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DIÁLOGOS

INTERDISCIPLINARES:
Estudos sobre Língua, Literatura e Ensino

Susiele Machry da Silva


Letícia Lemos Gritti
Lovania Roehrig Teixeira
Pedro Afonso Barth
Taisa Pinetti Passoni
Yohanna Hemilly Kathleen Kuhl
(Organizadores)
Todos os direitos desta edição reservados a Pontes Editores Ltda.
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CONSELHO EDITORIAL:

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(UFMG – Belo Horizonte)

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Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)

S586d Silva, Susiele Machry da et al.

Diálogos Interdisciplinares: estudos sobre língua, literatura e ensino /


Organizadores: Susiele Machry da Silva, Letícia Lemos Gritti, Lovania Roehrig
Teixeira, Pedro Afonso Barth, Taisa Pinetti Passoni e Yohanna Hemilly Kathleen
Kuhl.– 1. ed.– Campinas, SP : Pontes Editores, 2021. 882 p.; il.; tabs.; quadros;
fotografias.
E-Book: 12 Mb; PDF.

Inclui biliografia.
ISBN: 978-65-5637-303-4.

1. Educação. 2. Linguística. 3. Literatura. I. Título.


II. Assunto. III. Organizadores.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846


Índices para catálogo sistemático:
1. Didática - Métodos de ensino instrução e estudo– Pedagogia. 371.3
2. Linguagem, Línguas – Estudo e ensino. 418.007
3. Literatura. 800
DIÁLOGOS
INTERDISCIPLINARES:
Estudos sobre Língua, Literatura e Ensino

Susiele Machry da Silva


Letícia Lemos Gritti
Lovania Roehrig Teixeira
Pedro Afonso Barth
Taisa Pinetti Passoni
Yohanna Hemilly Kathleen Kuhl
(Organizadores)
Copyright © 2021 – Dos organizadores representantes dos autores
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Diagramação: Vinnie Graciano
Revisão: Dos autores

PARECER E REVISÃO POR PARES


Os capítulos que compõem esta obra foram submetidos para avaliação e revisados por pares.

Equipe técnica:

Camila Paula Camilotti


Claudia Marchese Winfield
Daiane da Silva Lourenço
Didiê Ana Ceni Denardi
Eduardo Ferreira
Égide Guareschi
Franciele Clara Peloso
Marcele Garbin Dagios
Márcia Andréa dos Santos
Marcia Oberderfer Consoli
Marcos Hidemi de Lima
Maria Ieda Almeida Muniz
Mariese Ribas Stankiewicz
Mirian Ruffin
Rosangela Aparecida Marquezi
Siderlene Muniz-Oliveira
Wellington R. Fioruci

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 10

AUTORES CONVIDADOS

ENSINO DE PRONÚNCIA DE LÍNGUAS NÃO NATIVAS: CONTRIBUIÇÕES DOS


ESTUDOS FORMAIS E APLICADOS 14
Ubiratã Kickhöfel Alves
METODOLOGIAS DE APRENDIZAGEM ATIVA E ENSINO DE LÍNGUAS  37
Rosane de Mello Santo Nicola

PARTE 1 - ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA E INTERFACES

DESAFIOS DA PRÁTICA DOCENTE NO ENSINO DE LÍNGUA INGLESA NA PRÉ-


ESCOLA/EDUCAÇÃO INFANTIL NA REDE MUNICIPAL DE XAXIM/SC 56
Alâna Capitanio
Saionara Greggio
DIREITOS HUMANOS, LÍNGUA INGLESA E #BLACKLIVESMATTER: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA 76
Candida Joelma Leopoldino
Jessica Paula Vescovi
ENSINO DE LÍNGUA INGLESA POR MEIO DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA DO GÊNERO
PROPAGANDA INSTITUCIONAL: RELATO DE EXPERIÊNCIA 87
Isabella Todeschini
Katiana Pacianello
Didiê Ana Ceni Denardi
INTERAÇÃO NAS AULAS DE LÍNGUA INGLESA: A TRAVESSIA ENTRE-LÍNGUAS 103
Tany Aline Folle
Saionara Greggio
LETRAMENTOS MULTISSEMIÓTICOS NA FORMAÇÃO DOCENTE: DESENVOLVENDO
ESTRATÉGIAS PEDAGÓGICAS PARA O AUDIOVISUAL 126
Ana Paula Domingos Baladeli
POLÍTICAS LINGUÍSTICAS E ENSINO DE LÍNGUAS ADICIONAIS PARA CRIANÇAS NO
BRASIL: REFLEXÕES SOBRE A LÍNGUA INGLESA 139
Karin de Oliveira Lemos
Taisa Pinetti Passoni
PRODUÇÕES TEXTUAIS EM LÍNGUA INGLESA: O PROCESSO DE ESCRITA E
REESCRITA DO GÊNERO PROFISSIONAL RÉSUMÉ 154
Ana Valéria Bisetto Bork Gödke
TOTAL PHYSICAL RESPONSE E OS FILTROS AFETIVOS NO ENSINO DE LÍNGUA
INGLESA PARA CRIANÇAS 178
Carolina Batista Molina
UM LEVANTAMENTO SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA ORALIDADE EM LI NAS
ESCOLAS DA REDE PÚBLICA BRASILEIRA  196
Marcos Cristovam Lopes de Paula
Claudia Marchese Winfield

PARTE 2 - ENSINO DELÍNGUA PORTUGUESA E INTERFACES

ANÁLISE DOS ASPECTOS MULTIMODAIS NO CURTA-METRAGEM “O OUTRO PAR” 217


Samara Fatima Belo
Cristiane Malinoski Pianaro Angelo
ANÁLISES DE ESCRITAS E REESCRITAS EM ARTIGOS DE OPINIÃO 237
Iolana Cristina Pereira
Marlei de Fatima Locatelli
Letícia Lemos Gritti
AS CLASSES DE PALAVRAS NUMA ABORDAGEM ENUNCIATIVA: O ESTUDO DE
SUBSTANTIVOS E ADJETIVOS 259
Kamilla Tratsch Gula
Luciana Fracassi Stefaniu
ESTUDO DO SUJEITO GRAMATICAL NA PERSPECTIVA ENUNCIATIVA/DISCURSIVA 279
Emanuele Barbosa da Silva
Luciana Fracassi Stefaniu
PROPOSTA DE ATIVIDADES PARA A PRÁTICA DE ANÁLISE LINGUÍSTICA A PARTIR
DOS DÊITICOS EM QUESTÕES DE VESTIBULAR 296
Ludmila Serafim Lopes
GRAMÁTICAS BRASILEIRAS E SINTAXE NOS SÉCULOS XX E XXI: UM OLHAR
ENUNCIATIVO 322
Michelen Aparecida Zortéa
Luciana Fracassi Stefaniu
LER, VERBO SEM COMPLEMENTO: A LEITURA NA PESQUISA COMO PRINCÍPIO
EDUCATIVO 341
Amanda Machado Chraim
A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS INFANTOJUVENIS NO COMBATE AO RACISMO 364
Antonio Carlos Valentini
Vera Rodrigues
Laura Tacca
Siderlene Muniz-Oliveira
DENOMINAÇÕES PARA ‘BOLA DE GUDE’ NO PARANÁ E EM PERNAMBUCO: UM
ESTUDO CONTRASTIVO BASEADO EM ATLAS LINGUÍSTICOS 376
Edmilson José de Sá
DIREITO À VOZ E O FEMINISMO NEGRO: REFLEXÕES SOBRE O LUGAR DE FALA 387
Vitória Muniz-Oliveira
Siderlene Muniz-Oliveira
MODALIDADES EPISTÊMICA E DEÔNTICA NO DISCURSO POLÍTICO: UMA ANÁLISE
FUNCIONALISTA DE PRONUNCIAMENTOS EM CONTEXTO DE COVID - 19 397
Sarah Caroline Alves Anselmo
CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM E DE ESCRITA NA FORMAÇÃO DOCENTE INICIAL 412
Paulo Cezar Czerevaty
Cristiane Malinoski Pianaro Angelo
LEITURA DE CHARGE EM LIVRO DIDÁTICO DA EJA: ANÁLISE A PARTIR DA
PERSPECTIVA DIALÓGICA 429
Flávia Gumieiro Vieira
Cristiane Malinoski Pianaro Angelo
CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA NAS PRÁTICAS DA ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 445
Elena Adriana Dietrich Picolotto
GRAFIAS NÃO-CONVENCIONAIS DE LATERAIS ALVEOLARES EM TEXTOS DE
ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DE PONTA GROSSA 460
Tayná Maria Coelho Bugai
Jheniffer Amanda Dias
Márcia Cristina do Carmo
“CAOS”: ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DE SENTIDO VERBO-VISUAL EM UMA CAPA
DA REVISTA CARTA CAPITAL 475
Anselmo Pereira Lima
Bianca Presotto
Camila Ribas Stankoski

PARTE 3 - ESTUDOS EM LITERATURA E INTERFACES

A BRUXARIA COMO LIBERDADE FEMININA EM LOLLY WILLOWES DE SYLVIA


TOWNSEND WARNER  490
Sintia Deon
A FIGURA DA MORTE EM ADDIE BUNDREN: ELEMENTOS GÓTICOS EM AS I LAY
DYING DE WILLIAM FAULKNER 506
Denilson Amancio Ferreira
Mariese Ribas Stankiewicz
AS REDOMAS DE SYLVIA PLATH: UMA ANÁLISE DA FIGURA FEMININA EM A
REDOMA DE VIDRO 524
Sara Gonçalves Rabelo
DONAS DE CASA? PERSPECTIVAS SOBRE A SUBMISSÃO DA MULHER NO
AMBIENTE PRIVADO NOS CONTOS “I LOVE MY HUSBAND” E “A MOÇA TECELÔ 534
Paola Fernanda Gomes
ENTRE O SOBRENATURAL E A HISTERIA: O FANTÁSTICO E A PRECEPTORA EM A
VOLTA DO PARAFUSO, DE HENRY JAMES 554
Carline Eberhardt
Mariese Ribas Stankiewicz
TIA NASTÁCIA: REPRESENTAÇÃO DA PERSONAGEM NAS OBRAS DE MONTEIRO
LOBATO  566
Gabriele Macagnan dos Santos
Marcia Oberderfer Consoli
A MULHER PRETA E A CULTURA ELITIZADA NO CONTO “ROSE DUSREIS”, DE
CONCEIÇÃO EVARISTO 576
Isabella Dias
Marcos Hidemi de Lima
CORPO SEM ÓRGÃOS E GROTESCO: ACENOS E AFAGOS, DE JOÃO GILBERTO NOLL 587
Diego Gomes do Valle
DA LITERATURA AO CINEMA: O PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO EM ÓRFÃOS DO
ELDORADO 603
Edione Gonçalves
Wellington Ricardo Fioruci
MACABÉA: UMA ANÁLISE DA POBREZA E DA EXCLUSÃO SOCIAL EM A HORA DA
ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR 623
Mariliane dos Santos Dalmolin
Marcos Hidemi de Lima
O DUPLO NA TRILOGIA ÓPERA DOS MORTOS, LUCAS PROCÓPIO E UM
CAVALHEIRO DE ANTIGAMENTE, DE AUTRAN DOURADO  636
Ivonete Dias
Marcos Hidemi de Lima
O ESTILO POÉTICO-EXISTENCIAL DE AGE DE CARVALHO EM AINDA: EM VIAGEM  655
Adonai da Silva de Medeiros
Raphael Bessa Ferreira
O PESO DA CRUZ E O PESO DA EXCLUSÃO: UMA ANÁLISE DA MARGINALIDADE EM
O PAGADOR DE PROMESSAS (DIAS GOMES) 675
Vanessa de Andrade
Mateus da Silva Kaefer
Marcos Hidemi de Lima
VIOLÊNCIA E TÉCNICA NARRATIVA EM “PASSEIO NOTURNO”, DE RUBEM FONSECA 690
Murilo Eduardo dos Reis
AUTO DA COMPADECIDA SOB A LUZ DO MÉTODO RECEPCIONAL 702
Leonardo Sinckiewicz Carrera Guisantes (UEPG)
Lucan Fernandes Moreno (IFPR)
CLUBE DE LEITURA: UMA PROPOSTA DE FORMAÇÃO DE LEITORES LITERÁRIOS NO
ENSINO MÉDIO 714
Lucan Fernandes Moreno
OFICINAS LITERÁRIAS: ESTRATÉGIAS E POSSIBILIDADES NA FORMAÇÃO LEITORA725
Solange Diniz de Oliveira
Dalva Lobão Assis
O TRABALHO COM OS CONTOS CLÁSSICOS NO 8º ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL: LEITURA, PRODUÇÃO E ENCENAÇÃO 735
Elyk Verônica Oliveira Vargas
Gleidenira Lima Soares
Janine Felix da Silva
ANTERO DE QUENTAL E CESÁRIO VERDE: DUAS VOZES REVOLUCIONÁRIAS DA
POESIA PORTUGUESA OITOCENTISTA 750
Valci Vieira dos Santos
A FRAGMENTAÇÃO DO INDIVÍDUO NA MODERNIDADE EM ANGÚSTIA DE
GRACILIANO RAMOS E MEMÓRIAS DO SUBSOLO DE FIÓDOR DOSTOIÉVSKI 768
Ana Paula Valandro
Wellington Ricardo Fioruci

PARTE 4 - ESTUDOS INTERDISCIPLINARES E DE TRADUÇÃO

A INCLUSÃO ATRAVÉS DO USO DE MÍDIAS DIGITAIS: CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA E


DIFICULDADES EM LEITURA 784
Chris Royes Schardosim
Eliane Costa Kretzer
GOOGLE CLASSROOM – UMA PLATAFORMA COM POSSIBILIDADES DE INCLUSÃO
DIGITAL 794
Eydie Luciana Miglioranza Stanqueviski
Rosana de Fátima Vieira dos Santos Gotz
TRANSTORNO DE ESPECTRO AUTISTA, INCLUSÃO E LINGUAGEM: UM ESTUDO A
PARTIR DA LEGISLAÇÃO E DAS PESQUISAS NA ÁREA DA LINGUÍSTICA APLICADA 806
Gabrieli Aparecida Guedes
Cristiane Malinoski Pianaro Angelo
FLORENCE WELCH EM TRADUÇÃO: ANÁLISE DAS TRADUÇÕES DOS POEMAS
“MONSTER” E “BECOME A BEACON” PARA A LÍNGUA PORTUGUESA 825
Leonardo Rigon Kasmarek
MARCAS CULTURAIS NO PROCESSO TRADUTÓRIO: ESTUDO DA TRADUÇÃO DO
SKETCH THE KING OF BOONLAND 839
Ana Flávia Will
Giovanna Bendia Pereira
Mirian Ruffini
TOLKIEN E POESIA: UMA APRECIAÇÃO TRADUTÓRIA DE “THE MAN IN THE MOON
STAYED UP TOO LATE” 849
Maria Luísa Mackowiak
Mirian Ruffini
OS TCCS DA LICENCIATURA EM LETRAS DA UTFPR – PATO BRANCO: UMA REVISÃO
BIBLIOGRÁFICA SISTEMATIZADA 867
Juliana Fressato Carvalho
Raquel Souza Tre
Taisa Pinetti Passoni

SOBRE OS ORGANIZADORES 880


APRESENTAÇÃO

Este livro é resultado do “I Seminário Interdisciplinar: Língua Literatura e


Ensino”, realizado entre os dias 05 e 09 de outubro de 2020, evento que surgiu
como uma iniciativa de um grupo de professores da graduação e pós-graduação
do Departamento Acadêmico de Letras da Universidade Tecnológica Federal do
Paraná (UTFPR), do Campus de Pato Branco. Em meio à pandemia de COVID-19,
que nos impediu de estarmos “fisicamente” com os alunos em nossas salas de aula
da universidade, as plataformas digitais e as interações online potencializaram
iniciativas e interações que antes repercutiam apenas em âmbito local e nos pos-
sibilitaram o encontro e o intercâmbio de conhecimentos diversos que comparti-
lhamos nesta obra.

Mais que um evento científico, o seminário teve um caráter humanístico,


sendo realizado em prol da campanha “AME - Valentim”, que visou amparar um
bebê da cidade de Marmeleiro - região sudoeste do Paraná - que buscava recur-
sos para o tratamento de Atrofia Muscular Espinhal. Todas as arrecadações de
inscrições e doações voluntárias foram destinadas à campanha, e os valores fo-
ram depositados pelos próprios participantes diretamente na conta dos pais do
bebê.

Movidos pela sensibilidade, nos engajamos na organização do evento, reu-


nindo um grupo de voluntários, docentes, pesquisadores, discentes e pessoas
dispostas a colaborar tanto com a campanha “AME-Valentim”, como com a divul-
gação científica. Pessoas de diversas partes do Brasil uniram-se por duas razões
que jamais deveriam se separar: a ciência e a solidariedade. Com a diversidade de
atividades, incluindo palestras, mesas-redondas, manifestações culturais e gru-
pos temáticos, o evento reuniu, de forma virtual, diferentes instituições de esta-
dos como Bahia, Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso, Mato

10
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Alagoas,
Paraíba, Sergipe, Goiás, Pará, Ceará, Maranhão, Piauí e Rondônia.

A alta adesão à campanha deu-se também pelo alcance da divulgação nas


redes sociais do evento. Assim, pessoas do Brasil todo puderam fazer-se presen-
tes nesse ato de solidariedade, aproximando uma vez mais a ciência à sociedade.

De caráter interdisciplinar, associado às áreas de Língua, Literatura e


Ensino, o seminário contou com 16 grupos temáticos (GTs) e com a divulgação
de trabalhos científicos nessas áreas, do que resulta a organização desta obra, a
qual conta com 54 capítulos, oriundos das apresentações do evento. Para aber-
tura desta publicação, contamos com as contribuições de autores convidados
que participaram do Seminário como palestrantes nos encontros online. Assim, o
professor Ubiratã Kickhöfel Alves, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), nos apresenta a discussão sobre o ensino de pronúncia de Línguas Não
Nativas; e a professora Rosane de Mello Santo Nicola, da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUC-PR), discorre acerca das metodologias de aprendizagem
ativa e ensino de línguas.

Em seguida, a publicação se organiza em quatro blocos, organizados em


blocos temáticos. A primeira parte, “ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA”, com-
posta por 9 capítulos, congrega pesquisas nas áreas de ensino de idiomas, de
modo a pautar desafios da prática docente, metodologias de ensino, ensino de
inglês para crianças, bem como aspectos relativos à oralidade em língua inglesa

A segunda parte, “ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA”, somando um to-


tal de 16 capítulos, reúne pesquisas sobre as incursões relacionadas às análises
de sentidos e de significados e suas relações com ensino-aprendizagem de língua
portuguesa. Compartilham-se experiências e conhecimentos das áreas relaciona-
das à construção de sentidos da Linguística. Nesse sentido, são apresentados tra-
balhos relacionados à Semântica, à Pragmática, à Linguística Textual, à Fonética
e Fonologia e à Análise do Discurso, bem como pesquisas que se dedicam a dis-
cussões relacionadas ao ensino-aprendizagem de língua portuguesa (Linguística
Aplicada) tanto na sua modalidade oral quanto na modalidade escrita e aplicações
ao ensino. São, assim, colocadas em pauta discussões acerca da cultura, a inserção
social de grupos minoritários, especialmente nas questões relacionadas ao ensi-
no, assim como discussões político-sociais de direitos e cidadania desses grupos.

A terceira parte, “ESTUDOS EM LITERATURA E INTERFACES”, con-


grega 20 trabalhos que tomam o texto literário como ponto de partida ou de

11
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

interlocução para as mais distintas e importantes reflexões. Destacamos traba-


lhos que analisam a valorização do protagonismo feminino nas mais diversas ma-
nifestações artísticas, textos que dialogam com obras literárias para questionar o
patriarcalismo e racismo incrustados em nossa sociedade, e capítulos que se de-
dicam a pensar em provocações críticas para dinamizar o ensino de literatura e a
formação de leitores no século XXI, entre outras fundamentais discussões. Assim,
há trabalhos que dialogam com literaturas estrangeiras e literaturas de expressão
portuguesa, como a literatura brasileira e a literatura portuguesa. A transmidiali-
dade e a interdisciplinaridade também estão presentes em estudos que abordam
a relação da literatura com o cinema e outras artes.

A quarta e última parte, “ESTUDOS INTERDISCIPLINARES”, reúne 7 capí-


tulos com estudos relacionados à inclusão, à inclusão digital, à tradução e a refle-
xões acerca da pesquisa na área de Letras. As temáticas evidenciadas neste bloco
perfazem caminhos desde a perspectiva de ensino e desafios da educação inclusi-
va, até apontamentos de metodologias e práticas.

Pato Branco, setembro de 2021.

Susiele Machry da Silva

Letícia Lemos Gritti

Lovania Roehrig Teixeira

Pedro Afonso Barth

Taisa Pinetti Passoni

Yohanna Hemilly Kathleen Kuhl

Organizadores

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AUTORES
CONVIDADOS
ENSINO DE PRONÚNCIA DE LÍNGUAS
NÃO NATIVAS: CONTRIBUIÇÕES DOS
ESTUDOS FORMAIS E APLICADOS1

Ubiratã Kickhöfel Alves2

RESUMO: No presente trabalho, ao concebermos que a prática do professor é


guiada (implícita ou explicitamente) por sua concepção de língua, discutimos as
contribuições de uma visão dinâmica e complexa de desenvolvimento linguístico
para o ensino de pronúncia de línguas não nativas. À luz desse paradigma, eviden-
ciamos como tanto os estudos formais quanto as investigações aplicadas podem
contribuir para a sala de aula de L2. A partir dos estudos formais, a visão dinâmica
contribui para redefinir os primitivos fonológicos e, por conseguinte, repensar os
aspectos fonético-fonológicos a serem abordados em um ensino com foco na in-
teligibilidade. Por sua vez, os estudos aplicados contribuem para que se redefina
o próprio construto ‘inteligibilidade’, de modo que tal construto possa ser visto
como emergente e compartilhado entre falantes e ouvintes; disso decorre um en-
sino de pronúncia integrado aos outros componentes linguísticos e a serviço de
metas comunicativas. A partir da reflexão proposta neste trabalho, ressaltamos
a necessidade do fortalecimento do elo entre pesquisa e ensino de línguas, bem
como o caráter fundamental desses dois aspectos na formação do professor.

1 Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).


Agradecemos, também, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul
(FAPERGS), pelo apoio financeiro por meio do Edital 02/2017 – Programa Pesquisador Gaúcho
- – Processo 17/2551-0001000-0.
2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ukalves@gmail.com

14
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de pronúncia; Sistemas Dinâmicos Complexos;


Princípio da Inteligibilidade.

ABSTRACT: In this study, as we conceive that a teacher’s practice is guided (implicitly or


explicitly) by his views on language, we discuss the contributions of a dynamic, complex
account of language development to the teaching of pronunciation. Following the com-
plexity paradigm, we aim to show how both formal and applied research studies can
contribute to the L2 classroom. As for the formal studies, the dynamic view allows us
to rethink the nature of phonological primitives and redefine the phonetic-phonological
aspects that play a role in intelligibility. In turn, applied studies reconceptualize the ‘in-
telligibility’ construct, by seeing it as an emerging property that is shared among speak-
ers and listeners. With regards to pronunciation teaching, the dynamic account allows
for an integration of pronunciation with other linguistic components, aiming at broader
communicative goals. Based on the discussion proposed in this chapter, we highlight
the need to strengthen the connection between language teaching and research, as we
emphasize their importance in teacher education.

KEYWORDS: Pronunciation Teaching; Complex, Dynamic Systems; Intelligibility


Principle.

Introdução

Ao longo dos anos, o ensino do componente fonético-fonológico tem pas-


sado por uma série de mudanças não somente no que diz respeito à discussão de
como deve ser desenvolvida tal prática pedagógica, mas, também e sobretudo, no
que concerne aos seus objetivos. Tais mudanças acompanham a própria evolução
das discussões acerca de como deve se dar o ensino dos demais componentes de
uma língua não nativa ou adicional3, de modo que o componente fonético-fonoló-
gico se mostre cada vez mais integrado à prática pedagógica referente aos demais
elementos da língua.

As discussões sobre o ensino do componente fonético-fonológico perde-


ram lugar, sobretudo, nos primeiros anos da Abordagem Comunicativa para o
ensino de línguas, fato esse que se caracterizou como uma reação às premissas
da Abordagem Audiolingual. De fato, no Audiolingualismo, ainda que o ensino de
pronúncia ocupasse lugar de destaque em meio aos passos pedagógicos previstos,

3 Neste trabalho, não realizaremos distinção entre os termos ‘Língua Não Nativa’ (LNN), ‘Segunda
Língua’ (L2), ‘Língua Estrangeira’ (LE) ou ‘Língua Adicional’ (LA), de modo a tratarmos todos esses
termos como intercambiáveis.

15
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

primava-se pela supervalorização do padrão nativo. Tal reação a uma abordagem


de cunho behaviorista, que resultou em um enfraquecimento das discussões teó-
ricas e aplicadas sobre o ensino do componente fonético-fonológico entre as dé-
cadas de 60 a 90, levou Kelly (1969) a caracterizar a pronúncia como a “Cinderela”
do ensino das línguas adicionais.

Apesar do cenário desanimador encontrado no fim do século passado, ve-


rificamos, nos dias atuais, uma retomada tanto dos estudos empíricos quanto das
discussões pedagógicas acerca dos efeitos e objetivos do ensino de pronúncia.
Essa mudança teve início na primeira década do novo século, quando Levis (2005),
ao discutir os objetivos de tal prática pedagógica, propõe uma distinção entre dois
princípios gerais de ensino: o da ‘natividade’ (do inglês, nativeness principle), carac-
terístico do ensino tradicional de pronúncia, em oposição ao da ‘inteligibilidade’
(intelligibility principle). Esse último princípio, elaborado a partir dos construtos
de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ propostos inicialmente em Munro e
Derwing (1995a; 1995b)4, tem por meta uma fala que, ainda que venha a apresen-
tar características da língua materna do aprendiz, se mostre suficientemente cla-
ra para um entendimento tanto entre ouvintes nativos quanto não nativos da lín-
gua que está sendo produzida. A partir do princípio da inteligibilidade, portanto,
o “mito do falante nativo” cai por terra. Tal princípio que resulta em uma série de
discussões e a um retorno do componente fonético-fonológico nos currículos de
ensino, levam Levis (2018a) a assinar um artigo denominado “Cinderella no more:
leavingvictimhood behind”5. Confirma-se, em meio a esse cenário, o novo status que
o componente fonético-fonológico tem ocupado nas discussões formais e aplica-
das nas últimas duas décadas.

Neste trabalho, argumentamos que as mudanças referentes aos objetivos


e às próprias práticas de ensino de pronúncia são decorrentes de transformações
substanciais referentes à concepção de língua e desenvolvimento linguístico que
têm marcado a agenda de discussões dos estudos da linguagem nos últimos 20
anos. Em outras palavras, defendemos que a caracterização de construtos como
‘inteligibilidade’ deverá ter por base concepções claras de língua e conhecimento

4 Em seu texto clássico de apresentação dos construtos, Munro e Derwing (1995b, p. 291) defi-
nem o construto de inteligibilidade como “o grau no qual a mensagem é de fato entendida”, en-
quanto o construto de ‘compreensibilidade’ é definido como “as percepções, por parte do ouvin-
te, da dificuldade de entender enunciados em particular” (MUNRO; DERWING, 1995b, p. 291).
Para uma recaracterização desses construtos a partir de uma concepção dinâmica e complexa,
veja-se Albuquerque (2019).
5 Em português “Não mais a Cinderela: deixando a vitimização para trás”.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

linguístico. Ao considerarmos que a prática do professor é reflexo de como ele


concebe a linguagem, independentemente de esse se mostrar explicitamente
consciente acerca de tal concepção ou não, verificamos que novos paradigmas
para se conceber a língua e o seu desenvolvimento acabam por exercer papel fun-
damental nas definições dos objetivos de ensino. A partir de tais constatações,
verificamos, portanto, a contribuição dos Estudos Linguísticos, tanto formais
quanto aplicados, ao prestarem um importante papel para o estabelecimento e a
discussão dessas diferentes concepções.

Ao considerarmos a área de estudos de ‘Aquisição de Segunda Língua’, ve-


rificamos que perspectivas voltadas à língua em uso, que tiveram início nos estu-
dos conexionistas (GASSER, 1990; ELMAN et al., 1996; ZIMMER, 2004, dentre
outros), passaram pelas discussões emergentistas (ELLIS; LARSEN-FREEMAN,
2006; ZIMMER; SILVEIRA; ALVES, 2009; ELLIS; WULFF, 2015, dentre outros) e
desembocaram na visão dinâmica e complexa (LARSEN-FREEMAN; CAMERON,
2008; LARSEN-FREEMAN, 2015a, 2015b, 2017; KUPSKE; ALVES, 2017; LIMA
JR.; ALVES, 2019), têm muito a contribuir para que os estudos sobre as discus-
sões sobre a inteligibilidade da fala. Neste trabalho, concentraremos nossa dis-
cussão nas contribuições dos trabalhos teóricos e aplicados advindos da Teoria
dos Sistemas Dinâmicos Complexos (SDC - De BOT; LOWIE; VERSPOOR, 2007;
LARSEN-FREEMAN; CAMERON, 2008; BECKNER et al., 2009; VERSPOOR; DE
BOT; LOWIE, 2011; DE BOT, 2017; LOWIE, 2017; LOWIE; VERSPOOR, 2015,
2019). Ao discutirmos tal perspectiva, enfocaremos o ensino de pronúncia na
contemporaneidade, de modo a destacarmos como o tratamento do componente
fonético-fonológico da L2 à luz da complexidade pode se mostrar associado aos
demais componentes linguísticos, estando plenamente a serviço da inteligibilida-
de da fala. Em outras palavras, nossa intenção é, dessa forma, mostrar como as
discussões de base sobre o que caracteriza o conhecimento linguístico, expressas
a partir de estudos formais e de investigações de caráter aplicado, exercem papel
fundamental na prática do professor de línguas adicionais.

Dado o objetivo supracitado, o trabalho será organizado da seguinte ma-


neira: primeiramente, apresentaremos os principais pilares da concepção dinâ-
mica e complexa de desenvolvimento linguístico. Após essa breve caracterização,
discutiremos alguns trabalhos que temos desenvolvido à luz dos preceitos dinâ-
micos, no âmbito do Laboratório de Bilinguismo e Cognição (LABICO-UFRGS),
que julgamos contribuir para a discussão não somente sobre quais conteúdos
ensinar, mas também acerca do porquê ensinar pronúncia a partir do princípio

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

da inteligibilidade. Finalmente, discutiremos o modo como os pressupostos dinâ-


micos podem (re)definir as etapas pedagógicas que caracterizam o ensino de pro-
núncia na contemporaneidade. Na seção de Considerações Finais, retomamos as
principais questões de reflexão e reafirmamos a contribuição de uma concepção
clara de língua e conhecimento linguístico, obtida a partir de investigações tanto
formais quanto aplicadas, para um ensino integrado e contextualizado do compo-
nente fonético-fonológico.

A visão de Língua como Sistema Dinâmico Complexo

As reflexões sobre ensino de pronúncia realizadas neste trabalho têm por


base uma concepção de língua como Sistema Dinâmico Complexo-SDC (De BOT;
LOWIE; VERSPOOR, 2007; LARSEN-FREEMAN; CAMERON, 2008; BECKNER
et al., 2009; VERSPOOR; de BOT; LOWIE, 2011; DE BOT, 2017; LOWIE, 2017;
LOWIE; VERSPOOR, 2015, 2019). Em um SDC, todos os elementos componentes
de tal sistema se encontram fortemente conectados; disso decorre que uma mo-
dificação (inevitável) em um desses elementos pode exercer efeitos sobre todo o
restante do sistema. É nesse sentido que se justifica o uso do termo ‘dinâmico’: não
se trata de um conjunto estático de elementos, uma vez que tal sistema está em
constante transformação, afetado por uma grande gama de variáveis. O sistema
como um todo está sempre se adaptando e se alterando em função das modifica-
ções de seus componentes, tentando buscar pontos de equilíbrio ao longo de sua
trajetória. Por sua vez, a partir do uso do termo ‘complexo’, sabemos que o sistema
resultante não é uma simples soma dos seus elementos individuais; em função de
sua não linearidade, o acréscimo ou decréscimo de um elemento pode, inclusive,
exercer mudanças consideráveis. Verspoor (2015) traz à luz as considerações de
Weisstein (1999) para definir ‘sistema dinâmico’ como uma maneira de analisar
e descrever como um estado (de um sistema) se desenvolve ou se transforma em
outro estado ao longo do tempo. Por sua vez, dizer que um sistema é ‘comple-
xo’ implica afirmar que esse é composto por diversos elementos que interagem
entre si e apresentam comportamento emergente, sendo que sua totalidade não
corresponde à mera soma das partes (LARSEN-FREEMAN; CAMERON, 2008;
BECKNER et al., 2009).

O termo ‘desenvolvimento linguístico’ é empregado, na perspectiva dinâmi-


ca, ao invés do termo ‘aquisição’. Conforme apontado por Larsen-Freeman (2014,
2015b, 2017), tal novo termo consegue justamente refletir um dos principais

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

aspectos da teoria: a preocupação com o processo como um todo, e não com o


produto (resultado) de tal processo. O termo ‘desenvolvimento’, em oposição a
‘aquisição’, nos dá a ideia de que os subsistemas linguísticos não são um produto
a ser adquirido ou plenamente terminado. Mais do que isso, tal termo deixa claro
que não existe um ‘ponto de chegada’ a ser atingido, após o qual o processo seria
finalizado.

A trajetória dinâmica de um sistema passará por momentos com mudanças


repentinas e por alterações menos acentuadas, ou etapas que até demonstram
uma certa estabilidade, mas não estaticidade plena. Nesse sentido, Hiver (2015)
reconhece que o ser humano tende a buscar padrões de estabilidade, fortemente
relacionados à capacidade de as variáveis do sistema dinâmico estarem sempre
se auto-organizando em estados atratores. Sendo abertos, os subsistemas estão
sempre sujeitos à ação de uma série de perturbações vivenciadas no ambiente,
que alteram os demais subsistemas e podem vir a ser capazes de “desorganizar
o sistema” como um todo, tirando-o do equilíbrio. Ao pensarmos no uso da lin-
guagem, podemos considerar que a quebra da inteligibilidade da fala em meio a
uma situação de comunicação pode, por exemplo, causar uma desestabilização,
levando o aprendiz a reconfigurar todo o seu sistema linguístico em um processo
de auto-organização dinâmica, em busca de uma comunicação inteligível (ALVES,
2018a).

A mudança desenvolvimental não é linear. De Bot (2015, p. 33), a esse res-


peito, nos diz que “o desenvolvimento linear é a exceção, não a regra”, esclarecen-
do que a típica curva desenvolvimental tem a forma de ‘S’. Em momentos iniciais
de desenvolvimento, as línguas apresentam uma maior velocidade de crescimen-
to. À medida que tais sistemas vão se mostrando mais desenvolvidos, começam
a assumir uma velocidade de alteração menos rápida. É possível, inclusive, que
se chegue a um ponto em que tal desenvolvimento pareça estático. Entretanto,
o sistema está sempre passível a alterações (e, em sua qualidade dinâmica, está
realmente sempre se alterando), de modo que o suposto “repouso” venha a suge-
rir a necessidade de observação do mesmo fenômeno a partir de outra escala de
tempo, mais apropriada para tal realidade.

A visão Complexa e Dinâmica de Língua tem despertado uma série de


trabalhos referentes a diferentes domínios linguísticos, sendo, nos últimos
anos, bastante considerável o número de obras alicerçadas sobre tal concep-
ção (cf. DÖRNYIEI; MacINTYRE; HENRY, 2015; ORTEGA; HAN, 2017; HIVER;

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

AL-HOORIE, 2020; FOGAL; VERSPOOR, 2020; LOWIE et al., 2020). Consideradas


tais características dos sistemas dinâmicos complexos, e assumindo-se ser o de-
senvolvimento linguístico um processo não linear, verificamos, portanto, a neces-
sidade de repensarmos o ensino de línguas. Ao concebermos a dinamicidade a
partir do ‘princípio da inteligibilidade’ (LEVIS, 2005, 2018b), nas seguintes seções,
discutiremos como os estudos linguísticos desenvolvidos a partir desse paradig-
ma podem definir a nova agenda do ensino de pronúncia contemporâneo.

Teoria dos Sistemas Dinâmicos Complexos e ensino de pronúncia:


contribuições dos estudos formais e aplicados

A partir dos preceitos da visão complexa de língua, novos desafios e con-


tribuições são impostos à premissa de um ensino com meta na inteligibilidade.
Concebemos que tais contribuições são advindas tanto dos estudos formais
quanto dos aplicados. Para ilustrarmos tal premissa, na presente seção, discuti-
remos os resultados de dois projetos de pesquisa que temos desenvolvido junto
ao Laboratório de Bilinguismo e Cognição (LABICO - UFRGS), com foco específi-
co em aspectos formais (ALVES et al., 2018; ALVES; BRISOLARA, 2020) e ques-
tões aplicadas, referentes ao processo de desenvolvimento linguístico (SALVES;
WANGLON; ALVES, 2020).

No que diz respeito ao âmbito dos estudos formais, a visão dinâmica e


complexa convida o pesquisador a repensar os primitivos de fonologia, de modo
que se incorpore a temporalidade (ALBANO, 2001, 2012, 2020) à abstração dos
sons6. Disso implica que os elementos abstratos da fonologia deixam de assumir
um caráter plenamente binário (caracterizado seja pela ausência ou presença de
segmentos, seja por processos que impliquem apagamentos ou acréscimos ple-
nos de unidades fonológicas), e o desenvolvimento do tempo passe a ser concebi-
do como uma “orquestração da temporalidade” (ZIMMER; ALVES, 2012; ALVES,
2018b).

A partir de tais premissas, em Alves et al (2018), investigamos um fenô-


meno frequentemente reportado como desafiador ao aprendiz de Português
Brasileiro (PB) como L2, cuja língua materna (L1) é o Espanhol: o aprendizado,
em termos de produção, das distinções entre pares mínimos como ‘caça’ e ‘casa’, e
seu impacto na inteligibilidade. Segundo uma descrição tradicional do fenômeno,

6 Para uma discussão sobre o papel da temporalidade dos primitivos dinâmicos no processo de
desenvolvimento de L2, veja-se Alves (2018b).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

dado que o Espanhol não conta com o fonema /z/, o aprendiz deveria “adquiri-lo”
a partir da exposição da nova língua, de modo a, em termos fonéticos, aprender a
vibrar as pregas vocais ao longo da produção da fricativa. A partir de uma visão de
temporalidade como elemento-chave para o desenvolvimento de novos padrões
para a língua-alvo, no referido trabalho investigamos se produções, realizadas
por aprendizes hispânicos e com diferentes padrões manipulados de vozeamento
(0%, 25%, 50%, 75% e 100%), teriam diferentes efeitos na identificação de pa-
res mínimos do PB, por parte de 35 ouvintes brasileiros sem experiência com o
Espanhol. Os resultados evidenciaram que a identificação das categorias funcio-
nais referentes às fricativas surda/sonora não demanda uma vibração plena das
pregas vogais ao longo da fricativa, dado que um vozeamento de 50% de dura-
ção referente à consoante já se mostra suficiente para que os ouvintes brasileiros
identifiquem tais membros dos pares mínimos como ‘casa’ e ‘rosa’, por exemplo.
Tais resultados evidenciam que, frente a um ensino que privilegie a inteligibilida-
de da fala estrangeira, não é necessário um vozeamento pleno da consoante.

Ainda no que diz respeito aos resultados de Alves et al. (2018), é importan-
te considerar que o padrão de 25% de vozeamento mostrou-se dificultoso aos ou-
vintes brasileiros, não havendo um consenso entre eles no que diz respeito aos es-
tímulos escutados. A partir justamente desse padrão, questionamo-nos se outros
aspectos poderiam estar interagindo com o vozeamento ao longo da fricativa, de
modo a ter seus efeitos sentidos sobretudo quando a duração de tal vozeamen-
to se apresentava curta. Considerando-se, com base em Ribeiro (2017), que, na
variedade Porto-Alegrense de Português Brasileiro, vogais que antecedem obs-
truentes sonoras tendem a ser mais longas do que as que antecedem consoantes
surdas, em Alves e Brisolara (2020) verificamos os efeitos da pista referente à
duração vocálica antecedente à fricativa, bem como sua interação com a duração
de vozeamento de tal elemento segmental. Para tal verificação, os mesmos estí-
mulos anteriores foram manipulados, também, em diferentes durações vocálicas
(25%, 50%, 75% e 100%), de modo a formarem parte de um teste de percepção
aplicado a outros 35 participantes brasileiros, também sem experiência com o
Espanhol. Os resultados evidenciaram uma interação entre as pistas de ‘duração
de vozeamento’ na fricativa e ‘duração vocálica’, demonstrando um papel especial
dessa última sobretudo em contextos em que a duração de vozeamento se mos-
trava bastante curta (25% ao longo da fricativa) e, portanto, menos clara.

Os resultados dos estudos formais supracitados, amparados em uma


visão dinâmica de desenvolvimento fonológico, fornecem evidências para o

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

status gradiente da fala tanto nos fenômenos de produção quanto de percepção


(ALBANO 2001; 2012; 2020; PEROZZO, 2017). Além disso, tais resultados for-
necem evidências empíricas que podem contribuir para a definição dos conteúdos
a serem ensinados na aula de pronúncia, ao termos por foco o ‘princípio da inteli-
gibilidade’ (LEVIS, 2005; 2018b). A partir de tais resultados, verificamos que, para
além da tradicional distinção entre as produções de /s/ e /z/ (tão tradicionais nos
livros de Fonética do Português para Estrangeiros), a duração vocálica pode ser
ensinada como recurso para garantir a inteligibilidade sobretudo entre aqueles
aprendizes que apresentam maior dificuldade na realização do vozeamento da
consoante. Temos, pois, uma contribuição clara dos estudos formais, com base di-
nâmica, para a definição da listagem dos fenômenos a serem ensinados ao apren-
diz de Português Brasileiro falante de Espanhol, a partir da premissa de que não
é necessário produzir os sons como um “falante nativo”, mas, sim, ser inteligível.

No que diz respeito aos estudos de caráter aplicado, passemos à discus-


são do trabalho desenvolvido por Salves, Wanglon e Alves (2020). No estudo em
questão, voltado à investigação do fenômeno de inteligibilidade, partimos da pre-
missa dinâmica de que tal construto constitui um fenômeno emergente, desen-
volvido não somente pelo falante, mas também pelo ouvinte (cf. ALBUQUERQUE,
2019; ALBUQUERQUE; ALVES, 2020). A partir de tais premissas, investigamos o
efeito da familiaridade com o inglês marcado pelo sotaque brasileiro (L2) na inte-
ligibilidade de amostras de fala quando julgadas por ouvintes britânicas, recém
chegadas ao Brasil. Os dados orais em inglês foram obtidos de cinco alunos bra-
sileiros, matriculados no curso de inglês II (nível A2 de proficiência) do curso de
graduação em Inglês da universidade dos pesquisadores.

Os participantes brasileiros puderam escolher dentre quatro temas (com


base em Cruz e Pereira, 2006) e foram convidados a falar livremente sobre dois
deles. Depois disso, ouvimos todas as gravações e buscamos identificar dificulda-
des de pronúncia que pudessem afetar a inteligibilidade. Foram selecionadas 35
frases (média: 11 palavras cada). Dessas frases, uma foi escolhida como a frase de
teste (“OK, I chose the culture subject”, pronunciada como [oʊkei aj tʃoʊs (.) Ʌ (.)
Di ‘kjutʃʊʳ (.) Subi’ʒɛktə]). Essa frase foi reproduzida em todas as gravações lon-
gitudinais. Todas as outras sentenças foram usadas como distratoras ao longo das
fases de teste longitudinal, visando a diminuir o efeito de repetição da frase-alvo.

O grupo de ouvintes britânicas era formado por quatro alunas de gradua-


ção que moravam no Brasil há muito pouco tempo e tinham pouca experiência

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

anterior com o inglês falado por brasileiros. Todas elas participaram de tarefas
semanais de transcrição de inteligibilidade, administradas ao longo de cinco se-
manas. Nessas sessões, cada participante britânica ouviu 10 das 35 frases, com
a frase-alvo sendo tocada a todas elas em todas as sessões. Conforme já dito, ao
fornecermos nove frases distratoras diferentes, objetivávamos garantir que os
participantes não percebessem ou se lembrassem da frase em que estavam sendo
testados.

Tendo em vista o enfoque dinâmico adotado no estudo, realizamos análises


de grupo e individuais (por ouvinte) sobre a taxa de inteligibilidade da frase-alvo
nas cinco coletas de dados longitudinais. Os resultados confirmam a hipótese ori-
ginal de que a crescente familiaridade das ouvintes com o inglês produzido por
brasileiros afetou positivamente os escores de inteligibilidade, de modo que as
falas dos alunos passassem, ao longo do tempo, a serem avaliadas como mais inte-
ligíveis. Os resultados também sugeriram que as trajetórias individuais das ouvin-
tes tampouco são lineares, já que quedas e platôs foram encontrados em alguns
dados longitudinais individuais.

Em linhas gerais, os resultados de Salves, Wanglon e Alves (2020) mos-


tram que, para o estabelecimento de uma fala inteligível, é preciso aprender
tanto a falar quanto a ouvir na nova língua. Em outras palavras, o estabelecimen-
to da inteligibilidade, a partir de uma releitura dinâmica para tal construto (cf.
ALBUQUERQUE, 2019), evidencia que tal tarefa é uma responsabilidade com-
partilhada entre falante e ouvinte. Em termos de sala de aula, isso implica que a
instrução de pronúncia deve abordar, de forma igualitária, tanto a oralidade quan-
to a competência de compreensão oral dos aprendizes. Nesse sentido, é preciso
expor o aprendiz a diferentes variedades da língua e, inclusive, a diferentes mo-
dalidades e registros de fala, em diferentes graus de espontaneidade e contextos
de produção (cf. CAULDWELL, 2013, 2018), para que o elo “falante-ouvinte” seja
estabelecido e fortificado.

Em suma, na presente seção, demonstramos como os estudos linguísticos à


luz da complexidade podem contribuir com o cenário de ensino de pronúncia. No
que diz respeito aos estudos com caráter formal, a perspectiva dinâmica institui
a gradiência e a temporalidade à discussão dos primitivos linguísticos, de modo a
contribuir para uma discussão acerca de quais aspectos ensinar para que a inte-
ligibilidade seja estabelecida. Sob o âmbito aplicado, o próprio construto de in-
teligibilidade passa a ser redefinido e investigado, sendo então tratado como um

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

fenômeno emergente, que demanda envolvimento tanto do falante quanto do ou-


vinte. Tais contribuições possibilitam, em nossa opinião, uma redefinição da pró-
pria sequência de passos pedagógicos a serem tomados na sala de aula, conforme
será discutido na próxima seção.

Por uma caracterização de ensino de pronúncia à luz da


complexidade

Além da discussão sobre quais aspectos ensinar e a quem ensiná-los (evi-


denciados, sobretudo, na seção anterior), a busca por “como” ensinar pronúncia de
um modo efetivo também é uma constante entre os professores. Considerando-
se a visão da complexidade, a partir da qual os elementos linguísticos estão in-
trinsicamente conectados, a resposta para tal questão se mostra ainda mais
desafiadora.

Ainda que não concebamos a existência de uma resposta pré-definida e


pronta para tal questionamento (sobretudo porque, à luz do caráter emergente
da complexidade, tal também teria viés emergente, a partir da realidade de cada
professor e de sua turma de alunos), concebemos, como premissa fundamental,
a constatação de que a reflexão sobre “como” ensinar está intimamente ligada
à concepção de língua e aos objetivos de ensino de cada profissional de ensino.
Em outras palavras, assim como mudam as concepções de língua ao longo dos
anos, também mudam, conscientemente ou não, as respostas para o referido
questionamento.

A discussão sobre a caracterização dos termos ‘instrução explícita/im-


plícita’ e ‘conhecimento implícito/explícito’ não é nova, e tem recebido bastante
ênfase, além de ter passado por paulatinas transformações ao longo das últimas
duas décadas. Um reflexo desse fato pode ser verificado nas duas edições sobre
tal temática, publicadas nos anos de 2005 em 2015, no ‘Studies in Second Language
Acquisition’, importante periódico da área de estudos de Aquisição de L2. Ao longo
desses dez anos, verificamos uma grande diferença, sobretudo, nas caracteriza-
ções para os referidos termos. Conforme explicam Andringa e Rebuschat (2015),
embora as definições que caracterizavam as dicotomias ‘conhecimento implícito’
vs. ‘explícito’ e ‘memória implícita’ vs. ‘explícita’ possam, ainda, ser mantidas de
acordo com a caracterização original de Hulstijn (2005), é importante, passados
dez anos, revisitar as definições de tal autor para os termos ‘aprendizado implí-
cito’ vs. ‘explícito’, dado o fato de que toda a definição de aprendizado depende,

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

em grande parte, da concepção de língua e aquisição de linguagem assumida pelo


pesquisador.

A partir de uma concepção de aprendizagem estatística do input (cf.


REBUSCHAT; WILLIAMS, 2012), que consideramos condizente com uma visão
de desenvolvimento linguístico baseada na noção de SDC, podemos dizer que a
maior parte de tudo o que aprendemos se dá implicitamente. De fato, se associar-
mos o desenvolvimento estatístico à aprendizagem implícita, então temos de nos
perguntar sobre o papel da aprendizagem explícita, que deverá ir além do mero
“saber falar sobre a língua”. Cabe investigar, portanto, se o aprendizado explíci-
to pode também facilitar esse processo de aprendizagem estatística, colaboran-
do para os mecanismos de processamento, de modo que o aprendiz, através da
aprendizagem sobre a língua, passe a “aprender a prestar atenção” para os aspec-
tos mais importantes ou salientes de uma determinada tarefa ou objetivo comu-
nicativo (CINTRÓN-VALENTIN; ELLIS, 2016). A função maior do aprendizado ex-
plícito, nesse sentido, seria justamente a de auxiliar no processamento estatístico
do input.

Sob uma visão dinâmica, a instrução explícita de pronúncia não se sustenta


de forma isolada: ela deve ser integrada às funções da língua. Portanto, é funda-
mental levar o aprendiz a refletir sobre o impacto que a escolha de um ou outro
aspecto linguístico pode ter para a compreensão da mensagem. Conforme as
palavras de Larsen-Freeman (2017, p. 28), “os recursos atencionais do aprendiz
devem se mostrar direcionados ao desafio da aprendizagem: uma maneira de se
conceber isso é através da instrução explícita”, desde que essa não seja isolada.
Essa ideia também vai ao encontro do argumento de Ellis (2015), que defende
uma interação dinâmica entre as formas de aprendizagem implícita e explícita.

Para deixar mais claro o papel da instrução, Larsen-Freeman (2017) associa


à visão dinâmica os preceitos da psicologia ecológica, trazendo à discussão a no-
ção de concessões ou affordances7 (GIBSON, 1966, 1979; van LIER, 2000; 2004).
As affordances dizem respeito às propriedades dos objetos a serem encontradas
pelos indivíduos no ambiente, e “que possibilitam, justamente, a interação desse
ambiente com o indivíduo” (ALVES; SILVA, 2016, p. 112-113). Em outras palavras,
a instrução eficiente deve ser aquela que permita que o aprendiz verifique as
7 Na literatura em Português, o termo ‘affordances’ tem sido traduzido de diversas formas, tais
como ‘concessões’ (cf. PEROZZO, 2017) ou ‘propiciamentos’ (cf. PAIVA, 2014). Neste trabalho,
seguindo Alves e Silva (2016), manteremos o termo em seu original em Inglês. Para uma discus-
são sobre o conceito de ‘affordances’ no desenvolvimento fonético-fonológico, vejam-se Alves e
Silva (2016) e Perozzo (2017).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

diferenças entre o que é capaz de fazer e a linguagem do ambiente que o cerca. A


instrução deve possibilitar que o aprendiz descubra, através da própria ação indi-
vidual, novas utilidades e associações entre o que já sabe e o conteúdo abordado.

Prover insumo linguístico é obviamente importante, mas o aprendizado


não é um produto linear de tal quantidade de insumo provida; ele é resultado da
interação dos conhecimentos prévios do aprendiz com a descoberta de affordan-
ces a partir desse insumo. Sendo a aula de pronúncia uma oportunidade de uso de
língua, o aprendiz deve ser capaz de extrair affordances referentes ao componente
fonético-fonológico, além de conseguir estabelecer os mais diversos tipos de as-
sociações entre tal componente e os demais aspectos da língua. Diante de tal qua-
dro, o objetivo do ensino de pronúncia deixa de ser o “padrão nativo” e passa a ser,
então, a inteligibilidade, a partir da verificação dos efeitos que a fala do aprendiz
tem sobre o interlocutor, o que vai ao encontro do princípio postulado por Levis
(2005, 2018b) no âmbito da Linguística Aplicada.

Com base no acima exposto, o objeto do ensino deve ser a língua em uso,
contextualizada, chamando a atenção do aprendiz, implícita e/ou explicitamen-
te, para o papel funcional de determinado aspecto linguístico. Trata-se de um
ensino, portanto, voltado a objetivos e tarefas comunicativas claras. Conforme
diz Larsen-Freeman (2017, p. 28), “a interação significativa é mais eficaz do que
a mera prática de repetição das formas”. Partindo dos pressupostos da autora,
Verspoor (2017) usa a sigla FUMM (do Inglês, ‘form-use-meaning-mappings’, ou
‘mapeamentos forma-função’) para defender, numa perspectiva regida pela com-
plexidade, a necessidade de estabelecermos um mapeamento entre forma, uso e
significado. É importante que a instrução em sala de aula proveja oportunidades
de comunicação, uma vez que a língua é parte de um sistema complexo do qual
fazem parte aspectos culturais, sociológicos e psicológicos. Conforme as palavras
da autora (op. cit., p. 143):

Se assumirmos que a linguagem é um sistema adaptativo com-


plexo, o aprendiz é um sistema adaptativo complexo, e o ensino-
-aprendizagem é um processo dinâmico – no qual todos os siste-
mas relevantes, cognitivos, físicos e sociais interagem ao longo
do tempo -, então devemos prestar atenção a esses sistemas e
seus subsistemas quando avaliamos modelos pedagógicos exis-
tentes ou recém criados.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Considerando como dinâmico o processo de ensino e aprendizagem, Lowie;


Verspoor (2015) argumentam que a instrução significativa pode causar perturba-
ções nos sistemas dinâmicos. Tais perturbações podem ser capazes de causar uma
reorganização do sistema, e, por conseguinte, a incorporação das novas informa-
ções (que, conforme concebemos, são fruto das descobertas das affordances do
ambiente). Novamente, os autores chamam a atenção para o caráter bastante in-
dividual e não imediato de tais desestabilizações, afirmando que “o efeito da per-
turbação depende do estado da rede dinâmica emergente de variáveis acopladas,
ao invés de restrições de processamento cognitivas fixas” (op. cit., p. 83).

Ao seguirmos tais pressupostos, desde o ano de 2009, temos buscado uma


categorização satisfatória para o que entendemos por ‘instrução explícita de pro-
núncia’, a partir de uma concepção de língua baseada no uso, tal como a visão da
Complexidade. Tal concepção deve ir além da caracterização de instrução explí-
cita de Hulstijn (2005, p. 132), de acordo com a qual “os aprendizes recebem in-
formações acerca das regras que subjazem o input”. A caracterização de tal autor,
ainda que invoque práticas de explicitação da língua-alvo, pode estar em conso-
nância, inclusive, com práticas e metodologias de ensino de L2 baseadas explici-
tamente na forma, que não contemplem a complexidade do sistema linguístico
por nós defendida. Ao considerarmos a complexidade do processo desenvolvi-
mental, diferentemente do posicionamento de Hustijn (2005), a noção de ‘instru-
ção explícita’ que advogamos busca uma maior integração ao caráter funcional
da língua. Com base nessa necessidade, em Zimmer, Silveira e Alves (2009, p. 15)
propusemos a seguinte caracterização de instrução explícita do componente
fonético-fonológico:

O termo “instrução explícita” pode ser interpretado como um


termo guarda-chuva, que vai muito além da tarefa de sistemati-
zar o item-alvo isoladamente. Dentro de um contexto comunica-
tivo, o termo “instrução explícita” supera a tarefa de formalizar o
sistema-alvo, uma vez que também inclui outros procedimentos
voltados a ressaltar, praticar, revisar ou chamar a atenção dos
aprendizes para aspectos específicos da língua-alvo, que correm
o risco de não serem atentados.

Queremos deixar claro que as caracterizações que temos discutido devem


ser vistas mais do que meras conceptualizações, pois refletem práticas de ensi-
no alicerçadas a partir da concepção de desenvolvimento linguístico que as sus-
tentam. Ao levarmos em consideração o histórico das abordagens de ensino de

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

pronúncia, vemos que grande parte das práticas de ensino de fonética se voltam,
ainda nos dias de hoje, à tradicional prática do “ouvir e repetir”, ancorada em uma
concepção de língua que tem por base a formação de hábitos, e uma didática de
caráter behaviorista.

Qualquer prática pedagógica de caráter mais explícito poderia ser caracte-


rizada a partir da definição clássica de Hustijn, uma vez que tal termo inclui não
somente metodologias caracterizadas pela consonância entre forma e significado,
mas, também, abordagens totalmente voltadas à supremacia das formas. Por sua
vez, a caracterização de Zimmer, Silveira e Alves (2009) preza por etapas pedagó-
gicas que vão além da sistematização da língua-alvo, incluindo atividades de práti-
ca linguística. Dessa forma, a caracterização de ‘ensino de pronúncia’ que visamos
a introduzir no presente artigo abarca todos os aspectos da definição de Zimmer,
Silveira e Alves (2009), e acrescenta a ela uma noção fundamental: a da relevância
do uso das formas linguísticas para o cumprimento das tarefas. Tal aproximação
se faz possível por concebermos a língua como um sistema complexo, com uma
grandiosa interconexão entre seus elementos, de modo que o uso das formas lin-
guísticas esteja atrelado às funções que o uso de uma dada forma – em oposição
a outra – pode exercer sobre a tarefa maior de interlocução. Conforme explicam
Lima Jr. e Alves (2019, p. 42-43), ao discutirem o ensino de pronúncia sob uma vi-
são dinâmica e complexa, “(...) é preciso muito bom senso, por parte do professor,
para a elaboração de lições integradas, que contribuam para o estabelecimento
de um ambiente comunicativo e, ao mesmo tempo, deem conta da individualidade
dos aprendizes”.

A concepção de língua como SAC e a caracterização de ‘instrução explíci-


ta’ aqui expressa impõem-nos, então, uma série de desafios a serem enfrentados
no ambiente de sala de aula, através de práticas didáticas de ensino de pronún-
cia que precisam ser implementadas e testadas. Em meio a essas práticas, ain-
da não plenamente definidas (e, talvez, não plenamente definíveis, pois, à luz da
Complexidade, não deveria existir uma “receita” pedagógica, já que a prática deve
ser resultado, também, da interação entre todas as partes envolvidas na sala de
aula), cabe a função maior de um ensino que denominamos como ‘comunicativo’,
a partir do qual se possa atrelar o componente fonético-fonológico, bem como os
outros componentes, à comunicação relevante.

Uma tentativa de busca para tal prática, nas décadas de 90 e primeira dé-
cada deste século, pode ser mencionada a partir da proposta de Celce-Murcia,

28
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Brinton e Goodwin (1996) e Celce-Murcia et al. (2010). Os autores propõem cin-


co passos para o ensino comunicativo de pronúncia, caracterizados pelos termos
Descrição e Análise (explicitação e reflexão linguística), Discriminação Auditiva
(em que é treinada a capacidade de o aprendiz distinguir os sons da língua estran-
geira, através de exercícios de audição), Prática Controlada e Feedback (exercícios
mais mecanicistas, tais como drills), Prática Guiada e Feedback (exercícios de tro-
cas de informações, geralmente em duplas e pares, que fazem uso dos itens-al-
vos para o preenchimento de uma lacuna de informação) e, finalmente, Prática
Comunicativa e Feedback (em que o uso dos itens-alvo ocorre naturalmente,
sendo guiado pela necessidade comunicativa, sem o controle de inclusão de tais
itens-alvo, por parte do professor, na atividade em questão).

O mérito da proposta de Celce-Murcia, Brinton e Goodwin (1996) e Celce-


Murcia et al. (2010) está no fato de que os passos supracitados vão muito além
da mera tarefa behaviorista de “ouvir e repetir”, sobretudo porque os dois últi-
mos passos – as práticas ‘guiada’ e ‘comunicativa’ – ultrapassam uma metodolo-
gia puramente mecanicista, visto que preveem, inclusive, oportunidade de sanar
“lacunas de informações” entre membros de uma interação. Entretanto, apesar
do notável avanço acima descrito, argumentamos que o cumprimento dos cinco
passos não caracteriza condição suficiente para uma didática de fonética anco-
rada na concepção de língua como SDC. Conforme aponta Alves (2015), é pre-
ciso que esses cinco passos não correspondam a uma rotina estanque, voltada
à preconização das formas, mas que caracterizem uma metodologia emergente,
em que o componente fonético-fonológico esteja inerentemente ligado ao ensi-
no de outros componentes linguísticos. Nas palavras de Kupske e Alves (2017, p.
2779-2780):

Os cinco passos supracitados correm o risco de serem utiliza-


dos como uma mera rotina pedagógica voltada unicamente a um
objetivo linguístico não comunicacional, o que, além de resgatar
uma abordagem de caráter tradicional de ensino pronúncia, por
não vincular o componente fonético-fonológico aos outros com-
ponentes da língua, acabaria por não refletir o dinamismo que
caracteriza o processo de desenvolvimento linguístico.

São essas as constatações, com base em Alves (2015), Kupske e Alves


(2017) e Lima e Jr. e Alves (2019), que nos permitem ampliar a definição de ‘ins-
trução explícita’ que seguíamos em Zimmer, Silveira e Alves (2009), de modo que

29
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

possamos pensar a pedagogia de pronúncia a partir de uma abordagem voltada ao


cumprimento de funções comunicativas bastante claras. Em outras palavras, dei-
xamos de ter uma “aula específica de pronúncia”, para passarmos a oportunidades
de língua em uso (o que, por sua vez, implicará a abordagem do componente foné-
tico-fonológico de forma agregada a outros elementos linguísticos). Tal pedagogia
é desafiadora por, justamente, convidar o pesquisador e o professor a proporem
planos de aula e estudos sobre o papel da instrução em que o componente foné-
tico-fonológico se mostre de tal maneira integrada. Destacamos, uma vez mais, a
ancoragem de tais proposições à luz da noção de Língua como Sistema Dinâmico
Complexo, capaz de prover bases teóricas que nos permitam argumentar a favor
de um ensino emergente, contextualizado e integrado do sistema dos sons.

Considerações finais

Neste trabalho, argumentamos que os objetivos e a própria prática de en-


sino de pronúncia passaram por uma série de transformações ao longo dos anos.
Tais transformações são reflexo das próprias concepções de ‘língua’ e ‘desenvolvi-
mento linguístico’ em voga ao longo da história dos estudos em Linguística.

Frente a tais transformações, consideramos que a visão dinâmica e com-


plexa de língua tem prestado uma efetiva contribuição ao ensino de LE, ao primar
pela integração dos seus componentes, dentre os quais se encontram os elemen-
tos fonético-fonológicos. Conforme vimos ao longo do trabalho, a perspectiva da
complexidade tem fornecido importantes insumos tanto ao âmbito formal quanto
ao aplicado. No que diz respeito aos estudos formais, novos primitivos linguísticos
são discutidos e a gradiência dos elementos fônicos passa a ser investigada, do
que resulta um novo rol de conteúdos a serem abordados em sala de aula, volta-
dos a garantir a inteligibilidade da fala. No âmbito aplicado, além de uma própria
redefinição do construto referente à ‘inteligibilidade’, que passa a ser visto como
fenômeno emergente e, portanto, compartilhado entre falante e ouvinte, são for-
necidos subsídios empíricos e teóricos para que possamos advogar a favor de uma
prática de ensino que prime pela integração da pronúncia aos demais componen-
tes linguísticos, sempre estando a serviço de um objetivo ou tarefa comunicativa
clara.

A partir dessa contribuição de via de mão dupla, concebemos, portan-


to, que a dicotomia ‘formal’ vs. ‘aplicado’ acaba por se desfazer no âmbito da
sala de aula, uma vez que tal caráter dicotômico abre espaço para uma relação

30
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

complementar e adaptativa, de caráter emergente, no ambiente de ensino. Dessa


forma, concebemos, como fundamentais, a formação acadêmica do professor e
o papel da investigação científica para os avanços no cenário de ensino-aprendi-
zagem. A partir desse elo vital entre pesquisa e ensino, novos métodos e saberes
emergirão dinamicamente.

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METODOLOGIAS DE APRENDIZAGEM
ATIVA E ENSINO DE LÍNGUAS

Rosane de Mello Santo Nicola1

RESUMO: Este estudo reflete sobre a urgência de se reinventar o curso de


Letras, considerando as metodologias de aprendizagem ativa no ensino de línguas
como parte integrante de uma abordagem curricular por competências. Por meio
de breve pesquisa bibliográfica, estabelece-se interface entre autores das áreas
de linguística (ORLANDI, 2018; ROJO, 2012; PILATI, 2017; TRAVAGLIA, 2009),
educação (SCALLON, 2015; BIGGS; TANG, 2011) e tecnologias educacionais
(KENSKI, 2013). Apresenta relações entre a abordagem curricular por competên-
cias e as metodologias de aprendizagem ativa, evidenciando a responsabilidade
do professor com planejamento, orientação e acompanhamento do processo de
ensino para haver aprendizagem duradoura. Descreve princípios de aprendiza-
gem linguística ativa, que possibilitam integrar saberes formalizados e técnicos a
saberes metodológicos, isto é, a saberes em uso. Também expõe a necessidade de
coerência entre a escolha de metodologias de aprendizagem ativa e os resultados
de aprendizagem pretendidos e orientados para o desenvolvimento das compe-
tências necessárias à formação do perfil do egresso do curso, buscando integrar
as disciplinas e ressignificar o curso. Finalmente, destaca a aprendizagem colabo-
rativa como processo ativo de corresponsabilidade entre pares, no qual se usam
habilidades sociais na resolução de possíveis conflitos, o que auxilia no desenvol-
vimento de traços positivos da personalidade.
PALAVRAS-CHAVE: Metodologias de aprendizagem ativa; Ensino de lín-
guas; Abordagem curricular por competências.

1 Pontifícia Universidade Católica do Paraná rosane.nicola@pucpr.br

37
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ABSTRACT: This work reflects on the urgency of reinventing the Letras course,
considering the active learning methodologies in language teaching as an integral part
of a curriculum approach by competencies. Through a brief literature review, it estab-
lishes an interface between other authors from areas of linguistics (ORLANDI, 2018;
ROJO, 2012; PILATI, 2017; TRAVAGLIA, 2009), education (SCALLON, 2015; BIGGS;
TANG, 2011), and educational technologies (KENSKI, 2013). This study presents re-
lations between curriculum approach by competencies and active learning methodol-
ogies, evidencing the teacher’s responsibility with planning, guidance, and monitoring
the teaching process to long-term learning. It describes active linguistics learning prin-
ciples, enabling the integration of formalized knowledge and technical methodological
knowledge, that is, the knowledge in use. It also displays the need for consistency be-
tween the choice of active learning methodologies and expected and oriented learning
outcomes towards the competency development necessary for the profile of the course
egress’s students, seeking to integrate disciplines and reframe the Letras course. Finally,
this article features collaborative learning as an active process of co-responsibility be-
tween peers, in which it uses social skills in a possible conflict resolution, which supports
the positive personality traits development.
KEYWORDS: Active Learning Methodologies; Language Teaching; Curriculum
Approach by Competencies.

Introdução

A sociedade vive constantes transformações nas formas contemporâneas


de interagir, trabalhar e conviver, influenciada pelo uso intenso de tecnologias da
informação, numa percepção de que todos estão ininterruptamente conectados,
não havendo barreiras ou distâncias intransponíveis. No contexto da educação
superior, essa perspectiva provoca reflexão e ação, pois ao mesmo tempo que traz
inquietações, também permite identificar novas possibilidades para o trabalho
docente na formação inicial.
Há que se considerar as novas demandas de formação profissional nestes
tempos de grande produção de conhecimento e disponibilização de informações,
já que em ambiente de alta complexidade, o papel formativo não se restringe mais
à universidade. Dessa forma, o protagonismo do estudante torna-se categoria im-
prescindível nos processos curriculares de todos os cursos de graduação, visando
a um egresso ativo e capaz de buscar seu próprio desenvolvimento, a partir de
seus focos de interesse e suas necessidades cognitivas ou práticas.
Especificamente, o curso de Letras, cujo desafio é promover o ensino de
línguas numa perspectiva de multiletramento, por meio de gêneros multimodais,

38
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

perpassa para além da tecnologia, pela cultura digital. Para tanto, faz-se necessá-
ria a formação de professores universitários sobre metodologias de aprendiza-
gem ativa adequadas aos recursos midiáticos que efetivamente ampliam o acesso
a outras modalidades discursivas, numa convergência de linguagens, conduzindo
a prática docente para novos rumos.
Nesse contexto, propõe-se refletir sobre a urgência de se reinventar o cur-
so de Letras, considerando as metodologias de aprendizagem ativa no ensino de
línguas como parte integrante de uma abordagem curricular por competências.
Para isso, por meio de breve pesquisa bibliográfica, estabelece-se interface en-
tre autores das áreas de linguística (ORLANDI, 2018; ROJO, 2012; PILATI, 2017;
TRAVAGLIA, 2009), educação (SCALLON, 2015; BIGGS; TANG, 2011) e tecnolo-
gias educacionais, principalmente, Kenski (2013).
Assim, esta reflexão está organizada da seguinte forma: inicialmente, dis-
cute a relevância da reinvenção do curso de Letras a partir de alguns indicativos
fornecidos pelas pesquisas; em seguida, trata das relações entre abordagem por
competências e metodologias de aprendizagem ativa; posteriormente, expõe
princípios da aprendizagem linguística ativa ; e finalmente, apresenta um conti-
nuum de metodologias de aprendizagem ativa para a promoção da autonomia do
estudante, como recurso para a escolha consciente do docente durante seu pla-
nejamento de ensino.

A necessidade de reinvenção do Curso de Letras

A contemporaneidade não está vinculada a uma data cronológica no histó-


rico da humanidade, mas a uma similaridade de influências existentes que provo-
cam reflexão e convidam à ação. São mudanças geracionais e do mundo do traba-
lho que ocorrem num contexto sociocultural de alta tecnologia.
Nessas condições, cabe perguntar se os cursos de Letras ofertados nas li-
cenciaturas atendem às demandas do mundo contemporâneo. Orlandi (2018, p.
220) descreve-o da seguinte forma:

Um mundo cheio de contradições, que se diz multilíngue, ao mes-


mo tempo em que funciona no imaginário de uma língua única,
o inglês, que tem uma enorme força arregimentadora; um mun-
do digital, ao lado de um enorme contingente analfabeto – sem
acesso ao funcionamento oficial das letras, ou melhor, da Letra –,
um mundo que, na falta da Letra oficial, inventa o grafismo (pixa-
ção, tatuagem, piercing) e se expande vigorosamente. Um mundo

39
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

em que a Ciência é ultra idealizada, mas em que se investe mais


na capacitação, para o mercado e o trabalho, do que na formação
para um conhecimento real em que o sujeito do conhecimento
ganhe independência e capacidade de escolha, desenvolvendo
não só a ciência, a técnica, mas também a sensibilidade e a inicia-
tiva, a inventividade.

Essa reflexão da pesquisadora descortina um mundo de pós-modernidade


que bem poderia ser acrescido dos efeitos sociais, políticos e econômicos da pan-
demia de Covid-19 que assolou a humanidade em 2020, requerendo isolamento
social e ampliando as contradições mencionadas.
Assim, para responder, minimamente, à questão proposta nesta seção, pro-
põe-se o quadro 1 com alguns indicativos do cenário atual dos cursos de Letras no
Brasil nas duas últimas décadas, conforme pesquisas nacionais.

Ano Contexto dos cursos de Letras Autores


2000- Comissão de especialistas de ensino de Letras visita Freitas; Machado
2002 várias IES e constata: projetos pedagógicos insuficientes, (2013)
bibliografias defasadas, precariedade de formação docente.
2005 Currículo de licenciatura em Letras, é voltado para um perfil Paiva(2004;2005)
de bacharelado, e poucos são os professores interessados em e Lajolo [s.d.]
questões de metodologia, didática e ensino-aprendizagem.
Formação pedagógica, em vários currículos de Letras, a
cargo de pedagogos sem qualificação específica para a área
de Aquisição/Aprendizagem e Ensino de Línguas (AELin),
cujos planos de curso são muitas vezes, vindos de outras
licenciaturas; disputa entre departamentos de Letras e
educação, quanto à responsabilidade pelas disciplinas
didático-pedagógicas, como a carga horária dedicada à
realização do estágio supervisionado.
Falta de qualificação dos coordenadores, pois na maioria Paiva (2005)
das instituições, esse cargo tem indicação política sem
competência técnica, comprometendo a qualidade da
gestão.
Pouco envolvimento dos professores em formação
continuada
Falta de acervos adequados, tanto no número de exemplares
quanto em títulos.
Estagnação dos currículos Almeida Filho
(2000; 2006)

40
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A partir Falta de atratividade das licenciaturas de modo geral Ristoff; Bianchetti


de 2007 (2012)
2017 As competências e os conteúdos avaliados neste exame Relatório do
demonstraram que os cursos de Letras precisam realmente Enade/2017
repensar o trabalho que está sendo realizado, procurando
incluir no currículo discussões sobre a autoria feminina na
literatura em diferentes períodos; diversidade linguística e
cultural e uso de tecnologias para ensino e aprendizagem de
idiomas.
Quadro 1. Alguns indicativos do cenário atual dos cursos de Letras
Fonte: a autora, 2020.

O próprio relatório do Enade/2017 menciona a necessidade de reformu-


lação dos currículos de Letras a partir dos resultados evidenciados nesse exame;
assim, parece haver necessidade de reinvenção das propostas curriculares desses
cursos.

Os termos invenção ou reinvenção referem-se ao múltiplo, ao movimento,


ou seja, a algo constante. Portanto, pensar em reinventar o curso de Letras exige
conceber língua “in vivo”, não “in vitro”, não separada das conjunturas, mas, so-
bretudo não separada da maneira como se manifesta a questão dos sentidos em
outras linguagens e na língua (ORLANDI, 2018).

Isso implica que, a fim de preparar melhor os estudantes de Letras para seu
campo de atuação, não basta, por exemplo, oferecer-lhes as ferramentas tecnoló-
gicas apropriadas se a metodologia de ensino é tradicional; nessa lógica, o docen-
te repassa seu conhecimento a um aprendiz passivo, cuja aprendizagem é superfi-
cial. É imprescindível, portanto, que docentes e discentes insiram-se nas culturas
digitais, aprendendo as práticas socioculturais como usuários, refletindo sobre as
pautas sociais atuais que associam os discursos e promovendo a efetiva interdis-
ciplinaridade. A partir dessas experiências, é possível refletir sobre como promo-
ver a apropriação da língua para esses ambientes virtuais de aprendizagem.

Relações entre a abordagem curricular por competências e as


metodologias de aprendizagem ativa

Atualmente, a maioria das propostas curriculares de formação profis-


sional é por competências (ZABALA; ARNOU, 2010), entretanto não há uma
metodologia específica para desenvolver competências. Existem estratégias

41
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

metodológicas sob a denominação de Formação por Competências ou Pedagogia


das Competências, as quais se referem a um processo que visa desenvolver no es-
tudante a mobilização de saberes em diferentes contextos e situações, impondo
uma mudança do foco tradicional de reprodução do conhecimento e dos conteú-
dos a serem ensinados para as competências que serão construídas e desenvolvi-
das (PERRENOUD, 1999; MONTOYA, 2013; VOSGUERAU et al, 2020).

Portanto, a formação por competências requer mudança na postura me-


todológica da ação pedagógica docente, englobando novas estratégias e meto-
dologias de ensino e aprendizagem. Também exige foco no desenvolvimento de
competências, pois são a referência para a seleção de tarefas ricas de complexas
relações, buscando a compreensão entre a parte e o todo, entre a teoria e a prá-
tica (SCALLON, 2015). E, finalmente, a pedagogia das competências requer foco
na adoção de um contexto interdisciplinar de ensino, pois o que distingue a per-
formance do competente não é a quantidade de conhecimentos adquiridos, mas
a forma como esses conhecimentos foram organizados, integrados e articula-
dos; o competente deverá ter construído uma visão global da situação-problema
(GONÇALVES; BOTINI; PINHEIRO, 2004; NICOLA, 2020).

Conforme Bordenave e Pereira (1997, p.68), é recente a preocupação com


as metodologias de ensino e seu uso, especialmente no ensino superior. Os auto-
res refletem sobre a importância das metodologias adotadas pelo docente e suas
consequências:

[...] a opção metodológica feita pelo professor pode ter efeitos


decisivos sobre a formação da mentalidade do aluno, de sua cos-
movisão, de seu sistema de valores e, finalmente, de seu modo
de viver. Alguém disse uma vez que “enquanto os conteúdos in-
formam, os métodos de ensino formam”. Efetivamente, dos con-
teúdos do ensino o aluno aprende datas, fórmulas, estruturas,
classificações, nomenclaturas, cores, pesos, causas e efeitos etc.
Dos métodos ele aprende a ser livre ou submisso; inseguro ou se-
guro; disciplinado ou organizado; responsável ou irresponsável;
competitivo ou cooperativo. Dependendo de sua metodologia, o
professor pode contribuir para gerar uma consciência crítica ou
uma memória fiel, uma visão universalista ou uma visão estreita
e unilateral, uma sede de aprender pelo prazer apenas para re-
ceber um prêmio e evitar um castigo. (BORDENAVE; PEREIRA,
1997).

Assim, há hoje uma ampla divulgação nas diferentes áreas e níveis de en-
sino sobre essa questão, em geral, denominadas pela expressão metodologias

42
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ativas, o que se justifica por darem “ênfase ao papel de protagonista do aluno, ao


seu envolvimento direto, participativo e reflexivo em todas as etapas do proces-
so” (MORAN, 2018, p. 4).

Dito de outro modo, as metodologias ativas incentivam os processos edu-


cacionais crítico-reflexivos em que o educando participa de modo compromissa-
do com o processo de aprendizado. Nessa perspectiva, a responsabilidade princi-
pal do professor centra-se no planejamento, na orientação e no acompanhamento
do processo de ensino para que a aprendizagem aconteça.

Também cabe mencionar que a essência de metodologias ativas não se


constitui algo novo, pois na construção metodológica da Escola Nova, são valori-
zados a atividade e o interesse do aprendiz, e não os do professor. Assim, Dewey,
por meio do seu ideário da Escola Nova, teve grande influência nessa ideia ao de-
fender que a aprendizagem ocorre pela ação, colocando o estudante no centro
dos processos de ensino e de aprendizagem (EHRLICH, 1998).

Nesse sentido, as metodologias de aprendizagem ativa possuem caracte-


rísticas sustentadas em fundamentos teóricos pautados na aprendizagem pela
experiência (DEWEY, 1959), na aprendizagem pela interação social, preconiza-
da por Lev Vygotsky (VIGOTSKY; COLE, 1998) e na aprendizagem significativa
de Ausubel (1963); também considera a perspectiva freireana da autonomia
(FREIRE, 2015).

Na aprendizagem pela experiência, Dewey (1959) define cinco condições


para uma aprendizagem que integra diretamente a vida. Não se pretende deta-
lhar cada uma, contudo, é pertinente mencioná-las a fim de reconhecer uma apro-
ximação com as metodologias ativas: só se aprende o que se pratica; mas não bas-
ta praticar, é preciso haver reconstrução consciente da experiência; aprende-se
por associação; não se aprende nunca uma coisa só; toda aprendizagem deve ser
integrada à vida.

Em oposição ao inatismo, que considerava que o humano nasce de um jeito


e nunca mudará, e ao behaviorismo, segundo o qual o humano aprende através
de mecanismos de estímulos, respostas, reforço positivo (recompensas) e reforço
negativo (punição), surge o interacionismo, que deixa de ver o aluno como um ser
passivo. Essa concepção tem duas correntes: a epistemologia genética de Jean
Piaget, que valoriza pedagogicamente o erro e confere importância aos saberes
prévios; e a de Vygotsky, que salienta o papel da interação, do diálogo, do trabalho
em grupo e da mediação pedagógica. Essa concepção considera a interação social

43
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

como fundamental para o desenvolvimento cognitivo do indivíduo, por provocar


constantemente novas aprendizagens a partir da solução de problemas sob a
orientação ou colaboração de crianças ou adultos mais experientes.

Vygotsky concebe a aprendizagem dentro da zona de desenvolvimento


proximal, que é a distância entre o nível de desenvolvimento cognitivo real do in-
divíduo (capacidade de resolver problemas independentemente) e o nível de de-
senvolvimento potencial (capacidade de resolução de problemas sob orientação
de um adulto). Assim, é preciso identificar o conhecimento real da criança e, a par-
tir disso, provocar novas aprendizagens, que, quando se tornam conhecimento
real, novamente propulsionarão outras aprendizagens (VIGOTSKY; COLE, 1998).

A corrente teórica ausubeliana propõe a importância da consciência do


processo de aprendizagem e da metacognição; destaca uma dicotomia entre a
aprendizagem significativa e mecânica, sendo que, na primeira, a nova informa-
ção é relacionada de maneira substantiva e não arbitrária a um aspecto relevante
da estrutura cognitiva; já na aprendizagem mecânica, a nova informação não in-
terage com aquela já existente na estrutura cognitiva, portanto, ocorrendo uma
aprendizagem superficial facilmente esquecida. Ausubel também trata das condi-
ções para a ocorrência da aprendizagem significativa: a não arbitrariedade do ma-
terial, a subjetividade e a disponibilidade para a aprendizagem (NICOLA, 2020):

Na perspectiva freireana, a autonomia torna-se uma categoria conceitual


fundamental no processo educativo progressista, que tem a liberdade como uto-
pia. Nessa direção, o homem com autonomia está em condições de se emancipar.
Produz pertinência em suas ações, defende seu ponto de vista de forma argumen-
tativa e entende a verdade em movimento, sendo reconstruída constantemente;
cria uma estrutura subjetiva, capaz de usar a racionalidade e a sensibilidade na
defesa dos seus interesses individuais e coletivos. É um sujeito consciente de sua
condição política na interação com o mundo e consegue desvelar os fenômenos
que impedem a visibilidade diante das decisões que precisa tomar; então, apren-
de a aproveitar as circunstâncias para agir. (FREIRE, 2015).

Em suma, não há inovação no pensamento pedagógico, mas formalização


e/ou estruturação de abordagens há muito defendidas e estabelecidas. E a com-
preensão dessas abordagens favorece a utilização consciente e eficaz dessas me-
todologias e contribui para se evitarem ou superarem dificuldades recorrentes.

A Figura 1 sintetiza as características gerais do ideário das metodologias


de aprendizagem ativa.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Figura 1. Características das metodologias de aprendizagem ativa

Fonte: a autora, com base em Moura e Barbosa (2014).

Entretanto, um dos grandes desafios que se colocam aos processos ava-


liativos é privilegiar, entre os aspectos a serem avaliados, o desenvolvimento de
competências. Isso implica selecionar as metodologias ativas alinhadas com as
competências propostas no currículo do curso, entendidas em uma dimensão
ampla, ou seja, contemplando não só aspectos racionais, cognitivos ou mentais,
mas também processos intersubjetivos, afetivos e socioculturais (MARINHO-
ARAUJO; RABELO, 2015).

Esses autores explicam que o desafio da avaliação no contexto das meto-


dologias ativas é, portanto, ultrapassar a investigação de saberes e conhecimen-
tos, requerendo processos de revisão e reconstrução tanto da prática avaliativa
quanto do próprio processo de ensino e aprendizagem. Não se podem oportuni-
zar instrumentos avaliativos apenas a partir de uma perspectiva individual, mas
deve-se, sobretudo, considerar a dimensão coletiva, relacional e contextualiza-
da. Desse modo, o contexto assume um papel relevante tanto nas situações de
aprendizagem como de avaliação, denominada por muitos autores de avaliação
autêntica (CONDEMARÍN; MEDINA, 2005; HARTMAN, 2015; SCALLON, 2015).

45
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Também Seixas et al.(2017), em pesquisa empírica, relatam as dificuldades


dos professores em empregar as metodologias ativas de aprendizagem, dentre
as quais se destacam: não terem oportunidade de conhecer os demais professo-
res de cursos nos quais lecionam na IES; não planejarem metodologias de ensino,
integrando conhecimento com as outras disciplinas oferecidas por professores
que ministram outra unidade curricular, ou até de conhecerem de perto o pro-
jeto pedagógico do curso e o perfil profissional exigido para essa formação. Essa
aproximação do docente com as competências exigidas pela formação e que são
apresentadas no projeto pedagógico do curso são relevantes para a escolha de
uma metodologia ativa de aprendizagem que permita o desenvolvimento dessas
exigências profissionais.

E ainda, Moran (2018) aponta certa acomodação por parte dos docentes
na repetição de fórmulas, esperando receitas, num mundo que exige criatividade
e capacidade de enfrentar desafios complexos; além disso, afirma haver resistên-
cia de docentes e gestores, que se sentem desvalorizados com a perda do papel
central de transmissores de informação e que consideram o papel do professor
relegado a plano secundário com a adoção das metodologias ativas, sendo substi-
tuído pelas tecnologias.

Por outro lado, na perspectiva dos estudantes, Marin et al (2010) relatam


fragilidades, especialmente, em relação à abrupta mudança das metodologias tra-
dicionais para as metodologias ativas, fazendo-os se sentirem confusos na busca
de conhecimento, principalmente, em disciplinas básicas. Faz-se imprescindível,
segundo Moran (2018), capacitar coordenadores, professores e alunos para tra-
balhar mais com metodologias ativas e currículos mais flexíveis.

Princípios de aprendizagem linguística ativa

Os princípios educacionais estão associados às concepções pedagógicas


que, inconsciente ou conscientemente, guiam a prática dos professores. Por essa
razão, considera-se, a priori, mais relevante refletir sobre princípios de aprendi-
zagem ativa do que descrever metodologias ativas isoladas. Além disso, é preci-
so considerar princípios didáticos específicos da área, que neste caso, requerem
aprendizagem linguística ativa, abrangendo aprender língua, aprender por meio
da língua e aprender sobre a língua. (HALLIDAY, 1979).

Assim, na aprendizagem linguística ativa, um dos princípios é a ativação dos


conhecimentos prévios do estudante. Porém, não se trata de fazer diagnóstico,

46
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

pois frequentemente, os docentes não utilizam esse resultado no planejamento


do trabalho diário. Também não é pensar que todos os saberes dos estudantes
sempre colaboram para a construção de um conhecimento, visto que há crenças
que representam verdadeiros obstáculos para a aprendizagem de novos conhe-
cimentos. E ainda, conhecimentos prévios não são requisitos, pois esses últimos
constituem uma lista de conteúdos e habilidades, muitas vezes arbitrária, já que é
produzida pelos docentes; teoricamente, sem esses requisitos, não seria possível
avançar para o conteúdo seguinte. Conhecimentos prévios são estruturas cogni-
tivas que representam condições prévias para a elaboração de outras estruturas
mais complexas (PIAGET, 2013). Ao agir sobre um novo objeto ou situação que
entre em conflito com as capacidades já existentes, as pessoas fazem um esforço
de modificação para que suas estruturas compreendam a novidade. Portanto, a
ativação está relacionada à dinamicidade do conhecimento. Há muito conheci-
mento no cérebro e ele não é estático; renova-se, modifica-se, enriquece-se ou se
perde; tudo continuamente. Ideias ou conceitos mais usados ficam mais ativados
que outros raramente usados que podem até ser desativados, caindo no esque-
cimento (COSCARELLI, s.d.). Também cabe planejar práticas de leitura, escrita,
oralidade e escuta que promovam diferentes tipos de conhecimento prévio: lin-
guístico, enciclopédico, procedimental, intuitivo, científico, entre outros.

Outro princípio de aprendizagem linguística ativa é desenvolver o conhe-


cimento profundo dos fenômenos estudados. Para tanto, o estudante de Letras
precisa agir como linguista, tentando identificar os padrões da língua, “a arquite-
tura invisível por trás do seu sistema” (PILATI, 2017, p. 105). Também Travaglia
(2009) propõe que os docentes oportunizem atividades em que os estudantes
precisem: explicitar fatos da estrutura e do funcionamento da língua; partir de
estruturas para o conceito, e não o contrário; focalizar essencialmente os efeitos
de sentido que os elementos linguísticos podem produzir na interlocução (volta-
da à semântica e à pragmática); pensar nas alternativas de recursos linguísticos
a serem usados e comparar efeitos de sentido (forma de agir usando a língua x
classificação dos elementos linguísticos).

O terceiro princípio é desenvolver habilidades metacognitivas, ou seja, em-


pregar estratégias de controle ou autorregulação de ações para avaliar a execu-
ção de tarefas, tendo percepção de fraquezas relacionadas a determinado tema,
e buscando meios práticos e eficientes para se chegar aos objetivos pretendidos
(RIBEIRO, 2003). Isso requer dos docentes a elaboração de instrumentos autorre-
gulativos como checklists, protocolos de autocorreção e rubricas que, efetivamen-
te, contribuam para que os estudantes possam se desenvolver em um contexto

47
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que conduza à autonomia, à reflexão e ao senso crítico porque permitem regular


as próprias aprendizagens.

Finalmente, mas não menos importante, há um princípio de aprendizagem


linguística ativa voltado a desenvolver práticas socioculturais numa perspectiva
textual e discursiva, por meio de experiências de leitura, escrita e aprendizagem
sobre a língua e a linguagem. Conforme as DCE (BRASIL, 2001), o egresso da li-
cenciatura em Letras, é um sujeito com múltiplas competências para desenvolver
atividades de professor, pesquisador, crítico literário, tradutor, intérprete, revi-
sor de texto e roteirista, entre outras atividades profissionais. Para viabilizar esse
perfil de profissional capaz de utilizar a língua em diferentes contextos e apto à
realização da transposição didática dos conteúdos, é imprescindível um currículo
que articule teoria e prática, considerando as manifestações socioculturais que
essas práticas representam.E ainda, pressupõe, desde o início do curso, propiciar
sintonia entre saberes disciplinares (as disciplinas), curriculares (o programa do
curso), pedagógicos, experienciais e da ação.

Os currículos dos cursos de Letras não podem mais ser fundados em racio-
nalidade técnica, especializada e de tradição positivista, que procuram enquadrar
a realidade às teorias, aos métodos e às técnicas, pois compreende-os como uni-
versais e capazes de responder a qualquer realidade (BECKER, 1993). Isso por-
que eles não atendem às tensões do trabalho do professor de língua portuguesa
e/ou adicional em sala de aula. A formação inicial docente destaca-se por uma ar-
ticulação entre a teoria e a prática, entre o saber e o atuar, por meio de reflexão
sobre as situações baseadas em contexto real. Assim, a renovação do Curso de
Letras depende da reestruturação do programa curricular do curso, que integra
os saberes formalizados e técnicos aos metodológicos, isto é, aos saberes em uso.

A escolha das metodologias de aprendizagem ativa e promoção


de autonomia do estudante

A escolha de metodologias de aprendizagem ativa, quando coerente com


os resultados de aprendizagem pretendidos (do inglês, Intended Learning Outcome
- ILO) orientados para o desenvolvimento das competências necessárias à forma-
ção do perfil do egresso do curso, integra as disciplinas e favorece a ressignifi-
cação do curso. Entretanto, em muitos casos, os docentes de educação superior
selecionam aleatoriamente as metodologias, conforme seu domínio sobre elas,
ou o envolvimento dos estudantes. Parece faltar-lhes saberes pedagógicos mais
profundos sobre planejamento de aulas centradas nos estudantes. A Teoria do

48
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Alinhamento Construtivo, proposta por John Biggs, e fundamentada no constru-


tivismo, baseia-se na definição de resultados de aprendizagem pretendidos, esta-
belecendo-se claramente como eles serão avaliados, em que grau de complexida-
de e com quais formas de avaliação (BIGGS; TANG, 2011).

Quando há esse alinhamento, é possível selecionar as atividades e as me-


todologias de aprendizagem mais adequadas a esse contexto. O quadro 2, que
corresponde a um quadro de planejamento de uma disciplina de período inicial
do curso de Letras, exemplifica esse alinhamento construtivo, desdobrando os
resultados de aprendizagem pretendidos em indicadores de desempenho (em
inglês, Outcome Statement), ou seja, declarações que revelam uma aprendizagem
por meio de uma ação ou produto observável ou mensurável em uma condição
específica (BARKLEY; MAJOR, 2020).

Resultado de Indicadores de Metodologias de Processos


Aprendizagem Desempenho aprendizagem Avaliativos
Interpretar os Identifica o ponto de Sala de aula Avaliação formativa:
principais gêneros vista defendido em invertida (Flipped sistema de votação;
textuais escritos diferentes subgêneros Classroom) instrução por pares
acadêmicos de base do artigo. Aprendizagem e feedback contínuo
argumentativa, Reconhece os principais baseada em por parte de
empregando argumentos que Times (Team Based docentes e pares
conhecimentos sustentam um ponto Learning) Avaliação somativa:
linguísticos, de vista em diferentes Técnicas de teste de questões
discursivos e subgêneros do artigo. antecipação discursivas de
pragmáticos. Estabelece relações e seleção de interpretação escrita
intertextuais entre informações de artigo científico
textos de base sobre cada indicador
argumentativa em de desempenho
diferentes suportes. do resultado de
Identifica contra- aprendizagem
argumentos em pretendido.
diferentes subgêneros
do artigo.
Quadro 2. Exemplo de planejamento com alinhamento construtivo em disciplina do curso de
Letras
Fonte: a autora, 2020.

A escolha da sala de aula invertida remete à ideia de que os estudantes fa-


çam a leitura do texto proposto (artigo de opinião ou de divulgação científica), em-
preguem a técnica de antecipação de informações, selecionem o ponto de vista,

49
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

os principais argumentos que o sustentam e possam postar a atividade antes da


aula que tratará desse tema de estudo.

Em aula, o docente realiza questões de múltipla escolha sobre esses indica-


dores de desempenho, analisando as respostas dadas pelos estudantes na ativida-
de postada; as alternativas das questões são autênticas porque expressam a real
dificuldade dos estudantes e, por meio de sistema de votação e uso de aplicativos
como socrative ou mentimeter, pode-se dinamizar a interação em aula. Para cada
questão, há duas tentativas de votação, mediadas pela instrução por pares, ou
seja, os estudantes, por dois minutos, interagem com colegas cujas respostas são
diferentes das suas; após isso, há a segunda votação de resposta. A contagem ge-
ral de respostas é imediata e apresentada pelos aplicativos. Ao final, dessa etapa
da aula, que não deve exceder a quinze minutos, o docente passa para a exposição
da técnica de seleção de informações, explorando mais detalhadamente o texto.

Em outra aula, com outro texto (agora artigo científico), feita a sala de aula
invertida, o docente propõe as atividades primeiramente individuais e depois os
estudantes discutirão suas respostas em seu time (grupo formado pelo professor,
que atua junto durante todo o período da disciplina), decidindo a resposta coleti-
va final. A correção dessa atividade é feita com pontuação específica tanto para a
parte individual como para a coletiva. Levar os estudantes a refletirem sobre os
resultados é fundamental, pois é possível avaliar as causas de terem ótimo desem-
penho individualmente, mas em time, o resultado não evidenciar isso; ou o contrá-
rio. Pode-se fazê-los pensar sobre o valor da capacidade argumentativa oral e de
escuta eficaz dos membros do time.

Também Biggs e Tang (2007) descrevem duas formas de aprendizagem: a


superficial e a profunda. Na primeira, os estudantes querem dar conta das tarefas
com um mínimo de esforço possível, mas dando a impressão de que atendem aos
requisitos, o que pode, em situações extremas, levá-los a serem aprovados sem
entenderem nada. Na segunda forma, os autores consideram que os estudantes
se engajam melhor nas tarefas, porque estão mais contextualizadas e se tornam
mais significativas para eles. Ao se envolverem com as tarefas, os estudantes se
engajam e ficam mais motivados a usar sua capacidade intelectual, a fim de aten-
der aos resultados de aprendizagem pretendidos e compartilhados pelo docente.

Trata-se de um docente motivado para atuar em novos paradigmas, dispon-


do-se a conhecer novas possibilidades didáticas específicas (GAETA, 2017). Há

50
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

um continuum entre as metodologias centradas no professor e as metodologias


cujo controle é feito pelo estudante, promovendo sua autonomia.

Figura 2 . Continuum da aprendizagem ativa

Fonte: adaptado de Lord et al. (2012).

O continuum apresenta, em caráter ilustrativo, metodologias e técnicas


de aprendizagem que contribuem para promover perfis de egressos aprendizes
ao longo da vida, conscientes da importância do processo contínuo de pesquisa
e desenvolvimento das próprias competências profissionais. Ao iniciar por aulas
expositivas interativas, é possível inferir que as aulas expositivas (mesmo que dia-
logadas) ainda estão sob controle do professor, colocando os estudantes em ati-
tude passiva, ou seja, ouvindo e anotando apenas. Já a aprendizagem colaborativa
é todo processo ativo de corresponsabilidade entre pares, ou seja, que usam habi-
lidades sociais, resolvendo possíveis conflitos, o que auxilia no desenvolvimento
de traços positivos da personalidade.

Especificamente, no currículo do curso de Letras, entende-se que a apren-


dizagem colaborativa está voltada à perspectiva de escrita colaborativa em que
o escritor-estudante desenvolve um texto que é revisto por ele mesmo, e depois
por um leitor-professor ou um par, a fim de lhe conferir mais qualidade, levando-
-se em consideração o propósito e a situação sociocomunicativa do escrito. A par-
tir dessa colaboração didática entre estudante-professor-estudante, mediada pe-
las tecnologias digitais de informação e comunicação (KENSKI, 2013), o escritor

51
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

tem mais oportunidade de aprender a escrever para audiências específicas, pois a


produção tem um caráter constitutivamente dialógico (BAKTHIN, 2011).

Considerações finais

Ao refletir sobre a urgência de se reinventar o curso de Letras, consideran-


do as metodologias de aprendizagem ativa no ensino de línguas em consonância
com uma abordagem curricular por competências, destacam-se: as práticas mul-
tiletradas, sobretudo quanto à multiplicidade de linguagens e quanto ao uso das
tecnologias digitais de comunicação e informação; a escolha consciente de meto-
dologias sustentadas em princípios educacionais e na teoria do alinhamento cons-
trutivo; e a perspectiva crítico-reflexiva e colaborativa do estudante. Entretanto,
não se pode ignorar os múltiplos desafios que essa proposta requer para sua cons-
trução e implementação, seja no âmbito da formação de coordenadores e pro-
fessores do curso, seja na gestão administrativa da educação superior voltada a
um processo democrático de negociações entre as diversas demandas, ou ainda,
na superação das limitações de infraestrutura institucional e exclusão digital de
muitos estudantes de graduação. Mesmo assim, buscou-se aqui contribuir com
uma perspectiva clara de língua em uso na contemporaneidade, evidenciando
que requer conhecer teorias e metodologias advindas das áreas da linguística e
da educação para ressignificar o trabalho docente.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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54
PARTE 1
ENSINO DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA E
INTERFACES
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

DESAFIOS DA PRÁTICA DOCENTE NO


ENSINO DE LÍNGUA INGLESA NA PRÉ-
ESCOLA/EDUCAÇÃO INFANTIL NA REDE
MUNICIPAL DE XAXIM/SC1

Alâna Capitanio2
Saionara Greggio3

RESUMO: Buscamos apresentar, neste trabalho, um recorte de uma pesquisa rea-


lizada no curso de Especialização em Ensino de Língua Inglesa, do IFSC, Campus
Chapecó/SC, a qual investigou as percepções, os desafios e as superações da prá-
tica docente que professores de Língua Inglesa da pré-escola, na rede municipal
de ensino de Xaxim/SC, enfrentaram/enfrentam na sua prática docente nessa
etapa de ensino. Tivemos como respaldo teórico os documentos norteadores da
Educação Infantil e do ensino de Língua Inglesa na Educação Básica, em nível na-
cional, estadual e regional, a fim de compreender a etapa da Educação Infantil e o
ensino de Língua Inglesa como Língua Franca, além de estudar dados de pesqui-
sas publicadas pelo British Council (2015; 2019), os quais proporcionaram com-
preender o panorama do ensino da Língua Inglesa na educação pública brasileira.
Para alcançar o objetivo da pesquisa, foi enviado aos professores que atuam no
ano de 2020, ou atuaram nos anos de 2017, 2018 ou 2019, na pré-escola da rede
1 Este trabalho é um recorte da pesquisa intitulada “O ensino de língua inglesa na pré-escola/
educação infantil no município de Xaxim/SC: Percepções, desafios e superações da prática do-
cente”,orientada pela professora Dr. Saionara Greggio,realizada no curso de Especialização em
Ensino de Língua Inglesa, do IFSC, campus Chapecó/SC.
2 Instituto Federal de Santa Catarina, campus Chapecó/SC. alana.capitanio18@gmail.com
3 Instituto Federal de Santa Catarina, campus Chapecó/SC. saionara.greggio@ifsc.edu.br

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

municipal de Xaxim/SC, um questionário estruturado com perguntas, fechadas


e abertas. Os resultados da análise mostram que os desafios da prática docente
de Língua Inglesa na pré-escola estão vinculados à formação inicial e continuada
dos professores, à faixa etária dos estudantes, ao planejamento, à infraestrutura,
à desvalorização da profissão e do componente curricular, sendo que a falta de
material didático e a baixa carga horária do componente configuram-se como os
dois maiores desafios.

PALAVRAS-CHAVE: Língua Inglesa; Pré-escola; Desafios.

ABSTRACT: We seek to present, in this work, an excerpt of a survey carried out in the
Specialization Course in English Language Teaching, of IFSC, campus Chapecó- SC, whi-
ch investigated the perceptions, the challenges and the breakthroughs that pre-school
English Language teachers in the municipal school system from Xaxim- SC, faced/face
in their teaching practice in this educational phase. We had as theoretical support the
guiding documents of Early Childhood Education and English Language teaching in
Basic Education, at national, state and regional level, in order to understand the stage
of Early Childhood Education and the teaching of English as a Lingua Franca, in addi-
tion to studying research data published by the British Council (2015; 2019), which
provided an understanding of the panorama of English language teaching in Brazilian
public education. To achieve the objective, a structured questionnaire, composed of clo-
sed and opened questions, was sent to teachers who work in the year 2020, or worked
in the years 2017, 2018 or 2019, at the preschool in the municipal education sys-
tem of Xaxim, SC. The results of the analysis show that the challenges of the English
Language teaching practice in preschool are related to initial and continuing education
of teachers, to the age of students, to the planning time, to infrastructure conditions,
to devaluation of the profession and the curricular component, where in the lack of di-
dactic material and the insufficient English teaching-hours per week as the two biggest
challenges teachers face.

KEYWORDS: English Language; Pre-school; Challenges.

Introdução

Buscamos apresentar, neste trabalho, um recorte da pesquisa intitulada


“O ensino de Língua Inglesa na Pré-escola/Educação Infantil no município de
Xaxim/SC: percepções, desafios e superações da prática docente” (CAPITÂNIO,
2020), com enfoque nos principais desafios que professores de Língua Inglesa da

57
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

pré-escola, na rede municipal de ensino de Xaxim/SC, enfrentaram/enfrentam na


sua prática docente nessa etapa de ensino a fim de tornar tais desafios em poten-
ciais mudanças ou superações.

A motivação da pesquisa resulta da própria prática docente de uma das


pesquisadoras, a qual atua há três anos com o ensino de Língua Inglesa na pré-es-
cola da rede municipal de Xaxim/SC. Esta cidade é localizada no oeste de Santa
Catarina, possui em torno de 28 mil habitantes e nove escolas que ofertam a pré-
-escola, totalizando mais de 600 estudantes nesta etapa de ensino. Quanto ao nú-
mero de professores, conforme a Secretaria Municipal de Xaxim/SC, nas escolas
públicas da rede municipal, neste ano, são sete professores de Língua Inglesa que
atendem as turmas da pré-escola nesse componente curricular, sendo que alguns
destes atendem mais de uma escola.

O trabalho científico também contribui para a formação e reflexão dos pro-


fessores de Língua Inglesa nesta modalidade de ensino em Xaxim/SC, ampliação
do debate sobre a importância do ensino da Língua Inglesa para a formação inte-
gral dos estudantes, bem como para a complementação de pesquisas já existentes
na área e estudos acadêmicos de formação inicial e continuada de professores de
Língua Inglesa.

A Educação Básica é um direito assegurado pela Constituição Brasileira


de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 20 de dezem-
bro de 1996. Contudo, a obrigatoriedade de crianças a partir de quatro anos
de idade a frequentarem a pré-escola aconteceu somente por meio da Emenda
Constitucional nº 59, de 11 de novembro de 2009 e, posteriormente, pela Lei nº
12.796, de 04 de abril de 2013, a qual atualizou a LDB de 1996. Nesse sentido, a
pré-escola como obrigatória é bem recente em nosso país, tendo muito ainda a
ser construído por meio do trabalho de pesquisadores, professores, educadores,
legisladores, bem como pelos estudantes que possibilitam subsídios práticos para
compreendermos a realidade dessa etapa escolar.

Portanto, o debate sobre o ensino de Língua Inglesa na educação infantil


não poderia ser diferente e nem estar de fora dessa construção. É um dos temas
que precisa de teorização constante, no que emerge da práxis. Apesar de o ensino
dessa língua na pré-escola não ser obrigatório em nosso país, sua oferta é uma
prática comum em escolas particulares, porém rara em escolas ou centros de en-
sino públicos de educação infantil.

A partir do contexto de inserção da língua inglesa na pré-escola, este


trabalho buscou ouvir os professores a fim de identificar os principais desafios

58
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que enfrentam/enfrentaram na sua prática docente no ensino de Língua Inglesa


na Pré-escola/Educação Infantil especificamente na rede municipal de ensino
de Xaxim/SC, os quais atuam este ano (2020) ou atuaram nos últimos três anos
(2017, 2018, 2019) com o ensino da Língua Inglesa.

A Língua Inglesa na Pré-escola/Educação Infantil

A pré-escola, no Brasil, está garantida por lei desde a promulgação da


Constituição Brasileira em 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, pu-
blicada em 1996. Já a obrigatoriedade de crianças a partir de quatro anos fre-
quentarem a educação básica surge somente com a Emenda Constitucional nº 59,
de 11 de novembro de 2009, e pela Lei nº 12.796, de 04 de abril de 2013, a qual
alterou partes da LDB de 1996. Em seu artigo 29, a LDB afirma que a educação
infantil tem como objetivo o desenvolvimento integral dos estudantes, em seus
aspectos físico, psicológico, intelectual e social (BRASIL, 1996).

A pré-escola na educação infantil se configura como a primeira etapa da


educação básica, ou seja, faz parte da educação formal obrigatória do estudante.
Por meio da interação e da brincadeira, a criança avança em seu desenvolvimento
que até então acontecia no meio familiar. A Base Nacional Comum Curricular da
Educação Infantil (BRASIL, 2017) apresenta seis direitos de aprendizagem e de-
senvolvimento que são assegurados às crianças nesse nível de ensino, desenvol-
vidos por meio de práticas pedagógicas que possuem intencionalidade educativa
(BRASIL, 2017, p. 38) e que são de direito da criança: conviver, brincar, participar,
explorar, expressar, conhecer-se.

O direito de conviver, de acordo com a BNCC, refere-se à criança estar


em contato com outras crianças e adultos, fazendo uso de diferentes linguagens,
aprendendo a respeitar a cultura do outro e conhecendo-se a si mesmo. O brincar
equivale ao conceber as diversas formas, espaços e tempos, bem como pessoas,
a fim de ampliar e diversificar na criança seus conhecimentos, “sua imaginação,
sua criatividade, suas experiências emocionais, corporais, sensoriais, expressivas,
cognitivas, sociais e relacionais” (BRASIL, 2017, p. 38). Quanto ao direito de par-
ticipar, espera-se que a criança se envolva no planejamento da gestão escolar, do
professor, por exemplo, por meio da escolha das brincadeiras, dos materiais e dos
ambientes, fazendo uso de diferentes linguagens, colocando sua compreensão
(BRASIL, 2017).

59
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Ainda, conforme esse documento, também é direito da criança aprender a


explorar “movimentos, gestos, sons, formas, texturas, cores, palavras, emoções,
transformações, relacionamentos, histórias, objetos, elementos da natureza”
(BRASIL, 2017, p. 38), a fim de ampliar seu repertório artístico, da escrita, da ciên-
cia e da tecnologia. Além disso, a BNCC (IBID.) afirma que a criança tem o direito
de expressar suas necessidades, emoções, sentimentos, dúvidas, hipóteses, des-
cobertas, opiniões, questionamentos, com o uso de diferentes linguagens. Assim,
“conhecer-se e construir sua identidade pessoal, social e cultural” (BRASIL, 2017,
p. 38), bem como conhecer a identidade dos demais sujeitos, por meio das inte-
rações, brincadeiras e linguagens proporcionadas na escola e em seu contexto
familiar e comunitário.

Lima, Borghi e Neto (2019), ao analisarem a BNCC (BRASIL, 2017), afir-


mam que não há nenhuma discussão sobre o ensino de Língua Inglesa na Educação
Infantil. Contudo, os autores entendem que os objetivos traçados para essa etapa
de ensino podem ser alcançados por meio das contribuições da Língua Inglesa ao
ampliar “o universo de experiências, conhecimentos e habilidades dessas crian-
ças, diversificando e consolidando novas aprendizagens” (LIMA; BORGHI; NETO,
2019, p. 32).

Nesse entendimento, a Língua Inglesa, por meio de suas especificidades,


colabora para o desenvolvimento da criança. O objetivo de aprender inglês não é
somente o estudo da língua pela língua, mas propiciar ao estudante vivências que
colaborem no seu desenvolvimento, vivências que permitam a ampliação de seu
desenvolvimento para os desafios e necessidades diárias e futuras.

A BNCC do Ensino Fundamental, no que se refere ao ensino da Língua


Inglesa nessa etapa, apresenta a Língua Inglesa como língua franca, “língua de co-
municação internacional, falada não só por nativos, mas por pessoas do mundo
todo, com repertórios culturais e linguísticos diversos” (LIMA; BORGHI; NETO,
2019, p. 19), o que permite trabalhar com o estudante a língua em práticas inter-
culturais, as quais promovem o reconhecimento e o respeito às diferenças. Tais
constatações também estão compreendidas na Educação Infantil, visto que faz
parte da educação básica, a qual é constituída por três etapas que não se findam
nelas mesmas, mas sim, são um contínuo que colaboram para o percurso formati-
vo do estudante.

Concorda-se, assim, que muito mais do que “razões cognitivas e biológicas,


como querem popularizar as editoras de material didático e os cursos de idiomas”,

60
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

a Língua Inglesa na educação infantil tem um papel importante “por motivos so-
ciais e educacionais”. (MERLO, 2018, p. 94). O ensino-aprendizagem da Língua
Inglesa busca, conforme Merlo (2018, p. 94), a sensibilização linguística e “a
transformações nas relações sociais das crianças com o mundo, tanto no presente
quanto no futuro”, de maneira que seu papel no percurso formativo do estudante
deve ser contemplado desde os primeiros anos da educação básica.

O Currículo Base da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do


Território Catarinense (SANTA CATARINA, 2019) apresenta implicações me-
todológicas ao ensino de Língua Inglesa, tanto para a Educação Infantil quanto
ao Ensino Fundamental – anos iniciais e finais – abarcando pela primeira vez a
Língua Inglesa como parte também dessa etapa de ensino, a qual não está cita-
da na BNCC. Conforme o Currículo Base do Território Catarinense, “os docentes,
independentemente da etapa, ao planejarem as aulas, precisam pensar em como
desenvolver a interação na e pela língua de forma contextualizada, lúdica e com
intencionalidade pedagógica” (SANTA CATARINA, 2019, p. 297). O documento
estabelece, ainda, que o planejamento do docente deve contemplar o desenvol-
vimento de conceitos de forma lúdica e de gêneros do discurso por meio de “di-
ferentes estratégias de uma educação para todos” (SANTA CATARINA, 2019, p.
298), utilizando-se flashcards, músicas, jogos, vídeos e recursos tecnológicos.

A partir do documento base construído para o território de Santa Catarina,


o qual é válido tanto para as escolas da rede estadual de ensino quanto as das
redes municipais, percebe-se a inserção da Língua Inglesa na educação infantil e
a preocupação metodológica com o desenvolvimento desse componente nessa
etapa de ensino. Esse documento demonstra ser um avanço, em relação à Base
Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017), ao respeitar as diferentes configura-
ções de matrizes oferecidas no território catarinense. Embora a BNCC não espe-
cifique quanto ao ensino de Língua Inglesa na educação infantil, entende-se que
seus pressupostos teóricos são equivalentes e devem ser contemplados indepen-
dentemente da etapa de ensino, tendo sim especificidades metodológicas quanto
ao trabalho com cada etapa de ensino.

Metodologia

Os dados constituem-se de respostas de um questionário, estruturado


com questões abertas e questões fechadas, enviado à diretora de Educação da
Secretaria Municipal de Educação de Xaxim-SC, no exercício do cargo no ano de

61
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

2020, a qual repassou para os diretores escolares o link do questionário que, pos-
teriormente, enviaram aos professores de Língua Inglesa de suas escolas.

O questionário foi estruturado em quatro seções (apresentação, formação


acadêmica, docência, conquistas e desafios da prática docente), as quais totaliza-
ram 14 perguntas.

Os professores deveriam se encaixar no requisito “ministra aulas de


Língua Inglesa na pré-escola/Educação Infantil no ano de 2020”, ou “ministrou
nos últimos três anos (2017 – 2018- 2019) aulas de Língua Inglesa na pré-escola/
Educação Infantil”, na rede municipal de Xaxim-SC. O questionário foi respondido
por sete professores, dos quais cinco estavam ministrando aulas de Língua Inglesa
na pré-escola/Educação Infantil no período em que os dados desse estudo foram
coletados e outros dois em anos anteriores. Uma das autoras desta pesquisa tam-
bém respondeu ao questionário, visto que faz parte do quadro de profissionais da
rede municipal de ensino.

As questões tinham como objetivo levantar um perfil individual dos pro-


fessores participantes, questionar quais seriam as contribuições da inserção da
Língua Inglesa na Pré-escola, quais seriam os principais desafios da prática do-
cente de Língua Inglesa na Pré-escola/Educação Infantil, e o que poderia ser feito
para superar tais desafios.

Resultados e discussões

Apresentamos, nesta etapa, dados e resultados do questionamento feito


aos participantes da pesquisa: “Quais são os principais desafios em ser profes-
sor(a) de Língua Inglesa na Pré-escola/Educação Infantil? Assinale as alternativas
que correspondem a sua realidade. (Assinale quantas forem necessárias)”. No
questionário, foram apresentadas alternativas, que poderiam ser marcadas de
acordo com a realidade de cada professor, organizadas em seis macro desafios: 1)
Desafios da formação inicial e continuada dos professores; 2) Desafios do plane-
jamento; 3) Desafios da faixa etária dos estudantes; 4) Desafios da estrutura física
da escola; 5) Desafios do ensino e aprendizagem da língua nessa faixa etária esco-
lar (pré-escola); 6) Desafios da profissão de professor de inglês.Também foi pos-
sibilitado um espaço para que os participantes acrescentassem outras respostas,
contudo, não houve a inserção de nenhuma outra opção em nenhuma categoria.

62
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

No presente artigo, devido à limitação de espaço focaremos na apresen-


tação e discussão dos três desafios diretamente vinculados à atuação dos parti-
cipantes, ou seja, ao ensino da língua inglesa na educação infantil, mais especifi-
camente: Desafios do planejamento, da faixa etária dos estudantes, da estrutura
física da escola do ensino e aprendizagem da língua nessa faixa etária escolar
(pré-escola).

Os resultados do levantamento dos desafios do Planejamento podem ser


visualizados no Quadro 1, a seguir:

Desafios do planejamento (%)


Carga horária semanal insuficiente para o planejamento individual das aulas. 85,7%
Falta de planejamento integrado com outros componentes. 71,4%
Desconhecimento dos documentos oficiais norteadores da educação infantil, 28,6%
como BNCC e Currículo Base Regional da Educação Infantil AMAI.
Dificuldade em organizar o planejamento individual das aulas. 14,3%
Dificuldade em desenvolver plano anual e plano de aula. 0,0%
Quadro 1. Desafios “Planejamento”.
Fonte: dados da pesquisa (2020).

Podemos ver nesse Quadro que o desafio “carga horária semanal insu-
ficiente para o planejamento individual das aulas” foi apontado por 85,7% dos
participantes. Conforme artigo 4º da Lei 11.738 de 16 de julho de 2008: “§ 4º Na
composição da jornada de trabalho, observar-se-á o limite máximo de 2/3 (dois
terços) da carga horária para o desempenho das atividades de interação com os
educandos” (BRASIL, 2008, s/p). Nesse sentido, o outro 1/3 da jornada é para o
desenvolvimento das chamadas horas-atividades, situação que foi contestada
por alguns governos estaduais, porém, votada no ano de 2020 como constitucio-
nal pelo Supremo Tribunal Federal4. Mesmo assim, esse tempo ainda não é vis-
to como suficiente para que o professor consiga planejar, estudar, atender pais,
participar de reuniões, desenvolver avaliações, entre tantas outras funções que
consomem o momento das horas-atividades.

Continuando a análise dos desafios, a opção “dificuldade em organizar o


planejamento individual das aulas” foi escolhida por apenas 14,3% dos professo-
res, não sendo uma dificuldade recorrente a todos. Porém, o tempo de planeja-
mento é uma dificuldade quase que para todos, visto que há outros fatores que
4 Para saber mais sobre isso, leia: https: //www.extraclasse.org.br/educacao/2020/05/
atividade-extraclasse-tera-julgamento-final-no-stf/.

63
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

serão vistos adiante que agravam a insuficiência de tempo de horas-atividades.


Quanto à “dificuldade de desenvolver o plano anual e o plano de aula”, nenhum
professor apresentou esta questão como um desafio.

A segunda alternativa mais apontada, por 71,4% dos professores, foi a


“falta de planejamento integrado com outros componentes”. Essa constatação
é preocupante se considerado que os documentos norteadores trazem o traba-
lho interdisciplinar ou por áreas e entre áreas de conhecimento como essencial
para o desenvolvimento do percurso formativo e de uma educação integral. Para
a Proposta Curricular de Santa Catarina (2014), ao compreender a educação em
uma perspectiva integral, o diálogo entre as áreas de conhecimento é essencial,
sem deixar de lado as especificidades das áreas e dos componentes curriculares.

Em relação à dificuldade em conhecer os documentos norteadores, ou seja,


a opção “desconhecimento dos documentos oficiais norteadores da educação
infantil, como a BNCC e o Currículo Base Regional da Educação Infantil AMAI”,
28,6% dos professores afirmou ter desconhecimento. Esse número pode estar
relacionado à formação inicial não ter contemplado tais estudos, bem à atualida-
de dos documentos, visto que a BNCC foi publicada no final do ano de 2017 e o
Currículo Base Regional da Educação Infantil AMAI em julho de 2019. A partir
desse desafio, é visível a necessidade de um trabalho da rede municipal de Xaxim/
SC em oferecer formação continuada aos professores sobre tais documentos,
os quais são importantes para o objetivo que a rede possui para a educação dos
estudantes.

A próxima categoria refere-se aos desafios da faixa etária, apresentados no


Quadro 2, a seguir:

Desafios da faixa etária dos estudantes (%)


Baixa carga horária de Língua Inglesa por turma. 100%
Número excessivo de estudantes na turma. 85,7%
Dificuldade de os estudantes comunicarem suas necessidades ao professor. 71,4%
Alto índice de indisciplina dos estudantes, não cumprindo com combinados. 71,4%
Demora de adaptação dos estudantes a uma rotina de aula. 57,1%
Demora de o estudante criar vínculo afetivo com o professor. 42,9%
Dificuldade de os estudantes aceitarem desenvolver trabalhos com colegas. 28,6%
Quadro 2. Desafios “Faixa etária”.
Fonte: dados da pesquisa (2020).

64
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Pode-se perceber no Quadro 2 que 100% dos professores concordam com


o mesmo desafio da “baixa carga horária de Língua Inglesa por turma”, acrescido
de 85,7% que colocam também o “número excessivo de estudantes na turma”. A
rede municipal de ensino de Xaxim/SC oferece uma aula de Língua Inglesa de 45
minutos semanais para os estudantes da pré-escola e do ensino fundamental –
anos iniciais. Como já explicitado pelo British Council (2015), não há uma regula-
mentação da carga horária, ou seja, cada rede de ensino, seja, municipal, estadual,
federal ou particular, decide sobre a oferta e a carga horária da Língua Inglesa na
Educação Infantil.

Em relação ao número de estudantes por turma, há uma legislação espe-


cífica que determina o número de alunos por turma conforme a etapa de ensino.
No território catarinense, a Lei Complementar Nº 170, de 07 de agosto de 1998,
em seu Art. 82 regulamenta que as turmas de pré-escola devem ter no máximo 25
estudantes por turma. Mesmo que a legislação especifique essa quantidade e ela
seja respeitada pela rede de ensino, ainda assim esse número é considerado alto,
visto que está se trabalhando com crianças que, na sua maioria, estão sendo in-
seridas na educação formal pela primeira vez, ou seja, não frequentaram creches
anteriormente.

Quando pensado na Língua Inglesa especificamente, comparando-se com


turmas de cursos de idiomas, esse número é quase o dobro daquele das turmas de
escolas de idiomas particulares. Agregado a esse fator, também está a carga horá-
ria da aula ser de 45 minutos semanais, cabendo ao professor adequar e qualificar
a aula para atender aos 25 estudantes, os quais são sujeitos diferentes que pos-
suem vivências diferentes. Tal situação torna-se desgastante, pois nem sempre o
professor consegue atender as especificidades de cada estudante ou de grupos
de estudantes.

As alternativas “alto índice de indisciplina dos estudantes, não cumprindo


com combinados” e “dificuldade de os estudantes comunicarem suas necessida-
des ao professor” foram escolhidas por 71,4% dos professores. Esses dois desa-
fios estão de certa forma interligados, visto que os alunos ao terem dificuldade de
comunicar suas necessidades, podem tentar comunicar por meio de outras ações
que levem à indisciplina também. Além disso, o fator idade também interfere,
pois, muitos estudantes iniciam sua vida escolar somente por volta de 3 ou 4 anos
de idade, levando consigo sentimento de insegurança ou timidez perante o que é
novo, além das questões ligadas ao desenvolvimento da comunicação, de modo

65
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que muitos alunos e suas famílias na pré-escola são orientados a buscar um aten-
dimento de fonoaudiologia para o desenvolvimento da comunicação da criança.

Ainda, quanto à indisciplina, Rego (1996) apresenta contribuições ao pen-


sar essa questão à luz de Vygotsky. Para a autora, o conceito de indisciplina é am-
plo e no campo da educação está vinculado a um comportamento inadequado,
de rebeldia, de intransigência, como se o estudante não conseguisse se ajustar
àquilo dito como norma ou padrão esperado. Tais afirmações param em pressu-
postos preconceituosos que trazem implicações à prática pedagógica de modo
que a pesquisadora compreende que a educação tem um papel crucial sobre o
comportamento e desenvolvimento de funções psicológicas complexas, “como
agir de modo consciente, deliberado, de autogovernar-se [...]. Em outras palavras,
o comportamento (in)disciplinado é aprendido” (REGO, 1996, p. 96), e cabe à es-
cola e à família encarar esse problema.

O desafio “demora de o estudante criar vínculo afetivo com o professor”,


apontado por 42,9% dos professores também pode estar vinculado à dificuldade
de o estudante comunicar suas necessidades ou transformar essa falta de vínculo
afetivo em situações que o professor considera indisciplina. Rego (1996) afirma
que é preciso que os professores aprendam a adequar as suas exigências às pos-
sibilidades e necessidades dos alunos, como a capacidade de concentração, con-
dição motora e compreensão de determinados componentes. Para o aluno, é pre-
ciso oportunizar que conheçam e discutam o que originou tais ações assim como
as consequências que advêm de tais atitudes. Nessa relação, a autora argumenta
que o professor assume um papel central de mediador do estudante e suas ações,
sendo que uma alternativa para a questão da indisciplina seja a possibilidade de
o professor ouvir o estudante e propor com o auxílio de outros profissionais da
escola e da família mudanças.

Outro fator que chama atenção por ter sido apontado por 57,1% dos pro-
fessores é a “demora de adaptação dos estudantes a uma rotina de aula”. Esse
desafio pode estar vinculado à carga horária ser de 45 minutos semanais, e caso
tenha algum dia sem aula por conta de feriados ou outras situações, o estudante
pode ficar até 15 dias sem ter a aula de Língua Inglesa. Porém, é importante que
o professor busque construir essa rotina com a turma, visto que a criança ainda
não tem a compreensão do conceito de aulas, de tempo, que vai sendo construído
por todos os professores dos diferentes componentes curriculares. Para Pereira
(2016), a rotina colabora para controlar a ansiedade da criança que saberá quais

66
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

serão as etapas da aula, além de conseguirem prever o que desenvolverão e a in-


tenção do professor, além de auxiliar na aquisição de novas estruturas e vocabu-
lários que o professor vai inserindo no trabalho pedagógico.

A “dificuldade de os estudantes aceitarem desenvolver trabalhos com co-


legas” foi apontada por apenas 28,6% dos professores como um desafio. Como já
mencionado, muitos estudantes iniciam sua vida escolar na pré-escola e até então
não vivenciavam e não compartilhavam tempo com várias crianças da mesma ida-
de. Por isso, o papel da escola na socialização dos alunos é importante, de modo
que os eixos interações e brincadeiras (BNCC, 2017) podem e devem ser explora-
dos como aliados no desenvolvimento da coletividade.

A terceira categoria de desafios está vinculada à estrutura física da escola,


conforme o Quadro 3, a seguir:

Desafios da estrutura física da escola (%)


Falta de material didático de Língua Inglesa, como livros e apostilas. 100%
Falta de materiais alternativos, como flashcards, jogos e brinquedos. 85,7%
Espaços restritos para o trabalho com a Língua Inglesa em outros espaços da 71,4%
escola que não seja somente a sala de aula.
Acesso restrito à internet, somente para professores e em poucos lugares da 71,4%
escola.
materiais tecnológicos insuficientes para a demanda da escola, com poucos 57,1%
computadores, projetores, caixas de som e laptops.
Infraestrutura precária ou inadequada de salas de aula, laboratórios, área 42,9%
coberta.
Falta de materiais escolares de expediente, como folhas de ofício, cola, 14,3%
tesoura.
Quadro 3. Desafios “Infraestrutura física da escola”.
Fonte: dados da pesquisa (2020).

Pela segunda vez, 100% dos professores indicaram a “falta de material di-
dático de Língua Inglesa, como livros e apostilas” como um desafio, seguido da
“falta de materiais alternativos, como flashcards, jogos e brinquedos” assinalado
por 85,7% dos participantes. A rede municipal de ensino de Xaxim/SC proporcio-
na material didático de Língua Inglesa apenas a partir do Ensino Fundamental –
anos iniciais.

67
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

No entanto, para a área de Língua Inglesa, somente no final do ano de 2019


foi enviado o documento “Plano Curricular Inglês” para servir como norteador do
trabalho com a Língua Inglesa na pré-escola da rede municipal. Além desse docu-
mento, não há outros materiais didáticos para o trabalho com o idioma nessa eta-
pa de ensino, de forma que o professor necessita produzir o seu próprio material,
o que é uma possibilidade que tem vantagens, pois o professor adequa conforme
sua necessidade. Contudo, esbarra-se no tempo de planejamento, já mencionado
como insuficiente para o professor ter de produzir seu próprio material, planejar
sequências didáticas, avaliar estudantes, participar de reuniões e outros eventos,
capacitar-se e realizar outras demandas que surgem durante o ano letivo.

A pesquisa publicada pelo British Council (2015) também apresenta que


para 81% dos professores investigados, “a maior dificuldade enfrentada em sala
de aula é a falta de ou a inadequação dos materiais didáticos” (BRITISH COUNCIL,
2015, p. 15). Entre os professores participantes da presente pesquisa, esse nú-
mero chega a 100%, de modo que seria necessário um trabalho urgente de cons-
trução de materiais didáticos ou adoção de material didático pela rede municipal,
ou também a possibilidade de ampliação do tempo dedicado ao planejamento de
modo que o professor consiga produzir seu próprio material adequado aos docu-
mentos norteadores e ao público-alvo.

Outros dois desafios, “espaços restritos para o trabalho com a Língua


Inglesa em outros espaços da escola que não seja somente a sala de aula” e “aces-
so restrito à internet, somente para professores e em poucos lugares da escola”
foram assinalados por 71,4% dos professores. Somados a isso, 57,4% dos partici-
pantes também apontaram “materiais tecnológicos insuficientes para a demanda
da escola, com poucos computadores, projetores, caixas de som e laptops”. Tais nú-
meros são ainda maiores do que aqueles da pesquisa publicada pelo British Council
(2015), na qual 43% dos professores relatam a falta de material tecnológico e/ou
complementares como aparelho de som, projetores, dicionários, jogos como um
desafio enfrentado em sala de aula.

A falta de material didático, de material tecnológico e de uma infraestru-


tura que permita que o aluno vivencie práticas pedagógicas que levam à apren-
dizagem por meio de interações e brincadeiras, conforme preconiza a BNCC
(BRASIL, 2017), é um desafio para o professor de Língua Inglesa na pré-escola da
rede municipal de Xaxim/SC. Muito mais do que se ter um documento curricular
norteador, é preciso, e se faz necessário, ter uma infraestrutura e materiais que

68
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

permitam colocá-lo em prática, de maneira que a teoria não fique mais uma vez
nos documentos.

A partir dos desafios da infraestrutura, segue-se para a próxima categoria


relacionada ao ensino e aprendizagem da Língua Inglesa na faixa etária da pré-es-
cola, conforme especificado no Quadro 4, a seguir:

Ensino e aprendizagem da língua nessa faixa etária escolar (%)


Estudantes possuem dificuldade de concentração durante a aula. 71,4%
Desconhecimento de metodologias de ensino de Língua Inglesa na educação 57,1%
infantil pelo professor.
Dificuldade em compreender as orientações do professor em Língua Inglesa. 57,1%
Poucos estudantes participam de forma ativa às atividades propostas. 42,9%
Estudantes não compreendem o que é uma língua estrangeira. 42,9%
Dificuldades cognitivas de aprendizagem de parte dos estudantes. 28,6%
Estudantes não são totalmente engajados em atividades comunicativas 28,6%
Alunos não compreendem o objetivo da aula quando apresentado a eles. 28,6%
Dificuldade em aliar brincadeiras com intencionalidades de aprendizagem. 14,3%
Quadro 4. Desafios “Ensino e aprendizagem da Língua na Pré-escola”.
Fonte: dados da pesquisa (2020).

Nesse Quadro podemos perceber que o maior desafio da inserção da


Língua Inglesa na Educação Infantil, de acordo com os participantes, é o fato de
os estudantes apresentarem dificuldade de concentração durante a aula (71,4%).
Entende-se que cada faixa etária possui características singulares e o tempo de
atenção é uma dessas características. Conforme Lains (2016, p. 54), “a capacidade
de prestar atenção não é uma capacidade geral, aplicável de maneira uniforme, in-
dependentemente das características dos objetos de conhecimento para os quais
se orienta e de aspectos motivacionais apenas intrínsecos aos sujeitos”. Nesse
sentido, se o professor tem esse entendimento de que a atenção faz parte do de-
senvolvimento do sujeito e que não acontece igualmente, conseguirá planejar sua
aula de uma maneira que a concentração do estudante seja da melhor forma ex-
plorada para a aprendizagem.

Lains (ibid.) ainda afirma que existem princípios que precisam ser conside-
rados na organização das atividades propostas às crianças, visto que as crianças
na pré-escola “são totalmente dependentes de fatores externos” (LAINS, 2016,
p. 55), de modo que “não são ainda capazes de fazer uso de meios externos para

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

autorregularem sua atenção” (LAINS, 2016, p. 55), contudo, isso vai sendo apren-
dido com o tempo para que consigam prestar atenção em determinada situação.
O professor, assim, entra como mediador ao propor interações e brincadeiras com
intencionalidade que possibilitem à criança desenvolver sua atenção. Mas para
isso, o professor precisa entender que o desenvolvimento da atenção também faz
parte da aprendizagem do estudante e que ele e a escola têm um papel essencial
nesse desenvolvimento.

Relacionado ao desafio anterior, está o desafio “desconhecimento de meto-


dologias de ensino de Língua Inglesa na educação infantil pelo professor”, elenca-
do por 57,1% dos participantes. Esse dado pode ter relação com a formação inicial
dos professores, que geralmente não contempla esta especificidade, demonstran-
do mais uma vez a importância de uma revisão e inserção deste tema/conteúdo
na graduação, bem como a necessidade de formação continuada para suprir esta
necessidade, a qual poderia ser oferecida pela rede municipal de ensino.

Voltando-se ao professor conhecer as metodologias de ensino de Língua


Inglesa na educação infantil, é importante conhecer o desenvolvimento da crian-
ça, os objetivos e direitos de aprendizagem conforme especificados pela BNCC
(2017). O professor de Língua Inglesa também precisa se apropriar desse docu-
mento norteador para o desenvolvimento do seu trabalho, por meio do qual as
interações e brincadeiras são essenciais. Nesse viés, é importante salientar que
não há uma receita, ou um método pronto por meio de livros que oferecem como
ensinar Língua Inglesa para crianças. O importante é compreender o desenvol-
vimento dessa criança que vai desde entender que a atenção é um processo de
aprendizagem, a compreender os eixos norteadores da educação infantil. Por
isso, a formação continuada é um pilar necessário para que a qualidade do ensino
da Língua Inglesa se efetive, bem como a preocupação de os cursos de formação
inicial atenderem às demandas possíveis do professor de Língua Inglesa.

Além da dificuldade quanto ao não conhecimento de metodologias, outro


desafio apontado foi que “estudantes possuem dificuldade em compreender as
orientações do professor em Língua Inglesa”, destacado por 57,1% dos professo-
res. Como a pré-escola é, para quase todos os estudantes, o primeiro espaço ins-
titucional de contato com a Língua Inglesa, entende-se como normal que o estu-
dante tenha dificuldade em compreender comandos em Língua Inglesa, de modo
que também se entende que o uso da língua portuguesa na sala de aula pode auxi-
liar o professor e os estudantes no desenvolvimento da aprendizagem.

70
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Para Nascimento e Branco (2013, p. 25), a razão de se recorrer à língua por-


tuguesa ou à língua materna do estudante (considerando-se que no município de
Xaxim/SC tem-se outras línguas maternas pelos estudantes) “vai além do (não)
domínio do código linguístico em si, dizendo respeito ao relacionamento que cada
sujeito constrói com sua LM, e consequentemente com tudo aquilo por que per-
passa a LM”, de maneira que “tentar ‘banir’ a LM das aulas de LE é também tentar
banir parte do sujeito” (2013, p. 25). Nessa compreensão, o professor não precisa
ter receio de utilizar a língua portuguesa na aula de Língua Inglesa, é preciso criar
passos que façam a criança se familiarizar com a Língua Inglesa e se sentir confor-
tável a entendê-la como mais uma aprendizagem.

Outros três desafios que estão inter-relacionados são: “poucos estudan-


tes participam de forma ativa às atividades propostas”, elencado por 42,9% dos
professores, “estudantes não são totalmente engajados em atividades comuni-
cativas, principalmente de speaking”, escolhido por 28,6% dos participantes, bem
como “alunos não compreendem o objetivo da aula quando apresentado a eles”,
evidenciado por 28,6% dos participantes.

Considerando que é o primeiro contato do estudante de maneira formal


com a Língua Inglesa, e é também os primeiros anos de inserção do estudante na
vida escolar, há ainda um amadurecimento quanto ao que significa o espaço es-
colar para o estudante e o que tais atividades significam também. Essa falta de
engajamento pode estar relacionada ao que os professores apontaram quanto
à indisciplina, bem como pode estar relacionada à falta de conhecimento que os
professores têm de metodologias de ensino de Língua Inglesa para estudantes
dessa faixa etária. Desse modo, as atividades podem não contemplar totalmente
a intencionalidade desejada pelo professor, e assim o estudante não consegue se
apropriar ou se sentir parte do processo da aprendizagem. Também houve 14,3%
dos participantes que apontaram “dificuldade pelo professor em aliar brincadei-
ras com intencionalidades de aprendizagem” como um desafio, o qual se coloca
vinculado também ao desafio “não ter conhecimento das metodologias de ensino
da Língua Inglesa nessa faixa etária”.

Além disso, 28,6% dos professores concordam que os “estudantes não


compreendem o que é uma língua estrangeira”. O conceito de língua é um concei-
to que é construído ao longo do percurso formativo do estudante e de suas intera-
ções (OLIVEIRA, 1993). Os primeiros passos estão sendo inseridos na pré-escola,
mas será compreendido e desenvolvido ao longo da vida escolar do estudante, de

71
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

modo que, mais uma vez, a Língua Inglesa é importante para o desenvolvimen-
to do percurso formativo do estudante e do desenvolvimento de conceitos mais
complexos e abstratos (OLIVEIRA, 1993).

Em relação a “dificuldades cognitivas de aprendizagem de parte dos estu-


dantes”, tal desafio foi pontuado por 28,6% dos participantes. Quando os estu-
dantes possuem tais dificuldades, o professor tem o desafio de propor atividades
que contemplem também esses estudantes de maneira que eles possam avançar
em seus conhecimentos. Contudo, a dificuldade de ter muitos estudantes em uma
mesma sala de aula é um fator que faz com que o professor não consiga, muitas
vezes, atender com mais cuidado esses estudantes, que possuem mais dificuldade
em aprender, e que frequentemente transmitem suas dificuldades por meio de
atos de indisciplina.

Considerações finais

A partir deste trabalho, entendemos que os dados aqui apresentados ser-


vem como diagnóstico para pensar ações que possam efetivamente dar conta da-
quilo que se propõe para a educação dos estudantes. Sem um diagnóstico não é
possível identificar as potencialidades e fragilidades da inserção da Língua Inglesa
na rede municipal de Xaxim/SC, embora, muitos outros aspectos não foram possí-
veis de serem contemplados na pesquisa e que precisam também ser observados
mais atentamente em pesquisas futuras.

Destacamos que em todas as categorias houve desafios que se sobressaí-


ram e se repetiram entre os professores, como também desafios que foram evi-
denciados por menos de 50% dos professores. Destacam-se aqui dois desafios
apontados por 100% dos professores participantes: baixa carga horária de Língua
Inglesa por turma e falta de material didático de Língua Inglesa, como livros e jo-
gos. Na rede municipal de Xaxim/SC, os estudantes da pré-escola têm uma aula
de 45 minutos semanais, sendo este tempo considerado baixo pelos professores
participantes, para dar conta dos objetivos de aprendizagem do componente, no
desenvolvimento do percurso formativo do estudante. Além disso, a falta de ma-
terial didático para a rede municipal também se torna um desafio, pois o profes-
sor precisa de muito mais tempo dispensado para o planejamento do material ao
estudante, sendo que o tempo de planejamento é dividido entre outros afazeres
da função do professor.

72
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Nesse sentido, como pensar uma possibilidade de superar tais desafios?


Partimos da compreensão de que a superação pode estar na formação continuada
do grupo de professores que atua na rede municipal de Xaxim/SC, por meio da sua
organização, do seu fortalecimento e empoderamento. O grupo de professores é
o capital intelectual daquela realidade de ensino. A partir da análise da realidade
escolar, em articulação com os conhecimentos, experiências e vivências de todos
os profissionais envolvidos seria possível a construção de um percurso coletivo de
pesquisa-ação. A pesquisa-ação, conforme Thiollent (2011, p. 20), “é concebida e
realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um pro-
blema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes estão envolvidos de
modo cooperativo ou participativo.”

Subsumindo essa reflexão, reforçamos a importância da produção do co-


nhecimento a partir da realidade daqueles que estão envolvidos no processo de
ensino, de modo que não tenhamos receitas prontas, mas desafios que nos mo-
vam, como professores, a superá-los.

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nal, para dispor sobre a formação dos profissionais da educação e dar outras

73
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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74
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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75
DIREITOS HUMANOS, LÍNGUA INGLESA
E #BLACKLIVESMATTER: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA1

Candida Joelma Leopoldino2


Jessica Paula Vescovi3

RESUMO: O ensino tem por prioridade promover reflexões que subsidiem, em es-
pecial, a formação crítica dos estudantes em seus mais diversos níveis. Em tempos
pandêmicos, nos quais o ensino tornou-se remoto e o contato humano mais dis-
tante, trazer à tona reflexões que possam contribuir significativamente para suas
vidas configura-se essencial, face às possibilidades de compreensão da realidade
que são propiciadas. Assim, caracterizado como um relato de experiência e emba-
sado em pressupostos freirianos, o presente estudo tem como objetivo apresen-
tar resultados de uma atividade integradora sobre direitos humanos, em especial,
o racismo, a qual foi proposta pelas docentes dos componentes de Língua Inglesa
e Noções de Direito a estudantes do segundo ano do curso técnico integrado em
Administração do Instituto Federal do Paraná, na região sul do Brasil. Em razão
da atividade proposta e executada, foi possível notar o quão relevante é trabalhar
com temas que sejam da experiência dos estudantes de modo que estes sejam
envolvidos em discussões que dialogam com a realidade.
PALAVRAS-CHAVE: atividade integradora; direitos humanos; língua inglesa.

1 Trabalho derivado de projeto integrado entre os componentes de Noções de Direito e Língua


Inglesa desenvolvido durante o período de ensino remoto.
2 Instituto Federal do Paraná (IFPR) – Campus avançado Coronel Vivida. candida.leopoldino@ifpr.
edu.br
3 Instituto Federal do Paraná (IFPR) – Campus avançado Coronel Vivida. jessica.vescovi@ifpr.edu.
br

76
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ABSTRACT: Teaching has as a priority promoting reflections that subsidize, in particu-


lar, the critical formation of students at their most diverse levels. In pandemic times,
when teaching has become remote and human contact more distant, bringing up reflec-
tions that can significantly contribute to students’ lives is essential in view of the possi-
bilities of understanding reality that are provided. Thus, characterized as an experience
report and based on Freirian assumptions, the present study aims to present results of
an integrative activity on human rights, in particular, racism, which was proposed by the
teachers of the curricular components denominated English Language and Notions of
Law to second year students of an integrated technical course in Administration at the
Instituto Federal do Paraná, in the southern region of Brazil. Based on activity that was
proposed and executed, it was possible to notice how relevant it is to work with themes
that are part of the students’ experience so that they are involved in discussions that
dialogue with reality.
KEYWORDS: Integrative activity; human rights; English language.

Introdução

Quando pensamos na reinvenção proposta (e imposta) por este momento


mundial atípico, nos damos conta que nossa formação acadêmica e experiência
docente não nos propiciaram reflexões deste cunho e tampouco do nível de exi-
gência reflexiva necessária. Coube a nós, então, decidirmos o que entendemos
por melhor para nossos estudantes, baseando-nos na ideia de que estamos lidan-
do com pessoas que precisam refletir suas realidades, uma vez que, para Paulo
Freire “[...]o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma impo-
sição – um conjunto de informes a ser depositado nos educandos, mas a revolução
organizada, sistematizada e acrescentada ao povo [...]” (FREIRE, 1970, p. 60).
Essa “revolução” evidencia a necessidade de o docente pensar na proposi-
ção de atividades em que os estudantes possam ser sujeitos ativos na produção
do conhecimento e não meros receptores dele. Com isso em vista, objetiva-se,
neste texto, a apresentação de um relato de experiência sobre uma atividade in-
tegradora ofertada remotamente por meio de plataforma da internet, durante a
pandemia da Covid-19, a 35 alunos do segundo ano do curso técnico integrado
em Administração do Instituto Federal do Paraná, no campus de Coronel Vivida,
e que, envolveu os componentes curriculares de Língua Inglesa II e de Noções de
Direito, tendo por temática principal o reconhecimento e defesa dos direitos hu-
manos, em especial o relacionado ao racismo. Para tanto, evidenciamos a propos-
ta integradora feita, assim como tecemos comentários relativos à prática e aos
primeiros resultados obtidos.

77
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A experiência em diálogo com a realidade

Com a suspensão das atividades letivas presenciais e com a autorização


da proposição de atividades pedagógicas de forma remota, foi preciso refletir
sobre todo o novo processo de ensino-aprendizagem, bem como sobre a forma
que nossos trabalhos seriam conduzidos. Ao lado disso, era necessário manter a
contribuição para a formação crítica e reflexiva de nossos estudantes, afinal, se
tomarmos como ponto de partida o evidenciado por Freire, temos que a educação
não pode ser bancária, ou seja, aquela que observa o aluno como um sujeito pas-
sivo, que apenas aguarda o que o professor tinha para “repassar” ou “reproduzir”,
ou, nas palavras de Freire, aquela que “[...] se torna um ato de depositar, em que os
educandos são os depositários e o educador o depositante” (FREIRE, 1970, p.58).
Na mesma esteira, temos que o estudioso era avesso à ideia de que o co-
nhecimento de mundo dos alunos fosse desconsiderado, pois “[...] falar da realida-
de como algo parado, estático, compartimentado e bem comportado, quando não
falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial dos
educandos [...]” (FREIRE, 1970, p. 33), estaria distante da realidade e do propósito
da educação, em especial da necessidade do aluno. Logo, tomamos como ponto de
partida o trabalho com a realidade dos estudantes, observando-os como sujeitos
centrais e essenciais no processo de ensino aprendizagem, no qual, essencialmen-
te, o conhecimento não seria transmitido, mas produzido coletivamente. Face a
isso, escolhemos por tema central de nossa atividade integradora “o reconheci-
mento e a defesa dos direitos humanos”, tomando por ponto de partida a ideia de
que racismo começa com a ofensa e deve terminar com a justiça.
Mister destacar, assim, que no que se refere à legislação brasileira, aplicá-
vel ao fato em comento, existem duas figuras jurídicas distintas e que por vezes
são confundidas, o racismo e a injúria racial. O primeiro é um crime inafiançável
e imprescritível, conforme determina o art. 5 da Constituição Federal e é previs-
to na Lei federal nº 7.716/1989. Ele atinge uma conduta discriminatória dirigida
a um grupo ou coletividade indeterminada de indivíduos, que é discriminada na
integralidade em razão de sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Mediante isso, foi evidenciado também aos estudantes que o crime de
injúria racial está disposto no artigo 140 do Código Penal brasileiro, com uma
pena máxima de 3 anos e multa tendo relação com atos ofensivos à honra de al-
guém, valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou
condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Propusemos, então, na
primeira semana de estudos, iniciada em 25 de maio do corrente ano de 2020,
que os alunos assistissem ao filme “A busca pela justiça” (GREEN, 2006), o qual

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

foi disponibilizado em língua inglesa com legendas em português e versa sobre


injustiças sofridas por nove negros que foram acusados de estuprarem uma mu-
lher branca.
Nesta mesma semana, disponibilizamos aos estudantes materiais, slides
e artigo científico (WAGNER; PENAFORT NETA, 2014), em língua portuguesa,
sobre conceitos relativos aos direitos humanos, assim como notícias e reporta-
gens em língua inglesa, as quais estão dispostas abaixo. As notícias evidenciam
a história de outros negros que injustamente já haviam sido acusados, tais como
situações de racismo no futebol e assassinato de negros por policiais brancos nos
anos 80:

Imagem 1. Notícia sobre racismo no futebol. Imagem 2. Notícia sobre racismo nos EUA Fonte:
Jornal ABC News. Fonte: BBC News.

Mediante a exposição desse material, foi proposto aos estudantes que ex-
pusessem suas opiniões sobre o filme e os materiais, destacando-as com senten-
ças em língua inglesa, ou seja, houve, nesse momento, um trabalho envolvendo
língua portuguesa e língua inglesa. Em suas participações, os estudantes ressalta-
ram que consideram o racismo algo cultural, que faz parte de nossas vidas até os
dias atuais, mesmo a sociedade tendo lutado contra isso, conforme constatamos:

O filme retrata um problema estrutural de nossa sociedade que


se perpetua por séculos: o racismo. Mesmo após séculos de luta
em busca de igualdade racial, é evidente que ainda não vivemos
em um contexto em que brancos e negros têm as mesmas opor-
tunidades e são tratados de forma igualitária. Um dos exemplos
é justamente o mostrado no filme: a disparidade entre negros e
brancos quanto ao acesso à justiça. Muitas vezes, a cor da pele é

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

um fator decisivo para declarar se o acusado é culpado ou não e


isso se reflete na composição da população carcerária de nosso
país: conforme dados do artigo, 60% dos presos em 2010 eram
negros ou pardos.
Although we feel sad about it, there is still time to change that sit-
uation. That’s why we should always fight against racism and point
out all the racist attitudes to end it. We mustn’t tolerate racism in our
society anymore. (ESTUDANTE 1).

Ao lado disso, ocorria, nos Estados Unidos, em 25 de maio, a brutal morte


por asfixia do negro George Floyd e o mundo inteiro se inflou na defesa de to-
dos aqueles que de forma bárbara, irracional (ou racional) tiveram qualquer um
de seus direitos minimizados, em especial os negros. Esse movimento, nomea-
do “#blacklivesmatter”, ocorreu de forma avassaladora e voluntária pelo mundo
todo, exatamente enquanto debatíamos a mesma temática.
Na semana seguinte, nos detemos a propor reflexões a partir de infográfi-
cos, notícias e charges em língua inglesa (vide imagens) que trouxessem à tona a
posição do negro na atualidade, enfatizando quão refém estão de um sistema que
tem enraizado em sua cultura o preconceito. Ressaltamos as manifestações ocor-
ridas em âmbito mundial, de modo a endossarmos a revolta existente relacionada
às atitudes racistas.

Imagem 3. Reportagem sobre manifestações. Imagem 4. Charge sobre manifestações.


Fonte: BBC News. Fonte: Facebook Black Lives Matter.

Para garantirmos voz aos nossos estudantes, abrimos espaço para deba-
te e perguntamos aos estudantes, por meio de fórum interativo, quais suas con-
cepções de direitos humanos e como estes estariam “feridos” por situações de

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

racismo. As falas dos estudantes remetem à discussão proposta, conforme pode-


mos observar na resposta abaixo:

Os direitos humanos são direitos básicos aos quais toda a popu-


lação mundial deveria ter acesso [...]Para mim, em casos de racis-
mo, os direitos humanos são violados quando os negros recebem
um tratamento diferenciado por causa de sua cor de pele, quan-
do são acusados injustamente por um crime que não cometeram,
quando não é dado a devida importância para sua cultura e quan-
do não há politicas reparadoras que lhes permitam finalmente
serem inclusos em uma sociedade que os escravizou por séculos
e ao após lhes libertarem não lhes foi oferecido à devida assis-
tência para reconstruir suas vidas de forma justa.
Our society hasn’t changed yet. The world has turned their attention
to an injustice involving George Floyd. Unfortunately, it is a common
situation in our country too and it has been happening for years. It is
our duty to work together to put it an end. (ESTUDANTE 2).

Ao propormos reflexões que versem sobre problemas aos quais estamos


expostos diuturnamente, dialogamos com o exposto por Paulo Freire, que escla-
rece a necessidade de os educandos problematizarem, refletirem a realidade,
observarem-na de forma crítica, afinal, quando os questionamos quanto às suas
percepções relativas aos fatos que estavam ocorrendo mundialmente, os desafia-
mos, uma vez que:

Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo


e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais desafia-
dos, quanto mais obrigados a responder ao desafio. Desafiados, com-
preendem o desafio na própria ação de captá-lo. Mas, precisamente
porque captam o desafio como um problema em suas conexões com
os outros, num plano de totalidade e não como algo petrificado, a
compreensão tende a tornar-se crescentemente crítica, por isto, cada
vez mais desalienada. (FREIRE, 1970, p. 73).

Após as reflexões relativas ao movimento mundial supracitado, trouxemos


à tona, no tópico seguinte, diferentes infográficos, em língua inglesa, que aludis-
sem sobre o tema. De modo a abordarmos as características do gênero discursivo
e, sobretudo, de ampliarmos as reflexões sobre o tema em evidência, disponibili-
zamos, na plataforma utilizada, materiais em formato audiovisual que analisavam
os infográficos e dialogavam com notícias e reportagens sobre o tema. Após as

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

análises dos infográficos disponibilizados, propusemos o terceiro fórum do ci-


clo, no qual solicitamos aos estudantes que refletissem sobre o racismo a âmbito
mundial em língua portuguesa e em língua inglesa, tomando por base os materiais
disponibilizados.

No mesmo fórum questionamos, também, sobre conceitos apresentados


nos infográficos, como o conceito de equidade e igualdade, de modo que pudemos
notar diferentes reflexões e associações feitas pelos estudantes, as quais, geral-
mente, recorriam às suas realidades, conforme a exposta da resposta dada pela
estudante 1:

[...] Acredito que há uma grande diferença entre igualdade e equidade,


pois mesmo que as pessoas tenham as mesmas oportunidades, nem
sempre elas tem as mesmas condições de aproveitá-las. (Embora sa-
bemos que quase nunca as pessoas tem oportunidades ofertadas de
forma igualitária, e por isso, também precisamos pensar seriamente
na ideia de meritocracia em nossa sociedade). Por exemplo, o Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM) aplicado no Brasil, é ofertado
igualmente a todas as pessoas que desejam realizá-lo para entrar em
uma universidade, entretanto, nem todas as pessoas têm acesso à
educação e informação, sendo isso, muito desigual em nosso país. Por
isso, hoje, existe o sistema de cotas, que buscam um meio de ‘igualar’
o acesso a universidades públicas.
[…] I think racism has been perpetuated in our society for too long,
and it started a long time ago, when slavery was abolished, wasn’t of-
fered any kind of help or opportunities for the black people. Because
of that, many of these people continued to work in terrible conditions,
the access to education continued very unequal, besides that many
spaces of society remain still denied to black community, for example,
we don’t have as many black leaders as we should have. One example
was in the United States, when was approved Jim Crow laws, which
legalized segregation of black people. Later, cities were designed to
have specific neighborhoods which strategically black people would
occupied, even today, the schools of these neighborhoods are not as
good as white people neighborhoods. All of these things, combined,
were some of the actions that stopped black people of achieving eq-
uity. (ESTUDANTE 1).

A fala da estudante 1, acima reproduzida, evidencia quão relevante é pro-


pormos discussões que possam dialogar com a realidade de nossos estudantes.
Por meio do questionamento feito no fórum, o qual abria margem para outras
reflexões, pudemos notar as referências realizadas pela estudante no relativo a

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

outros temas tão ricos para a atual conjuntura, como o ENEM e a situação do en-
sino/educação no Brasil, assim como a questão da abolição da escravatura e os
impactos trazidos por essa. Nesse sentido, o ato de garantir voz e dar ouvidos aos
estudantes promove, sem dúvidas, múltiplos diálogos com suas realidades, suas
vivências, suas experiências e seus conhecimentos, de modo que a educação pode
ser considerada libertária, se não libertadora, e crítica, visto que, com oportunida-
des como essa, inúmeros aspectos problemáticos da sociedade surgem e podem
ser discutidos/refletidos pelos envolvidos no processo.

Na esteira do exposto até então, cuja intenção primordial era problemati-


zar uma situação vinculada à realidade de nossos estudantes, colocando-os en-
quanto protagonistas no processo de ensino aprendizagem, de forma a garantir-
mos voz e darmos ouvidos a eles, além de suscitarmos a ideia de sujeitos agentes
na produção do conhecimento, foi proposto aos estudantes que elaborassem, em
grupos e remotamente utilizando a plataforma de sua preferência, infográficos
que fossem bilíngues e salientassem as condições dos negros no mundo. Cumpre
informar que a produção dos infográficos deu-se por meio do processo de escrita
e reescrita do texto em questão, sendo que, a partir dos comentários inseridos
pelas docentes, alterações pudessem ser feitas e o material aprimorado. Além dis-
so, solicitamos aos estudantes que evidenciassem todas as referências utilizadas
para a elaboração do material, que recorressem a fontes confiáveis de pesquisa
para a produção. Alguns resultados obtidos com a proposta constam disponibili-
zados abaixo:

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Imagem 5. Infográfico produzido por estudante 3. Imagem 6. Infográfico produzido por estudante 4.
Fonte: arquivo pessoal. Fonte: arquivo pessoal.

Por meio da elaboração dos infográficos pudemos constatar que diferen-


tes aspectos envolvendo a temática surgiram, o que comprovou a amplitude do
tema abordado, assim como a necessidade de se garantir o protagonismo do estu-
dante no processo de ensino aprendizagem.Uma vez que, por meio de trabalhos
como esses, surgem aspectos que mais os incomodam e, por vezes, podem estar
silenciados.

Assim, quando nos propomos a integrar dois componentes curriculares de


eixos diferentes, ou seja, nesse caso das disciplinas “Língua Inglesa II’ e “Noções

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de Direito”, mas com propósitos similares, visamos promover reflexões que pos-
sam subsidiar a formação de cidadãos críticos que sejam autônomos e que consi-
gam refletir suas realidades e condições.

Reflexões Finais

É a busca da felicidade que baliza outras searas da vivência do indivíduo ao


lado da estrita observância de fundamentos, como a dignidade da pessoa humana,
presente e buscada em todos os níveis e círculos sociais. Assim, foi possível de-
monstrar como a educação, além do seu papel basilar, pode servir como potente
instrumento para o reconhecimento consciente de práticas contrárias à dignida-
de da pessoa humana e na proteção dos direitos humanos dos mais vulneráveis.

Buscamos viabilizar ações que minimizem as iniquidades sociais nas mais


diversas áreas do saber, integrando-as, sobretudo àquelas advindas da exclusão
histórica de determinados grupos, em razão de motivos étnicos, socioeconômi-
cos, de gênero, orientação sexual, promovendo a postura crítica às mais diversas
práticas ilícitas, entendendo a realidade contemporânea (qualificação profissio-
nal) e estimulando os alunos a não cometerem tais infrações, promovendo uma
formação cidadã e profissional dos discentes.

A ideia de unirmos dois componentes curriculares, num primeiro momento


tão distantes, resultou-se apropriada, pois, além de uma reflexão pessoal de cada
docente, houve a comprovação do quanto as atividades integradoras e interdis-
ciplinares são necessárias para a formação técnica dos estudantes, uma vez que
a escola é, de fato, um organismo vivo que carece de propostas educacionais que
remetam à realidade. Ademais, fica evidente que urgem as discussões sobre o re-
conhecimento e respeito aos direitos humanos, à dignidade da pessoa humana e
sobretudo, neste caso, ao racismo velado, existente e estrutural.

Referências

A BUSCA PELA JUSTIÇA. HEAVENS FALL. (filme). Direção: Terry Green. 2006.
Strata Productions.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal: Centro Gráfico, 1988.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário


Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940.
BRASIL. Lei Federal 7.716, de 5 de Janeiro de 1989. Define os crimes resultantes
de preconceito de raça ou de cor. Brasília, DF, 5. Jan. 1989.
BRASIL. Lei Federal 12.288, de 20 de Julho de 2010. Institui o Estatuto da
Igualdade Racial; altera as Leis nºs 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13
de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de
2003.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1970.
WAGNER, D. F.; PENAFORT NETA, M. de L. S. A busca pela justiça: uma abor-
dagem de direito e cinema. 2014. Disponível em: http: //publicadireito.com.br/
publicacao/ufpb/livro.php?gt=262 . Acesso em: 08 nov. 2020.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ENSINO DE LÍNGUA INGLESA POR MEIO


DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA DO GÊNERO
PROPAGANDA INSTITUCIONAL:
RELATO DE EXPERIÊNCIA

Isabella Todeschini1
Katiana Pacianello2
Didiê Ana Ceni Denardi3

RESUMO: O ensino de língua inglesa através de gêneros textuais é aspecto subs-


tancial presente nos documentos norteadores da Educação Básica (BRASIL,
1998; PARANÁ, 2008; BRASIL, 2018). Nesse sentido, o procedimento de se-
quência didática possibilita ao aluno a construção da compreensão e domínio
linguístico de um gênero textual, abrangendo suas características textuais, estru-
turais, linguísticas e comunicativas (DOLZ; NOVERRÁZ; SCHNEUWLY, 2010).
Este artigo tem como objetivo apresentar uma sequência didática construída a
partir do gênero propaganda institucional, que foi implementada em um curso
de Formação de Docentes no segmento de Ensino Médio Profissional no ano de
2013 pelo Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). A es-
colha do gênero Propaganda Institucional deu-se pela sua ampla circulação em
sociedade, por promover a difusão de ideias e ações de responsabilidade social,

1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR Campus Pato Branco. isa.todeschini@live.


com
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR Campus Pato Branco. katianapacianello@
gmail.com
3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR Campus Pato Branco. didiedenardi@
gmail.com

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

cultural, educacional e ambiental. A metodologia da sequência didática em ques-


tão consistiu-se de módulos distintos para o trabalho com o gênero de texto pro-
paganda institucional. Em cada módulo, houve o estudo das capacidades de lin-
guagem inerentes ao gênero de texto estudado, articulada, seguido de produção
textual inicial e subsequente reescrita ao final de cada módulo, bem como apri-
moramento da produção escrita a partir das análises e feedbacks das professo-
ras até a realização da produção final. O resultado do trabalho aqui descrito foi
socializado no colégio no qual ocorreu a implementação da sequência didática.
Compreende-se que o trabalho com a sequência didática de gênero textual é uma
maneira significativa de ensino-aprendizagem de língua inglesa e, por conseguin-
te, de compreender e utilizar o referido gênero nas interações sociais.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino e aprendizagem de língua inglesa; Sequência didáti-


ca; Gênero de texto.

ABSTRACT: The English language teaching by means of genres is a substantial aspect


of the guiding documents of Basic Education (BRASIL, 1998; PARANÁ, 2008; BRASIL,
2018). Therefore, the didactic sequence procedure allows the student to build the lin-
guistic understanding and mastery of a text genre, covering its textual, structural, lin-
guistic and communicative characteristics (DOLZ; NOVERRÁZ; SCHNEUWLY, 2010).
This article aims to present a didactic sequence constructed around the institutio-
nal advertising genre, which was implemented to a Teacher Education course in the
Professional High School segment in 2013 by the Institutional Program of Introduction
to Teaching Scholarships (PIBID). The choice of institutional advertising genre was due
to its wide circulation in society, to promote the dissemination of ideas and actions of
social, cultural, educational and environmental responsibility. The didactic sequence
methodology in question consisted of distinct modules to work with the text genre insti-
tutional advertisement. In each module, there were the study of the language capacities
of the studied genre, in an articulated form, that followed by the initial production of the
text, and subsequent rewriting of the text at the end of each module, as well as the im-
provement of the texts based on the analyses and he teachers’ feedbacks until the last
production. The result of the work described here was shown at the school in which the
didactic sequence was applied. It is understood that the work with a didactic sequence
of textual genre is a way of making English language teaching and learning meaningful
and, therefore, of understanding and using the related genre in social interactions.

KEYWORDS: English language teaching and learning; Didactic sequence; Textual genre.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Introdução

A escola pública vem assumindo um papel social diferente nas últimas dé-
cadas, acolhendo estudantes de diversas camadas sociais distintas. Neste contex-
to, o debate sobre o papel do ensino de uma forma geral, tem sido discutido pela
sociedade escolar pontuando o que se deseja para o futuro da nação. A grande
diversidade cultural e social presente nas salas de aula traz uma nova situação
desafiadora para os docentes: como atingir todos os alunos de maneira adequada
e eficiente? Uma provável resposta estaria pautada em uma prática pedagógica
emancipadora, conforme Mèszáros (2007):

[...] a escola deve incentivar a prática pedagógica fundamentada


em diferentes metodologias, valorizando concepções de ensino,
de aprendizagem (internalização) e de avaliação que permitam
aos professores e estudantes conscientizarem-se da necessida-
de de “...uma transformação emancipadora. É desse modo que
uma contraconsciência, estrategicamente concebida como al-
ternativa necessária à internalização dominada colonialmente,
poderia realizar sua grandiosa missão educativa. (MÈSZÁROS,
2007, p. 212 apud PARANÁ, 2008, p.15).

Sendo a prática pedagógica diferenciada e emancipadora, em um projeto


educativo adequado, a escola deve atender todos os sujeitos, independente de
qual seja sua situação econômica, social, grupo étnico ou cultural. Bem como, é
preciso que o docente os inclua no processo ensino-aprendizagem de forma equâ-
nime, observando a bagagem cultural própria dos aprendizes, que deve ser explo-
rada pelo professor de forma a integrá-los ao ambiente educativo com sucesso.

Nessa perspectiva, observamos que o conhecimento, fundamentado em


princípios teóricos, deve proporcionar ao estudante uma formação necessária
para o enfrentamento da realidade social, econômica e política de seu tempo.
Entende-se, portanto, que a escola é um espaço de debates, de confrontos e diálo-
gos, entre os conhecimentos já sistematizados e os conhecimentos populares que
o aluno já possui ao entrar na escola. Conjugar esses conhecimentos pode ser a
chave para uma educação humanitária, que valorize e respeite a diversidade. Para
Vygotsky (1988), o aprendizado escolar das crianças deve levar tais experiências
em consideração, uma vez que o:

89
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

[...] ponto de partida dessa discussão é o fato de que o aprendi-


zado das crianças começa muito antes delas frequentarem a es-
cola. Qualquer situação de aprendizado com a qual a criança se
defronta na escola tem sempre uma história prévia. (VYGOTSKY,
1988, p.94).

Nesse sentido, o processo de aprendizagem se inicia muito antes de a


criança frequentar a escola, e tais conhecimentos prévios devem não apenas ser
respeitados, mas vistos como oportunidades de aprendizagem.

Partindo das premissas discutidas até aqui, o presente artigo se justifica


por relatar uma experiência de ensino mediada pelo procedimento didático se-
quência didática, cujo primeiro passo é investigar o conhecimento prévio do
aprendiz referente aos conceitos e conteúdos a serem ensinados.Isto é, investigar
as capacidades e limitações do aprendiz concernentes às capacidades de lingua-
gem em torno do gênero de texto escolhido como objeto de ensino para só então,
entendendo as limitações do aprendiz como oportunidades de aprendizagem,
apresentar/intermediar, de forma gradual e pontuada, a construção de novos
conhecimentos4.

Ademais, seguindo a linha de raciocínio apresentada até aqui, este arti-


go tem por objetivo relatar e descrever como uma sequência didática em tor-
no do gênero propaganda institucional foi aplicada em um curso de Formação
de Docentes no segmento de Ensino Médio Profissional, no ano de 2013, pelo
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). O gênero de
texto “propaganda institucional” trata das relações públicas das empresas e ins-
tituições, com relação à manutenção da credibilidade da marca através de uma
projeção positiva de suas ações. Para Kunsch (1986), as empresas devem apre-
sentar ações positivas fidedignas e não apenas um símbolo de boas condutas.
Sendo assim, muito se investe em publicidade como ciência, para que o leitor da
propaganda convença-se de que a causa abordada seja crível. Os veículos em cir-
culação desse tipo de propaganda vêm ganhando cada vez mais espaço nos dias
atuais, afinal, os assuntos abordados estão vinculados às causas sociais, humanas
e da natureza. Dessa forma, esse gênero foi escolhido para ser trabalhado em se-
quência didática, por sua importância social e crítica da realidade humana.

4 Breve revisão de literatura referente às capacidades de linguagem será apresentada na seção


“Sequência Didática para o ensino-aprendizagem de língua inglesa”.

90
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Com relação à sua organização, o artigo está constituído por outras três
seções: a próxima seção, que discute teoricamente o ensino de língua inglesa ten-
do como objeto e instrumento de ensino o gênero de texto; posteriormente, há a
seção que descreve o procedimento metodológico de sequência didática; poste-
riormente, é apresentada a seção que relata a implementação da sequência didá-
tica (SD) em torno do gênero propaganda institucional; e por fim, a seção que tece
algumas considerações.

Gênero de texto: objeto e instrumento de ensino de língua inglesa

Os gêneros de texto vêm sendo utilizados como com objeto e instrumento


de ensino-aprendizagem na escola, uma vez que se caracterizam como exemplos
legítimos de práticas de linguagem. Eles existem porque as interações sociais en-
tre os seres humanos existem, emergem de diferentes esferas de atividade huma-
na a partir das interações comunicacionais, mediadas pela linguagem. São, portan-
to, produtos culturais, sociais e históricos (BAKHTIN,1986; BRONCKART,1999;
MARCUSCHI, 2005). Cada texto, pertencente a um gênero de texto, possui as-
pectos diferenciados em sua natureza, seja em relação a sua organização linguís-
tica ou estrutural, seja em relação ao estilo próprio de cada gênero que se quer
trabalhar com os discentes (PASQUIER; DOLZ, 1996).

No contexto escolar, e de acordo com Schnewly (1994), o propósito educa-


cional mediador oferecido pelo ensino através de gêneros de texto deve ocorrer
em uma relação tripolar, sendo professor – aluno – objeto de estudo. O gênero
possui função dupla nesse sentido, configurando-se como um “mega-instrumento
para agir em situações de sala de aula” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 52). Em
outras palavras, o gênero de texto pode ser concebido como meio de articula-
ção para comunicação, ou como objeto de ensino-aprendizagem (SCHNEUWLY;
DOLZ, 1999) para práticas de leitura, oralidade e escrita.

Diante desse pressuposto, o professor de língua inglesa deve ter em mente


quais são seus objetivos didáticos e qual a razão social de sua prática pedagógica.
Almeja-se que as aulas em língua inglesa sejam espaço de reflexão crítica cons-
tante por parte do aluno, a fim de que ele possa ser construtor de ações no mun-
do. A aprendizagem da língua estrangeira, nessa perspectiva, deve compreender
o valor social do discurso, levando em conta seu papel na sociedade, como citam
as Diretrizes Curriculares Estaduais de Educação (PARANÁ, 2008, p.56) para o
ensino de língua estrangeira. De acordo com o documento:

91
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

[...] Espera-se que o aluno:


• use a língua em situações de comunicação oral e escrita;
• vivencie, na aula de Língua Estrangeira, formas de participação
que lhe possibilitem estabelecer relações entre ações individuais
e coletivas;
• compreenda que os significados são sociais e historicamente
construídos e, portanto, passíveis de transformação na prática
social;
• tenha maior consciência sobre o papel das línguas na sociedade;
• reconheça e compreenda a diversidade linguística e cultural,
bem como seus benefícios para o desenvolvimento cultural do
país.

Diante de tais metas, entende-se que a pluralidade do uso de gêneros de


texto no ensino de línguas é imprescindível à formação discursiva do indivíduo
atuante na sociedade. Quanto maior a quantidade de gêneros diferentes que o
indivíduo domina, maior será sua capacidade de mediação em interações sociais.
Portanto, é papel da educação prover ao aluno as competências necessárias para
realizar suas escolhas nos meios sociais. Cada gênero possui particularidades lin-
guísticas e funções sociais próprias, que exigirá do indivíduo estratégias de pen-
samento e ações diferenciadas para cada situação que encontre (CRISTÓVÃO,
2009).

Ainda de acordo com Cristóvão (2009), a utilização de gêneros de textos


sociais e autênticos capacita o leitor de língua estrangeira a agir em diferentes
contextos de sua vida. Textos didatizados, ainda que válidos em certos aspectos,
não possuem a função linguística real em circulação, mas sim, formas mais simpli-
ficadas de um texto real. Muitas vezes, podem não atingir o objetivo de utilização
real dessa capacidade comunicativa. Por textos sociais e autênticos, entende-
-se que são os textos retirados de seu contexto social imediato, ou seja, textos
que circulam na sociedade a partir de suas esferas primeiras de circulação: uma
crônica ou carta ao editor publicadas em um jornal, um meme publicado em um
sítio de internet, um anúncio publicitário, com fins lucrativos ou não, divulgado
oralmente em uma emissora de rádio ou apresentado como um vídeo em uma
emissora de televisão, ou ainda o conteúdo temático desse mesmo anúncio pu-
blicitário fisicamente materializado e impresso em um cartaz e exposto em luga-
res públicos, como é o caso dos cartazes que procuram alertar para os cuidados

92
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

na prevenção da COVID-19, que ora enfrentamos. Esses são alguns exemplos de


textos autênticos.

Sequência Didática para o ensino-aprendizagem de língua inglesa

Uma sequência didática (SD de agora em diante) é definida por Dolz e


Schneuwly (2004, p. 51) como “uma sequência de módulos de ensino, organi-
zados conjuntamente para melhorar uma determinada prática de linguagem”.
Caracteriza-se por uma estrutura modular em torno do ensino das capacidades
de linguagem, bem como de um processo avaliativo processual constituído por
uma primeira produção do texto, refacções e produção final.

Com relação às capacidades de linguagem, essas constituem-se pela ca-


pacidade de ação de linguagem, capacidade discursiva, capacidade linguísti-
co-discursiva (DOLZ et al.,1993; DOLZ; SCHNEUWLY, 2004), capacidade de
significação (CRISTOVÃO, 2009) e capacidade multisemiótica (DOLZ, 2015).
Especificamente, a capacidade de ação de linguagem, como o próprio nome diz,
foca no trabalho da ação de produção da linguagem, seja ela verbal ou não. Para
tal, contempla o trabalho de análise do conteúdo temático (o que se diz o texto
ou que se quer dizer no texto), do objetivo do texto (porque disse o que disse ou
porque dizer o que quer dizer) e dos contextos de produção e recepção do texto
(quem diz, de onde diz, quando diz, para quem diz) de forma articulada. A capa-
cidade de significação, por sua vez, foca no trabalho de análise do texto a partir
das informações obtidas na capacidade de ação de ação de linguagem de forma
mais aprofundada, isto é objetiva uma leitura crítica procurando identificar a re-
lação que há entre o conteúdo temático e objetivo do texto por trás do texto, in-
vestigando assim a articulação entre os contextos histórico, ideológico e cultural
e o conteúdo temático do texto estudado. Já a capacidade discursiva objetiva o
trabalho de análise da organização/estruturação do texto por meio de tipos de
sequência de texto seja narrativa, argumentativa, explicativa, dialogal, descritiva
e injuntiva. A capacidade linguístico-discursiva refere-se ao estudo dos elemen-
tos lexicais, sintáticos e semânticos da língua que permitem a tessitura do texto,
trabalha, portanto, com a coesão e a coerência do texto. Tem-se, também, a capa-
cidade multissemiótica5, cujo trabalho centra-se na análise de elementos visuais

5 Uma das formas de trabalhar com a capacidade multissemiótica é por meio do estudo da
Gramática Visual de Kress e Van Leeuwen (2006).

93
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

e auditivos de textos multissemióticos que pertencem a gêneros cujos suportes


são físicos ou digitais.

Voltando à estrutura modular de uma SD, essa tem início com a apresenta-
ção de um projeto de trabalho em torno de um gênero de texto aos alunos, com a
finalidade de atingir uma determinada situação de comunicação e provocar ações
emancipadoras transformadoras, conforme argumenta Mèszáros (2007, p. apud
PARANÁ, 2008). A partir dessa apresentação, solicita-se aos alunos uma produ-
ção oral ou escrita do gênero de texto escolhido como objeto de estudo. Na se-
quência, a partir de um ou vários textos pertencentes ao gênero ensinado, ou seja,
texto(s) de referência, o(s) texto(s) é/são estudados em módulos de ensino, que
didaticamente são organizados para trabalhar com as capacidades de linguagem
de forma articulada, atendendo, assim, às características de conteúdo temático e
contextos de produção e recepção, organização composicional e estilo do(s) tex-
to(s) de referência.

Nesse sentido, no trabalho com SD, parte do complexo para o simples,


conforme afirmam Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), ou seja, inicia-se por
uma produção inicial, passa-se pelos módulos de ensino e chega-se à produção
final. A produção inicial tem o objetivo de mostrar ao professor as capacidades
e limitações que os alunos apresentam na produção do texto pertencente ao gê-
nero estudado com relação às capacidades de linguagem e caracteriza-se como o
diagnóstico do conhecimento prévio dos estudantes, conforme preconizado por
Vygotsky (1998). Considerando o diagnóstico de aprendizagem dos estudantes,
como ponto de partida da avaliação processual, nos módulos são enfatizadas as
capacidades de linguagem necessárias para melhorar aquela prática de linguagem
ou gênero de texto estudado, solicitando reescritas do texto primeiro. O número
de reescritas dos textos deve ser determinado pelo tempo de duração e objetivos
do projeto de ensino-aprendizagem organizado pelo professor.

Relato de experiência de ensino-aprendizagem: o trabalho com a


sequência didática do gênero Propaganda Institucional

O relato a ser aqui apresentado refere-se à experiência docente das


duas primeiras autoras deste artigo na ministração do minicurso “Produzindo
Propagandas Institucionais em Inglês”, sob a orientação da professora e terceira
autora deste artigo, que na época era a coordenadora de área do PIBID-Inglês do

94
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Curso de Licenciatura em Letras Português-Inglês da Universidade Tecnológica


Federal do Paraná (UTFPR), Campus Pato Branco.

Passando ao relato da experiência propriamente, iniciamos por mencionar


que o minicurso ocorreu em uma turma de Formação de Docentes no segmento
de Ensino Médio Profissional, no ano de 20136. Passados já sete anos da data da
experiência docente, objeto deste relato, entendemos ser ainda importante fa-
zê-lo, uma vez que o documento norteador de ensino-aprendizagem de língua
inglesa corrente, a Base Nacional Comum Curricular para Línguas Estrangeiras
(BRASIL, 2018), privilegia a língua inglesa ao tornar seu ensino compulsório em
todo território nacional, bem como enfatiza o ensino-aprendizagem dessa língua
com foco nas práticas de linguagem, ou seja, nos gêneros de texto.

Os encontros presenciais com a coordenadora do PIBID-Docência em


Inglês, aconteciam quinzenalmente nas dependências da universidade e nesses,
além de relatar nossas atividades nas escolas vinculadas ao projeto, obter orien-
tações e esclarecimentos sobre as diferentes atividades na escola, estudávamos
textos teóricos da área de Linguística Aplicada relacionados a teorias e metodolo-
gias de ensino-aprendizagem de língua estrangeira, em nosso caso inglês, dentre
os quais textos sobre transposição didática, modelo didático de gênero de texto
e o procedimento de sequência didática. Após os estudos, foi nos solicitado que
escolhêssemos um gênero de texto para planejar uma sequência didática, bem
como na sequência elaborar seu material didático e implementá-la no contexto
de prática do PIBID. Escolhemos o gênero “propaganda institucional” por reco-
nhecermos a sua ampla circulação na sociedade, uma vez que promove a difusão
de ideias e ações de responsabilidade social, cultural, educacional e ambiental,
com isso preparamos o material didático para ser implementado em uma turma
de ensino médio. Ademais, consoante com as razões para a escolha do gênero,
nosso objetivo com a SD foi o de passar uma visão geral do minicurso “Produzindo
propagandas institucionais”, apresentamos no Quadro 1, a seguir, uma síntese dos
conteúdos, atividades e procedimentos metodológicos utilizados no decorrer das
oito horas-aula, com suas respectivas datas de implementação.

SD: Institutional Advertisement


Público Alvo 3º ano de Formação de professores- turma constituída pelo gênero
feminino

6 Por se tratar de um relato de experiência, nesta seção escreveremos em primeira pessoa do


plural.

95
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Objetivo Geral Promover nos estudantes a difusão de ideias e ações de


responsabilidade social, cultural, educacional e ambiental, bem como
levá-los a construir conhecimento sobre essas mesmas temáticas por
meio da produção de textos do gênero propaganda institucional.
Conteúdo/
Data Atividades e Procedimentos Metodológicos
h/a
• Busca de conhecimento prévio sobre o que as alunas entendem por
propaganda
• Apresentação de conceitos teóricos sobre a propaganda, com
historicidade e definições
• Discussão do conceito de persuasão e como ele é aplicado no
contexto da propaganda
Apresentação • Realização de exercícios comparativos diferenciando propagandas
da situação institucionais de propagandas comerciais
e primeira • Estabelecimento de uma meta: redigir uma propaganda
produção institucional em inglês para ser apresentada no colégio
11/09/13 • Pesquisa em gêneros autênticos levados pelas professoras a fim de
(2h/a) as alunas realizarem um reconhecimento do gênero
• Exemplos de propagandas expostos através de projeção de slides e
vídeos informativos
• 1ª Produção: Em duplas, escolha de um tema e elaboração da
primeira versão da propaganda
• Tarefa de casa para o próximo encontro: pesquisar e trazer
informações sobre o assunto escolhido pela dupla

96
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

• Análise composicional e crítica de propagandas institucionais a


partir de textos de propagandas autênticas
• Discussão sobre os objetivos que a propaganda institucional pode
ter, comparando-a a propagandas comerciais;
• Análise de elementos da propaganda: arte, ciência e técnica
• Esclarecimento sobre os papéis da imagem e da linguagem: qual a
relação entre elas em uma propaganda? Discussão dos conceitos de
slogan e logotipo
Análise Textual
• Determinação e esclarecimento sobre o contexto da propaganda:
da Propaganda
quem são: o autor e público alvo? Quais os objetivos da
Institucional
propaganda? E o tema?
18/09/13
• Como exemplo, assistir a um vídeo que mostra a propaganda
(2h/a)
da revista aliada a um projeto em aparelhos de celular: vídeo
“Repórteres sem fronteiras”
• Análise de propagandas em sala de aula, através de exercício de
análise com peso 10,0 para ser realizado em duplas
• Recebimento da primeira produção corrigida. As alunas observam
o que necessitam melhorar em suas produções a partir do que
aprenderam na aula e entregam uma segunda versão no fim dessa
aula
• Trabalho com verbos no imperativo encontrados em propagandas
em inglês
Linguístico
• Exposição gramatical e aplicação nas propagandas, em conjunto
Discursivo-
com as professoras
Conteúdo
• Realização de exercícios gramaticais contextualizados em uma
Gramatical
atividade também avaliativa após conteúdo e explicação dada pelas
25/09/13
professoras com peso 10,0.
(2h/a)
• Devolução da segunda versão e elaboração de uma terceira versão
com melhoramentos a partir do que aprenderam nesse dia.
Entrega da Discussão de dúvidas sobre a elaboração das propagandas e
Versão Final finalização das mesmas, possuindo também peso 10,0, juntamente
02/11/2013 com a socialização das produções em murais do Colégio.
(2h/a)
Quadro 1. Procedimentos metodológicos constituintes do Minicurso.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Passamos, a seguir, para a descrição de cada módulo/encontro da imple-


mentação da SD do gênero propaganda institucional.

Módulos que compõem a sequência didática

Primeiro Módulo - Apresentação da situação e primeira produção: No pri-


meiro encontro do minicurso, em 11 de setembro de 2013, apresentamos diver-
sos gêneros de texto em uma caixa de papel lindamente adornada para que as
16 alunas pudessem perceber a infinidade de textos que utilizamos diariamente e
suas finalidades. Após a contextualização do minicurso, as alunas mostraram bas-
tante interesse pelo tópico, e deram bastante atenção ao fato de que, uma vez que
trabalham com crianças da pré-escola, observam que elas são muito influencia-
das pelas propagandas de brinquedos e roupas. Sendo assim, percebeu-se campo
para o trabalho e considerável conhecimento prévio.

No primeiro contato com exemplos de propaganda institucional, iniciou-


-se a exposição teórica da propaganda, a historicidade e exemplos. Discutiu-se o
conceito de persuasão e a relação desse conceito com seus próprios interesses
de consumo. As alunas tiveram de perceber os tipos de propagandas, que podem
obter um cunho comercial ou institucional. Felizmente, as alunas já conheciam al-
guns exemplos de propagandas institucionais, bem como instituições que realiza-
vam campanhas de causas humanitárias e da natureza.

Após essa explanação, traçamos a meta de nosso minicurso, que seria a


produção final de uma propaganda institucional em língua inglesa. As alunas es-
colheram diversos temas e iniciaram um pequeno rascunho em folha de tamanho
A3. Para mais exemplificação, as alunas realizaram uma pesquisa em revistas de
língua inglesa por anúncios institucionais, e iniciaram seu trabalho. Após o térmi-
no do tempo de aula, as versões foram recolhidas para correção.

Segundo Módulo - Análise Textual da Propaganda Institucional: No módulo


seguinte, iniciamos a análise composicional e crítica das propagandas. Para isso,
discutimos sobre os objetivos das propagandas e a sua importância na economia
e como muitas vezes uma propaganda pode levar as pessoas ao consumo. A aná-
lise teórica e estrutural da propaganda escrita explorou elementos como a arte, a
ciência e a tecnologia incorporados ao tema. Ainda, procuramos destacar a impor-
tância da relação entre a linguagem escrita e a linguagem não verbal.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Também esclarecemos os conceitos e a importância do slogan e logotipo


em uma propaganda. Chamamos a atenção das alunas para o contexto em que a
propaganda de referência estava inserida. A partir desse tópico, estabelecemos
uma nova discussão sobre como o contexto pode determinar uma propaganda. As
alunas levantaram a ideia de que muitas das propagandas existentes foram vei-
culadas a partir de uma necessidade ou de um problema. Tal anseio responde a
uma instituição humanitária, uma marca, entre outros casos levantados. Foram
identificados elementos como o autor da propaganda, o público-alvo, os objetivos
da propaganda e seu tema.

Após essa explanação, as alunas realizaram sua primeira avaliação parcial


com peso 10,00, realizando um exercício de análise composicional e crítica sobre
propagandas. Entregamos às alunas sua primeira versão de trabalho de produ-
ção, na qual elas puderam observar os aspectos composicionais que poderiam ser
melhorados e no fim do tempo da aula, entregaram novamente suas produções.

Terceiro módulo - Linguístico Discursivo-Conteúdo Gramatical: Para uma


abordagem gramatical para o gênero, explanamos um conteúdo bastante recor-
rente em propagandas: o modo imperativo. Assim, percebemos a necessidade
de produção de material didático, voltado especialmente para o tópico utilizan-
do sempre de gêneros autênticos com exercícios de leitura, escrita e oralidade.
Houve algumas dificuldades na compreensão no momento do exercício, uma vez
que muitas das alunas estavam habituadas a terem todas as explicações traduzi-
das durante a sua trajetória estudantil.

É sempre um desafio trabalhar a gramática da língua estrangeira na escola


pública, pois ainda existe uma conceituação de que o ensino de gramática deve ser
cobrado de forma tradicional. No entanto, compreendemos que a língua não pode
se dar num vazio contextual, pois ele responde a uma situação de comunicação.
Ao fim dessa aula, quando as alunas entenderam o papel de alguns elementos de
frase, como os próprios verbos no infinitivo em inglês, a compreensão foi mais fá-
cil, e dado isso numa frase de efeito claro como o slogan, o entendimento foi ainda
maior. A dificuldade maior foi no momento de exercitar as frases negativas para
algumas alunas, que não estavam familiarizadas com o auxiliar “do”. Ao final des-
sa atividade, houve a devolução da segunda versão e elaboração de uma terceira
versão com melhoramentos a partir do que aprenderam naquele dia.

Quarto módulo - Entrega da Versão Final: No quarto módulo, o módulo fi-


nal, contamos com uso de uma checklist para conferência dos aspectos estruturais

99
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

e linguísticos pertinentes ao gênero produzido, fazendo assim, a finalização do


estudo do gênero propaganda institucional. Durante esse módulo, as discentes ti-
veram mais tempo para a elaboração de seu texto, contando a qualquer momento
com a nossa mediação. Naquele dia, também houve tempo para colher feedbacks
das alunas, que disseram ter gostado bastante do minicurso, e umas delas, disse
que gostaria de cursar Letras, ofertado pela UTFPR Campus Pato Branco. Com
esse resultado, ficamos muito contentes com a receptividade positiva das edu-
candas. Após o término das confecções, as alunas fixaram seus anúncios nas pare-
des do colégio para a socialização de seus trabalhos.

Considerações finais

O objetivo principal deste artigo foi o de apresentar um relato de experiên-


cia de ensino-aprendizagem em aulas de língua inglesa por meio de uma SD do
gênero propaganda institucional implementada no âmbito do PIBID, por meio de
um minicurso ofertado a alunas na classe do terceiro ano do curso de formação
de docentes de ensino médio, em uma escola de Pato Branco-PR no ano de 2013.

Para tal, discutiu-se na Introdução a importância do conhecimento prévio


do aluno, passando para a discussão do conceito de gênero de texto e de ensino-
-aprendizagem de língua inglesa por meio de gêneros de texto, que por sua vez
pode ser feita com o uso do procedimento metodológico de SD. Na sequência,
apresentou-se o relato propriamente dito da experiência de ensino-aprendiza-
gem mediada pela SD em torno do gênero propaganda institucional.

Ressalta-se aqui que durante a aplicação da sequência didática, utilizou-se


o gênero propaganda institucional que apresenta-se como propaganda de rela-
ções públicas. Nesse sentido, esse gênero de texto apresenta grande potencial
para contribuir para o desenvolvimento social e crítico dos aprendizes.

Por fim, a partir da experiência docente de duas professoras em formação


inicial vê-se a importância de enfatizar que nas aulas de língua inglesa em con-
texto brasileiro, é possível desenvolver um trabalho efetivo de construção de co-
nhecimento de leitura, oralidade e escrita por meio de SDs de gêneros de texto,
possibilitando o desenvolvimento linguístico, cultural, crítico e emancipatório
dos estudantes. Uma vez que, ao dominarem diferentes gêneros de texto po-
dem posicionarem-se diante de situações comunicativas/discursivas diversas e/

100
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ou conflituosas, bem como engajarem-se em prol de transformações sociais mais


humanizadas.

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101
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares da Educação


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102
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

INTERAÇÃO NAS AULAS DE LÍNGUA


INGLESA: A TRAVESSIA ENTRE-
LÍNGUAS1

Tany Aline Folle2


Saionara Greggio3

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo apresentar os resultados de um es-


tudo que investigou a interação entre sujeitos-alunos brasileiros (SA-Bs) e sujei-
tos-alunos imigrantes (SA-Is) nas aulas de língua inglesa do módulo II do Curso
Básico de Formação em Inglês (CBFI), oferecido gratuitamente pela Secretaria
Municipal de Educação à população de Chapecó-SC. Como lugar teórico, estamos
embasados na teoria sociocultural de Vygotsky, que trata o sujeito-aluno como
participante ativo e interativo de todo o processo, e na pesquisa qualitativa, que
é constituída por um aparato integral, subjetivo e reflexivo, que busca compreen-
der o processo mais do que o resultado. A constituição do conjunto de dados é
composta por um questionário no Google Forms, formado com quatro questões
(objetivas e descritivas) e respondido por 27 SA-Bs e SA-Is do CBFI. A partir desse
conjunto, selecionamos recortes discursivos (RDs) em que ressoam sentidos so-
bre o papel e o impacto da interação entre SA-Bs e SA-Is no CBFI. Os resultados
da análise mostram que a interação apresenta diferentes papéis em sala aula de
1 Este trabalho faz parte da minha monografia de Especialização em Ensino de Língua Inglesa
(FOLLE, 2020), realizada no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa
Catarina (IFSC), campus Chapecó, sob orientação da professora Dra. Saionara Greggio.
2 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC), campus Chapecó.
tanyalinefolle@hotmail.com
3 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC), campus Chapecó.
saionara.greggio@ifsc.edu.br

103
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

língua inglesa, dentre os quais destacam-se o intercâmbio de conhecimentos en-


tre os S-As e a gestão da autonomia na aprendizagem, superando o medo da ex-
posição e do erro. Como atividades potencializadoras da interação, os resultados
indicaram como principais as entrevistas (perguntas e respostas com roteiro) e os
diálogos/conversação (uso da língua em situações cotidianas).

PALAVRAS-CHAVE: Língua inglesa; Interação; Sujeitos-alunos.

ABSTRACT: This paper aims to present the results of a study that investigated the in-
teraction between Brazilian subject-students (BS-Ss) and immigrant subject-students
(IS-Ss) in the English language classes of module II of the Basic English Training Course
(BETC), offered by the Municipal Department of Education free of charge to the popu-
lation of Chapecó-SC. As a theoretical place, we are based on Vygotsky’s sociocultural
theory, which conceives the student subject as an active and interactive participant in
the whole process, and on qualitative research, which consists of an integral, subjective
and reflective apparatus, which pursues to understand the process more than the result.
The file set consists of a questionnaire on Google Forms, composed with four questions
(objective and descriptive) and answered by 27 BS-Ss and IS-Ss. From this set, we se-
lected discursive cutouts (DCs) in which resonate meanings about the role and impact
of the interaction between BS-Ss and IS-Ss in the BETC. The analysis results show that
the interaction presents different roles in the English language classroom, among which
stand out the exchange of knowledge between BS-Ss and IS-Ss and the management
of autonomy in learning, overcoming the fear of exposure and error. As activities that
enhance interaction, the results indicated that interviews (questions and answers with
a script) and dialogues/conversation (use of language in everyday situations) were the
main ones.

KEYWORDS: English; Interaction; Subject-students.

Introdução

Neste trabalho apresentaremos um recorte da pesquisa intitulada


“Travessia entre-línguas: a interação entre sujeitos-alunos brasileiros e sujei-
tos-alunos imigrantes nas aulas de língua inglesa no Curso Básico de Formação
em Chapecó – SC” (FOLLE, 2020), desenvolvida no curso de Especialização em
Ensino de Língua Inglesa, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de Santa Catarina (IFSC), Campus Chapecó. Focaremos especificamente nas
questões que objetivaram investigar a interação entre sujeitos-alunos brasileiros

104
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

e sujeitos-alunos imigrantes, e, as atividades potencializadoras da interação nas


aulas de língua inglesa4 do Curso Básico de Formação em Inglês (CBFI), no muni-
cípio de Chapecó-SC.

Procuramos dar voz aos principais sujeitos do processo de ensino e apren-


dizagem, os alunos. Ao fazermos isso, buscamos também acessar as memórias e
experiências de interação que impactaram a formação dos alunos, o que por sua
vez, nos possibilitou refletir sobre nossa própria prática pedagógica no ensino da
língua inglesa, aqui entendida como língua franca. De acordo com Rajagopalan
(2005, p. 150-151), “a língua inglesa que circula no mundo, que serve como meio
de comunicação entre diferentes povos do mundo de hoje, não pode ser confun-
dida com a língua que se fala nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Austrália
ou onde quer que seja”. Corroborando essa afirmação, a Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2017) aborda a língua inglesa como língua franca, ou seja,
uma língua que pertence ao mundo, desvinculando-se da ideia do ensino de uma
língua que pertence a um determinado país, mas sim, uma língua que pertence a
todas as pessoas, de todos os lugares, possibilitando muito mais do que apenas a
comunicação entre os povos.

Ao tratarmos da língua inglesa por este viés, observamos que, nas duas pri-
meiras décadas do século XXI, o Brasil tem se tornado o destino de uma quantida-
de cada vez maior de imigrantes, que buscam principalmente melhores condições
de vida. Compreendemos que há de se pensar que todos somos constituídos pela
nossa língua, cultura, ideologia, relações e anseios e que na sala de aula, a intera-
ção oral é uma travessia de vozes entre os interlocutores. Além disso, é importan-
te levar em consideração que os sujeitos-alunos se constituem no entre-línguas,
pois, estão (con)vivendo com outras línguas, culturas e atravessando fronteiras.

Nesse sentido, consideramos que esse ato histórico-político-econômico


esteja ocorrendo pelo fato de o Brasil ter facilitado o processo burocrático da imi-
gração. Esses imigrantes trazem consigo suas histórias, suas angústias, seus so-
nhos, sendo assim, a atual questão da imigração também é relevante para a nossa
pesquisa, visto que o foco do nosso trabalho é a interação entre SA-Bs e SA-Is.

Há diversas publicações sobre a interação nas aulas de língua inglesa, den-


tre as quais, pode-se destacar Leffa (1999; 2016), Coracini (2003; 2005), Paiva
(2005; 2007; 2013) e Figueiredo (2019), que trouxeram contribuições ímpares
4 Trataremos a língua inglesa no singular por uma questão de nomenclatura, porém entendemos
que “ela” é plural, pois é constituída pela diversidade. Abordaremos esta questão no decorrer do
trabalho.

105
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

para a área, uma vez que olharam para os sujeitos-alunos integralmente, observa-
ram os aspectos biológicos, sociais, culturais, históricos, cognitivos e ecológicos.
Logo, observamos que parte dos linguistas aplicados está preocupada em colocar
o aluno como eixo central nas aulas de língua inglesa e priorizar a interação.

