 1992, p. 41). Entre os séculos VII e IX, assistiu‑se a um fenômeno de
dispersão e fragmentação do latim e de insistência por uma unificação deste, que se configurou mais
tarde como a segunda língua na Europa. Essa homogeneidade conceitual pode ser considerada como
sua identidade de metalinguagem. A gramática latina passa a ser parâmetro e espelho aplicável ao
estudo de qualquer outra língua.
Auroux (1992) explica que durante toda a Idade Média manteve‑se o equilíbrio entre um latim
abstrato e teórico, uma língua conceitualmente sofisticada do saber letrado e os vernáculos vulgares,
e que a Igreja assegurou por muito tempo a imponência do latim, mas que este perdia importância à
medida que algumas atividades sociais e religiosas (o protestantismo) ganhavam espaço e reclamavam
o acesso aos textos e às técnicas intelectuais, minimizando o papel de intermediários letrados. Isso
ocasionou a entrada dos vernáculos que contextualiza historicamente três elementos: a renovação da
gramática latina, a imprensa e as grandes descobertas no mundo.
Quando aborda o conceito de gramatização, Auroux concebe‑o como “processo que conduz a
descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias: a gramática e o dicionário” (AUROUX,
1992, p. 65). Uma gramática constaria, basicamente, de uma categorização das unidades, dos exemplos e
das regras para construir enunciados, de maneira que os paradigmas completos só passariam a aparecer
nas gramáticas dos vernáculos europeus. Eles são, a rigor, um conjunto de regras que podem, por si, assumir
a função de gramática. Conforme o autor, as gramáticas teriam um conteúdo relativamente estável:
ortografia/fonética, partes do discurso, morfologia, sintaxe e figuras de construção (AUROUX, 1992, p. 67).
Todos os gramáticos precoces mantiveram a noção de regra (AUROUX, 1992, p. 68). Inicialmente a
descoberta dessas regularidades foi um problema que eles tiveram de resolver (a seu modo), uma vez que
trabalharam em espaços de oralidade que apontavam para uma grande variedade linguístico‑dialetal
dos vernáculos que, sem intervenções tecnológicas, teve um forte peso. A gramatização reduziu tal
variação em nome da homogeneidade e do bom uso.
Em relação aos dicionários, essa mesma situação se comprova, pois eles tornam possível a
normatização ortográfica dos idiomas. Esses instrumentos modificaram profundamente “[a] ecologia
da comunicação e as práticas linguísticas humanas” (AUROUX, 1992, p. 70). Os dicionários inicialmente
não faziam parte da tradição linguística: eles são posteriores à imprensa e à gramatização, apesar de
a lexicologia ser mais antiga que a gramática. Segundo o autor, o que oblitera o aparecimento dos
dicionários é a confusão entre enciclopédia e dicionário que torna difícil a distinção entre gramática e
dicionário (AUROUX, 1992t, p. 71‑2).
11
Unidade I
O autor afirma que o processo de gramatização que lhe interessa corresponde a uma transferência de
tecnologia de uma língua para outras línguas e que isso também depende da transferência sociocultural.
Ele se refere, mais pontualmente, ao exposto no quadro a seguir.
Enfim, Auroux (1992) afirma que a gramática geral teve por finalidade ocupar o lugar que foi da
gramática latina perante as línguas do mundo. Desse contexto é que surge a gramática moderna. O seu
projeto científico no programa de pesquisa procurou, por um lado, afirmar as categorias linguísticas que
poderiam ser reduzidas a categorias de representação, e, por outro lado, criar uma relação das categorias
gerais com as particularidades das línguas que guardam uma subjunção ao universal (AUROUX, 1992, p.
89). Duas consequências desse desenvolvimento científico são a etimologia e a rede de conhecimentos
linguísticos. O autor conclui que não seria “de forma alguma evidente que o saber metalinguístico
se tornasse um produto de um puro interesse do conhecimento: é preciso ver nesta transformação
fundamental um dos frutos tardios da gramatização” (AUROUX, 1992, p. 93).
A nós é pertinente avaliar que uma obra dessa natureza é de fundamental importância para o
conhecimento e o acompanhamento dos processos históricos e das revoluções que delinearam as áreas
de estudo das disciplinas referentes à linguagem e que moldaram a noção de cientificidade, oferecendo,
até mesmo, questionamentos no reconhecimento e na aferição desse valor, e, mais relevante ainda, ter
a clareza de analisar até que ponto garantir o peso da cientificidade para essas disciplinas foi válido ou
prejudicial no contexto mundial.
Uma observação para a qual gostaríamos de chamar a atenção seria o fato de que, no decorrer de suas
considerações sobre a revolução da gramatização, o autor leva magistralmente em conta aspectos como
as inter‑relações humanas e sociais das línguas do mundo, as variedades linguístico‑dialetais que se
mostram fortemente no espaço de oralidade entre as várias línguas, as transferências linguístico‑culturais
e até a presença dos sujeitos que efetuam essa transferência (AUROUX, 1992, p. 74).
Vamos agora acompanhar mais pontualmente alguns importantes momentos e aspectos do percurso
histórico de definição e da natureza das gramáticas ao longo dos séculos.
Conforme Dias e Bezerra (2006), num capítulo intitulado “Gramática e Dicionário”, as reflexões sobre
a linguagem já começaram entre o terceiro e o segundo milênio antes de Cristo (na Mesopotâmia, na
China, no Egito), a partir das primeiras práticas de escrita.
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Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
Nesse sentido, Dias e Bezerra (2006, p. 13‑4) apontam, em conformidade com Sylvain Auroux (1992),
que a gramática é uma tecnologia intelectual. Os primeiros termos gramaticais, listas de palavras,
palavras agrupadas por características comuns apontam para os rudimentos iniciais de gramáticas, e
isso data do segundo milênio a.C.
Observação
Conforme Maria Helena de Moura Neves (1987 apud DIAS; BEZERRA, 2006), na Grécia, apesar desses
rudimentos do estudo gramatical, ainda não havia propriamente gramática. Conforme a autora, a palavra
gramática vem do grego grammatiké e significa “instrumento de cultivo e preservação de valores”.
dos gregos, por volta do século V a.C., o gramático hindu Panini escreveu
uma obra detalhada analisando os sons e a estrutura vocabular da língua
sânscrita. Ainda na cultura ocidental, no Império Romano, Varrão (séc. I
a.C.) e Quintiliano (séc. I d.C.) destacaram‑se na elaboração das primeiras
gramáticas do latim. E mais tarde, no século V d.C., já na entrada da Idade
Média, Donato e Prisciano já apareceram com as noções de transitividade
e regência, dois conceitos fundamentais na sintaxe tradicional (DIAS;
BEZERRA, 2006, p. 14).
Algumas gramáticas de destaque dessas línguas derivadas do latim são apontadas pelos autores: a
primeira gramática do francês, de J. Barton, em 1409; a primeira gramática do espanhol, de Antônio de
Nebrija (Gramática de la Lengua Castellana), publicada em 1492; e ainda a Gramática de Port Royal, em
1660, “dos enciclopedistas franceses” (DIAS; BEZERRA, 2006, p. 15).
No que corresponde à língua portuguesa, elencam algumas das principais gramáticas dessa língua e
seus destaques. Com base nos autores, organizaremos a seguir um quadro destacando as gramáticas de
língua portuguesa de Portugal e do Brasil, separadamente e cronologicamente.