Pressupostos Teóricos

A trajetória da língua inglesa como língua estrangeira no Brasil desde 1808


até os dias atuais passou de língua opcional para língua obrigatória, e em alguns
momentos essa inconstância permaneceu. Entendemos que a busca pela aprendi-
zagem de língua inglesa significativa e efetiva no Brasil movimenta inúmeros se-
tores que possuem interesses particulares, visto que, se tem muito a ganhar com
o conhecimento da língua inglesa. De acordo com Moita Lopes (1996), mudanças
significativas têm ocorrido na formação de professores no Brasil. Os professores
de línguas estão no processo de não mais atuar como transmissores de conheci-
mento, mas sim, agir como profissionais reflexivos, capazes de construir sua práti-
ca e possibilitar aos alunos o engajamento no processo de aprendizagem. E é esse
professor de língua inglesa que o documento da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) (BRASIL, 2017) almeja.

A BNCC (BRASIL, 2017), ressalta que a língua inglesa possibilita “novas


formas de engajamento e participação dos alunos em um mundo social cada vez
mais globalizado e plural, em que as fronteiras entre países e interesses pessoais,
locais, regionais, nacionais e transnacionais estão cada vez mais difusas e contra-
ditórias”. (BRASIL, 2017, p. 241). Pelo exposto entendemos que se faz necessário
um olhar para a estrutura escolar, a formação dos professores, as condições ge-
rais de aprendizagem, o público alvo para os resquícios da história do ensino de
língua inglesa no Brasil.

Como reflexão, trazemos que as abordagens para o ensino e aprendizagem


de língua inglesa se referem às teorias sobre a origem e o aprendizado da língua
(RICHARDS; RODGERS, 2001). Nesse sentido, entendemos que é necessário es-
treitar as relações entre a teoria, a sala de aula e o mundo, pois compreendemos
que, a visão histórica possibilita enxergar o que deu certo e o que não funcionou,
bem como dinamizar uma proposta de trabalho viável a partir de uma perspectiva
híbrida. Observamos que muito já foi realizado pelo ensino de língua inglesa no
Brasil, e que se faz necessário observar a língua inglesa hoje, entender seu per-
curso no processo de ensino e aprendizagem, buscar saber o que o sujeito-aluno

106
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

pensa, compreende e acredita. Consideramos fundamental compreender esse


processo, pois o sujeito-aluno se constitui pelas relações que estabelece com ou-
tros sujeitos na vida em sociedade.

Sendo assim, é válido lembrar que a língua inglesa do mundo produz efei-
to de totalidade em relação ao tempo e espaço, pois, permeia a relação do que-
rer aprender a língua inglesa com um objetivo e que a língua inglesa da escola é
muitas vezes banalizada (FOLLE, 2004). Nesse sentido, há dois fatores principais
que conferiram o título de língua mundial/global à língua inglesa, primeiramente
a extensão do poder colonial britânico, que teve seu auge no final do século XIX,
e a hegemonia dos Estados Unidos como poder econômico no século XX. A esti-
mativa é de que um quarto da população mundial (mais de 1,5 bilhão de pessoas)
demonstra algum conhecimento da língua e que aproximadamente 500 milhões
sejam altamente proficientes (GRIGOLETTO, 2015).

Já no que se refere à nomeação da língua inglesa, Erling (2005, p. 40, tradu-


ção nossa) nos diz que há uma “forte compulsão em renomear a língua5”. A autora
menciona que essa compulsão está relacionada com o mundo pós-colonial e com
a visão do inglês como língua global. Sobretudo, querer encontrar novas aborda-
gens, ideologias e metodologias que gerenciem a diversidade dos usuários da(s)
língua(s) inglesa(s), o que também alavanca o aparecimento de diferentes nomea-
ções e expressões no que tange o ensino de inglês como segunda língua. Salienta
ainda que: “Um dos principais motivos da mudança de discurso sobre o Inglês é a
demografia6” (ERLING, 2005, p. 42, tradução nossa). Assim, de tempos em tempos
é possível observar inúmeras propostas para conferir outro título à língua inglesa.

A BNCC (BRASIL, 2017, p. 241) “prioriza o foco da função social e política


do inglês e passa tratá-la em seu status de língua franca”. No presente trabalho,
trazemos o conceito de língua franca (LF), não como mais uma designação, mas
sim como um olhar ressignificado para a língua inglesa de mundo e na/da escola,
pois, assim como Orlandi (2008), entendemos que os sentidos e os efeitos de sen-
tidos para com a língua inglesa circulam no tempo e no espaço.

Essa nomeação precisa ser destacada e faz-se necessário conhecer o con-


ceito de língua franca, almejando elucidar possíveis divergências, pois em rela-
ção à LF, Cogo (2015, p. 1, tradução nossa) argumenta que “desde as primeiras
5 Citação original: “There is such a strong compulsion to rename the language” (ERLING, 2005, p.
40).
6 Citação original: “A main reason for the shift in discourse about English is demographics”
(ERLING, 2005, p. 42).

107
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

publicações, os desenvolvimentos foram rápidos e certamente não estão livres


de controvérsias e até de debates acalorados7”. Por este arcabouço, encontramos
na publicação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO, 1953, p. 46, tradução nossa) uma definição para LF como “[a]
língua que é usada habitualmente por pessoas cujas línguas maternas são diferen-
tes, de modo a facilitar a comunicação entre eles8”.

Percebemos que, se uma língua de contato for usada entre povos que não
compartilham uma primeira língua, possibilitando a comunicação, temos uma
língua franca. Já Seidlhofer9 (2011, p. 7) define o inglês como língua franca (ILF)
“como qualquer uso do inglês entre falantes de diferentes idiomas10”(ibid., tra-
dução nossa). A partir da autora, interpretamos “inglês como língua franca (ILF)”
como uma língua de natureza híbrida que desconsidera a origem nativa do falante.

Gimenez et al. (2015, p. 596) afirmam: “há que se pensar quais seriam as
implicações desse novo enquadramento da língua inglesa para os processos de
ensino-aprendizagem de inglês em diferentes contextos educacionais”. Isso pos-
to, entendemos que língua e cultura são indissociáveis. A indissociabilidade entre
língua e cultura pode ser observada a partir da relação entre o sujeito e o mundo,
na convivência entre os sujeitos. Sendo assim, reverberamos que o termo cultu-
ra é bastante discutido historicamente, justamente por ser um termo complexo.
Entendemos que o termo cultura apresenta inúmeros conceitos e dentre eles,
apresentamos os que são consonantes ao nosso trabalho.

Com Vygotsky (1991), temos que a cultura pode ser vista como um pro-
duto da vida e da atividade social do homem, bem como, para o autor, a cultura é
o eixo do desenvolvimento do ser humano. Pela afirmação, compreendemos que
cultura é algo que constitui o sujeito de maneira contínua, processual e é construí-
da na interação.

No tocante à multiplicidade, temos de acordo com Santos e Nunes (2003,


p. 3), que a expressão multiculturalismo originalmente significa “a coexistência de

7 Citação original: “Since the early publications, developments have been fast and certainly not
free of controversies and even heated debates.” (COGO, 2015, p. 1).
8 Citação original: “A language which is used habitually by people whose mother tongues are dif-
ferent in order to facilitate communication between them”. (UNESCO, 1953, p. 46).
9 Citação original: Pesquisadora que coordena o projeto de pesquisa nomeado Vienna-Oxford
International Corpus of English (VOICE), o qual é composto por gravações e transcrições de áudio
de interações orais em língua franca.
10 Citação original: ELF as any use of English among speakers of different first languages
(SEIDLHOFER, 2011, p. 7).

108
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de


sociedades ‘modernas’. Rapidamente esse termo se tornou um modo de descre-
ver as diferenças culturais em um contexto transnacional e global. Desta forma,
tratar de multiculturalidade nos remete a falar sobre sujeitos, crenças, ideologias,
culturas, bem como, pensar que nos constituímos pelo histórico-cultural, de modo
que a cultura e os sujeitos são constituídos pelo “inacabamento” (FREIRE, 1996),
por identidades culturais não fixas.

Posto isso, temos em Gimenez (2002) um norte para a relação entre cultu-
ra, língua, ensino de língua inglesa e multiculturalidade, pois, a autora afirma que
“podemos pensar que a aula de língua estrangeira possibilita uma compreensão
da cultura enquanto normas de interpretação de sentidos, que são, inevitavel-
mente, historicamente situadas” (GIMENEZ, 2002, p. 107).

Desta maneira, compreendemos que a interação significa a junção, o com-


partilhamento e assim, valemo-nos da definição de Vygotsky (1991), que justa-
mente por unir conceitos a partir da psicologia e da pedagogia focou seus estudos
visualizando a totalidade do desenvolvimento do sujeito, observando os aspectos
psicológicos e cognitivos, pois para o autor o sujeito transforma-se de biológico
em ser histórico a partir das suas vivências, visto que ele dá e recebe, transforma
e é transformado pelo ambiente onde vive.

Em se tratando especificamente da interação em sala de aula de língua


inglesa, Figueiredo (2019), em sua obra intitulada “Vygotsky: a interação no ensi-
no-aprendizagem de línguas”, é enfático em seu posicionamento e aponta que são
inúmeros os benefícios que os processos interativos e colaborativos propiciam
aos sujeitos-alunos, e salienta, que os professores devem deixar de se sentir os
responsáveis pela aprendizagem dos alunos e assumirem o papel de mediador.

Figueiredo (2019) afirma, ainda, que o sujeito-aluno deve ser o centro da


interação, o centro da aprendizagem, se sentir responsável pela sua aprendiza-
gem, de modo preciso declara que quanto mais a interação ocorre, mais a apren-
dizagem se torna significativa. Outro aspecto relacionado à interação, de acordo
com Vygotsky (1991), é a motivação. Para ele, a ação é a razão da motivação, pois
o sujeito sente a necessidade, sente o desejo, expressa interesses e desencadeia
a ação. Ainda para o autor, “essa razão simboliza a ideia de que toda a percepção
humana é feita de percepções generalizadas e não isoladas” (VYGOTSKY, 1991, p.
112). Assim, a analogia posta, temos que “o objeto é o numerador e o significado é
o denominador (objeto/significado) ” (ibid.). A partir de Vygotsky, atrevemo-nos a

109
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

dizer que a língua inglesa é o numerador, e a interação em língua inglesa é o deno-


minador, pois compreendemos que a ação de interagir em língua inglesa é motiva-
da pelo desejo de se comunicar em língua inglesa.

Coracini (2003; 2005) também aborda a preocupação com a questão da


interação no contexto escolar, e trata da interação em sala de aula, a partir da ne-
cessidade que o ser humano tem da resposta do outro. A partir da perspectiva
discursiva, a autora afirma que:

[...] só é possível falar de interação se entendermos que ela se


dá no espaço híbrido e confuso entre o previsível das estruturas
sociais em sua superfície e o imprevisível das subjetividades –
sempre em movimento e em mudança –, entre o homogêneo das
regularidades e o heterogêneo da dispersão que as regularida-
des camuflam, entre o desejo de controle de si e do outro e a sua
impossibilidade que irrompe pelos equívocos, sentidos que des-
lizam e vazam via porosidade da língua, entre o desejo de poder
– propulsor de resistências –, que abala e questiona a atribuição
de lugares fixos e preestabelecidos e os efeitos desse poder que
deixam marcas indeléveis nos corpos “(in)dóceis”. (CORACINI,
2005, p. 201).

Concordamos com Coracini (2005, p.207) que “só é possível falar de “ação
entre” sujeitos (inter-ação), entre o sujeito e um texto, entre o sujeito e uma língua
ou um saber, se, nessa ação mútua, considerarmos o inesperado, o surpreendente
- em si mesmo e no outro”. Dessa forma, ao interagir com o outro, o sujeito-aluno
está na posição de entre-línguas-culturas e terá de administrar sua nacionalidade,
língua, cultura, ideologias, seus estranhamentos, medos, pré-conceitos, vislum-
brando sua autonomia e aprendizagem. Para findar nossas reflexões teóricas so-
bre interação, trazemos o pensamento de Paiva (2013, p. 190), que sustenta que
“a interação está no cerne da aprendizagem de línguas, pois aprendemos línguas
para construir relações sociais”. A autora propõe tratar a interação pelo viés da
abordagem ecológica, a qual compreende a interação como “o efeito que um in-
divíduo de uma espécie pode gerar em um indivíduo de outra espécie” (PAIVA,
2013, p. 192).

A autora vai além e compara a sala de aula de língua inglesa com “um bio-
ma natural” (ibid., p. 202), citando que muitas das interações em sala de aula são
desconfortáveis para os sujeitos-alunos, bem como por se tratar de uma perspec-
tiva ecológica, visualiza a sala de aula como um ambiente predatório. Paiva (2013)

110
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

destaca também que todos os tipos de interação devem ser considerados em sala
de aula de línguas, focando em encontrar possíveis soluções para a rivalidade e
para a “ interação predatória, [...] ainda refletir sobre o par mais competente e
verificar se esse tipo de interação se constitui em mutualismo ou comensalismo.
Afinal, todos os alunos devem ter oportunidade de desenvolvimento” (PAIVA,
2013, p. 202).

O processo de interação nas aulas de língua inglesa abrange inúmeras


situações, visto que os sujeitos-alunos estão num lugar que não é seu, estão no
entremeio, na fronteira, fronteira essa demarcada por diferentes fatores e entre
eles a “língua”. Então, nesse momento de interação e aprendizagem em sala de
aula o que vem à tona são as habilidades de listening e speaking, e a questão de as-
segurar a inteligibilidade, pois para interagir e construir relações sociais é preciso
comunicar.

Constituição do arquivo: rumo às análises

Como é possível observar no Quadro 1, a seguir, do total de 27 alunos, 6


são imigrantes, sendo assim, por aproximação, temos que 22% dos alunos partici-
pantes da presente pesquisa são imigrantes.

Idade Nº de alunos Nacionalidade


Entre 15 e 25 7 07 brasileiros
Entre 26 e 35 9 01 venezuelana
01 argentina
02 haitianas
05 brasileiros
Entre 36 e 45 4 01 Colombiana
03 brasileiros
Entre 46 e 55 4 04 brasileiros
Entre 56 e 65 2 02 brasileiros
Entre 66 e 75 1 01 peruana
Quadro 1. Perfil dos SA-Bs e SA-Is.
Fonte: dados da pesquisa (2020).

111
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

De acordo com as respostas do questionário11 e ancorados em uma pers-


pectiva discursiva, selecionamos recortes nos quais se formulam sentidos sus-
tentados sobre as possibilidades de interação e as atividades potencializadoras
da interação em sala de aula de língua inglesa. Entendemos que se faz necessá-
rio mencionar que o “novo” gera algumas ansiedades. Ao abordarmos a questão
Interação entre SA-Bs e SA-Is, adentramos um território ainda pouco estudado.
Paiva (2005) aborda essa questão em seu artigo intitulado “A pesquisa sobre in-
teração e aprendizagem de línguas mediadas pelo computador”. A autora afirma
que é percebida “a ausência de teorias e metodologias próprias, pois ambas são
tomadas de empréstimo a trabalhos sobre interação face a face ou pesquisas em
contextos de ensino tradicional” (PAIVA, 2005, p. 11).

Aqui abrimos um espaço para falar sobre a questão imigrante, pois, ainda
hoje há equívocos. De acordo com Bolognini e Payer (2005, p. 42), “na história
brasileira, a representação dos imigrantes, ao lado dos indígenas, dos africanos e
do colonizador português, teve um lugar significativo como parte da constituição
do povo brasileiro”. Temos, ainda conforme essas autoras, que:

[...] o tema da imigração foi desde cedo abordado por trabalhos


de sociólogos e historiadores [...], mas a análise da questão a par-
tir da linguística, focalizando a diversidade das línguas introduzi-
das no Brasil pelos imigrantes, não foi considerada até recente-
mente [...] (BOLOGNINI; PAYER, 2005, p. 42).

Entendemos que esse novo público gerou nova demanda, o que tem oca-
sionado uma situação não vivenciada até então, visto que, na grande maioria das
turmas eram formadas por SA-Bs, ou seja, turmas homogêneas no quesito língua
materna. Com a globalização, inúmeros imigrantes de diferentes países se esta-
beleceram no Brasil, o que fez com que muitas instituições passassem a ofertar
“Português como Língua Estrangeira” (PLE). Até aí ainda se tinha a fronteira, a
marcação de que aquela aula era para o “estrangeiro12”.

O que ocorria até então, eram professores brasileiros ministrando aulas


de língua portuguesa para imigrantes. Porém, repentinamente, temos novas con-
dições de produção, posto que agora temos a presença de “novos sujeitos-imi-
grantes” nas aulas de língua inglesa num contexto escolar frequentado por SA-Bs.
Apresentamos o Quadro 2 contemplando as questões e as categorias de análise:
11 O questionário será apresentado nas análises.
12 Como gesto interpretativo, tomaremos aqui como ‘imigrante”.

112
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Categoria: Possibilidades de Interação


1 – Você conversava/conseguia interagir com 2– Você conversava/conseguia
os colegas brasileiros? Em que momentos? Em interagir com os colegas imigrantes?
que língua? Antes, durante, depois da aula? Em que língua? Em que momentos?
Antes, durante, depois da aula?
Categoria: Atividades Potencializadoras
3 – Durante as aulas foram feitas atividades 4 – Quais dessas atividades mais
de interação em língua inglesa com os colegas. contribuem para o seu aprendizado da
Cite quais mais lhe marcaram. língua inglesa?
Quadro 2. Categorias e Questões.
Fonte: dados da pesquisa (2020).

Trouxemos neste trabalho nosso gesto analítico das categorias: (1)


Possibilidades de Interação e (2) Atividades Potencializadoras. Compreendemos
que, aprender a língua inglesa está associado a experimentá-la e degustar as di-
ferentes possibilidades que ela oportuniza, de forma que, se for possível possuí-
-la, será possível experienciar mais. A LI aparece como a língua que possibilitará
a autonomia do sujeito-aluno. A aprendizagem vem carregada de expectativas
positivas, uma vez que, por meio desse conhecimento o sujeito-aluno deseja ter a
autonomia na comunicação.

De acordo com Freire, a autonomia do ser educando é “a da inconclusão


do ser que se sabe inconcluso” (FREIRE, 1996, p. 66), e defende que a autono-
mia deve ser respeitada por todos. Pelo embate histórico, cultural e educacional,
acreditamos que o tempo em sala de aula deva ser utilizado para instigar os S-As
em sua autonomia, para que assim se tornem capazes de transpor os limites de
tempo e espaço da sala de aula a fim de assim concretizem seu objetivo maior, que
é o efetivo conhecimento da língua inglesa. Pessoa no RD 1 a língua inglesa como
instrumento de uso:

RD1: S-A 4 - Interagia conversando geralmente em português


antes e depois da aula. Durante a aula, procurava usar o inglês.

Acreditamos que os S-As identificam a sala de aula de língua inglesa como


o ambiente que acolhe o desejo de interagir nessa língua. Dessa forma, concor-
damos com Figueiredo (2001, p. 19) que “a interação em sala de aula de línguas
é, pois, entendida como o conjunto de oportunidades criadas para que os alunos

113
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

se comuniquem uns com os outros ou com o professor na língua que estão apren-
dendo”. O RD 2, a seguir, aponta para a autogestão da língua inglesa, como pode-
mos observar a seguir:

RD2: S-A 2: Sim! Durante as aulas, em português e o que conse-


guia em inglês. [sic]

No processo de gerenciar o que pode falar em língua inglesa e o que falar


em língua portuguesa, o S-A 2 aciona a ação, que é motivada pela razão, pois sente
vontade de interagir em língua inglesa, mesmo não se sentindo tão confortável
quanto gostaria.

Seis S-As mencionam que interagiam em língua inglesa ao final da aula, ou


seja, eles não estão mais sendo “supervisionados” pela professora e precisam fa-
zer a autogestão da língua inglesa e de todo o seu entorno. Neste momento, os
S-As valem-se de sua autonomia e reduzem a dependência que têm do professor.

A possibilidade de interagir tanto na língua portuguesa, quanto em língua


inglesa resultou que outros seis S-As disseram interagir nas duas línguas durante
as aulas, retomando a posição “estar entre-línguas”.

Já no que se refere a conversar com os colegas imigrantes, dos 27 S-As, 22


afirmaram que o faziam. Observamos que seis dos S-As interagiam com os S-As
imigrantes em língua portuguesa antes das aulas e após a aula, apenas dois S-As
afirmaram interagir em língua inglesa. Assim, nosso gesto de interpretação é de
que, tanto os SA-Bs quanto os SA-Is utilizaram mais a língua inglesa durante a
aula, rememorando o lugar conferido para falar língua inglesa.

Arriscamo-nos a interpretar a interação em língua inglesa entre os SA-Bs e


SA-Is como um movimento pendular, posto que cada S-A carrega história, língua,
cultura, ideologias, e nesse vai e volta, o hibridismo de línguas. Tendo isso em men-
te, é possível observar que esta situação emerge no RD a seguir:

RD3: S-A 1: Interagia com palavras que sabia. Íamos nos adap-
tando durante as aulas.

O desejo está relacionado à conquista, assim, ao desejar se comunicar em


língua inglesa, o S-A 1 menciona que interagia utilizando as palavras que sabia,
neste caso, o conjunto lexical. No processo de gerenciar, S-A1 adapta-se para co-
municar-se. O adaptar-se nos remete à inteligibilidade da língua inglesa, o que de

114
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

acordo com Jenkins (2000, p.78, tradução nossa), é “a produção e o reconheci-


mento de propriedades formais de palavras e elocuções e, em particular, a habili-
dade de produzir e reconhecer a forma fonológica”13. Ademais, concordamos com
a autora em sua afirmação de que “[...] ainda estamos preocupados com a negocia-
ção, com um processo bidirecional que envolve o orador e o ouvinte em todas as
etapas da interação. A negociação da inteligibilidade14”. (ibid., p. 78-79).

Quando questionados sobreas atividades quemais favoreceram a intera-


ção em língua inglesa em sala de aula (pergunta 3), os S-As retomaram memórias,
para falar sobre as atividades que foram significativas, visto que a pergunta em
questão remetia ao passado, pois se tratava de atividades que já haviam sido rea-
lizadas. Os recursos mais mencionados como meio para a interação em língua in-
glesa citados pelos SA-Bs e SA-Is foram: diálogos/conversação e elaboração de
perguntas/questionamentos. Compreendemos pelos aspectos expostos que os
S-As expressam a necessidade de interação social, visto que, atividades como es-
tas estão associadas ao contato social na relação com o outro.

O fato de apenas quatro participantes mencionarem as competições, jogos,


como atividade que favoreça a interação chamou a nossa atenção, e nos remeteu
para a visão ecológica da interação proposta por Paiva (2013), pois, por mais que
a competição propicie a interação, também gera o desconforto, a rivalidade e a
tensão. É em momentos competitivos que ressoam a educação predatória. Assim,
compreendemos que, na visão dos S-As, o benefício da competição na interação é
menor do que o dano.

Assim, com uma porcentagem de 70,4% de preferência na opinião dos


S-As, a atividade que mais se destacou por favorecer a interação, com os colegas
em língua inglesa, foi entrevista (perguntas e respostas com roteiro), o que ressoa
a estabilidade, a sensação do conforto (roteiro) ao confronto (competição). Isso
ocorre pelo fato de a atividade seguir um roteiro, isso possibilita que o aluno, na
ilusão, saiba como proceder, evitando a ansiedade de ter de elaborar e responder
as questões sem um roteiro prévio.

13 Citação original: “[…] the production and recognition of the formal properties of words and utte-
rances and, in particular, the ability to produce and receive phonological form” (JENKINS, 2000,
p. 78).
14 Citação original “[…] we are still concerned with negotiation, with a two-way process involving
both speaker and listener at every stage of the interaction. The negotiation of intelligibility”(-
JENKINS, 2000, p. 78 -79).

115
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Se, ao utilizar esse roteiro, os S-AS conseguirem interagir entre si e um es-


teja aprendendo com o outro, temos aqui duas situações: primeira, os S-As en-
contram-se no nível interpsicológico15, que de acordo com Figueiredo (2019) pos-
sibilita que eles interajam e aprendam uns com os outros. Já a segunda situação
nos remete ao nível Intrapsicológico16, caso estes S-As internalizem os conheci-
mentos que estão compartilhando. Observamos que 25,9 % dos S-As votaram na
atividade de encenação/dramatização como atividade que favorece a interação.
Interpretamos que essas atividades rememoram um ensino de língua inglesa “fic-
tício”, fator esse que os S-As participantes da pesquisa não querem reviver. Assim,
os S-As produzem novas relações com a aprendizagem de língua inglesa e passam
a demonstrar nova organização e gerenciamento do próprio comportamento.

O questionário apresentava perguntas de múltipla escolha que contem-


plava um espaço para que os S-As pudessem descrever e comentar. Assim, em
relação às atividades que mais contribuem para o aprendizado da língua inglesa,
ressoou nas respostas que a atividade que mais propicia a interação são as entre-
vistas (perguntas e respostas com roteiro), e a que menos impacta na interação
é a dramatização/encenação. A partir das respostas dos S-As, ressoa no RD a se-
guir a descrição da interação em sala de aula no CBFI em relação às atividades
realizadas:

RD4: S-A 7: As atividades que conversávamos sobre aquilo que


gostávamos, nossos hábitos e profissões, por exemplo.

O RD4 evidencia que, para ele, a maior contribuição ao seu aprendizado


da língua vinha das atividades de produção oral, nas quais poderiam trazer suas
informações pessoais, evidenciando que é importante a atividade ser vinculada
à realidade cotidiana dos alunos, ou seja, as tarefas e o conteúdo dos exercícios
devem refletir o tipo de uso da linguagem que os alunos utilizam cotidianamen-
te na língua materna (PAIVA, 2013). É fato que a cada dia a língua inglesa está
mais próxima, mais acessível e que a ideia obsoleta de aprendizagem arraigada
apenas na gramática, frases prontas e vocabulário minimizará as possibilidades
de fazer com que o sujeito-aluno lide com a vida real. E justamente por tomar a
língua inglesa como língua permeável, Rajagopalan (2010, p. 23) trata a língua
inglesa atual como “um exemplo da mestiçagem linguística que marca os nossos

15 Significa “entre as pessoas”, isto é, uma pessoa interagindo com outra pessoa e passando para
essa outra pessoa o conhecimento.
16 Quando esse conhecimento é internalizado e a pessoa retém o conhecimento.

116
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

dias pós-modernos” e, dessa forma, ensiná-la “não pode mais ser visto como ape-
nas ensinar língua” da maneira tradicional que simplesmente observa o sistema
de regras memorizáveis. Não é de hoje que estudiosos afirmam que a escola pode
obter a eficácia do ambiente familiar bem como o das ruas se “imitar” da forma
mais próxima possível as atividades linguísticas da vida, pois não aprendemos por
exercícios isolados, mas sim por práticas significativas (POSSENTI, 1996).

Considerações finais

Este trabalho de pesquisa investigou a interação entre S-AB e SA-Is e as


atividades potencializadoras da interação, em sala de aula de língua inglesa nas
turmas do módulo II do Curso Básico de Formação em Inglês (CBFI) em Chapecó -
Santa Catarina. Os dados foram coletados por meio de questionário Google Forms,
que foi respondido por 27 S-AS. Os dados obtidos nas respostas de cada pergunta,
foram primeiramente categorizados para posterior análise, o que possibilitou a
seleção dos RDs.

Compreendemos que nosso gesto de interpretação está relacionado às


nossas ideologias e crenças. Posto isso, as análises ficam à mercê de como conce-
bemos e como nomeamos a língua inglesa, visto que, como afirma Erling (2005),
existe uma necessidade de nomeá-la. Porém, sabemos que não há abordagem/
método ou nomeação que seja imune. Nesse sentido, a partir de Seidlhofer (2011)
e Gimenez et al (2015) empregamos o conceito de língua franca, não como va-
riedade, mas como uma maneira variável de uso e pelo fato de que os S-As pos-
suem “diferentes backgrounds linguístico-culturais e compartilham o inglês como
língua comum de comunicação e como recurso linguístico dinâmico coconstruído”
(GIMENEZ et al, 2015, p. 597) e mais do que isso, almejam a interação em língua
inglesa.

Entendemos que as possibilidades de interação em língua inglesa são sen-


tidas e vivenciadas pelos alunos, pois ressoou nas análises que embora exista a
relação híbrida (SA-Bs e SA-Is), a diversidade geográfica, cultural, linguística, his-
tórica, social e econômica em sala de aula, esses fatores não geraram desconforto,
mas enriqueceram a interação entre os participantes, bem como o processo de
aprendizagem de língua inglesa. Em relação à interação uns com os outros, te-
mos que, para os S-As, o impacto da interação apresentou-se de maneira positi-
va. Assim, emergiu em nosso trabalho que para os 27 S-As do CBFI, participantes
dessa pesquisa, o que realmente significa é a interação/comunicação inteligível e

117
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

autônoma. Os mesmos S-As demonstraram preocupação em refletir sobre a in-


teração e o processo comunicativo à medida que responderam ao questionário.

Dado o exposto, compreendemos que para os participantes a interação no


processo de aprendizagem de língua inglesa mostra-se importante. Podemos afir-
mar que os SA-Bs ganham com a presença dos SA-Is e vice-versa, uma vez que
nessa interação entre línguas, ambos podem ensinar e aprender.

Na identificação das atividades que mais favoreceram a interação entre os


alunos na sala de aula, temos as entrevistas (perguntas e respostas com roteiro)
e os diálogos/conversação (uso da língua em situações cotidianas). No ponto de
vista dos participantes, essas atividades possibilitam a comunicação fluida e mini-
mizam o medo do erro, da vergonha e enfatizam a comunicação inteligível.

De acordo com os participantes, a dramatização e encenação são as ati-


vidades que menos estimulam a interação. Compreendemos que, por priorizar a
autonomia, ou mesmo, o protagonismo, os S-As almejam agir e não atuar. E, pen-
sando no contexto atual da sociedade, percebemos que a possibilidade de utilizar
uma língua de contato entre falantes que não comungam da mesma língua mater-
na é pensar na comunicação, na interação, e a língua inglesa ocupa esse espaço.

Entendemos que a questão da interação em língua inglesa em turmas mul-


ticulturais pode e precisa ser pesquisada. Tencionamos auxiliar o aumento de
pesquisas sobre o assunto, pois acreditamos que a tendência de turmas com di-
ferentes nacionalidades em contextos de ensino brasileiro continue. No entanto,
no tocante às políticas educacionais, ainda não há formação específica de profes-
sores para atender essa nova realidade. Nas palavras de Seidlhofer (2004, p. 228,
tradução nossa17), “[...] o ensino de inglês está atravessando uma fase pós-moder-
na nas quais as formas e asserções antigas estão sendo rejeitadas, embora nenhu-
ma outra nova ortodoxia esteja sendo oferecida no lugar.”.

Em virtude do que apresentamos, deixamos aqui nossa contribuição ao


evidenciarmos o impacto positivo, e o importante papel da interação entre SA-
Bs e SA-Is no processo de aprendizagem de língua inglesa no Curso Básico de
Formação em Inglês (CBFI). Como também, podemos indicar como sugestão para
pesquisas futuras, investigar o papel do componente cultural na aprendizagem de
língua inglesa frente ao mosaico sócio-histórico apresentado. Da mesma forma,

17 Seidlhofer (2004, p. 228) citação original: “[…] the teaching of English is going through a truly
postmodern phase in which old forms and assumptions are being rejected while no new ortho-
doxy can be offered in their place”.

118
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

a formação continuada e específica para os professores brasileiros de língua in-


glesa em turmas multiculturais, bem como, a observação participante do profes-
sor-pesquisador em sala de aula, por meio da qual será ainda mais viável de se
investigar como a interação entre os sujeitos-alunos ocorre efetivamente.

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APÊNDICES

Pergunta 1 – Você conversava/conseguia interagir com os colegas brasileiros? Em que


momentos? Em que língua? Antes, durante, depois da aula?
Interagia com os
Língua Momento
colegas brasileiros
Sim Não Português Inglês Antes Durante Depois
X
X X X X
X X X
X X X
X X X X X
X X X
X X X X X
X X
X X X
X X X X X
X X
X X X
X X X X X
X X X X
X X X
X X X
X
X X X
X X X
X X X X X X
X X X X X X

122
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

X X
X X
X X X X
X X X X X X
27 13 15 8 17 9
Quadro 3. Possibilidades de Interação com os SA-Bs.
Fonte: dados da pesquisa (2020).

Pergunta 2 – Você conversava/conseguia interagir com os colegas imigrantes? Em que


língua? Em que momentos? Antes, durante, depois da aula?
Interagia com
os colegas Língua Língua /Momento
imigrantes
Sim Não Port. Inglês Port. Inglês Port. Inglês Port. Inglês
Antes Antes Durante Durante Depois Depois

X X X X
X X
X X X X X
X X X X
X
X
X X X X X
X X X X
X X X X X
X
X
X X X X X
X X X
X X X
X
X
X X
X
X X X
X X X

123
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

X X X
X
X X
X X
X X X X X X
X X
X
X X X X
X X X X X
23 5 11 6 6 11 3 2
Quadro 4. Possibilidades de Interação com os SA-Is.
Fonte: dados da pesquisa (2020).

Pergunta 3 – Durante as aulas foram feitas atividades de interação em língua inglesa


com os colegas. Cite quais mais lhe marcaram.
Atividade Nº de S-As %
entrevista (perguntas e respostas com roteiro) 19 70,4
diálogo (com roteiro) 17 63
comentários entre os colegas sobre questões/ exercícios 13 48,4
descrição de atividades/situações 13 48,1
jogos – competições 12 44,4
apresentação oral para os colegas 11 40,7
diálogo (conversação espontânea - sem roteiro) 11 40
debate sobre assunto abordado em sala 10 37
dramatização – encenação 7 25,9
Quadro 5. Atividades Potencializadoras.
Fonte: dados da pesquisa (2020).

Pergunta 4– Quais dessas atividades mais contribuem para o seu aprendizado da língua
inglesa?
Atividade Nº de S-As %
entrevista (perguntas e respostas com roteiro) 16 59,3
diálogo (com roteiro) 15 55,6
descrição de atividades/situações 15 55,6
diálogo (conversação espontânea - sem roteiro) 14 51,9

124
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

comentários entre os colegas sobre questões/exercícios 14 51,9


jogos – competições 13 48,1
debate sobre assunto abordado em sala 12 44,4
apresentação oral para os colegas 12 44,4
dramatização – encenação 8 29,6
Quadro 6. Atividades Potencializadoras.
Fonte: dados de pesquisa (2020).

125
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

LETRAMENTOS MULTISSEMIÓTICOS
NA FORMAÇÃO DOCENTE:
DESENVOLVENDO ESTRATÉGIAS
PEDAGÓGICAS PARA O AUDIOVISUAL1

Ana Paula Domingos Baladeli2

RESUMO: Na formação de professores, a diversidade de textos e de suportes dis-


poníveis na contemporaneidade tem evidenciado a hibridização de linguagens e
desafiado a formação de leitores capazes de interpretar criticamente textos au-
diovisuais (SIGNORINI, 2012; COPE, KALANTZIS, 2015; BRASIL, 2017). Dentre
as contribuições da Teoria dos Multiletramentos, referencial que nos subsidia a
compreensão do potencial de narrativas audiovisuais na aprendizagem de lín-
guas, os letramentos multissemióticos podem contribuir na medida em que ex-
pandem as habilidades leitoras para textos audiovisuais. A prática da leitura se
torna, então, mais complexa, uma vez que demanda do leitor além do uso de es-
tratégias tradicionais de leitura, a aplicação de abordagens alternativas que ex-
plorem as multissemioses e o suporte dos textos multimodais. O objetivo desse
relato de experiência é apresentar os resultados de um projeto de extensão, reali-
zado na região Centro-Oeste do país, sobre o uso de videoclipe musical no ensino
de Língua Inglesa. Os resultados indicaram a emergência na definição de critérios,
objetivos e ajustes metodológicos a fim de criar estratégias pedagógicas para o
uso pedagógico do videoclipe musical como objeto de leitura na aula de Língua

1 Projeto de Extensão - Laboratório dos multiletramentos: explorando o videoclipe musical no en-


sino de línguas.
2 Universidade Federal de Jataí. annapdomingos@yahoo.com.br

126
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Inglesa. Indicaram ainda a necessidade do desenvolvimento e adequação de me-


todologias para o uso pedagógico do audiovisual como recurso na aprendizagem
de línguas, bem como para a formação crítica de leitores.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de línguas; Formação docente; Leitura multimodal.

ABSTRACT: In teacher education, the diversity of texts and supports available in the
contemporaneity has highlighted the hybridization of languages modes and it has
challenged the education of - readers who are enable to interpret critically audiovi-
sual texts (SIGNORINI, 2012; COPE, KALANTZIS, 2015; BRASIL, 2017). Among the
contributions of the Multiliteracies Theory, theoretical framework that support our un-
derstanding about audiovisual potential in language teaching, multisemiotic literacies
might contribute to learning languages, as they expand reading skills for audiovisual
texts. Thus, reading practice becomes more complex, since it demands from the rea-
der, in addition to use of traditional reading strategies, the application of alternative
approaches that explore multisemiosis and the support of multimodal texts. The purpo-
se of this paper is to present the results of a teaching education project, carried out in
Midwest region of Brazil, that focused on the pedagogical use of music videos in English
language teaching. Results indicate the emergence of defining the criteria, purposes
and, methodological adjustments in order to create pedagogical strategies for the use of
music video as reading object in the English language class. In addition, the results point
out to the need for development or adaptation of methodologies for the pedagogical use
of audiovisual as resources for language learning, additionally for the critical reading
education.

KEYWORDS: Language teaching; Teacher education; Multimodal reading.

Introdução

A Teoria dos Multiletramentos (COPE, KALANTZIS, 2015) representa uma


alternativa formativa para o ensino de línguas, visto que se coaduna à prática da
leitura crítica em diferentes mídias e suportes. No ensino de línguas, o uso de mú-
sicas e videoclipes musicais pode ampliar as oportunidades de aprendizagem do
idioma, favorecendo a leitura de imagens, o estudo de vocabulário, de pronúncia e
a ampliação de repertório linguístico e cultural.

O objetivo deste artigo é apresentar os resultados de um projeto de ex-


tensão, realizado com professores de Língua Inglesa no interior de Goiás, com
foco no uso pedagógico de videoclipes musicais. Para tanto, foram selecionados

127
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

videoclipes musicais em Língua Inglesa e elaboradas atividades para o ensino da


língua, com vistas a contemplar as habilidades de leitura de textos multimodais,
conforme apresentado na Base Nacional Comum Curricular - BNCC (BRASIL,
2017).

Os resultados indicaram a necessidade de o professor definir critérios


para a seleção de videoclipe musical, revisar os objetivos, a metodologia e as
estratégias de ensino para o uso crítico do audiovisual como recurso pedagógi-
co. Concluímos ainda que, mesmo diante de dificuldades técnicas e estruturais
da escola pública, o videoclipe musical pode ser usado como objeto de leitura
em uma sequência de aulas, com propósitos diferentes, pois favorece o trabalho
pedagógico interdisciplinar dos conteúdos. Além disso, amplia as oportunidades
de desenvolvimento dos eixos; oralidade, leitura, escrita, compreensão auditiva
e competência intercultural e contribui para a articulação entre os letramentos
escolares e os letramentos praticados pelos alunos em suas práticas sociais.

A formação de multileitores na aula de Língua Inglesa

No contexto do ensino de línguas estrangeiras, os alunos utilizam um con-


junto de estratégias conscientes ou não, que os auxiliam na compreensão, inter-
pretação e avaliação dos textos que leem. Na prática da escrita, mobilizam seu
conhecimento da estrutura das convenções da língua, do gênero textual, cotejado
ao repertório cultural que dispõem sobre o tema.

Dessa forma, podemos relacionar as práticas de leitura e de escrita como


práticas mediadas pelo professor com finalidades estabelecidas, mas também,
como práticas sociais que inserem os alunos em práticas de letramentos na língua
estrangeira que está estudando. A partir disso, o cenário da sala de aula de Língua
Inglesa, foco de nosso estudo, pode cumprir a função formativa preconizada na
Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2017), a de servir como meio
de participação social e exercício de cidadania do aluno.

Nesse propósito, vincular o ensino de Língua Inglesa “a” formação de


leitores críticos - que tenham condições de refletir sobre sua condição na so-
ciedade - está alinhado aos pressupostos defendidos pelo New London Group
(1996). As pesquisas fundamentadas na Teoria dos Multiletramentos (NEW
LONDON GROUP, 1996; BAGULEY, PULLEN, SHORT, 2010; SIGNORINI, 2012;
COPE, KALANTZIS, 2015) apresentam duas dimensões, a primeira (letramentos

128
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

múltiplos) relacionada à forma particular de como os diferentes grupos sociais se


apropriam e valorizam as práticas de escrita e de leitura; a segunda (multiletra-
mentos) diz respeito às multissemioses de textos multimodais. A segunda dimen-
são nos possibilita refletir sobre a função enunciativa de textos multimodais, e
seus impactos no ensino de língua estrangeira.

A globalização e a sofisticação dos suportes para textos, somadas à diver-


sidade cultural promovida pelas diásporas impactam na diversidade linguística e,
por conseguinte, os letramentos praticados.

O que significa dizer que os padrões grafocêntricos dos letra-


mentos de base puramente linguística dão lugar aos padrões
híbridos multi-hipermidiáticos. E a diversidade das atividades e
práticas letradas contemporâneas pode, assim, ser apreendida
numa perspectiva mais ampla que a do letramento grafocêntrico
convencional com seus padrões textuais e gráfico-visuais pró-
prios da mídia impressa. (SIGNORINI, 2012, p. 284).

A Teoria dos Multiletramentos representa uma alternativa para o ensino


de línguas, visto que considera o contexto mediado por suportes e mídias inte-
rativas às práticas de letramentos. Para Lemke (2006), Serafini (2011), Signorini
(2012), Baladeli (2016), Herrero (2019), a multimodalidade hibridiza vários sis-
temas ou recursos semióticos, língua, imagem, gesto, música, matemática, entre
outros. Como mídia, o vídeo ou filme incorpora imagens, áudio e outras modalida-
des para além do texto monomodal, construído apenas com um sistema semiótico
convencional como o texto impresso verbal.

Segundo Kalantzis e Cope (2008), os multiletramentos ascendem no ce-


nário científico como reflexo do hibridismo cultural e linguístico, endossado pelo
mercado globalizado e o crescente avanço das tecnologias da informação e co-
municação. No geral, a ideia basilar dos multiletramentos perpassa a expansão de
novos suportes e cenários para comunicação na contemporaneidade, viabilizando
o contato/confronto da cultura local/global. Cope e Kalantzis (2009) argumentam
que, o termo letramentos no plural se apresenta mais adequado para representar
a diversidade de práticas de letramentos que emergem no capitalismo, que exige
reformulação no papel da escola, no sentido de formar cidadãos cooperativos, po-
rém críticos.

Indubitavelmente, o gênero canção acompanha a trajetória dos métodos


e abordagens de ensino de línguas estrangeiras, não sendo, portanto, novidade.

129
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Para Tomlinson (2010), os materiais didáticos para o ensino de língua estrangeira


devem contemplar fundamentos, quais sejam; proporcionar uso autêntico da lín-
gua, despertar e sustentar a curiosidade do aluno, estimular o envolvimento inte-
lectual, estético e emocional do aluno. Ainda segundo o pesquisador, por material
autêntico entendem-se recursos textuais, imagéticos e/ou audiovisuais que não
foram produzidos com propósitos pedagógicos (TOMLINSON, 2016).

Nossa opção pelo gênero videoclipe musical considerou que embora mer-
cadológico, o gênero representa a cultura popular e sua função – a de divulgar/
publicizar o trabalho fonográfico/álbum do cantor/banda o caracteriza como um
gênero presente em diferentes suportes e mídia, sendo, portanto, de fácil aces-
so. Com a ampliação de espaços virtuais para publicação e compartilhamento de
vídeos, o acesso tem sido facilitado, sobretudo, para jovens que se engajam em
práticas de letramentos digitais motivadas por interesses de entretenimento.
Segundo McClain (2016), os vídeos representam a cultura popular e, como são
produzidos com recursos de produção cada vez mais sofisticados, merecem aten-
ção como objetos de leitura e não apenas como produtos para entretenimento.

Nesse sentido, o videoclipe musical, pode contribuir para o engajamento do


aluno durante as atividades, pode estimular a imaginação e criatividade e favore-
cer a leitura por diferentes perspectivas. Pode ainda, despertar variadas reações,
motivações e frustrações nos alunos, por essa razão, a mediação do professor é
essencial. Os códigos visuais e sonoros e demais efeitos, desencadeados na ex-
periência do interlocutor com o audiovisual, são relevantes para compreender as
formas particulares com que os alunos processam os conteúdos (BULL, ANSTEY,
2019).

As vantagens do gênero videoclipe musical vão além, na medida em que,


perpassa o acesso facilitado, sua curta duração favorece a exibição em várias ve-
zes com diferentes abordagens. Além disso, conforme Berk (2009), o uso do vídeo
em sala de aula é vantajoso, pois provoca sensações do espectador, torna a apren-
dizagem lúdica, aumenta a compreensão e a capacidade de memória, contribui
para a imaginação e estimula a memória visual dos alunos.

Os letramentos mediados por suportes tecnológicos são híbridos, voláteis


e congregam linguagens multimodais. Com a hibridização dos códigos visuais, so-
noros e demais efeitos desencadeados pela sofisticação e ampliação de mídias, a
experiência do espectador/interlocutor é complexificada diante da demanda cog-
nitiva para a leitura. Logo, desenvolver habilidades de multiletramentos pressupõe

130
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

familiaridade com textos em diferentes formatos (BERK, 2009, McCLAIN, 2016,


BULL, ANSTEY, 2019).

A diversidade de textos e de suportes têm evidenciado a hibridização


de linguagens nos modos discursivos contemporâneos e, também, desafiado a
formação de leitores críticos de textos verbo-visuais na aula de Língua Inglesa.
Segundo Lemke (2006), o audiovisual derivado da televisão não é menos produto
da cultura letrada do que textos impressos, ambos requerem postura crítica do
leitor. Outro aspecto que permeia o cenário de ensino de línguas, diz respeito aos
estilos de aprendizagem dos alunos.

Dessa forma, se considerarmos que o recurso audiovisual amplia as opor-


tunidades de aprendizagem, a diversidade de material e a variedade nas instru-
ções das atividades podem atender aos diferentes estilos de aprendizagem. Aulas
com base apenas em materiais impressos como livro didático ou apostila, podem
não contemplar os alunos com estratégias de aprendizagem que dependem de re-
cursos visuais e sonoros. Embora não se desconsiderem as condições objetivas
de ensino de Língua Inglesa na Educação Básica, acreditamos que os alunos já
pratiquem letramentos multissemióticos como forma de entretenimento. Sendo
assim, o uso de audiovisual em sala de aula integraria o conhecimento prévio dos
alunos (letramentos sociais) com os letramentos escolares.

Com base na literatura pesquisada e nos resultados do projeto, acredita-


mos que o uso pedagógico do videoclipe musical transcende o ensino de conteú-
dos da disciplina de Língua Inglesa, pois permite que o tema seja abordado por
diferentes perspectivas para além da dimensão linguística (BULL, ANSTEY, 2019).
As diferentes combinações de códigos dos sistemas semióticos impactam na for-
ma como os significados serão construídos, razão pela qual, realizamos um pro-
jeto de extensão sobre multiletramentos com foco no uso pedagógico do gênero
videoclipe musical.

Um projeto de extensão sobre os multiletramentos

Larsen-Freeman e Anderson (2011) abordam o papel das estratégias de


aprendizagem e o uso de materiais autênticos no ensino de língua. Para os pesqui-
sadores, conforme os objetivos da aula e a metodologia adotada pelo professor,
os alunos mobilizaram um conjunto de estratégias de aprendizagem, metacogniti-
vas, cognitivas e sociais/afetivas que dependerão dos recursos, dos propósitos da

131
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

aula e da instrução do professor. Nessa perspectiva, durante a realização de uma


tarefa que pode ser de pré-leitura de um recurso imagético, os alunos mobilizam
estratégias de forma consciente ou não que sustentem sua interpretação.

Considerando a atualidade do tema dos multiletramentos e sua inter-


face com a formação de professores, realizamos um do projeto de extensão
– Laboratório dos multiletramentos: explorando o videoclipe musical no ensino de
línguas, realizado durante o ano de 2019 no interior de Goiás. O objetivo do pro-
jeto foi promover a formação para os multiletramentos a partir da elaboração
de atividades para o ensino de Língua Inglesa com o uso de videoclipe musical.
Participaram do projeto 05 professores, sendo 04 (quatro) acadêmicos do curso
de Letras Inglês e 01 (uma) professora de Inglês da rede estadual.

A metodologia incluiu a realização de 12 (doze) encontros quinzenais de


3 (três) horas cada, momento em que se exibiu um videoclipe musical em Língua
Inglesa e se propôs um conjunto de atividades para a Educação Básica. Os video-
clipes e a sequência de atividades em Língua Portuguesa e Língua Inglesa, apre-
sentados nos primeiros encontros, foram selecionados/elaborados pela coorde-
nadora, nos encontros subsequentes os vídeos e as atividades foram propostos
pelos próprios participantes.

O projeto possibilitou o uso de estratégias distintas para a exibição dos vi-


deoclipes musicais, tais como: levantamento de hipóteses sobre os sentidos do
título da música; exibição do videoclipe sem o áudio; biografia dos cantores; le-
vantamento de conhecimento prévio sobre o tema do videoclipe; exibição de fo-
togramas selecionados do videoclipe; exibição integral do videoclipe; exibição do
videoclipe com pausas sugeridas pelos participantes a partir da letra da canção.

Os videoclipes musicais selecionados como objeto de leitura eram de ban-


das/cantores de diferentes países, o que favoreceu a identificação de diferenças
de sotaque, pesquisa de aspectos culturais e geopolíticos subjacentes aos video-
clipes. Nessa perspectiva, para subverter a prática tradicional de exibir o video-
clipe na aula de Língua Inglesa como complemento do estudo da letra da música,
algumas estratégias foram adotadas. Para tanto, alguns métodos foram aplicados
ao uso do videoclipe musical em sala; atividades de pré-leitura com base no título
do videoclipe/canção, o levantamento de hipóteses de leitura a partir da exibição
de fotogramas selecionados do videoclipe, exibidos em slides, a elaboração cola-
borativa de mapas mentais com base no vocabulário da canção, a identificação

132
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

do conhecimento prévio dos alunos sobre a banda/cantor e o levantamento das


expectativas em relação ao conteúdo.

O título da música foi o primeiro termo a ser explorado com os participan-


tes, assim, foi utilizado o mapa mental para o levantamento de hipótese sobre o
tema do vídeo. Com essa estratégia foi possível identificar o repertório de voca-
bulário em Língua Inglesa dos participantes.

Em cada encontro do projeto, uma sequência de atividades prevista para


ser aplicada durante 3 ou 4 aulas de 50 minutos foi realizada pelos participan-
tes. Alguns encontros começaram com uma conversa com os participantes sobre
termos que remetessem ao tema do videoclipe, outros, com a exibição nos slides
de fotogramas (imagens capturadas do videoclipe), a partir dos quais perguntas
foram realizadas. Conforme a exibição dos fotogramas ou mesmo do videoclipe
em pausas, foram confirmadas, refutadas ou ressignificadas as previsões de sig-
nificados socializadas no início da atividade. Nessa atividade, houve o desenvolvi-
mento da oralidade, visto que, a partir do mapa mental construído no quadro, os
participantes puderam negociar significados relacionando o vocabulário do mapa
mental que representava uma ideia prévia sobre o título, as cenas ilustradas nos
fotogramas e o conhecimento de mundo sobre o tema já indiciado na leitura de
imagem.

Conforme a realização da sequência de atividade avançava, o videoclipe


musical era exibido por meio de alguma abordagem (sem o áudio, com pausas se-
lecionadas pelo participante coordenador do encontro, com áudio e com pausas,
sem pausas e sem áudio, na íntegra com áudio). Ao longo das 3 horas de duração
do encontro, o videoclipe musical foi exibido várias vezes com diferentes aborda-
gens, considerando, sobretudo, a necessidade de chamar a atenção para o discur-
so audiovisual e sua contribuição para o ensino de Língua Inglesa.

As atividades elaboradas a partir das temáticas, e do vocabulário presente


nos videoclipes, representaram o elo da Teoria dos Multiletramentos e as condi-
ções objetivas do ensino de Língua Inglesa na Educação Básica. Para a elaboração
da sequência das atividades, foram adotados os seguintes itens: (i) ano/série; (ii)
eixos (oralidade, leitura, escrita, análise linguística e competência intercultural);
(ii) variedade das atividades (orais, escritas, individuais, duplas ou grupos), e (iii)
sequência e tempo de cada atividade considerando a exibição do videoclipe em
partes ou na íntegra. Com o propósito de contemplar aspectos culturais e para
promover a ampliação de repertório linguístico/cultural dos alunos, foi destacado

133
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que os videoclipes musicais poderiam ser de cantor/banda que cantasse em


Língua Inglesa, podendo ser originário de qualquer país. Nesse propósito, foram
exibidos videoclipes em Língua Inglesa de banda/cantor da Finlândia, Estados
Unidos, Inglaterra e Dinamarca.

Dos 05 participantes, 04 se propuseram a selecionar um videoclipe, elabo-


rar uma sequência de atividades e coordenar as atividades durante um encontro.
Ao longo dos encontros foi destacada a viabilidade do uso do videoclipe musical
como recurso de apoio para o ensino de conteúdos estabelecidos no currículo,
mas também ilustrou a relevância da prática de pesquisa, a delimitação de crité-
rios, o estabelecimento de objetivos e o conhecimento de abordagens para a me-
diação da aula.

No que diz respeito aos critérios para seleção dos videoclipes de música
em Língua Inglesa, algumas sugestões foram fornecidas aos participantes. O pri-
meiro foi o ritmo da música (não no sentido de estilo), mas de velocidade, já que
uma música cantada em Língua Inglesa em velocidade rápida poderia desmoti-
var os alunos a prestarem atenção, por acreditarem que não estão conseguindo
acompanhar. O segundo foi a estética (design) da narrativa audiovisual, que deve-
ria estar alinhada ao perfil e idade dos alunos, assim, vídeos em que fosse exibido
apenas o cantor/banda em situação de show, não despertaria o interesse pela in-
terpretação, em seu lugar, foi sugerido a preferência por videoclipe em que havia
uma narrativa audiovisual, com cenário, atores e enredo que pudesse favorecer a
leitura de imagens. O terceiro critério foi o teor dos videoclipes no que se refere à
preservação do bem-estar dos alunos, portanto, vídeos que apresentassem cenas
de violência, sexo e uso de drogas deveriam ser evitados. Esses foram os 3 (três)
principais critérios adotados para auxiliar os participantes do projeto a pesquisa-
rem e selecionarem o videoclipe musical.

Diante disso, espaços formativos que possibilitem a problematização so-


bre as estratégias mais adequadas para a formação de leitores para textos multi-
modais ou verbo-visuais, podem contribuir para a ampliação das concepções de
letramentos de professores. Além disso, considerando as práticas de letramento
dos participantes, suas experiências prévias como estudantes e professores de
Língua Inglesa, a identificação de suas práticas de leitura de recursos audiovisuais,
representou um ponto de partida para as atividades propostas ao longo do proje-
to. Em outras palavras, os participantes já apresentavam suas percepções sobre
o uso de audiovisual no ensino de Língua Inglesa, tendo o projeto de extensão, o

134
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

papel de proporcionar a reflexão sobre as estratégias, os limites e as possibilida-


des do uso do gênero videoclipe musical na formação crítica de leitores.

Em suas experiências prévias como estudantes ou professores de Língua


Inglesa, os participantes vivenciaram o gênero canção e vídeos como parte do es-
tudo de um conteúdo. No geral, a letra da canção quando usada em sala de aula
cumpria a função de reforçar algum conteúdo gramatical por meio da atividade de
fill in the blanks, que consistia em ouvir a música e identificar o termo faltante no
verso (verbo, advérbio, adjetivo). Já o vídeo, na maioria, era exibido um fragmento
de filme ou episódio de série utilizado como atividade de listening e speaking com
foco em motivar the conversation entre os alunos. Ou seja, embora o audiovisual
tenha feito parte das práticas de letramentos escolares dos participantes, seu uso
se configurou como acessório ou complementar, não sendo o recurso e seu poten-
cial plenamente explorado.

Ao final de cada encontro houve a socialização, momento em que os parti-


cipantes compartilharam suas impressões como coordenadores da aula (autores
da sequência de atividades) ou como alunos (participantes que realizaram as ati-
vidades). Duas preocupações ou desafios foram socializados pelos participantes,
o primeiro referente ao tempo necessário para selecionar o videoclipe e elaborar
as atividades, o segundo diz respeito à infraestrutura como (iluminação e acústica
do local) que podem interferir ou até inviabilizar o bom andamento das atividades
na escola.

Considerações finais

A formação de professores e de alunos para os multiletramentos permite


que diferentes dimensões da multimodalidade entrem em contato com conteú-
dos estudados em outros suportes como apostila e livro didático. Como carac-
terística do cenário sociocultural mediado por tecnologias e suportes interativos
para textos, desenvolver estratégias para a leitura de textos verbo-visuais contri-
bui para a formação de leitores autônomos e críticos. A leitura de imagens favo-
rece o cotejamento de elementos presentes no audiovisual e discutir o tema da
canção, dessa forma, permite ao aluno a oportunidade de construir significados à
medida que desenvolve os eixos da oralidade, leitura e escrita.

Os resultados indicaram que o uso pedagógico do videoclipe musical pode


transcender os conteúdos da disciplina de Língua Inglesa, visto que se relaciona

135
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

a outros conteúdos escolares, favorecendo a abordagem interdisciplinar. Ao pro-


por a leitura de imagens e a discussão a partir da multimodalidade de um video-
clipe musical, o aluno tem a oportunidade de realizar leituras por diferentes pers-
pectivas, estudar vocabulário e pronúncia, além de identificar a interdependência
do discurso verbo-visual. Indicaram ainda que, a inserção de textos multimodais
como objetos de leitura requer planejamento e adequação da metodologia, a fim
de que os conteúdos ensináveis da língua sejam beneficiados com o recurso da
multimodalidade.

A sala de aula de Língua Inglesa pode se tornar um espaço para a pesquisa,


no qual alunos e professores exploram a língua por meio de recursos variados, no
caso, desse projeto, do videoclipe musical. Além disso, incluir o audiovisual como
recurso didático pode engajar os alunos nas atividades e nos encaminhamentos
da aula, pois estarão vivenciando uma experiência com um produto cultural de
entretenimento de forma mediada e intencional. Para tanto, é imprescindível
identificar as práticas de letramentos dos alunos e de oportunizar que os alunos
sugiram videoclipes musicais, a partir dos quais a sala pode ser mobilizada para a
realização de um projeto temático.

Acreditamos que o trabalho pedagógico com audiovisual deve fomentar


as reflexões sobre os limites do recurso para as aprendizagens previstas; a pos-
sibilidade de trabalho interdisciplinar; e a necessidade de flexibilidade e ajustes
na proposta pedagógica para melhor atender ao perfil da turma/série. Por fim,
acreditamos que formar para os multiletramentos contribui para a articulação
dos letramentos escolares e os letramentos praticados pelos alunos, estes que,
possivelmente envolvem interação mediada por tecnologia, produção e compar-
tilhamento de textos verbo-visuais, tornando-se leitores críticos e autônomos.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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138
POLÍTICAS LINGUÍSTICAS E ENSINO DE
LÍNGUAS ADICIONAIS PARA CRIANÇAS
NO BRASIL: REFLEXÕES SOBRE A
LÍNGUA INGLESA

Karin de Oliveira Lemos1


Taisa Pinetti Passoni2

RESUMO: A contemporaneidade é marcada pela diversidade linguística, seja lo-


cal ou globalmente. O Inventário Nacional da Diversidade Linguística (BRASIL,
2010) registra cerca de 210 línguas faladas no país - entre idiomas indígenas, de
imigrantes, línguas crioulas, e duas línguas de sinais – a brasileira e Sinais Urubu-
Ka’apor, utilizada por indígenas. Já na dimensão global, vemos a crescente difusão
da língua inglesa (GRADDOL, 2006; JOHNSTON, 2009; BORDINI; GIMENEZ,
2014), a qual tem impactado grandemente os currículos da Educação Básica tam-
bém no Brasil desde a Educação Infantil e os anos iniciais do Ensino Fundamental,
fenômeno especialmente observado na rede privada (MEGALE; LIBERALI, 2017).
Nesse sentido, considerando que os idiomas podem funcionar como ferramentas
de inclusão ou de exclusão social (ROCHA, 2006, 2010; ASSIS-PETERSON; COX,
2007), evidencia-se a necessidade de se investigar os mecanismos e processos
que têm fortalecido o ensino de línguas adicionais para crianças, principalmente o
inglês, no Brasil. O presente trabalho trata-se, portanto, de uma revisão bibliográ-
fica que aborda discussões sobre: criança e infância; língua, linguagem e educação
linguística; Políticas Linguísticas e currículo, a partir dos subsídios da Abordagem
1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná. oliveiralemoskarin@gmail.com
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná. taisapassoni@utfpr.edu.br

139
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

do Ciclo de Políticas e da Pedagogia Histórico-crítica, com foco em documentos


e dados relacionados ao ensino de inglês para crianças no contexto brasileiro.
Buscou-se identificar avanços e limitações das Políticas Linguísticas que norteiam
a dinâmica neste cenário. Assim, constatou-se que a ausência de diretrizes espe-
cíficas para o ensino de línguas adicionais para crianças nas etapas da Educação
Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, em um país linguisticamente diver-
so como o Brasil, somadas à adoção única e exclusiva da língua inglesa nas etapas
subsequentes, resultam em lacunas que acabam sendo preenchidas por práticas
descontinuadas e pelo acirramento das diferenças entre os contextos educacio-
nais públicos e privados.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas Linguísticas;Línguas Adicionais para Crianças,


Currículo Escolar.

ABSTRACT: Contemporary times are marked by linguistic diversity, both locally


and globally. The National Inventory of Linguistic Diversity (BRAZIL, 2010) re-
gisters about 210 languages spoken in the country - among indigenous langua-
ges, immigrants, Creole languages, and two sign languages - the Brazilian one
and Urubu-Ka’apor Signs, used by indigenous people. In the global dimension, we
see the growing spread of the English language (GRADDOL, 2006; JOHNSTON,
2009; BORDINI; GIMENEZ, 2014), which has greatly impacted the curricula of
Basic Education also in Brazil, since Early Childhood Education and the early gra-
des of elementary school, a phenomenon especially observed in private schools
(MEGALE; LIBERALI, 2017). Therefore, considering that languages can function
as tools of social inclusion or exclusion (ROCHA, 2006, 2010; ASSIS-PETERSON;
COX, 2007), the need to investigate the mechanisms and processes that have
strengthened the teaching of additional languages for children, especially English,
in Brazil is evident. This work is a bibliographic review that addresses discussions
on: children and childhood; language, language and language education; Language
Policies and curriculum, based on the subsidies of the Policy Cycle Approach and
Historical-critical Pedagogy, focusing on documents and data related to the tea-
ching of English to children in the Brazilian context. The aim was to identify ad-
vances and limitations of Linguistic Policies that guide the dynamics in this scena-
rio. Thus, it was found that the absence of specific guidelines for the teaching of
additional languages to children in the early stages of Early Childhood Education
and in the early years of Elementary School, in a linguistically diverse country
like Brazil, added to the unique and exclusive adoption of the English language
in the subsequent stages, result in gaps that end up being filled by discontinued

140
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

practices and by the increasing differences between public and private educatio-
nal contexts.

KEY WORDS: Language Policies; Additional Languages for Children, School


Curriculum.

Introdução

O professor de línguas – diferentemente dos professores dos anos iniciais


ou dos professores das demais disciplinas escolares – tem, de certa forma, a opor-
tunidade de transitar pelas diversas etapas da Educação Básica brasileira desde a
Educação Infantil até o Ensino Médio em escolas, especialmente da rede privada,
que já vêm ofertando o ensino de línguas adicionais – geralmente inglês – há al-
gum tempo em todas as etapas citadas.

Tais vivências, se somadas a experiências em escolas da rede pública


de municípios que também já aderiram à oferta de língua inglesa para crianças
(MELLO, 2013; VICENTIN, 2013; TANACA, 2017), ou ainda, à consciência de que
essa demanda não vem sendo atendida de forma equitativa, suscitam reflexões
em professores críticos. De modo que, questões relacionadas aos mecanismos
e processos que têm fortalecido o ensino de línguas adicionais, principalmente
Inglês para crianças, emergem diante do fato de que os idiomas podem funcionar
como ferramentas de inclusão ou exclusão social (ROCHA, 2006, 2010; ASSIS-
PETERSON; COX, 2007).

Para se desvelar relações entre linguagem, diversidade linguística local e


global, sociedade e cidadania, não se pode deixar de citar o papel das Políticas
Linguísticas (doravante PLs) na gestão das línguas e ainda, no que tange a este
estudo em específico, compreender o que é criança, infância, língua, linguagem,
educação linguística e currículo dentro do contexto contemporâneo. Assim, este
trabalho advém de um recorte da fundamentação teórica de uma dissertação de
mestrado em andamento e busca identificar avanços e limitações das PLs, bem
como refletir sobre o ensino de línguas adicionais para crianças no Brasil e no
mundo globalizado.

Fundamentação teórica

De modo geral, Rajagopalan (2013, p. 21), define as PLs “como a arte de


conduzir as reflexões em torno de línguas específicas, com o intuito de conduzir

141
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ações concretas de interesse público relativo à(s) língua(s) que importam para o
povo de uma nação, de um estado ou ainda, instâncias transnacionais maiores.” As
PLs sempre existiram no campo da filosofia, no que diz respeito ao papel que as
línguas exercem em definir os povos e consolidar suas nações ao redor do mun-
do e, no sentido abstrato não podem ser caracterizadas como certas ou erradas,
apropriadas ou equivocadas por se darem em todos os lugares e em todos os tem-
pos. Ademais, conforme preconizado por Aristóteles, além de ser homo loquens o
ser humano sempre foi também homo politicus e, por causa dessa natureza polí-
tica, todos os cidadãos têm, ou se não têm, devem ter direito de serem ouvidos e
seus votos contados em pé de igualdade com qualquer outro. Por outro lado, no
sentido de ação concreta, as PLs são sempre datadas, contextualizadas e situadas
e podem ser caracterizadas como bem acertadas ou mal pensadas, apropriadas ou
precipitadas (RAJAGOPALAN, 2013).

Além disso, Ricento (2006), destaca que as PLs nasceram como um ramo
da sociopolítica, sistematizada como objeto de pesquisa e mecanismo de regu-
lação social durante as décadas de 1950 e 1960, em um contexto no qual (1) a
linguagem é vista como um instrumento finito, estável, padronizado e governado
por regras de comunicação; (2) o monolinguismo e a homogeneidade cultural são
tidos como requisitos para o progresso social e econômico, modernização e uni-
dade nacional; e, (3) a seleção da língua como uma escolha racional na qual todas
as opções estão disponíveis para todos.

Nesse sentido, no que tange ao funcionamento das PLs, Lagares (2018)


acrescenta que elas foram utilizadas para resolver problemas linguísticos, em
novas sociedades multilíngues, decidindo sobre as funções que cada língua cum-
priria no novo país, além de equipar os idiomas locais que não contavam com os
instrumentos próprios das línguas de colonização (ortografia, gramática e dicio-
nário) e contribuir para a unificação política dos paísesatravés de planejamento
linguístico de status (sobre as funções sociais da língua), de corpus (sobre a forma
do código linguístico) e, de aquisição (sobre o comportamento de outras pessoas
em relação à aquisição de uma língua).

Entretanto, a partir da década de 1980, o deslocamento linguístico passa a


ser entendido por estudiosos críticos como Tollefson (1986, 1991) e Luke, McHoul
e Mey (1990), dentre outros que se distanciaram do positivismo buscando pro-
mover igualdade social e econômica, como uma manifestação de relações de
poder assimétricas baseadas em estruturas sociais e ideologias, que posicionam

142
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

hierarquicamente grupos - e suas línguas - em uma sociedade regida por PLs, que
favorecem interesses majoritários ou dominantes em detrimento de interesses
minoritários e não dominantes. Diante dessa perspectiva crítica, os estudiosos
passaram a dedicar-se à descoberta de ideologias e políticas associadas, a fim de
provocar uma mudança social que culminou em uma mudança de paradigma – do
monolinguismo para o multilinguismo –, uma vez que os grupos constituintes do
Estado estão mais bem posicionados para participar como iguais em uma demo-
cracia significativa quando suas culturas e idiomas são respeitados, e, conferem
legitimidade através de reconhecimento e apoio institucional (RICENTO, 2006).

Outrossim, pode-se dizer que a teoria crítica favoreceu uma concepção


plural de PLs (SCHIFFMAN, 1996) que se manifesta como dois fenômenos: um
chamado de Política Linguística explícita que pode ser visto nas leis e diretrizes
que envolvem questões linguísticas, como, por exemplo, a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
aqui no Brasil; e outro chamado Política Linguística (doravante PL) implícita que
está relacionado às normas linguísticas que, apesar de não serem oficiais ou de-
claradas, são perceptíveis nas práticas sociais e nas crenças dos indivíduos, po-
dendo ser motivadas por instituições como a própria família, escolas de línguas
e empresas que se interessem em fomentar o uso de uma língua estrangeira, por
exemplo (MERLO, 2018).

Tal qual, para Shohamy (2007) os testes de línguas representam uma PL im-
plícita que, logicamente, difere da PL explícita, por se tratar de um mecanismo en-
coberto utilizado por autoridades centrais para criar, perpetuar e manipular uma
PL explícita que muitas vezes não passa de uma mera declaração de intenção. Os
testes são, portanto, mais poderosos do que qualquer documento político escrito,
pois podem conduzir à eliminação e supressão de certas línguas nas sociedades,
privilegiar certas formas e níveis de conhecimento de línguas, definir a gramática
correta e os sotaques nativos como parte dos critérios de avaliação e ainda, per-
petuar o poder do inglês e dos seus falantes através da utilização do inglês como
língua de instrução e/ou como requisito para aceitação a instituições de ensino
superior.

Inclusive, Shohamy (2007) delineia as PLs de uma forma mais abrangente


ao mesmo tempo em que as delimita no contexto escolar:

143
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A política linguística (PL) refere-se e preocupa-se com as deci-


sões tomadas sobre línguas e seus usos na sociedade; A política
linguística educacional (PLE) refere-se a tais decisões nos con-
textos específicos das escolas e universidades em relação às lín-
guas de origem, estrangeiras e segundas línguas. Isto pode incluir
decisões sobre qual (is) língua(s) deve(m) ser ensinado(s), quando
(em que idade), por quanto tempo (número de anos e horas de es-
tudo), por quem (quem está qualificado para ensinar), para quem
(quem tem direito e/ou obrigação de aprender), e como (quais
métodos de ensino, currículo, materiais, testes a serem utiliza-
dos). (SHOHAMY, 2007, p. 119)3.

Logo, diante dessas questões, se faz fundamental pensar um currículo con-


temporâneo e, nesse sentido, um currículo inspirado pelas teorias pós-críticas
em Educação é denominado pós-currículo. Assim, apoiada em Corazza (2010),
Malanchen (2014) explica que o pós-currículo pensa a partir de perspectivas
pós-estruturalistas e pós-modernistas, pós-colonialistas e multiculturalistas que
englobam conceitos criados pelos estudos culturais e feministas, gays e lésbicos,
filosofias da diferença e pedagogias da diversidade, curricularizando, assim, as di-
versas formas contemporâneas de luta social. Age, portanto, por meio de temáti-
cas culturais, estudando e debatendo diversas questões, tais como:

[...] questões de classe e gênero, escolhas sexuais e cultura po-


pular, nacionalidade e colonialismo, raça e etnia, religiosidade e
etnocentrismo, construcionismo da linguagem e da textualida-
de, força da mídia e dos artefatos culturais, ciência e ecologia,
processos de significação e disputas entre discursos, políticas
de identidade e da diferença, estética e disciplinaridade, comu-
nidades e imigrações, xenofobia e integrismo, cultura juvenil e
infantil, história e cultura global. (CORAZZA, 2010, p. 103 apud
MALANCHEN, 2014, p. 82).

Todavia, a autora alerta para o fato de que, o resultado dessa teoria mul-
ticultural são sujeitos descentralizados e fragmentados, incapazes de entender
e intervir na realidade de forma coerente, organizada e objetiva, que acabam

3 Citação original: Language policy (LP) refers to and is concerned with decisions made about
languages and their uses in society; Language education policy (LEP) refers to such decisions
in the specific contexts of schools and universities in relation to home languages, foreign, and
second languages. These may include decisions about which language(s) should be taught, when
(at what age), for how long (number of years and hours of study), by whom (who is qualified to
teach), for whom (who is entitled and/or obligated to learn), and how (which teaching methods,
curriculum, materials, tests to be used).

144
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

por aceitar de forma acrítica a lógica do capital. Portanto, “ao invés de se buscar
a superação da alienação, o grande valor passa a ser a liberdade de expressão e
a valorização da diversidade”, de modo que “ao se enfatizar as lutas fragmenta-
das de movimentos sociais, se rejeita o conhecimento da totalidade, os valores
universais, a racionalidade, a igualdade (na concepção liberal ou na socialista)
e, de forma mais profunda, a concepção do marxismo de emancipação humana”
(MALANCHEN, 2014, p. 92-93).

Para tanto, a Pedagogia Histórico-crítica traz a questão do currículo “pau-


tada em outra concepção de mundo, que não é liberal nem mecanicista, mui-
to menos pós-moderna e idealista, mas sim, materialista histórica e dialética”
(MALANCHEN, 2014, p. 8).

A concepção de mundo materialista histórica e dialética “toma como eixo


aquilo que é próprio do ser humano: o trabalho, entendido como atividade espe-
cificamente humana de transformação consciente da realidade natural e social”
(MALANCHEN, 2014, p. 23). Nesse sentido, o processo de humanização, forma-
ção do ser humano como ser social, inicia-se no momento em que se começa a
produzir cultura pela mediação do trabalho na relação do ser humano com a na-
tureza – o que diferencia o homem dos outros animais. De modo que, a atividade
educativa, entendida como produção do humano nos indivíduos, é também um
tipo de trabalho (MALANCHEN, 2014, p. 172).

Portanto, sabendo-se que o desenvolvimento do ser humano está direta-


mente atrelado ao desenvolvimento da cultura e que a apropriação da cultura é
sempre um processo educativo, de reprodução, nas propriedades do indivíduo,
das propriedades e aptidões historicamente formadas da espécie humana, o cur-
rículo da escola deve ser “uma seleção intencional de uma porção da cultura uni-
versal produzida historicamente” (MALANCHEN, 2014, p. 214), na qual aquilo
que é mais desenvolvido, se não for trabalhado pelo currículo na escola, não terá
outro espaço para ser trabalhado.

[...] é de fundamental importância possibilitar o acesso aos


bens não só materiais, mas também intelectuais, produzidos
até o momento pela humanidade, como forma de constituir
um ser humano com aptidões e funções mais elevadas, concor-
rendo para a emancipação humana. O acesso aos bens intelec-
tuais mais desenvolvidos, como a ciência, a arte e a filosofia,
na sociedade contemporânea, não pode se concretizar para a

145
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

totalidade da população a não ser por meio da educação escolar.


(MALANCHEN, 2014, p. 122).

Desse modo, de acordo com a autora, a Pedagogia Histórico-crítica defen-


de o saber sistematizado, a cultura erudita, sem negar ou desvalorizar a cultura
popular. É compreender a incorporação por superação da cultura erudita como
processos de elaboração, que vão se modificando pelo processo histórico, tendo
em vista que é essa “apropriação dos conhecimentos científicos que promove for-
mas especiais de conduta, modifica a atividade das funções psíquicas, cria novos
níveis de desenvolvimento humano e proporciona um entendimento mais articu-
lado da realidade” (MALANCHEN, 2014, p. 123).

Assim, na perspectiva da Pedagogia Histórico-crítica, o eixo articulador do


currículo é a prática social histórica, por meio da qual os seres humanos trans-
formam a realidade, produzindo o mundo humanizado. Entretanto, Malanchen
(2014, p. 208) aponta desafios enfrentados pela Pedagogia Histórico-crítica, re-
ferentes à proposição de currículos escolares que expressem de forma mais cons-
ciente e sistematizada possível “a concepção do ser humano como um ser que se
autoconstrói no processo histórico de transformação da realidade objetiva”, de-
vido ao fato disso estar contido de forma limitada e contraditória no currículo da
escola elementar tradicional, e sugere que: “considerando-se a educação escolar
desde a educação infantil até o ensino superior, os currículos escolares poderiam
ser pensados como um processo de progressiva explicitação e complexificação
dessa concepção de mundo” (MALANCHEN, 2014, p. 209).

Ou seja, por meio de conteúdos historicamente produzidos e objetivamen-


te interpretados “um currículo sob a luz da Pedagogia Histórico-crítica permite ao
ser humano objetivar-se de forma social e consciente, de maneira cada vez mais
livre e universal” (MALANCHEN, 2014, p. 219). O que na visão de Pina e Gama
(2020) significa também “recuperar o que há de mais desenvolvido do ponto de
vista das relações humanas, suas formas de organização, garantindo seu acesso
às novas gerações” (PINA; GAMA, 2020, p. 362). Isso porque, para os autores, tal
perspectiva teórica e pedagógica se opõe radicalmente ao esvaziamento curricu-
lar promovido pela BNCC, pois consideram que o documento, ao incorporar os
interesses de uma fração da classe empresarial por meio de um projeto minima-
lista que intensifica a apropriação privada do conhecimento sistematizado, tende
a consolidar mais uma etapa do processo de rebaixamento do nível de ensino des-
tinado às camadas populares.

146
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Nesse sentido, Rocha e Maciel (2015, p. 412), apoiados em Zhao e Biesta


(2011), reforçam a importância de se olhar de forma mais ampla e crítica para as
maneiras como as relações humanas, os processos de constituição do sujeito e de
construção de conhecimentos têm sido vistos e explicados, visto que a relação
sujeito, linguagem e mundo tem se evidenciado profundamente marcada por uma
orientação monológica, monolítica, homogeneizante e colonialista. Além disso, a
atualidade é também marcada pelas transformações decorrentes do surgimen-
to de tecnologias, das diferentes maneiras de se relacionar, de agir e de produzir
texto, ou seja, de construir sentidos em níveis ontológicos e epistemológicos, das
mudanças nos modos de produção e de organização social, atrelados à ideia de
economia global, na qual “conexões transnacionais mostram-se continuamente
ressignificadas e reconfiguradas” (ROCHA; MACIEL, 2015, p. 413).

Entretanto, ao se ponderar sobre a necessidade de mudanças no campo


educacional, em face aos desafios que a era global nos coloca, Rocha e Maciel
(2015, p. 415) pontuam que a ciência e suas áreas de conhecimento, independen-
temente de seus objetos específicos de interesse, deve assumir um compromisso
por meio de nós, seres humanos, de expandir seu olhar “para dimensões humanas
como a sensibilidade, a solidariedade, a alteridade e a justiça”. Para tanto, os au-
tores defendem uma vertente crítica e humanizadora (FREITAS, 2010; SANTOS,
2008; LIBÂNEO; SANTOS, 2010; MORIN, 2011) na acepção freireana do termo,
voltada para o desenvolvimento da reflexividade, abarcando não somente a di-
mensão cognitiva, mas também a dimensão ética, as escolhas, os compromissos
assumidos pelos sujeitos em seus contextos de práticas pessoais e profissionais,
ou seja, as relações humanas nos mais variados âmbitos sociais e os discursos,
valores, identidades e subjetividades que são construídos a partir delas. Isso in-
clui, portanto, confrontar o universalismo, o pensamento hegemônico e também,
distanciar-se de “normatizações de bases predominantemente ocidentalizadas,
no que concerne às dimensões morais e humanas da aprendizagem acerca do ser
e do constituir-se humano na contemporaneidade” (ROCHA; MACIEL, 2015, p.
415).

Desse modo, faz-se necessário compreender as paisagens linguísticas que


representam nossa realidade e a realidade de nossas salas de aula em meio a toda
a sua heterogeneidade de línguas, linguagens, vozes e identidades. Para tanto,
Rocha e Maciel (2015, p. 432) apontam para uma pedagogia de orientação trans-
língue, preocupada com os processos interpretativos e de produção de sentidos,
que “se volta ao dialogismo e à heteroglossia, buscando a criação de espaços de

147
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

conflito criativo, ou de espaços aporéticos, como denominam Burdick et al (2014)”,


ao mesmo tempo que “questiona formas de pensar, ser, fazer e dizer, reguladas
pelo etnocentrismo e pela subalternização de certos sistemas de conhecimentos
em favorecimento de outros” (ROCHA; MACIEL, 2015, p. 432).

Além disso, Rocha e Maciel (2015, p. 416), destacam que os “complexos


processos de globalização e migração que alteram a natureza social, linguística
e cultural da diversidade” produzem uma superdiversidade. Contudo, apoiados
em Blommaert (2010, 2011), os autores afirmam que essa superdiversidade, “em
contraposição ao paradigma multicultural geralmente marcado pela noção de mi-
norias étnicas e pela ideia de um conjunto de múltiplos unos, orienta-se pelo con-
ceito de complexidade e fluxo” pois, “incorpora a diversidade, a profusão e a com-
plexidade dentro da própria ideia de diversidade, frente às profundas e recentes
mudanças das dinâmicas demográficas sociais e culturais dos fluxos migratórios
ao redor de todo o mundo” (ROCHA; MACIEL, 2015 p. 416-417).

Essas transformações, segundo os citados autores, decorrem do


acentuado aumento nas categorias de migrantes na atualidade,
não somente em termos de nacionalidade, etnia, linguagem e
religião, mas também no que diz respeito aos motivos, padrões
e itinerários de migração, processos de inserção no mercado de
trabalho e nas sociedades que os recebem, o que, por sua vez,
exerce grande impacto nas maneiras como as relações humanas
se constroem e nas formas de comunicação. (ROCHA; MACIEL,
2015, p. 417).

Essa influência nas relações humanas e nas formas de comunicação, segun-


do Rocha e Maciel (2015), revelam a urgência de se recuperar rupturas epistêmi-
cas no campo das linguagens, como a revisão de discursos relativos às ideias de fa-
lantes e de comunidade – centrados nas noções de homogeneidade, estabilidade
e finitude – em favor do reconhecimento das línguas como “recursos semióticos
móveis” que se aliam a outros – como som, movimento, imagem – para a constru-
ção de sentidos na comunicação contemporânea (BLOMMAERT, 2010, p. 43).

Assim, Rocha e Maciel (2015) recorrem a ideia de prática translíngue


(CANAGARAJAH, 2013) como aquela que fortalece uma postura crítica e perfor-
mativa na qual o monolinguismo é algo ilusório, considerando-se que o aprendiz
não domina apenas um sistema por vez, mas desenvolve um repertório que está
sempre em expansão, permitindo-lhe engajamento criativo em situações de uso
da linguagem, com base em contextos específicos e objetivos particulares, sem

148
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

pressupor homogeneidade. Uma pedagogia como essa, orientada pelas ideias de


dialogismo e translinguismo, busca formar para a cidadania, para o fortalecimento
de uma conscientização democrática articulada à ideia de justiça social e, portan-
to, entende como central que se aprenda a lidar com a diferença, com a incerteza
e com a imprevisibilidade por meio de visões menos dualistas e colonizadoras em
termos de língua e cultura. Logo, reconhece a educação linguística como “um pro-
cesso constituído por movimentos anarquicamente transgressores, de constante
deslocamento e questionamento acerca de todo e qualquer sistema de represen-
tações e conhecimentos, incluindo-se aí as próprias noções de cidadania, justiça e
democracia” (ROCHA; MACIEL, 2015, p. 435).

Todavia, para compreender as paisagens linguísticas que representam a


realidade e a realidade das salas de aula em meio a toda a sua heterogeneidade, é
primordial pensar no protagonista dessa esfera, que é o estudante ou, mais espe-
cificamente, de acordo com a linha de pesquisa deste trabalho, o sujeito criança.

Por conseguinte, a criança é, de acordo com a definição de Quinteiro (2019,


p. 730), um ser humano de pouca idade, que vai se constituir humano a partir das
relações sociais que vivencia, sendo “capaz de participar da cultura e de tomar
decisões sobre assuntos de seu próprio interesse, estabelecendo interações com
outras crianças, com adultos e com os artefatos humanos, sejam eles materiais ou
simbólicos”. Enquanto que a infância, é o tempo em que a criança deve se intro-
duzir na riqueza da cultura humana histórica e socialmente criada, reproduzindo
para si qualidades especificamente humanas. E, a escola, por institucionalizar a
criança, é o lugar onde ela “internaliza a necessidade do controle e o autocontrole
das suas emoções, como modo de ser e estar no mundo” (QUINTEIRO, 2019, p.
741).

Entretanto, no que tange às relações que são estabelecidas na escola, com


vistas a atender às necessidades individuais da criança, ao mesmo tempo em que
lhes oferece o legado humano para a sua apropriação, Quinteiro (2019, p. 742)
destaca a importância da desnaturalização do conceito de infância no processo
de formação de professores críticos, para que eles tenham “uma intencionalidade
clara na organização das ações educativas e de ensino, no sentido de estabelecer
a relação entre o indivíduo e o gênero humano”. Deve-se, portanto, considerar a
seguinte questão: “em que medida estamos sendo suficientemente capazes de
criar condições históricas para que a criança seja respeitada na sua individualida-
de e, ao mesmo tempo, na sua grandiosidade de ser humano?”(QUINTEIRO, 2019,
p. 742).

149
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Nessa perspectiva, ao se pensar mais precisamente, sobre o que a apren-


dizagem de línguas adicionais/estrangeiras pode significar na vida de uma criança
na contemporaneidade, Chaguri e Tonelli (2019, p. 284) destacam que esse ensi-
no além de assegurar igualdade de oportunidades, no que diz respeito à aquisição
de uma língua adicional nos anos iniciais do Ensino Fundamental público, pode
“auxiliar a criança a ser criadora e transformadora de seu próprio conhecimento
e da sociedade em que vive, fortalecendo-a para uma visão mais acentuada das
diferenças existentes no mundo, o que auxiliará na sua formação humana.”.

Entretanto, a inexistência de PL explícita de línguas adicionais para crian-


ças em nosso país (AVILLA; TONELLI, 2018) tem contribuído para uma oferta
irregular deste ensino, quase que predominante de língua inglesa na Educação
Básica. Inclusive, Johnston (2009) afirma que para alcançar o sucesso generali-
zado no ensino de línguas para crianças em um país, deve haver uma quantidade
significativa de desenvolvimento de políticas em larga escala em nível nacional
ou, no mínimo, em nível regional. O autor ainda deixa claro que, não vê as políticas
deste ensino sendo bem sucedidas “se a abordagem for inteiramente “ascenden-
te” ‘bottom-up’ - isto é, deixada por iniciativa de escolas e professores individuais”
(JOHNSTON,2009, p. 32).

Nesse ínterim, vale acrescentar que, devido ao grande número de solicita-


ções referentes à necessidade de normatização recebidas pelo Conselho Nacional
de Educação (CNE) em consequência do crescimento exponencial de instituições
de ensino bilíngues, eis que surgem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
oferta de Educação Plurilíngue - 09/07/2020, com o objetivo de analisar, propor
e normatizar as Escolas bilíngues e as Escolas internacionais no Brasil - em sua
grande maioria da rede privada. Entretanto, no que tange a institucionalização
deste ensino como forma de assegurá-lo a todas as crianças, aparentemente, o
documento não traz nenhuma orientação.

Por isso, em contrapartida, um grupo de quatro professoras pesquisado-


ras - Cláudia Hilsdorf Rocha (IEL/UNICAMP – E-Lang/CNPq); Juliana Reichert
Assunção Tonelli (UEL –FELICE/CNPq); Leandra Ines Seganfredo Santos
(UNEMAT – GEPLIAS/CNPq), Sandra Gattolin (UFSCar - E-Lang/CNPq) – apri-
morou e acrescentou outras questões consideradas urgentes nos dias atuais a
um manifesto intitulado “Educação Linguística na Infância: em defesa do direito à
formação cidadã e à aprendizagem de línguas nos anos iniciais da educação brasi-
leira”, que já vinha sendo construído desde 2017 em favor da inclusão de línguas
estrangeiras nos anos iniciais da Educação Básica.

150
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A principal justificativa apontada pelo grupo para a elaboração desse ma-


nifesto está relacionada à necessidade de fortalecimento de políticas e proces-
sos educativos de cunho formativo e transformador, que possam contribuir para
a formação plurilíngue, crítica e cidadã dos alunos, além de promover em meio
aos espaços escolares, possibilidades de ruptura com discursos homogeneizado-
res e opressores, das mais variadas ordens. As autoras apontam ainda, que diante
de uma sociedade contemporânea, globalizada, digital, complexa e diversa são
fundamentais políticas públicas que reconheçam a aprendizagem de línguas nos
anos iniciais de educação como um direito da criança, perante a formação cidadã
contemporânea.

Considerações finais

A BNCC deixa uma lacuna no que tange ao ensino de línguas adicionais na


Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, e ainda, impõe o en-
sino de língua Inglesa para os anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio.
Desse modo, a ausência de PL explícita deixa essas decisões a cargo dos estados,
o que compromete o sucesso generalizado deste ensino.

As discussões apontam que, a ausência de diretrizes específicas para o en-


sino de línguas adicionais para crianças no Brasil, nas etapas da Educação Infantil
e anos iniciais do Ensino Fundamental, se agrava perante a adoção única e exclusi-
va da língua inglesa nas etapas subsequentes.

Em um país linguisticamente diverso como o Brasil, as lacunas das PLs ofi-


ciais acabam sendo preenchidas por práticas descontinuadas e pelo acirramento
das diferenças entre os contextos educacionais públicos e privados.

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153
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

PRODUÇÕES TEXTUAIS EM LÍNGUA


INGLESA: O PROCESSO DE ESCRITA E
REESCRITA DO GÊNERO PROFISSIONAL
RÉSUMÉ1

Ana Valéria Bisetto Bork Gödke2

RESUMO: O processo de construção e reconstrução textual demanda a realização


de diferentes fases, como planejamento, escrita e reescrita, conectadas entre si. O
refinamento de elementos linguísticos, discursivos e textuais fazem com que um
texto chegue a sua versão final, estabelecendo uma relação de comunicação entre
escritor e leitor. Esta comunicação, na maioria das vezes, acontece por meio de gê-
neros de texto. Assim, este artigo visa apresentar parte de um estudo realizado so-
bre o gênero profissional résumé, necessário para que graduandos possam ingres-
sar no mundo profissional. Nosso arcabouço teórico-metodológico fundamenta-se
no Interacionismo Social (VIGOTSKI, 2002), no Interacionismo Sociodiscursivo
(BRONCKART, 2012), nas capacidades de linguagem (CRISTOVÃO; STUTZ, 2011;
BRONCKART, 2012), no estudo de gêneros (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004), no mo-
delo didático de gêneros (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004), nas listas de constatação
(BAIN; SCHNEUWLY, 1993; GONÇALVES, 2007) e nas correções orais e escritas
(LALANDE, 1982; SERAFINI, 1995; FIGUEIREDO, 2001; (RUIZ, 2013 [2001]). O

1 Este texto é um recorte da tese de doutorado intitulada “Produção escrita de gêneros profis-
sionais em língua inglesa: vozes entrelaçadas no processo de escrita e reescrita textual”, de-
fendida em 2016, no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, na Universidade
Estadual de Londrina (UEL). Para outras informações, acessar http: //www.bibliotecadigital.uel.
br/document/?code=vtls000206012.
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná – Campus Curitiba. bisetto@utfpr.edu.br

154
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

estudo sobre o gênero résumé aconteceu em um curso de extensão sobre escri-


ta profissional na Universidade Tecnológica Federal do Paraná-Campus Curitiba,
intitulado Professional Writing Development, elaborado para atender as necessi-
dades de alunos do curso de Licenciatura em Letras Português/Inglês e Inglês da
Instituição. Trata-se de um estudo qualitativo, situado no campo da Linguística
Aplicada, orientado pela metodologia da pesquisa-ação. Os resultados apontam
que as intervenções orais e escritas são significativas no sentido de promover
o aprimoramento textual, levando-se em consideração os aspectos linguísticos,
cognitivos e contextuais do referido gênero.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero profissional résumé; Escrita e reescrita textual;


Língua inglesa.

ABSTRACT: The process of textual construction and reconstruction demands the ful-
fillment of different steps, such as planning, writing and rewriting, connected to each
other. The refinement of linguistic, discursive and textual elements leads the text to its
final version, establishing a communication between the writer and the reader. This
communication, in most cases, occurs through text genres. Thus, this article aims to pre-
sent part of a study carried out on the professional genre résumé, necessary for under-
graduate students to get in the professional world. Our theoretical-methodological fra-
mework is based on the Social Interactionism (VIGOTSKI, 2002), on the Sociodiscursive
Interactionism (BRONCKART, 2012), on the language capacities (CRISTOVÃO; STUTZ,
2011; BRONCKART, 2012), on the study ofgenres (SCHNEUWLY ; DOLZ, 2004), on
the didactic model of genres (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004), on the control lists (BAIN;
SCHNEUWLY, 1993; GONÇALVES, 2007), and on the oral and written corrections
(LALANDE, 1982; SERAFINI, 1995; FIGUEIREDO, 2001; (RUIZ, 2013 [2001]). The
study on such genre took place in an extension course on professional writing at the
Federal Technological University of Paraná-Campus Curitiba, named Professional
Writing Development, designed to meet the needs of the students majoring in the
Portuguese/English and English Undergraduate Language Courses. This is a qualitative-
-driven research, situated within the field of Applied Linguistics, based on the action-re-
search methodology. The results show that oral and written interventions are significant
in terms of promoting textual improvement, taking into account the linguistic, cognitive
and contextual aspects of this genre.

KEYWORDS: Professional genre résumé; Textual writing and rewriting; English


language.

155
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Introdução

A escrita é um componente fundamental para a formação da pessoa, é um


meio de comunicação entre os homens, uma forma de socialização, de difusão de
ideias e de perpetuação de informações. No contexto educacional, assim como as
demais habilidades trabalhadas, a produção escrita tem papel incontestável no
ensino e aprendizagem de línguas. Corroboramos com a visão de Dolz, Gagnon
e Decândio (2010, p. 13) ao pontuarem que “[...] Aprender a produzir uma diver-
sidade de textos, respeitando as convenções da língua e da comunicação, é uma
condição para a integração na vida social e profissional”.

Consideramos a questão da escrita e reescrita textual como um processo


contínuo, o qual deve envolver dialogicamente o sujeito autor, o texto e o supos-
to leitor que, no caso da escola ou da universidade, é geralmente o professor. No
momento da reescrita, esse retorno ao texto (KOCH; ELIAS, 2011) permite que o
aluno produtor reveja os sentidos pretendidos, amplie o debate com novas ideias,
reflita sobre sua aprendizagem e acione conhecimentos prévios sobre o gênero
a ser trabalhado. Seja em língua portuguesa ou inglesa, como é o caso de nosso
estudo, o processo de reescrita proporciona maior autonomia e independência do
agente produtor no ato de escrever.

Sobre as etapas de revisão e reescrita textual, necessárias para um resul-


tado final satisfatório, Gasparotto e Menegassi (2013, p. 29) asseveram que es-
sas se mostram extremamente relevantes para a construção textual, pois “reve-
lam o olhar analítico sobre o texto construído, a fim de adequar sua estrutura e
conteúdo à maior compreensão do leitor, mantendo o objetivo comunicativo do
enunciador”.

Com isso em mente, o presente artigo objetiva apresentar um estudo com


o gênero profissional (doravante GP) résumé, realizado em um curso de extensão
com um grupo de alunos do curso de Letras de uma universidade pública do es-
tado do Paraná. Para tanto, descrevemos os aportes teórico-metodológicos que
fundamentam a pesquisa e apresentamos o GP com seus respectivos modelo di-
dático e lista de constatação. Logo após, trazemos a metodologia utilizada para
a geração de dados, seguida das análises das produções escritas de dois alunos.
Posteriormente, tecemos nossas considerações finais e listamos as referências
utilizadas.

156
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Aportes teórico-metodológicos

A proposta de um estudo a partir de situações de comunicação, dentro do


contexto acadêmico com vistas à produção escrita de um GP, tem como ponto
fundamental as trocas interacionais e a mediação pautadas no interacionismo
social de Vigotski (2002), representado pela noção de zona de desenvolvimento
proximal (ZDP), principalmente no momento da correção e reescrita textual, em
que o olhar do outro se torna um elemento essencial para o aprimoramento tex-
tual. Sobre o conceito da ZDP, esta pode ser definida como:

[...] a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se


costuma determinar através da solução independente de pro-
blemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado
através da solução de problemas sob a orientação de um adulto
ou em colaboração com companheiros mais capazes. (VIGOTSKI,
2002, p. 112).

A ZDP é, portanto, a distância existente entre aquilo que a pessoa já sabe e


consegue realizar de maneira autônoma, seu conhecimento real, e aquilo que ela
possui potencialidade para aprender, quer seja, seu conhecimento potencial que,
a partir da interação entre pessoas de seu meio, há um despertar de procedimen-
tos internos de desenvolvimento que não seriam possíveis de acontecer se não
fossem possibilitados pelas relações que estabelecemos com os outros. A partir
de contextos interativos de aprendizagem, várias ZDPs podem ser criadas e con-
ceitos novos, antigos ou cristalizados, podem ser constantemente confrontados
e compartilhados pelos participantes. Assim, as críticas construtivas, as trocas de
ideias, os questionamentos, as contradições e os conflitos são vistos aqui como
pontos positivos para o processo de aprendizagem do indivíduo.

Vigotski (2002) salienta que a participação de par mais competente, seja na


figura do professor ou alguém que tenha mais conhecimento sobre um determina-
do assunto, tem a função de mediar a aprendizagem, pois esse par mais competente
seria responsável por apontar diferentes formas de ensinar o outro a aprender.

Pautada na perspectiva vigotskiana de aprendizagem, nossa pesquisa fi-


lia-se à corrente epistemológica do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), em que
a linguagem é vista como “instrumento fundador e organizador dos processos
psicológicos nas suas dimensões estritamente humanas” (BRONCKART, 2006, p.
122), e os gêneros de texto são vistos como “produtos da atividade de linguagem

157
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

em funcionamento [...], organizados em função de seus objetivos, interesses e


questões específicas” (BRONCKART, 2012, p. 137). Dentre as categorias de aná-
lise, o ISD considera o contexto de produção e os níveis organizacional (se refere à
infraestrutura textual, constituída pelas operações discursivas, em que o plano
textual global, os tipos de discurso, os tipos de sequências e os mecanismos de
coesão e de conexão são focalizados), enunciativo (composto pelas marcas de pes-
soa, os índices de inserção de vozes e os modalizadores do enunciado e pragmáti-
co) e semântico (categorias do agir de linguagem).

Segundo os postulados do ISD, o texto está em estreita interdependência


com o contexto em que é produzido. O trabalho de escrita e reescrita textual, ma-
terializados nos gêneros de texto, proporciona ao aluno o desenvolvimento das
capacidades de linguagem (CL), definidas como “aptidões requeridas do apren-
diz para a produção de um gênero numa situação de interação determinada”
(SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 54). Assim, ao se apropriarem dos gêneros, os
aprendizes passam a concebê-los como um instrumento mediador entre a pessoa
e o agir social do sujeito por meio dele/deles. As CLs são classificadas em capaci-
dades de ação (CA), alusivas às características do contexto, do conteúdo temático
e do gênero textual;discursivas (CD), referentes à infraestrutura geral do texto;
linguístico-discursivas (CLD), correspondentes ao nível mais superficial do texto
(geralmente é a mais trabalhada no processo da escrita e reescrita textual) e, por
fim, a capacidade de significação (CS), proposta por Cristóvão e Stutz (2011), res-
ponsáveis por evidenciar aspectos mais amplos da base de ação de um gênero,
seja esse produzido na modalidade oral ou escrita da língua.

A construção textual não deve considerar somente aspectos linguísticos,


mas cognitivos, pragmáticos, sócio-históricos e culturais. Para que todos esses
elementos se materializem no texto, Dolz, Gagnon e Decândio (2010) atentam
para cinco operações no processo de escrita textual, em que cada uma delas “se
refere a uma situação de comunicação que guia a escolha de uma base de orien-
tação para a produção de um gênero textual de referência” (DOLZ; GAGNON;
DECÂNDIO, 2010, p. 24-25). Elas se encontram descritas a seguir: (i) a contextua-
lização, a qual se refere à interpretação da situação de comunicação com o objeti-
vo de produzir um texto coerente com situação que se apresenta; (ii) a elaboração
dosconteúdos temáticos em função do gênero, em que a progressão temática do
texto deve ser desenvolvida, objetivando um equilíbrio entre as informações tra-
zidas pelo leitor e as novas informações que emergem a partir dessa adaptação;
(iii) a planificação, responsável pela organização do texto; (iv) a textualização que é

158
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

alusiva às marcas linguísticas que constituem o texto, como os parágrafos, os or-


ganizadores textuais, a coesão nominal e verbal, os mecanismos de retomada ana-
fórica, possibilitando as relações entre as frases com vistas à progressão textual;
(v) a releitura, revisão e reescrita dos textos, as quais ocorrem durante a produção
textual.

Para a produção de textos escritos, Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p.


112) enfatizam que “o escritor pode considerar o texto como um objeto a ser re-
trabalhado, revisto, refeito, mesmo a ser descartado, até o momento em que o dá
a seu destinatário”. Sobre essa questão, Menegassi (2010) aponta para as etapas
de planejamento, execução do texto escrito, revisão e reescrita, em que o professor
tem o papel de coprodutor do texto, auxiliando e orientando a finalidade, o in-
terlocutor e o gênero a ser produzido (MENEGASSI, 2010; 2013). Sobre nosso
estudo, salientamos que os demais participantes também atuaram como copro-
dutores, uma vez que há intervenções dos alunos no momento das correções e
reescrita textuais, as quais ocorreram de forma oral quando nas leituras dos tex-
tos no grande grupo.

Ainda sobre o trabalho de reescrita textual, diferentes possibilidades de


alterações podem ocorrer em forma de acréscimos, supressões, substituições e
deslocamentos (FABRE, 1987; LEITE, 2012; GASPAROTTO; MENEGASSI, 2013)
de elementos no corpo do texto, chamadas de operações linguístico-discursivas3. Na
operação acréscimo, uma frase, palavra ou elemento gráfico pode ser adicionado
ao texto; na supressão, elementos de um segmento de texto podem ser suprimi-
dos; na substituição, há a supressão de um segmento e este é substituído por ou-
tro; no deslocamento, há uma modificação na ordem dos elementos que compõem
as orações de um texto.

Com o objetivo de (re)direcionar o olhar do aluno para o processo de rees-


crita e visando o aprimoramento textual, utilizamo-nos das correções indicativa
e classificatória4(SERAFINI, 1995), assim como da textual-interativa (RUIZ, 2013
[2001]). Vale salientar que a correção textual-interativa prioriza o processo de
interlocução entre o professor e o sujeito produtor de textos, levando o aluno a

3 Para Gasparotto e Menegassi (2013, p. 31), as operações linguístico-discursivas permitem “um


aprofundamento no estudo do processo de revisão e reescrita textual, especialmente em situa-
ções de ensino. Através delas, podemos constatar o nível de compreensão do aluno na etapa de
revisão, assim como a interação entre professor e aluno no trabalho com a escrita”.
4 Também chamada de codificada, esta acontece a partir do uso de um conjunto de símbolos. A tí-
tulo de exemplificação desta forma de intervenção em língua inglesa, trazemos aqui os símbolos
Sp para os erros de spelling, Gr para grammar e WO para word order.

159
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

refletir sobre sua produção e a função que esta possui. Este tipo de correção se
realiza por meio de comentários mais longos, feitos à margem do texto em forma
de bilhetes, nos quais o professor pode indicar problemas de natureza mais global,
extrapolando os limites da frase, uma vez que chega a trabalhar com questões de
ordem macroestrutural.

Com respeito à correção textual para o ensino de língua inglesa, ressalta-


mos as contribuições de Figueiredo (2001; 2003) que menciona a correção com
os pares, como uma das diferentes formas de se corrigir um texto. Pautado em
Lee (1997), o pesquisador a define como “um processo no qual os alunos lêem
os textos escritos por seus colegas e dão sugestões para melhorar a escrita”.
Assim, o texto a ser corrigido torna-se “o foco da conversação entre os alunos”
(FIGUEIREDO, 2001, p. 53).

Juntamente a isso, trazemos ainda a proposta de Gonçalves (2007), funda-


mentado nos estudos de Bain e Schneuwly (1993), de abordar a correção intera-
tiva mediante a construção de uma lista de controle/constatação, considerada uma
prática dialógica de intervenção em textos, a qual pode ser elaborada tanto pelos
alunos como pelo professor. Como uma ferramenta orientadora para o discente,
a lista “serve de instrumento para regular e controlar seu próprio comportamen-
to de produtor de textos, durante a revisão e a reescrita, permitindo-lhe avaliar
os progressos realizados no domínio trabalhado” (GONÇALVES, 2007, p. 119).
Cristóvão e Torres (2006, p. 39) reforçam que, as listas contribuem para “tornar
ambos mais conscientes de toda a complexidade que envolve a produção escrita;
tornar os aprendizes mais críticos de sua própria produção e aptos a se engajar
em um processo de revisão eficaz”.

Salientamos que no caso desta pesquisa, a construção da lista de consta-


tação do GP résumé se deu de forma coletiva, por meio da análise de textos de
referência, o que acreditamos estar em consonância com a visão vigotskiana de
aprendizagem, ao possibilitar diferentes formas de interação no contexto de sala
de aula. Tal construção relaciona-se, também, aos postulados do ISD, ao propor-
cionarmos uma proposta de trabalho com as modalidades oral e escrita da língua
em uso, dentro de um contexto sócio-histórico construído.

O gênero résumé: dimensões contextuais e textuais

Dentre o rol de gêneros de texto que se destacam no momento em que


uma pessoa está à procura de uma vaga de emprego, o résumé é visto como uma

160
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ferramenta importante que direciona o trabalho do recrutador para as qualifica-


ções e experiências do candidato.

Muito similar ao gênero curriculum vitae, o gênero résumé focaliza as rea-


lizações de cunho profissional e acadêmico de uma pessoa à uma posição dentro
de uma empresa. Os dados arrolados não se encontram descritos em forma de um
texto narrativo, mas de modo topicalizado, em que os itens mencionados apare-
cem separadamente. Pode ser definido como um documento utilizado para quem
deseja apresentar um relato breve e direto sobre a vida profissional, trazendo
também um histórico acadêmico, além das habilidades e conquistas relacionadas
à vaga preterida.

Independentemente da área profissional, Whitcomb (2010) aponta que há


quatro tipos de résumé: de ordem cronológica, funcional, de combinação, ou no for-
mato de résumé direcionado. Segundo a autora, o résumé cronológico é o tipo mais
utilizado, e o preferido dos empregadores, pois traz informações de forma clara,
podendo incluir o objetivo ou um resumo sobre a carreira pretendida. Ademais,
ressalta os dados históricos e profissionais, partindo das posições mais recentes
ocupadas pelo candidato. As informações alusivas às questões educacionais,
certificações e habilidades são listadas após o item experiência.

Quanto ao seu MDG, a construção contou com a análise de dez (10) textos
de referência, todos redigidos em língua inglesa. Sobre o contexto de produção
(BRONCKART, 2012), temos os seguintes elementos em sua dimensão contex-
tual: objetivo de elencar informações acadêmicas e profissionais relacionadas à
uma posição específica de emprego; vozes de pessoas interessadas em expor seus
dados pessoais, profissionais e acadêmicos e destinatários, como recrutadores;
suporte de veiculação, como endereço eletrônico, sites de recrutamento online e
páginas virtuais.

Com relação à dimensão textual-discursiva, seu plano textual global apresen-


ta a exposição de dados pessoais, experiência profissional, informações acadêmi-
cas e habilidades; o tipo de discurso predominante é o teórico; a sequência textual
é a descritiva (outras formas de planificação); a coesão nominal traz a ausência de
anáforas nominais e pronominais; a coesão verbal pode se realizar na 3ª pessoa do
singular no presente simples do indicativo, no pretérito imperfeito e no infinitivo
para ações futuras e, por fim, a escolha lexical aponta para a temática acadêmica e
profissional.

161
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Após a descrição das características que compõem o formato de um résu-


mé, apresentamos a sua lista de constatação construída coletivamente. Assim, os
participantes do curso de extensão elencaram sete5 (7) itens principais, sendo os
três (3) primeiros essenciais em sua composição. Em primeiro lugar aparecem as
informações pessoais, as quais apresentam o candidato que pode ser contatado,
posteriormente, pelas pessoas responsáveis pelo setor de recrutamento de uma
empresa. O segundo item diz respeito à qualificação acadêmica, em que o interes-
sado vai listar os cursos realizados que o qualificam para a posição pretendida. O
próximo item é alusivo a sua experiência profissional, em que são listadas as dife-
rentes oportunidades de emprego e as posições ocupadas ao longo de sua vida
profissional. Com relação aos itens publicações e participação em eventos, estes po-
dem aparecer em alguns tipos de résumés, principalmente aqueles que possuem
um teor mais acadêmico. O sexto item se refere às habilidades que o candidato
possui, o qual se mostra compulsório na maioria dos textos de referência analisa-
dos, podendo elencar, como exemplo, suas habilidades linguísticas (é fluente em
espanhol, fala razoavelmente bem o alemão). O último item, denominado infor-
mações adicionais, é opcional e versa sobre outras informações que o candidato
tem a chance de apresentar, as quais podem complementar seu résumé com dados
relevantes para a posição preterida.

Em menor escala, outro item encontrado em sites alusivos à temática foi


a questão do objetivo (objective ou goal), relacionado diretamente com a vaga de
emprego pretendida. Nesta seção, o candidato pode apresentar os objetivos que
deseja/quer alcançar dentro da empresa, caso venha a fazer parte da equipe de
funcionários que lá atuam.

Metodologia

O estudo é de natureza qualitativa, orientado pela metodologia da pes-


quisa-ação (BORTONI-RICARDO, 2008). Os dados foram gerados a partir das
produções textuais realizadas em um curso de extensão denominado Professional
WritingDevelopment (PWD), cujo objetivo era desenvolver a compreensão e pro-
dução de gêneros profissionais6.

5 Sobre os itens em língua inglesa, temos: personal information, qualifications ou education, profes-
sional experience, publications, participation in events, applicable skills e further information.
6 O curso PWD abordou os gêneros de texto biodata, résumé e cover letter, mas, para o propósito
deste artigo, focalizamos somente no gênero résumé.

162
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Sobre os participantes, temos a presença da professora pesquisadora, dos


graduandos do curso de Letras (Português/Inglês) da Universidade Tecnológica
Federal do Paraná (UTFPR-Campus Curitiba) e da assistente de língua inglesa
(ETA). Com respeito aos alunos, todos tinham nível intermediário de inglês, pois já
haviam cursado em torno de 450 horas de estudo na língua alvo. A fim de manter
em sigilo os sujeitos de pesquisa, passamos a identificar os discentes com a letra A,
de aluno, seguida de um número. Assim, para o objetivo deste artigo, trazemos as
produções dos graduandos A1 e A3, ou seja, alunos 1 e 3. Ressaltamos que, para o
objetivo deste artigo, apresentamos somente as produções de A1 e A3, pois esses
participaram do processo de escrita e reescrita textual do referido gênero.

No que concerne à análise das produções aqui apresentadas, utilizamos os


critérios de análise textual do ISD (BRONCKART, 2006; 2012), as capacidades de
linguagem (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004), as características do gênero résumé pre-
sentes em seu MDG (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004), as listas de constatação (BAIN;
SCHNEUWLY, 1993; GONÇALVES, 2007), as operações linguístico-discursivas
(FABRE, 1987; LEITE, 2012; GASPAROTTO; MENEGASSI, 2013), as correções
com os pares (FIGUEIREDO, 2001; 2003) e as sugestões escritas nos textos dos
alunos por meio de símbolos (LALANDE, 1982; SERAFINI, 1995) e de bilhetes in-
terativos (RUIZ, 2013 [2001]).

Como instrumentos e corpus de pesquisa, elencamos partes das transcri-


ções das videogravações de aulas, os textos de referência e as produções iniciais
e finais do GP.

Análise dos dados

Neste momento, ocupamo-nos do conjunto de produções textuais efetua-


das durante o curso, com o propósito de avaliar o aprimoramento textual dos alu-
nos a partir da análise de suas produções iniciais (PI) e produções finais (PF).

Os textos produzidos são apresentados em sua totalidade e a análise das


produções textuais de A1 e A3 ocorre de duas formas. Na primeira delas, traze-
mos um excerto que diz respeito à correção de A1, cuja avaliação da produção
textual a partir do olhar do outro aponta para sugestões de aprimoramento tex-
tual. Os textos possuem análises proferidas oralmente por A1, A2 e pela ETA. Na
segunda forma de avaliação, os discentes recebem novamente seus textos com
observações por escrito, cujas marcações estão fundamentadas nos tipos de

163
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

correção classificatória (LALANDE, 1982; SERAFINI, 1995) e na textual-interati-


va (RUIZ, 2013 [2001]), via bilhetes orientadores.

Passamos, na sequência, para as análises das produções discentes.

Análise 1: focalizando os résumés de A1

A produção inicial (PI) de A1 apresenta 82 palavras e as informações ar-


roladas estão dispostas em 18 linhas. A aluna escritora divide seu texto em sete
(7) itens principais, os quais estão contemplados na lista de constatação (BAIN,
SCHNEUWLY, 1993; GONÇALVES, 2007). Sua produção final (PF) é composta de
105 palavras, apresentadas em 21 linhas, mantendo os sete (7) itens elencados
na PI.

As PI e PF de A1 podem ser enquadradas no tipo de résumé cronológico


(WHITCOMB, 2010), em que os tópicos relacionados à educação, habilidades e
certificações são informados após a descrição do item de experiência.

Observemos suas produções nas próximas figuras, as quais estão acompa-


nhadas dos bilhetes interativos no pós-texto. Ressaltamos que, segundo (RUIZ,
2013 [2001]), os bilhetes têm como objetivo dialogar com o aluno, apontando
para inadequações mais relacionadas ao conteúdo do texto e não somente aos
problemas de ordem estrutural.

164
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Gênero Résumé Transcrição da PI de A1


…………………………………………………………..
2235, Sgt Lafayete Street, Ap. 301BL 31
Bacacheri, Curitiba, PR 82515-090
phone (41) 3206 1316 cel (41) 99381188
e-mail: welchpp@gmail.com
Work Experience
06/06 – present Brazilian Air Force
Education
2013 – present Graduate in UTFPR, PR
High School at Colégio Militar de Brasília,
Class of 2002
Language Skills
Read, write and speak portuguese
Read, write and speak spanish
Software Skills
Windows, Word, Excel, Power Point,
Explorer
Other Certificates
Specialist in Air Traffic Control
English for Aviation
Membership
ABCTA
Figura 1. Texto 1: PI do résumé de A1.

Com respeito à planificação textual (CD), A1 apresenta uma disposição


coerente dos itens elencados, cujas partes compreendem suas realizações aca-
dêmicas e profissionais. Desta forma, a construção composicional do résumé está
de acordo com as características pertencentes ao gênero, considerando, primei-
ramente, seus dados pessoais, em que seu nome, endereço, telefones e endereço
eletrônico são focalizados. As informações arroladas se encontram centralizadas
na página do texto, às quais, segundo a orientação do bilhete usado como uma
estratégia corretiva (RUIZ, 2013 [2001]), poderiam ser postadas em diferentes
linhas para melhor visualização do leitor. Na sequência, as outras etapas trazem
sua experiência profissional, a qual não apresenta maiores detalhes sobre suas
atribuições justamente por este gênero ter como característica a descrição de da-
dos em uma única página, em forma de esquematizações (BRONCKART, 2012).

165
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Ainda neste mesmo item, a autora faz uso de dêiticos temporais (06/06 – present)
e espaciais (Brazilian Air Force), com o objetivo de situar o leitor sobre atribuições
finalizadas e outras que se encontram em progresso.
Na sequência, A1 retrata o item educação (do dado mais atual ao menos re-
cente), no qual é possível visualizar parte de seu histórico educacional. Logo após,
A1 focaliza suas habilidades linguísticas e aquelas referentes ao uso do computa-
dor, em que cinco (5) diferentes programas são mencionados. Outro item elenca-
do diz respeito às certificações adicionais, as quais estão diretamente ligadas ao
campo profissional da autora (área da aviação). Por fim, A1 declara fazer parte de
uma associação, cuja sigla não é compreendida pelos participantes do grupo.
Sobre essa e outras questões, vejamos os comentários proferidos pela ETA,
no momento da correção com os pares (FIGUEIREDO, 2001; 2003).

Excerto 01:
38. ETA: I think she had all the main components. Ah: : : Work ex-
perience, education, skills, certificates, memberships, (xxx). The
only thing that I would suggest is just a little bit more detail on
like work experience, to tell exactly what you did. Ah: : but, and
maybe the membership just bright out what ABCTA means. So
just write that out.
39: P: Perfect. <@So she would get a job@>. So this is one part of
the job, of getting the job! @
40. A1: Yeah.
41. ETA: Oh, and one more. On education, ((ETA thinks it is weird
to mention the word Letras only)), about the course you’re in, I
had a hard time trying to translate Letras, apparently Letras,
[…] I think we kind of come up with, I think you should say you
a: : re Majoring in Languages and Literature in English and in
Portuguese. So just kind of describe it a little bit more. […]
42. P. Anything else that you would like to say about yours? ((P
asks A1)) Do you remember what you have written?
43. A1: <@A little bit>@ It was long ago!

A ETA, atuando como par mais competente (VIGOTSKI, 2002), analisa e su-
gere possíveis alterações na PI de A1, trazendo basicamente duas questões à tona.
A primeira diz respeito à dificuldade de encontrar uma explicação para a denomi-
nação do curso de Letras e, por este motivo, solicita que os discentes descrevam o
nome de forma a identificar a área em que poderão atuar quando na finalização de
seu curso. O segundo apontamento é alusivo à sigla mencionada no item afiliação
(em inglês, membership), cujo significado não pode ser aferido.

166
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Com relação à CLD, suas produções não apresentam problemas lexicogra-


maticais ao longo do processo, permanecendo praticamente as mesmas estrutu-
ras nas duas versões, como a menção de seus dados pessoais. A grafia das palavras
(CLD), como vemos na sequência, se refere à correção classificatória (LALANDE,
1982; SERAFINI, 1995), a qual aponta para a questão do uso de letras maiúscu-
las ao mencionar sua proficiência linguística, cuja sugestão de modificação não se
efetiva em sua PF.
A partir dos comentários orais e das correções escritas, vejamos o trabalho
de reescrita na PF de A1.

Gênero Résumé Transcrição da PF de A1


..........................................
2235, Sgt Lafayete Street, Ap. 301BL 31
Bacacheri, Curitiba, PR 82515-090
phone (41) 3206 1316 cel (41) 99381188
email: welchpp@gmail.com

Work Experience
06/06 – present Brazilian Air Force,
specialized in Air
Traffic Control
Education
2013 – present Graduate in UTFPR, PR,
majoring in Literature and Languages in
Portuguese and English
High School at
Colégio Militar de
Brasília, Class of 002
Language Skills
Read, write and speak portuguese
Read, write and speak spanish
Software Skills
Windows, Word, Excel, Power
Point, Explorer
Other Certificates
Specialist in Air Traffic Control
English for Aviation
Membership
Figura 2. Texto 1: PF do résumé de A1.

167
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Como é possível visualizar, há acréscimos que lhe parecem viáveis para tor-
nar seu texto mais rico. No que tange à expansão vocabular (CLD) e ao emprego
das operações linguístico-discursivas (FABRE, 1987; LEITE, 2012; GASPAROTTO;
MENEGASSI, 2013), os acréscimos realizados ocorreram em três diferentes mo-
mentos: primeiramente, temos a adição de um dado com respeito às suas expe-
riências profissionais, em que ao afirmar trabalhar na Força Aérea Brasileira,
A1 aponta sua especialidade dentro desta instituição federal ([...] specialized
in Air Traffic Control); o segundo momento se refere ao curso em progresso na
Universidade que, em resposta aos comentários proferidos pela ETA (frase 41) e
ao uso do bilhete textual-interativo (RUIZ, 2013 [2001]), suscitam de A1 uma mo-
dificação no item educação, para que o leitor tenha a chance de obter informações
adicionais sobre a área de estudo em que a candidata pretende se especializar.

Assim, a graduanda decide trazer dados extras sobre seu curso de gradua-
ção, abrangendo, em seu título, o estudo das Literaturas e das Línguas Portuguesa
e Inglesa (Graduate in UTFPR, PR, majoring in Literature and Languages in Portuguese
and English). O útlimo acréscimo efetuado diz respeito à associação a que perten-
ce, com a explicação da sigla ABCTA (Associação Brasileira de Controle de Tráfego
Aéreo). Temos, assim, três diferentes elementos que são adicionados à sua PI, tor-
nando seu texto mais completo aos olhos do leitor.

Além dos acréscimos descritos, A1 realiza outras alterações além das suge-
ridas, como o uso do dêitico espacial “Curitiba – PR” para situar o leitor sobre a
localidade em que a associação a que pertence tem sua sede de funcionamento.
Suas produções não contemplam elementos que contribuem para a coesão nomi-
nal ou verbal (CLD), justamente pelas informações aparecerem em forma de es-
quematizações (BRONCKART, 2012). Entretanto, fica visível que suas as escolhas
lexicais (Personal Information, Work Experience, Education, Language Skills, Software
Skills, Other Certificates, Membership) estão estritamente relacionadas ao conteú-
do temático (CLD).

Ao finalizar a análise em torno das produções de A1, concluímos que o tra-


balho de reescrita não apresenta grandes modificações, porém, A1 mostra domí-
nio das CL, atenta para as sugestões proferidas e os tópicos profissionais e aca-
dêmicos contemplam os elementos da lista de constatação (BAIN, SCHNEUWLY,
1993; GONÇALVES, 2007).

168
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Análise 2: focalizando os résumés de A3

A PI de A3 apresenta 41 palavras e os dados informados se encontram


dispostos em 11 linhas. Seu texto é composto de quatro partes, descritas em
informações pessoais, experiências acadêmicas, experiência profissional e ha-
bilidades, porém, o terceiro item não aponta para informações específicas. Por
esse motivo, é possível afirmar que sua PI contempla parcialmente os elementos
constituintes da lista de constatação (BAIN, SCHNEUWLY, 1993; GONÇALVES,
2007). Entretanto, sua PF se mostra bem mais completa, contendo 73 palavras,
com a apresentação dos dados em cinco (5) diferentes tópicos.

Com relação ao tipo de résumé utilizado, suas PI e PF podem ser alocadas


no résumé funcional (WHITCOMB, 2010), em que a questão cronológica não é
tida como relevante, havendo maior focalização nos tópicos apresentados (habi-
lidades e experiências). Observamos que suas experiências se voltam, exclusiva-
mente, para a esfera acadêmica, uma vez que A3 ainda não atua como profissional
da área, sendo este item eliminado de sua PF.

Salientamos que as correções ocorridas na PI do aluno são, na sua maioria,


de ordem textual-interativa (RUIZ, 2013 [2001]), em que comentários ao final de
seu texto foram inseridos com o objetivo de orientar o trabalho de reescrita. Em
relação ao item experiência profissional, o símbolo empregado (√) se refere a algo
que não fora descrito no texto, contemplando também a correção classificatória
(LALANDE, 1982; SERAFINI, 1995).

Vejamos a Figura 3 com as intervenções sugeridas em sua PI para, poste-


riormente, acompanharmos as modificações ocorridas em sua versão final.

169
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Gênero Résumé Transcrição da PI de A3


...........................................................
41 9725 8088 kaichisc@outlook.com
Academic Experiences:
- Worked with PFOL (Portuguese for
Foreigners)
- Joined research groups
- Worked with PIBID
Work Experience:
-
Skills
- Software knowledge
- Can speak Japanese fluently
- Can speak English

Figura 3. Texto 1: PI do résumé de A3.

A produção de A3 aponta para a mobilização do conhecimento sobre o


contexto de produção do gênero (CA) e o formato (CD) em que este gênero deve
estar disposto, cujas informações devem aparecer em forma de esquematizações
(BRONCKART, 2012), enumerando as diferentes seções que o compõem. A única
ressalva a ser feita está na disposição dos dados pessoais do aluno, a qual merece
reformulações. Apesar de ser um texto curto, este não possui inadequações orto-
gráficas, sintáticas, de pontuação, ou de paragrafação, mostrando que A3 tem do-
mínio das operações que cooperam para as formas de organização composicional
(CD). No entanto, atentamos para a informação sobre o seu endereço eletrônico
que, ao olhos do recrutador, este seria melhor visualizado se estivesse localizado
na linha seguinte, logo abaixo de seu número de telefone, se referindo à operação
linguístico-discursiva deslocamento (FABRE, 1987; LEITE, 2012; GASPAROTTO;
MENEGASSI, 2013).

Vejamos, assim, as alterações ocorridas em sua PF.

170
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Gênero Résumé Transcrição da PF de A3


..............................................
DR Pedrosa 264, Centro, Curitiba
41 9725 8088
kaichisc@outlook.com
Education Universidade
Tecnológica Federal do Paraná
04/14 – present Double-Major in
Languages. Degree expected 2018
Software Skills
Windows, Excel, Word, Photoshop
Language Skills
Japanese – Read: well
Speak: well
Write: not very well
English – Read: well
Speak: well
Write: well
Academic Experience:
- Volunteer: PFOL (Portuguese for
Foreigners)
Teaching and researching
- Scholarship: PIBID (Programa de Iniciação
a Docência)
Teaching and researching
Figura 4. Texto 1: PF do résumé de A3.

No conteúdo descrito em sua PI, as escolhas lexicais estão coerentes (CLD)


com a temática acadêmica. Entretanto, ao visualizarmos seus dados acadêmicos,
sua PI não referencia o curso de graduação do qual faz parte, item este que se tor-
na fundamental no momento em que o leitor recrutador busca relacionar as expe-
riências realizadas pelo candidato com sua formação acadêmica. Ao ser alertado
sobre isso, A3 atenta para essa questão fulcral e acrescenta, em sua PF, o item
educação, em que traz o nome da Instituição a que pertence (UTFPR), apontan-
do o nome do curso (Double-Major in Languages), o dêitico temporal que sinaliza o
momento em que inicia seu curso de graduação (04/14 – present), e, por fim, sua

171
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

expectativa de finalização (Degree expected 2018), perfazendo um total de cinco


(5) acréscimos neste item.

A despeito de suas experiências acadêmicas, sua PI está de acordo com as


características linguístico-discursivas (CLD) elencadas no MDG, em que se confir-
ma a ausência de anáforas nominais e pronominais e o uso do pretérito imperfeito
do indicativo para listar ações realizadas (worked, joined), visualizadas em seu tra-
balho com alunos do curso de Português para Estrangeiros (PFOL), com o projeto
PIBID e em sua participação em grupos de pesquisa (Joined research groups). Ao
retomar tais informações em sua PF, o graduando desloca esta informação para
o final de seu texto e adiciona outros dois dados: A3 qualifica sua participação no
PFOL como um trabalho voluntário (Volunteer: PFOL (Portuguese for Foreigners) e
atenta para sua atuação no PIBID enquanto um aluno que recebe uma bolsa de
estudos, para desenvolver atividades relativas à docência (Scholarship [...]). Nota-
se, aqui, que os verbos no pretérito perfeito utilizados em sua PI são substituídos
pelos verbos ensinar e pesquisar (Teaching and researching), referentes às suas ati-
vidades nos referidos projetos.

A questão das habilidades também é focalizada, uma vez que esta infor-
mação parece ser compulsória na maioria dos textos de referência analisados.
Isto posto, visualizamos que tanto sua PI quanto sua PF abordam essa questão
essencial para o gênero em estudo. Em decorrência da intervenção realizada por
meio do bilhete interativo (RUIZ, 2013 [2001]), o qual orienta o aluno sobre mo-
dificações necessárias para que o texto apresente as características de um résumé,
o discente decide realocar tais informações em dois grupos distintos. O primeiro é
alusivo às suas habilidades com o computador, em que sinaliza ter conhecimento
sobre alguns dos programas mais utilizados (Windows, Excel, Word, Photoshop). O
segundo se refere à proficiência linguística, em que, além de citar as línguas es-
trangeiras (japonês e inglês) com as quais consegue se comunicar, A3 destaca seu
grau de proficiência (well, not very well) em termos de compreensão oral e produ-
ção oral e escrita. Sobre esta questão, temos a supressão do advérbio de modo
fluently de sua PI, mas o acréscimo de outras informações a sua PF, como a adição
dos verbos ler, falar e escrever (read, speak, write) para ambas as línguas.

A PF de A3 parece evidenciar a expansão da ZDP apontada por Vigotski


(2002), fato este que pode ser observado no número de modificações conside-
radas em seu texto. Ressaltamos que, a partir das discussões ocorridas no grupo,
além das leituras realizadas, da construção coletiva da lista de constatação e da

172
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

escrita dos bilhetes interativos, estes instrumentos oportunizaram um aumento


de informações em sua versão final, fato este que proporciona ao leitor uma visão
mais ampla sobre seu histórico dentro da academia.

A análise das produções de A1 e A3 nos permite afirmar que, as produções


dos alunos em torno do GP résumé foram aprimoradas e os elementos que cons-
tituem a lista de constatação (BAIN; SCHNEUWLY, 1993; GONÇALVES, 2007)
foram quase todos contemplados. As exceções estão na ausência dos itens pu-
blicações e participações em eventos, muito provavelmente porque os graduandos
se encontram no início de sua caminhada acadêmica. Com respeito aos demais
elementos (qualificações/educação, experiência profissional e informações adi-
cionais), estes deixam de ser mencionados na PI de A3, mas, são marcas de acrés-
cimos em sua PF, após as sugestões e apontamentos realizados em seu texto e,
também, em razão das discussões em sala de aula.

Verificamos que os discentes não apresentaram dificuldades em torno da


elaboração do GP, seja na descrição do conteúdo temático, seja no layout apre-
sentado (CD) em forma de tópicos (BRONCKART, 2012). O texto curto, em que
os dados são postados em itens e subitens, dentro de uma padronização estabe-
lecida nos textos analisados pelo grupo, evidencia que os alunos compreenderam
o contexto de produção do gênero (CA e CS) e contemplaram seus elementos e
principais características (CD e CLD).

O trabalho de refacção textual se refere, em sua maioria, à estrutura com-


posicional do gênero. Observamos que a reestruturação textual se dá, em grande
parte, por meio de acréscimos, supressões e substituições de elementos. Como
exemplos de acréscimos, temos os itens Education, Language Skills e Academic
Experience no texto de A3. Tais modificações trazem consigo uma expansão de vo-
cabulário, como o uso de advérbios (well; not very well) e do uso de dêiticos tempo-
rais (2013-present; April 2014), além de outras informações que enriquecem suas
produções.

As operações de supressão e substituição se voltam em termos dos tópi-


cos arrolados e de palavras inadequadas na composição do GP, como as formas
verbais do pretérito perfeito (worked, joined) para os verbos no presente do modo
indicativo (read, write, speak) e no infinitivo (to teach, to work), apontando para seus
objetivos futuros, reforçando as características do GP que se encontram descri-
tas no MDG (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004).

173
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Os apontamentos direcionados à reestruturação textual realizados por


meio de bilhetes interativos (RUIZ, 2013 [2001]), ou proferidos oralmente pelos
participantes, atuando como mediadores, ou pares mais competentes (VIGOTSKI,
2002) no processo aprendizagem do GP, faz com que os discentes retomem seus
textos e realizem modificações necessárias. Este movimento do aluno em voltar
ao seu texto, calcado em muitas leituras e nas inserções do outro, vem ao encon-
tro das asserções proferidas por Dolz, Gagnon e Decândio (2010), os quais asse-
veram que as diferentes formas de intervenção proporcionam o aprimoramento
textual. Além disso, concebendo a escrita como o resultado das trocas sociais em
um processo de internalização (VIGOTSKI, 2002), em que aspectos contextuais,
discursivos e linguístico-discursivos do GP são discutidos, podemos afirmar que
os textos produzidos estão bem escritos e contemplam a lista de constatação do
GP.

Finalizando nossos apontamentos sobre a análise das produções discentes,


salientamos que A1 e A3 entenderam o propósito comunicativo do résumé, consi-
deraram seu contexto de produção, seus interlocutores, manifestaram as marcas
organizacionais e as características principais do gênero.

Considerações finais

Neste estudo, apresentamos o gênero résumé que se mostra relevante para


as discussões em língua inglesa e desperta um grande potencial para as produções
escritas. De cunho profissional, o GP aqui focalizado deixa de pertencer a um con-
texto social e é trazido para o cenário acadêmico a partir das necessidades dos
graduandos, havendo um processo de transposição didática.

Para tanto, ressaltamos a relevância da construção de modelos didáticos


de gêneros, uma vez que facilitam e dinamizam o trabalho do professor, tornan-
do-o conhecedor das dimensões contextuais em que o gênero circula, além de
suas características textuais-discursivas, cujos elementos se mostram essenciais
no momento da escrita e reescrita textual. Juntamente à modelização didática, a
lista de constatação vem complementar as marcas organizacionais do gênero em
estudo, facilitando o processo de refacção por parte dos discentes.

No que tange às correções orais e escritas, a forma de intervenção via bilhe-


tes interativos (RUIZ, 2013 [2001]) se torna o modo de correção mais viável, princi-
palmente porque os discentes têm a oportunidade de olhar para suas produções

174
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de maneira analítica e reflexiva. Ao demonstrar compreensão frente às solicita-


ções do professor, agindo como mediador no processo de reescrita (VIGOTSKI,
2002), eles podem revisar seus textos e realizar as devidas alterações com vistas
ao aprimoramento textual. Há, portanto, dialogicidade entre os participantes do
estudo e maior autonomia do aluno sobre as alterações realizadas em sua rees-
crita. Sobre a correção com os pares, esta aponta para um forte dialogismo entre
professores e alunos a partir das reflexões em torno dos aspectos contextuais,
linguístico-discursivos e discursivos que compõem os diferentes gêneros presen-
tes nas esferas sociais.

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176
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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177
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

TOTAL PHYSICAL RESPONSE E OS


FILTROS AFETIVOS NO ENSINO DE
LÍNGUA INGLESA PARA CRIANÇAS

Carolina Batista Molina1

RESUMO: A motricidade é inerente ao ser humano e o acompanha desde a sua


concepção, sendo necessária para o desenvolvimento de várias habilidades, ten-
do em vista que o aprendizado é resultado da relação entre corpo e meio. Sendo
assim, os movimentos corporais também podem ser benéficos para o ensino e
aprendizagem de língua inglesa, uma vez que usados como recursos possíveis para
a aprendizagem tem poder transformador quanto à atmosfera de sala de aula. O
Total Physical Response (TPR) é um método naturalista de ensino-aprendizagem da
Língua Inglesa, criado por James Asher, que tem por base a junção do aprendizado
de línguas aos movimentos corporais. Asher (2012) compara a aquisição de uma
língua estrangeira à aquisição da língua materna ao afirmar que a criança escu-
ta por muito tempo antes de desenvolver a fala. Por meio dos movimentos, ele
defende a aquisição da língua estrangeira não apenas pelo hemisfério cerebral
esquerdo, mas também pelo direito. O estudo aqui apresentado foi desenvolvido
com base em leitura e análise da bibliografia acerca do TPR, do desenvolvimento
infantil e da neurolinguística. Para testar seus benefícios e eficiência, uma prática
intervencionista foi conduzida na cidade de Assis Chateaubriand, interior do es-
tado do Paraná, em 2019, para crianças de seis e sete anos de idade. Os resultados
mostraram que o TPR é um grande aliado na redução do filtro afetivo, pois é capaz

1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) – Pato Branco. carolbmolina@gmail.com

178
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de produzir um ambiente amenizador de níveis de estresse, além de atuar no cam-


po motivacional dos alunos.

PALAVRAS-CHAVE: Resposta Física Total; Motricidade; Filtros afetivos.

ABSTRACT: Motor skills are inherent to the human being and attached to it since its bir-
th, and they are necessary to the development of many abilities, considering that lear-
ning is the result of the relationship between body and environment. Therefore, body
movements can also be beneficial for teaching and learning the English language, since
they are used as possible resources for learning, having the power of transforming the
classroom atmosphere. Total Physical Response (TPR) is a natural method of teaching
and learning the English language, created by James Asher, which is based on the com-
bination of language learning with body movements. Asher (2012) compares the acqui-
sition of a foreign language to the acquisition of the mother tongue by stating that the
child listens for a long time before developing speech. Through motion, he advocates the
acquisition of the foreign language not only by the left cerebral hemisphere, but also by
the right one. The study presented here was based on reading and analysis of the litera-
ture on TPR, child development, and neurolinguistics. To test its benefits and efficiency,
an interventionist practice was conducted in the city of Assis Chateaubriand, Paraná,
in 2019, for children aged six and seven. The results showed that TPR is a great ally in
the reduction of the affective filter because it can produce an environment that relieves
stress levels, besides acting in the motivational aspects of the students.

KEYWORDS: Total Physical Response; Motor skills; Affective filters.

Introdução

O foco deste trabalho está no estudo do método de ensino conhecido como


Total Physical Response (TPR) (ASHER, 2012) no ensino de Língua Inglesa para
crianças, método que ativa o filtro afetivo e torna a aprendizagem mais humanis-
ta. Ao tratarmos de abordagens e métodos, podemos nos atentar que “a tarefa da
metodologia é melhorar o processo do ensino de inglês, empoderando e facilitan-
do o trabalho do professor” (TAMURA, 2006, p. 169), muito embora Asher (2012)
afirme não gostar que o TPR seja chamado de método de ensino, pois acredita que
ensinar é uma arte e não uma ciência.

No próximo tópico, tratarei das vantagens de se aprender uma língua es-


trangeira ainda na infância e como isso pode ajudar na vida adulta. Então, vamos

179
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

adentrar o mundo do TPR, seus conceitos e explanações e as diferenças entre a


aquisição e aprendizagem de uma língua estrangeira, ou segunda língua.

Minha investigação parte do pressuposto de que a aplicação do método


TPR traz benefícios aos aprendizes de língua estrangeira, desde que fixa memó-
rias de aprendizado de maneira natural e proporciona um ambiente descontraído
e livre de estresse para a criança. Por “natural”, me refiro ao caso de as crianças
adquirirem linguagem através da língua falada e da demonstração de movimen-
tos. Wallon (1971) explica que não há aprendizado de forma separada do ser hu-
mano, e sim uma completude no seu desenvolvimento cognitivo e emocional, e
isso acarreta as aquisições motoras.

A partir dos estudos de Asher (2012), considerando o ambiente que o TPR


proporciona em sala de aula, o possível filtro afetivo que ele reduz, como também
a facilidade em combiná-lo com outros métodos, tenho como objetivos deste es-
tudo explorar o método de ensino conhecido como Total Physical Response (TPR)
no ensino de Língua Inglesa para crianças, bem como investigar os benefícios tra-
zidos pelo TPRnas aulas de língua inglesa para um grupo de crianças do segundo
ano do Ensino Fundamental, entre seis e sete anos, numa escola privada no muni-
cípio de Assis Chateaubriand - PR, ao longo de duas aulas de 50 minutos.

Tais objetivos partem da ideia dos problemas de desenvolvimento do co-


nhecimento da língua estrangeira pelos alunos de escolas envoltas nos métodos
tradicionais de ensino. Brown (1994) nos respalda, afirmando que não podemos
nos prender ao ensino de gramática, regras e repetições com as crianças, pois eles
ainda não possuem a maturidade cognitiva para a aprendizagem de normas e con-
ceitos abstratos. Asher (2012) diz que a escola é pobre em aquisição de lingua-
gem para alunos não falantes de uma segunda língua, pois a conduta tradicional
do professor seria mais explicativa. As frases utilizadas acabam sendo vazias de
informações para o aluno.

Para análise, os resultados serão comparados à literatura referente ao TPR,


concentrando-se em artigos e livros publicados sobre o tema, incluindo o livro de
James Asher, Learning Another Language Through Actions2 (2012), e demais estudos
onde encontram-se os princípios e teorias acerca do método.

O TPR é considerado um método natural. A abordagem natural originou-se


dos estudos de Stephen Krashen e Tracy Terrell (1983)3 e defende que a comu-
2 Aprendendo Outra Língua Através de Ações (2012).
3 Estudos publicados em The Natural Approach (1983).

180
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

nicação é a principal função da língua, e a forma não é tão importante quanto o


significado. A seguir, darei início ao próximo tópico.

Ensino de inglês para crianças

Rocha (2007) acredita que a criança tenha mais facilidade para aprender
uma língua estrangeira, o que, segundo a autora, fez aumentar a procura de cur-
sos de Língua Inglesa para crianças, afinal, os pais estão preocupados em preparar
seus filhos para o mercado de trabalho, cada vez mais concorrido, e por isso inves-
tem em cursos de idiomas e educação bilíngue.

A principal diferença no ensino de uma língua estrangeira entre adul-


tos e crianças, é que as crianças são “aprendizes mais entusiasmados e vívidos”
(CAMERON, 2001, p.1). Segundo Asher, a criança já possui o mecanismo neces-
sário ao aprendizado de idiomas, tanto da língua materna como para uma segun-
da língua, no momento do nascimento. Tal afirmação coincide com o que nos diz
Noam Chomsky, de que a criança traz consigo um dispositivo de aquisição de lin-
guagem (DAL) que é ativado e trabalha a partir de sentenças (input) e gera como
resultado a gramática da língua à qual a criança está exposta (SANTOS, 2004).
Chomsky sustenta:

Dizemos que a criança “aprende uma língua”, e não que a lingua-


gem se desenvolve ou amadurece. Mas, nunca dizemos que o
embrião ou a criança aprende a ter braços em vez de asas, ou um
aparelho visual determinado, ou órgãos sexuais maduros – este
último exemplo representa um desenvolvimento que considera-
mos ser geneticamente determinado no que tem de essencial,
embora só ocorra depois do nascimento. (CHOMSKY, 1981, p.
177).

Além disso, a falta de medo de cometer erros e a desinibição na hora de


falar a língua estudada contribuem para que a pronúncia da criança seja muito
parecida com falantes, que têm o Inglês, como primeira língua (CAMERON, 2001).
Tal qual Rubin e Thompson (2001, p. 22), “[...] o erro faz parte desse processo, o im-
portante é que o aluno necessita dar forma a essas aproximações, porém também
deve manter-se alerta para modificá-las ao cometer erros.” Em concordância com
tal afirmação, Asher (2012, p.33) diz que a “puberdade parece ser o fator biológi-
co para a pronúncia”. Ele afirma que quanto mais cedo se começa a estudar uma

181
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

língua estrangeira, mais facilidade o aluno terá ao falar, garantindo assim maior
fidelidade à pronúncia.

Segundo pesquisas da neurociência, os primeiros dez anos de vida são


ideais para o estudo da língua, pois é nesse período que o cérebro, ainda em for-
mação, apresenta maior plasticidade (PENFIELD; ROBERTS, 1967), condição que
muda após a puberdade, tendo em vista que na adolescência as conexões neurais
são invertidas. Ainda sobre isso, Magaly Ferrari sugere que:

Há um período específico e limitado para a aquisição da lingua-


gem, e que há duas versões para essa abordagem, A primeira
assume postura radical frente ao problema: após a puberdade,
a aprendizagem da língua materna não poderá ocorrer. A outra
versão propõe que a aprendizagem será mais difícil de acontecer
ou ocorrerá de maneira incompleta após a puberdade. (FERRARI,
2002, p. 111).

Schütz (2011) explora a diferença entre aquisição e aprendizagem de lín-


gua estrangeira. Ele afirma que a aprendizagem é o estudo formal de uma língua,
o estudo de suas regras e estruturas gramaticais, ao passo que a aquisição é como
a assimilação natural e intuitiva do idioma, semelhante à assimilação da língua
materna.Ele concorda que quanto menor a idade, a aquisição acontece de manei-
ra mais fácil. Já o grau de eficácia da aprendizagem seria maior nos alunos mais
velhos. A explicação para esse fator vem pelo motivo que na infância não exis-
te a compreensão de conceitos abstratos, aspecto que faz com os adultos levem
vantagem, tendo em vista que as explicações gramaticais e outras estruturas da
língua se encaixam nessa nuance (ASHER, 2007).

É necessário ter em mente que quando ensinamos crianças devemos ir


além do ensino de gramática, pois ainda falta a maturidade para que os alunos li-
dem com conceitos abstratos (BROWN, 1994). Apesar de a abstração poder fazer
parte do mundo de imaginação infantil, é o adulto que tende a poder lidar mais
com conceitos abstratos. Cameron (2001) afirma sobre a necessidade de que o
ensino de línguas na fase infantil ancore palavras e objetos. As crianças preci-
sariam de um “vocabulário muito concreto que se conecta com objetos que elas
podem tocar ou ver4” (CAMERON, 2001, p.81), e é então que o TPR apresenta um
papel importante e começa a ascender.
4 No original, encontra-se: “Five year olds learning a foreign language need very concrete vocabulary
that connects with objects they can handle or see, whereas older learners can cope with words and
topics that are more abstract and remote from their immediate experience”.

182
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Total physical response (TPR)

Como já citado acima, o Total Physical Response (TPR) é um método natura-


lista e surgiu dos estudos do professor James Asher (1977). Conforme Richards &
Rodgers (2001, p.73), o TPR baseia-se em diversos elementos, como por exemplo
a psicologia do desenvolvimento, teoria de aprendizagem e pedagogia humanis-
ta, assim como nos procedimentos para ensino de línguas propostos por Harold
e Dorothy Palmer em 1925. Neste método, a língua estrangeira é ensinada de
maneira semelhante ao modo em que aprendemos nossa primeira língua, como
por exemplo, dando significado ao som que ouvimos e observando a linguagem
corporal dos nossos pais. No TPR, a fluidez do aprendizado infantil oriunda dos
pais pode permanecer na vida das crianças. Como afirma Richard Frost, em artigo
para o portal British Council5:

Os pais têm conversas com os filhos através da linguagem corpo-


ral, o pai dá a instrução e a criança responde fisicamente a isso.
O pai diz, ‘olha para a mamãe’ ou ‘me dá a bola’ e a criança assim
o faz. Tais conversas continuam por muitos meses antes da crian-
ça começar de fato a verbalizá-la. Mesmo que não consiga falar
durante este período, ela está absorvendo toda a linguagem;
seus sons e padrões. Por fim, quando decodificá-la o suficiente,
a criança irá reproduzir a linguagem de maneira espontânea. O
TPR faz uma tentativa de espelhar esse efeito na linguagem em
sala de aula. (BRITISH COUNCIL, S/P, 2004, Tradução nossa).

Em outras palavras, o TPR é um método de ensino de língua estrangeira


que coordena fala e ações, integrando linguagem à motricidade. Asher (2012)
explica que antes mesmo de conseguir reproduzir a fala a criança desenvolve a
percepção auditiva, eles compreendem a linguagem, mas ainda não conseguem
produzi-la espontaneamente. Então, ao precisar responder fisicamente aos co-
mandos dados, a habilidade de compreender o que ouvem é adquirida. Assim, ao
estabelecer-se uma base na compreensão auditiva, a fala desenvolve-se natural-
mente e sem esforços. Portanto, o ensino e aprendizagem de uma segunda língua
pode também seguir esses passos.

5 No original, encontra-se: Parents have ‘language-body conversations’ with their children, the parent
instructs and the child physically responds to this. The parent says, “Look at mummy” or “Give me the
ball” and the child does so. These conversations continue for many months before the child actually
starts to speak itself. Even though it can’t speak during this time, the child is taking in all of the language;
the sounds and the patterns. Eventually when it has decoded enough, the child reproduces the language
quite spontaneously. TPR attempts to mirror this effect in the language classroom.

183
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Tal constatação está de acordo com o que nos certificam Krashen e Terrell
(1983, p.1): “Nós aprendemos a língua quando obtemos input compreensível,
quando nós entendemos o que nós ouvimos ou lemos em outra língua. Isso sig-
nifica que a aquisição é baseada primeiramente no que ouvimos e entendemos,
não no que dizemos”6. Segundo Krashen (1985), é o input compreensível, e não a
produção da fala, a chave para a aquisição da linguagem.

Asher (2012) entende que a língua é formada de abstrações e não abstra-


ções, sendo que os maiores exemplos de não abstrações são os substantivos con-
cretos7 e os verbos imperativos. A propósito, a principal característica do TPR é o
uso dos imperativos, que servem para evidenciar as ações ditadas pelo professor.
O aluno assume o papel principal na sua aprendizagem, pois ao performar os co-
mandos, torna-se o ouvinte e o executante da língua. Ao utilizar o imperativo, o
aprendiz compreende a segunda língua mais rapidamente do que a criança que
adquire a língua materna, já que o repertório de respostas da segunda se limita
a comportamentos básicos (ASHER, 2012). Ainda, Asher (2012) recomenda que
enquanto os alunos não tiverem internalizado as cognições da língua, as abstra-
ções sejam adiadas, tendo em vista que elas não são necessariamente imprescin-
díveis para que o idioma tenha a sua estrutura gramatical decifrada. Embora o uso
dos imperativos seja a maneira mais fácil de se trabalhar com o TPR, é possível
transitar a partir dele para vocabulário e o ensino de estruturas gramaticais.

O papel do professor no TPR é ativo e direto, pois é ele quem decide o que
ensinar e dá os comandos. Mais do que ensinar, segundo Asher, o professor provi-
dencia oportunidades para que o aprendizado aconteça. Organização e uma boa
preparação são indispensáveis, uma vez que também é o professor que apronta
os materiais a serem utilizados durante a lição. Fusari (1990) é claro ao discorrer
sobre o planejamento, que é uma prática essencial para a sala de aula. Ele pontua:

O preparo das aulas é uma das atividades mais importantes do


trabalho do profissional de educação escolar. Nada substitui a
tarefa de preparação da aula em si. [...] faz parte da competência
técnica do professor, e dos compromissos com a democratização

6 No original, encontra-se: We acquire language when we obtain comprehensible input, when we un-
derstand what we hear or read in another language. This means that acquisition is based primarily on
what we hear and understand, not what we say.
7 Substantivos concretos são as palavras que usamos para denominar o que tem existência pró-
pria e não depende de outras coisas para existir, como por exemplo as pessoas, os animais, luga-
res, objetos, comida, etc.

184
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

do ensino, a tarefa cotidiana de preparar suas aulas [...]. (FUSARI,


1990, p. 47).

Os materiais escolhidos devem complementar e consolidar os comandos.


Ao dar feedback aos alunos, o professor não deve fazer muitas correções nos es-
tágios iniciais da aprendizagem. Alguns erros são toleráveis e o excesso de cor-
reção pode inibir o aluno, “Quando a fala aparecer não será perfeita. Haverá dis-
torções, mas gradualmente a pronúncia e a gramática se moldam na direção do
falante nativo 8” (ASHER, 2012, p. 68-69).

De acordo com Garcia (2001), o TPR utiliza o lado direito do cérebro, fator
que elimina a tradução da palavra para a língua materna. O lado direito é mais
tolerante à compreensão e consequentemente, a aquisição da segunda língua tor-
na-se menos cansativa.

TPR e os hemisférios cerebrais

Sabemos que segundo uma parcela de pesquisadores da linguagem, há di-


ferenças entre aprendizagem e aquisição de uma língua estrangeira. Tal afirmação
está de acordo com o que aponta Krashen (1981), que além de explanar a dife-
rença entre as duas, ainda declara que o estudo formal, ou seja, a aprendizagem,
serve de apoio para inspecionar a fala. No entanto, ainda que evidente, a diferen-
ça entre os dois processos não é de explicação tão simples, segundo o que nos diz
Corder (1967)9:

[…] a aprendizagem da língua materna é inevitável, ao passo que,


lamentavelmente, sabemos que não há tal inevitabilidade na
aprendizagem de uma segunda língua; o aprendizado da língua
materna faz parte de todo o processo maturacional da criança,
enquanto o aprendizado de uma segunda língua começa normal-
mente após a maturação estar amplamente completa; a criança
começa sem comportamento de linguagem evidente, embora tal

8 No original, encontra-se: When talk appears it will not be perfect. There will be many distortions, but
gradually pronunciation and grammar will shape itself in the direction of the native speaker.
9 No original, encontra-se: […] the learning of the mother-tongue is inevitable, whereas, alas, we all
know that there is no such inevitability about the learning of a second language; that the learning of the
mother-tongue is part of the whole maturational process of the child, whilst learning a second language
normally begins only after the maturational process is largely complete; that the infant starts with no
overt language behaviour, while in the case of the second language learner such behaviour, of course,
exists ; that the motivation (if we can properly use the term in the context) for learning a first language
is quite different from that for learning a second language.

185
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

comportamento certamente exista no aprendiz de uma segunda


língua, no caso; a motivação (se pudermos usar o termo apropria-
damente dentro do contexto) para aprender a primeira língua é
um tanto quanto diferente da motivação para aprender a segun-
da língua. (CORDER, 1967, p. 163).

Santos Gargallo (2010) afirma que a aprendizagem de uma língua é cons-


ciente, mas a aquisição é inconsciente. A aquisição é espontânea e acontece devi-
do à exposição natural à uma língua para fins comunicativos e sem prestar muita
atenção a forma, na mesma proporção que a aprendizagem acontece por inter-
médio de explicações formais sobre a estrutura da língua, tal qual um sistema.
Krashen, apud Schütz (2011, s/p.) afirma10 que: “A aquisição requer interação sig-
nificativa na língua alvo, comunicação natural, na qual os falantes não estão preo-
cupados com a forma das suas elocuções, mas sim com a mensagem que estão
transmitindo e compreendendo”.

É justo alegar que, de alguma maneira, todas as regiões cerebrais estão en-
volvidas na linguagem. Há uma concordância ao afirmar que ambos os hemisfé-
rios cerebrais, direito e esquerdo, atuam em conjunto na aquisição de linguagem
(SACKS, 2010). Para entendermos como os hemisférios trabalham, devemos ter
em mente que o hemisfério direito controla o lado esquerdo e o hemisfério es-
querdo controla o lado direito. De acordo com Warpechowski (s/a), o hemisfério
direito recebe e lida com o novo conhecimento e, então, o repassa para o lado
esquerdo, que tem a função de efetivá-lo permanentemente.

Antunes (2002) diz que cada hemisfério percebe e trabalha os estímulos


recebidos de maneira distinta. Apesar disso, os dois lados trabalham em conjunto,
mesmo cada um tendo incumbências diferentes. Conforme Krashen (1981), os la-
dos cerebrais usam modos cognitivos dissemelhantes. Um dos lados é proposicio-
nal e o outro aposicional. O que permite que os dois lados operem juntos é o corpo
caloso, um agrupamento de fibras que conecta um lado ao outro. O corpo caloso
nos dá a ilusão de termos uma só mente (KRASHEN, 1981, p. 71).

Enquanto a maior parte dos métodos são direcionados para o hemisfério


esquerdo do cérebro (RICHARDS; Richards & Rodgers (2001), RODGERS, 2001),
Asher (2012) defende que a melhor maneira para iniciar a aquisição da língua
estrangeira é usar o hemisfério direito. Para ele, é necessário que as atividades

10 No original, encontra-se: Acquisition requires meaningful interaction in the target language – natural
communication – in which speakers are concerned not with the form of their utterances but with the
messages they are conveying and understanding.

186
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

do hemisfério direito ocorram primeiro para que, então, o lado esquerdo consiga
processá-las e produzir a linguagem. Asher explica11:

O hemisfério direito é mudo, mas consegue se expressar ouvindo


o comando na língua alvo e então realizando a ação apropriada.
O hemisfério esquerdo consegue se expressar na fala. O esquer-
do é verbal, ao mesmo tempo que o direito é não-verbal, o que
significa que ele pode se comunicar pelo comportamento físico,
tal como apontar, tocar, desenhar, cantar, gesticular e fazer mími-
ca. (ASHER, 2012, p. 22-24).

Dando continuidade ao assunto, Asher (2012) menciona que o lado direito


sabe de coisas que o esquerdo desconhece. De acordo com ele, estudos compro-
vam que as pessoas usam gestos para expressar palavras com conotação espa-
cial. Tais movimentos nada mais são que uma tentativa do hemisfério direito de
transmitir informação para o hemisfério esquerdo (ASHER, 2012, p. 3-79). Ele
prossegue12:

Donna Frick-Horbury no American Journal of Psychology desco-


briu que quando voluntários seguravam uma barra para que suas
mãos se mantivessem paradas e ouviram a definição da palavra
“ábaco”, levaram mais tempo para pensar na palavra do que quan-
do conseguiam mover suas mãos livremente. Frequentemente,
quando suas mãos estavam paradas, eles falharam ao pensar na
palavra. (BEGLEY, apud ASHER, 2012, p. 3.78 – 3.79.).

O desenvolvimento maturacional do sistema nervoso está atrelado às “ja-


nelas”, que são uma espécie de prazo biológico para que aprendamos a desem-
penhar determinadas tarefas. Após esse tempo, esse aprendizado já não aconte-
ceria. Contudo, sabe-se hoje que o cérebro tem um nível alto de plasticidade e
embora tais “janelas” tenham se fechado, o aprendizado ainda é possível, mesmo

11 No original, encontra-se: The right hemisphere is mute but can express itself by listening to a com-
mand in the target language, and then performing the appropriate action. The left hemisphere can ex-
press itself by talking. The left is verbal while the right is non verbal which means it can communicate
through physical behavior such as pointing, touching, drawing, singing, gesturing, and pantomime.
12 No original, encontra-se: Donna Frick-Horbury in the American Journal of Psychology discovered
that when volunteers held onto a bar to keep their hands still and listened to the definition of the word
“abacus”, they took longer to think up the word than when they could move their hands freely. Often,
when their hands were still, they failed to think of the word.

187
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que com mais dificuldade (WARPECHOWSKI, s/a). Sobre o assunto, Krashen


resume13:

A afirmação de Lenneberg de que a lateralização já está com-


pleta na puberdade e de que é a base neurológica para um pe-
ríodo crítico na aquisição de língua, e, portanto, a responsável
pelas diferenças na aquisição da segunda língua entre crianças e
adultos, não está descartada por completo. Há hoje, entretanto,
evidências consideráveis que sugerem que muito do desenvolvi-
mento da dominância cerebral, pode estar completa muito antes
e podem ter pouco ou nada a ver com o período crítico. Além do
mais, existem outras “explicações” possíveis para o período críti-
co. (KRASHEN, 1981, p. 77).

Asher refere-se também à importância da redução de estresse durante o


processo de aquisição de uma língua. Podemos tranquilamente associar esse fa-
tor ao que chamamos de filtro afetivo na educação. Menciono brevemente este
assunto no próximo tópico.

TPR e os filtros afetivos

Devemos considerar que alguns fatores psicológicos, tais como medo, an-
siedade e frustração, podem influenciar imensamente no processo de aquisição
de uma língua. Segundo Stevick (1980), o sucesso da aprendizagem da língua
estrangeira depende mais dos sentimentos que o aluno tem em relação a aquele
conteúdo, do que dos métodos e técnicas utilizados. A afirmação vai de acordo
com o que diz Perrenoud (2000):

Cada um vivencia a aula em função de seu humor e de sua dispo-


nibilidade do que ouve e compreende, conforme seus recursos
intelectuais, sua capacidade de concentração, o que interessa,
faz sentido para ele, relaciona-se com outros saberes ou com
realidades que lhe são familiares ou que consegue imaginar.
(PERRENOUD, 2000, p. 24).

13 No original, encontra-se: To summarize to this point: Lenneberg’s claim that lateralization was com-
plete by puberty and is the neurological basis for the critical period for language acquisition and thus
responsible for child-adult differences in second language acquisition is not entirely ruled out. There
is, however, considerable evidence today that implies that much of the development of cerebral dom-
inance may be complete much earlier and may have little or nothing to do with the critical period.
Moreover, there are other possible “explanations” for the critical period.

188
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A importância da afetividade vem ganhando cada vez mais força no âmbito


da educação. Krashen (1981) menciona tal hipótese, que fala sobre a influência
que os fatores externos têm na aquisição da língua. “Dulay e Burt (1977) sugerem
que o “filtro afetivo” possa existir, um filtro que delimita o input antes que ele pos-
sa ser processado pela “organização cognitiva’” (KRASHEN, 1981, p. 109 – 110)
14
. Quanto mais alto o filtro afetivo é, mais complicado torna-se o input. Em outras
palavras, fatores como a motivação e a atitude podem excluir certos aspectos do
input, mesmo que tudo tenha corrido de forma correta. Krashen (1981), menciona
também o papel fundamental que o professor tem na sala de aula. O professor
como interventor do aprendizado, tem o poder de quebrar as barreiras como o
medo e a ansiedade e promover um ambiente em que a criança se sinta mais se-
gura na hora de aprender.

Richards e Rodgers (2001), asseguram que Asher se preocupa com o papel


que os fatores emocionais desempenham no aprendizado de uma língua. Existe
uma redução de estresse no método, pois ele não é exigente em termos de pro-
dução linguística e envolve movimentos físicos que fazem com que o momento da
aprendizagem seja descontraído. A abordagem livre de estresse que o TPR traz
é baseada na premissa de que existe um diagrama biológico na aquisição da lín-
gua. Tais fatores facilitam o aprendizado, pois criam uma atmosfera positiva. Eles
continuam15:

Uma condição importante para que o aprendizado de línguas seja


bem sucedido é a ausência de estresse. De acordo com Asher, a
aquisição da primeira língua acontece em um ambiente livre de
estresse, ao passo que o ambiente de aprendizagem de língua do
adulto frequentemente causa estresse e ansiedade considerá-
veis. A chave para a aprendizagem livre de estresse é tirar provei-
to do bio-programa natural para o desenvolvimento da língua e,
deste modo, recapturar as experiências relaxantes e agradáveis
que acompanham o aprendizado da primeira língua. Ao concen-
trar-se no significado interpretado através do movimento, e não

14 No original, encontra-se: Dulay and Burt (1977) have suggested that an “affective filter” may exist, a
filter that “delimits” input before it can be processed by the “cognitive organizer”.
15 No original, encontra-se: An important condition for successful language learning is the absence of
stress. First language acquisition takes place in a stress-free environment, according to Asher, where-
as the adult language learning environment often causes considerable stress and anxiety. The key to
stress-free learning is to tap into the natural bio-program for language development and thus to recap-
ture the relaxed and pleasurable experiences that accompany first language learning. By focusing on
meaning interpreted through movement, rather than on language forms studied in the abstract, the
learner is said to be liberated from self-conscious and stressful situations and is able to devote full ener-
gy to learning.

189
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

nas formas da linguagem estudadas de forma abstratas, acredi-


ta-se que o aprendiz se liberta de situações constrangedoras e
estressantes, e consegue dedicar a energia inteiramente para o
aprendizado. (RICHARDS; RODGERS, 2001, p. 75).

Quanto à motivação, Asher (2012) pontua três elementos: ação contínua


e rápida, surpresa nos comandos e consciência de que a língua é acessível. Já
Gardner fala sobre quatro aspectos: “objetivo, esforço, desejo de atingir o obje-
tivo e atitudes favoráveis a respeito das atividades em questão 16” (1985, apud
SELINKER; LARRY. 2002, p. 350). Quando o aluno está motivado, o êxito na aqui-
sição da segunda língua é indiscutível. Shütz (2014) menciona dois tipos de mo-
tivação: a interna, que diz respeito a nós mesmos, e a externa, relacionada aos
ambientes em que estamos inseridos.

A origem da motivação é sempre o desejo de satisfazer necessidades. O ser


humano é um animal social por natureza e, como tal, tem uma necessidade abso-
luta de se relacionar com outros em seu ambiente. Essa tendência integrativa da
pessoa é o principal fator interno ativador da motivação para muitos de seus atos
(SHÜTZ, 2014, s/p.).

A correção dos erros também tem peso no que se refere à afetividade. É


delicada, pois conforme a maneira como é realizada pode vir a desestabilizar essa
questão e também a produção do aluno (FIGUEIREDO, 2011; RICHARD-AMATO,
1988). Asher fala que a correção deve ser feita da mesma maneira que os pais dão
feedback às crianças quando elas estão iniciando o processo da fala (RICHARDS;
RODGERS, 2001). Os autores explicam 17:

A princípio, os pais corrigem muito pouco, mas à medida que


a criança cresce, os pais toleram cada vez menos erros na fala.
Similarmente, os professores devem conter-se de muitas corre-
ções nos estágios iniciais, assim como não devem interromper
para corrigir os erros, pois isso irá inibir os alunos. (RICHARDS;
RODGERS, 2001, p. 76).

Por fim, Asher (2012) recomenda que as respostas críticas aos alunos se-
jam mudadas para reforços positivos. Um exemplo é que ao invés de falar “isto
16 No original, encontra-se: a goal, effortful behavior, a desire to attain the goal and favorable attitudes
toward the activity in question.
17 No original, encontra-se: At first parents correct very little, but as the child grows older, parents are
said to tolerate fewer mistakes in speech. Similarly, teachers should refrain from too much correction in
early stages and should not interrupt to correct errors, since this will inhibit learners .

190
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

está errado!”, podemos dizer “você está no caminho certo, podemos moldar um
pouco mais” (ASHER, 2012, p. 3-5). É necessária uma mudança de atitude por par-
te dos professores, para que o aluno se sinta cada vez mais motivado e não perca
a confiança de que é capaz de adquirir o idioma a ser estudado.

Breve relato de experiência com o TPR

Os estudos aqui demonstrados foram desenvolvidos com base em leitura


e análise da bibliografia acerca do TPR, desenvolvimento infantil e neurolinguís-
tica. A partir das leituras, foi conduzida uma prática intervencionista acerca do
assunto.

Para investigar os benefícios trazidos pelo uso do método, usei o conteúdo


sobre as cores, estudado pelos alunos do segundo ano, com idade entre seis e sete
anos, de uma escola particular na cidade de Assis Chateaubriand, no interior do
estado do Paraná. Assumi o papel de professora pesquisadora, tendo em vista que
lecionava para o grupo usado na aplicação do método. A intervenção foi condu-
zida no mês de maio de 2019, ao longo de duas aulas, cada uma de 50 minutos,
e registrada através de notas de campo. Para cada cor dita, os alunos deveriam
fazer um movimento.

Asher (2012) fala sobre modelo e demonstração. Segundo ele, o professor


dá o modelo ao anunciar o significado da palavra dita, ao passo que a demonstra-
ção é dada pelo aluno quando ele reproduz o modelo sozinho para mostrar que o
significado foi compreendido. Alguns podem realizar o modelo ao mesmo tempo
em que o professor, porém, Asher diz: “Os resultados indicam que não é importan-
te que o aluno individualmente realize o modelo com o professor, desde que mais
tarde o aluno individualmente demonstre ter compreendido por meio da ação 18”
(ASHER, 2012, p. 2-10).

Tomando este fator como exemplo, modelei os movimentos ao mesmo


tempo em que dizia as cores para que os alunos entendessem. A princípio, e par-
tindo do conceito da aquisição de língua, em que a criança primeiramente só ouve
para depois falar, pedi para que só me observassem e não tentassem reproduzir
os movimentos ao mesmo tempo em que eu os fazia. A modelagem se deu confor-
me a tabela 1:

18 No original, encontra-se: The results seem to indicate that it is not important that the individual stu-
dent models along with the instructor so long as the individual student later demonstrates comprehen-
sion through actions.

191
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

COR MOVIMENTO
Amarelo / Yellow Pular / Jump
Azul / Blue Acenar / Wave
Branco / White Bater palmas / Clap hands
Cinza / Grey Bater os pés / Stomp feet
Laranja / Orange Rodar/ Turn
Marrom / Brown Sentar-se / Sit
Preto / Black Fechar os olhos / Close eyes
Rosa / Pink Mandar um beijo / Blow a kiss
Roxo / Purple Dançar / Dance
Verde / Green Levantar-se / Stand up
Vermelho / Red Coração / Heart
Tabela 1. Lista de cor e movimentos.

Repeti o processo da modelagem outras duas vezes, e então pedi para que
os alunos me acompanhassem. Assim que eu dava o modelo, a criança reproduzia
o movimento, numa primeira vez sem o som e então repetindo também as pala-
vras. Os alunos realizaram a demonstração por três vezes no total. Asher explica
que a criança experiencia centenas de horas de movimentos corporais antes de
falar, de fato. Gesell & Thompson apud Asher (2012) “observaram que a criança
desenvolve um entendimento sofisticado do que as pessoas dizem antes de tentar
falar19” (ASHER, 2012, p. 2-18). Depois disso, os alunos seguiram para as ativida-
des em seus livros.

Na segunda aula, realizamos mais uma vez o processo do TPR. Eu dava o


modelo, dizendo a cor e realizando o movimento e logo depois os alunos demons-
travam. Além da modelagem, realizamos uma brincadeira que permitiu que as
crianças utilizassem movimentos corporais. Os alunos encontravam algum objeto
que fosse de uma determinada cor conforme eu a chamava. O objeto escolhido
não poderia ser tocado por duas pessoas ao mesmo tempo, e assim que os encon-
trassem, os estudantes deveriam dizer a palavra referente à cor em voz alta.

Ao longo das aulas, percebi uma melhora na pronúncia das crianças. O re-
sultado mais evidente foi a questão da motivação dos alunos quanto à participa-
ção nas aulas. A ludicidade das atividades fez com que o ambiente se tornasse

19 No original, encontra-se: [...] observed that infants develop sophisticated understanding of what peo-
ple are saying before the infant attempts to speak.

192
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

mais descontraído, portanto, livre de estresse. Como resultado, os alunos senti-


ram-se mais motivados e, consequentemente, mais confiantes.

Considerações finais

Em grande parte, o TPR se mostrou um método eficiente. O que se reitera


como resultado deste trabalho é que sua eficiência é exacerbada quando combi-
nado a outro método ou abordagem, visto que na prática torna-se difícil conduzir
todas as aulas utilizando-se somente do método, o tempo inteiro. A solução para
este embate seria usar o TPR como um suplemento das aulas em vinculação com
uma abordagem de ensino mais ampla. Asher (2012) garante que “o uso dos impe-
rativos para acelerar a internalização da língua alvo tem sido usado de forma bem
sucedida como um auxílio em outras abordagens” (ASHER, 2012, p. 3-18).

O TPR mostrou seu êxito quanto a motivação dos alunos, dado que torna o
ambiente descontraído e reduz o estresse na sala de aula. Para Pilleti:

A motivação consiste em apresentar a alguém estímulos e incen-


tivos que lhe favoreçam determinado tipo de conduta. Em senti-
do didático, consiste em oferecer ao aluno os estímulos e incen-
tivos apropriados para tornar a aprendizagem mais eficaz. Essa é
a base para um bom relacionamento em sala de aula, e para que
exista verdadeiramente o aprendizado. (PILLETI, 1997, p. 233).

O TPR pode trazer benefícios também para o professor, pois ao planejar os


movimentos e em vista dos bons resultados dos alunos, o método trabalha com
sua criatividade. Para Asher (2012), outra benesse que pode ser trazida pelo mé-
todo é uma melhora na capacidade que o professor tem em “ler” o aluno como
indivíduo, ajudando-o assim em suas dificuldades.

Todavia, o TPR também tem algumas limitações. Uma delas é que os alunos
mais tímidos podem se sentir constrangidos ao realizarem as atividades propos-
tas. Outro ponto negativo é a dificuldade de se ensinar alguns conteúdos com o
método. Ele se prova melhor no ensino de vocabulário e elementos mais simples,
porém com a quantidade de comandos torna-se quase impossível transmitir con-
ceitos abstratos por intermédio do TPR.

Como em todos os métodos e abordagens, é essencial que o professor co-


nheça e faça o planejamento sobre o que vai ser dado em sala de aula. O profissio-
nal deve saber passo a passo os caminhos que sua aula tomará. Tais fatores unidos

193
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

à empatia e atenção aos alunos ajudam a driblar os problemas que possam ser
enfrentados. A junção de um ambiente adequado e de um profissional capacitado
tornam a aquisição de língua algo real, e não apenas um sonho distante ou um
conceito abstrato.

Referências

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195
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

UM LEVANTAMENTO SOBRE O
DESENVOLVIMENTO DA ORALIDADE
EM LI NAS ESCOLAS DA REDE PÚBLICA
BRASILEIRA

Marcos Cristovam Lopes de Paula1


Claudia Marchese Winfield2

RESUMO: Este trabalho traz uma revisão bibliográfica elaborada no âmbito do


Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Tecnológica
Federal do Paraná (UTFPR). O foco da pesquisa aqui apresentada é discutir o de-
senvolvimento da oralidade em Inglês como Língua Estrangeira (ILE), de modo a
ressaltar a centralidade dessa habilidade no processo ensino-aprendizagem da
língua, especialmente nas escolas públicas brasileiras. Sendo assim, o objetivo
aqui proposto é pesquisar e selecionar fontes documentais e artigos que tratem
de como oralidade tem sido trabalhada no ensino da Língua Inglesa (LI), no con-
texto da escola pública no Brasil, com a finalidade de realizar um levantamento
preliminar sobre o tema. A justificativa desta pesquisa baseia-se nos dados relata-
dos pelo British Council no documento intitulado “Políticas públicas para o ensino
de Inglês: um panorama das experiências na rede pública brasileira”(2019),que
faz um mapeamento detalhado das condições estruturais e metodológicas para
o ensino de LI nos estados brasileiros, destacando a oralidade como o principal
desafio. Além desse levantamento, este trabalho leva em consideração os estu-
dos de Ialago e Duran (2008), que discutem as adversidades enfrentadas pelos
1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná. marcoscristovamdepaula@gmail.com
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná. claudiam@utfpr.edu.br

196
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

professores de Inglês no Brasil; assim como Corrêa (2017), que estuda a práti-
ca da oralidade nas aulas de LI, especialmente em escolas públicas do estado de
Minas Gerais. Feito o levantamento proposto, verifica-se que ao longo de todos os
anos em que se ensina LI na escola pública brasileira – pelo menos sete anos – o
desenvolvimento da oralidade é bastante limitado, salvo raras ou eventuais exce-
ções. Por outro lado, há registro de iniciativas promissoras, como os ambientes de
estudo complementares, ainda com abrangência bem reduzida, mas que podem
servir de base para a necessária transformação desta realidade.

PALAVRAS-CHAVE: Língua Inglesa; Oralidade; Escola Pública Brasileira.

ABSTRACT: This work offers a bibliographic review carried out in the scope of the
Postgraduate Program in Linguistics and Literature of the Federal University of
Technology - Paraná State (UTFPR). The focus of this research is to discuss the deve-
lopment of oral skills in English as a Foreign Language (EFL), in order to highlight the re-
levance of these skills in FL teaching and learning process, especially in Brazilian public
schools. Therefore, the proposed goal is to research and select documental sources and
articles that deal with how oral skills have been approached in the English Language
(EL) teaching in the context of public schools in Brazil, with the purpose of conducting
a preliminary survey on this topic. The justification for this research is based on data
collected by the initiative of the British Council and reported in the document entitled
“Public policies for English teaching: an overview of Brazilian public network experience”
(2019), which presents a detailed mapping of the structural and methodological con-
ditions for teaching EL in Brazilian states, highlighting oral skills as the main challenge.
In addition to this survey, this work takes into account the studies by Ialago and Duran
(2008) that discuss the adversities faced by English teachers in Brazil; as well as Corrêa
(2017), who studies the oral skills practice in EL classes, especially in public schools in
Minas Gerais state. As a result of this survey, it appears that throughout the years in
which EL is taught in Brazilian public schools – at least seven years – the development of
oral skills is quite limited, except for rare or occasional cases. On the other hand, promi-
sing initiatives have been documented, including complementary study environments,
which are still very limited in scope, but which can serve as a basis for the necessary
transformation of this reality.

KEYWORDS: English; Speaking Skill; Brazilian Public School.

197
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Introdução

Este trabalho é parte de um estudo bibliográfico e documental em nível de


mestrado na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Campus Pato
Branco, e traz uma revisão bibliográfica com foco em fontes que discutem o de-
senvolvimento da oralidade, no contexto das escolas da rede pública brasileira.
Entendendo que a competência em uma língua envolve pelo menos as habilidades
da leitura, escrita, compreensão e produção oral, ressalta-se, aqui, a oralidade no
processo ensino-aprendizagem da LI, principalmente em se considerando a língua
como prática social. Vale lembrar que a oralidade envolve tanto a produção oral
como a compreensão, conforme descrito na Base Nacional Comum Curricular
(BNCC).

[...] envolve as práticas de linguagem em situações de uso oral da


língua inglesa, com foco na compreensão (ou escuta) e na produ-
ção oral (ou fala), articuladas pela negociação na construção de
significados partilhados pelos interlocutores e/ou participantes
envolvidos, com ou sem contato face a face. (BRASIL, 2018, p.
241).

Em situação de comunicação real, observa-se que quando duas pessoas de


diferentes origens linguísticas têm contato pessoal, normalmente espera-se que,
pelo menos, uma delas fale a língua da outra (ou que ambas falem uma terceira
língua), para que a comunicação verbal possa ocorrer. Por isso, são frequentes
perguntas como: “do you speak English?” ou “você fala Português?”. Nesse tipo
de situação, raramente alguém perguntaria “você lê...?” ou “você escreve...?” tal
idioma. Assim, este trabalho ressalta a relevância da habilidade oral, conforme
expresso por Mota a seguir: “Krashen propõe que a instrução sobre as regras gra-
maticais da segunda língua tem pouca utilidade, pois essa informação não será
utilizada quando falarmos a língua” (MOTA, 2008, p.19). Ou seja, entende-se que
o aprendizado de regras gramaticais têm pouca utilidade se o aluno não aprender
a interagir oralmente, por meio da língua que estuda, pelo menos, com razoável
fluência.

Considerando-se o contexto da educação básica, seria desejável conhecer


também a realidade da rede privada de ensino, com especial foco na avaliação
das metodologias em uso, porém, nesse caso haveria elevada heterogeneidade
de situações que gerariam inúmeras variáveis. Ademais, dados do censo escolar

198
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

realizado no período entre 2015 e 2019 (BRASIL, 2019) indicam que a maioria
das crianças e adolescentes brasileiros estão matriculados na rede pública de
ensino.

Mais especificamente, 67,6% matrículas para os anos iniciais do ensino


fundamental estão na rede municipal, enquanto 18,4% estão na rede particu-
lar conveniada com a rede pública, 4% estão na rede particular não conveniada
com a rede pública e 13,1% das matrículas estão na rede estadual. Em relação
aos anos finais do ensino fundamental, 42,9% das matrículas foram na rede mu-
nicipal, enquanto 41,6% foram na rede estadual e 15,4% das matrículas foram na
rede privada.

Por outro lado, os dados referentes ao ensino médio mostram que a rede
estadual concentra a maior porcentagem das matrículas, ou seja, 83,9% das ma-
trículas; ao passo que a rede privada recebe 12,5% das matrículas e a rede federal,
o índice de 3%.

Complementando os dados do censo escolar supracitados, de acordo com


o levantamento do British Council (2019), cerca de 8 a 9 em cada 10 alunos da edu-
cação básica, no Brasil, estão na rede pública. Sendo assim, o presente trabalho
volta-se à análise dos dados referentes ao ensino de LI nas escolas públicas e às
necessidades percebidas, considerando o efetivo ensino desse idioma uma ques-
tão de justiça social, já que esta é tida como uma língua global. Ao se pensar na LI
como uma língua global, ou como língua franca, entende-se a língua como possi-
bilidade de interação e construção de conhecimento em contextos mais amplos
do que o contexto imediato dos estudantes; portanto, o acesso à LI permite aos
estudantes expandir seus conhecimentos gerais e experiências de mundo, além
de possibilitar a continuidade nos estudos e abrir oportunidades no mercado de
trabalho.

Uma vez que este é um trabalho de familiarização com o tema, apresen-


ta-se aqui uma revisão bibliográfica inicial, limitada a alguns estudos acerca do
desenvolvimento da oralidade no ensino de LI, na escola pública. Portanto, o que
se pretende, como objetivo geral, é: Pesquisar e selecionar fontes documentais e
publicações que tratem de como a oralidade tem sido trabalhada no ensino de LI,
no contexto da escola pública brasileira, com a finalidade de realizar um levanta-
mento preliminar sobre o tema.

Por isso, este trabalho se ateve ao estudo da realidade da escola pública


no Brasil, ficando assim definida a problemática a ser investigada: O que a atual

199
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

literatura da área de Linguística Aplicadaapresenta, quanto ao desenvolvimento


da oralidade em LI, na escola pública brasileira. Dessa forma, tem-se como objeti-
vos específicos:

a) efetuar um levantamento bibliográfico sobre estudos que discutem o de-


senvolvimento da oralidade em LI no ensino básico, no contexto da escola pública
brasileira;

b) efetuar um levantamento documental com fontes que incluam informa-


ções sobre o desenvolvimento da oralidade em LI, no contexto da escola pública
brasileira.

A relevância do desenvolvimento da oralidade para o ensino de LI no con-


texto da rede pública brasileira foi documentada pelo British Council em pesquisa
recente. Essa instituição realizou um estudo abrangente e detalhado em 2019,
que, embora não tenha envolvido 100% das unidades da federação, pois alguns
estados não disponibilizaram os dados para os pesquisadores, retrata a situação
do ensino de LI no Brasil e as políticas públicas que têm sido adotadas nessa área.
O estudo leva em consideração as premissas da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) de 2018, documento norteador para a elaboração dos currículos escola-
res no ensino básico.

Considerando a temporalidade, abrangência, nível de detalhamento e coe-


rência com a BNCC (BRASIL, 2018), o presente artigo tem como base os aponta-
mentos do levantamento do British Council (2019), em especial o destaque dado à
necessidade do desenvolvimento da oralidade no ensino de LI, no contexto brasi-
leiro. Segundo o documento, esse é o principal desafio para o ensino de LI. Como
este é um estudo preliminar para a dissertação de mestrado de um de seus autores
no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Tecnológica
Federal do Paraná, Campus Pato Branco, esta não é uma pesquisa exaustiva, mas
sim, um apanhado inicial para futuro aprofundamento.

Além do levantamento supracitado, autores como Leffa (1999), Paiva


(2003), Ialago e Duran (2008) são discutidos, pois apontam inadequações, por
uma série de causas, no ensino de LI na educação básica brasileira.

Ensino de LI no Brasil desde o império

Leffa (1999) traz uma contextualização sobre o ensino de línguas desde a


época inicial do Império, no Brasil, quando os alunos estudavam no mínimo quatro

200
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

idiomas diferentes no Ensino Médio, o que certamente indica a dedicação de ele-


vada carga horária ao estudo dessas línguas, naquela época. Porém, ainda na vi-
gência do Império, o número de horas foi caindo até praticamente a metade do
que foi inicialmente. E com o advento da República, observa-se uma redução ain-
da mais drástica no número de horas dedicadas ao ensino de Língua Estrangeira
(LE), chegando ao regime de frequência livre (facultativo) para todas as aulas de
idiomas. Assim, o ensino de LE acabou sendo substituído por uma prova superfi-
cial como mera formalidade para o ingresso em curso superior, até as primeiras
décadas do século XX.

Por outro lado, em 1931, a reforma de Francisco de Campos foi um movi-


mento no sentido de reconstruir a educação, especialmente o ensino de línguas
que, segundo Chagas (apud LEFFA, 1999) tinha chegado a um estágio de caos e
descrédito. Com essa reforma, a frequência às aulas de LE voltou a ser obriga-
tória e introduziu-se oficialmente no Brasil, com 30 anos de atraso (em relação à
França, por exemplo), o uso do método direto.

Em1942, segundo o autor citado, a reforma Capanema propôs um modelo


de educação que formasse nos alunos uma cultura geral e o cultivo da humaniza-
ção. Reforçou-se a recomendação do uso do método direto, com enfoque em um
ensino de línguas prático, que não fosse orientado apenas para objetivos instru-
mentais, mas contribuindo também para a formação de uma nova mentalidade, e
já com um conceito da dimensão da interculturalidade. Outro item amplamente
recomendado foi a utilização de recursos audiovisuais, como ilustrações, objetos,
discos gravados e filmes.

Segundo o mesmo autor, a metodologia proposta pelo Ministério da


Educação (MEC), baseada no método direto, parece não ter chegado, de fato, à
sala de aula. Todavia, muitos alunos concluíam o ensino secundário com habilida-
des para ler os autores nos originais em LE. Essas últimas décadas, até então (até
o final da década de 1950), podem ser consideradas o ápice do ensino de LE, que
Leffa (1999, p. 12) chama de ”anos dourados” das LE no Brasil.

Com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)


em 1961, inicia-se a descentralização do ensino e, ao mesmo tempo, segundo
Leffa (1999), ocorre o início do fim desse período mais favorável para o ensino das
LE, no contexto da educação brasileira. Em seguida, menos de dez anos depois,
foi publicada a nova LDB, a Lei 5.692, de 1971. Essa propunha a redução de um
ano no ciclo escolar e a introdução da habilitação profissional. Com isso, segundo

201
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

o autor, houve uma redução drástica na carga horária de ensino de LE. Ademais,
o ensino de idiomas passou a ser oferecido “por acréscimo” (ou seja, opcional), e
dentro das condições de cada escola.

A partir de então, diversas instituições de ensino regular retiraram o en-


sino de LE do primeiro grau e, no segundo grau, ofereciam apenas uma hora por
semana, por vezes durante apenas um ano, no decorrer de todo o ensino médio.
Há relatos de que muitos alunos concluíram o 1º e o 2º graus sem nunca terem
estudado uma LE nessa época.

Em 1996, 25 anos após a Lei 5.692 (a LDB anterior), foi aprovada a nova
LDB, a Lei nº 9.394. Esta, em tese, considerava necessária a LE no ensino regular,
ficando definida a inclusão de pelo menos uma LE a partir da quinta série, cuja
escolha seria atribuída à comunidade escolar, e dentro das possibilidades de cada
escola. No ensino médio, haveria uma LE obrigatória, e outra opcional, também
segundo as possibilidades da escola. Essa lei propunha um ensino baseado em um
pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas.

Como complemento à nova LDB, foram publicados os Parâmetros


Curriculares Nacionais (PCN - BRASIL, 1998) de LE, sugerindo uma abordagem
sócio-interacionista. Por outro lado, o mesmo documento tenta justificar o foco
na leitura – na prática, a negligência oficial à oralidade, da seguinte forma:

Deve-se considerar também o fato de que as condições na sala


de aula da maioria das escolas brasileiras (carga horária redu-
zida, classes superlotadas, pouco domínio das habilidades orais
por parte da maioria dos professores, material didático reduzido
ao giz e livro didático, etc.) podem inviabilizar o ensino das qua-
tro habilidades comunicativas. Assim, o foco na leitura pode ser
justificado em termos da função social das LES no país e também
em termos dos objetivos realizáveis tendo em vista as condições
existentes. (BRASIL, 1998, p. 21).

A citação acima demonstra que o próprio MEC reconhecia a precariedade


de condições que envolviam o ensino de LE, nesse contexto – especialmente em
relação à oralidade – e nada propunha para superar essa condição. Porém, com o
novo documento norteador, a BNCC, de 2018, a oralidade é contemplada como
uma das habilidades a serem trabalhadas em língua estrangeira moderna (LEM)
– mais especificamente da LI, que se tornaria a LE obrigatória em toda a rede pú-
blica brasileira, a partir deste ano (2020).

202
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A BNCC traz considerável avanço, quando comparada ao instrumento an-


terior (os PCN), no âmbito do ensino de LE/LI na rede pública, no sentido de reco-
nhecer e promover a habilidade oral; isto é, em favor de um ensino que valorize o
aprendizado do idioma como uma prática social, o que remete à dimensão comu-
nicativa da língua, a qual não é possibilitada sem o envolvimento das habilidades
de leitura, escrita, compreensão oral e fala. De acordo com o documento elabora-
do por iniciativa do British Council (2019), o ensino do inglês por meio de práticas
sociais permite que a língua passe a ter um sentido real para o aluno. Assim, essa
mudança na abordagem do ensino da língua passa a ter um papel de destaque na
formação pessoal, acadêmica e profissional dos estudantes.

Contemplando e expandindo a dimensão comunicativa da linguagem, a


proposta curricular da BNCC contempla cinco eixos: a oralidade (interação dis-
cursiva – compreensão e produção oral), leitura, escrita, dimensãointercultural
e conhecimentos linguísticos (que engloba o estudo do léxico e da gramática). Os
currículos ali propostos para LI compreendem em detalhe o 6º ano até 9º ano fun-
damental e apresentam linhas gerais para o ensino médio3, sendo organizados em
objetos de conhecimento a serem trabalhados em aula e habilidades que corres-
pondem a tais objetos, a serem desenvolvidas pelos alunos. A título de exemplo,
destacamos os objetos de conhecimentos propostos para o 6º ano, conforme pro-
posto para o eixooralidade na BNCC (BRASIL, 2018, p. 246):

Construção de laços afetivos e convívio social.


Interação discursiva Funções e usos da língua inglesa em sala de
aula (Classroom language).
Estratégias de compreensão de textos orais:
Compreensão oral palavras cognatas e pistas do contexto
discursivo.
Produção de textos orais, com a mediação do
Produção oral
professor.
Quadro 1. Objetos de conhecimento referentes ao eixo oralidade.
3 Durante o processo de elaboração da versão da BNCC encaminhada para apreciação do CNE
em 6 de abril de 2017, a estrutura do Ensino Médio foi significativamente alterada por força
da Medida Provisória nº 446, de 22 de setembro de 2016, posteriormente convertida na Lei
nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Em virtude da magnitude dessa mudança, e tendo em
vista não adiar a discussão e a aprovação da BNCC para a Educação Infantil e para o Ensino
Fundamental, o Ministério da Educação decidiu postergar a elaboração – e posterior envio ao
CNE – do documento relativo ao Ensino Médio, que se assentará sobre os mesmos princípios
legais e pedagógicos inscritos neste documento, respeitando-se as especificidades dessa etapa
e de seu alunado (BRASIL, 2018, p. 23).

203
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Ainda tomando o proposto para o 6º ano como exemplo, citamos as habili-


dades sugeridas para o eixo oralidade correspondentes aos objetos supracitados
de acordo com a BNCC (2018, p. 247):

Interagir em situações de intercâmbio oral, demonstrando iniciativa para utilizar a


língua inglesa.
Coletar informações do grupo, perguntando e respondendo sobre a família, os amigos,
a escola e a comunidade.
Solicitar esclarecimentos em língua inglesa sobre o que não entendeu e o significado de
palavras ou expressões desconhecidas.
Reconhecer, com o apoio de palavras cognatas e pistas do contexto discursivo, o assunto
e as informações principais em textos orais sobre temas familiares.
Aplicar os conhecimentos da língua inglesa para falar de si e de outras pessoas,
explicitando informações pessoais e características relacionadas a gostos, preferências
e rotinas.
Planejar apresentação sobre a família, a comunidade e a escola, compartilhando-a
oralmente com o grupo.
Quadro 2. Habilidades propostas para o eixo oralidade.

Há exemplos para os cinco eixos descritos na BNCC para o ensino funda-


mental, do 6º ao 9º ano, descritos em detalhe na base. Pelo exemplo dado, nota-se
que o novo documento norteador valoriza a prática da oralidade, que é descrita
como a compreensão e a produção oral e contempla a interação discursiva, vi-
sando à construção de significados compartilhados pelos participantes dessas
práticas.

Considera-se que essas práticas possibilitam, inclusive, o desenvolvimento


de habilidades socioemocionais e interpessoais, tais como: “arriscar-se e se fazer
compreender, dar voz e vez ao outro, entender e acolher a perspectiva do outro,
superar mal-entendidos e lidar com a insegurança, por exemplo” (BRASIL, 2018,
p. 241). O documento sugere o uso de diferentes recursos audiovisuais autênticos
para tornar as práticas orais próximas à realidade do aluno, assim mais significa-
tivas e relevantes (BRASIL, 2018). Além disso, outros eixos também se articulam
com o da oralidade, na proposta da BNCC, sugerindo diversas atividades comu-
nicativas voltadas para o desenvolvimento da pronúncia, da expansão do voca-
bulário, essencial para a comunicação oral, dentro do eixo conhecimentos lin-
guísticos. Ademais, há uma série de atividades sugeridas, envolvendo a dimensão

204
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

intercultural, ampliando a visão de mundo, expandindo a relação com o outro e


buscando o cumprimento da função social da língua enquanto instrumento de
troca e ampliação de conhecimento, experiência e cultura humana.

Metodologia

Sendo este um estudo bibliográfico e documental a respeito do contexto


histórico, estrutural e metodológico encontrado sobre a realidade do ensino de
LI, em particular o desenvolvimento da oralidade em LI como LEM na rede pública
brasileira, a metodologia utilizada foi a seleção de fontes bibliográficas e docu-
mentais que discutem oralidade e ensino de LI no Brasil, com foco de interesse
de pesquisa na rede pública. Sendo o contexto em ênfase a rede pública e o obje-
to de pesquisa a oralidade no ensino e aprendizagem de LI como LEM, as fontes
documentais utilizadas compreenderam três documentos oficiais brasileiros, ou
seja, os PCN de LE (1998), a BNCC (2018) e o CREP – Currículo da Rede Estadual
Paranaense (PARANÁ, 2019), complementadas pelo levantamento de um órgão
independente das autoridades brasileiras para que, futuramente, tais fontes pu-
dessem ser cotejadas.

Segundo a discussão sobre pesquisa documental e pesquisa bibliográfi-


ca oferecida por Sá Silva et al. (2009), a definição de documento não é livre de
complexidades. Neste trabalho, pode-se considerar que foram analisadas fontes
documentais escritas com reconhecimento oficial, mas sabe-se que é preciso con-
siderar fatores que motivaram a proposição de tais documentos, por exemplo, o
contexto sócio-histórico, as políticas linguísticas vigentes, entre outros. É preciso
também considerar fontes diversas para ampliar o olhar sobre os dados docu-
mentais. Entretanto, devido ao caráter preliminar deste trabalho, houve um limite
da quantidade e origem das fontes documentais para que estas pudessem ser ex-
ploradas em detalhe. Na próxima fase do trabalho, pretende-se complementar as
fontes e analisar seus fatores contextuais e estruturais, e aprofundar a discussão
dos dados levantados.

As fontes bibliográficas consistiram de três artigos e três livros que explo-


raram temas como a falta de preocupação com a oralidade em LI como LEM, tanto
no ensino básico como na formação de professores de LI, assim como as razões
históricas e estruturais para a situação atual do ensino de LI com foco no desen-
volvimento da oralidade. Essas fontes bibliográficas foram avaliadas como críveis,

205
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

por terem sido publicadas por autores com representatividade na área de estudo
desta pesquisa.

O foco deste levantamento foram os desafios que se apresentam, em face


das demandas da nova BNCC, especialmente quanto ao desenvolvimento da
oralidade pelos alunos. Buscou-se, então, levantar dados qualitativos acerca do
desenvolvimento da oralidade no contexto supracitado, que são apresentados e
discutidos na próxima seção deste artigo.

O impacto de fatores estruturais no desenvolvimento da


oralidade em LI na rede pública brasileira

De acordo com o levantamento bibliográfico realizado neste trabalho, há


vários fatores estruturais, histórico-culturais e metodológicos combinados, que
dificultam o aprendizado de LE no contexto brasileiro. Tais dificuldades parecem
ter levado o ensino de LI a centrar-se na leitura, vocabulário e gramática, e, segun-
do Ialago e Duran, “sem a devida atenção à habilidade oral” (IALAGO E DURAN,
2008, p.59-60). Paiva (2003), por sua vez, refere uma crença bastante arraigada
na área da educação, no Brasil, de que não é possível aprender idiomas no ensino
regular; enquanto Corrêa (2017) menciona uma situação a que denomina “dis-
curso do fracasso”, isto é, uma série de tentativas de se ‘justificar’ o insucesso na
aprendizagem de LE.

Origens dos desafios do trabalho com oralidade

Para melhor entendimento da situação geral descrita, destacam-se os da-


dos do contexto histórico sobre as condições do ensino de LE no Brasil, bem como
dados específicos, a partir das fontes bibliográficas e documentais investigadas.

Conforme visto anteriormente, a história do ensino de LE em nosso país


mostra vários momentos de desconstrução da estrutura até então existente, e
uns poucos movimentos no sentido de reconstruir o que foi danificado por suces-
sivas leis elaboradas na área da educação. Isso ocorre especialmente no tocante
ao ensino de línguas, as quais foram, gradualmente, perdendo o prestígio até sua
quase extinção (LEFFA, 1999).