1536
Grammatica da Lingoagem Fernão de Oliveira Louvor e nobreza das origens de Portugal
Portuguesa
1770
A Arte da Grammatica da Língua Antônio José dos Reis Lobato Consolidação do saber sobre a língua
Portuguesa portuguesa
1822
Grammatica Philosophica da Jerónimo Soares Barbosa Consolidação do saber sobre a língua
Lingua Portuguesa portuguesa
1983
Grammatica da Língua Maria H Mira Mateus, Ana M Totalmente desvinculada dos princípios da
Portuguesa Brito, Inês Duarte, Isabel H Farias gramática tradicional
Totalmente desvinculada dos princípios
1995 Gramática da Língua Portuguesa Mário Vilela da gramática tradicional. Enfatiza os
conhecimentos sobre textualidade e discurso
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Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
1970
Gramática do Português Celso Cunha Manual para o trabalho didático‑escolar
Contemporâneo
Bastante reeditada até hoje, referência para
1985
Nova Gramática do Português Celso Cunha e Lindley Cintra o trabalho didático nos manuais e fonte para
Contemporâneo concursos públicos – base tradicional
Reedição com mudanças substanciais
advindas da linguística moderna,
1999 *Moderna Gramática Portuguesa Evanildo Bechara rompendo com os padrões tradicionais e
configurando‑se como gramática descritiva
Completamente diferenciada da gramática
1995 Gramática Descritiva Mário Alberto Perini tradicional normativa e fundamentada no
gerativismo de Chomsky
Focalizada nas perspectivas descritiva e
2000 Gramática de Usos do Português Maria Helena de Moura Neves funcionalista
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Unidade I
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Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
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Unidade I
Observação
Neste subtópico, você vai acompanhar o posicionamento de Joaquim Mattoso Câmara Júnior sobre
o conceito de gramática, sobre a variabilidade e a invariabilidade na língua e sobre a técnica da descrição
linguística. Este autor é um importante linguista e gramático brasileiro cujo trabalho foi bastante
relevante, considerando sua posição teórica estruturalista, voltada para a descrição do português do
Brasil. Câmara Júnior coaduna‑se com a gramática descritiva ou sincrônica – uma dada língua num
dado momento – comunicação, estrutura, forma.
Sobre o conceito de gramática, o autor recupera alguns diferentes momentos históricos e concepções
que marcaram os estudos da linguagem (de certo modo, tratamos de alguns desses momentos algumas
páginas antes, então mostraremos de forma mais sintética).
Conforme Mattoso, o modelo greco‑latino influenciou as gramáticas da maioria das línguas oficiais
(inclusive o português). A Gramática Tradicional (GT) das línguas grega e latina (antiguidade clássica) já
se preocupava com um certo descritivismo. Contudo, a GT caracterizava‑se mesmo por normativismo –
a arte de falar e escrever corretamente – e por explicação, organização e funcionamento das formas
linguísticas com objetividade e cientificidade. Essas GTs filosóficas foram bastante criticadas, pois se
pautavam pelo estudo lógico‑filosófico das leis do raciocínio refletidas na língua (língua = expressão do
pensamento) (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 2).
Segundo o autor, “nem a lógica aristotélica, nem a lógica simbólica puderam fazer justiça, por isso, à
organização última de uma língua humana” (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 2). A partir daí, outro caminho
se esboçou sob a égide da psicologia, difundida no século XIX e enfatizando aspectos psicológicos,
românticos, antilógicos.
18
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
Ainda no século XIX, a linguística firma‑se pela comparação das línguas umas com as outras – a
gramática histórico‑comparativa. Tem‑se um grande avanço nos estudos da linguagem com a relação
de parentesco entre as línguas e a elaboração das gramáticas comparadas.
Câmara Júnior mostra que os filósofos, no século XX, tentam remodelar a disciplina pela linha
das matemáticas – a lógica‑simbólica de Bertrand Russell – mediante uma apreensão intuitiva das
vivências humanas, em vez da objetividade.
Contudo, o interesse pelo estudo descritivo, na linguística, firmou‑se nos princípios do século XX.
Saussure dividiu a linguística em diacrônica e sincrônica (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 3). O seu propósito
era o de que a linguística fosse uma disciplina autônoma, independente das outras disciplinas filosóficas,
lógicas, psicológicas.
Câmara Júnior coloca‑se a questão: “resta‑nos o problema de saber se tal gramática é possível sem
levar em conta as considerações de ordem histórica. Ou, em outras palavras, se o estudo sincrônico é
possível sem um paralelo estudo diacrônico que lhe sirva de apoio.” (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 4). Na
opinião do autor, essa foi uma das grandes contribuições de Saussure – “Muitas vezes o conhecimento
histórico, aplicado à análise sincrônica, a torna absurda” (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 4). Ele argumenta
com o exemplo do verbo comer (do latim cumedere), cuja raiz é ‑ed. O autor mostra que, com a
evolução linguística, a partícula cum, que indicava companhia (pois comer era um ato social na cultura
romana – “comer com”), passou a ser a raiz do verbo comer, e houve a síncope do morfema ‑ed, que
desapareceu. Portanto, uma análise sincrônica desse verbo esclareceria melhor a sua estrutura (com +
e + r – raiz + vogal temática + morfema flexional de infinitivo) do que uma análise diacrônica, que, em
vez de esclarecer e simplificar a análise, complicaria um pouco a vida dos estudantes e seria de interesse
para estudiosos da evolução linguística, e não para a abordagem didática.
Câmara Júnior, em sua obra, apresenta uma gramática descritiva, sem implicações diacrônicas. Ele
esclarece ainda que a gramática descritiva precisa ser um tanto normativa na escola, mas esse caráter
normativo fica restrito à prática social escolar. “A Gramática normativa depende da linguística sincrônica
ou descritiva [...] A norma não pode ser uniforme e rígida. Ela é elástica e contingente, de acordo com
cada situação social específica” (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 6).
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Unidade I
• correção às cegas sem refletir linguisticamente sobre aquilo que é corrigido, criando confusão e
distúrbio;
• afirmação de que a norma é sempre a mesma, fixando um padrão social formal dominante como
o que deve ser seguido.
A língua varia no espaço/território (dialetos regionais), na hierarquia social (dialetos sociais) e ainda
para um mesmo indivíduo conforme a situação de uso (registro). Para aprofundar a visão acerca dessa
discussão, o autor relembra duas correntes clássicas opostas:
Estas correntes sempre foram um embaraço para a linguística. A técnica descritiva estruturalista tenta
neutralizá‑las. “A invariabilidade profunda, em meio de variabilidades superficiais, é inegável nas línguas”
(CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 7). A gramática descritiva/sincrônica tem por objetivo depreender e expor
esse sistema (estrutura), conforme defendeu Saussure: em toda gramática, ao lado de “regularidades”,
há “irregularidades”, ainda que estas sejam exceções da superfície.
O objetivo de Câmara Júnior nesse livro é descrever a língua portuguesa, no Brasil, como é usada
pelas classes ditas “cultas”, no registro “formal”, servindo de gramática normativa para a prática escolar.