Quanto à formação docente, Ialago e Duran (2008) mencionam um círcu-


lo vicioso histórico: professores sem formação para o ensino da LE “preparam

206
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

os futuros alunos de licenciatura, os quais chegarão à faculdade sem um conhe-


cimento sólido da língua” (IALAGO E DURAN, 2008, p.60). Semelhantemente,
Paiva (2003) afirma que a formação precária em LE faz com que os futuros alunos
da licenciatura cheguem à graduação com defasagens, dificultando ainda mais a
sua adequada formação. Por outro lado, os poucos alunos que chegam à faculda-
de com alguma fluência em LE, encontram uma formação que não atende às suas
necessidades, frente aos desafios futuros.

Segundo Ialago e Duran (2008), as autoridades governamentais da área


da educação no Brasil, em tese, reconhecem a importância do aprendizado de LE,
tanto que incluem seu estudo no currículo oficial. Todavia, na prática, uma série
de fatores inviabiliza sua realização, desde uma deficiência histórica na formação
e nas condições de trabalho dos professores, excesso de alunos por turma, carga
horária reduzida, falta de recursos, entre outros.

Esse descaso histórico fica evidente, conforme visto em Leffa (1999), quan-
do se leva em consideração o conteúdo de um documento oficial publicado pelo
próprio MEC, como os PCN de LE. Ali, as autoridades máximas da área de educa-
ção no país admitem a situação precária em que se encontrava, particularmente,
o ensino de LE no país e procuram justificar o abandono da atenção à habilidade
oral. Apenas isso já parece ser suficiente para deixar claro que, dentre as quatro
habilidades comunicativas, a mais negligenciada é, certamente, a da oralidade.

De acordo com Ialago e Duran (2008), por séculos, o estudo de LE (inclusi-


ve e especialmente o inglês) tem privilegiado outras habilidades, em detrimento
da oralidade, como derivação da metodologia utilizada para o ensino de grego e
latim, com foco no entendimento e produção textual. Entretanto, com a globaliza-
ção cultural e econômica, bem como a mobilidade internacional (BRASIL, 2019;
LEFFA, 1988; MOTA, 2008) a abordagem tradicional de ensino de LI tornou-se
inadequada.

LI no ensino básico – panorama: currículo, metodologia, perfil


docente e condições estruturais, de acordo com o British Council
(2019)

Tendo abordado a visão geral dos resultados e os dados de contexto his-


tórico, discutem-se nesta seção os dados qualitativos e quantitativos levantados
a partir do estudo do British Council (2019). Partindo desse documento, foram

207
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

selecionadas informações que esboçam um diagnóstico da realidade dos estados


brasileiros em relação ao ensino da LI. Tais informações são apresentadas a seguir:

Quanto aos currículos, mais de 50% das unidades da federação ainda apre-
sentam metodologia (total ou parcialmente) voltada para a estrutura gramatical.
Somente em quatro estados, de acordo com os pesquisadores, encontrou-se uma
metodologia totalmente voltada para o uso da língua como prática social, que in-
clui invariavelmente o desenvolvimento da oralidade.

Em relação ao perfil docente, verificou-se que cerca de 3/5 dos professo-


res de inglês não têm habilitação específica em LI: 55% não têm habilitação em
qualquer LE; e, dos 45% que têm alguma formação, parte são habilitados em ou-
tro idioma (o percentual de professores de inglês que têm formação em idioma
diverso não está disponível no conjunto das unidades da federação). Além disso,
em teste realizado por amostragem, 70,5% dos professores de inglês atingiram
apenas os níveis básicos – A1 e A2, sendo que mais de 40% dos docentes de LI
situaram-se no nível A14.

No tocante à estrutura e condições de trabalho, via de regra, os pesquisa-


dores encontraram as seguintes situações no contexto de ensino de LI, nos esta-
dos brasileiros: salas de aula lotadas; sobrecarga de trabalho (a média de alunos
por docente já passou de 1000 em 2015/16, em algumas regiões do Brasil); pouco
tempo para preparação de aulas; baixos salários e contratos considerados ruins
(como contratos temporários, o que é o caso de mais de 50% dos docentes na re-
gião sul do país, por exemplo); carga horária considerada muito baixa para produ-
zir resultados; falta de acesso a recursos audiovisuais; e deficiência na formação
continuada (menos da metade das UF desenvolvem formação específica para LI).

Diante do exposto, somando-se os dados da deficiência na formação inicial


com os da extrema carência de formação continuada, tem-se no ensino de LI uma
situação que dificulta sobremaneira o trabalho com a oralidade em LI. Este, por
sua vez, requer professores com um nível de proficiência que os permita expres-
são oral em inglês e salas de aula com um número de alunos que permita a prática
da oralidade, pois um número excessivo de alunos em sala dificulta essa prática.

Além disso, o uso de recursos audiovisuais e estratégias de ensino específi-


cas para o trabalho com a oralidade são benéficos e percebidos como necessários,

4 Os níveis de proficiência em Inglês citados estão de acordo com Quadro comum europeu de re-
ferência para línguas (British Council, 2020. Disponível em: https: //www.britishcouncil.org.br/
quadro-comum-europeu-de-referencia-para-linguas-cefr.

208
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

porém os dados mostram que as escolas carecem desses recursos (BRITISH


COUNCIL, 2019). De fato, mesmo antes desse levantamento, Ialago e Duran
(2008) afirmaram que não se tem com a LE o mesmo rigor que se tem com as ou-
tras disciplinas.

Em consonância com a proposta da BNCC, toma-se como exemplo o CREP


– Currículo da Rede Estadual Paranaense (PARANÁ, 2019). Este é um dos quatro
estados brasileiros que, segundo os pesquisadores do British Council, apresenta
uma abordagem totalmente voltada para o uso da língua como prática social. É
justamente no conceito da ‘língua em uso’ (isto é, em sua função social) que se
percebe a interconexão entre todos os eixos, como se descreve em seguida.

O CREP de LI é um documento detalhado que fornece subsídios, para que


as instituições de ensino da rede estadual possam revisar os seus currículos e os
docentes possam elaborar os seus planejamentos, buscando contribuir para o de-
senvolvimento dos alunos em um amplo espectro de dimensões, tais como: enri-
quecimento do repertório cultural; desenvolvimento do pensamento científico,
crítico e criativo; habilidades comunicativas, cultura digital e capacidade de ar-
gumentação; compreensão da relação entre trabalho e projeto de vida; empatia,
cooperação, autoconhecimento e autocuidado.

Percebe-se claramente, no bojo de todos os eixos, a preocupação com a lín-


gua em seu contexto de uso e com a construção de sentido nos eixos oralidade,
leitura, escrita, dimensão intercultural e conhecimentos linguísticos, contem-
plandotambém a visão de língua como prática social. Por meio de tais práticas
procura-se o desenvolvimento do convívio/interação social (respeitando, por
exemplo, os turnos da fala e a expressão dos outros participantes dessas práticas)
e possibilitando a criação de laços afetivos entre os participantes (envolvendo as-
pectos socioemocionais); abordagem de temas com os quais os alunos estejam
familiarizados (como a família, amigos, a escola e a comunidade); expressão de
informações pessoais, gostos, preferências e rotinas, bem como o crescente de-
senvolvimento da autonomia do aluno.

No eixo leitura, propõe-se a construção de repertório lexical, com a busca


da compreensão dos verbetes no contexto adequado; a identificação de seme-
lhanças e diferenças entre os gêneros orais e escritos, visando à compreensão dos
diferentes contextos do uso da escrita; o compartilhamento de ideias decorren-
tes dos textos lidos e articulação intertextual (com outros textos).

209
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

No eixo escrita, desde a abordagem de temas familiares ao aluno; a identi-


ficação de traços da oralidade no texto escrito; a busca do entendimento do pro-
pósito da elaboração de um texto; a escolha da linguagem adequada ao contexto;
as características do gênero textual e da esfera social de sua circulação, de modo
a fomentar o potencial criativo do aluno, apontam para o ensino e aprendizagem
da língua de modo contextualizado. Busca-se a conexão com a realidade do aluno
e promovendo o desenvolvimento gradual em que dimensões orais, textuais, lin-
guísticas e culturais são contempladas no processo de aprendizagem da LI.

Quanto ao eixo dimensão intercultural, busca-se considerar o uso da lín-


gua em diferentes contextos sociais e situacionais, bem como a interação entre as
culturas, de modo a favorecer o convívio e a superação de conflitos, respeitando e
valorizando a diversidade cultural (o que pode e deve ser aplicado a várias as es-
feras do relacionamento social). A dimensão intercultural tem papel fundamental
e permite que o aluno conheça a si mesmo através da reflexão que o encontro com
a língua do outro permite, promove-se a tolerância e abertura à diversidade que
a cultura possibilita.

Em relação ao eixo conhecimentos linguísticos, propõe-se a apreensão do


funcionamento da LI, tendo como base o uso da língua, conforme previamente
trabalhado nos demais eixos.

Embora este trabalho seja voltado para o desenvolvimento da oralidade,


discutimos todos os eixos propostos pelo CREP porque entendemos que exista
uma proposta de integração entre os eixos e dimensões da linguagem. Os eixos e
dimensões da linguagem foram apresentados separadamente para possibilitar a
sua observação analítica, porém, na experiência prática, nota-se a inter-relação
entre eles. De modo geral, o CREP apresenta uma proposta semelhante à BNCC
e expressa uma política linguística que pode levar a experiências relevantes, in-
cluindo o desenvolvimento da oralidade em LI.

Experiências promissoras

Apesar das dificuldades supracitadas, o levantamento documental rela-


ta experiências promissoras que se constroem em face às adversidades. A se-
guir, são descritas algumas dessas iniciativas, a partir de fontes bibliográficas e
documentais.

210
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Dados a partir de fonte bibliográfica: relato de uma experiência


no CEFET/MG– Campus Leopoldina (Corrêa, 2017)

De acordo com o estudo, realizado em 2016 com alunos do ensino médio/


técnico, essa foi uma experiência de um ano de aulas com enfoque na oralidade,
intensa exposição à LI, provas orais sobre o conteúdo abordado, apresentação
(em inglês) de trabalhos em grupo, abrangendo a interculturalidade, incluindo
conteúdos das aulas de outras disciplinas, e utilizando recursos como músicas
e vídeos. Ao final do ano, foi aplicado um questionário a 100 alunos, e 98% dos
alunos afirmaram que sentiram melhoria no seu nível de inglês, a partir daquelas
aulas.

Dados a partir de levantamento documental de experiências e


práticas no Brasil (BRITISH COUNCIL, 2019)

O documento do British Council (2019) também apresenta exemplos de


boas práticas, especialmente através de programas e parcerias, algumas delas in-
cluindo como meta o desenvolvimento da oralidade no escopo do programa, ain-
da que não explícito, ou que não tenham foco específico nessa habilidade.

Essas iniciativas incluem programas federais e estaduais em parceria com


instituições públicas de ensino superior, entidades privadas e órgãos internacio-
nais. Na maioria dos programas, o número de estudantes contemplados é bem
restrito, em comparação com o total de alunos matriculados nas redes estaduais
de ensino regular. Portanto, ainda não são consideradas como uma oferta comple-
mentar; ainda assim, desempenham um importante papel no sentido de promover
a língua e incentivar a participação ativa dos alunos no seu autodesenvolvimento,
em relação à LE.

De maneira geral, os estados do nordeste são os que contam com os pro-


gramas mais abrangentes. Relacionam-se aqui alguns exemplos destacados na-
quele levantamento, especialmente os que possuem maior abrangência.

Programa Ganhe o Mundo (Pernambuco)

Esse programa existe desde 2011 e tem como principal objetivo ampliar a
oferta de ensino de LE no estado – em especial a LI, mas também alemão e espa-
nhol (em menor escala). Os alunos do 1º para o 2º ano do ensino médio da rede

211
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

pública podem participar de cursos intensivos de LE, com 324 horas de duração,
no contraturno escolar, com frequência às aulas de três ou quatro vezes por se-
mana, durante um ano.

Os cursos são oferecidos por escolas de idiomas e custeados pelo estado.


Atualmente o programa atende 25 mil alunos por ano – um pouco mais da metade
dos mais de 40 mil que se inscreveram para tentar uma vaga no curso. O programa
foi oficializado em lei estadual, para evitar que fique sujeito a descontinuidade,
quando da troca do comando no governo do estado.

Programa Giramundo Estudante (Paraíba)

O público alvo desse programa são alunos do 2º ano do ensino médio da


rede pública do estado e o seu objetivo é melhorar a proficiência dos estudantes
em LE. Para se candidatar, os alunos passam por uma avaliação das notas do 1º
ano do ensino médio, na 1ª fase. Na 2ª fase, realizam um curso em centro de lín-
guas por três meses. Em seguida, são submetidos a uma prova de proficiência e a
nota dessa prova é o critério para a seleção final para um intercâmbio de 6 meses
no exterior. 200 alunos são contemplados por ano: 100 para LI, no Canadá, e os
outros 100 são distribuídos em países de outros idiomas.

Programa Cidadão do Mundo (Maranhão)

Esse programa tem o objetivo de oferecer intercâmbio internacional, com


foco em LE (inglês, francês e espanhol) aos alunos egressos do ensino médio da
rede pública estadual, na faixa etária entre 18 e 24 anos, que estejam frequentan-
do instituições de ensino superior na mesma unidade da federação. Foram ofere-
cidas 80 bolsas de estudo no exterior em 2019, das quais 30 foram direcionadas
para cursos de inglês na Cidade do Cabo (África do Sul).

ProEMI – Programa Ensino Médio Inovador (RN e RS)

Duas unidades da federação mencionaram um ensino diferenciado em LI


por meio do ProEMI. Esse programa do Governo Federal não é específico para o
ensino de línguas, e sim, uma iniciativa que impacta toda a área de educação no
ensino médio. Portanto, as características do programa não serão detalhadas aqui
– inclusive o documento do British Council também não entra em detalhes; mas

212
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

vale a pena, oportunamente, verificar mais a fundo o diferencial que levou os en-
trevistados a citar o ProEMI nas pesquisas a respeito do ensino de LI nos estados.

Quanto à sua abrangência, segundo as informações divulgadas no docu-


mento, no Rio Grande do Norte foram atendidos de 15 a 20 mil estudantes desde
2015 – ano em que o programa foi implantado. No Rio Grande do Sul os relatos
dão conta de cerca de 200 mil alunos atendidos, desde a implantação do progra-
ma no estado.

Ambientes Complementares de Estudo para práticas de LI


(BRITISH COUNCIL,2019)

Os ambientes complementares de estudo são compostos, basicamente,


dos Centros de Línguas, que funcionam no contraturno escolar e estão presentes
em 14 unidades da federação, embora em apenas 5 estados apresentem distribui-
ção mais abrangente. São bastante reconhecidos pelos seus resultados, e porque
a estrutura diferenciada característica desses ambientes é percebida como um
dos fatores que permitem melhores resultados no ensino-aprendizagem de LI.

Entretanto, mesmo nas UF que têm oferta ampliada e geograficamente


mais distribuída (DF, ES, PE, PR e SP, segundo o relato dos pesquisadores), os
Centros de Línguas atendem apenas os alunos que já possuem algum desenvol-
vimento prévio em LI (os quais ingressam por processo seletivo). Além disso, na
maioria dos estados que contam com esses Centros, a média de alunos atendidos
gira em torno de 1% do total de matriculados na rede pública de ensino. Dessa
forma, um desafio ainda persiste: como ampliar a oferta desse atendimento – es-
pecialmente aos alunos que ainda não saíram do nível elementar.

Considerações finais

Este é um levantamento preliminar, por isso, não pretende ser um artigo


exaustivo do tema, pois há muito mais trabalhos que se poderiam reportar, os
quais serão acrescentados a esta coleta oportunamente. Entretanto, com base no
estudo das fontes bibliográficas e documentais utilizadas na presente pesquisa,
puderam-se identificar as necessidades do desenvolvimento de melhora do de-
senvolvimento oral em LI dos alunos no ensino básico brasileiro. Também foram
reconhecidos motivos históricos e estruturais que têm gerado a atual situação
insatisfatória.

213
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

O reconhecimento das causas e do efeito presente de necessidade de


melhoria no que tange à oralidade em LI, encontram algumas possibilidades de
mudança benéfica nas propostas da BNCC, pela qual a oralidade é contemplada
como uma das habilidades a serem trabalhadas em LI, bem como no CREP e nas
experiências promissoras relatadas neste trabalho. Com a obrigatoriedade do
ensino de LI em todas as escolas da rede pública brasileira a partir do 6º ano do
ensino fundamental, conforme a MP 746/2016, a inclusão do desenvolvimento da
oralidade, entre as habilidades a serem trabalhadas em LI representa uma grande
oportunidade de melhoria, mas também um desafio a estar posto.

Neste estudo preliminar, procuramos cotejar fontes documentais e biblio-


gráficas acerca do objeto de estudo supracitado, para conhecer esse objeto com
mais detalhamento e profundidade para, posteriormente, desenvolvermos uma
pesquisa de mestrado sobre o desenvolvimento da oralidade em LI no ensino
básico. Sendo um estudo preliminar, a pesquisa apresenta um objeto de estudo
definido, mas ainda carece de refinamento metodológico e analítico. Conforme
previamente mencionado, as fontes foram limitadas em quantidade e origem para
que se pudesse explorá-las em detalhe.

Sendo assim, apresentaram-se dados pertinentes ao objeto de estudo


oriundos de fontes heterogêneas, porém não exaustivas. Para estudo futuro, su-
gere-se ampliar a seleção de fontes documentais e bibliográficas para inclusão
de mais dados qualitativos e quantitativos. Subsequentemente, recomenda-se a
análise crítica e comparativa entre fontes, de modo que se reflita o impacto do
tipo e origem das fontes sob os dados levantados.

Feita a pesquisa preliminar, prepara-se a fase seguinte para desenvolvi-


mento da pesquisa. Esperamos, assim, ter oferecido uma contribuição relevante
para a área, que representa uma provocação inicial acerca de um tema complexo,
porém extremamente relevante, o necessário e muitas vezes evitado, desenvolvi-
mento da oralidade em LI no ensino básico na escola pública brasileira.

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214
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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Acesso em: 3 dez. 2020.

215
PARTE 2

ENSINO DE LÍNGUA
PORTUGUESA E
INTERFACES
ANÁLISE DOS ASPECTOS
MULTIMODAIS NO CURTA-METRAGEM
“O OUTRO PAR”

Samara Fatima Belo1


Cristiane Malinoski Pianaro Angelo2

RESUMO: Este trabalho pauta-se em uma abordagem investigativa de cunho in-


terpretativo-qualitativo, para levantar e analisar os aspectos multissemióticos
no curta-metragem egípcio “O outro par”, dirigido por Sarah Rozik, lançado no
ano de 2014. A partir dos pressupostos da teoria da multimodalidade (VIEIRA;
SILVESTRE, 2015; KRESS; VAN LEUWEEN, 2006), que embasa este trabalho,
compreende-se que os enunciados com os quais os sujeitos interagem nas dife-
rentes circunstâncias de interação social são sempre compostos por uma vasta
gama de elementos multimodais, como as palavras, os efeitos sonoros, os gestos
e as expressões faciais, as cores, a diversificação de tamanhos e tipologias de fon-
tes, a tipografia, as margens, as imagens estáticas e em movimento, os símbolos,
os gráficos, dentre outros. Compreender como esses aspectos multissemióticos
se inter-relacionam nos diferentes gêneros discursivos é uma habilidade neces-
sária ao cidadão contemporâneo; por isso, a necessidade de ampliar as pesquisas
e os estudos em relação à multimodalidade.

PALAVRAS-CHAVE: Multimodalidade; Curta-metragem; O outro par.

1 Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). samarabelo4@gmail.com.


2 Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). cristiane.mpa@gmail.com.

217
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ABSTRACT: This work is guided by an interpretative-qualitative investigative


approach, to survey and analyze the multisemiotic aspects in the Egyptian short
film “The other pair”, directed by Sarah Rozik, released in 2014. Based on the as-
sumptions of the multimodality theory (VIEIRA; SILVESTRE, 2015; KRESS; VAN
LEUWEEN, 2006), which underlies this work, it is understood that the statements
with which the subjects interact in the different circumstances of social interac-
tion are always composed of a wide range of multimodal elements, such as words,
sound effects, gestures and facial expressions, colors, diversification of font sizes
and typologies, typography, margins, still and moving images, symbols, graphics,
among others. Understanding how these multisemiotic aspects are interrelated
in different discourse genres is a necessary skill for contemporary citizens; hence
the need to expand research and studies in relation the multimodality.

KEYWORDS: Multimodality; Short film; The other pair.

Introdução

Por muito tempo nos estudos linguísticos a palavra texto esteve associada
à ideia de oralidade e escrita. Com o advento da globalização e utilização cada
vez mais frequente e intensa dos recursos não verbais, essa perspectiva mudou,
ou seja, passou-se a se perceber que o conceito de texto vai além das produções
de fala e escrita, visto que abarca outros aspectos como os movimentos, os sons,
as imagens, as cores. Esse novo olhar para o texto foi impulsionado pelas grandes
mudanças proporcionadas pela nova era tecnológica (VIEIRA; SILVESTRE, 2015),
que colocou em relevo outras composições textuais, sendo estas formadas por
elementos advindos das múltiplas formas da linguagem (escrita, oral e visual).
Assim, estudos que até então priorizavam o uso da linguagem verbal, com os mo-
dernos recursos das tecnologias de comunicação e informação, começaram a ser
reestruturados e, com as inovações, tornaram mais exigentes as práticas de leitu-
ra na escola e na sociedade.

Ressalte-se que o texto multimodal sempre existiu, pois todo texto con-
figura-se na junção de diferentes signos: palavras e imagens, palavras e gestos,
palavras e tipografias, etc. (AZEVEDO; RIBEIRO, 2018). Entretanto, a partir dos
anos 2000, a configuração multimodal passou a ser mais estudada (ROJO, 2009),
principalmente com a transformação e o surgimento de outros gêneros, advin-
dos da expansão das tecnologias que colocam em evidência a existência de outras

218
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

semioses, além dos signos linguísticos, a despertar o interesse e a curiosidade das


pessoas em ler e interagir com essas multimodalidades.

Dessa forma, o foco deste estudo está na análise dos aspectos multimodais
que estão presentes no gênero curta-metragem, a destacar a necessidade de que
o leitor/espectador leve em conta esses aspectos para interagir de forma críti-
ca com os enunciados que pertencem a esse gênero. O gênero curta-metragem
constitui-se de uma narrativa fílmica, no formato de vídeo de curta duração, que
apresenta uma abordagem de enredo curto e transmite uma mensagem, com uso
de vários recursos multimodais tais como: sons, cores, gestos, expressões, movi-
mentos, ações, etc.

Com base na ideia de que o curta-metragem assume a condição multi-


modal, constituindo-se em “[...] um diálogo entre signos e diferentes semioses”
(FERREIRA; VILLARTA-NEDER, 2017, p. 72), tenciona-se, neste trabalho, anali-
sar o curta-metragem egípcio “O outro par”, dirigido por Sarah Rozik e lançado no
ano de 2014, para verificar como a relação entre as diferentes semioses contribui
para a construção dos sentidos do texto fílmico e para comover o espectador.

Para tanto, buscam-se subsídios nos estudos da teoria da multimodalidade,


a partir de Vieira e Silvestre (2015), Kress e Van Leuween (2006), Andrade e Leite
(2017), entre outros.

Aspectos da Teoria da Multimodalidade

De acordo com Vieira e Silvestre (2015), a globalização trouxe mudanças


significativas no âmbito tecnológico e, consequentemente, no uso e no aprimo-
ramento das semioses, pois a sociedade de modo geral passou a aderir aos novos
mecanismos tecnológicos que colocaram em destaque recursos visuais modernos
a exercer forte influência na vida de todas as pessoas. Os autores ressaltam que:

[...] os textos contemporâneos caminham a passos largos para


uma composição multimodal e de que desse fato a atividade pu-
blicitária, artística e educacional não pode fugir. Frente a essas
mudanças concretas, é impossível não aderir à multimodalidade,
aos textos híbridos compostos com múltiplos recursos semió-
ticos, construídos com base em metáforas visuais, e, em decor-
rência, os sujeitos que não souberem lidar com a linguagem vi-
sual, com a multimodalidade, estarão sujeitos à exclusão social.
(VIEIRA; SILVESTRE, 2015, p. 89).

219
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

No contexto educacional, é perceptível que o foco ainda está na leitura e


na escrita, nos aspectos verbais, negligenciando-se a perspectiva dos multiletra-
mentos, na qual, segundo Rojo (2009), concebe-se que o ato de ler envolve a arti-
culação de diferentes modalidades de linguagem além da escrita, como a imagem,
estática ou em movimento, a fala e a música, as quais formam a multissemiose, ou
seja, um conjunto de signos/linguagens.

Segundo Kress e Van Leewen (apud VIEIRA; SILVESTRE, 2015), todas essas
mudanças contribuíram para a consolidação dessa nova expressão híbrida, cons-
truída por combinação de palavras, de imagens, de cores, de sons e de movimen-
tos; tudo isso sob a consolidação de uma nova geração de designers gráficos, cuja
mobilidade e facilidade criadora para lidar com essas múltiplas semioses cresce-
ram cada vez mais com o uso da linguagem multimodal.

À parte as mudanças globais, que exerceram marcante influência


sobre a linguagem, pertencemos a uma sociedade da imagem;
somos cidadãos multimodais a ponto de descansarmos quando
vemos imagens em frente à TV. Somos fruto de uma sociedade
digital, uma sociedade multimodal. Foi nesse favorável contexto
que o discurso monomodal encontrou terreno fértil para
se ressemiotizar e compor os atuais discursos multimodais.
(VIEIRA; SILVESTRE, 2015, p. 39).

Vieira e Silvestre (2015) citam diversos recursos presentes nos textos, que
os configuram como multimodais. Um deles são as cores. Para a teoria da multi-
modalidade, as cores são de extrema relevância; tons mais claros, mais escuros,
foscos produzem efeitos que têm relação com as condições de produção, com a
temática, com a posição e o intuito discursivo do enunciador. Para os autores, é
importante discutir a relação das cores com o plano de frente ou de fundo, pois
elas mostram a relevância que tem o objeto mostrado na composição:

No caso de a composição dar destaque à imagem que aparece em


primeiro plano da composição visual, essa será a principal carac-
terística do plano de frente, que pode ser composto por uma ima-
gem maior ou por cores mais fortes que ocuparão a parte central
da composição. Ao contrário do plano de fundo, cuja caracterís-
tica principal é preencher o fundo com cores neutras ou com fi-
guras que não chamem a atenção demasiada do observador. O
estudo da composição compreende, portanto, a investigação do
modo como as múltiplas semioses se articulam na sintaxe visual,

220
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

com o intuito de revelar as ideologias e as relações de poder ocul-


tas nas ingênuas posições ocupadas pelas semioses na composi-
ção multimodal. (VIEIRA; SILVESTRE, 2015, p. 66).

Como destacado por Vieira e Silvestre (2015), a imagem ou escrita com


objetivo principal deve ocupar o centro da imagem com cores mais marcantes,
fortes; já no plano de fundo, se o objetivo é apenas preencher o espaço vazio, as
cores geralmente são mais claras, opacas, não chamativas tanto quanto as do foco
visual.

De acordo com a teoria da multimodalidade, todo texto é multimodal; al-


gumas vezes, o texto pode não possuir imagem, mas apresenta oscilação de tama-
nho da fonte, cores diferentes, rodapé, margem, etc., que auxiliam na construção
dos sentidos. Como destacam Vieira e Silvestre (2015), a presença de palavras e
imagens dá origem ao hibridismo multimodal, em que se tem a relação do texto
com a imagem para auxiliar na compreensão e na intencionalidade do autor.

A linguagem visual possui uma sintaxe própria, ou seja, uma organização


para se entender melhor os recursos visuais, presentes no que será observado,
analisado, estudado. Dessa forma, Kress e Van Leeuwen (2006) discutem algu-
mas estruturas multimodais que são utilizadas para produzir sentidos nos tex-
tos visuais. Trata-se da Gramática do Design Visual – GVD, a qual, respaldada na
Semiótica Social, tem por objetivo:

[...] unir ‘as principais estruturas composicionais que têm se


tornado convenções ao longo da história da semiótica visual
e analisar como elas são usadas pelos produtores de imagem
contemporâneos para produzir sentido’, concebendo o contex-
to, os envolvidos na interação e as atividades discursivas como
um processo dinâmico e de múltiplas articulações. (AZEVEDO;
RIBEIRO, 2018, p. 21).

Numa aplicação didática da GDV, Azevedo e Ribeiro (2018, p. 23) pontuam


as seguintes categorias que consideramos pertinentes para os propósitos deste
trabalho: “i) participantes representados e interativos (estrutura representacio-
nal); ii) contato e distância social (significado interacional); e iii) valor da infor-
mação (significado composicional)”. Têm-se dois modos de conceituar o que está
representado no texto e quem irá interagir com esse texto, são eles: participantes
representados e participantes interativos; os primeiros são os que são exibidos no
texto visual e os segundos são os apreciadores das imagens. Dessa forma, pessoas,

221
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

lugares, objetos, etc. são caracterizados como participantes representados, pois


atuam na função de representar o que será estudado em determinado texto. Já
participantes interativos têm a função de interagir com o texto, ouvindo, lendo,
escrevendo, analisando, apreciando, etc. Para Azevedo e Ribeiro (2018, p. 25), “o
significado interacional diz respeito ao grau de interação entre os elementos da
composição (participantes representados) e o leitor (participantes interativos)”.

Também, com base em Kress e Van Leeuwen, os autores comentam que o


envolvimento entre os participantes da interação têm grande relação com dire-
cionamento de olhar:

Se o olhar é voltado diretamente ao participante interativo (lei-


tor /espectador), tem-se o olhar de demanda. Neste caso, há um
maior contato, uma maior interação e uma forte conexão entre
os envolvidos, mesmo que seja apenas no nível imaginário, ‘exi-
gindo’ do leitor uma atitude responsiva. (AZEVEDO; RIBEIRO,
2018, p. 25).

Pode-se dizer que a relação de direcionamento do olhar, no viés da teoria


da multimodalidade, traz implicações na leitura ao ressaltar a ideia de aproxima-
ção ou distanciamento entre o leitor e os participantes representados. Segundo
Azevedo e Ribeiro (2018), na propaganda, quando o olhar do participante repre-
sentado não é direcionado diretamente ao público-alvo é denominado olhar de
oferta; nesse caso, o participante coloca em relevo o valor intencional do produto
sem um contato direto com os apreciadores.

Outros aspectos importantes que Azevedo e Ribeiro (2018) pontuam, com


base em Kress e Van Leeuwen (2006), são os planos: plano fechado, plano médio
e plano aberto, que representam a distância social entre participante represen-
tado e participante interativo, ou seja, entre o que está sendo representado e o
público. Essa distância vai de uma relação próxima, relação média e uma relação
distante, respectivamente. Portanto, quando a imagem retrata cabeça e ombros,
a relação estabelecida é mais próxima, sendo assim considerada como plano fe-
chado. Quando a imagem é mostrada até a região da cintura, a aproximação tende
a ser média, sendo chamada de plano médio, pois a distância entre representado
e interativo é intermediária. O plano aberto pode ser considerado quando a ima-
gem é mostrada de corpo inteiro, delimitando uma certa distância social entre os
participantes.

222
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Conforme Kress e Van Leeuwen (2006) e Azevedo e Ribeiro (2018), o lugar


ocupado pelo participante representado, também é relevante para a multimoda-
lidade, pois contribui para os efeitos de sentido das imagens. Quando o elemento
da imagem se posiciona à esquerda, é considerado como característica dada, o
que demonstra que a imagem é conhecida, familiar ou pertencente à cultura do
interativo. Agora, quando a informação é nova, desconhecida pelo público, é posi-
cionada do lado direito da imagem, o que revela que a composição visual é inédita,
desconhecida.

Outras categorias importantes da teoria da multimodalidade, de acordo


com Kress e Van Leeuwen (2006), são o real e o ideal. Para Azevedo e Ribeiro
(2018, p. 32), “[..] se posicionado no ângulo superior, o elemento é Ideal (sonho),
imaginável, promessa a ser alcançada pelo observador, [já] no ângulo inferior, o
elemento é Real (realidade), ou seja, subordinado ao primeiro e comum para o ob-
servador”. Em outras palavras, o elemento ideal, localizado em ângulo superior,
enfatiza alguma coisa que pode ser um sonho, algo que se quer conquistar; o que
está posicionado em ângulo inferior é caracterizado como real. Pode-se citar um
exemplo: em uma propaganda de maquiagem, têm-se duas imagens, a que é con-
siderada ideal, sonho, bonita, maquiada, e a real, que é a personagem sem maquia-
gem, menos vistosa e arrumada que a personagem que utilizou o produto, levan-
do ao público-alvo o sonho de utilizar a linha de cosméticos.

Como enfatizam Kress e Van Leeuwen (2006), os elementos colocados


ao centro da imagem são considerados como elementos centro da atenção, res-
ponsáveis por transmitir a informação prioritária. Os elementos posicionados ao
redor do central são designados de margem e podem representar subordinação,
dependência da composição central ou até mesmo desvio de atenção.

Também, são importantes os aspectos multimodais em filmes, curta-metra-


gens, novelas, etc. Segundo Andrade e Leite (2017, p. 200), “a concepção de um
personagem passa primordialmente por suas características emocionais, e a par-
tir delas, são traçados seus aspectos físicos, e consequentemente as proporções,
que geralmente são definidas pela cabeça como base”. Aspectos físicos como ex-
pressão facial, gestos, atitudes que moralmente formam o personagem, sua con-
duta, são aspectos que constroem as características do personagem. Em um filme,
cada personagem tem um papel para desenvolver, seja protagonista, vilão, casal
romântico, entre outros; é necessária a construção de uma identidade para cada

223
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

tipo de personagem que desenvolve a cena. São as características físicas e psico-


lógicas que contribuem para a construção desse personagem.

Para Andrade e Leite (2017, p. 200), as “características físicas são retrata-


das pelas roupas, gestos, aparência do personagem (cor dos olhos, cabelos, mar-
cas), biótipo (gordo, magro, alto, baixo), formato da cabeça, cor dos cabelos, cor
dos olhos, dentre outros”; já as características psicológicas são retratadas como
os sentimentos das pessoas, sua índole, personalidade.

De acordo com Salles (apud ANDRADE; LEITE, 2017, p. 201), as luzes po-
dem ser classificadas de acordo com seu direcionamento: direto ou refletido;
como por seu grau de dispersão: dura, semi-difusa e difusa.

Iluminação direta: a fonte de luz é apontada diretamente para o


elemento na cena, sem interferência, mantendo assim suas ca-
racterísticas originais.
Iluminação refletida ou indireta: a luz sofre alteração no trajeto
da fonte até o elemento, ocasionando assim, uma alteração na
qualidade da mesma.
Luz dura: uma luz direta que deixa muito contraste entre as par-
tes iluminadas e não iluminadas. Nesse tipo de iluminação se en-
contra uma sombra muito nítida com visibilidade precisa de seus
contornos.
Luz difusa: geralmente obtida através de uma iluminação refle-
tida. Grau de difusão é determinado pela distância do elemento,
como também as características próprias da fonte de luz. Nesse
tipo de iluminação se obtém uma sombra mais suave e atenuada.
Luz semi-difusa: esse tipo de luz é um meio termo entre a luz
dura e a difusa. Se caracteriza por contornos nítidos, porém com
a presença de uma suavidade na passagem da luz, gerando assim
uma região de penumbra. (ANDRADE; LEITE, 2017, p. 201-202).

As iluminações e os tipos de luzes fazem toda a diferença nos filmes, vídeos,


novelas, curta-metragem, etc., indo de uma iluminação mais natural, até uma luz
mais sombreada; tudo depende do contexto e do tipo de cena que são retratados,
por exemplo, uma cena que transmite suspense e terror, a tendência é ser mais es-
cura, ou como uma penumbra, para levar o telespectador à ideia mais próxima da
realidade. “Para compor uma cena é necessário pensar no que precisa ser o foco
daquele momento. Por exemplo, se o personagem principal for o centro daquela

224
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

cena, a composição tem que mostrar isso de alguma maneira, seja através de um
contraste de cor [...]” (ANDRADE; LEITE, 2017, p. 202).

Quanto à angulação e posição da câmera, são definidos alguns conceitos:

Ângulo normal: nesse tipo de enquadramento a câmera está


gravando no mesmo nível dos olhos do personagem.
Plongée: também pode ser chamada de câmera alta, e ocorre
quando a câmera está acima do nível dos olhos, ou seja, voltado
para baixo.
Contra-plongée: pode ser chamada de câmera baixa, esse tipo
de enquadramento ocorre quando a câmera se encontra abaixo
do nível dos olhos, realizado assim a gravação voltado para cima.
(GERBASE apud ANDRADE; LEITE, 2017, p. 204).

A angulação e a posição da câmera dão ênfase ao que se pretende retra-


tar; se o objetivo é mostrar a imagem no nível dos olhos, o ângulo enfatizado é o
normal; se a intenção é colocar a imagem em posição superior, utiliza-se câmara
em contra-plongée; se, pelo contrário, a intenção é colocar a imagem em posição
inferior, faz-se uso da câmera em plongée. Quanto à angulação da câmera, são ve-
rificadas as seguintes categorias:

Frontal: nesse tipo de enquadramento o personagem é filmado


de frente.
¾: esse tipo de posicionamento é utilizado para dar o efeito de
tridimensionalidade ao personagem, geralmente é utilizado um
ângulo de 45 graus. Muito utilizado em animações justamente
para retirar o efeito “chapado”, e dar uma ideia de profundidade.
Perfil: nessa posição a câmera faz o registro do perfil do persona-
gem e para isso a câmera fica posicionada a um ângulo aproxima-
do de 90 graus com relação ao nariz do personagem.
Nuca: câmera posicionada para filmar a nuca do personagem, ou
seja, é realizado o registro do personagem de costas. (GERBASE
apud ANDRADE; LEITE, 2017, p. 204).

Os tipos de ângulos influenciam no efeito que se quer dar à filmagem.


Andrade e Leite (2017) afirmam que o movimento de câmera é a base do cinema.
É ele que diferencia o cinema do teatro, e tira a monotonia dos planos parados e
fixos. Por mais que existam planos em que os personagens fiquem fixos e parados,

225
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

o corte se encarrega de retirar esse “marasmo”. É relevante o papel da movimen-


tação da câmera para estabelecer efeitos aos planos retratados, excluir a monoto-
nia de apenas um plano, o que perderia o sentido do que se quer gravar se tivesse
apenas um tipo de movimento. Esses movimentos definem como a câmera acom-
panha os objetos e personagens, de modo a causar os fins desejados, fornecendo
ao telespectador os efeitos que causam em cada um dos tipos de movimentos.

Ferreira e Almeida (2018, p. 117) destacam que “[...] no contexto hipermi-


diático, no qual as interações sociais se efetivam, é recorrente a presença de textos
que se organizam e se atualizam por meio de diferentes semioses. Consideramos
relevante que o professor compreenda como essas semioses se articulam no pro-
cesso de construção dos sentidos [...]”, de modo a propiciar a leitura multimodal.

Por essa via, ampliar as atividades de leitura escolar significa


oferecer aos aprendizes oportunidades de pensarem o mundo
na proporção em que ele se apresenta: plural, multissemiótico
e multifacetado. Se a escola forma cidadãos para o mundo e se
os meios de expressão contemporâneos são multimodais, nota-
damente não há como se esquivar desse expediente de ensino.
(AZEVEDO; RIBEIRO; 2018, p. 35).

Se é evidente a presença dos recursos multimodais nos textos que circu-


lam na sociedade, a escola tem por dever incluir nas aulas a multimodalidade, não
apenas para tornar as aulas mais dinâmicas, mas para preparar os alunos para uma
leitura visual crítica e responsiva:

É de se pontuar que trabalhar na escola questões relacionadas


à organização dos componentes visuais possibilita o
desenvolvimento crítico-leitor dos alunos, visto que os sujeitos
passam a considerar o valor semântico da junção imagem-texto,
deixando de perceber o modo visual como adorno. Isso aponta
para a importância de o professor de lingua(gem) se apropriar
dessa perspectiva teórica para levar seus princípios para a sala
de aula, modernizando as práticas de leitura e escrita escolar.
(AZEVEDO; RIBEIRO; 2018, p. 23).

Uma leitura competente, que explore a relação entre os recursos presen-


tes no texto, que proporcione posicionamentos acerca do tema e da sociedade,
requer uma análise de todos os aspectos do texto. O estudo do texto verbal e
não verbal fortalece o desempenho de um leitor; assim, é indispensável analisar,

226
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

discutir, refletir o conjunto do texto, não apenas o verbal ou vice-versa. Ambos


possuem relações que jamais devem ser deixadas de lado ao se trabalhar um texto
de qualquer gênero na escola; é essencial instruir os alunos desde cedo para com-
preender o valor semântico do texto escrito e da imagem.

De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

O Eixo Leitura compreende as práticas de linguagem que de-


correm da interação ativa do leitor/ouvinte/espectador com os
textos escritos, orais e multissemióticos e de sua interpretação,
sendo exemplos as leituras para: fruição estética de textos e
obras literárias; pesquisa e embasamento de trabalhos escola-
res e acadêmicos; realização de procedimentos; conhecimento,
discussão e debate sobre temas sociais relevantes; sustentar a
reivindicação de algo no contexto de atuação da vida pública; ter
mais conhecimento que permita o desenvolvimento de projetos
pessoais, dentre outras possibilidades. (BRASIL, 2018, p. 70).

O documento leva em conta não apenas o texto escrito ou oral, mas o texto
multimodal. Capistrano Júnior et al. (2017, p. 288), baseando-se em Kress e Van
Leeuwen, afirmam que todo enunciado se apresenta “[...] em virtude de uma sé-
rie de modos de representação e de comunicação. Mesmo quem escreve realiza
uma série de escolhas e decisões quanto à organização do sistema linguístico, tais
como o tipo de letra, espaçamento, distribuição espacial etc.”. Assim, a multimoda-
lidade é encontrada em todos os gêneros discursivos, sendo identificada no tama-
nho da fonte utilizada, na cor, na margem, nos elementos grifados, nas imagens,
etc.

Análise do curta-metragem “O outro par”

Nesta seção, com base nos estudos da teoria da multimodalidade, será rea-
lizada uma análise do curta-metragem produzido no Egito e intitulado: “O outro
par” (The other Pair), dirigido por Sarah Rozik, com roteiro de Mohammed Maher,
lançado no ano de 2014. O vídeo foi o vencedor do festival de Luxor em 2014. A
obra de Sarah Rozik foi inspirada em um acontecimento, como o destacado no
curta-metragem, com Mahatma Gandhi.

O curta-metragem é um filme com duração de até 30 minutos. Geralmente


os curtas têm função comercial, educativa ou artística, como principal objetivo

227
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

passar uma mensagem com teor crítico social, problematizando uma situação.
Segundo Moletta (2009, p. 17), o curta-metragem:

[...] equipara-se ao conto na literatura ou ao haicai na poesia:


trata-se de uma forma breve e intensa de contar uma história
ou expor um personagem [...]. Esse formato de cinema tem como
principais características a precisão, a coerência, a densidade
e a unidade de ação ou impressão parcial de uma experiência
humana.

O curta-metragem “O outro par” traz como enredo a história de um meni-


no humilde a caminhar em uma cidade com um chinelo arrebentado, velho. Para
consertar o chinelo, senta em um pequeno banco na estação de trem, começa a
observar as situações que acontecem no lugar que aparentemente é um centro
urbano, onde pessoas andam de um lado para outro. De repente, ele vê um outro
menino, que aparenta pertencer à classe média, de sapatos pretos que parecem
ser novos. O menino humilde observa, admira aquele sapato reluzindo e seu dono
limpando-o para ficar ainda com mais brilho.

Após esse primeiro momento, o menino dos sapatos vai em direção ao trem
que chega à estação, porém com tanta pressa, acaba perdendo um dos pares do
sapato. A criança humilde junta o sapato perdido do chão e vai correndo ao lado
do trem para tentar devolver o sapato ao menino que o perdeu. No trem, o dono
do calçado fica na porta com a mão estendida na esperança de conseguir pegar
seu calçado. Quando o trem toma distância o menino arremessa o sapato achando
que o dono conseguiria pegar, mas sem êxito. Em uma atitude nobre, o menino
rico arremessa o outro par do sapato ao garoto humilde que fica com os dois sa-
patos. Ele, que mesmo em condições difíceis com um chinelo velho, tentou ajudar
o outro a recuperar o sapato, é surpreendido pela boa ação do outro garoto que
reconheceu seu esforço para tentar ajudá-lo e decidiu presenteá-lo com algo que
o menino humilde precisava e estava admirando. Um curta-metragem bastante
emocionante e que mostra que uma boa ação gera outra boa ação.

Segundo informações da revista “Prosa, Verso e Arte”, a obra “O outro par”


foi inspirada em um incidente que envolveu Mahatma Gandhi. Ghandi, nas suas
memórias, relata que certo dia, ao entrar num comboio na Índia, escorregou e
perdeu um sapato. Calmamente tirou o outro sapato e lançou-o para o cais de
forma a cair perto do primeiro, enquanto o comboio se afastava da estação. Um

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

passageiro perguntou-lhe porque fez isso. Gandhi sorriu e disse: “– Se um homem


pobre encontrar apenas um sapato, de nada lhe servirá. Agora ele terá um par, que eu
tive a honra de doar”3.

Ao se considerar a estrutura narrativa, há uma organização para o estabe-


lecimento do vídeo: a apresentação inicial é o menino caminhando com chinelo
arrebentado; depois aparece o outro garoto com os sapatos novos, o que pode ser
entendido como a causa do conflito; em seguida, o trem chega à estação e o menino
perde um par do sapato que é o estabelecimento desse conflito. Posteriormente,
o menino pobre corre atrás do trem para entregar o par do calçado, joga-o no
trem, mas o outro rapaz não consegue apanhá-lo (ápice conflitual). A última cena
é quando o menino, que está no trem, arremessa o outro par do calçado ao garoto
pobre – epílogo ou conclusão – e o resultado caracterizado é o garoto feliz por ter
ganhado o sapato.

O espectador precisa observar minuciosamente cada detalhe do vídeo


para poder entender seu objetivo; não são só os movimentos dos personagens
que propiciam a compreensão, mas também a junção de elementos que atuam na
construção da compreensão: as expressões, cores, gestos, planos, objetos repre-
sentados, tipos de representações, tudo isso colabora para o entendimento do
curta:

Para que o espectador adote uma participação ativa, faz-se ne-


cessário observar os vários elementos significantes que com-
põem a enunciação e o enunciado do filme, entre eles as manifes-
tações de emoção. Esses significantes transmitem orientações
para a interpretação da narrativa e permitem ao espectador pro-
duzir e partilhar sentidos e significados. (FERREIRA; VILLARTA-
NEDER, 2017, p. 78).

A seguir serão analisados, a partir de algumas cenas, alguns recursos uti-


lizados na elaboração do curta-metragem “O outro par”4 que colaboraram para
a construção dos sentidos. Por se utilizar apenas da linguagem não verbal, tudo
que é construído no encadeamento das imagens colabora de alguma forma para o
entendimento do curta-metragem.

3 Disponível em: https: //www.revistaprosaversoearte.com/o-outro-par-um-belissimo-e-como-


vente-curta-metragem-egipcio-inspirado-no-jovem-gandhi/. Acesso em: 20 ago. 2020.
4 Disponível em: https: //www.youtube.com/watch?v=tbcGnzVTYXw. Acesso em: 20 ago. 2020.

229
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Cena 1 (movimentos de pessoas e o chinelo do menino).

Na cena 1, como imagem central – que segundo Kress e Van Leewen (2006)
compõe-se de elementos centro da atenção – observam-se os pés do menino com
chinelos velhos, sendo um arrebentado, o que dificulta seu andar; no plano de fun-
do, notam-se diversos pés, a mostrar pessoas se movimentando em um espaço
que parece ser público. A relação entre o que se expõe na imagem central e no
plano de fundo sugere um possível descaso da sociedade à situação vivenciada
pelo menino, pois os movimentos no plano de fundo não cessam, a evidenciar que
todos estão ocupados com a sua própria vida.
A iluminação mostra-se ser natural, podendo ser considerada como ilu-
minação direta (ANDRADE; LEITE, 2017), com suas características originais.
Sombras e uma leve penumbra sugerem que a história se passou em uma tarde de
sol. Tais elementos contribuem também para uma ideia de desânimo e desconten-
tamento que perpassa as cenas iniciais do filme. Associam-se a esses elementos
semióticos um fundo musical triste, que leva os participantes interativos a parti-
lhar da tristeza, a se emocionar com a situação do jovem menino.

Cena 2 (mostra o chinelo de forma mais próxima).

230
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Cena 3 (sapatos do garoto que passa por ele).

Nas cenas 2 e 3, podem-se notar dois opostos. Na cena 2 como plano cen-
tral tem-se o chinelo velho, aparentemente bastante usado, e o menino tentando
consertá-lo. A posição da câmera é a plongée, voltada para baixo, a colocar em evi-
dência a penúria e a fragilidade do participante representado. O fundo musical
permanece triste, a destacar as condições difíceis pelas quais o jovem passa. Na
imagem 3, é possível observar, como centro da imagem, os pés de um outro me-
nino com sapatos novos, pretos, brilhantes; o foco da imagem está nos pés desse
outro garoto para destacar o seu calçado. Nota-se que a penumbra que aparecia
nas cenas anteriores – 1 e 2 – dá lugar a uma claridade, a sugerir condições so-
ciais mais favoráveis. Há uma proximidade da câmera nos calçados, enfatizando
tanto as diferenças entre os calçados, como entre as condições sociais dos que os
vestem.

Pode-se refletir também acerca das cores dos calçados que permeiam as
cenas. A proximidade da câmera na cena 2 evidencia um chinelo na cor marrom, a
qual, de acordo com Oliveira (2015, p.31), é “a cor que menos se aprecia no decor-
rer da vida [...] A cor do antiquado, da falta de refinamento e dos pobres”. Podem-
se associar essas características da cor com a vida humilde do jovem. Na cena 3,
evidenciam-se sapatos pretos que, no contexto apresentado, sugerem luxo e ele-
gância. Desse modo, as cores colocam em evidência as condições sociais diferen-
ciadas enfrentadas pelos meninos.

231
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Cena 4 (expressão de admiração).

Cena 5 (expressão de tristeza).

Essas duas cenas também mostram dois opostos, dessa vez, quanto ao es-
tado emocional do garoto, expressão que vai da admiração, ao ver os sapatos do
menino que passa por ele, à tristeza, pelo fato de se ver na situação em que está.
Na cena 4, o garoto, com olhos arregalados e boca aberta, contempla o menino
rico limpando seus belos sapatos; não se evidencia um olhar de inveja ou ciúmes,
mas de admiração, talvez uma certa alegria por poder contemplar o objeto, o que
desperta no participante interativo uma simpatia pelo menino. Esses aspectos
estão vinculados ao plano apresentado na cena, neste caso, o plano fechado, em
que a imagem retrata cabeça e ombros, estabelecendo uma relação mais próxima
entre participantes interativos.
Na cena seguinte, o menino olha para o chão, para seus chinelos, certa-
mente comparando-os com os sapatos usados pelo outro menino. A cena propi-
cia aos participantes interativos penalizarem-se com a situação, questionarem

232
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

as desigualdades sociais, as diferenças de oportunidades oferecidas às crianças


e aos adolescentes na sociedade. Esses aspectos são evidenciados em um plano
médio, quando a imagem é mostrada até a região da cintura, atribuindo uma apro-
ximação média entre participante interativo e participante representado.
Nota-se que, quando o menino está sorrindo (Cena 4), o fundo musical fica
com um ritmo um pouco mais animado; na outra cena (Cena 5), quando ele olha
para seu calçado, o fundo musical volta para o ritmo triste.
Observa-se que o menino pobre veste uma camisa azul, cor que colabora
para despertar a simpatia por parte do participante interativo para com o partici-
pante representado. O azul é a cor “[...] predileta da maioria das pessoas. Que re-
mete a simpatia, a harmonia e fidelidade e das virtudes intelectuais, da inteligên-
cia, da ciência” (HELLER, [2000] 2013 apud OLIVEIRA, 2015, p. 30). Desse modo,
a cor azul associada à humildade e ao sofrimento do participante representado
instiga um olhar mais complacente por parte do espectador.

Cena 6 (expressão de tristeza).

Cena 7 (menino arremessa o sapato).

233
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A cena 6, que novamente dá destaque ao menino pobre, em plano fechado,


retrata os momentos de conflito da narrativa – quando o garoto rico perde um par
de seu calçado e a criança humilde pega-o. A câmera está em contra-plongée, isto
é, está numa direção abaixo dos olhos a colocar o participante representado em
uma posição de superioridade. Esta posição, somada a uma expressão facial que
não denota nem alegria e nem tristeza, bem como ao olhar de oferta (o olhar não
se direciona ao espectador), deixa o participante interativo em expectativa: o que
será que o menino fará com o cobiçado sapato?

A expectativa é desfeita na cena 7, em que, com uma expressão decidida e


de esforço físico, o menino sai correndo atrás do trem, onde está o dono do sapa-
to, no intuito de tentar devolvê-lo. A câmera agora está em plongée, ou seja, está
numa posição superior a destacar a fragilidade do participante representado, em
plano aberto, que corre em vão para atingir o objetivo de devolver o sapato.

Cena 8 (expressão de alegria).

A cena 8 mostra a expressão facial de alegria do menino humilde, em um


olhar de demanda – em que o olhar do participante representado é direcionado
diretamente ao público-alvo, ao participante interativo, a sugerir uma relação
próxima e interativa entre eles. Segundo Andrade e Leite (2018, p. 25), no olhar
de demanda “há um maior contato, uma maior interação e uma forte conexão en-
tre os envolvidos, mesmo que seja apenas no nível imaginário, ‘exigindo’ do leitor
uma atitude responsiva”.

Verifica-se que a penumbra predominante em outras cenas do curta se


desfaz, o ambiente torna-se claro, límpido, eliminando a tristeza que acompanhou
a trajetória do menino. A música se torna mais alegre ao somar-se à expressão

234
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

demonstrada pelo personagem principal. Isso tudo se coaduna com a conclusão


da narrativa, em que o jovem humilde é surpreendido pela boa ação do outro ga-
roto que reconheceu seu esforço para tentar ajudá-lo e decidiu presenteá-lo com
o outro sapato, em uma atitude nobre e emocionante.

Considerações finais

Este trabalho buscou trazer alguns elementos multimodais que auxiliam


na compreensão do curta-metragem “O outro par”, como as cores, as expressões
faciais, a posição da câmera e a iluminação. Observou-se que cada aspecto multi-
modal contribui para atingir a finalidade do curta, que é promover reflexões em
torno das relações sociais e da solidariedade humana.

Como destacado, a multimodalidade está cada vez mais marcante na atua-


lidade e se torna muito conveniente seu estudo, afinal tudo ao nosso redor se en-
trelaça com múltiplas formas de linguagem. Considera-se, também, que a reflexão
e a leitura crítica dos textos multimodais, como os curtas-metragens, na sala de
aula proporcionam ao aluno uma visão ampla do social e um posicionamento em
relação a questões políticas, ideológicas, culturais, aspectos de suma importância
para formar um cidadão crítico e atento a fatos que ocorrem na sociedade.

Referências

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dos elementos estéticos e práticos do curta metragem “Paperman”. Temática. n.
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235
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

FERREIRA. H. M, ALMEIDA. P. V. Formação de professores para o trabalho com


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Gramática Sistêmico-Funcional, Análise de Discurso Crítica, Semiótica Social.
Brasília: J. Antunes Vieira, 2015.

236
ANÁLISES DE ESCRITAS E REESCRITAS
EM ARTIGOS DE OPINIÃO1

Iolana Cristina Pereira2


Marlei de Fatima Locatelli3
Letícia Lemos Gritti4

RESUMO: Este trabalho, que é parte de uma pesquisa maior, visa apresentar uma
análise da produção escrita de artigos de opinião, mais especificamente da com-
paração entre a primeira e a última versão dos textos produzidos por dois estu-
dantes do primeiro período (2015/01), do curso de Letras Português- Inglês da
Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus Pato Branco. Eles foram
participantes do curso de extensão “Oficina de leitura, escritura e reescritura de
artigos de opinião” e, portanto, o método de produção de dados foi qualitativo-
-descritivo. O objetivo foi compreender quais foram as dificuldades e verificar
se houve evolução da primeira para a última versão. A fundamentação teórica
utilizada para a análise do material consiste nos seguintes autores: Koch (1997-
2001-2005), Bakhtin (2003[1992] -2010), Vygotsky (1993-2009), Faraco (2009),
Fávero (2005) e Marcuschi (2008), entre outros. Os resultados revelam que a
principal dificuldade em relação à produção do artigo de opinião é referente à ar-
gumentação e, consequentemente, às características composicionais do gênero.

1 O presente artigo deriva do trabalho de conclusão de curso de Iolana Cristina Pereira e Marlei
de Fatima Locatelli, no curso de Licenciatura em Letras Português-Inglês da UTFPR, Campus
Pato Branco, sob orientação da profª Drª Letícia Lemos Gritti.
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus Pato Branco. iolanapereira@hotmail.com
3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus Pato Branco. marlei100duvidalocatelli@
hotmail.com
4 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus Pato Branco. leticiagritti@utfpr.edu.br

237
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Entretanto, o estudo revela que a metodologia empregada na Oficina e a colabo-


ração dos professores responsáveis pelo projeto, com suas correções, são efica-
zes, pois houve evolução significativa dos textos.

PALAVRAS-CHAVE: Artigo de opinião; escrita; reescrita.

ABSTRACT: This paper, which is part of a larger research, seeks to present an analysis
of the written production of opinion articles, more specifically the comparison between
the first and the last version of the texts produced by two students of the first semester
(2015/01) , from the Portuguese-English Literature undergraduate course at Federal
University of Technology - Paraná, Campus Pato Branco. They participated in the ex-
tension course “Workshop on reading, writing and rewriting of opinion articles” and,
therefore, the data production method was qualitative and descriptive. The objective
was to understand what the difficulties were and to verify if there was an evolution
from the first to the last version. The theoretical basis used for the analysis of the mate-
rial consists of the following authors: Koch (1997-2001-2005), Bakhtin (2003 [1992]
-2010), Vygotsky (1993-2009), Faraco (2009), Fávero (2005) and Marcuschi (2008),
among others. The results reveal that the main difficulty regarding the production of the
opinion article is related to the argumentation and, consequently, to the compositional
characteristics of the genre. However, the study reveals that the methodology used in
the Workshop and the collaboration of the teachers responsible for the project, with
their corrections, are effective, as there has been a significant evolution of the texts.

KEYWORDS: Opinion article; writing; rewritten.

Introdução

Durante o ensino infantil, fundamental e médio os alunos são apresenta-


dos à leitura e à produção textual na disciplina de Língua Portuguesa. Porém, é
notável suas dificuldades em relação a isso, pois pesquisas mostram que a maioria
dos egressos do ensino médio brasileiro não conseguem ler e interpretar mini-
mamente um texto, tampouco sabem produzi-lo satisfatoriamente (baixo nível de
alfabetismo funcional).

Sabendo de todos os problemas dos diversos níveis que envolvem o ensino


e que alguns deles dependem de muitos fatores, tais como o financeiro, o estrutu-
ral que envolve, principalmente, investimentos na carreira do professor, cabe aos
profissionais da linguagem pesquisar cientificamente os eventuais fatores teóri-
co-metodológicos que envolvem possíveis problemas acerca disso. Foi pensando

238
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

nisso que este trabalho, que é parte de um trabalho maior de pesquisa de conclu-
são de curso (PEREIRA et al., 2016) surgiu.

Neste trabalho foram analisados textos ( artigos de opinião) produzidos


por alunos da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Campus Pato
Branco, que participaram de um curso de extensão de produção textual, ofertado
pela entidade. Os participantes eram estudantes do curso de Letras, do primeiro
período. Houve dezesseis inscritos e onze alunos terminaram o curso.

Inicialmente, os alunos elaboraram um primeiro texto somente com conhe-


cimentos prévios que tinham sobre o gênero artigo de opinião. Posteriormente,
eles foram sendo orientados com relação à estrutura do gênero artigo de opinião,
à coesão e à coerência dos textos, à norma padrão, etc. E, acima de tudo, houve
quatro reescritas do mesmo texto, com a mesma temática. Só depois disso, é que
houve a escritura de um novo texto, com nova temática e, novamente, sem o au-
xílio dos professores, eles construíram um novo artigo de opinião. Neste recorte
do trabalho maior, foram analisadas a primeira e a última versão de dois desses
articulistas, participantes do curso.

As perguntas de pesquisa são as seguintes: a metodologia do curso foi efi-


ciente? Existe necessidade de um curso com esse tipo de metodologia? Pode-se
dizer que os articulistas conseguiram produzir um artigo de opinião (ao comparar
a primeira versão com a última versão, com nova temática)? Existe diferença na
produção escrita da primeira versão para a última versão? As produções tinham
coesão e coerência? Os textos apresentavam a estrutura do artigo de opinião,
com as características que lhe são próprias?

Para responder a essas perguntas, fundamentamos a pesquisa em Bakhtin


(2003; 2010), Vygotsky (1993; 2009), Fávero (2005), Faraco (2008) e Koch (1997;
2001; 2005). Utilizando-os, observamos a metodologia ofertada aos alunos no
curso e analisamos a comparação entre as versões dos textos, enumerando as
questões em que houve mudança da primeira para a última versão. Desse modo,
identificamos se o curso obteve êxito, para assim poder utilizar esse tipo de abor-
dagem e metodologia em outros cursos relacionados à produção textual.

Fundamentação teórica

É importante que o enfoque do ensino por meio dos gêneros seja trazido
para o contexto desta pesquisa, uma vez que ele norteou o curso ministrado para

239
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

a produção dos dados analisados, também porque suas características foram


categorias que fizeram parte da análise desses dados.

Os Gêneros Textuais tratam da materialização dos textos em situações co-


municativas. Caracterizam-se muito mais por sua funcionalidade na ação de co-
municar-se, que por uma sequência linguística. Marcuschi (2005, p. 30) observa
que

[o]s gêneros não são entidades naturais como as borboletas, as


pedras, os rios e as estrelas, mas são artefatos culturais construí-
dos historicamente pelo ser humano”. Por se embasarem nas cul-
turas humanas, os Gêneros podem variar de uma sociedade para
outra, com toda certeza variam de um contexto histórico para
outro e são ainda capazes de surgir, se modificar e desaparecer.
São exemplos de Gêneros: carta pessoal, reportagem, e-mail,
sermão, receita culinária, bilhete, piada, edital de concurso, diá-
logo informal, bula de medicamento, resenha, inquérito policial,
conversas por computador, etc.

Os gêneros textuais possuem diferentes formas de linguagem, temáticas e


também diversificados tipos de enunciados empregados nos textos. Por se mani-
festarem socialmente, têm funções importantíssimas e específicas na sociedade.
Essa concepção tem origem no conceito de gênero proposto por Mikhail Bakhtin
(2003), para o qual os gêneros são “tipo relativamente estáveis de enunciados”.
Eles se realizam nas mais variadas esferas sociais e possuem características com-
posicionais que lhe são próprias5. O que é o caso do gênero artigo de opinião, ob-
jeto de estudo da análise desta pesquisa.

O gênero artigo de opinião é localizado dentro daqueles gêneros do argu-


mentar. Baltar (2007, p. 157) comenta sobre a tipologia do argumentar:

Um gênero textual constituído pela ordem tipológica do argu-


mentar cria em seu interlocutor, um efeito de sentido que o faça
aderir ou refutar uma tese exposta, ou seja, um ator verbal ou
locutor, deixa, então, pistas da opção retórica de organização
de seu texto, lançando mão de operadores lógicos de argumen-
tação, apresentando a tese de forma que as proposições mais
impactantes tenham relevo sobre as menos impactantes, con-
duzindo o seu interlocutor para uma conclusão lógica derivada

5 Essa discussão sobre gêneros é bem mais profunda que o espaço deste trabalho, portanto, para
mais profundidade, vide a pesquisa maior da qual esse referencial teórico foi sintetizado. Por
ora, a menção a essa concepção foi trazida para nortear a análise dos dados deste trabalho.

240
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

dos argumentos apresentados como verdades a serem por ele


validadas.

De acordo com Perelman (1988), a argumentação tem como objetivo sa-


lientar o que o interlocutor transcreve. O artigo de opinião contém essas nuances
e a partir do ponto de vista do autor do texto, usa argumentos para tentar persua-
dir o seu leitor, componentes enaltecem o referido gênero. Portanto, é imprescin-
dível definir quem será esse leitor e prever um ponto de vista oposto ao seu, em
vista da tentativa de convencimento do leitor.

Segundo Boff, Köche e Marinello (2009, p. 3), o artigo de opinião é

um gênero textual que se vale da argumentação para analisar,


avaliar e responder a uma questão controversa. Ele expõe a opi-
nião de um articulista, que pode ou não ser uma autoridade no
assunto abordado. Geralmente, discute um tema atual de ordem
social, econômica, política ou cultural, relevante para os leitores
[...].

Além de algumas características já citadas aqui como o ponto de vista, os


argumentos, o ponto de vista oposto, os autores incluem a questão da temática
polêmica, características essas que serão categorias de análise desta pesquisa.

Outra categoria elencada para análise desta pesquisa é a norma padrão. A


valorização desse conjunto de regras e padrões linguísticos, conhecido por norma
padrão, mantém-se interiorizada dentro de discentes e docentes, e é relacionada
ao alto nível de escolaridade e também muito utilizada em trabalhos, documen-
tos, artigos, resenhas e textos universitários de grande prestígio.

A norma padrão, segundo Faraco (2008, p. 75), autoridade no assunto, é


“[...] um construto sócio histórico que é tomado como referência para estimular
um processo de uniformização e uma codificação relativamente abstrata”. Ele ain-
da afirma que “uma língua é constituída por um conjunto de variedades”, e a nor-
ma culta, frequentemente confundida com a norma padrão, faz parte do conjunto
dessas variedades de normas. Porém, neste trabalho de pesquisa, a norma padrão
escrita , por muitas vezes, tem relação com a coesão e a coerência.

Para Koch; Travaglia (2001, p. 21),

a coerência está diretamente ligada à possibilidade de se esta-


belecer um sentido para o texto, ou seja, ela é o que faz com que

241
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

o texto faça sentido para os usuários, devendo, portanto, ser en-


tendida como um princípio de interpretabilidade, ligada à inteli-
gibilidade do texto numa situação de comunicação e à capacida-
de que o receptor tem para calcular o sentido do texto.

Já para Beaugrande (1980, p. 19), “a coerência subsume os procedimentos


pelos quais os elementos do conhecimento são ativados”. Sendo assim, pode-se
dizer que a coerência está ligada aos sentidos do texto e, para que isso aconteça,
muitas vezes é preciso da ajuda da coesão.

Segundo Fávero (1991, p. 10), “a coesão, manifestada no nível microtex-


tual, refere-se aos modos como os componentes do universo textual, isto é, as
palavras que ouvimos ou vemos, estão ligados entre si dentro de uma sequência”,
nota-se aqui que a coesão é basicamente a forma como se ligam as palavras e as
orações, ou seja, um texto pode ser formado sem coesão, porém, a coerência é
essencial para uma boa comunicação.

Metodologia

Esta é uma pesquisa qualitativa-descritiva. Neste recorte, foram analisa-


dos dois textos de dois articulistas que fizeram o curso completo, escolhidos alea-
toriamente. O primeiro texto foi escrito sem nenhum auxílio e o último contém
uma nova temática e também não passou por nenhuma correção dos professores
do curso.

Esses dados foram produzidos, no ano de 2015, por alunos do primeiro


período do curso de Licenciatura em Letras Português-Inglês, participantes de
um curso de extensão, ministrado pelos professores Anselmo Pereira de Lima e
Letícia Lemos Gritti.

O curso seguiu uma metodologia de produção de artigos de opinião com a


intenção de contribuir no avanço da leitura e escrita, com 16 inscritos inicialmen-
te, mas permaneceram 11 acadêmicos por um período de vinte horas-aula. Foram
cerca de sete encontros que variaram de duas a quatro horas de acordo com o
assunto proposto pelos professores. O foco era praticar e trabalhar o gênero tex-
tual artigo de opinião. Os alunos foram informados sobre a proposta pedagógica
e autorizaram por escrito a gravação de suas produções textuais com o software
AutoScreenRecorder 3.1, e as análises de seus textos.

242
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Na primeira aula, foi proposto aos alunos inscritos uma elaboração de texto
sem nenhuma explicação prévia pelos ministrantes. Mas, os alunos poderiam pes-
quisar na internet sobre um tema polêmico que eles escolhessem. Dessa forma,
como os alunos eram do primeiro período da graduação em Letras, eles reprodu-
ziram os conhecimentos adquiridos do ensino básico. Os textos foram produzidos
em laboratório informatizado e, portanto, foram, ao final, impressos.

Depois de impressos os textos, os ministrantes fizeram a correção com


anotações no próprio texto referentes à estrutura do gênero artigo de opinião
(argumentos, opinião, ponto de vista oposto, conclusão, etc.) e também questões
de forma ortográfico-gramatical e de coesão e coerência.

No segundo encontro, os ministrantes orientaram os alunos para que


fizessem duplas e o componente da dupla lesse o texto do colega sem as correções
dos ministrantes, para que esse colega também pudesse fazer apontamentos.
Depois disso, os ministrantes entregaram os textos com suas correções e os
alunos leram atentamente todas as devolutivas, tanto dos ministrantes, quanto
dos colegas. Posteriormente, os ministrantes falaram um pouco sobre o gênero
artigo de opinião e apresentaram a seguinte estrutura aos alunos: um parágrafo
com a opinião do articulista e com a temática, um parágrafo com o primeiro
argumento, um parágrafo com o segundo argumento, um parágrafo com o terceiro
argumento, um parágrafo com o ponto de vista oposto e a sua refutação e, por fim,
um parágrafo com a conclusão retomando todos os argumentos.

No terceiro encontro, os alunos foram orientados a fazer um projeto de


texto com a estrutura trabalhada no encontro anterior. Neste dia de escrita, os
alunos rememoraram o que viram na aula anterior e, de posse das informações e
orientações necessárias, elaboraram um novo texto.

No quarto dia de curso, houve a devolutiva dos projetos elaborados na aula


anterior, os professores propuseram uma dinâmica para praticarem a argumen-
tação e assim os articulistas refizeram os projetos. Dando continuidade, na quin-
ta aula, os alunos foram inseridos à aula com as instruções relacionadas à norma
padrão, salientando a coesão, coerência, paragrafação e pontuação com foco na
estrutura do texto, e assim, reescreveram novamente o artigo.

No sexto dia de aula, os articulistas terminaram de reescrever, apresenta-


ram o texto refeito, socializaram e discutiram os ajustes necessários. No sétimo
dia de curso, os textos reescritos foram devolvidos aos seus respectivos articulis-
tas, na mesma aula, eles os reescreveram utilizando-se das correções feitas pelos

243
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

professores e novamente entregaram as reescritas. Construíram um novo texto


com nova temática e de livre escolha, porém agora, com todas instruções que
obtiveram durante o curso e entregaram novamente aos professores os textos
produzidos.

No oitavo e conclusivo dia de curso, os alunos receberam a devolutiva do


último texto produzido e também do primeiro artigo produzido, os quais foram
comparados individualmente, e posteriormente dentro do grupo de estudantes.
Diante da devolutiva, aconteceu uma socialização por parte de todos, na qual, fo-
ram expostos os pontos importantes do decorrer do curso e comentários sobre
a evolução dos artigos de opinião. Também, nesse dia, os alunos produziram um
novo artigo de opinião, com nova temática.

Nessa comparação, as categorias de análise serão: características com-


posicionais do gênero discursivo artigo de opinião (opinião, temática polêmica,
argumentos, ponto de vista oposto), as de coesão e coerência, as de nível orto-
gráfico-gramatical (aqui incluem-se grafia, acentuação, estruturação das frases,
pontuação, regência e concordância verbal e nominal, etc.).

Programação do Curso: “Oficina de leitura, escritura e reescritura de


Aula
artigos de opinião”
Apresentação do Curso e produção de texto diagnóstico, sem auxílio
Aula 1
dos professores.
Devolutiva das produções diagnósticas (troca de textos com os pares).
Aula 2
Instruções sobre a estrutura do texto.
Orientações para produção de projetos de texto. Produção dos
Aula 3
projetos de textos.
Devolutiva dos projetos. Apresentação, discussão e ajuste dos projetos
Aula 4 de textos. Dinâmica em grupo para praticar a argumentação. Refazer
os projetos.
Iniciar instruções sobre a norma padrão: Coesão, coerência,
Aula 5 paragrafação, pontuação. Recapitulação sobre as instruções da
estrutura do texto. Refazem o texto.
Terminar de reescrever o texto. Apresentação, discussão e ajuste dos
Aula 6
textos.

244
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Devolutiva dos textos, reescrita dos textos; entrega dos textos ao final
Aula 7
da aula.
Devolutiva final do texto; Comparação individual e posteriormente em
Aula 8 grupo da produção inicial com a produção final; Socialização. Escrita de
um novo texto, com nova temática.
Quadro 1. Metodologia do curso de extensão ofertado pela Universidade Tecnológica Federal do
Paraná - Campus Pato Branco.

Análise de dados

De acordo com a estrutura do gênero artigo de opinião, sabe-se que exis-


tem variados elementos para que ele se enquadre no padrão, seja da norma escri-
ta, de coesão e coerência e também relacionado às características composicionais
do gênero. A partir dessas categorias, será apresentada a análise dos textos de
dois dos articulistas participantes do projeto “Leitura, Escritura e Reescritura de
Artigos de Opinião”. Assim, será feita uma comparação entre o primeiro e o último
texto de dois articulistas, porém, tais textos apresentam temáticas diferentes. As
categorias serão: coesão, coerência, norma padrão e as características composi-
cionais do gênero artigo de opinião.

Os textos serão identificados apenas como primeiro e último texto produ-


zido pelos articulistas A e B, para preservar a identidade dos autores.

Análise do primeiro texto produzido pelo articulista A

O primeiro texto a ser analisado está intitulado “Eu também quero viver”,
do articulista nomeado “A”. De início, analisaremos as características composicio-
nais do gênero artigo de opinião. Em relação a isso, notamos um título de certa
forma provocador, no mínimo, instigante para o leitor, “Eu também quero viver”,
uma leve pincelada do que poderia ser o assunto a ser tratado.
Ainda em uma análise superficial, o texto não possui espaçamento de pa-
rágrafos, configurando-se um texto corrido, com começo, meio e fim. Porém, de
acordo com as características composicionais do gênero artigo de opinião, a ideia
seria começar e terminar com uma ideia central, desenvolvê-la e concluí-la. Porém,
no texto do articulista A, percebemos que ele demonstra variadas opiniões, sem
argumentos sólidos que enriqueçam, valorizem o seu texto e, principalmente,

245
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

convençam o leitor a respeito de sua opinião. A exemplo disso, encontramos, no


terceiro parágrafo, a primeira opinião do articulista A em: “Sou contra o abor-
to em qualquer aspecto, exceto em casos onde a saúde e a vida da mãe sejam
comprometidas e que não haja perspectiva de vida para a criança”. Uma opinião
2 é encontrada ainda no mesmo parágrafo: “sob minha visão, o aborto pode ser
considerado uma pena de morte sem chances de defesa”.
No sexto parágrafo, mais uma opinião é encontrada, a terceira, e localiza-se
ao final da sexta linha: “Mas a melhor forma de contornar a situação é arcar com
as consequências, assumir a responsabilidade, abortar seria resolver o problema
com o outro”. O trecho “O aborto é considerado crime no Brasil” pode ser consi-
derado uma tentativa de argumento do articulista, porém, não é fundamentada,
não aponta o número da lei que norteia essa informação, o que o deixa com carac-
terística de opinião.
Em vista dessas variadas opiniões, fica difícil organizar argumentos para
todas elas. Também, é complicado descobrir qual opinião o articulista quer defen-
der, como pode ser verificado na tentativa de estruturação do argumento seguin-
te: “Além de ser um ato contra a vida, o aborto também gera muitos problemas,
como por exemplo, um grande prejuízo aos cofres públicos por gerar graves pro-
blemas de saúde (...)”. Portanto, no texto do articulista A não há nenhum argumen-
to e quando há uma tentativa, como nesse caso, não se sabe qual ideia o autor
defende.
Em consequência, é difícil também encontrar um contra-argumento. No
trecho seguinte, no quarto parágrafo, há uma tentativa: “A ideia de que a mulher
tem o direito de fazer o aborto por ser dona do seu próprio corpo é sustentada por
defensores da prática (...)”. Aqui há uma previsão do ponto de vista oposto e uma
tentativa de contra-argumentação, mas para defender qual opinião?
Para fechar a questão das características composicionais do gênero, com
relação à temática, fica subentendido que seria o aborto e sua descriminaliza-
ção ou não, mas também não há nada explícito no texto. Por fim, a conclusão do
texto, não retoma as tentativas de argumento apresentadas no texto, nem o que
foi desenvolvido anteriormente, só tenta reafirmar uma das opiniões apresenta-
das (opinião 1) e aparenta ser semelhante aos textos padrões produzidos para o
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).
Portanto, em relação às características composicionais do gênero artigo
de opinião, pode-se notar que há uma tentativa de contemplá-las, mas sem muito
resultado.

246
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Partindo para a segunda categoria que é a da coesão, notamos a falta de


conexão entre os parágrafos, nenhum deles leva ao próximo, não existem palavras
ou expressões de transição. Por mais que tratem do mesmo assunto, os parágra-
fos parecem que estão lançados aleatoriamente dentro do texto, o articulista não
consegue fazer conexões entre eles usando conectivos. Diante da análise, perce-
bemos apenas uma conexão que ocorre entre o quarto e quinto parágrafo, quan-
do o articulista utiliza o conectivo “Além de”.
Ainda com relação à coesão, temos, no quinto parágrafo (vide anexo) o
uso reiterado da mesma palavra, deixando seu texto cansativo, repetitivo e sem
qualidade.
Na sequência, temos a análise do texto com relação à coerência, que pode
ser observada quando articulista não deixa claro se a preocupação dele é em rela-
ção ao aborto ou se é com os prejuízos financeiros quando diz:

Além de ser um ato contra a vida, o aborto também gera muitos


problemas, como por exemplo, um grande prejuízo aos cofres
públicos por gerar graves problemas de saúde para as mães na
maioria dos casos, como por exemplo a esterelidade,[...].

demonstrando, assim, outro ponto de vista, fugindo novamente de sua opi-


nião inicial, o que gera incoerência ao texto. Exemplos como esses são encontra-
dos no trabalho maior desta pesquisa, no TCC completo.

Partindo para a análise da norma padrão, podemos notar variados proble-


mas relacionados como, no excerto que diz “É uma realidade que querendo ou
não ainda esta presente no mundo atual.” Inicialmente, o articulista esqueceu as
vírgulas e posteriormente o acento, acontece também, no sexto parágrafo:

A origem do problema esta na gravidez indesejada, que ocorre


pela falta de prevenção, acreditando no pensamento “Comigo
não vai acontecer”, masacontece, e quando acontece vem o de-
sespero, a insegurança, por vezes o medo da rejeição da família,
amigos ou até mesmo rejeição do próprio pai da criança.

O articulista ainda usou palavras inadequadas semanticamente, como o


uso inapropriado de “onde” quando não significa lugar físico, como na frase “Sou
contra o aborto em qualquer aspecto, exceto em casos em que a saúde e a vida da
mãe [...]”. Além de usar palavras ortograficamente erradas, como “esterelidade”,
dentre tantas outras (vide anexo).

247
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Análise do último texto do articulista A

Observando o novo texto do articulista A, intitulado “Não bata, eduque”,


com uma nova temática, percebemos que o artigo obteve uma melhora conside-
rável, a começar pelo seu interessante título, observa-se também que no decorrer
do texto com introdução, desenvolvimento e conclusão bem elaborados.

Apesar de o autor utilizar o primeiro parágrafo inteiro para expor sua opi-
nião clara acerca da violência, ele mantém-se com essa opinião até o fim, o que
não acontecia no primeiro texto.

Disciplinar os filhos não é uma tarefa fácil para os pais. Castigos


físicos ainda são usados por muitas famílias como punição para
o mau comportamento das crianças. A violência doméstica não
é saudável para as crianças e também não tem efeitos positivos
na sua educação, muito pelo contrário, a agressão física dirigida
a elas só traz malefícios para seu desenvolvimento, a violência só
gera mais violência. Há muitos anos vem sendo feitos estudos e
pesquisas que comprovam que a agressão não é nem de longe a
melhor forma de educar.

No decorrer do texto, não há mais nenhuma opinião concorrendo com


essa e, a partir desse momento, os argumentos são para tentar convencer o lei-
tor a respeito dessa única opinião exposta no texto, como é visto neste trecho:
“Segundo uma pesquisa feita por vários pesquisadores, entre eles a Vivian Peres
Day, a agressão física aos filhos pode resultar em manifestações psicológicas ime-
diatas”. Os outros dois argumentos encontram-se na versão completa desta pes-
quisa, no TCC, aqui só descrevemos o achado.

Com relação à temática, ela está bem explícita no texto e apresenta polê-
mica: disciplinar os filhos com violência ou sem violência, batendo ou não neles.
Também o ponto de vista oposto está apresentado no penúltimo parágrafo do
texto: “Por outro lado, há os que defendam a palmada e digam que com a agressão
seus filhos passam a não repetir mais o comportamento adequado”. Em seguida,
vem uma contra-argumentação em cima disso e a conclusão que retoma rapida-
mente todos os argumentos, para tentar comprovar a ideia, também retomada
nessa parte do texto. Todas as características composicionais do gênero apresen-
tadas pelos professores na segunda aula da Oficina estão contempladas nesse
segundo texto.

248
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Portanto, pela primeira análise, com relação às características composicio-


nais do gênero, podemos afirmar que a metodologia da Oficina foi eficiente, pois
houve uma melhora de 100% com relação à essas características composicionais
do gênero artigo de opinião.

Com relação à coesão, nesse novo texto o articulista soube usar a coesão,
o que pode ser visto nos parágrafos conectados entre si e internamente tam-
bém, como, por exemplo, quando usa “Por outro lado”, “Outro estudo” e “Enfim”.
Aspecto observado em todos os parágrafos.

Já na análise da coerência, encontramos os argumentos com as respectivas


referências, o que não havia no primeiro texto (“O psicólogo Cristiano longo, au-
tor de uma tese de doutorado sobre violência doméstica contra menores). Além
desse, o articulista usou durante todo seu artigo argumentos sólidos que susten-
taram um único ponto de vista.

Em relação à norma padrão, há palavras como o verbo “vem” (plural), “afim”


e “física”, também uma falta de vírgula após “de imediato” e após “Ainda segundo a
vice-coordenadora no NEV”, mas depois disso, mais nada.

Portanto, com relação às categorias de coesão, coerência e norma padrão,


também houve uma melhora de quase 100% verificada na produção do último
texto com nova temática.

Análise do primeiro texto do articulista B

O primeiro texto a ser analisado do articulista B não tem título, ainda nessa
análise superficial, pode-se perceber que há uma certa ordem no texto, que pode
ser considerada como uma exposição, interpretação e uma opinião conclusiva,
mesmo que o texto corrido, sem espaçamento de parágrafos, pareça desconecta-
do em alguns momentos é perceptível essa estrutura.

Neste artigo de opinião, o articulista B, tal como no do primeiro, do arti-


culista A, demonstra variadas opiniões sem argumentos sólidos que enriqueçam,
valorizem o seu texto e, principalmente, convençam o leitor a respeito de sua opi-
nião. A exemplo disso, encontramos, no segundo parágrafo, a primeira opinião do
articulista B em “A privacidade alheia sempre foi de interesse do público em geral,
basta que se olhe para como a vida privada de uma celebridade é comercializada
pela mídia. Ou seja, quando pertence aos outros, a privacidade não é importante.”

249
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Em consequência, fica difícil argumentar sobre todas essas opiniões.


Também, é complicado descobrir qual opinião ou argumento quer defender, como
pode ser verificado na tentativa do argumento seguinte:

E o pior, estas atualizações são postadas pelas próprias pessoas a


quem dizem respeito! Isso mostra como a veiculação de informa-
ções de outras pessoas se desenrola, pois quem viola sua própria
privacidade pode muito bem violar a de outros.

É mais uma opinião colocada com objetivo de ser um argumento para


defender qual ponto de vista? Iguais a esses há uma segunda, terceira e quarta
tentativas que não deixam de ser opiniões encontradas no terceiro, quinto, sexto
e oitavo parágrafos respectivamente. As análises completas encontram-se no
TCC. Portanto, no texto do articulista B não existe nenhum argumento sólido.

Consequentemente, é difícil também encontrar um contra-argumento. No


trecho do sexto parágrafo, parece existir uma tentativa: “Claro que todos têm li-
berdade para tirarem a foto que bem entenderem, enviarem para quem bem en-
tenderem e sofrerem as consequências disso”. Aqui há uma previsão do ponto de
vista oposto e uma tentativa de contra-argumentação, mas fica a dúvida de qual
opinião o articulista busca defender.

Para fechar a questão das características composicionais do gênero, com


relação à temática, fica subentendido que seria a disseminação de conteúdos par-
ticulares na internet, violando, assim, a privacidade das pessoas, mas não há cla-
reza. E, por fim, a conclusão do texto é uma retomada do assunto em questão, o
articulista finaliza e conclui diante de suas variadas ideias contidas no texto.

Desse modo, com relação às características composicionais do gênero ar-


tigo de opinião, pode-se observar uma tentativa de fazer uso delas, porém sem
muito resultado. Se comparar esse texto com o do articulista A, percebe-se que
este é um pouco mais rico de informações e há mais tentativas de colocação de
argumentos, mas também sem êxito.

Dando início à segunda categoria que é a da coesão, percebemos que o ar-


ticulista esquece dos espaçamentos dos parágrafos durante todo o artigo. Pode-
se pensar que esses mesmos parágrafos são independentes um do outro, pois
não estão ligados por conectivos, mas, de alguma forma eles tentam retomar o
assunto tratado no parágrafo anterior. É o caso do primeiro parágrafo que trata
de privacidade e, logo no início do segundo, esse tema já é retomado pela frase “A
privacidade alheia”. A mesma perspectiva de coesão, não por conectivos, também

250
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

pode ser vista no terceiro parágrafo, última linha, que fala sobre “sério delito” e no
quarto parágrafo, primeira linha, “os principais alvos destes crimes” retoma o que
já tinha sido anunciado. E assim sucessivamente.

Em se tratando da coesão dentro do parágrafo, entre as frases, o articulis-


ta usa essa conexão como no primeiro parágrafo, com as palavras “como”, “bem
como”, no terceiro parágrafo com a palavra “assim”, no quinto com a palavra, “mas”
e no último com a palavra “pois”, trazendo, então, coesão intra e inter parágrafos,
sem repetição das palavras.

Com relação à coerência, como já mencionado anteriormente, com cita-


ções, há cinco opiniões no artigo de opinião deste articulista B. Essa variedade de
opiniões afeta, de certa forma, a coerência global do texto, pois ele não tem um
foco.

Em consequência disso, há também uma incoerência quando o articulista


busca com essas opiniões variadas convencer o leitor sem nenhuma forma de em-
basamento, isso faz com que não haja credibilidade por parte do leitor em relação
ao texto, e na tentativa de convencimento, acaba usando uma contra-argumen-
tação, no sexto parágrafo, como percebe-se neste excerto: “Claro que todos tem
liberdade para tirarem a foto que bem entenderem, enviarem para quem bem en-
tenderem e sofrerem as consequências disso”. O que acarreta a geração de mais
uma opinião: “A falta de bom senso do receptor, que implica em próximos recep-
tores, faz com que toda uma vida seja destruída”. Portanto, o articulista usa muitas
opiniões e ideias e esse exagero causa a falta de coerência interna do texto.

Partindo para a análise da norma padrão, podemos notar também alguns


problemas, como no excerto que diz “a interação entre as pessoas próximas ou
distantes está fácil e ao alcance de um clique” entre a palavra “próximas” e “ou”
o articulista esqueceu aqui da vírgula e no terceiro parágrafo não utiliza o ponto
final para separação das frases: “Dados pessoais são compartilhados diariamente
e publicamente, assim, qualquer um pode saber o que quiser sobre alguém apenas
digitando seu nome em um buscador na internet”. Referente à pontuação, esses
foram os problemas encontrados dentro do texto.

Na sequência, o articulista esquece uma crase e acentos circunflexos.


Também, houve casos nos quais o articulista usou palavras inadequadas seman-
ticamente para a frase, como é o caso do “onde”, além de erros de digitação (como
“prinicipalmente”, “dzendo” e “entederem”) e de ortografia (como “auto-estima”)
como “previsível e “dzendo” e “autoestima”.

251
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Análise do último texto do articulista B

Observando o novo texto do articulista B, intitulado “Diploma não é garan-


tia de emprego”, com uma nova temática, percebemos que o artigo obteve uma
melhora considerável, a começar pelo seu título. Nota-se que há somente um pon-
to de vista e este é colocado no primeiro parágrafo.

Neste segundo são encontrados três argumentos sólidos para sustentar


a única opinião do texto. Esses argumentos vêm acompanhados de embasamen-
tos como no seguinte excerto (outros exemplos são encontrados na pesquisa
completa):

Esse assunto é tratado por diversos estudiosos da área de


Trabalho e Educação, como Reginaldo Prandi. Uma das obras do
autor, Os Favoritos Degradados, traz no título uma referência ao
chamado exército de reserva intelectual, que pode ser entendido
como os jovens profissionais qualificados que aguardam por um
emprego.

Com relação à temática, ela está bem explícita no texto e apresenta polê-
mica: O fato de um indivíduo ter formação superior não significa que terá um em-
prego garantido mediante sua formação. Em seu quinto parágrafo, o articulista
segue o texto e traz uma contra-argumentação. Após isso, ele apresenta conclu-
são que retoma rapidamente todos os argumentos, para tentar comprovar a ideia:
“O mercado de trabalho é cruel e competitivo, até mesmo para quem tem alto ní-
vel de escolaridade. Afinal de contas, nem sempre o profissional mais qualifica-
do consegue realizar sua atividade da mesma forma que estudou para exercê-la”.
Findando assim, com melhoria considerável em relação ao seu primeiro texto, seu
novo trabalho está de acordo com os ensinamentos transmitidos pelos professo-
res no curso de extensão sobre a construção das características do gênero artigo
de opinião.

Partindo para a questão da coesão, pode-se perceber que é um texto coe-


so, seus parágrafos são espaçados e estão ligados entre si, o autor usa conexões
como “Esse assunto”, “Complementando”, “Outro ponto” e, assim, discorre a partir
dessas ligações. Dentro do texto também utiliza a coesão, quando usa o “mas”, “Ou
seja”, “Porém” e “Sendo assim”.

Já na análise da coerência, evidenciamos a presença de argumentos, o que


não havia no primeiro texto.

252
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Em relação à norma culta, em seu quarto parágrafo, pode-se observar a pa-


lavra “demonsta” escrita graficamente errada, mas nada que afete o sentido do
texto.

É notável o avanço do articulista neste último artigo produzido. Um artigo


de opinião coerente, conciso e coeso, utilizando todas as características do
gênero artigo de opinião, bem diferente do primeiro trabalho referenciado aqui
anteriormente, do articulista B. Foi possível perceber que, principalmente, as
instruções dadas com relação à estrutura composicional do gênero, na Oficina,
foram incorporadas ao texto, tal como se observou no último texto do articulista
B.

Considerações finais

Para finalizar, pode-se dizer que os objetivos deste estudo foram alcança-
dos: o primeiro era o de analisar o primeiro texto produzido pelos articulistas e o
último texto, com nova temática, produzido por eles; o segundo era verificar se
houve avanço de um texto para o outro, posteriormente às aulas trabalhadas e
correções feitas; e ainda, analisar a necessidade de um curso de produção textual
dentro do meio acadêmico para os alunos ingressantes.
A pesquisa mostrou que muitas foram as inadequações encontradas nos
primeiros textos, porém, o mais evidente está relacionado à argumentação.
Sendo que ela quase inexiste nas primeiras produções. No entanto, com a corre-
ção da primeira versão, das demais cinco versões, e com as aulas, a argumentação
é desenvolvida, no último texto, e aparece na presença, principalmente, de três
argumentos.
Com esse ganho na argumentação, por consequência, os textos dos articu-
listas também ganham mais credibilidade e se aproximam quase 100% das carac-
terísticas do gênero artigo de opinião. O fato é que, em seus primeiros textos, os
articulistas tinham muita dificuldade em encaixar-se dentro das características
composicionais do gênero. Também tinham variados problemas com relação à
coesão e coerência e também com a norma padrão, dificultando o entendimento
do texto, o que praticamente não houve no texto final dos dois articulistas.
A falta de conhecimento a respeito do gênero, ou de algumas característi-
cas composicionais dele, pode ser uma explicação para a dificuldade de conseguir
expor uma única ideia central e utilizar argumentos para defendê-la. Por isso, en-
fatiza-se a importância do curso ministrado na UTFPR, pois foi a partir das aulas
ministradas nesse curso, e também por meio das correções que os professores

253
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

fizeram nos textos, que os alunos desenvolveram um último texto com profi-
ciência nas categorias analisadas. Lembrando que o último texto não teve ajuda
dos professores e também não houve correção. O fato de ser outra temática só
demonstrou o quão capacitados estavam os articulistas ao final do curso.
Este estudo revelou, uma vez mais, como são importantes os trabalhos
realizados com esse viés, já que os alunos chegam totalmente despreparados no
ensino superior. Além disso, evidenciou-se que os métodos usados facilitaram
a construção desse novo texto e têm tudo para ser uma alternativa de ensino-
-aprendizagem do gênero artigo de opinião.

Referências

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bal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 270-306.
BALTAR, M. O conceito de tipos de discurso e sua relação com outros concei-
tos do ISD. In: GUIMARÃES, A. M. M; MACHADO, A. R; COUTINHO, A. (Org.).
O interacionismo sociodiscursivo: questões epistemológicas e metodológicas.
Campinas: Mercado das Letras, 2007. p. 145-160.
BEUGRANDE, R. A.; DRESSLER, W. Introduction to Text Linguistics. London:
Longman, 1980.
BOFF, O. M. B.; KÖCHE, V. S.; MARINELLO, A. F. O gênero textual artigo de opi-
nião: um meio de interação. Revel, v. 7, n. 13, 2009.
KOCH, I. V.; TRAVAGLIA, L. C. A coerência textual. 12. ed. São Paulo: Contexto,
2001.
FARACO, C. A. Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós. São
Paulo: Parábola Editorial, 2008.
FÁVERO, L.L. Coesão e coerência textuais. São Paulo: Ática, 1991.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A.
P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Org.). Gêneros textuais e ensino. 4. ed. Rio
de Janeiro: Lucerna, 2005.
PEREIRA, I. C.; LOCATELLI, M. F. Artigo de opinião: práticas de escritas e rees-
critas, o que mudou? Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras -
Português e Inglês) - Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Pato Branco,
2018.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ANEXOS

Primeiro texto produzido pelo articulista A

255
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Último texto, com nova temática produzido pelo articulista A

256
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Primeiro texto produzido pelo articulista B

257
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Último texto, com nova temática produzido pelo articulista B

258
AS CLASSES DE PALAVRAS NUMA
ABORDAGEM ENUNCIATIVA: O ESTUDO
DE SUBSTANTIVOS E ADJETIVOS1

Kamilla Tratsch Gula2


Luciana Fracassi Stefaniu3

RESUMO: O presente estudo busca expor alguns problemas encontrados na de-


finição e explicação das classes de palavras substantivos e adjetivos. Para tanto,
foram analisadas gramáticas tradicionais e uma coleção de livros didáticos dis-
tribuída nas escolas da rede pública paranaense, entre os anos de 2017-2019,
em turmas de 6° e 9° ano, intitulada “Português: Linguagens”, e organizada por
William Cereja e Thereza Cochar. A base teórica para as discussões feitas é a
Semântica da Enunciação, mais especificamente, com os estudos produzidos pelo
professor e pesquisador Luiz Francisco Dias, da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). Pretendemos mostrar algumas incoerências nas definições que
circulam no meio escolar, a fim de melhorar o trabalho com essas classes de pala-
vras. Para isso, inicialmente será feita uma breve conceituação sobre a Semântica
da Enunciação, seguida de análises da gramática e dos livros didáticos, e, por fim,
uma discussão acerca das contradições que podem ser encontradas dentro das
definições propostas por diferentes gramáticas normativas (ROCHA LIMA, 2002;

1 Programa Institucional de Iniciação Científica – PROIC, da Universidade Estadual do Centro-


Oeste (UNICENTRO).
2 Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), campus Santa Cruz. kamillagula25@
gmail.com
3 Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), campus Santa Cruz. lufracasse@gmail.
com

259
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

CEGALLA, 2008; BECHARA, 2009; PASQUALE e ULISSES, 2008), refletindo so-


bre elementos que são apagados das lições gramaticais, mas que podem ser reto-
mados quando se analisa os enunciados como fatos discursivos.

PALAVRAS-CHAVE: Semântica da Enunciação; substantivos; adjetivos.

ABSTRACT: The present study aims to expose some problems found in the definition and
explanation of the noun and adjectival word classes. To this end, traditional grammars
and a collection of textbooks distributed in public schools in Paraná, between the years
2017-2019, were analyzed between the 6th and 9th grades, entitled “Portuguese:
Languages” and organized by William Cereja and Thereza Cochar. The theoretical ba-
sis for the discussions made is the Enunciation Semantics, more specifically, with the
studies produced by professor and researcher Luiz Francisco Dias, from the Federal
University of Minas Gerais (UFMG). We intend to show some inconsistencies in the de-
finitions that circulate in the school environment, in order to improve the work with
these classes of words. To do so, initially a brief conceptualization of the Enunciation
Semantics will be made, followed by analyzes of grammar and textbooks, and, finally, a
discussion about the contradictions that can be found within the definitions proposed
by different normative grammars (ROCHA LIMA, 2002; CEGALLA, 2008; BECHARA,
2009; PASQUALE and ULISSES, 2008), reflecting on elements that are erased from
grammatical lessons, but that can be taken up again when analyzing statements as dis-
cursive facts.

KEYWORDS: Enunciation Semantics; nouns; adjectives.

Introdução

O objetivo deste artigo é estudar as classes de palavras, substantivos e


adjetivos, pelo ponto de vista da Semântica da Enunciação, com o intuito de evi-
denciar problemas existentes em suas definições e identificar elementos que são
desconsiderados na hora da análise de enunciados em sala de aula. Para alcançar
esse objetivo, analisamos algumas gramáticas normativas da Língua Portuguesa e
uma coleção didática distribuída em escolas públicas do Paraná, entre os anos de
2017-2019, intitulada “Português: Linguagens”, organizada por William Cereja e
Thereza Cochar. Os estudos do professor Luiz Francisco Dias, da Universidade
Federal de Minas Gerais, sãoutilizados como fundamentação teórica.

260
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Devido à utilização da gramática há muito tempo, como uma forma de des-


crição da língua e classificadora de nível social, uma vez que ela possui a dualida-
de “certo x errado”, acaba-se por ignorar as variações linguísticas de cada região.
A língua portuguesa do Brasil também possui sua gramática própria, baseada na
gramática latina, e vem gerando debate entre diversos linguistas sobre seu modo
de definir a língua e seus componentes. Por seu caráter descritivo e prescritivo, a
gramática não pode ser considerada uma ciência4.

Muitas vezes, os professores da Língua Materna (LM) acabam enfrentando


dificuldades com essa maneira da gramática trabalhar. O professor e pesquisador,
Luiz Francisco Dias, em seu texto intitulado “Gramática na sala de aula: da lição
gramatical ao fato discursivo” (1998), traz o exemplo de uma professora que, ao
ensinar sobre o sujeito gramatical, se depara com a seguinte situação: ao colocar
no quadro a sentença “Esqueceram de mim” e questionar aos alunos sobre qual
seria o sujeito da oração, aguardando que a resposta fosse “sujeito indetermina-
do”, porque, segundo a gramática, se o verbo estiver na 3° pessoa do plural ele é
considerado indeterminado, é surpreendida com a resposta “sujeito oculto”

Considerando que as frases guardam uma memória discursiva5, os alunos


lembraram-se de um filme com o título “Esqueceram de mim”, no qual um menino
é deixado para trás pela família e, por isso, o sujeito seria oculto, pois, apesar de
não aparecer o sujeito, ele poderia ser identificado. Assim, a professora estava em
um conflito, por um lado ela entendia a resposta dos alunos e concordava com ela;
mas, por outro lado, ela era uma professora frente a uma sala de aula e deveria
ensinar seus alunos a encaixarem uma peça de quebra-cabeças em determinado
lugar.

Dias (1998), por meio desse exemplo, levanta a oposição entre lição gramati-
cal e fato discursivo. Segundo o autor, a lição gramatical diz respeito a “um exemplo
que serve a uma conduta, a um procedimento” (DIAS, 1998, p. 114). Retomando
o exemplo da professora sobre a perspectiva da lição gramatical, os personagens
do filme “Esqueceram de mim” são ignorados, pois a frase é tomada apenas como

4 Witzel (2020), em “Introdução aos Estudos Linguísticos”, afirma que um cientista não pode julgar
o seu objeto de análise como certo ou errado, ou bonito ou feio, deve se observar o seu objeto
de “modo neutro, objetivo e imparcial” (WITZEL, 2020, p. 11), algo que a gramática não faz ao
prescrever formas “corretas” para a língua.
5 Segundo Pena (2015), a Semântica do Acontecimento considera a relação entre os elementos do
enunciado histórica, porque já fizeram parte de outros enunciados, em outros acontecimentos,
havendo uma memória em cada palavra “que se atualiza em cada nova enunciação, mantendo e,
ao mesmo tempo, modificando seu sentido” (PENA, 2015, p. 28).

261
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

um exemplo de sujeito indeterminado. Como o exemplo é considerado uma lição


gramatical, ela tem o propósito de exemplificar uma conduta, não havendo espaço
para pensar no sujeito que expressou a frase, nem “na singularidade histórica que
faz um enunciado ter sentido no tempo e no espaço, seja o tempo e o espaço do
mundo real seja do mundo ficcional” (DIAS, 1998, p. 115).

Por outro lado, ao observarmos a resposta do aluno, vemos que a frase pos-
sui uma memória, podendo ser considerada um discurso e, consequentemente,
um fato discursivo. Ao dizer que um enunciado é um fato discursivo, deixamos
de pensar apenas nas condições de produção do enunciado e entendemos que
“há um sujeito do discurso, da memória, que não coincide necessariamente com
o sujeito gramatical” (DIAS, 1998, p. 115). Ou seja, nem sempre a gramática pode
dar conta de sanar a dúvida do aluno, é necessário buscar informações em outros
lugares.

Para tanto, é preciso ir além do enunciado, observar os seus processos de


produção. Uma teoria que dá conta desse aspecto é a Semântica da Enunciação.
Essa teoria diz respeito ao processo de produção de enunciados, de modo que a
frase não é tratada como um produto acabado, mas sim como um processo. De
acordo com o exemplo do autor,

[e]ssa era a inquietação de uma professora que, de um lado, via a


língua no seu funcionamento, enquanto discurso, e se sentia até
mesmo sintonizada com os seus alunos e, por outro, tinha diante
de si uma “peça” que, pela sua forma, devia ser encaixada num
determinado paradigma gramatical. Ora, todo o problema está
em se considerar esse enunciado como uma lição gramatical ou
um fato discursivo. (DIAS, 1998, p. 114, grifos do autor).

É a partir do entendimento do enunciado como fato discursivo que busca-


mos compreender a conceituação de substantivo e adjetivo que, assim como no
exemplo exposto, vem sendo considerados como uma “peça” que deve ser encai-
xada em uma conceituação, sem espaço para maiores reflexões sobre o seu uso.

Além disso, nessa perspectiva, a enunciação é a “produção do enunciado


pelos sentidos sociais no exercício individual da língua” (DIAS, 2020, p. 14). Os
sentidos são sociais porque temos papeis sociais dentro da sociedade e os exer-
cemos, e a língua acontece nessa relação em sociedade. O exercício é individual
porque ao falarmos ou escrevermos algo, nos tornamos autores do texto. Porém,
é importante salientar que o nosso discurso será compatível com o papel social

262
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que possuímos. A produção de enunciados também é chamada de acontecimento


enunciativo, pois a produção acontece da passagem do social para o enunciado que
é produzido individualmente.

Assim como a professora enfrentou problemas na hora de classificar o su-


jeito, as classes gramaticais também apresentam alguns problemas e, para melhor
compreensão da temática, este artigo está limitado a duas classes de palavras gra-
maticais: o substantivo e o adjetivo.

As classes de palavras nas gramáticas (autores)

O surgimento da gramática como uma disciplina, segundo Auroux (1992,


apud DIAS, 2007) foi durante o Renascimento europeu, em que dicionários e gra-
máticas começaram a ser desenvolvidos com base na tradição greco-romana. A
gramática é constituída como um conjunto de técnicas (práticas codificadas), o
que facilitou a aparição de regras e uma camada social detentora dessa regra, que
recebeu um estatuto profissional (intérpretes, escribas, poetas).

É então que a gramática adquire “um caráter prescritivo e pedagógico,


determinando como fazer uso da linguagem” (DIAS, 2007, p. 142). Além dessa
“eleição” de uma norma padrão, a gramática passou a diferenciar a camada social,
quanto mais alto na hierarquia social, maior o conhecimento da norma culta.
Não era mais possível escrever sem conhecer as regras gramaticais. Em outras
palavras, “fazer uso da regra e fazer uso do sistema de escrita se tornou algo
indissociável” (DIAS, 2007, p. 142).

Como nosso objetivo foi o estudo das classes de palavras substantivo e ad-
jetivo, é pertinente observarmos como algumas gramáticas as definem. Para tan-
to, foram selecionadas quatro gramáticas normativas brasileiras: “Gramática da
Língua Portuguesa”, de Pasquale e Ulisses Infante (2008), “Novíssima Gramática
da Língua Portuguesa”, de Cegalla (2008); “Moderna Gramática da Língua
Portuguesa”, de Bechara (2009) “Gramática Normativa da Língua Portuguesa”,
de Rocha Lima (2011), nas quais pesquisamos as definições das duas classes gra-
maticais aqui apresentadas, bem como alguns exercícios propostos para o estudo
dessas classes.

De modo geral, nas quatro gramáticas apresentadas, a definição de subs-


tantivo foi feita a partir dos termos “ser”, “objeto”, “coisa”, “estado”, “qualidade”,
como podemos ver abaixo:

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Imagem 1.Definição de substantivo por Cegalla (2008, p. 131).

Imagem 2. Definição de substantivo por Bechara (2009, p. 112).

Imagem 3. Definição de substantivo por Rocha Lima (2002, p. 66).

Quanto aos exercícios propostos pela gramática para o substantivo, sele-


cionamos apenas um, visto que o nosso objetivo aqui é analisar, principalmente,
como as classes de palavras são trabalhadas nos livros didáticos que circulam nas
escolas. Segue abaixo o exemplo:

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Imagem 4. Exercício sobre substantivos por Cegalla (2008, p. 141).

Notamos, nessas definições, que o conceito de substantivo não muda muito


de uma gramática para outra. Conforme Dias (2001, p. 68), não há mudança desde
IV a.C., visto que as definições de substantivo (e também de adjetivo) seguem o
princípio platoniano de que a “existência do ser precede o seu nome”. O que vemos
nessas conceituações é que a palavra “designa, fornece o modo de ser, ou repre-
senta, algo que já surge para os nossos sentidos como uma entidade identificada
fora da linguagem” (DIAS, 2001, p. 68), isto é, elas definem algo que possui sua
existência no mundo, algo exterior à linguagem. Se, por exemplo, perguntarmos
em uma sala de aula “quem são os seres?”, poderemos aceitar a resposta de que
os seres são os “substantivos”, normalmente, ela é aceita. Entretanto, a gramática
afirma que os substantivos são as palavras que nomeiam/representam o ser, não
o ser que está no mundo, isto é, é necessário “entender essas palavras como enti-
dades independentes de um mundo extralinguístico” (DIAS, 2001, p. 70).

Como no caso do adjetivo, que é definido, de maneira mais unânime, como


a palavra que caracteriza o substantivo/ser, ou seja, caracteriza algo que tem sua
existência no mundo. Vejamos algumas das definições utilizadas nas gramáticas
pesquisadas:

Imagem 5. Definição de adjetivo por Cegalla (2008, p. 159).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Imagem 6. Definição de adjetivo por Bechara (2009, p. 142).

Imagem 7. Definição de adjetivo por Rocha Lima (2002, p. 96).

Para colocar em prática o conceito de adjetivo, os autores propõem alguns


exercícios, dos quais, também, selecionamos um:

Imagem 8. Exercício sobre o adjetivo por Cegalla (2008, p. 165).

Assim como no caso do substantivo, as definições de adjetivo também são


antigas, buscando caracterizar algo extralinguístico. Como afirma Dias (2001, p.
73), ao “aparecerem no discurso pedagógico da gramática, elas adquirem o esta-
tuto de mero exemplo. O problema é que o estatuto do chamado ‘exemplo’ não é
consistente quando se trata de transpor do plano do tema para o plano da signi-
ficação”. Isto é, as definições acabam ficando genéricas, com exemplos artificiais,
construídos apenas para a demonstração do conceito. Como este utilizado por
Rocha Lima (2002, p. 96): “homem magro”, “criança talentosa”, sem a construção
de uma frase. E, quando as frases não são construídas de maneira superficial, elas

266
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

são retiradas de livros de literatura (Machado de Assis, Camilo Castelo Branco,


Almeida Garret, Cecília Meireles), destacando-se apenas a palavra para a referida
classe, desconsiderando o seu contexto e sentido, além da sua posição sintática.
Além disso, se considerarmos que algumas palavras dessas sentenças já caíram
em desuso, podemos questionar: como um aluno entenderá e conseguirá aplicar
as regras no português que ele usa diariamente se entendeu o funcionamento em
um português “arcaico” que não faz parte do seu dia-a-dia?
É possível, também, ver nas gramáticas a predominância de exercícios do
modus substituição, complete e localização, ou seja, são exercícios para fixação de
conceito, sem levar a uma reflexão sobre o seu uso real. Além disso, a gramática
do Domingos Paschoal Cegalla (2008) analisada é a 48° edição, entretanto, mes-
mo com os avanços dos estudos linguísticos, ele afirma, na apresentação de sua
gramática, que a nova edição possui apenas revisões em relação ao Novo Acordo
Ortográfico.
É importante ressaltar que neste estudo não queremos deixar de lado e
ignorar a necessidade de conhecermos as formas linguísticas, o que é proposto
aqui é um novo olhar sobre a gramática, para que o aluno do ensino fundamental,
médio e, até mesmo da graduação, possa ir além das questões de padronização
de um modelo de escrita e reflita sobre a língua materna, podendo, assim,
compreender melhor o seu funcionamento, pois só é possível conhecer um objeto
quando se compreende suas várias faces. Como os trabalhos de Dias têm nos
mostrado, o caminho para uma melhora do ensino de língua portuguesa é longo,
entretanto, faz-se necessário esse olhar mais reflexivo para ela, a fim de tornar o
aprendizado mais produtivo para o aluno. Para isso, falaremos a seguir sobre as
classes de palavras nos livros didáticos e, depois, exploraremos algumas nuances
que o ensino pautado no normativismo acaba deixando de lado.

Como as classes são encontradas nos Livros Didáticos (LDs)

Considerando que os livros didáticos são relevantes suportes para a disse-


minação dos conceitos gramaticais, e como a proposta deste estudo é a verifica-
ção do modo como estão sendo trabalhados os substantivos e adjetivos no ensino
fundamental II, foi selecionada uma coleção distribuída no triênio 2017 a 2019,
em escolas públicas do estado do Paraná. Essa coleção abrange as turmas de 6° a
9° ano, é intitulada “Português: Linguagens” e foi organizada por William Cereja e
Thereza Cochar. Contudo, selecionamos apenas o livro do 6° ano, no qual encon-
tramos o estudo sobre substantivos e adjetivos.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

No capítulo 1 da unidade 2, temos o estudo do substantivo. Antes de apre-


sentar o conceito, os autores trouxeram uma tirinha com questões interpretati-
vas, enfatizando o uso do substantivo, para, a seguir, explicitar a definição, como
vemos abaixo:

Imagem 9 . Definição do substantivo no livro didático.

Após mais alguns textos e exercícios de identificação, é exposta a classifica-


ção dos substantivos. As classificações são as mesmas encontradas em gramáticas:
primitivos e derivados; simples e compostos; comuns e próprios; concretos e abs-
tratos; e coletivos. Depois desta exposição, há exercícios de interpretação sobre
uma charge e, dentro dela, estão questões sobre a classificação do substantivo.
No capítulo 2 da unidade 2, no item “A língua em foco”, encontramos a de-
finição do adjetivo. Seguindo a mesma estrutura do substantivo, é colocada uma
imagem, juntamente com questões interpretativas, a fim de construir o conceito
com os alunos. O conceito do adjetivo é visto como uma palavra que caracteriza
os seres, isto é, “as palavras que modificam os substantivos, atribuindo-lhes certas
características” (p. 111). Do mesmo modo do substantivo, há a explicação sobre as
classificações dos adjetivos.

Imagem 10. Definição do adjetivo no livro didático.

268
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Após essa descrição sobre o modo como as classes de palavras são encon-
tradas nos livros didáticos, passamos à reflexão sobre possíveis lacunas deixadas
nas definições de substantivos e adjetivos.

Problemas na conceituação de substantivos e adjetivos

Como visto nos tópicos anteriores, no que se refere à definição e classi-


ficação de substantivos e adjetivos, é possível apontar alguns problemas encon-
trados. Essas falhas na conceituação, que serão apresentadas, partem da leitura
e reflexão acerca dos textos do professor e pesquisador da UFMG, Luiz Francisco
Dias.

Inicialmente, é necessário comentar sobre as definições de substantivos e


adjetivos e sua origem. Elas não são recentes, tendo por base a tese platoniana,
segundo a qual a “existência do ser precede o seu nome” (DIAS, 2001, p. 68). Ou
seja, definimos estas classes de palavras da mesma forma desde o século IV a. C..

Um dos problemas na hora da classificação do substantivo é a relação en-


tre as palavras e sua exterioridade linguística, ou seja, “a relação entre a palavra,
enquanto entidade de ordem linguística, se apaga frente a sua exterioridade, en-
quanto entidade no mundo” (DIAS, 2001, p. 70). É importante que essas classes de
palavras não sejam tratadas apenas como uma lição gramatical, mas como um fato
discursivo. Professores e alunos devem possuir certeza dos conceitos que são en-
contrados na gramática para que não caiam em uma instabilidade na hora de criar
conceitos e classificações.

As palavras possuem um efeito pré-construído, assim como visto no iní-


cio deste artigo com a frase (1) “Esqueceram de mim” (DIAS, 1998, p. 113), em
que foi retomado o filme. Sobre o pré-construído, Fracasse (2012), com base em
Grigolleto (2002, p. 34), afirma que o pré-construído (conceito usado por Michel
Pêcheux e criado por Paul Henry), são frases que de alguma forma recuperam “de
discursos anteriores cujo enunciador foi esquecido” (FRACASSE, 2012 p. 83). Ele
causa um efeito de evidência, isto é, o entendimento de que algo já está lá. No caso
das palavras, podemos observar o termo “casa”, cada pessoa possui a sua visão de
“casa”, mas ao colocarmos o substantivo numa frase como (2) “A minha casa não é
casa” (DIAS, 2001, p. 74), além de termos um conflito dentro dessa frase, ela car-
rega uma “posição enunciativa”. Em outras palavras, possuímos a nossa referência

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de “casa”, todavia, nesse discurso ela acaba recebendo um novo sentido. Os obje-
tos são designados na relação que é estabelecida entre o sujeito e a língua.
Outro problema apontado por Dias (2001), na hora de classificar os subs-
tantivos, é quando afirmamos que essa classe nomeia os seres, coisas e objetos.
Mas como essa classe vai definir palavras que significam a inexistência? Palavras
como “nada”, “ausência”, “vácuo”,“esses termos são classificados como substanti-
vos, mas não apresentam características semânticas de substantivos, segundo
os parâmetros da gramática tradicional” (AMORIM; DIAS, 2000, p. 241-243). Em
frases como “O nada me assusta” (MEDEIROS; DIAS, 2001, p. 379) ou “Você foi
deixado no vácuo”, como eu posso afirmar que as palavras destacadas são subs-
tantivos? Se o conceito diz que essa classe gramatical nomeia um ser, esse objeto,
logicamente, deve possuir uma existência palpável no mundo. Então como estas
palavras se encaixariam na definição de substantivo?
Vemos também outro conflito de posições de enunciação no caso (3)
“Gravidez falsa” (DIAS, 2002, p. 131), assim como no exemplo 2, a palavra “gra-
videz” já tem seu sentido pré-construído. Ao colocarmos “falsa” ao lado da pala-
vra não é negado o seu efeito pré-construído sobre a gravidez, porém a sentença
é aplicada em um contexto específico, mostrando como há “palavras que não se
conformam com a ideia da predominância do ser sobre o nome.” (DIAS, 2001, p.
69). No âmbito do adjetivo, também temos um conflito de posições enunciativas.
Observemos o exemplo utilizado por Dias (2001) para exemplificar isso: (4) “O
juiz julgou culpado o réu inocente” (DIAS, 2001, p. 76). Nessa frase, vemos uma
dupla adjetivação do substantivo “réu”. Mas como explicar aos alunos sobre essa
caracterização contraditória? É aí que entra em foco a posição enunciativa. Por
um lado, temos o juiz que considera o réu culpado, no entanto, a pessoa (enun-
ciador) considera o réu inocente e discorda do juiz. São duas opiniões contrárias
sobre uma mesma pessoa: uma, é interna ao enunciado (o juiz) e outra, é que pro-
duziu o enunciado.
No contexto das lições gramaticais, o juiz seria considerado sujeito e o
enunciador seria totalmente ignorado das análises. No entanto, se fosse traba-
lhado com o fato discursivo, a dimensão enunciativa da frase seria resgatada e ela
seria tratada, ao mesmo tempo, como um produto e um processo.
Amorim e Dias (2000), em seu estudo intitulado “Verbos no infinitivo na po-
sição de substantivo: uma abordagem enunciativa” propõem uma nova conceitua-
ção para os substantivos. Nessa nova concepção, o substantivo seria considerado
o objeto temático da fala. Para ficar mais claro, observemos os exemplos abaixo:

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

a. Maria escreveu sobre a _________


b. Maria falou da _________
c. Maria produziu um _________

Ao completarmos as frases, podemos colocar em (a) o termo “pandemia”;


em (b) ausência de sua família; e em (c) “artigo”. Veremos que todas essas palavras
são substantivos e ocupam um lugar em branco após um artigo ou uma preposi-
ção: “o termo que preencher esse espaço em branco seria o objeto temático da
fala. É objeto temático porque se produz a partir de uma ação de falar ou escre-
ver” (AMORIM; DIAS, 2000, p. 242). Essa conceituação ainda deve ser ampliada
e estudada para identificar possíveis problemas e corrigi-los a fim de não cair em
uma instabilidade como acontece com a gramática.
No caso do adjetivo, Dias (2012) utiliza os conceitos de articulação por de-
pendência e articulação por incidência de Guimarães (2009), a fim de observar as
articulações que são contraídas pelos adjetivos. Antes de falar sobre os adjetivos,
é necessário definir como são essas articulações. A articulação por dependência
“ocorre entre elementos que se vinculam no âmbito do enunciado, contraída pelo
agenciamento dos locutores no acontecimento enunciativo” (DIAS, 2012, p. 2,
grifo do autor). Essa articulação fica clara na frase utilizada pelo autor, “Os me-
ninos de vermelho” (DIAS, 2012, p. 2), em que “os” e “de vermelho” dependem de
“meninos”, formando um grupo nominal.
A articulação por incidência “se dá pela relação entre enunciação e enun-
ciado, e também agenciada pelo Locutor” (DIAS, 2012, p. 2, grifo do autor). O
exemplo utilizado por Dias é claro ao explicar essa articulação: “Até Pedro veio”
(p. 2), vemos uma articulação por incidência, porque o termo “até” não está funcio-
nando como um advérbio que determina um tempo ou lugar, mas recebe um novo
papel dentro da enunciação.
Ao observarmos essas articulações no caso do adjetivo, retomamos um
exemplo utilizado em Dias (2012, 1999) sobre uma rua de Campina Grande, cha-
mada Coronel João Lourenço Porto, que é popularmente conhecida como “antiga
Rua da Floresta”. Podemos ter duas possibilidades ao analisarmos o enunciado:
que a Rua da Floresta é antiga ou que antes ela chamava-se Rua da Floresta.
No primeiro caso, temos uma relação de dependência entre o adjetivo “an-
tiga” e o núcleo nominal (Rua da Floresta). Já no segundo caso, que seria o propó-
sito do enunciado, é uma resistência à mudança do nome da rua, caracterizando
uma articulação por incidência. Essa situação que acontece em Campina Grande
mostra como a enunciação é acontecimento, pois ela se torna pertinente “no

271
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

enlace de uma memória com a atualidade” (DIAS, 2012, p. 9), ou seja, é certo que
a língua acontece na relação com o sujeito.
Isso fica claro também em Souza e Dias (1999) com as seguintes senten-
ças (a) “Uma mulher pobre” (b) “Uma pobre mulher” (SOUZA; DIAS, 1999, p. 306-
307), em que, no primeiro, temos a descrição de um referente no mundo, com
baixas condições econômicas; e, no segundo, temos um juízo de valor que o enun-
ciador tem sobre o referente.
Todos esses problemas e conceitos abordados ainda precisam de muito es-
tudo para que possamos ter um maior conhecimento sobre a língua materna, a fim
de entendê-la melhor, evitando preconceitos linguísticos e erros de conceituação.

Pensando na prática

Como o objetivo deste artigo é ir além do campo das ideias, levando algo
para a prática, selecionamos alguns exercícios do livro didático e das gramáticas
analisadas.

Sobre o substantivo, foi selecionado o seguinte exercício da gramática de


Cegalla (2008):

Imagem 11. Exercício da Novíssima Gramática da Língua Portuguesa (CEGALLA, 2008, p. 156).

Neste exercício da gramática de Cegalla (2008), considerando que o sujeito


adquire uma posição enunciativa perante os enunciados, o autor pede para que
os leitores identifiquem a conotação que o enunciador utiliza ao se referir ao em-
prego de João. A postura que o enunciador tem é de zombaria com relação ao em-
prego. Normalmente quando se utilizam diminutivos é para demonstrar carinho,
desprezo, zombaria sobre determinado assunto. Se tomássemos esse exercício à
luz da Semântica da Enunciação, poderíamos reestruturá-lo da seguinte maneira:

• Na frase “João arrumou um empreguinho no escritório de uma fábrica”, o


enunciador expressa sua opinião ao usar o substantivo “emprego” no dimi-
nutivo. Qual foi essa posição?

272
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Diminuição – Carinho – Desprezo – Zombaria


Deste modo, traríamos para a análise o enunciador da frase que é respon-
sável pela opinião expressa e geralmente esquecido das análises. Retomando essa
questão do diminutivo, podemos ver isso em um exercício do livro didático sobre
a classe de palavras adjetivos. É apresentada a seguinte tirinha:

Imagem 12. Exercício retirado do livro didático analisado.

Nesse exemplo retirado do livro didático, temos um exercício baseado em


uma tirinha da Folha de S. Paulo. Nela, o personagem fala de forma positiva sobre a
jaqueta, posição que se mantém até o terceiro quadrinho, alterando-se no último
quadrinho em que o personagem descreve o pequeno “probleminha” da jaqueta
preta. No exercício a seguir, temos duas questões, ambas de interpretação da tiri-
nha. O nosso foco será na questão “b”, em que se questiona a expressão utilizada
pelo personagem para demonstrar um aspecto negativo da roupa.
Novamente, temos a utilização de um diminutivo (“probleminha”) para
mostrar a opinião sobre determinado assunto, porém, neste caso, ele serve para
amenizar a próxima informação. Seria algo como “Eu gosto, mas...”. Vemos como o
sentido é alterado, pois se o personagem colocasse como “problema”, o impacto
da próxima informação seria maior do que foi, mesmo com a sua imagem quei-
mando no último quadrinho. Também vemos a instabilidade na conceituação da

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

gramática: um substantivo (problema) assumindo um papel de adjetivo. Por esse


motivo, para esse exercício, torna-se necessário uma nova questão:

• Se analisarmos a palavra “problema”, perceberemos que ela faz parte da


classe dos substantivos, entretanto, ela assume uma classe de palavras
diferente dentro dessa tirinha. Qual seria ela e por que ela assume esse
papel?
Essa questão poderia ser respondida junto com os alunos, levando a se-
guinte reflexão: o personagem demonstra que a jaqueta só tem aspectos positi-
vos, todavia, no quarto quadrinho, ele mostra o aspecto negativo da jaqueta, fato
que foi antecipado no terceiro quadrinho por um termo. Como o personagem ca-
racterizaria esse aspecto negativo? Ele seria caracterizado como um “problemi-
nha”, pelo uso do substantivo “problema” no diminutivo, com a função de adjetivo
com o intuito de amenizar os efeitos negativos que o uso da jaqueta poderá trazer.
Algo a ser considerado dentro da análise dessa tirinha é a relação do per-
sonagem com a sua autoestima, ligada ao uso da jaqueta preta, em que ele aceita
fazer um pequeno sacrifício de quase “derreter” dentro da peça de roupa a fim de
estar com o “ar do estilo de roqueiro”. Vemos que o personagem, ao falar sobre
os pontos positivos da jaqueta, utiliza o grau aumentativo (“estilosa”, “maneiro-
na”), enfatizando, ainda mais, ao utilizar dois advérbios de intensidade ao lado de
um adjetivo no aumentativo (“bem mais bonitão”), contrastando com os efeitos
negativos, por meio do predicativo (“único probleminha”), a fim de neutralizar o
aspecto negativo.
Vemos, inclusive, nessa tirinha uma relação por dependência, do substanti-
vo com o adjetivo, na formação nominal “jaqueta preta”, pois temos, no pré-cons-
truído do referencial histórico6 a imagem de que para ser roqueiro é necessário
usar uma jaqueta preta, não podendo ser colorida. Dessa maneira, “jaqueta” de-
pende de “preta” para demonstrar que o personagem é roqueiro, formando uma
articulação por dependência.
Essa relação “jaqueta preta = roqueiro” pode ser explicada pela pertinência
enunciativa. Nesse conceito trabalhado por Dias, vemos o porquê de uma senten-
ça ser aceitável dentro de um referencial histórico. Como já vimos, o enunciado
guarda uma memória e ao falarmos sobre sua pertinência enunciativa, nos refe-
rimos à “relação entre recortes de memória de significação e a demanda de um
6 Entendemos como referencial histórico o ponto de vista social sobre o enunciado, ou como de-
fine Dias (2020) os “sentidos sociais”. Segundo o autor, o referencial histórico é definido como “o
domínio de ancoragem da significação na língua, a partir do funcionamento das relações sociais.”
(DIAS, 2018, p. 142 apud SILVA, 2019, p. 44). Em outras palavras, seria a construção histórica do
enunciado, o pertencimento dele dentro da língua.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

presente pelos referenciais” (DIAS, 2015, apud SILVA, 2019, p. 40), ou seja, temos
em nossa memória a estrutura “jaqueta preta = roqueiro”, que é retomada na frase
de outra pessoa, mas que não nos causa espanto e nos permite entender o que o
personagem diz porque essa relação entre jaqueta preta e roqueiro já foi cons-
truída dentro da sociedade.
Considerando essas informações da análise, propomos um exercício no
qual o aluno fosse questionado sobre a ligação que a jaqueta preta possui com
a imagem que o personagem tem de si mesmo e como isso fica explícito na utili-
zação dos adjetivos para expor aspectos positivos e negativos. Além disso, eles
também podem ser levados a pensar no referencial histórico que nos faz identi-
ficar que para a tirinha ter sentido, o personagem não pode utilizar uma jaqueta
de outra cor, causando assim uma articulação por dependência do substantivo em
relação ao adjetivo.

Ainda a respeito do efeito pré-construído, vamos observar outro exemplo


de exercícios sobre os adjetivos no livro didático:

Imagem 13. Exercício retirado do livro didático analisado.

Todos possuem uma visão de “árvore” pré-construída, e ela é alterada con-


forme adicionamos um dos adjetivos do lado dela. Tendo isso em mente, podemos
reelaborar esse exercício questionando sobre o ponto de vista de cada aluno so-
bre uma árvore e o que muda ao se colocar cada adjetivo, se o sentido do substan-
tivo árvore muda e por que isso acontece.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Novamente, é importante ressaltar que este artigo não exclui o que as gra-
máticas e livros didáticos apresentam, entretanto, entendemos que nem sempre
esse ponto de vista consegue compreender todas as nuances da língua. Nesse es-
tudo, consideramos importante dizer que a língua possui um efeito pré-construí-
do, guardando uma memória, além de considerarmos importante o papel que o
enunciador representa dentro de um enunciado, trazendo suas opiniões e visões
de mundo em suas formulações. Dito isso, ressaltamos que esses exercícios pro-
postos são uma tentativa de exemplificar como seria a prática ao analisarmos a
língua pelo ponto de vista enunciativo.

Conclusão

No presente estudo pudemos observar como as classes de palavras -adjeti-


vos e substantivos - são encontradas em gramáticas e livros didáticos, e como sua
definição segue o preceito platoniano que diz que a língua deve possuir um refe-
rente no mundo. E com base nos textos do professor e pesquisador Luiz Francisco
Dias, foi possível percebermos, a partir da Semântica da Enunciação, alguns pro-
blemas que são encontrados nas definições das classes de palavras.

Foi possível identificarmos como a definição de adjetivo se torna falha


com substantivos que indicam falta (ausência, nada, vácuo); além da instabilidade
apresentada na hora de expressar o conceito. Também é visto como as palavras
guardam um efeito pré- construído, afetando na hora de se compreender o enun-
ciado, por conta da posição enunciativa que ele carrega. Como visto em Amorim e
Dias (2000), o substantivo deve ser estudado com o objeto temático da fala. É ne-
cessário o desenvolvimento de atividades nos livros didáticos de acordo com essa
conceituação, a fim de que não fiquem dúvidas ou falhas na hora da explicação.
Além disso, vimos como a posição enunciativa (o enunciador) pode influenciar ao
falar sobre determinado objeto, colocando a sua “opinião” dentro do enunciado.

No caso do adjetivo, vimos que a posição enunciativa também pode afe-


tar a compreensão de enunciados, e como o enunciador é apagado das análises.
Também observamos como os adjetivos podem ter uma articulação por depen-
dência ou incidência, comprovando que a língua guarda uma memória e que isso
deve ser considerado ao se trabalhar em sala de aula, trabalhando tanto com a
lição gramatical como com o fato discursivo.

276
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Essa área de estudos da Semântica da Enunciação ainda carece de muito


estudo e desenvolvimento, mas aos poucos, vai se construindo uma base mais só-
lida para ampliar a divulgação dos conceitos aqui apresentados. E, ainda, ressalta-
mos que o ensino de gramática não deve ser ignorado, mas deve-se ter um equi-
líbrio entre esse olhar normativo e as novas teorias de ensino e estudo da língua.

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278
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ESTUDO DO SUJEITO GRAMATICAL


NA PERSPECTIVA ENUNCIATIVA/
DISCURSIVA1

Emanuele Barbosa da Silva2


Luciana Fracassi Stefaniu3

RESUMO: Este trabalho é resultado da pesquisa feita em nível de Iniciação


Científica Voluntária, no Programa Institucional de Iniciação Científica – PROIC,
da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), e teve o objetivo de
estudar o sujeito gramatical a partir das definições trazidas por três gramáticas
normativas e um livro didático, com o intuito de compreendermos como o sujeito
gramatical está sendo ensinado em sala de aula atualmente. Buscamos, por meio
da análise de livro didático, demonstrar que o modo como os estudos sintáticos
vem sendo apresentados ainda não é o melhor, pois está, na maioria das vezes,
preso à gramática tradicional. Para dar suporte a esse entendimento, nos pau-
tamos nas pesquisas de autores que têm se dedicado ao ensino da sintaxe pelo
viés enunciativo, tais como Dias (1998, 1999, 2000, 2002), Pena (2015), Pereira
(2008), entre outros. A partir das reflexões produzidas, verificamos que é possí-
vel repensarmos o ensino da sintaxe, agregando as contribuições trazidas pela
Semântica da Enunciação para o espaço da sala de aula.

PALAVRAS-CHAVE: Sujeito; Gramática; Semântica da Enunciação.


1 Trabalho desenvolvido no Programa Institucional de Iniciação Científica – PROIC, da
Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), entre agosto de 2019 a julho de 2020.
2 Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Guarapuava. emanuelebdasilva@gmail.
com
3 Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), campus Santa Cruz, Guarapuava,
Paraná. lufracasse@gmail.com

279
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ABSTRACT: This work is the result of research carried out at the level of Voluntary
Scientific Initiation, in the Institutional Program of Scientific Initiation - PROIC, of ​​the
State University of the Midwest (UNICENTRO), and aimed to study the grammatical
subject from the definitions brought by three normative grammars and a textbook, in
order to understand how the grammatical subject is being taught in the classroom to-
day. Through textbook analysis, we intend to demonstrate that the way in which syn-
tactic studies has been presented is still not the best, as it is, most of the time, it is tied
in the traditional grammar. To support this understanding, we rely on the research of
authors who have dedicated themselves to teaching syntax from an enunciative point
of view, such as Dias (1998, 1999, 2000, 2002), Pena (2015), Pereira (2008), among
others. From the reflections produced, we verified that it is possible to rethink the teach-
ing of syntax, adding the contributions brought by the Semantics of Enunciation to the
classroom space.

KEYWORDS: Subject; Grammar; Enunciation Semantics.

Introdução

O estudo sobre o sujeito gramatical na perspectiva enunciativa/discursiva,


aqui desenvolvido, se deu a partir das pesquisas pelo Professor Luiz Francisco Dias
e, também, por demais autores que têm se dedicado à temática, como Emiliana da
Consolação Ladeira, Bruna Karla Pereira, entre outros.

Sabemos que o estudo do sujeito na atualidade, principalmente nas esco-


las, é, muitas vezes, realizado de uma forma mais tradicional e não muito efeti-
va no percurso de aprendizagem dos alunos. Partindo desse entendimento, Dias
(1999) tem levantado alguns questionamentos no que diz respeito à gramática,
um deles é: será que devemos, na universidade, refazer os mesmos caminhos que
o aluno percorreu na escola, e não obteve sucesso? Ao longo do trabalho, veremos
que não.

Os objetivos esperados com esse trabalho foram os de: mostrar para o


leitor a importância do estudo do sujeito gramatical na língua portuguesa; iden-
tificar o modo como as gramáticas apresentam esse tema e suas classificações;
refletir sobre a eficácia que o viés da gramática normativa tem produzido ou não
para o ensino-aprendizagem dos aspectos sintáticos em sala de aula; e conhecer
as contribuições da Semântica da Enunciação para o estudo do sujeito.

280
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

No que se refere à metodologia, esta pesquisa tem cunho bibliográfico e


qualitativo, foi desenvolvida com o intuito de observarmos o modo como o estudo
do sujeito tem se apresentado no cenário brasileiro. Para isso, selecionamos três
gramáticas: a ModernaGramática Portuguesa, de Evanildo Bechara, que aborda a
gramática descritiva e normativa; a Novíssima Gramática da Língua Portuguesa, de
Domingos Paschoal Cegalla, com abordagem normativa; e a Gramática Reflexiva:
texto, semântica e interação, de William Cereja e Thereza Cochar, com uma pro-
posta de gramática reflexiva, a fim de compreendermos o modo como cada uma
trabalha essa temática.

Além das gramáticas, buscamos livros didáticos do Ensino Fundamental II


para verificarmos como o tema de “Sujeito Gramatical” está sendo estudado nas
escolas, e se é possível mudar esse viés de ensino, tornando ele mais interessante
para os alunos aprenderem em sala de aula.

Assim sendo, selecionamos um livro didático de Língua Portuguesa, do 7º


ano, o qual faz parte da coleção Tecendo Linguagens (2018), com autoria de Tânia
Amaral Oliveira e Lucy Aparecida Melo Araujo. Nele, foi verificado como o sujeito
gramatical está sendo ensinado para os alunos, nas escolas, atualmente.

A definição de sujeito nas gramáticas normativas

SegundoPerini (1985), a gramática tradicional tem muitas falhas, as quais


podemestar relacionadas aos seguintes fatores: inconsistência teórica; falta de
coerência interna; caráter normativo; enfoque do dialeto padrão (escrito) e exclu-
são de outras variantes. Ao longo do texto, o autor fala que teremos uma gramáti-
ca satisfatória para o ensino quando os fatores citados acima forem devidamente
repensados.

Como o foco dos nossos estudos é o sujeito gramatical, apresentamos


as definições trazidas nas gramáticas de Evanildo Bechara, Domingos Paschoal
Cegalla e William Cereja e Thereza Cochar.

Bechara

Ao analisar a gramática de Bechara, Moralis (2008, p. 7), traz a seguinte


reflexão:

281
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

É num ir e vir enunciativo que Bechara se significa como um sujei-


to cindido entre o velho (gramatical) e o novo (estudos modernos
de linguagem). A enunciação de Bechara se dá, então, em dois
espaços distintos, o da gramática normativa consultiva, a servi-
ço de professores e alunos, e o da linguística que configura um
outro espaço enunciativo – o de produção de uma outra política
linguística, ou seja, a linguagem é estudada enquanto saber cien-
tífico, definido-se uma linguagem formal, um objeto de estudo e
um método de investigação. A posição linguista do autor fica um
pouco mais evidente no texto introdutório de sua obra ao expla-
nar ‘Que é uma língua’, como: ‘Entende-se por língua ou idioma
o sistema de símbolos vocais arbitrários com que um grupo so-
cial se entende’ (ibid, p. 23), considerando que Bechara assimila
nesse lugar conceitos próprios da ciência linguística como, por
exemplo, ‘símbolos vocais arbitrários’.

Assim, encontramos, em sua gramática, a seguinte definição de sujei-


to: “o sujeito tem a especificidade de ser preenchido por um substantivo ou um
pronome, que deve estar em consonância formal com o núcleo do predicado”
(BECHARA, 1999, p.205).

Cegalla

No livro, Novíssima Gramática da Língua Portuguesa, de Domingos Paschoal


Cegalla (2008), o item “Termos essenciais da oração”, p. 324-328, tratado sujeito.
O autor diz que o sujeito é constituído por um substantivo ou pronome, por uma
palavra ou expressão substantivada e traz os seguintes exemplos e classificações:

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Imagem 1. Estudo do sujeito em Cegalla.


Fonte: CEGALLA (2008, p. 324-326, adaptado).

Além dos conceitos trazidos, o autor também faz observações com o intui-
to de apresentar um esclarecimento, por meio de exemplos, sobre conteúdos que
envolvam o estudo do sujeito, como é o caso do pronome se, índice de indetermi-
nação do sujeito, no sujeito indeterminado, e os verbos impessoais, no estudo das
orações sem sujeito (CEGALLA, 2008, p. 326-327).

Cereja e Cochar

No capítulo XX, da Gramática Reflexiva: texto, semântica e interação (p. 217-


250), Cereja e Cochar (2013), trazem a classificação sobre os “tipos de sujeito” e

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ressaltam que há também orações sem sujeito e que o sujeito pode ter um ou mais
núcleos. Como exemplos e explicações apresentam os seguintes enunciados:

Imagem 2.Estudo do sujeito e Oração sem sujeito.


Fonte: CEREJA e COCHAR (2013, p. 246-250, adaptado).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

O sujeito pelo viés da semântica da enunciação

Há muitos conceitos distintos quando se fala da Semântica da Enunciação,


veremos, nesse trecho, alguns desses conceitos e a relação que se estabelece com
o sujeito gramatical.

Ao estudarmos os textos de Dias (1998, 1999, 2000, 2002) e dos pesqui-


sadores a ele vinculados, encontramos a seguinte afirmação em Viana (2011, p.
399-400):

Dias (2009) busca dimensionar o alcance dos aspectos estrutu-


rais e enunciativos na constituição dos lugares de sujeito e ob-
jeto. O autor trabalha com a tese de que, tendo em vista a dupla
instanciação do acontecimento enunciativo, condições diversas
em relação à constituição GN-objeto determinam a constituição
do GN-sujeito.

Vale destacar que GN é a sigla de grupo nominal que Dias (2009, p. 13) uti-
liza para fazer referência ao sintagma nominal.

Também sobre o estudo do sujeito, no viés enunciativo, encontramos o tra-


balho de Morais, França e Nascimento (2019, p. 66), citando as considerações de
Ducrot:

Ducrot (1988) ao se opor à noção de unicidade do sujeito, ou seja,


a ideia de que um dado enunciado possui apenas um autor, traz
o termo polifonia para os estudos linguísticos. Seu intuito é in-
formar que o sentido dos enunciados é, naturalmente, polifônico,
ou seja, que o sentido deles é perpassado por várias vozes. Para
o linguista, os fenômenos e elementos linguísticos diversos que
constituem a língua são geradores de polifonia nos enunciados,
a exemplo da negação da pressuposição e da paráfrase. Nesse
sentido, para provar que um enunciado pode ser constituído por
várias vozes, o referido autor identifica e descreve três funções
diferentes para o sujeito da enunciação : Sujeito Empírico (SE);
Locutor (L); e Enunciador (E).

De acordo com os autores, pautados em Ducrot, o Sujeito Empírico (SE)


é aquele que produz e se responsabiliza pelo conteúdo da sua enunciação. Já
o Locutor (L), não é a pessoa que produz o texto, mas aquele que se responsa-
biliza pelo conteúdo do dito. E o Enunciador (E) corresponde aos diferentes

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

pontos de vista que o locutor apresenta em seu discurso (MORAIS; FRANÇA;


NASCIMENTO, 2019, p. 66-67).

Dias (1998, p. 114) traz, no seu texto Gramática na sala de aula: da lição gra-
matical ao fato discursivo, um episódio em sala de aula, em que uma professora de
português colocou no quadro a frase “esqueceram de mim”, e muitos dos alunos
lembraram do filme que tem como título a referida frase, esse era, portanto, um
caso de sujeito oculto (pois, apesar de não estar explícito, podia ser identificado),
concluíram os alunos, embora a resposta esperada pela professora fosse a de su-
jeito indeterminado (conforme a classificação da gramática normativa, quando o
verbo está na 3ª pessoa do plural, o sujeito é indeterminado, não havendo, portan-
to, sua identificação).

Desse modo, se consideramos o enunciado como um fato discursivo, o su-


jeito é oculto4, por outro lado, pelo viés da lição gramatical, era uma “peça” que,
devia ser encaixada num determinado paradigma gramatical, ou seja, como sujei-
to indeterminado. Portanto, todo o problema está em se considerar o enunciado
como uma lição gramatical, que é o exemplo que serve a uma conduta, ou proce-
dimento; ou como fato discursivo oral considerando as condições de produção do
enunciado. O objetivo de Dias (1998), como ele mesmo cita em seu texto, foi o de
mostrar que vários dos problemas referentes à gramática seriam melhor enfren-
tados, se o professor pudesse contar com informações abrangentes sobre a enun-
ciação, especificamente, sobre papel do enunciado no discurso, bem como sobre
o domínio no qual as informações veiculadas pelo enunciado adquirem sentido.

Lugar sintático de sujeito

No texto de Pereira (2008), Convergência dos lugares sintáticos de sujeito e


objeto direto: um enfoque enunciativo, ela afirma que:

Nossa concepção de lugar sintático não está vinculada à posição


dos constituintes na estrutura linear de uma sentença, pois nem
sempre ela é determinante na distinção entre sujeito e objeto.
Além disso, nossa concepção de lugar não está vinculada à posi-
ção hierárquica dos constituintes como é a perspectiva gerativis-
ta, porque, na estrutura arbórea, não se aceita a concomitância,

4 Conforme Dias (1998, p. 114), “No filme, todo o enredo gira em torno de um esquecimento: os
pais e os irmãos do personagem-herói esquecem-no em casa, quando saem de viagem no dia de
Natal. Tendo em vista o enredo do filme, esse era, portanto, um caso de sujeito oculto, concluí-
ram os alunos”.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

isto é, a possibilidade de convergência de duas categorias sintá-


ticas em um mesmo sintagma. Só haveria a possibilidade de um
item lexical ocupar uma única posição na sentença, porque ela
representa uma função sintática. Por isso, em uma concepção de
posições, como a gerativa, um item se move para checar traços,
quando a posição onde ele nasce não oferece os traços de que ele
necessita. (PEREIRA, 2008, p. 5).

Além da autora, os demais autores que veremos, a seguir, nos darão o su-
porte para o melhor entendimento sobre o sujeito gramatical, inclusive com a dis-
tinção feita por Dias sobre sujeito base, sujeito projeção e sujeito perfil.

Para Pena (2015, p. 105), o lugar sintático de sujeito é o responsável pela


instauração da sentença. Conforme a autora, tal compreensão é justificada “pelo
fato desse lugar ter uma condição de proeminência no eixo enunciativo da senten-
ça, uma vez que, no evento do acontecimento, possibilita ao verbo o recebimento
da coordenada de pessoalidade, principal coordenada para essa instauração”. A
autora nos traz mais explicações, afirmando que,

ao colocar a língua em funcionamento, coordenadas enunciati-


vas incidem sobre a sua materialidade. A partir dessas coorde-
nadas é que o verbo sai do seu estado de dicionário, ou seja, seu
estado antes de constituir um acontecimento, quando passa para
um estado de finitude em que essas coordenadas se materializam
através das formas sufixais. Essa atualização do verbo só é viabi-
lizada na sua relação com o lugar de sujeito. Assim, ‘a instalação
do sujeito [...] rege a perspectivação da pessoalidade na predica-
ção’ Dias (2009, p. 20). A instalação do predicado é devida, en-
tão, à sua relação com o lugar de sujeito. De maneira sucinta, o
lugar de sujeito aciona o verbo que sai do estado de dicionário e
se constitui como base de uma predicação. Dessa relação é que
afirmamos que o lugar de sujeito tem como característica básica
uma anterioridade de predicação. (PENA, 2015, p. 105-106).

Assim sendo, Pena (2015, p. 106) diz que o lugar de sujeito é a base de sus-
tentação do predicado na constituição da sentença. Ao fazer referência ao estudo
de Dias (2002, p. 106), a autora apresenta a classificação dos sujeitos em: sujeito
base, sujeito projeção e sujeito perfil.

Ao definir o sujeito base, Pena (2015, p. 107) esclarece que ele é caracte-
rizado “por ter como núcleo do sintagma nominal o substantivo que, por ser um

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

designador, alimenta a estabilidade na demanda de saturação”. Desse modo, se-


guindo o proposto por Dias (2009, p. 21), a ocupação do lugar do sujeito base é
feita pelo modo da definitude, o qual pode apresentar três aspectos: a definitude
em núcleo, a definitude em ancoragem e a definitude em confluência.

Pena (2015, p. 107) explica que, na definitude em núcleo, o grupo-nominal


sujeito (GN-sujeito) possui um substantivo no núcleo, produzindo um efeito de
unidade. Trata-se, portanto, de um sujeito informativo, uma vez que ocupa o lugar
com um nome.

No caso da definitude em ancoragem, Dias (2009, p. 21) explica que GN-


sujeito é marcado por uma “necessidade de aporte de um GN fora do lugar su-
jeito”, podendo comportar um termo indexador, como um pronome pessoal, um
pronome demonstrativo ou o sufixo verbal de 1ª pessoa, por exemplo, projetando
a indexação da nominalidade e colocando o lugar GN-sujeito em ancoragem.

E o último é o caso de sujeito base com definitude em confluência. Esse,


conforme Dias (2002, p. 56), refere-se a casos em que o acionador do verbo está
aglutinado no sintagma objeto, ele dá exemplos desses verbos, são eles: haver, ser
e fazer. A gramática normativa considera que orações com esses verbos são ora-
ções sem sujeito. Dias denomina “projeção oblíqua” da constituição de lugar de
sujeito gramatical, quando os verbos que indicam existência e tempo fazem com
que o sujeito passe a ser uma especificação do verbo.

Portanto, de acordo com Pena (2015. p. 110), temos o sujeito base quando
o lugar sintático é ocupado por um grupo nominal ao qual se pode atribuir dife-
rentes graus de definitude.

Quanto ao sujeito projeção, a autora retoma a explicação de Dias em seu


texto, afirmando que:

O sujeito é uma projeção de uma identidade a partir da instân-


cia enunciativa circunscrita pelo predicado. O sintagma base é
formado por pronomes indefinidos ou pronomes interrogativos
(classificação da gramática tradicional), como “quem”, “aquele
que” etc., que se tornam portadores de uma identidade projetada
da instância enunciativa da sentença, conforme Dias. (2002 apud
PENA, 2015, p. 110).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Nesse tipo de sujeito, compreende-se a expressão “alguém que” como um


paradigma dessa identidade projetada, havendo ou não a ocupação do lugar do
sujeito. (PENA, 2015, p. 110). Como exemplo de uma sentença com sujeito de
identidade projetada, constituída no predicado, a autora traz a oração “Alguém
quebrou a viola” (alguém que…) explicando que, a partir do acionamento do ver-
bo, esse sujeito pode ou não ser lexicalmente realizado, como é o caso de frases
como: alguém pulou o muro; todos foram à praia, etc.

Encontramos algumas semelhanças ao nos referirmos ao sujeito perfil e ao


sujeito projeção, pois, como no sujeito projeção, o sujeito perfil também formula
um paradigma do portador desse perfil, sendo “quem” ou “aquele que”. Segundo
Pena (2015, p. 111), o sujeito perfil se sobressai da textualização de um efeito de
“verdade”, formulado a partir do próprio domínio de enunciação dos provérbios,
assim,

[e]sse tipo de sujeito advém de uma conclusão produzida inter-


namente ao texto que dá suporte à sentença. O sujeito é, então,
um perfil ‘constituído a partir da instância enunciativa circunscri-
ta por uma base textual’ (p. 60), e para a constituição desse perfil
é necessário que pelo menos duas sentenças entrem em relação.
Os provérbios são exemplos dessa relação, pois possuem estru-
turas do tipo: ‘quem X, Y’.

Nesse caso, a ocupação do lugar sintático de sujeito se dá pelo modo da


prospectiva.

Desse modo, Dias (2020, p. 5) pontua que compreender a produção de sen-


tidos pela enunciação nos conduz ao conhecimento da formação dos discursos e
dos sujeitos responsáveis por eles, como também aos estudos do funcionamento
da sociedade. Assim, a produção de sentido pela língua é uma prática social, pois,
por meio do uso da língua conseguimos nos expressar de diferentes formas no
convívio social.

Portanto, os textos de Dias (1998, 1999, 2000, 2002) possuem uma gran-
de importância para a realização deste trabalho, pois foram eles que nos deram
suporte para a realização de pesquisas e análises, a fim de entendermos melhor o
sujeito gramatical na perspectiva enunciativa/discursiva.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

O sujeito gramatical no livro didático

O livro didático de língua portuguesa, usado para fazer a análise, é de 7º


ano e faz parte da coleção Tecendo Linguagens (2018), com autoria de Tânia Amaral
Oliveira e Lucy Aparecida Melo Araujo. Nele, foi analisado como o sujeito grama-
tical está sendo ensinado para os alunos nas escolas, atualmente.

Começamos a análise com uma breve retomada dos conceitos definidos


por Dias (2002), de sujeito base, sujeito projeção e sujeito perfil, já mencionados
acima. Assim, observaremos como cada um deles poderia ser acrescentado aos
conceitos e atividades trazidos pelo livro didático. Conforme Pena (2015), a ocu-
pação do lugar de sujeito base, é feita pelo modo de definitude que pode apresen-
tar três aspectos: definitude em núcleo, definitude em ancoragem e definitude em
confluência. No caso de sujeito em projeção, segundo Pena (2015), podemos to-
mar a expressão “alguém que”, e pode haver ou não a ocupação do lugar do sujeito.

Quanto ao tipo de sujeito perfil, Pena (2015) explica que ele advém de uma
conclusão produzida internamente ao texto, dando suporte à sentença. Para a
constituição do sujeito perfil é necessário que pelo menos duas sentenças entrem
em relação. São exemplos dessa relação os provérbios.

No livro didático, as autoras Oliveira e Araújo (2018) vão dizer que sujei-
to simples é aquele que apresenta um núcleo e sujeito composto, dois núcleos.
Quando o sujeito não aparece na oração é possível identificá-lo pela terminação
do verbo (desinência), alguma informação do contexto também contribui para a
sua identificação como em “vamos tentar de novo”, nessa frase dá-se o nome ao
sujeito de sujeito desinencial.

Quando não é possível identificar o sujeito na oração, dizemos que o sujeito


é indeterminado, como é o caso da frase “Precisa-se de vendedores”.Não é possível
saber “quem precisa de vendedores”. Vejamos como descrito no livro:

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Imagem 3. Tipos de sujeito no livro didático.


Fonte: (OLIVEIRA; ARAÚJO, 2018, p. 49).

É importante ressaltar que encontramos muitas convergências quanto às


definições do que é sujeito, quais são os tipos, como são constituídos etc., tanto
nas gramáticas citadas neste trabalho, quanto no livro didático aqui analisado.
Nesse último, ao relacioná-lo com a pesquisa de Pena (2015), por exemplo, no-
tamos que, quando existe uma oração que se refere a tempo como “chovia tor-
rencialmente naquela manhã”, para as autoras do livro didático essa oração não

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

tem sujeito, pois não há um ser a quem se possa atribuir a ação de chover, elas
concluem, então, que se trata de uma oração sem sujeito.

Imagem 4. Oração sem sujeito no livro didático.


Fonte: (OLIVEIRA; ARAÚJO, 2018, p.48).

Já para Pena (2015), mesmo o sujeito não tendo o lugar ocupado material-
mente, como ocorre no exemplo do livro didático “Chovia torrencialmente naque-
la manhã”, a oração não seria considerada sem sujeito, uma vez que o sujeito é
projetado no seu lugar qualificado de sujeito da sentença, só não é ocupado.

Ao analisarmos as definições e os exercícios do livro didático, podemos di-


zer que temos exemplos que se encaixam no sujeito base - atividades 1 e 2 da
página 49; sujeito projeção - nos trechos da atividade 3, página 49, mas, também,
notamos que não temos exemplos que se encaixam no sujeito perfil, pois não apa-
receu nenhum enunciado do tipo “Quem planta, colhe”. Ou seja, não encontramos
abertura para esse tipo de reflexão nos modelos trazidos pelo livro didático.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

No caso da análise que Dias (1998) fez para “esqueceram de mim”, mos-
trando a classificação do sujeito como indeterminado, de acordo com a gramática
normativa, e a compreensão dos alunos de que se tratava de um caso de sujeito
oculto, porque relembraram o enredo do filme “Esqueceram de Mim” e identifi-
caram as pessoas que esqueceram o garotinho, compreendemos que é preciso
refletir sobre o funcionamento da língua, indo além do plano da organicidade sin-
tática das orações, trazido pela gramática tradicional, é preciso, pois, chegarmos
ao plano do enunciável também.

Nesse livro didático, percebemos que as atividades ainda não contemplam


o plano do enunciável, uma vez que o espaço conferido à temática é limitado e
possui algumas lacunas que comprometem o processo de ensino-aprendizado. A
gramática ainda segue mais a forma tradicional, e como afirma Dias (1999), so-
mos a favor do ensino das gramáticas nas escolas, mas é preciso que o professor/a
tenha um perfil que possa pensar a língua a partir de uma dimensão mais ampla.

Conclusões

A partir das pesquisas feitas por Dias (1998, 1999, 2000, 2002) e pelos de-
mais autores, também filiados à Semântica da Enunciação, compreendemos que
“a língua funciona nas nossas ações sobre o presente, nas lutas que travamos en-
tre a memória que nos liga ao passado e o trabalho em prol de um futuro”, de modo
que a noção de gramática como descrição das formas linguísticas não recobre to-
talmente o funcionamento da língua, uma vez que esta não é como um quadro
(DIAS, 1998, p. 119).

Assim sendo, ao pensarmos o estudo do sujeito gramatical nessa perspec-


tiva enunciativa, identificamos que o professor de língua materna deve desenvol-
ver um perfil ressignificado de gramático e, também, de aluno, na medida em que
possibilite a reflexão sobre a ocupação do lugar sintático de sujeito em discursos
que conferem sentido a diferentes realidades, considerando, inclusive, a produ-
ção de enunciados de seus alunos.

Portanto, finalizamos as ponderações aqui trazidas afirmando que não so-


mos contrárias ao ensino da gramática na escola, pelo contrário, o que estamos
apresentando é uma possibilidade de (re)pensar o modo como as formas linguís-
ticas são abordadas nas gramáticas normativas e livros didáticos. Ainda estamos
no começo da caminhada, mas, desde já, esperamos contribuir com todos aqueles

293
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que se dedicam ao ensino da língua materna e queiram conhecer o ponto de vista


da Semântica da Enunciação.

Referências

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294
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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295
PROPOSTA DE ATIVIDADES PARA A
PRÁTICA DE ANÁLISE LINGUÍSTICA A
PARTIR DOS DÊITICOS EM QUESTÕES
DE VESTIBULAR1

Ludmila Serafim Lopes2

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo contribuir para a Prática de


Análise Linguística a partir de uma proposta de atividades paralelas às questões
do vestibular da Fuvest relacionadas aos dêiticos. Para tal, consideramos esses
elementos linguísticos como mecanismos necessários à interpretação, análise
e produção de textos, por apresentarem funções significativas nos eventos dis-
cursivos. Com esse recorte, apresentamos o que propõe a literatura em Análise
Linguística e a proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino
gramatical, a fim de relacionar com os vestibulares, e ainda os fundamentos do
fenômeno da dêixis. A pesquisa realizada indicou que há uma recorrência do tema
da dêixis em questões de Língua Portuguesa no vestibular analisado, o que nos
permitiu demonstrar que: i) as questões refletem sobre o papel dos dêiticos no
contexto discursivo, como apregoa a teoria sobre o tema; e ii) são adequadas às
propostas da literatura e dos documentos oficiais sobre o ensino de língua. Com
isso, foi possível propor atividades paralelas às questões do Exame, nos levando
a concluir que os vestibulares podem ser fortes aliados para a Prática de Análise
Linguística em sala de aula.

PALAVRAS-CHAVE: Análise Linguística; Dêiticos; Atividades.

1 Artigo derivado do Trabalho de Conclusão de Curso de Lopes (2019).


2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). ludmilaldns@gmail.com.

296
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ABSTRACT: This work aims to contribute to the practice of Linguistic Analysis based on
a proposal of activities related to deictics in questions of Fuvest admission exams. For
this, we consider these linguistic elements as necessary mechanisms for interpretation,
analysis and production of texts, since they present significant functions in the discur-
sive events. Due to that, we take, as theoretical input, the perspective on the practice of
Linguistic Analysis, the view of the official documents in relation to how should teaching
grammar in order to relate with admission exams as well as the fundamentals of the
phenomenon of deixis. The research carried out pointed to/concluded for a recurrence
of the theme of the deixis in the exam analyzed. Results show that deictics elements are
requested inside their discursive environment. Besides that, the questions follow what
is suggest both in the literature and in official documents on teaching. Thus, it was pos-
sible to propose activities parallel to the Fuvest admission exam leading us to conclude
that the admission exams questions can be strong allies for the practice of Linguistic
Analysis in the classroom.

KEYWORDS: Linguistic Analyses; Deixis; Activities.

Introdução

O presente trabalho é um recorte de uma pesquisa que procurou verificar


se as propostas de vestibulares são pertinentes com aquilo que é preconizado pe-
los Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante, PCNs) sobre o ensino de lín-
gua e a teoria de Análise Linguística (doravante AL). Essa pesquisa foi realizada
por Lopes (2019) e reanalisada por Lopes e Bertucci (2019). Na referida pesquisa,
analisaram-se os dêiticos em questões discursivas da Fuvest3 e percebeu-se que
essas questões podem desenvolver uma maneira mais relevante e interessante
para o ensino e aprendizagem dos aspectos gramaticais da língua.

A escolha pelos PCNs se justifica pelo fato desses documentos oficiais


serem aqueles que pautaram a organização do Ensino Médio até a realização
dos processos seletivos aqui analisados, balizando, inclusive, a elaboração de-
les. Atualmente, reconhecemos o impacto da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) na organização do ensino no Brasil e, neste trabalho, ainda que fosse
possível elencar pontos deste documento oficial, optamos por não o incluir na
análise, tendo em vista que os vestibulares analisados foram realizados antes da

3 A escolha por este processo seletivo se deu pelo seu alcance nacional e sua configuração a partir
de questões discursivas que exigem reflexão e análise do participante. As questões analisadas
são dos processos seletivos de 2016 e 2017.

297
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

aprovação da Base ou muito no início de sua implementação, o que poderia com-


prometer os resultados. No entanto, até onde a estudamos, tudo o que é dito aqui
sobre a Prática de AL está de acordo com o que propõe a BNCC, e alguns aspectos
serão abordados nas considerações finais.

Há muitos anos, no Brasil, os documentos oficiais têm destacado a impor-


tância de o ensino de língua passar de uma perspectiva tradicional (normativa)
para uma perspectiva de AL (BRASIL, 2000, 2006, 2017). Esse deslocamento seria
resultado também de pesquisas na área que enfatizam a importância de se conce-
ber a língua como um sistema dinâmico e sua gramática como parte do conheci-
mento do falante, algo que pode ser refletido e descrito de forma contextualizada.

Nesse sentido, considerando o que apregoa a AL, autores como Mendonça


(2006), Kemiac e Lino de Araújo (2010) e Santos, Riche e Teixeira (2015) enfati-
zam o quanto se faz importante que o ensino dos elementos gramaticais seja com-
preendido a partir da perspectiva reflexiva que envolve análise, interpretação e
construção de sentidos no que tange aos fenômenos da língua.

No entanto, apesar do reforço dos PCNs (BRASIL, 2000, p. 17) de que o sa-
ber linguístico próprio dos estudantes deva ser desenvolvido “pela interpretação
e análise dos fenômenos da língua” em situações concretas, o contexto escolar
com relação ao ensino de língua ainda é desenvolvido com base no deciframento
de um código linguístico, a partir de normas e nomenclaturas deslocadas de seu
contexto de uso. Com isso, o que se vê são alunos que não compreendem as regras
gramaticais, justamente por não estudá-las em situações reais de uso.

Este cenário escolar é evidenciado pelos vestibulares - enquanto avalia-


ções de aprendizagem - ao indicar que os alunos concluintes do Ensino Médio
apresentam dificuldades de solucionar as questões de Língua Portuguesa propos-
tas. Nesse caso, pode-se pensar em duas questões: a pertinência dos vestibulares
quanto às propostas de ensino, justamente por terem que avaliar os conhecimen-
tos que os estudantes deveriam ter adquirido na formação escolar; e o fato de que
a escola tem falhado na suposta “preparação para o vestibular”, discurso muito
difundido entre os críticos do modo de ensino tradicional.

Desse modo, sendo os vestibulares condizentes com as propostas de ensi-


no, entende-se que eles podem funcionar como aliados para o ensino e aprendiza-
gem da língua. Por isso, este artigo tem como finalidade propor um trabalho com
AL em sala de aula a partir de uma proposta de atividades paralelas às questões do
vestibular da Fuvest relacionadas aos dêiticos. Então, do ponto de vista teórico,

298
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

selecionamos o fenômeno da dêixis, o qual exige que se leve em consideração o


contexto (linguístico e extralinguístico) para a correta interpretação de seu senti-
do (LEVINSON, 2007; CANÇADO, 2008). Assim, ao eleger tais elementos como
escopo de trabalho, acreditamos que as questões envolvam a reflexão de todo o
papel do elemento no texto (e no contexto), para além da função gramatical.

Como recorte de dados, selecionamos as questões discursivas 1A da


Fuvest/2016 e 1A da Fuvest/2017, as quais exigem uma reflexão e análise cuida-
dosa dos elementos gramaticais, além de apresentarem uma relação bastante sig-
nificativa entre o linguístico e o extralinguístico, o que é uma característica cara
tanto para a Prática de AL quanto para os dêiticos.

O trabalho está organizado assim: na primeira parte, apresentaremos as


principais afirmações dos PCNs e da AL, com o intuito de estabelecer relações
com os vestibulares; na segunda parte, trataremos do fenômeno da dêixis, res-
saltando sua relevância em trabalhos de AL; na terceira parte, apresentamos as
propostas das questões de vestibular e as atividades paralelas para a Prática de
AL; a seguir, passamos às considerações finais.

A Análise Linguística e os vestibulares

Nesta seção, traremos a abordagem da AL para o ensino de português a


partir dos PCNs e a literatura da área, teceremos algumas considerações sobre
os vestibulares no contexto brasileiro e sua relação com a AL. Com isso, preten-
demos fundamentar teoricamente as propostas das questões de vestibular e as
atividades paralelas.

A Prática de AL e o ensino de português

Há muito tempo, o ensino gramatical normativo ou prescritivo na discipli-


na de Língua Portuguesa tem sido considerado ineficaz aos propósitos da língua
enquanto prática social. De acordo com os PCNs (BRASIL, 2000, p. 82), essa ine-
ficácia decorre do fato de “a maioria dos estudantes não entender o porquê de
se apresentarem tantas regras sem que haja uma aplicação prática delas na lin-
guagem que usualmente utiliza”, e como consequência, deparam-se com a extre-
ma dificuldade de ler e interpretar textos do dia-a-dia e, inclusive, as questões de
vestibulares.

Contrapondo esse cenário, os documentos oficiais de ensino a partir da


noção sociointeracionista de linguagem (BAKHTIN, 2010[1929]), assim como

299
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

autores da área, preconizam que os estudos gramaticais e o ensino sejam desen-


volvidos com base na concepção da Prática de AL, a qual é estabelecida como
eixo de ensino a ser trabalhado de forma integrada com as Práticas de Leitura e
Produção de textos. Conforme Mendonça (2006, p. 208),

[...] a AL é parte das práticas de letramento escolar, consistin-


do numa reflexão explícita e sistemática sobre a constituição e
funcionamento da linguagem nas dimensões sistêmica (ou gra-
matical), textual, discursiva e também normativa, com o objetivo
de contribuir para o desenvolvimento de habilidades de leitura/
escuta, de produção de textos orais e escritos e de análise e sis-
tematização dos fenômenos linguísticos.

Desse modo, entendemos que o trabalho com AL descentraliza os estudos


da gramática da perspectiva normativa ao propor a reflexão consciente sobre
os fenômenos gramaticais e textual-discursivos inseridos em contextos de uso.
Nessa perspectiva, o educando pode desenvolver a capacidade de entender as
propriedades, regularidades e recursos da língua envolvidos em nossas intera-
ções verbais, podendo questionar seus usos e testar suas possibilidades em dife-
rentes eventos comunicativos.

A adoção da AL como eixo de ensino exige também uma mudança das prá-
ticas escolares. Para Antunes (2010, p. 52), “isso desloca, necessariamente, os ob-
jetivos do ensino da língua na direção da reflexão investigadora, da análise dos
usos sociais da língua - escrita e falada, verbal e multimodal - e da aplicabilidade
relevante do que se ensina, do que se aprende”. Logo, a aprendizagem da língua
deve focar-se na leitura, análise e produção de textos em situações reais, já que
é essencial que as condições de produção fiquem claras para o estudante para
resultar na construção progressiva do conhecimento dos fenômenos linguísticos
em análise, e não na memorização de regras e nomenclaturas.

Segundo os PCNs, propostas de transformação do ensino de Língua


Portuguesa consolidam-se em práticas de ensino que tenham como pilar “a língua
compreendida como linguagem que constrói e “desconstrói” significados sociais”
(BRASIL, 2000, p.17). Nesse sentido, a AL adota a noção dialógica do Círculo de
Bakhtin, para quem a língua vai além de um sistema de códigos composto por
regras gramaticais a serem decodificadas. Assim, parte-se do princípio de que a
interação constitui a realidade da língua e, por isso, a AL passa a analisar o texto

300
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

enquanto linguagem associada ao seu contexto de enunciação, a fim de promover


a compreensão dos usos linguísticos em diferentes eventos comunicativos.

Nesse sentido, faz-se necessário que os gêneros discursivos se constituam


como plano de fundo para as análises linguísticas, por materializarem os enun-
ciados produzidos socialmente e permitirem a compreensão plena da interação
e da produção de sentidos. Assim, os elementos gramaticais podem ser analisa-
dos de forma situada e em diálogo com os contextos de produção e circulação.
Além disso, a AL tem a indução como método de investigação, a partir do qual
observam-se casos particulares para, quando necessário, estabelecer padrões de
funcionamento geral da língua.

Para tanto, a metodologia indutiva deve ser desenvolvida a partir de ati-


vidades epilinguísticas em detrimento às metalinguísticas, contrariando, assim, a
perspectiva tradicional. Entende-se que, por meio da epilinguagem, é possível re-
fletir sobre a linguagem e não apenas falar sobre ela, construindo o conhecimento
de como utilizá-la em variados contextos enunciativos, além de serem considera-
dos os aspectos semânticos e pragmáticos envolvidos com foco na depreensão de
sentidos.

Desse modo, o processo de análise deve ser realizado a partir da estrutu-


ra macro – o texto – e finalizar na observação dos recursos micro linguísticos, os
quais serão analisados a partir da percepção de suas contribuições para a produ-
ção de significados no contexto de uso. Assim, de acordo com Travaglia (2009, p.
94-95),

nessa perspectiva os elementos, os recursos linguísticos utiliza-


dos na constituição do texto são entendidos como marcas, como
pistas que o usuário da língua utiliza para produzir um efeito de
sentido, seja como produtor ou receptor do texto. Portanto, os
elementos linguísticos que aparecem no texto funcionam como
instruções para o usuário, que deverá a partir delas levantar um
sentido, estabelecendo um efeito de sentido entre ele e o pro-
dutor que deu tais instruções pela escolha daqueles elementos
e não de outros.

Então, a Análise Linguística, sendo desenvolvida a partir de textos, consiste


na compreensão de que cada uma de suas partes/recursos contribui para a cons-
trução de seu sentido global. Vale ressaltar que esta metodologia da AL para o
ensino de língua está de acordo com a proposta dos PCNs. Destaca-se, sobretudo,

301
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que esses documentos consideram que a discussão da gramática em sala precisa


levar o aluno a refletir sobre os aspectos linguísticos particulares da língua, em
detrimento de modelos metalinguísticos. Assim, com o método indutivo, é possí-
vel considerar os conhecimentos prévios do aluno como ponto de partida para o
processo reflexivo.

Dessa forma, corrobora-se a perspectiva sociointeracionista da linguagem,


bem como da indução como metodologia de ensino, em que os estudantes passam
de análises particulares para, quando possível, chegar a regras gerais de funciona-
mento da língua em contextos reais de produção, sistematizando o conhecimento
apreendido. Nessa perspectiva, para o documento (BRASIL, 2000, p. 20), é impor-
tante que, na Prática de AL, o discente seja capaz de

analisar os recursos expressivos da linguagem verbal, relacio-


nando textos/contextos, mediante a natureza, função, organi-
zação, estrutura, de acordo com as condições de produção/re-
cepção (intenção, época, local, interlocutores participantes da
criação e propagação de idéias e escolhas),

o que inclui os elementos dêiticos, os quais se configuram como recursos


expressivos da linguagem verbal, com função específica (coesão e referência) e
que se relacionam diretamente com o contexto enunciativo, ou seja, com as con-
dições de produção/recepção.

Assim, percebemos que, tanto os documentos oficiais quanto a literatura


de AL, ressaltam a importância de se ponderar sobre as microunidades da língua
ao entenderem que elas contribuem para o estabelecimento da organização e sig-
nificação textual. Por tudo isso, depreendemos que, na perspectiva da AL, o estu-
do gramatical é encarado a partir do processamento do texto em estreita relação
com os mecanismos enunciativos e textuais e o contexto discursivo.

Os vestibulares

No Brasil, os vestibulares servem como forma de ingresso nas universida-


des, contribuindo para a preparação ao mercado de trabalho. Assim, a aprovação
constitui-se como um objetivo importante dos estudantes concluintes do Ensino
Médio, os quais são avaliados a partir da resolução de questões formuladas com
base nos conhecimentos adquiridos no decorrer da formação escolar. Desse
modo, entendemos que os vestibulares tendem a estar vinculados às propostas

302
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de ensino dos documentos oficiais e às práticas defendidas na literatura, como a


Prática de AL - eixo para o ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa.

Nesse sentido, é comum o entendimento de que o vestibular (ou o Enem) é


um balizador das questões a serem tratadas em sala de aula. Gomes e Felice (2017,
p. 229) consideram haver um “efeito retroativo negativo” do Enem em situações
em que o professor usa as questões do Exame para “treinar” seus alunos ou para
justificar o ensino de um conteúdo ou de determinadas regras. Entretanto, se de
um lado reconhecemos que ele pode ter esse efeito negativo (finalidade de pas-
sar), de outro, podemos questionar se o modo como trata determinados conteú-
dos não seria relativamente inovador, ou mesmo, balizador para novas práticas
do professor.

Queremos defender esse segundo ponto neste trabalho, assumindo que as


questões de vestibular apresentam conteúdos linguísticos comuns no currículo
escolar (ao menos ao que é parametrizado), e ainda os mobilizam a partir de uma
perspectiva de análise e compreensão dos usos, como aventa a Prática de AL, e
não apenas da observação da organização da língua e aplicação de seus concei-
tos. É possível verificar no corpus selecionado que as questões com a temática da
dêixis apresentam situações nas quais a linguagem está diretamente vinculada a
contextos enunciativos diversos, o que requer do candidato uma análise e refle-
xão dos usos dêiticos a partir de uma perspectiva discursivo-enunciativa, como
propõem os PCNs.

Dessa forma, acreditamos que as questões dos processos seletivos podem


ser utilizadas como um gatilho eficaz nos estudos linguísticos desenvolvidos em
sala de aula, já que o aluno pode pensar sobre as possibilidades linguísticas e o uso
de seus fenômenos em diferentes contextos de produção. Para Mendonça (2006,
p. 205),

[...] quanto ao vestibular, há uma tendência crescente de valori-


zar as habilidades e competências de leitura e escrita (saber fa-
zer), em detrimento de conhecimentos metalinguísticos (saber
sobre), sendo estes auxiliares àquelas.

Por esse ponto de vista, essas questões não devem ser utilizadas como me-
ros exercícios de fixação ou preparação para os conteúdos que “caem” no vestibu-
lar. Na verdade, elas precisam ser mobilizadas como algo desafiador que provoca
o discente a refletir sobre os conceitos linguísticos e, sobretudo, seus usos em

303
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

variadas situações discursivas. Com isso, os processos seletivos poderão ser vis-
tos como aliados na prática do ensino, por serem meio de compreensão da língua
e não apenas objetivo ao final de um ciclo.

De acordo com os PCNs (BRASIL, 2000, p. 78), “se na sala de aula, o estu-
dante analisa textos com os quais convive fora da escola, as relações que faz entre
os conteúdos disciplinares e sua vivência tornam-se muito mais significativas”.
Por isso, acreditamos que o contexto dos vestibulares e, principalmente, suas
questões precisam fazer parte das aulas de língua portuguesa, a fim de aproximar
o aluno e sua realidade. Portanto, propomos que o professor encaminhe ativida-
des paralelas às questões de vestibulares a fim de, primeiramente, promover a re-
flexão e o entendimento a respeito do funcionamento da língua, e consequente-
mente, preparar o candidato para solucionar questões de português no vestibular
- ainda que este não seja o fim último das atividades de língua.

O fenômeno da dêixis

Neste trabalho, assumimos uma perspectiva de interface para o trabalho


com dêiticos que leve em conta seu caráter semântico e pragmático. Nesse senti-
do, escolhemos uma perspectiva mais referencial para o tratamento do fenôme-
no. Começamos, então, com Karl Bühler que situa a origem da dêixis em um fato
linguístico-histórico que ele denomina campo mostrativo da linguagem, o qual diz
respeito aos modos que o ser humano se utiliza para indicar elementos no mundo.
Desde os primórdios, utilizar-se de gestos para fazer referências era essencial,
algo que continuou mesmo com o desenvolvimento das línguas naturais. Para
Bühler (1961, apud BARDARI, 2011), é nesse contexto que surgem as ‘palavras
primitivas’ da linguagem humana, entre elas os dêiticos – elementos linguísticos
que passam a caracterizar a deiticidade da linguagem – operando como sinais lin-
guísticos em contextos sociocomunicativos.

Em consonância com essa noção geral, Cançado (2008, p. 53) afirma que
“os elementos dêiticos permitem identificar pessoas, coisas, momentos e lugares
a partir da situação de fala, ou seja, a partir do contexto”, sendo expressos por
pronomes demonstrativos, pessoais, tempos verbais, advérbios de lugar e tem-
po, entre outros. Assim, percebe-se que a dêixis está diretamente relacionada aos
contextos enunciativos, por precisarem estabelecer uma relação direta com os
elementos do mundo no processo de sua identificação. Por isso, para Levinson
(2007, p. 65, grifos do autor),

304
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

[...] a dêixis diz respeito às maneiras pelas quais as línguas codifi-


cam ou gramaticalizam traços do contexto da enunciação ou do
evento de fala e, portanto, também diz respeito a maneiras pelas
quais a interpretação das enunciações depende da análise desse
contexto de enunciação.

Nesse sentido, a dêixis parece estar na fronteira de dois campos da


Linguística, a Semântica e a Pragmática, já que diz respeito à relação existente
entre a estrutura das línguas e os seus contextos de uso, podendo, então, ser es-
tudada como um fenômeno semântico-pragmático dentro da teoria da Semântica
Referencial. Nesta, o significado é dado pela relação entre os itens da língua e os
objetos do mundo (a que se referem), a partir daquilo que a teoria denomina sen-
tido e referência.

A noção de referência estabelece uma relação entre a língua e o mundo, a


qual pode ser explicada pelo fato de as palavras se associarem a objetos e os de-
notar. Essa denotação nos permite alcançar os conceitos relativos às expressões
linguísticas, ou seja, os sentidos, os quais são objetivos e primordiais na efetivação
da comunicação com o outro. No caso da dêixis, a relação da referência com o
sentido configura, como é apontado por Cançado (2008, p.53), a existência de um
“caráter sistemático para a interpretação desses elementos” (sentido básico do
elemento) e sempre considerando que sua referência é determinada/especificada
pelas condições de produção de um enunciado (contexto). Isso justifica a compo-
sição semântico-pragmática da dêixis.

Compreende-se então que, ao tratar do aspecto semântico da dêixis, referi-


mo-nos ao seu sentido fixo, caracterizado por possibilidades objetivas e limitadas,
porém, abstrato, já que só pode ser preenchido nas situações discursivas situadas
no contexto da enunciação. Sendo assim, o sentido desse fenômeno só se efetiva
ao ser referenciado nos enunciados produzidos nos eventos de fala, os quais são
variados e mutáveis. Esse processo de referenciação, o qual associa o sentido ao
contexto, configura o aspecto pragmático da dêixis. Sendo assim, o fenômeno da
dêixis ultrapassa o metalinguístico e gramatical ao exigir a interpretação de as-
pectos pragmáticos, ampliando sua análise para o âmbito discursivo-textual.

É importante destacar que, situados em uma situação enunciativa-


discursiva, os dêiticos dependem de certos índices que, ao serem identificados

305
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

no contexto, atribuem significado às expressões indiciais e preenchem o sentido


do enunciado. Nesse sentido, os dêiticos atuam como elementos de retomada
de referentes, os quais podem estar situados na identidade dos falantes e dos
destinatários, no tempo e local de enunciação, e ainda, em elementos explícitos e/
ou implícitos no discurso.

Baseando-se nesse entendimento, o teórico Levinson (2007) apresenta


uma categorização para a dêixis. Para ele, há três categorias tradicionais, sendo
elas: a dêixis de pessoa que indica os participantes do discurso, podendo ser exer-
cida por pronomes (eu, você), concordâncias de predicado associadas (Cheguei!) e
vocativos que incluem termos de parentesco, títulos ou nomes próprios (Professor,
posso sair?)4; a dêixis de tempo que marca o tempo em que o falante está produ-
zindo a enunciação, sendo marcada pelos tempos verbais (passado, presente), nos
advérbios de tempo (ontem) e em morfemas dêiticos temporais (Est-ou chega-ndo);
e a dêixis de lugar que especifica o espaço do acontecimento discursivo, sendo gra-
maticalizada nos pronomes demonstrativos (aquele) e nos advérbios de lugar (ali),
os quais podem fazer referência a algo próximo ou distante num evento de fala e
tempo.

Levinson (2007) situa ainda duas categorias complementares: a dêixis de


discurso (ou de texto) e a dêixis social - que, por estarem diretamente ancoradas
no contexto da enunciação corrente e possuírem a relatividade da referência ca-
racterística dos dêiticos, são consideradas categorias dêiticas. A dêixis social refe-
re-se à “codificação de distinções sociais relativas aos papéis dos participantes”
(LEVINSON, 2007, p. 76), a qual se gramaticaliza no uso de honoríficos - termos
usados para tratamento, como “senhor/a” e “Vossa Excelência” - e formas de inter-
pelação ou vocativos.

Quanto à dêixis de discurso (ou de texto), ela diz respeito à “codificação da


referência feita a porções do discurso em andamento no qual se localiza a enun-
ciação (que inclui a expressão que faz referência ao texto)” (LEVINSON, 2007, p.
75). Geralmente, configura-se no uso de palavras presentes no início da enun-
ciação, como os marcadores argumentativos e conectivos (p. ex. “nesse senti-
do”, “diante do exposto”, “além disso”) que retomam ou dão continuidade alguma

4 Os exemplos entre parênteses servem para ilustrar o fenômeno, representando apenas uma
parte daquilo que é possível numa língua natural.

306
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

porção do discurso anterior; e pronomes ou termos específicos que se referem a


uma expressão linguística (Com essas palavras, encerrou o discurso).

Nesse sentido, fica evidente que os dêiticos têm como característica princi-
pal o fato de serem totalmente dependentes da situação comunicativa para terem
suas noções básicas de sentido e referência concedidas, o que reforça a relevân-
cia dos aspectos enunciativos para a composição analítica dos dêiticos.

Nessa proposta, então, pode-se situar os dêiticos como recurso linguísti-


co que precisa fazer parte das atividades de análise em sala de aula. Isso porque,
somente sendo analisados juntamente com toda a situação enunciativa, esses
elementos passam a ter significado, agregando características discursivas, atuan-
do como elementos de referência centralmente relevantes para a inferência da
situação externa ao texto, assim como recurso coesivo necessário à leitura, inter-
pretação e análise textual. Nesse sentido, eles contribuem para o sentido global
do evento comunicativo.

Considerando essa perspectiva teórica, é válido ressaltar que o processo


de ensino e aprendizagem do fenômeno da dêixis deve ocorrer observando todas
as suas possibilidades de aplicação em variados eventos discursivos, pois, “afinal
de contas, o que interessa é o fato de que as línguas naturais têm indiciais, e é
tarefa da Análise Linguística modelá-los diretamente para capturar as maneiras
como são usados” (LEVINSON, 2007, p. 70). Portanto, tendo os vestibulares ques-
tões em que a temática dos dêiticos é central, elas podem ser usadas em sala de
aula, a fim de levar os alunos a refletir sobre os seus usos em diferentes situações
comunicativas, objetivo que pode ser intermediado por atividades epilinguísticas
realizadas nas aulas de AL.

Questões de vestibular e Propostas de atividades

As propostas de atividades para a Prática de AL derivam das questões


discursivas 1A da Fuvest/2016 e 1A da Fuvest/2017, ambas são relacionadas
aos dêiticos e ilustram a proposta de AL enfatizada nos PCNs e na literatura.
Comecemos, então, pela questão 1A/2016 apresentada na Figura 1.

307
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Figura 1. Questão 1A Fuvest 2016.


Fonte: Acervo Vestibular Fuvest 2016.

Nesse primeiro caso, a questão exige que o falante relacione o elemento


não verbal – uma pegada de sapato social numa terra – com o slogan. No slogan,
o dêitico ‘você’ tem uma referência genérica, cujo sentido é de que para qualquer
situação, se um indivíduo x a conhece, ele agirá de modo diferente. Essa inter-
pretação, aliada à imagem e às outras informações do texto e do enunciado, deve
levar o candidato a associar que a empresa X conhece o terreno de seus clientes:
a pegada reflete que o conhecimento é pleno (in loco) e não parcial. Assim, enten-
de-se que os executivos, que em geral usam sapatos e deixam marcas como as da
pegada, vão até o local do cliente e não ficam num escritório recebendo informa-
ções à distância.

308
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Não menos importante é observar que, ao unir o imagético com o linguísti-


co, o autor da peça divulga a ideia de que a instituição financeira “X” está presente
no campo de soja, no sentido de entender sobre o assunto, ouvir as necessidades
dos clientes, sendo, por isso, capaz de dar suporte a eles. Para mais, a ideia do
conhecimento da empresa sobre a produção de soja é reforçada ao estar dire-
tamente associada às coordenadas do “CAMPO DE SOJA, MATO GROSSO DO
SUL” e ao conteúdo linguístico localizado abaixo delas e composto pela afirmação
- “Conhecer profundamente os negócios de nossos clientes é só o primeiro passo
que nos permite oferecer sempre respostas mais rápidas, proporcionar decisões
mais assertivas e alcançar melhores resultados”. A divulgação dessa ideia só é
possível porque o autor constrói um cenário propício e, principalmente, faz esco-
lhas lexicais assertivas, como o uso dos dêiticos, os quais permitem estabelecer as
relações referenciais que geram o entendimento do anúncio.

Assim, observamos que o enunciado relaciona-se com a proposta de AL


por considerar os seguintes aspectos: o gênero discursivo, nesse caso, o anúncio
publicitário, ressaltando a importância do elemento não verbal para o sentido do
verbal; leva em conta o contexto de produção e circulação, pelos mesmos moti-
vos apontados em relação ao anúncio; prefere uma reflexão epilinguística, não
solicitando uma metalinguagem abstrata e desconectada do texto; requer que o
candidato examine questões micro linguísticas (a importância do dêitico ‘você’,
neste caso) como parte do significado global; além de considerar a importância da
função mostrativa das categorias dêiticas, relacionando diretamente a referência
ao sentido que o elemento produz no interior do slogan e no total do texto.

Proposta de Atividade 1

Nessa proposta de releitura da primeira questão analisada, o professor


pode trabalhar com os conceitos centrais da Dêixis - Referência e Sentido. Para
isso, a atividade precisa levar os alunos a identificarem possibilidades objetivas e
limitadas presentes na situação discursiva que podem ser referentes para o senti-
do fixo atrelado ao fenômeno dêitico em questão. Nesse sentido, o docente pode
dispor na atividade de outros elementos dêiticos, além do “VOCÊ”, “QUANDO” e
“O PRIMEIRO PASSO”, e, ainda, variar os eventos do discurso para permitir que os
alunos ampliem suas percepções ao realizar comparações e substituições.

Assim, o professor pode oferecer aos alunos, em grupos, variadas charges


e anúncios publicitários em que o dêitico “você” apareça. Além disso, juntamen-
te com os textos, podem ser distribuídas fichas com possíveis referentes, sendo

309
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

proposto aos alunos que comparem as possibilidades e preencham o sentido do


dêitico com o referente adequado, após refletirem sobre todo o contexto discur-
sivo e os usos do fenômeno linguístico. Abaixo, apresentamos alguns exemplos de
contextos discursivos que podem ser utilizados no desenvolvimento da atividade:

Figura 2. Exemplo contexto discursivo 1. Figura 3. Exemplo contexto discursivo 2.


Fonte: Geografia CSTA, Blogspot. Fonte: Decifrando Textos e Contextos, Blogspot.

Uma outra atividade pode ser proposta considerando a análise do dêitico


discursivo “o primeiro passo”. Nós o consideramos assim porque retoma uma par-
te do texto na propaganda, exatamente como qualquer dêitico. Mas, como sua
referência é a um trecho do discurso (“Conhecer profundamente os negócios de
nossos clientes”), ele pode ser chamado “dêitico discursivo” (LOPES, 2019). Nesse
caso, o professor pode trabalhar com os alunos sobre o significado da expressão
em nosso contexto social e nas situações comunicativas nas quais esse elemento
aparece, mostrando alguns exemplos como segue:

310
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Figura 4. Exemplo contexto discursivo 3. Figura 5. Exemplo contexto discursivo 4.


Fonte: Domi Muller. Fonte: Whatstube.

Assim, a partir de exemplos como esses, o docente analisa, juntamente com


os alunos, possíveis referentes implícitos ou explícitos que preenchem o sentido
do dêitico em questão, além de levar os alunos a entenderem que essa expressão
pode ser preenchida por variadas questões ao estar relacionada com outras te-
máticas. Dessa forma, é possível ampliar a atividade propondo a elaboração de
“Campanhas Publicitárias” baseadas na ideia de se “dar o primeiro passo” frente
alguma problemática. Para isso, os alunos podem escolher contextos e temas so-
ciais e utilizar a expressão “o primeiro passo” para elaborar o conteúdo linguístico
e extralinguístico do gênero. Nesse sentido, podem ser desenvolvidas campanhas
relativas às temáticas da Educação e Respeito, por exemplo, como segue:

Figura 6. Campanha Educação. Figura 7. Campanha Respeito.


Fonte: Fundação FEAC, Org. Adaptado. Fonte: Ipizone, Blogspot. Adaptado.

311
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Portanto, este trabalho com o fenômeno da dêixis a partir de distintos


contextos enunciativos permite que o aluno reflita sobre os variados usos desse
recurso, percebendo suas possibilidades em eventos comunicativos e diferenças
com relação a outros elementos linguísticos, por exemplo. Após estas atividades
reflexivas, o aluno precisa ser levado a sistematizar suas observações sobre o fe-
nômeno gramatical, com vistas a contrapor com o conhecimento já sedimentado
e/ ou produzir novos.

A sistematização, nesse caso, pode ser mais efetiva se, em duplas ou trios,
os estudantes compartilharem suas percepções e elaborarem uma tabela com as
regularidades características da dêixis, a partir dos elementos dêiticos e seus re-
ferentes mobilizados nos contextos propostos. Veja abaixo um exemplo de uma
possível tabela sistemática:

FENÔMENO DA DÊIXIS

Elementos dêiticos Possíveis referentes Regularidade percebida

ex: dêitico temporal - referente com


Elemento X a/b/c
caráter temporal
ex: dêitico discursivo - referente
Elemento Y e/f/g
localizado no discurso
ex: dêitico catafórico - referente
Elemento Z b/ g / h
localizável adiante no texto
Tabela 1. Tabela sistemática do fenômeno da dêixis.
Fonte: Lopes, 2019, p. 74.

Por meio dessa atividade final, os próprios educandos chegarão às regras


relacionadas ao fenômeno, percebendo-as dentro dos contextos enunciativos
que foram trabalhados. Assim, promove-se um real entendimento da regulação
da língua, a partir do qual os alunos passam a ser capazes de analisar os elementos
dêiticos em qualquer evento comunicativo, além de poderem usá-los com cons-
ciência em suas produções textuais. Passemos agora à questão 1A/2017, apre-
sentada na Figura 8, a seguir.

312
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Figura 8. Questão 1A Fuvest 2017.


Fonte: Acervo Vestibular Fuvest 2017.

Antes de começar um trabalho com o texto (antes mesmo de mostrá-lo


à turma), o professor pode apresentar o vídeo com a narração ali presente, que
está disponível na rede5. Em seguida, os alunos iniciam a análise pela reflexão do
contexto enunciativo, a partir da identificação e exploração de dois gêneros: a
campanha publicitária intitulada “A natureza está falando” e o filme “A Amazônia”.
Nessa situação enunciativa, o filme faz parte da campanha, funcionando ambos os
gêneros como meios de propagação da ideia de que a Floresta Amazônica precisa
ser preservada.

5 O vídeo do texto apresentado está disponível em: https: //www.youtube.com/watch?v=lOM-


6vp7nmY8&ab_channel=Conserva%C3%A7%C3%A3oInternacional. Acesso em: 19. Out.
2020. No mesmo canal, há outros de teor parecido, marcado como “#anaturezaestafalando, com
outros narradores, que servem de estímulo e ampliação ao debate aqui proposto (https: //www.
youtube.com/results?search_query=%23ANatureza Esta Falando).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Assim, com vistas a promover uma reflexão sobre a ação do homem e suas
consequências na natureza, o filme dá vida à Amazônia - a maior floresta tropical
do mundo - a qual conversa com o espectador em primeira pessoa, caracterizando
o uso da figura de linguagem personificação ou prosopopeia, e ainda, permitindo o
estabelecimento da relação entre a imagem que faz parte da campanha e o texto
interpretado por Camila Pitanga.

É importante destacar aqui que, além da relação entre imagem e texto


verbal, e da referência aos gêneros em análise na questão, é oferecida ao
candidato a informação de que há um áudio em que a atriz “empresta” sua voz à
Amazônia, ao enunciar o texto proposto. Com isso, todo o contexto (linguístico e
extralinguístico) é delineado de modo que o enunciado considera a relação entre
diferentes modalidades para a construção de sentido do texto.

Sobre os elementos dêiticos, identificamos, no conteúdo interpretado


por Camila Pitanga, exemplos como “eu” - pronome pessoal de primeira pessoa;
“vocês” - pronome pessoal quando empregado na terceira pessoa; “seu”, “meus” -
pronomes possessivos; “quando” - advérbio de tempo; “aqui” - advérbio de lugar,
entre outros. Esse uso recorrente dos dêiticos reforça o caráter pessoal do texto
e contribui para a força significativa da prosopopeia no efeito de sentido que a
campanha pretende gerar.

Com relação à proposta de AL, é válido destacar sobre o enunciado da


questão os seguintes aspectos: ele leva em consideração os gêneros discursivos,
nesse caso, a campanha e o filme que faz parte dela, ressaltando a importância
de elementos não verbais para o sentido do verbal; considera o contexto de pro-
dução e circulação, já que leva o candidato a refletir sobre a “voz” da Amazônia
personificada em um ser humano (Camila Pitanga); apesar de solicitar a figura
de linguagem presente no texto, a questão exige uma reflexão epilinguística que
mostre os efeitos da escolha na construção do texto como um todo; e requer que
o candidato examine questões micro linguísticas (a importância dos dêiticos na
caracterização da personificação, por exemplo) como parte do significado global.

Proposta de Atividade 2

Na questão da Fuvest 2017, conseguimos observar e descrever a atuação


do fenômeno da dêixis em um evento comunicativo, no qual os elementos dêiticos
contribuíram de forma significativa para a construção da personificação, enquan-
to figura de linguagem. A questão, então, serviu de exemplo para demonstrar a

314
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

amplitude que a dêixis pode ter na língua ao ser usada em contextos mais comple-
xos, e não tão situados como visto na proposta da Fuvest do ano de 2016.

Desse modo, apresentamos uma atividade paralela à questão da Fuvest


2017 a ser desenvolvida com os alunos, utilizando como base uma semelhante si-
tuação enunciativa: o vídeo de “Despedida da Kombi”6, produzido pela Volkswagen
em 2014, o qual encerrou a campanha de “deslançamento” do veículo no Brasil.
De acordo com o canal do Youtube Play Comunicação (2015, n.p.),

o filme, narrado pela atriz Maria Alice Vergueiro (Tapa na


Pantera), é uma espécie de testamento, no qual a Kombi deixa
presentes para diversos motoristas. Entre os herdeiros sele-
cionados estão histórias envolvendo clientes, como a brasilei-
ra Mirian Maia, que nasceu dentro de uma Kombi, e o designer
americano Bob Hieronimous, dono do exemplar que virou sím-
bolo do festival de Woodstock.

Assim, nesse contexto, o veículo Kombi ganha vida ao contar a sua histó-
ria, relembrar momentos e presentear os seus motoristas. Ou seja, assim como
ocorreu com a Floresta Amazônica na questão do vestibular, neste vídeo temos
a personificação da Kombi que fala em 1ª pessoa para se despedir de sua passa-
gem no mundo social. Desse modo, nesta situação enunciativa, elementos dêiti-
cos também constituem a construção desse discurso personificado. Por isso, este
vídeo pode ser visto e analisado pelos alunos a partir da mesma perspectiva que
analisamos a questão referente à Amazônia.

Nesse sentido, a fim de guiar uma possível proposta de atividade de análise,


na sequência, destacamos três aspectos que podem ser explorados e percebidos
por meio da atuação do fenômeno da dêixis.