O autor critica uma posição extremista (sobre a variabilidade das línguas) que considera o “idioleto” – a
língua de um único indivíduo (ou uma língua para cada indivíduo). Para ele, assim como para Saussure,
a língua está socializada. O intercâmbio verbal requer pelo menos dois comunicantes.
Sobre a diferença entre fala e escrita, o autor enfatiza que o aluno chega à escola na condição
satisfatória de falante e lá deve aprender a escrita de um padrão culto que ele não conhece, mas a
escola tem a ilusão de que ensinar‑lhe a escrita culta é ensiná‑lo a falar, falar bem e corretamente
(tradição normativa clássica). Entretanto, trata‑se de duas modalidades diferentes, e às vezes um aluno
fala muito bem, mas não consegue escrever bem, e vice‑versa. A escola supõe que ensinando a escrever
20
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
também ensine a falar satisfatoriamente, baseada numa crença clássica: “a arte de escrever e falar
corretamente como finalidade da gramática”.
A escola inverte os papéis, em função da nossa sociedade dita “civilizada”, pois, prioriza a escrita
(como superior) em detrimento da fala (como inferior), esquecendo que a escrita decorre da fala, e
não o contrário. Portanto, a fala não pode ser secundária. A crença de que “a escrita é a roupagem da
fala” é preconceituosa. Um exemplo, conforme o autor, é o de que vários grupos indígenas (inclusive
do Brasil), depois de fracassadas tentativas de alfabetização em línguas oficiais impostas, conseguiram
ser alfabetizados a partir da produção de cartilhas em sua língua materna. A aquisição da escrita deve
referenciar‑se pela cultura social e ideológica do falante.
Isso nos impõe a tarefa de fazer a descrição (mesmo tendo em vista um fim
escolar) em função da língua oral. Ora, paradoxalmente, nem em relação à
“fonética”, ou estudos dos sons vocais, isto se dá de maneira coerente em
nossas gramáticas. (CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 11).
O morfema é a menor unidade significativa da língua e pode ser de duas naturezas: o morfema
lexical (o cerne do vocábulo – estrel‑) e o morfema gramatical (configura estruturalmente o vocábulo
– re + cont + a + ra + m). O morfema lexical tem relação com o mundo biossocial da expressão na
língua. O morfema gramatical tem três funções na língua:
21
Unidade I
Mais uma vez, o autor chama a atenção para um exemplo que corrobora a sua opção pela
descrição estruturalista sincrônica da língua. Trata‑se do problema da homonímia – canto (verbo) e
canto (substantivo) –, em relação ao conceito de polissemia – uma forma com variações de sentido:
cabo (acidente geográfico) e cabo (posto das Forças Armadas). Como distinguir uma coisa da outra? A
homonímia teria a mesma forma em português, cada uma derivada de uma raiz diferente. A polissemia
teria dois sentidos para a mesma forma que também é derivada da mesma raiz.
Aí se encontra uma possível justificativa para a intromissão da diacronia nos estudos sincrônicos
pela via da etimologia das palavras. Entretanto essa possibilidade não é segura, pois algumas palavras
não têm registro etimológico exato: pata (membro de locomoção) e pata (fêmea do pato) podem vir de
raízes diferentes, mas também há a possibilidade de virem da mesma raiz onomatopaica.
Câmara Júnior (1970) afirma ser o critério sincrônico o de melhor uso na descrição gramatical, até mesmo
deste problema de homonímia versus polissemia: “a solução, que parece exata, é partir da distribuição
das formas [...] A distribuição diferente indica homonímia. A mesma distribuição é sinal de polissemia”
(CÂMARA JÚNIOR, 1970, p. 18) – cabo é uma forma polissêmica e canto é uma forma homônima.
Preparamos, para essa discussão, uma retomada e uma reflexão sobre importantes concepções de
linguagem, de gramática e de ensino que sustentam as teorias linguísticas e as práticas de ensino de
língua em geral.
Conforme sintetiza Travaglia (2006), grande é a reflexão acerca dos problemas com o ensino de língua e
gramática e seus conhecidos fracassos. Dentre tantos fatores que concorrem para a composição desse quadro,
é necessário ao pesquisador e professor estar atento às concepções teóricas que fundamentam a pluralidade
de perspectivas sobre a linguagem, o ensino, a gramática. No sentido de tentar esclarecer didaticamente esse
quadro e de seguir em busca de soluções mais efetivas para o ensino, de modo mais consciente e profundo, o
autor nos apresenta as importantes diferenças entre as concepções supramencionadas.
O autor propõe a pergunta: “Para que se dá aulas de uma língua para seus falantes?” ou “Para que
se dá aulas de português para falantes de português?”. Para essa pergunta ele dá quatro respostas que
configuram os quatro mais importantes objetivos do ensino de português:
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Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
• O ensino de língua materna justifica‑se pelo objetivo de levar o aluno a dominar a norma culta/
padrão e ensinar a variedade escrita da língua, uma vez que o aluno, ao chegar à escola, já
domina o português, ao menos coloquialmente, no que diz respeito à fala. É de se concordar que
esses objetivos são importantes, sobretudo, considerando questões sociais, políticas e culturais
relacionadas ao domínio dos usos mais cultos e formais da linguagem.
• Conforme Travaglia (2006, p. 20), o ensino de língua materna justifica‑se pelo objetivo de “levar
o aluno ao conhecimento da instituição linguística, da instituição social que a língua é,
ao conhecimento de como ela está constituída e de como funciona (sua forma e função)”. Tal
conhecimento também é importante no sentido de que o aluno tem direito de tomar conhecimento
das instituições mais importantes da sociedade, como “casamento, religiões, justiça, Congresso,
instituição bancária” e, portanto, da língua, que também é uma importante instituição social e faz
parte do campo da “informação cultural”. Assim como o aluno deve saber que a água ferve a 100
graus, que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil... Também deve saber que “dançar” é um verbo.
• O ensino de língua materna justifica‑se pelo objetivo de ensinar o aluno a pensar, a refletir, a
raciocinar sobre a linguagem de forma científica. Aqui entra o trabalho com as atividades
metalinguísticas. Como defende Perini (1988, p. 24 apud TRAVAGLIA, 2006, p. 20), esse objetivo
estaria no “campo do desenvolvimento das habilidades de observação e de argumentação acerca
da linguagem”. Tal habilidade, evidentemente, é importante e necessária em todos os campos do
conhecimento, e não somente nos estudos da linguagem.
23
Unidade I
• Linguagem como expressão do pensamento: “as pessoas não se expressam bem porque não
pensam [bem]. A expressão se constrói no interior da mente, sendo sua exteriorização apenas
uma tradução. A enunciação é um ato monológico e individual.” (TRAVAGLIA, 2006, p. 21). Tal
concepção entende que há regras relacionadas ao bem falar e ao bem escrever e que a gramática
prescreve a língua como ela tem de ser. É a visão que sustenta os pressupostos da gramática
tradicional clássica, concebida inicialmente pela visão greco‑romana e que perdurou através
dos séculos instituindo muitos preconceitos linguísticos e um olhar pouco científico e pouco
descritivo da diversidade do fenômeno da linguagem.
• Linguagem como processo de interação: o falante realiza ações na linguagem e atua sobre o
interlocutor. “A linguagem é pois um lugar de interação humana, de interação comunicativa pela
produção de efeitos de sentido entre interlocutores, em dada situação de comunicação e em um
contexto sócio‑histórico e ideológico” (TRAVAGLIA, 2006, p. 23). Os sujeitos da linguagem ocupam
lugares sociais e falam/ouvem nesses espaços com base no que a sociedade estabelece/determina
para os diferentes papéis sociais. Nesse sentido, considerando o que nos ensinou Bakhtin, a
linguagem é essencialmente e constitutivamente dialógica. Tal concepção representa os estudos
da linguística da enunciação em geral, incluindo linguística textual, teorias do discurso, análise da
conversação, semântica argumentativa e pragmática.
24
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
Travaglia (2006) levanta a questão “O que se entende por gramática?” e apresenta as concepções de gramática
em suas diferentes perspectivas que levam a diferentes respostas para tal pergunta. O autor apresenta:
O autor descreve que há diferentes tipos de gramática e que o trabalho com cada um desses tipos resulta
em diferentes atividades. Os três conceitos anteriormente apresentados já designam os descritos a seguir.
25
Unidade I
— Normativa: estuda apenas os fatos de língua padrão/culta, destaca‑se como norma oficial,
prioriza a escrita, entende os fatos de língua oral como idênticos aos da escrita, dita regras de
como falar e escrever bem, define o que se deve e o que não se pode falar/escrever, segundo
critérios rígidos de correção linguística. É a gramática na qual se baseia tradicionalmente o
ensino nas escolas.
— Implícita: gramática inconsciente do falante que inclui unidades, regras, princípios de todos
os níveis linguísticos de constituição e funcionamento (fonológico, morfológico, sintático,
semântico, pragmático e discursivo‑textual). Essa gramática possibilita o uso automático da
língua.
— Explícita ou teórica: refere‑se a todos os estudos linguísticos que, por meio da atividade
metalinguística, explicitam a estrutura, a constituição e o funcionamento da língua. Todas as
gramáticas normativas e/ou descritivas são gramáticas explícitas e/ou teóricas.
• Atividade linguística: o falante faz ao estabelecer uma interação comunicativa (adequação do seu
texto à situação, desenvolvimento do tópico discursivo, construção textual etc.) – está relacionada
à gramática internalizada/implícita que o falante aprendeu ao longo da sua vida.
• Atividade epilinguística: pode ser ou não consciente e se refere à interrupção do tópico discursivo
para a marcação/descrição dos próprios recursos linguísticos e demais aspectos da interação
26
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
• Atividade metalinguística: refere‑se aos procedimentos em que se usa a língua para analisar a
própria língua – metalinguagem (linguagem sobre linguagem). É uma análise sempre consciente
e está relacionada com a gramática explícita ou teórica. É a construção dos conhecimentos
teóricos e científicos sobre a gramática. Representa “um conjunto de elementos linguísticos
próprios e apropriados para se falar sobre a língua. Nesse caso, a língua se torna o assunto, o
tema, o tópico discursivo da situação de interação” (TRAVAGLIA, 2006, p. 35).
• constrativa ou transferencial: descreve duas línguas ao mesmo tempo – em comparação uma com
a outra (muito usada para ensino de línguas estrangeiras – diferenças e semelhanças);
• geral: estudo baseado na comparação do maior número possível de línguas para estudar‑lhes todos
os fatos linguísticos realizáveis e que podem vir a se realizar (formula possibilidades previsíveis em
todas as línguas humanas);
• histórica: estuda uma sequência de fases evolutivas de um idioma, sua origem e sua evolução até
o estado atual;
• comparada: estuda uma sequência de fases evolutivas de várias línguas em busca de pontos em
comum (as relações de parentesco nas línguas românicas – sânscrito, latim etc.) (TRAVAGLIA,
2006, p. 35‑7).
Com base em Halliday, McIntosh e Strevens (1974, p. 257‑87), Travaglia (2006) sintetiza que é possível
realizar três tipos de ensino de língua. O autor adverte que tais tipos de ensino estão explicitamente
fundamentados nas três concepções de linguagem e nas três concepções de gramática. São estes:
• Ensino normativo: implica levar o aluno a “substituir seus próprios padrões de atividade linguística
considerados errados/inaceitáveis por outros considerados corretos/aceitáveis”. (TRAVAGLIA,
2006, p. 38). Corresponde à primeira concepção de linguagem, a que entende a linguagem como
expressão do pensamento. Também corresponde ao segundo objetivo de ensino (domínio da
escrita culta) e ainda à concepção de gramática normativa.
27
Unidade I
• Ensino descritivo: quer mostrar como a linguagem “funciona e como determinada língua em
particular funciona. Fala de habilidades já adquiridas sem procurar alterá‑las, porém mostrando
como podem ser utilizadas [...] Trata de todas as variedades linguísticas.” (TRAVAGLIA, 2006, p.
39). Corresponde à segunda concepção de linguagem (Instrumento de comunicação). Também
corresponde ao terceiro objetivo de ensino, embora envolva inclusive aspectos do primeiro e do
segundo objetivo (um pouco de normatividade, mas não só em relação à escrita culta) e ainda
corresponde à gramatica descritiva.
• Ensino produtivo: busca ensinar “novas habilidades linguísticas” ao aluno para que este entenda e
estenda “o uso da língua materna de maneira mais eficiente”. Assim, não pretende “alterar padrões
que o aluno já adquiriu, mas aumentar os recursos que possui e fazer isso de modo tal que tenha
a seu dispor, para uso adequado, a maior escala possível de potencialidades de sua língua, em
todas as diversas situações em que tem necessidade delas” (HALLIDAY; MCINTOSH; STREVENS,
1974, p. 276 apud TRAVAGLIA, 2006, p. 39‑40). Corresponde à terceira concepção de linguagem,
a que defende a interação e o dialogismo. Também corresponde ao primeiro e ao quarto objetivo
de ensino (competência linguística e textual e reflexão crítica sobre a língua) e ainda à concepção
voltada para a interação comunicativa, que também considera a gramática internalizada do aluno.
Os estudos enunciativos da linguagem, mesmo ainda muito influenciados pela tradição estruturalista,
abrem espaço para as diferentes investigações acerca do texto e do discurso, pois põem em xeque o
postulado de que a frase (sentença/proposição possível no sistema linguístico abstrato) seria a sua maior
unidade de análise e abrem espaço para a configuração da subjetividade na/da linguagem, no sentido de
que considerar a enunciação é considerar também o enunciador e sua contraparte, o enunciatário. Esses
estudos legam uma grande contribuição às investigações textuais e discursivas, uma vez que resgatam
a subjetividade/o sujeito/o falante de volta à investigação linguística.
• Bakhtin em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2009), que trata a enunciação na esfera social
perante a filosofia da linguagem;
28
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
• Ducrot em O Dizer e o Dito (1987), que define enunciação a partir de uma atividade psicofisiológica,
ou seja, as influências sociais, como um segmento de discurso e como um aparecimento
momentâneo de um enunciado.
Para uma primeira abordagem de enunciação, partimos das considerações de Bakhtin (2009), que
concebe a linguagem como dialógica (e não monológica/monofônica), fundamentando‑se no produto
ideológico de ordem social, sob as influências do marxismo e da filosofia da linguagem. A teoria
bakhtiniana considera que a enunciação dá‑se ideologicamente, não possuindo um sentido exato,
unicentrado, transparente, veiculado enquanto informação por uma única voz.