A narração do vídeo

Os alunos podem refletir sobre o porquê de o filme ser narrado por uma
mulher - a atriz Maria Alice Vergueiro - e não por um homem, por exemplo. Seria
viável uma narração interpretada por um ser masculino? Se sim ou não, por quê?
Quais seriam os elementos do discurso que permitiriam ou não essa possibilida-
de? Caso ela fosse positiva, quais os novos sentidos que se estabeleceriam? Esse

6 Volkswagen emociona com vídeo de Despedida da Kombi. 2014. (04m07s). Disponível em: ht-
tps: //www.youtube.com/watch?v=eqX-bIFoPCw. Acesso em: 16 abr. 2019.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

trabalho reflexivo permite aos alunos olharem para os elementos discursivos,


principalmente os dêiticos, e estabelecer as referências adequadas à significação
do discurso. Nesse caso, por exemplo, os dêiticos de pessoa, como o “eu” e outros
utilizados no discurso, podem ser examinados e testados nessa hipótese de pode-
rem ser preenchidos pela voz masculina, o que seria um tanto desafiador para o
aluno pelo fato de o pronome pessoal “eu” permitir referência a ambos os sexos.

Assim, o professor pode expor aos alunos a imagem principal do filme para
abrir uma discussão conforme orientamos acima. Dessa forma, os elementos ex-
tralinguísticos, também, podem contribuir para o trabalho analítico.

Figura 9. Os últimos desejos da Kombi.


Fonte: Play Comunicação.

Então, a partir dessa imagem, o docente pode propor a troca do conteú-


do linguístico da imagem para a seguinte forma: “Os últimos desejos do veículo
Kombi” ou “Os últimos desejos do meio de transporte Kombi” (grifo nosso). A
pergunta que guiaria o debate seria: Em que medida essa troca interferiu na si-
tuação enunciativa? Teríamos novos sentidos? A substituição proposta permite
pensar sobre esses questionamentos.

Os dêiticos de primeira pessoa

Por ter como base a figura de linguagem da personificação, esse tipo de


evento comunicativo tende a ter o seu discurso construído com uma predominân-
cia dos dêiticos de primeira pessoa, como o “eu” e o “meu”. Por isso, refletir sobre

316
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

essa predominância não é vã, já que ela não é aleatória. Assim, propomos que na
atividade esses elementos sejam substituídos por outros, a fim de que se perceba
as mudanças de sentido advindas da presença ou da ausência dos dêiticos de pri-
meira pessoa.

Para isso, o professor pode trabalhar com a transcrição do vídeo, inclusive


disponível no Youtube, em duas versões: a original, a qual contém o texto completo
e, uma outra adaptada em que os dêiticos de pessoa estão ausentes. Então, em du-
plas ou pequenos grupos, os alunos, primeiramente, trabalham com a versão ori-
ginal para ler, identificar e destacar os dêiticos de pessoa; na sequência, teriam em
mãos a versão adaptada, com vistas a tentar encaixar elementos que substituem
os dêiticos pessoais. Será que há outros elementos na língua que fariam a mesma
função? Se sim, ou não, por quê? Essa atividade promove essas e outras reflexões.

Portanto, por meio da técnica da substituição, os alunos exploram os co-


nhecimentos que já possuem sobre o fenômeno da dêixis, e ainda formulam novas
hipóteses ao inferir possibilidades de usos linguísticos.

Processos anafóricos e catafóricos

Ainda utilizando a transcrição original do vídeo, o professor pode trabalhar


o procedimento anafórico e catafórico promovido pelo fenômeno da dêixis. Isso,
porque o texto “discursado pela Kombi” é recheado desses mecanismos da língua.
Assim, apenas para exemplificar uma possível atividade, transcrevemos a parte
inicial da fala da Kombi. No entanto, ressaltamos que há no texto mais trechos que
podem ser analisados.

A Kombi inicia a sua fala da seguinte maneira:

“Como eu estou me sentindo? Surpreendentemente bem!


Eu estou indo, mas se for pensar, foi isso que eu fiz a minha vida
inteira.
Eu sempre estive indo para algum lugar.” (2014, n.p., grifo nosso)

Desta forma, é possível perceber o pronome demonstrativo “isso” mobi-


lizando tanto uma anáfora como uma catáfora que se refere ao que o veículo fez
a vida inteira: “ir”. Então, em primeiro lugar, o pronome “isso” está retomando a
ideia anterior “eu estou indo”, caracterizando o procedimento anafórico; e, em um

317
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

segundo momento, ele também refere-se à ideia “eu sempre estive indo” que apa-
rece na sequência do enunciado, o que qualifica a catáfora.

Nesse sentido, é importante que os alunos manuseiem o discurso da Kombi,


a fim de identificar esses processos coesivos protagonizados pelos dêiticos. Após
a identificação, faz-se necessário que eles analisem os procedimentos e sejam ca-
pazes de defini-los dentro de seus contextos. Assim, para tornar mais dinâmica
essa análise, o professor pode propor um trabalho em grupos na sala de aula, no
qual os discentes teriam um tempo pré-determinado para identificarem e defini-
rem o maior número de procedimentos. Findado o tempo, cada grupo apresenta
para os outros as suas observações e justifica as suas respostas.

Juntamente com as apresentações, o professor pode promover uma cor-


reção dialogada para culminar no processo de sistematização dos conhecimentos
compartilhados. Essa sistematização pode se dar por meio da construção de “car-
tazes expositivos” que indiquem os procedimentos de catáfora e anáfora identi-
ficados pelos grupos no discurso da Kombi. Cada grupo, por exemplo, pode expor
dois trechos da fala da Kombi, indicando os procedimentos por meio de setas e/ou
destacando-os de outras formas, e ainda usar a criatividade para representar no
cartaz o sentido expresso na fala da Kombi.

Portanto, as atividades paralelas aqui propostas indicam que é possível


realizar um trabalho de Análise Linguística contextualizado e reflexivo. Nada do
que foi feito aqui exigiu recursos que fogem da capacidade do professor. Ao con-
trário, uma pesquisa em plataformas onlines nos deram subsídios para montar
essas propostas, as quais foram baseadas, principalmente, em adaptações dos
eventos comunicativos para os objetivos desejados.

Considerações finais

O presente trabalho teve como objetivo principal apresentar uma propos-


ta de atividades paralelas às questões de vestibulares relacionadas aos dêiticos,
a fim de contribuir para a Prática de AL. Dado o conteúdo apresentado, perce-
be-se que o vestibular da Fuvest está condizente com a perspectiva da AL ao
apresentar questões relativas à temática dos dêiticos compostas por textos de
situações reais, nos quais os indiciais estão inseridos em um contexto discursivo
e não de forma isolada, exigindo que sejam analisados a partir de seu caráter lin-
guístico dentro de todo o evento de enunciação. Assim, estamos certos de que os

318
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

vestibulares podem funcionar como colaboradores para o processo de ensino e


aprendizagem.

Nesse sentido, as questões nos permitiram elaborar atividades que exigem


do aluno o estabelecimento de relações e a compreensão dos conceitos de refe-
rência e sentido diretamente atrelados à dêixis. Vale ressaltar que, ao levar para a
sala de aula questões e atividades como estas, o professor precisa mediar a inter-
pretação, levando os estudantes a questionar e a refletir sobre as possibilidades
de uso do fenômeno em foco. Para isso, o docente precisa incentivar uma leitura
e análise minuciosa tanto do conteúdo linguístico quanto do extralinguístico, a
fim de que o estudante identifique esses elementos referenciais, faça inferências,
comparações e substituições para entender os efeitos de sentido do contexto
discursivo.

Ademais, ainda que tenhamos pautado este artigo nos PCNs, alguns as-
pectos sobre o ensino de língua discutidos neste trabalho também compõem o
conteúdo da BNCC, tais como a tomada do “texto como unidade de trabalho” e
a consideração das múltiplas linguagens na interpretação e produção textuais
(BRASIL, 2018, p. 63,67). Ressalta-se, ainda, que a BNCC nomeia a AL como
“Análise Linguística/Semiótica”, confirmando, então, a aplicação deste eixo de en-
sino a partir da perspectiva que leva em conta aspectos verbais e não verbais. A
partir da página 506, o documento aborda sobre habilidades a serem considera-
das na Prática de Análise Linguística/Semiótica, as quais dialogam com os elemen-
tos dêiticos apesar de não se referirem diretamente a estes. Destaca-se a análise
de recursos gramaticais em diferentes gêneros e dos efeitos do verbal e não ver-
bal para a construção de sentidos (vide habilidades ‘EM13LP06/07/14’).

Assim, entendemos que a BNCC, como atual documento em vigor, também


aponta para um parâmetro adequado daquilo que os vestibulares têm feito atual-
mente e, por isso, acreditamos que processos seletivos mais recentes se pautem
neste documento oficial. Por isso, novas pesquisas com relação ao impacto da
BNCC em outros processos seletivos podem ser realizadas daqui em diante a fim
de atualizar e reforçar a relevante contribuição dos vestibulares para a Prática de
AL.

Sendo assim, acreditamos que as questões de vestibulares e atividades


propostas precisam fazer parte do material a ser trabalhado nas aulas de língua
portuguesa, a partir da perspectiva da AL. Defendemos que elas podem contri-
buir para o ensino e aprendizagem dos elementos gramaticais por permitirem

319
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

a compreensão da língua a partir de um viés reflexivo em relação aos aspectos


linguísticos.

Esperamos, portanto, que os professores de português façam bom uso dos


materiais aqui disponibilizados e sejam motivados a produzir novas possibilida-
des. Isto posto, reforçamos a crença esperançosa em uma mudança a qual nos ins-
pira a confiar que as futuras gerações de discentes poderão lidar com uma prática
de ensino significante.

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321
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

GRAMÁTICAS BRASILEIRAS E SINTAXE


NOS SÉCULOS XX E XXI: UM OLHAR
ENUNCIATIVO

Michelen Aparecida Zortéa1


Luciana Fracassi Stefaniu2

RESUMO: O presente trabalho é fruto de pesquisa feita em nível de Iniciação


Científica Voluntária junto ao Programa Institucional de Iniciação Científica
– PROIC, entre agosto de 2019 e julho de 2020, na Universidade Estadual do
Centro-Oeste (UNICENTRO), e buscou apresentar um breve percurso histórico
da formação das gramáticas, bem como das diferentes concepções, chegando até
o viés enunciativo/discursivo. Entre os autores que trazem reflexões sobre o fun-
cionamento das gramáticas nesse viés, destacamos os trabalhos de Eni Orlandi,
Sylvain Auroux e Luiz Francisco Dias. Quanto à metodologia, a pesquisa teve
cunho bibliográfico e qualitativo e foi desenvolvida com o intuito de compreender
como os enunciados produzidos no cotidiano podem ser analisados, indo além do
ponto de vista trazido pela gramática normativa, sem, contudo, desconsiderá-lo.
A fundamentação teórica foi baseada, principalmente, nos trabalhos e estudos do
professor Luiz Francisco Dias, o qual apresenta possibilidades para o ensino da
sintaxe como possibilidade para sanar possíveis lacunas encontradas nas gramá-
ticas normativas. Nessa perspectiva, apresentamos uma proposta de análise de

1 Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). michelenaparecidazortea@gmail.com


2 Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), campus Santa Cruz. lufracasse@gmail.
com

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

uma propaganda automobilística, no viés enunciativo, a fim de mobilizarmos con-


ceitos trabalhados por Dias no estudo dos fatos sintáticos da nossa língua.

PALAVRAS-CHAVE: Gramática; Sintaxe; Semântica da Enunciação.

ABSTRACT: This work is the result of research carried out at the level of Voluntary
Scientific Initiation with the Institutional Program for Scientific Initiation - PROIC,
between August 2019 and July 2020, at the State University of the Midwest
(UNICENTRO), and sought to present a brief historic path of the formation of gram-
mars, as well as of the different conceptions, reaching the enunciative / discursive per-
spective. Among the authors who bring reflections on the functioning of grammars in
this way, we highlight the works of Eni Orlandi, Sylvain Auroux and Luiz Francisco Dias.
As for the methodology, the research had a bibliographic and qualitative nature and
was developed in order to understand how the statements produced in everyday life can
be analyzed, going beyond the point of view brought by normative grammar, without,
however, disregarding it. The theoretical basis is the Enunciation Semantics and was
based, mainly, on the works and studies of professor Luiz Francisco Dias, who presents
possibilities for teaching syntax as a possibility to remedy possible gaps found in norma-
tive grammars. In this perspective, we present a proposal for the analysis of automobile
advertising, from the enunciative angle, in order to mobilize concepts worked by Dias in
the study of the syntactic facts of our language.

KEYWORDS: Grammar; Syntax; Enunciation Semantics.

Introdução

O ensino de gramática nas escolas, universidades, muitas vezes, é questio-


nado, a partir de problemas encontrados, principalmente, quanto ao ensino da
sintaxe, visto que é uma parte da gramática que tem aguçado diferentes pesqui-
sadores com o intuito de identificarem o nível de compreensão dessa temática
no universo escolar. Estudos recentes, realizados por professores pesquisadores
como Luiz Francisco Dias, da Universidade Federal de Minas Gerais, têm nos pro-
porcionado um novo olhar para o ensino da sintaxe, por meio da articulação entre
o plano da organicidade sintática e o plano do enunciável.

É a partir desses estudos que nos interessamos em pesquisar sobre o pro-


cesso histórico de formação das gramáticas e da gramatização, para compreen-
dermos o modo como o ensino das formas linguísticas vem sendo abordado no
cenário escolar brasileiro. Assim sendo, a partir do conhecimento sobre o modo

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de constituição das gramáticas, chegamos à abordagem enunciativa de gramática


e propomos um gesto de análise inicial sobre o funcionamento da língua em um
texto publicitário.

Para tanto, fizemos um percurso pelas obras dos autores que contemplam
as condições de produção das gramáticas, passando por diferentes concepções
teóricas, até chegarmos aos fundamentos trazidos pela Semântica da Enunciação,
fornecidos, principalmente, pelos trabalhos de Dias, dos mais antigos (1998), até
os mais recentes (2020), os quais nos têm permitido conhecer novas possibilida-
des para o ensino da sintaxe em diferentes níveis de escolaridade.

Vale destacar que, diante da complexidade da temática, reconhecemos


as nossas limitações de iniciantes no universo da pesquisa acadêmica, uma vez
que começamos esse trabalho ainda no 2º. Ano do Curso de Letras-Português.
Contudo, esperamos continuar aprofundando nosso entendimento sobre a teoria
e a análise enunciativas tanto na segunda etapa de Iniciação Científica que esta-
mos trilhando, quanto na futura escrita de um Trabalho de Conclusão de Curso
(TCC).

Como se formam as gramáticas

Talvez muitos se perguntem: mas por que precisa existir gramática? O por-
quê de tantas regras? Mas imaginem, se essas regras gramaticais não existissem,
como seriam os textos, já que, sem regras, cada um poderia inventar uma forma de
escrever, não que isso seja impossível de acontecer, inclusive, muitos autores de
textos literários fazem o uso de muitas formas de escrita criadas por eles e muitos
seguem as normas gramaticais vigentes. Enfim, parece haver um consenso de que
o principal papel das gramáticas é o de estabelecer regras de escrita para o uso
do português e facilitar a compreensão das pessoas com uma única regra escrita.

O conceito de gramática, de acordo com o dicionário Houaiss da língua por-


tuguesa (2009, p. 984), é o conjunto de prescrições e regras que determinam o uso
considerado correto da língua escrita e da sintaxe de uma língua. Em outro con-
ceito que está presente na gramática HOUAISS, de Azeredo (2008), a gramática se
apresenta como um sistema de regras para que os falantes de uma língua possam
construir e compreender frases. Azeredo (2008) ainda aponta que todo falante de
uma língua precisa adotar sua gramática, pois, mesmo que inconscientemente, os

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

falantes acabam por usar o sistema de regras constituído pela/na gramática, seja
no modo de pronunciar, seja no modo de ordenar as palavras, etc.

O processo de formação das gramáticas aconteceu há muito tempo pela


necessidade de se estabelecer regras no processo da escrita, principalmente, nos
textos literários, já que, na época, a escrita era muito usada nestes textos, para
tanto, se faziam necessárias algumas regras na escrita para facilitar o processo de
leitura e interpretação. Mas imaginem, se essas regras gramaticais não existissem
como seriam os textos, já que sem regras cada um poderia inventar uma forma de
escrever. Segundo Neto (2016), a gramática surgiu na antiguidade clássica, atra-
vés de uma teoria da linguagem desenvolvida pelos latinos e criada pelos gregos.
Uma das primeiras gramáticas a que se tem registro é a de Dionísio de Trácio.

O texto gramatical mais antigo que conhecemos foi escrito por


Dionísio de Trácio, por volta do ano 100 a.C. O texto de Dionísio,
denominado Tékhne Grammatike, consiste de algumas informa-
ções sobre a fonologia e a morfologia do grego antigo (o grego
homérico) e destinava-se, fundamentalmente, a estabelecer
normas, para a edição e fixação de textos literários. Seu objetivo
final era a crítica textual. Partia do texto literário e, por meio do
regramento da língua, procurava estabelecer as formas corretas
de ler esses textos. (NETO, 2016, p. 267-268).

Nas palavras de Orlandi (2002), citadas abaixo, a gramática não fica delimi-
tada apenas à correção, é muito mais do que apenas regras de escrita formal da
linguagem, apesar de muitos pensarem em gramática somente como formalidade.
A gramática tem a função de abrir fronteiras no raciocínio da compreensão da
linguagem e não somente de redigir regras.

Observando-se a história longa da relação gramática/retórica/


dialética, essa noção de texto constitui-se no ponto nodal de sua
distinção. Apresentando ao mesmo tempo a questão da diferen-
ça entre saber e conhecimento, normatividade e uso, unidade
(funcionamento) e função etc. Em suma, o texto é uma unidade
de difícil apreensão, no entanto imprescindível para a compreen-
são dos limites da análise em linguagem. Relação regrada entre
descrição e interpretação. Na relação entre gramática/retórica e
dialética, num certo momento dessa história, a retórica aparece
como a teoria que engloba toda a linguagem, ficando a gramática
reduzida ao ensino do correto e a dialética, à ciência do raciocí-
nio. Finalmente o saber gramatical acaba por englobar a arte de

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

persuadir e a de raciocinar. Isto vem junto com o fato de que a


questão da sistematicidade da língua ganha a frente da cena. Por
outro lado, a ideia de correção- que era uma das qualidades de
estilo- sobrepõe-se às práticas retóricas e dialéticas. (ORLANDI,
2002, p. 168).

A gramática do século XXI nem sempre foi da maneira como está hoje,
foram muitos estudos até se chegar às gramáticas brasileiras atuais, sendo que
isso se deu devido às atualizações de outras gramáticas já existentes e de outras
línguas. Há muito tempo que estudiosos escrevem sobre a formação da língua,
da gramática brasileira e alguns dos fatos gramaticais. Segundo Tersariol (1970),
o vocabulário do português do Brasil foi se formando lentamente, mediante as
transformações do vocabulário germânico e árabe, sendo que, a partir do século
XXI, começaram a aparecer os primeiros textos em português.

A gramática surgiu no ocidente por volta do século V a.C. na Grécia, havia


grande preocupação por parte dos gregos em ter um estudo aprofundado e, tam-
bém, perfeccionista da língua. Ferdinand de Saussure argumenta que o estudo da
gramática tem o seu início com os gregos para distinção das formas corretas das
incorretas.

Começou-se a fazer o que se chamava de “gramática”. Esse es-


tudo, inaugurado pelos gregos, e continuado principalmente
pelos franceses, é baseado na lógica e está desprovido de qual-
quer visão científica e desinteressada da própria língua; visa
unicamente formular regras para distinguir as formas corretas
das incorretas; é uma disciplina normativa, muito afastada da
pura observação e cujo ponto de vista é forçosamente estreito.
(SAUSSURE, 2012, p. 31).

Os estudos científicos acerca da gramática só ganharam destaque no início


do século XIX, com os trabalhos de Bopp sobre a gramática comparada moderna.
Contudo, a gramática integra, em seus estudos, desde a filologia até os estudos
da língua materna como um meio de descrição das línguas. O período de estudos
da linguagem passou por algumas revoluções técnico- linguísticas, sendo o surgi-
mento das ciências da linguagem considerada a primeira revolução técnico-lin-
guística. A segunda revolução compreende a tradição linguística greco-latina. Em
meio a esse período de transformações, que vai do século V ao XIX, é que aparece
o dicionário, tal como conhecemos até os dias atuais.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

É possível se pensar que também há resquícios das línguas faladas na an-


tiguidade na atual gramática tradicional da Língua Portuguesa, pois, muitas re-
gras existentes naquela época quanto à maneira de escrever e mesmo a de falar,
perduram até hoje, como, por exemplo, a língua latina, hoje em desuso, mas ainda
sendo perceptível seus resquícios na gramática contemporânea. Há autores que
ressaltam essas semelhanças com outras línguas. Um desses autores é Said Ali
(1971), segundo ele, foi a partir do latim que se originaram outros idiomas, uma
vez que esse se acomodava aos hábitos antigos de pronúncia de diferentes povos
que passavam a adotá-lo.

Ainda pensando nos resquícios da língua latina e na trajetória da gramá-


tica, é interessante comentarmos um aspecto importante na elaboração das es-
truturas linguísticas. Nos séculos em que o latim predominava, a colocação das
palavras dentro da oração era de maneira inversa, onde o verbo ficava no final da
frase e havia uma ordem para as classes gramaticais. Isso fica evidente no livro de
Tersariol (1970, p. 171), segundo o qual,

Dentre as várias modalidades no emprego das palavras na frase,


a ordem inversa é a mais preferida. A ordem inversa é a que mais
se aproxima dos moldes latinos. Tal ordem inversa caracteriza-se
não quanto ao verbo no final, mas pelo adjetivo que precede ao
substantivo e pela colocação do pronome oblíquo, questão esta
bastante insólita.

O latim é sempre referenciado nos estudos linguísticos porque foi a partir


dele que muitas línguas criaram as bases para a construção da gramática, por isso
a importância de conhecermos como aconteceram as transformações de muitas
palavras. Podemos tomar como exemplo da contribuição do latim nas conjuga-
ções verbais, mais especificamente a do verbo “pôr”. Sabemos que os verbos apre-
sentam três conjugações com terminações em “ar, er, ir”. Mas então, como explicar
o fato do verbo “pôr”? Esse verbo sofreu algumas adequações do latim (ponere,
poere, poer), mas vejamos que as terminações não variam muito, pois terminam
em ‘ere’ e ‘er’, portanto, o verbo “pôr” se encaixa na 2º conjugação (er) e, para sua
classificação, recorreu-se ao latim.

Auroux (1992), em seu livro “A Revolução Tecnológica da Gramatização”,


esclarece que a gramática, em seu princípio, surge para compreensão de textos
escritos e não para a língua falada, principalmente, para compreender os tex-
tos literários, que era o mais comum na época. Hoje, a gramática ainda ajuda na

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

compreensão textual, mas também esclarece muitas coisas sobre os atos de fala
da língua e não como uma maneira de repreensão e sim de suporte. Contudo,
a ideia de se pensar em gramática nos dias atuais ainda é muito difundida, pois
muitos autores ainda delimitam fronteiras quanto ao ensino gramatical. Dias e
Bezerra (2006, p. 13) apontam para as características do surgimento gramatical:

[a]s primeiras reflexões sobre a linguagem humana começaram


ainda nos primórdios do uso da escrita. Um especialista em histó-
ria da gramática, o francês Sylvain Auroux, tem defendido a ideia
de que as reflexões sobre a linguagem surgiram logo depois que
o homem produziu uma visão simultânea e especializada da fala.
Isso significa que a escrita proporcionou ao homem uma nova
dimensão do conhecimento: ela permitiu uma observação em es-
cala mais larga da relação entre as unidades linguísticas.

A gramatização acontece, principalmente, pelo conhecimento e estudo de


línguas estrangeiras, estabelecendo parâmetros e técnicas de aprendizagem não
só para a escrita como também para a leitura. Essas técnicas podem ser adquiri-
das com o conhecimento sobre a gramatização e a identificação dos processos
que ela envolve, como, por exemplo, a identificação do sujeito e do predicado em
uma frase e assim por diante. A necessidade de compreensão da escrita também é
um dos fatores que corroborou para que ocorresse a gramatização massiva.

Orlandi (2002) retrata como eram considerados os autores de gramáticas


nos séculos XIX e na virada do século XX, explicitando como é ser autor de gramá-
tica nesses períodos e como foi se formando a identidade cultural da sociedade
brasileira nessa época:

A história da língua, da produção de objetos que representam


para a sociedade o conhecimento sobre ela, assim como dos que
a praticam (os cidadãos), estão inextricavelmente ligados. O pro-
cesso de gramatização brasileira do português constitui assim
um saber sobre a língua e suas singularidades e processa a histo-
ricização da língua no território nacional, brasileiro. Desse modo,
a identidade linguística, a identidade nacional, a identidade do
cidadão na sociedade brasileira traz entre os componentes de
sua formação a constituição (autoria) de gramáticas brasileiras
no século XIX. E a posição-sujeito autor de gramática é parte es-
sencial dessa história. (ORLANDI, 2002, p. 158).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Ainda segundo Orlandi (2002), a gramática tem um papel importante para


o conhecimento sobre a língua e, também, na construção de uma identidade na-
cional com a sua própria língua. Com os trabalhos dos gramáticos, toda a socieda-
de tem acesso ao conhecimento sobre sua própria língua. A gramática, no período
compreendido como JK (1956-1961), apresenta diversos perfis gramaticais, a
partir de autores como Mattoso Câmara Júnior, Rocha Lima, Adriano da Gama
Kury, Evanildo Bechara. Cada obra apresenta suas próprias características, algu-
mas semelhantes e outras distintas; o estudo de Dias (2010) sobre essas obras
enfatiza os aspectos do feminino gramatical.

A obra de Mattoso Câmara Júnior (1956) apresenta noções de gramáti-


ca, para tornar possível a compreensão da língua portuguesa. Já a gramática de
Rocha Lima apresenta simplificações que são explicadas pelos acontecimentos da
própria língua. Adriano da Gama Kury, no prefácio da primeira edição da Pequena
gramática para a explicação da nova nomenclatura gramatical, classifica apenas
como um meio para compreender o todo. Bechara, na primeira edição da Moderna
gramática brasileira, escreve que “...foi nosso intuito levar ao magistério brasilei-
ro, num compêndio escolar escrito em estilo simples, os resultados dos progres-
sos que os modernos estudos de linguagem alcançaram no estrangeiro em nosso
país”. (CÂMARA JR, 1956, apud Dias, 2010, p.35).

Diante das considerações feitas sobre a importância da gramática no co-


nhecimento de uma língua, compreendemos a importância de conhecermos as
diferentes concepções, uma vez que não podemos pensar em uma língua sem re-
gras, mas também não podemos analisar uma língua somente por meio das regras.

Um olhar sobre as gramáticas normativas nos séculos XX e XXI

Primeiramente, antes de analisarmos algumas concepções de gramáticas


nesses períodos, vamos apontar como era ser um gramático no século XX para
buscarmos entender como acontece o desenvolvimento e a amplitude dos estu-
dos nessa área. Ainda no final do século XIX, os gramáticos procuravam apresen-
tar uma identidade linguística para a sociedade, fazendo parte da formação e da
construção histórica brasileira. No século XX, os autores de gramática já estavam
inseridos nos estudos científicos; nesse período é que emergiram um grande nú-
mero de gramáticas, as quais apresentavam algumas distinções entre elas.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

É então produzida grande quantidade de gramáticas e as


diferenças entre elas não se referem mais aos gramáticos e as
suas filiações teóricas: são diferenças descritivas e analíticas;
diferenças de análise da frase e de seus complementos, distinções
que incidem sobre adjuntos e sua descrição etc. Esta profusão
de gramáticas desencadeará a proposta da Nomenclatura
Gramatical Brasileira (NGB) em 1957/1958. Com a NGB impõe-
se uma homogeneidade terminológica que, como afirmamos,
apaga a materialidade da função-autor gramático tal como se
praticava no século XIX. (ORLANDI, 2002, p. 192).

São várias as concepções de gramática. Segundo Azeredo (2008), temos a


gramática universal, a latente, a explícita, a teórica, a descritiva e a normativa. Os
princípios da gramática universal se concretizam por meio de outras gramáticas
que são particulares e propícias a cada língua.

A gramática latente, segundo Azeredo (2008), é todo o conhecimento que


o indivíduo tem sobre alguma língua específica, como, por exemplo, a língua ma-
terna, portanto, a partir desse conhecimento, tem a capacidade de produzir e
compreender frases. A gramática explícita busca explicitar as informações com
base nos princípios de uma gramática teórica, o conhecimento sobre a língua ma-
terna de cada indivíduo. Ainda Azeredo (2008) ressalta que a gramática explícita
pode ser chamada, tecnicamente, de gramática descritiva, pois, em toda descri-
ção de qualquer elemento gramatical, se faz necessário explicitar o conhecimento
que o indivíduo já apresenta sobre sua língua materna e, a partir disso, é possível
a elaboração de uma gramática descritiva na qual se descreve uma determina-
da variedade da língua em um determinado momento. A gramática teórica é um
conjunto de todo o estudo e investigações que são realizadas para a produção de
uma teoria geral do funcionamento das línguas, sendo inspirados pela hipótese da
gramática universal.

Segundo Travaglia (2009), a gramática normativa estuda somente a língua


padrão e a norma culta, não se preocupando com a variação oral. Também preza
pela maneira correta de falar e escrever, ou seja, uma espécie de regra que não
considera fatores de influência na língua, tal como o momento histórico.

A gramática normativa apresenta e dita normas de bem falar e


escrever, normas para a correta utilização oral e escrita do idio-
ma, prescreve o que se deve e o que não se deve usar na língua.
Essa gramática considera apenas uma variedade da língua como

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

válida, como sendo a língua verdadeira. A gramática normativa é


mais uma espécie de lei que regula o uso da língua em uma socie-
dade. (TRAVAGLIA, 2009, p. 30-31).

No século XX, começam a aparecer as primeiras gramáticas como a de


Bechara e a de Cunha, os quais descrevem a gramática moderna do português.

Em 1958 entra em vigor a Nomenclatura Gramatical Brasileira


escrita em consonância com a nova terminologia, duas obras avul-
tam no período subsequente: A Moderna Gramática Portuguesa,
de Evanildo Bechara (1961), e a Gramática do Português
Contemporâneo, de Celso Cunha (1970). A Celso Cunha caberia
ainda a tarefa de escrever uma Gramática da Língua Portuguesa
para a Fundação Nacional do Material Escolar (FENAME). A
Gramática do Português Contemporâneo passou a se chamar
Nova Gramática do Português Contemporâneo em meados dos
anos 1980, quando, em coautoria com o filólogo português Luis
Filipe Lindley Cintra, a obra teve edição simultânea no Brasil e
em Portugal. A Moderna Gramática de Evanildo Bechara alcan-
çou a 37ª em 1999, em versão ampliada e renovada nos funda-
mentos teóricos. (AZEREDO, 2008, p. 34).

Diante dessas concepções de gramática que foram desenvolvidas, mais re-


centemente, muitos gramáticos entram em debates e discussões sobre qual con-
cepção seria a mais representativa, sendo a gramática normativa e a descritiva as
que mais apresentam discordâncias entre eles.

As gramáticas e o ensino da sintaxe no viés da Semântica da


Enunciação

Desde os primeiros resquícios do que se entende por gramática, por volta


dos anos 100 a.C., com Dionísio de Trácio, é que muitos autores perceberam e se
dedicaram aos estudos gramaticais. Com o passar dos anos, muitos aprimoramen-
tos e novas perspectivas foram surgindo, já que muitos problemas e refutações de
ideias também foram aparecendo. Essas mudanças começaram a acontecer já no
século XIX. Dias (2008) ressalta essas transformações:

analisamos as gramáticas de Júlio Ribeiro (1881), João Ribeiro


(1887), Alfredo Gomes (1887) e Maximino Maciel (1894). Elas
se situam no período denominado “científico” da história de

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

produção de gramáticas no Brasil, segundo classificação ado-


tada, a partir de Silvia Elia, por Fávero & Molina (2006). Outro
parâmetro de classificação é o de Guimarães (1996), segundo o
qual o nosso grupo de gramáticas se situa no segundo período da
gramatização brasileira, que vai de meados do século XIX à déca-
da de 40 do século XX. Nos prefácios, os gramáticos explicitam
uma tendência de afastamento dos princípios da gramática geral
e filosófica e propõem os princípios do evolucionismo biológico
como fundamentos para o estudo das línguas. (DIAS, 2008, p.
126).

O que muitos gramáticos perceberam foram as mudanças e evolução da


língua no âmbito biológico, buscando a inovação nos estudos e, também, acompa-
nhando as evoluções linguísticas que ocorrem ao longo do tempo e, com a língua,
não é diferente, portanto, é necessária uma adequação diante dessas mudanças
linguísticas. Uma adequação não significa que se deve abolir todos os estudos que
foram desenvolvidos anteriormente, mas dar uma amplitude nesses estudos a fim
de estabelecer relações atuais.

Dias (2008, p. 130) menciona a contribuição de autores que trouxeram no-


vas abordagens para a gramática, no final do século XIX, principalmente em rela-
ção ao verbo e ao complemento, vejamos como esses autores estabelecem esses
pensamentos.

Para Júlio Ribeiro, o verbo enuncia, diz ou declara alguma coisa.


Sendo assim, há uma predicação contida nos verbos (RIBEIRO,
1881, p. 67). [...]O complemento verbal é assim uma entidade
de ordem linguística e da ordem do estado de mundo ao mesmo
tempo: o verbo abriga a possibilidade do complemento e abriga
uma predicação, e a entidade afetada é relativa a essa predica-
ção. Em João Ribeiro [...]os verbos teriam um complemento ca-
paz de receber a ação predicativa do sujeito. [...] da mesma forma
que em Júlio Ribero, o complemento verbal adquire estatuto de
entidade da linguagem (palavra) e da predicação. Já na gramática
de Alfredo Gomes: “[...] verbo exige, para completar a sua signi-
ficação, ora objecto, ora predicativo [...] objecto é o termo que
completa o sentido de um verbo que exprime a acção: Esta moça
disse A VERDADE” (p. 254). Sai da explicação a ideia de estado de
coisas que se aloja no verbo (como em Júlio ribeiro); sai de cena
também a ideia predicativa do sujeito (como em João Ribeiro),
para a entrada de duas figuras semânticas: a significação e o sen-
tido, que são abordados como inerentes ao verbo. (DIAS, 2008,
p. 130).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Com as colocações de Dias (2008), podemos perceber que os gramáticos


apresentam semelhanças e também diferenças quanto ao modo de pensarem so-
bre verbo e complemento. Todos esses autores trazem uma perspectiva moderna
no estudo gramatical, rompendo com os pensamentos antigos e abrindo novas
fronteiras para novas possibilidades do fazer linguístico.

Muitas gramáticas tendem a analisar várias manifestações da linguagem, já


que a língua apresenta muita diversidade. Porém, o acontece é que muitos gramá-
ticos se delimitam a um único tipo de manifestação da linguagem e acabam des-
prezando as outras formas linguísticas. Dias e Medeiros (2000), em seus estudos,
fazem um breve comentário sobre algumas gramáticas.

Apesar de alguns autores afirmarem que pretendem ensinar


gramática baseados nas diversas manifestações da língua e em
harmonia com o atual estágio desta, o que se constata é que es-
sas gramáticas tradicionais se encaixam no conceito de Mattos
e Silva (1989), segundo o qual a gramática tradicional pretende
estabelecer as regras de um padrão de língua com base nos usuá-
rios mais ilustres, como os grandes escritores, e através destas
regras ensinar a língua aqueles que já dominam outras variantes
dessa mesma língua e também algumas regras da variante pa-
drão. Verifica-se o desprezo da gramática tradicional em relação
à regra enquanto comportamento natural e esclarecedora de
aprendizado, tal como é vista por Marcuschi e Auroux. (DIAS;
MEDEIROS, 2000, p. 381).

Quando se trata de gramática, apareceram muitos autores e estudantes


apontando críticas que vão desde um exemplo até um conceito, que muitas vezes
não atendem as necessidades linguísticas. O que esses críticos relatam é que os
conceitos eram mal definidos, os exemplos pouco esclarecedores e que os fatos
da linguagem não eram registrados.

Segundo Dias (1999), apesar dos estudos gramaticais sofrerem muitas


críticas, que não tomaram grandes dimensões, pois não apresentavam uma fun-
damentação teórica profunda e estruturada para esses problemas, o ensino da
gramática é extremamente importante para que os alunos entendam o funciona-
mento da língua em todas suas dimensões.

A gramática é o conhecimento científico da língua falada e se apresenta em


todas as manifestações da linguagem. Dessa forma, a gramática deve ser pensa-
da e analisada como sendo uma série de articulações realizadas todos os dias. As

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

articulações sintáticas e semânticas são extremamente importantes para o fun-


cionamento da linguagem, pois, é através delas que os sentidos são produzidos.
Segundo Dias (2020), para produzir sentidos, necessitamos de diversas relações
que, também, provocam outras. Como forma de esclarecer essas ideias, traz uma
comparação com a tessitura de um tapete.

Na maior parte das vezes em que vemos um tapete, não ficamos


imaginando as etapas da sua produção. [...]em suma, com valor
artístico ou sem valor artístico reconhecido, os tapetes são pro-
dutos de um processo de produção. O produto é visível, já o pro-
cesso de produção não aparece mais, depois que um tapete fica
pronto. No cotidiano, estamos lidando com a pertinência desse
produto para as nossas atividades, isto é, passamos a conceber o
tapete como algo relacionado às nossas ações rotineiras. Dessa
maneira, a produção do tapete fica invisível. Na produção de nos-
sos enunciados também há uma parte visível e uma “invisível”.
(DIAS, 2020, p. 3).

Na comparação feita por Dias (2020), é possível percebermos que tudo na


linguagem faz parte de um processo, no qual fazemos articulações entre as pa-
lavras e, ao final, produzimos os enunciados com diferentes efeitos de sentido.
Portanto, quando se fala em gramática pelo viés enunciativo, consideramos que “a
articulação é mobilizada pelo processo social de construção do sentido, ancorada
nas formas conhecidas e repetidas e nas realizações linguísticas, motivadas pela
maneira como se torna pertinente a fala ou escrita” (DIAS, 2020, p. 7).

Juntamente com essa nova proposta de ensino gramatical, aparecem as


atividades epilinguísticas x metalinguísticas. Segundo Dias (2020, p. 8), “uma vi-
são epilinguística da língua mostra como ela funciona. Por outro lado, uma visão
metalinguística da língua nos mostra como a língua se estrutura em categorias
(número, gênero, classes de palavras, etc.) e funções (sujeito, objeto, etc.) ”. Essas
novas abordagens procuram contribuir para uma maior compreensão sobre o
funcionamento e a articulação da língua, buscando se associarem às realidades
linguísticas do falante. A ideia principal é a experimentação e a identificação, por
parte dos alunos, de todos os elementos articulados, percebendo qual de cada um
nas diferentes posições que ocupam.

334
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Proposta de análise linguística no viés enunciativo

Como vimos, no decorrer deste estudo, há necessidade de trabalharmos


a gramática de uma forma mais contextualizada com as práticas reais de uso
da linguagem dos estudantes. Assim sendo, entendemos que é necessária uma
maior associação dos fatos enunciativos corriqueiros do cotidiano com a base
gramatical.

Para desenvolvermos novas propostas no ensino, é necessário levarmos


em consideração muitos aspectos relacionados à linguagem. A gramática tradicio-
nal, muitas vezes, acaba por deixar de analisar aspectos externos à língua, talvez
isso seja um fator que leve às críticas. Assim, para tornar mais simples esse ensino
é necessária a aproximação com usos reais de linguagem e a forma como aconte-
ce. Para tanto, se desenvolvem atividades com bases enunciativas.

Tomando a enunciação como o acontecimento da linguagem,


apresentamos os elementos da constituição desse acontecimen-
to. Constituem esse acontecimento: i) a língua; ii) o sujeito, que
se constitui pelo funcionamento da língua na qual se enuncia
algo; iii) a temporalidade e iv) o real a que o dizer se expõe ao
falar dele (materialidade histórica do real). (PENA, 2015, p. 26).

A partir de relações externas à língua, é que podemos estabelecer signi-


ficados semânticos aos enunciados. É por meio dessas relações que podemos
definir as posições sintáticas dentro do enunciado. Um enunciado pode apresen-
tar a mesma estrutura sintática, mas pode produzir significados diferentes, tudo
dependendo das condições de produção que o constituem. De acordo com Pena
(2015, p. 27),

Os enunciados podem remeter ao mesmo fato, mas não cons-


troem as mesmas significações, que são construídas no aconte-
cimento. Os enunciados são passíveis de interpretações e pre-
cisam de formulações para significar. As proposições do sujeito
falante são atravessadas por uma série de atualizações, transfor-
mando o que aparentemente seria homogêneo em heterogêneo.

O entendimento da língua ou mesmo da gramática, no viés enunciativo, é,


portanto, marcado pelos acontecimentos da linguagem que devem ser relaciona-
dos com todas as estruturas gramaticais, ou seja, o sentido é produzido através de

335
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

uma estrutura gramatical, produzida pelos acontecimentos linguísticos. A abor-


dagem do ponto de vista enunciativo pode facilitar muito no entendimento sobre
o funcionamento dos enunciados, a partir da gramática, pois tem a capacidade de
descrever qualquer fenômeno da língua. Pena (2015, p.33), citando Flores (2011),
nos traz a seguinte afirmação:

O estudo da Enunciação não se limita, então, a certos mecanis-


mos da língua, mas compreende a língua na sua totalidade. E,
nesse ponto, seguimos de perto as ideias de Benveniste: se o apa-
relho formal de enunciação é constitutivo da língua, então todo
e qualquer fenômeno linguístico carrega em si a potencialidade
de um estudo em termos de Enunciação. Qualquer fenômeno
linguístico de qualquer nível (sintático, morfológico, fonológico,
etc.) pode ser abordado desde o ponto de vista da Enunciação.
(FLORES, 2011 apud PENA, 2015, p. 33).

A língua e, também os falantes, são capazes de produzir os mais diversi-


ficados tipos de enunciados e todos eles são passíveis de análise linguística. Os
pontos de um enunciado, para serem estudados, devem adquirir sentido dentro
da estrutura gramatical. Para tanto, os estudos aqui desenvolvidos são pautados
na Semântica Enunciativa, na qual a referência é constituída a partir do aconteci-
mento e do espaço histórico do enunciado.

Os estudos semânticos sobre a língua são tomados por meio de algumas


dimensões, como aponta Pena (2015), sendo a memória social e histórica dos
enunciados muito relevante, pois os enunciados são analisados considerando os
acontecimentos.

Dessa forma, consideramos a língua em duas dimensões: i) orgâ-


nica: possibilidades regularmente configuradas numa ordem ma-
terial específica e ii) enunciativa: mecanismos de acionamento
dessas possibilidades. Em (i), temos a sintaxe como base para a
observação dessa ordem material e a relação entre os elementos
que compõem essa estrutura orgânica. Consideramos que faz
parte da forma linguística uma dimensão enunciativa, que traz
a memória social e histórica das enunciações desta forma, que
marcam a futuridade e o passado no presente do acontecimento.
(PENA, 2015, p. 34).

Para melhor compreendermos os estudos sobre os acontecimentos enun-


ciativos da língua, vamos analisar uma propaganda de carros. O objetivo da

336
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

análise é de identificar as estruturas linguísticas por meio da relação entre sinta-


xe e semântica, e, também, de perceber a relação de influência que os referenciais
históricos apresentam nos enunciados presentes na propaganda. Normalmente,
as propagandas têm o intuito de oferecer algum produto e, para isso, usam a lin-
guagem como ferramenta para chamar a atenção de quem está vendo, não só com
a colocação das palavras, mas, também, por meio de imagens e cores, que não dei-
xam de ser linguagem.

Imagem 1. Propaganda da BMW.


Fonte: BMW3.

Primeiramente, observamos a estrutura sintática do título da propaganda,


no qual, por meio do uso de verbos no imperativo, há um jogo de sentidos no enun-
ciado que se projeta para impactar os possíveis leitores, pois ao aconselhar/orde-
nar “não conte os dias, faça cada dia contar”, outros discursos já ditos em nosso
meio social retornam, uma vez que a preocupação em contar o tempo já é consti-
tutiva na vida em sociedade e, nem sempre, o aproveitamento do tempo é feito de
forma satisfatória. Ou seja, a relação do ser humano com o tempo é sempre com-
plexa, ora porque falta tempo, ora porque não viu o tempo passar, enfim, enunciar
sobre o tempo é tocar em pontos de tensão, reflexão e mesmo de preocupação.

3 Propaganda da BMW. Mais informações no site da empresa. Disponível em: https: //www.bmw.
com.br /pt/index.html. Acesso em: 20 mar. 2021.

337
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Nessa perspectiva, o carro BMW é apresentado como um suporte capaz de


fazer cada dia contar, ou seja, fazer com que cada dia seja mais significativo na vida
do possível comprador. Ao lado do símbolo BMW, temos, também, o enunciado “o
puro prazer de dirigir está de volta”; produzindo um efeito de sentido de que o
prazer de dirigir esteve suspenso ou teria acabado, mas, agora, com a aquisição de
uma BMW, a sensação de prazer ao dirigir retornou. Ou seja, com o intuito de per-
suadir e convencer o leitor a efetuar a compra, o carro BMW é apresentado como
solução para a falta de prazer ao dirigir que possa existir entre os motoristas.

Outro ponto relevante é o enunciado disposto ao final da página, do lado


esquerdo, “No trânsito, dê sentido à vida”, no qual identificamos uma intrínseca
relação de pertinência enunciativa e referencial histórico em torno das questões
que envolvem o trânsito no Brasil e no mundo, ou seja, o trânsito tem sido visto
como um lugar de morte, pelos inúmeros acidentes ocorridos seja por falha me-
cânica, imprudência dos motoristas ou, ainda, por fenômenos da natureza. Desse
modo, a formulação desse enunciado é motivada pela necessidade de cuidado,
prudência, respeitando todas as regras de trânsito e, ao mesmo tempo, silencia a
potência do motor da BMW, capaz de atingir altas velocidades.

Tomando a propaganda como um fato enunciativo constituído por imagens


e enunciados, questões relacionadas às condições financeiras dos diferentes lei-
tores também são silenciadas, afinal, não são todas as pessoas que teriam condi-
ções de adquirir esse automóvel, embora o anúncio afirme que foram preparadas
condições especiais para os futuros compradores.

Com essa breve análise, considerando tanto o plano da organicidade sin-


tática dos enunciados quanto o plano do enunciável, compreendemos que a es-
colha das estruturas linguísticas são feitas a partir de referenciais históricos que
constituem a vida em sociedade, uma vez os discursos já ditos retornam, na for-
mulação da propaganda, funcionando como argumentos favoráveis à compra de
uma BMW, justamente por apresentarem o carro como a solução para possíveis
problemas vivenciados no cotidiano, como a necessidade de aproveitamento do
tempo ou mesmo, a falta de prazer em dirigir.

Considerações Finais

A presente pesquisa apresentou traços importantes de reflexão sobre a forma


como a gramática é trabalhada que, muitas vezes, fica restrita a um ensino voltado

338
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

para estruturas linguísticas prontas, sem considerar os enunciados produzidos no


uso social. O estudo gramatical deve analisar os mais variados discursos possíveis,
para que as dimensões de ensino possam estabelecer articulações entre enuncia-
dos, seja na norma culta da escrita, ou em seu uso real de fala.
A necessidade de uma reflexão sobre as concepções de gramática acontece ao
longo de uma série de transformações que a língua apresenta e que devem ser
analisadas com um olhar sensível sobre cada enunciado. Cada estrutura linguísti-
ca é passível de muitas significações, que dependem de muitos fatores sócio-his-
tóricos e que não podem deixar de ser levados em consideração na análise de um
enunciado. No estudo sobre o percurso histórico da gramática, pudemos perce-
ber que essas transformações da linguagem e da língua não são recentes.
Pelo viés enunciativo, entendemos que é pertinente lançarmos um olhar mais
sensível aos fatos linguísticos, uma vez que todos os acontecimentos da língua,
sejam os estudos realizados pela sintaxe ou pela semântica, devem ser considera-
dos na formulação de um enunciado, pois não basta apenas olhar para cada fato
gramatical, é preciso refletir sobre o porquê de cada fato, o sentido que a estrutu-
ra de uma sentença apresenta diante de uma língua falada pela sociedade.
Nessa perspectiva, identificamos que a Semântica da Enunciação tem papel fun-
damental na compreensão dos fatos linguísticos e que, a partir dela, podemos en-
tender quais são as relações semânticas das palavras umas com as outras.
Portanto, os estudos sobre gramática devem ser considerados enquanto funcio-
namento da língua, com relevância não somente para os estudantes, mas para
toda comunidade. A linguagem faz parte das relações sociais, por isso a importân-
cia de ser trabalhada não só em seu uso intelectual, mas também no social, pois as
práticas estão presentes tanto na formalidade quanto na informalidade.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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340
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

LER, VERBO SEM COMPLEMENTO:


A LEITURA NA PESQUISA COMO
PRINCÍPIO EDUCATIVO1

Amanda Machado Chraim2

RESUMO: Este estudo aborda o processo de leitura na pesquisa como prin-


cípio educativo, modelo adotado pela Educação de Jovens e Adultos da cidade
de Florianópolis/SC, caracterizado pela ausência de disciplinas e pela ênfase na
aprendizagem – com a secundarização do ensino e do professor, portanto –, já
que o estudante é o responsável pelo encaminhamento de suas pesquisas, as
quais se desenvolvem a partir dos seus interesses mais imediatos. Partindo da
fundamentação de base histórico-cultural, com ênfase nas proposições de Britto
(2003, 2012, 2014, 2015), as análises dos dados colhidos durante a imersão de
quatro meses no campo, dentro dos quais se sobressaem as notas de campo e os
registros dos cadernos discentes, apontam para um substancial espaço reservado
à leitura, entretanto, esse processo é delineado pelos próprios alunos, os quais
devem selecionar os textos a serem lidos, bem como direcionar a sua leitura. Os
resultados de um processo com esses contornos sustentam a afirmação de que

1 Este artigo apresenta um recorte da tese intitulada Quando lacunas preenchem espaços...O edu-
car em linguagem jovens e adultos (CHRAIM, 2019), a qual teve como objetivo relacionar, sob um
enfoque explicativo-causal, filiações filosófico-epistemológicas e teóricas em se tratando da pes-
quisa como princípio educativo na Educação de Jovens e Adultos de Florianópolis/SC e conforma-
ções da atuação discente no que concerne à apropriação da modalidade escrita, compreendida
a língua como implicação semiótica fundante para o processo de formação humana. Tal pesquisa
foi financiada, por meio de bolsa de estudos, pela CAPES, e aprovada pelo Comitê de Ética em
Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Federal de Santa Catarina.
2 Universidade Federal de Santa Catarina. amchraim@hotmail.com

341
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

o espontaneísmo se sobrepõe no processo educativo, de maneira que as leitu-


ras empreendidas pelos estudantes incidem de modo muito incipiente em sua
formação.

PALAVRAS-CHAVE: Leitura; Pesquisa como princípio educativo; Educação de


Jovens e Adultos.

ABSTRACT: This study discusses the process of reading in research as an educational


principle, a model adopted by the Education of Young People and Adults in the city of
Florianópolis/SC, which is characterized by the absence of disciplines and by the em-
phasis on learning – rendering obsolete the teaching and the teacher –, since the student
is responsible for conducting his research, which develops from his most immediate in-
terests. Based on the cultural-historical theory, with emphasis on Britto’s propositions
(2003, 2012, 2014, 2015), the analysis of the data collected during a four-month
immersion in the field, primarily journal field notes and student’s notebooks, point to
a substantial space reserved for reading. This process is outlined by the students them-
selves, who must select the texts to be read, as well as direct their own reading. The
results of a process with these outlines support the statement that spontaneity stands
out in the educational process, so that the readings undertaken by students have an
incipient impact on their learning.

KEYWORDS: Reading; Research as an educational principle; Education of Youth and


Adults.

Introdução

Constituindo-se como um campo sobre o qual foram desenvolvidas, sobre-


tudo a partir da segunda metade do século XX, diversas proposições teóricas, a
Educação de Jovens e Adultos (EJA), modalidade específica de ensino, é compos-
ta, em sua maioria, do adulto “[...] trabalhador migrante de áreas rurais empobre-
cidas, com curta passagem pela escola”, e do jovem “[...] com origem urbana e uma
experiência escolar mais longa, ainda que frustrada” (BRITTO, 2003, p. 196) – o
que une ambos, segundo Britto (2003), é sua origem a partir dos estratos socioe-
conomicamente fragilizados e as restrições encontradas para a colocação no mer-
cado de trabalho.

Considerando as particularidades relacionadas à EJA, porém sem a pre-


tensão de retomá-las, o presente estudo, ancorado nas teorias de base histórico-
-cultural, objetiva colocar em foco uma especificidade ainda pouco debatida nos

342
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

trabalhos que se voltam ao ensino de jovens e adultos no Brasil: os meandros da


um percurso delineado por meio da pesquisa como princípio educativo, sobretu-
do no que se refere ao processo de leitura, considerando-se a modalidade escrita
da língua como semiose fundante para a formação humana. O campo da pesquisa
apresentada neste artigo organiza-se por meio do já referido princípio educati-
vo: no município de Florianópolis/SC, no âmbito do chamado segundo segmento,
correspondente às etapas de sexto a nono anos do Ensino Fundamental, a EJA
desenvolve-se por meio de pesquisas3 realizadas pelos estudantes.

As teorizações de Oliveira (2004, p. 12, grifos do autor) são reconhe-


cidamente determinantes para a implementação desse princípio na EJA de
Florianópolis/SC, e tal proposta surge, de acordo com esse linguista, como uma
atitude em relação aos estudantes: “[...] a de que seus interesses são legítimos e de
que as formas tradicionais com que lidam com o conhecimento são sua cultura
[...]”. O autor em menção ancora-se, entre outras referências, em Demo (2000),
um dos mais reconhecidos propositores da pesquisa como princípio educativo, e
ambos destacam que o interesse dos sujeitos é o central para o trabalho, sendo
possível, então, “[...] intelectualizar as pessoas a partir de qualquer interesse [...]”
(OLIVEIRA, 2004, p. 23-4) – partindo-se, pois, das ‘problemáticas de pesquisa’, as
perguntas que os alunos desejam responder, dá-se o processo educativo, abrindo-
-se mão, conforme explica Oliveira (2004), de um currículo estabelecido a priori.

A partir de tais elementos, torna-se claro que, nesta proposta, há uma


imensa ressignificação do papel docente e da relação dos sujeitos da aprendiza-
gem com os objetos de conhecimento, já que o foco está no aprender “[...] e não no
ensinar, porquanto parte dos INTERESSES dos próprios agentes do aprendizado,
os alunos, colocando o professor num novo papel, o de ASSESSOR do processo
de aprendizagem [...]” (OLIVEIRA, 2004, p. 83, ênfases do autor). Há, assim, um
apagamento no papel das disciplinas na pesquisa como princípio educativo: os do-
centes das diferentes áreas do conhecimento ficam responsáveis, no campo des-
te estudo, por acompanhar as diversas pesquisas que acontecem paralelamente,
não havendo aulas ou organizações afins.

Ainda que o foco deste artigo não seja apresentar de modo aprofundado
tal delineamento pedagógico no que se refere aos contornos da educação em
linguagem, importa, entretanto, que as considerações acerca do modo como se

3 O ano letivo do segundo segmento da EJA de Florianópolis/SC é organizado por meio de ‘ciclos
de pesquisas’, cada uma dessas pesquisas com diferentes temáticas selecionadas a partir dos
interesses mais imediatos dos alunos.

343
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

constitui a pesquisa como princípio educativo estejam no horizonte do que será


analisado, posto que os registros feitos em campo refletem em grande medida as
consequências de tais proposições, as quais se colocam em uma estreita relação
com as pedagogias do ‘aprender a aprender’ (DUARTE, 2011).

Posto isso, o propósito deste artigo está em promover uma discussão acer-
ca da consolidação da pesquisa como princípio educativo a partir do que suscitam
os registros historiados quando da imersão no campo de estudo, focalizando-se
o processo de leitura, o qual é empreendido cotidianamente pelos estudantes da
EJA de Florianópolis/SC. Destaca-se, assim, centralidade com que a leitura se co-
loca nesse processo educativo: a coleta de dados, etapa de maior duração ao lon-
go do percurso da pesquisa, convoca os estudantes a buscar dados, a ler, portanto,
diferentes textos escritos que tenham relação com a sua problemática.

No que se refere aos procedimentos metodológicos deste estudo, o qual


tem caráter qualitativo, foram delineados de maneira a facultar a imersão no cam-
po, que se deu ao longo de quatro meses, período respectivo ao início, ao desen-
volvimento e à finalização do percurso da primeira pesquisa realizada pelos estu-
dantes. A principal estratégia metodológica durante essa imersão foi a observação
participante com produção de notas de campo, objetivando a“[...] compreensão da
realidade empírica” (MINAYO, 2014, p. 274), a partir da qual houve a aproximação
com os participantes do estudo. A escola em questão está localizada na região
central da capital de Santa Catarina, constituindo-se como um dos núcleos de EJA
em nível de Ensino Fundamental oferecidos pelo município – durante esse tem-
po, acompanhou-se cotidianamente as atividades desenvolvidas no campo, bem
como (e mais de perto) o desenvolvimento das pesquisas dos participantes.

A discussão que segue trará para análise dados de quatro participantes –


Laís (50 anos), Dorval (entre 50 e 60 anos), Natália e Vítor4 (ambos com 18 anos)
– e suas respectivas interações, tudo registrado por meio de transcrição em diário
de campo e de fotografia dos ‘cadernos de pesquisa’. Quando se tratar de partici-
pantes tidos como indiretos – docentes –, mantém-se a designação sob a forma
de ‘representantes da proposta’ ou, ainda, sob forma de nominalização genérica
ou de impessoalidade, em razão exatamente dessa condição que se adjetiva como
‘indireta’, o que decorre de o enfoque estar no modo como o percurso educati-
vo se coloca por meio da pesquisa como princípio educativo. Compreende-se,
pois, que é a partir do que se estabelece na proposta pedagógica que as ações

4 Os nomes utilizados são fictícios.

344
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

dos professores se delineiam – a opção, então, por esse registro na textualização


aponta o interesse em referenciar essa proposta, sendo a pesquisa como princípio
educativo o seu modo organizativo, não se tratando, assim, da unicidade de cada
um dos docentes que estão envolvidos nela, o que, seguramente, pode vir a ser
de substantivo interesse de pesquisas outras que venham a ser realizadas nesse
campo de estudo.

Por meio das análises empreendidas, observa-se que, do modo como a lei-
tura é organizada neste modelo educativo, prevalece um espontaneísmo que inci-
de de modo insuficiente no que se refere à transição entre o saber e o não saber,
o qual é substancial na esfera escolar. Em sendo a leitura tomada como necessá-
ria, sobretudo para cumprir as etapas de pesquisa, vê-se um afastamento de uma
organização pedagógica consequente, que lide com o processo de leitura como
instrumentalizador para a apropriação conceitual e, desse modo, para a formação
humana.

O espontaneísmo como base, o cotidiano como critério

Buscando colocar sob escrutínio o que se lê durante a etapa de coleta de


dados da pesquisa como princípio educativo na EJA de Florianópolis/SC, impor-
ta enfocar uma primeira questão que chama atenção no campo, que é o próprio
delineamento dessa etapa: nela, os próprios estudantes é que devem selecionar
os textos a serem lidos, fazendo emergir um espontaneísmo que parece se con-
formar como marca do processo educativo empreendido no campo deste estudo.
Durante a coleta de dados, os estudantes devem selecionar os textos a serem li-
dos e resumidos, e a internet é o principal meio para tal – destaca-se que o instru-
mento utilizado ao longo de todo o ciclo de pesquisas foi o celular, em razão da
sala informatizada da escola estar inutilizada e só haver um computador móvel.

Com este contorno, de máxima abertura para os alunos escolherem os ob-


jetos de leitura a partir de seus próprios critérios, secundariza-se o fato de que,
como coloca Britto (2015, p. 132), há “[...] textos mais densos que outros; há gêne-
ros mais exigentes; há assuntos mais difíceis e distantes da vida comum [...]”. Em
sendo a busca na internet uma ação tida como a priori pelos representantes da
proposta, não houve, ao longo do primeiro semestre do ano letivo, com exceção
da cena descrita na nota de campo apresentada a seguir, momento em que se ins-
truíssem os estudantes acerca do processo de pesquisa em meio digital:

345
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

(1) Solicita-se aos estudantes que atentem à explicação sobre uma fer-
ramenta do Google, denominada ‘pesquisa booleana’. Explica-se
oralmente como devem ser feitas as pesquisas nessa plataforma com
menção ao espaço ali destinado para digitação do foco da pesquisa.
O instrumento utilizado como apoio da exposição é o quadro negro,
no qual aparece escrito “pesquisa booleana”. Há dispersão discente, e
isso se dá, ao que parece, por haver pouca compreensão acerca do que
se lhes está sendo apresentado (Nota de campo, mar. 2018. Evento
87).

A nota de campo (1) suscita uma compreensão de que o campo deste es-
tudo se organiza de modo a pressupor que os estudantes chegam às classes de
EJA com práticas relacionadas ao uso da internet no que se refere à utilização
do Google, plataforma mencionada na referida nota. Prescinde-se, assim, de uma
reflexão em torno do acesso discente a diferentes suportes virtuais, possivel-
mente porque haja uma espécie de conhecimento tácito de que as redes sociais
ocupam grande espaço no cotidiano dos sujeitos; nas palavras de Britto (2014, p.
12): “Estar desconectado ou ignorante do que acontece nas redes sociais é como
estar fora do mundo, não obstante a conexão não implicar nenhum conhecimento
relevante”. Tal configuração se dá, ao que parece, em razão da ampliação de possi-
bilidades que o acesso à internet oferta (BRITTO, 2014). Desse modo, os segmen-
tos que historicamente tiveram limitação de acesso aos bens culturais e materiais
estariam, neste momento, ainda de acordo com Britto (2014, p. 9), “[...] tendo a
chance de mostrar-se [...]”:

E, para se fazer ver e ouvir, os novos protagonistas produzem for-


mas de expressão e comunicação próprias e originais, produtos
que ganham dimensões maiores quando reverberados na WEB,
nas redes sociais e em espaços alternativos. Alijados do que se
convencionou chamar de cultura escrita, produzem uma espécie
de contracultura oral ou digital [...].

Em uma discussão voltada a essas questões, Cerutti-Rizzatti e Irigoite


(2015, p. 261) advertem que, ainda que se reconheça “[...] a fantástica revolução
que as redes sociais significam em se tratando da forma como a interação global
se dá hoje [...]”, por ser um fenômeno social há muitas faces constitutivas dessas
redes. As autoras chamam atenção, assim, para que não se reifiquem as tecnolo-
gias, “[...] porque o que de fato nos importa são as práticas sociais que se valem
delas para se instituir: dispositivos eletrônicos são meios e não fins em si mesmos

346
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

[...]” (CERUTTI-RIZZATTI; IRIGOITE, 2015, p. 276). Diante dessa realidade, Britto


(2014, p. 11) explicita:

Enfim, é preciso reconhecer que, se é fato que as novas tecno-


logias e os novos modos de comunicação e de expressão que
permitem, assim como os processos de produção que se instau-
raram com a revolução microeletrônica, supõem um sujeito ágil
e que aprende na prática e na diversidade, é fato também que,
limitados a estes espaços, os sujeitos não disporão de conheci-
mentos que contribuam para a crítica a essa mesma e nova con-
dição de alienação.

Do mesmo modo, parece pouco provável que o alargamento de acesso


signifique, por si só, que os estudantes empreendam buscas na rede mundial de
computadores com regularidade e autonomia. Nesse sentido, retoma-se outra
obra de Britto (2015, p. 141) na qual o autor instiga à problematização acerca da
relação entre leitura e acesso aos bens culturais escritos, que pode ser contextua-
lizada nesta discussão: “[...] o que e o quanto um cidadão é leitor depende, acima
de tudo, de sua condição social e da possibilidade de ter acesso ao escrito, e isso
depende das relações sociais” – e econômicas. Tais relações, pois, quando se trata
da esfera escolar, colocam em proeminência, em tese, uma organização pedagó-
gica com objetivos que perpassem a aprendizagem dos processos pelos quais se
fazem buscas na internet.

No entanto, no campo deste estudo elicia-se, ao longo do primeiro ciclo de


pesquisas, que ‘buscar na internet’ é uma ação que não prescinde de determina-
dos domínios, os quais são importantes para que essa busca não seja irrefletida
ou ingênua. Importa mencionar a obviedade de haver, na rede, inúmeros sites des-
comprometidos com dados de base científica, de maneira que muitas das informa-
ções disponibilizadas impossibilitam que os sujeitos transcendam a “[...] aparência
fetichista cotidiana das coisas” (DUARTE, 2016, p. 77).

Retomando a nota de campo (1), chama atenção ainda os representantes


da proposta se valerem de exposição em quadro negro para explicação sobre ‘pes-
quisa booleana’, ainda que houvesse um computador e um projetor disponíveis
na sala. Parece notório que o resultado esperado – a qualificação discente para o
uso da busca avançada na plataforma Google – inviabiliza-se, considerando, que,
como sugere a nota de campo a seguir, a própria pesquisa simples nessa mesma
plataforma não é dominada por todos os estudantes:

347
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

(2) Laís apenas observa seus colegas, sem que se envolva em alguma ação,
até ser interpelada por um representante da proposta, que conversa
com ela sobre o tema de sua pesquisa. Na sequência, a estudante é
questionada se tem ou não celular para iniciar a busca na internet; ela
responde, então, que vai começar “a dar uma lida”. O representante
da proposta se ausenta, mas retorna alguns momentos depois e per-
cebe que Laís não tem clareza sobre como proceder para a coleta de
dados. À vista disso, é indicado o navegador no celular da estudante e
explica-se a ela que deve inserir nele palavras-chave. (Nota de cam-
po, mar. 2018. Evento n. 88).

Ao se pressupor que o conceito de ‘palavra-chave’ já seja de domínio dos


estudantes, a exemplo de Laís, como aparece em (2), esvazia-se, no percurso edu-
cativo que tem a pesquisa como centro, a possibilidade de sistematizar ações em
torno desse conceito de tal modo que seja de fato objeto de apropriação discente.
A ação de selecionar palavras-chave, bem como de selecionar sites de conteúdo
relevante para a pesquisa em curso, tida como um “[...] meio de adquirir conheci-
mento e atuar no mundo [...]” (OLIVEIRA, p. 53), não é aprendida espontaneamen-
te, mas pressupõe a internalização de importantes princípios do processo de lei-
tura. Oliveira (2004, p. 59, grifos do autor), ao defender a escola como instituição
responsável por transmitir as formas de aprendizagem ao invés dos conteúdos,
registra que cabe à esfera educativa ensinar

Formas de lidar com o conhecimento, formas de se apropriar do


conhecimento, formas de adquirir instrumentos para adquirir o
conhecimento. Importa saber onde buscar a informação, saber
lidar com a informação, saber sintetizar, saber argumentar, saber
usar os instrumentos [...]. Essa lista aglutina alguns pontos que
poderíamos chamar de conteúdos procedurais: os procedimentos
que precisam ser dominados para o estabelecimento de uma re-
lação produtiva e positiva com o conhecimento.

Essas afirmações do autor em menção indiciam uma perspectiva de esco-


la como o lócus do ‘aprender a aprender’ (DUARTE, 2011), entretanto, para que
isso se efetive, torna-se imprescindível que sejam abordados, no espaço escolar,
os mencionados ‘conteúdos procedurais’. ‘Buscar informação’, assim, precisa ser
objeto da aprendizagem discente, já que Laís, por exemplo, que escolheu como
temática de pesquisa a guerra na Síria, desconhecia, até então, como sugere (2), o
caminho que deveria seguir para isso.

348
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Uma possível razão para o pressuposto que parece se instaurar no campo


deste estudo em torno do conhecimento discente sobre o processo de busca na
internet é a já mencionada ampliação, nas últimas décadas, no contexto brasileiro,
do acesso às tecnologias digitais5; um número expressivo de estudantes da EJA
campo deste estudo dispunha de celular com acesso à internet. As atividades co-
tidianas para as quais se valem desse aparelho móvel, entretanto, distinguem-se
daquelas propostas pela esfera escolar, o que se iniciou quando da imersão em
campo: sobretudo aqueles mais jovens eram convocados a não acessar, durante
a realização da pesquisa, redes sociais ou aplicativos de conversa. Torna-se re-
levante apontar, no entanto, que, embora o acesso à internet seja hoje massivo,
muitos desses jovens e adultos não aprenderam, ainda, a lidar com ela para a bus-
ca de conteúdos vinculados à esfera científica. Britto (2003, p. 52) assim se enun-
cia, problematizando tal questão:

Fala-se com frequência de uma terceira revolução industrial – a


revolução tecnológica ou revolução da informatização. A par-
tir disso, sustenta-se que, do ponto de vista do conhecimento
social, estariam dadas as condições para o amplo acesso ao co-
nhecimento – virtualmente disponível nos sistemas de rede – o
que, por sua vez, implicaria a possibilidade real de construção da
democracia. [...] Essa forma de perceber o fenômeno da comuni-
cação eletrônica, contudo, apenas mascara desigualdades anti-
gas e novas, através da ilusão do acesso ilimitado. Ela se apoia
em uma concepção de política e de participação social centrada
na imagem de sujeitos individuais, considerados como unidades
sociológicas plenas e de mesmo valor, ignorando as condições
históricas objetivas [...].

Outra nota de campo que reverbera proposições do mencionado autor é a


que segue, em que aparecem dissociados, de um lado, acesso à internet e, de ou-
tro, domínio sobre os diferentes instrumentos que são disponibilizados na rede:

(3) Tratando da sequência das atividades em curso no tangente à noite


letiva do dia seguinte, informa-se aos estudantes que a atividade es-
colar será realizada em outro espaço. Um representante da esfera co-
munica o endereço do novo local. Os estudantes são questionados se

5 Segundo a pesquisa TIC Domicílios 2019, três em cada quatro brasileiros acessam a internet,
o que equivale a 134 milhões de pessoas. Fonte: Agência Brasil. Disponível em: https: //agen-
ciabrasil.ebc.com.br/geral /noticia/2020-05/brasil-tem-134-milhoes-de-usuarios-de-internet-
-aponta-pesquisa. Acesso em: 27 out. 2020.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

“sabem utilizar o mapa no celular”, ao que poucos aquiescem. (Nota


de campo, fev. 2018. Evento n. 89).

Parece haver uma compreensão espontaneísta em relação ao principal ins-


trumento utilizado para a etapa de coleta de dados da pesquisa. A lógica seria,
assim, que, em tendo acesso à internet, valendo-se dela para se conectar em redes
sociais, por exemplo, os estudantes estariam ‘automaticamente aptos’ a utilizar
o navegador de busca e outras plataformas para colher dados diversos de inte-
resse de suas pesquisas. As notas de campo (2) e (3) ilustram a inferência desse
automatismo. As especificidades dos diferentes textos parecem deixar de ser
reconhecidas, bem como as formas legitimadas culturalmente de dar tratamen-
to a eles (KLEIMAN; MORAES, 1999). Reporta-se a Duarte (2016, p. 139), nessa
abordagem, autor que critica veementemente as pressuposições de que as “[...]
tecnologias possibilitam, por si mesmas, acesso livre e pleno a todas as formas de
conhecimento, desde aqueles imediatamente ligados a questões do cotidiano até
os mais abstratos e teóricos [...]”.

Em uma discussão sobre ‘projetos de letramento’ – abordagem implicada


nos Estudos Culturais e, portanto, em alguma medida convergente com o enfoque
da pesquisa como princípio educativo, tal qual se delineia em Florianópolis/SC –,
Kleiman e Moraes (1999) advogam em favor de um delineamento pedagógico in-
terdisciplinar, o que converge com muitas das proposições em torno da pesquisa
como princípio educativo, apesar de Oliveira (2004) negar que ela seja interdisci-
plinar, afirmando que se constitui como ‘não-disciplinar’. Nesse sentido, aquelas
autoras chamam atenção para as possibilidades de apropriação discente de dife-
rentes modos de organização do discurso a partir da leitura:

Os projetos interdisciplinares ajudam a desenvolver o letramen-


to pleno porque expõem o aluno a vários tipos de texto em vários
tipos de eventos, ou a várias formas de ler um mesmo texto, dan-
do oportunidade para se vivenciarem as várias práticas de forma
colaborativa e com a ajuda de alguém já familiarizado com elas.
(KLEIMAN; MORAES, 1999, p. 99).

O percurso, nesses projetos, seria garantido, assim, a partir da interação


dos estudantes com diferentes textos, materializados em gêneros distintos, com
o acompanhamento docente. Entretanto, no campo deste estudo, a lógica na qual
se inscreve o percurso de pesquisa implica que os estudantes selecionem, por

350
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

conta própria, o material que será utilizado para leitura e formulação de resumos.
Eles são convocados, pois, de forma genérica, a ‘buscar textos na internet’.

(4) Um estudante questiona um representante da proposta sobre a pos-


sibilidade de fazer a pesquisa a partir de um único site; a resposta é
negativa, justificando-se que “um mesmo site traz somente uma vi-
são, e o estudante deve ler mais de um [site] e interpretar”. (Nota de
campo, mar. 2018. Evento n. 90).

O conteúdo de (4) reporta recomendação em relação à atenção discente


à variedade de fontes de pesquisa, sugerindo, entretanto, substantiva fragilida-
de quanto ao delineamento dessa mesma busca, calcada no espontaneísmo: sem
que se tenha empreendido um percurso anterior objetivando a apropriação por
parte dos alunos acerca de como se realiza uma pesquisa, mais especificamente,
neste caso, de como são selecionadas as fontes, os estudantes são aconselhados a
“ler mais de um site”, com “visões diferentes”, e “interpretar”. Estaria pressuposto,
em (4), que a busca em torno de posicionamentos diferentes frente a uma mesma
questão seja isomórfica a ‘acesso à internet’: em se deparando com a variedade
de páginas que tratam de um mesmo tema, o estudante poderia selecioná-las a
partir de critérios individuais, procedendo à ‘interpretação’ do conteúdo que ne-
las consta. As concepções de leitura e de leitor, aqui, parecem estar estreitamente
vinculadas à decodificação. No excerto a seguir, Britto (2003, p. 145) comenta a
complexidade da conceituação em torno do leitor na cultura escrita:

O conceito de leitor [...], para ter razão de ser e poder avaliar e


distinguir comportamentos intelectuais dentro de uma socie-
dade letrada, deve supor mais que conhecer o código escrito ou
mesmo ter domínio de certos protocolos sociais de base escrita.
Ele é sustentado por impressões vagas, conceituações impreci-
sas, tácitas, que, por sua vez, se constituem a partir de represen-
tações de leitura historicamente estabelecidas.

O autor chama atenção, pois, para representações acerca da leitura.


Interessa, para esta discussão, considerar que esse processo implica interação so-
cial. Volóchinov (2017 [1929], p. 218-219, grifos do autor), em suas considerações
sobre a linguagem, registra:

A realidade efetiva da linguagem não é o sistema abstrato de formas


linguísticas nem o enunciado monológico isolado, tampouco o ato

351
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

psicofisiológico de sua realização, mas o acontecimento social da inte-


ração discursiva que ocorre por meio de um ou de vários enunciados.

Assim, assume-se a leitura, para as análises empreendidas neste estudo, à


luz do que coloca o filósofo russo: processo no qual se tem a ‘realidade efetiva da
linguagem’, como acontecimento social da interação. Distintamente da interlocu-
ção situada aqui suposta, vivenciou-se no campo deste estudo um convite para os
estudantes lerem diferentes páginas da internet respectivas a seus temas de pes-
quisa, tangenciando-se a leitura como um processo que se distingue de uma inte-
ração face a face, em que há negociação de sentidos. Importa ter presente que ler

[...] implica a interação intelectual com discursos cuja organi-


zação se afasta das formas da oralidade, com léxico, sintaxe e
prosódia próprios, sustentando-se sobre outros tipos de refe-
rencialidade, mais distante do contexto imediato e vinculada a
estratégias mais tensas de representação, ocupando lugar espe-
cífico na dimensão cultural e intelectual. (BRITTO, 2012, p. 106).

Os estudantes são convidados a selecionarem textos a partir de critérios


que eles próprios estabelecem, para o que se evoca Heller (2014 [1970], p. 33,
grifos da autora), tendo presente que, por já serem sujeitos jovens e adultos, ‘ama-
durecidos’ nas palavras da autora, estariam aptos a esse movimento: “O amadure-
cimento do homem significa [...] que o indivíduo adquire todas as habilidades impres-
cindíveis para a vida cotidiana da sociedade [...] em questão. É adulto quem é capaz de
viver por si mesmo a sua cotidianidade”.

Nesse sentido, os alunos são convocados a exercer suas habilidades volta-


das à vida cotidiana ao terem de selecionar, por conta própria, as fontes de con-
sulta para consolidação da pesquisa. São, então, escolhidos artefatos muito pró-
ximos a esse cotidiano, que contêm uma organização de modos de dizer que se
assemelham às formas de falar discente, já que, para lidar com textos que fogem
desses contornos, seria requerida uma efetiva interferência docente nos textos
selecionados pelos educandos, implicações do ensino, de um preciso delineamen-
to pedagógico. Nesse sentido, Vygotsky (2014 [1934], p. 133) enfatiza a impor-
tância da exigência de tarefas adequadas para o desenvolvimento intelectual dos
sujeitos:

352
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

[...] onde o ambiente não apresenta ao adolescente as tarefas


adequadas, não lhe impõe novas demandas, não desperta nem
estimula o desenvolvimento de seu intelecto mediante novos
objetivos, o pensamento do adolescente não apresenta todas as
suas possibilidades, não chega a alcançar as formas superiores
ou as alcança com grande atraso.6

Parece, pois, bastante relevante a interferência, por parte da esfera esco-


lar, também na escolha dos textos a serem lidos pelos estudantes, considerando
que, conforme discute Britto (2015, p. 66), ‘ler’ é verbo transitivo, importando,
sobretudo, levar em conta o objeto da leitura:

O que há de considerar é que o hábito da leitura não é bom ou


mau em si, nem tem o poder de transformar ou engrandecer as
pessoas individual ou coletivamente. Ler é “verbo transitivo” e,
portanto, ao indagar sobre a leitura, seja para considerar seu
valor, seja para avaliar a eventual contribuição para a formação
de alguém, há que [se] indagar também sobre os objetos sobre
os quais ela incide, os modos como se realiza, as relações que se
estabelecem em função dela etc.

Para ilustrar essa discussão, segue a Figura 1, respectiva ao registro do ca-


derno de Vítor, que teve como tema de pesquisa as receitas típicas das diferen-
tes regiões do Brasil. Vê-se, na referida imagem, que o primeiro texto (à esquer-
da) traz breves informações acerca da historicidade dos pratos típicos da região
Norte do país, mencionando as influências do processo de colonização, bem como
um período de relevância ímpar para o desenvolvimento econômico nacional, o
‘ciclo da borracha’. No segundo texto (à direita), há a caracterização dos pratos
típicos do Nordeste, com menção aos aromas e às cores, seguida de uma listagem
de ‘elementos gastronômicos’, de modo que os textos subsequentes são descriti-
vos de cada um dos principais pratos da região em questão.

6 [...] donde el medio no presenta al adolescente las tareas adecuadas, no le plantea exigencias
nuevas, no despierta ni estimula el desarrollo de su intelecto mediante nuevas metas, el pen-
samiento del adolescente no despliega todas sus posibilidades, no llega a alcanzar las formas
superiores o las alcanza con gran retraso.

353
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Figura 1 . Caderno de pesquisa de Vítor

Colocando sob escrutínio os textos selecionados por Vítor, conforme cons-


ta na Figura 1, com conteúdo informativo e descritivo, vê-se que poucas possibili-
dades se apresentam para que o educando, por conta própria, se desprenda do co-
tidiano. A seleção dos textos por si só traz indícios de que tenha sido feita a partir
desse critério da proximidade com a experiência mais imediata, considerando que
os estudantes passam a compreender que “[...] são os responsáveis primeiros e os
que melhor sabem e sentem o efeito de cada movimento sobre si mesmos e sobre
seu trabalho” (OLIVEIRA, 2004, p. 66). Nesse âmbito, coloca-se a busca por textos
que possam ser imediatamente compreendidos no processo de leitura – textos,
assim, vinculados ao cotidiano.

Observando os textos e os gêneros comuns a cada esfera, obser-


va-se que os textos da esfera do cotidiano são fortemente con-
textualizados, [...] estão referenciados em conhecimentos parti-
lhados e se organizam em gêneros próprios da vida comum [...].
(BRITTO, 2015, p. 70).

Mantendo-se no que foi discutido até aqui, depreende-se que a leitura, na


pesquisa como princípio educativo, indicia uma concepção de ler como verbo sem
complemento – leitura tomada intransitivamente, portanto; os estudantes são

354
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

convocados, durante a consolidação da pesquisa, a ‘ler para a pesquisa’, logo, o


foco não incide sobre o objeto da leitura, o complemento do verbo ‘ler’, mas sobre
a finalidade da leitura. Torna-se necessariamente relevante a problematização
acerca de ‘ler o quê? ’, imprescindível nesse processo. Nesse caso, quais textos
importa serem lidos durante a coleta de dados? Se esse complemento ficar mui-
to efetivamente aberto, se ficar à deriva, a tendência do estudante de procurar
um complemento – o ‘o quê’ – a partir de sua própria cotidianidade é recorrente,
como ilustra a Figura 1.

Em o processo delineando-se desse modo, limita-se substancialmente o


percurso entre o não saber e o saber, próprio da esfera escolar, porque para o alar-
gamento desse percurso é necessário o trânsito no desconhecido. O complemen-
to do verbo ler– ‘ler o quê? ’ – precisa justamente transcender esse movimento
que parece circunscrito ao cotidiano, extrapolando, pois, as vivências imediatas.
Impõe-se, desse modo, a tensão entre os conceitos cotidianos e os conceitos cien-
tíficos, e a abstração tem relevância ímpar nesse processo, para que os elementos
sejam considerados fora das conexões reais e concretas dadas (VYGOTSKI, 1934
[2014]). A modalidade escrita da língua é intrinsecamente constitutiva desse pro-
cesso e, por conta disso, a leitura tem um espaço tão significativo na esfera escolar.

No entanto, na contramão do que normalmente se institui nos encami-


nhamentos escolares, em favor dos quais os professores são responsáveis pela
seleção dos textos a serem lidos pelos estudantes, na pesquisa como princípio
educativo tal seleção é feita, como já exposto, pelos próprios educandos, pres-
cindindo-se de endosso docente. Na consolidação da pesquisa, que tem na coleta
de dados a etapa mais extensa e, à luz da lógica do campo, a mais importante, os
estudantes devem buscar respostas para suas perguntas e, para isso, devem es-
colher as leituras. Estaria aqui o complemento? ‘Ler’ o que responde à questão de
pesquisa? Caso esteja, inquieta a vagueza, sobretudo porque a questão de pesqui-
sa deriva igualmente de decisão discente. A tendência, então, é que, em resposta
a esse percurso com traços espontaneístas, esses jovens e adultos se mantenham
no que já lhes é familiar, portanto, necessariamente na proximidade do cotidiano.
A nota de campo a seguir é outro exemplo que sustenta o que tem sido sinalizado:

(5) Dorval tem consigo um texto da rede social de negócios LinkedIn, no


qual a diretora executiva de uma multinacional fabricante de vidro
escreve sobre a empresa. (Nota de campo, mar. 2018. Evento n. 91).

355
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Do conteúdo de (5) e de outros correlatos, infere-se que, quando convoca-


dos a selecionar por sua própria conta os textos a serem lidos, alguns estudantes
tendem a fazê-lo sem critérios – porque sem ‘domínio de’ – acerca dos gêneros do
discurso nos quais se materializam textos potencialmente relevantes para uma
pesquisa tal qual aquela que lhes cabe levar a termo. A seleção feita por Dorval,
em (5), é exemplo disso. O participante deste estudo, o qual tem pesquisa relativa
à fabricação do vidro, seleciona um texto sem compreender suas especificidades:
o suporte de onde foi extraído é uma rede social de negócios, e o texto em ques-
tão tem finalidades corporativas, considerando constituir apresentação de uma
empresa fabricante de vidro, assinada pela diretora executiva da multinacional
em questão.

Traz-se para o centro da argumentação o que, em certa medida, é consen-


sual para diferentes perspectivas pedagógicas, e para isso recorre-se novamente
a Kleiman e Moraes (1999), as quais são vinculadas aos Estudos do Letramento,
construto teórico que, como já mencionado, mantém profundas relações com os
Estudos Culturais e, portanto, com a ‘condição pós-moderna’, sobretudo no que
respeita à validação dos diferentes escritos e a consequente negação de hierar-
quias tais como ‘alta cultura’ e afins (GRAMSCI, 1968 [1949]). Nesse sentido, as
referidas autoras explicitam que a leitura não é um processo que se desenvolve
espontaneamente nos estudantes, mas, pelo contrário, lhes é exigido um percurso
de aprendizagem.

O desenvolvimento da leitura não se dá espontaneamente. É


preciso instrumentar o estudante para que aprenda a ler, proces-
so que vai muito além da decifração de palavras e frases, comum
na sala de aula: em vez de ler o texto, o aluno o fragmenta em
partes, construindo um sentido para cada uma das palavras e fra-
ses. Essa leitura fragmentada não permite muitas vezes chegar a
entender o significado desse objeto cultural, o texto. (KLEIMAN;
MORAES, 1999, p. 122).

Britto (2015) atribui à ‘mitificação da leitura’ – a equívocos sobre o que


significa ler e sobre as práticas sociais de leitura – aplanamentos acerca das ma-
neiras pelas quais deve ser feita a inserção dos sujeitos na cultura escrita, e po-
de-se estender essa análise ao campo deste estudo. Sem que haja, por parte da
esfera escolar, uma compreensão mais efetiva a respeito de como se desenvolve
o processo de leitura, de como os estudantes aprendem a ler – e isso implica es-
pecificidades de habilitação profissional específica –, a pesquisa como princípio

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

educativo no modo como se desenvolve no campo acaba por esvaziar esse pro-
cesso: lê-se como se tal verbo fosse intransitivo, e isso evoca o enfoque no cum-
primento de etapas de pesquisa tomado como fim em si mesmo. Os estudantes
leem ‘textos’ durante suas pesquisas, sem que, entre outras implicações, sejam
diversificados os gêneros do discurso com os quais lidam nesse cotidiano escolar,
em um quadro em que maior ciência acerca de tais gêneros colocar-se-ia segura-
mente com fecundidade.

É imprescindível destacar que a leitura importa não em si mesma, mas como


“[...] forma de ser e estar na história, de indagá-la e de querer fazê-la, [...] como
posicionamento político diante do mundo” (BRITTO, 2015, p. 72). Para tanto,
torna-se pertinente, como pontuam – sob a epistemologia em que se inscrevem
– Kleiman e Moraes (p. 100-1), que sejam introduzidas “[...] diversas fontes de
informação no ensino [...]”, possibilitando, assim, que o educando aprenda a “[...]
observar, perceber, comparar, relacionar, construir generalizações, abstrair, falar
sobre um assunto, utilizando os textos que circulam na área, segundo os modos
legitimados pela área”.

Entretanto, partindo do que se elicia nas notas de campo aqui transcritas


e em outros eventos congêneres, a “inserção em práticas letradas”, que é previs-
ta por Oliveira (2004), emerge como tangencial nas ações educativas no campo
deste estudo. Importa sublinhar que essa questão tem contornos singulares na
proposta de ensino via pesquisa na EJA de Florianópolis/SC, considerando que há
docentes de diferentes áreas responsabilizando-se por acompanhar e intervir nos
processos de leitura e de escritura discentes, uma intervenção que parece se dar
mais efetivamente como check list de cumprimento de etapa do que propriamente
como ciência de endosso ou necessária reorientação.

Em conformidade com orientação de Oliveira (2004, p. 64) para o campo


deste estudo, as áreas não devem ser tomadas como fixas no percurso educativo
desenvolvido por meio da pesquisa, já que elas são consideradas pelo autor como
“[...] recortes provisórios e úteis do conhecimento”. Assim, exclui-se, na origem, o
que, em tese, seria da responsabilidade do professor de Língua Portuguesa e, com
isso, intervenções nas ações discentes específicas, porque derivadas da formação
desse profissional, tais como o estudo da linguagem e do texto, este último con-
cebido, à luz de Geraldi (2010, p. 168), como “[...] o melhor lugar da expressão da
dialética entre a estabilidade e a instabilidade da língua”.

357
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Defendendo, entretanto, tal qual o faz Britto (2012, p. 94), que “[...] o en-
sino e a aprendizagem da leitura e da escrita fazem parte das atividades de to-
das as disciplinas [...]”, parece coerente que todos os docentes acompanhem tais
processos durante a pesquisa. As especificidades da área de Língua Portuguesa
estariam relacionadas ao estudo de questões linguísticas: “[...] teorias linguísticas,
variação linguística, formas e processos de constituição da língua, língua e valores
e a experiência literária. Isso significa tomar a língua como objeto de investigação
e análise [...]” (BRITTO, 2012, p. 94-95). Abordagens tais não têm espaço no cam-
po justamente por conta da sua organização se dar por meio da pesquisa como
princípio educativo, a qual, conforme já exposto, prescinde de conteúdos deter-
minados a priori (OLIVEIRA, 2004).

A nota de campo a seguir traz o enfoque em uma cena na qual se investiga a


intervenção docente no que se tem abordado nesta discussão:

(6) Informa-se aos estudantes que a rede de internet da escola encon-


tra-se indisponível em razão de problema técnico, e que eles devem,
então, recorrer a materiais físicos na biblioteca. São entregues para
alguns estudantes textos impressos pelos representantes da proposta
– Laís recebe um texto informativo sobre a Síria do site Brasil Escola,
da plataforma Uol, e outro sobre a guerra civil no país, do site História
do Mundo. Durante a leitura do material, a participante depara-se
com números romanos e me pergunta “o que significa ‘século XX’”.
Explico a ela como se organiza a História, o que é um século, e qual
é a lógica dos anos que compreendem um século. A estudante fica
aparentemente satisfeita com a explicação, e comenta que “é bom
pesquisar, pois assim vai aprendendo estas coisas”. (Nota de campo,
mar. 2018. Evento n. 93).

O conteúdo de (6) convoca a colocar sob escrutínio outro movimento rea-


lizado no campo de estudo, constituído pela colaboração docente na etapa de
coleta de dados. Até aqui, o foco recaiu sobre o processo no qual os estudantes
selecionam por sua própria conta o material para leitura, mas a partir da nota
de campo em menção infere-se que os representantes da proposta, os quais, em
tese, carregam consigo a responsabilidade de promover o movimento entre o não
saber e o saber, incidem pontualmente na seleção de textos para leitura discente.
Ainda que a referida nota de campo trate de uma situação isolada, quando o aces-
so à internet wi-fi esteve limitado aos estudantes em razão de um problema téc-
nico, torna-se pertinente colocar luz sobre o que é disponibilizado a alguns deles.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Como se narra em (6), Laís recebe dois materiais cujas fontes são sites
que contêm textos que podem ser classificados como de ‘vulgarização científica’,
entendendo que, apesar de serem constituídos de conteúdos vinculados à esfe-
ra científica, são simplificados – no que se refere à sua estrutura e organização
(BRITTO, 2012) –, objetivando uma compreensão mais imediata por parte do
leitor. Diante disso, importa problematizar que, quando os representantes da
proposta disponibilizam os textos para os estudantes, parecem também o fazer
à luz do cotidiano. Uma explicação possível quanto à razão desse delineamento
deriva do formato assumido por meio da pesquisa como princípio educativo: em
havendo um processo no qual os docentes são solicitados a circular no atendi-
mento aos estudantes em suas diferentes pesquisas, sem que tenham um tempo
mais estendido de interlocução com os educandos, talvez optem pela seleção de
textos de cuja compreensão leitora esses estudantes, em tese, possam dar conta
sozinhos, sem intervenção. Em procedendo, porém, essa inferência docente, urge
um novo escrutínio com base em (6): apesar de Laís receber textos de conteúdo
informativo, cuja configuração composicional sugere ‘vulgarização científica’, a
aluna depara-se com conceitos dos quais não se apropriou, de maneira que sua
leitura, contrariando expectativas dos representantes da proposta, não prescin-
de da interlocução com o ‘outro mais experiente’, a cooperação sistemática entre
estudante e professor (VYGOTSKI, 2014 [1934]).

Coloca-se um obstáculo, assim, para que Laís possa compreender o conteú-


do dos textos mencionados em (6) e, de modo geral, o seu tema de pesquisa, ‘guerra
na Síria’, sem que entenda a própria organização temporal da História. Pertinente
evocação a Saviani (2013 [1991], p. 123) se faz aqui, para quem os “[...] conteúdos
históricos sempre serão importantes e, de certo ângulo, determinantes, porque é
pelo caminho deles que se apreende a perspectiva histórica, o modo de situar-se
historicamente”. Infere-se, entretanto, que, apesar da explicação dada à estudan-
te e de sua postura assertiva durante a cena em menção, a pontualidade com que
foi dado o tratamento ao conceito de ‘tempo histórico’ ou de ‘números romanos’
limita, em grande medida, uma efetiva apropriação conceitual – sobre o desenvol-
vimento do conceito, Vygotsky (2014 [1934], p. 169, tradução minha) registra que
ele surge “[...] quando uma série de atributos que foram abstraídos se sintetizam
de novo e quando a síntese abstrata conseguida desse modo se converte na forma

359
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

fundamental do pensamento, através da qual a criança percebe e atribui sentido


à realidade que a rodeia7”.

Fundamentando-nos nessa perspectiva vygotskyana, considera-se que,


para uma apropriação conceitual se efetivar, é demandada uma organização sis-
temática no percurso educativo – eis a necessária continuidade no processo es-
colar. Em (6), está registrado o enunciado elogioso de Laís em torno da pesquisa,
de maneira que a estudante parece considerar que esse processo possibilitou que
ela tivesse contato com os conceitos em questão, como os ‘números romanos’, en-
tretanto parece certo que, diferentemente do que é apontado por ela – “é bom
pesquisar, pois assim vai aprendendo estas coisas” –, neste caso, não é da pesquisa
em si, ou da leitura do texto em si, que deriva tal ‘aprendizagem’ (as aspas se jus-
tificam pela inferência de que não houve formação de conceitos de fato), mas da
interlocução docente, ainda que bastante pontual e, por isso, inequivocamente
aplanada.

Outro exemplo do que se tem discutido está na Figura 2 a seguir, que traz o
registro fotográfico do caderno de Natália, no qual a estudante afixou o texto que
lhe foi entregue por um dos representantes da proposta para sua pesquisa sobre
empoderamento:

Figura 2. Caderno de pesquisa de Natália


Fonte: registro da pesquisadora

O texto que aparece na Figura 2, apesar de materializado no gênero do


discurso ‘artigo de opinião’, apresenta períodos curtos, com o uso de linguagem
7 El concepto surge cuando una serie de atributos que han sido abstraídos se sintetizan de nuevo
y cuando la síntesis abstracta conseguida de ese modo se convierte en la forma fundamental del
pensamiento, a través de la cual el niño percibe y atribuye sentido a la realidad que le rodea.

360
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

coloquial, com a presença de gírias, e isso provavelmente se dê por conta não só


do seu meio de circulação, mas também pelo próprio conteúdo, voltado, ao que
parece, ao público jovem. Intitulado “Ser malandra não é ser empoderada8”, o ar-
tigo é assinado por uma autora que se identifica como arquiteta e ativista femi-
nista negra, a qual problematiza aspectos relacionados à postura de uma cantora
brasileira. Não há a pretensão, aqui, de focalizar o texto em si; o que importa é,
na relação com o que já foi discutido à luz da Figura 1 anterior, sinalizar como o
campo deste estudo se organiza de maneira que circunscreve a leitura discente a
textos que se aproximam da linguagem cotidiana, distanciando-se do que, na ótica
de Duarte (2018, p. 72), é o objetivo específico da escola: lidar com os conheci-
mentos “[...] que superam, por incorporação, o senso comum, o saber cotidiano,
isto é, [...] as ciências naturais e sociais, as artes e a filosofia em suas manifestações
mais ricas e desenvolvidas”.

O que se tem problematizado, assim, não é a estrutura dos textos em si, de


modo isolado – discorda-se de qualquer posicionamento que exclui na origem a
abordagem de textos na esfera escolar nos quais se utilize a linguagem coloquial
ou de textos que se delineiem pela ‘vulgarização científica’. É justamente a cir-
cunscrição a esses textos o que se problematiza, considerando que os estudantes,
ao serem convocados a coletar dados, o farão à luz da experiência mais imedia-
ta; seriam oportunizados, assim, outros tipos de leitura caso a escola instigasse/
facultasse os/aos estudantes a terem acesso a gêneros do discurso com configu-
rações outras, para além dos usos do cotidiano discente. Importa sublinhar os
custos desse movimento, já que ele implicaria um tempo maior de interlocução
entre docentes e estudantes, objetivando que haja, de fato, no processo de leitu-
ra, “construção de significados, mudanças de significados, atribuição de sentidos
[...]” (GERALDI, 2010, p. 112).

Para encerrar as discussões analíticas desenvolvidas neste artigo, repor-


ta-se a Duarte (2016, p. 140), que traz uma contribuição bastante pertinente em
relação ao que foi focalizado, depreendendo-se, pois, que, na pesquisa como prin-
cípio educativo tal qual se coloca no campo deste estudo, prevalecem as lides com
informações pontuais e muitas vezes dispersas, distanciando-se do movimento
constitutivo do conhecimento:

8 Disponível em: http: //www.justificando.com/2018/03/20/ser-malandra-nao-e-ser-empodera-


da/. Acesso em: 10 dez. 2018.

361
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

É importante não esquecer a distinção entre informações e co-


nhecimento. Aquelas fazem parte deste, mas este não se reduz a
elas. O conhecimento organiza-se em sistemas conceituais cujo
domínio é adquirido por meio de processos que só raramente
acontecem na vida cotidiana. Cabe à escola a produção delibe-
rada desses processos e a condução dos alunos pelas sendas do
saber sistematizado. Somente assim as pessoas estarão em con-
dições de se apropriar constantemente do conhecimento, dispo-
nível em qualquer tipo de fonte.

Em não havendo, por parte da escola, essa produção deliberada de proces-


sos sistematizados, o movimento que se espera fecundo nessa esfera, a transição
entre o não saber e o saber, para o qual a leitura é central, torna-se, então, lacunar.

Últimas considerações

Por meio de uma análise que enfocou o processo de leitura na pesquisa


como princípio educativo da Educação de Jovens e Adultos de Florianópolis/SC,
enfatizam-se as inquietações decorrentes de um percurso escolar que, em pre-
valecendo o espontaneísmo, incide insuficientemente na aprendizagem dos estu-
dantes, para a qual é necessária a apropriação conceitual. Tomada a leitura como
central sobretudo para o cumprimento das etapas de pesquisa, observa-se no
campo deste estudo uma organização pedagógica em que ‘ler’ é verbo sem com-
plemento e, portanto, ação desvinculada de seu profundo potencial formativo,
enfraquecendo-se como processo instrumentalizador em vistas da apropriação
de conceitos e, portanto, em vistas da transição entre o não saber e o saber.

Referências

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362
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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363
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS
INFANTOJUVENIS NO COMBATE AO
RACISMO1

Antonio Carlos Valentini2


Vera Rodrigues3
Laura Tacca4
Siderlene Muniz-Oliveira5

RESUMO: O racismo está presente em diversas instituições. Nas instituições


educacionais não é diferente. A contação de histórias surge, nesse contexto,
como um meio fundamental para a discussão da problemática racial presente na
educação básica, valendo-se da literatura infantojuvenil negra e propiciando a re-
presentatividade do “ser negro”. Este estudo tem como objetivo reflexões a fim de
ressignificar a construção da identidade negra, valorizando a cultura africana – e
a negritude – com sensibilização e, posterior, conscientização. O método utilizado
é o bibliográfico, o qual consiste em pesquisar e selecionar artigos científicos que
já versaram sobre o tema abordado a fim de embasar e atingir o objetivo propos-
to. A contação de histórias sobre a temática da diversidade étnico-racial – como
a da Boneca Abayomi – estimula a reflexão, contribui no combate ao racismo e

1 Este estudo está vinculado ao projeto de extensão “Contação de histórias numa abordagem
multidisciplinar: desenvolvimento de capacidades de linguagem”, coordenado pela Prof.ª Drª.
Siderlene Muniz-Oliveira da UTFPR-DV, PPGL-PB.
2 UTFPR - Campus Pato Branco. antoniocarlosvalentini@alunos.utfpr.edu.br
3 UTFPR - Campus Pato Branco. verarodrigues@alunos.utfpr.edu.br
4 UTFPR - Campus Pato Branco. laurar.2000@alunos.utfpr.edu.br
5 UTFPR - Campus Dois Vizinhos. smoliveira@utfpr.edu.br

364
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

fortalece vínculos sociais e educativos e o respeito às diferenças. Podemos cons-


tatar que a Lei nº 10639/03 efetiva essa valorização, legitimando as narrativas
do povo africano. Ademais, discutir esse tema complexo de maneira lúdica e leve
propicia à criança negra ter sua autoestima elevada e sua identidade reconhecida.
À vista disso, trazer à tona a discussão sobre a importância da inserção da conta-
ção de histórias da literatura infantojuvenil negra no contexto escolar é sempre
relevante e necessário, considerando que coloca a criança em sua posição de di-
reito: a de destaque. Afinal, partindo dos resultados obtidos através de discussões
teóricas, bem como da experiência da contação de uma história com a temática
da diversidade étnico-racial, comprova-se que a contação é uma importante fer-
ramenta que podemos utilizar com as crianças para poder abordar as questões
dantes mencionadas, desde cedo.

PALAVRAS-CHAVE: Contação de histórias; Literatura infantojuvenil negra;


Diversidade étnico-racial.

ABSTRACT: Racism is present in several institutions. In educational institutions, it isn’t


different. Storytelling appears, in this context, as a fundamental means for discussing
the racial issue present in basic education, drawing on black children’s literature and
providing the representation of “being black”. This study aims to reflect in order to re-
-signify the construction of black identity, valuing African culture – and blackness – with
sensitization and, later, awareness. The method used is the bibliographic, which consis-
ts of researching and selecting scientific articles that have already dealt with the topic
addressed in order to support and achieve the proposed objective. Storytelling on the
theme of ethnic-racial diversity – such as that of Abayomi Doll – encourages reflection,
contributes to the fight against racism and strengthens social and educational bonds
and respect for differences. We can see that Law nº 10639/03 effects this valorization,
legitimizing the narratives of the African people. Furthermore, discussing this complex
topic in a playful and light way allows black children to have their high self-esteem and
their identity recognized. In view of this, bringing up the discussion about the impor-
tance of inserting the storytelling of black children’s literature in the school context is
always relevant and necessary, considering that it places the child in its rightful posi-
tion: the prominent one. After all, starting from the results obtained through theoretical
analyzes, as well as from the experience of telling a story with the theme of ethnic-racial
diversity, it is proved that the storytelling is an important tool that we can use with chil-
dren to be able to address the issues mentioned earlier, from an early age.

KEYWORDS: Storytelling; Black children’s literature; Ethnic-racial diversity.

365
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Introdução

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a importância da contação


de histórias infantojuvenis como meio de combate ao racismo a fim de ressignifi-
car a construção da identidade negra, valorizando a cultura africana – e a negritu-
de – com sensibilização e, posterior, conscientização.

A justificativa para a realização de ponderações sobre a temática da diver-


sidade étnico-racial está no entender como a contação de histórias pode ser utili-
zada como ferramenta capaz de disseminar conhecimentos e provocar reflexões
sobre o assunto.

Nesse sentido, abordaremos os seguintes pressupostos teóricos: Contação


de histórias; Literatura infantojuvenil negra; Diversidade étnico-racial; Combate
ao racismo; Ética afroperspectivista; Infancialização; Lei nº 10639/03 (BRASIL,
2003); e Lei nº 11645/08 (BRASIL, 2008).

Após isso, apresentaremos os procedimentos metodológicos utilizados


nesta pesquisa e, por fim, exibiremos os resultados obtidos através das análises
teóricas, bem como sobre a experiência da contação de uma história com a temá-
tica da diversidade étnico-racial como meio de combate ao racismo, e as conclu-
sões depreendidas.

Pressupostos teóricos

O racismo é o negar ao negro o direto de ascender socialmente; é o negar


ao negro direitos básicos como cidadãos dotados de direitos. Quando olhamos e
confrontamos determinados indicadores sociais, tais como: saúde, moradia, em-
prego, educação, justiça e quaisquer outros, percebemos que a população negra
está sempre em desvantagem. Assim, pode-se perceber que há uma desigualdade
racial que influencia na desigualdade social (MARCOS; MALAFAIA, 2018).

Segundo Marcos e Malafaia (2018), há uma tensão quando pensamos a


educação básica e a questão racial; existe uma violação de direitos no que tange
ao acesso ao conhecimento da história, ancestralidade e valorização da identida-
de racial. Nesse contexto, deixar que o outro conte a história do negro impede a
percepção do protagonismo e luta deste povo.

366
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Nogueira e Barreto (2018) defendem que a educação deve servir como um


modo de resistir ao esquecimento da infância. Dessa forma, apostar na incorpo-
ração da ética afroperspectivista – que visa a inclusão de vozes africanas e ame-
ríndias nas áreas de filosofia e educação – pela escola é um meio de propagar a in-
fancialização. Nogueira e Barreto (2018, p. 627) entendem como infancialização
a “maneira de perceber na infância as condições de possibilidade de invenção de
novos modos de vida. ”

Com relação à afroperspectividade, ela pode ser definida como o colocar-


-se no lugar do outro, ou seja, ver sobre o ponto de vista de africanos e indígenas:
encarando os problemas como esses indivíduos encaram (NOGUEIRA; BARRETO,
2018). Ainda de acordo com Nogueira e Barreto (2018), a infância pode ser com-
preendida a partir do contexto de ubuntu, no qual ubuntwana quer dizer infân-
cia enquanto agente capaz de afetar e provocar o encantamento diante da vida.
“Ubuntwana é assumir a infância como um sentido que propicia que encaremos a
realidade como um território de contínua produção, instável e passível de refor-
mulações e ressignificações” (NOGUEIRA; BARRETO, 2018, p. 632).

No âmbito educacional, o uso de metodologias diferenciadas contribui


para a motivação e participação dos alunos. Uma dessas ferramentas é a contação
de histórias, que pode ser utilizada como meio para tratar de temas importantes
como a diversidade étnico-racial (LIMA, SILVA e FALCÃO, 2017).

Considerando isso, Lima, Silva e Falcão (2017, p. 128) destacam a impor-


tância da contação de histórias da literatura infantojuvenil negra, afirmando que,
histórias como a da Boneca Abayomi, “além de serem encantadoras, elas se co-
locam como elemento de afirmação das raízes da cultura brasileira e também do
poder e determinação das mulheres negras. ”

Procedimentos metodológicos

A fim de realizar estas reflexões, partimos para o método bibliográfico e


selecionamos artigos científicos que já versaram sobre o tema em questão. Os
artigos utilizados como objetos de pesquisa foram: “Discussão sobre racismo
a partir da contação de história infantojuvenil negra” (MARCOS; MALAFAIA,
2018); “Diversidade étnico-racial através da contação de histórias” (LIMA; SILVA;
FALCÃO, 2017); e “Infancialização, Ubuntu e Teco Porã: elementos gerais para
educação e ética afroperspectivistas” (NOGUERA; BARRETO, 2018).

367
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Além disso, visando aliar teoria e prática, trazemos, como metodologia se-
cundária, uma menção a uma experiência com uma gravação de uma contação de
história, que faz parte do projeto de extensão mencionado, com a temática da di-
versidade étnico-racial – sendo o público alvo crianças pequenas –, como exemplo
de ações que podem também ser realizadas sobre essa questão.

Ressaltamos que a contação foi realizada através de vídeo devido ao con-


texto pandêmico em que nos encontramos no momento (2020), pois sabe-se que
os professores e/ou contadores precisam reinventar-se e adaptar-se para que a
disseminação do conhecimento transmitido pelas histórias continue ocorrendo.

Discussão e relato de uma contação de história

Diante de impasses raciais, de valorização da cultura, estética e tudo que


representa o branco e sua brancura; e, em contrapartida, a inferiorizarão do negro
explícita, pode-se pensar e problematizar como se dá a construção da identidade
das crianças pertencentes a essa etnia; pois, assumir a identidade negra no Brasil
pode ser um processo extremamente doloroso, uma vez que os modelos ditos po-
sitivos da identidade negra são pouco divulgados se comparados aos modelos de
pessoas brancas (MARCOS; MALAFAIA, 2018).

Essa condição ocorre devido a todo um processo de colonização, escravi-


zação e pós-abolição. Desde o período colonial, são criados os aspectos subjeti-
vos de inferiorização que foram conferidos pelos colonizadores. Antes da colo-
nização, não havia “negros”, apenas africanos de diferentes lugares e culturas. É
a partir da colonização que o africano perde sua individualidade física, cultural e
social e todos passam a ser considerados, pejorativamente, como “negros”. Nessa
perspectiva, Marcos e Malafaia (2018) ressaltam que houve e ainda há feridas
psíquicas causadas pela colonização e pela escravização implantada (a partir de
1530). Também, a catequização inferida aos povos africanos, promovida pelas
missões católicas no período da colonização, foi imposta ao negro de forma brutal
e violenta.

Com a abolição da escravatura (1888), os africanos e seus descendentes fo-


ram abandonados na sociedade, sendo obrigados a sobreviver sem que políticas
públicas tivessem sido construídas em prol dessa população. A abolição teve, nes-
se sentido, um caráter extremamente cruel e, com a dissolução do regime servil, o
negro foi expulso do sistema de relações de produção. Assim, Marcos e Malafaia

368
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

(2018) revelam que, apesar de ter existido uma “abolição”, nenhum suporte foi
dado ao negro para continuar sua caminhada.

Contudo, a partir da Constituição Cidadã de 1988 (BRASIL, 2018), os direi-


tos de todos os cidadãos começaram a ser acatados de forma mais concreta. Anos
depois, a Lei nº 10639/03 vem para efetivar a valorização e legitimação das narra-
tivas do povo negro; para estabelecer diretrizes e bases para a educação nacional,
ressaltando a importância do ensino da cultura negra nas escolas. Assim, a Lei n°
10639/03, que aponta a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-
brasileira, apresenta-se lutando por uma questão de fundamental importância
para o fortalecimento das identidades étnicas afro-brasileiras, do efeito histórico
afirmativo junto à população brasileira e da valorização da contribuição econô-
mica, cultural e social dos negros no processo de formação nacional (MARCOS;
MALAFAIA, 2018).

Para mais, os autores aludem que, sob as diretrizes da Lei nº 11645/08, a


qual altera a Lei n° 10.639/03, é ressaltada a importância da legitimação das nar-
rativas dos povos que atuaram na formação do povo brasileiro, incluindo o ensino
da História e Cultura Indígena. Então, essa lei é de grande valia, um grande passo
para esse processo de reconhecimento que pode ajudar a combater o racismo.

Além disso, Marcos e Malafaia (2018) reportam que, apresentando uma


literatura vasta e eclética, não apenas histórias de príncipes e princesas que se
passam em outra realidade, mas algo que se aproxime de suas vidas, algo que pos-
sa contribuir com a construção de uma identidade coerente com suas narrativas,
as crianças são provocadas a conhecer mais sobre suas culturas e também sobre
outros povos e culturas. Dessa forma, ao legitimar a lei citada anteriormente – vi-
sando apresentar o conhecimento e a história dos povos africanos –, há uma valo-
rização de sua diversidade cultural e de suas influências na construção do país; e,
mostrando o enfrentamento das formas de racismo (deve ser mostrado e traba-
lhado), propõe-se garantir o direito de aprender e a equidade educacional com a
finalidade de gerar uma sociedade mais igualitária, justa e solidária.

Com a contação de história infanto-juvenil negra, propomos


apresentar novas narrativas e oportunizar uma sensação de
conforto frente à opressão dos padrões estéticos ideológicos –
cor branca, cabelo liso, olhos claros, nariz e lábios finos – além
de apontar possíveis representatividades negras. (MARCOS;
MALAFAIA; 2018, p. 12).

369
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Buscamos utilizar a contação de histórias de literatura infantojuvenil negra


neste trabalho com esse intuito, visto que os autores ainda revelam que um tex-
to narrado amplia caminhos para a elaboração de personagens cujas identidades
e conflitos aproximam-se do ouvinte. O ouvinte, assim, depara-se com situações
vividas pelas personagens. Essas situações provocam sensações, reflexões e for-
mas de identificação que acrescentam valores na consciência do leitor, gerando
um conhecimento ético e estético, representação, reconhecimento agradável das
próprias identidades. “Ao trazer literaturas infantojuvenis negras, as crianças têm
a possibilidade de olhar para as personagens e identificar-se com novas figuras
positivadas” (MARCOS; MALAFAIA, 2018, p. 13). Outrossim,

arte passa a ser não só o escudo, mas a metáfora necessária para


a criança entender o mundo e até se proteger das desventuras
da vida. A arte passa não só a ter um valor como a ser um valor.
Assim, usamos a arte de contar histórias como ferramenta para
orientar, de forma lúdica, temáticas complexas e nomear violên-
cias sofridas cotidianamente e juntos podemos entender suas
diferenças e também pensar possíveis estratégias de combates
às diferentes opressões no meio deles. (MARCOS; MALAFAIA,
2018, p. 14).

Logo, ao discutir a questão racial de maneira lúdica e leve, através da con-


tação de histórias, da arte, possibilita-se à criança negra ter sua autoestima eleva-
da e sua identidade reconhecida. Ao apresentar para as crianças negras histórias
protagonizadas por negros, colaboramos com uma identificação.

Do mesmo modo, partindo da abordagem da ética afroperspectiva – a qual


Nogueira e Barreto (2018) apontam que deve ser utilizada pela escola em favor
do que denominam de infancialização, a qual é perceber na infância as condições
de invenção de novos modos de vida –, defendemos a utilização da contação de
histórias infantojuvenis que abordem temas de diferentes culturas, como forma
de combate ao racismo, no sentido em que esta possibilite à criança visualizar e
identificar-se com diferentes modos de vida.

A contação de histórias sobre a temática da diversidade étnico-racial –


como a da Boneca Abayomi – estimula a reflexão, contribui no combate ao racismo
e fortalece vínculos sociais e educativos e o respeito às diferenças (LIMA; SILVA;
FALCÃO, 2017). Na figura abaixo, podemos visualizar exemplos de Abayomis

370
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

feitas a partir de retalhos6, assim como as bonecas feitas pelas mães negras com
pedaços das próprias saias no intuito de acalentar os filhos em meio ao caos dos
navios negreiros.

Figura 1. bonecas Abayomis.


Fonte: Rodrigues (2019).

Lima, Silva e Falcão (2017) relatam que, a partir da contação de história


da Abayomi, foi possível desconstruir o preconceito e o racismo. Os alunos de-
monstraram interesse ao participarem e colaborarem no próprio aprendizado em
atividades nas quais o preconceito e o racismo perderam a vez.

Nesse contexto, trazer a perspectiva de quem enfrenta a realidade de ser


uma pessoa negra em uma sociedade na qual o preconceito é velado, é oportu-
nizar à criança colocar-se no lugar do outro. Conforme ressaltam Lima, Silva e
Falcão (2017), as crianças não nascem preconceituosas, mas são influenciadas

6 Essas bonecas foram feitas em um curso na UTFPR, Pato Branco, em 2019, que teve como parti-
cipante a segunda autora deste trabalho, que fez uma das Abayomi. Curso: “Educação como prá-
tica de transformação: o grito do quilombo”, no evento: “Vozes e olhares da cultura negra”, reali-
zado pelo curso de Licenciatura em Letras Português-Inglês da UTFPR, Campus Pato Branco, em
18/11/2019. O curso foi ministrado pelas professoras Carmem Waldow (IFPR) e Maria Isabel
Cabral da Silva (Unioeste).

371
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

pela convivência com os adultos. Abordar essa temática e descaracterizar os fa-


tores negativos que a envolvem é o papel social da escola.

A fim de ilustrar um tipo de ação que pode ser realizada sobre a temáti-
ca em discussão, trazemos uma experiência que tivemos com uma encenação de
uma contação de história envolvendo o tema “racismo”, que foi gravada e editada
para posterior exibição para crianças em alguma ação futura do projeto de ex-
tensão mencionado, do qual esta contação faz parte. Nessa experiência, pudemos
perceber que a contação de história é uma forma de incentivar a leitura e trazer
reflexões sobre o tema proposto, como, por exemplo, a discussão racial, que le-
vanta grandes debates e faz com que o leitor tenha um ponto de vista empático
sobre a temática: sobre a realidade do outro.

Nesta experiência, foi escolhida a história Menina Bonita do Laço de Fita da


escritora ilustre e renomada Ana Maria Machado (1986). Na contação, procurou-
-se compreender os recursos para contar, como prender a curiosidade e atenção
de uma forma lúdica, abordando o tema de acordo com a idade das crianças, além
de utilizar-se de linguagem corporal e uso da voz de forma adequada. Dessa for-
ma, a história não só causa sensibilidade em quem a escuta, mas também em quem
a conta.

Figura 2 . Contação da história “Menina Bonita do Laço de Fita”.


Fonte: acervo nosso (2020).

372
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Menina Bonita do Laço de Fita trata de duas personagens protagonistas: um


coelho branquinho e uma menina negra. O coelho gostaria de ser pretinho como a
menina do laço de fita. Em quantas histórias vemos protagonistas negros? A nossa
realidade social ainda é muito fechada e pouco diversificada, não tendo, muitas
vezes, espaço para o negro. Com a literatura infantojuvenil negra, conseguimos
dar destaque a alguns autores e histórias sobre esse tema tão importante.

Antes da Constituição Cidadã (BRASIL, 2018), a sociedade pouco conhecia


esta representatividade negra e nós, como futuros educadores, sabemos da sua
importância para as crianças – as quais irão pensar sobre sua descendência – e te-
mos que incentivá-las para a formação de um país mais igualitário a todas as raças.

Considerações finais

Podemos perceber “a violência do processo histórico racial, como esta in-


terfere na autopercepção do sujeito negro e, ainda, afeta diretamente a autoes-
tima de crianças, adolescentes, jovens e adultos negros” (MARCOS; MALAFAIA,
2018, p. 14). Ademais, “ao contar histórias com o protagonismo negro, coopera-
mos com a construção de uma identidade coerente com a história, corpo e cultura
do negro” (MARCOS; MALAFAIA, 2018, p. 15).

Nesse sentido, trazer à tona a discussão sobre a importância da inserção


da contação de histórias da literatura infantojuvenil negra no contexto escolar é
sempre relevante e necessário. Assim, é papel social da escola, enquanto agente
de criação e difusão do conhecimento, proporcionar aos alunos a possibilidade de
contato com as diferentes expressões literárias dos diferentes povos existentes:
contribuindo para o combate a qualquer tipo de exclusão.

Apesar do processo de construção da identidade negra ser complexo, há


esperança para a ressignificação da cultura e estética do negro, com sensibiliza-
ção e, posterior, conscientização e valorização; visto que “a reconstrução do ‘ser
negro’ atravessa a estruturação política e a sua identidade sociocultural, através
de um processo de conscientização e valorização da negritude bem como nos em-
penhamos no projeto. As histórias contadas fomentam o conhecimento a respeito
de outros povos e culturas, mas especificamente da cultura africana” (MARCOS;
MALAFAIA, 2018, p. 15).

É importante ressaltar que essa prática também garante, ainda que de


forma mínima, a aplicação da Lei nº 10639/03 (alterada pela Lei nº 11645/08).

373
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Assim, percebemos que a contação de histórias de literatura infantojuvenil negra


pode gerar o sentimento de identificação com as personagens, apontando para
a desconstrução de padrões ideológicos, estéticos e intelectuais hegemônicos:
ampliando a percepção sobre a beleza do corpo negro.

A contação de histórias é, portanto, uma ferramenta lúdica e dinâmica que


auxilia no processo de combate ao racismo, proporcionando o contato e a refle-
xão sobre o que é “ser negro” e sua importância para a sociedade. Por isso, ressal-
ta-se que inserir a voz do negro sobre suas histórias e desafios, contadas a partir
da literatura infantojuvenil negra, é um meio importante de abordar desde cedo
essa temática para que as crianças, que são portadoras da capacidade de colocar-
-se no lugar do outro e de criar novos modos de vida, compreendam que todos
somos seres humanos únicos e fundamentais para a sociedade.

Referências

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374
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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2020.

375
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

DENOMINAÇÕES PARA ‘BOLA DE GUDE’


NO PARANÁ E EM PERNAMBUCO: UM
ESTUDO CONTRASTIVO BASEADO EM
ATLAS LINGUÍSTICOS

Edmilson José de Sá 1

RESUMO: Este artigo tem o propósito de apresentar um estudo de variação lin-


guística de natureza lexical de modo a verificar as denominações que um determi-
nado item possui numa comunidade de fala. Para tanto, serão usados os corpora
coletados para a composição do Atlas Linguístico do Paraná II, originário da tese
de Doutorado defendida por Altino (2007) e do Atlas Linguístico de Pernambuco,
proveniente da tese de Doutorado defendida por Sá (2013), produtos de investi-
gações realizadas em pontos de inquérito que permitiram documentar as marcas
dialetais dos dois estados tanto de cunho fonético, quanto léxico. Por ora, serão
analisadas as respostas da carta 311 referente à pergunta 307 do questionário
aplicado no primeiro Atlas Linguístico do Paraná (AGUILERA, 1994) e as respos-
tas da carta 39 da pergunta 156 do Questionário Semântico-Lexical (ALIB, 2001)
aplicado nos inquéritos realizados em Pernambuco: ‘como se chamam as coisi-
nhas redondas de vidro com que os meninos gostam de brincar?’, pertencente ao
campo semântico jogos e brincadeiras infantis. Por meio da exposição das res-
postas, será apresentado um estudo geolinguístico sobre as denominações mais
ressaltantes, favorecendo comparações com trabalhos já concretizados sobre o
mesmo item lexical. Inspirando-se em Cardoso e Ferreira (1994) e em Cardoso

1 Centro de Ensino Superior de Arcoverde (CESA). edjm70@gmail.com

376
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

(2010), pretende-se refletir sobre os estudos lexicais dentro da Dialetologia e da


Geolinguística e baseando-se nas denominações para ‘bola de gude’, no intuito
de compreender um pouco melhor do português falado no Nordeste e no Sul do
Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Dialetologia; Pernambuco; Paraná; Bola de gude.

ABSTRACT: This article aims to present a study of linguistic lexical variation to check the
names that a particular item has in a community. For this, the corpora collected for the
construction of the Linguistic Atlas of the Paraná II, originated of a Doctorate thesis de-
fended by Altino (2007) and the Linguistic Atlas of Pernambuco from a Doctorate thesis
defended by Sá (2013) will be used. They are products of investigations carried out in
points of investigation that allowed document the dialect marks of the two States both
in phonetic nature and in lexicon one. For now, the answers of the map 311 regarding
the question 307 of the questionnaire applied in the first Linguistic Atlas of the Paraná
(AGUILERA, 1994) will be analyzed. The answers of the map 39 belonging to question
156 of the Semantic-Lexical Questionnaire (ALIB, 2001) applied in Pernambuco: ‘What
are the round glass little things that boys like to play with?’2, belonging to the semantic
field children’s games. With the answers, a diatophical study on the most relevant de-
nominations will be presented, allowing comparisons with other works already carried
out on the same lexical item. Inspiring in Cardoso and Ferreira’s (1994) and Cardoso’s
(2010) theoretical assumptions, it is intended to reflect on the lexical studies within
Dialectology and Geolinguistics and based on the variation of the lexical item ‘mar-
ble’ (bola-de-gude) to understand a little better about the Portuguese language in the
Northeast and in the South of Brazil.

KEYWORDS: Dialectology; Pernambuco; Paraná; Marble.

Introdução

Estudos que descrevem a língua quanto à pronúncia, ao vocabulário e as-


pectos morfossintáticos fazem parte com maior recorrência nas mesas dos pes-
quisadores. Por um lado, explicam esses processos pela Sociolinguística, cuja res-
ponsabilidade aponta para a variação social, calcada na interferência de fatores
diastráticos; pela Dialetologia, usando o método geolinguístico em que as varie-
dades fonéticas, léxicas e morfossintáticas são explicadas sob a égide regional ou

2 Como se chamam as coisinhas redondas de vidro com que os meninos gostam de brincar?

377
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

geográfica; a partir da Etnolinguística, explica-se a variação no âmbito antropoló-


gico em que se relaciona a língua à cultura de quem a fala.

Por ora, aspira-se, aqui, cotejar a variação para ‘bola de gude’, distribuída
nos Estados do Paraná e de Pernambuco, selecionado do campo semântico jogos
e brincadeiras infantis. In limine, acredita-se na conveniência de se expor estudos
de variação regional de natureza lexical e alguns estudos já concluídos sobre o
referido item lexical, antecedendo a análise que tecerá a comparação das deno-
minações nos estados de Pernambuco e Paraná, apresentando as semelhanças e
disparidades.

Descrição metodológica dos atlas selecionados

Um dos corpora utilizados para este trabalho adveio do segundo Atlas


Linguístico do Paraná (ALPR), construído como Tese de Doutorado por Fabiane
Altino e orientado pela professora Vanderci Aguilera, então elaboradora do pri-
meiro atlas do mesmo estado.

Para organizar o ALPR II, a autora usufruiu das respostas para 54% das
questões aplicadas e não cartografadas no IAtlas Linguístico do Paraná usando, en-
tão, os mesmos procedimentos metodológicos. Além de 3 cartas de apresentação,
esse atlas possui 50 cartas fonéticas, 125 cartas léxicas, além de duas cartas dia-
lectrométricas, pioneiras nos atlas brasileiros. Esse aspecto consistiu na apresen-
tação dos índices relativos de distância (IRD) e dos índices relativos de identidade
(IRI), com base no léxico falado no Paraná.

Entre as cartas léxicas, a carta 311 registrou as denominações para ‘as bo-
linhas de vidro que as crianças usam para brincar’.

O Atlas Linguístico de Pernambuco (ALiPE) consistiu, por sua vez, na pesquisa


em 20 pontos de inquérito, em que foram aplicadas questões a quatro informan-
tes por município, distribuídos igualitariamente quanto ao sexo com pessoas de
18 a 30 anos e de 50 a 65 anos e escolaridade inferior ao quinto ano do ensino
fundamental (antiga quarta série), acrescentando informantes de curso superior
completo apenas na capital do Estado.

Essa distribuição permitiu que fossem selecionados informantes de todos


os cantos do Estado, usando os parâmetros de Ferreira e Cardoso (1994), o que
favoreceu a percepção dos aspectos históricos, da realidade socioeconômica e da
importância do município para o Estado.

378
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Após a triagem das denominações mais proeminentes, foram construídas 6


cartas introdutórias e 105 cartas linguísticas, das quais 50 apresentam a variação
fonética, 47 expõem a heterolexicalidade e 8 apresentam a variação morfossintá-
tica. Dentre as cartas semântico-lexicais construídas, a escolha para esta análise
partiu da verificação das denominações dispostas na carta 39, com as denomina-
ções requisitadas pela Questão 156 sobre as ‘coisinhas redondas de vidro com
que os meninos gostam de brincar’.

Estudos geolinguísticos de base lexical

Ao se valer da dimensão diastrática, estuda-se a interferência de elementos


sociais na fala espontânea, recorrendo-se à sociolinguística, que, normalmente, a
partir de estudos estatísticos, verificam-se os índices probabilísticos de favoreci-
mento ou inibição de fatores como sexo, faixa etária e escolaridade.

No caso da Dialetologia, as ocorrências captadas em pesquisas realizadas


em comunidades, cidades ou estados são selecionadas para cartografação, ou
seja, usufrui-se do método cartográfico para que a variação seja distribuída em
mapas, constituindo-se, por esse motivo, de um método geolinguístico, que per-
mite a elaboração de estudos de variedade regional.

Esse método, no fim dos anos cinquenta, ainda não era tão recorrente no
Brasil como era na Europa na mesma época. Foi, então, a ideia pensada e docu-
mentada por Nascentes (1958), que almejava descrever detalhadamente o portu-
guês brasileiro, que o método começou a ganhar destaque. Mal sabia o linguista
que o sonho em distinguir os falares brasileiros em mapas estava distante de se
tornar realidade. Mesmo assim, ao sugerir em suas Bases para a elaboração do Atlas
Linguístico de Brasil que o trabalho em nível nacional foi adiado e desse lugar a pes-
quisas mais regionais, ele assim argumentou:

[...] embora seja muito vantajoso um atlas feito ao mesmo tem-


po no país inteiro, pois o fim não é muito distanciado do início,
os Estados Unidos, país vasto com belas trilhas, preferiram a
elaboração de atlas regionais, para uni-los depois no atlas geral.
Igualmente nós deveríamos fazer isto em nosso país que também
é vasto. (NASCENTES, op cit, p. 07).

O trabalho pioneiro de natureza regional foi conferido à equipe do pro-


fessor Nelson Rossi em 1963. O seu Atlas Prévio dos Falares Baianos – APFB tem,

379
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

então, inspirado muitos pesquisadores nacionais e internacionais na construção


de outros produtos de pesquisa geolinguística.

Depois do atlas baiano, outros atlas tiveram seu lugar de destaque: o Esboço
de um Atlas Linguístico de Minas Gerais – 1977, o Atlas Linguístico da Paraíba – 1984,
o Atlas Linguístico de Sergipe – 1987, o Atlas Linguístico de Paraná – 1994, o Atlas
Linguístico e Etnográfico da Região Sul do Brasil – 2002, o Segundo Atlas Linguístico
de Sergipe – 2005, o Atlas Linguístico Sonoro de Pará – 2004, o Atlas Linguístico do
Amazonas – 2004, o Atlas Linguístico de Paraná - II – 2007, o Atlas Linguístico do
Mato Grosso do Sul – 2007, o Atlas Linguístico do Estado do Ceará – 2010, o Atlas
Linguístico de Goiás – 2012, o Atlas Linguístico de Pernambuco – 2013, o Atlas
Linguístico do Amapá – 2017, o Atlas Linguístico do Estado de Alagoas - 2017 .

Há, ainda, projetos de atlas regionais, referentes aos falares dos Estados
do Maranhão, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Rondônia, Pará e Piauí, que se
unem a dissertações e teses projetadas ou já concluídas que tratam da cartografia
microrregional.

Nos atlas linguísticos já concluídos, registraram-se os fenômenos de natu-


reza fonética, léxica e parte deles, abrangendo ainda a variação morfossintática.
Assim, salienta-se que o léxico de um povo é heterogêneo por conta da história e
da cultura, cujo vocabulário transmitido de geração em geração se confirma nas
palavras de Biderman (2001, p. 179), ao considerar o léxico como “a somatória de
toda a experiência acumulada de uma sociedade e do acervo da sua cultura atra-
vés do tempo”, ou seja, o léxico de uma língua constitui um grande banco de dados
sobre as palavras e outras unidades usadas na fala espontânea.

A ‘bola de gude’ nos atlas linguísticos

Para verificar as denominações de ‘bola de gude’ em alguns estados do


Brasil, recorreu-se aos corpora de seis atlas linguísticos produzidos nos estados,
dos quais apenas marraio foi categórico no Atlas Linguístico de Sergipe II (CARDOSO,
2002). A esse respeito, Barreto (2007) menciona que, em Aracaju e em cidades do
interior do estado de Sergipe, consta uma modalidade do jogo apelidada de “jogo
do marraio”, com características peculiares em Sergipe, que se diferem do método
jogado em outras regiões, por ter sido criado com características pedagógicas.

380
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Além de marraio, outras variantes podem ser vislumbradas conforme o


quadro 1 com a distribuição selecionada de outros atlas e a indicação da conver-
gência entre elas.

AM GO MG MS PB
Bila X
Bilazinha X
Bilha X
Biloca X X
Bilosca X
Biroca X
Birola X
Bola de fona
Bola de gude X X
Bola de vidro X
Bolica X
Bolinha X
Bolinha de fona X
Bolinha de gude X X
Bolinha de vidro X X X X
Bolinha-crica X
Bolita X X
Botila X
Bule X
Burca X
China X
Crichi X
Fona X
Gude X X
Gurca X
Gurquinha X
Peteca X
Tila-tila X
Quadro 1. Denominações para ‘bola de gude’ no Brasil.0
Fonte: Elaborado pelo autor.

Análise das denominações registradas no atlas do Paraná e de


Pernambuco

No Atlas Linguístico do Paraná - ALPR II, a pergunta que usou como motiva-
ção o item ‘bolinha de vidro’ obteve um número considerável de denominações,
conforme a figura 1 pode ilustrar:

381
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Figura 1. Distribuição das denominações de bola de vidro (gude) no ALPR II, conforme Altino (2007).
Fonte: elaborado pelo autor.

Segundo a carta selecionada para a figura 1, foram 145 ocorrências distri-


buídas entre os 65 pontos inquéritos do ALPR II, sendo que as denominações ‘bú-
rica’, com 36% e ‘burca’ com 33% foram as mais quantificadas.

Houaiss (2009) cita ‘búrica’ como analogia a ‘búraca’, com deslocamento de


acento tônico de ‘buraca’, de mesmo significado, originário de ‘buraco’, mas com
alteração da vogal temática ‘o’ para a desinência de gênero feminino ‘a’. O termo
‘burca’ talvez seja uma variante fonética ocasionada pela desproparoxitonização
de búrica. A denominação ‘bolinha de vidro’ registrou menos de 15% de ocor-
rências, sendo quase a metade dos registros de ‘bolita’ que não chegou aos 8%,
enquanto as denominações ‘bolinha de gude’, ‘bolinha’ e ‘birosca’ tiveram menos
de 5% do total. O termo ‘birosca’, segundo dicionários do português, é registrado
com etimologia obscura, embora haja a referência semântica coerente com o re-
sultado da pesquisa.

O item lexical ‘bola de gude’ ou simplesmente ‘gude’ se encontra lexico-


grafado em Houaiss (op. cit.) e detém o conceito do ‘jogo infantil com bolinhas de
vidro que, num percurso de ida e volta, devem entrar em três buracos dispostos
em linha reta, saindo vencedora a criança que chegar primeiro ao buraco inicial’.

382
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Trata-se de um termo que se origina de ‘gode’, uma espécie de regionalismo do


Minho, região portuguesa, com o sentido de ‘pedrinha lisa e redonda’.

As respostas à pergunta 156 do Questionário Semântico-Lexical (QSL) que


tiveram algumas realizações no Atlas Linguístico de Pernambuco (ALiPE) (SÁ, 2013)
podem ser consideradas marcas dialetais do falar do estado, haja vista a distribui-
ção das realizações nas mesorregiões de maneira bastante distinta. A carta 39,
conforme disposto na figura 2, pode dar uma ideia da situação.

Figura 2. Distribuição das denominações de bola de gude no ALiPE.


Fonte: Sá (2013)

Com exceção das denominações ‘bola de vidro’ e ‘bolita’, as demais denomi-


nações para a bola de gude foram acentuadas nas respostas dos informantes per-
nambucanos e a variante ‘bola de gude’ chegando aos 46% do total de respostas,
atingindo maior percentual.

A denominação ‘bila’ se origina do francês bille ‘bola’ e, em Pernambuco, ob-


teve 28% do total de registros. Essa mesma denominação se encontra registrada
no Atlas Linguistique de la France (GUILLIÈRON, 1902) e no Atlas Linguistique de la
Wallonie (jouer aux billes) (BAIWIR, 2012). Apesar da redução de referências le-
xicográficas, alguns dicionários de regionalismos brasileiros registram o verbete

383
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

como variante lexical nordestina, sobretudo, do falar paraibano, piauiense e, ob-


viamente, pernambucano.

A denominação ‘ximbra’ foi proferida pelos informantes com 16% do total


de ocorrências e, curiosamente, não há uma referência etimológica comprovada
a respeito. A despeito de suspeitas de o verbete ser apenas expressivo, Pereira da
Costa (1937, p.752) fala de uma possível corruptela ou deturpação do vocábulo
latino similis ‘similar, igual’.

Conforme cita Costa (1937) ao se referir à ximbra, no Diário de Pernambuco,


nº 12 de 1916, consta a manchete: “Estão hoje unidos. Separar-se-ão na escolha do
Presidente da República, por cuja cadeira tanto um como outro dá a vida. Ximbre
com ximbre; retalhos da mesma chita”. Para o autor, essa expressão se constitui de
uma deturpação de similis cum similibus facile congregantur. Para o autor, isso não
interfere que a referida denominação se associe a essa origem, por se assimilarem
à matéria com que as bolas eram construídas na colonização portuguesa desde
que chegaram ao Brasil.

‘Bolita’, por sua vez, obteve um total de 6% das respostas. Essa denomina-
ção, para Houaiss (2009), se origina de bola + ita, com influência do espanhol pla-
tino ‘bolita’ e sentido semelhante. Com apenas 4% do total, ‘bola de vidro’ foi a
expressão menos contabilizada.

Conforme as duas cartas léxicas analisadas, no Paraná foram selecionadas


sete respostas para denominar a bola de gude. Em Pernambuco, por sua vez, os
informantes disseram duas denominações a menos. O quadro 2 menciona a con-
vergência nos atlas dos dois estados.

DENOMINAÇÃO ALPR - II ALiPE


Bila X
Birosca X
Bola de gude X X
Bola/Bolinha de vidro X X
Bolinha X
Bolita X X
Burca X
Búrica X
Ximbra X
Quadro 2 . Denominações para ‘bola de gude’ no Paraná e em Pernambuco
Fonte: elaborado pelo autor

384
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Segundo o quadro 2, as denominações ‘bola de gude’, ‘bola/bolinha de vidro’


e ‘bolita’ são comuns no Paraná e em Pernambuco, ao passo que ‘birosca’, ‘bolinha’,
‘burca’ e ‘búrica’ são típicas do falar paranaense, enquanto ‘bila’ e ‘ximbra’ são ca-
racterísticas do falar pernambucano. Vale salientar que algumas denominações
dispostas no quadro 2 também podem ser peculiares em outros estados do país,
a julgar pelos dados dos trabalhos que investigaram o mesmo item lexical. ‘Bila’
também é encontrada na Paraíba; ‘bola de gude’ é encontrada no Mato Grosso do
Sul e na Paraíba; ‘bolinha’ se encontra no Amazonas; ‘bolinha’ é variante da fala de
Amazonas, enquanto em Minas Gerais e do Mato Grosso do Sul, os falantes usam
‘bolinha de gude’. ‘Bolita’ é falada em Goiás e Mato Grosso do Sul e ‘burca’ também
é falada no Mato Grosso do Sul.

Apenas ‘bolinha de vidro’ se registra comumente em outros quatro estados


brasileiros, quais sejam: Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Paraíba. As
demais denominações, conforme exposto anteriormente, ocorreram comumente
em um ou dois estados.

Conclusão

Este trabalho permitiu estabelecer uma comparação entre as denomina-


ções para ‘bola de gude’ em Pernambuco e no Paraná, conforme os atlas linguís-
ticos já elaborados acerca dos falares dos dois estados. Uma vez que a bolinha
pertence ao grupo de itens lexicais que se relaciona aos jogos e às brincadeiras
infantis, já era esperado que o número de registros nos corpora pertencesse aos
contextos socioculturais e históricos dos habitantes dos dois estados.

Percebeu-se no inventário de variantes quatro itens que têm ‘bola’ como


parâmetro motivador, inclusive no diminutivo: bola de gude, bolinha de vidro, boli-
nha e bolinha de gude, ao contrário do que ocorreu em outros estados que registra-
ram um número maior de denominações iniciadas com a palavra ‘bola’.

O atlas paranaense permitiu deduzir que a verdadeira marca do falar des-


se estado parece se resumir à variante ‘búrica’, enquanto no falar pernambucano
a marca dialetal se caracteriza por ‘ximbra’. Muito embora não se espere que tal
item faça parte do inventário linguístico desse povo, haja vista que o percentual
em que ele se perpetua é considerável apenas na fala dos habitantes que ultrapas-
sam os cinquenta anos. Mesmo assim, o que foi apresentado neste estudo com-
parativo apenas reforça a necessidade de se conhecer como se expressa o povo

385
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de duas comunidades distintas que possuem marcas específicas, relacionadas à


própria formação de seu povo e de sua cultura.

Referências

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

DIREITO À VOZ E O FEMINISMO NEGRO:


REFLEXÕES SOBRE O LUGAR DE FALA

Vitória Muniz-Oliveira1
Siderlene Muniz-Oliveira2

RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar a forma que o conceito de “Lugar


de Fala”, termo que se acredita ter surgido a partir da discussão sobre o “feminist
standpoint”, de Patricia Hill Collins, é capaz de restituir a humanidade das mulhe-
res negras ao tratá-las como sujeitos ativos que resistem às diversas opressões
que lhes são impostas. Como referencial teórico, será adotado, principalmente,
o livro “Lugar de Fala”, escrito pela filósofa Djamila Ribeiro. Como metodologia,
será utilizada uma abordagem bibliográfica, qualitativa, de cunho exploratório.
Acredita-se que o discurso deve ser analisado como um sistema capaz de estru-
turar imaginários. Contudo, para que as mulheres negras possam ter seus direitos
efetivados, é necessária a criação de uma epistemologia que garanta que as vi-
vências dessas mulheres sejam reconhecidas e que elas sejam tidas como sujei-
tos ativos que “resistem e reexistem”. Para que isso ocorra, é preciso entender a
localização social desse grupo nas relações de poder e compreender que essa lo-
calização vai determinar a restrição de oportunidades aos seus membros. Nesse
sentido, tem-se que o local social das mulheres negras, dentro de uma pirâmide
social, encontra-se abaixo dos homens brancos, mulheres brancas e homens ne-
gros, fazendo com que diversas reivindicações feitas por elas não sejam reconhe-
cidas pelos demais grupos, surgindo aí a necessidade da utilização do conceito de

1 CESUL - Centro de Ensino Superior. vit_muniz@terra.com.br


2 UTFPR - Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus Dois
Vizinhos. smoliveira@utfpr.edu.br

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lugar de fala como forma de autorização discursiva ao passo que ele possibilita
que as vozes silenciadas historicamente sejam ouvidas.

PALAVRAS-CHAVE: Lugar de fala; Feminismo Negro; Dignidade.

ABSTRACT: This paper aims to analyze the way that the concept of “Place of Speech”, a
term that is believed to have arisen from the discussion about the “feminist standpoint”,
by Patricia Hill Collins, is able to restore the humanity of black women to treating them
as active subjects who resist the various oppressions that are imposed on them. As a
theoretical reference, the book “Lugar de Fala”, written by the philosopher Djamila
Ribeiro, will be adopted. As a methodology, an exploratory bibliographic, qualitative
approach will be used. It is believed that the discourse should be analyzed as a system
capable of structuring imagery. However, for black women to have their rights realized,
it is necessary to create an epistemology that ensures that these women’s experiences
are recognized and that they are seen as active subjects who “resist and re-exist”. For
this to happen, it is necessary to understand the social location of this group in power re-
lations and understand that this location will determine the restriction of opportunities
for its members. In this sense, it is clear that the social location of black women, within a
social pyramid, is below white men, white women and black men, causing several claims
made by them not to be recognized by other groups, arising there the need to use the
concept of place of speech as a form of discursive authorization while it allows histori-
cally silenced voices to be heard.

KEYWORDS: Place of speech; Black Feminism; Dignity.

Introdução

Este artigo tem como objetivo trazer uma reflexão sobre as relações en-
tre o Lugar de Fala e o Feminismo Negro, a fim de provocar uma discussão de um
tema muito pouco abordado, mas que vem ganhando cada vez mais espaços em
debates acadêmicos. A justificativa para a escolha desse tema se dá pelo fato das
injustiças sociais causadas, em especial, pelo racismo e patriarcalismo de nossa
sociedade. Assim, essa discussão poderá levar à expansão do conhecimento sobre
o assunto nas instituições sociais, em especial, científico-acadêmicas, contribuin-
do com debates sobre o tema em questão.

Nesse sentido, será abordado, prioritariamente, o conceito de lugar de fala


como meio de restituição da dignidade humana, o que envolve tratar da temática

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de autorização discursiva. Antes de tratar dessa temática, iremos mencionar os


procedimentos metodológicos.

Metodologia empregada

A pesquisa constituir-se-á de reflexões sobre a temática em questão: as re-


lações entre o conceito de lugar de fala e o feminismo negro. Para isso, será utili-
zada a pesquisa bibliográfica que, segundo Lakatos e Marconi (2011), trata-se de
um levantamento de bibliografias já publicadas sobre o assunto, que pode ser em
livros, revistas, publicações avulsas e imprensa escrita.

Para esse levantamento, foram feitas leituras de quatro livros e dois artigos
científicos que versam sobre o tema lugar de e/ou feminismo negro. Em seguida,
alguns trechos que melhor atendiam ao objetivo deste artigo foram selecionados,
sendo feitas reflexões e discussões sobre a temática. Segue a reflexão e discussão
com base nesse material selecionado.

Reflexões acerca do Lugar de Fala e o Movimento Feminista Negro

O termo lugar de fala possui uma origem indefinida, empregado em di-


ferentes contextos. No contexto da análise do discurso francesa, por exemplo,
Almeida (1998) cita Foucault que, em Arqueologia do Saber, faz reflexões sobre
“quem fala”, ou seja, quem no conjunto de todos os indivíduos que falam está au-
torizado a falar. Ainda, reflete sobre o estatuto dos indivíduos que têm o “o direito
regulamentar ou tradicional, juridicamente definido ou espontaneamente aceito,
de proferir semelhante discurso [...]” (FOUCAULT, 1972, apud ALMEIDA, 1998, p.
6). Foucault, mencionado por Almeida (1998), aborda também a questão do lugar
institucional de onde se obtém o discurso e também as posições do sujeito defi-
nidas pela situação que lhe é possível ocupar em relação aos diversos domínios
sociais. Assim, nessa abordagem, podemos compreender o lugar de fala como
aquele definido como uma lei geral decorrente da posição ou situação relacional
de quem fala. Nesse sentido, a fala parece estar reservada somente para um gru-
po determinado de indivíduos (ALMEIDA, 1998).

Em estudos sobre o feminismo negro, esse termo ganhou força a partir


da discussão sobre o “feminist standpoint”, teoria desenvolvida pela professora
norte-americana Patricia Hill Collins. As teóricas que tratam do tema em ques-
tão buscam discutir a necessidade de uma interrupção ao regime de autorização

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discursiva vigente na sociedade que vivemos hoje, uma sociedade, segundo elas,
que é marcada principalmente pelo patriarcalismo, racismo, homofobia, transfo-
bia e xenofobia. Cabe frisar que, mesmo tendo ganhado força em um contexto de
discussão acerca do feminismo negro, o conceito de lugar de fala é utilizado em
demais estudos das ciências humanas e sociais.

Para tratar da temática da autorização discursiva, é necessário partir da


ideia de que o discurso legitimado na sociedade é aquele emitido pelo homem
branco, cisgênero e heterossexual, sendo que todos os demais discursos que des-
viem desse padrão estabelecido historicamente não são reconhecidos, fazendo
com que os sujeitos que os emitam não tenham suas vozes ouvidas e suas existên-
cias reconhecidas.

Sobre o sentido da palavra discurso e o regime de autorização discursiva,


Ribeiro (2019), em seu livro “Lugar de Fala”, filósofa e militante do movimento do
Feminismo Negro Brasileiro, aponta que:

Antes de mais nada, é preciso esclarecer que quando utilizamos


a palavra discurso no decorrer do livro e falamos da importância
de se interromper o regime de autorização discursiva, estamos
nos referindo à noção foucaultiana de discurso. Ou seja, de não
pensar o discurso como amontoado de palavras ou concatenação
de frases que pretendem a um significado em si, mas como um
sistema que estrutura determinada imaginário social, pois esta-
remos falando de poder e controle. (RIBEIRO, 2019, p. 54).

Dessa forma, percebe-se como o discurso é tido como um sistema capaz


de estruturar um imaginário, tendo em vista a impossibilidade de separá-lo de
noções tais quais poder e controle. Ainda é possível relacionar a temática regi-
me de autorização discursiva com a questão dos desvios, trazidos pelo sociólogo
norte-americano Howard Becker, em seu livro “Outsiders: Estudos de sociologia
do desvio” (1963). Para ele, o desvio é consequência da imposição de regras so-
ciais por parte de grupo detentor de poder político e econômico em detrimen-
to dos demais membros da sociedade, sendo que esse grupo detentor de poder
possui a capacidade de ditar quais serão as condutas aceitas e reprovadas. Para
o sociólogo:

Regras sociais são criação de grupos sociais específicos. As socie-


dades modernas não constituem organizações simples em que
todos concordam quanto ao que são regras e como elas devem

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ser aplicadas em situações específicas, São, ao contrário, alta-


mente diferenciadas ao longo de linhas de classe social, linhas
étnicas, linhas ocupacionais e linhas culturais. (BECKER, 2008,
p. 27).

Nesse sentido, relacionando à questão da autorização discursiva e a Teoria


do Desvio, é possível perceber que os detentores de poder possuem a capacidade
de ditarem o discurso, estruturando, dessa forma, o imaginário dos demais. Ainda
na teoria da Sociologia do Desvio desenvolvida por Becker (2008), tem-se que a
atitude isolada de um indivíduo não é naturalmente desviante, já que é necessária
a existência da imposição de uma atitude considerada como “normal” pelo gru-
po detentor de poder político e econômico em relação aos demais membros da
sociedade:

À medida que um grupo tenta impor suas regras a outros na


sociedade, somos apresentados a uma segunda questão: quem,
de fato, obriga outros a aceitar suas regras e quais são as causas
de seu sucesso? Esta é, claro, uma questão de poder político e
econômico. (BECKER, 2009, p. 29).

Também cabe frisar que a reação que os demais membros da sociedade te-
rão em relação ao ato de desvio, bem como a reação do próprio “desviante”, irá
determinar a forma como ele sentirá os impactos dessa ação em sua vida.

Percebe-se que os homens, brancos, heterossexuais e cisgênero possuem


o monopólio do regime de autorização discursiva devido ao poder político e eco-
nômico que possuem na sociedade, resultado de práticas históricas que promo-
veram o apagamento, principalmente das mulheres brancas e negras, do contex-
to social, ao confina-las ao ambiente doméstico, resultando na desigualdade de
gênero e no racismo estrutural que podemos observar atualmente na sociedade.

Tem-se, dessa forma, que todas as vozes que não provêm dos homens
detentores de poder, os chamados sujeitos, são consideradas as outras vozes, e
aqueles que não são os sujeitos, são os Outros (RIBEIRO, 2019, p. 35). Nesse con-
texto, se insere o grupo das mulheres negras. Contudo, diferentemente das mu-
lheres brancas, as negras são consideradas o outro do outro.

É a partir do conceito de Lugar de Fala que é possível compreender como


o regime de autorização discursiva faz com que esses Outros (ou seja, aqueles
que não se encaixam no padrão estabelecido por esses homens brancos, cis e

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

heterossexuais, detentores do poder político e econômico devido a reiteradas


práticas históricas-sociais), e os Outros dos Outros não conseguem ter seu direito
a voz reconhecido.

É necessário, ainda, apontar que a referida voz deve ser compreendida


no sentido trazido por Ribeiro (2019), ou seja, deve ser entendida no sentido de
existência. Aqui se pensa discurso como um meio de se discutir o poder, como um
sistema que estrutura um imaginário.

A linguagem dominante, aquela autorizada pelos detentores de poder,


age como forma de manutenção de poder, excluindo, dessa forma, os Outros dos
Outros – os desviantes, segundo Becker (2008). Assim, para quebrar com essa
barreira imposta pelo discurso legitimado pelo poder, a proposta apresentada
pela filósofa Djamila Ribeiro em sua obra “Lugar de Fala”, seria a criação de uma
epistemologia capaz de abraçar todas as realidades plurais presentes na socieda-
de, desestabilizando, dessa forma, a autorização discursiva do homem branco, cis
e heterossexual.

Ribeiro (2019), ao tratar da dificuldade de reconhecimento da voz dos


Outros dos Outros, faz o seguinte apontamento acerca das diversas experiências
vivenciadas socialmente:

As experiências desses grupos localizados socialmente de forma


hierarquizada e não humanizada faz com que as produções in-
telectuais, saberes e vozes sejam tratados de modo igualmente
subalternizados, além das condições sociais os manterem num
lugar silenciado estruturalmente. Isso, de forma alguma, signifi-
ca que esses grupos não criam ferramentas para enfrentar esses
silêncios institucionais, ao contrário, existem várias formas de
organizações políticas, culturais e intelectuais. (RIBEIRO, 2019,
p. 63).

Dessa forma, pode-se perceber que mesmo se localizando em estratos su-


balternizados da hierarquia social, os Outros dos Outros ainda se organizam a fim
de fazer com que suas vozes sejam ouvidas e seus direitos reconhecidos. Ainda
nesse sentido, Ribeiro (2019) aponta que “A questão é que essas condições sociais
dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produções” (2019, p. 63).

O fato de não ter suas vozes e, consequentemente, sua existência reconhe-


cida, faz com que sobrevenham consequências para os grupos subalternizados.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

[...] não poder acessar certos espaços acarreta a não existência


de produções e epistemologias desses grupos nesses espaços;
não poder estar de forma justa nas universidades, meios de co-
municação, política institucional, por exemplo, impossibilita que
as vozes dos indivíduos desses grupos sejam catalogadas, ouvi-
das, inclusive, até em relação a quem tem mais acesso à internet.
(RIBEIRO, 2019, p. 63).

A falta de reconhecimento das vozes dos Outros dos Outros acarreta,


dessa forma, em consequências sociais de difícil reparação, possibilitando que as
experiências individuais desses grupos possam ter similaridades. Nessa mesma
linha, ao utilizarmos o entendimento de Ribeiro (2019) acerca do lugar de fala,
percebe-se a necessidade de compreender a localização de poder do indivíduo
dentro da estrutura social com base nos marcadores que ele possui, não se anali-
sando apenas as experiências individuais.

Em relação à necessidade de se levar em conta os marcadores sociais dos


indivíduos além de suas experiências sociais, também é possível estabelecer uma
relação com uma das críticas feitas pelas feministas negras acerca do movimento
feminista hegemônico, europeu no que tange à universalização da categoria mu-
lher, trazida, por exemplo, por Sojourner Truth e bell hooks. Para elas e diversas
teóricas do feminismo negro, o feminismo hegemônico faz suas reivindicações
sem considerar a realidade experienciada pelas mulheres negras, que sofrem ou-
tras formas de opressão além da de gênero. Nesse sentido, Carla Akotirene apon-
ta que:

[...] enquanto as mulheres brancas têm medo de que seus filhos


possam crescer e serem cooptados pelo patriarcado, as mu-
lheres negras temem enterrar seus filhos vitimados pelas ne-
cropolíticas, que confessional e militarmente matam e deixam
morrer, contrariando o discurso cristão elitista-branco de valo-
rização da vida e contra o aborto – que é um direito reprodutivo.
(AKOTIRENE, 2019, p. 22).

Em complemento ao apontamento de Akotirene em relação às diferentes


experiências vivenciadas pelas mulheres brancas e negras, é possível ainda expor
uma passagem de “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, texto clássico de Lélia
Gonzales (1984):

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Mas é justamente aquela negra anônima, habitante da periferia,


nas baixadas da vida, quem sofre mais tragicamente os efeitos
da terrível culpabilidade branca. Exatamente porque é ela que
sobrevive na base da prestação de serviços, segurando a bar-
ra familiar praticamente sozinha. Isto porque seu homem, seus
irmãos ou seus filhos são objeto de perseguição policial siste-
mática (esquadrões da morte, “mãos brancas estão aí matando
negros à vontade; observe-se que são negros jovens, com menos
de trinta anos. Por outro lado, que se veja quem é a maioria da
população carcerária deste país). (GONZALES, 1984, p. 231).

Dessa forma, o lugar de fala se mostra imprescindível para a compreensão


de que as mulheres possuem marcadores sociais diferentes, o que irá determinar
sua localização dentro da estrutura de poder e, consequentemente, as experiên-
cias que elas irão compartilhar por fazerem parte desses grupos, além da possibi-
lidade de reconhecimento de suas vozes e reivindicações.

Ainda ao utilizar o conceito de lugar de fala dentro das pesquisas relaciona-


das ao Feminismo Negro, busca-se entender como o grupo das mulheres negras
compartilha experiências, e como essas experiências são atravessadas por uma
dominação pautada no regime de autorização discursivo exercido pelo homem
detentor de poder político e econômico.

A partir dessa ideia de compartilhamento de experiências mencionada an-


teriormente, é possível ainda citar Lélia Gonzáles, uma intelectual, política, pro-
fessora e antropóloga brasileira, que postulava a necessidade de um feminismo
afrolatinoamericano, a fim de que haja uma rede de compartilhamento de proces-
sos de resistência de mulheres que vivenciam experiências similares (RIBEIRO,
2019, p. 25).

Ainda nesse sentido, Sueli Carneiro, filósofa brasileira, militante do


Movimento Feminista Negro e fundadora da revista Géledes, em um artigo intitu-
lado “Mulheres em Movimento” de 2003, utiliza a ideia do “enegrecer o feminis-
mo”, ou seja, da constatação de que a identidade de gênero não gera naturalmente
solidariedade racial intragênero e nem que a identidade racial também não gera
naturalmente solidariedade de gênero. Dessa forma, é possível perceber com cla-
reza a importância do compartilhamento de experiências dentro do Movimento
Feminista Negro Brasileiro (CARNEIRO, 2019, p. 198).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

É possível estabelecer uma relação entre lugar de fala e o conceito do


“enegrecer o feminismo” ao passo em que, ao compartilharem suas experiências e
reivindicarem juntas seus direitos, as mulheres negras desestabilizam a estrutura
imposta pelos detentores de poder que propagam opressões e ganham, no
processo, voz – capaz de fazer com que suas existências sejam reconhecidas e que
também seja garantido o direito à dignidade – um fundamento da República de
acordo com o art. 1º, III da Constituição Federal de 1988 (CF/88), e também um
direito humano irrenunciável.

No campo prático, pode-se ver os resultados trazidos por essa movimenta-


ção das mulheres e essa quebra (mesmo que incipiente) da autorização discursiva
dominante, ao analisarmos algumas conquistas já obtidas pelo movimento femi-
nista negro. A Lei nº 9.263/1996, por exemplo, que trata do planejamento familiar,
traz penalidades para esterilização forçada de mulheres, foi resultado da luta das
mulheres negras, que vivenciavam em grande escala a questão da esterilização
forçada na década de 1980.

Sobre as conquistas do Movimento Feminista Negro Brasileiro, Carneiro


(2019) aponta que:

Outro tema de relevância na luta das mulheres negras na área


da saúde é a implantação de um programa de atenção à anemia
falciforme, que consiste “numa anemia hereditária e constitui a
doença genética mais comum da população negra”. No Brasil, é
“uma questão de saúde pública”, e as ações por políticas públicas
para a atenção aos portadores dessa doença de ativistas negras
e outros atores da área da saúde resultaram no Programa de
Anemia Falciforme do Ministério da Saúde - PAF - MS. Apesar
da importante conquista que o PAF representa para o enfrenta-
mento da anemia falciforme, somente no Estado de Minas Gerais
esse programa foi adotado integralmente, havendo ainda inicia-
tivas esparsas em alguns municípios de outros Estados do país.
(CARNEIRO, 2019, p. 207).

Dessa forma, percebe-se como o Movimento Feminista Negro, ao possi-


bilitar a criação de uma rede de compartilhamento de experiência das mulheres
negras, é capaz de promover mudanças efetivas na sociedade, fazendo com que
essas mulheres passem a ter visibilidade para reivindicar seu direito à voz e, con-
sequentemente, buscar o reconhecimento de suas existências.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Considerações Finais

A abordagem do lugar de fala, ao postular a análise das experiências com-


partilhadas e a necessidade do reconhecimento do lugar social que cada indiví-
duo ocupa, possibilita que os grupos minoritários passem a ter seu direito à voz
reconhecido. Esse direito à voz implica no reconhecimento da existência dessas
realidades plurais por parte dos grupos detentores de poder político e econômi-
co, trazendo implicações ao regime de autorização discursiva vigente ao garantir
visibilidade aos, até então, grupos minoritários invisíveis.

Dessa forma, os grupos subalternizados e, principalmente as mulheres ne-


gras, ao se reunirem coletivamente, desestabilizam a estrutura social patriarcal,
racista e cisheteronormativa ao passo que reconhecem o lugar social ocupado por
elas como um grupo, ou seja, sua localização nas relações de poder. Surge assim a
possibilidade de utilizarem dessa mesma localização (agora coletivamente) para
buscarem mudanças tangíveis na sociedade, a fim de terem direito a uma vida dig-
na, conforme estabelece a Constituição Federal de 1988.

Referências

AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2020.


ALMEIDA, J. Lugar de fala, polissemia e paráfrase nos discursos de FHC e Lula
sobre o Plano Real. IV CONGRESSO DO ALAIC (Associación Latinoamericana de
Investigadores de la Comunicación). Anais. Recife, 1998.
BECKER, H S. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar,
2008 [1963].
CARNEIRO, S. Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen, 2019.
GOZÁLES, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais
Hoje, Anpocs, 1984. Disponível em: encurtador.com.br/msDLM. Acesso em: 05
nov. 2020.
MARCONI, M de A.; LAKATOS, M. Metodologia do trabalho científico: procedi-
mentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e traba-
lhos científicos. São Paulo: Atlas, 2011.
RIBEIRO, D. Lugar de fala. São Paulo: Pólen, 2020.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

MODALIDADES EPISTÊMICA E
DEÔNTICA NO DISCURSO POLÍTICO:
UMA ANÁLISE FUNCIONALISTA DE
PRONUNCIAMENTOS EM CONTEXTO DE
COVID - 19

Sarah Caroline Alves Anselmo1

RESUMO: Estudiosos voltados à análise de textos com viés político têm feito uso
da teoria funcionalista para entender o funcionamento e o encadeamento de cer-
tos recursos textuais. Entre estes recursos destacam-se neste estudo os modali-
zadores, com base na proposta de Neves (2000). A autora propõe que a modali-
dade é o ato de comprometimento ou não do locutor com o enunciado proferido.
Propõe-se, então, uma análise funcionalista de quatro pronunciamentos políticos
feitos pelo atual presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, em contexto
de COVID – 19 ou, como comumente chamamos, Novo Coronavírus, com a fina-
lidade de analisar a incidência dos modalizadores deônticos e epistêmicos que
integram o texto. Para isso, faremos uso de Neves (2000, 2006), estudiosa do fun-
cionamento desse recurso em diversos textos.

PALAVRAS-CHAVE: Modalidade; Funcionalismo; Discurso Político; COVID - 19.

ABSTRACT: Scholars focused on the analysis of texts with a political bias have made
use of Functionalist theory to understand the functioning and linkage of certain textual
resources. Among these resources, modalizers stand out in this study, based on Neves’

1 Universidade Estadual de Maringá (UEM). saalvesanselmo@gmail.com

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

proposal (2000). The author proposes that a modality is the act of commitment or not
of the speaker with the uttered utterance. A functionalist analysis of four political pro-
nouncements made by the current President of the Republic, Jair Messias Bolsonaro,
is proposed in the context of COVID - 19 or, as we commonly call it, New Coronavirus
with the finality of analizing the incidency of the deontic and epistemic modalizers that
integrate the text. For this, we will use Neves (2000, 2006), who studies the operation
of this resource in different texts.

KEYWORDS: Modality; Functionalism; Political speech; COVID-19.

Introdução

Os estudos na área do funcionalismo têm buscado compreender o funcio-


namento do texto em diversos aspectos, considerando não somente a estrutura
sintática, mas também a semântica e a pragmática. Não diferente, neste trabalho
a proposta de análise pauta-se também nesses três pilares.

Além disso, o debate analítico sobre a modalidade epistêmica na língua


portuguesa, considerando o português usado no Brasil, propõe um aprofunda-
mento sobre a questão do nível de comprometimento do falante com a verdade
do enunciado por ele proferido. Em concordância com essa perspectiva, o estudo
de enunciados elaborados em contexto político dá-se com a intenção de verificar
o uso de modalizadores epistêmicos e deônticos, considerando a necessidade de
observação sobre o caráter de comprometimento que o usuário tem com aquilo
que enuncia.

Assim, o corpus de pesquisa deste artigo está amparado em quatro pronun-


ciamentos do atual presidente da república, Jair Messias Bolsonaro, feitos em
contexto de pandemia de COVID – 19. A escolha desse corpus justifica-se dian-
te do fato de os discursos políticos serem uma maneira de contato do governan-
te com seu povo, uma vez que é um meio de passar veracidade das informações
governamentais.

Para isso, em um primeiro momento é necessário o debate sobre algumas


definições e conceitos para modalidade, além de haver também a necessidade de
apresentação de algumas hipóteses sobre o discurso político. Em seguida, pro-
põe-se a análise dos modalizadores e os efeitos de sentido que produzem e a fun-
ção desses elementos na organização dos textos. Finalmente, a reflexão sobre os
resultados obtidos durante o debate da análise do corpus de pesquisa.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A Modalidade e Tipos de Modalidade

Diversos pesquisadores da Linguística debruçam-se sobre o estudo dos


modalizadores e, assim, tentam definir o que eles significam na Língua. Porém, an-
tes de compreender a qualidade da modalidade epistêmica, é preciso entender o
próprio conceito de modalidade.

O modo, de maneira tradicional, pode ser entendido como uma caracterís-


tica do verbo e divide-se em: indicativo, subjuntivo e imperativo. Todavia, a mo-
dalidade possui uma dimensão mais complexa, uma vez que está relacionada a
fatores linguísticos e extralinguísticos, bem como a inúmeras categorias gramati-
cais. Assim, as categorias gramaticais, o modo verbal, aspecto e tempo podem ser
considerados sinais gramaticais que servem para expressar a modalidade.

Em questão de definir o que se chama modalidade, Coracini (1991, p. 113)


entende que “Modalidade é a expressão da subjetividade de um enunciador que
assume com maior ou menor força o que enuncia, ora comprometendo-se, ora
afastando-se, seguindo normas determinadas pela comunidade em que se insere.”

Além disso, Neves (2006, p. 152), ao estudar a modalidade como um fenô-


meno inerente ao discurso, disserta que “se a modalidade é, essencialmente, um
conjunto de relações entre o locutor, o enunciado e a realidade objetiva, é cabí-
vel propor que não existam enunciados não modalizados”. Ainda assim, a mesma
autora, em uma dimensão comunicativa e pragmática, sinaliza que a modalidade
é algo não descartável na produção do discurso, uma vez que ela entende ser a
modalidade uma categoria automática, já que o falante sempre irá marcar sua fala
em termos de verdade do fato expresso.

Quirk (1985, p.219) compreende que a “modalidade pode ser definida


como a maneira pela qual o significado de uma oração é qualificado de forma a
refletir o julgamento do falante sobre a probabilidade de ser verdadeira a propo-
sição por ela expressa”. Assim, ao analisar um enunciado, é possível depreender
dele uma ideia de valor sobre a posição do falante em relação ao fato enunciado.

Assim, pode-se reconhecer que inúmeros pesquisadores de diversas áreas


fazem uso das modalidades para explicar fenômenos linguísticos, porém, essas
áreas ainda discordam sobre o que seja modalidade. Essa discordância dá-se, em
primeiro lugar, quando é preciso definir categorias de modalidades, uma vez que
há variação entre o número existente de modalidades. Mesmo assim, é admissível

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

considerar três categorias de modalidades, uma vez que essas já são mais estabe-
lecidas nos estudos linguísticos. Deste modo, define-se a modalidade epistêmica,
modalidade deôntica e a modalidade dinâmica.

Dessa forma, a seguir apresenta-se a descrição, com base na teoria de


Neves (2006) sobre modalidade deôntica e epistêmica, bem como exemplos pró-
prios do corpus de pesquisa para ilustrar, de maneira prática, como essas modali-
dades funcionam discursivamente.

A Modalidade Deôntica

Neves (2006, p. 161) explica que esses três tipos de modalidades, no que
se trata de categorizar o estudo em aspectos de definição, são definidas em dois
tipos apenas:

as epistêmicas (relacionadas ao conhecimento) e as não epistê-


micas, ou de raiz (relacionada às ações), estas subdivididas em
deôntica (que envolve permissão e obrigação) e dinâmica (tipo
subclassificado em volição e habilidade, ou capacidade).

A partir disso, a modalidade deôntica diz respeito aos elementos que de-
monstram proibição, obrigação, permissão e constituem-se em um contínuo que
vai do absolutamente obrigatório ao permitido. Essa expressão revela um caráter
obrigacional do falante em relação ao que foi dito, uma vez que consideramos a
situação comunicativa em que ele está inserido.

Além disso, essa modalidade é dividia, segundo Almeida (1988), em dois


níveis: a obrigação moral, que possui uma característica de estar alocada interna-
mente e ser ditada pela consciência; assim, é cumprida pelos princípios morais; e
a obrigação material, com caráter externo, uma vez que é expressa por obrigações
relacionadas à imposição de situações externas.

Então, segundo Neves (1996), a modalidade deôntica não se relaciona a um


julgamento do falante, mas, sim, à atitude do próprio falante ou de outros. Assim,
segundo Dik (1989), a modalidade deôntica está alocada no nível da predicação,
uma vez que o falante avalia o Estado de Coisas2 com base em regras de condutas
morais, legais e sociais, que são imposições sociais e suas próprias.
2 Segundo Seron (2007, p. 217), “os operadores referem-se às distinções que são gramaticalmente
expressas na língua, e os satélites são modificações que são expressas lexicalmente”. Assim, con-
sidera-se Estado de Coisas a relação entre os níveis de camadas, os operadores e os satélites.

400
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

1. Devemos, sim, voltar à normalidade. Algumas poucas autoridades esta-


duais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, como
proibição de transporte, fechamento de comércio e confinamento em mas-
sa. (P3)

O exemplo acima demonstra uma modalização deôntica. Essa modalização


evidencia a forma como o falante se coloca no ato de fala. Nesse caso, é preciso
observar que, como característica dessa modalidade, é possível perceber a inten-
ção de ordem em relação à obrigação do povo brasileiro voltar à normalidade.

Contudo, ao falar de modalidade dinâmica, entende-se essa como “a ma-


neira pela qual referentes de sintagmas nominais de função sujeito são dispostos
em direção a um ato, em termos de habilidades e intenção” (NEVES, 2006, p. 162).
Logo, sua prioridade é a expressão de vontade e habilidade por parte do sujeito.

Modalidade Epistêmica

Neves (2006) define que a modalidade epistêmica está relacionada à ne-


cessidade e a possibilidades epistêmicas, que são evidenciadas com base em falas
eventuais, ou seja, são dependentes de como as coisas no mundo acontecem e de
como o mundo é.

Com isso compreende-se que a modalidade epistêmica está relacionada ao


nível de comprometimento do falante com o enunciado produzido e relaciona-se
ao conhecimento. Assim, a modalidade epistêmica pode ser percebida tanto no
ato da fala quanto no da escrita e “é mais evidente no texto científico, religioso e
político” (Guiradelli et aliae, 2011, p. 357).

A modalidade epistemológica ou subjetiva expressa o comprometimento


do falante com a verdade do enunciado que é proferido e ainda assim evidencia
a fonte de sua afirmação. Além disso, esse nível subdivide-se em subjetiva (o fa-
lante responsabiliza-se pelo o que diz) e evidencial (o falante indica como obteve
a informação).

2. É provável, inclusive, que o número de infectados aumente nos próximos


dias, sem, no entanto, motivo de qualquer pânico. (P2 – subjetiva)

3. Tenho certeza de que a grande maioria dos brasileiros quer voltar a traba-
lhar. Esta sempre foi minha orientação a todos os ministros, observadas as
normas do Ministério da Saúde. (P4 – evidencial)

401
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Diante dos exemplos anteriores, faz-se necessário tecer algumas conside-


rações acerca do que nomeamos por modalidade epistêmica subjetiva e moda-
lidade epistêmica objetiva. Diante disso, Butler propõe algumas diferenças que
podem ser vistas no trabalho de Hengeveld (2006):

a) as predicações objetivamente modalizadas podem ser ques-


tionadas ou hipotetizadas em uma sentença condicional, en-
quanto as subjetivas não podem;
b) a modalidade subjetiva pode ser formulada apenas em termos
positivos, enquanto a modalidade objetiva pode ser formulada
tanto em termos positivos quanto em negativos;
c) apenas a modalidade subjetiva está intimamente ligada ao
momento da fala, pois a afirmação no passado apresenta menor
probabilidade do que a afirmação no presente;
d) a fonte da informação, na modalidade objetiva, pode ser ques-
tionada, ao passo que não há essa possibilidade na modalidade
subjetiva.

No exemplo (3), percebemos que o falante possui comprometimento com


o que está falando, marcando a verdade do fato, por isso, a avaliação é feita com
base na crença de quem está produzindo o enunciado.

Assim, conforme enuncia Dall’Aglio-Hattnher (1995), a modalidade, para


Halliday, é uma maneira que o falante possui de marcar sua atuação no ato de fala,
enquanto faz uma avaliação sobre a possibilidade de evidência daquilo que está
dizendo. Em contrapartida, a modulação pode ser entendida não como uma ob-
servação do falante, mas como parte integrante do conteúdo da sentença e ex-
pressas pistas sobre o processo de construção do saber a que ela se refere.

Ainda assim, tanto a modalidade quanto a modulação acontecem de inúme-


ras maneiras, sendo ela objetiva ou subjetiva. Para isso, Halliday (apud BUTLER,
2003), entende a modalidade subjetiva como aquela que está relacionada ao
falante e possui marcas de pronomes na primeira pessoa (eu entendo, eu aceito
etc.). Por outro lado, a modalidade objetiva é aquela que não possui relação com o
falante e por isso é marcada pela impessoalidade, muitas vezes representada, em
especial, pelo uso de adjetivos como é provável, é possível etc.

De maneira mais generalista, é possível dizer que a modalidade está rela-


cionada não somente ao discurso, mas também possui relação estreita com os

402
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

elementos que integram a produção do discurso, sendo ele o falante, o ouvinte e


a forma como o enunciado é produzido, ou seja, “a modalidade linguística é enten-
dida como o modo pelo qual o falante qualifica o enunciado por ele produzido, ou
seja, é o julgamento do falante sobre as possibilidades ou obrigações envolvidas
naquilo que está sendo dito” (PESSOA, 2007, p.444).

Por isso, o trabalho com a modalidade epistêmica faz-se necessário, uma


vez que evidencia o saber de um fato ou conhecimento deste, além de expressar
avaliação do falante sobre a possibilidade do acontecimento de um estado-de-
-coisa alocada a um contínuo que vai do que está estabelecido como certo ao que
está estabelecido como possível.

Assim, analisa-se neste trabalho a modalidade epistêmica em discursos


políticos com base em recursos gramaticais e lexicais para, enfim, demonstrar o
comprometimento do falante com o enunciado produzido.

O discurso político e a constituição do corpus de pesquisa

Segundo Fiorin (1988, p. 16), “[o] discurso não é, portanto, o lugar de liber-
dade e da criação, mas é o lugar de reprodução dos discursos das classes e das
frações de classes”. O autor considera o discurso como o lugar social. Sendo assim,
discurso é um local em que o sujeito manifesta as diversas influências que sofreu
durante sua constituição enquanto sujeito.

Enquanto sujeito, nós somos interpelados por diversas vozes. Essas mate-
rializam-se por meio do discurso, uma vez que “[...] como diz M. Pêcheux (1975),
não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpe-
lado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido” (ORLANDI, 2015,
p. 15).

Com isso, ao estudar o discurso político, é preciso atenção à maneira como


a linguagem é manifesta, uma vez que há presença de um sujeito que se posiciona
discursivamente. Esta posição-sujeito está inserida em um meio social, logo, como
finalidade de convencimento de seu público alvo, o político faz modificações da
informação pragmática com intenção de convencer seu ouvinte.

Para isso, a palavra é usada de maneira que o enunciador reflete sobre


aquilo que ele julga ser o que seu público-alvo gostaria de ouvir, pois, segundo
Guiraldelli (2004), a palavra enquanto instrumento legítimo de poder, é usada
pelo falante em um discurso político, assumindo valores de acordo com o que

403
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

o sujeito enunciador julga fazer parte daquilo que seu sujeito ouvinte interessa
saber.

Assim, Orlandi (2015) entende que o discurso é a manifestação da palavra,


pois está relacionado não somente à forma linguística, como também ao uso dela
enquanto meio de persuasão do ouvinte.

Movimento dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares provisó-


rios de conjunção e dispersão, de unidade e de diversidade, de
indistinção, de incerteza, de trajetos, de ancoragem e de vestí-
gios: isto é discurso, isto é o ritual da palavra. Mesmo o das que
não se dizem. De um lado, é na movência, na provisoriedade, que
os sujeitos e sentidos se estabelecem, de outro, eles se estabili-
zam, se cristalizam, permanecem. Paralelamente, se, de um lado,
há imprevisibilidade na relação do sujeito com o sentido [...], toda
formação social, no entanto, tem formas de controle da inter-
pretação, que são historicamente determinadas: há modos de se
interpretar, não é todo mundo que pode interpretar de acordo
com sua vontade, há especialistas, há um corpo social a quem se
delegam poderes de interpretar (logo de “atribuir” sentidos), tais
como o juiz, o professor, o advogado, o padre etc. Os sentidos são
sempre “administrados”, não estão soltos. Diante de qualquer
fato, de qualquer objeto simbólico somos instados a interpretar,
havendo uma injunção a interpretar. Ao falar, interpretamos.
Mas, ao mesmo tempo, os sentidos parecem já estar sempre lá.
(ORLANDI, 2015, p. 8, Grifos nossos).

Entendendo que o discurso não está livre e usado de maneira inocente, mas
depende do sujeito, meio em que é proferido e do ouvinte para fazer sentido, o
discurso político também acontece da mesma maneira. De acordo com Fantinati
(1990, p.2), “a linguagem do discurso político não é simplesmente uma linguagem
técnica que se possa caracterizar univocamente. Como a própria política, ela é
plurissignificativa, penetra todas as esferas da vida social e se ajusta às diferentes
tarefas requeridas por ela”.

Com isso, a modalização primordial do discurso político é, por assim dizer,


o poder. Nele inscritos há dois componentes: a persuasão e a interpretação. O
primeiro refere-se à forma como o discurso agirá sobre o público-enunciatário,
já o segundo à maneira de ver e entender a realidade. Sabendo que a questão do
discurso político está em volta à conquista do poder, uma vez que, segundo Fiorin
(1988, p.145), “o discurso político tem a finalidade de fazer-fazer, ou seja, seu

404
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

programa é conquistar ‘poder”, a linguagem torna-se o meio pelo qual o político


conquista esse poder. Para isso, faz uso de uma linguagem culta e de argumentos
científicos, já que esses elementos dão credibilidade ao enunciado.

Com uma proposta completamente argumentativa, o discurso político faz


uso de uma retórica linguística muito bem elaborada, uma vez que pretende con-
vencer o interlocutor que sua proposta no ato de fala é verídica e confiável. Para
conseguir com que o ouvinte seja convencido, o enunciador, muitas vezes, faz uso
de recursos psicológicos manipulativos dentro de uma condição de produção já
estabelecida para tal.

Segundo Osakabe (1979), no discurso político os atos enunciativos podem


ser divididos em três propostas: promover, envolver e engajar. No ato de promo-
ver o enunciador leva o ouvinte para um local em que ele tenha a sensação de par-
ticipação na decisão de algo, mesmo não tendo condições verdadeiras de decidir.
Já no ato de envolver o falante leva o ouvinte a um nível de envolvimento que faz
com que ele não consiga questionar ou criticar a fala proposta. Enquanto isso, o
ato de engajar produz no ouvinte uma relação de solucionador do problema cria-
do no ato de envolvimento ou até mesmo tecer uma ideia sobre algo descrito no
ato de envolver.

Por muitas vezes, o discurso político está inserido em situações de diver-


gência e choque, já que está em um posicionamento de constante defesa em rela-
ção a fala de outros políticos, partidos e posicionamentos ideológicos, o enuncia-
do vem carregado de falas com o intuito de manutenção da credibilidade política
que o enunciador possui.

Partindo desses argumentos, a análise do corpus desta pesquisa considera


não somente a relação entre enunciador e enunciatário, mas também como a ela-
boração do discurso com base no uso de modalizadores aponta para diferenças
significativas, verificadas na seção seguinte.

Constituição do corpus

Nesta pesquisa, é feita uma análise de quatro pronunciamentos políticos


proferidos pelo atual presidente da república, Jair Messias Bolsonaro. Todos os
pronunciamentos foram retirados de sites especializados e que possuem credibili-
dade do ato de divulgação da informação. A saber os seguintes pronunciamentos:

405
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

• Primeiro pronunciamento sobre COVID – 19, 06/03/2020, denominado


P1.

• Segundo pronunciamento sobre COVID – 19, 12/03/2020, denominado


P2.

• Terceiro pronunciamento sobre COVID – 19, 24/03/2020, denominado


P3.

• Quarto pronunciamento sobre COVID – 19, 08/04/2020, denominado P4.

Os discursos selecionados foram produzidos em contexto da pandemia


COVID – 19. Em todos eles, o enunciador estabelece sua proposta de trabalho
para combate ao vírus, sua preocupação com a economia do país e seu compro-
metimento em relação à resolução do problema sanitário, ocasionado pelo novo
coronavírus3.

Os discursos políticos são identificados por possuírem uma construção


textual que tendem ao convencimento, à persuasão do ouvinte, como anterior-
mente já foi dito. Com isso, a escolha desse modelo de discurso justifica-se diante
da relação que o falante estabelece com seu ouvinte, ou seja, como expressões
epistêmicas e deônticas contribuem, assim, para o desenvolvimento da persuasão
discursiva.

Os modalizadores utilizados no corpus de análise

A modalidade deôntica, bem como a epistêmica são os tipos de modali-


zadores mais pesquisados por linguistas, uma vez que essas modalidades acon-
tecem de maneira mais ampla nas línguas naturais, já que estão relacionadas ao
falante. Assim, como menciona Neves (2006, p. 176), as modalidades deôntica e
epistêmica formam “a modalização linguística stricto sensu, isto é, a modalização
ocorrente e analisável nos enunciados efetivamente produzidos”.

É necessário, contudo, perceber como as modalidades deôntica e epistêmi-


ca são evidenciadas e funcionam na língua portuguesa, bem como são produzidos
os efeitos comunicativos a partir dessas modalidades. Assim, a seguir faz-se ne-
cessária uma compreensão mais aprofundada sobre o aparecimento desses dois
tipos de modalizadores por meio de uma investigação dos dados nos pronuncia-
mentos selecionados.

3 COVID é uma sigla para: Corona Virus Disease – doença do coronavírus.

406
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Análise do corpus

A seguir, com base nos quatro pronunciamentos do atual Presidente da


República, Jair Messias Bolsonaro, é feita uma análise da incidência dos tipos de
modalizadores deôntico e epistêmico.

Explicitado abaixo, na tabela 01, estão dispostos os modalizadores. Em


duas categorias de distribuição, percebe-se que há uma predominância de uma
das classes modalizadoras considerando os pronunciamentos.

P1 P2 P3 P4 TOTAL
Deôntico
0 5 7 2 14
P1 P2 P3 P4 TOTAL
Epistêmico
0 1 0 2 3
Tabela 1: Índice de aparecimento dos modalizadores deôntico e epistêmico.

Em P1, o presidente, em meio a uma crise de saneamento com a qual pare-


ce não estar preocupado ou alarmado, não faz uso de modalizadores com caráter
de comprometimento e envolvimento com a verdade (epistêmico), bem como não
usa modalizadores que indicam ordem ou envolvimento ético e moral (deôntico).
Isso ocorre, pois não há aparecimento de modalizadores sejam eles deôntico ou
epistêmico.

Em P2, ao dirigir-se ao povo por meio de uma fonte também oficial, assim
como no primeiro pronunciamento sobre COVID – 19, começa, de forma sutil,
fazer uso dos modalizadores. Mesmo assim, o nível de envolvimento com a verda-
de e com o conhecimento por meio do uso de modalizadores epistêmicos ocorre
apenas uma vez em sua fala. Contudo, observa-se que os modalizadores deônti-
cos, usados para transmitir uma intenção de ordem e obrigação, aparecem cinco
vezes, ou seja, mais que o dobro para o uso de modalizadores epistêmicos.

4. Precisam, no entanto, diante dos fatos recentes, ser repensados. Nossa


saúde e de nossos familiares devem ser preservadas.

5. O momento é de união, serenidade e bom senso. Não podemos esquecer,


no entanto, que o Brasil mudou. O povo está atento e exige de nós respeito
à Constituição e zelo pelo dinheiro público.

No pronunciamento P3 há uma discrepância muito grande em relação ao


tipo de modalizadores preferencialmente usados pelo atual presidente, uma vez

407
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que não há uso de modalizadores epistêmicos. Por outro lado, o pronunciamento


está carregado de modalizadores deônticos.

Tendo em vista o cenário em que o pronunciamento foi feito, considerando


não somente a crise dada pelo vírus, mas também as opiniões em desacordo de
Bolsonaro e o até então, ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, a fala do
presidente demonstra estar mais organizada para convencer o povo, por meio da
ordem e obrigação, sobre aquilo que Jair Bolsonaro julga correto.

6. É essencial que o equilíbrio e a verdade prevaleça, entre nós. O vírus che-


gou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem
que continuar. Os empregos devem ser mantidos. O sustento das famílias
deve ser preservado.

7. Devemos, sim, é ter extrema preocupação em não transmitir o vírus para


os outros, em especial aos nossos queridos pais e avós.

No último pronunciamento P4, em meio ao crescimento do número de


mortes por COVID no Brasil, além das especulações com a possível demissão do
ministro da saúde, há um uso mais equilibrado dos dois tipos de modalizadores.
Em uma tentativa de manter o equilíbrio da população em relação à pandemia, o
atual presidente procura fazer uso de modalizadores epistêmicos, que mostrem
seu comprometimento com a verdade, no entanto, o primeiro exemplo a seguir,
que trata da possibilidade de o medicamento cloroquina ser eficiente no combate
ao vírus, carrega menos envolvimento que o segundo.

8. Essa decisão poderá entrar para a história como tendo salvo milhares de
vidas no Brasil. Nossos parabéns para o doutor Kalil. (epistêmico subjetivo)

9. Tenho certeza de que a grande maioria dos brasileiros quer voltar a traba-
lhar. (epistêmico evidencial)

Ao fazer uso de modalizadores epistêmicos, percebe-se que o atual presi-


dente pretende estabelecer um compromisso com a verdade, bem como deixar
evidente em seu discurso o comprometimento com aquilo que diz, porém obser-
va-se que mesmo fazendo uso de modalizadores epistêmicos ainda há uma ten-
dência a mesclar os tipos de epistêmicos, o que mostra haver um envolvimento
mais subjetivo com a verdade.

Observa-se que o uso dos modalizadores deônticos continuam sendo mais


evidentes no discurso do atual presidente, sendo assim o envolvimento com a

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

obrigatoriedade e a ordem é maior, uma vez que faz mais uso de modalizadores
deônticos, que o nível de envolvimento com a verdade e o conhecimento, próprio
do uso de modalizadores epistêmicos. O presidente insiste que todos devem estar
“sintonizados” com suas decisões e que o tratamento do vírus não pode causar
mais danos à economia nacional. Os enunciados a seguir deixam clara a preocu-
pação do presidente em relação ao cenário econômico.

10. Todos devem estar sintonizados comigo. Sempre afirmei que tínhamos
dois problemas a resolver: o vírus e o desemprego, que deveriam ser trata-
dos simultaneamente. (deôntico)

11. As consequências do tratamento não podem ser mais danosas que a pró-
pria doença. (deôntico)

Considerações Finais

Sabe-se, portanto, que os modalizadores epistêmicos revelam a atitude do


falante em relação ao seu envolvimento com a verdade e conhecimento do enun-
ciado proferido e que os modalizadores deônticos são aqueles que revelam como
o falante se relaciona no escopo da obrigatoriedade e ordem daquilo que foi dito.
É possível compreender que a análise dos pronunciamentos políticos, consideran-
do estes como muito produtivos em relação ao discurso de convencimento e de
persuasão, demonstrou diferentes níveis de envolvimento do enunciador com o
ato de fala.

Por meio da análise do corpus percebe-se que o uso dos modalizadores


epistêmicos e deônticos estão relacionados à intenção do falante e dependem
dele. Os pronunciamentos apontam para uma preferência pelo uso dos modali-
zadores da ordem da obrigatoriedade, demonstrando, assim, o caráter de envol-
vimento do atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, com o estado
de pandemia causada pela COVID – 19, está mais relacionado à preocupação com
a economia, uma vez que faz uso de modalizadores epistêmicos ao tratar desse
assunto, do que em relação à saúde pública, quando estabelece o uso de modaliza-
dores deônticos, da ordem da obrigatoriedade, ao enunciar seu discurso.

Entende-se que, enquanto chefe da nação, a elaboração dos enunciados


analisados reflete não somente a relação do presidente com a questão do ví-
rus, mas também com sua postura em relação à saúde pública e à economia. A

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

preferência pelo uso de modalizadores epistêmicos quando a fala volta-se para


a realidade econômica permite que entendamos o empenho de Bolsonaro com
esse assunto.

A reflexão sobre o uso da linguagem como forma de conhecimento propicia


saber como determinados assuntos são ou não relevantes para aqueles que es-
tão dirigindo o país. Além disso, a compreensão feita sobre o funcionamento dos
modalizadores nos pronunciamentos selecionados contribuem não somente na
questão social, mas também para o estudo e entendimento maior desses elemen-
tos na área das modalidades.

Sites Consultados

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ca/2020/03/06/interna_politica,832603/nao-ha-motivo-para-panico-diz-bolso-
naro-em-discurso-sobre-coronav.shtml. Acesso em: 20 abr. 2020.
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Disponível em: https: //g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/12/bolsonaro-di-
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das.ghtml Acesso em: 20 abr. 2020.
BOLSONARO, J. M. Pronunciamento político sobre COVID – 19: 24 mar. 2020.
Disponível em: https: //noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/24/
leia-o-pronunciamento-do-presidente-jair-bolsonaro-na-integra.htm Acesso em:
20 abr. 2020.
BOLSONARO, J. M. Pronunciamento político sobre COVID – 19: 08 abr. 2020.
Disponível em: https: //noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/04/08/
veja-e-leia-na-integra-o-pronunciamento-de-jair-bolsonaro.htm Acesso em: 20
abr. 2020.

Referências

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410
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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FANTINATI, C. E. Sobre o Discurso Político. Alfa, Campinas, v. 34, 1990, p. 1-10.
FIORIN, J. L. O Regime de 1964 –Discurso e Ideologia. São Paulo: Atual, 1988.
GUIRALDELLI, L. A. O modo subjuntivo e a expressão das modalidades epistêmi-
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em Estudos Lingüísticos - Área de Concentração em Análise Lingüística) –
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista,
São Paulo.
GUIRALDELLI, L. A. A modalidade epistêmica nos discursos políticos. Nucleus, v.
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NEVES, M. H. M. A Modalidade In: KOCH, I.G.V. (Org). Gramática do Português
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NEVES, M. H. M. Imprimir marcas no enunciado. Ou: A modalização na linguagem.
In: Texto e Gramática. São Paulo: Contexto, 2006, p. 151-174.
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OSAKABE, H. Argumentação e discurso político. São Paulo: Kairós, 1979.
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Longman, 1985.

411
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM E DE
ESCRITA NA FORMAÇÃO DOCENTE
INICIAL

Paulo Cezar Czerevaty1


Cristiane Malinoski Pianaro Angelo2

RESUMO: Com base nos pressupostos do dialogismo do Círculo de Bakhtin


(BAKHTIN, 2016 [1978]; VOLOCHINOV, 2017 [1929]) e nas suas (re)enuncia-
ções na área da Linguística Aplicada desenvolvida no Brasil (FUZA; OHUSCHI;
MENEGASSI, 2011; GERALDI, 1997 [1991]; MENEGASSI, 2013; MENEGASSI,
2016), objetiva-se apresentar e discutir as concepções de linguagem, escrita, re-
visão e reescrita, pela perspectiva teórica, de professores em formação inicial no
Ensino Superior. Para tanto, são analisados dois registros de um estudo de caso
realizado no contexto da graduação em Letras de uma universidade pública da
região Sudeste do Paraná, nos quais se verifica a expressão de conhecimento teó-
rico ou sua reprodução pelos acadêmicos, mediante alguns conceitos que envol-
vem o processo de ensino e aprendizagem da escrita. Os resultados demonstram:
a) reprodução teórica da concepção dialógica de linguagem; b) consideração de
dialogismo como concepção que superou as demais; c) indistinção entre posição
teórico-filosófica do Círculo de Bakhtin e seus desdobramentos nas teorias apli-
cadas ao ensino; d) dificuldades na caracterização de revisão e reescrita em suas
relações com as concepções de linguagem e de escrita.

PALAVRAS-CHAVE: Dialogismo; Formação docente; Concepções de linguagem;


Escrita, revisão e reescrita.
1 Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). pauloivai@hotmail.com
2 Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). cristiane.mpa@gmail.com

412
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ABSTRACT: Based on the assumptions of the dialogism of the Bakhtin Circle


(BAKHTIN, 2016 [1978]; VOLOCHINOV, 2017 [1929]) and its (re)enunciations in the
area of Applied Linguistics developed in Brazil (FUZA; OHUSCHI; MENEGASSI, 2011;
GERALDI, 1997 [1991]; MENEGASSI, 2013; MENEGASSI, 2016), this study aims to
present and discuss the conceptions of language, writing, review and rewriting, from
the theoretical perspective of the teachers in initial education in Higher Education.
Therefore, two records of a case study carried out in the context of graduation in Letters
of a public university in the Southeastern region of Paraná are analyzed, context of the
undergraduate in modern language from a public university in the Southeastern re-
gion of Paraná, in which the expression of theoretical knowledge or its reproduction by
academics is verified through some concepts that involve the process of teaching and
learning writing. The results demonstrate: a) theoretical reproduction of the dialogical
conception of language; b) consideration of dialogism as a conception that surpassed
the other; c) indistinction between the theoretical-philosophical position of the Bakhtin
Circle and its consequences in the theories applied to teaching; d) difficulties in the cha-
racterization of revision and rewriting in its relations with the conceptions of language
and the writing.

KEYWORDS: Dialogism; Teacher education; Conceptions of language ; Writing,


review and rewriting.

Introdução

Autores como Fuza, Ohuschi e Menegassi (2011) e Geraldi (2016) defen-


dem que é fundamental que os professores de língua portuguesa conheçam as
diferentes concepções de linguagem presentes nas práticas pedagógicas e que
assumam uma concepção que lhes permita desenvolver atividades de forma autô-
noma, com base em aspectos teóricos e metodológicos. Nos documentos oficiais
que regem o ensino no Brasil, como é o caso da Base Nacional Comum Curricular
(BRASIL, 2018), a perspectiva assumida é a linguagem como forma de interação,
o que implica seu estudo em relação às demais. Assim, tanto o conhecimento das
diversas visões acerca do fenômeno linguístico quanto a apropriação da tendên-
cia atual passam pela questão da formação docente (MENEGASSI, 2016).

Com base nessas considerações, objetivamos discutir teoricamente as


concepções de linguagem e suas consequentes concepções de escrita, revisão
e reescrita de docentes em formação inicial em Letras no Ensino Superior, para

413
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

verificar a expressão de conhecimento teórico dos acadêmicos ou sua reprodu-


ção mediante alguns conceitos do dialogismo, perspectiva teórica que fornece
embasamento à concepção de linguagem como forma de interação (BAKHTIN,
2016 [1979]; VOLÓCHINOV, 2017 [1929]), assumida pelos documentos oficiais
voltados ao ensino de língua no país (BRASIL, 2018), o que implica um trabalho
mais direcionado a essa vertente de compreensão linguística, sem que as outras
visões sejam desconsideradas na formação. Portanto, defendemos a pertinência
de verificar qual é o entendimento adquirido pelos futuros docentes no seu pe-
ríodo de graduação e preparação para a docência, para que seja possível pensar
em maneiras de proporcionar uma formação mais sólida acerca das perspectivas
linguísticas e seus desdobramentos pedagógicos.

Com isso, realizamos um estudo de caso (YIN, 2005) no contexto da gra-


duação em Letras de uma universidade pública localizada na região Sudeste do
Paraná. A pesquisa de campo foi realizada em quatro etapas: 1) levantamento ini-
cial, para análise das concepções teóricas e práticas assumidas pelos professores
em formação no começo da investigação; 2) ações de intervenção, com estudos
teóricos e práticos realizados em conjunto pelo pesquisador e pelos acadêmi-
cos, para apropriação dos conceitos e das práticas relacionadas à concepção de
linguagem como forma de interação e sua correspondente concepção de escrita
como trabalho, com foco em revisão e reescrita; 3) levantamento final, para verifi-
cação dos conhecimentos constituídos acerca das concepções de linguagem e de
escrita, principalmente no que diz respeito à perspectiva dialógica.