• O objetivismo abstrato, em que, conforme Bakhtin (2009), podemos entender a língua podendo
ser percebida distintamente do modo pelo qual se apresenta em um contexto individual num
dado momento, ou seja, a língua se apresenta como uma corrente contínua, passível de evolução,
quando comparada ao imutável, (tal teoria define que todo sistema de normas sociais existe caso
esteja relacionado à consciência subjetiva dos indivíduos e da coletividade em que essas normas
se regulam).
• A relação entre a consciência subjetiva e a língua como sistema objetivo de normas incontestáveis
é desprovida de sustentabilidade; assim, a teoria bakhtiniana não considera a língua como sistema
de normas imutáveis, pois pensar a natureza objetiva da língua, afirma Bakhtin (2009), é incorrer
num grave erro, já que, fechada em seu sistema imutável, a língua não abriria espaço para ser
observada a partir das suas características mais essenciais, no que tange ao dialogismo e à
polifonia nela constitutivos de subjetividade.
Conforme Bakhtin (2009), ao entrelaçar a relação perfeitamente objetiva que a língua constitui com
a consciência relativamente individual de um sistema de normas imutáveis, torna‑se possível entender
que esse pode ser o modo de existência da língua para uma comunidade, embora o autor ressalte que
tais ideias não se definem claramente.
Dessa forma, torna‑se evidente para Bakhtin (2009) o questionamento sobre se a língua existe para
a consciência subjetiva do locutor unicamente como sistema objetivo de formas normativas intocáveis,
pois:
29
Unidade I
Partindo dessa afirmação, em relação ao uso que o locutor faz da língua para suas necessidades
enunciativas concretas, podemos compreender que Bakhtin (2009) discorre sobre alguns conceitos
básicos definidos por ele como:
• a língua: não se define como um sistema de normas imutáveis, estagnadas, mas sim como uma
corrente passível de evolução contínua que se constitui perante o social, fazendo‑se, desta forma,
variável e flexível em determinado contexto, no que se refere às necessidades de seus falantes;
• a enunciação: define‑se pela comunicação verbal, que se estrutura por meio da relação com
outras enunciações, em um contexto ideológico, uma vez que a enunciação pode ser entendida
como resultado da fala, já que esta tem a função de produzir compreensão.
Referente, ainda, à enunciação, podemos destacar, segundo a perspectiva de Bakhtin (2009), que
toda enunciação efetiva, seja ela de que natureza for, pode vir a concordar com um fato qualquer ou
discordar dele, uma vez que este pode ser acompanhado de clareza ou não. Assim, podemos acrescentar
que, para Bakhtin (2009), sua teoria da enunciação se apresenta de forma social, e não individual, ao
passo que se torna importante apontarmos estas afirmações nas suas próprias palavras.
Para o locutor, o que importa é aquilo que permite que a forma linguística figure num dado
contexto, aquilo que torna um signo adequado às condições de uma situação concreta dada, não tendo
importância a forma linguística como sinal estável e sempre igual a si, mas tendo importância o fato de
que o signo é sempre variável e flexível.
De fato, podemos ainda mencionar que a enunciação, segundo Bakhtin (2009), não é capaz de
trabalhar as formas de composição do todo, ou seja, não relaciona os elementos que a constituem e
as formas que a inserem, uma vez que essa enunciação só pode se constituir quando se relaciona com
outras enunciações.
Você pode observar que enquanto uma forma linguística for apenas um sinal e for percebida pelo
receptor como tal, será possível constatar que o sinal não terá nenhum valor linguístico, já que a pura
sinalidade não existe, isto é, a forma é orientada pelo contexto, que, por sua vez, já constitui um signo,
deixando‑nos entender que, assim como um elemento torna a forma linguística, um signo não é a sua
identidade como sinal, e sim sua mobilidade específica.
Para exemplificar essa discussão, tomemos o conhecido “sinal” de trânsito que se refere à mensagem
“Não estacione”.
Figura 1
Como sinal, ele é facilmente identificado, mas não há como referi‑lo em sua pura sinalidade, já que
sua mobilidade no contexto social é tal que o próprio sinal já em sua forma orientada pelo contexto
(na linguagem do trânsito) se constitui em signo dentro de sua simbologia ideológica, histórica e social.
31
Unidade I
Ao discorrermos sobre língua, fala e enunciação sob a ótica de Bakhtin (2009), é prudente destacarmos
sua posição sobre a Teoria da Enunciação e seus respectivos problemas sintáticos. No que diz respeito
à Teoria da Enunciação, o problema da sintaxe pode prejudicar a compreensão da língua e de sua
evolução, o que consequentemente acarreta um mau uso quanto às formas devidas dos atos de fala, dos
quais resulta o produto da enunciação: o enunciado, conforme a teoria bakhtiniana.
Perceba que, conforme Bakhtin (2009), a Teoria da Enunciação considera que o processo mais difícil
da decodificação dá‑se nas análises sintáticas do discurso, que de fato constroem o corpo da enunciação.
Como essas análises são sempre vistas por meio da construção fonética e morfológica, tornam‑se algo
complicado quando a intenção é trazê‑las para o objetivismo abstrato. A dificuldade quanto às formas
sintáticas (que também ocorre tanto no nível da construção fonética quanto no da morfológica) deve‑se
ao fato de que tais formas são mais concretas que as demais. Essas formas sintáticas são estreitamente
ligadas às condições de fala, e é exatamente por isso que a teoria bakhtiniana ressalta a prioridade das
formas sintáticas sobre as formas fonético‑morfológicas.
A Teoria da Enunciação de Bakhtin (2009) ressalta que, devido à falta de interesse pelos fenômenos
da enunciação na linguística estrutural, não foi possível tratar da compreensão real, concreta e não
escolástica das formas sintáticas no funcionamento enunciativo. Para o linguista estrutural é mais
confortável lidar com a questão da operação no centro da unidade frasal, na qual é possível ainda
considerar que quanto mais o linguista se aproxima das fronteiras do discurso, mais ele se aproxima
da enunciação, e sua posição não se torna segura (mas sim instável), uma vez que a nenhuma dessas
categorias linguísticas convém a determinação do todo, já que estas só são aplicáveis no território da
enunciação.
Desta forma, para Bakhtin (2009), o interesse da Teoria da Enunciação dá‑se não somente em relação
aos problemas sintáticos, mas também à composição dos parágrafos que constituem um discurso e aos
demais níveis de relação das partes com o todo, importando o que precisamente interessa para analisar
o entrelaçar da voz do falante com a voz do ouvinte, por meio da materialidade enunciativa.
De fato, a teoria bakhtiniana se atém ao olhar objetivo no que diz respeito ao estudo das formas
da comunicação verbal e das formas correspondentes da enunciação completa, já que estas falam
sobre o sistema dos parágrafos e todos os problemas análogos. Em outras palavras, Bakhtin (2009) se
interessa pelos esquemas linguísticos envolvendo discursos direto, indireto e indireto livre, com suas
modificações e suas variantes que são encontradas na língua e que servem como transmissores das
enunciações de outrem (e que integram enunciações de outrem), abrindo a possibilidade do Método
Linguístico‑sociológico.