Neste artigo, analisamos alguns dados referentes apenas à primeira etapa


da pesquisa. Para isso, dividimos o trabalho em quatro seções. Na primeira, apre-
sentamos os aspectos teóricos que embasam a investigação; na segunda, analisa-
mos registros relacionados às concepções de linguagem e de escrita a partir de
respostas dos docentes em formação; na terceira, discutimos registros referen-
tes às práticas de revisão e reescrita, também com base em questões respondidas
pelos participantes da pesquisa.

Concepções de linguagem, escrita, revisão e reescrita

Ao analisar os estudos acerca da linguagem, Volóchinov (2017 [1929]) ve-


rificou a existência de duas tendências linguístico-filosóficas para compreensão

414
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

e abordagem do fenômeno linguístico, denominadas por ele como subjetivismo


idealista e objetivismo abstrato.

A primeira tendência entende que a linguagem é originada e definida no psi-


quismo individual e objetivada para fora, com ajuda de signos externos. A segunda
tendência apoia-se em uma noção de sistema, pois compreende que há formas
normativas na língua que são apenas mobilizadas pelos usuários (VOLÓCHINOV,
2017 [1929]). Em uma perspectiva, portanto, acredita-se que a linguagem, por ser
uma característica inerente ao ser humano, tem pouca influência externa; em ou-
tra, por se constituir instrumentalmente, é apenas um aparato técnico, indepen-
dente do indivíduo e das questões sociais.

Alguns postulados definem o ponto de vista de cada uma dessas tendên-


cias. Para o subjetivismo idealista: a) a língua se constitui na individualidade; b)
não há influências externas na criação linguística, o que vem de fora serve apenas
para objetivar o que já está sedimentado no indivíduo. Para o objetivismo abstra-
to: a) a língua é estável, imutável e sistêmica; b) as leis linguísticas são objetivas e
idênticas em todas as consciências subjetivas; c) não há relação significativa entre
sistema linguístico, ideologia, sociedade e história (VOLÓCHINOV, 2017 [1929]).
Percebemos, assim, que para essas visões a linguagem independe dos movimen-
tos sócio-histórico-ideológicos e dos próprios indivíduos, uma vez que as relações
são desconsideradas e a língua realiza a mesma função independente de seu lugar
de manifestação, além de não ter outro tipo de impacto na vida.

Para o Círculo de Bakhtin, nem subjetivismo idealista nem objetivismo abs-


trato conseguem definir e explicar corretamente o fenômeno linguístico, o que
conduz esses estudiosos à defesa de que

A realidade efetiva da linguagem não é o sistema abstrato de for-


mas linguísticas nem o enunciado monológico isolado, tampouco
o ato psicofisiológico de sua realização, mas o acontecimento
social da interação discursiva que ocorre por meio de um ou de
vários enunciados. (VOLÓCHINOV, 2017 [1929], p. 218-219).

Esse é o ponto de vista dialógico, que considera que a linguagem só pode


ser compreendida no ambiente social, em seus usos situados, no diálogo entre
interlocutores, pois a sua verdadeira realidade depende da vitalidade adquirida

415
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

no social, da dinamicidade da história. Não há, portanto, nada formulado a priori


na língua que não possa ser transformado, reformulado, ressignificado ou reva-
lorado. Existe um fator psicológico e existe um fator estrutural, mas a eles se im-
põem a interação discursiva realizada por enunciados e materializada em textos
(BAKHTIN, 2016 [1978]; VOLÓCHINOV, 2017 [1929]).

As três tendências linguístico-filosóficas destacadas são relidas pela


Linguística Aplicada no Brasil, com vistas ao processo de ensino e aprendizagem,
e renomeadas como: concepção de linguagem como expressão do pensamento,
concepção de linguagem como instrumento de comunicação e concepção de lin-
guagem como forma de interação (GERALDI, 2006 [1884]); correspondentes,
respectivamente, ao subjetivismo idealista, ao objetivismo abstrato e ao dialogis-
mo proposto pelo Círculo de Bakhtin. Cada uma delas inclui, também, concepções
de escrita, de leitura e de gramática, ou seja, práticas pedagógicas orientadas pela
compreensão da constituição da língua – destas, focaremos na escrita.

A concepção de linguagem como expressão do pensamento considera


que a linguagem apenas traduz aquilo que é produzido na mente dos indivíduos.
Nessa perspectiva, “ao considerar a língua como uma unidade imutável, não se
tem abertura para o estudo das variações linguísticas, uma vez que isso implica-
ria ‘variações’ de pensamento, algo incabível nesse contexto” (FUZA; OHUSCHI;
MENEGASSI; 2011). Isso se desdobra em uma concepção de escrita como dom/
inspiração, baseada na doutrina do certo e do errado, em que se prioriza o estudo
de regras e a imitação de modelos de correção e beleza que inspirem o dom par-
ticular do indivíduo. Qualquer produção que destoe desses ideais não cabe aos
padrões aceitos, considerados como verdadeiros e registrados nas gramáticas
(MENEGASSI, 2016).

Pouco diferente, em termos práticos, é na concepção linguagem como for-


ma de comunicação que, ao entender a língua como um código, privilegia um en-
sino gramatical, também pautado na doutrina do certo e do errado, como forma
de fornecer aos indivíduos os aparatos para que eles possam emitir e receber in-
formações. Assim, a sua correspondente concepção de escrita com foco na língua
“[...] concebe o ensino da produção escrita a partir do trabalho com a internali-
zação de regras gramaticais pelo aluno, que se efetivaria de maneira automática
nos textos escritos” (MENEGASSI, 2016, p. 203), o que implica, também, corrigir

416
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

todos os desvios gramaticais que se constituem como erros dentro de uma pro-
dução textual.

Com a concepção de linguagem como forma de interação ocorre uma mu-


dança de foco, em que nas situações de ensino e aprendizagem a língua passa a ser
vista em seu funcionamento enunciativo, o que leva em conta fenômenos que não
apenas os gramaticais. Esses fenômenos dizem respeito às situações de interlocu-
ção, às valorações, aos gêneros de diferentes esferas, dentre outras. Desdobra-se,
dessa visão, a concepção de escrita como trabalho, na qual se privilegia a ação
do sujeito sobre a linguagem para gerar a produção, pautada em seis aspectos
delimitados por Geraldi (1997 [1991]): a) ter o que dizer; b) ter uma razão para
dizer; c) ter para quem dizer; d) constituir-se autor; e) saber as estratégias para
a efetivação do processo. Assim, essa ação sobre a linguagem para produção tex-
tual passa a ter objetivos bem delimitados, além de incluir um efetivo trabalho,
representado, sobretudo, pelas etapas que compõem as atividades de escrita: a)
planejamento; b) execução; c) revisão; d) reescrita (MENEGASSI, 2013).

A primeira etapa se caracteriza pela preparação que antecede a escrita,


o que envolve definição de gênero, finalidade e interlocução, leituras e análises
textuais para ampliação de horizonte temático, seleção de informações, estudo
de estruturas composicionais, dentre outros. A segunda etapa é a execução da
primeira versão da escrita, pautada pela preparação. A terceira etapa é quan-
do o professor, com utilização de correções, apontamentos, questionamentos e
comentários, assume uma posição de interlocução e colabora na construção de
texto, orienta o aluno para que haja uma reescrita, a gerar nova versão, na quar-
ta etapa processual da escrita, que supere a produção inicial (GERALDI, 2016;
MENEGASSI; GASPAROTTO, 2016).

Assim, constatamos que há diferentes maneiras de compreender a lingua-


gem e de, consequentemente, proceder no ensino de língua. Verificamos, ainda,
que a abordagem dialógica fornece um conjunto mais amplo de possibilidades, já
que se apropria de noções de outras concepções, mas aprofunda as discussões
e possibilita abordagens metodológicas mais satisfatórias. É relevante destacar,
ainda, que a linguagem como forma de interação é a perspectiva adotada pelos
documentos oficiais que regem o ensino no Brasil, como a Base Nacional Comum

417
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Curricular (BRASIL, 2018), o que leva a uma reflexão acerca de seu entendimento
e domínio por parte dos professores e de sua presença nos cursos de formação.

Como base nesses pressupostos, realizamos um estudo de caso no contex-


to da formação docente inicial, a enfocar as concepções de linguagem, escrita, re-
visão e reescrita dos acadêmicos, pela perspectiva teórica. A metodologia empre-
gada é explicada na seção seguinte e esclarece como foram gerados os registros e
como esses foram posteriormente analisados.

Metodologia de pesquisa

Os registros apresentados e analisados neste artigo são oriundos de um


estudo de caso, tipo de investigação empírica que aborda, contextualmente, de-
terminado fenômeno contemporâneo (YIN, 2005). A unidade de análise do caso
é constituída por professores em formação inicial em Letras, no trabalho teórico,
metodológico e prático com os conceitos de revisão e reescrita, em abordagens
teórico-práticas que constituem o processo de escrita como trabalho (GERALDI,
1984; GERALDI, 1997 [1991]; FIAD; MAYRINK-SABINSON, 1991; MENEGASSI,
2016).

A pesquisa foi realizada no terceiro ano do curso de Letras, na disciplina de


Linguística Aplicada, de uma universidade pública da região Sudeste do Paraná.
Dos seis acadêmicos – aqui considerados docentes em formação – que compu-
nham a turma, três foram participantes ativos, pela presença em todas as etapas
propostas para a especificidade da investigação. Destacamos que, conforme Yin
(2005), no estudo de caso não há fórmulas para a rotina investigativa, o que sig-
nifica que as etapas e os instrumentos dependem da elaboração de um plano de
ação específico para a unidade de análise.

418
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Etapa Procedimento
Levantamento inicial
- Solicitação aos docentes em formação para realizar a revisão
em textos produzidos por alunos do Ensino Fundamental e
Médio;
- aplicação de questionário com abordagem da relação
pessoal dos alunos com as etapas de revisão e reescrita, o
conhecimento acerca desses conceitos e o entendimento a
respeito das concepções de linguagem e de escrita.
Ações de intervenção
- abordagem de textos teórico-metodológicos a respeito da
escrita como trabalho e das etapas de revisão e reescrita: 1º
texto – Portos de passagem (GERALDI, 1997 [1991]); 2º texto
– Revisão textual-interativa: aspectos teórico-metodológicos
(MENEGASSI; GASPAROTTO, 2016); 3º texto – Da revisão
à reescrita: operações linguísticas sugeridas e atendidas na
construção do texto (MENEGASSI, 2001); 4º texto – Base
Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018); 5º texto – Revisão
e reescrita nos documentos oficiais: conceitos e orientações
metodológicas (MENEGASSI; GASPAROTTO, 2014); 6º texto –
Como escrever textos (SERAFINI, 1995);
- realização de atividades de revisão e de reescrita em textos
de alunos do Ensino Básico selecionados pelos pesquisadores
de seu acervo pessoal de trabalho em sala de aula, para
desenvolver juntamente aos docentes em formação a prática
de revisão de textos, dos conceitos às metodologias;
- acompanhamento dos pesquisadores nos estágios realizados
pelos docentes em formação;
- auxílio dos pesquisadores na revisão dos textos produzidos
pelas turmas em que os docentes em formação realizaram seus
estágios, como forma de mobilizar conjuntamente e na prática
alguns conceitos dialógicos abordados no estudo teórico e
verificar sua efetividade na reescrita do texto.
Levantamento final - Aplicação aos docentes em formação de atividades de revisão
em textos escritos por alunos de Ensino Fundamental e de
Ensino Médio;
- aplicação de questionário com abordagem da relação
pessoal dos alunos com as etapas de revisão e reescrita, o
conhecimento acerca desses conceitos e o entendimento a
respeito das concepções de linguagem e de escrita.
Tabela 1. Etapas da pesquisa.

419
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Os registros analisados são dois e advêm apenas da segunda atividade do


levantamento inicial, mais especificamente, de respostas a duas questões, por um
único acadêmico: 1) O que é concepção de linguagem? E concepção de escrita? Em
sua posição de professor em formação, que concepção de linguagem você assu-
me? 2) O que é revisão? E reescrita?

Selecionamos apenas um acadêmico para objetivar a análise e, na esco-


lha, priorizamos um indivíduo participante do Programa institucional de Bolsa
de Iniciação à Docência – PIBID. Isto tem implicação nas análises, pois as noções
de concepção de linguagem, concepção de escrita, revisão e reescrita já eram de
conhecimento do participante quando do início da investigação, da mesma forma
que alguns conceitos do dialogismo, devido às disciplinas cursadas em anos ante-
riores do curso, como a que abordava os componentes de texto e enunciação, no
2º ano.

Quanto aos registros, optamos por abordar somente aqueles referentes ao


aspecto teórico no início da investigação, de modo a analisarmos a compreensão
conceitual dos docentes em formação em meio às experiências vividas até aquele
momento no curso de Letras. Excluímos os registros da intervenção e do levan-
tamento final, pois não correspondem aos objetivos do trabalho aqui delineado.

Ressaltamos que a pesquisa relatada foi aprovada pelo COMEP – Comitê


de Ética em Pesquisa, sob o parecer nº 2.850.150 (UNICENTRO), de 28 de agosto
de 2018.

Análise das respostas referentes às concepções de linguagem,


escrita, revisão e reescrita

Nesta seção, analisamos dois registros do estudo de caso realizado no


contexto da formação docente inicial. Problematizamos, nesses registros, a ex-
pressão de conhecimento teórico ou sua reprodução, por parte do professor
em formação, mediante alguns conceitos que envolvem o processo de ensino e
aprendizagem da escrita. A seguir, o primeiro registro.

420
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Figura 1. Resposta à primeira questão.

Podemos constatar, neste exemplo, que o docente em formação responde


a duas das três perguntas que compõem o enunciado completo da questão, e em
ambos os casos recorre ao dialogismo, o que demonstra um prévio contato com a
teoria. Ao definir concepção de linguagem, duas expressões conceituais centrais
da proposta do Círculo de Bakhtin são mencionadas: “produto vivo” e “interação
social”. Para os estudiosos do Círculo, a realidade da linguagem está na interação
enunciativa, ou seja, nos usos localizados, o que a torna um produto vivo, diferen-
temente das concepções originadas pelo subjetivismo idealista e pelo objetivismo
abstrato, que entendem a língua como um produto pronto e acabado (BAKHTIN,
2016 [1978]; VOLÓCHINOV, 2017 [1929]). Dessa forma, notamos que há uma
aproximação do acadêmico com elementos chaves da teoria dialógica, o que evi-
dencia prévio contato pelas experiências acadêmicas, além de uma identificação
pessoal.

Na sequência, para responder qual concepção de linguagem assume, o do-


cente em formação menciona o dialogismo diretamente: “Assumo a concepção de
Bakhtin que defende a linguagem como dialógica”. Esse aspecto é relevante, pois es-
clarece que as passagens ou conceitos citados são reconhecidos como parte de
uma teoria em específico, e não apenas de percepção aleatória por parte do parti-
cipante da pesquisa. Tal afirmação é reforçada pelas menções seguintes: “Relação
entre textos”, “discurso”, “discurso alheio”. Ao levantar a questão da relação entre
textos, o professor em formação dialoga tanto com Bakhtin (2016 [1978]) na
consideração de texto como materialização discursiva, quanto com os desdobra-
mentos na Linguística Aplicada, que apontam o conceito de texto como central na
dialogia pedagógica (FUZA; OHUSCHI; MENEGASSI, 2011). Ao citar discurso, es-
tabelece relação com a noção de interação destacada anteriormente e evidencia a

421
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

visão dialógica de linguagem, que não se basta pelo sistema ou pelo psicologismo
(VOLÓCHINOV, 2017 [1929]). Isso demonstra que o professor em formação não
só teve contato com o dialogismo, como também tomou essa perspectiva para si.

No entanto, não podemos afirmar ainda que o docente em formação te-


nha constituído conhecimento a respeito das noções de concepção de linguagem
e de escrita, o que há é uma reprodução de passagens de determinada teoria.
Primeiramente, percebemos que há um equívoco quanto à compreensão da pala-
vra “concepção” nesse contexto. Ao responder que concepção de linguagem “[...]
acontece por meio da interação social”, notamos que o docente aponta para uma
explicação do processo de “formação” ou “constituição” da linguagem, e não para
a noção de compreensão teórico-filosófica ou metodológica do fenômeno. Com
isso, constatamos que as noções mobilizadas são reconhecidas como integrantes
de um escopo teórico, portanto, há uma constituição de conhecimento em curso,
mas não consolidado, evidenciada pela reprodução de determinados aspectos.

Ainda, ao responder sobre concepção de linguagem, o docente em for-


mação não menciona a existência de nenhuma outra abordagem teórica, como
subjetivismo idealista e objetivismo abstrato, para o caso da definição linguísti-
co-filosófica (VOLÓCHINOV, 2017 [1929]). Assim, verificamos duas possibilida-
des nesse entendimento: a) de que o dialogismo é uma concepção única; b) de
que uma concepção de linguagem exclui ou ultrapassa a anterior, e não que elas
coexistem e, no caso do processo de ensino e aprendizagem, estão presentes nas
práticas dos professores, mesmo que com ênfase distinta em diferentes épocas
(FUZA; OHUSCHI; MENEGASSI, 2011). Na primeira hipótese, mesmo com o pro-
vável contato, em disciplinas do curso e experiências do PIBID, as demais con-
cepções não foram entendidas como formas de compreensão da linguagem, tais
como o dialogismo; na segunda, possivelmente pelo pouco tempo de maturação,
pelo aspecto linear do estudo das perspectivas teóricas no curso ou pela presença
da noção dialógica nos documentos oficiais, o dialogismo é considerado pelo do-
cente em formação como a única concepção da atualidade, por ter, na visão dele,
superado as anteriores.

Constatamos, ainda, que a reprodução teórica apresentada no exemplo


não dá conta das distinções entre posição teórico-filosófica com relação à lingua-
gem (VOLÓCHINOV, 2017 [1929]) e seus desdobramentos na área da Linguística
Aplicada no Brasil (GERALDI, 1984; GERALDI, 1997 [1991]; FIAD; MAYRINK-
SABINSON, 1991; MENEGASSI, 2016). Mesmo que tenha citado apenas o

422
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

dialogismo, o docente em formação não faz nenhuma menção ao seu correspon-


dente nas práticas de ensino e aprendizagem: a linguagem como forma de intera-
ção (FUZA; OHUSCHI; MENEGASSI, 2011). Todas as noções mencionadas, por
exemplo, de “interação”, “produto vivo”, “discurso”, dentre outras, não são desdobra-
das em orientadoras à prática pedagógica, portanto, ao afirmar “Assumo a concep-
ção de Bakhtin [...]”, na realidade, destaca que corrobora com passagens da teoria.
Isso se deve, certamente, ao pouco tempo de estudo e, talvez, por algum tipo de
fragmentação entre as disciplinas, a separar demasiadamente as diferentes abor-
dagens teóricas e suas implicações pedagógicas.

A afirmação de que não há compreensão dos desdobramentos do dialo-


gismo nas teorias e práticas de ensino e aprendizagem no Brasil também pode
ser confirmada pela ausência de resposta ao trecho “O que é uma concepção de
escrita? ”. Percebemos que o docente em formação responde às perguntas que
tratam de linguagem, conceito presente e discutido pelo Círculo de Bakhtin
(VOLÓCHINOV, 2017 [1929]), diferente da ideia de “escrita” diretamente, que
aparece com mais ênfase nos desdobramentos da perspectiva dialógica na área da
Linguística Aplicada, com a “escrita como trabalho” (GERALDI, 1984; GERALDI,
1997 [1991]; FIAD; MAYRINK-SABINSON, 1991; MENEGASSI, 2016). Por outro
lado, assumimos que a formulação do enunciado da questão foi falha no sentido
de reunir três perguntas, o que abre a possibilidade para que alguns pontos sejam
ignorados. A seguir, o segundo registro.

Figura 2. Resposta à segunda questão.

Como vimos anteriormente, o docente em formação não fornece nenhuma


resposta à pergunta “O que é uma concepção de escrita? ”. Por outro lado, como
fica evidente pela Figura 2, busca explicar os conceitos de revisão e reescrita, pre-
sentes na perspectiva de escrita como trabalho (GERALDI, 1984; GERALDI, 1997
[1991]; FIAD; MAYRINK-SABINSON, 1991; MENEGASSI, 2016). Isso demonstra

423
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que, se houvesse um enunciado único para questionar acerca da escrita, o par-


ticipante provavelmente também apresentaria definições para o conceito, o que
confirma seu contato com a teoria aplicada ao ensino em determinados momen-
tos da graduação.

Esse contato se mostra enfático no primeiro trecho da definição de rees-


crita: “Reescrita é ‘melhorar’ a produção de um texto”, que resume de forma direta o
objetivo da etapa de reescrita (MENEGASSI, 2013) e deixa marcas da perspectiva
de linguagem como forma de interação pelo uso de aspas em “melhorar”, prova-
velmente como forma de evitar a interpretação de “melhoria” como posterior a
algo “ruim”. Assim, o docente em formação parte de traços de concepções origi-
nadas do dialogismo, principalmente pela consideração de que há uma caracte-
rística processual na escrita, que não pretende destacar a inferioridade de uma
produção em relação à outra, mas o que se pode avançar mediante a considera-
ção de texto como a materialização dos discursos dos alunos (FUZA; OHUSCHI;
MENEGASSI, 2011; GERALDI, 2016).

O docente em formação também busca relativizar a palavra “erro” ao ex-


plicar o foco da reescrita: “corrigir os ‘erros’ de coesão, coerência e ortografia”. O uso
de aspas indica que seu objetivo era usar a palavra fora de seu significado mais
conhecido ou rotineiro, certamente pela ausência de outro vocábulo que pudesse
ser usado em seu lugar para representar o sentido apropriado das perspectivas
teóricas com as quais teve contato. Dessa forma, mesmo que não cite nenhuma
outra concepção de cunho linguístico-filosófico ou desenvolvida na Linguística
Aplicada, o docente em formação faz oposição a subjetivismo idealista/lingua-
gem como expressão do pensamento e objetivismo abstrato/linguagem como
instrumento de comunicação, principalmente por tentar se afastar da doutrina
do certo e do errado (FUZA; OHUSCHI; MENEGASSI, 2011; MENEGASSI, 2016;
VOLÓCHINOV, 2017 [1929]).

Porém, não podemos afirmar, por esses indícios, que há conhecimento


teórico acerca das noções de revisão e de reescrita dentro da perspectiva de
escrita como trabalho, e sim, reprodução de alguns aspectos pontuais da teoria.
Para definir revisão, por exemplo, o docente em formação recorre a outros sen-
tidos possíveis à palavra – até mesmo presentes no próprio contexto de ensino e
aprendizagem, como “retomada de conteúdos” – mas que não se referem especifi-
camente à revisão dentro do processo de escrita como trabalho, em suas quatro
etapas: preparação, execução, revisão e reescrita (MENEGASSI, 2013). Assim, são
pontuados alguns aspectos pertinentes à reescrita, mas sem relação com etapas

424
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

anteriores, o que demonstra que, se existiu contato com a teoria ou até mesmo
com a metodologia, não houve tempo suficiente para maturação.

Segundo a definição do docente em formação, a revisão se caracteriza por


“retomar conteúdos antes da produção de um texto”, o que não condiz com as eta-
pas da produção escrita pela perspectiva do trabalho, em que a revisão só ocorre
depois da escrita de um texto, tomado como provisório, de forma a originar uma
versão mais completa e adequada aos objetivos, interlocutores, dentre outras
coisas (MENEGASSI, 2013; MENEGASSI; GASPAROTTO, 2016). Dessa forma,
tudo o que antecede a escrita de um texto não diz respeito à revisão, embora seja
retomado nesse momento, mas à etapa de preparação. Portanto, a retomada de
conteúdos pode ser considerada como uma das possibilidades da primeira etapa,
mas apenas se compreendida como síntese de outras atividades como definição
de gênero, finalidade e interlocução, leituras textuais diversas, seleção de infor-
mações, estudo da estrutura composicional, dentre outras (MENEGASSI, 2013).
Percebemos, assim, que a reprodução teórica de reescrita não se faz na relação
com a revisão, o que demonstra que o professor em formação não alcançou ainda
a compreensão conceitual básica da divisão em etapas e, em seu contato com a
teoria, tomou para si aquilo que era novo – reescrita – e manteve a visão já conso-
lidada de um termo mais reconhecido em outros campos e perspectivas – revisão.

Dessa forma, notamos que o docente em formação não estabelece rela-


ção entre revisão e reescrita. Ao afirmar, por exemplo, “Reescrita é ‘melhorar’ a
produção de um texto, corrigir os ‘erros’ de coesão, coerência e ortografia”, não expli-
ca como será realizada a correção dos erros. Além disso, não esclarece se o pro-
fessor desempenha algum papel nessa etapa e nem mesmo se sua resposta faz
referência ao processo de ensino e aprendizagem. Essa constatação fortalece a
interpretação de que há uma incompreensão do docente em formação a respeito
das relações entre perspectivas linguístico-filosóficas, teóricas e metodológicas,
certamente devido ao pouco tempo de apreensão ou pelas questões curriculares
do curso, porém, não desenvolvida, também, em sua participação no PIBID, que
aborda enfaticamente a questão pedagógica.

Outro indício que demonstra uma dificuldade em separar as diferentes


concepções e mobilizar seus conceitos está na relativização, pelo uso de aspas
em “melhorar” e “erros”. Interpretamos, anteriormente, que o docente em forma-
ção, certamente influenciado pelo contato com concepções dialógicas, passou
a perceber esses vocábulos como inadequados na relação pedagógica, por afir-
marem uma doutrina do certo e do errado, própria às concepções de linguagem

425
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

como expressão do pensamento e linguagem como instrumento de comunicação


(FUZA; OHUSCHI; MENEGASSI, 2011; MENEGASSI, 2016). Embora tenha essa
atitude de concordância aos equívocos gerados por tais vocábulos, o docente
completa a resposta com três elementos centrais tomados pela doutrina do certo
e do errado como parâmetros de correção: “[...] corrigir erros de correção, coerência e
ortografia”. Destacamos que esses itens também são focalizados pelo dialogismo,
no entanto, sempre em relação a outros conceitos, como: palavra, gêneros do dis-
curso, tema, estilo, valoração, contexto extraverbal, fora do horizonte do docente
em formação, evidentemente.

Dessa forma, percebemos que diferentes perspectivas teóricas estão pre-


sentes direta ou indiretamente nas respostas do docente em formação, o que ca-
racteriza a construção de conhecimento em curso, porém, ainda com um aspecto
de reprodução, já que os fragmentos teóricos apreendidos pelas experiências
acadêmicas ainda não são apresentados de forma organizada, dentro de suas es-
pecificidades, nas enunciações do professor em formação.

Considerações finais

Com base em pressupostos do dialogismo proposto pelo Círculo de Bakhtin


e em seus desdobramentos na área da Linguística Aplicada, nosso objetivo foi dis-
cutir as concepções de linguagem, escrita, revisão e reescrita na formação docen-
te inicial em Letras no Ensino Superior. Constatamos, pela análise dos registros: a)
reprodução teórica da concepção dialógica; b) consideração de dialogismo como
a concepção atual; c) indistinção entre posições teórico-filosóficas sobre a lingua-
gem e seus desdobramentos pedagógicos; d) dificuldades na caracterização de
revisão e de reescrita em sua relação com a escrita como trabalho.

A reprodução teórica é evidenciada, na primeira resposta, pela menção


a conceitos como “produto vivo”, “interação social”, “discurso” e “discurso alheio”
(VOLÓCHINOV, 2017 [1929]); na segunda, pela relativização de palavras como
“melhorar” e “erros” (FUZA, OHUSCHI; MENEGASSI, 2011; GERALDI, 1997
[1997]). Em ambos os casos, o docente em formação apenas reproduz dados teó-
ricos com os quais teve contato nas experiências acadêmicas, porém, não os de-
senvolve em função das definições que pretende apresentar. Além disso, o que
pudemos notar foi um caráter fragmentário na mobilização conceitual, o que é
compreensível pelo pouco tempo para apropriação das perspectivas.

426
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Essa reprodução de fragmentos teóricos é reforçada ao percebermos que


o docente em formação não coloca o dialogismo em interação ou oposição com
nenhuma outra perspectiva. Isso demonstra que ele considera a teoria dialógica
como a “teoria atual”, ou seja, aquela que superou as anteriores. Assim, mencio-
nar conceitos dialógicos contribui para que o docente se mostre atualizado e con-
cordante às perspectivas atuais. Por outro lado, essa atitude também demonstra
pouco aprofundamento quanto às diferentes concepções e sua característica de
coexistência, mesmo que com relevância distinta.

Ainda, mesmo que tenha mencionado apenas o dialogismo proposto


pelo Círculo de Bakhtin (VOLÓCHINOV, 2017 [1929]), o docente em formação
não aponta nenhum correspondente dessa abordagem linguístico-filosófica na
Linguística Aplicada ou, de forma mais geral, no ensino. Assim, notamos que nesse
estágio de sua formação, o docente ainda não estabelece distinções entre con-
cepção teórico-filosófica e suas aplicações ou diferentes leituras pela Linguística
Aplicada desenvolvida no Brasil (FUZA; OHUSCHI; MENEGASSI, 2011; GERALDI,
1997 [1991]; MENEGASSI, 2013; MENEGASSI, 2016).

Tal constatação é reforçada pelos aspectos apresentados para a defini-


ção de revisão e de reescrita (MENEGASSI, 2013; MENEGASSI; GASPAROTTO,
2016). Mesmo que tenha reproduzido indiretamente alguns dados teóricos na
formulação da resposta, o professor em formação não fez relação entre os con-
ceitos – o que seria um primeiro indício de compreensão, não apresentou defini-
ções assertivas para os conceitos e não estabeleceu nenhuma relação deles com a
noção de concepção de escrita ou escrita como trabalho.

Assim, vemos a importância de uma abordagem concreta das tendências


linguístico-filosóficas e das concepções de linguagem e escrita na formação do-
cente inicial, de forma a que os futuros professores possam avaliar criticamente
sua pedagogia, pois, como afirma (GERALDI, 2016), o estudo das diferentes com-
preensões de linguagem é importante não para que sejam ignoradas algumas e
tomadas como verdadeiras outras, mas para que sejamos conscientes e autores
de nossas próprias práticas, fundamentadas por distintas visões.

Referências

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso.


1. ed. Organização, tradução, posfácio e notas: Paulo Bezerra. Notas da edição
russa: Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016 [1978].

427
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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Oficiais: conceitos e orientações metodológicas. Signum, Londrina, n. 17/2, p.
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co-metodológicos. Domínios de linguagem, Uberlândia, MG, v. 10, n. 3, 2016.
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VOLÓCHINOV, V. N.. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamen-
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YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 3. ed. Tradução: Daniel Grassi.
Porto Alegre: Bookman, 2005.

428
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

LEITURA DE CHARGE EM LIVRO


DIDÁTICO DA EJA: ANÁLISE A PARTIR
DA PERSPECTIVA DIALÓGICA

Flávia Gumieiro Vieira1


Cristiane Malinoski Pianaro Angelo2

RESUMO: Este trabalho, que faz parte de uma pesquisa de mestrado em anda-
mento, analisa as atividades de leitura propostas no livro didático - LD de Língua
Portuguesa “Caminhar e transformar” (FERREIRA, 2013), destinado ao públi-
co da Educação de Jovens e Adultos – EJA, anos finais do ensino fundamental.
Selecionaram-se para este trabalho as atividades de leitura do gênero charge,
presentes na unidade “Trabalho e transformação” do LD. Considerando o paradig-
ma qualitativo de pesquisa, tem-se por objetivo verificar de que modo são abor-
dadas as atividades de leitura da charge, na unidade didática selecionada. Para
tanto, tomam-se como referenciais teóricos os pressupostos do dialogismo, a
partir do Círculo de Bakhtin (VOLÓCHINOV; 2013; BAKHTIN, 2010), como tam-
bém os estudos da área da Linguística Aplicada no Brasil no que se refere à leitura
(MENEGASSI et al., 2020; ROJO, 2009). Os resultados indicam que as propostas
de leitura da charge no LD mostram-se superficiais, a exigir do aluno, na maio-
ria das vezes, uma mera localização de elementos expostos no texto. Entretanto,
com o conhecimento dos conceitos dialógicos, como enunciado, situação extra-
verbal e valoração, é possível que se propiciem para as mesmas atividades do LD

1 Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO). flavynha_gv@hotmail.com


2 Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). cristiane.mpa@gmail.com

429
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ampliações que favoreçam um olhar crítico para o texto e para a sociedade, no


que se refere a questões como preconceito, discriminação e desigualdade social.

PALAVRAS-CHAVE: Dialogismo; Livro didático; Charge.

ABSTRACT: This work, which is part of a master´s research in progress, analyzes the
reading activities proposed in the textbook – LD of Portuguese Language “Walking and
transforming” (FERREIRA. 2013), aimed at the public of Youth and Adult Education
– EJA, final years of elementary school. For this work, the reading activities of the
charge genre, present in the “Work and Tranformation” unit of the LD, were selected.
Considering the qualitative research paradigm, the objective is to verify how the ac-
tivities of reading the cartoon are approached, in the selected didactic unit. Therefore,
the assumptions of dialogism are taken as theoretical references, based on the Circle
of Bakhtin (VOLÒCHINOV, 2013; BAKHTIN, 2010), as well as studies in the area of
Applied Linguistics in Brazil with regard to reading (MENEGASSI ET AL., 2020; ROJO,
2009). The results indicate that the proposals for reading the cartoon in the LD are su-
perficial, requiring the student in most cases a mere location of elements exposed in
the text. However, with the knowledge of the dialogical concepts, as stated, extraverbal
situation and valuation, it is possible that the same activities of the LD can be extended
to favor a critical look at the text and society, with regard to issues such as prejudice,
discrimination and social inequality.

KEYWORDS: Dialogism; Textbook; Cartoon.

Introdução

Neste trabalho analisam-se as atividades de leitura propostas no livro di-


dático - LD de Língua Portuguesa “Caminhar e transformar” (FERREIRA, 2013),
destinado ao público da Educação de Jovens e Adultos – EJA, anos finais do ensino
fundamental. Selecionaram-se para este trabalho as atividades de leitura do gê-
nero charge, presentes na unidade “Trabalho e transformação”, no capítulo 1, inti-
tulado “O trabalho em foco”. Para as análises mobilizam-se os conceitos dialógicos
na perspectiva do Círculo de Bakhtin (VOLÓCHINOV; 2013; BAKHTIN, 2010;
2008; BAKHTIN; VOLOCHINOV, 2006), especialmente os conceitos de extraver-
bal, entonação e valoração. Segundo os teóricos do Círculo, as relações dialógicas
constituem o discurso, dessa maneira, a interação social é essencial para que a
compreensão dos enunciados aconteça. Nesse sentido, é importante observar se
as perguntas de leitura propostas para a charge no LD promovem tais relações.

430
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Na unidade didática selecionada, são propostas apenas três perguntas de


leitura sobre a charge, sendo que a orientação do livro é para que sejam discuti-
das oralmente. Menegassi (2010) pontua que as perguntas de leitura possibilitam
ao aluno-leitor-escritor a produção de sentidos do texto e aponta, conforme os
pressupostos de Solé (1998), que há três tipos de perguntas, que são as de res-
posta textual, de resposta inferencial e de resposta interpretativa. Além disso,
Menegassi (2019) afirma que um dos principais instrumentos empregados em
sala de aula são as perguntas de leitura, dessa forma, é importante estudá-las,
uma vez que elas podem promover a criticidade de alunos-leitores.

Rojo (2003) afirma que é na interação entre textos e sujeitos que há a


construção de sentidos de um texto, considerando-se que nessas relações está
presente um conjunto de saberes no interior do evento comunicativo. Menegassi
(2010, p. 175), ao falar de interação, aponta que “o autor e leitor são sujeitos ati-
vos que dialogam, que se constroem e são construídos no texto, que é considera-
do o próprio lugar da interação e da constituição dos interlocutores”. Ressalte-se
que esse processo é indissociável do extraverbal, das condições de produção e das
valorações que autor e leitor apresentam um do outro, de si próprio e do tema do
enunciado.

Assim, com a análise busca-se compreender se as perguntas de leitura pro-


postas para a charge exploram conceitos axiológicos inerentes à produção de sen-
tidos aos enunciados, bem como se buscam explicitar quais as possibilidades para
que o professor trabalhe esse enunciado em sala de aula.

Para tanto, o trabalho está dividido em três partes: a primeira compõe-se


de discussões acerca dos conceitos axiológicos de extraverbal, entonação e valo-
ração, os quais não podem ser dissociados de conceitos mais amplos como dialo-
gismo, discurso, interação, enunciado; a segunda parte apresenta a metodologia
desenvolvida e, por fim, a terceira parte trata da análise dialógica da charge, bem
como das perguntas de leitura sugeridas para o trabalho com a charge.

Conceitos axiológicos do Círculo de Bakhtin

Pensar a linguagem na perspectiva dialógica é tomá-la como interação,


como atividade social constituída por meio da relação com o outro. Essa interação
verbal constitui, portanto, a “realidade fundamental da língua” (VOLÓCHINOV,
2013, p. 129). Para Bakhtin (2010):

431
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Nossa fala, isto é, nossos enunciados [...] estão repletos de pala-


vras dos outros. (Elas) introduzem sua própria expressividade,
seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modifica-
mos. [...] em todo o enunciado, contanto que o examinemos com
apuro, [...] descobriremos as palavras do outro ocultas ou semio-
cultas, e com graus diferentes de alteridade. (BAKHTIN, 2010, p.
314-318).

Dessa forma, os enunciados dialogam com outros já existentes, assim como


diversas possibilidades de interpretação podem ser atribuídas aos enunciados.
Com isso, pode-se perceber que Bakhtin leva em consideração as relações dia-
lógicas, as quais são extralinguísticas. O autor afirma, ainda, que “o diálogo é uma
das formas mais importantes da interação verbal” (BAKHTIN; VOLOCHINOV,
2006, p. 123), não apenas a comunicação em voz alta, em uma conversa entre
pessoas, por exemplo, mas em qualquer tipo de comunicação. Conforme Fiorin
(2016), o princípio unificador da obra de Bakhtin é o dialogismo, o qual compreen-
de as intersecções entre os valores sociais que constituem o enunciado, a unidade
da comunicação discursiva (BAKHTIN, 2010).

Na mesma linha, Scorsolini-Comin e Santos (2010) pontuam que o dialo-


gismo pode ser visto de modos distintos: como um princípio interno da palavra,
repleto de valores, o que faz com que o falante se depare com inúmeras vozes;
como a dialogicidade dos enunciados, uma vez que um enunciado está vinculado
a outro, ou seja, há enunciados que vieram antes e os que virão depois, pois ne-
nhum enunciado é inédito e/ou único; e, por fim, como as várias vozes acerca de
um tema específico.

Uma forma de diálogo explicada por Bakhtin e Volochinov (2006) é a com-


preensão, pois compreender é contrapor à palavra do locutor uma contrapalavra,
na qual a significação só se efetiva no processo de compreensão ativa e responsiva.

Sendo assim, ao compreender o sentido do ato linguístico, o leitor pode


concordar, discordar, seja total ou parcialmente com o enunciado, e, dessa for-
ma, o ouvinte também se torna falante, toma parte do texto ao compreendê-lo,
uma vez que para que a compreensão aconteça é necessário que o leitor/ouvinte
observe o não dito e o contexto histórico-social em que o enunciado foi lança-
do.

Essa compreensão repleta de responsividade implica em juízo de valor,


pois a discordância e/ou a concordância dos enunciados atribuem elementos

432
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ideológicos ao discurso. Quanto à noção de valor, Bakhtin (2010) aponta que, em


cada um dos aspectos da vida, viver significa uma posição de valores, uma vez que
o eu e o outro são as categorias fundamentais de valores.

Santana (2017), ao discutir o conceito de valoração no Círculo de Bakhtin,


aponta que:

A valoração é um elemento importante na obra, em que o autor


justapõe responsivamente os enunciados (e todos os outros ele-
mentos) à história e à memória ideológica sociais. Esse plano,
chamado de axiologicamente valorativo, se faz de modo respon-
savelmente racional, ou seja, é o ponto nevrálgico em que a obra
mantém contato pleno com outras vozes que a atravessam, e aí
reside seu valor interdiscursivo. (SANTANA, 2017, p. 240).

O autor diz, ainda, que o valor axiológico que um autor atribui a uma obra
estabelece vínculos com outras vozes/valorações e que “a postura axiológica con-
siste na presença constitutiva do outro em mim” (SANTANA, 2017, p. 240), ou
seja, os enunciados são sempre atravessados por outros enunciados.

As palavras são carregadas de valores culturais, opiniões, contradições,


conflitos, e essas reações, por parte do outro, ocorrem por serem carregadas de
sentidos ideológicos. Sobral (2012, p.22) diz que “valor é sempre valor para su-
jeitos, numa dada situação”, sendo que cada pessoa tem seu universo de valores.

Outro elemento que constitui a palavra e expressa a atitude de valor do


indivíduo é a entonação (SOUZA, 2002). A respeito dela, Sobral (2009) discorre
acerca do sujeito e suas relações com o interlocutor e o momento da interlocução,
pontuando que o sujeito imprime um tom avaliativo nas enunciações, ou seja, o
discurso proferido ao outro tem relação com a posição social, a qual é resultado
das suas interações com o outro. Uma mesma palavra pode ser enunciada diver-
sas vezes, porém, com diferentes significados, pois seu julgamento de valor de-
pende, também, da maneira como ela foi entonada.

Além da entonação e da valoração, o contexto extraverbal tem importan-


te papel na compreensão de enunciados. Volochinov e Bakhtin (1976) dizem que
o extraverbal é constituído por três elementos: 1) o horizonte espacial; 2) o co-
nhecimento e a compreensão comum da situação comunicativa por parte dos in-
terlocutores; e 3) a avaliação comum da situação. Menegassi e Cavalcanti (2013)
explicam esses conceitos, dizendo que o horizonte espacial é a unidade visível,
envolve o conhecimento físico em que o enunciado é realizado e o conhecimento

433
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ideológico dos falantes sobre as condutas que devem ter nesse espaço determina-
do; o conhecimento e a compreensão comum da situação comunicativa por parte
dos interlocutores têm a ver com o contexto histórico cultural, bem como com
os conhecimentos que os envolvidos têm em comum tanto quanto ao tema como
quanto às posições sociais de cada interlocutor; e a avaliação comum da situação
refere-se aos valores que permeiam a interação e compõem o horizonte social.

Volochinov e Bakhtin (1976) afirmam, ainda, que um enunciado concreto é


formado por duas partes, a parte percebida e a parte presumida. A parte percebi-
da é a parte realizada em palavras e em outros signos, e a parte presumida com-
preende a conjuntura espacial e temporal, o conhecimento compartilhado entre
os interlocutores e a avaliação também dá sustentação ao enunciado. Os autores
afirmam, também, que uma pessoa ignorante desse contexto não compreenderá
o enunciado. Dessa maneira, os interlocutores ao se valerem dos conhecimentos
que têm em comum, a parte percebida (em palavras e imagens), juntamente com
a parte presumida conseguem fazer análise da situação extraverbal e promover
uma conclusão avaliativa do enunciado.

No pensamento do Círculo, a axiologia é fundamental, pois é por meio


do posicionamento valorativo que o sujeito se posiciona e estabelece relações
axiológicas com o conteúdo dos enunciados. Assim, os conceitos do Círculo de
Bakhtin contribuem para a análise de enunciados, não levando em consideração
apenas o aspecto linguístico, mas as interações, a dialogicidade, as axiologias, pois
todos esses elementos favorecem a compreensão e a construção de sentidos dos
enunciados.

Em uma discussão pedagógica da teoria dialógica, Bezerra (2020, p. 28)


aponta que o aluno, enquanto interlocutor, necessita perceber o discurso do ou-
tro e as axiologias culturalmente construídas no discurso. A autora diz, ainda, que
“ao reagir ativamente e utilizar-se de discursos produzidos na sociedade, via e a
partir do livro didático, o discente está indubitavelmente, a estabelecer um diá-
logo com os diversos contextos culturais, históricos e institucionais nos quais a
interação verbal acontece”.

Metodologia

O livro didático escolhido é o da coleção “Caminhar e transformar”, autoria


de Priscila Ramos de Azevedo Ferreira, destinado a alunos da Educação de Jovens
e Adultos - EJA dos anos finais do Ensino Fundamental.

434
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

O livro é composto por quatro unidades, cada uma dividida em quatro capí-
tulos. Os assuntos abordados atendem aos interesses e necessidades do público
alvo, tais como identidade e diversidade, meio ambiente e sustentabilidade, tra-
balho, cidadania, direitos humanos, etc. Todos esses temas promovem percepções
críticas acerca da sociedade.

No livro há diversos gêneros discursivos, os quais atuam como organizado-


res da comunicação no dia a dia Rojo e Barbosa (ROJO; BARBOSA, 2015, p. 17)
“permeiam nossa vida diária e organizam nossa comunicação”. Assim, estão pre-
sentes no LD os gêneros carta, poema, tirinha, biografia, autobiografia, crônica,
propaganda, conto, charge, reportagem, entrevista, artigo de opinião, etc. Todos
esses usos da linguagem estão ligados aos diversos campos da atividade humana,
uma vez que foram historicamente construídos a partir da atuação humana.

Para este artigo, escolheram-se as atividades de leitura do gênero charge,


presentes no capítulo 1 da unidade 3 do livro didático “Caminhar e Transformar”. A
atividade de leitura selecionada para a presente análise é referente a uma charge.

A charge é um gênero curto, o qual se instaura a partir de leituras de re-


cortes de eventos de circulação nacional e/ou local, alicerçando-se no meio polí-
tico, ideológico e social, com frases de ironia, recursos imagéticos, símbolos, etc.
(SANTANA; GUEDES; LIRA, 2017). É por meio da sátira que a charge apresenta
alguma crítica. Sua circulação pode acontecer em jornais, revistas, televisão, in-
ternet, entre outros. Pode possuir linguagem verbal e não verbal, geralmente são
pequenas falas e frases com imagens. Magalhães (2006) afirma que a charge está
ligada à necessidade do homem de produzir críticas à sociedade, principalmente
em relação à política. Dessa maneira, é possível que a charge seja vista como prá-
tica social, pois cada leitor pode atribuir sentidos a ela.

Escolheu-se a proposta de leitura da charge para que fosse possível obser-


var as axiologias presentes em sua construção dialógica, bem como verificar como
as perguntas de leitura conduzem o professor e o aluno a trabalhar essas percep-
ções axiológicas, que vêm acompanhadas por visões de mundo dos sujeitos.

A charge selecionada foi produzida por Hubert de Carvalho Aranha3, cria-


dor e redator de humor nos jornais e programas O Planeta Diário, Programa
Legal, Casseta & Planeta. Suas charges são publicadas também na mídia impressa,
como a Folha de São Paulo, Jornal do Brasil etc. Atualmente, Aranha desenvolve

3 Disponível em: http: //www.casseta.com.br/hubert/tag/folha/. Acesso em: 26 out. 2020.

435
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

projetos para a televisão aberta, a cabo e internet na Rede Globo. Em suas char-
ges, Aranha promove críticas a quem está ou esteve no poder.

Análise dialógica da charge e das perguntas de leitura presentes


em livro didático de EJA

Imagem 1. Charge de Hubert para o IX Salão de Humor de Piracicaba, 1982


Fonte: Ferreira, 2013, p. 139.

Após a apresentação da charge, são indicadas três perguntas para que se-
jam discutidas oralmente com os colegas, sob mediação do professor.

1. Qual é a profissão da personagem representada na charge? Que caracterís-


ticas permitem identificar essa profissão?

2. A quem a personagem se dirige ao anunciar o começo do programa de tele-


visão? Qual é o público-alvo desse programa?

3. O que a fala da personagem revela sobre as diferenças sociais no Brasil?


(FERREIRA, 2013, p. 139).

Considera-se que, diante do questionamento “Qual é a profissão da per-


sonagem representada na charge? Que características permitem identificar
essa profissão? ”, os alunos podem logo responder “diarista” e/ou “empregada

436
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

doméstica” com a observação da imagem e da fala da personagem, uma vez que


na charge a mulher está de avental, lenço amarrado na cabeça, vassoura na mão,
o que, de imediato, leva o aluno a estabelecer relações de tais características com
a profissão de doméstica. Além disso, a mulher é negra, e na sua fala profere a
palavra “madame”, o que pode reforçar a resposta dos alunos.

Ao promover discussões sobre os estereótipos de empregadas domésticas


criados pela sociedade, problematiza-se como esses estão enraizados na cultura,
podendo ser observados em novelas e outros programas televisivos, pois geral-
mente as empregadas domésticas representadas são negras, residentes da pe-
riferia. Esses estereótipos nas novelas revelam o preconceito que visivelmente
existe na sociedade. Todos esses aspectos não são percebidos nas palavras ou na
imagem, mas nas relações entre o enunciado e a situação extraverbal, ou seja, a
parte subentendida, que envolve o contexto e o conhecimento de mundo que o
leitor já tem.

Na questão 2 “A quem a personagem se dirige ao anunciar o começo do


programa de televisão? Qual é o público-alvo desse programa?”, ao se conside-
rar que a profissão da mulher é empregada doméstica, logo, poderão inferir que a
personagem se dirige à sua patroa. Em relação ao público-alvo do programa, ex-
plicitado na expressão “mulher brasileira”, é possível inferir que é a patroa, branca,
sem dificuldades financeiras, possivelmente com um grau de estudo mais elevado,
etc. O vocativo “madame” permite a discussão acerca das diferentes significações
da palavra, a depender do contexto: senhora/esposa; uma mulher que está sem-
pre bem arrumada, bonita e elegante; alguém que não gosta de fazer atividades
domésticas; e em outra situação, proprietária de casa de prostituição.

Num viés discursivo, a charge compõe-se de uma multiplicidade de vozes


que contribuem para a produção de sentidos. Quando a empregada diz “Madame,
seu programa começou” ao se referir a um programa de televisão, cujo discurso
do apresentador foi “No ar, o programa da mulher brasileira”, há uma quebra de
expectativa da resposta da empregada ao anúncio do programa da tv, pois tal pro-
grama é destinado à mulher brasileira e, nessa situação, a empregada entende que
o programa é para as patroas e não para todas as mulheres brasileiras, o que se
reforça pelo uso do pronome possessivo “seu”. Vale lembrar que “seu”, é um pro-
nome possessivo da 3ª pessoa; indica posse ou interesse, no caso dessa charge,
posse ou interesse da patroa ou de mulheres como a patroa. Assim, a personagem
é mulher e brasileira, mas não considera que o programa seja destinado a ela, por

437
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ser empregada doméstica, negra e, provavelmente, pelo contexto em que ela está
inserida. Com isso, deixa transparecer suas crenças e ideologias em relação a sua
posição social. Aliás, com a entonação da fala da personagem, pode-se observar
que a patroa não está no mesmo espaço da limpeza, pois a empregada a chama.

Na terceira e última questão, “O que a fala da personagem revela sobre as


diferenças sociais no Brasil?”, os alunos são instigados a refletir acerca das dife-
renças sociais e também raciais, uma vez que a charge em questão aponta uma
crítica a tais situações-problema. Na fala “madame, seu programa começou”, a
personagem demonstra que o programa é destinado à mulher branca, à patroa e
não para ela, a empregada, e pode ser observado que ela se coloca em uma posi-
ção de inferioridade.

Essa questão proposta pelo livro proporciona muitas possibilidades de diá-


logo em sala de aula, seja sobre questões de desigualdade de renda ou sobre o
acesso a direitos e serviços básicos como educação, saúde, moradia, saneamento
básico, entre outras coisas. Outra discussão possível é a de que os negros e as
mulheres são dois grupos historicamente distanciados daqueles que têm maiores
rendimentos e poder econômico. A partir disso, a problematização pode seguir,
então, para a temática de como modificar esse cenário, como reduzir a desigual-
dade social no Brasil.

Cada pessoa possui seu universo de valores, portanto, ao formular as re-


flexões para responder a terceira pergunta, a atribuição de valor será diferen-
te de um aluno para outro, visto que valor é sempre valor numa dada situação
(SOBRAL, 2012). Além disso, se um aluno passou e/ou passa por uma situação de
desigualdade, seja social, racial, ou qualquer outra, poderá atribuir opinião dife-
rente da dos colegas, uma vez que sua reação terá sentidos ideológicos diferentes
dos de um aluno que nunca passou por semelhante situação.

De acordo com as orientações de Bakhtin e Volochinov (2006), o leitor/


ouvinte/interlocutor assume uma atitude responsiva ativa diante da leitura, as-
sim, haverá a produção de sentidos por meio das ideologias e valores de cada um.
Essa compreensão repleta de responsividade implica em juízo de valor, pois a dis-
cordância e/ou a concordância dos enunciados atribuem elementos ideológicos
ao discurso. Quanto à noção de valor, pode-se retomar Bakhtin (2010) quando o
teórico diz que em cada um dos aspectos da vida, viver significa uma posição de
valores, uma vez que o eu e o outro são as categorias fundamentais de valores.

438
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Pode-se perceber, também, que a fala da personagem é carregada por uma


entonação em que ela tenta justificar que o programa é destinado à patroa por
ser para a “mulher brasileira”. Tal entonação está associada ao julgamento de va-
lor que a personagem traz acerca da cor da sua pele e da situação dos negros. Ao
analisar o enunciado, os alunos, cada um em seu contexto ideológico, tendem a
atribuir valorações diferentes ao enunciado.

Como o enunciado não tem apenas caráter de reconhecimento, mas tam-


bém de novidade (VOLOCHINOV; BAKHTIN, 1976), a charge propicia que a
compreensão ocorra por meio do conhecimento de mundo dos alunos, sobretudo
acerca da problemática da desigualdade social, discriminação e preconceito.

Quando uma charge é criada, tem como base um enunciado já existente e


um contexto atual, preferencialmente algo em destaque no momento e a partir do
momento em que o leitor/aluno realizar uma ligação entre o horizonte extraver-
bal e o enunciado, seja verbal ou não, o texto irá se concretizar.

Ao observar a charge e as perguntas presentes no livro didático espera-


-se que os alunos atribuam sentidos ao enunciado, mesmo que não conheçam seu
contexto de produção, uma vez que ela foi criada em 1982, no entanto, o contexto
atual permite que a atribuição de sentidos seja concretizada. Conforme já explici-
tado, há, também, outros inúmeros discursos com a mesma temática, o que pode
fazer com que se estabeleçam relações entre eles, o que auxilia na compreensão
do enunciado, uma vez que Bakhtin (2010, p. 272) pontua que “cada enunciado é
um elo na corrente complexamente organizada de enunciados”.

Em relação ao extraverbal, Volochinov e Bakhtin (1976) também explici-


tam que tal contexto tem importante papel na compreensão, pois apenas o dis-
curso verbal não é autossuficiente. Isso pode ser observado na charge analisada,
uma vez que, para, de fato, compreendê-la, é necessário ter entendimento acerca
do seu contexto, pois ele é parte constitutiva de sua significação, tanto sobre a
significação das desigualdades no Brasil, quanto à questão do sentimento de infe-
rioridade por parte da personagem, a empregada doméstica afrodescendente. Se
o aluno não possuir tal entendimento ao olhar a charge, pode não a compreender
apenas com a imagem e a parte verbal.

Ainda em relação ao extraverbal, destacam-se três elementos: o horizon-


te espacial, o conhecimento e a compreensão comum da situação comunicativa
por parte dos interlocutores e a avaliação comum da situação (VOLOCHINOV;
BAKHTIN, 1976). O horizonte espacial, que é a unidade visível do enunciado, na

439
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

charge, é a empregada limpando a sala e avisando a patroa que o seu programa


de tv começaria em breve (programa da mulher brasileira), a demonstrar que se
sente inferior, o que pode ser relacionado a uma realidade atual, uma vez que a so-
ciedade, ainda hoje, demonstra preconceito às pessoas negras e pobres; o conheci-
mento e a compreensão comum da situação comunicativa por parte dos interlocutores
envolvem os conhecimentos que os interlocutores têm sobre o tema da charge,
que é a inferioridade demonstrada pela personagem devido à desigualdade social;
e na avaliação comum da situação, a qual ocorre por meio da compreensão que o
interlocutor atribui ao enunciado, no caso da charge, o entendimento de que a
personagem sente-se inferior à patroa por conta da cor da sua pele, o que a faz
pensar que o programa da mulher brasileira não é destinado a mulheres como ela,
mas somente às mulheres como a patroa.

Desse modo, a parte percebida do enunciado é a imagem da personagem


avisando à patroa que o programa de tv destinado à mulher brasileira estava para
começar e a parte presumida é o entendimento que o leitor faz aliando o enuncia-
do ao contexto, que são fatores extraverbais nas interações sociais e discursivas,
marcadas pelo não dito. Assim, se os alunos não compreenderem o contexto prag-
mático imediato, não compreenderão o enunciado, ou seja, o conhecimento extra-
verbal (histórico/cultural/social) é essencial para que a compreensão da charge
aconteça.

Bakhtin (2010) explica que todo enunciado apresenta conteúdo temáti-


co, estilo e estrutura composicional, os quais são ligados no todo do enunciado.
A charge analisada apresenta como conteúdo temático (tema do enunciado) a
intenção de mostrar que a empregada doméstica se sente inferior à patroa por
causa da cor da sua pele e do abismo da desigualdade social entre elas. Pode-se
perceber, então, que a charge apresenta uma crítica social à desigualdade e ao
preconceito.

Na charge de Aranha, há a junção de imagens e palavras, sendo que a esco-


lha das imagens que compõem a charge faz parte do seu estilo; pode ser observa-
do, então, o contexto de uma casa em que a empregada é negra, está com vassou-
ra na mão, vestida de maneira característica de empregada doméstica e na fala
dela chama a patroa de madame quando a avisa que o programa de tv vai começar.
Vale notar que o estilo faz com que a finalidade do enunciado seja cumprida.

Já a respeito do conteúdo composicional, pode-se dizer que se trata da


disposição formal e linguística, da estrutura do texto. A estrutura da charge é

440
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

rapidamente visível já no primeiro momento, há linguagem verbal e não verbal; é


um gênero atual e que promove algum tipo de crítica; no caso dessa charge, crítica
às desigualdades, ao preconceito, que tiveram como consequência o sentimento
de inferioridade por parte da empregada doméstica.

Quanto à presença da charge no LD, considera-se que é propícia, uma vez


que, além de ser um gênero atual, expressa crítica a alguma situação que pode
causar incômodo à sociedade, o que foi possível se verificar na charge exemplifi-
cada, visto que a desvalorização e o sentimento de inferioridade das empregadas
domésticas, principalmente as negras, faz parte da realidade brasileira. Por estar
presente no LD, possibilita aos alunos reflexões e discussões acerca dessas temá-
ticas, o que é positivo para a sua formação.

Com as discussões da proposta 1 “Qual é a profissão da personagem repre-


sentada na charge? Que características permitem identificar essa profissão?”, os
alunos poderão ir além de meramente identificar elementos da charge e refletir,
com a mediação do professor, sobre os estereótipos formados pela sociedade,
os quais, por vezes, servem como rótulos para alguns grupos sociais. Além disso,
podem observar a maneira como a mídia, por meio das novelas, representam as
empregadas domésticas, pois, na maioria das vezes, são atrizes negras que têm
esse papel. Com isso, podem ocorrer reflexões mais amplas a contemplar a pro-
blemática do preconceito.

A proposta 2 “A quem a personagem se dirige ao anunciar o começo do


programa de televisão? Qual é o público-alvo desse programa?” também pode ser
ampliada para desencadear reflexões acerca da discriminação, uma vez que a fala
da personagem empregada está carregada de sentimento de inferioridade, o que
acontece por conta do contexto em que ela está inserida.

Com a proposta de número 3 “O que a fala da personagem revela sobre as


diferenças sociais no Brasil?”, as discussões podem pautar-se nos diversos tipos
de diferenças sociais que existem no Brasil, seja em relação à questão financei-
ra (má distribuição de renda), às questões étnico-raciais ou às desigualdades nos
serviços básicos de saúde, saneamento básico, educação, etc. Ademais, os alunos
podem refletir, também, maneiras/ações que visem a diminuir esse hiato da desi-
gualdade social entre as classes no Brasil.

Com o intuito complementar o livro didático, é possível que o professor


ofereça outras questões a ampliar as discussões com os alunos:

441
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Perguntas de leitura no LD Desdobramentos ou ampliações das perguntas

Como essa profissão é avaliada na sociedade?


“Qual é a profissão da personagem
Quais os estereótipos criados e apresentados
representada na charge? Que características
pela sociedade em relação às empregadas
permitem identificar essa profissão?
domésticas?
Qual a entonação que a personagem utiliza
“A quem a personagem se dirige ao anunciar para se dirigir à madame?
o começo do programa de televisão? Qual é o Quais os possíveis efeitos de sentido
público-alvo desse programa?” podem ser percebidos por meio da fala da
personagem?
Como a personagem se vê/se mostra na
“O que a fala da personagem revela sobre as
charge?
diferenças sociais no Brasil?”
De que maneira isso poderia ser minimizado?
Quadro 1. Perguntas de leitura
Fonte: elaborado pelas pesquisadoras

Dessa forma, as discussões poderiam ser ampliadas e ir além da superfi-


cialidade das questões propostas pelo LD. Com isso, é possível a formação de um
posicionamento mais crítico dos alunos em relação às problemáticas sociais le-
vantadas na charge.

Considerações finais

O presente trabalho discutiu as propostas de leitura de uma charge, reti-


radas do LD destinado aos alunos dos anos finais do Ensino Fundamental da EJA.
Para isso, foi recorrido aos conceitos axiológicos de extraverbal, entonação e va-
loração, presentes nas discussões do Círculo de Bakhtin.

As propostas de leitura da charge no LD mostram-se superficiais, pois exi-


gem do aluno uma mera localização dos elementos que estão expostos no enun-
ciado. No entanto, com o conhecimento dos conceitos dialógicos de enunciado,
situação extraverbal e valoração, há a possibilidade de reflexões e ampliações que
favoreçam a criticidade, uma vez que as questões têm como objetivo direcionar
os alunos a reflexões sobre preconceito, discriminação, desigualdade social, etc. e
os sentidos atribuídos ao texto podem ser construídos conforme suas vivências e
conhecimento de mundo.

442
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Pode-se concluir, então, que as respostas ao enunciado dadas pelo interlo-


cutor, a partir de uma posição social, fazem com que todo enunciado seja axioló-
gico. Além disso, a interação contribui com a produção de sentidos e a interação
entre enunciados, aluno, colegas e professor que pode ocorrer com as atividades
de leitura propostas e, também, por meio de outras questões que possam surgir
com as discussões e a temática, auxiliando na formação da criticidade dos alunos.
O aluno torna-se, então, o interlocutor desse enunciado e consegue perceber
as axiologias construídas na charge, com a possibilidade de reagir de forma ati-
va e estabelecer diálogos no contexto em que acontece a interação, pois, para o
Círculo, todo enunciado é dialógico e sempre expressa posição avaliativa.

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443
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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444
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA NAS


PRÁTICAS DA ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO

Elena Adriana Dietrich Picolotto 1

RESUMO: Esta pesquisa constitui um recorte da Dissertação de Mestrado que


está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Letras da UTFPR,
que tem por objetivo identificar e analisar através de um apanhado teórico-con-
ceitual e por meio de entrevistas com professores de escolas da rede pública e
privada, as práticas no que se refere ao trabalho com a Consciência Fonológica
nos processos de Alfabetização e Letramento. O grupo investigado é composto
por professores que trabalham na fase inicial da alfabetização, que compreende
as turmas de Pré- escola ao 3º ano do Ensino Fundamental por meio de questioná-
rio via Google forms, com questões que buscam conhecer sobre: (a) se trabalham
com consciência fonológica; (b) o que pensam sobre como a consciência fonoló-
gica contribui no processo de ensino e aprendizagem; como os fonemas, sílabas
e rimas são trabalhados nas aulas de alfabetização e letramento dos anos iniciais
do ensino fundamental I. A pesquisa, ainda em fase inicial, busca saber o espaço
que ocupa a Consciência Fonológica nas aulas, identificando os métodos utiliza-
dos nos processos de alfabetização e letramento, através da sondagem da prática
escolar. Alguns resultados iniciais que obtivemos, com a pesquisa direcionada a
16 professores, é que, em torno de cinquenta por cento de seus alunos estão na
fase da consciência das segmentações dos sons, resultado este que foi encontra-
do através de sondagem com acompanhamento, bimestral via avaliações digitais.

1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná. picolottoelena@gmail.com

445
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Sobre a definição da Consciência Fonológica, cem por cento dos entrevistados


optaram por dizer que é a habilidade de manipular os sons da nossa língua, sendo
que a maioria utiliza-se do método analítico- sintético, em suas práticas escolares,
formas de repetição, método da silabação e atividades lúdicas. Quanto às dificul-
dades encontradas no processo de alfabetização, parte diz que advém dos pró-
prios alunos que estão sem predisposição para aprender.

PALAVRAS-CHAVE: Consciência Fonológica; Alfabetização e Letramento.

ABSTRACT: This research constitutes an excerpt from the Master’s Dissertation that is
being developed in the Postgraduate Studies in Linguistics Program languages UTFPR.
Aiming to identify and analyze through a theoretical-conceptual overview and throu-
gh interviews with teachers from public and private schools, about the practices with
regard to working with phonological awareness in the Literacy and Literacy processes.
The investigated group is made up of teachers who work in the initial phase of literacy,
which comprises Pre-school classes in the 3rd year of Elementary Education through a
questionnaire, via Google forms, which aim to know more about the subjects : (a) whe-
ther they work with phonological awareness; (b) what they think about how phono-
logical awareness contributes to the teaching and learning process; as the phonemes,
syllables and rhymes are worked in the literacy and literacy classes of the early years of
elementary school I. The research, still in its initial phase, seeks, therefore, to know the
space that occupies the Phonological Awareness in the classes, identifying the methods
used in literacy and literacy processes, by surveying school practice. Some initial results
that we obtained, with the research directed to 16 teachers, is that, around fifty percent
of their students are in the stage of awareness of the segmentation of sounds, a result
that was found through a survey with monitoring, bimonthly via digital evaluations.
Regarding the definition of phonological awareness, one hundred percent of the inter-
viewees chose to say that it is our ability to manipulate the sounds of our language,
with the majority using the synthetic-analytical method, in their school practices, forms
repetition, syllabation method and playful activities. As for the difficulties encountered
in the literacy process, part says that it comes from the students themselves who are not
predisposed to learn.
KEYWORDS: Phonological Awareness; Literacy and Literacy.

Introdução

Este artigo tem por objetivo identificar e analisar por meio de um apanhado
teórico-conceitual, referenciados na pesquisa e por meio de entrevistas, as práticas

446
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de professores no que se refere ao trabalho com a Consciência Fonológica na fase


inicial da alfabetização. Com isso, pretende-se investigar, como a Consciência
Fonológica contribui no o processo de ensino e aprendizagem, bem como enten-
der como os fonemas, sílabas e rimas são trabalhados nas aulas de alfabetização e
letramento dos anos iniciais do ensino fundamental I. A alfabetização e o trabalho
com a Consciência Fonológica são, sem dúvida, processos a serem observados,
uma vez que são indispensáveis para que as habilidades da leitura e da escrita se
estabeleçam, tendo em vista que, durante décadas, foram observadas as mesmas
dificuldades de aprendizagem e tentativas para fazer com que a alfabetização seja
prazerosa para a criança.

A alfabetização, observada na perspectiva de letramento, é entendida como


leitura de mundo, dentro do contexto social da criança, superando assim, a parte
da simples decodificação e junção de sílabas (Soares 2008). Assim, a leitura tem
uma função social, e essa função social têm uma relação com o desenvolvimento
da Consciência Fonológica e a aquisição da escrita, que, por esse entendimento,
vai muito além de conhecer os princípios do sistema de escrita, que é baseado nos
fonemas, e que a consciência dos sons seja fundamental para o desenvolvimento
da leitura e escrita alfabética,e por isso, antes, as crianças devem entender que
aqueles sons se associam às letras, e que são precisamente os mesmos sons da
fala. Nesse sentido, a escolha por trabalhar com a Consciência Fonológica com
professores que atuam nas fases iniciais do Fundamental deve-se à grande im-
portância que a alfabetização e o letramento têm nessa fase escolar, com isso,
constata-se, mais precisamente no 1º e 2º anos do Ensino Fundamental, que há
a necessidade dos professores compreenderem melhor a importância da função
social da leitura e escrita. Se o sistema alfabético possibilita chegar ao conheci-
mento da segmentação da fala em fonemas (MORAIS, 1996), aprender a ler num
sistema alfabético implica em desenvolver habilidades de manipulação dos sons
da fala, que se refere à representação consciente das propriedades fonológicas e
das unidades constituintes da fala. Ela é a consciência dos sons que compõem as
palavras que ouvimos e falamos (CARDOSO- MARTINS, 1991, p.103).

Segundo Capovilla & Capovilla (2000b, p.23), a Consciência Fonológica


refere-se tanto à consciência de que a fala pode ser segmentada, quanto à ha-
bilidade de manipular tais segmentos, e se desenvolve gradualmente à medida
que a criança vai tomando consciência do sistema sonoro da língua, ou seja, de
palavras, sílabas e fonemas como unidades identificáveis. Condizente a esse con-
ceito, Alves (2012, p.32), diz que Consciência Fonológica pode serdefinida por

447
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

duas palavras-chave: reflexão e manipulação, o que corresponde à capacidade de


o falante reconhecer que as palavras rimam, terminam ou começam com o mesmo
som e sãocompostas por sons individuais que podem ser manipulados para a for-
mação de novas palavras. Desta forma, um dos grandes desafios da educação para
a alfabetização e o letramento, através da Consciência Fonológica é apontar as
possibilidades de aplicação em sala de aula e entender como esse processo pode
contribuir para o desenvolvimento da leitura e da escrita.

A partir desses conceitos, o desafio proposto pela Base Nacional Comum


Curricular (BNCC), documento mais recente que normatiza o ensino, é de o pro-
fessor aprender a articular as diferentes facetas da apropriação da língua escri-
ta. Isso significa aliar o trabalho com as práticas sociais de leitura e escrita com
momentos de aprendizagem do sistema de escrita alfabéticae, para tanto, en-
tender como trabalhar e desenvolver a alfabetização e o letramento através da
Consciência Fonológica.

Considerando que a Consciência Fonológica tem uma influência positiva na


aquisição da leitura e escrita, é fundamental que na entrada para o 1º ciclo, a crian-
ça tenha adquirido competências a este nível. Entretanto, há crianças que termi-
nam o ensino pré-escolar com lacunas na aquisição da Consciência Fonológica, o
que nem sempre é perceptível até a aprendizagem da leitura e escrita. Nesta fase
podem surgir perturbações na construção do conhecimento que vão repercutir
noutras aprendizagens e consequentemente no sucesso escolar.

A proposta adquire relevância na atual situação educacional em que, con-


forme os dados da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA, 2016), muitas
crianças passam pela fase da alfabetização sem adquirir o sistema da escrita alfa-
bética, ortográfica e de letramento. Para tanto, espera-se as contribuições deste
artigo tragam contribuições para a área de alfabetização e letramento, por meio
do trabalho e relação com a Consciência Fonológica, uma vez que esta está ligada
à alfabetização, pois, a leitura não começa com o aprendizado das letras, antes
as crianças fazem tentativas de leitura, sem entender que as letras represen-
tam sons. O processo começa com a percepção dos sons das palavras, ou com a
Consciência Fonológica, vários são os estudos que abordam esta etapa da apren-
dizagem escolar (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985; SOARES, 2014, 2015, 2016;
CAGLIARI, 2009).

448
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Consciência Fonológica

Partimos do entendimento de que a Consciência Fonológica é um conjun-


to de habilidades que começam em uma simples percepção global do tamanho
da palavra e de semelhanças fonológicas entre elas, e vai até a segmentação e
manipulação de sílabas e fonemas (BRYANT; BRADLEY, 1985). Desta forma, a
Consciência Fonológica refere-se tanto à consciência de que a fala pode ser seg-
mentada,quanto à habilidade de manipular tais segmentos, e se desenvolve gra-
dualmente à medida que a criança vai tomando consciência do sistema sonoro
da língua, ou seja, de palavras, sílabas e fonemas como unidades identificáveis
(CAPOVILLA; CAPOVILLA, 2000b; ALVES, 2012). De acordo com Morais, (2006,
p. 60):

Consciência fonológica é um conjunto de habilidades metalin-


guísticas que permitem ao indivíduo refletir sobre os segmen-
tos sonoros das palavras. O funcionamento que as caracteriza é
metalinguístico, porque o sujeito reflete sobre a própria língua,
em lugar de usá-la para se comunicar e apenas alcançar os pro-
pósitos normais da vida cotidiana. E é fonológico porque opera
sobre segmentos sonoros (sílabas, rimas, fonemas) que estão no
interior das palavras.
[...] A consciência fonológica é, portanto, um tipo de reflexão
metalinguística.

A capacidade de identificar os sons e as suas combinações que constituem a


fala são um marco importante na aprendizagem da leitura e da escrita. Esta tarefa
resulta da relação entre a escrita e a oralidade, o que implica na identificação dos
fonemas e a sua manipulação, para que seja estabelecida a relação necessária en-
tre eles para formar as palavras pretendidas. Em termos de diretrizes legais, que
amparam o trabalho com os anos iniciais do Ensino Fundamental, a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), pautada na alfabetização e letramento, desenvolve
atividades de natureza voltada para a área da fonologia, principalmente, para a
correspondência grafema-fonema.

Na Unidade 1, dos cadernos do PNAIC (2012) temos:

Nessa perspectiva, defendemos que as crianças possam viven-


ciar, desde cedo, atividades que as levem a pensar sobre as carac-
terísticas do nosso sistema de escrita, de forma reflexiva, lúdica,

449
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

inseridas em atividades de leitura e escrita de diferentes textos.


É importante considerar, no entanto, que a apropriação da escri-
ta alfabética não significa que o sujeito esteja alfabetizado. Essa
é uma aprendizagem fundamental, mas para que os indivíduos
possam ler e produzir textos com autonomia é necessário que
eles consolidem as correspondências grafofônicas, ao mesmo
tempo em que vivenciem atividades de leitura e produção de
textos. (PNAIC, UNIDADE 1, p. 22).

Segundo Costa (2012, p. 16), “a consciência fonológica encontra-se no


contexto da consciência linguística e configura-se como a capacidade que o ser
humano possui de refletir e manipular as unidades fonológicas (sílabas, as unida-
des intrassilábicas e os fonemas)”. A Consciência Fonológica é, nesse sentido, uma
habilidade essencial, que estabelece as bases para que a criança aprenda a ler. Ela
permite o reconhecimento e o uso dos sons da palavra. É uma habilidade metalin-
guística de percepção da fala como segmentada em palavras.

A partir da unidade linguística a ser manipulada, é que os níveis da


Consciência Fonológica são definidos (MENEZES, 1999). Para tanto, as unida-
des linguísticas de análise relacionam-se a certo nível de Consciência Fonológica.
De acordo com a caracterização desses níveis proposta em Freitas (2004 a, b)
e Coimbra (1997 a, b), são dois níveis: 1) consciência silábica e intrassilábica; 2)
consciência fonêmica, sendo esta a ordem de trabalho durante a aquisição da lei-
tura e escrita. As etapas de aquisição da Consciência Fonológica dependem das
experiências linguísticas, do desenvolvimento cognitivo da criança, e da exposi-
ção ao sistema alfabético para aquisição da leitura e da escrita. Dessa forma, a
Consciência Fonológica refere-se aqui:

Nível das Sílabas- Compreende a capacidade de dividir as pala-


vras em sílabas, trazendo pouca dificuldade à maioria das crian-
ças, tendo a noção de palavra, isto é, capacidade de segmentar
a frase em palavras, organizá-las e dar-lhe sentido. Nível das
unidades intra-silábicas, nesta fase as palavras podem ser divi-
didas em unidades maiores que um fonema individual, em que
possuem a noção de rima. Aliteração (capacidade de identificar
ou repetir a sílaba ou fonema no início da palavra). Consciência
no Nível dos Fonemas: Consciência silábica (capacidade de seg-
mentar palavras em sílabas, a criança tem de identificar e discri-
minar as sílabas); Consciência fonêmica (capacidade de manipu-
lar e isolar os fonemas que compõem a palavra). A consciência
Fonêmica é a habilidade de manipular conscientemente os seg-
mentos.(FREITAS, 2004b, p.180-181).

450
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Alfabetização e Letramento: relação com a consciência fonológica

A alfabetização e letramento, segundo Soares (2008, p. 48), “é tornar o in-


divíduo capaz de ler e escrever”. Nesse sentido, a alfabetização se ocupa da aquisi-
ção da escrita, por um indivíduo ou grupo de indivíduos. É o processo pelo qual se
adquire o domínio de um código e das habilidades de utilizá-lo para ler e escrever,
ou seja: o domínio da tecnologia, técnicas para exercer a arte e ciência da escri-
ta (SOARES, 2008).A alfabetização é um processo no qual o indivíduo assimila
o aprendizado do alfabeto e a sua utilização como código de comunicação. Esse
processo não se deve resumir apenas na aquisição dessas habilidades mecânicas
(codificação e decodificação) do ato de ler, mas na capacidade de interpretar, com-
preender, criticar e produzir conhecimento.

A alfabetização envolve também o desenvolvimento de novas formas de


compreensão e uso da linguagem de uma maneira geral. De acordo com Soares
(2008, p. 16) “Alfabetizar e letrar são duas ações distintas, mas inseparáveis do
contrário, o ideal seria alfabetizar letrando, ou seja, ensinar a ler e escrever no
contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se
tornasse ao mesmo tempo alfabetizado e letrado”.

O conceito de alfabetização para Paulo Freire (1996, p. 43), tem um signi-


ficado mais abrangente, na medida em que vai além do domínio do código escri-
to, pois, enquanto prática discursiva possibilita uma leitura crítica da realidade,
constitui-se como um importante instrumento de resgate da cidadania e reforça
o engajamento do cidadão nos movimentos sociais que lutam pela melhoria da
qualidade de vida e pela transformação social. O autor defende a ideia de que a
leitura do mundo precede a leitura da palavra, fundamentando-se na antropolo-
gia: o ser humano, muito antes de inventar códigos linguísticos, já lia o seu mundo.
Na ambivalência dessa resolução conceitual, encontra-se o desafio dos educado-
res em face do ensino da língua escrita: o alfabetizar letrando. O domínio da lei-
tura e da escrita é fundamental para uma participação efetiva do ser humano na
vida em sociedade. Seu aprendizado está associado a várias habilidades cogniti-
vas, usadas para aprender, compreender e integrar as informações de uma forma
significativa.

Dentre as habilidades cognitivas que diretamente se relacionam com o


aprendizado da leitura e da escrita, a Consciência Fonológica é vista como uma
das habilidades mais fortemente relacionadas, sendo considerada por muitos

451
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

pesquisadores como a chave para o aprendizado da leitura e da escrita. As habi-


lidades da Consciência Fonológica, de entender e manipular unidades menores
da palavra, de acordo com Morais (1995), são desenvolvidas gradualmente, con-
forme a criança experimenta situações lúdicas (cantigas de roda, jogos de rima,
identificação de sons iniciais de palavras) e é instruída formalmente em atividades
grafofonêmicas.

Segundo Capovilla & Capovilla (2000, p.19), diversos países que trabalham
com a Consciência Fonológica na alfabetização, compreenderam rapidamente
que, para evitar dificuldades em leitura e escrita, as crianças deveriam ser ensina-
das, de forma explícita e sistemática, a manipular fonemas por meio da instrução.
Quanto mais desenvolvida essa habilidade, melhor a compreensão da relação fo-
nema–grafema. Crianças com dificuldades em Consciência Fonológica geralmen-
te apresentam atraso na aquisição da leitura e da escrita, e procedimentos para
desenvolver a Consciência Fonológica podem ajudar as crianças com dificuldades
na escrita a superá-las (CAPOVILLA; CAPOVILLA, 2000b).

Para Cavalheiro et al. (2010), em crianças pequenas a consciência de sí-


labas, rimas e aliterações é muito maior do que, a consciência de fonemas, isso
ocorre, porque a consciência de segmentos supra fonêmicos (sílabas e palavras)
parece desenvolver-se espontaneamente, enquanto que a consciência fonêmica
requer experiências específicas além da exposição aos conceitos de rima e alitera-
ção.. Para as autoras, a consciência das palavras se desenvolve espontaneamente,
enquanto a “consciência fonêmica necessita de experiências específicas, além da
exposição aos conceitos de rima e aliteração” (CAVALHEIRO et al, 2010, p. 1009).

Assim como a Consciência Fonológica, a leitura é uma habilidade metalin-


guística, porém necessita do conhecimento sobre o uso da linguagem e do enten-
dimento de suas características formais como a estrutura fonêmica e a sintática
(MORAIS, 1995). Durante o ato da leitura, a criança deve associar a linguagem
oral e a linguagem escrita, fazendo a correspondência de cada letra ou grupo de
letras com os respectivos fonemas.Para o desenvolvimento da linguagem escri-
ta é necessária a análise das palavras orais constituídas por elementos fonéticos
representados pelo código alfabético, requerendo, assim, capacidades de análise
de fala.

Blanco-Dutra et al. (2012, p. 140), referem que “a alfabetização impli-


ca uma junção de conhecimentos que auxiliam na formação do indivíduo como
agente de seu próprio processo de construção de identidade na interação social”.

452
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

No decorrer da alfabetização, a criança necessita desenvolver muitas habilida-


des, desde a coordenação motora, a identificação silábica, entre outras, onde a
Consciência Fonológica precisa ser estimulada, pois, influencia na aquisição da
leitura e da escrita.

Em acordo com essa perspectiva, Mota (2008, p. 311), cita as habilidades


metalinguísticas que mais se destacam para o sucesso na alfabetização e refere
à Consciência Fonológica como uma delas. Já, Mello (2013, p. 158), diz que esta
permite ao aluno operar fonemas, sílabas, palavras, rimas e aliterações nas ativi-
dades, auxiliando assim nas representações dos fonemas e grafemas, sendo, des-
sa forma, uma habilidade a ser treinada.

Morais (2011, p.79) define que o trabalho com a alfabetização e a cons-


ciência fonológica se constrói, de maneira a: INTRODUZIR, conceitos e habili-
dades com a alfabetização (pré- escola); seguindo para APROFUNDAR, os co-
nhecimentos previamente conhecidos; para, na última etapa, CONCLUIR OU
CONSOLIDAR esses conhecimentos, tornando-os claros e evidentes.

Os métodos se dividem em três grandes grupos: Métodos sintéticos-(Mé-


todos silábicos) os mais antigos utilizados (partem de letras- fonemas e sílabas,
para sucessivas ligações para ler palavras, frases e textos). Métodos Analíticos
propõem um ensino que parte das unidades significativas da linguagem (palavras-
frases e pequenos textos). Métodos Analíticos- sintéticos- partem de um estágio
de conhecimento global (palavras- frases- textos) para decomposição de palavras
em letras ou em sílabas.

Metodologia do trabalho

A pesquisa é de cunho descritivo- analítico, visando conhecer através de


análise teórica e prática a relação e importância da Consciência Fonológica com
os processos de Alfabetização e Letramento, evidenciando como isso se configura
no trabalho dos professores. Após o levantamento do material teórico, esta pes-
quisa seguirá passos, tais como: análise dos resultados da visão dos professores
em relação à prática em sala de aula, e por fim, comparar esse trabalho, seus mé-
todos e metodologias e a teoria estudada.

Estes professores foram consultados por meio de questionário, via Google


forms, com questõesque buscam conhecer sobre sua prática escolar, que envolve
o trabalho com a Consciência Fonológica, nas turmas que compreendem a fase

453
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de alfabetização e letramento, em escolas públicas e privadas. Os professores


aderiram voluntariamente a participar da pesquisa, e foram escolhidos por serem
sujeitos em ação, na área de alfabetização e letramento, uma vez que seu trabalho
compreende os alunos nesta fase de desenvolvimento.

Os instrumentos de coleta de informações se deram, nesta fase inicial, por


meio de dez questões relacionadas com o trabalho da Consciência Fonológica, e
como as práticas dos professores contemplam essas habilidades, e qual a impor-
tância a se considerar nesse trabalho.

O questionário aplicado apresentava questões abertas e fechadas, que


buscavam compreender, por exemplo, a definição ou entendimento dos professo-
res acerca da Consciência Fonológica:

1) Como você define Consciência Fonológica?

a) É a habilidade de que nós temos em manipular os sons da nossa língua.

b) São atividades lúdicas.

c) São regras de intervenção na prática pedagógica

Além disso, foram realizadas questões sobre a etapa/nível da Consciência


Fonológica em que o professor situa seus alunos:

2) Em que etapa de consciência fonológica você situa os seus alunos (considerar a


turma que está trabalhando agora)

a) Consciência das letras, sílabas, e palavras

b) Consciência das aliterações

c) Consciência das segmentações dos sons, e substituição dos sons

Ainda, outras questões, eram direcionadas para os métodos de alfabeti-


zação mais diretamente utilizados, buscando estabelecer a relação destes com o
trabalho com a Consciência Fonológica:

3) Dentre os métodos de alfabetização citados, sinalize os que utiliza com mais


frequência em sua prática:

a) Método analítico

b) Método analítico- sintético

c) Método sintético

454
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

4) No trabalho com a consciência fonológica, ao ensinar os sons e letras, quais os


métodos de alfabetização você utiliza com mais frequência?

a) através de atividades lúdicas

b) na forma de repetição

c) Método da silabação

d) Utiliza-se do método construtivista

Descrição dos resultados

Este trabalho, conforme exposto na seção introdutória, tem a finalidade de


entender como o trabalho com Consciência Fonológica contribui para os proces-
sos de Alfabetização e Letramento, e também como professores dos anos iniciais
compreendem e trabalham com essas habilidades. A partir desse propósito, uma
das ações da pesquisa, ainda em andamento, é realizar entrevistas, via formulário
Google forms, sobre o entendimento de professores com relação ao trabalho com a
Consciência Fonológica. Esses resultados, ainda de uma análise prévia de algumas
questões, são descritos aqui.

A primeira questão, com vistas a caracterizar o grupo, buscou saber o tem-


po de atuação dos docentes dos anos iniciais. Esta questão refere-se ao tempo de
atuação no trabalho com a Alfabetização, onde grande parte dos entrevistados
afirmava estar atuando há mais de 10 anos. Esse fator mostra-se relevante, uma
vez que quanto maior o tempo de atuação, mais experiência na prática o professor
tem.

Figura 1. Gráfico representativo do tempo de atuação dos professores.

455
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Dos respondentes, 31,3% possuem um tempo de atuação de até 5 anos;


12, 5% de 5 a 10 anos; e 56,3% atua a mais de 10 anos. Ou seja, dos entrevistados,
uma boa parte possui tempo de experiência de trabalho com os anos iniciais de
mais de 10 anos.Uma segunda questão, direcionada aos professores, perguntava
sobre a etapa da Consciência Fonológica em que os seus alunos se encontravam.
Os resultados apontam que a grande maioria situa os alunos na consciência das
segmentações dos sons, sendo: 31,2% - Consciência das letras, sílabas e palavras:
31,2%; 18,8% - Consciência das aliterações e; 50% - Consciência das segmenta-
ções e substituições dos sons. Esse resultado demonstra que boa parte dos alunos
encontra-se no nível fonêmico.

Figura 2. gráfico representativo da etapa de CF.

Uma terceira pergunta, refere-se aos métodos utilizados na alfabetização.


Percebe-se que, pelo relato dos professores, que a maioria trabalha com o méto-
do analítico- sintético em suas práticas, 52,5%, isto significa o trabalho com di-
versas atividades, tanto lúdicas, quanto de silabação e decodificação. Ainda, 25%
utiliza o método sintético e, 12,5%, o método analítico.

456
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Figura 3. Gráfico representativo do método utilizado pelo professor.

Diante das pesquisas, conclui-se que grande parte dos professores entre-
vistados realiza um trabalho voltado à Consciência Fonológica, utilizando méto-
dos e metodologias relacionadas ao seu desenvolvimento. Aspecto crucial para o
desenvolvimento infantil, pois assim desenvolve-se a capacidade de refletir sobre
os sons, a leitura e a escrita alfabética. Isto também implica que, essas habilidades
que já vêm se aperfeiçoando desde muito cedo nas crianças, são ampliadas con-
forme vai se desenvolvendo esse trabalho, pois através da manipulação da estru-
tura das palavras, ocorre o desenvolvimento da aprendizagem.

Ainda, segundo os dados da pesquisa, o fator principal para as dificuldades


que os professores têm para alavancar a aprendizagem dos alunos é a falta de
pré-disposição dos alunos à aprendizagem.Para Kupfer (1995, p. 79), “[...] o pro-
cesso de aprendizagem depende da razão que motiva a busca de conhecimento”,
ressaltando o porquê da importância dos alunos estarem motivados a buscar a
aprendizagem.

Considerações finais

A proposta deste trabalho foi entender a relação da Consciência Fonológica


com os processos de alfabetização e letramento, a partir do entendimento de pro-
fessores que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental I.

Conforme discutido, sob a abordagem da pesquisa de campo, a partir


dos primeiros e iniciais resultados e, ainda de acordo com teoria conceitual, a
Consciência Fonológica é uma habilidade que deve ser levada em conta no desen-
volvimento da alfabetização. Esta habilidade contribui para o desenvolvimento da
escrita e leitura, uma vez que implica no conhecimento da estrutura fonológica e
a aptidão para analisar os segmentos desta estrutura; esse conhecimento tornará
possível a elaboração de representações fonológicas sempre mais elaboradas,
no decorrer do processo de aprendizagem.

O desenvolvimento da linguagem para o ser humano é de extrema impor-


tância. Segundo Freitas (2004 p. 109), “a Consciência Fonológica desenvolve-se
gradualmente a partir de algumas habilidades que já existem antes da aquisição
da escrita e são aprimoradas com o tempo”. Através dos resultados deste estudo,
ainda que preliminares, identificamos nas práticas dos professores alfabetizado-
res, atividades relacionadas com a Consciência Fonológica e suas habilidades na

457
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

aquisição e desenvolvimento da leitura e escrita, que envolve a manipulação de


sílabas, unidades intrassilábicas e fonemas.

A partir da observação coletada no questionário, de algumas metodolo-


gias utilizadas pelos professores, são identificadas algumas que requerem maior
concentração que são as atividades lúdicas. Entre elas: o jogo da memória, caça-
-palavras, cruzadinhas, entre outras. Segundo Morais (2010, p.53), quanto maior
o nível de abstração, maior a dificuldade na realização da tarefa. Para tanto, a
capacidade de refletir sobre os sons da fala e identificar seus correspondentes
gráficos é importante e necessária para que a criança reconheça e desenvolva a
aprendizagem, e isso ocorre quando atividades como jogos e brincadeiras são tra-
balhadas nas práticas de sala de aula, levando sempre em conta que existem dife-
rentes níveis de Consciência Fonológica. Sugere-se, portanto, que a Consciência
Fonológica seja contemplada nas atividades de sala de aula, para facilitar e desen-
volver a leitura e a escrita, auxiliando a criança, não como um método, mas com
tarefas significativas que instiguem a criança a acessar a Consciência Fonológica,
e que como resultado surja a aprendizagem nesta fase da alfabetização, conside-
rando atividades que envolvam brincadeiras, situações lúdicas, parlendas, canti-
gas de roda, trava-línguas, jogos fonológicos.

A partir dos dados coletados, é importante dizer que o aluno tenha uma
boa noção da habilidade, antes de avançar para a próxima, mas não é necessário
ter atingido a perfeição em cada etapa. Por exemplo, para ler as primeiras pala-
vras, a criança não precisa saber todas letras e seus sons correspondentes, basta
o ensino básico de alguns sons e letras. Ao aprender a ler, o aluno converte letras
em sons, aplicando as regras do código alfabético, portanto, ele está decifrando
esse código. O termo decodificar refere-se à essa capacidade. O fato de que as
relações entre letras e sons são muito previsíveis, facilita a decodificação, promo-
vendo assim a aquisição da leitura e da escrita, e também do letramento.

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458
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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SOARES, M. Alfabetização e Letramento. São Paulo: Contexto, 2008.

459
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

GRAFIAS NÃO-CONVENCIONAIS DE
LATERAIS ALVEOLARES EM TEXTOS DE
ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DE
PONTA GROSSA

Tayná Maria Coelho Bugai1


Jheniffer Amanda Dias2
Márcia Cristina do Carmo3

RESUMO: Este trabalho analisa grafias não convencionais de consoantes apro-


ximantes laterais alveolares presentes em textos produzidos em âmbito escolar,
especificamente por alunos do sexto ano do Ensino Fundamental de duas escolas
públicas urbanas localizadas em Ponta Grossa (PR). Nesse âmbito, investigam-se
tanto (i) grafias de outros grafemas em contexto em que a convenção prescreve
<l>, como em fauta (para falta) e pírulas (para pílulas); quanto (ii) grafias de <l> em
contexto em que a convenção recomenda outro grafema, como em coelinho (para
coelhinho) e refligerante (para refrigerante). Como arcabouço teórico, segue-se o
Modo heterogêneo de constituição da escrita (CORRÊA, 2004), teoria que propõe o
registro, no texto do escrevente, de marcas linguísticas que discorrem sobre a re-
lação sujeito/linguagem, a partir de sua circulação por práticas sociais do oral/fa-
lado e do letrado/escrito. A partir do levantamento dos dados de grafias não-con-
vencionais em 201 produções textuais retiradas do banco de dados (MENDES,
2013), foram observadas 35 ocorrências, as quais dizem respeito, sobretudo, a

1 Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). taynabugai@outlook.com


2 Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). jhenifferamandadias@gmail.com
3 Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). mccarmo@uepg.br

460
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

trocas: (i) entre os grafemas <l> e <r>, como em anuncial (para anunciar) e devorver
(para devolver); e (ii) entre os grafemas <l> e <u>, como em chegol(para chegou) e
augumas (para algumas). Essas trocas, associadas, respectivamente, aos fenôme-
nos fonético-fonológicos denominados rotacismo e vocalização, evidenciam a cir-
culação dialógica dos escreventes pelas práticas sociais do oral/falado e, quando
aplicada hipercorreção (CAGLIARI, 2004), do letrado/escrito (CORRÊA, 2004).

PALAVRAS-CHAVE: Fonética e Fonologia; Modo heterogêneo de constituição da


escrita; Grafias não convencionais.

ABSTRACT: This work analyzes unconventional spellings of alveolar lateral conso-


nants present in texts produced at school, specifically by students in the sixth year of
Elementary school in two urban public schools located in Ponta Grossa (PR). In this
context, we investigate (i) the spellings of other graphemes in contexts which the con-
vention prescribes <l>, e.g. fauta (for falta – ‘lack’) and pírulas (for pílulas – ‘pills’); and
(ii) the spellings of <l>in contexts in which the orthographic convention recommends
another grapheme, e.g. coelinho (for coelhinho – ‘bunny’) and refligerant (for refrigeran-
te – ‘soda’). As the theoretical background, we follow the Heterogeneous Way of Writing
Organization (CORRÊA, 2004), a theory that proposes the registration, in the writer’s
text, of linguistic marks that discuss the subject/language relationship, from his/her cir-
culation through oral/spoken and literate/written practices. From the unconventional
spellings collected from 201 textual productions of the database (MENDES, 2013), 35
occurrences were observed, which primarily relate to exchanges (i) between graphemes
<l> and <r>, e.g. anuncial (for anunciar - ‘to announce’) and devorver (for devolver –
‘to return’); and (ii) between graphemes <l> and <u>, e.g. chegol (for chegou – ‘arrived’)
and augumas (for algumas – ‘some’). These exchanges, associated, respectively, with the
phonetic-phonological phenomena named rhotacism and vocalization, demonstrate
the dialogical circulation of the writers by the oral/spoken and, when hypercorrection is
applied (CAGLIARI, 2004), literate/written social practices (CORRÊA, 2004).

KEYWORDS: Phonetics and Phonology; Heterogeneous Way of Writing Organization;


Unconventional Spellings.

Introdução

O presente trabalho objetiva analisar grafias não convencionais de con-


soantes aproximantes laterais alveolares presentes em textos produzidos em

461
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

âmbito escolar, especificamente por alunos do sexto ano do Ensino Fundamental


de duas escolas públicas urbanas localizadas em Ponta Grossa (PR).

Justifica a realização desta pesquisa o seu ineditismo, posto que não se têm,
para a variedade ponta-grossense, estudos sobre grafias não convencionais que
dialogam com processos fonético-fonológicos ocorridos no Português Brasileiro.
Também justifica a condução desta investigação sua temática, já que, por tratar
de aspectos ortográficos, pode vislumbrar frutos para o ensino/aprendizagem de
línguas. A partir de grafias como prãnta, bardji e pobrema para, respectivamente,
planta, balde e problema, sobre a escrita do grafema <l>, Cagliari (2004, p. 375)
destaca que:

a dificuldade maior [...], como em outros casos, reside no fato de


alguns alunos falarem um dialeto em que as palavras têm pro-
núncias diferentes, acrescentando novos valores fonéticos à
letra L e dificultando em muito o acerto da grafia das palavras a
partir da observação da fala.

Cabe destacar, no entanto, que o presente trabalho não delimita sua pes-
quisa às trocas gráficas que resultam da tentativa do escrevente de grafar <l>.
Sendo assim, neste estudo, são investigadas tanto as trocas gráficas em que a con-
venção prescreve <l>, mas o escrevente apresenta outro grafema, como em fauta
(para falta) e pírulas (para pílulas), quanto trocas gráficas em que se utiliza <l> em
contexto em que a convenção ortográfica recomenda outro grafema, como em
coelinho (para coelhinho) e refligerante (para refrigerante), além de outras ocorrên-
cias – que não a troca – que envolvem a grafia não convencional da consoante
lateral alveolar.

Como fundamentação teórica, esta investigação segue o Modo heterogêneo


de constituição da escrita (CORRÊA, 2004). Justifica-se a utilização dessa teoria
pela concepção da aquisição da escrita como um processo, e não como um produto,
destacando, assim, o seu “caráter de não-acabamento” (CORRÊA, 2004, p. XIX).
Assume-se, por meio dessa teoria, a circulação dialógica do escrevente por prá-
ticas sociais do oral/falado e do letrado/escrito, e analisam-se as grafias não con-
vencionais conforme classificação proposta por Cagliari (2004).

Como corpus de pesquisa, são utilizadas 201 produções textuais retira-


das do banco de dados coletado por Mendes (2013) durante sua pesquisa de

462
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Mestrado, orientada pela Professora Dra. Pascoalina Bailon de Oliveira Saleh


(Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem - PPGEL/UEPG).

O presente trabalho organiza-se da seguinte forma: primeiramente, é


apresentado o arcabouço teórico que fundamenta esta pesquisa. Em seguida, são
descritos o material e o método utilizados. Posteriormente, procede-se à análise
dos dados, seguida pelas considerações finais e pelas referências bibliográficas.

Arcabouço teórico

A presente seção discorre sobre a fundamentação teórica que embasa esta


pesquisa, especificamente acerca das relações entre o oral/falado e o letrado/es-
crito e, em seguida, sobre os processos fonéticos-fonológicos que ocorrem com as
consoantes laterais alveolares.

Oral/falado e letrado/escrito

Como já citado, o presente trabalho segue o Modo heterogêneo de cons-


tituição da escrita (CORRÊA, 2004), teoria que concebe a escrita como processo,
e não como produto, e que propõe o registro no texto do escrevente de marcas
linguísticas que discorrem sobre a relação sujeito/linguagem, a partir de sua cir-
culação por práticas sociais do oral/falado e do letrado/escrito.

Essa teoria propõe a existência de três eixos (CORRÊA, 2004) que orien-
tam a circulação do escrevente pelo imaginário sobre a escrita, noção esta que,
segundo o autor, aproxima-se do sentido de representação, e não de ficção ou irrea-
lidade. Esses três eixos são:

i. Modo de constituição da escrita em sua suposta gênese: momen-


to em que o escrevente toma a escrita como representação dire-
ta da oralidade;
ii. Apropriação da escrita em seu estatuto de código instituciona-
lizado: momento em que o escrevente concebe a escrita a partir
do código institucionalizado para a sua escrita, podendo corres-
ponder essa institucionalização à escola, mas não se restringindo
a ela; e

463
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

iii. Dialogia do texto com o já falado/escrito: momento em que se


manifesta a relação do escrevente com suas experiências orais
e escritas, isto é, o já falado/já ouvido e com o já escrito/já lido.

Conforme afirma Corrêa (2004, p. XX), o processo de construção desse


imaginário não pode ser tomado como solitário, posto que “os outros aos quais o
sujeito escrevente direta ou indiretamente retoma e/ou se dirige também tomam
parte no trabalho incessante de re-produção/re-criação dessas representações
como participantes que são dos acontecimentos discursivos”.

Nesse contexto, defende o trabalho com as representações que o escre-


vente faz de si mesmo, do interlocutor e da (sua) escrita, a qual registra particula-
ridades a respeito dos aspectos sociolinguísticos do escrevente e da interlocução,
como o espaço, o tempo, a variedade linguística, o registro mais ou menos formal,
a modalidade. Consequentemente, segundo o autor, a escrita revela a representa-
ção do escrevente sobre a norma que deve reproduzir no ambiente escolar.

Desse modo, assim como Labov (2008 [1972]) defende a heterogeneida-


de linguística como objeto dos estudos sociolinguísticos, Corrêa (2004) destaca a
heterogeneidade constitutiva da própria língua e que afeta, inclusive, a noção de
norma com a qual o escrevente lida.

Em relação a grafias não convencionais, Cagliari (2004) destaca que, dentre


os erros mais comuns em produções textuais espontâneas de alunos, tem-se “uso
da escrita como se fosse uma transcrição fonética” (CAGLIARI, 2004, p. 277, gri-
fo nosso), em que a grafia não convencional é motivada pela pronúncia de certos
segmentos na variedade do escrevente, como em bardji, para balde (CAGLIARI,
2004). Conforme afirma o autor, esse tipo de grafia não convencional deve ser tra-
balhado com tempo e muita leitura e, se muito frequente, com a explicação sobre
ortografia e transcrição fonética.

Outro tipo de grafia não convencional elencada por Cagliari (2004) corres-
ponde à hipercorreção, que ocorre “quando o aluno exagera na aplicação de uma
regra, usando-a para contextos não permitidos” (CAGLIARI, 2004, p. 278). Menos
recorrente do que a transcrição fonética, pode ser exemplificada pelo momento
em que o aluno quer escrever céu, mas registra cél, em analogia com mel (após,

464
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

por exemplo, o(a) professor(a) ter explicado que a escrita é com <l>, apesar de a
pronúncia ser [w]).4

Miranda (2009), por sua vez, defende que as grafias não convencionais for-
necem indícios de representações construídas pelo escrevente no que concerne
à estrutura fonológica de sua língua materna. Pachalski e Miranda (2019, p. 156)
constatam “um predomínio de erros motivados pela fonologia em relação àqueles
motivados pelas particularidades do sistema ortográfico”, de tal forma que, para
as autoras, as grafias não convencionais são motivadas por aspectos do conheci-
mento linguístico internalizado do escrevente, corroborando estudos anteriores
de Miranda (2017, por exemplo).

Dadas as relações estabelecidas entre o oral/falado e o letrado/escrito, de-


ve-se discorrer, mesmo que brevemente, sobre as consoantes laterais alveolares
e suas realizações fonético-fonológicas, o que é feito na próxima seção.

Consoantes laterais alveolares no Português Brasileiro:


fenômenos fonético-fonológicos

Em termos articulatórios, para a emissão da consoante lateral, segundo


Cristófaro Silva (2017, p. 34), “o articulador ativo toca o articulador passivo e a
corrente de ar é obstruída na linha central do trato vocal. O ar será então expelido
por ambos os lados desta obstrução tendo portanto saída lateral”. No português,
há a lateral alveolar /l/ e a lateral palatal /ʎ/. Neste estudo, são analisadas apenas
as grafias não convencionais relacionadas à lateral alveolar /l/.

De acordo com Machry da Silva, Borghelott e Andrade (2020), na região


Sul do Brasil, a lateral alveolar pode sofrer alguns processos fonológicos durante a
realização, sendo eles: (i) rotacismo, como em cé[l]ebro e p[r]aca; (ii) vocalização, por
exemplo em a[w]guma; e (iii) velarização, como em lega[ł]. Os casos de rotacismo
podem ocorrer tanto na posição de coda quanto na posição de ataque complexo,
já as ocorrências de velarização e vocalização acontecem na posição de coda.

4 Cagliari (2004) identifica, ainda, outros tipos de grafias não-convencionais, como: (i) a troca de
letras, resultante do fato de uma letra poder representar muitos sons e de um som poder ser
representado por muitas letras, como em sebola (para cebola); e (ii) a troca de consoantes sonoras
e surdas, como emcorila (para gorila). Esses tipos de grafias não-convencionais não são considera-
dos no presente estudo, por não estarem relacionados a consoantes laterais alveolares.

465
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

O rotacismo consiste em um “fenômeno fonológico relacionado com a rea-


lização fonética de um som rótico em substituição a um som lateral ou vice-versa.
No português, o rotacismo ocorre, por exemplo, quando há substituição da líquida
lateral [l] pela vibrante simples ou tepe [ɾ]” (CRISTÓFARO SILVA, 2011, p. 197).
Sendo assim, pode-se dizer que o rotacismo corresponde à alternância entre as
consoantes líquidas, classificadas em vibrantes e laterais, as quais “partilham pro-
priedades fonotáticas no português brasileiro: ambas podem formar ataque sim-
ples, coda silábica e são os únicos segmentos permitidos como segundo elemento
de um ataque complexo” (COSTA, 2007, p. 5). O rotacismo é um processo bas-
tante recorrente no Português Brasileiro e considerado um dos processos mais
estigmatizados socialmente, associado a pessoas de baixa escolaridade ou a um
falar “caipira”.

Outro processo citado pelas autoras é a vocalização, “fenômeno fonológico


de alteração de uma consoante para vogal. No português, a lateral pós-vocálica
vocalizou-se na maioria dos dialetos e é manifestada como um glide posterior [w]”
(CRISTÓFARO SILVA, 2011, p. 220). Como apresentado por Sá (2006) a vocaliza-
ção “parece constituir uma tendência geral no português do Brasil” (SÁ, 2006, p.
4), diferenciando-se assim do Português de Portugal, que, como informa o autor,
tende a utilizar a forma velarizada.

A velarização também é apontada no texto como um processo fonológico


que ocorre a partir da lateral alveolar, pois “consiste no levantamento da parte
posterior da língua em direção ao véu palatino concomitantemente com a arti-
culação de um determinado segmento consonantal” (CRISTÓFARO SILVA, 2017,
p. 35). A velarização ocorre principalmente em contextos de coda silábica como
em me[ɫ] e sa[ɫ]. Essa propriedade articulatória secundária de velarização da con-
soante lateral, segundo Espiga (2002), é passível de ocorrer em dialetos do Sul do
Brasil, principalmente em regiões fronteiriças “[...] o alofone alveolar, já desapare-
cido em muitas variedades do Português Brasileiro [...], está presente em dialetos
brasileiros de fronteira, por influência do contato com o espanhol, onde tal alofo-
ne predomina” (ESPIGA, 2002, p. 50).

Outro processo que pode ocorrer com a consoante lateral alveolar é de-
nominado palatalização, “fenômeno pelo qual uma consoante adquire uma arti-
culação palatal ou próxima à região palatal” (CRISTÓFARO SILVA, 2011, p. 168).
Como exemplo, tem-se a realização de sandá[ʎ]a para sandá[l]ia.

466
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Feita essa breve apresentação do arcabouço teórico que fundamenta esta


pesquisa, passa-se à metodologia empregada na presente investigação.

Material e métodos

Para a realização deste trabalho, utiliza-se o banco de dados coletado e


disponibilizado por Mendes (2013). Durante sua pesquisa de Mestrado, a autora
coletou produções textuais em duas escolas urbanas estaduais da rede pública
de Ponta Grossa, município paranaense, com o objetivo de analisar a questão da
autoria em textos de opinião (MENDES, 2013).

O corpus utilizado neste estudo conta com 201 textos escritos em âmbito
escolar por alunos do sexto ano do Ensino Fundamental, com idade entre 11 e 12
anos. Após uma sequência de atividades sobre anúncios publicitários de diferen-
tes marcas, a autora solicitou aos alunos que produzissem textos a partir de duas
propostas: (i) desenvolver um anúncio publicitário para a venda de um produto;
e (ii) escrever um texto de opinião sobre o tema “Tomar refrigerante pode fazer
uma criança feliz?”.

É importante ressaltar que, embora as produções textuais sejam oriundas


de duas escolas diferentes do município mencionado, essa informação não
é considerada como uma variável relevante para a análise das grafias não
convencionais das laterais alveolares, pois, como explica Corrêa (2004), por conta
do ensino mais institucionalizado e do prestígio devotado à escrita, seu imaginário
circula por toda a sociedade e atinge todos os escreventes.

Em um primeiro momento, foi realizado um levantamento de todas as ocor-


rências de grafias não convencionais presentes nos 201 textos. Em uma segunda
triagem, foram selecionadas apenas as grafias não convencionais de consoantes
laterais alveolares. As grafias não convencionais selecionadas foram categoriza-
das em: (i) trocas de <l> para outro grafema; (ii) trocas de outro grafema para <l>;
e (iii) outros tipos de grafia não-convencional que não a troca gráfica.

Em seguida, procedeu-se à análise dos dados, descrita na seção a seguir.

Análise dos dados

A partir do levantamento de dados provenientes das 201 produções tex-


tuais do banco de dados de Mendes (2013), foram verificadas 35 ocorrências de

467
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

grafias não convencionais de consoantes laterais alveolares, apresentadas no


quadro a seguir:

ITEM GRAFIA NÃO-CONVENCIONAL CONVENÇÃO ORTOGRÁFICA


Aldumto Adulto
Altidor Outdoor
Altidores Outdoores
Altidores Outdoores
Anuncial Anunciar
Augumas Algumas
Augumas Algumas
Bousas Bolsas
Bouso Bolso
Cauçados Calçados
Cauças Calças
Chegol Chegou
Chicretes Chicletes
Coelinho Coelhinho
Colesterou Colesterol
Compral Comprar
Craro Claro
DisigaØdati Desigualdade
Devorver Devolver
Euma Elma (Chips)
Familha Família
Familhar Familiar
Fauta Falta
Macil Macio
Mau Mal
Mau Mal
Mau Mal
Pírulas Pílulas
Pírulas Pílulas
Probrema Problema
Refligerante Refrigerante
Refligerante Refrigerante
Rímeu Rímel
Saldável Saudável
Sargadinhos Salgadinhos
Quadro 1. Grafias não-convencionais de consoantes laterais alveolares.
Fonte: Elaboração própria.

Dessas 35 ocorrências, 22 (63%) correspondem a trocas de <l> para outro


grafema, como em algumas>augumas; 11 (31%) dizem respeito a trocas de outro
grafema para <l>, como em saudável>saldável; e duas (6%) correspondem a outros

468
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

tipos de grafia não-convencional que não a troca gráfica, como em desigualdade


>disigaØdati. Esses resultados podem ser mais bem visualizados por meio do grá-
fico a seguir:

Gráfico 1. Grafias não-convencionais.


Fonte: Elaboração própria.

Das 22 ocorrências de trocas de <l> para outro grafema, correspondentes


a 63% dos dados, 13 dizem respeito à troca para <u>, sete à troca para <r> e duas
à troca (de <l> seguido por <i>) por <lh>, como mostra o Quadro 2:

TROCA DE <l> PARA <u> TROCA DE <l> PARA <r> TROCA DE <l(i)> PARA <lh>
Au.gu.mas Chi.cre.tes Fa.mi.lha
Au.gu.mas Cra.ro Fa.mi.lhar
Bou.sas De.vor.ver
Bou.so Pí.ru.las
Cau.ça.dos Pí.ru.las
Cau.ças Pro.bre.ma
Co.les.te.rou Sar.ga.di.nhos
Eu.ma
Fau.ta
Mau
Mau
Mau
Rí.meu
Quadro 2. Trocas de <l> para outro grafema
Fonte: Elaboração própria.

Na primeira coluna, em que estão dispostos os casos de troca gráfica de


<l> para <u>, observa-se que as 13 grafias não convencionais ocorrem em coda

469
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

silábica, contexto em que, em muitas variedades do Português Brasileiro, o /l/


sofre categoricamente o processo fonético-fonológico denominado vocalização,
por meio do qual a consoante altera-se para uma vogal. Nesse caso, como já cita-
do neste trabalho, a vogal é realizada como um glide posterior [w] (CRISTÓFARO
SILVA, 2011), como em ca[w].ça.dos e co.les.te.ro[w].

No que tange à aquisição da escrita, Cagliari (2004) atesta a relação com


o processo de vocalização ao constatar que o grafema <u> tende, muitas vezes, a
ser utilizado para representar o som de “‘u’, como parte final de alguns ditongos”
(CAGLIARI, 2004, p. 152), como nos exemplos fornecidos pelo autor: baudi, méu e
çou, para, respectivamente, balde, mele sol.

Na segunda coluna, verificam-se as sete trocas de <l> para <r>, que ocor-
rem em ataque silábico, seja ele simples (como em pí.ru.las) ou complexo (como em
chi.cre.tes), ou coda (como em de.vor.ver). Esses casos são relacionados ao proces-
so fonético-fonológico rotacismo, e uma análise mais detalhada especificamente
sobre esses dados é apresentada no estudo de Carmo, Bugai e Dias (no prelo).
Desses dados, as autoras destacam as duas ocorrências presentes em ataque sim-
ples, por se tratar de um contexto silábico menos recorrente no que tange ao ro-
tacismo. As autoras explicam esses casos com base em Brandão e Callou (2019),
que afirmam se tratar de um processo de dissimilação, o qual passa a distinguir as
consoantes líquidas presentes no vocábulo (pí.lu.las ~ pí.ru.las).

Por fim, na terceira coluna, constam os vocábulos fa.mi.lha e fa.mi.lhar, em


que se observa a troca de <li> para <lh>. Esses dados relacionam-se ao fenômeno
– já apresentado neste trabalho – de palatalização, o qual é motivado, nesses ca-
sos, pelo traço de altura da vogal alta anterior subsequente (famíl/i/a e famil/i/ar).

Todas as 22 ocorrências presentes no Quadro 2 podem ser classificadas


como transcrição fonética (CAGLIARI, 2004), em que a grafia não convencional é
motivada pela pronúncia de certos segmentos na variedade do escrevente. As
trocas gráficas apresentadas no Quadro 2 e classificadas como “transcrição fo-
nética” evidenciam a circulação dialógica dos escreventes pelas práticas sociais
do oral/falado (CORRÊA, 2004), conforme o primeiro eixo proposto pelo autor, a
saber: o modo de constituição da escrita em sua suposta gênese.

As 11 trocas gráficas de outro elemento para <l>, correspondentes a 31%


dos dados totais, podem ser visualizadas no Quadro 3:

470
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

TROCA DE <o> OU <u> PARA <l> TROCA DE <r> PARA <l> TROCA DE <lh> PARA <l>
Al.ti.dor A.nun.ci.al Co.e.li.nho
Al.ti.do.res Com.pral
Al.ti.do.res Re.fli.ge.ran.te
Che.gol Re.fli.ge.ran.te
Ma.cil
Sal.dá.vel
Quadro 3 .Trocas de outro grafema para <l>
Fonte: Elaboração própria.

Das 11 ocorrências, seis, expostas na primeira coluna, apresentam a troca


gráfica de vogal <u> ou <o> para <l>. Esses casos, também relacionados ao pro-
cesso de vocalização - indiciado, também, pelo fato de todas as grafias não con-
vencionais ocorrerem em coda silábica, podem ser associados à hipercorreção
(CAGLIARI, 2004).

As quatro grafias não convencionais presentes na segunda coluna, como


exposto por Carmo, Bugai e Dias (no prelo), correspondem à hipercorreção, a par-
tir do processo de rotacismo.

Por fim, na terceira coluna, tem-se o dado co.e.li.nho, em que há a troca grá-
fica de <lh> para <l>, o que pode ser interpretada como hipercorreção, a partir do
processo de palatalização.5

Essas 11 ocorrências, classificadas como hipercorreção (CAGLIARI, 2004),


indicam a circulação do escrevente pelo segundo eixo proposto por Corrêa
(2004), o da apropriação da escrita em seu estatuto de código institucionalizado,
indicando sua circulação dialógica pelas práticas sociais do letrado/escrito.

Finalmente, no Quadro 4 apresentam-se as duas ocorrências de grafias não


convencionais que envolvem laterais alveolares e que não dizem respeito a trocas
gráficas.

Al.dum.to Di.si.gaØ.da.ti
Quadro 4 . Grafias não-convencionais que não correspondem a trocas gráficas
Fonte: Elaboração própria.

5 Esse dado também pode ser interpretado como transcrição fonética (CAGLIARI, 2004) e, portan-
to, associado ao primeiro eixo de Corrêa (2004). Nesse caso, é associado ao processo de despala-
talização da lateral palatal, lenição que faz com que essa consoante possa ser realizada como [lj],
por exemplo (CRISTÓFARO SILVA, 2011).

471
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

No caso de al.dum.to (para adulto), verifica-se que o grafema <l> foi es-
crito na sílaba anterior. Nesse âmbito, pode estar associado à metátese, definida
como “fenômeno de troca de posições de um segmento dentro de uma palavra”
(CRISTÓFARO SILVA, 2011, p. 152), mais especificamente metátese regressiva, por
ocorrer da direita para a esquerda (SÁ NOGUEIRA, 1958, apud HORA; TELLES;
MONARETTO, 2007, p. 185). Como exemplo de metátese - também regressiva -
na mudança do latim para o português envolvendo a consoante /l/, Hora, Telles e
Monaretto (2007, p. 185) apresentam si.bi.lar>sil.var.

Em relação ao uso de di.si.gaØ.da.ti (para desigualdade), pode-se associar tal


grafia não convencional ao apagamento da consoante lateral alveolar em posição
de coda silábica, transformando-a em uma sílaba aberta CV, estrutura silábica não
marcada no português.

Feita a análise das ocorrências das grafias não convencionais de con-


soantes laterais alveolares de alunos do sexto ano do Ensino Fundamental de
Ponta Grossa, são apresentadas, na próxima seção, as considerações finais deste
trabalho.

Considerações finais

A partir das 201 produções textuais (MENDES, 2013) utilizadas como cor-
pus no presente trabalho, foram levantadas 35 ocorrências de grafias não conven-
cionais de consoantes laterais alveolares, das quais 22 trocas gráficas (63%) foram
classificadas como transcrição fonética e 11 (31%) como hipercorreção (CAGLIARI,
2004). Esse resultado, de certa forma, era esperado, pois, de acordo com Cagliari
(2004), o primeiro tipo de grafia não convencional é recorrente em textos espon-
tâneos, enquanto o segundo consiste em um caso menos comum. Outras duas
ocorrências (6%) de grafias não convencionais envolvendo laterais alveolares não
correspondem a trocas entre grafemas.

A partir da concepção da escrita como processo, e não como produto


(CORRÊA, 2004), os dados analisados neste estudo elucidam a circulação dialó-
gica do escrevente por práticas sociais do oral/falado e do letrado/escrito. Essa
circulação dialógica corrobora a observação de que a aprendizagem referente
à ortografia é inesgotável, não devendo ser trabalhada apenas nos anos iniciais
do Ensino Fundamental (BRASIL, 1998, 2018). Com o auxílio das práticas de lei-
tura (CAGLIARI, 2004) e escrita (PARANÁ, 2008) para o ensino de ortografia,

472
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

evidencia-se a relevância de uma sólida formação – inicial e continuada – em


Fonética, Fonologia e Sociolinguística por parte do professor de língua portuguesa.

Por fim, espera-se que o presente trabalho, por meio da análise de grafias
não convencionais de consoantes laterais alveolares em textos de alunos do sexto
ano do Ensino Fundamental, produzidas em duas escolas do interior paranaense,
contribua de modo a exemplificar a complexidade da aquisição da escrita, proces-
so que, como explicitado, não se finda nos primeiros anos do Ensino Fundamental.

Referências

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473
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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474
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

“CAOS”: ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO


DE SENTIDO VERBO-VISUAL EM UMA
CAPA DA REVISTA CARTA CAPITAL

Anselmo Pereira Lima1


Bianca Presotto2
Camila Ribas Stankoski3

RESUMO: O presente artigo faz uma análise verbo-visual da capa da revista


Carta Capital de agosto de 2015. A manchete da revista conta apenas com a pala-
vra “Caos”, palavra a qual será utilizada como objeto de análise, com o objetivo de
buscar possíveis interpretações mais profundas em sua reportagem e capa. Isso
será feito por meio de um estudo baseado nos conceitos de significação e tema
e gêneros do discurso, trabalhados por Bakhtin/Volochinov (2006) e William
Cereja (2010). A fundamentação teórica escolhida exemplificará cada um desses
conceitos e trará novas perspectivas aos leitores de como interpretar um enun-
ciado, abordando a importância da construção do pensamento crítico no ensino,
enfatizando a importância dos professores levarem seus alunos a refletir sobre
as escolhas de elementos e palavras para a construção dos mais diversos enun-
ciados. O significado etimológico da palavra “caos” também será analisado em
relação aos elementos extraverbais da capa, levando a conclusões que inter-re-
lacionam todos esses fatores. Os resultados alcançados por meio dessa análise
mostram a relevância dos estudos semióticos para a vida em sociedade e como

1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). anselmo@utfpr.edu.br


2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). bianca_presotto@hotmail.com
3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). cami_stankoski@hotmail.com

475
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

nossa percepção da realidade pode ser e é alterada de acordo com o uso da lingua-
gem para guiar o pensamento do leitor/ouvinte.

PALAVRAS-CHAVE: Significação; Tema; Caos.

ABSTRACT: This paper makes a verbal-visual analysis of the Carta Capital magazine’s
cover from August 2015. The headline of the magazine has only the word “Chaos”, a
word that will be used as an object of analysis, in order to search for possible deeper in-
terpretations on its report and cover. This will be done through a study based on concep-
ts of meaning and theme and discourse genres studied by Bakhtin/Volochinov (2006)
and William Cereja (2010). The theoretical framework that was chosen will exempli-
fy each of these concepts and bring new perspectives to readers on how to interpret
a statement, addressing the importance of building critical thinking in education, em-
phasizing the importance of teachers to take their students to reflect on the choices of
elements and words for the construction of several statements. The etymological mea-
ning of the word “chaos” will also be analyzed in relation to the extraverbal elements of
the cover, leading to conclusions that interrelate all these factors. The results achieved
through this analysis show the relevance of semiotic studies for life in society and how
our perception of reality can be changed and it is changed according to the language use
to guide the thinking of the reader/listener.

KEYWORDS: Meaning; Theme; Chaos.

Introdução

O sistema linguístico atual difere muito do seu sistema de origem, mas di-
fere também do sistema de apenas alguns anos atrás. Isso ocorre porque ele passa
por constantes ajustes e reajustes, está sempre sofrendo mudanças não apenas
de ordem gramatical, mas também de sentido e de significação, o que pode causar
desentendimentos, mas também enganar, ludibriar, manipular ou influenciar um
interlocutor propositalmente ou não.

Levando em conta esses aspectos da linguagem, esta pesquisa pretende


fazer um estudo relacionado ao tema da palavra “caos”, que aparece na capa da
revista Carta Capital, de agosto de 2015, considerando não apenas sua definição
atual, mas também a etimológica, pois com várias mudanças nos significados das
palavras, por vezes os interlocutores podem perder informações importantes – e
talvez essenciais – para uma leitura e compreensão adequada. Com a intenção de
desviar a atenção dos leitores, as revistas podem se aproveitar da desatenção das

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

pessoas para abordar assuntos relativamente profundos de forma aparentemen-


te superficial.

É com a intenção de esclarecer e aprofundar o tema dessa manchete em


particular que esse estudo verbo-visual vem como forma de alerta para aguçar
os leitores a procurarem por um sentido mais profundo em suas leituras, sejam
elas quais forem. Através do trabalho aqui apresentado, almeja-se incentivar os
leitores a realmente analisar o que está sendo dito e seus possíveis significados
implícitos.

Para tanto, essa pesquisa foi baseada nos conceitos de Bakhtin/


Volochinov (2006) e retomamos por William Cereja (2010), que tratam sobre
significação e tema, ou seja, conceitos que ajudam os leitores a interagir melhor
com suas leituras e assim compreendê-las em um nível aprofundado. Para auxiliar
no embasamento de nossa pesquisa e como forma de exaltar a importância de
uma interpretação mais aprofundada no nosso cotidiano, optamos pela obra de
Oliveira et al. (2012), que traz uma perspectiva semântica para a discussão.

Para melhor entendimento do artigo como um todo, as partes deste esta-


rão dispostas em metodologia, fundamentação teórica, análise da capa, conside-
rações finais e referências.

Metodologia

A princípio relacionamos quatro capas de revistas para a análise. Após


cada uma das reportagens serem lidas e as palavras das manchetes serem in-
vestigadas, ficamos indecisos entre duas capas: “Caos”, da revista Carta Capital
e “Reprimir não funciona”, da revista Época. Foi decidido, portanto, procurar a
etimologia das palavras de ambas as capas e, através desta busca, escolheu-se
a primeira capa da revista Carta Capital, por trazer mais evidentemente em seu
significado a mudança do contexto de uso das palavras com o decorrer do tempo.
Também foi considerado o interessante material extraverbal presente na capa;
fazendo referência ao mar, ou seja, o caos marítimo e como essa metáfora se pro-
longa durante a reportagem.

Para a busca do significado atual da palavra “caos” utilizou-se o Dicionário


da Língua Portuguesa. Também procuramos a significação latina da palavra em
um dicionário etimológico, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Além
do uso dos dicionários, os textos de Bakhtin/Volochinov (2006) e William Cereja

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

(2010) também foram estudados, para gerar uma base maior sobre como proce-
der com a pesquisa.

Após a busca dos significados da palavra “caos” em diferentes períodos


da história humana, buscaram-se fatores contextuais que ocasionaram a mudan-
ça de seu significado. Além dos conceitos de significação e tema, um estudo de
Gutiérrez (2011) colaborou na interpretação/compreensão das mudanças ocor-
ridas nesta palavra.

Fundamentação Teórica

Significação e tema foram conceitos estudados e definidos por Bakhtin/


Volochínov e posteriormente retomados por William Cereja e serão agora base
para esse estudo. De acordo com Bakhtin/Volochinov (2006), a significação diz
respeito a um nível inferior da compreensão de um determinado enunciado, ou
seja, a significação está relacionada a conhecer as palavras que ali se encontram
e seus significados. Segundo Bakhtin/Volochinov (2006, p. 132), entende-se por
significação “os elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos cada
vez que são repetidos”. Já o tema é considerado de um nível maior de compreen-
são do mesmo enunciado, pois é “o sentido da enunciação completa” (BAKHTIN/
VOLOCHINOV, 2006, p. 131), ou seja, o tema leva em conta, não só o que é dito ou
o que está escrito, mas a maneira, entonação, chamada por Bakhtin/Volochinov
(2006, p. 16), de “entonação expressiva”, com a qual foi pronunciado, e também,
o contexto de produção em que foi expresso. Por decorrência desses diversos fa-
tores, o tema de uma enunciação é único, pois toda vez que é proferida a mesma
enunciação, cada um desses fatores o influencia e o altera, gerando um novo tema.

Para ilustrar melhor o que queremos dizer, discutiremos rapidamente


o que é um enunciado e os elementos que o compõem. De acordo com Bakhtin
(2006) o enunciado é a verdadeira molécula de estudo da linguística, incluindo em
si elementos de ambas esferas, significação e tema. Para que isso ocorra, o enun-
ciado deve ser composto de tema, estilo, construção composicional, axiologia e
relação interlocutiva, estes elementos são essenciais para a composição de um
enunciado como tal, formando uma totalidade complexa.

O tema se resume no assunto de um determinado enunciado, enquanto


estilo é a marca pessoal de cada um impressa na criação de cada enunciado toda
vez que é proferido; a construção composicional são os elementos que compõem

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

os enunciados; a axiologia está refletida no juízo de valor presente no enunciado;


e a relação interlocutiva é a partir da qual o enunciado surge, a qual apresenta
as pessoas que fazem parte do diálogo, da troca de enunciados. Estes elementos
são indissociáveis, pois dependem um do outro para formarem adequadamente
o enunciado dependendo de cada situação. Ou seja, a relação interlocutiva que
representa os sujeitos dentre os quais esses enunciados são formados definem os
temas possíveis de serem tratados, da mesma forma decidem os elementos com-
posicionais e estilo, pois estes dependem do nível de formalidade do contexto,
por exemplo, e a axiologia da enunciação, atribuindo determinado valor para as
sentenças e elementos presentes no enunciado, é por isso que não existe um sem
o outro.

É importante aqui, diferenciarmos o enunciado da sentença, pois a sen-


tença apenas compõe o enunciado, sendo um de seus elementos, sem um sen-
tido completo em si mesma. A sentença sozinha em sua composição não apre-
senta todos os elementos supracitados, pois não faz parte necessariamente de
um contexto conversacional, representando então apenas a parte da estrutura
composicional do enunciado como um todo. Dessa forma, compreendemos mais
profundamente os estudos de Bakhtin na diferenciação entre tema e significa-
ção. A significação faz parte da sentença, pois representa o que ela quer dizer de
acordo com sua definição formal, gramatical, presente no dicionário. Já o tema é
um enunciado completo, sendo direcionado a alguém, dentro de uma situação de
interação, querendo dizer, por vezes, mais do que está presente apenas na signifi-
cação de seus elementos. Assim, para interpretarmos um tema, precisamos com-
preender a situação como um todo.

Todos estes conceitos previamente abordados estão também relaciona-


dos aos estudos da semântica e pragmática, sendo ambos responsáveis por enten-
der a forma como interpretamos uma sentença. Esta forma de estudo influencia
muitos professores em sala de aula na forma de ensinarem aos seus alunos inter-
pretação e compreensão de enunciados trabalhados em sala de aula. A semântica
tem seu foco no estudo literal do significado de frases, enquanto a pragmática se
ocupa da interpretação do enunciado, levando em conta o contexto e como ele
influencia a compreensão dos textos com os quais o aluno entra em contato no
seu dia a dia.

A importância desses estudos, segundo Oliveira et al. (2012) está no fato


de que:

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

[...] a semântica pode ser um instrumento para melhorarmos não


apenas a leitura e a escrita, mas para permitir a reflexão sobre
a linguagem [...] é possível despertar no aluno o interesse pela
semântica que pode efetivamente contribuir para que ele seja
um leitor mais perspicaz e um autor menos ingênuo. Refletir
sobre o significado, como ele é construído, quais os processos
mentais envolvidos, isso retira o aluno do lugar de familiaridade
que ele habita na linguagem, produz afastamento da sua língua,
permitindo observá-la como um objeto do qual ele está desliga-
do. Essa atitude de observar sem estar envolvido é fundamental
para que ele possa ser um melhor avaliador de seu próprio texto.
(OLIVEIRA et al., 2012, p. 171).

Assim, a utilização dos recursos trazidos pelos estudos propostos por


Bakhtin e pela semântica e pragmática visam tornar o leitor mais consciente dos
processos aos quais a linguagem é submetida e sua real função social.

Com base em tudo o que vimos até aqui, percebemos que, na repetição
de um mesmo enunciado, temos a mesma significação (são usadas as mesmas pa-
lavras, o mesmo sintagma), porém temas diferentes. Ainda que nos utilizemos das
mesmas sentenças para a construção do nosso enunciado, cada situação empre-
ga sentidos, intenções e interpretações completamente diferentes a eles e essa
é a característica que diferencia os dois termos e define tema como enunciação
historicamente construída e única. Assim, na definição de Bakhtin/Volochinov
(2006, p. 131-132):

O tema de enunciação é na verdade, assim como a própria enun-


ciação, individual e não reiterável. Ele se apresenta como a ex-
pressão de uma situação histórica concreta que deu origem à
enunciação [...] Conclui-se que o tema da enunciação é determi-
nado não só pelas formas linguísticas que entram na composição
[...] mas igualmente pelos elementos não verbais da situação [...]
Além do tema, ou, mais exatamente, no interior dele, a enuncia-
ção é igualmente dotada de uma significação [...] Naturalmente,
esses elementos são abstratos: fundados sobre uma conven-
ção, eles não têm existência concreta independente, o que não
os impede de formar uma parte inalienável, indispensável, da
enunciação.

Esses conceitos são explicados também por Cereja (2010, p. 202), que elu-
cida que “a significação existe como capacidade potencial de construir sentido,
própria dos signos linguísticos e das formas gramaticais da língua”, ou seja, é um

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

estado mais estável dos signos; em contrapartida “participam da construção do


tema não apenas os elementos estáveis da comunicação, mas também os elemen-
tos extraverbais [...]. Desta forma o instável e o inusitado de cada enunciação se
somam a significação, dando origem ao tema [...]”, um não existe sem o outro.

Trazendo esses conceitos ao presente artigo, partiremos deles para in-


vestigar a fundo o tema da capa da revista Carta Capital de agosto de 2015, com-
preendendo a necessidade da interação entre elementos verbais e não verbais e a
influência do conhecimento da origem e diversos significados da palavra “caos”.

Análise

A revista Carta Capital traz na capa da edição de agosto de 2015 (Figura 1),
a manchete “Caos, quem quer e quem não quer”. Este tema estava relacionado à
situação econômica do Brasil e sua presidente na época, Dilma Rousseff. Os ele-
mentos extraverbais analisados são o mar – aparentemente agitado –, a neblina, o
farol ao longe e a boia salva-vidas em uma perspectiva mais próxima:

Figura 1 .Capa da revista analisada. Carta Capital (2015).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Partiu-se, a princípio, do estudo verbal desta capa, mas precisamente a pa-


lavra “caos”. Atualmente, de acordo com o dicionário Aurélio (2008, p. 207), “caos”
significa: 1. Vazio obscuro e ilimitado que antecede, e teria propiciado a geração
do mundo. 2. Grande confusão ou desordem. 3. Comportamento praticamente
imprevisível exibido em sistemas que têm evolução temporal extremamente sen-
sível a variações em suas condições iniciais.

A primeira definição tem relação à origem da palavra “caos” e aparentemen-


te nenhuma relação com a capa escolhida, mas esses conceitos serão retomados
em melhor explicação na sequência. A segunda definição é a que mais se aproxima
da primeira interpretação que é feita desta capa. Além de “caos” ser uma palavra
utilizada no dia a dia com a definição de confusão e desordem, não seria incomum
para um possível leitor desta revista, interpretar esta capa como a desordem do
mundo em relação à política, até mesmo a continuidade da manchete “Quem quer
e quem não quer” (em relação ao impeachment de Dilma Rousseff) gera esta ideia
de que existia desordem, tanto no parlamento quanto na sociedade, pelo fato da
população estar dividida em relação a esse assunto, ou seja, de toda a sociedade
brasileira estar passando por um período caótico.

Esta é uma interpretação possível da capa, a primeira ideia que, provavel-


mente, vem à cabeça ao entrar em contado com a sua temática. Entretanto, não é
a única existente. De acordo com o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa
(2010, p. 123) “caos” é definido “nas mitologias e cosmogonias pré-filosóficas, va-
zio, escuro e ilimitado que precede e propicia a geração do mundo’ ‘abismo’ | chãos
XVII Do lat. Chaos –i, deriv. Do gr. Chaos || caótico | cha-1881 | Do fr. Chaotique”.
Temos nas mitologias uma definição muito próxima a qual encontramos no dicio-
nário Aurélio atual. Entretanto, por mais que esta seja uma definição que consta
no dicionário, não é a definição mais utilizada para a palavra em nosso cotidiano.

Ao considerarmos o conceito etimológico mítico da palavra “caos”, perce-


bemos, porém, que este significado de desordem e confusão, o qual é utilizado
vastamente na atualidade, não está tão distante de seu significado original já que
a desordem está relacionada ao estado predecessor ao planeta. Dessa forma, po-
demos concluir que as mudanças que ocorreram dentro deste conceito ao passar
dos anos não foram, de certa forma, tão bruscas, distanciando-a completamente
de sua ideia original, mas que, mesmo assim, ignoramos uma das definições liga-
das a esta palavra. Ou seja, as transformações afetam mais largamente a escala da
comunicação, que está intimamente ligada à significação de uma palavra. Assim,

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

por menor que seja a mudança na utilização cotidiana de um termo, isso influen-
ciará, sua significação e tema dentro dos enunciados.

E é por isso que quando lemos a capa da revista Carta Capital, o significado
que nos vêm à mente é o de desordem, que não está diretamente ligado à concep-
ção de criação do mundo. Mas se em uma análise mais aprofundada dessa capa, de
seus recursos verbais e de seus recursos extraverbais, encontrássemos sim uma
ligação à etimologia da palavra “caos”? Já temos conhecimento de que seu signifi-
cado está ligado ao estado no qual o mundo se encontrava antes de sua geração,
porém, adentraremos mais ainda a este conceito.

De acordo com Gutierrez (2011):

Este conceito [de caos] era pensado mitológica e cosmogonia-


mente. Era pensado juntamente com a tentativa de imaginar
como tinha sido a origem do mundo. Eles pensavam o caos como
algo primitivo, inicial, originário, que geralmente era entendi-
do como desordem, indeterminação, falta de leis e de forma.
(GUTIÉRREZ, 2011, p. 1).

Percebemos que o conceito está ligado à instabilidade e, como os gregos


antigos ainda não possuíam avanço científico e tecnológico para estudar o início
do mundo, eles utilizaram-se de sua intuição, imaginação, observação, literatura e
também da poesia (GUTIÉRREZ, 2011) para explicá-lo e a partir disso passaram a
utilizar-se do conceito de caos para definir este estado predecessor. Isto porque
eles possuíam um conceito contrário a caos, o conceito de cosmos que “deriva de
um verbo cujo significado é ‘ordenar’, ‘arranjar’, ‘comandar’ […]. O cosmos é o uni-
verso, a totalidade das coisas. Mas é também o universo ordenado e o universo
elegante” (BARNES, p. 200 apud GUTIÉRREZ, 2011, p. 2). Gutiérrez (2011) dá
continuidade:

Para eles uma ordem eterna era impensável, porque eles em sua
relação empírica com o mundo não tinham a experiência de uma
ordem eterna. No seu olhar do mundo viam que nada é ordena-
do para sempre. As coisas perdem a forma, se desordenam, des-
mancham, bagunçam, deixam de funcionar, envelhecem, voltam
a terra. A matéria podia ser eterna, o tempo era para eles eterno,
o movimento tinha existido sempre. Mas não a ordem. Se existe
ordem é porque em algum momento houve um elemento orde-
nador. (GUTIÉRREZ, 2011, p. 2).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Portanto, partindo do conceito de cosmos que eles já tinham do mundo


e de sua intuição de que as coisas não tinham sempre sido organizadas daquela
forma, eles expuseram que o mundo havia se iniciado no caos. Esses foram os en-
tendimentos mitológicos gregos antigos que geraram os significados que conhe-
cemos hoje. Porém, iremos ainda além desta definição.

Como vimos, o conceito de caos como conhecemos hoje, partiu das mito-
logias dos povos gregos, mas não foi ali que encontramos os primeiros indícios
dessa definição. O povo Sumério não conseguiu criar realmente uma filosofia re-
lacionada ao início do mundo, mas segundo Gutiérrez (2011, p. 3) “refletiram e
especularam sobre a natureza do universo em sua origem, e principalmente sobre
sua organização e modo de operação” e, dessa forma, criaram também algumas
teorizações, como lemos em Gutiérrez (2011, p. 3): “as tabuletas sumérias falam
que no princípio do mundo somente havia um ‘oceano primordial’ infinito, no qual
todas as coisas estavam misturadas. Era o caos”. Esse foi, então, o primeiro concei-
to da palavra, ainda que não bem articulado.

Ainda de acordo com os Sumérios, eles se utilizaram deste conceito de


“oceano primordial” como uma espécie de causa primeira e que foi desse oceano
que se originou o céu e a terra, como explica Gutiérrez (2011). Podemos unir este
pensamento à continuação do pensamento grego, isto é, considerarmos o caos
como a desordem em forma de mar, que origina o mundo, portanto, origina o cos-
mos, como leremos a seguir.

Os Sumérios não foram o único povo a pensar na origem do mundo envol-


vendo o oceano. O povo egípcio também se utilizou deste conceito:

As cheias do Rio Nilo que indicavam os tempos da vida (tempo


de plantar, tempo de colher, tempo de descansar), a passagem
ordenada e previsível das estrelas, as idas e voltas do Sol no
horizonte etc., era algo que indicava uma ordem. Mas quando
pensavam nos tempos primordiais, não conseguiam pensar uma
ordem eterna. A ordem teve um começo. Que havia antes da or-
dem? Antes da ordem era a água. A terra tinha emergido, como
uma ilha dessa água […] No começo era a água, lamacenta, turva,
aquosa, pantanosa. (GUTIÉRREZ, 2011, p. 4).

Portanto, o conceito dos antigos egípcios une-se aos mitos gregos e sumé-
rios, que edificam a ideia de um mar caótico inicial dando origem ao mundo, dando
origem ao cosmos.

484
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Agora, voltemo-nos a interpretação das informações visuais presentes na


capa da revista Carta Capital. Além de termos envolvido o enunciado “Caos”, no
qual já nos aprofundamos, temos também envolvidos os elementos extraverbais
da capa. Um desses elementos extraverbais é a figura do mar. De todas as formas
de desordem existentes na humanidade, a escolhida pela revista Carta Capital,
foi o caos marítimo. Podemos, a partir desta escolha, relacionar o enunciado aos
elementos extraverbais e aos conceitos etimológicos que acabamos de ver.

Como citado anteriormente, a capa da revista e a utilização da palavra


“caos” estão relacionados à política e a questão de um possível impeachment da
presidente Dilma Rousseff que circundava na época. Outro fator importante para
a capa ser compreendida de modo aprofundado é o conteúdo da reportagem. Esta
defendia manter Dilma no poder, e foi construída linguisticamente fazendo uso
de metáforas com elementos marítimos presentes na capa; como ao colocar que
Dilma teria algumas boias para se agarrar em meio ao caos marítimo ou ao afirmar
que Cunha, mesmo estando aposentado, continuara atuando como um ponto de
equilíbrio para Dilma, visto que sua história e competência eram como um farol,
um norte, para o empresariado (CARTA, 2015). Entende-se, assim, a utilização do
farol e da boia salva-vidas presentes na capa, ou seja, representam uma forma de
salvação para Dilma, um caminho a seguir.

Mas ainda restam os questionamentos de: por que a escolha do mar re-
volto para representação do caos? De que forma esta escolha se liga ao presente
estudo?

A escolha do elemento mar pode ser a representação do oceano que lemos


anteriormente: o “oceano primordial” dos Sumérios ou a água dos egípcios, ambos
representantes do caos de acordo com os estudos antigos, pois representavam o
caos existente antes da criação do mundo, antes da ordem.

Dessa forma, pode-se vir a concluir que a revista Carta Capital está refe-
rindo-se ao caos existente antes da ordem. Relacionando-se este fato à realida-
de que era vivenciada na época, das diversas opiniões sobre as perspectivas que
despontavam sobre o futuro incerto do país, a revista vinha com a visão de que
Dilma tinha como manter-se no poder e contornar a situação de crise no Brasil, in-
terpretando-se que ela mantinha o poder de tirar o país deste estado de caos, isto
é, ela possuía a capacidade de reconstituir o cosmos, a ordem no Brasil. Portanto,
este caos proposto pela revista, a partir da conclusão que foi atingida, não é ne-
cessariamente um aspecto negativo, um momento ruim pelo qual o país estava

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

passando, mas sim que era um período necessário para atingir-se uma próxima
fase em direção à prosperidade brasileira.

Neste sentido, pode-se relacionar essa interpretação da capa aos estudos


apresentados na fundamentação teórica, pois foi mostrado que, assim como a lin-
guagem, passa por essas transições necessárias para que esta evolua e se adapte
à sociedade que a utiliza, também a própria sociedade passa por essas transições
caóticas para adaptar-se. Assim, a capa traz um tema profético, já que, no momen-
to, vivenciava-se o caos, mas a revista insinua que este caos era necessário para
a instalação do cosmos em uma sociedade melhor. Pode-se então comparar essa
análise a uma terceira teoria, agora na área científica. A teoria do caos nos mostra
uma ideia central de que o caos é uma pequena mudança em um evento que nos
trará grandes consequências ainda desconhecidas no futuro. Com base nessas
observações pode-se mais uma vez concluir que a revista trata de uma capa de
tema profético, considerando que esta teoria se aplicava também à situação do
Brasil na época, influenciando o leitor a acreditar na possibilidade de recuperação
do país ainda sob o comando de Dilma Roussef.

Considerações finais

Ao final das pesquisas que orientaram este artigo, pudemos concluir pri-
meiramente que a utilização cotidiana das palavras muda seus significados de
acordo com os contextos nos quais são inseridas, ou seja, gerando novos temas.
Este fator influencia diretamente a comunicação, podendo o locutor se utilizar
dela de forma proposital ou não.

Por este motivo é importante que formemos alunos conscientes do seu


processo de produção e interpretação de enunciados, para que não apenas sejam
bons observadores imparciais de suas próprias construções, mas que possam dei-
xar a ingenuidade de uma interpretação superficial de lado e realmente refletir
sobre as intenções presentes nos enunciados com os quais têm contato.

Na edição analisada, a revista Carta Capital transmite em sua capa uma pri-
meira interpretação bastante impactante, aparentemente destacando a desor-
dem em que o país se encontrava e colocando em xeque a permanência da então
presidente no poder. Entretanto, não apenas na leitura da reportagem, mas tam-
bém na análise que aqui apresentamos, um leitor mais atento, perceberia de outra
forma a construção da capa como um todo, levando em conta sua capacidade de

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

interpretação de tema e conhecendo a forma como a revista geralmente retrata-


-os. Assim, a capa da revista pode apresentar duas interpretações: a mais super-
ficial, que considera a desordem do país e o risco que corria a presidente sendo
representados; e, em uma análise mais profunda, a defesa da revista em relação
à Dilma manter sua posição dentro do governo, mostrando uma unilateralidade
ao invés da imparcialidade que o jornalismo deveria empregar. Como vimos, os
elementos extraverbais e toda etimologia e história por trás da palavra “caos” cor-
roboram para essa compreensão.

Dessa forma, a revista poderia estar buscando uma estratégia para induzir
o leitor a uma leitura inicial superficial para que ele compre a revista e, ao ler a
reportagem, seja persuadido a enxergar o contexto político e as competências de
Dilma de outra forma, de acordo com o que a revista apresenta.

Levando em conta esses fatores, destacamos que o estudo dos significados


etimológicos das palavras pode esclarecer e abrir caminhos muito mais amplos
para as interpretações de quaisquer enunciados. Esse era o objetivo deste arti-
go, auxiliar os leitores a pensar nos possíveis sentidos escondidos por trás de um
enunciado aparentemente simples. Nas escolas, o trabalho através da semântica
e pragmática deve desempenhar este papel para os alunos, sendo o primeiro con-
tato que eles têm com as formas de interpretações possíveis para tais enunciados
com os quais têm contato, formando alunos mais críticos e reflexivos, menos sus-
cetíveis a leituras superficiais.

É interessante pensarmos a partir dessa análise em como um elemento


se relaciona a outro e como cada um desses elementos, se considerados além de
uma percepção superficial, pode vir a construir um novo sentido sobre o mesmo
assunto, algo que sem um estudo mais aprofundado, provavelmente, não seria
possível ser atingido.

A partir, especificamente, do estudo que fizemos neste artigo, concluímos


que uma leitura aparentemente fácil, pode esconder diversos desafios de com-
preensão que, quando vencidos, podem gerar uma interpretação muito mais pro-
funda e esclarecedora. E essas interpretações não devem se restringir apenas a
revistas, mas também a quaisquer outros tipos de contato com enunciados alheios
e até nossos mesmos, pois a intenção é que sejam formados sujeitos críticos, que
fujam do senso comum e que não sejam ludibriados por artigos manipuladores
que escondam suas verdadeiras intenções dentre sentidos e temas ocultos.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Aqui trouxemos um exemplo prático de como a escolha de uma capa de


elementos verbais e extraverbais se uniram e transformaram uma interpretação
superficial em outra muito mais aprofundada, que vem de forma a ajudar o leitor
a compreender o que a revista realmente quis dizer com essas relações intertex-
tuais (entre imagem e elementos linguísticos) e com a reportagem inserida na re-
vista. Passamos a perceber que todas as palavras escolhidas, todas as metáforas,
não são aleatórias, mas sim fazem parte de uma cadeia de fatores que leva ao lei-
tor uma ideia que vem para direcionar seu pensamento para a forma que a revista
quer que ele pense. Por isso, além de ser um estudo etimológico, este artigo con-
tribui para o incentivo à leitura crítica, para que o leitor pense duas vezes antes de
aceitar cegamente tudo que lê.

Referências

BAKHTIN, M. l. (Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas


fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução: Michel Lahud e
Yara Frateschi Vieira. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
CARTA, M. Mares Menos Revoltos. Carta Capital, São Paulo, n. 863, p. 18-23, 19
ago. 2015.
CEREJA, W. Significação e tema. In: BRAIT, Beth. (org.). Bakhtin: conceitos-chave.
4. ed. São Paulo: Contexto, 2010. p. 201-220.
CUNHA, A. G. da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 4. ed. Rio de
Janeiro: Lexikon, 2010.
FERREIRA, A. B. de H. O Dicionário da Língua Portuguesa. 7 ed. Curitiba: Positivo,
2008.
GUTIÉRREZ, J. L. O Conceito de Caos no Mundo Antigo. 2011. Disponível em:
http: //www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCH/primus_vitam/primus_2/
jorge.pdf. Acesso em: 23 out. 2015.
OLIVEIRA, R. P., et al. Semântica: 6º período. Florianópolis: LLV/CCE/UFSC, 2012.

488
PARTE 3

ESTUDOS EM
LITERATURA E
INTERFACES
A BRUXARIA COMO LIBERDADE
FEMININA EM LOLLY WILLOWES DE
SYLVIA TOWNSEND WARNER1

Sintia Deon2

RESUMO: Sylvia Townsend Warner (1893-1978) foi uma proeminente escritora


britânica do início do século XX, mas pouco conhecida no meio acadêmico brasi-
leiro. Dada a importância de sua obra no que diz respeito aos estudos feministas,
este trabalho trata de uma análise dos elementos da bruxaria como liberdade fe-
minina em Lolly Willowes (1926). Assim, Warner faz uma crítica à sociedade – a
bruxaria poderia ser analisada como a liberdade que as mulheres procuravam
ou como a aventura que desejavam viver. Para isso, a protagonista Laura (Lolly)
Willowes, sem nenhuma intenção, se tornou uma bruxa capaz de entender os
sinais da natureza e se libertar das amarras de uma sociedade patriarcal. Nesse
sentido, esse trabalho abordará a bruxaria e quais as liberdades que ela traz para
as mulheres presentes nessa narrativa. A partir do ponto em que entendemos a
bruxaria, compreendemos que sua base é a natureza, e fazendo uso dela, Laura,
inconscientemente, antes mesmo de se mudar para o vilarejo Mop, circundado
pela floresta, já apresentava sinais de que a natureza lhe acompanhava, a exemplo
das próprias plantas que trazia para dentro da casa de seu irmão. Para essa análi-
se, foram utilizadas ideias e teorias de autores que estudaram sobre o paganismo,

1 Trabalho derivado do trabalho de conclusão de curso intitulado: Bruxaria e cristianismo em Lolly


Willowes de Sylvia Townsend Warner: uma análise voltada ao feminino, orientado pela Prof.ª Dr.ª
Mariese Ribas Stankiewicz, no ano de 2019, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná,
Campus de Pato Branco.
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). sintia.deon@gmail.com

490
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

como Scott Cunningham (1998,2001,2018) e Nubia Hanciau (2004), além de ou-


tras informações sobre esoterismo que tratam principalmente sobre o significado
das ervas e dos elementos da bruxaria. A partir da análise, foi possível perceber
um pouco do contexto histórico em que Warner viveu, destacando-se as imagens
e o papel feminino no século XX, que era quase totalmente direcionado ao lar.

PALAVRAS-CHAVE: Sylvia Townsend Warner; Bruxaria; Libertação Feminina.

ABSTRACT: Sylvia Townsend Warner (1893-1978) was a prominent British writer at


the beginning of the 20th century, but poorly known in Brazilian academic context.
Given the importance of her work with relation to feminist studies, this study deals with
an analysis of the elements of witchcraft as female freedom in Lolly Willowes (1926).
Thus, Warner makes a critique of society - witchcraft could be analyzed as the freedom
women sought or as the adventure, they wished to live. For this, the protagonist Laura
(Lolly) Willowes, without any intention, became a witch able to understand the signs of
nature and free herself from the bonds of a patriarchal society. In this sense, this work
will discuss witchcraft and what freedoms it brings to the women present in this nar-
rative. From the point where we understand witchcraft, we understand that its basis
is nature, and making use of it, Laura, unconsciously, even before moving to the village
Mop, surrounded by the forest, already showed signs that nature was accompanying
her, like the many plants she brought into her brother’s house. For this analysis, ideas
and theories of authors who studied about paganism were used, like Scott Cunningham
(1998,2001,2018) and Nubia Hanciau (2004), besides other information about eso-
terism that deal mainly with the meaning of herbs and the elements of witchcraft. From
this analysis it was possible to notice a little of the historical context in which Warner
lived, highlighting the images and the role of women in the twentieth century, which
was almost totally directed to the home.

KEYWORDS: Sylvia Townsend Warner; Witchcraft; Feminine Liberation.

Introdução

O século XX foi palco de duas guerras que marcaram o cenário mundial no


que diz respeito à economia, à política e à sociedade. A Primeira Guerra Mundial,
como principal acontecimento do início do século passado, trouxe muitas mudan-
ças sociais e artísticas, que se intensificaram e se reconstruíram a partir de uma
nova maneira de conceber o mundo e de uma nova concepção do próprio ser hu-
mano. Nesse sentido, além dos inúmeros conflitos, esse também foi um período

491
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

importante para o desenvolvimento e fortalecimento do movimento feminista,


quando padrões foram desconstruídos e a mulher começou a ter uma participa-
ção um pouco mais ativa dentro das comunidades ocidentais.

No entanto, o ambiente doméstico ainda era o principal local em que vá-


rias mulheres estavam destinadas a ficar, muitas vezes ficando tristes e até com
depressão pelo fato de a sociedade esperar tanto delas e, também, por perma-
necerem trancadas sem liberdade para escolher a própria profissão. Com muitos
homens em guerra, as mulheres precisaram sair de seus lares para trabalhar em
indústrias e em empresas – começando a quebrar, assim, um tabu de longa data.
Poder trabalhar fora de sua casa foi uma grande conquista para elas.

Sylvia Townsend Warner (1893-1978) foi uma escritora britânica muito


importante dentro desse complexo fortalecimento da presença da mulher na so-
ciedade. Junto a Virginia Woolf, Hilda Doolittle e Kate Chopin, Warner represen-
ta as mulheres que, em seu tempo, desempenhavam a atividade intelectual femi-
nina tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos. Em Lolly Willowes (1926), seu
primeiro romance, é possível encontrar toda uma questão feminista que aborda
a participação da mulher na vida social, na instituição familiar e sua dificuldade
de liberar-se das amarras patriarcais rígidas de sua época. Essa temática de seu
romance foi muito elogiada e apreciada em sua época, por destacar a presença fe-
minina contada por uma mulher – prática, então, não muito comum. Dessa manei-
ra, “[...] Warner era uma temível feminista que sempre considerou os direitos das
mulheres como inseparáveis de outras lutas pela paz, democracia e liberdade3”
(JOANNOU, 2006, p. 4).

A partir disso, o principal objetivo deste trabalho é o de analisar a repre-


sentação da mulher no início do século XX, trazendo para discussão a imagem
feminina a partir da bruxa. Dessa maneira, entender como a mulher do início do
século passado foi descrita por historiadores e esclarecer o que foi e como é vista
a bruxaria presente em Lolly Willowes são pontos muito relevantes. Além disso,
este estudo traz alguns pontos importantes de discussão, principalmente, no âm-
bito da escrita feminina.

Para o desenvolvimento desta pesquisa foi feita uma leitura minuciosa de


Lolly Willowes (1926), de Warner, especificamente de sua tradução ao português
feita por Regina Lyra (2013), a fim de verificarem-se alguns pontos de destaque,

3 “[...] Warner was a redoubtable feminist who always regarded women’s rights as inseparable
from other struggles for peace, democracy and freedom” (JOANNOU, 2006, p. IV).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

principalmente da bruxaria – sobre como ela é representada no livro e se é a mes-


ma religião cultuada nos dias de hoje. Além disso, alguns pontos sobre o feminis-
mo e sobre leituras acerca da bruxaria, enquanto relacionados com o texto literá-
rio em questão, também foram relevantes. Assim, as teorias em Minha História das
Mulheres, de Michelle Perrot, sobre a construção de gênero auxiliaram na estru-
turação da pesquisa.

A autora e sua obra

Sylvia Townsend Warner nasceu em 1893 e cresceu em Harrow, perto de


uma escola masculina, na qual seu pai era mestre. A morte do seu pai, em 1916,
deixou-a muito triste e, possivelmente, influenciou o desenvolvimento de Lolly
Willowes, dez anos mais tarde. Curiosamente, na história presente neste romance
pode ser relacionada com alguns traços autobiográficos de Warner – o desconfor-
to que provavelmente sentia com a equiparação da mulher a uma propriedade, na
sociedade intensamente patriarcal de sua época, leva-a a criar uma protagonista,
desestabilizada por causa da morte recente do pai:

Com o pai morto, esperava-se dela que se integrasse ao lar de um


ou de outro irmão. E Laura, sentindo-se um pouco como uma par-
te do patrimônio deixada de fora do testamento, se dispôs a ser
alocada de acordo com as necessidades da família. (WARNER,
2013, p. 11)

No entanto, Warner segue sua vida de maneira independente, contrastan-


do com o que acontecia com a maioria das mulheres de sua época. A Laura do
romance desenvolve-se em um crescente para a sua liberação ao final.

Warner foi uma mulher muito importante para o contexto feminista da


época, além de poeta, jornalista, escritora de cartas, romances e ensaios, musi-
cóloga e tradutora. “Seu trabalho inclui nove volumes de contos, sete romances,
oito volumes de poesia (incluindo Selected Poems), uma notável biografia de T.
H. White e uma coleção de suas cartas”4 (WARNER, 1985, orelha do livro; minha
tradução5).

4 “Her work includes nine volumes of short stories, seven novels, eight volumes of poetry (in-
cluding Selected Poems), a remarkable biography of T. H. White, and a collection of her letters”
(WARNER, 1985, orelha do livro Selected Poems).
5 Todas as traduções diretas são de minha autoria, salvo as que foram citadas nas referências.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A história das mulheres é cheia de acontecimentos como a conquista dos


votos, conquistas de direitos tanto a respeito de vestimentas como em questões
jurídicas, que são de grande importância para as mulheres do século XXI que po-
dem usufruir desses direitos. Como se sabe o primeiro livro de Warner foi lançado
na década de 1920, assim também é possível perceber, pela leitura do romance,
que o contexto da época teve influência na escrita de Warner.

Os primeiros anos do século XX são de grande importância para as mulhe-


res. Naquele período houve muitas conquistas que as mulheres usufruem hoje:
“Havia sinais de emancipação das mulheres na década de 1920: as mulheres usa-
vam os cabelos curtos, desfrutavam de algumas das liberdades anteriormente li-
mitadas a homens solteiros e, na Inglaterra, obtinham o direito de voto”6 (SOHN,
1994, p. 92).

Essas mudanças aconteceram graças às lutas femininas que se dividiram


em três principais momentos. O site Toda Política tem uma publicação feita por
Tié Lenzi, que discute vários acontecimentos importantes do feminismo, de forma
bem didática. A primeira onda feminista aconteceu juntamente com a Revolução
Francesa, quando as mulheres começaram a questionar o porquê de serem repri-
midas, além de lutarem pelo direito ao voto feminino, que foi o chamado movi-
mento sufragista (LENZI, 2018).

A segunda e a terceira onda feministas têm início por volta dos anos 60 e
para compreender melhor esse período, a escritora Heloisa Buarque de Hollanda
que é organizadora de um livro chamado Explosão Feminista, diz em sua introdução:

Procurei produzir um panorama da quarta onda feminista, exa-


minando o contexto dos novos ativismos nas ruas e na rede, dos
vários feminismos da diferença, do feminismo na poesia, nas ar-
tes, na música, no cinema, no teatro e na academia. (HOLLANDA,
2018, p. 13).

Por meio da análise que Hollanda fez, ela nos mostra que o feminismo con-
tinuou e ainda continua se desenvolvendo e trazendo cada vez mais conquistas
para as mulheres, além de diferentes pontos de vista. A partir dos principais tí-
tulos de seu livro (HOLLANDA, 2018) atribuídos aos vários tipos de feminismos
ou em que local atuam, percebe-se que existe uma grande abrangência dentro do

6 “There were signs of women’s emancipation in the 1920s: females wore their hair short, enjoyed
some of the freedoms previously limited to unmarried males, and in England obtained the right
to vote” (SOHN, 1994, p. 92).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

termo feminismo, a autora mostra suas vertentes nas várias características cultu-
rais, o que torna tudo mais interessante, trazendo assim todas as mulheres para
uma luta por igualdade.

Para este trabalho, o principal momento é o da primeira onda, pois acontece


no período em que Lolly Willowes é escrito e publicado. Como dito anteriormente,
possivelmente, a obra de Warner teve influência do contexto histórico em que
foi produzida. Foi justamente quando as mulheres começaram a efetivamente
questionar o fato de não poderem ter suas próprias escolhas, e Warner relata
exatamente isso em seu livro: “De Lolly Willowes, a versão fantástica de um mani-
festo feminista […]”7 (BINGHAM, 2006, p. 41).

Lolly Willowes foi publicado pela primeira vez em 1926, e seu primeiro título
foi The Loving Huntsman. O romance tem sido considerado um dos clássicos femi-
nistas, sendo traduzido para o português, espanhol, italiano e francês. Seu enredo
trata de Laura, uma jovem que perdeu seu pai e teve que morar com seu irmão
casado, ocasião em que acabou se tornando a “titia” da família, uma governanta.
Mas a protagonista cansa dessa vida e decide adentrar a floresta, indo em dire-
ção a uma pequena vila chamada Great Mop, onde começa sua vida sozinha. Após
alguns dias vivendo em solidão, em situações inusitadas, ela faz um pacto com o
diabo e se torna uma bruxa. A imagem da bruxa aqui é emblemática de todo o
mistério que cerca as concepções que todos tinham da mulher da época e também
se revela como uma crítica à condição de excluídas e acorrentadas em que as mu-
lheres estavam vivendo.

Em Lolly Willowes, Laura vive sua vida de forma feliz até que o momento de
se casar, de construir uma família, chega. A partir disso, Laura toma uma bela e
forte decisão, desobedecendo a seu irmão e indo viver sozinha – uma atitude de
esplêndido poder, para a época em que Warner escreveu, pois claramente mostra
uma mulher muito confiante de si e cheia de desejo pelas aventuras da vida. Sem
ter de passar a vida de forma entediante e ter de viver para poder ser chamada de
“boa mulher” perante a sociedade:

Ninguém se torna bruxa para sair por aí prejudicando, nem para


sair por aí ajudando, como uma voluntária de paróquia montada
em uma vassoura, mas sim, para escapar de tudo isso, para ter
vida própria e não uma existência parcimoniosamente alimenta-
da por terceiros [...]. (WARNER, 2013, p. 187).

7 “From Lolly Willowes, the fantastical version of a feminist manifesto […]” (BINGHAM, 2006, p.
41).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Exatamente como Warner questiona, existiam inúmeras mulheres que se


sentiam (e realmente estavam) presas dentro de uma vida que não lhe permitia a
expressão ou demonstração de suas ideias, opiniões ou desejos. É isso realmente
que todas as mulheres precisavam e queriam (e ainda precisam e querem), é por
isso que lutavam e aos poucos conquistavam suas vitórias:

Como escritora com uma compreensão feminista da importância


do concreto e do cotidiano, Warner também usou o lugar para
enfatizar a importância do espaço doméstico frequentemente
marginalizado. Sua compreensão da política de classe e gênero
está enraizada no conhecimento do lugar. Ela está interessada
em locais com uma história que incorpora a vida das pessoas
comuns e suas coisas cotidianas. Na ficção e na não-ficção, ela
celebra lugares simples e comuns (aldeias de Dorset, interiores
de casas, objetos simples e prazeres domésticos). O relato de
Warner sobre seu desenvolvimento da compreensão da vida no
campo e sua política (para uma série em The Countryman apro-
priadamente chamada The Way by Which I Have Come’) é uma
realização detalhada da história e da materialidade do lugar na
vida das pessoas, contestando a idealização urbana sentimental
da classe média da vida no campo. Ela namora a ideia de deixar de
ser uma ‘cidadã’ para a época em que, assim como Lolly Willowes,
ela encontrou um lugar isolado em um mapa de levantamento de
munições e foi morar lá.8 (DAVIES, 2006, p. 2).

O romance é dividido em três partes e, também, nessas partes são encon-


tradas diferentes características da vida de Laura. A primeira parte do livro se
detém brevemente na vida de Laura desde seu nascimento até sua juventude, e
conta sobre o período em que Laura tem um relacionamento bem ligado a seu pai.
Esta primeira parte também traz o momento em que seu pai falece, o que a deixa
muito triste e sem ânimo. Com isso Laura vai viver com o irmão Henry e com sua
cunhada Caroline, já que por ser mulher e jovem, não poderia viver sozinha. Na

8 “As a writer with a feminist understanding of the importance of the concrete and the everyday,
Warner also used place to emphasise the importance of frequently marginalised domestic space.
Her understanding of class and gender politics is rooted in the knowledge from place. She is inte-
rested in locations with a history that incorporates the lives of ordinary people and their every-
day things. In fiction and non-fiction she celebrates simple and ordinary places (Dorset villages,
household interiors, simple objects and domestic pleasures). Warner’s account of her develo-
ping understanding of country living and its politics (for a series in The Countryman appropriate-
ly called The Way by Which I Have Come’) is a detailed realisation of the history and materiality
of place in people’s lives, contesting the sentimental, urban middle class idealisation of country
life. She dates her ceasing to be a ‘townee’ to the time when, rather like Lolly Willowes, she found
an isolated place on an ordnance survey map and went to live there” (DAVIES, 2006, p. 2).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

vida com a família do irmão, Laura se torna a tia Lolly, transformando-se na babá
e na governanta da casa – responsável, tacitamente, pela casa e pelas crianças,
cuidando de enfeites para o natal e de jantares com os familiares. Laura vive até
seus quarenta e sete anos com o irmão e passa cerca de vinte anos nessa função.

No início da segunda parte, encontram-se relatos do fim da vida da “Tia


Lolly”, pois, após voltar de uma viagem de férias, Laura analisa um pequeno guia
turístico juntamente com um mapa. Isso provoca uma mudança de pensamento
em Laura para querer uma vida sozinha, em contato com a natureza, em um pe-
queno vilarejo chamado Great Mop. Ao receber a notícia, Henry acha que é tudo
uma anedota sem graça de Laura, mas ela permanece séria e com a afirmação fir-
me sobre sua vontade de deixar o lar de seu irmão. Ao pedir sua parte da herança,
Laura recebe a notícia de que ela foi mal investida e que lhe resta muito menos
do que imagina. No entanto, isso não faz com que Laura desista de seu sonho, e
o realiza pouco tempo depois, indo viver em parte de uma casa, que divide com a
sra. Leak.

A terceira parte é o momento em que Laura entra mais em contato com a


natureza e com seu instinto de bruxa. Nesse momento, Laura começa a interagir
com alguns vizinhos e a saber um pouco da vida de cada um por meio das conver-
sas da dona da casa, sra. Leak. Assim, inconscientemente, Laura faz alguns feitiços
e simpatias e até mesmo usa seus poderes para seu benefício. Nessa parte, Laura
se torna bruxa no momento em que um gato preto que aparece em sua casa a
morde, deduzindo assim, que ela fez um pacto com o diabo. Após esse aconteci-
mento, Laura vai a um sabá, onde não se diverte muito, mas em alguns momentos
acha a dança agradável. Também recebe a notícia de que seu sobrinho Titus deci-
de se mudar para Great Mop, o que a deixa com muita raiva e tristeza, pois ela saiu
de perto de todos para poder viver em paz. Laura gostava de seu sobrinho, mas ele
atrapalha seu contato com a natureza e com sua vida de bruxa. No entanto, com
algumas conversas traçadas na floresta, por meio de seus poderes, o diabo planeja
uma série de acontecimentos e faz com que Titus vá embora casado, deixando
novamente Laura em paz.

A bruxaria e o feminino

A bruxaria é conhecida no mundo inteiro, talvez de formas diferentes, seja


pelos contos de fadas ou pela tão conhecida Inquisição. A bruxaria hoje é consi-
derada por muitos como uma religião, mas geralmente tem sido observada como

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

um método ou uma filosofia de vida para se ligar e fazer uso das energias que a
natureza e o universo disponibilizam. Muitas pessoas ainda conservam em mente
a ideia de uma mulher má, com verrugas, que faz feitiços para amaldiçoar pessoas,
e que frequentemente voa em uma vassoura, que faz pacto com o diabo e mantém
contato com ele. Segundo Stuart Clark (2006, p. 557), “[a] bruxa era vista, primei-
ro e sobretudo, como alguém com o poder e a vontade maligna de causar danos
reais a suas vítimas”.

As primícias da bruxaria são bem imprecisas, uma vez que não tem um início
determinado. Um relato que se encontra no livro Feitiçaria, a Tradição Renovada,
de Evan John Jones e Doreen Valiente, é que a bruxaria, também chamada de Arte
por alguns seguidores e escritores, teve seu início com os deuses:

Um dos mitos preferidos relacionado às origens da Arte é a his-


tória de Aradia, filha de Diana, filha da Deusa com o Seu irmão
Lúcifer. Diana, vendo o sofrimento dos pobres e dos fracos, ins-
truiu Aradia na Arte e a enviou à Terra para formar e ensinar nas
reuniões secretas das feiticeiras. Assim fez Aradia, e, entre os
segredos que ela passou para seus seguidores, estavam aque-
les dos venenos, da formação das tempestades (encargo que se
destacaria, mais tarde, nos julgamentos da feiticeira) e de como
amaldiçoar aqueles que se recusavam a ajudar seus companhei-
ros. (JONES; VALIENTE, 1992, p. 55).

Antes de Aradia voltar para casa, ela ensinou os seguidores que na noite de
lua cheia eles deveriam adorar a Deusa Diana, com danças, banquetes e música.
Adorá-la como a uma rainha (JONES; VALIENTE, 1992). Esse tipo de adoração é
chamado Esbat, em que as bruxas participam. As características gerais dos Esbats
são as de serem celebrados na lua cheia e de adorarem à deusa mãe.

A história das mulheres e de como elas têm construído seu gênero é ar-
rebatadora, apesar de perturbadora e hostil. Durante muito tempo, as mulheres
deveriam ser virgens incorruptas, satisfazendo as instituições patriarcais à sua
volta. Ao falar dos vários papéis da mulher no mundo ocidental do século passa-
do, Michelle Perrot analisa o exemplo feminino a ser seguido, dizendo, em Minha
História das Mulheres que “[a] virgindade [seria] um valor supremo para mulheres e
principalmente para as moças. A Virgem Maria, em oposição a Maria Madalena, é
seu modelo e protetora” (2007, p. 64). Em contrapartida, a estudiosa comenta que
havia também as feiticeiras que são o oposto completo das mocinhas angelicais:

498
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Enfim, elas têm contato com o diabo. O diabo cuja existência foi
estabelecida e cuja teologia foi desenvolvida pelo Concílio de
Latrão. A feiticeira é filha e irmã do diabo. Ela é o diabo, seu olhar
mata: ela tem mau-olhado. Tem pretensão ao saber. Desafia to-
dos os poderes: o dos sacerdotes, dos soberanos, dos homens, da
razão. (PERROT, 2007, p. 90)

No entanto, uma mulher certamente é, em nossa contemporaneidade, a


combinação das duas qualidades. Às vezes, é forçada socialmente a atuar com a
virginal pureza do aparato cristão e, muitas vezes, é a bruxa que degrada e subver-
te o poder patriarcal. No entanto, nem sempre foi assim. As mulheres demoraram
muito tempo para conseguirem direitos na sociedade e para terem voz ativa como
sujeitos. O romance de Warner é precursor dessa última onda feminista que co-
nhecemos atualmente.

Além de ser essa mulher com poder de discurso e atitudes próprias, a bru-
xaria trouxe uma forma diferente de crença, que o cristianismo logicamente não
aceitava e repugnava. Porém, além desses motivos um dos principais causadores
desse conflito foi a separação dos termos religião e magia que a igreja fez:

Nessa projeção planetária, o pensamento ocidental cristão pro-


duziu sistematicamente uma distinção radical entre religião (as
crenças que nós temos em um deus único) e magia (as supersti-
ções que outros povos, ou populações rurais europeias têm em
torno da divindade das forças da natureza). (MONTERO, 2010,
p. 127).

A partir disso, os inquisidores criaram a imagem da bruxa, sendo ela uma


mulher que faria mal para a sociedade, que era capaz de proferir maldições e
causar a morte de quem cruzasse seu caminho, demonizando assim a mulher, até
mesmo partindo das colocações bíblicas como a maldição de Eva. Surge, assim, a
famosa Inquisição e, como é discutido por Hanciau (2004, p. 62), “[é] impossível
tratar a feitiçaria separadamente da Inquisição [...]”. Essa é umas das principais li-
gações entre a bruxaria e o cristianismo, não sendo nenhum pouco amistosa.

Durante essa época foi escrito por dois inquisidores alemães Henrich
Kramer e James Sprenger, o livro Malleus Maleficarum – O Martelo das Feiticeiras,
que descreve como caçar e identificar bruxas e demônios para fazer seu julga-
mento e expulsão. O livro dá ênfase à situação da mulher, uma vez que somente
elas poderiam ser bruxas – os homens eram apenas possuídos por demônios pelo

499
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

fato de as mulheres lançarem feitiços sobre eles. A visão da mulher, no livro, seria
a de um ser que tem o poder de persuadir e corromper os homens, demonizando
assim a sua imagem.

Ao voltarmos nossa atenção à vida de Laura, percebemos que ela geral-


mente não se manifestava muito em conversas. Entretanto, em um jantar com a
família, Laura decidiu dar a notícia que iria se mudar para Great Mop. Ninguém
acreditou nela e acharam que era apenas uma piada de sua parte, Henry até faz
uma brincadeira dizendo que “quando fosse morar em Great Mop, ela voltaria
a sair à cata de ervas e se tornaria a bruxa da aldeia. – Seria ótimo! – exclamou
Laura” (WARNER, 2013, p. 80).

A protagonista se mostra firme perante sua opinião de mudança e tam-


bém não demonstra incômodo algum ao ser chamada de bruxa pelo irmão. Pois a
bruxaria, a vida no campo, solitária e que a permita viver o restante de sua vida, é
exatamente o que Laura deseja. Ter sua liberdade de escolhas sem ter que passar
por uma avaliação masculina ou por comentários sociais é o que ela mais almeja.
Deve-se levar em consideração que Laura não tinha planos de se tornar bruxa,
esse foi um sentimento que veio à tona após um período de sua vivência em Great
Mop.

Atualmente, a bruxaria ainda faz parte de nossa sociedade, e mais presente


do que se imagina. Hoje, a bruxaria tem várias modalidades de cultos, que algumas
pessoas consideram como religiões, como a Wicca. Eles se caracterizam somente
como outras maneiras diferentes de ver o mundo, usando de suas energias para
obter conquistas tanto na vida material quanto na intelectual/espiritual, como a
Bruxaria Natural. A Bruxaria Natural é bem livre, e seus seguidores podem esco-
lher entre adorar ou não os deuses, ou, se preferirem, somente usar as energias
que a natureza oferece e sempre respeitar a natureza e os animais. Em geral são
pessoas ligadas ao bucólico, que gostam da vida em meio à natureza.

Em Lolly Willowes, a bruxaria está presente de formas variadas, incluindo


situações que são apenas folclóricas e outras que mostram rituais que ainda são
praticados na bruxaria moderna. Existem, também, alguns elementos que são
somente comentários criados a respeito da bruxaria e que não são possíveis de
saber se procedem ou não.

Desde o início do romance, Laura se mostra conhecedora de / interessa-


da por plantas e ervas, citando várias ao longo do texto. Em diversas situações,
plantas que podem ser analisadas de acordo com seu significado mágico. Laura

500
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

“sempre tivera uma queda pela botânica e também herdara um talento para o pre-
paro de poções” (WARNER, 2013, p. 29). Assim, já é possível perceber a ligação de
Laura com a fitologia.

No período em que Laura ficou na casa de seu irmão, ela gostava de


comprar flores de diversos tipos para enfeitar a casa em seus vários cômodos.
Além das samambaias, outras flores que Laura comprava eram as dálias e lírios:
“Imagine, Lolly! Lírios nesta época do ano! – exclamava Caroline, não em tom de
censura, mas mesmo assim com a consciência de que no salão havia dálias, na sala
de jantar, uma samambaia, [...]” (WARNER, 2013, p. 67). As propriedades mágicas
da dália são aparentar beleza física, além de ampliar a intuição e a sensibilidade
das pessoas, incluindo força em um relacionamento amoroso entre duas pessoas,
que analisando poderiam ser Henry, seu irmão e Caroline, sua cunhada. E o fato
de as samambaias estarem na sala de jantar faz com que ela afaste a negatividade
que possíveis convidados possam trazer para a casa.

Os lírios são “símbolo da pureza feminina. [...] Acredita-se que, nos jardins,
são verdadeiras barreiras contra malefícios” (NATURAL, 2009). Parecida com a
samambaia em seu significado mágico, o lírio vai simbolizar a pureza feminina à
qual Laura se encaixa, uma vez que é pura e não tenha se casado ao longo de sua
vida. Além de toda a força feminina que está a despertar no interior de Laura, ao
tomar a decisão de ir viver sozinha, sua feminilidade e desejo será aparente.

Após se mudar para Great Mop e começar a ter convivência com seus vizi-
nhos, Laura continua com seu contato com as plantas, quando eram “chegados os
primeiros dias de verão e os primeiros botões de prímulas em maio” (WARNER,
2013, p. 119). Portanto, depois de passar um tempo com o sr. Saunter cuidando
de galinhas, Laura volta para casa e pensa em colher essas primeiras prímulas do
verão. As prímulas são flores “recomendadas especialmente para fortalecer os la-
ços de amizade” (FLORES, 2016). E é exatamente esse laço que Laura cria com o
sr. Saunter, um laço de amizade, não uma amizade íntima, mas algo mais simples
e breve.

Além do conhecimento com as ervas, Laura também, desde o início do ro-


mance, mostra-se ligada à bruxaria, por falas e atitudes, e demonstra isso desde
pequena, pois a bruxaria é ter um sentimento de amor, bem-estar e alegria ao es-
tar em contato com a natureza e com os animais: “Era bruxa por vocação. Mesmo
nos velhos tempos em Lady Place, o impulso comichava no seu íntimo” (WARNER,
2013, p. 140).

501
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Em um momento do enredo, é encontrado um ser que auxilia Laura com


seus desejos. O diabo encontrado no livro de Warner pode ser relacionado a algo
bom, pois é ele quem permite que Laura tenha uma vida totalmente livre. Essa
liberdade pode ser comparada ao feminismo nos tempos de Warner e na atualida-
de. O feminismo proporciona às mulheres a liberdade de se expressar, de serem
reconhecidas como seres intelectuais e, acima de tudo, dá-lhes a oportunidade de
ter os mesmos direitos que os homens. O diabo deu todas essas oportunidades a
Laura, apresentando-lhe a bruxaria, e no fim da narrativa ela é uma mulher livre
sem preocupações sociais. Laura em um de seus diálogos com o diabo diz:

Algumas se refugiam na religião e se saem bem, acho eu. Para


outras, porém, para tantas outras, o que pode haver senão a
bruxaria? [...] por isso nos tornamos bruxas: para mostrar nosso
desdém pelo fingimento de que a vida é uma atividade segura,
para satisfazer nossa paixão por aventura. [...] ninguém se torna
bruxa para sair por aí prejudicando, nem para sair por aí ajudan-
do, como uma voluntária de paróquia montada numa vassoura,
mas, sim, para escapar de tudo isso, para ter vida própria e não
uma existência parcimoniosamente alimentada por terceiros [...].
(WARNER, 2013, p. 186-187).

Assim, fica bem claro o sentimento de Laura a respeito de toda a questão


social em que a mulher está aprisionada, deixando-a feliz por ter sido liberta des-
sa teia de obrigações impostas e também a deixa de certa forma pensativa, pois
ela deseja que todas as mulheres possam ter acesso a essa nova vida, em que pos-
sam ter suas próprias vozes, desejos e planejamentos e não serem julgadas por
não adotarem a postura feminina adequada determinada pela sociedade patriar-
cal. Todo esse contato com a bruxaria a deixou feliz por poder ser livre e viver da
maneira que seu interior almejava.

Considerações finais

Sylvia Townsend Warner foi uma escritora de grande influência para o for-
talecimento do feminismo em sua época. Podemos nitidamente perceber essa ca-
racterística em Lolly Willowes, que veementemente apresenta elementos do fan-
tástico e que, sem dúvida, foi marcado pela escrita feminina do feminino, ou seja,
pela mulher que fala sobre o protagonismo da mulher ao final da década de 1920,
o que não era muito comum nesse período.

502
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Em Lolly Willowes, Warner trabalha com a metáfora da “bruxaria” para re-


presentar a libertação da mulher na sociedade. Como a própria personagem diz,
a bruxaria não foi usada para fazer mal a alguém e sim para possibilitar às mulhe-
res a consciência de que têm a chance de “viver”, uma vez que o que as mulheres
faziam era somente sobreviver com sua vida planejada desde o seu nascimento.
Assim, na maioria das vezes, elas nasciam, cresciam, casavam-se com o homem
escolhido pelos líderes masculinos de seus lares, tornavam-se donas de casa e cui-
davam de seus filhos pelo resto da vida.

Apesar da luta e da conquista femininas terem sido imensas, na atualidade


ainda parece existir esse pensamento de que a mulher foi criada para reproduzir e
cuidar da casa. Os direitos femininos e sua liberdade já não são os mesmos daque-
les do século passado; no entanto, muito ainda precisa ser melhorado.

Em Lolly Willowes, Warner usa uma forma adaptada de bruxaria, e, ainda


que se tenha verificado que a autora tomou como base os estudos de Margaret
Murray, em O Culto das Bruxas na Europa Ocidental (The Witch-Cult in Western
Europe) sendo sua primeira publicação em 1921, sabe-se que essa vertente reli-
giosa se transformou muito até os dias de hoje. Laura deixa clara a presença da
bruxaria em sua vida por meio do conhecimento das ervas e plantas que usa, para
agirem em momentos oportunos dentro da casa de seu irmão e também em sua
pequena casa em Great Mop.

É possível ver a força feminina saindo de Laura quando Warner expressa


em seu romance, o momento em que Laura não foi autorizada pelo irmão para
conhecer novas religiões ou no momento em que anuncia sua saída de sua casa.
Porém, Laura decide partir mesmo com a negação de seu irmão, transformando-
-se em uma mulher livre; livre do mundo que a continha e livre para escolher o que
queria fazer, muito bem representada pela imagem da bruxa, por Warner.

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504
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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505
A FIGURA DA MORTE EM ADDIE
BUNDREN: ELEMENTOS GÓTICOS EM AS
I LAY DYING DE WILLIAM FAULKNER1

Denilson Amancio Ferreira2


Mariese Ribas Stankiewicz3

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo estudar as implicações da pre-


sença de Addie Bundren na condição de figura que representa a morte no roman-
ce As I Lay Dying, de William Faulkner. O romance, escrito em 1930, reflete ques-
tões existencialistas como a falta de propósito na vida do sujeito comum, nesse
contexto, representado pelo povo pobre interiorano do sul dos Estados Unidos.
A centralidade significativa da personagem Addie se dá por aspectos que evo-
cam elementos do gótico sulista, estilo que Faulkner desenvolveu com excelência
no período modernista. O texto, repleto de fragmentações e fluxo de consciên-
cia, distorce a visão da realidade projetada através de relatos dos personagens.
Assim, tem-se diversas versões de uma mesma jornada, pelas terras do conda-
do de Yoknapatawpha, cujo propósito é realizar o último desejo da matriarca da
família: ser sepultada em sua terra natal. A presença do cadáver da mãe nessa
jornada póstuma é, em si, a presença da morte, mas também, para os seus filhos,
sinônimo de angústia, sofrimento e perda. Os elementos grotescos, que surgem
1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 e deriva-se do desenvolvimento
da dissertação de mestrado de Denilson Amancio Ferreira, junto ao Programa de Pós-graduação
em Letras – PPGL, da UTFPR campus Pato Branco, o mesmo realizado com orientação da profes-
sora doutora Mariese Ribas Stankiewicz.
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). denilsonamancio@outlook.com.br
3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). marieser@utfpr.edu.br

506
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ao longo da viagem dos Bundren, os aproximam dos questionamentos existencia-


listas fazendo-os ver a morte como alternativa. Contudo, dois dos filhos em es-
pecial, Darl e Jewel Bundren, lidam com essa condição de maneiras diferentes,
sendo Addie o eixo de contato que os mantém unidos. No desenvolvimento deste
artigo, as teorias de Jean Paul-Sartre (1970) embasam as interpretações tocan-
tes ao existencialismo e às questões filosóficas, juntamente aos estudos de Karl
S. Guthke (1999) sobre a morte na arte, e por fim, David Punter, Glennis Byron
(2004) e Bridget M. Marshall (2013) auxiliam na compreensão da estética gótica
elaborada na literatura Faulkneriana.
PALAVRAS-CHAVE: Gótico sulista; Morte; Existencialismo.
ABSTRACT: The present work aims at studying the implications of Addie Bundren’s pre-
sence, as a character who portraits the death in the novel As I Lay Dying, by William
Faulkner. The novel, written by the author in 1930, reflects existential issues as the lack
of purpose in the life of the common person, in this context, represented by the poor peo-
ple from the South of the United States. The significant centrality of Addie’s character is
due to aspects that evoke elements from the Southern Gothic, which Faulkner develo-
ped with excellence in the modernist period. The text, full of fragmentation and stream
of consciousness, distorts the reality which is projected through the characters’ monolo-
gues. Thus, there are several versions of the same journey, through the Yoknapatawpha
County, whose purpose is to fulfill the mother’s last wish: to be buried in her homeland.
The presence of the mother’s corpse on this posthumous journey is, in itself, the presen-
ce of death, but also, for her children, synonymous with anguish, suffering, and loss. The
grotesque elements that emerge during the Bundren’s journey bring them closer to exis-
tentialist questions, making them see death as an alternative. However, two of the sons
in particular, Darl and Jewel Bundren, deal with this condition in different ways, while
Addie is the contact axis that holds them together. In the development of this article, the
theories of Jean Paul-Sartre (1970) support the interpretations concerning existentia-
lism and philosophical questions, together with the studies by Karl S. Guthke (1999) on
death in art, and finally, David Punter, Glennis Byron (2004), and Bridget M. Marshall
(2013) help to understand the Gothic aesthetics elaborated in Faulknerian literature.
KEYWORDS: Southern Gothic; Death; Existentialism.

Introdução

Este trabalho desenvolveu-se a partir da produção da dissertação de


mestrado do autor, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL, da

507
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

UTFPR, campus Pato Branco. Nessa, são exploradas perspectivas existencialistas


no romance As I Lay Dying do escritor americano William Faulkner. Neste artigo,
fruto dos estudos feitos no programa, exploram-se apenas as implicações da per-
sonagem Addie Bundren, presente no romance, de forma ampla, a fim de se com-
preender suas conexões com a morte, a família e o existencialismo.

Publicado pela primeira vez em 1930, As I Lay Dying é um dos romances


mais significativos da literatura americana, no qual Faulkner se consagrou com
um tipo particular de narrar, não somente por esse título, mas por toda sua obra,
que conta com os clássicos The Sound and The Fury (1929), Light in August (1935), e
Absalom, Absalom! (1963). Nesses romances, Faulkner reinventa o imaginário su-
lista dos Estados Unidos, compondo suas narrativas por meio de imagens grotes-
cas e perspectivas controversas, moldando um estilo singular de linguagem e se
consagrando como um dos grandes cânones do modernismo, movimento literário
que marca a primeira metade do século XX. Por meio de uma ambientação refe-
rencialmente regional e do retrato de pessoas comuns, espelhados no Estado do
Mississipi, o qual conhecia bem, o escritor consagrou-se com um estilo que ficou
conhecido como o gótico sulista que, além da herança gótica europeia, era carre-
gado de ironia e fluxo de consciência, reflexos da estética modernista.

Segundo Punter e Byron (2004, p. 39), “o gótico é frequentemente conside-


rado um gênero que ressurge com particular força em tempos de crise cultural e
que serve para negociar as angústias da época, trabalhando através delas de uma
forma deslocada4”. Esse deslocamento, normalmente, não é somente físico, mas
um deslocamento da realidade, evocando uma atmosfera onde o sobrenatural é
possível e cria forças. A chave para compreensão da necessidade do gótico é a
decadência. Para os autores,

Repetidamente, nos é oferecido o espetáculo da devolução e de-


cadência, do caos e da multiplicidade. Formas e limites se dissol-
vem à medida que certezas reconfortantes se transformam em
perguntas. O horror gótico da decadência é o horror da dissolu-
ção, da nação, da sociedade e, em última análise, à medida que

4 The Gothic is frequently considered to be a genre that re-emerges with particular force during
times of cultural crisis and which serves to negotiate the anxieties of the age by working through
them in a displaced form (PUNTER; BYRON, 2004, p. 39).

508
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

avançamos para o mundo modernista, do próprio sujeito huma-


no. (PUNTER; BYRON, 2004, p. 43)5.

No gótico sulista, quase não há o deslocamento geográfico, e a presença do


sobrenatural, confrontando o que se conhece da realidade do mundo, não é tão
frequente quanto na tradição gótica europeia. Em contrapartida, parafraseando
Bridget M. Marshall (2013, p. 12-14), o gótico sulista evidencia um foco particular
na história da escravidão do Sul e uma fixação com o grotesco, apresentando ten-
são entre elementos realistas e sobrenaturais, sendo que quando o sobrenatural
aparece, frequentemente se dá “com a possibilidade de ser resultado de imagi-
nação hiperativa, estado alterado induzido por drogas ou algum tipo de doença
mental” (MARSHALL, 2013, p. 12)6.

Na maioria dos romances de Faulkner, é evidente a presença da deca-


dência das estruturas aristocráticas, sendo também uma decadência moral das
famílias. Há também representações de famílias pobres, pessoas comuns, como
os Bundren, de As I Lay Dying, que são afetados indiretamente por essa decadên-
cia. A fixação pelo grotesco, por sua vez, se dá por meio dos crimes, da violência,
das mortes, normalmente presentes nas classes baixas como à que pertencem os
Bundren.

A partir desse tipo de linguagem literária, As I Lay Dying se constrói como


uma narrativa de percalços, uma jornada. Em suma, conta a história de uma famí-
lia interiorana residente no condado de Yoknapatawpha, cujo objetivo é cumprir o
último desejo de sua matriarca que, já morta, precisa ser transportada até a sua ci-
dade natal, Jefferson, para que seja lá sepultada. Essa família é composta por sete
integrantes: Anse e Addie Bundren e seus cinco filhos. O enredo é construído por
meio de vários monólogos, nos quais os personagens relatam sua vivência, assim,
relativizando todo fato apresentado, uma vez que há muito fluxo de consciência, o
tempo é majoritariamente psicológico e os relatos são carregados de subjetivida-
de. Tais características tornam a narrativa tortuosa, contendo relatos dos familia-
res, incluindo a voz póstuma da mãe e, também, daqueles que os cercam.

5 Repeatedly, we are offered the spectacle of devolution and decay, of chaos and multiplicity.
Forms and boundaries dissolve as comforting certainties mutate into questions. The Gothic hor-
ror of the Decadence is the horror of dissolution, of the nation, of society and, ultimately, as we
move into the Modernist world, of the human subject itself (PUNTER; BYRON, 2004, p. 43)
6 […] with the possibility that it may be the result of an overactive imagination, a drug-induced
altered state, or some manner of mental illness (MARSHALL, 2013, p. 12).

509
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Nesse contexto, o presente trabalho tem como principal objetivo analisar


a figura projetada em Addie Bundren, a personagem feminina que é mãe, esposa
e cadáver, bem como suas implicações e significações na narrativa. Para tal, di-
vidiu-se a análise em três partes, nas quais o ponto de partida é sempre Addie
Bundren, porém, com diferentes perspectivas analíticas e/ou comparações que
melhor ajudam a compreender o papel que a figura dessa personagem desempe-
nha no romance.

Primeiramente, partindo das teorias de David Punter e Glennis Byron


(2004) e da perspectiva do gótico sulista, estética desenvolvida por William
Faulkner no modernismo, analisaram-se os elementos grotescos, sombrios e as
conexões com o gótico existentes na narrativa. Inicialmente, a própria presença
do cadáver de Addie na viagem, em si, já evoca a simbologia mortuária, bem como
as adversidades derivadas dessa presença, como urubus que sobrevoam a família
e o cheiro fétido, transformando a jornada em martírio. Além disso, há certo grau
de violência, que parece vir da natureza e das pessoas que estão em volta dessa
família, resultando em crimes e perdas irreversíveis. Portanto, há uma conexão
forte que faz de Addie, fisicamente, uma evocação da morte, consequentemente
resultando no questionamento: há alguma razão para a evocação da morte ser fe-
minina? Culturalmente e linguisticamente, a morte é feminina? Ela possui gênero?

Na segunda parte, buscou-se responder a tais questionamentos com base


nos estudos de Karl S. Guthke (1999), o qual explora a personificação da morte
nas narrativas ocidentais e as definições de gênero dessa. A partir de uma pers-
pectiva linguística e cultural, nas narrativas ocidentais, com foco em As I Lay Dying,
buscou-se não apenas entender a figura feminina enquanto evocação de morte,
mas a figura de uma mãe morta. Assim, essa etapa se construiu por meio de um
paralelo entre Addie e sua família, mais precisamente dois de seus filhos: Darl e
Jewel Bundren. Auxiliados pela ideia de se considerar o gênero da morte e es-
tudos feministas de As I Lay Dying, chegou-se a perspectiva inversa do original:
Addie não é um fardo para sua família, ao contrário, essa mãe silenciada é quem
carrega um fardo. Aliás, Addie é a personagem que conecta essa família e a man-
tém unida.

Por fim, entendeu-se que há uma diferença muito significativa entre Addie
em vida e em morte: quando em vida, a personagem é impedida de ter controle so-
bre o seu conhecimento; não há espaço para suas manifestações autorreflexivas,
se não por meio da morte. Sua figura morta é significativa, pois por meio dela há

510
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

voz, e por meio dela há revolta contra palavras vazias. O filósofo do existencialis-
mo, Jean Paul Sartre (1970), iluminou os estudos desse paralelo entre Addie e a
vida, implicando em representações filosóficas através do gótico sulista. Assim, o
elemento da morte, por meio da personagem Addie Bundren, se caracteriza como
ponto significativo, cuja interpretação pode despertar questionamentos filosófi-
cos a respeito da existência, principalmente se considerar-se sua conexão com os
filhos. A figura da morte pode, para além da construção do gótico, ser um ponto de
contato entre os personagens e o existencialismo, despertando questionamentos
a respeito da vida humana: escolhas, trajetórias etc.

Addie, a morte e o gótico

O estilo do gótico sulista, presente em As I Lay Dying, como dito anterior-


mente, não depende do sobrenatural, mas da tensão que ocorre entre a realidade
e um acontecimento que a deforma, principalmente por meio de elementos que
causam abalos no cotidiano comum dos personagens, elevando a carga psicoló-
gica da narrativa. A presença do cadáver da mãe, durante a viagem, é o elemento
fundamental que abala a realidade dos Bundren, desencadeando uma série de ou-
tros acontecimentos, os quais evocam formas grotescas, revelando a violência, os
crimes e até a decadência presente naquele meio familiar.