Quanto aos tipos de discursos apontados, com os problemas sintáticos, a teoria bakhtiniana julga
necessária uma abordagem sobre a conceituação de discurso pela Teoria da Enunciação. Esta irá explicar
o funcionamento do discurso de outrem a partir de seus esquemas específicos, realizados sob a forma
de variantes específicas, incluindo as mudanças possivelmente encontradas nas fronteiras gramaticais
e estilísticas, valendo‑se da forma de transmissão do discurso de outrem, que se define numa relação
funcional de uma enunciação com a outra, diante das possíveis edificações da própria língua. Essa
abordagem do discurso relatado constitui‑se em seus esquemas de base ou em variantes, embora a Teoria
32
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
da Enunciação ressalte que é definitivamente inacessível estabelecer uma fronteira entre a gramática e
a estilística, entre o uso do esquema gramatical e sua própria variante estilística. Para Bakhtin (2009):
Dessa forma, segundo a Teoria da Enunciação de Bakhtin (2009), é de suma importância explanarmos
que a determinação das linhas de marca para definir o discurso indireto possui características que
exprimem uma tendência de apreensão ativa do discurso de outrem e que cada esquema recria, a partir
de seus métodos, a enunciação, proporcionando uma orientação particular. Uma vez que o discurso
indireto se dá de forma analítica, ele possui suas variantes, sendo a primeira o discurso indireto
analisador do conteúdo, a segunda o discurso indireto analisador da expressão e a terceira variante
a impressionista.
A primeira variante do discurso indireto pode ser compreendida como a apreensão da enunciação de
outrem no plano temático, excluindo o que não tiver significação temática, ou seja:
Referente à segunda variante do discurso indireto, a analisadora da expressão, esta pode ser entendida
como a integração, de forma indireta, das palavras e das maneiras de dizer do outro, tornando‑se assim
facilmente notória, justamente por sua especificidade se dar mediante ironia, humor ou uso de aspas.
Quanto ao discurso direto (2009), Bakhtin menciona um emprego deste ou de uma de suas variantes
simultâneas, diante do ato de transposição inseparável dessa forma, o que torna justificável a sua
tendência analítica manifestar‑se principalmente pelo fato de os seus elementos serem emocionais e
afetivos. O discurso direto se diferencia do discurso indireto pelo emprego da entonação emocional (apelo
de convencimento), e a variante deste é constituída pela ambiguidade, empregada mais especificamente
na literatura.
33
Unidade I
A construção do discurso direto provém das marcas principais do discurso indireto, exatamente
pela natureza desse discurso se dar por meio de temas básicos que são antecipados pelos contextos
e evidenciados por entonações do autor ou das personagens. Essas entonações quase sempre são
acompanhadas por um enfraquecimento da objetividade do contexto narrativo.
Conforme Bakhtin (2009), o discurso direto e o discurso indireto formam um esquema misto quando
engendram o discurso indireto livre, o qual proporciona um discurso por substituição do contexto
narrativo em si para um contexto narrativo objetivo, ou seja, é a forma de discurso que o autor utiliza
para ressaltar seus conceitos apreciativos, que se dão também por meio de suas entonações.
Enfim, Bakhtin legou‑nos uma importante trilha de reflexões a respeito do dialogismo, da polifonia,
da enunciação, da interdiscursividade e até mesmo da noção de gênero textual e discursivo, defendendo
o princípio do dialogismo como constitutivo da linguagem e a natureza social da enunciação.
Para ele, a enunciação é o produto da interação dos indivíduos socialmente organizados, e ainda
que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social
ao qual pertence o locutor.
O termo diálogo deve ser entendido num sentido amplo, não apenas como a comunicação em voz
alta, de pessoas colocadas face a face, mas também como toda comunicação verbal, de qualquer tipo
que seja. “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros” (BAKHTIN, 2009, p.113), e
em todo enunciado descobriremos que está o outro em diferentes graus de alteridade.
Observação
Bakhtin (2009) ressalta que as palavras não são de ninguém, estão a serviço de qualquer locutor e
de qualquer juízo de valor, e podem mesmo ser totalmente diferentes, até mesmo contrárias. Conforme
o autor, em relação às fórmulas estereotipadas da vida corrente, os sistemas ideológicos constituídos da
moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam‑se a partir da ideologia do cotidiano, exercendo, por
sua vez, sobre esta, em retorno, uma forte influência e dando assim normalmente o tom a essa ideologia.
Em primeiro lugar, vamos acompanhar a reflexão crítica feita por Bakhtin (apud BARROS, 1997)
sobre a defesa do texto como objeto das ciências humanas. O autor defende (ao contrário da tradição
estruturalista) que a especificidade das ciências humanas está no fato de que seu objeto é o texto/
discurso, de modo que as ciências humanas voltam‑se para o homem como produtor de textos/discursos.
O homem é posto em evidência e se constitui como objeto de estudos por meio dos textos. Esse aspecto,
inclusive, distingue as ciências humanas das ciências exatas, que tratam o homem fora do texto. Como
ao próprio olhar de Saussure (2003, p. 15), “o ponto de vista cria o objeto”, cada ciência humana trata
de um objeto textual diferente, já que cada uma lança sobre o texto um olhar específico.
• produto da criação ideológica (da enunciação): contexto histórico, social, cultural etc.;
• materialidade única, não repetível: o arranjo de sua textura é singular (de cada um dos textos
produzidos).
Observação
O texto não existe fora da sociedade e não pode ser reduzido à sua
materialidade linguística (empirismo objetivista), nem diluído no estado
psíquico dos seus interlocutores, falante/ouvinte‑autor/leitor, (empirismo
subjetivista).
Veja que a linguística, entretanto, por fazer abstrações de suas formas de organização e de suas
funções sociais, ideológicas, por fazer dele, ainda, o seu objeto de análise, torna‑o sistematicamente,
teoricamente, repetível enquanto objeto. Nesse sentido, seria a linguística essencialmente uma ciência
humana? É o que pergunta Barros (1997) diante das reflexões propostas por Bakhtin. A autora busca
resposta para sua pergunta no próprio Bakhtin.
Em relação ao método, nas ciências humanas, Bakhtin (1992 apud BARROS, 1997) sustenta que se
trata da compreensão respondente:
35
Unidade I
Para o autor, as relações entre o sujeito da cognição (interpreta e compreende) e o sujeito das
ciências humanas (conhece um objeto) são de comunicação entre destinador e destinatário.
Veja agora, conforme apresenta Barros (1997), alguns conceitos baseados no princípio dialógico,
teorizados por Bakhtin (e por outros autores a partir de seu legado) que são de alto valor para os estudos
do texto e do discurso.
É nesse panorama que tomam forma as concepções dialógicas da linguagem e do discurso que
mais de perto interessam aos estudos do texto e do discurso. Por essa via, duas noções de dialogismo
relevam‑se para nossos estudos: o diálogo entre interlocutores e o diálogo entre discursos.
O diálogo entre interlocutores ingressa no campo dos estudos sobre a interação verbal entre sujeitos
e sobre a intersubjetividade. A respeito do dialogismo entre interlocutores, assegura Barros (1997, p.