Portanto, a figura da morte em Addie Bundren serve como elemento prin-


cipal a partir do qual a normalidade ou estabilidade narrativa é abalada. Já no pri-
meiro momento da narrativa, tudo que move a família é o estado da mãe em seu
leito de morte, sendo que, de maneira bastante desordenada, toda a família já se
movimenta na preparação para a evidente morte da mãe: Cash, o filho mais velho,
prepara o caixão; Darl e Jewel deslocam-se a cidade para buscar um médico e, ao
mesmo tempo, uma quantia em dinheiro para a viagem póstuma; Dewey Dell, a
única filha, ampara a mãe em seus últimos momentos de vida, junto das vizinhas;
e Vardaman, o caçula, agita-se com toda a situação. Com exceção de Anse, o coti-
diano de todos parece estar abalado, Darl em um dos capítulos deixa evidente a
indiferença do pai em relação a morte da esposa:

A parte da camisa que cobre as costas do pai está mais gasta do


que o resto. Não há nenhuma gota de suor na camisa. […] ‘Vem
chuva por aí’, diz o pai. ‘Não tenho sorte. Nunca tive. ’ Ele esfrega
as mãos nos joelhos. ‘[…] eu dei minha palavra que eu e os rapa-
zes levaríamos ela lá mais o rápido que as mulas pudessem trotar,

511
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

para que ela pudesse descansar tranquila. ’ Ele esfregou as mãos


nos joelhos. […] ‘Se ninguém estivesse morrendo de vontade
de fazer isso’, diz Jewel com aquela voz áspera, selvagem. ‘Com
o Cash o dia inteiro debaixo da janela, martelando e serrando
aquele –‘. (FAULKNER, 2017, p. 19-21).

À parte a apatia de Anse Bundren, pode-se perceber, neste trecho, Addie


enquanto sofrimento para sua família, sendo um fardo no momento de sua morte.
Até mesmo o seu filho Jewel, que não concorda com as precipitações de todos,
parecendo ainda esperar pela recuperação da mãe, como demonstra o trecho
acima, não vê outra saída a não ser ajudar, mover-se a cumprir uma das tarefas
que circunda o evento funéreo: “’Bem……..’ diz o pai. Ele olha para os campos,
cabelos desgrenhados, mascando fumo lentamente contra as gengivas. ‘Vamos’,
diz Jewel. Ele desce os degraus” (FAULKNER, 2017, p. 22).

Após a concretização da morte de Addie, mesmo com tudo já arranjado,


muitas outras problemáticas emergem da viagem com o cadáver da personagem,
eventos inesperados, desventuras e muita angústia surgem no enredo. Talvez o
momento mais significativo seja o momento da travessia da família levando o cai-
xão sob a carroça por um rio cuja ponte foi coberta pela cheia. Nesse ponto da
narrativa, as ações ficam confusas, há um movimento não linear dos personagens,
os quais descrevem, cada um na sua perspectiva, partes do infortúnio. Assim,
como não há um narrador fixo, a subjetividade dos relatos, nesse ponto, torna as
ações tortuosas para o leitor. Em contrapartida, devido a essa inexistência e por
meio dos relatos, é possível compreender melhor o sentimento de cada persona-
gem em relação à travessia.

Pode-se perceber que, nesse momento, acontecem as primeiras perdas e


há uma certa violência que emerge de forças naturais, como se punisse a família
Bundren por suas escolhas. Darl é o personagem que narra o início da travessia,
em que se percebe a natureza não apenas como adorno, servindo como ambien-
tação, mas interagindo com a personagem:

Diante de nós a escura e espessa corrente passa. Ela fala conos-


co no murmúrio que se torna incessante e incontável, a super-
fície amarela monstruosamente ondulada em redemoinhos que
desvanecem viajando ao longo da superfície por um instante,
silenciosos, transitórios e profundamente significativos, como
se sob a superfície alguma coisa enorme e viva acordasse por
um instante de preguiçoso alerta e voltasse a cair num ligeiro

512
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

adormecimento. Ela borbulha e murmura entre os raios das ro-


das e na altura dos joelhos das mulas, amarela, cheia de fragmen-
tos e com espessas bolas de espuma como se tivesse suado, es-
pumando, como cavalo que está sendo montado. (FAULKNER,
2017, p. 118).

Nota-se no texto que a representação da natureza através da perspectiva


de Darl Bundren acontece de maneira comunicativa e ameaçadora, por meio de
murmúrios que premeditam a agressividade das correntes do rio, do caos que os
espera alguns passos adiante. Além do relato de Darl Bundren, evidencia-se tam-
bém a representação caótica do momento em que as primeiras perdas da família
acontecem: Cash perde sua caixa de ferramentas no rio e quebra sua perna, que
depois terá que ser amputada por falta de cuidados. Esse momento, em que o cai-
xão cai na água e Jewel salva sua mãe pela primeira vez, arriscando a vida de seu
amado cavalo de corrida, é narrado por Vardaman, o caçula. A narrativa é ainda
mais subjetiva que a de Darl, pois contém mais tensão psicológica, construída por
meio do desespero do menino ao ver seus irmãos e o cadáver da mãe sendo atira-
dos à água:

Cash tentou, mas ela caiu e Darl pulou indo para o fundo ele foi
para o fundo e Cash gritando para que a pegasse e eu gritando
e Dewey Dell gritando comigo Vardaman você vardaman você
vardaman e Venon passou na minha frente porque ele a via subir
e ela voltava a afundar e Darl ainda não tinha conseguido pegá-la
ainda. (FAULKNER, 2017, p. 126).

A partir desses relatos, pode-se compreender a construção, em As I Lay


Dying, das imagens grotescas e da violência, as quais servem à narrativa de William
Faulkner com o propósito de criar tensão na trajetória dos personagens, cujo coti-
diano comum é deformado. A construção da tensão entre o real e o sobrenatural
se dá de forma a não inserir elementos do gótico clássico, tais como o fantasma ou
o vampiro, mas através do próprio cotidiano carregado de tensão e angústias. Nas
palavras de Trevisoli (2009, p. 32):

O Southern Gothic, nos Estados Unidos, espelha bem essas an-


gústias nas obras de Flannery O’Connor e William Faulkner, au-
tores que através do grotesco, do irônico e do decadentecriam
histórias sobre o cotidiano e sua perversão por meio de temas
como a família, a sexualidade, a morte, focalizando personagens
descritas como psicologicamente danificadas […].

513
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

As I Lay Dying possui apenas um personagem declaradamente danificado,


do ponto de vista psicológico: Darl. Porém, o que se ressalta aqui é que Addie tam-
bém é bastante danificada, não só fisicamente. A personagem de Addie está mor-
ta, isso se reflete em condições como o cheiro fétido sentido pelos personagens,
bem como pela simbologia pitoresca dos urubus, que começam a seguir a família
quando a temperatura esquenta, indicando que o cheiro estava ainda mais forte,
como no capítulo do personagem Armstid:

Por volta das nove começou a esquentar. Foi quando vi o primei-


ro urubu. Por causa da umidade, imagino. De qualquer maneira, o
sol já estava alto quando eu os vi. Por sorte a brisa soprava longe
da casa, por isso não apareceram até que a manhã já avançasse.
Mas assim que os vejo foi como pudesse farejá-los no campo a
dois quilômetros só de olhá-los, e eles fazendo círculos e círculos
no ar para que todo mundo pudesse ver o que havia no meu celei-
ro. […] devia ter uma dúzia deles pousados ao longo da vida mes-
tra do telhado do celeiro, e aquele rapaz perseguindo outro ao
redor do celeiro como se fosse um peru […]. (FAULKNER, 2017,
p. 156).

No trecho, além da pitoresca e simbólica imagem dos urubus, percebe-se


a figura da ironia, um humor perverso que é construído através da imagem dos
urubus perseguindo a família e sendo perseguidos por Jewel. É evidente que a
passagem dos Bundren perturba aos que estão ao redor, tornando a fisicalidade
de Addie ainda mais incômoda.

Em vista disso, pode-se afirmar que a figura da morte não está presente em
Addie por conveniência, ao contrário, há uma conexão física entre Addie e a mor-
te, resultando em alguns questionamentos que despertam a reflexão do gênero
da morte. Consequentemente, pergunta-se: há alguma razão para a evocação da
morte ser feminina (como no caso de Addie)? Culturalmente e/ou linguisticamen-
te, a morte é feminina? Que implicações resultam da personificação da morte no
gênero feminino (em Addie)?

Maternidade e Família

A partir dos questionamentos levantados, pode-se considerar que Addie


seja a personificação da morte com algum propósito maior do que evocar a

514
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

estética gótica, apesar de o fazer. Portanto, considera-se Addie em sua condição


de figura feminina e busca-se entender as implicações do gênero na narrativa.

Em princípio, pode-se pensar que logicamente a palavra morte é palavra


de gênero feminino, acarretando a definição intrínseca do mesmo em sua repre-
sentação. Todavia, vale lembrar que o romance foi originalmente escrito em lín-
gua inglesa, e que, apesar de utilizar-se trechos da tradução de Wladir Dupont,
intitulada Enquanto Agonizo, nesse estudo, mantém-se durante todo o trabalho o
nome original As I Lay Dying, justamente com o intuito de lembrar do texto fonte
no momento mais pertinente de análise. Assim, no texto fonte, em língua inglesa,
a palavra death, correspondente à morte, não tem gênero explícito, sendo somen-
te definido por uma personificação.

Para Karl S. Guthke (1999, p. 30),

[alguns] casos, de diversas culturas e línguas, são suficientes para


sugerir que o gênero gramatical não é necessariamente o fator
determinante quando a morte é personificada e, inevitavelmen-
te, generalizada. [Portanto], quando os estudiosos da literatura
voltam sua atenção para a personificação como um dispositivo
estilístico, eles também […] postulam um reino pré-linguístico
como o locus em que tais determinações são feitas7.

Assim sendo, quando se estuda a personificação da morte no romance,


como se faz aqui, deve-se pensá-la enquanto dispositivo estilístico, com uma
intenção própria, particular do contexto em que se situa e com significações di-
versas, não considerando a estrutura linguística ou cultural como fator determi-
nante. Consequentemente, pode-se considerar que no romance de Faulkner, a
escolha pela personificação da morte em Addie Bundren está contida na repre-
sentação da figura materna principalmente, bem como da esposa e da mulher, as
quais têm sua consciência simbolicamente sepultada pelas condições do meio em
que vivem.

Para entender essa afirmativa, busca-se Punter e Byron (2004, p. 143-


144), os quais postulam que os termos poder, força e violência, em contraste
com passividade, desmaio e doença até a morte são termos que, corretamente

7 These few cases, chosen from diverse cultures and languages, are enough to suggest that gram-
matical gender is not necessarily the determining factor when death is personified and, inevita-
bly, genderized. […] When literary scholars turn their attention to personification as a stylistic
device, they too, […] postulate a prelinguistic realm as the locus in which such determinations are
made (GUTHKE, 1999, p. 30).

515
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ordenados, formam a lápide sob a qual a cultura ocidental enterra suas mulheres.
Em outras palavras, as características que definem uma cultura ocidental forte-
mente patriarcal, de poder, também definem uma figura feminina passiva, em seu
próprio detrimento, a qual é frequentemente representada, na arte, pela apatia,
desmaio, doença e morte. Em As I Lay Dying, esses também são os termos que de-
finem Addie em relação a sua família e o ambiente – majoritariamente a natureza
– nos trechos ora estudados.

A personagem da matriarca é cercada pela violência, mesmo depois de sua


morte. Essa que pode ser a violência da natureza verificada, varrendo seu caixão
para as águas escuras, bem como a violência de um de seus próprios filhos, Darl,
que ateia fogo em seu caixão. Além disso, há o poder patriarcal de Anse que tenta
controlar as vontades sobre o próprio corpo de Addie, ainda em vida, exemplifica-
do por este trecho do monólogo da personagem, um relato bastante forte:

Depois soube que ia ter Darl. A princípio eu não queria acreditar


nisso. Depois acreditei que mataria Anse. Era como se ele tives-
se me enganado […] E quando Darl nasceu pedi a Anse que pro-
metesse me levar de volta a Jefferson quando eu morresse […]
‘Bobagem’, Anse disse; ‘você e eu ainda não terminamos, só com
dois filhos’. (FAULKNER, 2017, p. 145).

Dessa maneira, é inegável o fato de que exista uma tensão entre a perso-
nificação feminina da morte em Addie Bundren, enquanto o meio que a cerca é
majoritariamente masculino. E enquanto mãe, existe uma tensão ainda maior en-
tre Addie e seus filhos indesejados. No senso comum, compreende-se que, por
natureza, uma mãe deva aprender a amar seus filhos, relacionando-se bem com
estes. Porém, Addie tem uma relação problemática com crianças, mesmo antes
de seus filhos e, com a chegada deles, a situação não muda. Outro relato de Addie
demonstra tal afirmativa: […] Quando Cora Tull me dizia que eu não era uma mãe
de verdade, eu pensava como as palavras descrevem uma linha reta e fina, rápida
e inofensiva […] (FAULKNER, 2017, p. 146).

Segundo Gault (2006, p. 440-441),

[…] a tensão entre o desejo dos homens de que as mulheres re-


presentem a coletividade e o desejo das mulheres de assumir o
poder percebido do individualismo está incorporado na batalha
pelo controle da reprodução corporal […] A imagem provocativa
de Faulkner de uma mãe falando de seu caixão cinco dias após

516
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

sua morte demonstra uma mãe fisicamente constrangida, cuja


relação com a linguagem a silencia. (GAULT, 2006, p. 440-441)8.

O monólogo de Addie Bundren, aproximadamente na metade do roman-


ce, é a declaração que mais obviamente demonstra o dilema moderno enfrentado
por Addie. Ele representa a linguagem do silenciado na literatura de Faulkner e
faz muito sentido ainda nos dias de hoje. A personagem de Addie sofre tanto com
esse contexto que o ápice é a sua morte, para que, só depois, possa haver a sua
voz.

Por conseguinte, buscando aprofundar o entendimento entre Addie e a fa-


mília, constrói-se um paralelo entre a matriarca e dois de seus filhos: Darl e Jewel.
Esses, que apesar de irmãos, são figuras antagônicas, suas ações, seus pensamen-
tos, seus destinos se contrastam dinamicamente em diversos trechos da obra. A
trajetória desses dois personagens inicia-se já em oposição, como se nota no mo-
nólogo de Addie: “Eu dei Dewey Dell a Anse para contrabalançar Jewel. Depois
lhe dei Vardaman para substituir a criança que eu roubara dele. E agora ele tem
três filhos que são seus e não meus. E então eu podia me preparar para morrer”
(FAULKNER, 2017, p. 148).

Em suma, Darl e Jewel não são filhos do mesmo pai. Jewel é um filho extra-
conjugal que Addie teve, fruto de um relacionamento secreto com o reverendo
local Whitfield. Darl, em oposição, é filho de Anse, e apenas de Anse, como alega
Addie. Pode-se entender tal interpretação quando a personagem relata que agora
o pai tem três filhos que são apenas dele. Portanto, sugere-se que Addie rejeita os
três filhos que teve após Cash, o primeiro, o qual foi fruto de sua vontade, sendo
os demais, imposição de Anse sobre o corpo da esposa, exigindo que tivesse mais
filhos, enganando-a, como relatado pela própria Addie anteriormente. Assim, a
origem desses filhos já se dá de maneira contrastante, sendo um rejeitado pela
própria mãe, enquanto o outro é amado, valorizado, considerado um bem precio-
so: a análise onomástica do nome Jewel (joia) nos faz compreender que, para a
mãe, ele era valioso.

Além disso, durante a trajetória dos personagens com a mãe através das
terras do Yoknapatawpha, suas ações caracterizam-se de maneiras antagônicas

8 […] tension between men’s desire to have women represent collectivity, and women’s desire
to assume the perceived power of individualism is embodied in the battle for control of bodily
reproduction […] Faulkner’s provocative image of a mother speaking from her coffin five days
after her death demonstrates a physically constrained mother whose relationship to language
silences her (GAULLT, p. 2009, p. 440-441).

517
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

mesmo em relação a Addie. Como visto anteriormente, enquanto Jewel arrisca


sua vida e de seu cavalo a fim de salvar a mãe, Darl em um surto decide livrar-se
da mãe ateando fogo no celeiro onde seu caixão se encontra. Este é o fato que,
depois, desencadeia, juntamente com a despedida da mãe, a reclusão forçada de
Darl Bundren, levado para um centro psiquiátrico:

Por um instante mais longo ele corre prateado sob a luz da lua,
depois salta como uma figura plana de lata contra uma brusca e
muda explosão, enquanto o celeiro pega foto de repente, como
se tivesse cheio de pólvora. […] Ele se detém no caixão, inclinan-
do-se, olhando para mim, seu rosto furioso. (FAULKNER, 2017,
p. 182).

No trecho, é possível identificar, além da evidente culpa de Darl no incên-


dio, que mais uma vez Jewel, a joia de Addie, é quem salva a mãe da aniquilação
completa, resgatando seu corpo das chamas. Significativamente, ambas as ações
de Jewel retratadas, no rio e no incêndio, são premeditadas pela mãe em diálogo
relatado por Cora Tull, que julga Jewel como um pecado cometido por Addie: “’Aí
está seu pecado. E seu castigo também. Jewel é seu castigo […] ‘Eu sei’, ela dis-
se. […] ‘Ele é minha cruz e será minha salvação. Ele me salvará da água e do fogo.
Mesmo quando minha vida terminar, ele me salvará’” (FAULKNER, 2017, p. 140).

Considerando tais construções da narrativa, pode-se afirmar que após a


sua morte, Addie é o fator que os mantém unidos, pois ambos se contrastam em
todos os aspectos possíveis. Essa presença é tão simbólica que, logo quando a mãe
é sepultada, momento em que todos finalizam sua jornada, Darl e Jewel são se-
parados, sendo o primeiro levado à força para longe da família. Além de ser o elo
entre seus filhos, sustentando por vezes a conexão familiar do Bundren, Addie
também representa revolta. Seu monólogo expõe rejeição a filhos que não queria,
sem se abster do papel de mãe. Sua fala expõe o amor por Jewel, um filho conside-
rado um pecado, castigo, bem como expõe a sua silenciosa vingança contra Addie
e contra qualquer construção moral que a impedia de fazer o que quisesse, afinal,
o pai de Jewel é um homem religioso.

Em síntese, a personagem de Addie é uma personificação forte, autorre-


flexiva, sendo os familiares o verdadeiro fardo. Podendo inclusive, haver uma in-
terpretação onomástica, na qual Bundren, o sobrenome da família assemelha-se
à palavraBurden, correspondente a “fardo”,em inglês. Logo, durante boa parte da
vida de Addie aquela família pode ter sido o seu fardo.

518
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Addie, a vida e o existencialismo

O sentimento evocado a partir do monólogo póstumo de Addie Bundren


encontra-se relacionado ao sentimento construído pela personagem em relação
a sua trajetória de vida. A personagem, em seu monólogo, levanta debates e ques-
tionamentos a respeito dos propósitos de sua vida, bem como do propósito de se
usar palavras que descrevem algo impalpável, como o amor, questionando tam-
bém o significado vazio dessas palavras e, talvez, o vazio, ou falta de propósito,
na própria vida. Addie é uma personagem que não vendo mais objetivo em vida,
prepara-se para morrer, desde muito cedo. Nas palavras da personagem: “Meu pai
disse que a razão de viver é se preparar para estar morto” (FAULKNER, 2017, p.
148).

Segundo Nielsen (1992, P. 33-34),

[...]seu monólogo é a declaração que mais obviamente enfrenta


um dilema moderno, a luta pela auto-expressão e auto-identi-
ficação. [...] A linguagem de Enquanto Agonizo pretende repre-
sentar a linguagem do socialmente silenciado, e tudo o que é dito
pode ser imaginado como um triunfo sobre o silenciamento so-
ciológico, linguístico e econômico. […] Addie tem um fascínio úni-
co por saber, aprender e compreender. O que a diferencia para
nós é sua grande necessidade de compreender; de compreender
sua própria vida9.

A falta de controle sobre o próprio corpo, sobre as reflexões, ações e von-


tades, pode ser fator que determina sua vida como um fardo. Mesmo assim, Addie
busca o entendimento do vazio enfrentado, busca entender-se enquanto indiví-
duo, tocando em questões filosóficas.

Assim, primeiro Addie busca o entendimento do vazio encontrado nas pa-


lavras que são ditas a ela. Em dois momentos verifica-se a objeção da persona-
gem perante os significados das palavras maternidade e amor. Quando questiona
a maternidade, ela afirma: “quando [Cash] nasceu eu soube que a maternidade
havia sido inventada por alguém que tinha que ter uma palavra para isso porque

9 Her monologue is the statement that most obviously confronts a modern dilemma, the strug-
gle toward self-expression and self-identification. […] The language of As I Lay Dying is meant to
stand for the language of the socially silent, and whatever is said can be imagined as a triumph
over sociology, linguistic, and economic silencing. […] Addie is uniquely fascinated with knowing,
learning, understanding. What sets her apart for us is her great need to understand, and to un-
derstand her own life (NIELSEN, 1992, p. 33-34).

519
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

as mulheres que tinham tido crianças não se importavam se havia uma palavra
para isso ou não” (FAULKNER, 2017, p. 144). Depois, quando questiona o amor,
relaciona-o às palavras de Anse: “ele tinha uma palavra, também. Amor, ele a cha-
mava. Mas eu estava acostumada com palavras fazia muito tempo. Eu sabia que
aquela palavra era como as outras: só uma forma para preencher uma carência”
(FAULKNER, 2017, p. 144). Nesse trecho, é pertinente destacar que o texto-fonte
de Faulkner traz “just a shape to fill a lack”, podendo ser interpretado como “apenas
uma forma para preencher uma falta” ou ainda “um vazio”. Esses trechos do monó-
logo de Addie Bundren, portanto, evocam questões filosóficas, indo ao encontro
das interpretações existencialistas da filosofia.

Por sua vez, Jean Paul Sartre, o filósofo do existencialismo, ilumina o estu-
do do paralelo entre Addie e os questionamentos sobre a vida, construídos atra-
vés da estética desenvolvida por William Faulkner no gótico sulista. Sobre o amor,
Sartre (1970, p. 11) afirma que, […] para o existencialista, não existe amor senão
aquele que se constrói; não há possibilidade de amor senão a que se manifesta
num amor”. Tal afirmativa é justamente o que Addie desenvolve em suas falas,
justificando que não há necessidade para se descrever maternidade, quando se é
mãe, ao mesmo tempo que destaca uma palavra vazia no amor de Anse.

O vínculo de Addie, por meio da maternidade, com os filhos Darl e Jewel,


mesmo após a morte, é importante, pois a partir dele se entende quanto há de
divergente entre os dois: Darl, o filho introspectivo, imaginativo e rejeitado, con-
trasta-se com Jewel, o filho expansivo, ativo e valorizado. A fim de entender mais
desse antagonismo, pode-se referir ao pensamento idealista em oposição ao pen-
samento realista, pois é assim que os irmãos Bundren são construídos. O romance
de Faulkner retrata essa oposição ao projetar as escolhas dos dois filhos de Addie
perante a própria vida, em como encaram as situações grotescas que enfrentam,
bem como em relação à morte, que nesse caso, é inescapável, porém, condição da
existência.

Em um dos últimos trechos do romance, o menino Vardaman cita Darl e


Jewel afirmando: “Darl é meu irmão. Darl ficou louco. Andar é mais cansativo que
ficar sentado no chão. Ele olha pra mim. ‘Você quer alguma coisa?’ ele diz. Sua ca-
beça é lisa e brilhante. A cabeça de Jewel é lisa e brilhante às vezes» (FAULKNER,
2017, p. 210). A categorização da insanidade de Darl se dá de forma explícita e
justamente o oposto é, sutilmente, verificado em Jewel, que ainda mantém os ca-
belos penteados, arrumados. Destaca-se que no texto originário Faulkner utiliza

520
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

“slick”, dando a entender que os cabelos de Jewel estavam bem penteados, orga-
nizados, simbolicamente refletindo sua sanidade e bom relacionamento com o
pensamento.

Para Sartre (1970), é justamente o que fazemos com nossas escolhas que
nos permite continuar. O filósofo ainda afirma que a escolha é a condição primor-
dial que define a existência, sendo impossível ao homem não escolher, e cabendo
ao mesmo assumir qualquer responsabilidade pelo rumo que ela toma. Segundo
o pensador francês:

“Estamos sós, sem desculpas. Eu exprimiria isso dizendo que o homem está
condenado a ser livre. Condenado porque ele não se criou a si mesmo, e, entretanto,
por outro lado, livre, pois, uma vez lançado no mundo, ele é responsável por tudo o
que faz” (SARTRE, 1970, p. 7). As consequências observadas na trajetória de Darl
e de Jewel servem ao diagnóstico existencialista, no qual as escolhas e ações são
fatores determinantes.

Nesse contexto, o elemento da morte, em Addie, torna-se ainda mais signi-


ficativo, principalmente se considerarmos a relação dessa mãe com seus filhos, os
quais representam as diferentes escolhas e atitudes em relação à vida. No roman-
ce, é aquela figura de morte que mantém Darl e Jewel caminhando pelos mesmos
caminhos, apesar das divergências existentes entre ambos. É com a presença da
morte a circundá-los que os Bundren trilham seu caminho, mas também é em di-
reção a ela, assim como qualquer outro indivíduo. Para além das conexões com o
gótico, a figura da morte em Addie Bundren pode ser interpretada enquanto pon-
to de contato entre os personagens e o existencialismo, resultando em debates
e reflexões a respeito da vida humana, escolhas e suas trajetórias. Estas que são
percebidas mais acentuadamente em Darl e Jewel Bundren, uma vez que a Addie
lhe é restringido escolher ou traçar sua própria história.

Considerações finais

Por fim, a partir do trabalho realizado, verifica-se a contribuição do roman-


ce As I Lay Dying na compreensão de algumas problemáticas ainda presentes na
modernidade, tais como o discurso feminino sendo silenciado. As problemáticas
evocadas pela personificação da morte em Addie Bundren são extremamente ri-
cas no que diz respeito aos debates do feminino e do feminismo na contempora-
neidade, mesmo não sendo o foco deste trabalho.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Além disso, enquanto estrato literário, o romance evoca debates acerca de


questões linguísticas e culturais tocantes à figura da morte, podendo dialogar com
textos como os de Guthke (1999), auxiliando na compreensão do gênero enquan-
to estrutura estética. E essa, fruto da produção particular de William Faulkner, diz
muito sobre o gótico sulista, contribuindo para as discussões a respeito do sobre-
natural, do realismo, da morte, dos temas morais, da família, do povo sulista, da
decadência, entre outros temas.

Considera ainda, que a presença do cadáver da matriarca durante essa


jornada póstuma realmente é, em si, a presença da morte, mas também implica
relações desta com sua família, com sua existência e com a feminilidade. O todo
construtivo da narrativa faz com que se possa refletir essas representações fe-
mininas através do recorte cultural específico apresentado. Ainda, o texto, reple-
to de fragmentações e fluxo de consciência, traços do modernismo e herança do
zeitgeist vivido no século XX, entre as duas guerras,distorce a visão da realidade,
projetando tensão na trama e construindo o gótico por outros meios.

A partir das diversas versões da realidade ali encontrada, passam-se a com-


preender os questionamentos, as reflexões e as escolhas de cada personagem,
que pluralmente retratados, tocam as bases do existencialismo. A falta de propó-
sito na vida do sujeito comum, nesse contexto representado pelo povo pobre in-
teriorano do sul dos Estados Unidos, é evidenciada pela centralidade significativa
da personagem Addie. A partir dela, aspectos que evocam elementos do gótico
sulista emergem e desafiam a construção filosófica de cada personagem, como os
antagônicos Darl e Jewel, ou até a própria Addie Bundren.

Referências

FAULKNER, W. Enquanto agonizo. 2 ed. Tradução: Wladir Dupont. Porto Alegre:


L&PM, 2017.
GAULT, C. The Two Addies: maternity and language in William Faulkner’s As I Lay
Dying and Alice Munro’s As I Lay Dying. American Review of Canadian Studies, v.
36, n. 3, p. 440-457, 2006.
GUTHKE, K. S. The Gender of death: a cultural history in art and literature.
Cambridge: Cambridge University Ress, 1999.
MARSHALL, B. M. Defining Southern Gothic. In ELLIS, Jay. (Ed.). Southern Gothic
literature (Critical insights). Ipswich, Massachusetts: Salem Press, 2013. p. 3-18.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

NIELSEN, P. S. What does Addie Bundren mean, and how does she mean it? The
Southern Literaty, v. 25, n. 1, p. 33-39 University of North Caroline Press, 1992.
SARTRE, J. O existencialismo é um humanismo. Tradução: Rita Correia Guedes.
Paris: Les Éditions Nagel, 1970.
PUNTER, D.; BYRON, G. The Gothic. Oxford: Blackwell Publishing, 2004.
TREVISOLI, M. S. Branca como morte: o gótico e o palimpsesto em releituras de
Branca de neve e os Sete Anões. Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade
de São Paulo, Araraquara,2019.

523
AS REDOMAS DE SYLVIA PLATH: UMA
ANÁLISE DA FIGURA FEMININA EM A
REDOMA DE VIDRO

Sara Gonçalves Rabelo1

RESUMO: Sylvia Plath pôs fim às ansiedades que a atormentavam em fevereiro


de 1963 e é considerada um dos grandes nomes da literatura norte-americana
não só por causa de sua poesia, mas também pelo suicídio precoce aos trinta anos.
Pouco antes de sua morte, Plath publicou o seu único romance – A Redoma de
Vidro – obra que narra a vida de uma jovem americana, na década de 1950, que
sofre com as regras impostas pela sociedade e com o patriarcalismo opressor da
época. De maneira semelhante, Sylvia Plath lida com as mesmas questões em sua
vida, as quais oprimiram e impossibilitaram a autora de viver como desejava. As
problemáticas vividas pela autora também ficaram marcadas em sua poesia, prin-
cipalmente na obra Ariel, publicada postumamente. Em A Redoma de Vidro, consi-
derado quase um relato da vida de Plath, são ressaltadas as angústias vividas pela
autora enquanto mulher e escritora na década de 1950 e 1960, além de fazer uma
leitura da vida e da morte de Plath enquanto forma de libertação das angústias
vividas. Como aporte para a análise serão usados como aporte teóricos Beauvoir
(1967, 1970, 2000) para falar das questões femininas, além de outros autores que
se tornarem pertinentes.

PALAVRAS-CHAVE: Sylvia Plath; escrita feminina; autoria feminina.

1 Universidade Federal de Uberlândia. sararabelo@gmail.com

524
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ABSTRACT: Sylvia Plath put an end to the anxieties that plagued her in February 1963
and it is considered one of the great names in American literature not only because of
her poetry, but also because of her early suicide at the age of thirty. Right before her
death, Plath published her only novel - The Bell Jar - a work that tells the story of a you-
ng American woman in the 1950s, who suffers from the rules imposed by the society
and the oppressive patriarchy of the time. Sylvia Plath also deals with the same issues
in her life, which oppressed and made it impossible for the author to live as she wished.
The problems experienced by the author were also marked in her poetry, mainly in the
work Ariel, published posthumously. In The Bell Jar, considered almost Plath’s life story,
are emphasized the anguish experienced by her as a woman and writer in the 1950s
and 1960s, besides doing Plath’s life and death as a liberation from the anguish expe-
rienced. Therefore, will be used as theoretical contributions Beauvoir (1967, 1970, and
2000) to talk about feminine issues, besides others that become pertinent during the
analysis of the text.

KEYWORDS: Sylvia Plath; Female writing; Female authorship.

Introdução

Sylvia Plath nasceu no dia 27 de outubro de 1932 e pôs fim a sua vida em
11 de fevereiro de 1963. Após colocar os filhos para dormir, arrumar um pequeno
café da manhã, deixá-lo no quarto junto aos filhos, vedar a porta e abrir ligeira-
mente a janela, Plath enrolou uma toalha no rosto, ligou o gás do fogão, enfiou
a cabeça e se suicidou por meio da inalação de gás, aos 30 anos. Apesar de im-
pactante, o suicídio de Plath não causa um estranhamento quando lemos as suas
obras, uma vez que a temática da morte e do suicídio sempre estiveram presentes,
tanto na vida quanto nos poemas e em seu único romance publicado da autora
– The Bell Jar – A Redoma de Vidro, em português. Além desses, Plath também dei-
xou uma série de contos, extratos jornalísticos e cartas que retratam a maestria
com que a autora escrevia. Nestes, assim como na obra em análise, a morte é uma
instância marcante. Além disso, as obras da autora passaram a ser mais conheci-
das após o seu falecimento, o que a tornou um dos cânones quando falando de
literatura feminina, além das marcas de sofrimento deixadas em seus textos em
decorrência dos problemas vividos.

Em A Redoma de Vidro, obra analisada neste texto, Esther Greenwood, jo-


vem estudante de Língua Inglesa, enfrenta, durantes as férias de verão, proble-
mas mentais resultantes das aflições em relação a escolha entre ser uma “mulher

525
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

tradicional” ou quebrar as convenções da época. Esther é passiva e incapaz de


fazer as próprias escolhas e depende constantemente dos outros, o que mostra
a sua dificuldade em se encontrar no meio em que estava, levando-a a ter um blo-
queio que a impede de dormir, ler e escrever, o que acaba culminando em sua ten-
tativa de suicídio.

A partir da ótica da personagem Ester, vemos um pouco da autora, Sylvia


Plath, ainda no final da adolescência e início da vida adulta, que busca se encon-
trar em meio a uma avalanche de informações e ideias, ao mesmo tempo em que
precisa lidar com as exigências patriarcais do período. Aqui discutiremos, em uma
análise inicial, alguns dos personagens da obra e suas semelhanças com pessoas
da vida de Plath com o intuito de entender as angústias vividas enquanto uma mu-
lher que entende seus deveres e os questiona, além de citar os traumas passados
enquanto uma jovem da década de 1950, o início de uma depressão e o desenvol-
vimento de problemas mentais que culminaram no suicídio da autora pouco mais
de uma década depois.

As redomas de Sylvia Plath

Podemos considerar The Bell Jar não somente um romance sobre uma
tentativa de suicídio que falha, mas é também a narrativa sobre uma mulher que
aprende a viver consigo mesma e assim consegue chegar a um acordo com o
mundo a sua volta. Na personagem Esther vemos Plath que teve os mesmos pro-
blemas e tentou, quando jovem, suicídio. Entender Esther é entender as angústias
que Plath viveu, por isso a obra A Redoma de Vidropode ser considerada quase
como uma espécie de autobiografia de Sylvia.

Segundo Lejeune (2014), a autobiografia seria definida como uma “narra-


tiva retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência,
quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua persona-
lidade. ” (LEJEUNE, p. 16, 2014), portanto, é preciso também entender os enla-
ces feitos entre vida e obra com o intuito de compreender quem é Sylvia, quem é
Esther e em qual momento elas são uma só, já que Plath fez recortes e mudou a
linha do tempo em relação ao que foi vivido por ela ao se inserir em Greenwood.

Ao rememorar a infância de Plath, esta foi consideravelmente feliz e sem


a manifestação de problemas psicológicos graves, mas amplamente abalada pela
morte do pai, em decorrência da diabetes, quando ela tinha apenas nove anos

526
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

(WAGNER-MARTIN, 2018). Personalidade importante na vida de Plath, a figura


paterna trespassa vários poemas que abordam insetos, principalmente abelhas,
os quais era temática de estudo de seu pai. Em A Redoma de Vidro, o pai de Esther
também era um estudioso de abelhas: “Se meu pai não tivesse morrido, pensei,
teria me ensinado tudo sobre insetos, sua especialidade na universidade. Ele tam-
bém teria me ensinado alemão, grego e latim, e talvez eu tivesse me tornado lute-
rana. ” (PLATH, 2019, p. 97).

Plath nasceu em Boston, Massachusetts, e foi a primeira filha de Otto e


Aurelia Plath – professor na Boston University e dona de casa, respectivamente
–, tendo a mãe deixado a carreira acadêmica para cuidar da família e auxiliar o
marido nos artigos e livros que escrevia (WAGNER-MARTIN, 2018). Já a mãe de
Esther era professora de taquigrafia e o pai, assim como Otto, professor univer-
sitário. Todavia, Esther afirma que, para sua mãe, o casamento nunca trouxe paz.

Minha própria mãe me contou que, assim que ela e meu pai saí-
ram do Reno para a lua de mel – meu pai havia sido casado e pre-
cisava oficializar o divórcio –, ele disse, “Ufa, que alívio, será que
agora a gente pode parar de fingir e voltar a ser nós mesmos? ”.
Daquele dia em diante minha mãe nunca mais teve um minuto de
paz. (PLATH, 2019, p. 97).

Esther rememora, assim, fatos que foram vividos por Plath, na ordem como
eles ocorreram, ou não, com o intuito de fazer uma autobiografia memorialística
de Sylvia ainda jovem. É possível ver que da mesma forma que Plath, Greenwood
fora criada pela mãe em decorrência do falecimento prematuro do pai; partici-
pou de um concurso e foi convidada a passar um mês em Nova York como editora
convidada; teve uma intoxicação alimentar séria que, na obra, faz também uma
analogia ao que podemos chamar de “intoxicação psíquica” (BERTACINI, 2018), já
que após o retorno começou a ter dúvidas e indagar sobre a sua capacidade; não
foi aceita no curso em Harvard, entre outros.

Essa série de fatos culminou em um processo depressivo mais grave e que


a levaria primeiro ao psiquiatra e ao tratamento com eletrochoques e depois à
internação. Como só vivenciamos toda situação de Ester pela sua fala enquanto
narradora, só vemos o estado dela antes da primeira consulta:

Eu ainda estava usando a saia rodada e a blusa branca de Betsy,


estavam meio caídas agora, já que eu não as lavara nas três

527
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

semanas em que estive em casa. O suor acumulado no algodão


produzia um cheiro azedo, mas acolhedor.
Também fazia três semanas que eu não lavava o cabelo.
E sete noites que não dormia. (PLATH, 2019, p. 143).

Outra figura também recorrente na obra existiu na vida de Plath e na vida


de Esther. Buddy Willard foi baseado em Dick Norton, ambos estudantes de medi-
cina em Yale que passaram um tempo em um sanatório até a cura da tuberculose.
Plath também quebrou a perna, assim como Esther, durante a visita ao sanatório,
ao visitar Norton, como registrou em seu diário:

Eu estava pensando nos poucos momentos de minha vida em que


me senti totalmente viva, elétrica, usando todo o meu potencial:
corpo e mente [...]Certa vez eu estava no alto da encosta e ia des-
cer de esqui até a figura pequenina lá embaixo, sem saber ma-
nobrar; mergulhei; voei, gritando de alegria conforme meu corpo
se adaptava e controlava a velocidade; de repente um homem
entrou descuidado em meu caminho e quebrei a perna. (PLATH
in KUKIL, 2018, p. 255-256).

A figura de Willard retoma a necessidade de a mulher só ser plenamente


feliz em um casamento, além disso, há a mulher enquanto ser social incapaz de ser
responsável por um filho, por isso a pertinência do casamento. Isso reverberou na
vida de Sylvia por muitos anos, já que após decidir pela separação em decorrência
das traições, vira sua vida desmoronar frente aos julgamentos feitos não só pela
mãe, mas também por todos à sua volta.

Por de ser uma figura com uma forte influência do patriarcalismo, Willard
foi, de certa forma, o personagem/pessoa responsável pelo desenvolvimento de
Esther/Sylvia enquanto mulher em um ambiente patriarcal: Esther fica indigna-
da quando descobre que Willard não é mais virgem e começa a ver as diferenças
entre a forma como homens e mulheres são vistos. Esther decide, então, iniciar a
ingestão do anticoncepcional para evitar o que amedronta as mulheres a ter rela-
ções antes do casamento naquela época: a gravidez.

— Qual o motivo da consulta? —quis saber bruscamente a re-


cepcionista, vestida num uniforme branco e riscando meu nome
numa lista.

528
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

— Como assim, o motivo? — eu esperava que só o médico fosse


me perguntar aquele tipo de coisa. A sala de espera estava cheia
de outras pacientes esperando por seus médicos, muitas das
quais estavam grávidas ou com bebês de colo, e senti seus olhos
em minha barriga reta e virginal.
A recepcionista me encarou, e fiquei vermelha.
— Contracepção, não é? — ela disse, simpática. — Só queria saber
quanto vamos te cobrar. (PLATH, 2019, p. 247).

Essa preocupação com o casamento permeia constantemente as discus-


sões internas de Esther, a busca por alguém que preencha essa lacuna imposta so-
cialmente a faz, além de Willard, encontrar outros homens tão machistas quanto
o amigo de infância. Em sua ida à Nova York ela conhece Marco:

Eu nunca tinha conhecido misógino antes. Dava para perceber


que Marco era um misógino porque, apesar de todas as modelos
e vedetes de televisão presentes na sala, ele só prestava atenção
em mim. Não por bondade ou curiosidade, mas porque calhou de
eu ter sido oferecida a ele como uma carta de um baralho em que
todas as cartas são idênticas. (PLATH, 2019, p. 120).

Além das figuras masculinas, existiam figuras femininas que permearam


Esther e Sylvia, e a mais significativa é a mãe. Esther, logo que volta de New York
afirma, “Mais uma manhã ouvindo o carrinho de bebê de Dodo Conway e eu fica-
ria louca. Isso sem dizer que eu havia prometido a mim mesma nunca mais morar
na mesma casa que a minha mãe por mais de uma semana” (PLATH, 2019, p. 134).
De maneira semelhante, mas com mais sentimentos, Plath deixa claro que a pri-
meira tentativa de suicídio e a relação com a mãe estão intimamente ligados.

Então, como manifesto o ódio pela minha mãe? Nas emoções


mais profundas penso nela como um inimigo: alguém que “ma-
tou” meu pai, meu primeiro aliado masculino no mundo. [...]
Deito-me na cama quando penso que minha mente ficará vazia
para sempre e penso no regozijo que seria matá-la, estrangular
sua garganta magra cheia de veias que nunca pôde ser grande
o bastante para me proteger do mundo. Mas eu era boa demais
para matar. Tentei me matar: para deixar de ser um constrangi-
mento para as pessoas que amo e para me livrar do inferno do
vácuo mental. Muito bem: Faça a ti o que faria aos outros. Eu se-
ria capaz de matá-la, por isso me matei. (PLATH in KUKIL, 2018,
p. 501).

529
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Desse modo, a figura materna se torna, tanto para Esther quanto para
Sylvia, um impulsionador dos problemas enfrentados por ambas. Plath enfrenta,
durante a sua vida, os julgamentos da mãe que não a perdoa por largar o marido,
anos mais tarde, após a descoberta de anos de traição. Já a mãe de Esther tenta
moldá-la dentro do padrão feminino da década de 1950, obrigando-a a aprender
taquigrafia ao assegurar que esse é o trabalho não só permitido à mulher, mas
também necessário para a sobrevivência.

Outro importante aspecto pouco modificado no romance em relação à vida


de Plath fora o tratamento mal-empregado com eletrochoque. Ao contrário do
que acontecera com Esther que primeiro cometera o suicídio e depois fora sub-
metida ao tratamento, com Plath ela fora primeiro submetida ao tratamento e de-
pois tentou suicídio. A traumática experiência permeou a vida de Plath por muitos
anos e essa emblemática tentativa de tirar a própria vida ficou bem clara na fala
das duas, como pode ser visto abaixo na carta de Plath:

Logo, a única dúvida em minha mente eram o momento e o


método certos de cometer suicídio. A única alternativa que eu
conseguia enxergar era uma eternidade infernal em um hospital
psiquiátrico pelo resto da minha vida, e eu ia usar o que sobrava
do meu livre arbítrio e escolher um fim rápido e limpo. (PLATH in
MORASKI, 2009, p.81 apud BERTACINI, 2018, p. 31).

E na descrição feita por Greenwood:

O Dr. Gordon colocou duas placas de metal nas minhas têmpo-


ras, prendeu-as com uma tira que apertava minha testa, e me deu
um fio para morder.
Fechei os olhos.
Houve um breve silêncio, como uma respiração suspensa.
Então uma coisa sobrou-se sobre mim e me dominou e me sacu-
diu como se o mundo estivesse acabando. Ouvi um guincho. Algo
me agitava e moía e eu achava que meus ossos se quebrariam e a
seiva jorraria de mim como uma planta partida ao meio.
Fiquei me perguntando o que é que eu tinha feito de tão terrível.
(PLATH, 2019, p. 160-161).

Em uma segunda tentativa, já na internação e com outros médicos, o tra-


tamento com eletrochoque fora, de certa forma, eficiente. Todavia, o suicídio, as

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

terapias de eletrochoque e as situações de crise que Plath vivenciou ficaram evi-


dentes na obra, a inquietude em relação as imposições feitas, a angustiante convi-
vência com a mãe, os anos vividos com a depressão ocorreram em decorrência de
uma vida tentando se adaptar a uma sociedade que permitia tudo aos homens, em
virtude do poder econômico e social, ao mesmo tempo em que esperava a submis-
são feminina sem discordância algo tão atual até hoje. Portanto,

O privilégio econômico detido pelos homens, seu valor social, o


prestígio do casamento, a utilidade de um apoio masculino, tudo
impele as mulheres a desejarem ardorosamente agradar aos ho-
mens. Em conjunto, elas ainda se encontram em situação de vas-
salas. Disso decorre que a mulher se conhece e se escolhe, não tal
como existe para si, mas tal qual o homem a define. (BEAUVOIR,
1970, p. 177).

Ademais, tanto para Plath quanto Greenwood, morrer não traria menos
prejuízos à família do que permanecer viva. Segundo Bertacini (2018, p. 29) “mor-
rendo, Sylvia pouparia seus entes queridos do desgaste de um encarceramento
caro e por tempo indefinidoem um sanatório do Estado, além de poupar a si mes-
ma da tragédia e da desilusão de viversessenta anos de vácuo mental e sofrimen-
to físico. ” Em carta ao amigo Cohen, Plath relatou que, em sua última tentativa,
deixou uma carta endereçada à mãe, entrou no porão e ingeriu, na tentativa de
morrer, várias pílulas para dormir. O mesmo fizera Esther, ao pegar os medica-
mentos de sua mãe, se esconder no sótão e ser encontrada somente cerca de três
dias depois.

Todas essas questões ficam mais evidentes quando entendemos que as afli-
ções decorrem em virtude de uma sociedade na qual “toda a história das mulhe-
res foi feita pelos homens” (BEAUVOIR, 1970, p. 167). Segundo Beauvoir (1967),
“ninguém nasce mulher: torna-se” (BEAUVOIR, 1967, p. 9), ressaltando que o ho-
mem é evidente na sociedade e que a humanidade é, de fato, masculina, ao mesmo
tempo em que a mulher não é definida em si mesma, “ela não é considerada um
ser autônomo” (BEAUVOIR, 2000, p. 238), ou seja, a mulher é como um “segundo
sexo” dentro de um universo inteiramente masculino.

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino bio-


lógico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana
assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que ela-
bora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode


constituir um indivíduo como um Outro. (BEAUVOIR, 1967, p. 9).

Sylvia e Esther sofreram com as pressões impostas por uma sociedade pa-
triarcal que coloca o masculino como primordial na vida da mulher. Enquanto de-
sejava passar os sábados em seu quarto em meio a estudos e escritarias, a jovem se
vê obrigada a sair com garotos para que os colegas não a incomodassem, chegan-
do até a admitir um noivado com Willard, enquanto este estava em tratamento,
para que a deixassem em paz.

Considerações Finais

Desse modo, tanto Sylvia quanto Esther viveram as angústias de uma vida
que não cabia dentro delas, passando a desenvolver seus outros como uma forma
de sobreviver dentro da sociedade da época (BERTACINI, 2018). Em A Redoma de
Vidro, publicado pela primeira vez sob o pseudônimo de Victoria Lucas, Plath não
chegou a relatar as dificuldades enfrentadas no relacionamento com o marido Ted
Hudges. Foi somente em Ariel, em 1965,obra publicada postumamente, e na edi-
ção de The Bell Jar em 1966, já assinada por Plath, que as problemáticas vividas
pela autora tanto em seus relacionamentos amorosos quanto com a mãe ficam
ressaltadas.

Em Ariel Ted modificou a ordem dos poemas e somente em 2004, Frieda, a


filha mais velha do casal, republicou a coletânea na ordem idealizada pela mãe. A
própria filha, no prefácio de Ariel, em 2004, defende que o pai fez o que lhe cabia
naquele momento e a decisão pela retirada de alguns poemas se deu ao fato de a
fúria de Plath se direcionar a pessoas que ainda estavam vivas. Assim, Frieda con-
siderou que foram duas obras diferentes, ambas retratando a maestria de Sylvia.
Nessa, Plath abordou questões conturbadas e cruciais que permearam a sua vida,
retratou situações ou pessoas que desaprovava, além do marido com quem teve
diversos embates.

Sylvia Plath faleceu jovem, enfrentando as dificuldades pertinentes de um


período em que a mulher possuía menos voz do que atualmente. Enclausurada
dentro de si mesma, Plath definhou em uma sociedade patriarcal que via a figura
de uma mulher solteira e que criava os dois filhos sozinha após a separação como
uma monstruosidade. Criando uma redoma em torno de si mesma, Sylvia passou
os últimos anos de sua vida tentando ser melhor em tudo, assim como a jovem

532
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Esther, ao mesmo tempo em que era subjugada por suas escolhas, opiniões e di-
ficuldades não só por causa do período, mas pela dificuldade da época em ver a
mulher enquanto escritora.

Devia ela ter aceitado as traições do marido e fingido, como muitas até
hoje, viver um casamento feliz enquanto as angústias, tormentos, violências e
torturas psicológicas vividas mitigaram cada um dos desejos e sonhos enquanto
mulher. Que continuemos a estudar Sylvia Plath e entender suas dores, mas mais
ainda ajudar muitas outras Sylvias e Esthers espalhadas no mundo a entenderem
que o lugar da mulher é onde ela quiser e com quem ela quiser, livre de amarras
emocionais e familiares criadas pela sociedade.

Referências

BEAUVOIR, S. O segundo sexo: experiência vivida. São Paulo: Difusão Europeia


do Livro, 1967.
BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do
Livro, 1970.
BEAUVOIR, S. Cartas a Nelson Algren: um amor transatlântico. Tradução: do
Inglês e comentado por Sylvie Le Bom de Beauvoir; tradução e edição: Marcia
Neves Teixeira e Antonio Carlos Austregesylo de Athayde. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000.
BERTACINI, V. C. A desintegração do Sujeito Feminino em a Redoma de Vidro,
de Sylvia Plath. 2018. 182 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários).
Faculdade de Ciências e Letras – Universidade de São Paulo, Araraquara, 2018.
KUKIL, K. Os diários de Sylvia Plath: 1950 - 1962. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul,
2018.
LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução: Jovita
Maria Gerheim Noronha; Maria Inês Coimbra Guedes. 2. ed. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2014.
PLATH, S. A Redoma de Vidro. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2019. 280p.
WAGNER-MARTIN, L. Sylvia Plath: A Biography. Lume Books. Edição do Kindle.
2018.

533
DONAS DE CASA? PERSPECTIVAS
SOBRE A SUBMISSÃO DA MULHER NO
AMBIENTE PRIVADO NOS CONTOS
“I LOVE MY HUSBAND” E “A MOÇA
TECELÔ

Paola Fernanda Gomes1

RESUMO: Os estudos sobre gêneros, principalmente nas últimas décadas, pro-


porcionaram avanços no que diz respeito à luta por igualdade pelas mulheres e à
busca por uma história, auxiliando assim a desconstruir o mito de passado a-his-
tórico imputado às mulheres. As pesquisas também trouxeram à luz discussões
importantes para questionar alguns valores prezados pela ordem patriarcal ainda
presente. Nessa perspectiva, as produções literárias de autoria feminina têm se
mostrado campo fértil para os mais diversos diálogos sobre os papéis femininos
na sociedade. Baseando-se nos estudos de Butler (2017), Federici (2019), Kehl
(2016), Lerner (2019) sobre como os problemas de gênero estão intrinsecamen-
te ligados aos problemas de classe, o presente trabalho pretende levantar refle-
xões acerca da divisão sexual das tarefas no casamento tradicional, evidencian-
do como, a despeito da contemporaneidade e de tantas conquistas femininas, a
mulher ainda ocupa, no ambiente privado, um espaço marcado pela submissão.
Para tanto, serão utilizados como objeto de estudo os contos “I love my husband”
(Nélida Piñon) e “A moça tecelã” (Marina Colasanti), que apresentam personagens
femininas diferentes, inseridas em núcleos familiares distintos e que, no entanto,

1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). paolafg72@gmail.com

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

sofrem com as imposições do matrimônio. Por fim há, ainda, a necessidade de


pensar em mais mudanças para mais igualdade no ambiente doméstico em rela-
ção à mulher.

PALAVRAS-CHAVE: Desigualdade de gêneros; Figuras femininas; Contos


brasileiros.

ABSTRACT: Gender studies, especially in the last few decades, have provided advances
with regard to the struggle for equality for women and the search for a history, thus
helping to deconstruct the myth of a-historical past imputed to women. The research
also brought to light important discussions to debate some values ​​cherished by the pa-
triarchal order still present. In this perspective, literary productions of female author-
ship have proved to be a fertile field for the most diverse dialogues about female roles
in society. Based on the studies of Butler (2017), Federici (2019), Kehl (2016), Lerner
(2019) and Xavier (1998) on how gender problems are intrinsically linked to class pro-
blems, the present work intends to raise reflections about the sexual division of tasks
in traditional marriage, showing how, in spite of contemporaneity and so many female
conquests, women still occupy, in the private environment, a space marked by submis-
sion. For this purpose, the stories “I love my husband” (Nélida Piñon) and “The weaver
girl” (Marina Colasanti), which have different female characters, inserted in different
family nuclei and who, however, suffer with the impositions of marriage. Finally, there
is also the need to think about more changes for more equality in the domestic environ-
ment in relation to women.

KEYWORDS: Gender inequality; Female figures; Brazilian short-stories.

Introdução

A história das mulheres está relacionada a lutas e avanços no que diz res-
peito à obtenção de direitos. Ainda que marcadas pela submissão, as mulheres,
muitas vezes apagadas da história escrita e apresentadas pela ótica dos homens,
conquistaram um trajeto fecundo de êxitos que, apesar de muitos, mostram-se
insuficientes quando a sociedade ainda tem a ordem patriarcal vigente.

Nessa história – que não é a entendida como disciplina e, sim, a coletiva, da


evolução dos povos e suas culturas – as mulheres participaram ativamente. Pelo
fato de corresponderem a pelo menos metade da população, esse parece ser um
dado óbvio. No entanto, quando a história como disciplina, escrita e replicada por
homens é contada, não se percebe as mulheres como ativas nas transformações.

535
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Pelo contrário, são compreendidas como submissas e frágeis, suscetíveis aos


mandos e desmandos dos homens.

A autora de A criação do patriarcado, Gerda Lerner (2019) orienta que, pen-


sar as mulheres somente como vítimas das situações é um equívoco, e de fato o
é, tendo em vista que conquistaram um razoável nível de emancipação por meio
de incansáveis reivindicações, principalmente no campo dos estudos feministas.

Contudo, é importante atentar para o que ainda não foi conquistado.


Estreitar as diferenças de gênero não significa erradicá-las e, em alguns campos
de convívio, como no núcleo familiar, as mulheres – independentemente de classe
– sofrem ainda muitas privações e violências. Naturalmente, essas não se mani-
festam de maneira igual. Esse ponto que o presente trabalho pretende explorar
na esfera da literatura brasileira: como duas personagens femininas, em diferen-
tes contextos, sofrem a opressão da família tradicional?

Para a reflexão pretendida são utilizados contos de Marina Colasanti e


Nélida Piñon, autoras contemporâneas que buscam, em seus escritos, contemplar
a situação das mulheres na sociedade. Nesse sentido – o de pensar as mulheres
e nas mulheres – a literatura de autoria feminina tem impulsionado o resgate da
história, servindo como escopo para as mais diversas pesquisas, por ser muitas
vezes intimista e revelar angústias próprias das mulheres durante tantos séculos
postas à margem da história.

Uma pergunta antiga

O que faz a mulher ser mulher? Esse tem sido um questionamento visita-
do e revisitado por muitos pensadores e pensadoras ao longo dos séculos e hoje,
pode-se entender que a mulher é, assim como o homem, uma construção social.
Judith Butler (2017), uma das intelectuais mais importantes na pesquisa e enten-
dimento sobre gênero e sexo afirma que ambos são culturalmente construídos,
portanto tornar-se mulher é sofrer uma “compulsão cultural ao fazê-lo” (p.29).

É importante entender que esse impulso cultural sofrido tem origens muito
antigas, quase sempre desconhecidas e até imperceptíveis no cotidiano, já que
o regime patriarcal se fixou em nossa sociedade de forma quase natural, como
afirma Bourdieu: “A divisão entre os sexos parece estar ‘na ordem das coisas’,
como se diz por vezes para falar de algo considerado normal, natural, a ponto

536
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de se tornar inevitável” (2014, p.21). O autor completa observando como essa


ordem, que é masculina, “dispensa justificação”, posto que é naturalizada.

Essa naturalização pode ser vista desde os mais sutis diálogos até as mais
bem elaboradas representações literárias. Esse ato vem sendo examinado espe-
cialmente por intelectuais feministas para que a ordem patriarcal possa ser sub-
vertida. Para sua realização, é necessário entender a gênese da questão e recuar
até as sociedades primitivas como fez Gerda Lerner. Ao apontar a divisão sexual
do trabalho – ponto crucial nas reivindicações por direitos e base da ordem pa-
triarcal –, Lerner destaca que tal divisão iniciou-se devido à necessidade de sobre-
vivência dos grupos. Além disso, ela menciona que:

A mais antiga divisão sexual do trabalho, segundo a qual as mu-


lheres escolheram ocupações compatíveis com a maternidade e a
criação dos filhos, era funcional, por isso satisfatória, tanto para
homens quanto para mulheres. […] Grupos que aceitavam e ins-
titucionalizavam uma divisão sexual do trabalho que fosse fun-
cional tinham mais chances de sobreviver. (LERNER, 2019, p.72,
grifo da autora).

Percebe-se, pelos estudos de Lerner (2019) que a mulher, na maioria das


sociedades pré-civilizadas, tinha o poder de escolha dentro do grupo e o trabalho
era dividido por necessidade biológica, todavia, esse modelo foi sendo substituído
nas sociedades arcaicas por um outro, patriarcal e hierárquico, fixando a mulher
no posto de procriadora e cuidadora da casa e do marido.

Com o surgimento do estado, da propriedade e de grupos com maior núme-


ro de pessoas, a situação da mulher complicou-se, pois, além de fixada na posição
de procriadora e mantenedora do que se entendia por família, ela tornou-se mais
uma propriedade do homem. Nessa perspectiva, a mulher serviu, desde as socie-
dades tribais, como produto de comércio; a casamentos arranjados, ao estupro e
ao rapto para ser transformada em escrava etc., tais práticas eram bastante co-
muns. Algumas – como o casamento arranjado – foram amplamente difundidas ao
longo dos séculos e até pouquíssimo tempo eram consideradas naturais. De fato,
como aponta Lerner (2019, p. 112) “a opressão de mulheres precede a escravidão
e a torna possível”.

É natural indagar como condutas tão antigas foram sendo incorporadas


pelas mais diferentes sociedades ocidentais ao longo de tantos séculos. Um dos
apontamentos mais certeiros de Lerner (2019) é sobre a Bíblia e a religião cristã.

537
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Ambas, segundo ela, definiram as noções de gênero, moralidade e até mesmo a


importância da propriedade:

A grande importância do clã (mishpahah) foi reforçada por acor-


dos de propriedade. Após o período de assentamento, a proprie-
dade familiar era a maneira predominante de possuir terras. […]
A responsabilidade pela manutenção e preservação desse pa-
trimônio era do chefe patriarcal da família. A terra pertencia ao
clã e era considerada inalienável, ou seja, não podia ser vendida
a ninguém e só podia ser transferida por herança. Essa herança
costumava ficar para o filho mais velho. Na falta de um filho po-
deria ser deixada para as filhas, mas elas precisavam se casar com
alguém da própria tribo para que sua parte não fosse transferida
para fora da tribo (Números 27: 7 – 8 e 36: 6 – 9). (LERNER, 2019,
p. 213).

Entende-se, após essa breve reflexão, que o patriarcado – em seu amplo


sentido, de dominância do homem sobre as instituições – teve início há, pelo me-
nos, 2.500 anos com o estado arcaico. Contudo não se deve pensar, como aludi-
do anteriormente, que a mulher não participou da construção das sociedades,
principalmente no que se refere a aquelas pertencentes às classes sociais menos
abastadas.

Afastando-se um pouco dos primórdios do patriarcado e dirigindo-se para


as sociedades pré-capitalistas, quando a família patriarcal e a divisão sexual do
trabalho já ocorriam de forma naturalizada, pode-se observar mais atentamente
a relação de trabalho como menciona Heleieth Saffioti(1976, p. 32):

A mulher das camadas sociais diretamente ocupadas na produ-


ção de bens e serviços nunca foi alheia ao trabalho. Em todas as
épocas e lugares tem ela contribuído para a subsistência de sua
família e para criar a riqueza social. Nas economias pré-capitalis-
tas, especificamente no estágio imediatamente anterior à revo-
lução agrícola e industrial, a mulher das camadas trabalhadoras
era ativa: trabalhava nos campos e nas manufaturas, nas minas e
nas lojas, nos mercados e nas oficinas, tecia e fiava, fermentava a
cerveja e realizava outras tarefas domésticas. Enquanto a família
existiu como uma unidade de produção, as mulheres e as crian-
ças desempenharam um papel econômico fundamental.

A partir da leitura desse excerto, fica evidente que a mulher sempre tra-
balhou, mesmo quando eram delegadas a ela funções consideradas de menor

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

importância, como os cuidados com a casa e os filhos. Isso evidencia uma grande
alteração ao se pensar no início da divisão sexual do trabalho. Entretanto, é im-
portante frisar que o trabalho fora do ambiente doméstico tendia a ser realizado,
mais frequentemente, por mulheres de classes sociais baixas, denotando que de-
corria da necessidade de manutenção do conforto mínimo da família.

Essas relações de trabalho mostravam-se injustas se apreendidas sob di-


versos ângulos; no entanto, são abordados dois aspectos que servirão como base
para análises posteriores. O primeiro diz respeito ao serviço doméstico, que é,
ainda, tomado como um afazer inerente à esfera feminina e considerado por mui-
tos homens como degradante. Além disso, a atividade doméstica é também, quan-
do não realizada nos moldes estabelecidos pelo regime patriarcal, causadora de
violência, física, psicológica e moral.

Sobre esse tema, Silvia Federici (2019) discorre interessantes reflexões e


trata o serviço doméstico como trabalho passível de remuneração e reconheci-
mento, contrariando a naturalização própria do sistema patriarcal que diz ser da
mulher o dever de cuidar da casa por motivos naturais, biológicos:

A diferença em relação ao trabalho doméstico reside no fato de


que ele não só tem sido imposto às mulheres como também foi
transformado em um atributo natural da psique e da personali-
dade feminina, uma necessidade interna, uma aspiração, supos-
tamente vinda das profundezas da nossa natureza feminina.
O capital tinha que nos convencer de que o trabalho doméstico
é uma atividade natural, inevitável e que nos traz plenitude, para
que aceitássemos trabalhar sem uma remuneração. Por sua vez,
a condição não remunerada do trabalho doméstico tem sido a
arma mais poderosa no fortalecimento do senso comum de que
o trabalho doméstico não é trabalho, impedindo assim que as
mulheres lutem contra ele, exceto na querela privada do quar-
to-cozinha, que toda sociedade concorda em ridicularizar, redu-
zindo ainda mais o protagonismo da luta. Nós somos vistas como
mal-amadas, não como trabalhadoras em luta. (FEDERICI, 2019,
p. 42-43).

Por isso, enfrentar a divisão sexual do trabalho dentro das famílias é muito
importante, como salientou Flávia Biroli (2018, p. 199) ao comentar que “Muitas
percepções sobre quem somos no mundo, o que representamos para pessoas
próximas e o nosso papel na sociedade estão relacionadas à divisão sexual do

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

trabalho. ” Ou seja, é uma questão de identidade e uma necessidade de ressignifi-


car a mulher e ressignificar o trabalho doméstico.

O segundo ângulo de importância, para a presente discussão, diz respeito


às classes, já que não se pode falar de gênero e divisão sexual do trabalho sem
atentar para o fato de que as mulheres pobres sempre trabalharam em jornadas
duplas ou triplas, cuidando dos filhos, da manutenção da higiene da casa e ainda
trabalhando nos mais variados postos durante extenuantes horas.

Associado ao gênero e à classe está também a etnia, visto que, no Brasil,


por questões históricas, o racismo pode ser entendido hoje como institucional.
Silvio Almeida (2019, p. 37) explica que sob a perspectiva institucional “o racismo
não se resume a comportamentos individuais, mas é tratado como o resultado do
funcionamento das instituições que passam a atuar em uma dinâmica que confe-
re, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios com base na raça. ” Esse
apontamento é reflexo dos anos de escravidão e marginalização dos afrodescen-
dentes, especialmente as mulheres negras.

A despeito da problemática gênero, classe e etnia, Biroli (2018) aponta da-


dos recentemente coletados em suas pesquisas, indicando que de fato a mulher
de ascendência negra sofre muito mais com trabalho precarizado:

Quando se observa a distribuição, na população, do trabalho


precarizado, as mulheres negras estão na posição de maior des-
vantagem. Elas são 39% das pessoas que exercem esse tipo de
trabalho, seguidas pelos homens negros (31,6%), pelas mulheres
brancas (27%) e, por fim, pelos homens brancos (20,6%). (BIROLI,
2018, p. 23).

A diferença de classes de fato significou uma ruptura entre as mulheres,


havendo dificuldade das que ocupam posições sociais elevadas de perceberem-se
como minoria, como exploradas, apesar de suas condições de classes:

Na sociedade de classes, é difícil para as pessoas que têm algum


poder – ainda que limitado e circunscrito – enxergarem a si mes-
mas também como desfavorecidas e subordinadas. Os privilé-
gios de raça e de classe servem para destruir a capacidade das
mulheres de se enxergarem como um grupo conexo, o que de
fato não são, uma vez que mulheres de todos os grupos oprimi-
dos existem em todas as camadas da sociedade. A formação de

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

uma consciência de grupo de mulheres deve ocorrer ao longo de


diferentes linhas. (LERNER, 2019, p. 268).

Entendidas – mesmo que de maneira sintetizada – essas problemáticas que


fazem parte de maneira tão pungente da ordem patriarcal, fica mais fácil refletir
sobre os contos “I love my husband”, de Nélida Piñon e “A moça tecelã”, de Marina
Colasanti, uma vez que são duas autoras que desempenham papéis importantís-
simos na elevação dos discursos acerca dos direitos das mulheres na sociedade
contemporânea.

A Mulher de “I love my husband” e a Moça de “A moça tecelã”

A divisão da sociedade em classes aumentou as fissuras já existentes entre


grupos abastados e não abastados, proporcionando ainda, com o advento do capi-
talismo, o surgimento da burguesia. É interessante atentar para esse dado, pois no
Brasil a ascensão dessa classe, no século XIX, trouxe mudanças sociais profundas,
principalmente para as mulheres que, a partir da importação dos modos de vida
franceses, estavam fadadas a regras morais muito mais rígidas e desiguais e pre-
sas ainda mais ao estigma de “donas de casa”. A urbanização, como aponta D’Incao
(2004, p.234), proporcionou:

[…] o nascimento de uma nova mulher nas relações da chamada


família burguesa, agora marcada pela valorização da intimidade
e da maternidade. Um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor,
filhos educados e esposa dedicada ao marido, às crianças e de-
sobrigada de qualquer trabalho produtivo representavam o
ideal de retidão e probidade, um tesouro social imprescindível.
Verdadeiros emblemas desse mundo relativamente fechado, a
boa reputação financeira e a articulação com a parentela como
forma de proteção ao mundo externo também marcaram o pro-
cesso de urbanização do país.

Ainda que as observações da autora se vinculem às mudanças operadas no


Brasil de meados do século XIX em diante, esse apontamento inicial é importan-
te para entendermos as personagens dos contos analisados, pois a reflexão se dá
igualmente na perspectiva do que se espera da mulher a partir dessa mudança de
expectativa comportamental, pois o modelo de família burguesa e retidão moral
era esperado e exigido em todas as camadas da sociedade.

541
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Somos apresentados, nos contos escritos entre 1980 e 1982, a duas mu-
lheres, ambas sem nome, ambas sob o jugo do patriarcado, contudo vivendo em
situações diferentes no que diz respeito à classe social. Em “I love my husband”,
de Nélida Piñon, a personagem – que é narradora – pertence, provavelmente, à
classe média. Deduz-se isso devido aos diálogos construídos ao longo da narrati-
va e também pelo fato de ela não desempenhar nenhuma função externa à casa,
interdição comum à manutenção do patriarcado nas famílias burguesas. Em “A
moça tecelã”, de Marina Colasanti, deparamo-nos com uma tecelã, como remete
o título, demonstrando que a protagonista – que não narra sua própria história
– provavelmente trabalha em alguma fábrica de tecidos, ofício comum às mulhe-
res, especialmente entre as décadas de 1930 e 1940, somando, respectivamente
7,8% e 5% da força de trabalho contra 2% dos homens em ambas as décadas:

A taxa acentuada de mulheres no setor industrial de reparação


revela justamente a presença delas no trabalho de costureiras
e bordadeiras, em indústrias domiciliares ou por conta própria,
atividades nas quais elas encontravam maiores chances de con-
jugar o trabalho remunerado com o trabalho de limpeza e de cui-
dados. A baixa participação feminina, verificada em 1940, seria
resultado do desenvolvimento industrial e substituição às pro-
duções artesanais. (FRACCARO, 2018, p.26-27).

Apesar de os dados representarem o início da industrialização, a prática de


tentar conciliar trabalho externo e trabalho doméstico foi e é muito recorrente,
tendo em vista que os cuidados com a higiene da casa, produção de refeições, en-
cargos com os filhos e parentes mais velhos sempre foram imputados às mulheres
como obrigações próprias do seu gênero.

Ainda na tentativa de dar rosto e forma a essas mulheres, podemos ob-


servar que elas não são nominadas em suas histórias. Em “I love my husband” a
protagonista é chamada simplesmente Mulher, visto que se ela possui um marido,
então ela só pode ser mulher. Esse é o raciocínio patriarcal que se manifesta de
maneira natural, como apontou Bourdieu (2014). Não significa que seja correto
pensar assim, porém uma sociedade que durante tantos séculos trabalhou pers-
pectivas de dualidade acaba por automatizar o pensamento de seus cidadãos. Em
“A moça tecelã”, a personagem é denominada Moça, como o título indica; ela inicia
o conto solteira e dedica-se somente ao tear, fato indicado de maneira direta pe-
las informações expostas no conto e indireta pela denominação, já que é do sen-
so comum rotular as mulheres de acordo com seu estado civil. Essa identificação

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ocorre de maneira desigual em relação ao homem que é sempre homem, como


atesta a Mulher de “I love my husband”:

E todo este troféu logo na noite em que ia converter-me em mu-


lher. Pois até então sussurravam-me que eu era uma bela expec-
tativa. Diferente do irmão que já na pia batismal cravaram-lhe o
glorioso estigma de homem, antes de ter dormido com mulher.

Essas mulheres sem nominação representam duas parcelas de uma socie-


dade estratificada em que somente tem voz quem possui condições financeiras
de falar. Esse apontamento está em comunhão com o fato de serem apresentadas
duas narrações diferentes, tornando-se possível os seguintes questionamentos:
Por qual motivo somente a Mulher narra sua história? Por que a Moça fica à mer-
cê de um narrador e só cabe ao leitor confiar no que ele diz – ou não – enquanto
são apresentadas de maneira clara, até certo ponto – as angústias vividas pela
Mulher? Uma especulação possível pode estar ligada aos movimentos feministas
em sua gênese. Como mencionado, ser de classe social abastada poderia garan-
tir voz às mulheres, isso inclui instrução formal e até mesmo participação políti-
ca como demonstra a história das sufragistas no Brasil, comandadas por Bertha
Lutz (Apud SAFFIOTI,1976). A respeito disso, Besse (1999, p. 194-196, apud
FRACCARO 2018, p. 77) comenta “feministas de classe média relutavam em cru-
zar a fronteira de classe, as operárias tinham poucos motivos para aderir ao mo-
vimento feminista”.

Em linhas gerais, houve um intenso apagamento das mulheres ao longo da


história, contudo esse fato se intensifica em relação à história das mulheres po-
bres, cujas falas sempre foram representadas por terceiros e por documentações
escassas. Fraccaro (2018) ainda menciona que as reivindicações das operárias nas
fábricas foram essenciais para as conquistas que só puderam ser concretizadas
pelas representantes políticas da classe média, sendo as operárias, como comenta
Rago, sempre colocadas no patamar de vítimas e inativas na luta por melhores
condições de trabalho:

[…] até recentemente, falar das trabalhadoras urbanas no Brasil


significava retratar um mundo de opressão e exploração dema-
siada, em que elas apareciam como figuras vitimizadas e sem
nenhuma possibilidade de resistência. Sem rosto, sem corpo, a
operária foi transformada numa figura passiva, sem expressão
política nem contorno pessoal. (RAGO,2004, p. 609).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Esse breve esboço permite entender como se desenrolam as ações das


duas personagens aqui estudadas que, ao longo das narrativas, vão apresentando
formas muito díspares de lidar com as consequências do matrimônio, o que, de
certa forma, evidencia que ambas se encontram emaranhadas em uma dominação
semelhante.

Para, de maneira mais clara entender as questões de subordinação nos dois


contos, é imperativo atentar para o tempo, que em ambos se constrói de manei-
ra ambígua. Em “A moça tecelã”, o início da narrativa dá-se com a impressão da
predominância do tempo psicológico, como se a Moça vivesse seu cotidiano de
maneira distraída; contudo, uma leitura mais atenta pode demonstrar que os afa-
zeres no tear ditam a passagem do tempo cronológico:

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás


das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela
ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade
da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em
longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça
colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais
felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia
um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido.
Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as fo-
lhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus
belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os
grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava
os seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cui-
dado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para
ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entre-
meava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão,
dormia tranquila. (COLASANTI, 2004, p.1-2).

Em “I love my husband”, temos, logo no início, a apresentação do tem-


po cronológico, visivelmente ditado pelos cuidados com o marido. Apesar das

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

preocupações domésticas da Mulher, esse tempo demarcado pelo compromisso


com a casa é interrompido pelo tempo psicológico, quando o marido já não está
mais em casa, e ela pode sentir-se livre para divagar em seus pensamentos:

Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe


café. Ele suspira exausto da noite sempre mal dormida e começa
a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie.
[…]
Deixo que o sol entre pela casa, para dourar os objetos compra-
dos com esforço comum. Embora ele não me cumprimente pelos
objetos fluorescentes. […]
Não é verdade que te amo, marido? perguntei-lhe enquanto lia
os jornais, para instruir-se, e eu varria as letras de imprensa cus-
pidas no chão logo após ele assimilar a notícia. Pediu, deixe-me
progredir, mulher.

Vê-se, na citação acima, três momentos diferentes do cotidiano da Mulher,


todos marcados cronologicamente pela presença ou ausência do marido: pela
manhã quando ela o ajuda a se arrumar para o trabalho, ao longo do dia quando
ele está no trabalho e à noite quando ele chega do trabalho.

Ainda em relação ao tempo demarcado pelo marido, somente acontece


algo semelhante com a Moça quando esta perde o controle sobre seu trabalho,
dedicando-o totalmente aos mandos e desmandos do marido. Por conseguinte,
o passar dos dias, que antes parecia ordenado e harmonioso, torna-se um caos:

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e


portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e
ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não
tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto
sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadei-
ra. (COLASANTI, 2004, p.5).

Os abusos cometidos pelos maridos dos dois contos estão sempre muito
atrelados ao verbal e psicológico, incluindo a subtração do tempo íntimo, que tam-
bém ocorre de maneira dessemelhante. Enquanto o marido da Mulher exige total
doação dela a ele e ao lar, o marido da Moça se apropria de sua força de trabalho:

[…] tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pen-


sou a não ser nas coisas todas que ela poderia lhe dar.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia jus-


to, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor
de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem
querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com
arremates em prata.[...]
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido
escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de
trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não
se esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os capri-
chos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moe-
das, as salas de criados. (COLASANTI, 2004, p.4-5).

A construção das famílias pobres no Brasil sempre se deu de maneira di-


vergente. Era e é muito comum, segundo aponta Soihet (2004, p. 383), que a “or-
ganização familiar dos populares assumia uma multiplicidade de formas, sendo
inúmeras as famílias chefiadas por mulheres sós. Isso se devia não apenas às difi-
culdades econômicas, mas igualmente às normas e valores diversos, próprios da
cultura popular. ”

Essa cultura tão diferente da burguesa proporciona à mulher pobre mui-


tos flagelos, assim como sucedia à mulher burguesa que dificilmente encontrava
formas de se defender. Sem coragem e em conflito com sua criação, a Mulher de
“I love my husband” demonstra ser vítima do que hoje entende-se por gaslighting2,
ou seja, a violência psicológica que leva a mulher a se ver como incapaz de pensar
por si mesma, duvidar de seus pontos de vista e até mesmo pensar que está enlou-
quecendo. Observa-se nitidamente essa agressão psicológica quando a mulher ao
confrontar o marido por sua insatisfação, querendo pensar em como ficaria o fu-
turo, logo tenta retirar o que disse, acuada:

Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sa-


crifico-me outra vez para não vê-lo sofrer. Será que apa-
gando o futuro agora ainda há tempo de salvar-te?
Suas crateras brilhantes sorveram depressa as lágrimas, tragou a
fumaça do cigarro com volúpia e retomou a leitura. Dificilmente
se encontraria homem como ele no nosso edifício de dezoito an-
dares e três portarias. Nas reuniões de condomínio, a que esti-
ve presente, era ele o único a superar os obstáculos e perdoar

2 https: //www.geledes.org.br/o-machismo-tambem-mora-nos-detalhes/

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

aos que o haviam magoado. Recriminei meu egoísmo, ter assim


perturbado a noite de quem merecia recuperar-se para a jornada
seguinte.

A Mulher de “I love my husband” apresenta dois grandes debates internos


que não são possíveis de perceber em “A moça tecelã”. O primeiro diz respeito à
sexualidade reprimida por seu marido e o segundo sobre a criação que recebeu de
seus pais, circunscritos aos valores do regime patriarcal.

No que diz respeito à sexualidade, podemos afirmar que esse tem sido um
dos maiores tabus da história moderna. Analisado sutilmente pelos mais diversos
especialistas, ainda pode ser considerado um tema problemático:

[…] o discurso sobre o sexo, já a mais de três séculos, tem-se mul-


tiplicado em vez de rarefeito; e que, se trouxe consigo interditos
e proibições, ele garantiu mais fundamentalmente a solidificação
e a implantação de todo um despropósito sexual. Não obstante
tudo isso parece ter desempenhado, essencialmente, um papel
de proibição. […]
E o simples fato de se ter pretendido falar dele do ponto de vis-
ta purificado e neutro da ciência já é, em si mesmo significativo.
De fato era uma ciência feita de esquivas, já que, na incapacidade
ou recusa em falar do próprio sexo, referia-se sobretudo às suas
aberrações, anulações patológicas, perversões, extravagâncias
excepcionais, exasperações mórbidas. Era também uma ciên-
cia essencialmente subordinada aos imperativos de uma mo-
ral, cujas classificações reiterou sob forma de normas médicas.
(FOUCAULT, 2019, p.59-60).

Tais problemáticas envolvendo sexo e moral têm proporcionado ao homem


maior possibilidade de usufruir de liberdade enquanto a mulher permanece como
objeto dele, situação que serviu de gatilho para as reflexões da Mulher de “I love
my husband”:

Decididamente, não podia ele preocupar-se com a matriz do meu


ventre, que devia pertencer-lhe de modo a não precisar cheirar
o meu sexo para descobrir quem mais, além dele, ali estivera, ba-
tera-lhe à porta, arranhara suas paredes com inscrições e datas.
Filho meu tem que ser só meu, confessou aos amigos no sába-
do do mês que recebíamos. E mulher tem que ser só minha e
nem mesmo dela. A idéia de que eu não podia pertencer-me,
tocar no meu sexo para expurgar-lhe os excessos, provocou-me

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

o primeiro sobressalto na fantasia do passado em que até en-


tão estivera imersa. Então o homem, além de me haver nau-
fragado no passado, quando se sentia livre para viver a vida a
que ele apenas tinha acesso, precisava também atar minhas
mãos, para minhas mãos não sentirem a doçura da própria
pele, pois talvez esta doçura me ditasse em voz baixa que ha-
via outras peles igualmente doces e privadas, cobertas de pêlo
felpudo, e com a ajuda da língua podia lamber-se o seu sal?
Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de
roxo. Unhas de tigre que reforçavam a minha identidade, gru-
nhiam quanto à verdade do meu sexo. Alisei meu corpo, pensei,
acaso sou mulher unicamente pelas garras longas e por revesti-
-las de ouro, prata, o ímpeto do sangue de um animal abatido no
bosque? Ou porque o homem adorna-me de modo a que quando
tire estas tintas de guerreira do rosto surpreende-se com uma
face que Ihe é estranha, que ele cobriu de mistério para não me
ter inteira?

No trecho acima, evidencia-se que somente o marido poderia “viver a vida”


enquanto ela, reduzida a objeto, a pertence, não poderia nem mesmo se tocar ou
ainda imaginar-se ou aventurar-se com outras mulheres? Esse questionamento
que a faz revoltar-se não resulta em nada além de muitas outras perguntas e a
tentativa de convencer-se de que estar casada era seu destino e seu dever. Nesse
ponto pesa a criação recebida:

Ser mulher é perder-se no tempo, foi a regra de minha mãe.


Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condição feminina?
O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimen-
to da mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo.
Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que
ninguém colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os ensi-
namentos paternos sempre foram graves, ele dava brilho de
prata à palavra envelhecimento. Vinha-me a certeza de que ao
não se cumprir a história da mulher, não lhe sendo permitida a
sua própria biografia, era-lhe assegurada em troca a juventude.
Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento.
E porque viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, atra-
vés deste ato, que serás jovem para sempre. Eu não sabia como
contornar o júbilo que me envolvia com o peso de um escudo, e
ir ao seu coração, surpreender-lhe a limpidez. Ou agradecer-lhe
um estado que eu não ambicionara antes, por distração talvez.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Nesse sentido, é mister pensar que para os preceitos morais exigidos pela
“nova família burguesa”, estar casada era essencial mesmo que essa não fosse para
a mulher a melhor escolha, já que, do contrário, eram recorrentes as degradações
empregadas contra as solteiras, incluindo a acusação de prostituição como afirma
Cláudia de Jesus Maia (2007) em seu estudo sobre a “invenção da solteirona”. É
dentro deste tipo de mentalidade que a Moça de “A moça tecelã” abriu mão de sua
liberdade para estar casada:

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tem-


po em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pen-
sou em como seria bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma
coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e
as cores que lhe dariam companhia. (COLASANTI, 2004, p. 5).

Expostas essas breves considerações a respeito dos contos, é necessário


pensarmos como essas personagens lidam com as violências sofridas. Houve de
fato alguma saída? Afinal, os conflitos evidenciados não partem, exatamente, da
representação de recortes possíveis da vida de mulheres. Esses abusos, de fato,
podem colocar fim à vida de muitas mulheres, posto que, como apontam Sampaio
e Einhardt (2020) em suas recentes pesquisas com homens que agrediram mu-
lheres, o fator submissão é fundamental para o desencadeamento de agressões.
Ou seja, quando há insubmissão, os homens sentem-se humilhados. No seu imagi-
nário, os homens supõem que a mulher é um objeto, acabando em algumas situa-
ções, por se acharem no direito de agredi-las.

De fato, houve diferentes reações que podem ser entendidas combinando


as reflexões propostas. Em “I love my husband”, há uma mulher que, desde muito
cedo, aprendeu que seu destino era casar, que, se não fosse assim, não poderia
desfrutar da vida, que só poderia se dar a partir do matrimônio. Portanto, para a
personagem deste conto, desfazer o matrimônio configurava um ato impensável:

Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em


agradá-lo, ainda que sem vontade às vezes, ou me perturbe al-
gum rosto estranho, que não é o dele, de um desconhecido sim,
cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto então a boca seca,
seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às
vésperas, e que me alimentará amanhã também. Um pão que ele
e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor,

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou mari-


do e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido.

A esse dado soma-se a independência financeira como possibilidade de


promover a emancipação feminina. Prova dessa afirmação está em “A moça tece-
lã”. Com o ofício no tear, a protagonista pode escolher seu destino desfazendo o
casamento, como quem desfaz um tapete:

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe


pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela
primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer.  Levantou-se enquanto o marido dormia
sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer baru-
lho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lan-
çadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro,
começou a desfazer seu tecido.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura,
acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se
levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu
seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada su-
biu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado cha-
péu. (COLASANTI, 2004, p.7).

A reação da Moça é consonante com os estudos de Soihet (2004), que co-


menta como as mulheres das camadas populares “rebelaram-se contra os maus-
-tratos de seus companheiros numa violência proporcional, precipitando solu-
ções extremas; mais uma vez desmentindo os estereótipos correntes acerca de
atitudes submissas das mulheres”.

Pode-se entender, através deste compilado de reflexões, que para a Moça,


desfazer seu casamento não implicava tanto moralmente e economicamente
quanto para a Mulher que não tinha afazeres externos provedores de renda, além
do peso moral de uma separação.

Considerações finais

Nossa pretensão, ao longo desse trabalho, foi efetuarmos reflexões acerca


da representação de mulheres de duas classes sociais bastante distintas e pen-
sarmos como a divisão sexual do trabalho pode ser cruel, colocando a mulher em

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

patamar de inferioridade, fixando-a no lugar de dona de casa quando, na verdade,


ela não parece ser dona de nada e sim mais um objeto, um acessório pertencente
ao marido.

Pensando na trajetória das personagens, fica evidente que uma das prin-
cipais ações no combate à dominância patriarcal é a igualdade no trabalho, inde-
pendentemente de setor, mesmo o doméstico. Sobre isso, Federici (2019, p. 68)
comenta:

O trabalho doméstico é muito mais do que limpar a casa. E servir


aos assalariados física, emocional e sexualmente, preparando-os
para o trabalho dia após dia. E cuidar das nossas crianças — os
trabalhadores do futuro —, amparando-as desde o nascimento e
ao longo da vida escolar, garantindo que o seu desempenho este-
ja de acordo com o que é esperado pelo capitalismo. Isso significa
que, por trás de toda fabrica, de toda escola, de todo escritório,
de toda mina, há o trabalho oculto de milhões de mulheres que
consomem sua vida e sua força em prol da produção da força de
trabalho que move essas fábricas, escolas, escritórios ou minas.

Compreendemos, portanto, que, apesar dos avanços históricos, a mulher


ainda exerce o papel de serva, com o agravante das horas trabalhadas fora do am-
biente doméstico. Se à mulher fosse dada mais igualdade, decerto tal situação lhe
tiraria o fardo de cuidadora do lar e daria a ela liberdade de escolha, porque esta-
ria livre para exercer plenamente uma profissão.

Não podemos negar que, para esses melhoramentos sociais, as escritoras


estão contribuindo enormemente, especialmente as aqui utilizadas como base
para as reflexões. Sobre Marina Colasanti, Carlos Magno Gomes (2019, p.5)
comenta:

A literatura de Marina Colasanti é marcada por um olhar femi-


nista que desloca valores patriarcais e verdades hegemônicas
acerca das relações matrimoniais. Seu universo familiar é um es-
paço de descentramento e de questionamento das identidades
femininas submissas.

Eurídice Figueiredo (2013) reservou em sua obra Mulheres ao espelho um


capítulo todo dedicado à Nélida Piñon. Nele, Figueiredo comenta sobre as per-
sonagens femininas da autora e como muitas delas apresentam características
próprias para o questionamento. Essas citações são importantes para que se

551
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

percebam os rumos dos estudos acerca das problemáticas que envolvem as mu-
lheres e a importância da literatura feminina para esses fins.

Concluímos, pois, que há grande importância da emancipação feminina nos


ambientes públicos e privados, fazendo um pouco nossas as palavras de Virginia
Woolf: “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio
[…]”. Nessa pequena citação, a escritora referia-se ao fazer ficcional, contudo é
nítido, especialmente hoje, que essa é uma necessidade primordial para promover
a liberdade da mulher e a definitiva subversão do patriarcado.

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553
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ENTRE O SOBRENATURAL E A
HISTERIA: O FANTÁSTICO E A
PRECEPTORA EM A VOLTA DO
PARAFUSO, DE HENRY JAMES1

Carline Eberhardt2
Mariese Ribas Stankiewicz3

RESUMO: Neste trabalho propomos um estudo a respeito da representação do


fantástico, da histeria e do estranho no conto de Henry James, A Volta do Parafuso,
publicado originalmente em 1898, que ganha forma com a presença da precepto-
ra, a qual aparenta estar em contato com o mundo sobrenatural dos espíritos, ao
mesmo tempo que, por outro lado, essa ideia é posta em dúvida pela construção
do enredo, permitindo uma análise psicanalítica dos fatos relatados pela perso-
nagem. Assim, buscamos discutir essa possível dualidade de análise do texto de
James, levando em consideração teóricos como Sigmund Freud e Joseph Breuer
(2016), em seus estudos sobre a histeria; Sigmund Freud (1996), em seu ensaio
“O Estranho”; Tzvetan Todorov (2004), em sua Introdução à Literatura Fantástica;
Fred Botting (1996), em Gothic; e Simone de Beauvoir (1970) e Michelle Perrot
(2007), com suas elaborações acerca do “ser mulher”. Sendo assim, concluímos
que o conto mantém uma dupla possibilidade de análise que se estende por todo
o texto, corroborando assim com fantástico, ao mesmo tempo em que corrobora

1 Trabalho derivado do Trabalho de Conclusão de Curso “The turn of the screw: as representações
do fantástico e da histeria na adaptação fílmica do conto de Henry James”.
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). carline2693@gmail.com
3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). m_wicz@yahoo.com.br

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

com a análise de uma possível histeria sofrida pela personagem. Neste contexto,
observamos que o papel feminino atribuído à preceptora, enquanto narradora, é
o de dúvida e de incerteza, uma vez que não podemos depositar plena confiança
em seu relato, tanto pela natureza fantástica do texto quanto pela histeria que
geralmente era caracterizada como patologia feminina.

PALAVRAS-CHAVE: Feminino; Fantástico; Histeria.

ABSTRACT: In this article we propose a study about the representation of the fantastic,
hysteria, and the strange in Henry James’s short story, ‘The turn of the screw’, originally
published in 1898, which takes shape with the presence of the governess, who appears
to be in contact with the supernatural world of spirits, at the same time that, on the
other hand, this idea is questioned by the construction of the plot, allowing a psycho-
analytical analysis of the facts reported by the character. Therefore, we seek to discuss
this possible duality of analysis of James’s text, taking into account theoreticians such
as Sigmund Freud and Joseph Breuer (2016), in their studies on hysteria; Sigmund
Freud (1996), in his essay “The ‘Uncanny’”; Tzevetan Todorov (2004), in Introdução à
Literatura Fantástica; Fred Botting (1996), in Gothic; ; and Simone de Beauvoir (1970)
and Michelle Perrot (2007), with their elaborations on “being a woman”. Thus, we con-
clude that the story maintains a double possibility of analysis that extends throughout
the text, so corroborating with fantastic, at the same time that it corroborates with the
analysis of a possible hysteria suffered by the character. In this context, we observe that
the female role attributed to the governess, as a narrator, is that of doubt and uncertain-
ty, since we cannot place full confidence in her report, because of the fantastic nature
of the text and because of the hysteria that was generally characterized as a female
pathology.

KEYWORDS: Feminine; Fantastic; Hysteria.

Introdução

O conto A Volta do Parafuso, de Henry James (1843-1916), publicado pela


primeira vez em 1898, evoca distintas possibilidades de análise; o conto pode ser
visto pelo viés fantástico ou psicanalítico. Sua publicação é marcada por um perío-
do em que retornam os textos góticos, então voltados a questões psicológicas, os
textos fantásticos e além desses, as primeiras grandes publicações a respeito da
psicologia. Marcelo Pen (2010, p. 24), na introdução ao livro A Volta do Parafuso,
cita que “mais do que um confronto com a moral vitoriana, James [...] parece ter

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

em mente as antigas narrativas românticas, de onde provém o horizonte contra


o qual configura a sua fantasia gótica”. A forma como o texto foi construído pelo
autor, permeado por um clima de incertezas sobre o que de fato acontece na nar-
rativa, em que há a oscilação entre a possibilidade do leitor interpretar o mesmo
como um produto de uma mente psicologicamente afetada pela histeria ou, ainda,
de uma mente que trava batalhas com questões sobrenaturais, como os espíritos
de antigos funcionários da casa, visando, assim, a uma análise a partir da perspec-
tiva fantástica. A psicanálise, conforme mencionado acima, obteve uma grande
atenção na época e inúmeras publicações nesta área, naturalmente, acabaram por
influenciar a literatura. Conforme Maria Cevasco e Valter Siqueira (1985, p. 69),
“James é um mestre da análise das sutilezas psicológicas e das motivações de seus
personagens. [...] A partir de James, o romance inglês está aparelhado, mais do
que nunca, para lidar com os conflitos interiores. ”

O enredo de A Volta do Parafuso inicia-se com um narrador que conta a his-


tória de uma preceptora que já no próximo capítulo assume a narração do conto,
em um processo de frame story. A história começa realmente, quando ela passa a
relatar como tudo teve início, ou seja, por meio de uma proposta de trabalho como
preceptora em Bly, quando assumiria a responsabilidade da educação e cuidados
de duas crianças: Miles e Flora. Após sua chegada a Bly, ela começa a ter visões de
um homem, Peter Quint, e posteriormente de uma mulher, a srta. Jessel, os quais
são sugeridos como sendo os antigos empregados, agora mortos, da casa. Dada
essa associação de identidade às visões, ela passa a observar com tensão as crian-
ças, as quais tenta proteger das influências malignas dos seres que vê. Contudo,
em certo ponto da narrativa, convence-se que as crianças têm consciência dos
fantasmas, e busca separá-los: envia Flora para longe com a sra. Grose; e Miles
fica em sua companhia. O conto se encerra com a possível e enigmática morte do
pequeno Miles, ao dizer o nome de Peter Quint.

Conforme aponta essa breve sinopse, percebe-se que o conto permite uma
análise baseada nas incertezas que provoca, ou seja, caracteriza-se como fantás-
tico. Também importante, a figura central, uma mulher, merece atenção e, dada
a época de publicação, associa-se sua figura à de mulher histérica. Assim sen-
do, há pouca credibilidade em sua narrativa. Nesse contexto, busca-se debater
o fantástico na análise do conto de James, levando-se em consideração teóricos
como Sigmund Freud e Joseph Breuer (2016), em seus estudos sobre a histeria;
Sigmund Freud (1996), em seu ensaio “O Estranho”; Tzvetan Todorov (2004), em
sua Introdução à Literatura Fantástica; Fred Botting (1996), em Gothic; e Simone de

556
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Beauvoir (1970) e Michelle Perrot (2007), com suas elaborações acerca do “ser
mulher”.

Análise dos elementos fantásticos do conto de Henry James

Em A Volta do Parafuso, a análise de teóricos se volta para as possibilidades:


uma história de fantasmas ou um caso de histeria. Sendo assim, de acordo com
Guilherme Gutman (2005, p. 84),

[...] o caráter fantástico da novela, tipo de interpretação que, a


nosso ver, é favorecida por três grupos de acontecimentos pre-
sentes na novela. Primeiramente, por discussões entre os per-
sonagens em torno da veracidade das vivências experimentadas
pela nova preceptora. Serão vivências ilusórias, meras fantasias
de uma jovem sugestionável ou, de fato, experiências oriundas do
além? Em seguida, pela tentativa de estabelecimento das causas,
ou razões, do aparecimento das visões. E, enfim, pela presença
de uma espécie de embate espiritual entre a força sobrenatural
que embala as aparições e a força de vontade dos personagens
terrenos.

Já se voltando para a psicologia, Edmund Wilson (apud GUTMAN, 2005, p.


86, grifos do autor) diz que: “[...] pela primeira vez sugeriu explicitamente que The
turn of the screw não é, na verdade, uma estória de fantasmas, mas uma estória de
loucura, o estudo de um caso de neurose4.” Estudiosos do conto basearam-se “[...]
na convicção de que haveria algum tipo de conflito interno na base das angús-
tias e, nesse caso, das pseudo-alucinações ou alucinações visuais experimentadas
pela protagonista” (WILSON apud GUTMAN, 2005, p. 86). Desse modo, percebe-
-se o embate entre duas ideias possíveis de análise que desconstroem qualquer
certeza.

Esse caráter de incerteza frente à história é o que caracteriza o fantástico


exposto por Todorov, em seu livro Introdução à Literatura Fantástica (2014). Assim
sendo, “[o] fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as
leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV,
2014, p. 31). É a preceptora que, quando colocada frente a uma situação que de-
safia as leis naturais e estipuladas no real, nesse caso as aparições dos antigos

4 Neste artigo será considerado apenas o tema da histeria.

557
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

empregados, entra em contato com o estranho, aquilo que é desconhecido e apa-


rentemente sobrenatural. Todorov argumenta que:

Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos,


sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento
que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo fami-
liar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções
possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto
de imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o
que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte
integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida
por leis desconhecidas para nós. (TODOROV, 2014, p. 30).

Roger Caillois (apud TODOROV, 2014, p. 32) diz que “[...] todo fantástico é
ruptura da ordem estabelecida, e irrupção do inadmissível no seio da inalterável
legalidade cotidiana.” Tratando-se do conto de James, narrado pela voz da precep-
tora, que se encontra em meio ao “real”, trabalhando em Bly, e entra em contato
com sobrenatural em seu cotidiano. Segundo Ana Camarani (2014, p. 55), fazendo
referência a Roger Caillois, “no fantástico [...] o sobrenatural aparece como uma
ruptura da coerência universal; o prodígio torna-se uma agressão interdita, amea-
çadora, que quebra a estabilidade de um mundo cujas leis eram, até então, tidas
como rigorosas e imutáveis.”

Essas leis baseadas no real são quebradas quando ocorre a aparição de


Peter Quint: “O que me fez ficar parada ali – e com um choque maior do que qual-
quer visão justificaria – foi a sensação que minha fantasia, num piscar de olhos,
tornara-se real. Ele de fato estava lá!” (JAMES, 2010, p. 55). Ao imaginar o patrão
visitando a casa, o que seria algo real e possível, ela observa um homem no alto de
uma torre, o que descobre mais tarde pela descrição que faz à sra. Grose, tratar-se
de Quint, um homem já morto.

– Peter Quint, o seu próprio criado, quando ele estava aqui [o


patrão]!
[...] – E o que aconteceu com ele? [...] Foi para onde?
[...] A expressão dela, com isso, tornou-se extraordinária. – Só
Deus sabe para onde! Ele morreu.
– Morreu? – Quase gritei.
[...] – Sim. O sr. Quint está morto. (JAMES, 2010, p. 68).

558
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Em vista disso, Todorov (2014, p. 31) observa que há um fenômeno estra-


nho que se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo natural e
sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico.”
Verifica-se que há duas possíveis interpretações: de uma mulher histérica ou da-
quela que entra em contato com o sobrenatural, essa dualidade se manterá até o
final da narrativa, o que de acordo com Todorov (2014), é a característica funda-
mental de uma narrativa fantástica.

O clima de terror, originado na incerteza, segundo Caillois (apud TODOROV,


2014, p. 41), é “[...] ‘pedra de toque do fantástico’, ‘a irredutível impressão de es-
tranheza’.” Em A Volta do Parafuso, tem-se uma atmosfera de mistério em torno das
aparições, o que leva o leitor a temer pelas crianças e pelos demais:

[...] – Eles sabem [as crianças], é por demais monstruoso! Eles sa-
bem, eles sabem!
[...] – A senhorita quer dizer consciência da presença dele?
[...] – Outra pessoa [srta. Jessel], dessa vez; mas uma figura do
mesmo horror e maldade inequívocos: uma mulher de preto,
pálida e medonha; e com que atitude, que expressão! Na outra
margem do lago.
[...] Ela ficou pálida. – Intenção?
– De se apoderar dela [Flora]. – A sra. Grose, seus olhos ainda
nos meus, teve um arrepio [...]. (JAMES, 2010, p. 77-80, grifos do
autor).

Neste trecho, é perceptível o sentimento de horror experimentado pelo


leitor, seja pelos fantasmas, pela preocupação em proteger as crianças e por fim
pela tomada de consciência de que as crianças sabem, segundo a narradora, das
aparições. Assim sendo, o leitor experimenta um sentimento de estranhamento.
Para Freud (1996, p. 266, grifos do autor), o

[...] estranho, tal como é descrito na literatura, em histórias e cria-


ções fictícias, merece na verdade uma exposição em separado.
Acima de tudo, é um ramo muito mais fértil do que o estranho
na vida real, pois contém a totalidade deste último e algo mais
além disso, algo que não pode ser encontrado na vida real. O con-
traste entre o que foi reprimido e o que foi superado não pode
ser transposto para o estranho em ficção sem modificações pro-
fundas; pois o reino da fantasia depende, para seu efeito, do fato

559
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de que o seu conteúdo não se submete ao teste de realidade. O


resultado algo paradoxal é que em primeiro lugar, muito daquilo
que não é estranho em ficção sê-lo-ia se acontecesse na vida real; e,
em segundo lugar, que existem muito mais meios de criar efeitos es-
tranhos na ficção, do que na vida real. O escritor imaginativo tem,
entre muitas outras, a liberdade de poder escolher o seu mundo
de representação, de modo que este possa ou coincidir com as
realidades que nos são familiares, ou afastar-se delas o quanto
quiser. Nós aceitamos as suas regras em qualquer dos casos.

Segundo o psicanalista, o escritor possui a liberdade de criar o mundo fic-


cional, escolher um cenário de “realidade poética”, no qual é possível, e sem criar
estranheza, a existência de seres como espíritos demoníacos ou fantasmas dos
mortos. Mas, se o escritor os coloca em nossa realidade, ele muda as leis que ope-
ram essa realidade e ocasiona sentimentos de estranheza. Por conseguinte, tudo
o que é estranho na vida real também é na história (FREUD, 1996).

Quanto ao gótico, segundo Botting (2005, p. 88), no “[...] final do século XIX,
as figuras góticas familiares [...] reapareceram em novas formas, com uma intensi-
dade diferente e investimentos ansiosos como objetos de terror e horror”5, época
próxima à de publicação do conto de James. Esses textos “[...] não são ligados a
uma ordem natural, realista, mas sim, sugerem possibilidades sobrenaturais, en-
volvendo o mistério, a mágica, o maravilhoso e a monstruosidade”6 (BOTTING,
2014, p. 2). Além disso, conforme aponta o autor, o gótico retorna diferente e é
representado por temas como a escuridão, o ambíguo, o irracional, muitas vezes
para retratar distúrbios de sanidade mental ou, até mesmo, “[...] crenças em fan-
tasmas ou demônios, as paixões incontroláveis, as emoções violentas ou, ainda, um
aprofundamento da fantasia para expressar perversões e obsessões”7 (BOTTING,
2014, p. 2). Nesse contexto, surgem também os textos e estudos a respeito da psi-
canálise, o que leva o leitor a depreender que o texto narrado pode representar
uma histeria, conforme visto acima.

5 “At the end of the nineteenth century familiar Gothic figures – the double and the vampire – re-
-emerged in new shapes, with a different intensity and anxious investment as objects of terror
and horror” (BOTTING, 2005, p. 88).
6 “Not tied to a natural order of things as defined by realism, gothic flights of imagination suggest
supernatural possibility, mystery, magic, wonder and monstrosity” (BOTTING, 2014, p. 2).
7 “[…] belief in ghosts and demons, displays of uncontrolled passion, violent emotion or flights of
fancy to portrayals of perversion and obsession” (BOTTING, 2014, p. 2).

560
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A histeria e o feminino

Trataremos da histeria enquanto um termo que tem sua origem com


“Hipócrates, médico renomado da Grécia Antiga (460-377 a.C.) entendia a histeria
como sendo uma doença orgânica de origem uterina e, portanto, especificamente
feminina que afetava todo o corpo por sufocações da matriz” (BELINTANI, 2003,
p. 57). Nesse viés, percebemos que a origem do termo se relaciona diretamente a
mulher e a “matriz”, ou seja, lugar de reprodução, no caso, o útero feminino.

Os estudos de Freud e Breuer a respeito da histeria, publicados pela pri-


meira vez entre 1893 e 1895, apontam para a dificuldade da histérica de relacio-
nar o evento causador com a doença, já que nem a mesma pode se lembrar do
trauma:

[...] investigamos, nas mais diferentes formas e sintomas da


histeria, o motivo, a ocorrência que suscitou pela primeira vez,
frequentemente, muitos anos atrás, o fenômeno em questão.
Na grande maioria dos casos não conseguimos determinar esse
ponto de partida pelo simples exame do doente, mesmo quando
é bastante minucioso, em parte porque muitas vezes se trata de
vivências cuja discussão é desagradável para os doentes, mas so-
bretudo porque eles realmente não se lembram, e muitas vezes
não fazem ideia da conexão causal entre o evento desencadeador
e o fenômeno patológico. [...] Com muita frequência são aconte-
cimentos da infância que produziram um fenômeno patológico
de maior ou menor gravidade, por todos os anos subsequentes.
(BREUER; FREUD, 2016, p. 19-20).

Segundo os autores, “[...] os mais diferentes sintomas – tidos como produ-


tos espontâneos, por assim dizer idiopáticos, da histeria – acham-se tão forço-
samente ligados ao trauma ocasionador [...]” (BREUER; FREUD, 2016, p. 20). Os
sintomas apontados são: distúrbios de visão, alucinações visuais recorrentes, ata-
ques histéricos, convulsões e outros. Em A Volta do Parafuso, a preceptora aparen-
ta sofrer possivelmente de alucinações visuais.À vista disso, Cargill (1963, p. 241),
referindo-se a Edmund Wilson, fala a respeito da jovem governanta:

Ela ainda é uma menina agitada e ansiosa de um vilarejo de


Hampshire, que em sua primeira entrevista se apaixona por seu
empregador, e depois tem pensamentos confusos sobre ele em
Bly, descobre sua primeira aparição, a figura de um homem em

561
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

uma torre. [...] Suspeitando das crianças como cúmplices deste


relacionamento [de Quint e da srta. Jessel], para ela é confirma-
da, em sua concepção, de que elas [as crianças] foram previa-
mente corrompidas por esses servos do mal que voltaram para
pegá-los. O jogo de proteção que ela desempenha é, no entanto,
de acordo com a análise de Wilson, um jogo em que ela transfere
seu próprio terror, e mais, o transfere para as crianças, frustra o
desejo do garoto de voltar à escola ou escrever para seu tio, e nu-
tre por ele uma afeição ardente e antinatural, e finalmente aliena
a empregada [sra. Grose], antes dela literalmente amedrontar
o jovem sob seus cuidados até a morte. [...] Wilson insiste que
ninguém, a não ser a governanta, vê os fantasmas. ‘Ela acredita
que as crianças os veem, mas nunca há qualquer prova que eles o
façam. A empregada [sra. Grose] insiste que ela não os vê; é apa-
rentemente a governanta que a assusta’.8

Pen aponta que “[...] Quint seria outro nome para o fantasma dos desejos
reprimidos da preceptora [...] [e] a pessoa a quem ela realmente deseja salvar da
influência indecente, demasiado livre, de Quint/patrão é o pequeno Miles, talvez
o verdadeiro objeto do interesse sexual/amoroso [...]” (PEN, 2010, p. 25-26). Dada
a origem do nome e também aos sujeitos de estudo, no caso de Freud e Breuer tra-
tam-se de mulheres, a histeria 9 é encarada como um mal comum as mulheres, “[...]
observamos que as questões que Freud coloca sobre a histeria, confundem-se
com as que ele coloca sobre a mulher. Seja porque a histeria fosse mais freqüente
[sic] entre as mulheres seja porque, [...] a mulher era um enigma para Freud [...]”
(SCOTTI, 2002, p. 333). Desse modo,

[...] o pai da psicanálise já destacava então que o traumático não


era a sedução em si, mas a recordação da cena. As histéricas
sofriam então de reminiscências. [...] As reminiscências de que

8 “She is still the fluttered, anxious girl out of a Hampshire vicar- age who in her first interview
becomes infatuated with her employer, and after confused thinking about him at Bly, discovers
her first apparition, the figure of a man on a tower. […] Suspecting the children as privy to this re-
lationship, she is confirmed in her notion that they have been previously corrupted by these evil
servants who have come back to get them. The game of protection which she plays is, however,
according to Wilson’s further analysis, one in which she transfers her own terror, and more, to
the children, thwarts the boy’s desire to re-enter school or to write tohis uncle, fixes upon him
an unnatural fervid affection, and finally alienates the housekeeper before she literally fright-
ens her young male charge to death. […] Wilson insists that nobody but the governess sees the
ghosts. ‘She believes that the children see them, but there is never any proof that they do. The
housekeeper insists that she does not see them; it is apparently the governess who frightens
her’.” (CARGILL, 1963, p. 241).
9 “[H]isteria [...] 1 HIST.MED doença nervosa que, supostamente, se originava no útero, caracteri-
zada por convulsões [...]” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1542, grifos dos autores).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

sofriam as histéricas, eram inconscientes, ou seja: as histéricas


sabiam, mas não sabiam que sabiam; ou elas se lembravam, mas
não sabiam disso ou não queriam saber nada disso. Não queriam
saber nada de suas lembranças da infância e, nem tampouco, de
suas fantasias não tão infantis assim, fantasias de amor em ge-
ral. Poderíamos dizer, então, que as histéricas sofriam de amor
também, mas de um amor recusado à consciência, um amor que,
embora consciente um dia, fora recalcado, reprimido. (SCOTTI,
2002, 333-334).

Por consequência, a narradora do conto toma para si a possibilidade de ser


uma mulher histérica, justamente por se tratar de um sujeito do sexo feminino,
sendo que o termo ainda hoje é usado com ressalvas ao se referir ao sexo masculi-
no. No conto, a narradora relaciona sua realidade a uma fantasia ou mesmo à lou-
cura, a fim de embasar sua narração e tentar torná-la crível, mostrando ao leitor
que tem ciência da impossibilidade daquilo: “[...] Em minha fantasia [...]” (JAMES,
2010, p. 54); “[...] como num encantador conto de fadas [...]” (JAMES, 2010, p. 55);
“Comecei a observá-las com uma expectativa tensa, uma ansiedade dissimulada
que, se tivesse continuado por muito tempo, teria se tornado uma espécie de lou-
cura” (JAMES, 2010, p. 74); “Do jeito que falo, bem sei, deve parecer que fiquei
louca; e é uma surpresa que não tenha ficado” (JAMES, 2010, p. 104); “[...] ela es-
tava lá, e eu estava justificada; ela estava lá, e eu não era nem cruel nem louca.”
(JAMES, 2010, p. 139). Se em seus textos Freud e Breuer apontam que as histé-
ricas vivem nessa realidade criada por suas mentes, verifica-se que a preceptora
encara tudo como uma verdade. As aparições de fato estão ali e são fantasmas.

Considerações finais

O primeiro fator que corrobora para a manutenção dessa atmosfera de in-


certeza e estranheza no conto é a própria narração da preceptora. O leitor fica
à mercê do que é dito pela personagem que relata o que se passa na história,
construindo-se assim a narrativa que transita de um relato de histeria ao relato
de quem realmente entra em contato com o mundo etéreo dos espíritos. Nesse
viés, cabe ao leitor o papel de analisar e optar por transitar entre o real ou o
sobrenatural.

Ademais, de acordo com Todorov (2014), o fantástico é a hesitação, a incer-


teza, experimentada pelo sujeito que só conhece as leis estipuladas no real face
a um acontecimento que desafia tais leis, levando-o a optar: as leis desse mundo

563
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

mudaram, e ele é regido por novas regras; ou as leis continuam as mesmas, assim,
trata-se de uma ilusão de seus sentidos, um produto de sua mente.

Quanto ao caráter psicológico da narrativa, esta permite uma interpreta-


ção de uma história de histeria sofrida pela preceptora. Assim, conforme aponta-
do por Freud e Breuer (2016), os sintomas incluíram distúrbios de visão, alucina-
ções visuais recorrentes, ataques histéricos, entre outros. Em A Volta do Parafuso,
podemos supor, mas não provar, que a preceptora sofre de alucinações visuais
recorrentes de um homem e uma mulher, que são associadas aos antigos empre-
gados da casa. Nesse contexto, as crianças seriam colocadas como cúmplices dos
supostos fantasmas. Contudo, ninguém, a não ser a governanta, vê os fantasmas,
conforme aponta a própria narrativa. Nesse sentido, Pen (2010) diz que as figuras
dos fantasmas projetadas pela mente da preceptora, são uma resposta aos dese-
jos reprimidos desta.

Tendo consciência disto, observa-se que não é dada ao leitor evidência


alguma de algum trauma que possa ter originado a histeria, levando, posterior-
mente, às visões da preceptora. Porém, conforme apontado por Freud e Breuer
(2016), nem a doente sabe que sabe do trauma, pois o reprime, sofrendo apenas
de reminiscências. Ou seja, nada é dito sobre como a histeria se origina, pois, a
própria preceptora não teria consciência dessa situação. Todavia, ao mesmo tem-
po, são colocadas evidências no texto que possibilitam essa interpretação.

A Volta do Parafuso traz a dualidade da interpretação, característica do fan-


tástico, dada pela incerteza dos fatos colocados. Contudo, chama a atenção pela
possibilidade de uma análise de uma preceptora histérica, que vê fantasmas, alu-
cinações, uma vez que o termo “histeria” se encontra intimamente ligado ao sujei-
to mulher. Nesse sentido, coloca-se que se fosse um narrador masculino, talvez
houvesse uma interpretação diferente, distinta da histeria. Porém, desacredita-
-se a narradora, ao passo que a história se constrói como um conto caracteristica-
mente dúbio, fantástico.

Referências

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2003.
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564
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Tradução: Maria Clara Correa
Castello. 4. ed.,2.reimp. São Paulo: Perspectiva, 2014.

565
TIA NASTÁCIA: REPRESENTAÇÃO
DA PERSONAGEM NAS OBRAS DE
MONTEIRO LOBATO

Gabriele Macagnan dos Santos1


Marcia Oberderfer Consoli2

RESUMO: Tia Nastácia, personagem de Monteiro Lobato, é comumente lembra-


da como a cozinheira rica em conhecimentos culturais. Ela é apresentada como
uma verdadeira contadora de histórias e com grande representatividade dentro
da literatura infantojuvenil. Com tia Nastácia, os jovens leitores podem desenvol-
ver profundas reflexões. São de grande relevância os estudos sobre essa persona-
gem feminina negra de Monteiro Lobato que traz um arcabouço de informações
sobre o folclore e os saberes populares brasileiros, desde receitas, crendices, len-
das e até rezas. Tia Nastácia tem um papel importante e relevante, ela é a maior
representante de uma classe, o povo, e, o uso das tecnologias e modernidades não
fazem parte de seu cotidiano, ela utiliza da tradição oral no ato de contar histó-
rias. Este estudo analisa como Tia Nastácia é apresentada nas obras de Monteiro
Lobato e o que ela representa. Com objetivo de trazer reflexões além do estereó-
tipo de mulher negra que vive na zona rural e serve aos demais. A partir de pesqui-
sas bibliográficas (VELOSO, 2013; OLIVEIRA, 2017), pode-se concluir que essa
personagem é fundamental nas obras de Monteiro Lobato e, também, na vida dos
leitores que tiverem contato com Tia Nastácia, já que ela representa parte da po-
pulação e cultura afro-brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: Tia Nastácia; Representatividade; Literatura, Monteiro
Lobato.
1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). gabrielemacagnan@alunos.utfpr.edu.br
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). oberderfer@utfpr.edu.br

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ABSTRACT: Aunt Nastácia, Monteiro Lobato’s character, is commonly remembered as


the cook with a very rich cultural knowledge. She is presented as a true storyteller and
with great representation within children’s literature. With Aunt Nastácia, young rea-
ders can develop great reflections. Studies on this black female character of Monteiro
Lobato that brings a framework of information about folklore and Brazilian popular
knowledge, from recipes, beliefs, legends and even prayers are of great relevance. Aunt
Nastácia has an important and great role, she is the greatest representative of a class,
the people, and as the use of technologies and modernities are not part of her daily life,
she uses oral tradition in the act of storytelling. This study analyzes how Aunt Nastácia
is presented in Monteiro Lobato’s works and what she represents, in order to bring re-
flections beyond the stereotype of black women who live in the rural area and serve
others. Through bibliographic research (VELOSO, 2013; OLIVEIRA, 2017), it can be
concluded that this character is fundamental in the works of Monteiro Lobato, and,
also, in the lives of readers who have contact with Aunt Nastácia, since she represents
part of the Afro-Brazilian population and culture.

KEYWORDS: Tia Nastácia; representativeness; Literature; Monteiro Lobato.

Introdução

A literatura infantojuvenil no Brasil consolidou-se com os textos de


Monteiro Lobato. Seus livros sempre foram de grande importância e ainda me-
recem destaque no contexto atual, pois o autor foi responsável por um legado
que envolve, principalmente, as histórias do Sítio do Picapau Amarelo e suas
personagens.

Uma das personagens que merece destaque é tia Nastácia que, juntamente
com tio Barnabé, são os únicos negros que vivem na propriedade de Dona Benta.
Com esses dois personagens negros, os jovens leitores têm acesso aos conheci-
mentos da natureza, folclore e superstições, principalmente com tia Nastácia, que
é conhecida por seus bolinhos de chuva.

Ela realmente é apresentada como uma cozinheira de mão cheia, conhece-


dora de diversas receitas, pois tudo o que cozinha fica delicioso. Uma característi-
ca importante da personagem, e que merece destaque, refere-se aos seus conhe-
cimentos culturais, pois ela é uma grande contadora de histórias, com um arsenal
de contos do folclore brasileiro, além de sua espiritualidade, herança da cultura
africana que a envolve. É válido salientar sobre a confecção de bonecas de pano,

567
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

já que foi ela quem fez a Emília. Esse ato tem cunho artesanal e cultural, são cha-
madas de bonecas abayomi, que são também amuletos de proteção. E, tia Nastácia
criou Emília para Narizinho, sem saber que a boneca ganharia vida.

Nessa linha, o sítio de Dona Benta é um lugar que mistura a realidade com
a fantasia. Monteiro coloca crianças como protagonistas utilizando-se de um vo-
cabulário mais simples, inovando na escrita da época. Ao apresentar tia Nastácia,
é impossível deixar de lado questões como a arte, história, literatura e sociedade,
pois ela consegue fazer laços entre estes aspectos, e, apesar da possibilidade de
discussão acerca das questões raciais, que envolvem essa personagem, este es-
tudo busca mostrar em alguns trechos dos livros de Monteiro Lobato, momentos
dessa personagem expondo seus conhecimentos, para além da culinária, buscan-
do, portanto, trazer novos olhares sobre a personagem tia Nastácia.

Tia Nastácia: representação da personagem nas obras de


Monteiro Lobato

O livro Reinações de Narizinho é o que dá impulso à série do Sítio do Pica-Pau


Amarelo. Em suas primeiras páginas são apresentadas, de forma breve, as perso-
nagens: Dona Benta, uma avó feliz que fica na varanda costurando; Lúcia, a encan-
tadora menina do nariz arrebitado; Emília, a boneca de pano desajeitada, e, por
fim, tia Nastácia “negra de estimação que carregou Lúcia em pequena” (LOBATO,
1993, p. 02).

Com o termo “negra de estimação” já se percebe a posição dessa personagem


dentro do sítio, que aparenta ser domesticada, como se fosse um animal. Fato que
dialoga com o que diz Oliveira (2017, grifos do autor, p. 32), “A ideia de ‘negra
de estimação’ vem ao encontro da ideologia do negro acomodado que aceitou a
escravidão de forma passiva”.

Pode-se confirmar a ideia apresentada por Oliveira (2017) quando são


apresentados os cuidados que tia Nastácia prestou para Lúcia quando pequena.
Lobato não deixa especificado se realmente foi uma ama de leite, mas, certamen-
te o autor fez uma conexão histórica com as mulheres escravas que cuidavam das
crianças nas grandes casas.

Após apresentar Emília, é também mostrado o ribeirão que fica nos fundos
do pomar, um dos encantos de Lúcia: “Suas águas, muito apressadinhas e mexeri-
queiras, correm por entre pedras negras de limo, que Lúcia chama as ‘tias Nastácias
do rio’ ” (LOBATO, 1993, p. 2). Ou seja, Monteiro Lobato parece mostrar que a cor

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

da pele de tia Nastácia denota a sua posição, ela é inferior aos outros, como diz no
trecho, tia Nastácia está no fundo do ribeirão, abaixo das outras personagens, e
estas podem vê-la de cima.

Como abordado anteriormente, não há como falar sobre tia Nastácia sem
trazer as questões sociais e históricas que a envolvem, por exemplo o racismo vi-
vido pela personagem, como se lê em Oliveira (2017, p. 32): “percebemos que a
construção da personagem tia Nastácia se dá no âmbito de sujeito passivo criado
em estimação como um animal e, dessa forma, a construção racista em torno da
personagem existe”.

Ainda em Reinações de Narizinho, no momento em que Emília começa a falar


há algumas questões que merecem um olhar de reflexão.

Tamanho susto levou dona Benta, que por um triz não caiu de sua
cadeirinha de pernas serradas. De olhos arregaladíssimos, gritou
para a cozinha:
— Corra, Nastácia! Venha ver este fenômeno...
A negra apareceu na sala, enxugando as mãos no avental.
— Que é, sinhá? — perguntou.
— A boneca de Narizinho está falando!... A boa negra deu uma
risada gostosa, com a beiçaria inteira.
— Impossível, sinhá! Isso é coisa que nunca se viu. Narizinho está
mangando com mecê.
— Mangando o seu nariz! — gritou Emília furiosa. — Falo, sim, e
hei de falar. Eu não falava porque era muda, mas o doutor Cara de
Coruja me deu uma bolinha de barriga de sapo e eu engoli e fiquei
falando e hei de falar a vida inteira, sabe?
A negra abriu a maior boca do mundo.
— E fala mesmo, sinhá!... — exclamou no auge do assombro.
— Fala que nem uma gente! Credo! O mundo está perdido...
E encostou-se à parede para não cair. (LOBATO, 1993, p. 19).

Nesse momento, vê-se que tia Nastácia não estava junto dos demais per-
sonagens, ela é chamada para ver a boneca falando pois, até então, estava na co-
zinha, lugar que pertence a ela na narrativa. O autor novamente fez descrição de
algumas características da personagem, anteriormente foi abordado sobre a cor
da pele, agora, percebe-se o detalhamento da sua vestimenta, “enxugando as mãos

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

no avental”, e, também, indicou uma característica física, “a beiçaria inteira”, “abriu


a maior boca do mundo”.

Outro aspecto importante a se pensar é sobre o modo como tia Nastácia


se dirige à dona Benta, ela se utiliza do termo “sinhá”, que era a forma com que
os escravos se referiam aos seus patrões. Novamente, Monteiro Lobato lembra o
leitor da ascendência da personagem.

Em relação ao vocabulário da personagem, em suas falas, em livros como


Reinações de Narizinho e Histórias de Tia Nastácia, percebe-se que a personagem
se utiliza de termos coloquiais. Ao final desse trecho, Tia Nastácia diz a palavra
“Credo!” e, ao leitor de “Monteiro Lobato apenas para fruição pode crer inclusive
que sua fala é única e homogênea: ‘Credo!’. Observa-se que, quando a profere, Tia
Nastácia o faz sem conhecer a etimologia da palavra, reproduzindo o vocábulo
sem conhecer seu valor histórico” (VELOSO, 2013, grifos do autor, p. 93). Ou seja,
vê-se a posição intelectual da personagem, que é diferente de personagens como
dona Benta e Visconde (um sabugo de milho muito inteligente), tia Nastácia não
possui conhecimento científico sobre a origem das palavras. Em História do Mundo
para Crianças (LOBATO, 1957, p. 139), um dos personagens também faz um co-
mentário sobre tia Nastácia, frequentemente, pronunciar esta palavra:

A pobre negra vivia dizendo: “Credo! Credo!” sem saber que usa-
va essa exclamação por causa dum imperador romano chamado
Constantino que havia reunido os principais chefes cristãos na
cidade de Nicéia no ano 325! (LOBATO, 1957, p. 139).

Tia Nastácia pode até não ter conhecimento científico, mas é ela quem
representa muitos brasileiros com seu conhecimento popular. Ela é boa com as
mãos, não somente para cozinhar, mas também para costurar, como fez com a bo-
neca de pano, Emília.

Dona Benta voltou-se para tia Nastácia.


— Esta Emília diz tanta asneira que é quase impossível conversar
com ela. Chega a atrapalhar a gente.
— É porque é de pano, sinhá — explicou a preta — e dum paninho
muito ordinário. Se eu imaginasse que ela ia aprender a falar, eu
tinha feito ela de seda, ou pelo menos dum retalho daquele seu
vestido de ir à missa.

570
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Dona Benta olhou para tia Nastácia dum certo modo, como que
achando aquela explicação muito parecida com as da Emília.
(LOBATO, 1993, p. 21).

De acordo com Oliveira (2017, p. 37), “a habilidade manual de Tia Nastácia


não se dá somente na arte de cozinhar, a negra velha que habita o Sítio do Picapau
Amarelo também costura e dessa habilidade, nasceu Emília, a boneca tagarela e
respondona”. Criou Emília sem saber que se tornaria “gente”, a boneca foi feita de
retalho, da barra de uma saia de tia Nastácia. Outro aspecto, mostra a diferença
entre as roupas dela e as de dona Benta, enquanto uma veste “dum paninho mui-
to ordinário” a outra tem um “vestido de ir à missa”. Tia Nastácia faz, fala e veste
simplicidade.

Nessa perspectiva, é interessante observar que, em Reinações de Narizinho


há um momento em que Emília acaba se machucando e é levada para o Doutor
Caramujo, como pode-se verificar em Lobato (1993, p. 41-42):

— Esta doença — explicou o grande médico — só pode sarar com


um regime de superalimentação local.
— Alimentação macelar, eu sei — disse a menina rindo-se da ciên-
cia do doutor. — Tia Nastácia sabe aplicar esse remédio muito
bem.
Em dois minutos, com um bocado de macela e uma agulha com
linha ela cura Emília para o resto da vida.
— Tia Nastácia! — exclamou o médico escandalizado. – Com cer-
teza é alguma curandeira vulgar! Macela! Alguma mezinha vul-
gar também! Oh, santa ignorância! Admira-me ver uma princesa
tão ilustre desprezar assim a ciência de um verdadeiro discípulo
de Hipócrates e entregar a condessa aos cuidados duma reles
curandeira!...
— Reles curandeira? — exclamou a menina indignada. – Chama
então Nastácia de reles curandeira? Se tem algum amor à casca,
retire-se, senhor cascudo, antes que eu faça o que fiz para a tal
dona Carochinha. Reles curandeira! Já viu Emília, um desaforo
maior?

Nesse trecho, percebe-se como Narizinho defende Tia Nastácia do dou-


tor. Ele fica indignado com a menina, por ser tão inteligente e preferir confiar na
curandeira do que na ciência. Pode-se identificar a valorização do conhecimento
simples e natural de tia Nastácia, apesar de Emília apenas ter rasgado a perna,

571
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Narizinho defende a personagem falando de sua boa habilidade com as mãos, ca-
pazes de rapidamente consertar a boneca com “um bocado de macela e uma agulha
com linha”.

Ao mencionar a planta medicinal “macela”, pode-se fazer uma conexão com


o conhecimento do que vem da natureza e do conhecimento popular, ou seja, das
plantas, como a macela. Diferente do que usaria o doutor Caramujo, ela com uma
planta poderia curar a boneca.

Em Monteiro Lobato, tia Nastácia e família: perspectivas discursivas da função


autor, Raimundo (2019, p. 13) afirma sobre a personagem:

Nesta nova abordagem das leituras, Nastácia não era mais aque-
la velha cozinheira, tampouco era somente um pretexto para os
ataques racistas do autor, como apontam as pesquisas contem-
porâneas. Nastácia agora ocupava a surpreendente função de
criadora/autora dentro da obra de Lobato. Assim como ela fazia
na cozinha, transformando farinhas, peixes, carnes, milho, açúcar
e tantos outros ingredientes em pratos surpreendentes e sabo-
rosos, que chamavam a atenção de todos que tinham o privilégio
de provar, ela também nos serve com narrativas do folclore po-
pular e, a partir de retalhos de sua saia velha e de um sabugo de
milho, ela nos presenteia com os dois grandes personagens que
marcam a fantasia e a imaginação das histórias do Sítio e da lite-
ratura brasileira: Emília e o Visconde de Sabugosa.

Tia Nastácia traz o folclore e o artesanato nas narrativas sobre o sítio,


Emília é fruto da cultura popular, já que o ato de fazer bonecas de pano faz parte
da cultura africana. Nas descrições sobre Emília, não foi especificado que ela ha-
via sido costurada, supõe-se que ela tenha sido feita como as bonecas abayomi,
como relata Vieira (2015 apud OLIVEIRA, 2017, p. 12):

Para acalentar seus filhos durante as terríveis viagens a bordo


dos tumbeiros – navio de pequeno porte que realizava o trans-
porte de escravos entre África e Brasil – as mães africanas ras-
gavam retalhos de suas saias e a partir deles criavam pequenas
bonecas, feitas de tranças ou nós, que serviam como amuleto de
proteção. As bonecas, símbolo de resistência, ficaram conheci-
das como Abayomi, termo que significa ‘Encontro precioso’, em
Iorubá, uma das maiores etnias do continente africano cuja po-
pulação habita parte da Nigéria, Benin, Togo e Costa do Marfim.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Essas bonecas são um grande elemento da cultura africana, e essas mulhe-


res com a confecção desses talismãs, tentavam trazer calmaria para as crianças
durante as longas viagens de navio. E, como tia Nastácia cuidou de Lúcia desde pe-
quena, certamente, logo criou laços com a menina, por isso fez Emília, foi um gesto
de proteção e apreço por Narizinho, como reflete Oliveira (2017, p. 13), sobre o
papel da boneca como amuleto, “o medo que as mulheres sentiam e as fazia crer
que seriam devoradas pelos traficantes bem como suas crenças em espíritos do
mal, o boneco como amuleto serviria de proteção aos seus filhos, representando
todo cuidado e carinho de uma mãe pela sua prole”. Carinho este, que há entre Tia
Nastácia e Narizinho.

Nesse sentido, “é interessante para o historiador observar nesta persona-


gem de poucas falas e muitos resmungos a representação de um universo, deno-
minada de popular” (VELOSO, 2013, p. 94). Refletindo sobre esta afirmação e so-
bre a cultura popular que envolve tia Nastácia, é necessário ter conhecimento de
quando Pedrinho, no início de Histórias de tia Nastácia, já deixa explícito ao leitor
sobre a sabedoria da personagem:

— Emilinha do coração — disse ele — faça-me o maravilhoso favor


de ir perguntar à vovó que coisa significa a palavra folclore, sim,
tetéia?
Emília foi e voltou com a resposta.
— Dona Benta disse que folk quer dizer gente, povo; e lore quer
dizer sabedoria, ciência. Folclore são as coisas que o povo sabe
por boca, de um contar para o outro, de pais a filhos — os contos,
as histórias, as anedotas, as superstições, as bobagens, a sabedo-
ria popular, etc. e tal. Por que pergunta isso, Pedrinho?
O menino calou-se. Estava pensativo, com os olhos lá longe.
Depois disse:
— Uma idéia que eu tive. Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo
sabe e vai contando, de um para outro, ela deve saber. Estou com
o plano de espremer tia Nastácia para tirar o leite do folclore que
há nela. (LOBATO, 2002, p. 7).

Nesse fragmento, percebe-se como Pedrinho vê a personagem, tia Nastácia


não escreveu as histórias, mas as transmitia oralmente, e, em Histórias de tia
Nastácia, após a primeira história, já se constata a criticidade das crianças em re-
lação ao que ela contou, como destaca Silva (2014, p. 5), sobre o posicionamento

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

das crianças após cada narrativa, elas “criticam os pontos fracos da história con-
tada, e exaltam, quando julgam haver, seus pontos fortes. Dizem o que acharam da
estrutura, do arranjo dos acontecimentos, da originalidade da história, de como se
encerra a narrativa”.

Por fim, essa personagem é uma das maiores representantes de uma classe
dentro da literatura infantojuvenil no Brasil. Ela é descendente do povo subme-
tido à escravidão, desse modo, sua sabedoria vem das práticas do cotidiano, seu
arcabouço de histórias foi passado oralmente, e, é o mesmo que ela faz com as
crianças do sítio, como a própria fala da personagem deixa claro: “Mas isto não é
para entender, Emília — respondeu a negra. — É da história. Foi assim que minha
mãe Tiaga me contou o caso da princesa ladrona, que eu passo para diante do jeito
que recebi” (LOBATO, 2002, p. 25).

Considerações finais

A cultura de Tia Nastácia é a popular, é a voz dos costumes e saberes po-


pulares. É personagem fundamental nas obras de Monteiro Lobato, e, também,
na vida dos leitores que tiverem contato com ela, já que representa parte da po-
pulação e cultura afro-brasileira. Com ela e, também, com os outros personagens,
Monteiro Lobato marcou e ainda marca gerações com suas histórias.

Com seus livros infantis, Lobato trouxe novidades para esse meio. Vê-se
duas mulheres diferentes, cada uma com sua especificidade, mas juntas adminis-
trando um sítio e cuidando das crianças, apesar de, claramente, durante as histó-
rias, mostrar as diferenças que há entre tia Nastácia e dona Benta, como também,
com as demais personagens. O autor escreveu as histórias, deixando claro o olhar
dos demais sobre tia Nastácia, ela é colocada como a representante do povo, mas
do povo que não teve acesso à escola, desse modo, sendo “menos culta” que o
restante dos moradores do sítio.

A negra é lembrada principalmente por seus famosos bolinhos de chuva, e


quase sempre está envolvida com seus afazeres na cozinha, é uma personagem
muito querida pelos integrantes do sítio e pelos leitores. Ela possui conhecimen-
tos que, muitas vezes, não são valorizados, tanto dentro dos livros quanto na reali-
dade atual. Tia Nastácia é a personagem que representa os que dominam a arte de
cozinhar, do artesanato, da espiritualidade, do misticismo e da medicina popular.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Como contadora de histórias, é, por vezes, criticada pelas crianças do sítio,


e, por meio do posicionamento dessas personagens, fica aparente como a colo-
cam e a olham com inferioridade, principalmente a boneca Emília, que é firme em
suas colocações.

A partir disso, por fim, o importante é que os leitores percebam que esse
saber popular não deixa de ser uma maneira de conhecimento, pois os saberes de
Tia Nastácia não estão dissociados uns dos outros, fazendo com que ela desem-
penhe um importante papel de representatividade dentro dos livros de Monteiro
Lobato.

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575
A MULHER PRETA E A CULTURA
ELITIZADA NO CONTO “ROSE
DUSREIS”, DE CONCEIÇÃO EVARISTO1

Isabella Dias2
Marcos Hidemi de Lima3

RESUMO: Esta pesquisa tem por objetivo analisar o conto “Rose Dusreis”, per-
tencente à obra Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo(2016).
Nesse conto, acompanhamos a trajetória da protagonista, que durante sua vida
passa por diversos tipos de preconceitos raciais e sociais, além da opressão pa-
triarcal. Devido a sua condição de mulher, preta e periférica, Dusreis é, desde sua
infância, desmotivada pela sociedade e por sua família a seguir o seu sonho de se
tornar uma bailarina. Essa desmotivação deve-se ao fato de que a educação e os
estudos das artes fazem parte do papel da mulher branca e burguesa, como afirma
Affonso Romano de Sant’Anna (1984) em Canibalismo amoroso. Apesar dos obstá-
culos, a personagem não aceita o lugar marginalizado imposto a ela pela socieda-
de e busca sair do que Roberto Reis(1987), em A permanência do círculo, chama de
“nebulosa”, local onde devem permanecer os dominados, os negros, as mulheres e
os pobres, local distante do “núcleo”, que é onde se concentra o senhor, o branco,
o patriarca, e o poder. Em meio a todos os empecilhos que são enfrentados por
uma mulher pobre, há a somatória desses com os preconceitos raciais que todo

1 Projeto com bolsa de pesquisa pelo Programa Institucional de Iniciação Científica, pela
Universidade Tecnológica Federal do Paraná – Campus Pato Branco.
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). belladias.id@gmail.com
3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). marcoshidemidelima@gmail.com

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

negro vivencia, os quais, na maioria das vezes, impedem a concretização dos seus
sonhos e objetivos de vida.

PALAVRAS-CHAVE: Mulher preta; Mulher branca; Patriarcalismo.

ABSTRACT: This research aims to analyze the short story “Rose Dusreis”, from the book
Insubmissas lágrimas de mulheres wrote by Conceição Evaristo (2016). In this short
story, we can follow the protagonist journey who, during her life, goes through different
types of racial and social prejudices, and also patriarchal oppression. Due to her condi-
tion as black and peripheral woman, Dusreis (the name of the main character) has been
demotivated since her childhood by society and her family in the follow of her dream
which is becoming a ballet dancer. This demotivation comes from the idea that edu-
cation and art studies are part of white and bourgeois women role as Affonso Romano
de Sant’Anna (1984) affirms in Canibalismo amoroso book. Despite the obstacles, the
mentioned character does not accept the marginalized place imposed on her by society
and seeks to get out of what Roberto Reis (1987), in the book A Permanência do Círculo,
calls “nebula”. A place where the oppressed black women in general and poor people
are; a place far from the “nucleus”. This other place is where the lord, the white man, the
patriarch and power are concentrated. Among all these obstacles faced by poor women,
there are also the racial prejudices that black people experience, which most of the time,
stop them from the realization of their dreams and life goals.

KEYWORDS: Black woman; White woman; Patriarchalism.

Introdução

Este artigo tem por objetivo a análise do conto “Rose Dusreis”, pertencente
à obra Insubmissas lágrimas de mulheres (EVARISTO, 2011). Esse livro compila uma
série de contos de mulheres diferentes, baseados em relatos recolhidos pela au-
tora, que viajou por diversas cidades brasileiras buscando histórias de mulheres,
todas pretas. “Rose Dusreis”, o décimo primeiro dos treze contos da obra, relata a
história de uma mulher negra, nascida na periferia, que tinha o sonho de se tornar
uma dançarina profissional. Durante o conto são expostas diversas opressões so-
fridas pela protagonista, dentre elas o preconceito racial, patriarcal e social.

Nesse livro, Conceição Evaristo quebra dois paradigmas referentes aos


nomes femininos. As personagens femininas brancas e burguesas por muito tem-
po foram descritas apenas com o primeiro nome e, na maioria das vezes, refe-
renciadas como uma parte externa de seu pai ou marido, retirando muito de sua

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

identidade própria. As personagens femininas negras só eram descritas por seu


nome, que diversas vezes era recebido quando entregues aos homens da casa-
-grande e, a partir disso, era apenas por ele que eram chamadas. Nesse livro, todos
os contos recebem o nome e sobrenome das mulheres que relataram a história, e
todas as mulheres eram negras.

Insubmissas lágrimas de mulheres é um dos livros de Maria da Conceição


Evaristo de Brito, conhecida nos meios literários como Conceição Evaristo. Além
deste volume de contos, ela publicou outras obras, que abrangem tanto prosa
quanto poesia, sendo as principais Ponciá Vicêncio (2003), Becos da memória (2006),
Poemas da recordação e outros movimentos (2008), Olhos d’água (2014) e Históriasde
leves enganos e presenças (2016). Aescritora é natural de Belo Horizonte, Minas
Gerais. É mestre em Literatura Brasileira pela PUC do Rio de Janeiro e doutora em
Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Diferentemente
de muitos escritores, Conceição Evaristo iniciou a sua carreira tardiamente. Suas
primeiras publicações saíram na série Cadernos Negros pelos idos da década de
1990, lançando seu primeiro livro em 2003.

Racismo e seu reflexo cultural

No conto ora analisado, o próprio nome da protagonista, Rose Dusreis, car-


rega em si uma história de violência. “Dusreis” deriva do sobrenome “dos Reis”,
que foi registrado diferente a fim de evitar o vínculo do bisavô de Rose Dusreis, o
filho bastardo, e seus futuros descendentes com a família abastada. Em determi-
nado momento do conto, após o falecimento do pai da protagonista, ela e as irmãs
precisam ser divididas em trabalhos para que possam auxiliar a mãe com a renda
familiar. Nessa divisão, a mãe de Dusreis vai ao centro da cidade levando Nininha,
a irmã caçula de apenas três anos, junto com ela, para trabalhar na casa de paren-
tes distantes de sua família, conforme o excerto abaixo:

Mamãe, enquanto isso, com a menor de três anos, todos os dias


madrugava e ganhava a cidade, onde trabalhava na casa da famí-
lia Fontes dos Reis Menezes, os parentes ricos e longínquos de
meu pai. Nó familiar inaugurado no tempo em que os homens da
casa-grande eram donos dos corpos das mulheres, dos homens e
das crianças da senzala. Meu bisavô paterno era filho do Coronel
Fontes dos Reis Menezes com Filomena, a escrava de dentro de
casa, a mãe preta dos filhos dele. (EVARISTO, 2011, p. 112).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Nota-se a ênfase da autora no trecho “no tempo em que os homens da ca-


sa-grande eram donos dos corpos das mulheres, dos homens e das crianças da
senzala”, onde há uma similaridade com a obra Casa-grande & senzala em que o
autor, Gilberto Freyre(2013, p. 38), afirma: “A força concentrou-se nas mãos dos
senhores rurais. Donos das terras. Donos dos homens. Donos das mulheres. Suas
casas representam esse imenso poderio feudal.” Ambos os autores demonstram,
nessas citações, o poder absoluto que o homem branco e rico tem sobre a mulher
negra.

Mesmo sendo negra e periférica, Rose Dusreis teve sua primeira experiên-
cia com a dança na infância, quando tinha oito anos de idade e estudava em uma
escola pública na periferia da cidade. Ao fim das aulas das tardes, a professora de
música da escola, Atília Bessa, lecionava balé para uma turma seleta de meninas,
que pagavam por essas aulas extras. De vez em quando, a professora abria os en-
saios de balé para que as meninas da escola pudessem assistir.

Após assistir dois desses ensaios, Dusreis cria coragem para perguntar à
professora se poderia ingressar na turma, mas explicando que não dispunha de
dinheiro para pagar as aulas particulares, sugerindo que Atília aceitasse a entrada
dela na turma e, em troca, as roupas da professora seriam lavadas pela mãe, que
complementava a renda familiar lavando roupas de famílias abastadas.

[...] me aventurei a pedir-lhe para também fazer parte do grupo


de balé, mas disse-lhe que minha mãe não poderia pagar as au-
las, entretanto poderia lavar as roupas dela de graça. E, orgulho-
samente, afirmei a grandeza profissional de minha mãe, que eu
amava e admirava tanto. Anos depois, a cada dificuldade enfren-
tada para me profissionalizar, eu me relembrava da resposta que
me foi dada naquele momento. Ternamente, Atília Bessa pousou
a mão em minha cabeça, e disse-me que meu tipo físico não era
propício para o balé. (EVARISTO, 2011, p. 109).

Essa foi a primeira porta cultural fechada na vida de Rose Dusreis, que pre-
cisou amargamente vivenciar esse preconceito e que, apesar de ainda não o com-
preender, lhe havia sido tão precocemente exposto.

Ainda durante sua infância, haveria um recital dos alunos de sua escola,
com diversas apresentações culturais, como teatro, canto e dança. Dusreis foi
convidada por uma das professoras organizadoras para assumir o papel de uma
bonequinha preta bailarina em uma das peças de dança. Desde que recebeu o

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

convite, Dusreis se sentiu muito representada; não iria apenas assumir um papel,
ela se via na bonequinha, ela era a bonequinha preta que amava balé.

Em meio a tudo, só uma atividade me interessava: a de dança. Eu


queria dançar, eu queria dançar... Uma das professoras organiza-
doras da festa final me chamou e me perguntou se eu gostaria de
encarnar o papel de uma bonequinha preta que cantava e dan-
çava. Dançando, representaria uma personagem de uma história
infantil, muito conhecida na época. Feliz, já naquele momento,
encarnei o meu papel. Eu era eu mesma, a bonequinha preta.
(EVARISTO, 2011, p. 110).

Percebe-se nesse excerto, a importância da representatividade, em espe-


cial para as crianças. Ter alguém, seja uma pessoa real ou uma personagem, que
expresse a identidade de um grupo de pessoas que não é usualmente represen-
tado em espaços públicos, ou seja, que expresse a identidade de uma minoria
social, é de extrema importância para os membros pertencentes a essa minoria.
Identificar-se com uma personagem, assim como a protagonista do conto afirma
“eu era eu mesma, a bonequinha preta”, ver-se representado ao ponto de tornar
inexistente a diferença entre o eu e a personagem, é transformador. Quando essa
identificação vai além do físico, representando também a subjetividade e capaci-
dade de essa minoria assumir status sociais que raramente ocupam - como nes-
se caso em que a bonequinha, além de ser preta, também era uma bailarina – tal
identificação, na mente de uma criança, torna possível chegar a esse status social
também.

Os ensaios começaram, e Dusreis logo demonstrou sua aptidão para a dan-


ça. Em algumas semanas, as meninas que assistiam ao ensaio da turma de balé co-
meçaram a assistir aos ensaios da peça de Dusreis, até que a professora foi assistir
a ela também. Ao final do ensaio, a professora Atília Bessa elogiou o desempenho
de Rose Dusreis, acendendo nela uma pequena esperança de que a professora
reconsiderasse a entrada dela na turma de balé.

Infelizmente, não foi o que aconteceu. Faltando uma semana para a festa
final, Dusreis foi substituída por uma menina branca. Os professores da escola
preferiram colocar uma menina branca no papel da bonequinha preta, pintar a
sua pele de tinta preta, a deixar que uma menina preta assumisse uma das mais
importantes peças do recital da escola.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Rose Dusreis não compreendia o porquê da substituição, não naquela épo-


ca. A desmotivação a que ela era submetida não ocorria apenas na órbita pública,
promovida pelos professores e pela sociedade, mas também dentro de sua pró-
pria casa: “Dançar não nos oferecia nenhum sustento para a sobrevivência. — con-
tinuou ela — não comemos dança, dizia minha mãe, toda vez que eu chegava da
escola, encantada com o ensaio de balé a que eu assistia lá.” (EVARISTO, 2011, p.
108).

Apesar dessas opressões e desmotivações constantes, Dusreis não desis-


tiu do seu sonho. A frase que a professora de balé lhe respondeu na sua infância,
martelava em sua mente, fazendo-a relembrar seu primeiro não todas às vezes
que um novo empecilho surgia. Os obstáculos que ela enfrentara não a amedron-
tavam, pelo contrário, encorajavam-na a continuar buscando a dança.

Educação matrimonial e o jogo de sedução

A narrativa apresenta uma reviravolta na vida de Dusreis, começando pelo


falecimento do pai. Quando o pai ainda vivia, a renda familiar era baixa mesmo
com o dinheiro que ele ganhava trabalhando como pedreiro. Depois de sua morte,
o orçamento familiar continuava apertado: além das lavagens de roupas que sua
mãe fazia, a família tinha uma pequena horta e algumas galinhas, que, assim mes-
mo, revelavam-se insuficientes para a mãe sustentar as cinco filhas.

Diante da situação de precariedade vivida pela família, uma das patroas da


mãe sugere dividir as filhas em trabalhos diferentes. Adiná, a mais velha das irmãs,
que tinha 11 anos, poderia trabalhar como babá. Não vendo outra alternativa, a
mãe deixa que a patroa leve Adiná para a casa de uma família rica, no centro da
cidade. Quanto às duas irmãs do meio, de cinco e sete anos, Fátima e Penha, ficou
estabelecido que ficariam em casa, sob os cuidados de seus vizinhos. A mãe e a ca-
çula, Nininha, iriam para a casa dos parentes distantes, Fontes dos Reis Menezes,
citados no início deste artigo. Rose Dusreis foi entregue à uma congregação de
religiosas católicas, chamada Amadas do Calvário de Jesus. Nesta escola, Dusreis
e as outras meninas pobres tornavam-se as operárias, trabalhavam cozinhando e
limpando para as meninas ricas:

Acordava cedo, junto com outras meninas tão pobres quanto eu,
para ajudarmos no preparo do café das meninas ricas. Aprendi
todos os afazeres de uma casa, cozinhar, passar, lavar, arrumar.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Descobri, com o tempo, que as irmãs vindas de famílias pobres


eram as operárias, as domésticas, as agricultoras, enfim, as traba-
lhadoras exploradas da instituição, e nós, as meninas sem posse
alguma, éramos as suas auxiliares. (EVARISTO, 2011, p. 113).

O objetivo dessa escola era dar uma educação mais formal para as meninas
brancas e ricas, educá-las para o casamento. Sendo assim, além das matérias da
grade curricular normal, elas tinham também aulas de artes, dentre elas, a dança.
A finalidade do aprendizado artístico era o entretenimento musical para o marido
e convidados em festas e confraternizações em casa, validando um dos atributos
que toda esposa deveria ter conforme a lógica patriarcal.

Essa educação para o casamento é abordada por Maria Ângela D’Incao no


ensaio “Mulher e família burguesa”, que apresenta o perfil feminino esperado das
mulheres brasileiras de meados do século XIX em diante, aplicável a este conto
contemporâneo:

Mulheres casadas ganhavam uma nova função: contribuir para o


projeto familiar de mobilidade social através da sua postura nos
salões como anfitriãs e na vida cotidiana, em geral, como esposas
modelares e boas mães. Cada vez mais é reforçada a ideia de que
ser mulher é ser quase integralmente mãe dedicada e atenciosa,
um ideal que só pode ser plenamente atingido dentro da esfera
da família “burguesa e higienizada”. (D’INCAO, 2012, p. 229, gri-
fos do autor).

Affonso Romano de Sant’Anna também aborda a educação formal para o


casamento como uma educação exclusiva para a elite, branca e burguesa. Em O
canibalismo amoroso (1984), o autor divide as mulheres em mulher-flor ou mulher
esposável, e mulher-fruto ou mulher comível, sendo os primeiros dois termos uti-
lizados para as mulheres brancas e burguesas, e os segundos para as negras, as
escravas.

Contudo, é necessário distinguir que além de ter um significado


puramente psicanalítico, esse desejo oral pela mulher de cor é
resultado da relação social e uma expressão de poder. E, assim
como se passa da mulher para ser vista à mulher para ser co-
mida, passa-se da mulher-flor à mulher-fruto, como se a mulher
branca estivesse no jardim da casa e a mulher escura no pomar.
(SANT’ANNA, 1984, p. 24).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Tanto D’Incao quanto Sant’Anna discorrem sobre o casamento e a apreen-


são da mulher pela sociedade, evidenciando uma ótica patriarcal e machista em
que fica estabelecida uma relação de poder. Ambos os escritores detectam que
a mulher preta tinha um objetivo na sociedade: o de servir, seja com trabalhos,
seja com o próprio corpo. Em contrapartida, cabia à mulher branca – considera-
da como base moral da sociedade – seguir o que a ordem masculina lhe impingia
como adequado e possuir atributos físicos e morais para a construção de uma fa-
mília honrada e de elite.

No início do conto, a narradora relata o primeiro encontro com Dusreis, a


protagonista, em um salão de festas em um clube da cidade:

O que chamou minha atenção e aguçou minha curiosidade, em


relação a ela, foi o fato de que dentre tantas mulheres no baile,
várias delas desacompanhadas, inclusive eu, muitas sobravam à
espera de algum convite para dançar, menos Rose Dusreis. Ela
era a mais solicitada. Fiquei seduzida pelo encantamento que
Rose provocava nos homens, dos mais novos aos mais velhos.
(EVARISTO, 2011, p. 105).

Esse encantamento citado pela autora é abordado por Sant’Anna como


uma das formas de ascender socialmente e tem antecedentes culturais na nos-
sa sociedade. Ao se volver os olhos para nosso passado, é possível perceber, por
exemplo, no jogo de sedução das negras escravas com os senhores brancos, uma
estratégia utilizada para obter privilégios dentro da casa-grande embora, na
maioria das vezes, as escravas privilegiadas pelos proprietários sofressem casti-
gos, resultantes dos ciúmes de suas esposas brancas. E este jogo passava muitas
vezes pela dança, pelo meneio do corpo, resultando no estereótipo, ainda vigente
na sociedade brasileira, de que a mulher afrodescendente naturalmente incorpo-
raria em si a dançarina:

Diferentemente, a bailarina romântica, negra ou mulata, é o pon-


to de convergência do olhar concupiscente do branco, que sabe
que ela é o lugar da realização de seu poder erótico. A dança é um
jogo de sedução branca, onde a violência se metamorfoseia em
ritmo e expectativa. (SANT’ANNA, 1984, p. 37).

No caso da personagem do conto, outra é a leitura que se faz sobre sua ca-
pacidade de dançar, permitindo reflexões que ultrapassam a visão estigmatizada

583
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que a mulher negra e a dança têm. Apesar de sentir muita saudade da família, foi
trabalhando nessa escola que Rose Dusreis pôde estudar música, canto, balé clás-
sico, jazz, entre outros tipos de dança. Em troca do seu trabalho, ela recebeu a
oportunidade de ter a mesma educação que a elite, branca e burguesa, recebia na
época.

Ao completar os estudos, aos 17 anos, Dusreis deixa a congregação


Amadas do Calvário de Jesus e retorna para a casa da mãe. Nesse momento, ela
precisa tomar uma decisão. Como mulher preta, era esperado que permanecesse
trabalhando como serviçal para o resto de sua vida, mas Dusreis tinha outros
objetivos:

O meu regresso à casa materna foi por pouco tempo, pois o mun-
do me chamava para a dança, ou melhor, eu chamava, eu pedia
ao mundo que me dessa dança, e a vida me atendeu. Uma car-
ta de apresentação de uma das professoras de dança do colégio
em que eu tinha vivido, até então, me abriu portas. Cursei vá-
rios estilos de dança fora do meu estado e, depois, fora do país.
(EVARISTO, 2011, p. 113).

Quando Dusreis opta por continuar estudando dança, ela decide renegar
o local e a vida que tentavam lhe impor. Noutras palavras, ela busca subverter
a ideia arraigada na sociedade de que os espaços são definidos conforme a pro-
cedência cultural e socioeconômica de cada pessoa. Tal atitude da personagem
permite um diálogo com o ensaio A permanência do círculo (REIS, 1987), no qual
Roberto Reis apresenta dois termos, núcleo e nebulosa, para exemplificar a manei-
ra como funciona a hierarquia de nossa sociedade desde a época da colonização e
mantendo seu vigor na contemporaneidade:

No centroou núcleo está a figura do senhor e patriarca, junto com


os que habitam a casa-grande. Na nebulosaou periferia, a bem
dizer, todos os restantes. Precisando mais: na nebulosacirculam
o índio, o sertanejo, o gaúcho e o negro. Ou seja: nela alinharia
categorias étnicas (o negro e o índio) e sociais (o jagunço, o ser-
tanejo e o gaúcho), aglutináveis na medida em que não figuram
no núcleo, sendo subjugados na base de uma relação de domina-
ção, hierárquica. Efetivamente, os figurantes do núcleo senhorial
exercem domínio sobre os da nebulosa. (REIS, 1987, p. 32, grifos
do autor).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

De acordo com Reis, o centro desse círculo social, composto pelo núcleo,
é o local onde encontra-se o homem branco, o patriarca, que detém o poder. Sua
extensão marginalizada é a nebulosa, local onde se encontram os dominados pelo
núcleo. Nesse sentido, tendo nascido mulher, preta, e periférica, Dusreis viveu
desde a infância às margens do círculo social, no que Reis denomina ser a nebu-
losa. Porém, ao decidir negar a permanência nessa margem, ao decidir continuar
seus estudos na música e na dança, Dusreis busca uma aproximação do núcleo e,
consequentemente, busca sair da nebulosa.

Por fim, ela concretiza seu sonho, uma vez que seus estudos resultaram
na sua profissionalização e, finalmente, em sua própria academia de dança, onde
Dusreis relata essa história para Conceição Evaristo, autora-narradora deste con-
to. A dançarina viajou o Brasil e o mundo, trabalhando em vários grupos de danças
diferentes, dentro dos quais, na maioria das vezes, ela era a única pessoa preta
dançando.

Aos poucos, fui me profissionalizando e tive a oportunidade de


fazer parte de grupos nacionais e estrangeiros, mas, na maioria
das vezes, eu era uma das poucas, se não a única, bailarina negra
do grupo. E assim, a vida ia seguindo, e eu feliz. (EVARISTO, 2011,
p. 113).

Mesmo com todas os empecilhos, que desde a primeira infância tentavam


lhe impedir de se tornar uma bailarina, Dusreis conseguiu se profissionalizar e
pôde seguir o seu sonho, escapando ao estereótipo de que a mulher preta empre-
garia os dotes de dançarina com o único objetivo de extravasar sensualidade e,
por conseguinte, dançar para efetuar a sedução.

Considerações finais

Rose Dusreis durante toda sua vida precisou enfrentar uma somatória
de preconceitos e opressões, especialmente as de gênero, raça e classe social.
Essas opressões ainda existentes são resquícios da época da escravatura e, para
algumas pessoas, como a protagonista, esses empecilhos acabam se revelando
maiores, quase impedindo que conseguisse se realizar no mundo da dança.

A situação protagonizada por Dusreis para ter sucesso como bailarina é


resultante do patriarcalismo e do preconceito étnico-social brasileiros, já que um
e outro influenciaram na formação de nossa sociedade. Consequentemente, o

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

exercício da cultura – bailarina no caso de Dusreis – permanece, ainda hoje, quase


que exclusivamente restrita à elite, que é composta por pessoas brancas e ricas,
cuja expectativa é que a profissão de bailar restringe-se ao universo das pessoas
brancas e de razoáveis posses, ficando reservado aos afro-brasileiros o exercício
da dança no sentido de sedução e desregramento dos sentidos.

Não é gratuito, portanto que, no título desse artigo, haja a expressão “cul-
tura elitizada”, cuja finalidade é demonstrar, nesse conto, não só a dificuldade fi-
nanceira e a incapacidade monetária de Dusreis e sua família de investirem em
seu sonho de se tornar uma dançarina profissional, mas também as opressões e
desmotivações sociais contra a pessoa preta que, sendo mulher, é vítima de forma
duplicada. Em síntese, esse conto, baseado em um relato real, é apenas a história
de uma das diversas pessoas vindas da periferia, que, devido à sua classe social e
à cor de sua pele, são desmotivadas, e muitas vezes, impedidas de lutar por suas
ambições profissionais, fazendo que as atuais gerações continuem a repetir os
mesmos antigos modelos hierarquizantes da ordem patriarcal e a recorrer vicio-
samente o círculo social apresentado por Roberto Reis.

Referências

D’INCAO. M. Â. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORE, M.(Org.); BASSANEZI,


C. (Coord.). História das mulheres no Brasil. 10ª ed. São Paulo: Contexto, 2012. p.
223-240.
EVARISTO, C. Insubmissas lágrimas de mulheres. 2ª ed. Rio de Janeiro: Malê,
2016.
EVARISTO, C. Rose Dusreis. In: EVARISTO, C. Insubmissas lágrimas de mulheres.
2ª ed. Rio de Janeiro: Malê, 2016, p.105-116.
FREYRE, G. Casa-grande e senzala. 52ª ed. São Paulo: Global, 2013.
LITERAFRO - O portal da literatura Afro-Brasileira. Conceição Evaristo.
Disponível em: http: //www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-eva-
risto. Acesso em: 26 out. 2020.
REIS, R. Apermanência do círculo: hierarquia no romance brasileiro. Niterói:
EDUFF; {Brasília}: INL, 1987.
SANT’ANNA, A. R. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cul-
tura através da poesia. São Paulo: Brasiliense, 1984.

586
CORPO SEM ÓRGÃOS E GROTESCO:
ACENOS E AFAGOS, DE JOÃO GILBERTO
NOLL

Diego Gomes do Valle1

RESUMO: O presente artigo analisa o romance Acenos e afagos (2008), de João


Gilberto Noll, à luz de dois conceitos de teóricos distintos: o “corpo grotesco”, for-
mulado por Mikhail Bakhtin, especialmente em Cultura popular na Idade Média e
no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1999), e o “corpo sem órgãos”,
desenvolvido por Gilles Deleuze e Félix Guattari, por exemplo em O anti-Édipo:
capitalismo e esquizofrenia I (2011). Quando se analisa o todo romanesco de Noll,
percebe-se uma intensa problematização das representações da sexualidade,
exemplificadas nos destinos esvaziados e aleatórios de seus heróis. Um niilismo
latente envolve a atmosfera sufocante em que os protagonistas deambulam.
Dentre esses romances, Acenos e afagos destaca-se como sendo o mais experi-
mental, o que mais desafia a suposta ordem da sexualidade, os limites físicos e
identitários que se vinculam à anatomia dos seres. Indubitavelmente, entre os
doze romances do escritor gaúcho, este é o que leva ao limite uma estética ini-
ciada com A fúria do corpo (1989). Uma análise que busque dar conta de tal re-
presentação corporal trará, é o que almejamos, problematizações que ampliam
sobejamente a exegese da obra romanesca de Noll.

PALAVRAS-CHAVE: Acenos e afagos; Corpo grotesco; Corpo sem órgãos.

1 Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). diegouab@gmail.com

587
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ABSTRACT: The present article analyzes the novel Acenos e afagos (2008) by João
Gilberto Noll, in the tensional light of two concepts of distinct theorists: the grotesque
body formulated by Mikhail Bakhtin, especially in Popular Culture in the Middle Ages
and in the Renaissance: the context of François Rabelais (1999), and the body without
organs, conceptualized by Gilles Deleuze and Félix Guattari, for example in The anti-
-Oedipus: capitalism and schizophrenia I (2011). When one examines Noll’s romanes-
que whole, one perceives an intense problematization of representations of sexuality,
exemplified in the empty and random destinies of his heroes. A latent nihilism surrounds
the stifling atmosphere in which the protagonists roam. Among these novels, Acenos e
afagos stands out as being the most experimental, which most challenges the order of
the sexes, the physical limits and identities that are linked to the anatomy of beings.
Undoubtedly, among the twelve novels of the Gaucho writer, this is what brings to the
limit an aesthetic that began with Afúria do corpo (1989). An analysis that seeks to ac-
count for such a body representation will bring, we hope, problematizations that greatly
extend the exegesis of Noll’s romanesque work.

KEYWORDS: Acenos e afagos; Grotesque body; Body without organs; João Gilberto
Noll.

Introdução

No primeiro tratado, em forma de diálogo, sobre o amor que temos no


Ocidente, o Banquete platônico, encontramos no discurso de Aristófanes o mito
dos andróginos, segundo o qual, nos primórdios, os seres eram ao mesmo tempo
homem e mulher, mas, por arrogância para com os deuses, houve a separação de
tais seres que impôs falta e busca eternas a tais seres.

Vejamos uma parte do tal discurso de Aristófanes, em O Banquete, de


Platão, no qual temos a questão posta. O orador imagina Hefesto diante de dois
amantes, para quem diz:

Que é que quereis, ó homens, ter um do outro?, e se, diante do


seu embaraço, de novo lhes perguntasse: Porventura é isso que
desejais, ficardes no mesmo lugar o mais possível um para o ou-
tro? Pois se é isso que desejais, quero fundir-vos e forjar-vos
numa mesma pessoa, de modo que de dois vos torneis um só e,
enquanto viverdes, como uma só pessoa, possais viver ambos em
comum. (PLATÃO, 1979, p. 25).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Este, em grande medida, é o desejo de quem ama: fundir-se no outro para


que se complete a falta inerente ao individual, daí o andrógino ser um uma espé-
cie de “signo da totalidade” nas várias culturas onde se encontra tal simbolismo.
A propósito do símbolo que representa a androginia, encontramos no Dicionário
de símbolos, para que não haja dúvidas quanto à noção em pauta, as seguintes
definições:

Pois o andrógino é muitas vezes representado como um ser du-


plo, possuindo a um só tempo os atributos dos dois sexos, ainda
unidos, mas a ponto de separar-se. [...] Também em sua forma pri-
mitiva, segundo certa tradição, o homem e a mulher possuíam um
só corpo provido de dois rostos; Deus separou-os, dando a cada
um deles um dorso. É a partir desse momento que eles começam
a ter uma existência diferenciada. (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2009, p. 52-53).

Em Noll, temos em Acenos e afagos, em algum plano obscuro da ficção, a tal


fusão que se busca como resolução para a falta imposta aos andróginos primevos,
dando origem aos seres que contêm em si a dupla face sexual. No presente artigo,
buscaremos apresentar uma dupla via de compreensão para tal representação:
o corpo grotesco teorizado por Mikhail Bakhtin e o corpo sem órgãos conceituado
por Gilles Deleuze e Félix Guattari. A dupla escolha teórica se justifica na medida
em que, no plano estético, é a representação do corpo grotesco que impera, ao
passo que há neste corpo uma ressonância política que ressoa, como buscaremos
evidenciar, na dimensão filosófica proposta por Deleuze e Guattari.

O meio pelo qual estes seres vão se fusionar, se deslimitar e multiplicar-se


é, especialmente, o ato sexual. Por este motivo, trataremos do assunto na primei-
ra seção, em que as relações entre identidade, sexo e limites são questionadas
intensamente.

O sexo que deslimita

“Somos seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente


numa aventura ininteligível, mas temos a nostalgia da continuidade
perdida”.
Georges Bataille (1987, p. 12), O erotismo.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Indubitavelmente, o sexo é um dos traços predominantes deste narrador


que deseja não ser. Se há algo de constante, estável, neste herói é a busca inces-
sante para usufruir ao máximo de sua sexualidade. É por meio do sexo – seja ele
em ato ou imaginariamente – que o narrador chega ao outro, ou melhor, chega a
ser o outro, mesmo que momentaneamente.

Georges Bataille, em O erotismo, começa sua exposição elucidando preci-


samente os limites individuais, as fronteiras que o sexo, em algum plano, aparen-
temente supera:

Os seres que se reproduzem são distintos uns dos outros, e os


seres reproduzidos são distintos entre si como são distintos da-
queles que os geraram. Cada ser é distinto de todos os outros.
Seu nascimento, sua morte e os acontecimentos de sua vida po-
dem ter para os outros certo interesse, mas ele é o único dire-
tamente interessado. Só ele nasce. Só ele morre. Entre um ser e
outro há um abismo, uma descontinuidade. Esse abismo situa-se,
por exemplo, entre vocês que me escutam e eu que lhes falo.
Tentamos nos comunicar, mas nenhuma comunicação entre nós
poderá suprimir uma primeira diferença. Se vocês morrerem,
não sou eu que morro. Nós somos, vocês e eu, seres descontí-
nuos. (BATAILLE, 1987, p. 11).

Este abismo de descontinuidade a que alude Bataille é transfigurado, por


vezes, com a pequena morte (la petite mort), que é o gozo sexual. Quando afir-
mamos que o narrador se deslimita pelo sexo, estamos dizendo que ele o utiliza
intencionalmente para tal fim, há uma vontade que subjaz no ato. O narrador é
alguém no momento em que antecede certa experiência sexual e é outro após ela, e
não se trata de mera figura de linguagem, pois efetivamente, em alguns romances,
ele se converte em outro, confirmando o que Bataille um dia postulou: “Em certo
sentido, o ser se perde objetivamente, mas nesse momento o indivíduo identifi-
ca-se com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer que, no erotismo, EU
me perco” (BATAILLE, 1987, p. 21). Por exemplo, no romance que analisaremos na
sequência, Acenos e afagos (2008), o narrador tem suas formas físicas alteradas,
tornando-se uma mulher. Trata-se de um reflexo externo (físico) da identidade
sexual de gênero que o narrador possui naquele momento, para usufruir de sua
sexualidade em toda a sua potencialidade.

No que concerne ao tratamento do tema do sexo, é a linguagem do dis-


femismo que predomina em Noll, isto é, não há retoques ou amenizações na

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

narrativa: todo o conteúdo da relação sexual é descrito em suas esferas interna


(da consciência) e externa (os corpos em ação, a fisiologia etc.): “Uma literatura
menor não pertence a uma língua menor, mas, antes, à língua que uma minoria
constrói numa língua maior” (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 38).

Não há continuidade essencial em sua narrativa, apenas rastros que em


breve o vento levará. Sendo assim, só poderia o sexo possuir tanta importância
e tanto espaço nestas narrativas, que são sequências descontínuas. Otsuka tam-
bém reconhece isto e complementa apontando a ênfase materialista do roman-
cista como um sintoma dessa opressão que vem desde fora, mas que encontra
resistência nas narrativas:

A ênfase materialista de Noll sobre os processos fisiológicos dos


personagens pode ser associada ao desejo de suprir as carências
primárias do corpo: alimento, calor, sono, sexo. O grau de penú-
ria da realidade em que o protagonista se encontra é tão intenso
que a vida, a sociedade parece não permitir satisfazer nem mes-
mo as necessidades básicas, como se a obtenção desse mínimo
aparecesse ao personagem como um feito de proporções quase
inalcançáveis. (OTSUKA, 2001, p. 136).

Não se encontra limitação para este ser que deseja não ser. A análise de
Acenos e afagos demonstrará com múltiplos exemplos a importância evidente do
sexo na temática que ora nos ocupamos neste artigo.

Corpo grotesco ou corpo sem órgãos?

Se na primeira seção o leitor se habituou ao modo como os heróis de Noll


atuam no mundo, nesta traremos uma discussão conceitual de mão dupla, na qual
a modalidade estética e o fundo filosófico se encontrarão, segundo nos parece,
numa mesma representação corporal. Para tal exposição, iniciaremos com a pers-
pectiva bakhtiniana.

Em A História do corpo, Georges Vigarello começa por apresentar o con-


trário do corpo grotesco: a concepção oficial e algo sagrada, que se origina justa-
mente da relação com o Cristianismo, para o qual o corpo seria “receptáculo do
Espírito Santo”:

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A tradição cristã intervém num outro registro e torna dialética


a concepção da harmonia e da beleza do corpo humano. Criado
à imagem de Deus, o ser humano é a mais bela das criaturas e,
em particular, o corpo de Cristo, homem-Deus, encarna a idéia
da beleza perfeita; ao contrário, a deformidade do corpo dia-
bólico configura, por sua monstruosidade, a negação da ordem
que a Criação introduziu no caos para fazer dele um Cosmos.
(VIGARELLO, 2008, p. 543).

Tal representação do corpo no discurso religioso se deu através de muito


tempo e seria impossível detalhar cada momento neste trabalho. No entanto, é
importante que guardemos esta concepção de corpo, pois ela ainda sobrevive em
nosso tempo (em essência) e é motivo de refutação do Belo por Noll.

Sendo assim, a representação do Feio é associada ao Mal, ao carnal. Em


certos momentos, os interesses religiosos, morais, científicos e demográficos se
unem para o domínio do corpo e das pulsões sexuais. Grosso modo, o corpo, em
suas funções sexuais, deve ser usado com parcimônia:

Se o corpo é de tal forma privilegiado da definição de boas ma-


neiras, é, sem dúvida, para manter à distância e controlar suas
manifestações naturais e funcionais, propriamente corporais. O
corpo civilizado constitui um modelo cujo contramodelo seria, à
época, o corpo grotesco ou carnavalesco. (VIGARELLO, 2008, p.
581).

Ou seja, um corpo entendido como sagrado é conveniente à civilização, ao


modelo de corpo civilizado. Neste sentido, os orifícios são fechados, as aberturas
que nos ligam ao mundo, para dizer como Bakhtin, cessam seus fluxos, pois agora
o corpo é perfeito (per + factum: acabado, sem aberturas). O pensador russo, em
Cultura popular na Idade Média e no Renascimento, desenvolve a mais essa concep-
ção do corpo civilizado nestes termos:

Estes cânones consideram o corpo de maneira completamente


diferente, em outras etapas da sua vida, em relações totalmente
distintas com o mundo exterior (não-corporal). Para eles, o corpo
é algo rigorosamente acabado e perfeito. Além disto, é isolado,
solitário, separado dos demais corpos, fechado. Por isto, elimina-
-se tudo o que leve a pensar que ele não está acabado, tudo o que
se relaciona com seu crescimento e sua multiplicação: retiram-
-se as excrescências e brotaduras, apagam-se as protuberâncias

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

(que têm a significação de novos brotos, rebentos), tapam-se os


orifícios, faz-se abstração do estado perpetuamente imperfeito
do corpo. (BAKHTIN, 1999, p. 26).

Ou seja, ao filósofo Bakhtin, há um valor intrínseco nessa representação


grotesca, que reside no fato de o homem ser mostrado no homem, como sempre
almejou Dostoiévski. A esse propósito, segundo Mikhail Bakhtin: “Não há nada
perfeito nem completo, é a quintessência da incompletude. Esta é precisamente a
concepção grotesca do corpo” (1999, p. 23). Ora, se por um lado a representação
“civilizada” do corpo deve fingir que as aberturas (imperfeições) não existem, ou
pelo menos que devem ser silenciadas, por outro lado o corpo grotesco busca re-
presentar o homem de modo a incluir o “baixo material corporal”, as aberturas que
nos ligam ao mundo e ao outro:

Não se distinguiam as fronteiras claras e inertes que dividem es-


tes ‘reinos naturais’ no quadro habitual do mundo: no grotesco,
estas fronteiras são audaciosamente superadas. Tampouco se
percebe a imobilidade habitual típica da pintura da realidade: o
movimento deixa de ser o de formas completamente acabadas
– vegetais e animais – num universo também totalmente acaba-
do e estável [...] eterno inacabamento da existência. (BAKHTIN,
1999, p. 28).

É exatamente esta mobilidade livre que percebemos nos heróis de Noll,


especialmente em Acenos e afagos. O corpo, apresentado a partir da consciência
do herói, se move despudoradamente, buscando satisfação (seja sexual ou fisio-
lógica). Já o baixo material corporal aparece em sua completa existência, ou pelo
menos não tem pudor se for necessário desnudá-lo:

Em oposição ao cânone moderno, o corpo grotesco não está se-


parado do resto do mundo, não está isolado, acabado, nem per-
feito, mas ultrapassa-se a si mesmo, franqueia seus próprios limi-
tes. Coloca-se ênfase nas partes do corpo em que ele se abre ao
mundo exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou
ele mesmo sai para o mundo, através de orifícios, protuberâncias,
ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos
genitais, seios, falo, barriga e nariz. E em atos tais como o coito,
a gravidez, o parto, a agonia, o comer, o beber, e a satisfação de
necessidades naturais, que o corpo revela sua essência como
princípio em crescimento que ultrapassa seus próprios limites.
(BAKHTIN, 1999, p. 23).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Assim, fica evidente que a busca bakhtiniana por justificar o grotesco como
uma categoria estética acaba por legitimar eticamente esta representação do ho-
mem, além de pressupor que a literatura (e as artes em geral) deve sempre ampliar
os domínios representativos do ser, mesmo que a linguagem também acompanhe
a zona marginal do grotesco: “A linguagem deixa de ser representativa para ten-
der para os extremos ou limites” (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 49). Em termos
objetivos: se o corpo perfeito (decente, civilizado), para Bakhtin, falseia o homem,
o corpo grotesco está muito mais próximo de uma representação plena do ser hu-
mano, que agora, teratologicamente se inclui no mundo.

Qual seria, então, um possível ponto de contato entre este corpo grotesco
e o corpo sem órgãos? Para que tal aproximação ocorra, é necessário que nos de-
tenhamos sobre o conceito com vagar, para que em seguida seja possível estabe-
lecermos um termo médio dialógico. Eis o périplo.

Na abertura do primeiro volume de Mil Platôs, ao comentar a escrita de O


Anti-Édipo, Deleuze e Guattari dizem da busca por uma escritura que dê conta
dos “vários” que compõem cada um: “Não chegar ao ponto em que não se diz mais
EU, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU.
Não somos mais nós mesmos” (1995, p. 11). Assim, já fica patente uma concepção
ontológica identitária composta de pelo menos dois, ao mesmo tempo em que não
se atribui importância a uma determinação individual ao eu.

De modo análogo, os autores pensam em uma definição de enunciado que


seja coerente com essa definição ontológica: “Não existe enunciado individual,
nunca há. Todo enunciado é o produto de um agenciamento maquínico, quer
dizer, de agentes coletivos de enunciação” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 51).
Neste sentido específico, a proposta se assemelha muito ao que Bakhtin concebe
como enunciado – concepção essa que permeia completamente a noção de cor-
po grotesco em sua relação com o outro. Ambos os pensadores concordam que o
solipsismo absoluto é uma impossibilidade, pela própria constituição do homem.

Se Bakhtin compreende os fenômenos humanos à luz matriz conceitual


do dialogismo, Deleuze e Guattari o fazem pela via dos movimentos maquínicos,
dos quais somos compostos intrinsecamente: “sempre uma máquina acoplada
a outra” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 16). Por ingerências socioeconômicas,
os seres são e agem, segundo os autores, por meio de máquinas que reproduzem
e mantêm o status quo capitalista. Organismos produtivos que, mesmo quan-
do anseiam a improdutividade, fazem-no por meio de máquinas produtivas: “As

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

máquinas desejantes fazem de nós um organismo; mas, no seio dessa produção,


em sua própria produção, o corpo sofre por estar assim organizado, por não ter
outra organização ou organização nenhuma” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 20).
Daí a grande crítica e reavaliação da teoria freudiana feita em O anti-Édipo, em que
os autores reivindicam legitimidade ao modo esquizofrênico de produzir sentido
à realidade, já que, por escapar completamente da dinâmica civilizada, o esquizo é
o “anjo exterminador” (2011, p. 54) do capitalismo, já que é resultado e ao mesmo
tempo limite. O passeio do esquizo é, neste sentido e como dizem os autores, um
reencontro com a terra; mantendo um sentido teratológico que já comentamos a
respeito do grotesco.

Se o esquizo potencialmente escapa das injunções sócio-econômicas que


nos constituem, o meio pelo qual ele age é o corpo sem órgãos: “O corpo sem ór-
gãos não é um corpo morto, mas um corpo vivo, e tão vivo e tão fervilhante que
ele expulsou o organismo e sua organização” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 43).
Ora, só é possível desmontar mecanicamente o organismo e sua ordem fragmen-
tando-o molecularmente, desmontando os elementos que nos constituem até o
grau máximo. À luz de Antonin Artaud, os franceses discorrem a respeito do corpo
sem órgãos nesses primeiros termos: “O corpo pleno sem órgãos é o improdutivo,
o estéril, o inengendrado, o inconsumível” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 20). E
o que resta não é a morte, como é explicado, mas a vida mesma numa modalidade
absolutamente desvinculada de tais injunções:

Um corpo sem órgãos não é um corpo vazio e desprovido de ór-


gãos, mas um corpo sobre o qual o que serve de órgãos (lobos,
olhos de lobos, mandíbulas de lobos?) se distribui segundo mo-
vimentos de multidões, segundo movimentos brownóides, sob
forma de multiplicidades moleculares. (DELEUZE; GUATTARI,
1995, p. 43).

Somente nesta dissolução corpórea é possível uma vida legítima2, já que


improdutiva. É Gregor Samsa no seu devir-inseto inútil para sua família, logo, para
o mundo. Trata-se da multiplicidade que anula a unidade, pois ao ser muitos não
se pode ser uno – e retornamos à concepção ontológica avessa à ideia de mônada.
Em certo sentido, os personagens em trânsito de Noll encenam o passeio do esqui-
zo de que tratam Deleuze e Guattari:

2 Adiantamos que Acenos e afagos reproduz precisamente essa tentativa em sua trama.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Quanto ao esquizo, com o seu passo vacilante, que não para de


migrar, de errar, de escorregar, embrenha-se cada vez mais longe
na desterritorialização sobre o seu próprio corpo sem órgãos, até
o infinito da decomposição do socius, e talvez o passeio do esqui-
zo seja o seu modo particular de reencontrar a terra. (DELEUZE;
GUATTARI, 2011, p. 54).

Neste amplo território, que é seu corpo em contato com o mundo, a decom-
posição de si é, ipso facto, desterritorialização, é o não-espaço em nome de todo o
espaço, do aprofundamento deslimitado:

Assim, a escrita performatiza um devir contínuo que não indica o


limite do silêncio na transgressão erótica, nem foge pelas linhas
de fuga do devir-menos, mas ganha potência ora virando mulher,
ora hermafrodita, multiplicando as possibilidades de vida para
além das fronteiras da morte. (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 119).

Com esta citação final do crítico Karl Erik Schøllhammer a respeito de


Acenos e afagos, que se inscreve na discussão proposta pelos pensadores france-
ses, reencontramos o ciclo grotesco de Bakhtin, já que temos a insuficiência do
ser – que caracteriza o movimento grotesco – e a dinâmica morte-vida como um
eterno retorno material, quase no sentido de Lavoisier.

Vejamos como isso se dá em Noll de agora em diante.

Acenos e afagos (2008)

O romance que ora examinaremos certamente é o que iguala ou mesmo


supera a profusão verborrágica de A fúria do corpo, o primeiro romance de Noll.
Não há recurso que não apareça explorado em toda sua potencialidade. Veremos,
por exemplo, os limites do eu sendo ultrapassados de todas as maneiras possíveis,
seja pelos meios sexuais, pelos caminhos infinitos da consciência ou pela ausência
de qualquer referência moral, que poderia refrear alguma ação do herói.

O romance começa com a reminiscência do primeiro contato sexual do he-


rói. Ainda crianças, ele e um amigo, nas palavras do narrador, “trabalhávamos no
avesso”, pois enquanto brigavam no corredor do dentista, estavam descobrindo
o surgimento das formas anatômicas sexuais: “A luxúria adulta estava então lan-
çada” (NOLL, 2008, p. 8). Trata-se de uma sexualidade diferente, mas já presente
naquelas crianças. Um corte brusco apresenta o herói já na adolescência,

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que é quando a memória da “briga às avessas” lhe vem à mente. Este adolescente é
um massagista, tem à sua disposição corpos diferentes a todo o tempo para serem
tocados. É um daqueles corpos que fez com que o narrador se reportasse àquela
luta infantil. Neste “agora” que perambula por descaminhos da memória, o adoles-
cente está no velório de uma prima, que o faz saltar para uma reminiscência, claro,
que liga a finada prima a outro momento erótico infantil do narrador: “Naquele
tempo, já desconfiava de que seria um adulto famélico por sexo” (NOLL, 2008, p.
13). E eis que este périplo pela sexualidade infantil retorna àquela primeira, a bri-
ga no corredor: “sei que desse encontro não me esqueci mais” (NOLL, 2008, p. 13).
É importante observar que a memória existe como momentos definidores desta
instabilidade identitária que presenciamos no narrador. Há um processo dialético
aqui, pois este narrador só lembra daquilo que o faz não se lembrar de mais nada
que não esteja ligado à fruição sexual. Prova disso é que daquela briga passa-se à
prima e, depois, às experiências eróticas no seminário.

Em termos kirilovianos, o herói dirá em seguida:

Eu queria ser Deus, isto estava claro, e desconfiava de que, para


seguir a carreira divina, seria preciso uma imaginação teológica
com outra face. Como por exemplo sair do seminário, do armá-
rio, me entregar ao roubo, ao crime, às ofensas carnais, ao vício e
daí não mais retornar. O diabo era doce. No ermo da figura peço-
nhenta quero ir como mulher. (NOLL, 2008, p. 16-17).

Este desejo de divindade vindo de um herói de Noll já ocorrera em Hotel


Atlântico; e assim como foi naquele romance, este desejo significa ser dono de sua
própria moral, não fazer concessões a qualquer hierarquia que não seja o próprio
desejo, normalmente, de tipo sexual. O herói pensa em entregar-se “ao roubo”,
“ao crime”, “às ofensas carnais”, para se libertar de tais hierarquias, para sacar a
face (o eu) que havia ali, até que reste somente o corpo, por assim dizer, divini-
zado. O que importa é que, antes da realidade da imagem, está o ver localizado
no sujeito em questão: o protagonista “acelera as transformações das marcas
identitárias do personagem por cima do gênero e do limite entre vida e morte”
(SCHØLLHAMMER, 2009, p. 118).

O amigo engenheiro segue com o submarino, ao passo que o herói fica em


terra firme; mais adiante, ficamos sabendo que este submarino naufraga, tendo
como único sobrevivente este amigo. Na sequência, chega a um hotel, o espaço
por excelência destes heróis de Noll. Ora, eis a deslimitação pelo sexo novamente.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Pela imagem, isto é, pela superação da matéria, é possível encontrar este outro de
que trata o herói: “Não existe amor que não seja um exercício de despersonaliza-
ção sobre um corpo sem órgãos a ser formado” (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p.
49). Veremos que este caminho será explorado diversas vezes neste romance. É
um caminho de infinitude, tal qual o é a consciência do sujeito; um prazer infinito
que supera qualquer limite identitário3, é o próprio anelo desta voz que fala nos
romances de Noll: “a fonte inegável desse delírio em forma de volúpia era uma
lacuna da minha própria alma” (NOLL, 2008, p. 33).

Uma disfunção erétil faz com que o herói assuma de vez a condição platô-
nica de possuir muitos corpos deixando a materialidade, símbolo de falha e decre-
pitude, de lado: “Eu me sentia um autêntico imaginador de lavras eróticas” (NOLL,
2008, p. 66). No entanto, no intento de imaginar seu amigo engenheiro no corpo
de seu massagista, Bernardo, o herói só conseguiu encontrar um corpo no breu.
Logo em seguida, sai com um garoto de programa, que o surra, fazendo com que o
herói acorde no hospital.

É sintomático que esse herói, com pretensões infinitas de realização se-


xual, só consiga atingir seus desejos completamente (e o que se dará de agora em
diante é exatamente isto) num plano ideal-imaginário, em um possível estado de
coma. No desejo de formar um novo núcleo, um novo papel para seu eu, o herói
quer apagar sua antiga identidade, como fica claro nesse momento: “Eu estava ali,
preferindo me esquecer dos parcos resultados financeiros da minha fazendola.
Esqueceria-me também de meu filho, minha mulher e tudo mais. Para essa rea-
lidade eu tinha morrido, sim. Estava condenado a viver dali pra frente no Mato
Grosso. Ao lado do engenheiro” (NOLL, 2008, p. 89).

Após isso, o herói, desencantado com a imagem do engenheiro, pensa em


fugir daquele lugar. Em meio a alternâncias de gênero, somente imagens relacio-
nadas ao coito aparecem na consciência deste herói: “Para mim e para as criaturas
em volta, só foder redimia a imposição dessa história tediosa. Minha esperança
se reduzia ao êxito da próxima ejaculação” (NOLL, 2008, p. 152). A realidade se
reduz à atividade corpóreo-sexual, seja ela imaginária ou fantasiosa; o importante
é que não se refreiem os caminhos sugeridos pela libido. Ou seja, após a desterri-
torialização, passa-se à reterritorialização:

3 Mais adiante, o herói dirá: “Copularia com todos os meus parceiros em um


só corpo e em uma só vez -, e eventualmente com parceiras e tantos outros
bichos mais” (NOLL, 2008, p. 48).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

O corpo sem órgãos é como o ovo cósmico, como a molécula


gigante, onde se agitam vermes, bacilos, figuras liliputianas, ani-
málculos e homúnculos, com sua organização e suas máquinas,
minúsculos cordéis, cordames, dentes, unhas, alavancas e rolda-
nas, catapultas: como em Schereber, os milhões de espermato-
zoides nos raios do céu, ou as almas que será representativo de
sua realidade, pois, por ser negro, passava por aquelas situações
e quando leu sentiu algo diferente que não sabia explicar, mas
que estava bem e feliz por não se sentir sozinho, pois sabia que
uma escritora também vivenciou isso.
Sobre seu corpo levam uma breve existência de pequenos ho-
mens. (DELEUZE ; GUATTARI, 2011, p. 371).

Esse sujeito está à beira da insanidade, da esquizofrenia, a crise entre a rea-


lidade íntima de sua consciência e a suposta realidade que está fora dele chega ao
limite do possível:

Entre o meu mundo de fora e o de dentro surgia aos poucos uma


dolorosa rarefação. Precisava, no entanto, me manter nesse cen-
tro hoje diluído, indefinido, impreciso, misturado, para não me
bandear definitivamente ou só para fora, ou só para dentro. A ex-
pansão desordenada do dentro poderia virar metástase, criando
o império da deformidade, da loucura pura e simples. Ia então me
apegando a pequenas coisas do lado de fora para não me afogar
em minhas próprias águas. (NOLL, 2008, p. 169).

Trata-se de uma fronteira, como todas são, dividida. No entanto, esta di-
visão é problemática, tensional, pois, como temos visto, este herói tende para a
“loucura pura e simples”, ele buscou até agora se afogar em suas próprias águas.
O fato é que, após essa reflexão, ele sente que em si brotarem as tão buscadas
formas anatômicas femininas, convertendo-o em mulher. Começa a se imaginar
em público sempre com o rosto coberto, para que seus traços não denunciem seu
passado masculino.

Após enterrar o corpo do engenheiro, o herói passa a ver o que os olhos


humanos não o podem: micro-organismos em seu novo sexo. É uma outra forma
de se elevar ao infinito seu prazer, pois o herói só assimila as supostas atividades
libidinais daqueles ínfimos seres: “Não poderia viver sem que essa biologia míni-
ma continuasse a enaltecer ainda mais a promessa de fusão” (NOLL, 2008, p. 190).
Tais seres merecem sua atenção porque, como ele, possuem características dos
dois sexos, além de estarem completamente imersos nos corpos alheios.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Agora, ele passa a fugir do segurança e de si mesmo: “Fugia, fugia de qual-


quer história que quisesse me escravizar a meu passado remoto ou recente.
Queria ter de fato a chance de renascer na figura de uma fêmea cabal” (NOLL,
2008, p. 196). Esta é a tônica não só deste momento do herói, mas de todo o ro-
mance: é preciso toda esta “epopeia libidinal” para se borrar e construir um novo
eu:

O esquizo, ao contrário, vai na outra orientação, a da microfísica,


a das moléculas que já não obedecem às leis estatísticas; ondas
e corpúsculos, fluxos e objetos parciais que já não são tributá-
rios dos grandes números, linhas de fuga infinitesimais em vez
de perspectivas de grandes conjuntos. (DELEUZE; GUATTARI,
2011, p. 370).

Os últimos momentos desta epopeia do corpo são a própria descrição da


morte avançando dentro deste organismo que acaba de levar um tiro do seguran-
ça. Como último receptáculo materialmente presenciável, este “corpo infinito”,
como define o herói, seguirá somente nos micro-organismos que ainda em vida
o devoravam, pois fora da materialidade, para ele, não há mais nada: “Percebia
com clareza cristalina não existir vida para além da biografia. Aquilo que se ex-
tinguia em mim era tudo” (NOLL, 2008, p.201). Estes micro-organismos acabam
ocupando o espaço total e único que é o corpo deste herói, desde o qual se deu
toda esta epopeia. Com a morte física, assim como aquele em Hotel Atlântico, ele
está liberto do fardo de viver: “percebi que agora, enfim..., eu começaria a viver...”
(NOLL, 2008, p. 206).

Considerações finais

Neste romance, temos várias maneiras de se superar a matéria – responsá-


vel pelos limites que contornam o eu - por meio da imagem, do plano ideal, que é
infinito, e que não se reduz ao que o plano físico impõe. Assim, a consciência pode
caminhar livremente, sem as amarras do real. Neste sentido, toda a narração pode
ser colocada entre parênteses, pode ser encarada como um longo devaneio, ou
quem sabe fruto de delírios de um doente em coma.

Este herói possui um desejo sexual inesgotável, para o qual somente a es-
fera ideal, imaginária, pode dar satisfação, já que os limites impostos pela matéria
são insuficientes para tal. A tônica deste romance é a exploração dos limites da

600
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

materialidade e da idealidade, tendo como instrumento o sexo para fundir-se ao


outro, ou simplesmente deixar de existir. O desejo de multiplicidade do outro ou
o ímpeto para fundir-se àquele corpo são sensações que poderiam ser encaradas
como expressões figuradas daquele herói, no entanto, ocorrem literalmente nes-
te romance. Como se o verbo se tornasse carne.

A suposta morte do herói pode ser vista como um símbolo daquele desejo
de se borrar o eu, a identidade que o trouxera até ali. Após esta morte, o herói pas-
sa a buscar e a afirmar para si a sua feminilidade, chegando a descrever as formas
femininas, que pouco a pouco despontam em si, e que num primeiro momento
convivem com as formas masculinas já existentes. Com isso, há uma diluição cons-
tante dos limites entre realidade e sonho/imaginação, masculino e feminino, ativo
e passivo, enfim, todas as dicotomias que dão identidade aos sujeitos.

O fato é que em busca da realização de um desejo sexual infindo, a incom-


pletude se dá também no plano da idealidade, pois não há limites, logo, nunca ha-
verá plenitude. O herói busca fundir-se ao seu amado, uma espécie de experimen-
tação dos andróginos platônicos, na qual a experiência sexual entre eles busca
evidenciar precisamente isto. Não há limites estritos entre um corpo e outro, uma
vez que no mundo das ideias, tudo é possível.

Em suma, trata-se dos limites, das fronteiras, do corpo, do sexo, do eu, da


realidade, da existência. Tais limites são implodidos por meio de símbolos elo-
quentes que apontam para uma insuficiência latente. O eu deixa de sê-lo pelo
menos de duas formas: apaga-se tudo que possa indicar o que este herói era; tam-
bém, por outro lado, este eu, já elidido uma vez, busca sua diluição no outro. Noll,
neste romance, abala as separações abruptas e definitivas dos seres.

Referências

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de François Rabelais. 4ª ed. Tradução: Iara Frateschi. São Paulo-Brasília: Edunb/
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601
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

CORBIN, A; COURTINE, J-J; VIGARELLO, G. História do corpo: Da Renascença


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DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (V.1).
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NOLL, J. G. João Gilberto Noll no Paiol literário. (2009). Disponível em http: //ras-
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SCHØLLHAMMER, K. E. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira,2009.

602
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

DA LITERATURA AO CINEMA: O
PROCESSO DE TRANSPOSIÇÃO EM
ÓRFÃOS DO ELDORADO1

Edione Gonçalves2
Wellington Ricardo Fioruci3

RESUMO: Esta pesquisa tem por objetivo analisar como se realiza a adaptação da
linguagem literária para a fílmica em Órfãos do Eldorado. A obra foi escrita pelo
autor amazonense Milton Hatoum e adaptada para o cinema, estreando no dia
12 de novembro de 2015 sob a direção de Guilherme Coelho. Milton Hatoum,
nascido em Manaus no ano de 1952, é autor de grandes obras da literatura bra-
sileira, sendo considerado um dos maiores e mais destacados escritores do país.
Além disso, sua obra suscita temas como os conflitos familiares, memória, cultura
e identidade, sendo, inclusive, alvo de diversos estudos acadêmico-científicos, de
modo a contemplar e tornar Hatoum um escritor consagrado da literatura nacio-
nal. Pensando nisso, esta pesquisa fundamentar-se-á nos autores Linda Hutcheon
(2013), Ismail Xavier (2003) e Jean-Claude Carrière (2014), com o intuito de com-
preender como é possível realizar a aproximação entre as linguagens literária e
1 Este estudo foi realizado a partir da proposta do projeto de pesquisa para a produção da dis-
sertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Tecnológica
Federal do Paraná – UTFPR-PB, a qual ainda não foi defendida, nem finalizada. Assim, vale res-
saltar que algumas considerações desta pesquisa poderão se fazer presentes na dissertação
quando finalizada.
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Tecnológica Federal do
Paraná – UTFPR-PB, campus Pato Branco. edionesgoncalves@gmail.com.
3 Professor no curso de Letras da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Pato
Branco. Atua neste campus como docente permanente do Programa de Pós-graduação em
Letras (PPGL). fioruci@utfpr.edu.br.

603
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

cinematográfica, firmando, desse modo, um diálogo entre essas artes distintas.


Para tanto, este estudo se dividirá em três grandes momentos: 1º) apresentar os
principais aspectos referentes à teoria da adaptação, assim como a relação entre
literatura e cinema; 2º) apresentar a vida e obra do autor Milton Hatoum e do
cineasta Guilherme Coelho; e, 3º) analisar a obra Órfãos do Eldorado, tanto no
escopo literário como no fílmico.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura e Cinema; Adaptação; Órfãos do Eldorado.