30‑1), quatro aspectos devem ser destacados:
36
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
• a significação das palavras, o sentido do texto dependem da relação entre os sujeitos, pois
constroem‑se na produção e na interpretação dos textos;
• as observações feitas podem conduzir a conclusões precipitadas sobre a noção de sujeito defendida
por Bakhtin, considerando‑a “individualista” ou “subjetivista”. Na realidade, ele enxerga dois tipos
de sociabilidade: a relação entre os sujeitos (interlocutores em interação) e a destes sujeitos com
a sociedade que os abriga.
• o jogo de imagens;
Conforme enfatiza Barros (1997), os estudos da comunicação verbal não nasceram no seio
da linguística puramente ou das teorias do discurso, mas trilharam um percurso aberto pela Teoria
da Informação. Considere‑se que estes esquemas apresentavam lacunas por nunca abrangerem
suficientemente o funcionamento da comunicação.
Observação
Com base nas críticas já levantadas por Bakhtin, três são as principais objeções que se estabelecem no
que se refere aos esquemas de comunicação mencionados. Seguem junto a elas as reflexões bakhtinianas
que ajudaram a elucidar e resolver estes problemas para tantas teorias:
• Modelo linear dos esquemas, que se ocupa apenas, ou, de preferência, do plano da expressão:
Bakhtin vai mais longe nessa questão, já que considera a interação como a realidade fundamental
da linguagem. A interação não deve mais ser pensada como via de mão única, do emissor para o
receptor, mas como um sistema reversível e interacional. Aqui também se colocam os simulacros
intersubjetivos e a avaliação na relação dos interlocutores. Nesse ponto, há uma grande
proximidade das contribuições de Michel Pêcheux (1988) sobre os jogos de imagem entre os
sujeitos no discurso.
• Caráter por demais mecanicista: Bakhtin buscou encaminhar a abordagem da interação verbal
para uma proposta mais “humanizante”, mais “sociologizante”, melhor dizendo. Aqui também se
releva a contribuição bakhtiniana sobre o diálogo entre discursos.
O diálogo entre discursos – aqui se pontuam questões de discurso e enunciação, discurso e contexto
histórico, discurso e ideologia, bem como as noções de intertextualidade, interdiscursividade, polifonia
e heterogeneidade discursiva.
Observação
Nessa perspectiva, o discurso não é individual nas duas acepções de dialogismo mencionadas:
• não é individual, pois se constrói entre dois interlocutores, pelo menos (que, por sua vez, são seres
sociais);
• não é individual, pois se constrói como um diálogo entre discursos, mantendo relações com outros
discursos paralelos ou anteriores.
38
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
Por essa óptica, conforme reporta Barros (1997), o texto é tido em Bakhtin tanto do ponto de vista
da sua constituição interna quanto da externa, sendo considerado assim como um objeto completo para
os estudos e métodos linguístico‑discursivo‑social e histórico.
Tão importante quanto a óptica de Bakhtin (2009) sobre a enunciação é o ponto de vista de Benveniste
(1989), que será de fundamental importância quanto ao conjunto de teorias a serem percorridas nesta
reflexão. Émile Benveniste (1989), apesar de preso à tradição estruturalista e de apostar na unicidade
do sujeito locutor, contribuiu para a difusão e a importância dos estudos enunciativos, destacando‑se
por considerar que na enunciação a subjetividade da/na linguagem se funde na ação do próprio ato de
linguagem, sendo este individual, mas que convoca o “outro/tu” para dentro da enunciação.
Esse autor afirma que a enunciação coloca em funcionamento a língua por um ato individual de
utilização, por parte de um locutor que mobiliza a língua por sua conta: é o ato mesmo de produzir um
enunciado. A enunciação se caracteriza pela realização vocal da língua, supõe a conversão individual
da língua em discurso (semantização) e apresenta caracteres formais próprios a partir da manifestação
individual que ela atualiza.
Tal mobilização e tal apropriação da língua são, para o locutor, a obrigatoriedade de referir pelo
discurso e para o outro: “a referência é parte integrante da enunciação”. (BENVENISTE, 1989, p. 90). A
emergência dos índices de pessoa (eu/tu) só se produz por meio da enunciação. Como diz o autor, o
presente é propriamente a origem do tempo.
39
Unidade I
Observação
Émile Benveniste (1989), ao tratar a enunciação e seu aparelho formal, aponta primeiro, como
caráter introdutório, a preocupação em definir emprego das formas na língua como a origem
(linguístico‑descritiva) da remissão do locutor no dizer. Benveniste (1989) buscou conduzir seu estudo
aprofundando a investigação enunciativa sobre a apropriação da língua pelo locutor, colocando‑a em
funcionamento por um ato individual.
• Realização vocal da língua, na qual os sons emitidos procedem de atos individuais com relação
à produção nativa e sofrem interferência da diversidade das situações nas quais a enunciação é
produzida.
• Caracteres formais da enunciação, a apropriação da língua pelo locutor por meio da correferenciação
e no consenso pragmático.
Segundo Benveniste (1989), a enunciação provém de um ato individual de linguagem. Nesse ato
individual se introduzem o locutor, a língua e a enunciação, de modo que é na realização individual que
a enunciação se define como um processo de apropriação em que o locutor se “apodera” do aparelho
formal da língua e enuncia de seu lugar de locutor. O locutor assume a língua, na qual implanta “o
outro” diante de si.
Podemos compreender que a situação de toda a enunciação é uma alocução que postula um
alocutário, ou seja:
Benveniste (1989) destaca que a presença do locutor na enunciação de seu discurso como um centro
de referência se dá uma vez que o locutor assume a língua na qual ele, ao implantar o outro diante de
si, parte da condição de movimento e posse da língua, resultando na necessidade da correferenciação
para que se constitua um colocutor.
40
Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
Segundo a ótica desse autor, a linguística considera que a relação discursiva da enunciação dá‑se
com os receptores reais ou imaginários, individuais ou coletivos, baseando‑se no quadro figurativo da
enunciação, uma vez que ela pode ser encarada como:
• enunciação como intimação, a qual procede claramente ordem, asserção que visa comunicar uma
certeza, podendo ser denominada como quadro figurativo da enunciação. (BENVENISTE, 1989, p.
85‑6).
Ainda sobre essas considerações, Benveniste (1989) trata como um caso de “monólogo” aquilo que
define como um diálogo feito de linguagem interior entre um locutor e um ouvinte, no qual acontece
a predominância do eu‑locutor e posteriormente do eu‑ouvinte. Em outras palavras, um diálogo
interiorizado, em que, segundo Benveniste (1989), é necessário invocar a frequência e a utilidade prática
da comunicação entre os indivíduos para então ter a noção de diálogo e originar diversas variedades.
Dentro da perspectiva linguística:
Quanto ao que se refere à subjetividade na linguagem, Benveniste (1989) se defronta com dilemas
das considerações semióticas e semânticas, nos quais se entrelaçam o locutor e a língua, definindo a
subjetividade na linguagem como uma condição da mobilização e da apropriação que o locutor faz da
língua ao utilizá‑la. O autor considera fundamental a presença de locutores para elaboração integrante
da enunciação, sendo estes locutores destacados por uma temporalidade que se faz como um quadro
inato do pensamento, o que pode ser compreendido mais explicitamente em seu trabalho, O Aparelho
Formal da Enunciação (1989):
Ainda na perspectiva dos estudos enunciativos, Ducrot (1987) elabora o Esboço de uma Teoria
Polifônica da Enunciação, partindo da influência de Bakhtin (2009), acerca do dialogismo e da polifonia
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Unidade I
da linguagem (categorizados por Bakhtin principalmente em textos literários). Nos textos há várias
vozes que falam ao mesmo tempo, sem uma desvencilhar‑se das outras. Para Ducrot, o mesmo que
acontece na literatura popular, carnavalesca, analisada sob a perspectiva dialógica e polifônica de
Bakhtin, acontece de modo generalizado na linguagem, a partir do princípio de que, em cada ato de
enunciação, apresenta‑se um autor/locutor que agrega para si várias vozes implícitas distintas, ocultas
no engendramento linguístico, mas que convocam as enunciações e os enunciadores anteriores.
Podemos notar que a teoria contestadora em relação à unicidade do sujeito é uma das fontes da
ampliação/evolução dos estudos enunciativos, uma vez que o acontecimento enunciativo‑discursivo
efetiva‑se por meio de diferentes gêneros textuais e discursivos, configurando a voz do outro em uma
rede polifônica.
Ducrot (1987) também reflete sobre o estilo indireto livre e ressalta que este não se aplica a
enunciados isolados, voltando‑se novamente para a teoria bakhtiniana, em relação à literatura, a qual
Bakhtin (2009) intitula como uma disciplina “pragmático‑semântica” ou “pragmático‑linguística”. Essa
visão está vinculada ao pressuposto da ação humana em sua totalidade, destacando como objeto de
estudo o uso da linguagem, que acaba por ordenar a razão de certas palavras em determinadas ocasiões
serem constituídas de eficácia, como os atos de fala performativos (por exemplo, um padre, durante
a cerimônia de casamento, enuncia: “eu vos declaro marido e mulher”, e assim o sujeito que entrou
solteiro na igreja sai dela casado).
Ducrot se preocupa com o uso linguístico do ato de fala a partir do próprio enunciado, ou seja,
como aparecem os efeitos da enunciação, considerando que, para isso acontecer de forma teoricamente
sustentável, faz‑se necessário explicitar a diferença entre enunciado e frase, por meio de uma teoria
polifônica.
Ducrot (1987) define frase como o objeto teórico pertencente não ao linguista, e sim, em específico,
à gramática, enquanto o enunciado para ele é a ocorrência de uma frase em diferentes ocasiões,
podendo‑se considerar que uma mesma frase pode ser manifestada por uma única pessoa em
circunstâncias distintas e também por duas pessoas diferentes. Daí é possível compreender a existência
de duas ocorrências de uma mesma frase, enquanto estrutura lexical e sintática (supostamente
subjacente), já que no discurso podem ser consideradas como uma ocorrência contínua de enunciados.
Desse modo, é possível compreender os efeitos de sentido reais da situação enunciativa, ou seja, uma
hipótese interna que permite a explicação, concluindo que o enunciado é parte da enunciação.
Os provérbios, por exemplo, são enunciados que podem circular em diferentes enunciações e,
portanto, podem ser ditos por enunciadores diferentes que produzem sentidos diferentes. Imagine o
enunciado proverbial “Quem não chora não mama” dito por diferentes locutores:
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Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
Ainda referente à distinção de frase e enunciado, Ducrot (1987) destaca que a enunciação pode ser
compreendida em três aspectos:
Ducrot (1987) ressalta que não é possível afirmar a definição oposta de frase e enunciado com a
distinção de enunciação sem antes explicitar a diferença entre a significação e o sentido. Conforme
a Teoria Polifônica, a significação está para a frase assim como o sentido está para a caracterização
semântica do enunciado, pois, conforme a concepção polifônica, entende‑se que a significação
pode ser o “algo” que o sujeito falante procura transmitir em uma construção que ocorre em uma
situação de discurso. O sentido, por sua vez, é compreendido como um conjunto de indicações sobre
a enunciação, ou seja, podemos considerar o sentido “algo” ou alguma coisa que se comunica ao
interlocutor, reconhecendo o fato de que o sujeito falante realiza o ato para transmitir um saber ao
interlocutor, levando‑se em consideração que o(s) sentido(s) em um enunciado é(são) passível(is) de
interpretação(ões), sendo, portanto, denominado(s) descrição(ões) pragmática(s).
Observação
Aprofundemos, então, a definição de sujeito, por Ducrot (1987), em suas propriedades categoriais
específicas:
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Unidade I
• Sujeito tomado como autor do enunciado, aquele que ordena, pergunta, afirma etc.
• Sujeito definido por meio da designação que recebe pelas marcas de primeira pessoa, isto é,
quando o sujeito é eu, aquele que produz o enunciado (concepção do discurso relatado direto).
Em relação ao termo sujeito definido por Ducrot (1987), é possível constatarmos duas distinções
de personagens: locutor e enunciador.
— Locutor (L): é o ser responsável pela enunciação (referente ao pronome eu como marca de
primeira pessoa), embora um único enunciado possa apresentar dois locutores distintos
evidenciados pela marca de primeira pessoa, por exemplo: “João me disse: eu virei”.
— Enunciador (E): é o sujeito dos atos ilocutórios fundamentais, como na afirmação, recusa,
pergunta, incitação, exclamação, ou seja, enunciador é o sujeito ao qual são atribuídos os
diversos pontos de vista que se dão pelas palavras.
Aplicando essa tese de vários sujeitos em textos literários, Ducrot (1987) ressalta: “direi que o
enunciador está para o locutor assim como a personagem está para o autor” (DUCROT, 1987, p. 192).
• enunciação – atividade;
• enunciação – produto;
• enunciação – acontecimento.
É com a última concepção (mais completa) que Ducrot (1987) se coaduna em sua teoria. Dentro
dessa perspectiva, conforme o autor, sobre os conceitos de sentido e significado, o sentido diz respeito
à enunciação e o significado diz respeito à frase. Na enunciação, o sentido tem natureza instrucional a
partir das variáveis argumentativas.
Note que a concepção polifônica do sentido mostra como o enunciado assinala, em sua enunciação, a
sobreposição de diferentes vozes. Para Ducrot (1987), tal qual uma cena de teatro em que se configuram
diferentes personagens que dialogam entre si, há uma apresentação de diferentes vozes, de vários pontos
de vista, e o locutor tem como função provocar seu aparecimento e mostrá‑los dentro do enunciado:
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Ensino de Gramática na Perspectiva Enunciativa
estes diferentes pontos de vista o autor vai chamar de enunciadores. Ele aponta diferentes funções
enunciativas para melhor identificar a multiplicidade de vozes presentes na enunciação.
• O sujeito empírico (SE): é o autor efetivo, agente da reprodução de discursos já escutados ou lidos.
O ser empírico que preenche o lugar de sujeito.
• O locutor (L): é o responsável presumido pelo enunciado, inclusive, pelo ato praticado, e não pelo
conteúdo proposicional (marcas em primeira pessoa).
• Os enunciadores (E1, E2...): são os vários pontos de vista que podem ser percebidos em um mesmo
enunciado.
Apagada a mediação do sujeito empírico na enunciação, as figuras enunciativas (SE, L, E1, E2...)
dão lugar à multiplicidade de sujeitos. Dessa forma, podemos compreender que os tipos de locutor
exemplificados acabam por evidenciar a primeira forma de polifonia, uma vez que provam a existência
de mais de um sujeito no enunciado.
Resumo
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