ABSTRACT: This research aims to analyze how literary language is adapted to film in
Órfãos do Eldorado. The work was written by Amazonian author Milton Hatoum and
adapted for the cinema, premiering on November 12th, 2015 under Guilherme Coelho’s
direction. Milton Hatoum, born in Manaus in 1952, is the author of great works of
Brazilian literature, being considered one of the greatest and most outstanding writers
in the country. In addition, his work raises themes such as family conflicts, memory, cul-
ture and identity, and is also the target of several academic-scientific studies, in order to
contemplate and make Hatoum a consecrated writer of national literature. With this in
mind, this research will be based on the authors Linda Hutcheon (2013), Ismail Xavier
(2003) and Jean-Claude Carrière (2014), in order to understand how it is possible to
achieve the approximation between literary and cinematographic languages, thus es-
tablishing a dialogue between these different arts. To this end, this study will be divided
into three major moments: 1st) to present the main aspects regarding the theory of ad-
aptation, as well as the relationship between literature and cinema; 2nd) to present the
author Milton Hatoum and filmmaker Guilherme Coelho’s life and work; 3rd) to analyze
the work Órfãos do Eldorado, both in literary and filmic scope.

KEYWORDS: Literature and Cinema; Adaptation; Órfãos do Eldorado.

Introdução

É possível afirmar que, desde seus primórdios, a humanidade sente a


necessidade de se comunicar, interagir e, consequentemente, registrar suas ações
cotidianas. Como se sabe, inicialmente, esse registro era realizado através de
figuras e desenhos feitos nas paredes das cavernas. “Das inscrições rupestres até
fins do século XIX, pode-se fazer uma brevíssima incursão pela história da imagem
descrevendo a incessante busca pela representação da realidade.” (MODRO,
2011, p. 33). Com isso, é possível compreender que as pinturas rupestres são nar-
rativas imagéticas, uma vez que retratam as ações realizadas pelo ser humano, em

604
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

uma época em que a escrita, como é conhecida atualmente, ainda não existia. E,
a partir disso, surgiram novas formas de representar a vida do sujeito, como, por
exemplo, a pintura, a literatura, a fotografia e, posteriormente, o cinema, o qual
fora um grande marco para a história da humanidade e faz parte do seu cotidiano
até os dias atuais. Isso pode respaldar, inclusive, a aproximação entre as diferen-
tes linguagens: literatura e cinema.

Foi a partir da ideia de imagem em movimento que surgiram os primeiros


vestígios de produções cinematográficas, as quais eram vistas como um meio de
registrar a realidade. Portanto, isso possibilitou “[...] a contação de histórias, o que
até então se fazia com palavras. Mesmo na era do cinema mudo, em que não havia
ferramentas para a gravação simultânea de sons e imagens, relatavam-se histó-
rias aproveitando recursos sobretudo literários.” (MODRO, 2011, p. 35).

Pensando nisso, esta pesquisa tem por objetivo analisar como se realiza a
adaptação da linguagem literária para a fílmica em Órfãos do Eldorado. Assim, ao
ter em vista que a obra supracitada foi escrita por Milton Hatoum, salienta-se que
o autor é um escritor brasileiro, nascido em Manaus, em 1952 e autor de grandes
obras da Literatura Brasileira como, por exemplo, Relato de Um Certo Oriente, pu-
blicado em 1989, Cinzas do Norte, em 2005, Dois Irmãos, em 2000. E, em 2008, o
autor publicou sua primeira novela, Órfãos do Eldorado, a qual fora uma de suas
obras adaptadas para o cinema, estreando no dia 12 de novembro de 2015 sob a
direção de Guilherme Coelho. Atualmente, Hatoum é considerado um dos maio-
res e mais destacados escritores da literatura brasileira. Além disso, a obra do es-
critor amazonense suscita temas como os conflitos familiares, memória, cultura
e identidade, sendo, inclusive, alvo de diversos estudos acadêmico-científicos, de
modo a contemplar e tornar Hatoum um escritor consagrado da literatura nacio-
nal. Ademais, “a crítica literária tem revelado grande apreço pela produção hatou-
niana. Entre os estudos universitários, ela tem servido de objeto para inúmeras
pesquisas, como ensaios, resenhas, artigos, trabalhos de conclusão de curso, dis-
sertação de mestrado e tese de doutorado.” (SILVA; TRUSEN, 2018, p. 124-125).

As narrativas de Hatoum, geralmente, têm sob enfoque a região amazô-


nica, especialmente a cidade de Manaus. No entanto, observa-se que as obras
do autor rompem com os estereótipos formados sobre a região, uma vez que
Hatoum evita sublinhar apenas os aspectos exóticos da Amazônia. Inclusive, de
acordo com a reportagem “Quando o mito vira história e a história vira mito”, do
site de notícias Brasil de fato (2010), a obra hatouniana é vista como uma arte que

605
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

faz com que o leitor perceba uma região amazônica desconhecida, desconstruin-
do, assim, discursos estereotipados sobre o local. “Em Órfãos do Eldorado, esses
‘órfãos’ podem ser pensados como aqueles que muitas vezes são iludidos com
uma ideia de país da abundância, uma promessa de desenvolvimento.” (HATOUM,
2010, s/p). Além disso, Hatoum trabalha “[...] o texto literário como a possibilidade
de restauração da memória, rastro-atrás como a caça que volta em retaguarda
sobre as próprias pegadas para simultaneamente recuperá-las, embora sempre
despistando o leitor.” (CURY, 2002, p. 306-307).

Pensando nisso e observando o destaque que Hatoum e suas obras têm


recebido atualmente, escolheu-se, para compor o corpus desta pesquisa, a obra
Órfãos do Eldorado, a fim de analisar como se realiza a adaptação da linguagem
literária para o meio cinematográfico.

Dessa forma, ao considerar que a obra fílmica também compõe o corpus des-
ta pesquisa, cabe salientar que o diretor do filme Órfãos do Eldorado, Guilherme
Coelho, nasceu no Rio de Janeiro, em 1979. O cineasta produziu e dirigiu o do-
cumentário de média-metragem São João em Caruaru, em 1999. Além disso, diri-
giu o documentário de longa-metragem, lançado no Festival do Rio 2003, Fala Tu
(2003), o qual ganhou os prêmios de melhor direção e melhor documentário pelo
júri popular, além de ser selecionado para festivais internacionais como Berlim,
Roterdã e Miami Internacional. Em 2005, dirigiu o documentário Fernando Lemos,
atrás da imagem. No ano de 2015, Guilherme Coelho dirigiu, então, o filme Órfãos
do Eldorado.

Para tanto, esta pesquisa apresentou os seguintes objetivos específicos:

1º) apresentar os principais aspectos referentes à teoria da adaptação, as-


sim como a relação entre Literatura e Cinema;

2º) apresentar a vida e obra do autor Milton Hatoum e do cineasta


Guilherme Coelho;

3º) analisar a obra Órfãos do Eldorado, tanto no escopo literário como no


fílmico.

Assim, essa pesquisa foi apresentada da seguinte maneira: “De uma arte
a outra: teorizando os principais aspectos da adaptação e das relações entre
Literatura e Cinema”, neste momento, com base nas teorias dos autores Linda
Hutcheon (2013), Ismail Xavie,r (2003), Jean-Claude Carrière (2014) e Olga
Arantes Pereira (2009), foram apresentados alguns aspectos referentes à teoria

606
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

da adaptação, juntamente com a relação entre Literatura e Cinema; “Análise com-


parativa em Órfãos do Eldorado”: discutiram-se aqui os resultados obtidos atra-
vés da análise realizada nas obras literária e fílmica Órfãos do Eldorado.

De uma arte a outra: teorizando os principais aspectos da


adaptação e das relações entre Literatura e Cinema

Esta seção tem por objetivo apresentar os principais aspectos sobre a teo-
ria da adaptação, fundamentando-se nos autores Linda Hutcheon (2013) e Ismail
Xavier (2003). Desse modo, objetiva-se também compreender como é possível
realizar a aproximação entre as linguagens literária e cinematográfica, firman-
do um diálogo entre essas artes distintas, com base nos autores Jean-Claude
Carrière (2014) e Olga Arantes Pereira (2009).

A escritora canadense Linda Hutcheon (2013), em Uma teoria da adaptação,


aborda que o roteiro de um filme baseado em um clássico da literatura precisa
expressar sua mensagem de maneira clara, precisa e simplificada. Assim, a adap-
tação deve se efetivar através de imagens e poucas palavras, uma vez que a com-
plexidade da linguagem pode dificultar a compreensão dela, podendo, inclusive,
ser alvo de severas críticas vindas dos espectadores. Nesse sentido, de acordo
com a autora:

Escrever um roteiro baseado num grande romance [...] é acima de


tudo um trabalho de simplificação. Não me refiro somente ao en-
redo, embora no caso particular de um romance vitoriano, reple-
to de tramas e personagens secundários, cortes severos sejam
indispensáveis; refiro-me também ao conteúdo intelectual. Um
filme deve exprimir sua mensagem através de imagens e relativa-
mente poucas palavras; ele não é muito tolerante à complexida-
de, ironia ou tergiversações. (HUTCHEON, 2013, p. 21).

O problema das adaptações literárias para o cinema depende das interpre-


tações feitas pelos cineastas ao realizarem a transposição da linguagem literária
para o discurso fílmico. A dificuldade em adaptar uma obra literária, geralmente,
ocorre devido ao fato de que a primeira ação do público, quando assiste ao filme, é
procurar perceber se ele se aproxima ou se afasta do texto de origem. Nessa pers-
pectiva, retrata-se que, a princípio, a preocupação e a rigidez quanto à ‘fidelidade’
do filme adaptado era comum, uma vez que os autores das obras eram estima-
dos pelos leitores. Porém, mais tarde, essa cobrança diminuiu, pois, “[...] o livro e o

607
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

filme nele baseado são vistos como dois extremos de um processo que comporta
alterações de sentido em função do fator tempo, a par de tudo o mais que, em
princípio, distingue as imagens, as trilhas sonoras e as encenações da palavra es-
crita e do silêncio da leitura.” (XAVIER, 2003, p. 61).

Na perspectiva de Xavier (2003), o filme passa a ser apreciado através de


sua linguagem e discurso próprios e a “fidelidade” ao livro deixa de ser “critério
maior de juízo”. Por mais que sejam linguagens distintas, de fato é possível fazer
aproximações entre o filme e o livro adaptado, como na relação entre imagens
(filme) e palavras (livro), por exemplo. O autor também aponta que há um ponto
em comum entre o cinema e a literatura – a narrativa – uma vez que tanto um
filme como um conto, por exemplo, dispõem de acontecimentos e ações das per-
sonagens que se desenrolam em forma de história contada ou filmada. Também é
interessante destacar que “[...] quem narra escolhe o momento em que uma infor-
mação é dada e por meio de que canal isso é feito.” (XAVIER, 2003, p. 64).

Atualmente, é possível deparar-se com inúmeras formas de adaptações,


seja por meio de revistas de histórias em quadrinhos, filmes ou jogos. “As adap-
tações estão em todos os lugares [...] nas telas da televisão e do cinema, nos pal-
cos do musical e do teatro dramático, na internet, nos romances e quadrinhos,
nos fliperamas.” (HUTCHEON, 2013, p. 22). Desse modo, pode-se compreender a
adaptação como uma arte, já que ela deriva de outra que lhe é anterior, isto é, “[...]
as histórias nascem de outras histórias.” (HUTCHEON, 2013, p. 22). No entanto,
mesmo sendo uma maneira interessante e diferenciada de “recontar” ou “recriar”
uma determinada história, há divisões nos pontos de vista sobre a adaptação.
Nesse sentido, é concebível dizer que:

[...] a visão negativa da adaptação pode ser um simples produto


das expectativas contrariadas por parte do fã que deseja fideli-
dade ao texto adaptado que lhe é querido, ou então por parte de
alguém que ensina literatura e necessita da proximidade com o
texto - e talvez de algum valor de entretenimento - para poder
fazê-lo. (HUTCHEON, 2013, p. 24).

Diante do exposto, importa destacar que a relação entre Literatura e


Cinema não é recente e, mesmo sabendo que as produções literárias se origina-
ram antes das cinematográficas, ressalta-se que “[...] o cinema está claramente fi-
xado na história cultural da humanidade, no final do século XIX. É a única arte com
‘certidão de nascimento.’” (PEREIRA, 2009, p. 44). A literatura, como expressão

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

artística, retratou o modo de pensar e viver do sujeito através do tempo, pois se


trata também de um registro histórico e social, tal como qualquer arte que possa
representar a realidade de uma época. Por isso, é possível afirmar que tudo que
pode ser escrito também pode ser filmado. Além disso, nota-se que “[...] o cinema
em busca de narrativas se depara com a literatura. As palavras acionam os sen-
tidos e se transformam em imagens na mente do leitor. O cinema, por sua vez,
abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo espectador por meio
de palavras.” (PEREIRA, 2009, p. 45). A autora aponta que a Literatura e o Cinema
mantêm uma relação dialógica, estando associados desde uma simples adaptação
e ao modo de narrar uma determinada história, no entanto, salienta que são lin-
guagens autônomas. De todo modo, a literatura sempre foi e ainda é uma grande
fonte de inspiração ao cinema. Além disso, “[...] pautados, ora pela intersecção, ora
pelo dissídio, os cineastas, desde cedo, viram na literatura um universo de temas e
de estruturas narrativas que poderiam constituir uma verdadeira fonte de inspi-
ração e de trabalho.” (PEREIRA, 2009, p. 46).

De acordo com Pereira (2009), a linguagem cinematográfica é criadora,


uma vez que a câmera não apenas reproduz alguma proximidade com a realidade,
mas pode definir, através da criação, a própria essência artística do cinema. Por
isso, é necessário estar atento ao fato de que:

Nas relações entre cinema e literatura, devemos distinguir ini-


cialmente os dois sentidos em que se usa a expressão “literária”
com respeito ao filme. Há o sentido pejorativo, que denuncia a
falta de integração entre os elementos visuais e a natureza retó-
rica ou excessivamente dialogada da narrativa. Mas há o sentido
legítimo, que indica a possibilidade de complementação entre os
recursos literários e os cinematográficos. (PEREIRA, 2009, p. 49).

Para compreender como o cinema se originou, destaca-se que, a princípio, o


filme era apenas uma sequência de tomadas estáticas, ou seja, os acontecimentos
vinham um atrás do outro, sem interrupções. Isso significa que “não surgiu uma
linguagem autenticamente nova até que os cineastas começassem a cortar o fil-
me em cenas.” (CARRIÈRE, 2014, p. 14). Dessa forma, Carrière (2014) afirma que
foi a partir da relação invisível de uma cena com a outra que o cinema realmen-
te se tornou uma nova linguagem. Essa nova maneira de produzi-lo, através do
corte em cenas, fez com que, em alguns momentos, o tempo e o espaço ficassem
implícitos ao telespectador, dando a ele a chance de imaginar e compreender os

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

acontecimentos que foram ocultos pela divisão das cenas. Desse modo, é possível
sustentar que “[...] o cinema cria, assim, um novo espaço, com um simples desloca-
mento do ponto de vista.” (CARRIÈRE, 2014, p. 17).

Com isso, observa-se que a linguagem do cinema é complexa, pois, em sua


totalidade, consegue envolver o sujeito com sua forma própria de “contar” uma
história, numa relação mútua entre imagem/tempo/espaço, que podem situar o
espectador e dar a ele a impressão de realidade. Mesmo em uma adaptação literá-
ria, “[...] o cinema se exprime por meio de imagens em movimento, é evidente que
o enredo nunca se identifica perfeitamente com aquele existente em um livro.”
(PEREIRA, 2009, p. 50). Portanto, o cinema é a arte das imagens em movimento,
enquanto que a literatura é a arte das palavras, sendo que ambas apresentam lin-
guagens distintas que podem ser complementares.

É através dos elementos cênicos, das personagens e da condensação do


tempo que se pode criar relação entre espectador e ator/personagem, fazendo
com que seja possível vivenciar a dor ou o prazer da personagem. A trama, a
ação e a história que envolvem o leitor em uma obra também podem “prender” o
espectador nos fatos apresentados no filme, uma vez que “narrar é tramar, tecer”.
(XAVIER, 2003, p. 66). Desse modo, através do cinema, é possível atribuir dife-
rentes sentidos e interpretações a partir de um mesmo material que envolve uma
sequência de fatos e acontecimentos de um percurso de vida.

De acordo com Xavier (2003), o cinema constrói pontos de vista, pois pro-
cura ir além do que a cena teatral pode oferecer. Assim, “[...] o texto dramático,
ao contrário do romance, estrutura-se como algo a se completar na encenação,
no espetáculo teatral (ou cinematográfico).” (XAVIER, 2003, p. 87). Em vista dis-
so, ressalta-se que o gênero dramático incide na representação dos segmentos
sociais e culturais do ser humano através de diversas linguagens, as quais criam
certo hibridismo linguístico. Nesse sentido, uma produção cinematográfica se en-
caixa, perfeitamente, nesse gênero, uma vez que faz uso de personagens fictícias
(baseado em fatos reais ou não), espaço cênico, adaptação temporal e utiliza-se
de diálogos, sem que haja a necessidade de um narrador, já que esses elementos
podem “substituí-lo”. Por fim, o cinema pode retratar, através da verossimilhança,
as peripécias humanas em sociedade, na tentativa de aproximar o espectador da-
quilo que está sendo representado.

Compreende-se, portanto, que a literatura e o cinema apresentam


linguagens distintas que interagem entre si e, consequentemente, podem

610
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

complementar-se. De fato, a literatura se originou antes do cinema e, com a che-


gada deste, fez com que muitos pensassem que seria o fim da linguagem literária,
no entanto, a permanência dela até a atualidade só comprova como essas duas
linguagens artísticas se relacionam e estão interligadas social e culturalmente.

Compreendida a relação entre Literatura e Cinema, assim como apresen-


tados alguns aspectos da teoria da adaptação, salienta-se que a seguir será apre-
sentada a análise comparativa em Órfãos do Eldorado, tanto no escopo literário
como no fílmico.

Análise comparativa em Órfãos do Eldorado

Órfãos do Eldorado, novela de Milton Hatoum, é narrada pela voz de


Arminto Cordovil, o qual relata a um viajante fatos sobre sua vida passada, tal
como a riqueza herdada do pai (Amando Cordovil), que se degradara totalmente
até restar apenas uma tapera velha comprada com o pouco dinheiro que sobrou
das vendas dos seus imóveis. Além disso, Arminto faz questão de relembrar os
conflitos vivenciados no âmbito familiar e de narrar seus amores mal resolvidos,
principalmente, com Dinaura, uma órfã que conheceu no velório de Amando
Cordovil.

Arminto perdeu sua mãe ao nascer e foi criado por Florita, uma jovem órfã
trazida à casa por seu pai. É possível perceber, na narrativa, que Amando Cordovil
nunca teve uma relação próxima de seu filho, uma vez que parece culpá-lo pela
morte de sua esposa e, como se pode notar no relato da personagem, Arminto se
sente angustiado e também culpado, de alguma forma, pelo o que aconteceu com
sua mãe: “[...] aqui em Vila Bela diziam a Florita que meu pai era feliz ao lado de
minha mãe. Quando ela morreu, Amando não sabia o que fazer comigo. Até hoje
recordo as palavras que me destruíram: Tua mãe te pariu e morreu”. (HATOUM,
2008, p. 16).

Além disso, Arminto Cordovil perde tudo, até mesmo seu grande amor,
Dinaura, a responsável por diversos delírios acometidos por ele. Dinaura vai em-
bora e desaparece misteriosamente, pois, supostamente, ninguém sabe para onde
ela poderia ter ido. Isso faz com que Arminto passe a vida inteira com a esperança
de reencontrá-la e, por essa razão, os moradores de Vila Bela – cidade (fictícia)
onde moravam os Cordovil – alegavam que a moça era um ser encantado que ha-
via enfeitiçado o rapaz: “[...] no porto de Vila Bela, alguém espalhou que a órfã

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

era uma cobra sucuri que ia me devorar e depois me arrastar para uma cidade no
fundo do rio. E que eu devia quebrar o encanto antes de ser transformado numa
criatura diabólica.” (HATOUM, 2008, p. 34).

Conforme se percebe na narrativa de Hatoum, além de Dinaura, o rapaz


também teve uma relação íntima com Florita, sendo que fora com ela que teve seu
primeiro beijo: “[...] ela me beijou na boca, o primeiro beijo, e pediu que eu tivesse
paciência. Louco pelas indiazinhas. Repeti essas palavras com o gosto do beijo de
Florita.” (HATOUM, 2008, p. 25). E, posteriormente, perdeu a virgindade: “[...] a
primeira mulher na minha memória. Florita [...] uma tarde em que ela dormia na
rede, entrei no quarto e fiquei observando o corpo nu. Tive um susto quando ela
se levantou, tirou minha roupa, me levou para dentro da rede”. (HATOUM, 2008,
p. 69).

Arminto recorda, ainda, sua relação com Estrela, filha de Becassis, compra-
dores de suas propriedades, a fazenda Boa Vida e o Castelo Branco: “[...] a visão de
Estrela foi uma pausa no meu transtorno [...] deitei na rede da sala e fiquei pensan-
do em Estrela; pensava nela para não sofrer com mais uma desfeita de Dinaura.”
(HATOUM, 2008, p. 49). O rapaz até cogitou a possibilidade de casamento com a
moça, entretanto, conforme é possível observar, nem mesmo Estrela foi capaz de
fazer com que Arminto se esquecesse de Dinaura: “[...] meu plano era casar com
Estrela só para não perder o palácio branco. Um plano que não ia dar certo porque
eu amava Dinaura.” (HATOUM, 2008, p. 89).

Outro aspecto que merece destaque é a presença dos mitos na obra. Desde
o título fica clara a possível relação entre Órfãos do Eldorado e o mito do El Dorado,
uma lenda indígena antiga que retrata a possibilidade de existir uma cidade sub-
mersa inteira feita de puro ouro. Além disso, ao longo da história, Arminto narra
vários mitos que ouvia dos índios e eram traduzidos por Florita, como, por exem-
plo, a história do homem que tinha a “piroca comprida, tão comprida que atraves-
sava o rio Amazonas [...] e fisgava uma moça lá no Espelho da Lua. Depois a piroca
se enroscava no pescoço do homem, e, enquanto ele se contorcia, estrangulado, a
moça perguntava, rindo: Cadê a piroca esticada?”. (HATOUM, 2008, p. 12).

Além disso, é possível observar no relato de Arminto que a figura mais pa-
terna que ele pôde ter foi Esteliano (também chamado de Stelios), advogado da
família e grande amigo de seu pai. “Estiliano era o único amigo de Amando. ‘Meu
querido Stelios’, assim meu pai o chamava. Essa amizade antiga havia começado
nos lugares que eles evocavam em voz alta como se ambos ainda fossem jovens.”

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

(HATOUM, 2008, p. 18). Stelios foi responsável por tentar aconselhar o rapaz du-
rante toda a sua vida, mas nem ele foi capaz de impedir que a fortuna dos Cordovil
ruísse, principalmente, depois do naufrágio do Eldorado, cargueiro construído por
Amando. Inclusive, foi ele quem aconselhou Arminto a vender as propriedades
que herdara do pai.

Anos depois do “desaparecimento” de Dinaura, sentindo que o fim de sua


vida estaria próximo, Stelios vai à tapera velha de Arminto e revela o que houve
com ela. Estiliano contou ao rapaz que ela estava morando em uma ilha, confes-
sando-lhe, inclusive, que quem sustentava a órfã era Amando, mas nunca soube
se ela era filha ou amante dele, havendo a possibilidade de Dinaura ser meia-irmã
ou madrasta de Arminto. Assim sendo, entregou um mapa ao moço, no qual esta-
va escrito: Manaus e Eldorado. “Já foram sinônimos, disse ele. Os colonizadores
confundiam Manaus e Manoa com o Eldorado. Buscavam o ouro do Novo Mundo
numa cidade submersa chamada Manoa. Essa era a verdadeira cidade encantada.”
(HATOUM, 2008, p. 99). Desse modo, com a revelação de Estiliano, Arminto des-
cobriu onde Dinaura poderia estar. Ao ouvir a confissão do amigo, Arminto, ansio-
so para encontrar Dinaura, vai à ilha do Eldorado com o dinheiro que Estiliano lhe
arrumou. O rapaz viajou em uma embarcação velha e sem conforto algum, mas,
para ele, isso não importava, visto que, finalmente, poderia encontrar a mulher
que amava. Estiliano morreu enquanto Arminto navegava para o eldorado e foi
sepultado no jazigo dos Cordovil.

Depois de algum tempo de viagem, Arminto chega ao Eldorado e se depara


com um lugar encantador. “A caminhada de mais de duas horas na floresta foi pe-
nosa, difícil. No fim do atalho, vimos o lago do Eldorado. A água preta, quase azula-
da. E a superfície lisa e quieta como um espelho deitado na noite. Não havia beleza
igual.” (HATOUM, 2008, p. 101-102). Finalmente, Arminto avistou uma casa na
floresta, onde encontrou uma moça que, ao ser abordada por ele, “[...] recuou um
pouco, juntou as mãos, como se rezasse, e virou a cabeça para o interior da casa”.
(HATOUM, 2008, p. 102-103).

Assim, Arminto diz que voltara à Vila Bela e finaliza o seu relato ao viajante,
o que permite se pensar na possibilidade de estar morando com Dinaura, alegan-
do que ninguém quis ouvir a sua história: “Por isso as pessoas ainda pensam que
moro sozinho, eu e minha voz de doido. Aí tu entraste para descansar na sombra

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

do jatobá, pediste água e tiveste paciência para ouvir um velho. Foi um alívio ex-
pulsar esse fogo da alma.” (HATOUM, 2008, p. 103).

Diante do exposto, ressalta-se que o filme Órfãos do Eldorado, do diretor


Guilherme Coelho, apresenta correspondências e discrepâncias em relação à no-
vela de Hatoum. Além disso, considerando-se que a adaptação cinematográfica
não tem o objetivo de manter-se “fiel” à obra escrita – configurando-se ambas
em linguagens autônomas e distintas – destaca-se que o filme em questão é uma
adaptação livre do livro Órfãos do Eldorado, do escritor Milton Hatoum.

É possível perceber, logo no começo do filme, a semelhança com o início


da obra de Hatoum. No entanto, diferentemente do livro, no cinema, tem-se a
presença de imagens que podem substituir as palavras escritas e, desse modo, não
é necessária a presença de um narrador para situar o espectador. Por essa razão,
salienta-se que a história retratada no filme não é narrada por Arminto, assim
como ocorre no livro, porém, o enfoque continua sendo em sua personagem.

Inicialmente, com uma sequência de imagens do rio Amazonas, nota-se a


referência ao que Arminto narra no livro sobre a mulher que vê, quando criança,
indo em direção ao rio e desaparecendo na água.

A voz da mulher atraiu tanta gente, que fugi da casa do meu pro-
fessor e fui para a beira do Amazonas. Uma índia, uma das ta-
puias da cidade, falava e apontava o rio. Não lembro o desenho
da pintura no rosto dela; a cor dos traços, sim: vermelha, sumo
de urucum. Na tarde úmida, um arco-íris parecia uma serpente
abraçando o céu e a água. Florita foi atrás de mim e começou a
traduzir o que a mulher falava em língua indígena; traduzia umas
frases e ficava em silêncio, desconfiada. Duvidava das palavras
que traduzia. Ou da voz. Dizia que tinha se afastado do marido
porque ele vivia caçando e andando por aí, deixando-a sozinha
na Aldeia. Até o dia em que foi atraída por um ser encantado.
Agora ia morar com o amante, lá no fundo das águas. [...] De re-
pente a tapuia parou de falar e entrou na água. Os curiosos fica-
ram parados, num encantamento. E todos viram como ela nadava
com calma, na direção da ilha das Ciganas. O corpo foi sumindo
no rio iluminado, aí alguém gritou: A doida vai se afogar. Os bar-
queiros navegaram até a ilha, mas não encontraram a mulher.
Desapareceu. Nunca mais voltou. (HATOUM, 2008, p. 11-12).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Como se observa, o relato feito, no livro, por Arminto Cordovil, pode fa-
cilmente ser identificado na imagem disposta no filme, através da cena a seguir.
Assim, percebe-se que, no discurso fílmico, não há a necessidade de uma descri-
ção do que está acontecendo, uma vez que é possível compreender com clareza
que a mulher vai até o rio e some enquanto Florita e Arminto presenciam a situa-
ção, não havendo, portanto, a presença de uma narração em voice-over descre-
vendo a cena em detalhes para o espectador.

Imagem 1. Cenas em que a índia desaparece nas águas do rio


Fonte: Órfãos do Eldorado, 2015

No filme, também é possível observar a alusão aos mitos apresentados no


livro de Hatoum, com algumas modificações notáveis. Depois da cena da mulher
desaparecendo no rio, vê-se Arminto, já adulto, viajando em um barco, onde há
um sujeito contando alguns mitos a uma mulher. Desse modo, uma evidência clara
de aproximação com a obra escrita é o mito contado pela personagem sobre “[...] a
história de uma mulher que foi seduzida por uma anta-macho”. (HATOUM, 2008,
p. 12). Entretanto, não há menção no livro sobre a história dos três céus, sendo,
portanto, livre escolha do roteirista fazer tal modificação:

O marido esfregou foi muita pimenta no cacete do bicho e se es-


condeu para ver a mulher dele lamber aquele pau de barro e sen-
tar em cima. A mulher começou a pular e gritar com a persegui-
da coçando por causa da pimenta que queimava que nem fogo.
Foguinho na racha! Aí foi o jeito a mulher pular no rio para aliviar
a queimação e acabou virando um sapo. E o marido, desesperado,
foi morar na beira do rio, triste e arrependido, pedindo para que
a mulher voltasse pra ele... Mas agora eu vou contar uma história
que não tem saliência, essas coisas não [...] lá em cima de tudo
tem um uburu enorme que toma conta dos céus, que é pra onde
a gente vai quando não tá mais aqui como agora. São três céus.
Quando alguém morre aqui embaixo e é muito filha da puta, não

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

passa do primeiro céu, que é todo de fumaça. Depois desse, tem o


segundo céu, que é um céu todo branco, que é onde ficam os pre-
guiçosos. Aí chega o terceiro céu, que é um céu todo vermelho,
encarnado, um céu inferno, cor de sangue, quanto mais alto, mais
vermelho, mais encarnado e mais triste. Esse é o céu do Irapuru.
(COELHO, 2015, 05min06s).

Desse modo, é possível perceber que o relato do viajante faz com que
Arminto se lembre de Florita, pois é notável o corte feito na cena para mostrar os
dois, mais jovens, sentados em uma rede, onde Florita contava a mesma história
sobre a anta-macho para Arminto: “[...] mas aí para se vingar, a mulher foi lá e pas-
sou bastante barro no pinto da Anta até ele ficar seco e duro e isso foi enfezando
o marido, enfezando o marido” (COELHO, 2015, 06min21s).

Imagem 2. Cena de Arminto e Florita na rede


Fonte: Órfãos do Eldorado, 2015

Como se pode observar, nas cenas em que Florita aparece, quando jovem,
não é possível ver o seu rosto com nitidez, o que se vê são imagens desfocadas.
Inclusive, na cena acima, nota-se que somente as pernas da personagem apare-
cem, o que transmite a ideia de que as lembranças de Arminto são vagas quanto
ao rosto jovem de Florita. Após haver um novo corte na cena, Arminto aparece
chegando em Vila Bela, onde é recebido por Estiliano, personagem que ganha me-
nos destaque no filme do que no livro, e, neste momento, nota-se o desaponta-
mento de Arminto por não ter sido recebido por seu pai.

No caminho para casa, Arminto se lembra da infância, sendo que Florita


continua a fazer parte de sua memória. Nota-se que, novamente, não é possível
ver o rosto de Florita com clareza, sendo que apenas o rosto de Arminto aparece
com nitidez na cena.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Imagem 3. Cena em que Arminto e Florita penteando seus cabelos


Fonte: Órfãos do Eldorado, 2015

Ao chegar em sua casa, Arminto observa os cômodos, como se estivesse


comparando-os com os de suas lembranças, e olha com admiração o retrato que,
possivelmente – visto que, neste momento, não há menção a ela no filme, é o de sua
mãe. Desse modo, ele é recebido por Florita, um pouco mais velha, mas, dessa vez,
com o rosto nitidamente revelado. Além disso, ela revela que Amando não sabe
da ida de Arminto à Vila Bela: “Pensei que nunca mais fosse te ver. Tais igualzinho.
[...] Teu pai acabou de sair. Ele não sabe que tu voltaste, nem desconfia. [...] Vai ser
bom pra ele. Vou fazer um jantar para vocês dois”. (COELHO, 2015, 12min28s).
Em seguida, vê-se Arminto e Florita tendo relações sexuais, o que mostra a in-
timidade entre os dois, assim como ocorre na novela hatoumniana. No entanto,
o que se observa, no filme adaptado, é que esses encontros ocorrem com mais
frequência que na obra literária. Inclusive, há um momento, mais adiante no filme,
em que Arminto menciona o fato de Florita não ter querido fugir com ele, quando
mais jovens, e isso não é citado no livro. Ademais, na obra escrita, entende-se que
Arminto foi obrigado a sair de casa por ter abusado de Florita: “[...] acreditava que
o castigo por ter abusado de Florita era merecido; por isso, devia suportar o peso
dessa culpa.” (HATOUM, 2008, p. 16).

Referencia-se, ainda, a construção do barco do Eldorado, sendo que Florita


o menciona como se fosse o motivo por prejudicar a saúde de Amando: “[...] esse
tal barco que eles estão construindo. Tal do Eldorado. Isso está deixando ele doen-
te. Tu precisas ver a quantidade de remédio.” (COELHO, 2015, 18min43s). Isso
ainda pode ser a justificativa para a sua morte, na cena seguinte, no momento em
que vê Arminto em sua frente. Entretanto, ao contrário do livro, na produção cine-
matográfica, Arminto não comparece ao velório do pai, onde conheceu Dinaura;
além disso, a adaptação não retrata a cena do velório de Amando Cordovil, apenas
mostra uma conversa entre Arminto e Florita, quando esta chega, já escurecendo,

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

do velório: “Tu não tens culpa de nada Arminto. (Meu pai morreu para me matar
de culpa). Um monte de gente perguntando por ti e eu não sabia o que dizer... Foi
bonito!”. (COELHO, 2015, 23min40s). Desse modo, percebe-se que a cena escura
e fúnebre, devido à falta de luz, pode retratar o luto pela morte de Amando e, ain-
da, a dor e culpa sentida por Arminto, visto que, no momento em que Florita entra
em casa, ele está se embriagando e fumando.

Imagem 4. Cena em que Arminto e Florita depois do velório de Amando


Fonte: Órfãos do Eldorado, 2015

Depois da mencionada cena da conversa entre Florita e Arminto sobre o


velório, há um corte, no qual surge outra vez, a imagem da índia que desapareceu
nas águas do rio Amazonas. Ao amanhecer, Arminto comenta que sonhou de novo
com ela. Em seguida, vê-se uma sequência de imagens do rio e ouve-se apenas a
voz de Florita revelando a verdade sobre o que de fato aconteceu com a moça
naquele dia, justificando, ainda, o motivo de ter mentido para Arminto.

A índia... A índia dos teus sonhos. A índia que entrou no rio. Eu


traduzi errado o que ela gritava. Eu menti. Eu te falei que ela que-
ria ir para a cidade encantada. Uma cidade submersa. Um lugar
cheio de ouro. Mas o que ela dizia era que os filhos e o marido
tinham morrido de febres. Que ela ia morrer no fundo do rio
porque não queria mais sofrer na cidade... Não podia contar para
uma criança que ela simplesmente tinha desistido de viver. Ela
queria morrer, só isso. (COELHO, 2015, 26min15s).

Mais adiante, Estiliano aparece na casa de Arminto e comenta sobre o so-


nho que Amando não pôde realizar: “[...] teu pai não vai ver o Eldorado na água. O
grande sonho dele. O navio de ferro. Mas nós vamos ver isso.” (COELHO, 2015,
30min15s). Logo se nota a inquietação de Arminto, alegando que seu lugar não é
em Vila Bela e, no mesmo momento, é repreendido por Estiliano, dizendo que o

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

dinheiro que sempre o sustentou dependia dos barcos navegando. O rapaz, en-
tão, sugere a venda da empresa e, com isso, percebe-se a repulsa de Estiliano pela
ideia, alegando: “Arminto, essa empresa é a história da sua família [...] nem se a
gente quiser vender, a gente consegue, tivemos que hipotecar os outros barcos.
Ninguém vai querer comprar nada nosso agora. Bem, eu vou indo.” (COELHO,
2015, 31min10s).

Outro fato interessante que necessita ser evidenciado aqui é a cena em


que Arminto vai a uma praia, carregando um livro em suas mãos. A personagem
senta na areia e coloca o livro com a capa virada para cima, o qual é justamente o
livro Órfãos do Eldorado, do escritor Milton Hatoum, deixando evidente a proxi-
midade com o texto adaptado para o filme. No entanto, só é possível fazer essa
associação se o espectador tiver conhecimento da capa do livro do escritor, visto
que na cena a imagem não é totalmente nítida, pelo fato da câmera estar mais
distante do protagonista. Conforme se nota na imagem a seguir:

Imagem 5. Cena de Arminto na praia com o livro de Hatoum, juntamente com a capa do livro
Órfãos do Eldorado.
Fonte: Órfãos do Eldorado, 2015

Depois, Arminto passa a se envolver com Dinaura e, assim como ocorre na


obra literária, não consegue mais esquecê-la. Dessa maneira, quando Dinaura de-
saparece, o rapaz utiliza todos os recursos a seu alcance para encontrá-la, até que,
finalmente, descobre que Dinaura e Florita são uma única pessoa. No entanto, na
obra hatouniana, as personagens são duas pessoas distintas.

Há outro aspecto no filme que também não aparece no livro. É o momen-


to em que Arminto está olhando alguns peixes, possivelmente, para comprar. Na
cena, o rapaz parece estar os acariciando, sendo notório o fato de eles estarem

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

abertos, lembrando o formato das partes genitais femininas. Assim, é possível as-
sociar isso aos desejos acometidos por ele, conforme se observa:

Imagem 6. Cena de Arminto escolhendo os peixes


Fonte: Órfãos do Eldorado, 2015

Além disso, o livro traz a possibilidade de Dinaura ser filha ou amante de


Amando, uma vez que era ele que a mantinha financeiramente no orfanato. No
filme, essa ambiguidade é desfeita, sendo que o cineasta optou por deixar eviden-
te que Florita/Dinaura é filha de Amando Cordovil e também sua amante. Logo,
pode-se observar a relação incestuosa presente no discurso fílmico, visto que
Arminto de fato é irmão de Florita e mantém relações sexuais e afetivas com ela.
Essa descoberta é feita quando o rapaz vai até do povoado Cegos do Paraíso:

- Chamam ela de Dinaura. Eu me perdi. Eu fugi. Eu preciso saber


dela. Não sei mais.
- Dinaura? É a neta preferida de seu Ranolfo, mas ela foi embora
e nunca mais voltou. Nunca escreveu. E ainda acho até que ela
tinha vergonha da gente. A gente ficou sabendo que lá em Vila
Bela ela usava outro nome. Florita. [...] Florita. Dinaura. Amando
Corvovil, foi ele que trouxe a gente pra cá. Conheceu Amando?
Na vinda de lá pra cá, ele engravidou a filha de seu Ranolfo. Aí
nasceu Dinaura. (COELHO, 2015, 1h18min12s).

Com isso, Arminto continua sua incessante busca pela amada e, tal como na
obra literária, só o que lhe resta é uma tapera velha. Pode-se dizer que o final do
filme é muito parecido com o do livro, visto que é Estiliano quem revela ao rapaz
onde Dinaura se encontra. Dessa forma, Arminto vai à procura dela e encontra
uma criança na casa onde Florita morava e, assim, o filme termina com a possibili-
dade do reencontro entre Arminto Cordovil e sua desejada Dinaura.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Considerações finais

Por muito tempo, as adaptações das produções literárias eram vistas


de maneira negativa, uma vez que, quando um grande clássico da literatura era
transposto para o cinema, por exemplo, o leitor procurava evidenciar traços se-
melhantes e, até mesmo, fiéis à obra literária. No entanto, afirma-se que, atual-
mente, busca-se desconstruir essa postura em relação à fidelidade ao texto dito
como original, uma vez que é possível vislumbrar as contribuições ricas que uma
arte traz a outra de maneira que possibilite a autonomia no ato de adaptar uma
determinada história, independentemente do seu gênero.

A transposição de uma linguagem literária para a cinematográfica exige


novas formas de significação, visto que através da adaptação serão atribuídos
novos significados à obra adaptada. Além disso, diferentemente do livro, no ci-
nema, tem-se a presença de imagens que podem substituir as palavras escritas e,
desse modo, não é necessária a presença de um narrador detalhando cada ação
das personagens e descrevendo cada situação vivenciada por elas para situar o
espectador.

Desse modo, é possível concluir que o filme Órfãos do Eldorado, do dire-


tor Guilherme Coelho, apresenta correspondências e discrepâncias em relação
à novela de Hatoum. Além disso, considerando-se que a adaptação cinemato-
gráfica não tem o objetivo de manter-se “fiel” à obra escrita – configurando-se
ambas em linguagens autônomas e distintas – destaca-se que a adaptação fíl-
mica do livro Órfãos do Eldorado é uma obra autônoma, embora dialogue com
o romance de Hatoum. Assim, é possível notar que a adaptação cinematográfica
mantém alguns elementos da obra hatouniana, tal como o mesmo título do livro,
o nome das personagens e cidades pelas quais Arminto Cordovil, protagonista de
ambas as obras, morou, inclusive, Vila Bela – cidade fictícia da novela de Hatoum.
Portanto, compreende-se que a literatura e o cinema são linguagens distintas que
interagem entre si e, consequentemente, podem se complementar.

Referências

BRASIL DE FATO. Quando o mito vira história e a história vira mito. São Paulo,
2010. Disponível em: http: //www.miltonhatoum.com.br/sobre-autor/noticias-
-entrevistas/quando-o-mito-vira-historia-e-a-historia-vira-mito-entrevista-ao-
-brasil-defato. Acesso em: 24 out. 2020.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

CARRIÈRE, J.C. A Linguagem Secreta do Cinema. Tradução de Fernando Albagli e


Benjamin Albagli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
CURY, M. Z. F. Imigrantes e agregadas: personagens femininas na ficção de Milton
Hatoum. In: DUARTE, C. L.; DUARTE, E. de A.; BEZERRA, K. da C. (Org.). Gênero e
representação na literatura brasileira: ensaios. Belo Horizonte: Pós-Graduação
em Letras Estudos Literários, UFMG, 2002. p. 305-318.
HATOUM, M. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Tradução André Cechinel. 2. ed. -
Florianópolis: Ed. da UFSC, 2013.
MODRO, N R. Literatura e Cinema: Artes Complementares.In: MEDEIROS,
F. H. N. e MORAES, T. M. R. (org). Salve o Cinema II: Leitura da Linguagem
Cinematográfica.Joinville: Editora Univalle, 2011. p. 31-38.
ÓRFÃOS do Eldorado. Direção de Guilherme Coelho. Produção: Maurício
Andrade Ramos, Guilherme Coelho e Daniel Dreifuss. Brasil: Matizar, 2016, 1
DVD Blu-ray. 1H 36 min.
PEREIRA, O. A. Cinema e Literatura: dois sistemas semióticos distintos. Kalíope,
São Paulo, ano 5, n. 10, p. 42-69 ago./dez., 2009.
SILVA, F. A. R. TRUSEN, Sylvia Maria. A ficção de Milton Hatoum: recepção.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 117-131, jan./jun.
2018.
XAVIER, I. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema.In:
Literatura, Cinema e Televisão. Editora Senac. São Paulo, 2003. p. 61-89.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

MACABÉA: UMA ANÁLISE DA POBREZA


E DA EXCLUSÃO SOCIAL EM A HORA
DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR1

Mariliane dos Santos Dalmolin2


Marcos Hidemi de Lima3

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar a exclusão social que aco-
mete Macabéa, protagonista de A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector. Tal
estudo se dedica a compreender os aspectos da pobreza e, consequentemente,
as condições precárias em que a personagem se encontra no decorrer da narra-
tiva. Nesse sentido, é possível evidenciar que a miséria e a falta de direitos bá-
sicos em muito contribuem para reforçar a invisibilidade social, no ambiente ur-
bano, vivenciada pela nordestina Macabéa. Para a realização desta análise, vão
ser utilizados os trabalhos científicos de Rocha (2007), Dalcastagnè (2000) e
Almeida (2017) que discutem questões pertinentes ao estudo desta personagem
de Clarice Lispector. Além disso, com o intuito de efetuar a abordagem de assun-
tos relacionados à pobreza e ao abandono social, vão ser empregados Sá e Jesus
(2013), Ribeiro (1997) e Castro (2009). Em suma, neste estudo empreendido so-
bre A hora da estrela, constata-se que a protagonista do romance representa, de
uma forma simbólica, inúmeros migrantes nordestinos que saíram de sua região
1 Trabalho desenvolvido ao longo da disciplina de Narrativa brasileira do sé-
culo XX ao XXI, do curso de Letras – Português e Inglês, da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná, campus Pato Branco.
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Pato Branco. marilia-
nedalmolin@hotmail.com.
3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Pato Branco. marcoshi-
demidelima@gmail.com.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

à procura de melhores condições de vida e tiveram seus direitos básicos negados,


sendo, por conseguinte, relegados à margem da sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Marginalização; Invisibilidade; Estudo de personagem.

ABSTRACT: The following research aims to analyze the social exclusion that affects
Macabéa, main character from A hora da estrela (1977), by Clarice Lispector. Such stu-
dy is restricted to understand the aspects of poverty and, consequently, that precarious
conditions in which the character is in the course of the narrative. In this sense, it is
possible to show that the misery and the lack of basic rights contribute a lot to rein-
force the social invisibility, in the urban environment, experienced by the northeastern
Macabéa. For this research, the scientific works of Rocha (2007), Dalcastagnè (2000)
and Almeida (2017) will be used to discuss issues pertinent to the study of the character
by Clarice Lispector. Besides that, in order to address issues related to poverty and social
abandonment, Sá and Jesus (2013), Ribeiro (1997) and Castro (2009) were also part
of the theoretical scope. Thus, in this study undertaken on A hora da estrela, it appears
that the main character of the novel represents, in a symbolic way, countless northeas-
tern migrants who left their region in search of better living conditions and had their
basic rights denied, being therefore, relegated to the margins of society.

KEYWORDS: Marginalization; Invisibility; Character study.

Introdução

A hora da estrela (Clarice Lispector, 1977) narra a história de Macabéa, mi-


grante nordestina que sai do interior de Alagoas para morar no Rio de Janeiro. A
história da protagonista é conhecida por meio do narrador-personagem denomi-
nado Rodrigo S. M. Este, por sua vez, conta ao leitor um pouco sobre a trajetória
de vida da alagoana, os percalços vivenciados ao longo da infância e da vida adulta
da alagoana e, por fim, a morte da heroína que é também, irônica e paradoxalmen-
te, o auge de sua existência, a hora da estrela – no sentido de conquista da impor-
tância que, ao longo da narrativa, Macabéa, jamais tivera. Em suma, o romance
trata de questões como a invisibilidade social e a pobreza, sobretudo, no que se
refere àqueles que são menos afortunados.

Tomando como ponto de partida tal perspectiva, o presente trabalho se


propõe a analisar a exclusão social vivenciada por Macabéa, bem como com-
preender os fatores que enquadram a nordestina como alguém invisível perante a
sociedade. Nesse sentido, a pobreza e, por consequência, as condições precárias

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que marcam o percurso de vida da datilógrafa se apresentam como principais fa-


tores para a exclusão vivenciada pela personagem. Além disso, o foco deste artigo
também é evidenciar que a alagoana representa, simbolicamente, todos os mi-
grantes nordestinos que procuram nos grandes centros urbanos uma oportunida-
de de melhorar de vida, porém, o que encontram é o abandono social e a negação
de direitos básicos ao ser humano.

A partir das considerações iniciais acima, é possível relacionar A hora da


estrela, de Clarice Lispector, com aquilo que Regina Daslcastagnè (2000) discute
sobre os romances contemporâneos com base nos estudos de Bakhtin:

Diálogos que se estabelecem com a sociedade dentro da qual foi


engendrada a obra, com sua história, sua cultura [...]. Diálogos
que fazem do romance um instrumento de inserção no tempo
circundante. E que, portanto, tornam vivo ainda que os anos pas-
sem [...]. (2000, p. 85).

Sob esse viés, o romance de Clarice Lispector se enquadra naquilo que é


denominado verossimilhança. Isto é, os acontecimentos narrados em A hora da
estrela dialogam com problemas sociais que ocorriam na sociedade brasileira da
época em que o romance foi escrito e, pode-se afirmar, que tal conjuntura ainda se
faz presente nos dias atuais. Em outras palavras, por meio de Macabéa, o roman-
ce representa a vivência de inúmeros nordestinos que migraram e ainda migram
para as grandes cidades. Nesse sentido, o texto lispectoriano faz uma crítica ao
modo como estas pessoas eram excluídas e abandonadas à própria sorte em uma
sociedade que nunca se importou com os menos favorecidos.

A hora da crítica social

Ao longo de A hora da estrela fica evidente que a temática que permeia a


narrativa diz respeito a uma crítica social. Nesse sentido, Dalcastagnè (2000, p.
96) aponta que o romance “É um livro que expõe feridas e vergonhas, que fala
das misérias e fracassos sem disfarçar incompetências [...]. Não amesquinha a dor,
nem a vida.” Ou seja, este romance de Clarice Lispector evidencia aquilo que de
pior há na sociedade e, principalmente, como os elementos negativos presentes
na grande cidade impactam na vida da nordestina Macabéa, que se encontra em
um centro urbano no qual não há espaço para aqueles que são menos favorecidos.
Em outras palavras, ao contar a história da alagoana, o narrador Rodrigo S. M.,

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

irônico com a personagem que inventou, não poupa os adjetivos desagradáveis


para descrever a triste existência de Macabéa.

Ao tratar sobre a infância da jovem migrante, Rodrigo S. M. deixa eviden-


te que, desde muito pequena, Macabéa se portava como alguém cuja trajetória
sempre fora muito sofrida, o que não atenua o tratamento irônico do narrador em
relação à protagonista:

Nascera inteiramente raquítica, herança do sertão – os maus an-


tecedentes de que falei. Com dois anos de idade lhe haviam mor-
rido os pais de febres ruins no sertão de Alagoas, lá onde o diabo
perdera as botas. Muito depois fora para Maceió com a tia beata,
única parenta sua no mundo. (LISPECTOR, 1998, p. 28).

No trecho citado acima, destaca-se, em um primeiro momento, a morte dos


pais de Macabéa por causa de “febres ruins”. Tal circunstância não abranda o tom
zombeteiro do narrador ao observar que o lugar em que a família de Macabéa
vivia (“lá onde o diabo perdera as botas”) não possuía médicos ou condições para
que se tivesse acesso a direitos básicas, como, por exemplo, saúde. Nesse sentido,
é possível verificar que, desde pequena, a personagem já vivenciava os sofrimen-
tos que, comumente, assolam aqueles que são desprovidos de condições mínimas
de existência. A isto, soma-se o fato de que o Nordeste brasileiro é um local pra-
ticamente abandonado, no qual as pessoas que lá vivem são deixadas à própria
sorte.

Seguindo essa linha de raciocínio, ao abordar a questão do Nordeste no


romance de Lispector, Silva (2012, p. 36) aponta que “O Nordeste [...] está conde-
nado às cinzas, isolação, fome e sede. É o espaço de fuga, onde as pessoas tinham
seus destinos marcados pela dor e sofrimento.”. Como é perceptível, a análise em-
preendida por Silva é observável em A hora da estrela, pois fica patente que, ao lon-
go da narrativa, a fome e o sofrimento são males que marcam a vida de Macabéa,
cuja origem remete a este local em que tais circunstâncias eram comuns.

Ainda nessa perspectiva, observa-se que a fome que consumia Macabéa


desde o seu nascimento vai acompanhá-la no decorrer de sua vida adulta. Tal afir-
mação pode, por exemplo, ser averiguada na seguinte passagem: “Às vezes antes
de dormir sentia fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca. O remé-
dio então era mastigar papel bem mastigadinho e engolir.” (LISPECTOR, 1998, p.
32). Com base no trecho citado, fica evidente que mesmo que a protagonista não

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se encontre mais no Nordeste, a miséria vivida na infância também se faz presen-


te no Rio de Janeiro. Em outras palavras, o local em que a personagem mora não
interfere em sua pobreza, mesmo que, simbolicamente, o Rio representasse um
lugar de esperanças, no qual muitos migrantes buscassem uma melhor condição
de vida. Pelo contrário, Macabéa se depara com a escassez de alimento na metró-
pole carioca, da mesma forma que, no interior do Alagoas, a fome a fizera nascer
raquítica.

Sob esta mesma ótica, é possível averiguar que a capital carioca, a princípio,
representa no romance um lugar completamente oposto ao Nordeste brasileiro:
“Depois [...] tinham vindo para o Rio, o inacreditável Rio de Janeiro, a tia lhe arran-
jara um emprego, finalmente morrera e ela, agora sozinha, morava numa vaga de
quarto compartilhado [...].” (LISPECTOR, 1998, p. 30). A passagem destaca uma
dualidade entre a realidade do interior do Alagoas, onde a pobreza extrema e a
fome grassam, e o “inacreditável Rio de Janeiro”. Todavia, tal ideia logo se mostra
errônea, uma vez que em ambos os espaços Macabéa acaba por se tornar víti-
ma do abandono social que atinge todos aqueles que, assim como a protagonista,
buscaram nos grandes centros urbanos uma chance de melhorar de vida.

Ao discutir esta obra, Rocha (2007, p. 15) aponta que “há poucas referências
às condições de vida no Nordeste brasileiro, talvez porque o que a autora queira
mostrar é exatamente a condição daqueles que deixaram sua terra em busca de
um sonho que nem sabem qual é.”. Tal observação expressa perfeitamente a pro-
tagonista de A hora da estrela, pois Macabéa não dispunha de nenhuma ambição,
bem como contenta-se com aquilo que tinha, sem questionar nenhuma das misé-
rias que lhe eram impostas ao longo de sua vida: “Não fazia perguntas. Adivinhava
que não há respostas. Era lá tola de perguntar? E de receber um “não” na cara? [...]
Por falta de que lhe respondesse ela mesmo parecia se ter respondido: é assim
porque é assim.” (LISPECTOR, 1998, p. 27). Desse modo, o que se constata é que
a nordestina é alguém completamente conformada com a realidade na qual vive.
Ou seja, o conformismo da personagem a impede de questionar o real motivo de
ela se encontrar em uma situação tão miserável, bem como ambicionar algo me-
lhor para o seu futuro.

É possível observar que a personagem não possui nenhuma ambição, sendo


mínimos seus anseios, quase inexistentes, reduzidos à “[...] goiabada com queijo,
a única paixão na sua vida.” (LISPECTOR, 1998, p. 28), ou ainda “[...] o luxo que
se dava era tomar um gole frio de café antes de dormir. Pagava o luxo tendo azia

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ao acordar.” (LISPECTOR, 1998, p. 33). Fica evidente, portanto, que as precárias


condições de vida a que Macabéa foi submetida fizeram que a nordestina
encarasse coisas simples, ou até mesmo comuns para pessoas um pouco mais
abastadas, como algo luxuoso. Dessa forma, é possível afirmar que a protagonista
possui uma visão de mundo limitada, sendo vítima de sua própria alienação:

[...] era muito impressionável e acreditava em tudo o que existia


e no que não existia também. Mas não sabia enfeitar a realidade.
Para ela, a realidade era demais para ser acreditada. Aliás, apa-
lavra “realidade” não lhe dizia nada. [...]. Quando dormia quase
que sonhava que a tia lhe batia na cabeça. Ou sonhava estra-
nhamente em sexo [...]. Quando acordava se sentia culpada sem
saber o porquê, talvez porque o que é bom devia ser proibido.
Culpada e contente. Por via das dúvidas se sentia de propósito
culpada e rezava mecanicamente três ave-marias, amém, amém,
amém. Rezava, mas sem Deus, ela não sabia quem era Ele [...].
(LISPECTOR, 1998, p. 34).

No trecho acima, Macabéa demonstra não saber o que é realidade ou o que


é Deus. Ela sequer entende a razão do sonho dela ser passível de punição caso
não rezasse. Na realidade, o que se constata é que a nordestina não possui um
olhar crítico sobre as coisas, acatando tudo aquilo que lhe era dito. Ou seja, a tia
a ensinara que era preciso rezar e assim a protagonista mecanicamente o fazia. A
respeito de religião, Marilena Chauí (1992, p. 22) ressalta que “[...] é a forma su-
prema da alienação humana, na medida em que ela é a projeção da essência huma-
na num Ser superior, estranho e separado dos homens, um poder que os domina
e governa [...].” Ao observar o comportamento religioso de Macabéa, é possível
constatar que a alienação discutida por Chauí impregna a personagem, sobretudo
na automatização da religião decorrente dos ensinamentos da tia, que a instruiu a
crer cegamente naquilo que a igreja prega.

A partir dessa linha de raciocínio, se pode evidenciar que a religiosidade


também faz com que a protagonista de A hora da estrela acredite que a vida é tal
qual ela a vive, sem que exista a possibilidade de alterar a miséria e o sofrimento
que a acometem. Nesse sentido, a alienação religiosa de Macabéa expande-se para
uma alienação relativa à sua compreensão de mundo, contribuindo para que ela
permaneça insignificante no meio urbano em que está inserida. Completamente
alienada do que sucede à sua volta, a nordestina torna-se incapaz de questionar

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

os problemas sociais e econômicos por ela eram vivenciados, já que ela sequer
tem consciência clara das desigualdades pelas quais passa.

Em uma perspectiva semelhante, Sá e Jesus (2013) apontam que:

[...] Macabéa não tinha visão de mundo e também não era vis-
ta. Existia simplesmente, sem aspirações ou realizações. A falta
de acesso a uma formação minimamente digna acarretou-lhe a
exclusão do contexto social. Exclusão praticamente garantida à
maioria dos que provinham da mesma região que a protagonista
e como ela não tivera a sorte de um berço na elite minoritária.

Conforme se observa na citação acima, fica patente que a invisibilidade


social sofrida por Macabéa ao longo do romance decorre de sua origem, da falta
de acesso a direitos básicos como educação, saúde e alimentação. Tais fatores fa-
zem que a personagem, ao se encontrar em uma grande metrópole, acabe sendo
excluída socialmente. Afinal de contas, aquilo que ela tinha a oferecer não signifi-
cava nada em um local como o Rio de Janeiro. Tal afirmação fica evidente no am-
biente de trabalho da protagonista:

Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamen-


te letra por letras – a tia é que lhe dera um curso ralo de como
bater à máquina. E a moça ganhara uma dignidade: era enfim
datilógrafa. Embora, ao que parece, não aprovasse na linguagem
duas consoantes juntas e copiava a letra linda e redonda do ama-
do chefe a palavra “designar” de modo como em língua falada di-
ria ´desiguinar´. (LISPECTOR, 1998, p. 15).

Nota-se, no excerto acima, que Macabéa não possui conhecimento sufi-


ciente da ortografia da língua portuguesa. Certamente, tal situação é decorrên-
cia da falta de escolarização da protagonista. Noutras palavras, tal circunstância
ocorre por conta das precárias condições que a protagonista vivera em sua infân-
cia no sertão, sobretudo devido à falta de acesso à educação e também devido à
baixa qualidade educacional de onde ela viera.

Castro ressalta que a ausência de estudos é “[...] um dos principais pro-


blemas que potencializam a manutenção das enormes desigualdades sociais
enfrentadas pela população brasileira. ” (2009, p. 673). Com base nisso, pode-se
relacionar a falta de conhecimento ao fato de que a personagem não consegue
se manter em seu emprego, uma vez que ela possuía sérias dificuldades com a

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

escrita. Semialfabetizada, Macabéa não é capaz de redigir um texto de forma sa-


tisfatória, já que não possuía as informações necessárias para datilografar da ma-
neira exigida, pois não tivera acesso à educação.

Em decorrência da pouca escolaridade e da alienação da realidade que está


à sua volta, Macabéa demonstra bastante dificuldade em manter um diálogo com
Olímpico, o namorado. Apesar de ela se esforçar, não consegue interpretar aquilo
que está sendo dito:

Ela: – Pois é o quê?


Ele: – Eu só disse pois é!
Ela: – Mas “pois é” o quê?
Ele: – Melhor mudar de conversa porque você não me entende.
Ela: – Entender o quê?
Ele: – Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto e já!
Ela: – Falar então de quê?
Ele: – Por exemplo, de você.
Ela: Eu?!
Ele: – Por que esse espanto? Você não é gente? Gente fala de
gente.
Ela: – Desculpe, mas não acho que sou muito gente. (LISPECTOR,
1998, p. 48).

O trecho acima demonstra novamente as consequências que derivam da


parca escolaridade de Macabéa. Além de não conseguir interpretar aquilo que
está escrito, a personagem também não consegue decifrar o significado daquilo
que estão lhe dizendo. Ademais, na passagem em questão, evidencia-se também
que a nordestina ainda se percebe como não sendo ninguém, o que pode ser in-
terpretado como uma espécie de metáfora. Em outras palavras, para que a prota-
gonista do romance pudesse ser considerada “gente” no meio social em que ela
vive, era necessário que soubesse ler, escrever, interpretar e manter uma conver-
sa. Todavia, como a personagem não sabia realizar nenhuma destas tarefas ade-
quadamente, ela mesma não se considera “muito gente”, isto é, ela se considera
inferior perante as demais pessoas.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Em face disso, Macabéa pode ser considerada uma analfabeta funcional,


visto que não consegue interpretar adequadamente o significado daquilo que lhe
está sendo dito ou que está escrito. Os apontamentos abaixo de Ribeiro (1997, p.
145) servem para caracterizar Macabéa:

Em alguns casos, o termo analfabetismo funcional foi utilizado


também para designar um meio termo entre o analfabetismo
absoluto e o domínio pleno e versátil da leitura e da escrita, ou
um nível de habilidade restrito às tarefas mais rudimentares re-
ferentes à “sobrevivência” nas sociedades industriais.

Apesar de saber ler e escrever, mesmo que precariamente, Macabéa não


possui um nível satisfatório de compreensão para realizar interpretações. Nem
mesmo um simples diálogo é totalmente compreensível pela personagem. Além
disso, ela é incapaz de expressar aquilo que está pensando, pois, para expressar-
-se, é necessário conhecer as palavras adequadas. Como tem pouca escolarida-
de, Macabéa conhece o básico da língua, e isto compromete sua apreensão da
realidade.

Neste mesmo sentido de falta de conhecimento, ocorre a passagem em que


Macabéa escuta uma música internacional e não compreende o motivo do nome
da música conter a palavra “lacrima” (italiano) e não “lágrima” (português) como
ela bem conhecia:

– [...] Eu também ouvi uma música linda, eu até chorei.


– Era samba?
– Acho que era. E cantada por um homem chamado Caruso que
se diz que já morreu. A voz era tão macia que até doía ouvir. A
música chamava-se “Uma Furtiva Lacrima”.
Não sei por que eles não disseram lágrima.
Ela achava que “lacrima” em vez de lágrima era erro do homem
da rádio.
[...]
Nunca lhe ocorrera a existência de outra língua e pensava que no
Brasil se falava brasileiro. (LISPECTOR, 1998, p. 51)

A citação ilustra mais uma vez a ignorância de Macabéa, visto que a perso-
nagem não conhece outros ritmos musicais, presumindo, em razão disso, que a

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

música que escutou seja samba, já que este era o único gênero musical que supos-
tamente a jovem conhecia. Além disso, ela sequer concebe a ideia de que haja ou-
tros idiomas no mundo, evidenciando a visão de mundo limitada de Macabéa. Este
comportamento da personagem endossa as palavras de Robert Sebesta (2018):

Acredita-se que a profundidade com a qual as pessoas podem


pensar é influenciada pelo poder de expressividade da lingua-
gem que elas usam para comunicar seus pensamentos. As pes-
soas que têm apenas um fraco entendimento da linguagem na-
tural são limitadas na complexidade de seus pensamentos [...].
(Apud SANTANA, p. 40).

Com base nisso, fica evidente o prejuízo que Macabéa sofreu por conta da
falta de acesso à educação. Ou seja, ela não consegue identificar nada além do
que a rodeava. Sendo assim, sua visão de mundo é limitada e condicionada apenas
àquilo que já conhece. Dessa forma, percebe-se que a personagem se encontra
inserida em um meio no qual ela faz parte somente fisicamente, pois em uma me-
trópole como o Rio de Janeiro não havia espaço na sociedade para alguém como
Macabéa, que não sabia se expressar. Tal situação vivida pela alagoana evidencia
que ela se achava deslocada no meio em que vivia.

A propósito desta marginalização vivida pela datilógrafa, esta personagem


pode ser comparada ao galo que ela escuta cacarejar: “Uma vez por outra tinha
a sorte de ouvir de madrugada um galo cantar a vida e ela se lembrava nostálgi-
ca do sertão. Onde caberia um galo a cocoricar naquelas paragens ressequidas
de artigos por atacado de exportação e importação?” (LISPECTOR, 1998, p. 30).
Como ambos habitam um local em que tudo está contra eles, o galo e Macabéa se
assemelham. Comumente associado ao mundo rural, o galo não pertence à cidade
grande. Macabéa, migrante nordestina, não se adequa ao meio em que vive por
não pertencer àquele local. Em outras palavras, o galo – deslocado de seu habitat
– metaforiza a moça simples – que se sente uma estrangeira na metrópole.

Além disso, é notório no romance a pobreza de Macabéa. Almeida e Masuda


(2017, p. 37) salientam que “Macabéa [...] reúne em si a pobreza econômica, física,
alimentar e intelectual, de saúde, de costumes, de lazer [...].”. Em outras palavras,
a personagem é tudo aquilo que a pequena parte abastada da sociedade discrimi-
na e relega às margens. Um dos destaques da narrativa é a pobreza alimentar da
personagem:

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

– Você faz regime para emagrecer, menina?


Macabéa não soube o que responder.
[...]
– Você às vezes tem crise de vômito?
– Ah, nunca!, exclamou muito espantada, pois não era doida de
desperdiçar comida [...].
O médico olhou-a e bem sabia que ela não fazia regime para ema-
grecer. Mas era-lhe mais cômodo insistir em dizer que não fizes-
se dieta de emagrecimento. Sabia que era assim mesmo e que era
médico de pobres. (LISPECTOR, 1998, p. 66-67).

Existe em Macabéa a consciência de não desperdiçar comida, o que a faz ter


certa noção da condição miserável em que vive. Todavia, a protagonista não en-
xerga a situação de modo crítico: “E mesmo tristeza também era coisa de rico, era
para quem podia, para quem não tinha o que fazer. Tristeza era luxo.” (LISPECTOR,
1998, p. 61). Novamente, a personagem demonstra seu conformismo e alienação
diante da pobreza em que vivia. Em outras palavras, ela percebe que não possuía
direito a nenhum luxo.

Enquanto a falta de comida se faz presente na vida de Macabéa, é possível


notar uma enorme disparidade na realidade do narrador-personagem. O seguin-
te trecho – comentário irônico e maldoso de Rodrigo S. M. – exemplifica tal afir-
mação: “[...] amando meu cão que tem mais comida do que a moça.” (LISPECTOR,
1998, p. 26). A partir disso, fica evidente que a protagonista é rebaixada pelo nar-
rador a um nível inferior ao de um animal, pondo em evidência a profunda pobreza
de Macabéa e sua condição de não ser “muito gente”.

Em contrapartida, no desfecho da narrativa, a ironia do narrador mostra


que Macabéa supõe, depois de consultar uma cartomante, que finalmente sua po-
breza e insignificância vão deixar de existir:

Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua,


o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora é já, che-
gou a minha vez!
E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a
[...]. Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver, antes que o carro
fugisse, que já começavam a ser cumpridas as predições de ma-
dame Carlota, pois o carro era de alto luxo. (LISPECTOR, 1998,
p. 79-80).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

O atropelamento de Macabéa por uma Mercedes metaforiza não a as-


censão socioeconômica prometida por madame Carlota, mas a representação
da minoria abastada da sociedade carioca – leia-se o narrador – cuja simpatia
pela personagem que criou é praticamente nenhuma, o que justifica a morte de
Macabéa. Além disso, há o fato do condutor do carro fugir e ninguém socorrer
Macabéa após o atropelamento: “Algumas pessoas brotaram no beco não se sabe
de onde e haviam se agrupando em torno de Macabéa sem nada fazer assim como
antes pessoas nada haviam feito por ela [...].” (LISPECTOR, 1998, p. 81). Tal trecho
demonstra a indiferença de algumas pessoas diante do sofrimento humano. Em
outras palavras, o que se percebe é que na visão de Rodrigo S. M. (que coincide
muitas vezes com a percepção dos menos afortunados pelas camadas abastadas
da sociedade brasileira), pessoas pobres, como Macabéa, não eram consideradas
seres humanos, bem como suas vidas não possuíam nenhuma importância.

Considerações finais

A partir do que foi exposto ao longo do presente trabalho, é possível con-


cluir que a pobreza e a marginalização são assuntos que permeiam A hora da estre-
la. Logo, Macabéa representa não só uma pessoa marginalizada, mas sim todos os
desafortunados que buscam uma existência menos sofrida nas grandes cidades e,
não raras vezes, vivenciam inúmeras dificuldades no anseio por uma vida melhor.

Além disso, é perceptível também a presença das inúmeras consequências


que derivam da negação dos direitos básicos a essas pessoas, o que acarreta na
exclusão social, bem como impossibilita que possam sonhar em ser alguém no am-
biente urbano. Não fica difícil constatar que a narrativa de Rodrigo S. M. endossa
que apenas quem possui bens materiais e todos os seus direitos garantidos por
meio do dinheiro é que terá a opção de poder ambicionar algo melhor. Na ótica
deste narrador abastado, os mais pobres devem permanecer na condição de su-
jeitos invisíveis dentro da sociedade.

Tais afirmações demonstram que o romance de Clarice Lispector em muito


se assemelha à realidade de muitos brasileiros na atualidade. Dessa forma, não
apenas a verossimilhança é identificável em A hora da estrela, mas também é pos-
sível afirmar que a história de Macabéa se perpetua diariamente nas grandes ci-
dades brasileiras, onde não há nenhuma perspectiva para que tal situação possa
ser modificada.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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O DUPLO NA TRILOGIA ÓPERA DOS
MORTOS, LUCAS PROCÓPIO E UM
CAVALHEIRO DE ANTIGAMENTE, DE
AUTRAN DOURADO

Ivonete Dias1
Marcos Hidemi de Lima2

RESUMO: Este estudo visa analisar o duplo presente na trilogia de Autran


Dourado Ópera dos mortos (1967), Lucas Procópio (1985) e Um cavalheiro de an-
tigamente (1992), bem como questões míticas de algumas personagens e a situa-
ção das mulheres num mundo onde ainda existem traços patriarcais. Auxiliam na
compreensão do duplo O real e seu duplo (1976), de Clément Rosset, Uma neurose
infantil e outros trabalhos (1917-1918) (1976), de Sigmund Freud, O duplo (1939),
de Otto Rank, O fantástico (1988), de Selma Calasans Rodrigues, e Mulher ao pé
da letra: a personagem feminina na literatura (2006), de Ruth Silviano Brandão.
Em relação às simbologias presentes nos três romances, este trabalho se vale de
Mitologia grega (1986), de Junito de Souza Brandão, e Autran Dourado: uma leitura
mítica (1976), de Maria Lúcia Lepecki. Quanto aos aspectos misóginos na trilo-
gia, empregam-se as acepções de Affonso Romano de Sant’Anna, em Canibalismo
Amoroso (1984), “mulher-esposável”, ou seja, mulheres brancas, idealizadas e edu-
cadas para o matrimônio, e “mulher-comível”, acepção que designa mulheres de

1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), campus de Pato Branco. nete.dias@gmail.


com.
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), campus de Pato Branco. marcoshidemi-
delima@gmail.com.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ascendência negra, consideradas úteis para o sexo e para os afazeres domésticos.


Assim, no entrelaçamento da trilogia autraliana com os teóricos acima destaca-
dos, este trabalho busca assinalar o duplo e suas faces, aspectos mitológicos e os
relacionamentos conflituosos entre personagens femininos e masculinos.

PALAVRAS-CHAVE: Duplo; Ordem patriarcal; Personagens femininas.

ABSTRACT: This study aims to analyze the ‘double’ in Autran Dourado’s trilogy Ópera
dos mortos (1967), Lucas Procópio (1985) and Um cavalheiro de antigamente (1992).
It also aims to analyze the mythical question of some characters and the women situa-
tion in a world where there are still patriarchal features. The following authors help us
with the ‘double’ understanding; The real and its double (1976), by Clément Rosset, As
infantile neurosis and other works (1917-1918) (1976), by Sigmund Freud, The double
(1939), by Otto Rank, O fantástico (1988), by Selma Calasans Rodrigues, and Mulher
ao pé da letra: a personagem feminina na literatura (2006), by Ruth Silviano Brandão.
Concerning the symbologies in the three novels, this study seeks references in Mitologia
grega (1986), by Junito de Souza Brandão, and Autran Dourado: uma leitura mítica
(1976), by Maria Lúcia Lepecki. For analyzing the misogynistic aspects in the trilogy,
two Affonso Romano de Sant’Anna’s definitions from the book Canibalismo Amoroso
(1984) are used. One definition is “marring woman”; it means white women, idealized
and educated for marriage. The other definition is “doable woman”; it means an African
descent woman who is considered just useful for sex and domestic chores. As a result of
a relation among Autran Dourado’s trilogy with the works highlighted above, this study
aims to highlight the ‘double’ and its faces, mythological aspects, and the conflicting
relationships between female and male characters.

KEYWORDS: Double; Patriarchal order; Female characters.

Introdução

Este trabalho visa analisar o duplo e alguns mitos presentes na trilogia


Ópera dos mortos (1967), Lucas Procópio (1985) e Um cavalheiro de antigamente
(1992), de Autran Dourado. De maneira geral, as obras de Dourado possibilitam o
estudo de diversos aspectos, e embora o duplo seja há muito tempo analisado, ele
permanece como um tema atual, sempre aberto a novas discussões.

Na trilogia de Dourado escolhida para este trabalho, veremos o duplo e suas


diversas faces nalgumas personagens, na construção do sobrado e até mesmo na

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

divisão de uma das obras. Além disso, será possível analisar algumas simbologias
presentes, principalmente em Ópera dos mortos.

Por retratar a mulher na época colonial brasileira, serão analisadas algu-


mas personagens femininas e a opressão patriarcal sofrida por elas.

Os mitos

Para efetivarmos a análise do duplo proposta neste trabalho, faz-se neces-


sário adentrarmos ao mito, por este motivo, utilizaremos dois dos três volumes
de Mitologia Grega, de Junito de Souza Brandão. Segundo Brandão (1986), mito é
a explicação transmitida de geração em geração e mitologia é o estudo dos mitos
que são vistos como história verdadeira.

O mito e a mitologia possuem grande importância desde os tempos primor-


diais, pois era por meio deles que culturas ancestrais, como a grega, explicavam os
diversos fenômenos naturais. Muito mais do que se imagina, a mitologia grega foi
de extrema importância para o desenvolvimento da Grécia antiga, pois tudo era
explicado por meio dos mitos.

A criação do mito se deve à necessidade do ser humano de justificar fatos


que não podiam ser explicados pela razão, para isso a crença e o sobrenatural
eram imprescindíveis. Por não poder ser explicado pela razão, o mito é ilógico e
irracional. Para ser lógico e racional, ele deveria ser explicado pela razão e ser ver-
dadeiro, no sentido de ter uma justificativa comprovada.

Um dos mitos importantes para esta análise é o mito de Narciso, sobre o


qual Brandão trata no segundo volume de Mitologia Grega (1987). Brandão dis-
corre sobre a etimologia da palavra até chegar a flor narciso que, embora:

“bonita e inútil”; fenece, após uma vida muito breve; é “estéril”;


tem um “perfume soporífero” e é venenosa, tal qual o jovem
Narciso, que carente de virtudes masculinas, é estéril, inútil e ve-
nenoso. (BRANDÃO, 1987, p. 173, grifos do autor).

De acordo com o estudioso, Narciso se apaixonou por seu duplo, sua ima-
gem refletida na água:

Debruçou-se sobre o espelho imaculado das águas e viu-se. Viu


a própria imago (imagem), a própria umbra (sombra) refletida

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

no espelho da fonte de Téspias. Si non se uiderit, “se ele não se


vir”, profetizara Tirésias. Viu-se e não mais pôde sair dali: apai-
xonara-se pela própria imagem. Nêmesis cumprira a maldição.
(BRANDÃO, 1987, p. 180, grifos do autor).

Narciso era o mais belo jovem que existiu em Téspias, encantava moças
da Grécia inteira e, segundo a profecia de Tirésias, viveria muitos anos: si non se
uiderit, “se ele não se vir[...]” (BRANDÃO, 1987, p. 176). Essa adoração narcísica
é observada nalgumas personagens de Dourado analisadas neste trabalho, em-
bora muitas vezes ela não esteja presente nos atributos físicos, mas sim na ima-
gem que é transmitida de si e que, na verdade, não existe. São personagens que
possuem um orgulho muito grande e que acabam se sentindo superiores aos que
estão à sua volta, sendo exemplos Pedro Chaves, João Capistrano Honório Cota e
Rosalina, que serão analisadas detalhadamente nas próximas seções.

Para Maria Lúcia Lepecki, em Autran Dourado: uma leitura mítica (1976),
um aspecto que é o centro das obras de Dourado, é a morte: “Desde Teia até O
Risco do Bordado, os conflitos interiores das personagens marcam-se pelo desa-
parecimento de outras personagens. [...] A morte, apesar do conteúdo mítico, não
deixa de ser acontecimento físico irreversível.” (p. 18, grifos do autor).

Lepecki (1976, p. 19) ainda defende que quando não há evidência de morte,
há o impulso/desejo de matar presente nas personagens, fato notório no pai de
Isaltina, o qual, no momento que a filha decide não casar, coloca uma arma na ca-
beça dela: “Quando os olhos dela baixaram, viu na mão do pai um revólver. Isaltina
hesitou, não sabia qual a melhor decisão.” (DOURADO, 2002, p. 123). Este aspec-
to também é observável entre o escravo de Lucas Procópio, Jerônimo, e o feitor
Pedro Chaves no seguinte excerto: “Um dia, só esperava hora, metia um balaço
bem na testa de Pedro Chaves. Melhor no peito, no lugar do coração, da alma.”
(DOURADO, 2002, p. 54).

Em Ópera dos mortos, somos presenteados com inúmeras imagens que


nos remetem ao duplo, como espelhos e lagos, os quais projetam uma imagem re-
fletida: “Estique bem a vista, mire o casarão como num espelho, e procure ver do
outro lado, no fundo do lado, mais além do além, no fim do tempo.” (DOURADO,
1972, p. 2).

Do mesmo modo, a construção do sobrado é uma soma das personagens


Lucas Procópio, parte inferior do sobrado, e João Capistrano, parte superior do
sobrado:

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

No tempo de Lucas Procópio a casa era de um só pavimento, ao


jeito dele; pesada, amarrada ao chão, com as suas quatro janelas,
no meio a porta grossa, rústica, alta. [...] Se as vergas das jane-
las de baixo eram retas e pesadas, denunciando talvez o caráter
duro, agreste, soturno, do velho Lucas Procópio, as das janelas de
cima, sobrepostas nos vãos de baixo eram adoçadas por uma leve
curva, coroadas e enriquecidas de cornijas delicadas que acom-
panhavam a ondulação das vergas. [...] O que eu quero é juntar o
meu com o de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A
casa tem de ser assim, eu quero. (DOURADO, 1972, p. 4).

Em relação a esta necessidade de se afirmar através do sobrado, Rosset,


detecta que a criação do duplo está ligada à existência duvidosa, uma vez que:

Não basta dizer que sou único, como o é qualquer coisa no mun-
do. Refletindo mais atentamente, eu possuo o privilégio, que é
também uma maldição se quiserem, de ser duas vezes único: por-
que sou este caso particular – e “único” – onde o único não pode
se ver. [...] É por isso que a busca do eu, especialmente nas per-
turbações do desdobramento, está sempre ligada a uma espécie
de retorno obstinado ao espelho e a tudo o que pode apresentar
uma analogia com o espelho: assim, a obsessão da simetria sob
todas as suas formas, que repete à sua maneira a impossibilidade
de jamais restituir esta coisa invisível que se tentar ver, e que se-
ria o eu diretamente, ou um outro eu, seu duplo exato. A simetria
é ela própria conforme à imagem do espelho: oferece não a coisa,
mas o seu outro, seu inverso, seu contrário, sua projeção segun-
do tal eixo ou tal plano. (2008, p. 90-91, grifos do autor).

Após a morte de João Capistrano, a preocupação em manter o sobrado


como o pai o deixou se torna responsabilidade de Rosalina: “Esta casa há de fi-
car assim até eu morrer. Assim mesmo, como papai deixou. Ele não ia apreciar.”
(DOURADO, 1972, p. 72). Há nessas atitudes de Rosalina e de seu pai, João
Capistrano, a repetição, a vicissitude das personagens em manter/idolatrar obje-
tos que remetem a pessoas mortas, como em um eterno culto aos mortos.

No que concerne ao tempo, como se fosse possível mantê-lo imóvel,


a cada morte, havia um rito que iniciou após a morte de dona Genu, esposa de
João Capistrano e mãe de Rosalina em Ópera dos mortos: “O coronel Honório se
trancou no quarto. Só apareceu na hora de fechar o caixão. [...] Dirigiu-se primei-
ro para o grande relógio-armário, aquele mesmo, e parou o pêndulo. Eram três

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

horas.” (DOURADO, 1972, p. 26) E esse rito ocorreu novamente após a morte de
João Capistrano:

[...] o relógio-armário para sempre nas três horas. [...] Abriu-se


caminho para Rosalina. Quando a gente pensou que ela fosse
primeiro para junto do pai, voltou-se para a parede e aquilo que
ela trazia brilhante na mão era o relógio de ouro do falecido João
Capistrano Honório Cota [...] Que ela colocou num prego na pa-
rede, junto do relógio comemorativo da Independência. Os reló-
gios da sala estavam todos parados, a gente escutava as batidas
do silêncio. (DOURADO, 1972, p. 27-28).

Com base na análise de Encarnação (1875), de José de Alencar, Brandão


afirma que devido ao apego as pessoas que morreram: “Nos espaços fechados,
guardam-se os objetos da morta, como relicários, objetos que permanecem into-
cados, ritualisticamente postos no mesmo lugar, sagrados, como nos templos de
culto aos mortos.” (BRANDÃO, 2006, p. 82).

Esse ritual para a morte está presente, em especial na obra Ópera dos mor-
tos, na qual não só as personagens centrais participam, mas até mesmo os figuran-
tes esperam que o ritual continue e também fazem parte dele.

Lucas Procópio x Pedro Chaves

Lucas Procópio, a primeira personagem aqui analisada, está presente no ro-


mance Lucas Procópio e é citado em Um cavalheiro de antigamente e em Ópera dos
mortos. A duplicidade desta personagem se dá, inclusive, no título da obra que é
homônima. Além disso, a narrativa se divide em duas partes: “Pessoa” e “Persona”.

Na primeira parte do livro, denominada “Pessoa”, ou seja, indivíduo, é nar-


rada a história de Lucas Procópio Honório Cota, um sujeito gentil e educado, e
outras duas personagens, Jerônimo e Pedro Chaves, que saem em busca de uma
herança de Lucas. E em “Persona”, termo que “é derivado da palavra latina equi-
valente a máscara, e se refere às máscaras usadas pelos atores no teatro grego
clássico para dar significado aos papéis que estavam representando.” (FISCHER,
2011, p. 50), a narrativa se concentra em Pedro Chaves, um sujeito bruto e igno-
rante, antigo feitor do pai de Lucas Procópio, homem que rouba a vida e o nome
de Lucas Procópio. Enquanto a primeira parte do livro, “Pessoa”, diz-se de um

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

indivíduo, a segunda divisão é muito bem empregada, pois “Persona”, representa


ser outra pessoa, projeta uma imagem que não lhe pertence.

No que concerne a Lucas Procópio, logo nas primeiras páginas, o narrador


nos traz uma descrição minuciosa de sua estranha figura estranha:

A cara do distinto era magra, as bochechas chupadas, um certo


ar místico. O olhar vário e desvairado, ora voltado para dentro,
ora perdido no mais além do azulado além, na profundeza do céu.
Gente quarta-feira assim não nos faltava: doidinhos declarados
ou por declarar, no geral pobres de pedir caridade. Nenhum
deles, porém tão rico e de igual parecença. [...] Constituía a
novidade do cavaleiro a vestimenta extravagante, folgada no
corpo, roupa com certeza herdada de defunto maior e mais
encorpado. [...] Se ele ficasse com a gente, acabaria sendo, por
força das circunstâncias e da intimidade, um doidinho de chacota
a mais na cidade. (DOURADO, 2002, p. 14-15).

É possível observar que há em Lucas Procópio uma duplicidade de


personalidade, a qual o faz viver ora conectado ao seu interior e ora ao exterior,
num movimento constante. Embora comparado em alguns momentos a Dom
Quixote de La Mancha e vivendo em um mundo fantasiado, ele era o oposto da
personagem de Miguel de Cervantes, pois: “o que lhe transtornou o juízo não
foram os livros de cavalaria, mas os de poesia da fase gloriosa das artes nas
Minas Gerais. [...] Subia no tamborete e recitava, a voz emocionada em trêmulos e
gorjeios, de preferência os versos da idade áurea das Minas Gerais.” (DOURADO,
2002, p. 18).

Alonso Quijano, assim como Lucas Procópio, também possuía um duplo,


Dom Quixote. No romance de Miguel de Cervantes, Quijano era um fidalgo que
gostava muito de ler livros de cavalaria, e devido ao excesso de leituras acaba
criando para si mesmo a personagem Dom Quixote. Em seguida, parte para uma
existência repleta de aventuras hilárias. Acompanha-o Sancho Pança, um pobre
homem que, ao aceitar os delírios de Quijano, transforma-se em fiel escudeiro.
Tanto Quijano quanto Lucas Procópio vivem, à sua maneira, uma ilusão, sendo
que:

Na ilusão, quer dizer, na forma mais corrente de afastamento do


real, não se observa uma recusa de percepção propriamente dita.
Nela a coisa não é negada: mas apenas deslocada, colocada em

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

outro lugar. Mas no que concerne à aptidão para ver, o iludido vê,
à sua maneira, tão claro quanto qualquer outro. (ROSSET, 2008,
p. 17).

Fica evidente que a personagem Lucas Procópio possuía algumas carac-


terísticas que o aproximavam de Dom Quixote e, devido à essas características
peculiares, era chamado pelos populares de “quarta-feira manso”, ou seja, alguém
que vive em mundo próprio, um mundo de fantasia, um sujeito amalucado, que se
tornou assim.

Após a morte dos pais de Lucas Procópio, ele, seu escravo e Pedro Chaves
estão a caminho de Minas Gerais para tomar posse de uma fazenda herdada por
ele, a Fazenda do Capão Florido. Durante a viagem, por onde a comitiva passa,
quem mais chama atenção é Lucas Procópio. As pessoas querem se aproximar e
saber mais a respeito desta figura estranha. Em um dos lugares por onde passa-
ram, o dr. Minervino foi consultado pelos populares e disse que “aquela impres-
sionante aparição vinha de outra era; a gente vivia num século, ele vinha de ou-
tro”. (DOURADO, 2002, p. 16). Com esta observação do dr. Minervino, também
podemos constatar o caráter duplo relacionado ao tempo presente na obra.
Entendemos que a personagem está agindo/vivendo no presente, mas separa
Lucas Procópio com a distância de um século.

No que concerne a Pedro Chaves, em seu silêncio, ele arquiteta uma forma
de ocupar o lugar de Lucas Procópio, e o relacionamento entre eles passa a ser
cada vez mais complicado, fazendo com que Lucas começasse a repensar a pre-
sença do feitor. Embora a ideia não lhe causasse medo, chegam até Lucas notícias
sobre a intenção do feitor: “Uma vez alguém me disse Pedro Chaves está que-
rendo lhe roubar o nome, se apossar do que é.” (DOURADO, 2002, p. 52). Pedro
Chaves desejava possuir e ser o autor daquela história, daquela vida.

De acordo com Otto Rank em O duplo (1939), a criação do duplo se deve


ao fato de o homem crer na morte, o que causa a consciência da finitude da vida.
O duplo, neste caso, torna-se uma forma de escape: “O pensamento da morte se
tornar suportável pelo fato de que se assegura, após esta vida, uma segunda em
um duplo.” (RANK, 2013, p. 140). Neste sentido, é muito evidente que para “se
apossar” do que é de Lucas Procópio, Pedro Chaves precisa “matar” o seu nome,
sua existência e viver outra vida, que não pertence a ele. Mas, antes mesmo de
Pedro Chaves se apossar da vida de Lucas Procópio, ele se apossou do sobrenome
Chaves. Como foi abandonado em uma igreja quando criança, trabalhou alguns

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

anos para o vigário e: “Pedro acabou por virar homem, sozinho no mundo buscava
o seu caminho. Passou a assinar Pedro Chaves, assim ficou conhecido, por inteiro.”
(DOURADO, 2002, p. 35).

Além disso, quando Pedro Chaves vai a julgamento por matar um portu-
guês que o cobrava de uma dívida, é possível observar o jogo criado pelo narrador
para demonstrar o “vestir e tirar a máscara” da personagem: “No júri foi acusa-
do de violento pelo promotor [...] Pedro Chaves ouviu toda a acusação sem alte-
rar uma só vez as feições. Duro e frio, a cara como uma máscara indevassável.”
(DOURADO, 2002, p. 92).

E foi na primeira oportunidade que teve sozinho com o patrão que Pedro
Chaves iniciou o seu plano de tomar posse da vida de Lucas Procópio:

Quando se voltou, gritou espantado vendo a carabina apontada


para ele, as mãos no ar. Não faça isto, não faça isto, pedia.
A arma apontada bem na cabeça de Lucas Procópio. Um pás-
saro trincou o silêncio estagnado, de cristal. A figura de Lucas
Procópio contra o fundo azulado e luminoso do céu.
Uma explosão, o corpo caiu. Está morto o coronel Lucas Procópio
Honório Cota, gritou Pedro Chaves para o céu alto, tinindo de
azul. (DOURADO, 2002, p. 100).

A partir de então, Pedro Chaves começa a se transformar em Lucas


Procópio: “num trajeto inverso do escultor e sua escultura, do pintor e seu retrato,
já que ela mesma se modela como objeto de arte.” (BRANDÃO, 2006, p. 77). Pedro
Chaves atinge seus objetivos, o de encontrar uma mulher para que possa partici-
par ativamente da política, Isaltina, e o de mudar totalmente as suas atitudes para
se adequar ao personagem que ele buscava ser, Lucas Procópio. Porém, no dia de
sua morte, sua “Persona” foi retirada junto com a máscara mortuária:

Quando mandaram tirar a máscara mortuária, o que se viu não


foi a cara serena do velho Lucas Procópio Honório Cota, em que
o homem se transformara, nome pelo qual a gente o conhecia,
mas a cara enrugada, dura, má, sinistra, que ficara na cera: na ver-
dade as feições do terrível e antigo feitor Pedro Chaves, tanto
tempo escondido. (DOURADO, 2002, p. 189).

Isso nos remete a um aspecto interessante do Estranho de Freud, quando


analisamos a palavra Unheimlich com base em Schelling, que a define como “tudo

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz.” (FREUD, 1976,
p. 142). Neste aspecto, podemos observar o quão Unheimlich foi o “outro” Lucas
Procópio.

Lucas Procópio, João Capistrano Honório Cota, Pedro Chaves e


Rosalina

João Capistrano Honório Cota é a personagem principal na obra Um cava-


lheiro de antigamente e em Ópera dos Mortos, juntamente com a filha Rosalina.
Em Um cavalheiro de antigamente, João Capistrano luta para manter a honra do
nome de sua mãe, após receber uma carta que conta a história de amor vivida por
Isaltina e um padre.

João Capistrano e seu pai, Pedro Chaves, vivendo como Lucas Procópio,
não tinham muita coisa em comum, talvez somente o orgulho. Ele tentou apagar
todas as memórias de sua infância, mas lembrava de “um homem grande, forte e
espadaúdo, de sobrancelhas grossas espetadas feito taturana, a barba comprida,
as botas sujas de barro, vibrando um chicote no ar, descendo-o em sua mãe. Esse
homem era seu pai, Lucas Procópio Honório Cota.” (DOURADO, 2001, p. 7).

Quanto a João Capistrano ele: “[...] sempre foi diferente dos demais da cida-
de. De maneiras finas e muito polido, apesar de que de pouca ou nenhuma conver-
sação, sempre falando baixo e medido, educado mais pela mãe [...]” (DOURADO,
2001, p. 8).

Talvez com o objetivo de esquecer as inúmeras agressões que viu a sua mãe
sofrer:

João Capistrano foi criando para si e para a cidade uma imagem


idealizada do pai, muito diferente do verdadeiro Lucas Procópio,
melhor seria dizer – do primeiro Lucas Procópio, ele mudou
demais com o tempo, só os muito velhos, que o conheceram
quando ele chegou na cidade, é que sabiam como ele tinha sido.
(DOURADO, 2001, p. 11).

A imagem de Lucas Procópio foi recriada por seu filho, como é possível de-
preender do excerto acima, e também por sua esposa, Isaltina, como é possível
observar nos seguintes excertos: “Ele lhe disse a razão da dúvida sobre o Lucas
Procópio que levei tantos anos para construir?” (DOURADO, 2001, p. 83), e “Por

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outro lado foi terrível, ele me revelou um pai que eu desconhecia, um homem em
tudo diferente da figura que a senhora inventou.” (DOURADO, 2001, p. 66).

Essa criação da personagem Lucas Procópio também é dupla, uma ilusão


criada nas imaginações de Isaltina e de João Capistrano, parafraseando Rosset
(2008) vista de maneira tão clara como se fosse real.

Do mesmo modo, João Capistrano em alguns momentos se depara com


suas inquietações, por saber em seu âmago quem realmente seu pai foi: “João
Capistrano se mantinha calado, olhou com ódio para o dr. Maciel Gouveia, como se
Lucas Procópio tivesse se encarnado nele. Era assim o verdadeiro Lucas Procópio,
era assim o meu pai?” (DOURADO, 2001, p.56).

Selma Calasans Rodrigues, na obra O fantástico (1988), para exemplifi-


car o “Eu e o outro: duplo”, nos remete ao conto “O outro”, de Jorge Luis Borges.
Segundo Rodrigues, o duplo é tema frequente nas obras do escritor argentino e,
neste conto, o próprio Borges também é personagem e sente a impressão de já
ter vivido um determinado momento perto do rio Charles. De acordo com a nar-
rativa, Borges ouve alguém assobiar uma velha milonga, aproxima-se, e este se
apresenta com o seu nome. Para Rodrigues:

Variam a formas de representação do duplo: temos personagens


que, além de semelhantes fisicamente (ou iguais), têm sua relação
acentuada por processos mentais que saltam de um para outro
(telepatia), de modo que um possui conhecimento, sentimentos
e experiência em comum com o outro. [...] Ou ainda, um mesmo
eu desdobra-se em pessoas distintas e opostas. (RODRIGUES,
1988, p. 44).

Quando João Capistrano luta, consciente, contra a personalidade do pai,


que existe nele, é possível compreender o que Rodrigues (1988) chama de um
eu, João Capistrano, que se desdobra em pessoas distintas e opostas, o pai dele,
Lucas Procópio. Além disso, Clément Rosset na obra O real e seu duplo: ensaio so-
bre a ilusão (1976, p. 56), o autor inicia discutindo sobre a realidade, sendo que
para ele: “Nada é mais frágil do que a faculdade humana de admitir a realidade, de
aceitar sem reservas a imperiosa prerrogativa do real.”

João Capistrano, embora seja filho de Pedro Chaves, o homem que roubou
a identidade de Lucas Procópio, também é duplo do verdadeiro Lucas Procópio,

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

sujeito que ele não conheceu e tampouco sabe da existência. Lucas Procópio era
descrito como um sujeito que:

Não era muito certo da cabeça, quarta-feira manso. Como acon-


teceu com aquele outro famoso fidalgo, no século Alonso Quijano
[...] Não atacava moinhos de vento nem manadas de porcos, se
imitava a parar em pousos e vendas de beira-estrada, lugarejos
e vilas. Subia no tamborete e recitava, a voz emocionada em trê-
mulos e gorjeios [...] (DOURADO, 2002, p. 17-18).

Assim como Lucas Procópio, João Capistrano também era descrito como
Dom Quixote:

A voz grave e forte, lia alto as palavras de Bernardo de Vasconcelos


como se fossem escritas por ele próprio. (...) Maluqueira, telha-
-de-menos, quarta-feira. (...) O jornalzinho dos Periquitos, que
o escrivão imprimia, chamava, o coronel Honório Cota de Dom
Quixote, desmiolado. (DOURADO p. 21, 1972).

Essas características que são passadas de uma personagem a outra, mes-


mo quando não se conhecem, são explicadas por Sigmund Freud, em Obras com-
pletas de Freud volume XVII: Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918)
como uma relação que: “[...] é acentuada por processos mentais que saltam de um
para outro desses personagens – pelo que chamaríamos telepatia –, de modo que
um possui conhecimento, sentimento e experiência em comum com o outro. [...]”.
(FREUD, 1976, p. 147).

A personagem Rosalina, assim como João Capistrano, também possui ca-


racterísticas ora semelhantes às de Lucas Procópio, ora as de seu pai. Em alguns
momentos ela demonstra ser uma mulher cheia de desejos e se sente atraída por
serviçais, assim como seu avô Lucas Procópio era atraído por escravas, em outros,
é uma mulher centrada, educada como seu João Capistrano:

Se ela fosse que nem Lucas Procópio, quem sabe onde estava
agora? Na Casa da Ponte, disse uma voz dentro dela. Quem sabe
num lugar mais baixo, no Curral-das-Éguas, disse outra voz. Era
lá que devia de estar, José Feliciano. Se divertindo com as mulhe-
res, deitado com elas, imundo, no bem quente. Meu Deus, meu
Deus, por que tenho esses pensamentos? É deixar a rédea solta e
lá vou eu por este mundo sem fim. Sei, não sou Lucas Procópio, de
jeito nenhum. Era mais o pai, homem reto, cidadão. [...] Sou igual

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a papai, sou ele não. Ele morreu tem muito tempo, nem cheguei a
conhecer Lucas Procópio. (DOURADO, 1972, p. 105-106).

Em Mulheres ao pé da letra: a personagem feminina na literatura (1993), de


Ruth Silviana Brandão, a autora abarca algumas questões sobre o duplo partindo
da análise de personagens femininas, que servem como complemento às discus-
sões propostas neste trabalho, pois de maneira geral essas personagens são:

retratos femininos emoldurados pela marca fálica da firmeza,


inteligência e do espírito crítico. Figuras femininas que, à medi-
da que a narrativa se desenvolve, entretanto, revelam-se como
duplos da personagem masculina, confirmação do seu desejo,
objetos inertes do amor narcísico do herói, e morte da mulher,
enquanto sujeito desejante. (BRANDÃO, 2006, p. 71).

Podemos depreender, com base no excerto acima, que Rosalina, luta para
manter em si, as qualidades de seu pai, e assim, torna-se duplo do seu avô e do seu
pai, pois suas emoções conflituosas demonstram que ela esconde a personalida-
de de Lucas Procópio, mantendo uma máscara para fingir ser João Capistrano, ao
mesmo tempo que enterra suas necessidades, seus desejos.

Para fundamentar a personalidade de Rosalina em relação ao seu avô, po-


demos trazer a figura de Baco, deus do êxtase, do entusiasmo, do vinho, das or-
gias. Do nome deste deus deriva a palavra bacante, que significa “estar em transe,
ser tomado pelo delírio sagrado.” (BRANDÃO, 187, p. 113).

Partindo de Baco, é possível observar as características das bacantes, ou


seja, das mulheres que seguiam o deus Baco, na personagem Rosalina, este as-
pecto é muito evidente, pois quando ingere bebidas alcoólicas, fica em transe e
entrega-se aos desejos sexuais de Juca Passarinho, um serviçal, um forasteiro.

Evidencia, além disso, sua dualidade: “De noite Rosalina, de dia dona
Rosalina. Não buscava mais unir no mesmo ser as duas figuras, juntar as duas me-
tades.” (DOURADO, 1972, p. 165).

A ordem patriarcal e a mulher

A trilogia analisada neste trabalho abarca a representação das mulheres


no período colonial, por isso, é de suma importância adentrarmos aos aspec-
tos da opressão patriarcal sofrida pelas mulheres nesta época. As personagens

648
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

brancas que serão analisadas são: Isaltina, presente nas obras Lucas Procópio e Um
cavalheiro de antigamente e citada em Ópera dos mortos e Rosalina, presente em
Ópera dos mortos.

Isaltina é avó de Rosalina, ambas mulheres brancas que, segundo Sant’Anna


(1984) as mulheres eram divididas em “mulher esposável” e “mulher comível”,
sendo a primeira denominação pertencente a mulher branca, educada para o ca-
samento, com uma família estruturada e que pudesse dar um herdeiro para conti-
nuar a linhagem masculina. A segunda, acepção define a mulher de origem negra
ou mestiça, que convinha para o sexo e afazeres domésticos e que, juntamente
com os demais escravos, serviam para os senhores como “[...] a válvula de escape
das tensões acumuladas na casa-grande.” (SANT’ANNA, 1984, p. 52). Se enqua-
dram nesta denominação as personagens: Quiquina, Joana e Adélia.

Isaltina possuía algumas características que, muitas vezes, a revelavam


como rebelde, pois gostava de determinadas leituras e possuía um pensamento
crítico, mas devido ao fato de sua educação para o casamento e usando da igreja
como forma de repressão, ela se punia quando percebia algum ato impuro, por
exemplo quando leu Madame Bovary, de Flaubert: “Nunca porém o coração de
Isaltina bateu tão forte como quando leu o romance de Flaubert. [...] Teve, por
conta própria, de se confessar e fazer muitas penitências, toda hora lhe vinha im-
perioso o calor úmido.” (DOURADO, 2002, p. 104).

Outra obra que encantava Isaltina era Chica da Silva, justamente porque
ela “mandava e desmandava nos domínios do contratador de diamantes João
Fernandes de Oliveira, seu amásio.” (DOURADO, 2002, p. 109). Da mesma forma
que se encantava com obras que a mulher tinha voz, ou pelo menos pareciam ter,
Isaltina criticou muito quando percebeu um velho, Lucas Procópio, a cortejando:

Um desconforto, uma náusea só de pensar aquele homem cor-


tejando-a. Muito mais velho do que ela, não se enxergava? Uma
tristeza a gente estar sujeita a essas coisas. A posição da mulher,
sempre pior que a do homem. Ficam feito galo, arrastam as asas,
as galinhas mansas, bobas. [...] Que descômodo ser galinha, su-
portar o peso do macho. Se via como uma galinha, agüentando
[sic] nas costas as unhas e o peso do galo, como toda fêmea. Só
de pensar nisso tinha nojo, medo. Que destino triste ser mulher!
suspirava. (DOURADO, 2002, p. 117).

649
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Porém, mesmo tendo o pensamento muito à frente de seu tempo, Isaltina


foi obrigada a casar, pois a família estava em uma ruína financeira, sendo o casa-
mento a única forma de seu pai, Cristino de Almeida Sales, manter o status social.
Para ela não foi tão fácil, pois quando descobriu que o noivo saia com escravas e
prostitutas, ela cancelou o noivado e então Lucas Procópio pediu o dinheiro de
volta: “Era como se Lucas estivesse mesmo negociando cavalo ou escravo. O casa-
mento ou o dinheiro de volta, disse ele.” (DOURADO, 2001, p. 70).

O pai de Isaltina não poderia permitir que o dinheiro fosse devolvido, então
tomou uma atitude extremamente cruel: “Ela voltou para a sala, deu de cara com
o pai. [...]Quando os olhos dela baixaram, viu na mão do pai um revólver. Isaltina
hesitou, não sabia qual a melhor decisão. [...] E lhe passavam pela mente, na veloci-
dade de um raio, as palavras honra, dignidade, morte.” (DOURADO, 2002, p. 123).

Embora, não tivesse interesse em se relacionar com um sujeito como Lucas


Procópio, Isaltina foi moldada de acordo com o que Maria Lúcia Rocha-Coutinho,
em Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares (1994),
afirma sobre a diferença entre ser solteira e casada: “O casamento, ao contrário,
enobrecia a mulher e abria-se como a única possibilidade de ascensão social, em
um tempo em que não eram permitidas às mulheres atividades que possibilitas-
sem sua promoção por esforço próprio.” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 83).

Em sua lua de mel, Isaltina pode perceber o quanto ainda sofreria as opres-
sões patriarcais em sua vida, pois nunca havia se relacionado com um homem, e
Lucas Procópio investiu para cima dela sem nenhum cuidado: “No escuro, era um
bicho trevoso, enrolado sobre si mesmo. Na posição fetal, se protegia de braços,
de forças invisíveis e destruidoras.” (DOURADO, 2002, p. 126).

Segundo Affonso Romano de Sant’Anna, em Canibalismo amoroso: o desejo


e a interdição em nossa cultura através da poesia (1984):

O casamento, contudo, apenas organiza entre os senhores sua


violência erótica. Violência dentro da mesma classe social en-
tre homens e mulheres, violência que sobrepõe impunemente o
senhor à sua “escrava branca”. De certo modo, o casamento é a
parte legislada das violências eróticas. Ela passa a legitimar, ju-
ridicamente, o processo de dominação macho-fêmea, enquanto
outra área permanece desguarnecida, escapando à ação policial,
judiciária e eclesiástica, e que diz respeito aos escravos, vassalos
e subalternos vários. (1984, p. 51-52).

650
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Essa violência é evidente em boa parte da vida de casada de Isaltina e, só


é amenizada em alguns momentos, por exemplo, quando ela engravida, e há uma
possibilidade de ser um filho homem. “Temeroso e preocupado com o futuro nas-
cimento de um herdeiro para continuar a sua linhagem, na qual incutiria toda a
sua primitiva noção de homem, ele passou a ter o maior cuidado com ela, não mais
a assaltava na escuridão do quarto.” (DOURADO, 2002, p. 158).

Ao contrário do que houve quando tiveram uma filha mulher, que Lucas se
afastou e voltou a procurar Adélia, sua escrava alforriada que: “[...] não possuía
nenhuma sutileza ou elaboração amorosa, mas lhe dava tudo o que pedia a sua
natureza bruta de homem. Era uma mulata quente, fogosa e arteira como poucas.”
(DOURADO, 2002, p. 138).

A atitude de Isaltina com Lucas muda e em um momento que ele tenta


conversar: “[...] está bem, estive com outra, quer saber o nome? Ela então falou,
foi cortante como uma navalha afiada. Eu por acaso alguma vez procurei saber
o nome de algum de seus animais?” (DOURADO, 2002, p. 140). Por ser uma mu-
lher branca, não cabia à ela decidir o que o homem poderia fazer, então ela lutou
com as palavras, inferiorizando ainda mais Adélia, comparando-a a um animal. Tal
atitude preconceituosa de Isaltina decorria porque: “[...] se da mulher branca se
exigia uma série de “atributos femininos” [...] no que se refere à mulher de cor a
situação se repete com agravantes. Além de mulher, ela é preta. Quer dizer: escra-
va, subordinada duas vezes.” (SANT’ANNA, p. 42, grifos do autor).

Além disso, é possível depreender, tendo como base nossa formação es-
cravocrata, dentro de uma rígida hierarquia da sociedade, o que Roberto Reis
(1987), em A permanência do círculo, define com os termos núcleo e nebulosa para
definir o espaço social ocupado respectivamente por homens e mulheres. Sendo
o primeiro utilizado para situar o homem branco e o segundo para situar a mulher.
“Efetivamente, os figurantes do núcleo senhorial exercem domínio sobre os da ne-
bulosa.” (REIS, 1987, p. 32, grifos do autor).

A mulher negra, como pertencente a nebulosa, não tinha escolha sobre a


sua vida, sobre seu corpo, sofria a opressão patriarcal de forma duplicada, primei-
ro por ser mulher e depois por ser negra. Muitas vezes fazia do sexo mais que uma
obrigação, tornando-o um objeto de troca “Seu corpo é a sua moeda de ascensão
social, mesmo porque não lhe foi dado nada a não ser isso.” (SANT’ANNA, 1984,
p. 43).

651
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Nem todas as escravas presentes na trilogia utilizam-se dessas trocas,


não é o caso, por exemplo, de Joana, escrava de Isaltina e Quiquina, escrava de
Rosalina, ambas conseguiram proximidade com o núcleo por fazer parte da famí-
lia por muito tempo. Joana, interiorizou tanto o seu pertencimento a Isaltina que
mesmo quando esta lhe possibilita a alforria, ela não aceita dizendo: “Pra quê,
Nhanhá? [...] Vai continuar na mesma, Nhanhá, vou ser sempre cativa de vosmecê.”
(DOURADO, 2002, p. 133).

Enquanto Quiquina: “[...] cuidava da venda das flores. Quem contratava,


marcava os preços. Sabia fazer preços. Pra igreja era mais barato, nada de graça
porém. Quem é que ia deixar de pagar a pobre da Quiquina.” (DOURADO, 1972,
p. 31).

Rosalina, assim como sua avó, Isaltina, também recebeu uma educação
voltada para o casamento, porém não se casou. Em alguns momentos da obra,
é possível observar que ela nutre um desejo pelo matrimônio, como no seguin-
te excerto: “Engraçado eu casar. Por que engraçado? Eu bem que podia casar.
Emanuel bem que quis. Não agora, antes, quando nada ainda tinha acontecido.
Papai fazia planos pra mim. Depois me esqueceu, se entregou àquela maluqueira.”
(DOURADO, 1972, p. 30).

Por não ter se casado, Rosalina passou a ter atitudes consideradas impró-
prias para as mulheres da época. Após ingerir bebidas alcoólicas, ela se entregava
aos desejos sexuais com um serviçal, Juca Passarinho, um: “[...] falador que vem de
fora, que pertence a outro grupo social, que não é da família, oriundo do profano.”
(REIS, 1987, p. 112).

Como a literatura da época era utilizada como forma de educação, as per-


sonagens que não cumpriam com o que era considerado correto para as mulheres
da época, sofriam as consequências e foi o que aconteceu com Rosalina, que aca-
bou assim como o pai, ficando louca.

Considerações finais

Com base nas considerações propostas, é possível observar que todas as


personagens mulheres, brancas e negras, sofriam opressão patriarcal, mas que as
negras sofriam em dobro, primeiro por ser mulher e depois por ser negra.

Do mesmo, é possível observar que essas personagens mulheres continua-


vam lutando contra a opressão patriarcal, seja através da educação dos filhos, ou

652
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

com algumas atitudes que muitas vezes eram taxadas como inadmissíveis para a
sociedade da época, e por isso, em muitas obras, essas personagens eram elimina-
das como forma de repreensão para as leitoras da época.

Em relação ao duplo, podemos depreender que na trilogia há manifestações


do duplo através de elementos como simbologias, espelhos, águas, a construção
e reforma do sobrado, que é criado como uma extensão das personagens Lucas
Procópio e João Capistrano Honório Cota. Além disso, há ocorrências do duplo
através da bebida, do mito Baco, visto em Rosalina. O duplo psicológico presente
em Rosalina, João Capistrano Honório Cota e Lucas Procópio. O duplo criado por
Isaltina e João Capistrano Honório Cota para fugir da realidade. E claro, o duplo
de Pedro Chaves, que para existir precisou matar e se apossar da identidade de
Lucas Procópio.

Referências

BRANDÃO, J. S. Mitologia Grega: Volume I. Petrópolis: Editora Vozes, 1986.


BRANDÃO, J. S. Mitologia Grega: Volume II. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.
BRANDÃO, R. S. Mulher ao pé da letra: a personagem feminina na literatura. 2 ed.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
DOURADO, A. Lucas Procópio. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
DOURADO, A. Um cavalheiro de antigamente. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
DOURADO, A. Ópera dos mortos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
FISCHER, F. Máscaras para vivermos em sociedade: você conhece a sua? 2011.
Disponível em: http: //www.papodepsicologo.com/2010/01/mascaras-para-vi-
vermos-em-sociedade.html. Acesso em: 26 nov. 2016.
FREUD, S. Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918). Volume XVII.
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
LEPECKI, M. L. Autran Dourado: uma leitura mítica. São Paulo: Quíron, 1976.
RANK, O. O duplo. Porto Alegre: Dublinense, 2013.
REIS, R. A permanência do círculo: hierarquia no romance brasileiro. Niterói:
EDUFF, 1987.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ROCHA-COUTINHO, M. L. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas


relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
RODRIGUES, S. C. O fantástico. São Paulo: Editora Ática, 1988.
ROSSET, C. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Tradução: José Thomaz
Brum. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
SANT’ANNA, A. R. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cul-
tura através da poesia. São Paulo: Brasiliense, 1984.

654
O ESTILO POÉTICO-EXISTENCIAL DE
AGE DE CARVALHO EM AINDA: EM
VIAGEM

Adonai da Silva de Medeiros1


Raphael Bessa Ferreira2

RESUMO: Evidentemente que o poema se institui como o lugar de encontro dia-


logal entre poeta e poesia, de modo que essa relação inicia um processo de doa-
ção ao leitor, fundando um agir contemplativo e possibilitando uma viagem eter-
na no momento do diálogo. Neste sentido, o presente trabalho tem por objetivo
interpretar os instantes poético-existenciais instituídos e tornados eternos na
obra Ainda: em viagem, de Age de Carvalho (2015). Para tanto, fundamentar-nos-
-emos nos estudos de Micheletti (2014), referentes ao estilo e a relação de indi-
vidualidades que se constitui no texto literário, de Heidegger (2003) e Benedito
Nunes (1992), acerca da linguagem como caminho, de maneira que o poeta, ao
atravessar entre suas palavras, contempla os horizontes de sentidos instalados, e
de Paes Loureiro (2000) e Octávio Paz (1982), sobre como o poema, em seu ins-
tante instaurado pelo aspecto existencial do ser, torna-se a concretização da eter-
nidade da poesia. Em Ainda: em viagem, a forma como são engendradas as palavras
é o que garante a consumação máxima do momento em que o poeta constrói seu
enunciado, de maneira que seu modo de ir e ser genuíno efetiva-se a partir do
instante poético, demonstrando sua consciência expressiva. Os poemas “Diante
do lago”, “Eu, intimo-me” e “Os que passaram” manifestam essa consumação da

1 Universidade do Estado do Pará (UEPA). adonai.medeiros18@gmail.com.


2 Universidade do Estado do Pará (UEPA). ru-98@hotmail.com.

655
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

eternidade da poesia no instante poético-existencial, cuja passagem é expressa


na forma célere, entrecortada e fragmentada do ser-poeta, sempre atida e conti-
da em seus versos, além de ser comprimida nos neologismos, buscando atingir o
não-dito emanado das palavras poéticas enquanto um universo entreaberto.

PALAVRAS-CHAVE: Age de Carvalho; Instantes poético-existenciais; Consciência


expressiva.

ABSTRACT: Evidently, the poem is instituted as the place of dialogue between poet and
poetry, so from that, this relationship begins a process of donation to the reader, foun-
ding a contemplative action and enabling an eternal voyage at the moment of dialogue.
In this sense, the present work aims to interpret the poetic-existential instants instituted
and made eternal in the work Ainda: em viagem, by Age de Carvalho (2015). For that,
we will base ourselves on the studies of Micheletti (2014), referring to the style and
the relationship of individualities that is constituted in the literary text, by Heidegger
(2003) and Benedito Nunes (1992), about language as a path, of way that the poet,
when crossing between his words, contemplates the horizons of installed meanings, and
of Paes Loureiro (2000) and Octávio Paz (1982), about how the poem, in its instant
instated by the existential aspect of being, becomes the realization of the eternity of
poetry. In Ainda: em viagem, the way words are generated is what guarantees the ma-
ximum consummation of the moment when the poet constructs his statement, so that
his way of going and being genuine takes effect from the poetic moment, demonstrating
his expressive awareness. The poems “Diante do lago”, “Eu, intimo-me” and “Os que pas-
saram” manifest this consummation of the eternity of poetry in the poetic-existential
instant, whose passage is expressed in the quick, choppy and fragmented form of the
being-poet, always attentive and contained in its verses, in addition to being compres-
sed in neologisms, seeking to reach the unsaid emanating from poetic words as an open
universe.

KEYWORDS: Age de Carvalho; Poetic-existential instants; Expressive consciousness.

Introdução

Evidentemente que as palavras, enquanto formas, absorvem e fecham em


si as limitações do ser que as usa para determinado fim. Mais evidente ainda é
o fato de que elas não encerram a nada, mas sim, no limite de sua delimitação,
abrem espaço para infinitas possibilidades de realização.

656
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Ainda: em viagem, diz o título da obra poética de Age de Carvalho, poeta


de origem belenense/paraense que mora na Europa, de forma definitiva, desde
1986, expressa a forma transitiva (ainda) do ser em relação ao seu eterno devir
(em viagem), ou seja, a sua consumação e identidade ao estar e ser a partir de pas-
sagens (e o sinal gráfico de dois pontos demonstram a passagem). Desta forma,
mais do que uma expressão, ao mesmo tempo, mínima e máxima, as palavras do tí-
tulo da obra do autor fecham um ciclo sem fim (sem encerramento), mas pleno de
possibilidades justamente porque, cercado, limitado e delimitado pelas palavras
que o compõem, busca atingir, em cada instante dessa viagem para buscar a si e
seu ser-poeta mais originário, o ilimitado entreaberto nessa travessia ao deparar-
-se, no reino mágico em que se encontra, o da poesia, com infindos horizontes e
perspectivas de uma mesma (e única) palavra.

Retornando à origem que o formou, ou seja, à linguagem e à palavra poética


em seu instante eterno de consumação, o poeta viaja nesse instante que ainda
e eternamente se encontra – assim como esse instante, por meio da linguagem,
também o atravessa, de vez o poeta é linguagem, ambos sendo casa um para o
outro.

Neste sentido, o presente trabalho tem por objetivo interpretar os instan-


tes poético-existenciais instituídos e tornados eternos na obra Ainda: em viagem,
de Age de Carvalho (2015). Para tanto, fundamentar-nos-emos nos estudos de
Micheletti (2014), referentes ao estilo e a relação de individualidades que se
constitui no texto literário; de Heidegger (2003) e Benedito Nunes (1992), acerca
da linguagem como caminho, de maneira que o poeta, ao atravessar entre suas pa-
lavras, contempla os horizontes de sentidos instalados; e de Paes Loureiro (2000)
e Octávio Paz (1982), sobre como o poema, em seu instante instaurado pelo as-
pecto existencial do ser, torna-se a concretização da eternidade da poesia. Para a
interpretação, escolhemos três poemas que demonstram o modo como o instante
surge para a construção e consumação máxima a partir do momento em que o
poético os influi e os conserva em suas transmutações, são eles: “Diante do lago”,
“Eu intimo-me” e “Os que passaram”. A expressividade desses poemas é que nos
assegura a possibilidade de dialogar com o existencial do ser que se encontra, e
apenas dessa forma passa a ser de fato, em viagem.

Além dessas considerações iniciais, este trabalho conta, na segunda seção,


com a discussão teórica para que possamos fundamentar a caracterização do ins-
tante poético-existencial, próprio do poeta; na terceira, consta-se a interpretação

657
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

dos três poemas selecionados, além da realização de um breve diálogo entre o pri-
meiro poema da obra (“E brilha”) com o poema “Eu intimo-me”, mostrando como
ocorreu (expressivamente), na travessia do poeta, a conversão de si mesmo em
Via Láctea, já manifestada, em uma primeira forma, por “E brilha”. Ademais, cons-
tam-se as considerações finais e as devidas referências.

Discussão teórica: a caracterização do instante poético-


existencial

O estilo de um autor é responsável não apenas por individualizar seu modo


de trabalhar com as palavras, mas por, sobretudo, inserir o leitor em um reino
particular da poesia. Diz Heidegger (2003) que a palavra possui a capacidade de
atribuir ser às coisas. Evidentemente que essa atribuição é feita à medida em que
o artífice das palavras busca atingir as coisas como tais, isto é, trazê-las em seu
poder de representação e poder simbólico. O manejo da palavra em sua potên-
cia simbólica, longe do uso comunicativo-usual, capaz de abrir vários horizontes
em um mesmo signo, inaugura um mundo cuja constituição, em última instância,
é realizada a partir do momento em que o leitor entra em diálogo, pois “um texto
é sempre constituído por um discurso no qual há a expressão de uma individua-
lidade que apela a outra”, de modo que “ele se patenteia nas escolhas linguísticas
realizadas pelo locutor.” (MICHELETTI, 2014, p. 387-388).

As escolhas linguísticas feitas pelo poeta não são meramente informacio-


nais, de vez que procuram sustentar um enunciado, isto é, uma forma, um conteú-
do e um tema. A representação, no sentido de dar forma ao que se almeja suge-
rir, não escapa dessa escolha, de maneira que o texto (o poema) erigido é a forma
mesma de efetivar o encontro entre o poeta e a poesia (PAZ, 1982) que lhe funda
como poeta. Assim é que a relação entre a forma e o conteúdo objetiva dar base
para que o poema sirva de leito a esse encontro dialogal e a posterior ressignifi-
cação desse encontro, de modo a reanimar o que se consolidou no breve instante
fulguroso entre poeta e poesia: “Esse instante [poético] que é como uma cintilação
do eterno, constitutivo da poesia. A chama de uma contemplação ativa instantâ-
nea, que ilumina o fazer poético – esse instante absoluto do ser [...]” (LOUREIRO,
2000, p. 316). Quem faz a ressignificação, de acordo com Paz (1982), é o leitor,
uma vez que ele é o responsável pela recriação do momento que se instaurou no
poema.

658
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Apenas a leitura de um texto é que pode trazer de volta esse instante poé-
tico. Se o objeto da Estilística se encontra no sujeito, na subjetividade que parte
dele com destino a um outro, parece que o enfoque se situa em como as relações
entre o sujeito e o outro ou entre sujeitos e outros é tecida no texto (MICHELETTI,
2014, p. 389). Dessa forma, mais do que simples receptor, o leitor é que, além de
recriar o instante e ressignificá-lo, proverá a consumação do discurso poético.
Entretanto, o texto não estará, de forma alguma, inerte, ou atuará como media-
dor, pois, interpretando-o, inserindo-se nele a fim de nele encontrar um espaço de
de-morada, ele passa a ser o manancial para que nós (leitores e escritores) encon-
tremos um lugar para onde ir à medida em que nos deixamos “tocar propriamente
pela reivindicação da linguagem, a ela nos entregando e com ela nos harmonizan-
do.” (HEIDEGGER, 2003, p. 121).

A linguagem de um texto literário, neste sentido, não é comunicativa-usual,


mas sim é a casa do ser que a ela se dispõe. Deixando-nos tocar, estamos nos alçan-
do a caminho dessa linguagem que é, além da casa, nós mesmos. Harmonizando-
nos com ela, somos a linguagem que nos guia. Atravessando-a a fim de chegarmos
nela e por ela mesma, temos na linguagem a trilha que percorremos. Início, meio e
fim; caminho, ponte e destino; simples nomeações que nos envolvem a uma mes-
ma e genuína fonte: a linguagem. Se dissemos, junto a Micheletti (2014), que o
discurso de um texto apela a outra individualidade, o poético, enquanto discurso
característico do literário, terá nas artimanhas estéticas, ou seja, na sua expressi-
vidade, o meio efetivo para trazer o leitor, essa outra individualidade, para o seu
cerne. Evidentemente que essa forma de apelar ao leitor tem como princípio fa-
zê-lo recriar o instante que se firmou, pois, “a poesia efetua esse retorno sempre
renovado.” (NUNES, 1992, p. 267). Sendo eterna, a poesia clama a novas indivi-
dualidades para que se mantenha acesa a chama da sua “contemplação ativa ins-
tantânea”. Tão logo contempla-se, tão logo se revive o instante poético instituído.

Diz Heidegger (2002, p. 80) que a instituição do dizer poético ergue-se so-
bre três sentidos: doar, fundar e iniciar. Neste sentido, o poeta doa suas palavras
a um outro que o lerá, fundando uma relação recíproca e genuína com a finalidade
de trazer outra vez o que se deu apresentou a si quando a linguagem – poesia
corporificada por excelência – encontrou no poema um ponto de eterna iniciação.
Paes Loureiro (2000) afirma que o poema é a forma que suporta a eternidade da
poesia, é a materialização de sua passagem, e por isso se torna eterno.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Sendo um meio para o encontro, o poeta tem a linguagem do poema (e as


suas palavras) como a si mesmo. Assim é que “[...] o homem é inseparável das pa-
lavras. Sem elas, ele é inapreensível. O homem é um ser de palavras.” (PAZ, 1982,
p. 36). Sendo palavra, o homem é aquilo que é limitado por uma forma, porém é ili-
mitado em seu poder simbólico de produzir os sentidos, todos atrelados ao signo
que o comprime. O homem que se limita à palavra é apreensível, pois é capaz de
se tornar em eterno devir à medida em que tem na palavra o universo instituído
pela poesia, e o que se mostrou, a priori, limitado, abre-se como ilimitado, como
um mistério que apresenta uma parcela de seu universo por vez. Por isso mesmo
é que “[...] o poeta, aquele que diz, privilegia e preza essa jóia [o vigor velado da pa-
lavra] frente a tudo mais. A jóia passa a ser o que para o poeta é o mais digno de se
pensar.” (HEIDEGGER, 2003, p. 188).

Ora, o mistério, enquanto o velado por excelência, resguarda-se na palavra,


atado nas significações e desencadeado pelos sentidos possíveis, de maneira que
apenas por reviver e descortinar esses significados é que nos torna o dialogante
da obra poética em seus sentidos mais próprios: “[...] o poeta é aquele que per-
fura os mananciais, tomando os vocábulos como palavras dizentes. Seu caminho
não vai além das palavras; ele caminha entre elas, de uma a outra, escutando-as
e fazendo-as falar.” (NUNES, 1992, p. 267). Neste sentido, caminhando entre as
palavras que o formam, o conduzem e se destinam a ele, como ponto de partida
e chegada, o poeta, efetivamente, insere-se no reino misterioso da poesia e seus
instantes de consolidação no poema (PAZ, 1982), de maneira que são as palavras,
em cada mínima e, excepcionalmente, máxima palavra/signo do poema, que apre-
sentam ao aprendiz delas, aquele que escuta e aprende com suas falas, o caminho
genuíno para poder atravessar pelos horizontes infindos. Evidentemente que o
“caminho”, no sentido impresso pelas filosofias taoístas, não pode nunca ser ex-
presso em sua totalidade, e por isso é imutável e constante em sua originalidade:

CAPÍTULO 4
O Caminho é o Vazio
E seu uso jamais o esgota
É imensuravelmente profundo e amplo, como a raiz dos dez mil
seres
[...]
(LAO-TSÉ, s.d, p. 7).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Sendo Vazio, o Caminho resguarda sua imutabilidade de ser constante, bem


como a sua harmonia em cada manifestação e extensão do seu percurso. Na mais
profunda quietude, o ser atinge a completa moção, e pode retornar, ou seja, pode
fazer nascer a atividade que o iniciou e o conduziu, guiando-o ao poético sem ja-
mais esgotar o mistério e o universo comprimido das palavras. Neste sentido é
que o originário das palavras, com seu sentido sempre velado e nunca mostrado
plenamente, é que conduz o poeta ao caminho da poesia, esta como manifestação
imanente de um dos possíveis vínculos com o originário. Sendo conduzido pela
palavra, o poeta insufla em si o ser que nela contém, de vez que o dizer da palavra
vincula-se ao poeta como seu próprio modo de dizer e ser (HEIDEGGER, 2003),
e ele a escuta como uma eterna primeira vez. E é por ela que o poeta aprende a
atravessar:

O poeta aprendeu a renunciar. Aprender significa: tornar-


-se quem sabe. Quem sabe é em latim qui vidit, quem viu e en-
treviu alguma coisa, de modo a não mais perder de vista o que
viu. Aprender significa: alcançar essa visão. Para isso é preciso
alcançar, estando a caminho, numa travessia. Fazer uma traves-
sia, atravessar na ex-periência significa: aprender. (HEIDEGGER,
2003, p. 176-177, grifos do autor).

Renunciar, no sentido expresso por Heidegger (2003), é entregar-se à lin-


guagem vigorosa apresentada pela poesia. Não é à toa que o filósofo diz que o
poeta segue e se atrela a uma única poesia que o fundamenta. Contemplando o
que a poesia mostra, buscando essa visão que não é senão instaurada e instituída
nos instantes poéticos, é que o artífice põe-se a caminho do originário apresen-
tado em cada novo horizonte. Aprendendo pela linguagem vigorosa, aprende a
atravessar, ou seja, a realizar a viagem por cada horizonte da palavra poética.

O horizonte, com efeito, não pode ser alcançado, pois, ao mesmo tempo
que se aproxima dele, está se distanciando desse próprio horizonte. Esse verda-
deiro paradoxo é que mantém o mistério das palavras, tornando suas falas sempre
novas e autênticas, e é o que faz do poeta o artífice de palavras poéticas, de vez
que, recriando o que escutou das palavras, cria a si mesmo e à linguagem que se
inicia no instante de consumação da poesia no poema: “[...] o homem é homem
graças à linguagem, graças à metáfora original que o fez ser outro e o separou do
mundo natural. O homem é um ser que se criou ao criar uma linguagem. Pela pala-
vra, o homem é uma metáfora de si mesmo.” (PAZ, 1982, p. 41-42).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Evidentemente que a “metáfora” referida por Octávio Paz (1982) tem o


sentido de reinvenção do ser, isto é, atribuir um novo caráter por conta do seu
modo de ser e ir a ser. Sendo linguagem, e pondo-se a caminho como tal, viajan-
do, portanto, o poeta assume sua materialidade incontestável de palavra, isto é,
passa a figurar como o limitado no ilimitado. Separando o seu modo de ser do sim-
ples estar dado no mundo, o ser encaminha-se à criação que a linguagem, após a
harmonização de ambos um com o outro, provocou em seu comportamento. Em
“Submissão ao processo”, Clarice Lispector nos dá uma clara noção ao que disse-
mos: “[...] e esse instante de reconhecimento, esse mergulhar anônimo na tessitura
anônima, esse instante de reconhecimento (igual a uma revelação) precisa ser re-
cebido com a maior inocência, com a inocência de que se é feito[...]” (LISPECTOR,
2020, p. 78). O simples instante poético, e aqui estamos nos dirigindo, cada vez
mais, ao instante existencial dessa conduta, é que promove não apenas a inserção
do ser em sua linguagem mais própria, mas também a efetiva consolidação do ser
em mistério que somente pode ser contemplado, refletido, visto, entrevisto e al-
cançado pela linguagem em seu mais alto vigor de linguagem, ou seja, a linguagem
(como) ela mesma.

Submeter-se a esse processo é desprender-se, e desprendimento “[...] é o co-


meço de uma era crescente de mundo e não abismo de decadência.” (HEIDEGGER,
2003, p. 65), de modo que o ser-poeta faz de si linguagem e da linguagem ela
mesma, imiscuindo-se a ambos como aqueles que fazem, e “[...] fazer tem aqui o
sentido de atravessar, sofrer, receber o que vem ao nosso encontro, harmonizan-
do-nos e sintonizando-nos com ele. É esse algo que se faz, que se envia, que se
articula.” (HEIDEGGER, 2003, p. 121). Enquanto projeto de compreensão, o ser
passa, a cada instante de sua existência que se apresenta por cada momento do
seu poético, a desnudar com mais reflexão o tipo de projeto que almejava formu-
lar por meio das possibilidades mais próprias (HEIDEGGER, 2015, p. 244) dessas
manifestações dos instantes e da linguagem, de maneira que somente a sua fala,
como dizer “mostrante” das palavras e “existencialmente considerada” (NUNES,
2000, p. 108), fornece-lhe a condição (bem como o condiciona a) de prolongar a
interpretação e reflexão acerca desse projeto de compreensão.

Neste sentido é que “o existente, com efeito, não pode se reduzir a uma sé-
rie finita de manifestações, porque cada uma delas é uma relação com um sujeito
em perpétua mudança.” (SARTRE, 2002, p. 17), logo, sendo um eterno devir, as
possibilidades, no sentido de negação daquilo que não-é, seja porque ainda não
alcançou a determinado projeto, seja porque se transformou e perdurou sobre

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sua perpétua mudança, o existente, esse ser que se propaga e se extende3 no ins-
tante de sua existência, tem a consciência de que somente sendo nesses instantes,
por eles formado e a eles se remetendo, conseguirá alcançar a visão e a escuta das
palavras da poesia.

Não é que a possibilidade seja uma negação no sentido cotidiano e comum


do termo, ela é sim, uma extensão do ser, de modo que este almeja alcançá-la,
e por isso projeta-se, sempre tendo em vista as possibilidades anteriores que o
fundaram, “uma vez que pelo menos um dos seres sobre os quais [a negação] re-
cai é de tal ordem que remete ao outro, comporta o outro em seu coração como
uma ausência.” (SARTRE, 2002, p. 237). Assim é que o ser é exatamente aquilo
que não-é e o que ainda está para vir a ser. Se o ser não-é, então ele garante a
possibilidade de se tornar para poder ser propriamente. Contudo, a negação não
garante a sua chegada a ser, mas sim garante a plena possibilidade. Atando-se ao
que um dia foi, o ser existente pode lançar-se ao advir. Esse processo é bem expli-
cado por Benedito Nunes (1992), ao discorrer sobre os tempos. Falemos apenas
brevemente e de maneira situada. De acordo com o filósofo paraense, os tempos
são todos presentes, de vez que apenas este dá guarida à realização dos outros e
do próprio ser. Neste sentido, tendo um passado-presente (o retrovir), logo, não
como um pretérito que se encerra em si mesmo, mas como fases que formaram
ao/o modo de/do ser, o ser torna-se capaz de advir (futuro-presente) justamente
porque no apresentante (presente-presente) tem a consciência do que já foi, o seu
sido, e a causa da retroveniência é que possibilita a formação de um projeto e a
realização de uma projeção.

No que se refere à consciência, como forma do existente ser nesse e por


esse instante, diz-nos Sartre (2002, p. 34) que ela “é consciência de alguma coisa:
significa que a transcendência é estrutura constitutiva da consciência, quer dizer,
a consciência nasce tendo por objeto um ser que ela não é. Chamamos isso de pro-
va ontológica”. Sendo o que não é, abre-se a possibilidade para ser, e esta se con-
cretiza a partir do momento em que, pela linguagem (e aqui unimos o poético ao
existencial), o ser-poeta firma sua existência a fim de, ontologicamente, ser capaz

3 Quando aqui utilizarmos o termo “extender” e suas demais variações, utilizaremos no sentido
transcendental-extensivo, de vez que, enquanto existente à procura de si, o ser, no momento
presente, apenas pode alcançar a compreensão de si nesse instante que está sendo quando rea-
liza, tomando o passado(-presente) como mola propulsora, a projeção extensiva-transcendental
ao que poderá vir a ser. Evidentemente que esse sentido que indicamos não vem expresso no
verbo dicionarizado “estender”, daí a necessidade de valermo-nos de termo não dicionariza-
do “extender”. Para demarcar a diferença, destacaremos em itálico o léxico “extender” e suas
ramificações.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de imiscuir-se do instante em que é, para, com isso mesmo, inscrever-se nesse


Tempo (a reunião dos tempos). Outra vez Clarice Lispector é-nos categorial: “(...)
escrever é prolongar o tempo, é dividi-lo em partículas de segundos, dando a cada
uma delas uma vida insubstituível.” (LISPECTOR, 2020, p. 109). Extendendo-se nos
instantes poéticos-existenciais, o ser insere-se neles, porque eles o são propria-
mente, sem nunca exauri-los, de vez que eles revelam um ser que ele, o poeta,
ainda não é; retornando a eles, fazendo-os nascer outra vez, nós, leitores-intér-
pretes, inserimo-nos e revestimo-nos das partículas de segundos apresentadas
pelo poeta, fazendo-o voltar a atravessar à medida em que buscamos (re)compor
o estilo de seus instantes e também atravessamos uma via vinculada ao caminho
inexaurível.

Da interpretação dos poemas: um transcurso pelo instante


poético-existencial

Além de demonstrar brevemente o estilo de Age de Carvalho, o título do


livro Ainda: em viagem deixa transparecer também o modo do instante poético-
-existencial do poeta à medida em que suscita o eterno movimento no qual o ser
se encontra, está e é imerso. O sinal gráfico de dois pontos funciona muito mais
como a exposição à abertura de uma perpétua passagem de um instante que está
se consumando ao outro que está porvir, na sempre espera do devir, do que sim-
plesmente uma explicação do que viera antes, ou uma complementação.

Convertido em sinal de passagem, o sinal gráfico de dois pontos conserva,


em ambos os lados, os instantes que se entrecruzam e se formam mutuamente: o
existencial do poeta e o poético que o consagra e o mantém, em sua forma extáti-
ca, como uma travessia perpétua.

Chamamos de “instantes” porque os poemas aqui trabalhados são cons-


truídos a partir de momentos, dos quais o ser reflete sobre a sua perspectiva de
ser e estar no mundo, como ao estar “diante do lago”:

Diante do lago
De cascalho,
quatro vezes a pergunta
ricocheteou na água, afundou
antes de levitar

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

entre juncos e o cardo brilhante


a nossa sorte com ela
moeda, rumo aos céus.
(CARVALHO, 2015, p. 38).

No conjunto do poema, temos a construção de uma viagem, na qual figura


o ser na margem do lago, o lago em si e a outra margem do lago (demarcada pelos
juncos e o cardo). De imediato, a perspectiva do ser, em relação ao lago, é a mais
frontal possível, permitindo-o contemplar o lago, a outra margem e o céu (acima
e espelhado na água). A nossa perspectiva, entretanto, é a mais circular possível –
tanto faz se partimos do ser aos juncos e cardo, ou destes àquele, sempre veremos
o lago entre os dois, bem como o início e o fim estarão definidos como um elo que
nos devolve ao lago e à ambas as margens.

Essa perspectiva circular é conjeturada desde o título do poema: diante


do lago. À medida em que temos noção da posição do ser, escapa-nos se é inicial
ou final. Apenas o poema nos esclarece isso quando nos expressa que a pergunta,
ricocheteando quatro vezes na água, tem seu destino alcançando, por acaso ou
propositalmente4, entreosjuncos e o cardo brilhante.

Evidentemente que essa leitura preliminar nos é reforçada pelo conjunto


do poema, bem como é amadurecida e transmutada a partir dos seus processos e
jogos expressivos.

A primeira expressão do poema, no primeiro verso, demonstra o meio de


locomoção da pergunta: de cascalho. Ora, o cascalho não é senão uma fragmen-
tação de algo que um dia já fez parte de maneira integral, ou seja, de um todo.
Enquanto parte encontrada à margem do lago, passa a ser, ele mesmo (o cascalho),
o modo de chegar a vislumbrar o que um dia já se efetuou. O cascalho, essa pedra
que fora deteriorada, é, em si, imóvel, porém é móvel quando tem uma força que

4 Veja-se que o léxico “sorte” pode indicar, concomitantemente, “destino”, “modo” e “condição de
ser”, de maneira que essas três possíveis leituras não são nunca excludentes entre si, mas sim
complementares à medida em que a nossa sorte está condicionada ao nosso modo de ser para
podermos chegarmos ao nosso destino. É que o vemos com o poema “Andando pelo apartamen-
to”, no qual a conduta do ser o leva a exaurir-se do tempo cronológico ao abster-se de qualquer
expectativa, ou seja, ao atingir o tédio profundo, assim é que chega a conclusão, na quarta (pe-
núltima) estrofe do poema, de que o caminho é o destino, e este é o ponto de chegada e partida,
qual a casa (a linguagem) é a responsável pela circularidade: “esse o-que-somos/ (caminho de
volta,/ caminho de casa sempre),/ esse para-onde-vamos” (CARVALHO, 2015, p. 16).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

o lança. A força que o lança não é a mão do ser, ou o seu corpo, mas sim a sua per-
gunta, a qual se vale do cascalho como meio de ir a ser.

Evidentemente que, à medida em que a pergunta se lança ao lago e à mar-


gem, o ser que a contempla segue como ela: lançado à sua própria existência, isto
é, à sua sorte. A pergunta, incorporada ao cascalho (não em cima, não se segurando
a ele, mas sendo o próprio cascalho, absorvida e absorvendo nele/a ele), passa a
figurar como um suporte extensivo do ser que vislumbra seu movimento, o seu
percurso. Logo, imóvel diante do lago, acompanhando a trajetória da pergunta-
cascalho, o ser vê a si mesmo em travessia, ricocheteando na água, em quatro in-
tervalos. A cada batida, aproxima-se da sua imagem refletida na água, e enxerga o
primeiro impulso como sendo o seguido, e assim sucessivamente, porém o seguin-
te o é inevitável e imprevisível. A imagem do léxico “ricochetear” afasta qualquer
tipo de previsibilidade.

Desta forma, atando-se, transcendentalmente, à pergunta, o ser contem-


pla a si mesmo, imprevisível em seu ciclo de ser e estar a vir a ser à medida em que
é e está indo a ser.

O que temos, na outra margem do lago, é um conjunto de gramíneas sim-


ples, que crescem junto ao frescor do lago e à luz solar. Entretanto, a simplicidade
delas configura um destino comum (expresso pelo substantivo “cardo”), mas que
é alcançado por aqueles que seguem o percurso da pergunta/cascalho, isto é, de
ser e estar em viagem reflexiva, iluminante e iminente qual o cardo brilhante: entre
juncos e o cardo brilhante/ a nossa sorte com ela. O fato do ser extender-se à pergunta
é o que projeta a circularidade, de vez que, afundando entre juncos e o cardo bri-
lhante, passa a existir transcendentalmente à outra margem, à margem oposta a
si, o ciclo se fecha e o devolve a si mesmo.

Assim é que diante do lago passa a ser a posição inicial e final do ser justa-
mente porque, conduzido e transcendido à pergunta-cascalho que ricocheteia na
água, o poeta passa a seguir o caminho da pergunta-cascalho, de modo que, à me-
dida em que esta afunda, logo alça-se ao extremo refletido e absorvido na água do
lago a ele se harmonizando, ou seja, no céu, e, por isso mesmo, passa a levitarrumo
aos céus (e o/a imediatismo/impressão que primeiro(a) tivemos se perde, e assim
encontra-se a consumação existencial pelo poético em uma única e precisa circu-
laridade, isto é, do ser diante do lago à nós que o interpretamos).

Afundar e levitar são dois extremos que se complementam porque tem na


água do lago o mediador. Além de estar entre o ser, em uma margem, e os juncos

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

e o cardo, na outra margem, a água do lago também abre condições para que a
pergunta/cascalho afunde antes de levitar em direção aos céus5, ao estar entre
este e o fundo do lago, o repositório da pergunta, e o retorno do cascalho à sua
imobilidade.

A imagem de três entes será outra vez utilizada no poema “Eu intimo-me”,
agora, porém, serão aos pronomes pessoais oblíquos que terão a função de meio e
fim, e este retornando e se alçando ao início, isto é, ao pronome pessoal de primei-
ra pessoa, por intermédio do entre:

EU, INTIMO-ME6
a reconhecer-
(em ti, contigo
em viagem – nós,
dois faróis na estrada
farejando a escuridão luxuosa,
abolido tempœspaço
à visão da grande nebulosa:
tu, era eu-todo-estrelado,
o céu, espelho)
-me em
mim-mesmo.
(CARVALHO, 2015, p. 57).

Se não fosse o hífen (tanto posterior ao verbo “reconhecer”, quanto antes


do clítico “me”, de maneira a reforçar e a ligar-se ao que se entrecortou), dir-se-
-ia que o ser reconhece-se ao tornar-se uma segunda pessoa, o que, gramatical-
mente, não é (e não pode ser) possível. Contudo o poema diz exatamente isso, e a

5 O léxico “moeda” reforça a ideia de que a transcendência gera um ciclo e um “fim” comum à medi-
da em que em suas faces representam o ser e a pergunta, aquele que está aparentemente “imó-
vel” diante do lago e aquela que se move, bem como a extensão do ser à outra margem do lago.
Neste sentido, para reforçarmos e esclarecermos, não temos uma contraposição de ideias, mas
sim uma complementaridade pelos opostos “afundar” e “levitar”, pois, afundando no lago, o qual
reflete o céu acima de si, tornando-o uma imagem e uma composição de si, a pergunta-cascalho
passa a levitar no céu.
6 Muitos dos poemas de Ainda: em viagem tem a primeira expressão/palavra como título, destaca-
do em letras maiúsculas. Conservaremos essa formatação.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

restrição de que a segunda pessoa do discurso é quem a mensagem se destina, e a


quem o sujeito se dirige, entra em ruína.

O poeta dirige-se a si mesmo, de vez que ele é o “eu” a que o “me”, tantas
vezes reforçados, liga-se como objeto direto, sofrendo a ação realizada (de inti-
mar-se e reconhecer-se), bem como o “mim” atrela-se ao “eu” como uma terceira
pessoa (de quem se fala). Desta forma, porque exige uma força a mais de alcance,
de vez que é um tônico, o pronome “mim” será alterado por um determinante que,
no contexto do poema, assume função adjetival (“mesmo”) e promove a determi-
nação do “mim”, fornecendo a este a força necessária de expressão para poder
reportar-se ao pronome “eu”, ou seja, ao sujeito que está se extendendo em três
formas gramaticais.

Evidentemente que essa força de alcance tem como intuito fazer com que
o “mim-mesmo” retorne ao “Eu”, de forma a fornecer embalo para perdurar o mo-
vimento contínuo de transmutação do ser. Não à toa que o neologismo, formado
por uma composição justaposta que combina o pronome pessoal (o determinado)
a um nome com função adjetival (o determinante), expressa que o fim atingido, o
“mim”, é exatamente igual ao que o gerou, o inicial, e por isso a ele se reporta: Eu in-
timo-me/ a reconhecer-/ -me em/ mim-mesmo. Entretanto, ele é igual em termos de
conduta e condição, de maneira que o “mim” conserva o movimento do “Eu” não
por mera repetição, mas inovando-o e renovando-o, atribuindo suas peculiarida-
des à medida em que se reporta ao começo (e isso se dá por meio da preposição
“em” e do demonstrativo “mesmo”, assumindo a função de reaver e realocar no
discurso aquele que já fora mencionado). Assim é que o fim será o recomeço, e o
“Eu” possui a consciência disso, e esta é que desencadeará, ao estar atrelado a si
mesmo, como a forma dependente “me”, a conexão entre o referido “Eu” e aquele
que se comportará como o outro diferente de si (o “mim”).

Como dissemos, o “-me” (com o hífen) busca retomar e reforçar o vínculo


com o verbo a que se atém, de vez que algo os entrecortou. Dissemos “entre” jus-
tamente porque foi o fulgurar de um instante, como um reflexo, que o desconec-
tou, por hora, do verbo. Esse instante a que o poeta se concentra não possui um
fim, apenas uma demarcação, e a ausência de ponto manifesta isso.

Afirmamos que é um fulgurar de um instante porque os parênteses suge-


rem que algo surgiu de chofre, fazendo o poeta se ater à sua forma e o que ela
significa e traz (e atrai) de importante a si. Assim é que Age de Carvalho passa a re-
conhecer em ti uma outra figura que desconhece, mas reconhece enquanto ser que

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

se sobressaiu de si. O que aqui se experimenta é a relação de olhar entre o “Eu” e


o outro reconhecido (em ti), de modo que este outro passa a se comportar como
uma “presença em pessoa [...]” (SARTRE, 2002, p. 327). E será esse ato de intimar-
-se a reconhecer em si mesmo que provocará a aparição de uma outra persona, a
qual, sendo desconhecida, deverá ser reconhecida primeiramente para poder ser
trazida a si (em ti, contigo/ em viagem). Ora, ao olhar o outro, o poeta delineia uma
forma de si já concretizada e que o faz lançar-se a outras tantas desconhecidas,
e estas formas, em verdade, foram as que fizeram chegar ao ponto em que se en-
contra nesse instante (des)conhecido do reconhecimento, aberto pelo parêntese,
e por este fechado em seu ciclo sem fim.

Será na viagem que esse outro será descoberto efetivamente até o ponto
de aglutinar-se ao ser que o olhou. Assim é que, pleno de outras personas, o poeta,
na estrada, não apenas em viagem, mas sendo a viagem e a trilha que é percorrida,
brilha, provocando uma sinestesia que atribui à escuridão um corpo e um cheiro:
farejando a escuridão luxuosa. Entretanto, esse brilho dos faróis (sendo o ser e o
outro – “nós,/ dois faróis na estrada”), que ilumina a estrada, é emanado de si mes-
mo, de maneira a expelir para fora, as luzes, projetadas à semelhança da visão da
grande nebulosa.

O oitavo verso é o responsável por promover e sugerir a passagem da


“segunda pessoa” ao cerne do ser, de modo que este passa a conhecer quem era
aquela a quem se dirigia e com quem se conduzia. O sinal de gráfico de dois pontos
manifesta o estado transitório e a passagem, mas também se reporta ao primeiro
poema da obra com que dialoga à medida em que abre espaço para o neologismo
“eu-todo-estrelado”. Eis o poema:

E BRILHA: estar
dentro dela
e poder vê-la – a Via Láctea,
a trilha ao sem-fim
de mim, estrela
[...]
(CARVALHO, 2015, p. 15).

Se bem observarmos, os dois poemas, além do conteúdo, dialogam pela for-


ma de dois sinais gráficos e o que eles manifestam. No poema “E brilha”, aparece

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

primeiro o sinal de dois pontos, fazendo um corte e uma abertura para o eu-lírico
que está dentro da Via Láctea e sugerindo que ele faz parte dela, e, por conseguin-
te, o travessão retorna para a fonte do brilho. Em “Eu intimo-me” ocorre o inverso
(verdadeiro complemento), de vez que, agora, o ser é a fonte do brilho, e a Via
Láctea é que está imersa nele: tu, era eu-todo-estrelado.

O sinal do travessão sugere agora a passagem da Via Láctea ao cerne do


ser, tornando-o imenso em sua “infinitude” finita (o devir eterno), e o sinal de dois
pontos apresenta o modo de ser que se firma e se estabelece como tal, desse ser
que é também (como) a grande nebulosa, expresso pela composição justaposta de
“eu-todo-estrelado”: o advérbio “todo” diz que o “eu” está total e completamente
“estrelado”, ou seja, em sua viagem pela trilha aosem-fim que já se apresentava nele
(de mim), a conversão do ser-poeta em via láctea foi realizada a partir do momento
em que se pôs a caminho, em travessia pelos instantes de luz (para lembrarmos o
preceito da estética impressionista e sua continuidade com o mestre Vincent Van
Gogh). A inversão dos sinais demonstram que, como o lago, os opostos se com-
plementam e formam, a cada ciclo, o novo que nunca fora experimentado, mas
sempre vivido: o céu,/ espelho.

O terceiro poema de nossa interpretação tem seu instante poético-exis-


tencial promovido pela passagem de sujeitos “através” de uma garrafa verde, o
que ocasiona, ao mesmo tempo, um desvio (refratado) ao passado e uma recupera-
ção por meio de uma aproximação sensitiva desse desvio (refletido):

OS QUE PASSARAM
refratados, refletidos
naquela garrafa verde
ao sol,
brilhando agora
atrás da mente
entre ervas e tempo, hipo-
campo em flor:
a cada um,
a cada qual,
multicolor, desigual
o seu fosco

670
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ou florente, devido
caco de vida.
(CARVALHO, 2015, p. 65).

Vejamos que o artigo definido seleciona um momento que é reconhecido à


medida em que o pronome relativo “que” retoma e alude para aqueles que “passa-
ram”, sem, evidentemente, expressá-los7. Passar, assim, tem o sentido não apenas
de transitoriedade,mas de fechamento por conta dos qualificadores “refratados”
e “refletidos”8, os quais representam e são as sensações percebidas I) refratados
– a forma original se distorce; II) refletidos – a forma da passagem é apreendida e
intuída, tornada o cerne da questão, reportando-se ao que se refratou.

Neste sentido, as sensações percebidas encaminham ao ser-poeta para


duas direções, que serão reforçadas pela ruptura de “hipocampo”, ou seja, a sede
da memória atrás da mente: I) um espaço distante no passado (marcado ambos,
espaço e tempo, pelo pronome demonstrativo “naquela”), digressiva, que se apre-
senta esvaída (hipo- = baixo, posição inferior, falta ou carência “de nitidez”); II) um
espaço e tempo próximos, responsáveis por trazer à visão o que se esvaiu, fazen-
do com essa mancha se torna nítida nesse instante de passagem pela garrafa, o
que vem a ser explicitado pelo verbo “brilhar” no gerúndio, exprimindo movimen-
to e algo que brilha (garrafa verde/ ao sol), e pelo advérbio “agora”.

Os instantes poético-existenciais de Age de Carvalho vêm marcados, além


dos tempos, dos espaços e do modo como eles se manifestam, pela complemen-
taridade dos “opostos” na segunda estrofe, nas formas definidas e indefinidas, em
que aquela consuma a esta, e nos adjetivos que equilibram a vida do ser.

Assim é que, quanto aos dois primeiros versos da segunda estrofe, temos o
artigo definido retirando a identidade indefinida de “cada um” (pronome e artigo
indefinidos), o(s) qual(is) será(ão) retomados pelo pronome relativo “qual”, para
acrescentar a informação de que qualquer um deles (os que passaram), ora estão
representados na memória de modo fosco e desigual, porque são refratados, ou
seja, têm suas formas manchadas e desviadas (a cada um), ora são representados

7 Ou seja, o que temos é um sujeito não expresso, de vez que não importa ao poeta “quem” passou,
mas o que eles ocasionaram ao passarem pela garrafa verde, qual a sensação (ou percepção sen-
sitiva) que eles causaram. Temos então: “Os Ø que passaram”.
8 Notemos que vírgula entre os adjetivos suspendem um certo ritmo de leitura linear (o que acon-
teceria se enunciação o aditivo “e”), sugerindo o modo que se cedeu a passagem dos sujeitos pela
garrafa verde, isto é, longo e curto, estendido e comprimido.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

nesse agora de maneira multicolor e florentes, porque são refletidos através do sol
de passagem pela “garrafa verde”, esta como imagem clara desse agora (a cada
qual)9.

Dessa maneira é que se forma o “devido caco de vida”, pois, pelos instantes
poéticos, consagrados no agora do poema, refletem com nitidez, e pelos instantes
existenciais, que são instaurados pelo passado, fornecendo ao presente o mate-
rial, ainda que esmaecido, necessário à concretização dos momentos.

Considerações finais

À guisa de considerações finais, vale ressaltarmos que somos nós, leitores-


intérpretes, que realizamos o nascimento da atividade poética à medida em que
nos encaminhamos ao/pelo modo vigoroso da linguagem, apresentada pelo poema
em sua forma. A poesia que se manifesta, em um único segundo de sua “eternidade
eterna”, ou seja, constância de movimento e renovação, revela que cada poema
inaugura, por suas palavras que o constituem, diversas vias para diversos e novos
horizontes, de maneira que eles apenas serão vividos e experimentados em sua
essência quando a ele nos entregarmos, e nos harmonizarmos com a linguagem
que o entreabrem, pois, sabendo que, em se tratando de poesia, “[...] tudo começa
e termina na linguagem, o topos por excelência do ser, em que se abastece os poe-
tas e os pensadores, e em torno do qual eles convergem no caminho do retorno ao
país natal, à residência poética do homem.” (NUNES, 1992, p.278, grifo do autor),
saberemos que os caminhos instituído nos instantes poéticos-existenciais por
Age de Carvalho tem por intuito genuíno alcançar a linguagem originária e sua
poesia mais própria.

Ao preservar a possibilidade existencial do poeta, para que possa volver-se


e suster-se do caminho da linguagem como linguagem, ele passa a pertencer mais
propriamente à linguagem e ao caminho, fazendo deles o próprio destino, pois o
“próprio da linguagem abriga-se, portanto, no caminho, com o qual a saga do dizer
deixa aqueles que a escutam alcançar a linguagem.” (HEIDEGGER, 2003, p. 205).
Por saga do dizer, Heidegger (2003) entende o processo de mostrar e deixar apa-
recer da linguagem, logo, escutando e visualizando o signo misterioso da lingua-
gem, o poeta pertence à poesia que se vincula e se revela.

9 Vejamos ainda que o pronome relativo “qual” refere-se ao que vem antes juntamente com o ar-
tigo definido ”a”, e isso sugere a tentativa de esclarecer/refletir quem foram os que passaram de
forma refratada.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Neste sentido é que “[...] escrever é o modo de quem tem a palavra como
isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra morde a
isca, alguma coisa se escreveu.” (LISPECTOR, 2020, p. 25), de maneira que a pró-
pria escrita é e será atravessada como uma via constituídas de instantes, ou seja,
ter-se-á de viajar por ela a fim de aprender a efetivamente atravessar as palavras
poéticas ali conservadas. Portanto, permanecendo quietos e perdurando o cami-
nho, conseguiremos, pelos poemas e seus instantes poéticos-existenciais que se
firmam como eternos, mantermo-nos ainda: em viagem.

Referências

CARVALHO, A.Ainda: em viagem. Belém: Editora da UFPA, 2015.


HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Tradução Márcia Sá Cavalcante
Schubak. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universidade São
Francisco, 2003.
HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos
de floresta. Tradução Irene Borges-Duarte et al. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002. p. 5-138.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Tradução rev. Apr. Márcia Sá Cavalcante Schuback.
10. ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes; São Paulo: Universidade São Francisco,
2015.
LAO-TSÉ. O Livro do Caminho e da Virtude. Tradução Wu Jyn Cherng. s.d.
Disponível em: http: //www.dominiopublico.gov.br/download/texto/le000004.
pdf. Acesso em: 19 abr. 2020.
LISPECTOR, C. Para não esquecer. Ed. comemorativa amp. Rio de Janeiro: Rocco,
2020.
LOUREIRO, J. J. P. A poesia. In: LOUREIRO, João de Jesus Paes. João de Jesus Paes
Loureiro. Obras reunidas – v. 3 teatro e ensaios. São Paulo: Escrituras, 2000. p.
309-316.
MICHELETTI, G. Novas tendências dos estudos estilísticos. In: OLIVEIRA, Esther
Gomes de; SILVA, Suzete (Orgs). Semânticas e Estilísticas: Dimensões Atuais do
Significado e do Estilo. São Paulo: Pontes Editores, 2014. p. 383-402.
NUNES, B. Heidegger e a poesia. Natureza Humana, v. 2, n. 1, São Paulo: jun., 2000,
p. 103-127. Disponível em: http: //pepsic.bvsalud.org/pdf/nh/v2n1/v2n1a04.pdf.
Acesso em: 13 de nov. 2019.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

NUNES, B. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. 2. ed. São


Paulo: Editora Ática, 1992.
PAZ, O. O arco e a lira. 2. ed. Tradução Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1982.
SARTRE, J. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de
Paulo Perdigão. 11. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

O PESO DA CRUZ E O PESO DA


EXCLUSÃO: UMA ANÁLISE DA
MARGINALIDADE EM O PAGADOR DE
PROMESSAS (DIAS GOMES)

Vanessa de Andrade1
Mateus da Silva Kaefer2
Marcos Hidemi de Lima3

RESUMO: Este trabalho versa sobre a marginalização presente na peça teatral O


pagador de promessas, de Dias Gomes (1960). O objetivo do estudo é evidenciar
a estigmatização social sofrida por Zé-do-Burro – protagonista da peça –, con-
siderando-se questões sociais e religiosas como fatores que podem determinar
a marginalização social do sujeito em sociedade. Para a realização deste traba-
lho, são utilizados os estudos de Candido (2015) e DaMatta (2004) sobre certo
ideal monorreligioso no Brasil. Magaldi (2004) contribui para abordar questões
relativas às personagens da peça de Dias Gomes. Além disso, emprega-se o con-
ceito da dialética da marginalidade de Rocha (2006) e seus desdobramentos que
auxilia na identificação da personagem mais excluída na sociedade, bem como as
conceituações de sujeito marginal e sujeito malandro de Santos (2009) com o in-
tuito de apreender a situação conflituosa vivida pelo protagonista de O pagador

1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Pato Branco. vanessadandradde@gmail.


com.
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Pato Branco. mateusdasilvakaefer@gmail.
com.
3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Pato Branco. marcoshidemidelima@gmail.
com.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de promessas. À luz desse aporte teórico, patenteia-se que Zé-do-Burro caracteri-


za-se por ser ingênuo, consequentemente vitimizado por jogos de interesses dos
que o cercam, e mal compreendido por adotar valores do sincretismo religioso
tão característico do Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Teatro brasileiro; Marginalidade; Exclusão social.

ABSTRACT: This work deals with the marginalization present in the play O pagador de
promessas, by Dias Gomes (1960). The aim of the study is to highlight the social stig-
matization suffered by Zé-do-Burro - protagonist of the play -, considering social and
religious issues as factors that can determine the social marginalization of the subject in
society. To carry out this work, the studies of Candido (2015) and DaMatta (2004) on
a certain monoreligious ideal in Brazil are used. Magaldi (2004) contributes to address
issues related to the characters in Dias Gomes’ play. In addition, the concept of Rocha’s
dialectic of marginality (2006) and its unfolding is used, which helps identifying the
most excluded character in society, as well as the conceptualizations of marginal sub-
ject and rascal subject of Santos (2009) in order to apprehend the conflictive situation
experienced by the protagonist of O Pagador de Promessas. In light of this theoretical
contribution, it is clear that Zé-do-Burro is characterized as being naive, consequently
victimized by games of interests of those around him, and poorly understood for adop-
ting values ​​of religious syncretism, so characteristic of Brazil.

KEYWORDS: Brazilian Theater; Marginality; Social exclusion.

Introdução

O presente artigo contempla uma análise referente a peça teatral de Dias


Gomes O Pagador De Promessas com o objetivo de observar o personagem margi-
nalizado Zé, conhecido também como Zé-do-Burro.

Primeiro, será feito um breve relato sobre o autor Dias Gomes, partindo
para o resumo da obra que será analisada. Por conseguinte, um apanhado geral
sobre o contexto histórico em que o autor e a obra estão inseridos, e por fim, a
análise referente à personagem marginalizada.

Nesta obra é apresentada uma nova possibilidade de sujeito marginalizado,


não trata sobre escravos, indígenas ou sobre algum desprestígio social. Verifica-
se, no entanto, uma marginalização que representa a fé de uma camada da socie-
dade que sofre com a rigidez estabelecida pelas ordens advindas de uma institui-
ção que detinha grande influência no pensamento da época: a Igreja Católica.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

O autor Dias Gomes

Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador, Bahia, no dia 19 de ou-


tubro de 1922. Foi um contista, romancista e teatrólogo brasileiro. Formado em
diversas áreas, se destacou aos 15 anos com “A Comédia Dos Moralistas, obtendo
com ela o Prêmio do Serviço Nacional do Teatro.” (GOMES, 2010, p. 141). De acor-
do com Viriato Corrêa, crítico importante da época, o escritor Dias Gomes seria
“mais cedo ou mais tarde, o autor mais importante do teatro brasileiro.” (GOMES,
2010, p. 141).

Segundo Nazareth e Silva (2014), é relevante ressaltar que no ano de 1953,


Gomes participou de um evento em Moscou da Delegação Brasileira nas come-
morações do dia do trabalho soviético. Após isso, foi demitido da rádio em que
trabalhava e começou a ser perseguido por Carlos Lacerda. Além disso, teve seu
nome incluído na lista negra, sendo taxado como comunista, mas felizmente, no
ano seguinte, em 1954, seu nome foi retirado.

Entre as obras de Dias Gomes está O Pagador de Promessas, que foi escrita
no ano de 1959. O autor esteve em conflito com o regime militar e lutava contra
esse regime de opressão e pensamento. Segundo Elisângela da Silva Nazareth e
Agnaldo Rodrigues da Silva “pode-se perceber que as inúmeras obras produzidas
por Gomes e cada uma em particular expõe as vicissitudes sociais de um período.”
(NAZARETH e SILVA, 2014, p. 70). Além disso, ele já discutia uma outra forma de
pensar o Brasil. Por esse motivo, é mencionado por Anatol Rosenfeld, quando tra-
ta um pouco sobre a vida do autor, “de oferecer uma imagem crítica da realidade
brasileira naquilo que é tipicamente humano.” (ROSENFELD apud GOMES, 2010,
p. 141).

Apesar de todas as suas obras publicadas estarem retratando um Brasil


“verdadeiro”, foi somente em 1960 que O Pagador de Promessas foi encenada. E
esta peça foi:

um estrondoso sucesso nacional e internacional [...] que [...] fez


com que seu nome atravessasse as fronteiras do país, sendo hoje
Dias Gomes, talvez o nosso dramaturgo mais conhecido e mais
representado no exterior. [...] conquistou a Palma de Ouro, no
Festival de Cannes de 1962. (GOMES, 2010, p. 142).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

E, portanto, ficou marcada a partir da “2° fase do teatro brasileiro moderno,


pela grande repercussão, ficando conhecida no mundo todo, principalmente de-
pois de ser traduzida em vários idiomas.” (NAZARETH;SILVA, 2014, p. 69). Entre
os idiomas traduzidos, figuram: inglês, russo, francês, espanhol, italiano, grego e
hebraico.

É inegável que a censura impactou na produção e execução das obras de


Dias Gomes, fazendo com que ele se adaptasse “às novas exigências”. Ademais,
esta “fase de Dias Gomes ficou marcada pela grande opressão causada pelo
militarismo, mas mesmo assim manteve-se fiel às suas peças teatrais e muitas de-
las chegaram a ser encenadas no período de 1968 e outras em 1980”. (NAZARETH;
SILVA, 2014, p. 69). E com isso, no dia em que a peça O Pagador de Promessas es-
treou em Washington, Dias Gomes:

através do Ato Institucional n° 1, [...] foi demitido da Rádio


Nacional onde era diretor-artístico. O Ato implantado em 09/
abril desse mesmo ano pelos golpistas do militarismo começou a
promover mudanças no país para que o Golpe Militar se solidifi-
casse (NAZARETH; SILVA, 2014, p. 69).

Apesar deste cenário de censura, Dias Gomes não deixou se intimidar.


Continuou suas participações em diversas manifestações em “defesa da liberdade
de expressão e contra a censura. Com seu caráter crítico transmitia em suas pe-
ças as divergências sociais existentes em sua época.” (NAZARETH; SILVA, 2014, p.
69). Portanto suas peças “chegaram a ser proibidas as exibições como o Berço do
Herói no dia 01/04/1964.” (NAZARETH; SILVA, 2014, p. 69).

De acordo com as autoras Nazareth e Silva (2014), com a censura que per-
meava as peças de Gomes, ele decide então migrar do teatro para a televisão,
fazendo algumas adaptações. Dias Gomes faleceu aos 76 anos, vítima de um aci-
dente automobilístico. Autor de uma vasta obra no teatro e na televisão, recebeu
vários prêmios por seus trabalhos.

A peça O pagador de promessas

Em Panorama do Teatro Brasileiro, Sábato Magaldi afirma que: “com a falta


de defesa do herói [...] se avolumam outros interesses, para mostrar a desproteção
do homem num mundo governado por forças que lhe são superiores;” (MAGALDI,

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

2004, p. 267). A desproteção do personagem Zé-do-Burro é constantemente


mostrada na peça.

Elisângela da Silva Nazareth e Agnaldo Rodrigues da Silva nos remetem a


um comentário feito pelo autor sobre a sua obra na qual nos diz que:

O Pagador de Promessas nasceu, principalmente, dessa cons-


ciência que tenho de ser explorado e impotente para fazer uso da
minha liberdade que, em princípio, me é cedida. Da luta que tra-
vo com a sociedade, quando desejo fazer valer o meu direito de
escolha, para seguir o meu próprio caminho e não aquele que me
impõe. Do conflito interior em que me debato permanentemen-
te, sabendo que o preço da minha sobrevivência é a prostituição
total ou parcial. (GOMES, apud NAZARETH; SILVA, 2014, p. 71).

É visto, então, como o autor se posiciona perante a sua obra, como percebe
e tem consciência da exploração vivida na época, e como o seu personagem pode
expressar essa exploração.

Em seu livro Sábato Magaldi diz que “O Pagador, além de criar em Zé-do-
Burro uma grande personagem e de fazer dura crítica à intolerância, dramatiza
o sincretismo religioso, uma das nossas verdades populares.” (MAGALDI, 2004,
p. 305). Diante disso, é visto então, o papel fundamental da religião, permeando
nosso personagem à marginalização.

Na peça estudada neste trabalho, é visto que há “um complexo jogo psico-
lógico de sofrimento psíquico diante das desconsiderações de crenças e valores
do personagem principal Zé-do-Burro [...]” (NAZARETH; SILVA, 2014, p. 70). O
enredo apresentado em O Pagador de Promessas divide-se em três atos e inicia-se
com a escuridão da madrugada por volta das 04h30min em que Zé-do-Burro, com
a sua cruz sobre o dorso das suas costas, juntamente com Rosa, sua esposa, estão
chegando ao um vilarejo onde localiza-se uma igreja de Santa Bárbara.

A temática principal da peça é a promessa que Zé-do-Burro fez à Iansã


(santa do terreiro Candomblé) que corresponde a Santa Bárbara (da igreja cató-
lica), de que se seu burro Nicolau melhorasse da infecção que teve por conta de
um galho de árvore que caiu sobre ele em uma noite de tempestade, iria levar uma
cruz tão grande e pesada como a de Cristo, até uma igreja em que a padroeira fos-
se Santa Bárbara, no dia em que se comemora o dia da santa e a colocaria nos pés
do altar. A partir disso os problemas iniciam.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Sua mulher, Rosa, que o acompanha, reclama das sete léguas que percor-
reram juntos por conta dessa promessa. Como ainda era de madrugada, não ha-
via nada aberto e nem ninguém na vila. Nesse momento, os dois têm uma breve
discussão sobre onde irão dormir até que amanheça. Zé-do-Burro está disposto
a não deixar a sua cruz sozinha por medo de a roubarem. Por conseguinte, chega
Bonitão (que era um cafetão) e Marli (que dá a entender que é uma prostituta, que
mantém um relacionamento com ele), os dois discutem sobre a quantia de dinhei-
ro que Marli havia recebido nesta noite. Após isso, Bonitão manda-a para casa e
volta a sua atenção ao casal.

Bonitão, que era um malandro por natureza, fica curioso ao ver o casal em
frente à igreja tão cedo e com uma cruz e se interessa por Rosa. Acaba oferecendo
um quarto no hotel para ela, que por sua vez, reluta em aceitar pois estava perce-
bendo as intenções do cafetão, mas Zé-do-Burro com a sua inocência faz com que
ela aceite.

Zé-do-Burro fica esperando o dia amanhecer e acaba pegando no sono.


Quando já era por volta das 6h da manhã, o sino da igreja tocou, Bonitão volta
sozinho e acorda o Zé pois a igreja já estava aberta. Explica sobre a sua mulher, o
sacristão e uma beata aparecem.

Contou-lhe sua história ao Sacristão que, por sua vez, chamou o padre. O
padre era um homem conservador, e após ouvir toda a história, fica horrorizado
e diz que Zé-do-Burro mexeu com feitiçaria e era um herege, pois Iansã é orixá e
não Santa Bárbara. Certo disso, não permite que ele entre na igreja com a cruz e
fecha as portas. Chateado e sem entender o porquê daquela reação, Zé-do-Burro
aguarda outra oportunidade para falar com o padre.

Como o dia já havia amanhecido, a vila começa a ficar mais movimentada.


Seu Galego, dono da mercearia já estava abrindo seu comércio, Minha tia já esta-
va a vender seus quitutes, Dedé Cospe Rima falando das suas cantatas, e todos
interessados no que estava acontecendo com o homem e sua cruz. Chegou então
Rosa, descansada depois de ir para o hotel. No enredo, é possível entender que ela
passou a noite na cama com Bonitão, logo após chega Marli, que faz um alvoroço
falando para quem quisesse ouvir que Bonitão era dela e de mais ninguém. Foi
onde Zé-do-Burro percebe que sua mulher havia sido infiel.

Posteriormente, chega o Monsenhor, mandado pelo Arcebispo para que


Zé-do-Burro pudesse anular a sua promessa e fizesse outra, renunciando as ten-
tações de satanás. Ele explica que não pode deixar de pagar a promessa, e acaba

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

negando o pedido de Monsenhor, deixando o padre ainda mais revoltado contra


ele.

Em seguida, chega a imprensa querendo saber mais sobre esse herói.


Começam então, a fazer-lhe perguntas sobre reforma agrária, e o que pensava
sobre o governo. Em sua simplicidade, ele respondia que apenas vinha pagar a
promessa e a imprensa distorce o discurso, aumentando ainda mais o problema.
Até que então saiu na manchete do jornal O nosso Messias e a polícia começa a
interferir na cena.

O guarda da vila havia conversado com Zé-do-Burro e entendido o que ele


estava fazendo ali, entretanto, Bonitão chama um de seus amigos, O Secreta, e
faz com que ele acredite que Zé-do-Burro é uma ameaça à sociedade. Quando o
delegado chega querendo levá-lo, ele se nega e diz que não é um criminoso e que
só queria pagar a promessa. Havia na cena o Mestre Coca e o pessoal da capoeira,
que estavam do lado de Zé-do-Burro. Quando a polícia atacou, eles atacaram, só
pararam quando ouviram um som de tiro. Foi quando todos olharam e viram Zé-
do-Burro dando alguns passos com o objetivo de entrar na igreja e caindo morto
ao pé da escada.

Os que ali estavam, colocaram Zé-do-Burro na cruz e o levaram para den-


tro da igreja, para que ele pudesse pagar a promessa feita a Santa Bárbara e des-
cansar em paz. E assim as cortinas caíram e encerra o terceiro ato.

De acordo com as autoras Nazareth e Silva (2014), com a censura que per-
meava as peças de Gomes, ele decide então migrar do teatro para a televisão,
fazendo algumas adaptações. Dias Gomes faleceu aos 76 anos, vítima de um aci-
dente automobilístico. Autor de uma vasta obra no teatro e na televisão, recebeu
vários prêmios por seus trabalhos.

Análise do personagem marginalizado Zé-do-Burro

Magaldi (2004) não compreende a peça como “ingênua ou inverossímil


[...] porque assenta num episódio estranho aos nossos hábitos civilizados. Zé-do-
Burro é um homem primário (simplório, se se quiser) natural do sertão da Bahia,
e pagando a promessa.” (MAGALDI, 2004, p. 267), tendo em vista que o cotidiano
dos personagens se assemelha ao nosso, é possível nos identificarmos ou identifi-
carmos pessoas de nosso círculo social com ele.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Segundo Magaldi (2004), “a figura patética e pungente de Zé-do-Burro,


que tem inevitável feitio cômico aos olhos profanos, é a mola para a configura-
ção do universo teatral da peça.” (MAGALDI, 2004, p. 267). Além disso, o perso-
nagem teatral se difere da imagem do personagem de um romance. No debate A
personagem de Ficção de Antonio Candido, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida
Prado e Paulo Emílio Sales Gomes, é nos dito através do capítulo “A personagem
do Teatro” que “a personagem, de certa maneira, vai ser o guia que nos permitirá
distinguir os dois gêneros literários [...] as personagens constituem praticamente
a totalidade da obra: nada existe a não ser através delas.” (PRADO, 2009, p. 81).

Conforme Candido em “A Pessoa e a Personagem” do livro A Personagem De


Ficção (2009) as personagens teatrais podem ser vistas além do palco, dando sen-
tido e verossimilhança para eles, de “um poder extraordinário” (CANDIDO, 2009,
p. 29). O autor também sugere que:

As personagens terem o caráter quase de silhuetas, porque se


confrontam com as poucas personagens, aparecem proporcio-
nadas pela ação específica da peça, de modo que seria difícil
imaginá-las fora do contexto desta ação peculiar. Já nas peças de
cunho mais “aberto” épico [...] as figuras adquirem mais “plastici-
dade”, podendo ser imaginadas “fora da peça”. (CANDIDO, 2009,
p. 29).

Por conseguinte, a personagem acaba tendo “maior coerência do que as


pessoas reais [...] maior exemplaridade [...] maior significação; e, paradoxalmente,
também maior riqueza.” (CANDIDO, 2009, p. 30) e é isso que podemos ver no per-
sonagem do livro do Dias Gomes. E, portanto, o personagem teatral Zé-do-Burro,
que será analisado neste trabalho, é considerado o personagem marginalizado,
dando ao teatro a vida necessária.

A marginalização nessa obra ocorre principalmente pelo fato de Zé-do-


Burro ir contra o pensamento dominante do século XX no que diz respeito à cren-
ça religiosa do catolicismo romano. Ao tratar sobre a dialética da marginalidade
no sentido amplo do termo, também contrapondo à dialética da malandragem,
Rocha (2006) explora esses dois conceitos:

O que cunhei como “dialética da marginalidade” enfatiza uma


nova forma de relação entre as classes sociais. Não favorece
mais uma visão negligenciadora de diferenças, mas em vez dis-
so as traz à tona, recusando a promessa incerta da reconciliação

682
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

social. Nesse contexto, é importante esclarecer que o termo


“marginal” não tem necessária e exclusivamente um significado
pejorativo, representando, acima de tudo, embora não exclusi-
vamente, a maioria da população empobrecida e excluída dos
benefícios do progresso social [...] enquanto a “dialética da ma-
landragem” representa o modo jovial de lidar com as desigualda-
des sociais, como também com a vida cotidiana, a “dialética da
marginalidade”, ao contrário, apresenta-se através da exploração
e da exacerbação da violência, vista como um modo de repudiar
o dilema social brasileiro. (ROCHA, 2006, p. 37).

Dessa forma, entende-se que o dilema social brasileiro relatado não se tra-
tava sobre benefícios sociais. O protagonista Zé-do-Burro não era um sertanejo
marginalizado por ser essencialmente pobre, pois ele relata ao padre que, caso
a promessa feita por ele fosse atendida, dividiria a sua terra com quem tivesse
menos condições financeiras que ele: “Prometi também dividir minhas terras com
os lavradores pobres, mais pobres do que eu.” (GOMES, 2002, p. 48), mas sim por
não compreenderem seu pensamento religioso, por intermédio de sua promessa.

O dilema representado por Dias Gomes, nesta obra em específico, pode


ser compreendido como o pensamento da camada popular frente às diferentes
crenças religiosas resultantes da formação pluricultural brasileira. Sobre essa di-
versidade, Roberto DaMatta, no livro O que faz do brasil, Brasil? (1986) afirma que:

A variedade de experiências religiosas é, assim, ao mesmo tem-


po, ampla e limitada. É ampla porque, ao Catolicismo Romano e
às várias denominações Protestantes, somam-se outras varieda-
des de religiões Ocidentais e Orientais, além das variedades bra-
sileiras de cultos de possessão cuja tradição é uma constelação
variada de valores e concepções. (DAMATTA, 1986, p. 114).

Cabe destacar também que no Brasil, até 1890, de acordo com DaMatta
(1986) a religião dominante e oficializada era o Cristianismo mais especificamen-
te com a ramificação do Catolicismo Romano. Os valores que a igreja estabelecia
nesse período eram considerados essenciais no Brasil. Esses valores influenciam
a marginalização da personagem. Conforme verificado na peça em questão, os
representantes da igreja se colocaram em posição rígida, impedindo que o pro-
tagonista levasse a cruz até o altar ao considerarem as atitudes de Zé-do-Burro
como heresia:

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Padre: Estou vendo. E essa insistência na heresia mostra o quan-


to está afastado da igreja.
ZÉ: Está bem, Padre. Se for assim, Deus vai me castigar. E o se-
nhor não tem culpa.
PADRE: Tenho, sim. Sou um sacerdote. Devo zelar pela glória do
Senhor e pela felicidade dos homens.
ZÉ: Mas o senhor está me fazendo tão infeliz, padre!
PADRE: (Sinceramente convicto) Não! Estou defendendo a sua
felicidade, impedindo que se perca nas trevas da bruxaria.
(GOMES, 2010, p. 98).

Na mesma linha de pensamento vem Anatol Rosenfeld em seu livro O Mito


e o Herói no Moderno Teatro Brasileiro diz que “A religiosidade arcaica e o sincretis-
mo ingênuo de Zé, para com Iansã e Santa Bárbara, o terreiro e a Igreja, tendem a
confundir-se, se chocam inevitavelmente com o formalismo dogmático do padre”
(ROSENFELD, 1982 p. 58), pois o padre não compreendia que sua promessa havia
sido feita à Santa Bárbara, ou melhor, à Iansã, a figura da religião afro-brasileira
que correspondia a Santa católica. Vemos isso por meio do excerto:

[...] ZÉ: Padre, eu não tenho parte com o Diabo, tenho com Santa
Bárbara.
PADRE: (Agora para toda a praça) Estive o dia todo estudando
este caso. Consultei livros, textos sagrados. Naquele burro está
a explicação de tudo. É Satanás! Só mesmo Satanás podia levar
alguém a ridicularizar o sacrifício de Jesus. [...] (GOMES, 2010,
p. 98).

Antonio Candido, em seu livro O discurso e a Cidade,no capítulo que retrata


sobre Dialética da Malandragem (2015) também discorre sobre a dura tarefa de
escolher uma única crença:

Um dos maiores esforços das sociedades, através da sua origi-


nalidade e das ideologias que a justificam, é estabelecer a exis-
tência objetiva e o valor real de pares antitéticos, entre os quais
é preciso escolher, e que significam lícito ou ilícito, verdadeiro o
ou falso, moral ou imoral, justo ou injusto, esquerda ou direita
política e assim por diante. Quanto mais rígida a sociedade, mais
definido cada termo e mais apertada a opção. (CANDIDO, 2015,
p. 41).

684
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Como consequência de uma ingenuidade do personagem Zé-do-Burro, que


priorizava manter a própria moralidade sem entender os motivos pelos quais os
representantes da igreja católica não aceitavam a ideia de pagar uma promessa
feita em um terreiro de candomblé na igreja Católica, o personagem é morto pela
polícia. Candido (2015) fala sobre a alienação e manipulação aos grupos menos
favoráveis ou os que não seguem a “mesma lei”. Ademais, destaca que “a alienação
se torna ao mesmo tempo marca de reprovação e castigo do réprobo; o duro mo-
delo bíblico do povo eleito, justificando a sua brutalidade com os não eleitos, os
outros.” (CANDIDO, 2015, p. 43). Consequentemente, é possível observar atra-
vés do diálogo que Zé-do-Burro tem com o padre, que ele tenta se explicar, mas
não dão ouvidos a ele.

PADRE: (Dá alguns passos de um lado para o outro, de mão no queixo


e por fim detém-se diante de Zé-do-Burro, em atitude inquisitorial)
Muito bem. E que pretende fazer depois... depois de cumprir sua
promessa?
ZÉ: (Não entendendo a pergunta) Que pretendo? Voltar pra minha
roça, em paz com a minha consciência e quite com a santa.
PADRE: Só isso?
ZÉ: Só... [...]
ZÉ (Angustiadamente tenta explicar-se) Padre, é preciso explicar
que Nicolau não é um burro comum... o senhor não conhece
Nicolau, por isso... é um burro com alma de gente...
Padre: Pois nem que tenha alma de anjo, nesta igreja não entrará
com está cruz! (Dá as costas e dirige-se à igreja. O sacristão trata
logo de segui-lo)
ZÉ: (Em desespero) Mas padre... Eu prometi levar a cruz até o al-
tar-mor! Preciso cumprir minha promessa!
PADRE: Fizesse-a então numa igreja. Ou em qualquer parte, me-
nos num antro de feitiçaria.
ZÉ: Eu já expliquei... [...] (GOMES, 2010, p. 53-54).

Dessa forma, entende-se que as ações que abalariam a rigidez da monorre-


ligião são colocadas ao fim por meio da violência. No que se refere ao dogmatismo
religioso, Candido (2015) afirma que:

685
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Sob alegação de enganadora fraternidade, visava a criar e man-


ter um grupo idealmente monorracial e monorreligioso; outra
que incorpora de fato o pluralismo racial e depois religioso à sua
natureza mais íntima, a despeito de certas ficções ideológicas
postularem inicialmente o contrário. (CANDIDO, 2015, p. 44).

Além disso, ainda diz que “a repressão moral só pode existir, como ficou
dito, fora das consciências [...]” (CANDIDO, 2015, p. 42), pois Zé-do-Burro não
tinha consciência do que estava acontecendo, queria somente pagar sua pro-
messa e de modo ingênuo acabou morrendo. Refletindo a partir deste conceito,
Gomes retrata ao final do livro com o uso de uma rubrica, a explicação da morte
de Zé-do-Burro:

Zé-do-Burro, de faca em punho, recua em direção à igreja. Sobe


um ou dois degraus, de costas. O Padre vem por trás e dá uma
pancada em seu braço, fazendo com que a faca vá cair no meio da
praça. Zé-do-Burro corre e abaixa-se para apanhá-la. Os policiais
aproveitam e caem sobre ele, para subjugá-lo. E os capoeiras
caem sobre os policiais para defendê-lo. Zé-do-Burro desapa-
receu na onda humana. Ouve-se um tiro. A multidão se dispersa
como num estouro de boiada. Fica apenas Zé-do-Burro no meio
da praça, com as mãos sobre o ventre. Ele dá ainda um passo em
direção à igreja e cai morto. (GOMES, 2010, p. 138).

O modelo proposto da dialética da marginalidade pressupõe uma forma


diferente de relacionamento entre as classes sociais. “Não se trata mais descon-
ciliar diferenças, mas de evidenciá-las, recusando-se a improvável promessa de
meio-termo entre o pequeno círculo dos donos do poder e o crescente univer-
so dos excluídos.” (ROCHA, 2006, p. 57). Nesta perspectiva, vemos como Zé-do-
Burro gostaria que as pessoas o entendessem, fazendo de tudo para se explicar.
Isso mostra essa diferença entre as classes, pois a conversa era entre ele, o guarda
e o Dedé que tentava se fazer entendido.

[...] Guarda: Sim, eu sei, não foi o senhor quem inventou a festa de
Santa Bárbara. Mas eu também não tenho culpa de ser guarda.
Minha obrigação é facilitar o trânsito, tanto quanto possível.
Zé: Sinto muito, mas não posso sair daqui.
Guarda: (Sua paciência começa a esgotar-se) Ai, ai, ai, ai, ai... eu es-
tou querendo me entender com o senhor...

686
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Zé: (Irritando-se também um pouco) Eu também estou querendo


me entender com o senhor e com todo mundo. Mas acho que nin-
guém me entende. [...]Zé: Aquela mulher me chamou de herege,
o Padre fechou a porta da igreja como se eu fosse Satanás em
pessoa. Eu, Zé-do-Burro, devoto de Santa Bárbara.
Dedé: Mas afinal, o que é que o senhor quer?
Zé: Que me deixem colocar esta cruz dentro da igreja, nada mais.
Depois prometo ir embora. E já estou vexado mesmo por isto!
Dedé: Foi promessa. Promessa que ele fez [...]. (GOMES, 2010,
p. 64).

Por fim, convém destacar o quadro feito por Santos (2009), no qual ele com-
para o sujeito marginalizado com o sujeito malandro, conforme exposto a seguir:

Malandro Marginal
• permitido na sociedade. • vive à margem da sociedade (excluído).
• preocupa-se em ser aceito na sociedade. • Ações individualizadas.
• Busca certo status. • não busca conciliação.
• gingado carnavalizante. • busca o conflito.
• Fuga dos conflitos. • não está preocupado em ser aceito. [...]
Fonte: Santos (2009)

A partir desse quadro é possível verificar as características de Zé-do-Burro


como alguém marginalizado, por não conseguir atingir algo de suma importância
para ele. Zé-do-Burro não implora a ajuda de ninguém, mas almeja a compreen-
são dos líderes da igreja. Ele representa um personagem ingênuo que não busca
a conciliação com os que o assistiam, mas a permanência de sua moralidade sem
pendências com a santa. Nota-se essa preocupação no excerto: “Eu prometi levar
a cruz até dentro da igreja, tenho que levar. Andei sete léguas. Não vou me sujar
com a santa por causa de meio metro.” (GOMES, 2010, p. 14).

Além disso, como é possível verificar na obra analisada, ele tenta explicar-
-se, mas não se redime aos que tentavam fazê-lo mudar de ideia, fato que o faz
entrar cada vez mais em um conflito. Dessa forma, ele não tenta ser aceito, não
se apropria das características pejorativas dadas a ele, nem se promove como al-
guém que chama a mídia para divulgar o cumprimento de uma promessa difícil.
Ele queria agradecer pela vida do burro, mesmo que isso acarretasse o fim da sua.

687
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Portanto, a sua marginalização o leva a ser morto, perante a sua convicção


à Santa Bárbara querendo somente pagar a sua promessa.

Considerações finais

O pagador de promessas, de Dias Gomes, tem a sua relevância devido à


abordagem sobre o pensamento da sociedade da época. Apesar de toda a trama
se desenrolar através de Zé-do-Burro, sua marginalização se dá por intermédio
da ideologia religiosa que prevalecia na época. Essa ideologia se constitui não so-
mente pelos discursos advindos dos representantes da igreja, mas também pelas
relações de poder e o jogo de interesses que se camuflavam por meio dela. Dessa
forma, apesar de a igreja se apresentar como propagadora da fé, ela é essencial-
mente uma instituição.

O prestígio da Igreja Católica estabelecido ainda no Brasil colônia, com a


chegada dos portugueses, é bastante ressaltado na peça em detrimento a reli-
giões de origem africana, a exemplo do Candomblé, que é ridicularizada pelo pa-
dre na peça. Dias Gomes buscou retratar o tratamento dado às pessoas que não
eram católicas, ressaltando a inferioridade com que outras crenças eram vistas no
Brasil, mesmo no século XX.

Portanto, o personagem marginalizado Zé-do-Burro pode ser visto como o


reflexo de um preconceito religioso que predominava na época, além de demons-
trar a sua inocência perante a sociedade ali presente.

Referências

CANDIDO, A. O mundo sem culpa. In: CANDIDO, A.O discurso e a cidade.4ª edi-
ção.Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 1988. 41-44
CANDIDO, A., et al. A Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 2009.
DAMATTA, R. Caminhos para Deus. In: DAMATTA, R.O que faz do brasil, Brasil?.
2ª ed.Rio de Janeiro: editora Rocco, 1986. 113-118.
GOMES, D. O Pagador de Promessas. 45. ed. Revista atualizada – Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2010.
MAGALDI, S. Panorama do Teatro Brasileiro. – 6 ed. – São Paulo: Global, 2004.

688
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

NAZARETH, E. S.; SILVA A R. O Teatro de Dias Gomes – Entre Misticismo e


Religiosidade. Mato Grosso.Revista Athena Vol. 07, nº 2, 2014.
ROCHA, J. C.C. R. Guerra de relatos no Brasil contemporâneo. Ou: a “dialética da
marginalidade”. In Revista Letras, 32 (1), 2006, p. 13-22.
ROSENFELD, A. O mito e Herói no Moderno Teatro Brasileiro. São Paulo:
Perspectiva: 1982.
SANTOS, P. R. Do Malandro ao Marginal: Os Bandidos no Cinema Brasileiro.In
Anais do X Congresso de Comunicação da Região Sul, Blumenau, 2009, p. 1-10.

689
VIOLÊNCIA E TÉCNICA NARRATIVA
EM “PASSEIO NOTURNO”, DE RUBEM
FONSECA1

Murilo Eduardo dos Reis2

RESUMO: O presente trabalho tem como tema a representação da violência em


um conto escrito por Rubem Fonseca. O objetivo é constatar de que maneira o
autor elabora determinada situação de brutalidade, utilizando-se de aprimoradas
técnicas narrativas. Assim, escolhemos como objeto de análise a narrativa breve
“Passeio noturno”, de 1975, parte integrante do volume Feliz ano novo. Trata-se da
história de um homem que, após um cansativo dia de trabalho, sai com seu car-
ro pelas ruas do Rio de Janeiro à procura de alguém que possa atropelar, tendo
como intuito aliviar o stress acumulado durante sua jornada. Dessa maneira, o
percurso metodológico se vale da apropriação seletiva de ensaios sobre aspectos
da narrativa e de textos que tratam de características da obra de Rubem Fonseca.
Vale destacar que também será fundamental a investigação da figura do narrador
(quem fala) e do focalizador (quem vê). Portanto, tomamos como apoio teórico
textos críticos e analíticos de estudiosos que tratam de características narrativas
em geral e dos escritos fonsequianos, tais como Gérard Genette (2017), Ricardo
Piglia (2004), Alfredo Bosi (2006) e Antonio Candido (2011). Ao final, espera-se
identificar quais recursos expressivos são utilizados pelo escritor na construção
de uma passagem em que há contraste entre a barbárie do ato realizado pelo pro-
tagonista e a frieza com que a cena é narrada.

PALAVRAS-CHAVE: Rubem Fonseca; Violência; Conto.

1 Trabalho financiado pela CAPES.


2 Universidade Estadual Paulista. murilo.reis@unesp.br.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ABSTRACT: This paper has as its theme the representation of violence in a short story
written by Rubem Fonseca. The aim is to verify how the author elaborates a certain
situation of brutality, using improved narrative techniques. Thus, we chose as object
of analysis the short narrative “Passeio noturno”, from 1975, part of the volume Feliz
ano novo. It is the story of a man who, after a tiring day at work, drives his car through
the streets of Rio de Janeiro looking for someone who he can run over, with the aim of
relieving the stress accumulated during his journey. In this way, the methodological path
makes use of the selective appropriation of essays on aspects of the narrative and texts
that deal with characteristics of Rubem Fonseca’s work. It is worth mentioning that it
will also be fundamental to investigate the figure of the narrator (who speaks) and the
focuser (who sees). Therefore, we take as theoretical support critical and analytical texts
from scholars who deal with narrative characteristics in general and from phonsequian
writings, such as Gérard Genette (2017), Ricardo Piglia (2004), Alfredo Bosi (2006)
and Antonio Candido (2011). In the end, it is expected to identify what expressive re-
sources are used by the writer in the construction of a scene where there is a contrast
between the barbarity of the act performed by the protagonist and the coldness with
which the scene is narrated.

KEYWORDS: Rubem Fonseca; Violence; Short story.

Introdução

Edgar Allan Poe não foi somente artista, mas também um crítico atento
às mudanças de sua época. Ciente da mecanização dos meios de transporte e
comunicação, e de um tempo livre que se torna mais escasso em favor de maior
produtividade, Poe percebe que textos em prosa devem ser estruturados de ma-
neira que atendam a tais demandas e sejam reflexo dessa velocidade. Essas pon-
derações aparecem em três resenhas que o autor de O corvo publica sobre a co-
letânea Twice-told tales, de Nathaniel Hawthorne, entre 1842 e 1847 na Graham’s
Magazine. Nelas, ele examina os procedimentos artísticos empregados pelo autor
analisado e indica, em alguns casos, o melhor tratamento dos meios expressivos.

Charles Kiefer (2011) resume bem o modo como Poe pensava as narrativas
que serviriam para tirar o tédio do homem moderno. Elas deveriam ser histórias
curtas, de temática variada e original, com extensão suficiente para que a leitu-
ra fosse realizada numa viagem de trem entre Boston e Nova York. Além disso,

691
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

o espaço reduzido nas páginas de jornais e revistas também obriga que o autor
realize apurado polimento na linguagem. É necessário economizar nos verbetes,
afinal, tempo é dinheiro. A economia verbal também deve se adequar ao tom da
narrativa, e o texto, formado de frases rápidas e parágrafos leves, necessita ser o
espelho da agitação urbana.

Assim como Edgar Allan Poe, Rubem Fonseca também foi um escritor aten-
to à aceleração que ditava o ritmo das grandes cidades brasileiras, em especial do
Rio de Janeiro, e o incorporou a suas narrativas. A maneira peculiar como Fonseca
organiza sua sintaxe leva Alfredo Bosi (2006) a classificá-lo como um escritor bru-
talista, de dicção rápida e compulsiva, composta de obscenidades e dissonâncias.
O mundo significado por esse arranjo vocabular é o da explosão do capitalismo
selvagem e dos “inocentes do Leblon” que atulham praias. A poluição existencial
respirada e cuspida por essa literatura possui aspectos anti-literários e populares
que se aproximam do jornalismo norte-americano e da crônica grotesca. As ma-
nifestações de violência que encharcam sua obra estão ligadas à modernização
urbana. Nesse sentido, Sérgio Rodrigues (2017) observa que o autor foi o primei-
ro a enxergar o Brasil que surgia da urbanização descomedida, em que a flagrante
desigualdade gerava uma aberração social numa terra povoada por sujeitos que
matam com as próprias mãos, como se não houvesse um código penal em vigência.

Tendo esses aspectos em vista, o tema do presente trabalho é a represen-


tação da violência em um conto fonsequiano. Nosso objetivo é constatar de que
maneira o autor elabora determinada situação de brutalidade, utilizando-se de
aprimoradas técnicas narrativas e fazendo jus às análises de Bosi e Rodrigues.
Assim, elegemos como objeto de análise “Passeio noturno”, narrativa breve que
integra a coletânea Feliz ano novo, de 1975. Ao final, esperamos identificar quais
recursos expressivos são utilizados pelo escritor na construção de uma passagem
em que há contraste entre a barbárie do ato realizado pelo protagonista e a frieza
com que a cena é narrada. Antes de nos determos no corpus escolhido, faremos
breve descrição das características de uma obra reconhecida por contar com nar-
radores habilidosos e ser encharcada de violência.

Rubem Fonseca

Roberto Bolaño escreveu livro de pequenas biografias fictícias intitulado


A literatura nazista na América (2019). Numa delas, o escritor malsucedido Amado

692
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Couto revela-se um admirador incondicional da obra de Rubem Fonseca e tem a


inusitada ideia de sequestrar o autor brasileiro:

Couto escreveu um livro de contos que nenhuma editora acei-


tou. O livro se perdeu. Depois foi trabalhar nos Esquadrões da
Morte e sequestrou e ajudou a torturar e viu como matavam
certas pessoas, mas ele continuava pensando na literatura e
mais exatamente no que era necessário à literatura brasileira.
Era necessário vanguarda, letras experimentais, dinamite, mas
não como os irmãos Campos, para ele uns chatos, uma dupla de
professoraços desnatados, nem como Osman Lins, que ele acha-
va francamente ilegível (então por que publicavam Osman Lins
e não seus contos?), e sim algo moderno mas puxando para seu
terreno, algo policialesco (mas brasileiro, não americano), um
continuador de Rubem Fonseca, para sermos claros. (BOLAÑO,
2019, p. 121).

No trecho em destaque, o protagonista de Bolaño é apresentado com a


mesma perversidade de alguns personagens de Fonseca. A título de exemplifica-
ção, podemos citar Vilela, escritor e ex-policial que atua como detetive em O caso
Morel. Nesse romance, ele investiga o assassinato supostamente cometido por um
artista de vanguarda e utiliza, assim como Couto, métodos cruéis de tortura para
extrair a verdade – em certo momento, o narrador onisciente acessa sua memória
e revela ao leitor episódio em que o então investigador humilha e assassina um
prisioneiro, no meio de um aterro sanitário.

Outro ponto a ser destacado são os predicativos literários do escritor bra-


sileiro enumerados pelo narrador. Fonseca obteve destaque perante a crítica jus-
tamente por ser considerado o embaixador do romance policial brasileiro, além
de possuir linguagem própria. Tais particularidades inspiraram escritores como
Marçal Aquino, Patrícia Melo, Jô Soares e Ana Paula Maia, todos seguidores con-
fessos daquele que, muitas vezes, é chamado de mestre.

A comparação com Osman Lins e com os irmãos Campos encontra razão de


ser porque os escritos destes são mais herméticos e menos voltados para o gran-
de público, como o próprio narrador de Bolaño diz. Ao contrário deles, Rubem
Fonseca tem, como foi dito, sua obra vinculada à literatura policialesca, comu-
mente direcionada ao entretenimento. Reforçando a análise de Couto, Alfredo
Bosi (2006) escreve que o hipotético leitor que passar das precisas e violentas
expressões fonsequianas para os escritos de Lins ficará surpreso, pois encontrará

693
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

um texto meticuloso, repleto de ressonâncias sonoras e simbólicas. Porém, mes-


mo não possuindo o estilo artesanal do autor de Nove novena, narrativas como A
grande arte e Agosto são carregadas de crítica social e de enigmas muitas vezes
insolúveis, características que, conforme diz Sérgio Rodrigues (2017), tornam
Fonseca animal raro: um escritor sério e popular.

Como comprova o texto de Bolaño, é referência não só em sua terra natal,


mas também fora dela. Em entrevista concedida a Ronaldo Bressane (2019) no
jornal O Estado de S. Paulo por ocasião do lançamento de nova tradução de O jogo
da amarelinha, Eric Nepomuceno afirma que gerações de escritores mexicanos
têm pontos de contato com o autor brasileiro. No Brasil, seus contos lançados en-
tre os anos 1960 e 1970, de acordo com Alfredo Bosi (2006), influenciaram parte
do que foi então produzido por nomes como Luiz Vilela, Sérgio Sant’Anna, Manoel
Lobato, Wander Piroli e Moacyr Scliar. A prova da relevância de sua literatura
é que suas narrativas continuam repercutindo nos escritores da nova geração.
Michel Laub (2018) menciona que, em concursos literários, Rubem Fonseca con-
tinua, ao lado de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, sendo uma das principais
fontes emulativas de novos escribas.

Além disso, seus livros mostram-se atemporais, refletindo a realidade local,


quase como se eles tivessem previsto a ascensão de eleitores do espectro político
a comandar o país desde 2019. Nesse sentido, Alejandro Chacoff (2019) faz supor
que a insolência e o sarcasmo raivoso de inúmeros textos desses indivíduos na in-
ternet assemelham-se às falas de personagens de contos como “A coleira do cão”,
“O inimigo” e “A força humana”, todos de 1965. Seguindo a mesma linha de raciocí-
nio, Linaldo Guedes (2006) lembra que, para muitos, Rubem Fonseca antecipou a
realidade atual, tanto no enfoque da violência explícita dos grandes centros urba-
nos quanto no estilo que comporta diálogos precisos e experimentalismo formal.

Na linha do que diz o narrador de Bolaño, Ariovaldo José Vidal (2000) des-
taca que, em contos como “A força humana” e “A coleira do cão”, nota-se forte
influência da literatura policial do escritor estadunidense Raymond Chandler. A
característica dessa relação é a imagem precisa e, devido a tal rigor, acabou por se
estender para toda a obra, tornando-se marca registrada. O crítico também afir-
ma que é justamente essa precisão que aproxima Rubem Fonseca da literatura
norte-americana, representada por escritores de linguagem brutalista (VIDAL,
2000).

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Veremos a seguir que o conto escolhido para protagonizar esse trabalho é


um potente resumo da literatura praticada por Fonseca.

Violência e técnica narrativa

No conto “Passeio noturno” (1994), executivo chega em casa após um dia


de trabalho e repara nos sons e hábitos cotidianos que preenchem cada um dos
cômodos:

Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios,


estudos, pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando
paciência na cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira, dis-
se, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os
sons da casa: minha filha no quarto dela treinando impostação
de voz, a música quadrifônica do quarto do meu filho. Você não
vai largar essa mala? perguntou minha mulher, tira essa roupa,
bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar. (FONSECA,
1994, p. 396).

Gérard Genette (2017, p. 85) divide a estrutura das narrativas em três ní-
veis: a história seria o conteúdo ou o significado gerado pelo texto; a narrativa,
o arranjo estrutural e sintático que compõe o significante; a narração, o ato que
produz a mensagem real ou fictícia. Como possíveis organizadores dessa equação,
Genette (2017, p. 324) designa dois tipos de narrador: o heterodiegético, que está
ausente da história, e o homodiegético, que se apresenta como personagem do re-
lato. O estudioso (GENETTE, 2017, p. 325) ainda desmembra a segunda espécie
em duas variedades – uma em que o narrador é o protagonista, outra em que ele
é observador e testemunha dos fatos. Aos que são também heróis, é reservado o
termo autodiegético.

No recorte, é possível compreender que o conto de Rubem Fonseca é con-


duzido, considerando as proposições de Genette (2017), por um narrador autodie-
gético, homem de negócios que protagoniza as ações do relato. Além de descrever
a rotina de sua casa pelo que ouve e vê (a esposa que vê televisão, a música qua-
drifônica no quarto do filho, a filha que treina impostação de voz), incorpora ao
seu relato as falas de sua esposa, organizando-as quase como se fossem parte de
seu próprio discurso.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A fim de aliviar o stress acumulado durante a jornada, ele sai para dar uma
volta com seu carro de última geração depois de jantar com a família. Porém, não
se trata de um simples passeio. Percorrendo ruas escuras do Rio de Janeiro, o mo-
torista procura alguém desprevenido, vítima que não terá chance de reagir quan-
do perceber o automóvel avançando em alta velocidade. Ao encontrar a presa,
executa seu plano:

Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas,
um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o baru-
lho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida
para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvo-
res e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. [...]
Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher
havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses
baixinhos de casa de subúrbio. (FONSECA, 1994, p. 397).

Além dos aspectos relacionados à instância narrativa, é importante con-


siderar a maneira como a descrição é organizada. Sobre esse aspecto, Genette
(2017, p. 232-233) também avalia os modos de narrar, nos quais as conjugações
verbais regulam o que é informado ao leitor. Nesse sistema, a distância e a pers-
pectiva são elementos essenciais. Assim, os modos verbais utilizados pelo narra-
dor também determinarão a visão ou o ponto de vista adotados, perspectivas que
dizem respeito ao conhecimento dos participantes da história (que podem ser re-
sumidas a apenas uma personagem ou a um grupo delas).

Assim, é possível notar, no excerto acima, períodos em que há variação en-


tre orações com verbos conjugados na primeira pessoa do singular (peguei, ouvi,
dei, passei, deslizei), adjuntos adverbiais (bem no meio das duas pernas, um pouco
mais sobre a esquerda, para a esquerda, rente a uma das árvores, de volta para o asfal-
to, em cima de um muro), e frases justapostas (um golpe perfeito, colorido de sangue,
desses baixinhos de casa de subúrbio) que dão detalhes da situação em si.

O encadeamento das partes que compõem os trechos é realizado por vír-


gulas, criando-se sensação de rapidez e de objetividade na leitura, um espelho do
capitalismo selvagem que impulsiona o crescimento urbano. Ao mesmo tempo,
temos descrições precisas do espaço, bem como dos ferimentos causados no cor-
po da mulher. Ainda de posse das proposições narratológicas de Genette (2017),
também vale dizer que não há alteração do ponto de vista de quem vê e relata as
ações, que são descritas por alguém que esteve próximo dos acontecimentos.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

De tal modo, o leitor tem acesso a uma considerável quantidade de infor-


mações, detalhamento que o aproxima do que Antonio Candido (2011, p. 254-
255) chama de ultrarrealismo, estética com a qual aquele que lê o texto é agredi-
do pela violência temática e também pela técnica narrativa que contempla a fala
em primeira pessoa, transgredindo “[...] as fronteiras da literatura no rumo duma
espécie de notícia nua e crua da vida.” Além da proximidade entre narrador e ma-
téria narrada, não há variações de perspectiva. Tal característica faz com que o
conto sirva a um único e frio modo de pensar.

Em ensaio cujo tema é a prosa de Franz Kafka, Modesto Carone (2011, p.


17-18) reflete sobre o distanciamento estético entre o narrador e a narrativa em
Dom Quixote. No romance de Cervantes, o narrador é onisciente e sabe mais da
personagem do que ela própria. Já em Passeio noturno (1994), somente o narrador
de Fonseca sabe que está contando uma história de assassinato e nunca deixa que
o leitor saiba disso. Mais uma vez, vemos a importância do modo de narrar.

A respeito desse ponto, vale mencionar as reflexões de Ricardo Piglia


(2004) sobre as formas breves de narrar. O ensaísta argentino (PIGLIA, 2004, p.
91-92) afirma que o conto narra duas histórias – uma aparente, outra secreta – e
divide-o em clássico e moderno. A respeito do relato clássico, ele diz que o con-
tista codifica a história secreta entre as fendas do relato aparente, produzindo o
efeito de surpresa no final, momento em que a narração cifrada vem à superfície.
Com relação ao moderno, ressalta que as duas histórias são contadas como se
fossem apenas uma e o escritor manipula a tensão entre elas sem nunca a resol-
ver; ao final, o artista aplica a teoria do iceberg hemingwayana, em que o mais im-
portante nunca é contado.

Pode-se dizer que Passeio noturno (1994) se encaixa na variante que Piglia
chama de moderna. O narrador-protagonista manipula o relato como se fosse a
história de um passeio de carro realizado por alguém que busca apenas relaxar. As
informações que ele revela ao leitor não deixam transparecer a segunda camada
narrativa, que é a de um assassinato. A mensagem carrega detalhes precisos de
acontecimentos rotineiros, o ambiente onde tudo se desenrola, o modo como o
motorista conduz o carro pelas ruas. Rubem Fonseca escreve seu conto como se o
leitor já soubesse do assassinato.

Ao final, quando o tecnocrata volta para casa aliviado e deseja boa noite à
esposa que segue hipnotizada pelo televisor, pode-se dizer que Rubem Fonseca
atinge o efeito de sentido peculiar às narrativas curtas imaginado por Julio

697
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Cortázar (2008, p. 151-152), que compara o ato de ler a uma luta de boxe. Para o
autor de O jogo da amarelinha, o romance ganha do leitor por pontos, enquanto o
conto, incisivo e mordente desde o início, vence-o por nocaute.

Considerações finais

Resgatando as análises realizadas neste trabalho, é possível fazer um le-


vantamento dos resultados e refletir sobre eles em novo exame. Podemos con-
siderar, de maneira sucinta, como o escritor apropria-se habilmente de recursos
narrativos na confecção das cenas aqui abordadas.

Victor Chklóvski (2013, p. 83) escreve que a arte é o pensamento por ima-
gens. Para ele (CHKLÓVSKI, 2013, p. 85), as artes poéticas não passam de ima-
gens tomadas de empréstimo de antigos autores pelos novos e seus trabalhos
são constituídos pela acumulação e revelação de novos procedimentos que têm
como objetivo mais dispor do que criar reproduções. Os objetos revelados por
essas figuras podem ser elaborados de diferentes maneiras e cada uma delas de-
pende do emprego de soluções expressivas. A partir daí, o estudioso formalista
(CHKLÓVSKI, 2013, p. 86) ressalta que o objeto pode ser prosaico e percebido
como poético ou vice-versa, sendo que seu caráter estético depende da maneira
como ele é percebido. Tal percepção depende de procedimentos particulares que
garantam ao item descrito a mencionada estética. Apesar de a descrição ser fun-
damental para que o destinatário da mensagem a perceba artisticamente, cabe
ressaltar que ela não deve ser feita de maneira cotidiana, pois, segundo Chklóvski
(2013, p. 87), a finalidade da arte é dar ao objeto status de visão, singularização
daquilo que é normalmente apenas reconhecido por seu utilitarismo.

Tomando as ideias do ensaísta russo como base, notamos que Fonseca aqui
adota como referências escolas artísticas do passado. Seu modo de narrar carac-
teriza-se por uma objetividade que remonta ao Naturalismo e ao Realismo. Além
disso, tal procedimento atribui caráter singular à violência que é noticiada de ma-
neira neutra ou sensacionalista pelo jornalismo no cotidiano. A variação de ângu-
lo e de ponto de vista servem como válvulas para que leitores e contempladores
tenham outro tipo de experiência. A voz narrativa em primeira pessoa manipula
com destreza não somente o carro que utiliza como arma, mas também o arran-
jo estrutural e sintático que resulta no significante. Com verbos conjugados no
pretérito perfeito, o narrador relata fatos dos quais esteve próximo com grande

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

quantidade de nuances, algo que pode ser comprovado, por exemplo, pelos sons
do pneu no asfalto e dos ossos da mulher sendo partidos, bem como pela imagem
do corpo desfigurado, reflexo visto por ele no retrovisor do automóvel.

A partir do modo como o texto se estrutura e constrói seu significado, é


possível notar a representação de uma brutalidade que não se justifica. Em
“Passeio noturno” (1994), temos um assassino que mata, a princípio, apenas para
aliviar suas tensões. Seus objetivos não são, por exemplo, ligados à vingança ou ao
enriquecimento. Como hipótese, nota-se que o narrador-protagonista do conto e
os caçadores do filme são indivíduos que pertencem às classes sociais privilegia-
das. Portanto, cabe retomar as palavras de Walter Benjamin (2012, p. 179), que,
baseando-se nas análises de Karl Marx, previu ser possível o sistema capitalis-
ta passar da exploração para a extinção do proletariado. Pensando no enredo de
“Passeio noturno” (1994), percebemos que o detentor do capital avança no exter-
mínio de indivíduos que estão longe das benesses do sistema.

Pode-se dizer que temos uma representação dos tempos sombrios concei-
tuados por Hannah Arendt (2008, p. 7-8), épocas em que há massacres e carnicei-
ros a olhos vistos. No entanto, de acordo com a filósofa, tais atrocidades não são
visíveis para todos, pois, no momento que chegam a público, são engenhosamente
manipuladas pelos representantes oficiais, que justificam e explicam a ocorrência
dos fatos desagradáveis. A articulação entre as ideias dos pensadores alemães
possibilitaria relacionar o conto de Rubem Fonseca com a violência histórica que
assola o país desde o início de sua colonização.

O crítico de cinema Michel Ciment (2013, p. 61) escreve que, em Laranja


mecânica, o diretor Stanley Kubrick questiona, de maneira persistente, a função
do espetáculo – tal indagação pode ser notada nas cenas em que Alex, enquanto
ouve a Nona sinfonia ou lê livros na prisão, tem seu imaginário invadido por ce-
nas de filmes hollywoodianos. Dessa maneira, Ciment (2013, p. 62) avalia que
Kubrick, ao torturar o protagonista com sequências de filmes de ação e de temáti-
ca nazista, parece criticar o entretenimento fácil e irresponsável.

Misturando técnica e estética, “Passeio noturno” (1994) se apresenta como


antídoto que estimula a reflexão e não somente o regozijo de uma sociedade que
prima pelo espetáculo.

699
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Referências

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700
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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701
AUTO DA COMPADECIDA SOB A LUZ
DO MÉTODO RECEPCIONAL

Leonardo Sinckiewicz Carrera Guisantes (UEPG)1


Lucan Fernandes Moreno (IFPR)2

RESUMO: Este artigo tem como objetivo expor uma sequência didática (SD)
elaborada no ano de 2019, na disciplina de Estágio e a Formação do docente de
Língua Portuguesa e Literatura, do curso de Letras da Universidade Estadual
de Ponta Grossa (UEPG). Desse modo, nos propomos a apresentar os objetivos
dessa SD e a metodologia aplicada para atendê-los, seguido de uma explanação
e análise dos resultados obtidos após a sua aplicação em uma turma de terceiro
ano do Ensino Médio de uma escola pública da cidade de Ponta Grossa. A metodo-
logia aplicada trata-se do Método Recepcional, de Maria da Glória Bordini e Vera
Teixeira Aguiar (1993), conforme norteiam/norteavam as Diretrizes Curriculares
do Estado do Paraná. Tal método, alicerçado na teoria da Estética da Recepção
(1981), de Hans Robert Jauss, permite uma maior aproximação entre o leitor e
a obra, uma vez que parte de uma leitura que considera tal leitor como parte do
processo de significação da obra, isto é, seus horizontes de expectativa, pontos de
vista, crenças e experiências pessoais são considerados durante o momento de
recepção do texto. Durante as seis aulas, foram exploradas as relações humanas
e o conceito de hipocrisia dentro da obra literária Auto da Compadecida (1955), de
Ariano Suassuna e a obra fílmica O Auto da Compadecida (2000). Ao final da SD,
os alunos foram convidados a produzir fanzines – como síntese do trabalho – ex-
plorando as relações de hipocrisia observadas na sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Auto da Compadecida (1955); Método Recepcional; Estágio


em Literatura.
1 Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). leonardo.sienkiewicz@gmail.com
2 Instituto Federal do Paraná (IFPR-Campus Coronel Vivida). lucan.moreno@ifpr.edu.br

702
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ABSTRACT: This article aims to expose a didactic sequence (DS) elaborated in the year
of 2019, in the discipline of Internship and the Training of the teacher of Portuguese
Language and Literature, of the course of Letters of the State University of Ponta Grossa
(UEPG). Thus, we propose to present the objectives of this DS and the methodology ap-
plied to achieve them, followed by an explanation and analysis of the results obtained
after its application in a third year high school class at a public school in the city of
Ponta Grossa. The applied methodology is the Reception Method, by Maria da Glória
Bordini and Vera Teixeira Aguiar (1993), as it guided the Curricular Guidelines of the
State of Paraná. This method, based on the theory of Aesthetics of Reception (1981),
by Hans Robert Jauss, allows a greater approximation between the reader and the
work, since it comes from a reading that considers such reader as part of the process
of signifying the work , that is, their horizons of expectation, points of view, beliefs and
personal experiences are considered during the moment of receiving the text. During
the six classes, human relationships and the concept of hypocrisy were explored with-
in the literary work Auto da Compadecida (1955), by Ariano Suassuna and the film
work O Auto da Compadecida (2000). At the end of the SD, the students were invited
to produce fanzines - as a synthesis of their work - exploring the hypocrisy relationships
observed in society.

KEYWORDS: Auto da Compadecida (1955); Reception method; Literature Teaching


Practicum.

Introdução

Neste artigo nos propomos a apresentar e discutir as etapas de elabora-


ção, execução e os resultados da produção de uma Sequência Didática (SD) cuja
aplicação deu-se no ano de 2019. A referida SD foi formulada como parte do pro-
cesso avaliativo da disciplina de O Estágio e a Formação do Docente de Língua
Portuguesa e Literatura, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), e
aplicada em uma turma de terceiro ano do Ensino Médio de uma escola pública da
cidade de Ponta Grossa.

É, senão, durante o período de estágio supervisionado que o profissional da


área de licenciatura experencia na prática as teorias e métodos estudados durante
a graduação, sendo, desse modo, um momento de reflexão de sua própria prática
docente. Para além disso, conforme salienta Stahl e Santos, é nesse momento que:

703
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Os estudantes de licenciatura percebem [...] com a prática do es-


tágio curricular supervisionado o que significa exercer a profis-
são de professor, ou seja, vivenciam o papel de professor de uma
turma, com todas as responsabilidades que nela estão implica-
dos como avaliar, planejar, [...] etc. (2012, p. 7).

Nessa perspectiva, durante o segundo semestre do ano de 2019, na disci-


plina de O Estágio e a Formação do Docente de Língua Portuguesa e Literatura,
alocada no terceiro ano do curso de Letras da UEPG, os acadêmicos do referido
curso realizaram o estudo do gênero Sequência Didática, bem como sua produ-
ção e posterior aplicação nas aulas de Língua Portuguesa de escolas públicas e/ou
particulares da cidade de Ponta Grossa.

A disciplina de estágio pressupõe, além de pesquisa e discussão teórica em


sala de aula, algumas atividades de campo, quais são: estudo do meio; observa-
ções participativas; produção da SD; regência e acompanhamento e análise das
regências ministradas pelos colegas.

Durante o estudo do meio, o professor estagiário deveria explorar o am-


biente escolar a fim de perceber os recursos que dispunha o colégio e que pode-
riam ser utilizados em suas práticas, como por exemplo: projetores, salas de vídeo,
dentre outros materiais. Esse momento auxiliaria o acadêmico durante o proces-
so de elaboração da Sequência Didática.

As observações participativas primavam por aproximar o docente estagiá-


rio da realidade da turma, ou seja, o perfil dos alunos, as dinâmicas estabelecidas
entre eles e o professor. Seria esse, portanto, o momento de observar criticamen-
te a metodologia aplicada pelo professor regente, bem como perceber o tempe-
ramento e recepção da turma para com os métodos a que eram expostos. Assim,
depois de acompanhar o professor de em duas turmas da mesma série, era neces-
sário tomar nota nas fichas de observação para posteriores consultas.

Desse modo, depois de reunir as informações coletadas a partir do estudo


do meio e das observações participativas, era o momento de produzir a SD. Assim,
a partir das discussões orientadas pelo professor da disciplina, a metodologia su-
gerida, como veremos mais adiante, para o estudo de literatura com os alunos do
Ensino Médio foi o Método Recepcional, proposto por Maria da Glória Bordini
e Vera Teixeira Aguiar (1993), conforme norteiam/norteavam as Diretrizes
Curriculares do Estado do Paraná (DCE). Segundo preconiza o documento, é pa-
pel da escola:

704
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Formar um leitor [literário] capaz de sentir e de expressar o que


sentiu, com condições de reconhecer, nas aulas de literatura, um
envolvimento de subjetividades que se expressam pela tríade
obra/autor/leitor, por meio de uma interação que está presente
na prática de leitura. A escola, portanto, deve trabalhar a litera-
tura em sua dimensão estética. Trata-se, de fato, da relação entre
o leitor e a obra, e nela a representação de mundo do autor que
se confronta com a representação de mundo do leitor, no ato ao
mesmo tempo solitário e dialógico da leitura. Aquele que lê am-
plia seu universo, mas amplia também o universo da obra a partir
da sua experiência cultural. (PARANÁ, 2008, p. 56).

A referida SD deveria ser operacionalizada em seis aulas, das quais três se-
riam supervisionadas pelo professor orientador da disciplina, ademais, de manei-
ra a intercambiar experiências e ideias, os estagiários deveriam, também, acom-
panhar duas aulas dos demais colegas que estivessem ministrando suas regências
no colégio.

Dessa maneira, nas seções subsequentes apresentamos os objetivos dessa


SD e a metodologia aplicada para atendê-los, seguido de uma explanação e análi-
se dos resultados obtidos após a sua aplicação em uma turma de terceiro ano do
Ensino Médio de uma escola pública da cidade de Ponta Grossa.

A hipocrisia e sua atemporalidade

Como já mencionado, a Sequência Didática deveria ser ministrada nas au-


las de literatura, contudo, na escola em questão, não havia essa disciplina – lite-
ratura – em específico, de modo que as regências ocorreram nas aulas de Língua
Portuguesa.

O momento de escolha do conteúdo a ser trabalhado na Sequência


Didática representa, para uma grande maioria de acadêmicos, um desafio, pois,
não é incomum que os professores regentes solicitem aos estagiários que sigam
o planejamento tal qual o conceberam, no entanto, nem sempre o trabalho com a
literatura é previsto conforme determinam os documentos oficiais – Diretrizes
Curriculares Estaduais (DCE), Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) – e as
novas discussões sobre a temática.

Percebemos que ainda se pratica nas aulas de literatura o ensino da História


da Literatura e não a exploração do texto literário em si, conforme sustenta

705
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Jablonski e Baumgartner em O Método Recepcional como alternativa de ensino de


literatura no ensino médio. Para as autoras:

Destaca-se a realização de um trabalho prioritariamente volta-


do à história da literatura, com fragmentos de obras que não lhe
permite interagir com a essência da obra de arte literária. No en-
tanto, isso causa a impressão de um trabalho concluído: contex-
tualização histórica e exemplificação por meio de um fragmento
exemplar da obra, que em alguns casos é usado para abordar
questões gramaticais. (JABLONSKI; BAUMGARTER, 2013, s/p).

Nesse sentido, ao tratar a literatura pela luz da Estética da Recepção atra-


vés do Método Recepcional “o professor não ficará preso à linha do tempo da his-
toriografia, mas fará a análise contextualizada da obra, no momento de sua produ-
ção e no momento de sua recepção (historicidade).” (PARANÁ, 2008, p. 76).

No caso da turma em que a SD discutida neste trabalho foi aplicada, a pro-


fessora regente priorizou pelo trabalho da obra pela obra, de modo que, optou-se
pela peça de teatro Auto da Compadecida (1955), do escritor paraibano Ariano
Suassuna.

Auto da Compadecida é uma peça de teatro escrita e publicada no ano de


1955 pelo paraibano Ariano Suassuna. A obra está construída em 3 atos em forma
de auto. Nas palavras de Massaud Moisés (2013), este gênero teatral “vinculado
aos mistérios e moralidades, e talvez deles proveniente, [...] designa toda a peça
breve, de tema religioso ou profano [...]” (p.46). Como o próprio nome da obra já
nos elucida, Suassuna trata de temas relativos ao religioso e ao profano.

Num breve resumo, esta obra dramática trata da vida dos personagens de
Taperoá, uma pequena cidade localizada no interior da região nordeste. Ali, vivem
João Grilo e seu melhor amigo, Chicó. Ambos, além de trabalharem na padaria
da cidade, vivem também de aplicar pequenos golpes no restante da população,
sendo seus principais alvos o padeiro, sua mulher, o bispo e o padre.

Nessa relação de trapaça e engano, uma das mais cômicas artimanhas de


João Grilo é o enterro do cachorro de sua patroa. João ao perceber que a mulher
estima seu animal de estimação com tanto apreço, vê uma oportunidade de tirar
proveito dessa situação. Dessa forma, o protagonista arquiteta uma celebração
fúnebre em latim que seria predicada pelo padre por alguns contos de réis. O
padre, a princípio, se recusa a ministrar a cerimônia, afirmando tratar-se de uma

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

desmoralização, ou quiçá, uma heresia. Todavia, vendo que haveria pagamento


em dinheiro, o pároco muda de ideia e realiza a cerimônia fúnebre do animal.

É nessa mesma perspectiva que durante o enredo cada personagem leva


a vida cometendo alguns pecados. A concupiscente mulher do padeiro o traí com
os homens da cidade. Seu marido carrega consigo uma avareza tamanha que o
consideram um mau patrão, uma vez que seus empregados trabalham em um re-
gime de quase escravidão. O bispo e o padre, gananciosos, estão sempre tendidos
à simonia e desviam o dinheiro recebido pela paróquia e pela diocese.

Ao nos aproximarmos do final da trama, devido a um ataque de cangaceiros


na cidade, todos os personagens vêm a óbito, com exceção de Chicó. A partir daí
todos acabam parando numa espécie de tribunal divino, onde suas almas serão
julgadas por Jesus e pelo Diabo. Vendo a difícil situação em que se encontravam,
João clama pela Compadecida – figura que representa Nossa Senhora –, a qual
advoga a favor de todos os acusados por suas ações praticadas na terra e acaba
por convencer a Manuel – Jesus Cristo – a não os enviar para as chamas do infer-
no, mas sim ao purgatório, como uma forma de abrandar a pena, entretanto, ainda
lhes assegurando a salvação.

É durante o julgamento dos réus, que uma das falas da Compadecida nos
ajuda a compreender a denúncia social que a obra abarca. Segundo afirma a
personagem:

É verdade que eles praticavam atos vergonhosos, mas é preciso


levar em conta a pobre e triste condição do homem. A carne
implica essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo o que eles
faziam era por medo. Eu conheço isso, porque convivi com os
homens: começam com medo, coitados, e terminam por fazer o
que não presta, quase sem querer. (SUASSUNA, 2018, p. 165).

Dessa maneira, levando em conta os traços de crítica e denúncia social nas


ações praticadas pelo protagonista e demais personagens da obra, pode-se per-
ceber que estes atuavam em uma relação de hipocrisia, de modo que a temática
trabalhada nessa SD foi A hipocrisia e sua atemporalidade. Seus conteúdos, seriam
então, a leitura do texto dramático, sua análise, e, também, o debate acerca da
temática.

Nesse sentido, buscando ir ao encontro à temática proposta, a referi-


da SD tinha como objetivo principal refletir criticamente acerca do conceito de

707
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

“hipocrisia”, a partir da obra teatro-literária Auto da Compadecida (1955), ou seja,


depois de introduzir os educandos ao tema a ser trabalhado, problematizar o
conceito de hipocrisia para que se pudesse promover um momento de reflexão
e debate acerca deste conceito. Desse modo, o professor estagiário deveria pro-
porcionar o contato com a obra literária – Auto da Compadecida (1955) – e, assim,
analisar um trecho buscando os aspectos estudados até então. Sintetizando os
conteúdos trabalhados, os alunos seriam convidados a produzir um fanzine elu-
cidando o tema da hipocrisia na contemporaneidade de forma que retratem seu
caráter atemporal a partir de suas experiências.

A Metodologia da SD: o Método Recepcional

Silva e Araújo (2015) em A Estética da Recepção e sua aplicabilidade pelo


Método Recepcional: uma apresentação de Machado de Assis nos advertem que:

Apesar de constar como parte da disciplina de língua portugue-


sa nos programas de ensino, o que se nota, no entanto, é que o
ensino da literatura em sala de aula, não raras vezes, tem sido
introduzido e desenvolvido de maneira equivocada e, ao invés
de aproximar os jovens dos livros, acaba por desenvolver no alu-
no o sentimento de desânimo e repulsa diante da obra literária.
(SILVA; ARAÚJO, 2015, p. 112).

Conforme as autoras nos aclaram, isso se deve, em alguma medida, devido


à falta da prática da leitura por parte dos alunos, assim como, pelo próprio profes-
sor. Ao encontro disso, a partir do desconhecimento de metodologias para o pro-
cedimento com o texto literário, por vezes o profissional docente deixa-se guiar
pelo livro didático que acaba por trazer excertos com atividades mecânicas que
não privilegiam a reflexão do aluno (SILVA; ARAÚJO, 2015, p. 113).

Levando em conta o que afirmam as pesquisadoras e buscando atingir os


objetivos propostos para o andamento das aulas desta sequência didática, a me-
todologia escolhida foi o método desenvolvido por Maria da Glória Bordini e Vera
Teixeira Aguiar (1988; 1993), conhecido como Método Recepcional, o qual emba-
sa-se na teoria da Estética da Recepção, proposta pelo alemão Hans Robert Jauss
(1981).

Nessa corrente teórica o texto não é apreciado da maneira tradicional, ou


seja, a análise não busca, exclusivamente, analisar o que o autor “quis dizer” em

708
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

sua obra, mas sim de que maneira o leitor a percebe de acordo com sua formação
e experiências pessoais no decorrer da vida, uma vez que estas em muito influen-
ciam no processo de interpretação e recepção do texto literário. Para Todorov
(2009):

É verdade que o sentido da obra não se resume ao juízo


puramente subjetivo do aluno, mas diz respeito a um trabalho
de conhecimento. Portanto, para trilhar esse caminho, pode ser
útil ao aluno aprender os fatos da história literária ou alguns
princípios resultantes da análise estrutural. Entretanto, em
nenhum caso o estudo desses meios de acesso pode substituir
o sentido da obra, que é o seu fim. (Apud SILVA; ARAÚJO, 2015,
p. 112).

Em se tratando do Método Recepcional (BORDINI; AGUIAR, 1988; 1993),


entende-se que este proporciona uma abordagem em que o profissional docente:

A partir da sondagem do horizonte de expectativas de seus alu-


nos, apresenta situações que questionam seus conhecimentos.
Em seguida, apresenta outros textos que rompem com suas ex-
pectativas e os fazem pensar de maneira crítica. Desse modo,
parte-se de um texto familiar ao aluno, que corrobore com suas
vivências para, em seguida, apresentar-lhe outro que se distan-
cie das suas expectativas. (SILVA; ARAÚJO, 2015, p.115).

Nesse sentido, conforme elucidam Bordini e Aguiar (1988):

A transformação do horizonte de expectativas do aluno depende


de cinco conceitos: 1) receptividade, a aceitação do novo; 2) con-
cretização, atualização do texto a partir das vivências imaginati-
vas; 3) ruptura, ação que distância o horizonte cultural do aluno
da nova proposta suscitada pela obra; 4) questionamentos, re-
visão de interesses e comportamentos; e 5) assimilação, aceita-
ção e integração de novos sentidos à vida do aluno. (apud SILVA;
ARAÚJO, 2015, p.115).

Nesse sentido, nas aulas destinadas à regência, depois da prévia sondagem


do funcionamento da turma realizada durante as observações participativas pro-
postas pela disciplina, e já tendo determinado o horizonte de expectativas dos
alunos, foi utilizado como ferramenta o Contrato Didático-Pedagógico. O objetivo

709
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

principal deste primeiro contato era conseguir uma conversa inicial com os edu-
candos para que pudesse haver a introdução na temática a ser trabalhada.

Desse modo, levando em conta a grande abrangência, bem como, o alto


teor de criticidade que abarcam os temas discutidos por este gênero textual, fo-
ram escolhidas algumas charges retiradas de sites da internet, para que, a partir
de sua interpretação fosse possível mobilizá-los para uma conversa inicial. Tais
textos traziam como principal ponto de discussão relações de denúncia social em
que era possível perceber o conceito que nortearia o estudo proposto para as au-
las, a hipocrisia.

Nesta roda de conversa, os estudantes deveriam problematizar este con-


ceito a partir de suas experiências pessoais, e assim, buscar por uma definição do
que viria a ser a hipocrisia. De forma a sintetizar os pontos levantados neste mo-
mento da aula, uma tempestade de ideias – brainstorming – foi realizada para que
os alunos pudessem elaborar uma definição acerca do termo hipocrisia. Nesse
momento, unindo as discussões trazidas pelos alunos, o professor estagiário trou-
xe uma definição complementar do termo em questão3.

Na segunda aula, depois da retomada do assunto discutido, os alunos fo-


ram convidados a apreciar um trecho do filme O Auto da Compadecida (2000), em
que, eles, por sua vez, deveriam ater-se às nuances em que a hipocrisia poderia
ser observada.

A partir do trecho do filme, algumas questões foram levantadas

• Vocês conheciam o filme? Já tiveram a oportunidade de assisti-lo alguma


vez?

• Qual a temática abordada pelo filme?

• Vocês acreditam que a temática retratada no filme é relevante nos dias


atuais. Se sim, de que maneira?

Nessa etapa, para o fechamento de ideias da análise do excerto da obra


cinematográfica, os alunos elucidaram os pontos considerados hipócritas, por

3 A definição trazida pelo professor acerca do que seria hipocrisia foi: “Característica ou compor-
tamento da pessoa hipócrita, de quem apresenta uma opinião que não possui ou finge sentir
o que não sente; falsidade, dissimulação, fingimento. /Capacidade de esconder os sentimentos
mais sinceros. /Característica de algo ou alguém que não é honesto; desonestidade: a hipocrisia
do discurso. / Hábito que se baseia na demonstração de uma virtude ou de um sentimento ine-
xistente” disponível em: https: //www.dicio.com.br/hipocrisia/. Acesso em: 12 jan. 2020.

710
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

intermédio de uma curta resenha, fazendo-se, então, o atendimento de seus hori-


zontes de expectativas dos educandos.

Foi durante a terceira aula que houve a ruptura do horizonte de expecta-


tivas dos alunos a partir da introdução do texto literário. O professor estagiário,
primeiramente, buscou aclarar os alunos acerca do que seria um auto, e para tan-
to, baseou-se na definição de Massaud Moisés (2013)4, partindo deste momento,
introduziu-se um fragmento da peça de Suassuna, Auto da Compadecida (1955),
e, assim, foi informado aos alunos que o filme, do qual eles haviam assistido um
trecho, era baseado em uma obra literária. Desse modo, visando ir ao encontro à
temática abordada – a hipocrisia e sua atemporalidade –, optou-se pelo episódio
da bênção do cachorro.

Assim, retomando os textos das aulas anteriores, bem como as análises


do trecho realizadas pelos alunos, eles foram indagados a respeito das questões
dotadas de hipocrisia que o fragmento da obra literária abarcava, de forma que
pudessem associar tudo o que haviam estudado até o momento com o episódio
do cachorro, e produzirem um curto registro – um breve parecer – construindo
relação com a temática proposta pelo excerto literário a partir das situações já
experienciadas por eles, para, dessa forma, realizar-se o questionamento de seu
horizonte de expectativas.

Por tratar-se de uma turma de terceiro ano de ensino médio, em que o gos-
to pela leitura pode ser, por vezes, escasso, foi realizado um trabalho final – para
a ampliação de seus horizontes de expectativas – com o gênero textual fanzine.
Sobre tal gênero Costa e Albuquerque esclarecem que:

A palavra fanzine advém do neologismo que integra as palavras


inglesas – fanatic magazine – revista do fã. Os fanzines se distin-
guem das revistas convencionais por circularem, geralmente, em
um grupo limitado de pessoas, embora esta característica não se
constitua uma regra. Os editores são responsáveis tanto pelos
custos como pela autoria dos conteúdos, uma vez que este tipo
de publicação pode ser produzido artesanalmente, não possuin-
do fins lucrativos. A revista pode abrigar diversos gêneros tex-
tuais, embora, dentre os quais, predominem as histórias em qua-
drinhos – HQs – que tanto podem ser originais como transcritas
de outros suportes midiáticos. Os fanzines também apresentam
em sua composição colagens de fotos, desenhos, procedentes de

4 Para o autor “auto designa toda peça breve, de tema religioso ou profano.” (MOISÉS, 2013, p. 47).

711
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

fontes diversas, sejam materiais impressos, virtuais ou manuais.


(2012, s/p.).

Tendo em vista as inúmeras possibilidades de trabalho com o referido gê-


nero textual, na quarta aula, depois de uma breve discussão acerca da problemá-
tica de benzer e enterrar um cachorro em latim, os alunos foram convidados a
produzirem um exemplar de fanzine, que deveria abarcar em conjunto com a obra
literária a temática trabalhada nas discussões realizadas durante as cinco aulas: a
hipocrisia e sua atemporalidade.

Assim, na quinta e sexta aulas, os alunos se dedicaram às produções dos


fanzines, de maneira que, exploraram através de seus trabalhos suas percepções
acerca da hipocrisia presente nas relações humanas da sociedade, expondo seus
pontos de vista sobre religião, economia e política, por exemplo.

Considerações finais

Considerando o que foi apresentado até então, foi possível perceber, que o
trabalho realizado através do Método Recepcional se mostrou bastante eficiente,
uma vez que a literatura foi trabalhada não pela perspectiva da historiografia lite-
rária, mas sim pelo que orienta os pressupostos da Estética da Recepção, propos-
ta por Jauss. Nos momentos de recepção do texto literário, todos os educandos ti-
veram a oportunidade de ler e discutir. Tendo em conta que a obra escolhida para
o trabalho com a turma era uma peça de teatro, alguns, por sua vez, mostraram
grande engajamento ao realizarem a leitura em voz alta, interpretando as falas de
cada personagem.

Nesse sentido, percebeu-se, sobremaneira, que em uma turma em que o


gosto pela literatura e pela leitura de gêneros literários não era muito presente,
o trabalho realizado através do Método Recepcional apresentou aos alunos uma
nova forma de se estudar literatura, construindo novos sentidos, pois, como afir-
ma Cosson “os sentidos são resultados, compartilhamento de visões do mundo
entre os homens no tempo e no espaço.” (2006, p. 27).

Na atividade final realizada pelos alunos foi possível perceber que ainda
que alguns deles não tivessem se dedicado tanto em produzir seu fanzine, a gran-
de maioria dos estudantes se empenharam nas suas produções, abordando temas
em que a hipocrisia atua na contemporaneidade, resultando na ampliação de seus
horizontes de expectativas.

712
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Referências

COSSON, R. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.


COSTA, R. R. ; ALBUQUERQUE, A. M. C. Fanzine: Uma Estratégia Pedagógica
Motivadora na Produção de Gêneros Textuais Através do Uso do Computador.
In: 18º WIE Workshop de Informática na Escola, 2012, Rio de Janeiro. CBIE 2012
Congresso Brasileiro de Informática na Educação, 2012.
JABLONSKI. J. O Método Recepcional como alternativa de ensino de literatura
no ensino médio no contexto do Colégio Estadual José de Alencar; (PROGRAMA
DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL PDE) - Universidade Estadual do
Oeste do Paraná, 2013.
JAUSS, H.R. Esthétique de la réception et communication littéraire. Critique,
37(4): 1116-30, 1981.
MOISÉS, M. Dicionário de Termos Literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2013.
PARANÁ, Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares de Língua
Portuguesa para os Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio.
Curitiba, 2008.
SILVA. M. V.; ARAÚJO. R. C. L. A estética da Recepção e sua aplicabilidade
pelo Método Recepcional: Uma apresentação de Machado de Assis. Revista
FronteiraZ, n. 14, jul., 2015.
SUASSUNA, A. Auto da Compadecida. 39 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2018.
STAHL, L. R. ; SANTOS, C. F. O estágio nos cursos de Licenciatura: reflexões so-
bre as práticas docentes. In: IX Anped Sul Seminário de Pesquisa em Educação da
Região Sul, 2012, Caxias do Sul, RS. 2012. p. 01-15.

713
CLUBE DE LEITURA: UMA PROPOSTA DE
FORMAÇÃO DE LEITORES LITERÁRIOS
NO ENSINO MÉDIO

Lucan Fernandes Moreno1

RESUMO: A literatura vem, cada vez mais, perdendo espaço entre as atividades
mais executadas pelos jovens brasileiros. Longe de ser um país de leitores, as es-
colas do Brasil enfrentam o desafio de ensinar e estimular a prática da leitura li-
terária, entre adolescentes imersos em tecnologia e suas distrações. Diante desta
problemática, baseando-nos principalmente nas proposições de Michèle Petit
(2009) e Antonio Candido (2004) sobre literatura e sua relação com a sociedade,
o objetivo deste texto é apresentar e discutir a proposta do projeto de pesquisa e
extensão “Clube da Leitura: formação de leitores literários no Campus de Coronel
Vivida/IFPR”. O referido projeto foi proposto com o objetivo de promover a lei-
tura literária entre os estudantes do ensino médio do IFPR – Campus Coronel
Vivida. O projeto conta com a participação de sete alunos voluntários dos cursos
integrados de Administração e Cooperativismo do primeiro, segundo e terceiro
ano e está alicerçado metodologicamente no Método Recepcional, proposto por
Bordini e Aguiar (1993). Ainda em sua primeira fase de implementação, o projeto
prevê uma maior e melhor interação entre os alunos e as obras literárias selecio-
nadas, de modo que, a experiência literária vivenciada seja positiva e duradoura,
e que os estudantes adotem a prática da leitura literária como uma atividade co-
mum em seus cotidianos.

PALAVRAS-CHAVE: Formação de leitores literários; Clube de Leitura; Método


Recepcional.

1 Instituto Federal do Paraná. lucan.moreno@ifpr.edu.br.

714
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ABSTRACT: Literature is increasingly losing space among the activities most performed
by young Brazilians. Far from being a country of readers, schools in Brazil face the chal-
lenge of teaching and encouraging the practice of literary reading among adolescents
immersed in technology and their distractions. In view of this problem, based mainly on
the propositions of Michèle Petit (2009) and Antonio Candido (1988) on literature and
its relationship with society, the purpose of this text is to present and discuss the propos-
al of the research and extension project “Clube da Leitura: formação de leitores literári-
os no Campus de Coronel Vivida/IFPR ”. This project was proposed with the objective
of promoting literary reading among high school students at IFPR - Campus Coronel
Vivida. The project counts on the participation of seven volunteer students from the in-
tegrated courses of Administration and Cooperatives of the first, second and third years
of high school and is methodologically based on the Receptive Method, proposed by
Bordini and Aguiar (1993). Still in its first phase of implementation, the project provides
for greater and better interaction between students and selected literary works, so that
the literary experience experienced is positive and lasting and that students adopt the
practice of literary reading as a common activity in their daily lives.

KEYWORDS: Training of literary readers; Reading Club; Reception method.

Introdução

A leitura literária nos ambientes escolares sofre, hodiernamente, uma cri-


se. Em tempos em que a tecnologia está cada vez mais presente no cotidiano dos
educandos, estes tendem a ser autônomos com relação às suas escolhas de leitu-
ra, pois o acesso às diversas produções – literárias ou não – é bastante facilitado.

Não se trata, nesse contexto, de considerar a tecnologia e o acesso à in-


formação como antagonistas do processo de formação de leitores literários, mas,
pelo contrário, torná-las aliadas nessa empreitada.

A literatura de um país é parte fundamental de sua cultura e história, por


meio das diversas leituras admitidas por essa linguagem – sociológica, histórica,
estética etc. – é possível conhecer e (re)significar a história do país, bem como
conhecer o outro, e em consequência, a si mesmo. Por essa razão, nós, professo-
res e professoras de literatura devemos empreender esforços para que a leitura
literária possa ainda ter espaço no ambiente escolar e, na medida do possível, que
seu espaço cresça.

715
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Foi baseando-nos nestes pressupostos que propus o projeto de pesquisa


intitulado Clube da Leitura: Formação de Leitores Literários no Campus Avançado de
Coronel Vivida, cujo principal objetivo consiste em analisar qualitativamente a
participação de alunos do Campus Avançado de Coronel Vivida nos encontros do
“Clube de Leitura”, pensando na eficácia do Método Recepcional para a promo-
ção da leitura literária. São, também, objetivos do projeto a testagem do Método
Recepcional juntos aos estudantes de ensino médio, o desenvolvimento da crítica
e da autocrítica a partir dos textos literários, bem como a promoção e o desenvol-
vimento da leitura literária no Campus do IFPR de Coronel Vivida.

Quem precisa de literatura?

O ensaio “O Direito à Literatura” representa a perspectiva teórico/filosó-


fica deste projeto; seu autor - Antonio Candido (2004) - nos apresenta a impor-
tância do acesso à literatura e à cultura, assim como os ganhos que elas podem
significar à vida dos seres humanos. Ao compará-las com elementos essenciais
para a sobrevivência – que o autor chama de “bens inalienáveis” – como a alimen-
tação, moradia, vestuário, instrução, saúde, liberdade individual, amparo da justi-
ça pública, a resistência à opressão etc., o autor nos faz refletir que os direitos se
estendem também à crença, à opinião, ao lazer e, porque não, à arte e à literatura.

Nessa perspectiva, a literatura é, ou deveria ser, um direito de todos, pois


é manifestada universalmente pelo ser humano desde o início da humanidade,
tornando-se então uma necessidade dos indivíduos, ajudando na formação dos
sujeitos. Para Candido (2004), não há equilíbrio social sem a literatura. Ela tem um
papel fundamental e indispensável de humanização, na medida que vai tornando-
-nos mais compreensivos e abertos para a natureza, à sociedade e ao semelhante.

Candido (2004) afirma ainda que mesmo sendo um direito de todos, o ho-
mem do povo, ou seja, as classes menos privilegiadas, estão praticamente priva-
das de ter acesso à literatura, de conhecer e desfrutar de leituras clássicas, restan-
do-lhes apenas as literaturas de massa, ditas populares. Nesse aspecto, podemos
refletir sobre a influência que os alunos do Instituto Federal recebem com relação
ao consumo de arte, como mencionado anteriormente, trata-se de uma era ditada
pela velocidade e a facilidade de acesso à informação, aos bens culturais produ-
zidos pela humanidade. Mas, também, à toda cultura de massa mundial vinculada
indiscriminadamente pela internet. É evidente, que nesse contexto, a literatura
perde espaço e o trabalho escolar com ela se torna ainda mais desafiador.

716
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Em uma perspectiva parecida à de Candido, Michèle Petit (2009), em seu


livro A arte de ler ou como resistir à adversidade nos lembra da função social da leitu-
ra, sua contribuição para uma sociedade mais justa e menos desigual, destacando
a contribuição dessa prática para os contextos de crise, afirmando que em situa-
ções de tensão social a leitura é capaz de exercer um papel de resgate do senti-
mento de continuidade. Ou seja, nas palavras da autora, a leitura pode ser vista
como “uma maneira de se reafirmar, dia após dia.” (p. 91).

Para Petit (2009), ao ler os sujeitos se reencontram, reformulam-se e reor-


ganizam-se para enfrentar as adversidades que lhes são dadas. Nessa esteira,
entendemos que ler é sempre um ato revolucionário. É admitir a incompletude
e buscar a expansão. Ao ler os textos acadêmicos ou os clássicos da literatura, as
cartas de amor ou os manuais de instrução, o leitor se defronta com um novo uni-
verso de possibilidades, todas elas desconhecidas, porém prontas a serem revela-
das em cada uma das palavras das diversas frases, parágrafos, páginas e capítulos
que se apresentam. Esse é o momento em que o leitor assume o risco de transfor-
mar a si mesmo e, consequentemente, o mundo que o cerca.

Certamente, é dessa transformação que precisamos, pois é o que nos falta


para continuar a expandir as ideias e as pessoas, precisamos de leitores curiosos
e dispostos a enfrentar outras leituras de (re)significação do mundo, condizentes
com uma sociedade que precisa de resistência para continuar a ser democratica-
mente heterogênea. Portanto, ler, nesse sentido, é resistir.

Quando pensamos na formação de leitores, estamos nos referindo às prá-


ticas que objetivem fornecer ferramentas para a emancipação ideológica, política
e social das pessoas, por meio de uma postura de leitura, do mundo e dos textos,
que seja crítica e ativa. Uma vez que, apenas essa atitude é capaz de provocar as
transformações individuais e coletivas de que, acreditamos, o mundo atual carece.

Ainda em caráter de justificativa e fundamentação, trago a concepção do


escritor e ensaísta literário peruano Mario Vargas Llosa sobre a literatura e os
efeitos que esta exerce no homem. No ensaio intitulado “Em defesa do Romance”
(2009), o autor comenta sobre os riscos que corremos em relegar a literatura ao
plano do supérfluo ou dispensável, nas palavras de Llosa:

estou convencido de que uma sociedade sem romances, ou na


qual a literatura foi relegada, como certos vícios inconfessáveis,
às margens da vida social e convertida mais ou menos num culto
sectário, essa sociedade está condenada a se barbarizar no plano

717
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

espiritual e a pôr em risco a própria liberdade. (LLOSA, 2009,


s/p.).

O autor ainda acrescenta que, “em um mundo iletrado, o amor e a fruição


não seriam diferentes dos meros instintos elementares que satisfazem os animais:
copular e devorar.” (LLOSA, 2009, s/p). É por meio da ficção que temos acesso às
diversas experiências de amor e de guerra, das quais podemos aprender e formar-
-nos enquanto humanos. Em síntese, “incivilizado, bárbaro, órfão de sensibilidade
e pobre de palavra, ignorante e grave, alheio à paixão e ao erotismo – um mundo
sem literatura teria como traço principal o conformismo, a submissão dos seres
humanos ao estabelecido. Seria um mundo animal.” (LLOSA,2009. s/p.).

Apresentação da proposta de projeto

Retomo Antonio Candido (apud COUTINHO, 2009) para sintetiza as


funções da literatura defendidas no projeto, as quais norteiam as atividades
propostas:

A função psicológica surge da capacidade e necessidade univer-


sal do homem de fantasiar. A necessidade de ficção se manifesta
a cada instante, através dos devaneios em que todos se envolvem
diariamente, através das novelas, da música e do fantasiar sobre
o amor, sobre o futuro etc. As fantasias expressas pela literatura,
no entanto, têm sempre sua base na realidade, nunca são puras.
Assim a modalidade de fantasia, talvez seja a forma mais rica da
literatura. É através da ligação com o real, que a literatura passa a
exercer sua segunda função: a função formadora, pois a literatu-
ra atua como instrumento de educação, de formação do homem,
uma vez que exprime realidades que a ideologia dominante tenta
esconder. A terceira função, função social, diz respeito à identifi-
cação do leitor e de seu universo vivencial representados na obra
literária. Essa função é que possibilita ao indivíduo o reconheci-
mento da realidade que o cerca quando transposta para o mundo
ficcional. (COUTINHO, 2009. s/p.).

Nesse seguimento, primeiramente, vale lembrar, não pretendo assumir


uma função utilitarista para o trabalho com o texto literário, ou seja, não haverá
nenhuma questão de ordem prática vinculada à leitura dos textos, como poste-
riores avaliações ou vistas aos concursos de vestibular. Aqui pretendemos unica-
mente criar um espaço de leitura literária, resgatando o prazer por esta ação, que

718
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

deverá acontecer de forma voluntária e despretensiosa. Os efeitos e resultados


dessas experiências serão o corpus de nossa pesquisa.

Como primeira ação, foi divulgado aos alunos o “Clube da Leitura” convi-
dando-os a participar, voluntariamente, do que se pretende ser um espaço para
leitura e troca de ideias sobre essas leituras. Serão realizados encontros mensais
nas dependências do Campus Avançado de Coronel Vivida, em sala a ser designa-
da pela direção do campus. Obtive um total de sete alunos interessados, número
que considero razoável para os objetivos do projeto.

Pensar em um trabalho com a literatura que, de alguma forma, rompa com


os modelos tradicionais e seja capaz de aproximar os estudantes do objeto lite-
rário, torna-se fundamental no contexto de produção do projeto, uma vez que
a principal premissa do projeto é garantir o caráter voluntário e espontâneo da
participação dos alunos. Nesse mesmo ponto de vista, é possível dialogar com
Todorov quando o autor afirma que:

É verdade que o sentido da obra não se resume ao juízo


puramente subjetivo do aluno, mas diz respeito a um trabalho
de conhecimento. Portanto, para trilhar esse caminho, pode ser
útil ao aluno aprender os fatos da história literária ou alguns
princípios resultantes da análise estrutural. Entretanto, em
nenhum caso o estudo desses meios de acesso pode substituir o
sentido da obra, que é o seu fim. (2009, p. 31).

A fim de garantir e privilegiar o que Todorov (ibidem.) chama de “senti-


do da obra”, optei, como metodologia a ser adotada na condução das atividades
no “Clube de Leitura”, o Método Recepcional. Este método foi desenvolvido por
Bordini e Aguiar (1993), embasado pela Estética da Recepção de Jauss, teo-
ria de abordagem para o texto literário que pressupõe o papel ativo do leitor
na construção de significados para o texto. Em termos educacionais, o Método
Recepcional pressupõe uma aproximação gradual do aluno/leitor com a obra
literária (ZILBERMAN, 1989), tanto no que diz respeito à temática, quanto aos
aspectos linguísticos, respeitando cinco etapas: “determinação do horizonte de
expectativa; atendimento ao horizonte de expectativa; ruptura do horizonte de
expectativa; questionamento do horizonte de expectativa e ampliação do hori-
zonte de expectativas.” (BORDINI; AGUIAR, 1993).

1 - Determinação do horizonte de expectativa: é o momento em que o


professor tomará conhecimento da realidade social e cultural dos alunos, suas

719
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

experiências de vida, bem como possíveis interesses de leituras e temáticas a se-


rem desenvolvidas em aula. Essa etapa é realizada antes da atuação do professor.
No “Clube de Leitura” essa etapa acontecerá no primeiro encontro do ciclo de
encontros referentes à obra literária a ser trabalhada, ou seja, primeiramente A
Cartomante (1884) de Machado de Assis e, depois, O Auto da Compadecida (1995)
de Ariano Suassuna.

A escolha das obras justifica-se por sua relevância na literatura brasileira,


além de pertencerem a dois momentos distintos da produção literária do país,
fato que será de suma importância para as reflexões que serão propostas. Calvino
(1997) defende a leitura das obras consideradas canônicas, pois são consideradas
obras atemporais e representativas de uma tradição popular. Para o autor, a im-
portância da leitura dessas obras se dá “no sentido de que dão uma forma às ex-
periências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, es-
quemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza [...]” (CALVINO,
1997. p.10).

2 - Atendimento ao horizonte de expectativa: nessa etapa os alunos são


apresentados a textos que são próximos a sua realidade e conhecimento de mun-
do. É importante nesse momento a diversidade de gêneros, dando a possibilidade
ao aluno/leitor de levantar suas próprias percepções de leitura. Os textos esco-
lhidos deverão aproximar-se, pela temática ou pelo gênero, dos textos principais.

3 - Ruptura do horizonte de expectativa: esse é o momento “[...] de mostrar


ao leitor que nem sempre determinada leitura é o que ele espera, suas certezas
podem ser abaladas.” (PARANÁ, 2008, p. 75). Aqui o professor deve proporcionar
aos alunos o momento de aprofundar-se nos conhecimentos levantados na etapa
anterior, distanciando-se do senso comum e percebendo-se, por meio de leituras
indicadas pelo professor. O nome dessa etapa é ruptura, isso quer dizer que as
leituras realizadas nesse momento podem “confirmar ou perturbar esse horizon-
te, em termos das expectativas do leitor, que o percebe, o julga por tudo que já
conhece e aceita.” (BORDINI;AGUIAR, 1993, p. 87 apud PARANÁ, 2008, p. 75).
Ou seja, nesse momento os participantes serão problematizados e convidados a
repensar seus pontos de vista.

4 - Questionamento do horizonte de expectativa: o aluno/leitor deve nes-


sa etapa ser questionado tanto pelo professor quanto pela sua própria autoava-
liação, a partir das leituras realizadas nos momentos anteriores. É o momento
de estabilizar os conhecimentos que foram ativados pela ruptura do horizonte

720
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de expectativas do aluno, tomando o texto literário como motivo de tal refle-


xão. A essa altura, os alunos terão contato com as obras principais, ou seja, “A
Cartomante” e Auto da Compadecida. O objetivo é que os alunos percebam como a
literatura põe em xeque muitas das suas experiências pessoais. A leitura dos tex-
tos literários e as discussões propostas servirão para questionar o aluno sobre
seu horizonte de expectativas já estabelecido.

5 - Ampliação do horizonte de expectativa: na última etapa o aluno poderá,


depois do trabalho realizado nos momentos anteriores, tomar consciência sobre
as novas experiências que as leituras lhe proporcionaram, fazendo com que sua
leitura de mundo seja ainda mais ampla. Nesse momento, após a leitura das obras,
da discussão sobre suas peculiaridades e da discussão acerca de sua realidade e
experiência de vida, os alunos poderão então produzir eles mesmos seus textos,
em que contemplem as questões trabalhadas anteriormente. Nosso objetivo é
que os alunos consigam perceber esteticamente a literatura, bem como tomá-la
como uma transgressão do cotidiano, como gatilho para a crítica da realidade e
possibilidade interpretativa do mundo.

O material a ser utilizado consistirá, basicamente, em fotocópias de textos


e dez exemplares do livro Auto da Compadecida. Todas as ações desenvolvidas nos
encontros presenciais serão registradas e analisadas posteriormente, com vistas
à análise da eficácia do Método Recepcional como mecanismo de aproximação do
aluno e da obra literária. Serão aplicados quatro questionários, um no início e ou-
tro no final de cada leitura de obra, a fim de perceber a relação dos participantes
com a literatura, a leitura de cânones e o hábito de ler. Esses questionários servi-
rão como material de análise da pesquisa.

As perguntas do questionário permitirão avaliar a experiência de leitura


dos discentes participantes e a transformação de suas posturas diante dos temas.
A metodologia de análise dos dados consistirá na comparação das respostas dos
questionários, aplicados nas etapas já mencionadas, pensando principalmente
nos indicativos que o próprio Método Recepcional nos traz, ou seja, qual é o ho-
rizonte de expectativa inicial dos alunos participantes e como ele foi, ou não, am-
pliado. Em outros termos, analisaremos como o aluno dialoga com determinada
temática e obra no final da aplicação das cinco etapas do método.

Vale ressaltar que a análise dos dados é subjetiva, e, portanto, depende


da observação atenta dos pesquisadores com relação à participação dos discen-
tes nas discussões e de suas respostas aos questionários. O registro dos dados

721
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

seguirá a indicação MA1 – momento um, que diz respeito à resposta ao questio-
nário a ser aplicado antes do início da leitura da primeira obra; MA2 – momento
dois, que diz respeito à resposta ao questionário aplicado ao final da leitura da
primeira obra; MB1 – momento três, ou seja, às respostas do questionário a ser
aplicado antes da leitura da segunda obra e, finalmente; MB2 – que se relaciona às
respostas do questionário a ser aplicado ao final da segunda leitura. A compara-
ção entre as respostas recai, principalmente, na análise da dificuldade de leitura,
adiantamento da temática a partir do título da obra, capacidade de relacionar à
temática principal com outras obras (literárias ou não), capacidade de dissertar
sobre aspectos considerados positivos e negativos da obra e desejo de leituras
literárias semelhantes. Esses aspectos revelam a maturidade dos participantes
com relação à leitura literária, a qual se espera revelar-se maior no momento MB2
em relação aos demais momentos.

Considerações finais

Todo projeto escolar que envolve literatura e ensino representa, por ele
mesmo, um desafio a ser enfrentado por seus envolvidos, no que diz respeito à
aceitação e à execução. Por tratar-se de um campo subjetivo, socialmente subes-
timado e sem uma grande importância evidente, os projetos em literatura pre-
cisam, antes de tudo, justificar sua relevância nos contextos em que se inserem.
O projeto Clube da Leitura: Formação de Leitores Literários no Campus Avançado de
Coronel Vivida apresentado aqui não difere dessa lógica, pois, se nos atentarmos
ao fato de que em uma comunidade escolar que conta com mais de duzentos alu-
nos, apenas sete demonstraram interesse na participação no projeto, percebe-
mos que há alguma inconsciência significativa na relação dos estudantes com a
questão.

Tal evidência, no entanto, justifica ainda mais a necessidade de projetos


voltados à área de literatura que objetivem a promoção de leitores literários. É
tempo de desmistificar a literatura e trazê-la para o campo de experiências dos
estudantes, promovê-la e incentivá-la assim como vemos promovidos os projetos
relacionados ao esporte e a tecnologia, uma vez que, como defendido por Candido
(2004) em “O direito à literatura”, o entendimento da literatura como um bem não
alienável demarca uma posição política e revela um projeto de sociedade, no qual
os indivíduos têm garantidos seus direitos básicos, do corpo e da alma.

722
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

É importante mencionar que na ocasião de produção deste texto, o projeto


ainda está em sua fase inicial de aplicação, devido às circunstâncias causadas
pela pandemia do novo Coronavírus, de modo que todo o cronograma elaborado
inicialmente precisou ser revisto, e algumas ações pensadas, inicialmente, para o
desenvolvimento presencial precisaram ser adaptadas ao formato remoto. Ainda
que não represente o formato ideal para a realização do projeto, as adaptações
realizadas não comprometeram significativamente a qualidade das ações.
Esperamos que as atividades do projeto e seus resultados possam ser divulgados
em breve.

Referências

AGUIAR, V. T.; BORDINI, M.G. Literatura e Formação do leitor: alternativas me-


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723
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

TODOROV, T. A Literatura em Perigo. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL,


2009.
ZILBERMAN, R. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Ática,
1989.

724
OFICINAS LITERÁRIAS: ESTRATÉGIAS
E POSSIBILIDADES NA FORMAÇÃO
LEITORA

Solange Diniz de Oliveira1


Dalva Lobão Assis2

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo apresentar como as práticas de


mediação com leituras literárias podem ser efetivamente realizadas em even-
tos como a Feira Literária de Campina Grande – PB (FLIC), em suas oficinas, com
alunos de escolas públicas. O contato com a literatura é fundamental para essa
comunicação dentro da sala de aula, visto que a escola deve propor e almejar
que o aluno compreenda a leitura do texto literário e torne-se um leitor/forma-
dor dinâmico e crítico. São ambientes como esses que favorecem a atuação de
oficinas literárias, as quais situam o aluno dentro de um contexto real de leitura,
e apresentam os mais variados textos literários dos canônicos aos contemporâ-
neos. Utilizamos dados de uma pesquisa de campo. Em oficinas com alunos foram
apresentados diversos escritores e suas respectivas obras, proporcionando mo-
mentos significativos de aprendizagem, nos quais abordamos várias temáticas.
Para fins de descrição e reflexão sobre a experiência vivida, o trabalho apresenta
como aporte teórico os escritos de Cosson (2014) e Jouve (2012), os quais apon-
tam possíveis caminhos para um ensino de literatura que alcance seus objetivos,
preparando o aluno para a apreciação do objeto estético e do prazer para com a
leitura. A partir da análise dos dados, percebemos que os discentes tiveram horas

1 Universidade Estadual da Paraíba. solangediniz15@gmail.com


2 Universidade Estadual da Paraíba. dalvalobao@servidor.uepb.edu.br.

725
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de deleite e participaram ativamente do processo, elencando pontos acerca da


experiência com as leituras nesse contexto.

PALAVRAS-CHAVE: Aprendizagem; Literatura; FLIC; Oficina.

ABSTRACT: This article explains how mediation practices with literary readings can be
effectively carried out at events such as the Literary Fair of Campina Grande - PB (FLIC),
in their workshops, in public schools. Contact with literature is essential for this commu-
nication within the classroom, since the school must propose and aim for the student to
understand the reading of the literary text and become an opinion-forming, dynamic
and critical reader. It is environments like these that favor the performance of literary
workshops, which place the student within a real reading context, and present the most
varied literary texts from canonicals to contemporaries. Our methodology starts from a
field research, in which several writers and their receptive works were presented, pro-
viding significant moments of learning, in which we approach various themes, construc-
tion of meanings and inferences. From this point of view, we realized that the students
had hours of delight and actively participated in the process, listing points about the
experience with the readings in this context. For the purpose of describing and reflect-
ing on the lived experience, the work presents as a theoretical contribution the writings
of Cosson (2014) and Jouve (2012), which point out possible ways for a teaching of
literature that achieves its objectives, preparing the student for the appreciation of the
aesthetic object and pleasure in reading.

KEYWORDS: Learning; Literature; FLIC; Workshop.

Introdução

Neste trabalho, temos como objetivo apresentar como é a realização de


oficinas na Feira Literária de Campina Grande (FLIC) e sua representatividade
como formadora de leitores. A priori, podemos afirmar que a Feira teve sua es-
treia no ano de 2018, entre os dias vinte e oito de novembro e dois de dezembro,
com o intuito de trazer para a cidade um evento que abordasse a literatura, arte e
suas vertentes. Na programação do eventosão realizadas oficinas, saraus, decla-
mações, cantorias, peças teatrais, lançamento de livros, mesas redondas e, como
culminância, um piquenique no parque, que acontece no domingo com brincadei-
ras regadas à muita poesia. Com presença marcada no calendário todos os anos, a
FLIC vem se consolidando e instigando professores da área de Letras a repensar
sobre ideias para a sala de aula, como também estimular a formação de leitores.

726
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Em paralelo à Feira, existem dois projetos que são desenvolvidos durante


o ano nas escolas, o “Leitura Viva”, no qual os professores de escolas municipais
e estaduais trabalham com suas turmas uma obra e realizam tenras discussões
acerca da leitura. E outro projeto, o “Repórter Literário”, em parceria com um ou-
tro projeto, o “Anti Horário”, do curso de Jornalismo da Universidade Estadual da
Paraíba (UEPB), uma oportunidade para os graduandos deste curso ministrarem
oficinas na área de comunicação, para alunos do Ensino Fundamental. É pertinen-
te ressaltar, o quanto a FLIC vem se destacando em suas representações e atua-
ções, buscando interagir e criando possibilidades, para que a literatura alcance o
cidadão e o transforme em um ser crítico e reflexivo.

É notório como eventos que prestigiam a arte, possuem tamanha


significância e capacidade trazendo seu valor estético e cultural. Na Paraíba, as
feiras literárias expandiram-se nas praças públicas, onde são realizadas, e reiteram
o comprometimento de trazer o que melhor oferece no âmbito literário, como:
poetas; personalidades comprometidas com arte; sorteio de livros e palestras.
Com essas atratividades, as feiras possuem um grande público.

Os organizadores da FLIC, professores comprometidos com a educação,


todos os anos, elegem um tema. No ano de 2018, a temática foi “Palavras que
emancipam”. O destaque do evento foi que na noite de lançamento de vinte e cinco
escritores campinenses puderam vender e autografar suas obras. Por sua vez, no
ano de 2019, o tema foi “Leitor: um livro aberto” e o diferencial foram os projetos
da feira sendo acolhidos nas escolas. Vale ressaltar, que iremos refletir sobre uma
oficina literária, a qual ministramos nesta edição. Em 2020, diante do contexto de
pandemia, a feira foi realizada virtualmente e foi preciso ser reinventada, e assim,
aproximou pessoas que não poderiam comparecer presencialmente. Entretanto,
possivelmente afastou pessoas que não tinham acesso à internet. O tema esco-
lhido foi “Leitura de todos os cantos”, uma alusão ao momento de isolamento e de
como a leitura abrangeu vários lugares.

A partir dessa introdução, destacamos que iremos abordar a receptividade


da oficina literária na escola e seu processo de formação leitora, como os cami-
nhos possíveis para as estratégias de leitura e uma breve reflexão sobre o ensino
de literatura na escola.

727
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A receptividade da oficina literária na escola: a literatura no


processo de formação do leitor

O título da oficina ministrada foi “A Literatura e o cotidiano: uma refle-


xão pertinente”, realizada na Escola Estadual Senador Argemiro de Figueiredo
(Polivalente), na cidade deCampina Grande, na Paraíba, em uma turma do nono
ano do Ensino Fundamental II, em que estudavam trinta e cinco alunos, com a
professora de Português da turma, Jéssica Roberto, que acompanhou todo o pro-
cesso. Tínhamos duas horas, disponibilizadas pela direção, e levamos nossas prá-
ticas e apresentamos autores como Carolina de Jesus, Mário Quintana, Manoel
Monteiro, como também Cristiane Sobral e poesias de alguns professores; Edson
Tavares e Antônio de Pádua da Universidade Estadual da Paraíba.

Percebemos que a turma demonstrava uma certa inquietude com o que


estava para acontecer. Apresentamos os autores e suas obras, declamamos poe-
sias e explicamos o processo da lírica, da performance e da postura na oralidade
poética. Como elemento motivador, fizemos um jogo lúdico com balões coloridos,
e dentro de cada um continha uma poesia, os estudantes o estouraram e liam o
poema, em um momento de descontração e deleite.

Após isso, pedimos para a turma ser dividida em pequenos grupos de, no
máximo, cinco pessoas, propomos uma atividade para escolha de um poema, con-
to ou trecho que mais chamou atenção deles e oferecemos os livros para o ato.
Percebemos que a leitura, no início, silenciosa e tímida, aos poucos foi dando lugar
a risadas contidas, a alguns suspiros e dizeres de como era lindo o que estavam
lendo.

A partir disso, foi escolhido um integrante do grupo para falar ou declamar,


feito isso, tivemos calorosas discussões, a partir das quais constatamos a intera-
ção e como apreciaram esse contato com escritores dos quais não tinham conhe-
cimento. Pudemos observar o quão foi impressionante essa aproximação com o
texto literário, como os levou às inferências e à construção de sentidos. De acor-
do com Cosson (2014, p.36), “A leitura é uma competência individual e social, um
processo de produção de sentidos que envolve quatro elementos: o leitor, o autor,
o texto e o contexto.”.

Durante as apresentações, notamos alguns alunos introvertidos, outros


desinteressados e, também, aqueles que demonstravam entusiasmo com a sua
participação, e faziam questão de dialogar sobre a temática e a interpretação que

728
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

fizeram ao terminar a leitura. Houve, nesse momento, um desempenho por parte


de quem estava integrando a oficina, para reconquistar alunos dispersos e moti-
vá-los a vivenciar a experiência.

Por fim, feitas as considerações e contribuições acerca do nosso encontro,


tivemos um momento de culminância na classe, que foi renovador, ao ouvir todos
querendo falar ao mesmo tempo de como tinham gostado de conhecer os textos
literários que levamos e também apreciaram a dinâmica inicial feita para afugen-
tar a inibição.

Dessa forma, ouvirmos esses relatos nos fortaleceu, nos levou a reconhe-
cer o quanto a FLIC proporciona esse momento tão significativo além de refle-
tirmos sobre o quanto é importante e necessária a oportunidade de inserir nas
escolas oficinas literárias como essa, com o propósito de fazer circular a literatura
e o poder humanizador que ela proporciona, constituindo um caminho possível
para formação de sujeitos leitores.

Um caminho possível: estratégias de leitura para a oficina literária

Nossa proposta baseou-se em textos literários que tivessem uma maior


aproximação com a realidade dos alunos. Trouxemos Carolina de Jesus, ainda
desconhecida das escolas públicas, e foi bastante desafiador por ela ainda ser des-
conhecida no Brasil. Entretanto, a receptividade em torno dela, pelos alunos da
oficina, foi impressionante, pois ao ouvirem a sua trajetória de vida tiveram muita
admiração - lembrando que a autora teve uma vida sofrida e miserável e, mesmo
assim, conseguiu publicar um livro e ter reconhecimento.

As poesias e obras de Carolina têm, em sua temática, o negro, a fome, o


preconceito, a violência, a injustiça, a política, a desigualdade e também o amor
à leitura e à escrita. Abordamos alguns trechos do livro “Quarto de Despejo”, em
que a escritora narra a saga de criar três filhos sozinha e alimentá-los naquelas
circunstâncias de miserabilidade e fragilidade. Também levamos alguns poemas.
Notamos que esses textos tiveram imensa aceitação na escolha para as discus-
sões, como também nos deparamos com alguns relatos de experiências vividas
pelos alunos, comparando sua luta com a da escritora, como por exemplo a ten-
tativa de conciliar trabalho e estudo, como também o sonho de entrar em uma
faculdade para melhorar de vida.

729
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A literatura tem o efeito de provocar isso, indagações e questionamento.


No caso de nossa oficina, essa comparação de vida dos leitores com a da autora foi
muito importante para a ampliação dos sentidos em relação aos textos lidos, além
de ativar os conhecimentos de mundo dos alunos, proporcionando uma união en-
tre o efeito emocional da leitura com a apreciação estética.

Outro escritor que chamou a atenção dos estudantes foi Mário Quintana.
Levamos as seguintes poesias: A Rua dos Cata-ventos; O espelho; Olho as mi-
nhas mãos; se o poeta falar num gato; Vida, alguns conheciam o poeta apenaspelo
nome, outros não tinham conhecimento sobre a sua poesia. Após a oficina, pude-
ram conhecer e admirar a obra do escritor gaúcho.

Inserimos, na sequência, Manoel Monteiro, um poeta que nasceu na cidade


de Bezerros, a 102 km de Recife, Pernambuco, no dia 4 de fevereiro de 1937, mas
desde 1955 morava na Rainha da Borborema, Campina Grande, Paraíba, sendo
um dos grandes responsáveis pela difusão da literatura nas escolas. Além de ser
extremamente importante para a metodologia proposta, por se tratar do Cordel,
queríamos também fazer uma homenagem a esse grande escritor que deixou um
legado esplêndido. Explicamos a funcionalidade desse gênero textual e como ele
era declamado, bem como sua importância para a oralidade.

Como, na época, tivemos contato com poesias e livros que estavam sendo
publicados por alguns professores da faculdade, conforme já mencionamos, inse-
rimos na sequência da oficina, esse contato com escritores da terra e o que eles
estavam escrevendo, tendo aceitação por parte da turma, especialmente pela
informalidade presente nos textos, o que aproximou ainda mais o público leitor.
Outra escritora apresentada nas oficinas foi Cristiane Sobral, uma mulher negra
que escreve sobre resiliência, empoderamento, aceitação, preconceito e racismo.
Levamos o livro de poesias “Não vou mais lavar os pratos”. Em relação à apresen-
tação dessa obra, um aspecto nos chamou a atenção: um aluno ter lido apenas o
livro de poesias, em detrimento de outras leituras.

A oficina com autores demonstra a importância desses momentos de apro-


ximação à literatura. É notório que no cotidiano escolar, o professor tendo que
dar conta de diversos conteúdos para serem transmitidos e trabalhados com seus
alunos, não reservamomentos para explorar obras e promover essas leituras.
Quando chegou o momento do grupo dele falar o que havia escolhido, uma garota
disse que eles se identificaram com Mário Quintana e leu um poema, e realizamos
todo o processo de discussões e sobre a sua escolha. Outros alunos manifesta-
ram as suas preferências e o diálogo foi muito enriquecedor. Por exemplo, um doa

730
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

alunos disse que o livro de Cristiane Sobral era representativo de sua realidade,
pois, por ser negro, passava por aquelas situações e quando leu sentiu algo dife-
rente que não sabia explicar, mas que estava bem e feliz por não se sentir sozinho,
pois sabia que uma escritora também vivenciou isso.

Conversamos com ele sobre o poder que a leitura desperta, o quanto o li-
vro, ao ser aberto, nos remete a essas reflexões e inquietações sobre o eu. É liber-
tador o que a literatura faz no sujeito leitor. Como nos assegura Cosson (2014,
p.41), “Se a leitura é um diálogo, todo diálogo começa essencialmente com uma
pergunta, com uma questão, cuja resposta nos leva a outra pergunta e a outra res-
posta e a outra pergunta.”.

Sendo assim, o ato de ler é reflexivo e questionador, pois através da leitura


somos capazes de realizar comparações com nossas experiências e com o texto
lido. Como podemos constatar, a oficina literária é uma oportunidade significa-
tiva para esse trabalho de mediação com a leitura literária. Claro que existem
limitações: estamos cientes que são poucas horas de contato com esses alunos.
Entretanto, é importante pontuar que a oficina alcançou o efeito esperado. Era
explícito, no olhar deles e na forma como expuseram suas opiniões e argumenta-
ções, que a literatura os tinha atingido e contagiado.

A Literatura na escola: breve reflexão sobre seu ensino

A experiência com a oficina literária na escola, deixou-nos inquietos diante


do cenário que vivenciamos em tão pouco tempo. É notório o quanto o trabalho
com gêneros literários, a exemplo de poemas, é limitado dentro da sala de aula,
sua aplicação torna-se uma problemática quando se fazem necessárias a inter-
pretação e a contextualização do que está sendo dito.

Não queremos estigmatizar o papel do professor, principalmente das redes


públicassobre como está sendo suas práxis e nem tão pouco sua forma de aplicar
sua metodologia, pois sabemos das Políticas Públicas, do currículo/planejamento
das escolas e devido ao cumprimento da carga horária, não ser possível investir
em uma formação continuada.

Porém, quando temos essa oportunidade para promover um momento cul-


tural nas escolas e poder incluir autores, obras e poesias, podemos afirmar que é
translúcida a receptividade por parte dos alunos, e, geralmente, escutamos várias

731
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

indagações de quanto seria interessante se, pelo menos, as aulas envolvendo lite-
ratura tivessem esse viés inovador. Como explica o autor:

Se pensarmos que a literatura é o uso da palavra para criar mun-


dos ou um sentimento de mundo, correspondendo a um uso
específico da palavra, valem as transformações em novas mani-
festações como o cinema, a canção popular e as HQS, e os novos
usos, como dados pelos jovens que se apossam da literatura para
outros fins. (COSSON, 2014, p. 23).

A linguagem do jovem na contemporaneidade tem que ser ouvida e por


mais que nosso papel como docente seja o de transmitir conhecimento e apren-
dizado, temos que nos ressignificar e repensar nossas práticas, mesmo diante dos
obstáculos, e fazer desse aluno o protagonista da aula. Sabemos o quanto é difícil
e entediante esse discente assimilar obras e escritores, como escolas literárias
do século XIX, sem ter um recurso e equipamentos que prendam a atenção deles,
para saberem quem foi Gregório de Matos ou Camões, com seu Lusíadas.

É importante que eles saibam quem foram nossos escritores do século pas-
sado, mas sem tornar isso um fardo, podemos comparar um autor e uma determi-
nada obra em sala de aula, bem como realizar debates e círculos de leitura para
discussões e questionamentos. De acordo com Cosson (2014, p. 38), “para essa
perspectiva, a leitura é essencialmente um processo de interação entre leitor e
texto. Ler é construir o sentido do texto.”.

A partir disso, as estratégias e objetivos de leitura alinhados a uma perspec-


tiva de formação leitora, desperta nesse alunado, o interesse pelo texto literário,
pelo qual ele se apropria e dialoga, vai inferindo aspectos relevantes e cria uma
intimidade com a literatura e suas diversidades/representações. Mais uma vez,
reiteramos, não estamos criticando as práticas educacionais em escolas, convida-
mos a reconsiderar e a refletir sobre o método que estamos há anos utilizando e
talvez deixando de humanizar, com o direito de cada cidadão que é a literatura em
séculos passados e na contemporaneidade perpassados de forma que esse aluno
jamais esqueça de nossas aulas.

Outra questão importante foi o fato de que na oficina literária que realiza-
mos, levamos como convidada uma escritora, Jadna Alana, de uma cidade vizinha,
para os estudantes terem esse contato com quem escreve. A fala dela foi muito
importante e pertinente, pois ela contou sua trajetória para escrever oito livros,
entre eles: A saga dos seis portais (2016), A princesa de Ônix (2017), Retorno do prín-
cipe (2018) e Riacho do Jerimum (2019) e publicá-los. Sua escrita é voltada para

732
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

o gênero fantástico, abordando temáticas da nossa realidade aplicada dentro da


fantasia. Formada em Letras – Língua Portuguesa, pela Universidade Estadual da
Paraíba, atua como coordenadora editorial na Plus Editora.

Seu discurso despertou perguntas e curiosidades, eles tinham sede de co-


nhecimento, de saber como ela com pouca idade, já tinha essa lista de livros publi-
cados e mais um estava encaminhando para o lançamento no ano de 2019. Ela le-
vou os livros e os mostrou para a turma, a temática é bastante atrativa ao público
juvenil, relacionando aspectos como sociedade, mágica e Harry Potter, princesas
e série de livros.

O momento foi encantador e poético, vê-los deslumbrados com quem es-


creve o que eles gostam de ler, foi fascinante e excepcional. Como assevera Jouve
(2012, p. 137), “O desafio dos estudos literários é, portanto, identificar nos planos
cultural e antropológico o que é que a obra exprime sobre o humano, assinalando
o que era esperado na época, inédito à época e novo ainda hoje.”.

Essa aproximação inédita para eles, foi uma experiência rica e produtiva
em todos os aspectos. Além disso, a professora da turma, ao término da oficina
nos confessou acerca da timidez deles para falarem e por conhecer o histórico de
vida de cada um, disse-nos que muito do que trouxemos se compara à realidade
atual deles.

Ela estava levando poesias e textos literários para que esse paradoxo fosse
quebrado em sala, e as aulas fossem mais dinâmicas e interessantes, a ponto de
despertar neles, a partir do trabalho dela como mediadora, essa inserção na for-
mação como sujeitos leitores, críticos e reflexivos.

Voltando à questão do evento proporcionado pela FLIC, de levar professo-


res para essas escolas e realizarem propostas como essa, acarreta nessa aproxi-
mação e, também, na possibilidade de encararmos a realidade de uma sala de aula,
bem como de proporcionar aos alunos conhecimentos e aprendizagem através de
vivências como essa.

A feira literária teve sua versão digital na edição de 2020, e anunciou com
muita tristeza que não haveria possibilidades de fazermos as oficinas dentro des-
se contexto pandêmico, pois como os alunos estão sem aulas, não haveria como
reuni-los em uma sala virtual. Com data marcada no calendário, para o mês de
novembro de 2021, vamos seguindo e acreditando que dias melhores virão e com
a única certeza de que a literatura nos salva e nos humaniza, para enfrentar as
adversidades da vida e jamais deixar de investir na educação.

733
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Considerações finais/Conclusão

Considerando esses resultados, as oficinas literárias contribuem com as


escolas e conciliam concepções equestionamentos A feira literária, que está em
sua terceira versão, agregou músicas, saraus, poemas, declamações, palestras,
mesas redondas e muito amor à literatura e suas representações.

Resultando em um evento que a cada ano se consagra e possui data marca-


da no calendário, para que a arte não seja esquecida e adormecida. O propósito da
feira é aproximar a literatura do público e, nesse viés, levar também para a escola,
através das oficinas, textos literários, e aproximar os alunos de escritores e obras
da contemporaneidade. Posto isso, ressaltamos a importância desses encontros
e de como são gratificantes por levar a literatura e suas vertentes para dentro da
sala de aula e da receptividade dos estudantes diante do que foi proposto, como
também a interação acerca das discussões.

No mais, abordamos no relato de experiência uma importante reflexão


sobre o ensino da literatura nas escolas. É importante ressaltar que alguns pro-
fessores não podem dar continuidade a uma formação devido à carga horária,
como também o cumprimento dos currículos. Por fim, evidenciamos o quanto é
considerável e elogiável a contribuição que a FLIC, disponibiliza nos dias do even-
to e no decorrer do ano, em razão de seus projetos literários levando a arte para
humanizar como para formar leitores. E trazendo para nossa cidade o deleite de
desfrutarmos de dias tão agraciados e poéticos.

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2014.
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SOBRAL, C. Não vou mais lavar os pratos. Brasília: 201.

734
O TRABALHO COM OS CONTOS
CLÁSSICOS NO 8º ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL: LEITURA, PRODUÇÃO E
ENCENAÇÃO1

Elyk Verônica Oliveira Vargas2


Gleidenira Lima Soares3
Janine Felix da Silva4

RESUMO: Entre as formas literárias mais importantes que se transformaram em


Literatura Infantil podemos destacar as narrativas maravilhosas, das quais fazem
parte os contos fantásticos e os contos de fadas e possuem como característica
principal trazer o mundo envolvente das narrativas mágicas para a nossa reali-
dade (COELHO, 2000). Entendendo a importância desse tipo de narrativa atre-
lando-a às práticas de leitura e produção textual, apresentamos a pesquisa aqui
descrita, a qual objetivou desenvolver com alunos do 8º ano do ensino fundamen-
tal, de uma escola da rede estadual de ensino, em Rondônia, a leitura dos contos
clássicos e suas versões atuais, a produção textual coletiva de um conto moderno

1 Este artigo foi produzido com atividades desenvolvidas durante o Programa de Residência
Pedagógica (PRP) /MEC/CAPES. Fez parte do projeto guarda-chuva intitulado “Pesquisa na
escola: o processo de ensino-aprendizagem de leitura, interpretação, letramento e produção
textual no programa residência pedagógica e no estágio supervisionado”, aprovado por essa IES
através da Portaria nº 69/2019/PROSPESQ/UNIR, de 21 de novembro de 2019.
2 Fundação Universidade Federal de Rondônia. elykveronica240784@gmail.com.
3 Secretaria Municipal de Educação (SEMED/Porto Velho/RO) Fundação Universidade Federal de
Rondônia. gleylimasoares@gmail.com.
4 Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR) / Universidade Estadual de Maringá (UEM).
janine@unir.br.

735
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

embasado nos textos lido e, por fim a dramatização desse texto produzido pelos
alunos.Dessa forma, para o desenvolvimento desta pesquisa utilizamos como
metodologia a pesquisa bibliográfica seguida de pesquisa de campo, de cunho
qualitativo, devidamente caracterizada como pesquisa-ação. Como aporte teó-
rico, tomamos como base os seguintes autores: Koch (2009); Carvalho (2018),
Cademartori (2010), Coelho (2000), Lajolo (2000), Zilberman (2012), entre ou-
tros. Ao final da pesquisa foi possível notar que os conhecimentos adquiridos em
leituras nas séries anteriores contribuíram para produção literária dos alunos,
além de percebermos que o trabalho envolvendo a produção e a encenação do
texto resultou no grande empenho dos alunos envolvidos.

PALAVRAS-CHAVE: Contos Clássicos; Literatura Infantil; Produção Textual.

ABSTRACT: Among the most important literary forms that have become Children’s
Literature we can highlight the wonderful narratives, of which fantastic tales and fairy
tales are part and have as their main characteristic to bring the immersive world of
magical narratives to our reality (COELHO, 2000). Understanding the importance of
this type of narrative by tying it to the practices of reading and textual production, we
present the research described here, which aimed to develop with students from the 8th
year of an elementary public school in the state of Rondônia the reading of classic tales
and their current versions, the collective textual production of a modern tale based on
the texts read and, finally, the dramatization of this text produced by the students. Thus,
for the development of this research, we used as methodology the bibliographic research
followed by field research, of qualitative nature, duly characterized as action research.
As a theoretical contribution, we based on the following authors: Koch (2009); Carvalho
(2018), Cademartori (2010), Coelho (2000), Lajolo (2000), Zilberman (2012), among
others. At the end of the research it was possible to notice that the knowledge acquired
in readings in the previous grades contributed to the literary production of the students,
besides realizing that the work involving the production and staging of the text resulted
in the great commitment of the students involved.

KEYWORDS: Classic Tales; Children’s Literature; Textual production.

Introdução

É notória a importância de se aproximar crianças e jovens da literatura,


tanto clássica quanto moderna, tendo em vista que o envolvimento literário traz
diversos benefícios ao leitor, desde o prazer, o relaxamento, até o conhecimento

736
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de vários assuntos, de personagens diferentes e o próprio domínio da língua


portuguesa.

Entretanto, apesar da importância desse estreitamento entre leitor e tex-


tos literários, muitas vezes o ambiente familiar e/ou o escolar não possui condi-
ções para propiciar esse contato das crianças com a literatura e o desenvolvimen-
to da leitura. Pensando nisso e com base na realidade posta durante as atividades
desenvolvidas no Programa de Residência Pedagógica (PRP) problematizamos
em torno da seguinte questão: como estreitar a relação entre leitura e escrita nas
atividades de produção de textos literários, por intermédio de narrativas da li-
teratura infantil? A partir desse questionamento elencamos como objetivo geral:
investigar a aplicabilidade de atividades de leitura e interpretação de contos clás-
sicos da literatura infantil, no 8º ano do ensino fundamental, visando a produção
escrita e a encenação do texto produzido. Para tanto, listamos os seguintes obje-
tivos específicos: i) apresentar as versões de clássicos da literatura infantil, rela-
cionando pais e alunos na montagem de uma nova versão conforme a imaginação,
aproveitando a exercitar a escrita; ii) relacionar a literatura infantil clássica com
suas respectivas versões; iii) revisar seus conhecimentos literários, com ajuda de
seus responsáveis; iv) Dramatizar de forma lúdica o material produzido.

Para alcançarmos os objetivos propostos utilizamos pesquisa bibliográ-


fica e pesquisa de campo, de cunho qualitativo, devidamente caracterizada como
pesquisa-ação, considerando que esse tipo de pesquisa parte de problemas reais
para se buscar soluções “[...] tendo em vista transformações úteis para a popula-
ção (a curto ou médio prazo).” (THIOLLENT, 2006, p.154).

O embasamento teórico foi realizado a partir dos seguintes autores:


Cademartori (2010), a qual discute sobre a base teórica do que venha a ser a li-
teratura infantil; Coelho (2000), que aborda sobre a teoria da literatura infantil
e traz análise de textos desse tipo de literatura; Costa (2007), que traz metodo-
logias de utilização e/ou aplicação da literatura infantil (e infanto-juvenil) em sala
de aula; e Koch (2009), que discute sobre o processo de escrita e construção de
textos; entre outros.

Para uma melhor discussão dividimos este artigo em seis partes. Na pri-
meira, denominada A literatura infantil e o leitor, abordaremos a relação entre a
literatura infantil e a formação do leitor; na segunda, denominada a leitura e os
gêneros textuais no ensino, discutiremos a utilização dos gêneros textuais e o tra-
balho com eles em sala de aula; na terceira, cujo título é abordagem metodológica:

737
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

contextualização da pesquisa, trataremos sobre o início e as características da


pesquisa desenvolvida; nas duas partes seguintes, intituladas produção textual:
à análise, e produção textual: a encenação, respectivamente, apresentaremos o
texto produzido, bem como sua análise, seguida da abordagem sobre a encena-
ção; e por fim, as considerações finais.

A literatura infantil e o leitor

Ao abordar a temática da literatura infantil pensamos apenas em livros


voltados para crianças, no entanto, não se trata apenas disso, a literatura de modo
geral aflora os mais profundos sentimentos do indivíduo, fazendo reviver história,
revisitar pessoas ausentes e presentes ao longo da vida, lembrar de momentos
adormecidos no fundo na memória, mas que permearam a formação do leitor.

Pensar na literatura para crianças como aquela que apresenta texto sim-
plório, desenhos coloridos é um equívoco, pois esse gênero literário apresenta
grandes dificuldades no momento da produção, como assegura Candido apud
Zilberman e Lajolo (1986, p. 329):

Talvez o mais difícil de todos os gêneros literários seja a histó-


ria para crianças. Gênero ambíguo, em que o escritor é força-
do a ter duas idades e a pensar em dois planos: que precisa ser
bem escrito e simples, mas ao mesmo tempo bastante poético
para satisfazer um público mergulhado nas visões intuitivas e
simplificadoras.

Desse modo, entende-se que o texto literário produzido para crianças deva
ser livre de lições de moral, preconceitos ou ensinamentos como encontramos em
alguns livros ditos literários, mas que na verdade são caracterizados como paradi-
dáticos. Acredita-se, assim como Coelho (2000, p. 27), que:

[...] a literatura infantil é antes de tudo, literatura; ou melhor, é


arte: fenômeno da criatividade que representa o mundo, o ho-
mem, a vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática,
o imaginário e o real, os ideais e sua possível/impossível realiza-
ção [...]

Enquanto Literatura, a literatura infantil se caracteriza por expressar as


experiências humanas vividas durante um determinado período, tendo em vista

738
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que cada momento histórico produziu, a seu modo, a sua forma literária, com as
peculiaridades existentes e preponderantes na sociedade na qual estava inserida.
Ainda, a literatura infantil desperta curiosidade e aguça a imaginação do leitor ao
passo que pode trazer temas fantásticos, como princesas, príncipes, cavaleiros,
dragões, bruxas, entre outros elementos; ou mesmo assuntos corriqueiros do co-
tidiano, como separação dos pais, medo do escuro, morte, perda, ou outros tantos
assuntos.

Dessa forma, consideramos que a literatura infantil deva ser introduzida ao


público leitor desde a infância, mas não apenas se limitando às crianças pequenas.
Trabalhar com a literatura infantil, principalmente no que diz respeito aos contos
clássicos, com alunos do ensino fundamental é de extrema importância uma vez
que a leitura desse gênero literário pode aproximar esses alunos às práticas de
leitura e incentivá-los pelo interesse em descobrir os segredos guardados nas pá-
ginas dos livros, despertando assim a curiosidade e a imaginação dos educandos.
ParaZilberman (2012, p. 47):

A apropriação do texto se dá de modo praticamente ritualístico:


primeiro, ele apalpa a obra, sentindo-a de modo táctil e explici-
tando a natureza carnal do livro. Depois, procura as figuras, de-
tendo-se nas imagens visuais, para só então mergulhar nas letras,
que conduzem a universos fantásticos, distantes no tempo, no
espaço e nas ideias, mas próximo dele, dada a materialidade do
livro, para onde o leitor, apaixonado, sempre retorna.

Assim, ao refletir sobre a citação, entende-se que as ilustrações presentes


nas narrativas recontam as histórias através do olhar do imaginário e o belo. Por
isso, as crianças que não decodificam as palavras são capazes de criar novas e iné-
ditas histórias a partir das imagens ilustradas nas obras literárias. Dessa forma, ao
propormos atividades educacionais com as obras da Literatura infantil, propomos
despertar nos alunos o interesse pela leitura e, quem sabe, contribuir para a sua
formação como futuro leitor de obras literárias, pois, segundo Zilberman (2012,
p. 148):

Que a leitura é importante, todos sabemos: a leitura ajuda o in-


divíduo a se posicionar no mundo, a compreender a si mesmo e
à sua circunstância, a ter suas próprias ideias. Mas a leitura da
literatura é ainda mais importante: ela colabora para o fortale-
cimento do imaginário de uma pessoa, e é com a imaginação que

739
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

solucionamos problemas. Com efeito, resolvem-se dificuldades


quando recorremos à criatividade, que, aliada à inteligência, ofe-
rece alternativas de ação.

Ou seja, ao desenvolvermos atividades de leitura de obras literárias com


nossos alunos estamos desenvolvendo a imaginação ao passo que melhoramos
a interpretação dos textos e contextos tanto das obras literárias quanto dos pro-
blemas relacionados aos textos lidos.

Sabemos que esse trabalho de leitura pode ser desenvolvido, dentre outras
formas, com base nos gêneros textuais abordados nos textos, os quais acabam
exercendo uma funcionalidade social, além da literária. Essa relação entre leitura
e os gêneros textuais na perspectiva educacional é o que iremos discutir na se-
guinte seção.

A leitura e os gêneros textuais no ensino

A interação social de um indivíduo ocorre, normalmente, por meio dos gê-


neros textuais empregados no cotidiano. Esses gêneros se encontram disponíveis
em um acervo de textos criados pela prática social durante o desenvolvimento da
história de um povo (KÖCH & MARINELO, 2015), constituindo-se e se diferen-
ciando entre enunciados orais e escritos.

Esses gêneros textuais, na condição de prática social, no que diz respeito a


sua modalidade escrita, exercem um papel de destaque em sua utilização escolar,
principalmente nas aulas de Língua Portuguesa. Prática esta já estabelecida nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) e que vem sendo colocada em prática
por diversos professores do nosso país. Assim sendo, essas perspectivas de traba-
lho em sala de aula com os gêneros textuais abrem espaço para a visão mais ampla
de texto(s) e da relação dele(s) com a literatura, o leitor, a escrita e a arte em si.

De acordo com Carvalho (2018, p.23) “[...] o texto supera as restrições de


sua superfície material, sendo definido pelo uso social e indissociável do discur-
so.”. Dessa forma, o leitor estabelece uma relação comunicativa com o próprio
texto ao passo que faz uma (re)significação das palavras, sentidos e contextos de
suas leituras. Ou seja, “Leitor e texto ligam-se na medida em que o texto é uma
organização simbólica com uma função representativa que se cumpre no leitor,
sendo a leitura a parte determinante de qualquer texto.” (CADEMARTORI, 2010,
p. 72). Percebemos, dessa forma, uma relação social-comunicativa na qual o texto

740
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

depende do leitor para fazer sentido e o leitor depende do texto para ressignifi-
car suas experiências, aprender sobre novos assuntos, situações, lugares, entre
outros.

Cada leitor relaciona “[...] o significado pessoal de suas leituras com os vá-
rios significados que, ao longo da história de um texto, este foi acumulado. Cada
leitor tem a história de suas leituras [...]” (LAJOLO, 2000, p.106). Ou seja, cada
leitor traz as leituras realizadas ao longo de sua vida para a sua realidade pessoal.
Parte da interpretação dos textos lidos para a sua leitura de mundo e vice-versa.

À luz da Base Nacional Comum Curricular, discorre-se sobre a importância


das atividades de leitura na formação do estudante, desde a educação infantil até
a conclusão da educação básica, sendo ratificado através da afirmação:

As experiências com a literatura, propostas pelo educador, me-


diador entre os textos e as crianças, contribuem para o desen-
volvimento do gosto pela leitura, do estímulo à imaginação e da
ampliação do conhecimento de mundo. Além disso, o contato
com histórias, contos, fábulas, poemas, cordéis etc. propicia a fa-
miliaridade com livros, com diferentes gêneros literários, a dife-
renciação entre ilustrações e escrita, a aprendizagem da direção
da escrita e as formas corretas de manipulação de livros. (BNCC,
2014, p. 42).

Embora a literatura seja uma modalidade privilegiada de leitura, em que o


envolvimento prazeroso com o texto se torna virtualmente ilimitado, recortan-
do o real, sintetizando-o e o interpretando do ponto de vista do narrador ou do
poeta, manifestando assim uma visão fictícia e/ou fantasiosa do mundo ao seu re-
dor e oferecendo essa visão para que o leitor possa interpretá-la; ressalta-se que
existem outras modalidades de leitura, as quais, muitas vezes, desfrutam de uma
maior circulação social, e que essas modalidades podem ser abordadas em sala de
aula através do trabalho com os gêneros textuais.

Com base nessa ideia, Köch e Marinelo (2015, p. 07) afirmam que:

O ensino de Língua Portuguesa a partir de gêneros textuais per-


mite ao aluno dominar progressivamente um número cada vez
maior de recursos linguísticos. Com isso, ele terá condições de
adaptar o texto a ser produzido, especialmente sua estrutura,
seu conteúdo e sua linguagem, ao possível interlocutor e à situa-
ção comunicativa em que está inserido.

741
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Assim, ao trabalhar os diversos tipos de textos que circulam em nossa so-


ciedade os docentes, enquanto mediadores de conhecimento, podem proporcio-
nar uma relação entre a leitura dos textos (sendo eles literários ou não) e os senti-
mentos, atitudes, valores, comportamento, entre outros, que esses textos possam
apresentar e atividades que estimulem o conhecimento linguístico, social, corpo-
ral e sensorial dos alunos, por exemplo.

Dessa forma, apresentaremos a seguir a descrição metodológica do traba-


lho com os contos clássicos desenvolvido com alunos do 8º ano do ensino funda-
mental em uma escola da rede pública de ensino no estado de Rondônia.

Abordagem metodológica: contextualização da pesquisa

Este artigo partiu de um estudo bibliográfico seguido de uma pesquisa


devidamente caracterizada como pesquisa de campo, a qual parte do ambiente
pesquisado, intervindo neste com vistas a transformá-lo, seja a curto ou a médio
prazo (THIOLLENT, 2006), de cunho qualitativo.

Teve seu início no segundo semestre de 2019 em uma escola da rede públi-
ca de ensino, no estado de Rondônia. As atividades desenvolvidas fizeram parte
do subprojeto “Língua Portuguesa em Foco”, do curso de Letras, de uma IES do
Norte do país, participante do Programa de Residência Pedagógica. Fizeram par-
te da pesquisa, inicialmente, 18 alunos do 8º ano do ensino fundamental, quanti-
dade reduzida, posteriormente, para um total de 12 alunos.

Inicialmente, selecionamos o gênero textual conto maravilhoso, em espe-


cial os contos de fada considerados clássicos, por considerarmos que esses textos
são de conhecimento popular e oral desde sempre e com isso facilitar o trabalho
de incentivo à leitura, interpretação e produção textual. Dessa forma, para fins
metodológicos, dividimos as atividades desta pesquisa em três momentos: i) lei-
tura e interpretação, ii) produção (ões) textual (is) e iii) encenação. No primeiro,
apresentamos o conto clássico Chapeuzinho Vermelho, seguido de suas versões
modernas: Chapeuzinho Amarelo, (BUARQUE, 2009); Chapeuzinhos Coloridos,
(TORERO e PIMENTA, 2010) com seus Chapeuzinho Azul, Cor de Abóbora, Verde,
Branco, Lilás e Preto; Em outro momento, foram trabalhados os clássicos Os três
porquinhos, (GRAVES, 2011), bem como a versão moderna Os 33 porquinhos,
(TORERO; PIMENTA, 2012).

742
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Durante as atividades iniciais, realizamos com os alunos leituras dos tex-


tos físicos e/ou Pdf seguido das interpretações, discussões e debates sobre esses
textos, considerando o conhecimento que os alunos já possuíam sobre os contos
clássicos e, ao mesmo tempo, estabelecendo um processo de intertextualidade
entre as versões clássicas e modernas desses textos. Essa leitura e interpretação
realiza um diálogo entre leitor e texto. Segundo Costa (2007, p. 110):

Nesses atuais princípios teóricos do trabalho com a leitura da


literatura, o autor-escritor não quer mais ‘dizer alguma coisa a
respeito de algum assunto’. É o leitor quem dirá qual é o seu en-
tendimento, fundamentado sempre nas estimulações vindas do
texto literário e mantendo uma coerência de interpretação.

Com base nessa perspectiva, mediamos as interpretações de forma oral,


visando ouvir e debater os assuntos e temas abordados nos textos apresentados
aos alunos. Esgotado o trabalho com a leitura e interpretação de texto, passamos
para o segundo momento da pesquisa, a produção de texto, para isso dividimos a
turma em 04 grupos: 02 grupos com 05 alunos e 02 grupos com 04 alunos. Após a
divisão, foi pedido que, com base nos textos lidos e nas discussões interpretativas,
cada equipe produzisse um texto o qual seria corrigido, reescrito e, posteriormen-
te, encenado.

Ao todo, foram produzidos 03 textos intitulados: “As três porquinhas”,


“Chapeuzinho mal-educada” e “Mistura de clássicos”. Ressaltamos que, com o
desenvolvimento das atividades, os grupos foram reduzidos em apenas um gru-
po com 12 participantes. Após a correção feita por nós foi decidido que o texto a
ser reescrito e encenado seria o texto intitulado “Mistura de clássicos”. A análise
sobre essa produção e encenação dos alunos será apresentada no subtítulo em
seguida.

Produção textual: à análise

A apropriação da escrita é o domínio mais difícil para os nossos alunos, uma


vez que a escola, normalmente, considera o texto escrito em sua finalidade e não
em um processo e produção. Textos são tecidos a partir de inúmeras palavras car-
regadas de ideologias e entrelaçadas através das relações sociais e inseridas em
um determinado contexto. Assim, segundo Garcez (2010, p. 63), “[...] o texto es-
crito, enquanto ação com sentido, constitui uma forma de relação dialógica que

743
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

transcende as meras relações linguísticas, é uma unidade significativa de comuni-


cação discursiva que tem articulações com outras esferas de valores.”. Dessa for-
ma, o texto escrito estabelece uma relação discursiva entre autor/leitor do tex-
to produzido. Nessa perspectiva, entendemos que a escola possui como um dos
seus papéis inserir os alunos nas atividades linguísticas que trabalham as práticas
sociais, além de “[...] mediar processos de formação para que possam integrar os
aprendizes às diversas categorias de textos em que se materializam as práticas
sociais.” (HILA, 2009, p.156).

Sabemos que para produzir um texto, necessitamos acionar conhecimen-


tos adquiridos durante nossa vida letrada, esses conhecimentos podem ser his-
tóricos, culturais, mas, sobretudo, linguísticos. Com base nessa ideia, realizamos
o processo de mediação de produção textual dos alunos após leitura e interpreta-
ção dos contos clássicos e suas versões modernas, como já mencionado em títulos
anteriores. Portanto, entendendo que os textos se adequam ao contexto no qual
será utilizado, apresentaremos e analisaremos a versão produzida e encenada pe-
los estudantes do 8º ano, conforme texto exemplificado a seguir.

Mistura de clássicos

Alunos do 8º ano

Narradora - Hoje vamos apresentar uma “mistura de clássicos”.

Era uma vez... (é interrompida)

(Ligação) Trinnnnnnn

- Jasmine – (liga para Ariel)

- Oi amiga, saudades!

Ariel responde a Jasmine: - Também estava com saudades, principalmente


do nosso grupo! Bora ligar pras meninas...

Jasmim: - Partiu...

Ligaram para outras meninas.

Ariel: - Oi meninas.

Cinderela: - Oi princesas.

Bela: - Vamos nos encontrar de novo?

744
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Vão para o baile.

“Efeito sonoro” ***Eu vou pro baile da gaiola***

Chegando ao baile, todas se encontram, se cumprimentam e dançam ao rit-


mo do som.

Jasmin pergunta para Cinderela: - Amiga tu viu aquele “princeso” ali?

Cinderela: - Eu vi, “mo” gatinho.

Ariel: - É verdade!

Bela: - Aquele “princeso” ali é meu namorado.

Então todas as princesas pedem desculpas para a Bela e vão curtir à noite.

Texto 1. Texto da encenação produzida pelos estudantes


Fonte: Acervo da pesquisadora

Ao observarmos o texto produzido percebemos que ele expõe a intertex-


tualidade desde o seu título “Mistura de clássicos”, além da utilização de persona-
gens dos contos clássicos (Cinderela e Bela) com personagens da Disney (Jasmine
e Ariel), mesmo esses personagens não sendo utilizados nos textos lidos.

Segundo Köch e Elias (2008, p.86):

[...] a intertextualidade é o elemento constitutivo do processo de


escrita/leitura e compreende as diversas maneiras pelas quais a
produção/recepção de um dado texto depende de conhecimen-
tos de outros textos por parte dos interlocutores, ou seja, dos
diversos tipos de relações que um texto mantém com outros
textos.

Ou seja, quando inserimos conhecimentos de um texto produzido anterior-


mente estamos desenvolvendo o processo de intertextualidade.

Outra coisa observada na produção dos alunos foi a presença da imagi-


nação, característica dos contos maravilhosos, através de expressões como “Era
uma vez...” e a presença de um “baile” muito presente nos contos de fadas tradicio-
nais. Segundo Coelho (2000, p. 118) “o ato de contar continua presente no corpo
da narrativa [...] esse recurso tem um duplo resultado: cria um “gancho” para a

745
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

expectativa em relação ao que vai ser lido ou ouvido e prende de imediato a aten-
ção do leitor, orientando-o para o sentido desejado.”.

Em seguida, detectamos elementos atuais como a tecnologia, através da


ligação recebida, a linguagem adolescente, perceptível nas gírias utilizadas como:
“princeso”, “mo”, “gatinho”, entre outros.

Além disso, percebemos a mudança do papel feminino no texto, no qual


as personagens são as que comentam a respeito do personagem masculino, re-
tratando que na atualidade os papéis sociais da mulher estão sendo revisto e em
constante evolução, deixando de lado as “qualidades” exigidas a mulher como:
“[...] Beleza, Modéstia, Pureza, Obediência, Recato... e total submissão ao homem.”
(COELHO, 2000, p. 161). Considerando que esse texto foi escolhido para a ence-
nação, relataremos esse processo a seguir.

Produção textual: a encenação

Após a finalização do texto, iniciamos o processo de ensaio para a ence-


nação. Com a realização desses ensaios foi possível que os alunos encaixassem
seus movimentos conforme o previsto no texto escrito, conheceram o espaço que
iriam utilizar no momento da encenação, decidiram se realmente iriam continuar
com os personagens escolhidos, fizeram relação personagem/escrita e decidiram
seus figurinos. Nesse momento, podemos destacar que um maior envolvimento
da pesquisadora, pois destinada a mesma a tarefa de confeccionar os figurinos de
acordo com o definido pelos estudantes.

Conforme afirmam Zontra e Maheirie (2012, p. 598):

O processo de criação teatral possibilita, [...] a participação nas


atividades de produção do espaço cênico da peça, exigindo a
apropriação de diferentes signos da linguagem teatral: cenogra-
fia, adereços, iluminação, figurinos, máscaras, signos gestuais,
mímicos, signos acústicos, ruídos, músicas, entre outras coisas.

Seguindo nossas orientações, os alunos puderam expor suas habilidades


teatrais, através da encenação do texto por eles produzido, interagiram com
os colegas de modo espontâneo, ficando notável que cada integrante estava à

746
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

vontade com a dramatização bem como bastante dedicados em todo o processo


desde a composição de seu personagem até a realização e apresentação da peça.

Considerações finais

Ao realizar esta pesquisa sobre os clássicos da literatura Infantil e suas res-


pectivas versões nos foi possível comprovar que através de práticas de leitura e
escritas os estudantes do 8º ano conseguem confeccionar novas versões escritas
dos textos lidos, utilizando para isso conhecimentos prévios adquiridos em anos
anteriores do ensino fundamental e/ou convívio com pais ou responsáveis, asso-
ciando a imaginação e a intertextualidade de modo criativo e relacionando a lite-
ratura infantil clássica com suas respectivas versões.

Os acontecimentos que resultaram neste artigo comprovam que práti-


cas de leitura, discussões e produção textual são fundamentais para desenvol-
ver a imaginação e a criatividade dos estudantes registradas em seus textos.
Percebemos ainda, que os alunos trazem elementos da sua realidade para os tex-
tos produzidos criando, com isso, um processo de verossimilhança.

Acreditamos que o trabalho com leitura e a produção textual favorece, en-


tre outras coisas, índices educacionais mais elevados nas avaliações externas, pois
os alunos tende a interpretar o comando das questões, contribuindo assim para
que aumente a nota de estados e/ou países nos Indicadores de Avaliação como
IDEB5 e PISA6, favorecendo a qualidade de ensino. Contudo, são indispensáveis o
auxílio e a mediação dos professores nesse processo, para um melhor desenvolvi-
mento dessas habilidades de leitura e escrita por parte dos alunos.

Por fim, externamos nossos agradecimentos aos participantes da pesqui-


sa, a escola envolvida, a professora preceptora e, em especial, a Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo auxílio financeiro
durante nosso período de bolsistas do Programa de Residência Pedagógica (PRP).

5 Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), criado em 2007 pelo Ministério da


Educação – MEC. Informações contidas no site: http: //portal.inep.gov.br/ideb. Acesso em: 03
dez. 2019
6 Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) é um estudo comparativo inter-
nacional, realizado a cada três anos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE). O Pisa oferece informações sobre o desempenho dos estudantes na faixa
etária dos 15 anos. Informações contidas no site: http: //portal.inep.gov.br/pisa. Acesso em: 02
dez. 2019.

747
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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748
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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749
ANTERO DE QUENTAL E
CESÁRIO VERDE: DUAS VOZES
REVOLUCIONÁRIAS DA POESIA
PORTUGUESA OITOCENTISTA

Valci Vieira dos Santos1

RESUMO: Antero de Quental e Cesário Verde são dois nomes representativos da


poesia portuguesa do século XIX. Ambos procuraram alterar o código estilístico
tradicional e passaram a defender uma poesia de cariz utilitário, afastando, assim,
a concepção da “arte pela arte”, o que lhes conferiu uma posição de destaque no
universo da produção poética portuguesa, especialmente por terem dado conta
de produzir um discurso poético em consonância com as novas ideias da litera-
tura, da ciência e da história, causando significativas reverberações em poetas e
escritores posteriores. No presente estudo, o que se pretende, a partir da leitura
e análise de seus poemas, além da prosa e de cartas a amigos – no caso de Antero
de Quental – e também de cartas, no de Cesário Verde, é demonstrar o quanto as
suas vozes revolucionárias foram importantes para o fortalecimento da literatura
portuguesa, época em que o Realismo se apresentou não apenas com um discur-
so de renovação da própria literatura, nas suas diferentes formas de expressão:
visão de mundo, temas e linguagem, mas também representativo de um discurso
inovador, com ares de “modernidade”. Para a realização desta pesquisa, far-se-á
uso da produção literária de Antero de Quental, extraída da obra organizada por

1 Faculdade do Sul da Bahia-FASB. valci@ffassis.edu.br

750
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Casais Monteiro (1972) intitulada “Poesia e Prosa e do livro “Antero de Quental”;


já a de Cesário a organizada por Joel Serrão (1999).

PALAVRAS-CHAVE: Antero de Quental; Cesário Verde; poesia portuguesa


revolucionária

ABSTRACT: Antero de Quental and Cesário Verde are two names representing 19th
century Portuguese poetry. Both sought to change the traditional stylistic code and be-
gan to defend a poetry of utilitarian nature, thus distancing the conception of “art by
art”, which gave them a prominent position in the universe of Portuguese poetic pro-
duction, especially because they produced a poetic discourse in line with the new ideas
of literature, science and history, causing significant reverberations in poets and later
writers. In the present study, what is intended, from the reading and analysis of their po-
ems, in addition to prose and letters to friends – in the case of Antero de Quental – and
also letters, in Cesário Verde’s, it is to demonstrate how important their revolutionary
voices were for the strengthening of Portuguese literature, a time when Realism pre-
sented itself not only with a discourse of renewal of literature itself, in its different forms
of expression: worldview, themes and language, but also representative of an innovative
discourse, with airs of “modernity”. For the accomplishment of this research, the literary
production of Antero de Quental will be used, extracted from the work organized by
Casais Monteiro (1972) entitled “Poesia e Prosa and the book “Antero de Quental”;from
Cesário’s literary work, we used the one organized by Joel Serrão (1999).

KEYWORDS: Antero de Quental; Cesário Verde; Revolutionary Portuguese poetry

Introdução

O cenário oitocentista português foi marcado por significativos aconteci-


mentos, nas mais diferentes esferas da sociedade. No campo político, destaca-se
a tensão marcada por fortes lutas travadas entre liberais e facções que represen-
tavam a velha monarquia. Esta, em decorrência da Revolução Liberal do Porto,
eclodida em 1820, viu suas forças se esvaíram até ser depostas, especialmente
quando da elaboração e promulgação da primeira constituição portuguesa.

Com a consolidação do liberalismo, Portugal, a partir de 1850, passou a co-


nhecer um período de estabilidade política, refletida no progresso material e no
incipiente intercâmbio com alguns países europeus. Esse intercâmbio, sobretudo
com a França, a Inglaterra e a Alemanha, contribuiu, de certa forma, para que os

751
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ares lusitanos fossem influenciados pelo pensamento científico-filosófico euro-


peu, ainda que de modo lento.

No cenárioliterário, os ventos oriundos do Realismo europeu, especial-


mente do francês, seu berço, sopraram também em direção às terras portuguesas.

Coimbra, o centro da intelectualidade portuguesa à época, sediado sobre-


tudo no seio da sua Universidade, assume um papel fundamental para as refle-
xões e discussões de estudantes revolucionários que não mais admitiam o atraso
português em relação aos demais países da Europa. Coimbra se beneficia de sua
efervescência cultural, notadamente quando passa a ser ligada, em 1864, à rede
europeia do chamado caminho-de-ferro. Tal ligação estreitou ainda mais os laços
com a França, ainda que a nação portuguesa, sob o prisma cultural, mantivesse
uma posição subalterna.

Esse acesso, cada vez mais acentuado, dos estudantes de Coimbra e de ou-
tras cidades portuguesas às publicações literárias europeias (Eça de Queirós fala
em pacotes de livros que da Europa chegavam), assim como de outra natureza, só
acenderam o desejo desses estudantes de denunciar a lentidão com que caminha-
vam as instituições responsáveis pela administração pública, já que timidamente
progredia sob as óticas tecnológica e econômica, até mesmo a social.

A denúncia apareceu em forma de manifestações literárias, presentes em


vozes revolucionárias de homens que deram origem à chamada Geração de 70.
A consciência dessa Geração, capitaneada pelos olhares ávidos de Antero de
Quental, Eça de Queirós, Teófilo Braga, Oliveira Martins, além de outros, não me-
diu esforços ao lançar seus petardos em direção àqueles que eles consideravam
presos às tradições, ao academicismo e ao formalismo literário.

Destarte, entre as vozes revolucionárias que se colocaram a serviço da


denúncia do atraso português em relação aos demais países europeus, encon-
tram-se aquelas que que se constituíram num franco sinal de renovação literária
e ideológica, cujo primeiro passo foi dado pela Questão Coimbrã, cenário “onde se
defrontaram os defensores do status quo literário e um grupo de jovens escritores
estudantes de Coimbra, mais ou menos entusiasmados pelas leituras e correntes
indicadas”, consoante posição de A. J. Saraiva e Óscar Lopes (2004, p. 800). Nesse
palco, não faltaram manifestações de grande monta, que sacudiram a opinião pú-
blica e fizeram-na enxergar a necessidade de ligar Portugal ao mundo moderno.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Nesse mesmo palco, avultam-se, dentre muitas vozes, a de Antero de


Quental, e, mais tarde, a de Cesário Verde2. Sem dúvida, são dois poetas cujos
nomes ficaram gravados na galeria de notáveis da poesia portuguesa da segunda
metade do século XIX. Tal notabilidade se deve ao fato de ambos terem procura-
do – e assim o conseguiram -, alterar o código estilístico tradicional, passando a
defender projetos poéticos de cariz utilitário, colocando, de lado, a concepção da
“arte pela arte”. Essa posição lhes conferiu um lugar de destaque no universo da
produção poética lusa, sobretudo porque souberam, com maestria, produzir um
discurso literário em consonância com as novas ideias da literatura da ciência e da
história, no que colaboraram para que outros discursos fossem produzidos, dando
origem a outros projetos de poetas e escritores portugueses e estrangeiros, com
suas significativas reverberações.

Os projetos literários revolucionários de Antero de Quental e de


Cesário Verde
A arte revolucionária de Antero de Quental

Antero Tarquínio de Quental é considerado o principal mentor da Geração


de 70. Nasceu em 18 de abril de 1842, em Ponta Delgada, capital dos Açores, na
ilha de São Miguel, e faleceu em 11 de setembro de 1891. Fez seus primeiros es-
tudos em sua terra natal, onde recebeu formação católica e tradicional. Dirige-se
para Lisboa, em 1852, com a sua mãe, Ana Guilhermina da Maia, com o objetivo de
estudar no Colégio Pórtico, dirigido, à época, pelo escritor romântico português,
António Feliciano de Castilho, onde realiza os seus estudos preparatórios para o
ingresso na Universidade de Coimbra. Esses estudos se encerram quatros anos
depois, tempo, inclusive, de escrita de seus primeiros versos, os quais foram publi-
cados, mais tarde, nas revistas literárias intituladas Prelúdios Literários, O Fósforo
e O Académico.

Já em Coimbra, cursando a Faculdade de Direito, passa a fazer contato


com as ideias circulantes que pairavam entre os seus corredores, participando,
inclusive, em 1858, da Sociedade do Raio, de cuja natureza secreta contou
com a participação de estudantes sedentos por mudanças, especialmente as

2 Muita embora Cesário Verde não tenha participado diretamente da Questão Coimbrã, já que
ainda era um adolescente aquando da efervescência das discussões de renovação literária e
ideológica, mesmo assim não deixou de ser influenciado pelo sulco deixado pela Geração de 70,
a qual deixou profundas marcas na cultura portuguesa.

753
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

acadêmicas, tais como, João de Sousa Avelino, António Azevedo Castelo Branco
e Alberto Sampaio.

O certo é que o espírito combativo de Antero de Quental já se fazia sentir


na tradição de sua família. Não lhe faltaram exemplos: um de seus avós, inclusive
companheiro de Bocage, foi perseguido e preso, por conta de suas posições an-
ti-absolutistas. Essa combatividade progressista levou o seu avô a tornar-se um
deputado às Constituintes. Além da veia inquieta do avô, um primo e o próprio pai
viveram algum tempo no exílio.

Assim, a base espiritual, intelectual e material de Quental foi assentada a


partir de vários pilares: a presença da educação maternal em sua vida até finais da
adolescência, com o seu legado de fundo religioso e tradicional; as vozes comba-
tivas de seus antepassados que continuaram a ecoar e a ressoar na constituição
de seu espírito por vezes ambíguo, prenunciador, inclusive, de atitudes posterio-
res; o pilar responsável pela sua formação intelectual e literária encontrou guari-
da em grandes nomes da literatura portuguesa do século XIX, a exemplo dos de
Alexandre Herculano - que inspirou Antero de Quental a escrever, aos dezessete
anos, a sua primeira poesia, além de se tornar um dos mais importantes mento-
res da sua carreira literária -, e de João de Deus, poeta do romantismo português
que morreu cercado de grande admiração e respeito, sobretudo no meio literá-
rio. João de Deus, na verdade, tornou-se seu amigo, e prefaciou os seus primeiros
Sonetos.

Da seara da literatura estrangeira, não foram poucas as influências sofri-


das por Antero de Quental. A francesa, sem dúvida, assumiu um papel de van-
guarda. Alphonse de Lamartine, escritor, poeta e político francês, influenciou o
Romantismo na França e em todo o mundo. Dessa fonte, Quental procurou beber
do que havia de melhor, com o cultivo e a admiração dos versos de Lamartine, sem
falar do seu universo temático, marcado pelas reflexões em torno da religião e do
amor.

Mas não só os versos de Lamartine causaram admiração em Quental. Os de


Victor Hugo – o advogado dos miseráveis -, também despertaram nele entusias-
mo, haja vista as mais diferentes manifestações em torno das lutas progressistas
europeias, como os movimentos políticos favoráveis à emancipação e unificação
nacional da Itália e as posições contrárias ao projeto expansionista de Napoleão
III, contra quem o poeta romântico francês não mediu esforços para demonstrar

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

sua intensa hostilidade, tendo, inclusive, apelidado o imperador de “Napoleão, o


Pequeno”, hostilidade essa expressa em seus livros e correspondências.

É nesse universo de intensa participação nos meios político e literário


da sociedade portuguesa, graças também às influências sofridas por eminentes
nomes da literatura nacional e estrangeira, que Antero de Quental, especialmente
a partir de 1865, vê a sua produção escrita e atuação política ganharem notabili-
dade entre os seus pares. Dentre os seus escritos, merecem destaque a 1ª edi-
ção das Odes Modernas, a qual foi dedicada ao dileto amigo Germano Meireles;
o lançamento do opúsculo Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX contra
a chamada opinião liberal, cujo teor é uma louvação à figura do Papa antiliberal e
antiprogressista; a apresentação da famosa carta dirigida a António Feliciano de
Castilho, intitulada Bom Senso e Bom Gosto, a qual não mede esforços ao atacar
a posição literária de Castilho, acusando-o de ignorar os ventos da mudança, da
renovação, e revoluciona o meio literário e intelectual, dando destaque a uma voz
– dentre tantas vozes -, que é enaltecida através da contundência das seguintes
palavras do poeta:

O que se ataca na escola de Coimbra (talvez mesmo V. Exª. o ig-


nore, porque há malévolos inocentes e inconscientes), o que se
ataca não é uma opinião literária menos provada, uma concep-
ção poética mais atrevida, um estilo ou uma ideia. Isso é pretexto,
apenas. Mas a guerra faz-se à independência irreverente de es-
critores que entendem fazer por si o seu caminho, sem pedirem
licença aos mestres, mas consultando só o seu trabalho e a sua
consciência. A guerra faz-se ao escândalo inaudito duma litera-
tura desaforada que cuidou de poder correr mundo sem o selo
e o visto da chancelaria dos grãos-mestres oficiais. (QUENTAL,
1990, p. 48).

Além de Quental ter se pronunciado com veemência contra a incompreen-


são de escritores que não conseguiam enxergar projetos literários comprometidos
com as novas formas de pensar e conceber o mundo e suas significativas transfor-
mações, tão bem consignadas na referida carta, outras publicações se desponta-
ram no cenário, a exemplo do folheto A Dignidade das Letras e As Literaturas Oficiais.

Sua atuação literária e política se solidifica ainda mais, quando passa a par-
ticipar do famoso Cenáculo, um grupo informal com a presença de estudantes e
intelectuais, ou, em outras palavras, uma espécie de tertúlia de amigos, cujas dis-
cussões defendiam, dentre outras ideias, as de uma República Federal Ibérica. O

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Cenáculo contava com a presença de figuras ilustres e históricas, como as de Eça


de Queirós, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, entre outras.

Mas Antero de Quental mostrava-se cada vez mais insatisfeito com os ru-
mos que o seu país estava tomando. As discussões, os escritos e suas publicações
em jornais, ou mesmo em folhetos, não o deixavam satisfeito com as posições as-
sumidas, muito menos conseguiam aplacar a fúria de um “eu” inconformado com a
apatia social diante da omissão de seus governantes. Esse estado de coisas culmi-
nou com a inauguração, em 1871, nas Conferências do Cassino Lisbonense, cuja con-
ferência inaugural foi proferida por Antero de Quental, além de ter desenvolvido
o tema Causas da Decadência dos Povos Peninsulares3. Apesar do empenho dos
responsáveis pela organização do evento, este sofreu um duro golpe com o seu
fechamento pelo governo, acusado de ser “subversivo”.

Para além do quanto é possível perceber a trajetória de comprometimen-


to de Antero de Quental para as com as causas justas de seu tempo, compro-
metimento este flagrado em sua atuação como estudante, cidadão consciente,
intelectual e polemista político, através de seus escritos e pronunciamentos em
reuniões, encontros, conferências etc., importa-nos extrair de sua prosa e poe-
sia, sobretudo desta última, elementos textuais que nos comprovam a sua atitude
combativa e irreverente, típica de um temperamento que não se conformava com
o descompasso das condições políticas, econômicas, sociais, culturais e literárias
portuguesas.

Dessa forma, a produção, tanto no âmbito da prosa como no da poesia, con-


tém um manancial de vozes que evidenciam a posição combativa de Antero de
Quental. O soneto intitulado “A um Poeta” nos é revelador dessa fase em que, sob
o signo da Razão, o sujeito poético conclama a todos para uma luta revolucionária.
O termo “Poeta” parece nos remeter à condição de um ser idealista, que é invoca-
do, incontinenti, à luta, já no frontispício do poema, através da inserção da frase bí-
blica “Surge et ambula”, ou seja, “Ergue-te e caminha”. Nessa batalha, portanto, tra-
va-se uma luta contra a manutenção de um status quo que insiste em defender as
velhas bandeiras, os mesmos ideais. Na primeira estrofe do poema, há uma alusão
flagrante ao espírito do mundo romântico, sombrio e lúgubre, comparado à figura

3 Segundo A. J. Saraiva e Óscar Lopes (2010, p. 803), as causas da decadência dos povos peninsu-
lares, de acordo com o pensamento de Antero de Quental, seriam três: “a reação religiosa con-
sumada pelo Concílio de Trento; a centralização política realizada pela monarquia absoluta, com
a consequente perda das liberdades medievais; um sistema económico de rapina guerreira que,
atalhando o desenvolvimento da pequena burguesia, detivera, na Península, a evolução econó-
mica de parte da Europa.”

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de um levita que se coloca passivo, por estar satisfeito com a “sombra” que lhe dá
proteção. Por outro lado, o uso reiterado dos imperativos “Acorda!”, “Escuta!” e
“Ergue-te” representa a voz de um sujeito poético que se vê diante de uma mis-
são, qual seja a de chamar a atenção de seus interlocutores, para a necessidade de
assumir o lugar que lhes cabe na defesa de seus direitos, bem como estarem sin-
tonizados com o vento das mudanças que faz despertar todos aqueles que não se
deixam levar pelo conformismo, apatia e insensibilidade; ao contrário, toma posse
da palavra, do verbo, que se transforma numa eficiente arma de combate:

A UM POETA
Surge et ambula!
Tu, que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.
Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno,
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares,
Um mundo novo espera só um aceno...
Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!
Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate.

Nas Odes Modernas, volume de poesia publicado em agosto de 1865, ainda


quando Antero de Quental era estudante da Universidade de Coimbra, encon-
tramos significativos poemas que fazem ecoar vozes que clamam por uma socie-
dade mais justa, mais livre e igualitária, além de propor uma nova estética, que
venha a dialogar com os anseios da chamada Poesia moderna, ainda que nesse
volume seja possível encontrar poesias do romantismo social, as quais foram logo
abandonadas por ele, dando lugar às realidades sociais que o cercavam. Aliás,
na opinião de Maria José Marinho e de Alberto Ferreira, organizadores da obra

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

“Questão Coimbrã: Bom Senso e Bom Gosto” (1989), a verdadeira ruptura com
os modelos tradicionais nos dá a conhecer por intermédio do Posfácio às Odes
Modernas, que se intitula “Nota (Sobre a Missão Revolucionária da Poesia)”4, cujo
mote norteador alude à poesia moderna como a voz da revolução. Vale a pena
extrair da referida “Nota” alguns excertos que salientam a natureza dessa poesia
moderna, a qual se acha comprometida com os novos caminhos a serem trilhados
pela produção poética portuguesa:

Este livro [Odes Modernas] é uma tentativa, em muitos pontos


imperfeita, seguramente, mas sempre sincera, para dar à poesia
contemporânea a cor moral, a feição espiritual da sociedade mo-
derna, fazendo-a assim corresponder à alta missão que foi sem-
pre a da Poesia em todos os tempos (...). Partindo desse princípio
– a Poesia é a confissão sincera do pensamento mais íntimo de
uma idade – o autor, na rectidão imparcial da sua lógica, havia
de necessariamente concluir que esta outra afirmação – a Poesia
moderna é a voz da Revolução – porque a Revolução é o nome
que o sacerdote da história, o tempo, deixou cair sobre a fonte
fatídica do nosso século.

Assim, o pensamento ousado, renovador, de Antero de Quental se faz sen-


tir em outros poemas que compõem o mesmo livro, a exemplo de “No Templo”,
cuja estrofe, abaixo transcrita, nos aponta para um discurso com forte conotação
política, em que lemas memoráveis da Revolução de 1789 se fazem presentes
para demonstrar o poder que o povo possui, quando faz valer a sua voz reivindica-
tória, cantada e decantada nas ruas em verso e prosa:

No Templo
O Evangelho novo é a bíblia da igualdade:
Justiça, é esse o tema imenso do sermão:
A missa nova, essa é a missa de Liberdade
E órgão a acompanhar... a voz da revolução
(QUENTAL, 1983, p. 125).

4 A “Nota (Sobre a Missão Revolucionária da Poesia)” que compõe o posfácio da obra Odes
Modernas, de Antero de Quental, foi retirada da coletânea “A Questão Coimbrã: Bom Senso e
Bom Gosto”, já referenciada alhures.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Além do aspecto político fortemente presente na poesia de Antero de


Quental, que alimenta o discurso da revolução de sua produção literária, a razão
é outra vertente que também colabora para dar musculatura às vozes que se le-
vantam contra a injustiça social e as graves diferenças de uma sociedade que não
mede esforços para manter privilégios e diferenças de classes. A razão, desse jei-
to, se constitui na síntese da equação dialética “tese e antítese”, equação esta que
se acha conforme a máxima de Hegel, para quem “tudo quanto é, é racional”. (apud
RODRIGUES, 1990, p. 30). Matéria e espírito, determinismo e liberdade, evolução
e finalidade não são, pois, ideias contraditórias, senão na aparência, já que são, de
fato, duas facetas diferentes de compreensão da aludida equação dialética.

Busquemos, pois, também na poesia de Antero de Quental, a presença de


uma ode à Razão, como, verbi gratia, no soneto intitulado “Hino à Razão”:

Razão, irmã do Amor e da Justiça,


Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre, só a ti submissa.
Por ti é que a poeira movediça
De astros e sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.
Por ti, na arena trágica, as nações
Buscam a liberdade, entre clarões;
E os que olham o futuro e cismam, mudos,
Por ti, podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos, que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!
(QUENTAL, 1983, p. 99).

O tema da Justiça é, também, outra arma de combate bastante cara à poé-


tica de Antero de Quental, como na de Cesário Verde, conforme reflexões abor-
dadas na próxima seção do texto a respeito do pensamento verdiano. No soneto
“Justitia Mater”, faz-se presente um sujeito poético que tenta fazer valer a sua
voz diante das contradições e indiferenças sociais. Essa mesma voz se ergue com

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

fúria e desmedida, pois se reconhece portadora de uma missão, de uma significa-


tiva missão, que é a de lutar incansavelmente para que a justiça se faça sentir nos
corações aflitos de todos aqueles que gritam por socorro em face da indiferença
de seus algozes:

Justitia Mater
Nas florestas solenes há o culto
Da eterna, íntima força primitiva:
Na serra, o grito audaz da alma cativa,
Do coração, em seu combate inulto:
No espaço constelado passa o vulto
Do inominado Alguém, que os sóis aviva:
No mar ouve-se a voz grave e aflitiva
D’um deus que luta, poderoso e inculto.
Mas nas negras cidades, onde solta
Se ergue, de sangue medida, a revolta,
Como incêndio que um vento bravo atiça,
Há mais alta missão, mais alta glória:
O combater, à grande luz da história,
Os combates eternos da Justiça!

Por último, merece destaque uma das principais facetas da revolução em-
preendida por Antero de Quental, configurada num “movimento contrário àque-
las forças ou impulsos responsáveis pela decadência moral, consistindo numa
retomada do sentido ascendente da história da humanidade”, de acordo com o
pensamento de Rodrigues (1990, p. 23).

O verdadeiro sentido da moralidade para Antero de Quental ensejaria a


progressiva possibilidade de realização do homem como dotado de liberdade.
Dialogando com o pensamento de Proudhon, “a moral seria decorrente de um bem
absoluto e eterno, entendido o eterno no sentido de permanente.” (RODRIGUES,
1990, p. 24). Aliás, em sua Carta Autobiográfica, Antero de Quental expõe sua
opinião a respeito do que mais o atraiu durante os seus anos na Universidade de
Coimbra:

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

O fato importante da minha vida, durante aqueles anos, e prova-


velmente o mais decisivo dela, foi a espécie de revolução intelec-
tual e moral que em mim se deu, ao sair, pobre criança arrancada
do viver quase patriarcal de uma província remota e imersa no
seu plácido sono histórico, para o meio da irrespeitosa agitação
intelectual de um centro, onde mais ou menos vinham repercu-
tir-se as encontradas correntes do espírito moderno.

As reflexões sobre a moral aparecem também num folheto que circulou de


forma anônima, em Portugal, no ano de 1871, de propaganda da 1ª Associação
Internacional dos Trabalhadores, nomeado “O que é a Internacional?”, em uma de-
monstração clara das influências sofridas pelo pensamento de Marx e Engels, cujo
trecho aparece transcrito abaixo:

Consumi muita atividade e algum talento, merecedor de melhor


emprego, em artigos e jornais, em folhetos, em proclamações, em
conferências revolucionárias: ao mesmo templo que conspirava
a favor da União Ibérica, fundava com a outra mão sociedades
operárias e introduzia, adepto de Marx e Engels, em Portugal a
Associação Internacional dos Trabalhadores.

Nesse folheto, apesar do discurso revolucionário, de cunho retórico, Antero


de Quental explicava quais, a seu ver, seriam os fins visados pela Internacional:
primeiro, educar moralmente as classes trabalhadoras; segundo, transformar gra-
dualmente as condições econômicas daquelas classes.

Na mesma Carta, Antero de Quental se mostra desiludido em face de vá-


rios acontecimentos ocorridos em sua vida, dentre eles, a doença que tanto o afli-
giu e o ameaçou reiteradamente; a não realização de vários projetos ambiciosos.

Este estado de coisas e sentimentos tão presente na alma do poeta parece


ter sido “combatido” com a crença na forma da moral: “A reação às forças morais e
um novo esforço de pensamento salvaram-me do desespero.”

A arte revolucionária de Cesário Verde

A revolução em Cesário Verde parece ter tido lugar em seu próprio modo
de pensar a vida e, depois, de como concebeu a arte poética. Ainda muito novo, in-
surge-se contra o pai, por conta de suas exigências para que ele se dedicasse à loja
de ferragens da família. Segundo Eduardo Coelho, o fundador do Diário de Notícias,

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

significativo jornal lisboeta, e caixeiro na adolescência na loja de Anastácio Verde,


pai do poeta, aquele se colocava contrário às ambições literárias do filho, pois
considerava que elas “não davam dinheiro”. Aliás, foi graças a Eduardo Coelho,
que Cesário Verde conseguiu, em 12 de novembro de 1873, publicar, no aludido
veículo de comunicação, o seu primeiro “folhetim de versos”.

Mas, ao que nos parece, quem realmente conseguiu dar conta de enxergar
em Cesário Verde a figura de um poeta anunciador de novos ares para a poesia
portuguesa foi Fernando Pessoa. Para Pessoa, Cesário Verde foi um dos mais radi-
cais revolucionários que há na literatura, quando, por exemplo, diz que foi através
dos versos cesáricos que se fundou a poesia objetiva de sua época, além de ter
enaltecido a sua originalidade.

E é com base nessas reflexões de Fernando Pessoa sobre a arte poética


verdiana, que passaremos, agora, a demonstrar o quanto o projeto literário de
Cesário Verde foi importante para repensar a literatura portuguesa em fins do sé-
culo XIX, com graves reverberações em tempos posteriores, inclusive nos tempos
contemporâneos.

O primeiro aspecto a ser evidenciado na poesia de Cesário Verde, confor-


me já apontado por Fernando Pessoa, é a sua objetividade; aliás muito bem enal-
tecida no verso de seu heterônimo Álvaro de Campos, constante de seu magistral
poema “Ode marítima”: “Venham dizer-me que não há poesia no comércio, nos
escritórios!” (PESSOA, 1985, p. 334).

Por outro lado, o trato com a temática do cotidiano, principalmente, não foi
bem recebido pela intelectualidade portuguesa, nem mesmo entre os seus con-
temporâneos, haja vista a reação, por exemplo, de Ramalho Ortigão e de Teófilo
Braga. A crítica de Ramalho Ortigão se deu quando da publicação do poema
“Esplêndida”, no jornal Diário de Notícias, no dia 22 de março de 1874. A reação de
seu contemporâneo saiu em forma de um artigo publicado no periódico As Farpas,
o que criticava os versos de Cesário Verde, acusando-o de imitar o gênero poético
de Baudelaire. Nesse artigo, Ramalho Ortigão escreve: “o realismo baudelairiano
está fazendo mais numerosas e lamentáveis vítimas do que o velho romantismo
de Byron, de Lamartine e de Musset.” (FIGUEIREDO, 1981, p. 110). E não para por
aí. Após o ataque desferido a Baudelaire: “[...] um mundano, um dândi, um corrup-
to, imitador do estilo humorístico de Edgar Poe” (FIGUEIREDO, 1981, p. 110), vira
sua arma giratória em direção a Cesário Verde:

762
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Em Portugal há honestos empregados públicos, probos ne-


gociantes, pacíficos chefes de família, discretos bebedores
de chá com leite e do palheto de Colares, destemperado com
água do Arsenal que deliberam seguir o género de Baudelaire.
Como, porém, Baudelaire era corrupto e eles não são corrup-
tos, como Baudelaire era um dândi e eles não são dândis, como
Baudelaire viveu no Boulevard dos italianos e eles vivem na Rua
dos Bacalhoeiros, como Baudelaire conhecia a moda, a elegância
e o sport e o demi-monde ao passo que eles conhecem as popelines,
as carcaças de bobinet e as cuias do sr. Marcos Maria Fernandes,
costureiro da Travessa de Santa Justa, o resultado é lançarem
na circulação uma falsa poesia [...]. (Apud FIGUEIREDO, 1981, p.
110).

O golpe fatal que Ramalho Ortigão pensou ter dado em Cesário Verde pa-
rece-nos ter sido consubstanciado em seu perverso conselho: que Cesário Verde
poderia tornar-se “menos Verde e mais Cesário.” Pensou ter dado, se levarmos em
consideração o quanto de contributo trouxe a poesia verdiana, para o universo da
literatura portuguesa.

Já Teófilo Braga, por seu turno, também não deixou de desferir suas críti-
cas à publicação do mesmo poema “Esplêndida”, pois não admitia a ideia de que,
“para captar as simpatias de uma mulher, um homem descesse ao lugar dos la-
caios.” Para ele, o poeta moderno deveria ser trabalhador, forte e digno e não se
deixar rebaixar assim. Teófilo Braga, claro, se referia aos versos esplendorosos e
inovadores do poema de Cesário Verde, já referido:

Ei-la! Como vai bela! Os esplendores


Do lúbrico Versailles do Rei-Sol
Aumenta-os com retoques sedutores.
É como o refulgir dum arrebol
Em sedas multicores
Deita-se com langor no azul celeste
Do seu landau forrado de cetim;
E os seus negros corcéis que a espuma veste,
Sobem a trote a rua do Alecrim,
Velozes como a peste.
[...]

763
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

E eu vou acompanhando-a, corcovado,


No trottoir, como um doido, em convulsões,
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejando o lugar dos seus truões,
Sinistro e mal trajado.
E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.
[...]
(VERDE, 1999, p. 71-72).

Na verdade, o poema de Cesário Verde publicado no Diário de Notícias,


Lisboa, em 22 de março de 1874, não foi compreendido por Ramalho Ortigão e
Teófilo Braga, pois ambos não deram conta de perceber aspectos da modernida-
de presentes no poema, como a sua irônica sensualidade. A mulher descrita é um
tipo social, a qual é evocada através de referências francesas, representativas de
uma ordem social aristocrática, moralmente decadente. O sujeito poético quis,
em suma, demonstrar o quanto a figura feminina, no poema, representa historica-
mente o poder material, o que não foi alcançado por seus contemporâneos.

Os ataques à poesia de Cesário Verde não vieram apenas de seus inadver-


tidos contemporâneos, mas também da imprensa. Em 29 de setembro de 1879,
o poema “Em Petiz” é publicado nas páginas do jornal lisboeta Diário de Notícias.
Este mesmo poema foi transcrito no Diário Ilustrado, que não perdeu tempo ao
publicar duras palavras dirigidas a Cesário Verde e à sua poesia:

Com o maior prazer a damos, publicando-lhe na íntegra o seu fo-


lhetim, onda cada verso é simplesmente um vomitório e onde em
cada recordação se revela de sobejo os maus instintos da criança
e presentemente o desamor do homem já feito pela desgraça e
pelas misérias alheias. O sr. Verde que é rico e quer ser poeta,
em vez de tirar da sua bolsa a esmola e da sua bandurra palavras
de conforto para os infelizes, arremessa-os esfarrapados e nus
às colunas dum jornal enchendo-os de sarcasmos e apupos!
(FIGUEIREDO, 1986, p. 124).

764
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Às provocações do Diário Ilustrado, Cesário Verde não se dobrou. Referindo-


se ao jornal, o poeta publica o poema “Ele”, dedicando-o, ironicamente, cujos ver-
sos satíricos desferem golpes não menos fatais ao seu desafeto, coroados estes
versos com um último arrebatador: “ – Nascera o Ilustrado – o vómito real!”

A desilusão literária sofrida por Cesário Verde, diante da reprovação da-


queles que deveriam incentivá-lo, também se fez sentir em cartas escritas a
amigos. Há um parágrafo emblemático de uma missiva remetida ao seu amigo,
António de Macedo Papança, o Conde de Monsaraz, para quem desabafa com so-
freguidão, ao se referir à publicação de uma de suas obras-primas, o poema “O
Sentimento dum Ocidental”, publicado por ocasião das comemorações do cente-
nário da morte de Camões, no Jornal de Viagens, no dia 10 de junho de 1880:

Ah! Quanto eu ia indisposto contra tudo e contra todos! Uma


poesia minha, recente, publicada numa folha bem impressa, lim-
pa, comemorativa de Camões, não obteve um olhar, um sorriso,
um desdém, uma observação! Ninguém escreveu, ninguém falou,
nem um noticiário, nem uma conversa comigo; ninguém disse
bem, ninguém disse mal!
[...] mas literariamente parece que Cesário Verde não existe.”
(FIGUEIREDO, 1986, p. 136).

Apesar das indiferenças dispensadas à poesia verdiana, a arte revolucioná-


ria do poeta seguiu em frente. E seguiu dando asas ao seu desejo de não morrer
nunca, de buscar e conseguir fazer o melhor no âmbito da arte poética, como bem
imortalizado, esse desejo, num dístico do poema “O Sentimento dum Ocidental”:
“Se eu não morresse, nunca! E eternamente / Buscasse e conseguisse a perfeição
das coisas.” (VERDE, 1999, p. 155).

Ao que nos parece, Cesário Verde deu conta de tornar-se imortal através
da sua obra literária, bem como construir um projeto de poesia que foi marcado
pelo esmero e pela extraordinária originalidade, nas palavras de Fernando Pessoa.
Aliás, outro aspecto revolucionário de seu projeto poético é a inovação no campo
temático. Temas até então considerados antilíricos passam a ser matéria-prima
por excelência espalhada pela caneta-pincel do poeta-pintor, nos seus mais dife-
rentes quadros sociais. O amor à vida, à arte de uma escrita individual, peculiar,
destinada à capacidade de compreensão de um espírito que se quer revolucioná-
rio, e por isso mesmo voltado para a coletividade, para a assimilação de problemas
comuns, com vistas à busca de soluções também comuns.

765
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Considerações finais

Assim, estamos diante de dois projetos literários – o de Antero de Quental


(marcado por uma reflexão metafísica e filosófica, como forma de resistência
em face de acontecimentos e posições que quase sempre procuraram ignorar
a real situação do povo português) e o de Cesário Verde (atravessado pelo rea-
lismo, o qual observa a sociedade e seus elementos pela ótica da objetividade,
desmistificando-a).

Mesmo estando cônscios da incompatibilidade de seus programas poéti-


cos com as normas vigentes, normas estas que procuraram privilegiar, nas pala-
vras de Rita Sousa Lopes (2000, p. 21), “as exigências de um público inculto, com a
hipocrisia social”, ainda assim Antero de Quental e Cesário Verde não abandona-
ram o entusiasmo de materializar criações poéticas que viessem a contribuir para
questionar as tradições portuguesas, em seus mais diferentes contextos, tradi-
ções estas cerceadoras da inserção de Portugal nos novos ventos do progresso e
desenvolvimento que há tempos se fazem sentir em terras europeias.

Referências

FIGUEIREDO, J. P.A Vida de Cesário Verde. Prefácio e Selecção de Poemas de


David Mourão-Ferreira. Lisboa: Editorial Presença, 1986.
FIGUEIREDO, J. P.A vida de Cesário Verde – a obra e o homem. Lisboa: Arcádia,
1981.
LOPES, R. S. Para uma leitura de Cesário Verde. Lisboa: Editorial Presença, 2000.
MARINHO, M. J. FERREIRA, A. (Orgs.). A Questão Coimbrã: Bom Senso e Bom
Gosto. Lisboa: Comunicação, 1989.
MOISÉS, M. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2013.
MOISÉS, M. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 2006.
MONTEIRO, A. C. Antero de Quental – Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Agir, 1960.
PESSOA, F. Obra Poética. Volume Único. Organização, Introdução e Notas, de
Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985.
QUENTAL, A. Antero de Quental. Introdução e seleção de textos de Ana Maria
Moog Rodrigues. Lisboa: Editorial Verbo, 1990.
QUENTAL, A. Odes Modernas. Lisboa: Ulmeiro-Livraria e Distribuição, 1983.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

SANTOS, V. V. Campo e cidade na poesia de Cesário Verde. Vila Velha, ES: Opção
Editora, 2010.
SANTOS, V. V. Tragicidade nas poéticas de Cesário Verde e Cruz e Sousa.
Campinas, SP: Pontes Editores, 2017.
SARAIVA, A. J., LOPES, Ó. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto
Editora, 2010.
SERRÃO, J. (org.). Cesário Verde – obra completa. Lisboa: Livros Horizonte, 1999.

767
A FRAGMENTAÇÃO DO INDIVÍDUO
NA MODERNIDADE EM ANGÚSTIA DE
GRACILIANO RAMOS E MEMÓRIAS DO
SUBSOLO DE FIÓDOR DOSTOIÉVSKI1

Ana Paula Valandro2


Wellington Ricardo Fioruci3

RESUMO: Esta pesquisa intenciona a relação entre os romances Angústia (1936)


de Graciliano Ramos e Memórias do Subsolo (1864) de Fiódor Dostoiévski. O refe-
rencial teórico adotado para a realização desta pesquisa comparatista baseou-se
nos estudos de Tania Franco Carvalhal, Eduardo F. Coutinho e Anselmo P. Alós.
Outros autores como Antônio Candido, Mikhail Bakhtin, Cristiane Arteaga e Otto
Maria Carpeaux foram importantes para o desenvolvimento do corpo de análise
da pesquisa. A metodologia do trabalho consistiu em analisar o contexto histórico
das obras e em que medida eles se diferenciam ou se relacionam. Outro ponto
investigado foi a estrutura dos romances e seus personagens principais, com o
objetivo de investigar as correspondências que eles exercem entre si e o quanto
representam a própria sociedade. Luís da Silva é um alagoano retirante e perdido
no mundo urbano, já o Homem do Subsolo representa um ex-funcionário públi-
co russo revoltado com a condição da vida moderna. Mesmo com tais diferenças,

1 Pesquisa derivada de Trabalho de Conclusão de Curso pela Universidade Tecnológica Federal


do Paraná (UTFPR) – Campus Pato Branco, apresentada no ano de 2019. Orientador: Prof. Dr.
Wellington Ricardo Fioruci.
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná – Campus Pato Branco.apvalandro@outlook.com
3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná – Campus Pato Branco. fioruci@utfpr.edu.br

768
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ambos refletem a fragmentação dos indivíduos de uma sociedade corrompida por


valores burgueses, na qual o dinheiro se multiplica ou se escasseia na medida em
que o ser humano perde sua identidade.

PALAVRAS-CHAVE: Memórias do subsolo; Angústia; Modernidade.

ABSTRACT: This research’s purpose is the relation between the novels Anguish (1936)
by Graciliano Ramos and Notes from Underground (1864) by Fyodor Dostoyevsky. The
theorical reference adopted in this comparative research is based on the works of Tania
Franco Carvalhal, Eduardo F. Coutinho and Anselmo P. Alós. Other authors such as
Antônio Candido, Mikhail Bakhtin, Cristiane Arteaga and Otto Maria Carpeaux were
important for the development of the analysis. This research’s methodology consisted
of analyzing the historical context of the novels and in what way they are different or
related. Another point of study was the structure of the novels and their main charac-
ters, in order to investigate the correspondences that they perform between themselves
and how much they represent the modern society. Luís da Silva lives in Alagoas and he
is a lost migrant in the urban world, the Russian Underground Man represents a former-
-public employee outraged by the modern life conditions. Even though they have some
differences, they both reflect the fragmented individuals from a corrupted society due
to bourgeois values in which the money multiplies or diminish as human being loses
their identity.

KEYWORDS: Notes from underground; Anguish; Modernity.

Introdução

Este trabalho tem como tema a aproximação entre as obras Angústia de


Graciliano Ramos e Memórias do Subsolo de Fiódor Dostoiévski e a relação que os
protagonistas estabelecem com o contexto da modernidade em sociedade. São
analisados, portanto, o contexto político e social do Brasil da década de 1930 e o
contexto russo da década de 1850 e 1860. A proposta é identificar em que medi-
da os personagens e as respectivas obras dialogam de forma crítica com a moder-
nidade relativa ao recorte histórico escolhido. Pretende-se também apresentar
os motivos pelos quais os personagens exibem personalidades fragmentadas, as-
sim como também suas angústias e/ou revoltas contra os meios urbanos e contra
a sociedade.

Esta pesquisa foi realizada com o intuito de compreender aspectos impor-


tantes da sociedade atual, maiormente suas frustrações e angústias, já que os

769
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

romances estudados retratam pontos pertinentes sobre o contexto histórico da


formação da modernidade, a qual nos impacta ainda nos dias atuais, mesmo que
um deles haja alcançado mais de um centenário e o outro tenha sido escrito há
cerca de oitenta anos. Esta pesquisa também favorecerá discussões acerca das
vantagens e desvantagens da modernidade no cenário mundial atual e como elas
intervêm nos comportamentos sociais e na individualidade dos seres. Ademais, os
romances trazem reflexões significativas sobre o comportamento individualista
das pessoas em uma sociedade frustrada e iludida, na qual as pessoas são obriga-
das a priorizar o dinheiro. As obras representam a angústia e também a revolta
que a alienação burguesa proporciona. Posto isso, a pesquisa trará conclusões
sobre as consequências de uma sociedade maquinal e capitalista, podendo, dessa
forma, proporcionar reflexões acerca do modus operandi social.

Outro objetivo desta pesquisa é comparar a relação entre a modernidade


ascendente no contexto histórico em que foram escritas e publicadas as obras es-
tudadas e o comportamento dos personagens, bem como suas reflexões a respei-
to do ser humano moderno. Para que isso seja possível, os objetivos específicos
correspondem a analisar, em essência, o contexto em redor da data de publicação
dos romances de modo a entender o processo de maturação do fenômeno mo-
derno; levantar evidências que confirmem a relação entre a modernidade e a cos-
movisão apresentada pelas personagens no livro; relacionar os conceitos apre-
sentados pelos teóricos e críticos dos autores e das obras com os protagonistas
analisados.

Graciliano leitor de Dostoiévski

Para que se possa iniciar a análise das relações, sejam elas de semelhan-
ças ou diferenças entre Angústia e Memórias do Subsolo, é importante que se faça
um apanhado específico do contexto histórico do Brasil e da Rússia nas décadas
em que cada obra foi escrita. Angústia é um romance brasileiro publicado no ano
de 1936, década na qual o país enfrentava a Era Vargas em seu auge totalitário.
A década de 1860, contexto de publicação de Memórias do Subsolo, foi uma épo-
ca decisiva na história russa. Tais acontecimentos serão brevemente explorados
nesta parte para que seja possível localizar e compreender o ser humano e o que
ele enfrentava na época em que as literaturas estudadas neste trabalho foram
produzidas.

770
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Na Rússia em 1855, Alexandre II ascendia ao trono, diversas mudanças


ocorriam no país e, por causa disso alguns fatores levaram o imperador a realizar
a Reforma Emancipadora:

A crescente industrialização e contratação de operários demons-


trava que o trabalho assalariado era mais produtivo que o dos
servos. Além disso a ‘ocidentalização’, para qual a Rússia se enca-
minhava, não ‘combinava’ com o regime escravista. Então, e não
por bondade, Alexandre II libertou os servos, diminuiu o tempo de
serviço militar (de 25 para 15 anos) e ‘democratizou’ a educação,
antes destinada só aos nobres. (ARTEAGA, 2005, p. 35).

Dessa forma, a Rússia libertou os servos em 1861, porém a fome aumen-


tou no país, já que os camponeses libertos ficaram sem terras. Essa Reforma foi
um marco muito importante para a literatura do país, visto que Dostoiévski irá
mencionar esse acontecimento várias vezes em diversos de seus livros. Em 1888,
o Brasil teve um processo de abolição da escravatura semelhante, em se tratando
dos motivos pelos quais ela aconteceu, isto é, por interesses econômicos. Logo
após a abolição da escravatura, em 1889 o Brasil passou a ser uma República, se-
gundo Arteaga (2005, p. 37), “os interesses da elite, como sempre, foram os mo-
tivadores dessa mudança [...] foi assim que, resumidamente, surgiu a República
brasileira: um país jovem, endividado e com um grande contingente de desempre-
gados e analfabetos.” Em vista disso, mesmo que os romances estudados neste
artigo tenham mais de setenta anos de diferença entre eles, o contexto dos países
nos quais eles foram lançados era de uma economia crescente, regime de servi-
dão recém abolido, mas também um cenário de fome e miséria. Um apontamento
relevante sobre o contexto brasileiro nesse momento de ascendência do capita-
lismo é de Carlos Nelson Coutinho:

O desenvolvimento do capitalismo, que se processava no inte-


rior da economia semifeudal e dependente, não apresentava as
mesmas características revolucionárias que tivera na Europa
Ocidental: ao invés de contribuir para romper as paredes daque-
le ‘pequeno mundo’, mais ainda as fortalecia, colaborando para
transformar o isolamento e a solidão passivos em individualismo
ativo e prático. (COUTINHO, 1978, p. 75).

O capitalismo no Brasil, portanto, se desenvolveu em cima de valores in-


dividuais que impediam a sociedade de evoluir como um todo, o crescimento
pessoal baseava-se e, baseia-se até hoje, no acúmulo de capital individual e não

771
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

no bem-estar social. O que levou a uma literatura produto dessa sociedade frag-
mentada de indivíduos ensimesmados, cujos exemplos são os romances aqui es-
tudados. A correspondência relacionada aos personagens das obras em questão é
citada por Antonio Candido:

Este conceito terrível é enunciado pelo narrador das Memórias


escritas num subterrâneo4, de Dostoievski, cuja invocação ajuda a
conhecer o protagonista de Angústia. Ambos são homens acua-
dos, tímidos, vaidosos, hipercríticos, fascinados pela vida e inca-
pazes de vivê-la, desenvolvendo um modo de ser de animal per-
seguido. Como tudo lhes parece voltado contra eles (e tudo neles
parece insatisfatório, mesquinho), sentem um desejo profundo
de aniquilamento, abjeção, catástrofe; uma espécie de surda as-
piração à animalidade, à inconsciência dos brutos, que libertaria
do mal de pensar e, ao mesmo tempo, levaria ao limite possível o
sentimento de auto-abjeção. (CANDIDO, 2006, p. 114-115).

O “conceito terrível” ao qual Candido se refere é o da autonegação e do


senso de culpa que Luís da Silva carrega por possuir dentro de si tanto a vontade
de adaptação à vida urbana e suas regras para a sobrevivência, quanto à sua revol-
ta contra essas normas e a saudade da fazenda do avô – época que a família tinha
poder – ocasionando sua incapacidade de viver no meio social. Ferreira explica a
criação do Homem do Subsolo:

Esses valores impregnaram a vida da recém-surgida burguesia,


que, adotando o ideal individualista, “optou” por isolar-se de seus
pares e afastou-se não só de seus vizinhos, mas também de suas
raízes e principalmente de si. É nessa vertente de solidão que
surgiu o homem do subsolo. (FERREIRA, 2011, p. 16).

Explicado isso, pode-se fazer conexão entre Luís da Silva e o Homem do


Subsolo, porque ambos são “abandonados” à própria sorte em um mundo com va-
lores individualistas. Algumas são as diferenças, porém: o primeiro é um retirante
moralista e saudoso da época que vivia na fazenda do avô, só que ao chegar ao
centro urbano, cai em dificuldades, acaba não conseguindo ascender economica-
mente e se frustra; já o segundo personagem, despreza a sociedade, apresenta in-
dícios de que não tem intenção em adaptar-se a ela, mas está sempre se colocando
em situações sociais e frustrando-se quando suas expectativas não são atendidas.

4 Outra tradução do título Memórias do Subsolo.

772
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Ao passar para uma análise da estrutura narrativa dos romances, deve-se


fazer considerações sobre os tempos modernos, para que as personagens e sua
ancoragem no contexto histórico encontrem-se. A modernidade, portanto, pode
ser percebida já no estilo de narrativa dos romances e algumas correspondências
podem ser encontradas entre Angústia e Memórias do Subsolo. Bakhtin menciona
o recurso de monólogo interior utilizado por Dostoiévski no primeiro capítulo do
romance:

Na ocasião, estava escrevendo uma novela em três capítulos, di-


ferentes entre si pelo conteúdo, mas com unidade interior. O pri-
meiro capítulo é um monólogo polêmico e filosófico, e o segundo
um episódio dramático, que prepara o desfecho catastrófico do
terceiro capítulo. (BAKHTIN, 2013, p. 57).

Esse tipo de organização fragmentada assemelha-se, ainda que não com-


pletamente, com a estrutura de Angústia. Assim como o romance de Graciliano é
composto por digressões, lembranças e fatos do presente, Memórias do Subsolo
também possui essa característica, porém dividida em capítulos que especificam
as digressões. Carlos Nelson Coutinho comenta a estrutura de Angústia:

Angústia é um romance tecnicamente ‘vanguardista’: além do uso


frequente do monólogo interior em sua forma da livre associação
de idéias, encontramos nele uma radical fragmentação do tempo,
o que aproxima das mais audaciosas experiências do romance da
decadência. [...] Graciliano busca precisamente, com o auxílio
da stream of consciousness, tornar imediatamente evidente uma
realidade concreta e essencial: o desequilíbrio e a dissolução
psíquica do personagem, reproduzindo com maior intensidade
dramática o seu desespero e a sua derrota socialmente condicio-
nados. Trata-se, portanto, do emprego de uma técnica visando a
acentuar a realidade para melhor narrá-la [...] em Angústia, o mo-
nólogo interior é sempre um instrumento do realismo, nunca um
fim em si. (COUTINHO, 1978, p. 94-103).

Angústia se difere dos outros livros de Graciliano porque nesse romance,


segundo Coutinho (1978) existe um tríplice tempo narrativo – a narração feita
no presente, as recordações do passado e da infância de Luís da Silva e o tem-
po subjetivo interior do personagem, o que leva o leitor a ser introduzido em um
universo estilhaçado. A estrutura formal, como aponta o pesquisador, tem como
base a problemática do herói e do mundo alienado e, para isso, Graciliano escolhe

773
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

englobar na narrativa as técnicas de vanguarda. Esse recurso permite que Luís da


Silva faça diversas digressões e transpareça ao leitor a vontade que ele tem de re-
memorar o passado pelo simples fato de não ter o desejo de estar no presente que
tanto o prejudica. Ou seja, a estrutura escolhida por Graciliano para a composição
de Angústia não é despropositada, visto que ela foi utilizada como mais um recur-
so para compor a cosmovisão de Luís da Silva, personagem principal do romance.
Sobre a construção dos personagens de Dostoiévski, Bakhtin expõe que:

A personagem não interessa a Dostoiévski como um fenômeno


da realidade, dotado de traços típicos-sociais e caracterológi-
co-individuais definidos e rígidos, como imagem determinada,
formada de traços monossignificativos e objetivos que, no seu
conjunto, respondem à pergunta: ‘quem é ele?’ A personagem in-
teressa a Dostoiévski enquanto ponto de vista específico sobre
o mundo e sobre si mesma, enquanto posição racional e valora-
tiva do homem em relação a si mesmo e à realidade circundante.
(BAKHTIN, 2013, p. 60).

Em vista disso, Dostoiévski cria suas personagens para que elas percebam
sua própria existência, nos limites de uma obra escrita e, em maioria das vezes,
elas refletem tais características, ideologias, aspectos de suas personalidades, an-
gústias e a sua forma de perceber o mundo e como ele as afeta através do diálogo
– importante ferramenta na literatura de Dostoiévski – com outros personagens
romanescos presentes nas obras. Além disso, essas personagens também evo-
luem no enredo a partir das peripécias que as envolvem.

Um Luís da Silva subterrâneo: os indícios do sujeito em crise

Após analisar as características de produção e a estrutura dos romances


aqui propostos, dos autores Graciliano Ramos e Fiódor Dostoiévski, bem como
explorar o contexto social e econômico dos países nos quais essas obras foram
escritas, na parte seguinte são analisados os aspectos de correlação e as discre-
pâncias entre os romances e seus personagens principais.

Antes que se faça um apanhado sobre o enredo de Angústia, é necessário


exemplificar sua estrutura, porque há uma narração cíclica, como apontado an-
teriormente; o narrador protagonista inicia seu relato falando que “levantei-me
há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente.”
(RAMOS, 1975, p. 7) e após apresentar ao leitor nos capítulos iniciais a sua pacata

774
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

vida e descrever todos os seus vizinhos, colegas de repartição, dentre outros in-
divíduos e fatos, ele inicia realmente a digressão em que contará os eventos que
desencadearam o acontecimento que o fez “levantar há cerca de trinta dias”. A
digressão começa dessa forma:

Em janeiro do ano passado estava eu uma tarde no quinta, dei-


tado numa espreguiçadeira, fumando e lendo um romance. O
romance não prestava, mas os meus negócios iam equilibrados,
os chefes me toleravam, as dívidas eram pequenas – e eu rosnava
com um bocejo tranquilo:
- Tem coisas boas este livro. (RAMOS, 1975, p. 31).

É assim que Luís da Silva inicia seu relato sobre o ano em que passou ob-
cecado pela vizinha, Marina Ramalho, que chegou a ser sua noiva, e por Julião
Tavares, seu inimigo. Ainda no início dos enredos há uma aproximação de Luís da
Silva e o Homem do Subsolo, quando eles se referem a si mesmos como animais
ou insetos. Luís da Silva nessa parte estava em casa formando palavras a partir
do nome de Marina, mas quando não consegue produzir novas combinações, ele
divaga entre desenhos e indivíduos:

Quando não consigo formar combinações novas, traço rabiscos


que representam uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher
e outros disparates. Penso em indivíduos e em objetos que não
têm relação com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor,
o secretário, políticos, sujeitos remediados que me desprezam
porque sou um pobre-diabo. Tipos bestas. Ficam dias inteiros fu-
xicando nos cafés e preguiçando indecentes. Quando avisto essa
cambada, encolho-me, colo-me às paredes como um rato assus-
tado. Como um rato, exatamente. Fujo dos negociantes que sol-
tam gargalhadas enormes, discutem política e putarias. (RAMOS,
1975, p. 8).

Com esse trecho é possível perceber que a animalização acontece porque


Luís da Silva está falando sobre homens que ele nunca vai se tornar e, em razão
disso, acaba os depreciando os chamando de “tipos bestas” ou de “fuxiqueiros”
mas, ainda assim, na hierarquia da sociedade urbana capitalista ele é um “pobre-
-diabo” e um “rato assustado” em comparação com esses tipos. Ferreira comenta
o fato de Luís comparar-se a um rato:

775
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Embora despreze os homens que o percebem tão inferiormente


e pareça perceber certa superioridade própria [...] prefere enco-
lher-se diante deles, pois também acredita ser um pobre-diabo.
Complexado e infeliz, o medíocre funcionário público foge da
vida e das pessoas como um rato e não procura mudar nada em
sua rotina, que consiste em trabalhar, ler romances que ele des-
gosta [...] e negar-se qualquer forma de satisfação. (FERREIRA,
2011, p. 43).

No romance de Dostoiévski também é notável a comparação animalesca


que o Homem do Subsolo também faz consigo mesmo:

Tenho agora vontade de vos contar, senhores, queirais ouvi-lo


ou não, por que não consegui tornar-me sequer um inseto. Vou
dizer-vos solenemente que, muitas vezes, quis tornar-me um
inseto. Mas nem disso fui digno. Juro-vos, senhores, que uma
consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autênti-
ca, completa. Para o uso cotidiano, seria mais do que suficiente a
consciência humana comum, isto é, a metade, um quarto a menos
da porção que cabe a um homem instruído do nosso infeliz século
dezenove. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 18).

Aqui há uma diferença entre Luís e o Homem do Subsolo, pois o primeiro


compara-se de fato a um bicho, mas o segundo informa ao leitor que não passou
nem de inseto por ser “indigno” disso, ou seja, ele se sente um ser tão desprezível
que não consegue nem chegar à classe de inseto. Outra informação que o narra-
dor menciona é que uma “consciência perspicaz” é uma doença e que o homem
necessitaria de menos consciência do que já tem no século XIX, porque para ser
um “homem direto e de ação”5 ele não necessitaria pensar, somente aceitar ma-
quinalmente o que lhe é imposto pelo sistema em que vive, coisa que o Homem
do Subsolo não conseguiria suportar e, por isso, isola-se “subterraneamente”. O
isolamento é um ponto de conexão entre Luís da Silva e o homem subterrâneo,
apesar de o primeiro viver no mundo do “sobressolo”6 e o último não, ambos se
sentem isolados; segundo Arteaga (2011, p. 71), “é justamente essa solidão do
indivíduo que faz com que a modernidade represente um novo tipo de herói,

5 Termo utilizado pelo narrador de Memórias do Subsolo para classificar homens resignados à vida
burguesa e seus valores e que são por ele considerados estúpidos.
6 Termo utilizado por Gabriela Schwingel Ferreira para designar indivíduos que não vivem no
“subterrâneo”, também chamados pelo narrador de Memórias do Subsolo de “homens diretos e de
ação”.

776
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

denominado por Dostoiévski de ‘homem do subsolo’ [...] a modernidade reforçou


a individualidade e a solidão. Com isso, a reflexão e os anseios proliferam-se.”

Diante desses protagonistas que não são dotados de traquejo social, a aná-
lise parte para o estudo de seus antagonistas. Eles exercem importante papel no
enredo dos dois romances, porque representam o que os protagonistas mais de-
testam e desprezam na sociedade moderna. No caso de Angústia, o inimigo de Luís
da Silva é Julião Tavares, um homem capitalista que herdou os negócios da loja de
secos e molhados de seu pai. Julião Tavares era: “gordo, bem vestido, perfumado,
falador, tão falador que ficávamos enjoados com as lorotas dele. Não podíamos
ser amigos”. (RAMOS, 1975, p. 46-47).

Após gastar muito dinheiro comprando enxoval, jóias e roupas para


Marina, sua vizinha e noiva, Luís da Silva fica endividado e sente que deve apres-
sar o seu casamento. Porém Julião, na mesma época, começa aproximar-se da
casa de Marina, tornando-se uma obsessão para Luís da Silva na medida em que
este percebe seus planos sendo destruídos por causa do outro. Luís da Silva es-
tava sendo novamente massacrado pelos ideais dos grandes burgueses – sendo
a primeira vez quando se mudou para a cidade e percebeu que não conseguiria
adquirir o espaço que nela sonhava e, mais tarde, por um indivíduo que personifi-
cava essa classe inteira. Sem avisar Luís de que o noivado tinha acabado, Marina
começa a namorar Julião Tavares; está claro para o protagonista que ela somente
visa ao conforto que o casamento com Julião trará para ela em termos econômi-
cos. Sua única solução era liquidar com Julião, segundo Coutinho (1978, p. 98):
“o assassínio lhe parece a única maneira de afirmar uma liberdade sempre dese-
jada e jamais alcançada, a única forma autêntica possível de realização humana”.
Acontecimento esse que será abordado posteriormente.

Outro ponto que irá culminar na vingança de Luís da Silva contra Julião
Tavares é a sua postura com as mulheres, principalmente em relação a Marina.
Diante de seu poderio econômico, Julião é visto como uma celebridade pelos mo-
radores de sua cidade. Luís, no entanto, parece ser o único a perceber o verdadei-
ro caráter de Julião:

Com o jornal enrolado sobre o mármore, a mão gorda e curta dis-


tribuindo acenos, o sorriso nos beiços grossos, derretia-se para
as moças que passavam na calçada. Por detrás das linhas brancas
do espelho, a cara redonda se afogueava, as bochechas moles in-
chavam, o olho azulado queria escapulir-se da órbita e meter-se
no seio das mulheres. (RAMOS, 1975, p. 147).

777
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Muitas vezes ao longo da narrativa, Luís da Silva vai comparar Julião a figu-
ra de um porco: “a voz precipitada de Marina era ininteligível; a de Julião Tavares
percebia-se distintamente e causava-me arrepios: fazia-me pensar em gordura,
em brancura, em moleza em qualquer coisa semelhante a toicinho cru.” (RAMOS,
1975, p. 90). Julião era um tipo espaçoso e “derramado”, segundo o narrador de
Angústia, sua aparência gorda demonstra a desigualdade social presente no ro-
mance, enquanto ele consegue ter fartura em sua mesa suficiente para engordar,
Luís continua ganhando um salário que mal lhe serve para a sobrevivência.

As desconfianças sobre o abandono de Marina por Julião iniciaram depois


que as visitas à vizinha escassearam. Em uma manhã Luís estava no banheiro e
escutou Marina tomar banho, o qual foi diferente dos que ele estava acostumado
a escutar, visto que a parede que dividia o banheiro dos vizinhos era estreita. Ele
percebeu que em Marina não havia mais aquela vaidade de outrora: “Naquele dia
tudo se tornou claro, a suspeita que tive na rua se confirmou. Marina entrou no
banheiro e esteve uns minutos em silêncio, despindo-se com lentidão. Os movi-
mentos dela eram tão vagarosos que eu os percebia a custo.” (RAMOS, 1975, p.
128). A suspeita que se confirmava era a gravidez de Marina. O ódio de Luís da
Silva por Julião Tavares aumentou ainda mais porque isso significava que, ao sa-
ber da gravidez, ele a abandonara.

O Homem do Subsolo tem como antagonista um oficial7 que o “humilha” em


uma taverna:

Logo de início, um oficial teve um atrito comigo. Eu estava em pé


junto à mesa de bilhar, estorvava a passagem por inadvertência,
e ele precisou passar; tomou-me então pelos ombros e, silencio-
samente, sem qualquer aviso prévio ou explicação, tirou-me do
lugar em que estava, colocou-me em outro e passou por ali, como
se nem sequer me notasse. Até pancadas eu teria perdoado, mas
de modo nenhum poderia perdoar que ele me mudasse de lu-
gar e, positivamente, não me notasse. (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.
62-63).

O protagonista, ultrajado com a “humilhação” de não ter sido percebido na


taverna e movido de lugar pelo oficial como se não valesse nada, acaba planejando
uma vingança. Percebe-se em um primeiro momento de seu plano, que ele passa a
seguir o oficial pelas ruas da Rússia e cuidar suas maneiras:
7 Menção ao inimigo do Homem do Subsolo no segundo capítulo do romance, esse oficial não pos-
sui um nome, portanto será chamado pela função que exerce.

778
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Embora também se desviasse ante os generais e outras pessoas


de alta posição, e também se esgueirasse por entre eles como
uma enguia, quando se tratava de pessoas da nossa espécie, ou
mesmo um pouco melhor, ele simplesmente as pisava; ia na sua
direção como se tivesse diante de si um espaço vazio, e jamais
cedia caminho. Olhando-o eu me embriagava com a minha raiva,
mas... cheio de raiva, cada vez me desviava dele. (DOSTOIÉVSKI,
2009, p. 66).

Nesse trecho é notável que o protagonista percebe a hierarquia da socie-


dade: um oficial podia ceder espaço tranquilamente para outros oficiais e gene-
rais, porque estavam na mesma posição que ele ou acima, porém desviar-se de
pessoas “de nossa espécie” como propõe o protagonista, seria uma humilhação
a ele, fato este que deixa o Homem do Subsolo enraivecido, mas não o suficiente
para não desviar dele nos encontros pela avenida. Até que, por conta desse fato,
ele surge com a ideia de vingança, como exposto nesse trecho do livro: “e que tal,
pensei, que tal se me encontrar com ele e... não ceder passagem? Não ceder passa-
gem intencionalmente, ainda que seja preciso empurrá-lo, hem, que acontecerá?”
(DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 67). Dito isso, o homem inicia o planejamento para tal
situação.

Percebe-se claramente na narrativa que a vingança se tratava somente de


um momento de choque “ombro a ombro” na avenida com o oficial, mas, ainda
assim, o personagem despende tempo e dinheiro comprando uma roupa melhor
– caso o fato aparecesse nos jornais – para algo tão insignificante devido a outro
acontecimento insignificante na taverna. Na imaginação do Homem do Subsolo
era uma afronta que o oficial o tivesse posto de lado para abrir passagem na ta-
verna. Porém, para o oficial, esse momento foi tão comum e irrisório que ele mal
se lembra que havia acontecido, como será comprovado posteriormente. Logo,
a contradição que o homem subterrâneo causa é que ele deve considerar-se im-
portante o suficiente para acreditar que o oficial lembra do acontecimento da
taverna, mas que também seja tão desprezível a ponto de criar dívidas, somente
para fazer-se notar para uma pessoa que, além de não lembrar de sua existência,
considera pessoas de sua classe insignificantes.

A vingança de ambos os protagonistas acontece, porém não traz o resul-


tado esperado. Luís da Silva, de uma forma muito mais trágica que o Homem do
Subsolo, assassina seu adversário capitalista:

779
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silenciosos como


os das onças de José Baía, estava ao pé de Julião Tavares. Tudo
isto é absurdo, é incrível, mas realizou-se naturalmente. A cor-
da enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas
afastaram-se. Houve uma luta rápida, um gorgolejo, braços a
debater-se. Exatamente o que eu havia imaginado. O corpo de
Julião Tavares ora tombava para frente e ameaçava arrastar-me,
ora se inclinava para trás e queria cair em cima de mim. A obses-
são ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O homenzinho da
repartição e do jornal não era eu. Esta convicção afastou qual-
quer receio de perigo. Uma alegria enorme encheu-me. Pessoas
que aparecessem ali seriam figurinhas insignificantes, todos os
moradores da cidade eram figurinhas insignificantes. Tinham me
enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que
só me podia mexer pela vontade dos outros. (RAMOS, 1975, p.
182-183).

Nesse momento, Luís da Silva experimenta um ápice de poder, o qual ele


nunca havia sentido antes, pois ele até chega mencionar que os habitantes da ci-
dade haviam feito ele acreditar que nunca pudera mexer-se sem seus comandos.
Após desacordar Julião, com muito esforço ele o pendura enforcado em uma ár-
vore, completando seu assassinato. Logo depois, porém, Luís da Silva começa a
delirar de fome e febre, ao chegar em casa somente conseguiu lavar-se do sangue
e da terra e não se levantou da cama por duas semanas, quando acaba o relato. Já
a vingança do Homem do Subsolo se realiza assim:

De chofre, a três passos do meu inimigo, inesperadamente me


decidi, franzi o sobrolho e... chocamo-nos com força, ombro a
ombro! Não cedi nem um vierchók e passei por ele, absolutamen-
te de igual para igual! Ele não se voltou sequer e fingiu não ter
visto nada; mas apenas fingiu, estou certo. [...] O oficial foi depois
transferido não sei para onde, já faz uns quatorze anos que não o
vejo. Por onde andará agora o meu caro amigo? Em quem estará
pisando? (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 69-70).

Antes do encontro dos personagens, tanto o leitor quanto o protagonista


estão esperando que se trate de algo grandioso e tenha alta repercussão nas mí-
dias da cidade devido ao cenário de preparo e expectativa criado através da nar-
ração. Porém, quando de fato acontece, o oficial nem sequer deixa-se abalar pelo
choque que leva do Homem do Subsolo. Esse, no entanto, vai para casa sentin-
do-se vitorioso, mas, como explicado ao final do trecho, essa sensação de vitória

780
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

termina cedo, porque ao perceber que não houve nenhuma mudança em sua vida,
ou na realidade em que vivia após essa “vingança”, ele cai definitivamente ao sub-
solo, desiludido.

Após alguns dias em casa paranoico sobre o assassinato, Luís da Silva adoe-
ce e passa semanas na cama, sem trabalhar. Nessa cama ele visualiza diversas alu-
cinações em relação a seu passado, às suas leituras, aos seus amigos e aos fatos
que haviam acontecido nos últimos anos até a morte de Julião e, dessa forma, aca-
ba o romance. É somente voltando ao início da narrativa onde o personagem men-
ciona haver se levantado há cerca de trinta dias que o leitor entenderá que todos
os seus esforços haviam sido em vão. Salvo suas diferenças, tanto Luís da Silva
quanto o Homem do Subsolo depositaram suas angústias perante uma hierarquia
social em apenas um representante dela e, por motivos evidentes, não obtiveram
sucesso.

Considerações finais

Por muitas metodologias passou a teoria da Literatura Comparada para


que ela chegasse ao que é hoje, se essa análise comparativa entre Graciliano e
Dostoiévski tivesse seguido as propostas discriminativas antigas não seria possí-
vel um diálogo igualitário entre esses autores, um deles obrigatoriamente deveria
ser classificado como periférico ao outro e, automaticamente, essa pesquisa esta-
ria fadada a uma forçada e falsa relação de dependência de um autor sobre o ou-
tro. Foi com o avanço de novas metodologias teóricas que proporcionassem uma
investigação justa e inclusiva entre literaturas que essa análise pôde ser realizada
com a devida imparcialidade.

Por conta disso, foram analisados os romances Angústia e Memórias do


Subsolo de forma que eles dialogassem entre si, seja através de seus protagonis-
tas ou de seu enredo. Os romances foram associados de modo que um ampliasse
o significado do outro mutuamente. Foi possível concluir que existem algumas
discrepâncias entre as narrativas e seus personagens, mas que essas diferenças
somente enriquecem a construção da análise feita neste artigo. Portanto, os obje-
tivos da pesquisa foram concluídos, porque o contexto histórico recortado e sua
crítica foram percebidos nos trechos analisados dos romances, bem como seu im-
pacto na literatura dos autores aqui estudados; ficou comprovado que os prota-
gonistas e seu modo de agir e pensar refletiam uma sociedade fragmentada pela
ascensão do capitalismo e dos valores burgueses através da análise dos romances

781
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

e embasamento nos teóricos e críticos citados. Foi possível também elucidar as


vantagens e desvantagens do fenômeno moderno e suas consequências para as
relações sociais e os indivíduos. A angústia, a revolta e as paranoias dos protago-
nistas também foram explicadas através dos recortes temporais utilizados e da
explicitação dos trechos das obras.

Por fim, conclui-se que Luís da Silva e o Homem do Subsolo representam


todo um sentimento da sociedade moderna, que é a sensação de não pertenci-
mento e vontade de mudança. Vive-se na ilusão de que é possível a ascensão e que
o acúmulo de bens trará felicidade, mas durante o processo de tentativa de reali-
zação desses objetivos o ser humano acaba perdendo justamente o que o mantém
ativo, que é sua própria identidade. O crescimento econômico, em um mundo su-
bordinado ao capital, requer uma atitude egoísta e ensimesmada que, como apon-
tado nos romances, leva o ser humano à frustração e ao ódio porque fica claro que
o “topo” só pode ser alcançado por uma ínfima porcentagem da população.

Referências

ARTEAGA, C. G.  A alma russa de um nordestino: Graciliano Ramos leitor de


Dostoiévski. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada) – Instituto de
Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2005. 91 p.
BAKHTIN, M.. Problemas da poética de Dostoievski.Trad: Paulo Bezerra. 5 ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
CANDIDO, A..  Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Editora 34,
2006.
COUTINHO, C. N. G. R. In: BRAYNER, Sônia. Coleção Fortuna Crítica 2 Graciliano
Ramos. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978 p. 73-122.
DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do Subsolo.Trad. Boris Schnaiderman. 6 ed. São
Paulo: Editora 34, 2009.
FERREIRA, G. S.. Um subterrâneo sertanejo: o homem do subsolo e o homem
da angústia em Graciliano Ramos. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação),
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, 60 p.
RAMOS, G.. Angústia. 15 ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, Martins, 1975.

782
PARTE 4

ESTUDOS
INTERDISCIPLINARES E
DE TRADUÇÃO
A INCLUSÃO ATRAVÉS DO USO DE
MÍDIAS DIGITAIS: CONSCIÊNCIA
FONOLÓGICA E DIFICULDADES EM
LEITURA1

Chris Royes Schardosim2


Eliane Costa Kretzer3

RESUMO: Pensando na necessidade de alternativas para contribuir com o desen-


volvimento da competência leitora (ZORZI, 2008; 2010) em indivíduos com difi-
culdades de aprendizagem, apresentamos parte de nossa pesquisa de Mestrado
em Educação. Situada no campo teórico-metodológico da aprendizagem, a pes-
quisa tem foco na leitura, numa tentativa de perceber a relação da utilização de
mídias digitais na melhora da fluência na leitura. Propõe-se a estimulação dos
processos e habilidades de consciência fonológica (CAPOVILLA; CAPOVILLA,
2004) através das mídias digitais. A metodologia utilizada é pesquisa experimen-
tal (PRODANOV; FREITAS, 2013) para realizar intervenção psicopedagógica de
remediação fonológica, com grupo controle e experimental, sendo que o expe-
rimental terá o apoio das mídias digitais e o outro não. Espera-se que o uso das
1 Relato de experiência da pesquisa de dissertação realizada no Mestrado Acadêmico em Educação
do Instituto Federal Catarinense (IFC) intitulada: “A contribuição dos recursos tecnológicos di-
gitais no desenvolvimento da fluência leitora na intervenção psicopedagógica em indivíduos
com dificuldade de aprendizagem na perspectiva inclusiva.”. Pesquisa aprovada no Comitê de
Ética com o Parecer n. 3.637.819. Pesquisa integrante do Projeto de Pesquisa: Estratégias para
a compreensão leitora: processos formativos e educativos e do Grupo de Pesquisa: Processos
Educativos.
2 Instituto Federal Catarinense. chris.schardosim@ifc.edu.br
3 Instituto Federal Catarinense. nany.costak@gmail.com

784
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

mídias digitais (MARTINO, 2015) como mediadoras do processo de aprendiza-


gem da leitura seja de grande valia para a estimulação dos processos cognitivos
(DAHEANE, 2012) inerentes às tarefas de leitura, para que estas sejam realizadas
de maneira mais lúdica e interativa (MORAN, 2013), possibilitando a formação
cidadã e a inclusão.

PALAVRAS-CHAVE: Inclusão; Leitura; Mídias Digitais.

ABSTRACT: Thinking about the need for alternatives to contribute to the development
of reading competence (ZORZI, 2008; 2010) in individuals with learning difficulties,
we present part of the Master’s research in Education. Situated in the theoretical-me-
thodological field of learning, the research focuses on reading, in an attempt to unders-
tand the relationship between the use of digital media in improving reading fluency. It
is proposed to stimulate the phonological awareness processes and skills (CAPOVILLA;
CAPOVILLA, 2004) through digital media. The methodology used is the experimental
research (PRODANOV; FREITAS, 2013) to perform psycho-pedagogical intervention
of phonological remediation, with a control and experimental group, the experimental
group being supported by digital media and the other group not. It is expected that the
use of digital media (MARTINO, 2015) as mediator of the reading learning process will
be of great value for the stimulation of cognitive processes (DAHEANE, 2012) inherent
in reading tasks, so that these would be carried out in a more playful and interactive
(MORAN, 2013), enabling citizen training and inclusion.

KEYWORDS: Inclusion; Reading; Digital Media.

Introdução

Este texto é fruto do trabalho apresentado no Seminário Interdisciplinar


Língua, Literatura e Ensino, organizado pela Universidade Tecnológica Federal
do Paraná (UTFPR) – Pato Branco, mais especificamente o Departamento
Acadêmico de Letras, do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em
Letras. O trabalho foi apresentado no GT Inclusão, na modalidade de comunica-
ção oral. Ressaltamos que o Seminário foi um evento totalmente online, uma mo-
dalidade que atualmente com a situação de Pandemia da COVID-19 que estamos
enfrentando vem se tornando uma constante.

Apresentamos neste evento uma parte da pesquisa de dissertação desen-


volvida desde 2019 no Mestrado Acadêmico em Educação pelo Instituto Federal
Catarinense (IFC) Campus Camboriú. O trabalho faz parte do projeto de pesquisa:

785
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Estratégias para compreensão leitora: processos formativos e educativos, e as


pesquisadoras estão vinculadas ao grupo de pesquisa: Processos educativos.

Neste relato de experiência o intuito foi refletir sobre como podemos co-
laborar com a inclusão, através da utilização de mídias digitais, para estimular os
processos de consciência fonológica em indivíduos com dificuldades de aprendi-
zagem na leitura. Entendemos, numa perspectiva inclusiva, que o trabalho com
mídias digitais pode ter grande aplicabilidade para auxiliar indivíduos com dificul-
dades na aprendizagem.

A inclusão perpassa o domínio das habilidades de leitura e escrita, princi-


palmente, no que tange aos indivíduos que apresentam dificuldades nestas habi-
lidades na fase escolar. Partimos do princípio de que o indivíduo precisa ler com
autonomia, ou seja, que compreenda o que lê e possa discernir e inferir sobre a
sua atuação como cidadão. Um leitor não apenas decodifica, mas entende o que
lê, assim pode acessar os mais diversos conhecimentos.

A inserção de recursos tecnológicos digitais para a estimulação das habili-


dades iniciais envolvidas nos processos de leitura, como a consciência fonológica,
podem representar mais uma maneira de flexibilizar e dinamizar a aprendizagem
com vistas à inclusão. Por isso, entendemos que a pesquisa nesta área se faz ne-
cessária e importante.

Base teórica

Nossa base teórica parte de hipóteses e questionamentos levantados pela


nossa pesquisa que perpassam os conceitos relacionados à utilização de recursos
tecnológicos digitais (MORAN, 2013) na intervenção psicopedagógica (WEISS,
2004) em indivíduos com dificuldades de aprendizagem na leitura.

Como nos coloca Weiss (2004), o trabalho psicopedagógico entende o in-


divíduo como em constante processo de aprendizagem. Sob esta perspectiva, a
intervenção psicopedagógica tenta compreender como o indivíduo aprende e por
quais meios e estratégias a aprendizagem se dá. Com isso, a aprendizagem é en-
tendida “como um processo de construção que se dá na interação permanente do
sujeito com o meio que o cerca.” (WEISS, 2004, p. 26, grifos do original). Todo este
processo, que envolve o olhar atento da psicopedagogia, é percebido sempre a
partir do indivíduo e por ele mesmo, nas suas características e caminhos de apren-
dizagem. Sendo que o indivíduo inicia seu caminho de aprendizagem muito antes

786
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

de entrar na escola. É fundamental considerar no processo de aprendizagem a


história do indivíduo que aprende. Assim, para além de aprender a ler é preciso
ter contato e interagir com diversificadas formas de leitura através de uma media-
ção que se projete para ampliar e aprimorar. Porém, faz-se necessário aprender
a ler e compreender o que se lê e para isso é preciso um ensino eficaz da leitura.

Ao se deparar com indivíduos com dificuldades de aprendizagem na leitura,


o que se dá na fase escolar, é preciso propor intervenções que possam auxiliar o
desenvolvimento destas habilidades, pois compreendemos que através da leitura
eficiente o indivíduo pode acessar o conhecimento de forma autônoma.

Uma das habilidades que envolvem a leitura se dá nos processos de cons-


ciência fonológica, na qual o indivíduo trabalha conscientemente com a relação
fonema e grafema. Conforme nos aponta Capovilla e Capovilla (2004, p. 1) a cons-
ciência fonológica consiste nas

[...] habilidades de lidar intencionalmente com as propriedades


fonológicas da fala, como por exemplo julgar se sons da fala se
assemelham ou não, ou dizer como fica uma dada sequência de
sons da fala quando adicionadas ou removidas determinadas
partes.

É preciso identificar os processos falhos relacionados à consciência


fonológica e propor atividades e procedimentos que permitam que o indivíduo
desenvolva tais habilidades. Assim, o indivíduo pode acessar uma leitura fluente
e atingir a compreensão leitora. Uma das condições, na qual compreendemos
que seja primordial para que o indivíduo tenha autonomia como cidadão.
Consequentemente, com isso, haja melhora em todo o desenvolvimento de seu
processo de aprendizagem escolar.

Portanto, se faz necessário clarificar o ponto do qual partimos na concei-


tuação do que entendemos ser uma leitura fluente e sobre os aspectos da com-
preensão leitora. Como leitura fluente, tomamos para esta pesquisa o conceito
de leitura competente, na qual a leitura atinge tanto a eficiência na rota fonológi-
ca inicialmente com os processos de decodificação, como na rota lexical na qual
o indivíduo desenvolve o reconhecimento rápido das palavras, consegue ter um
repertório e memória de palavras (CAPOVILLA; CAPOVILLA, 2004; DAHAENE,
2012). O que também é explicitado por Zorzi (2008, p. 49) que a fluência de leitu-
ra pressupõe que

787
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Na medida em que a criança ganha experiência nestes procedi-


mentos de decodificação, ela pode também começar a reconhe-
cer aquelas partes de palavras mais frequentes, de modo que a
leitura começa a se tornar mais rápida e mais fluente.

Com o desenvolvimento de uma leitura fluente que proporciona ao leitor


uma leitura acurada, com entonação e suavidade, podemos inferir, segundo Zorzi
(2010), que a eficiência na leitura dá condições de o leitor compreender o que
leu, conseguindo atribuir significado, com uma consequente compreensão leitora.
Ainda podemos dizer, com base nos estudos de Schardosim (2015), que ler signifi-
ca compreender. Portanto, o indivíduo através da leitura competente pode não só
compreender explicitamente o que está escrito, mas inferir nas entrelinhas e ter a
possibilidade de ler o mundo (FREIRE, 2002).

Assim, Dahaene (2012, p. 236) coloca sobre o ensino da leitura, muito bri-
lhantemente após anos de estudo e pesquisa sobre os processos de leitura, que

O alvo do ensino da leitura é, pois, claro: é preciso colocar essa


hierarquia no cérebro, a fim de que a criança possa reconhecer
as letras e os grafemas e os transformar facilmente em imagens
acústicas de sua língua. Todos os outros aspectos essenciais do
sistema escrito – a aprendizagem da ortografia, o enriquecimen-
to do vocabulário, as nuances do sentido, o prazer do estilo – de-
pendem disso diretamente.

Não se trata de desmerecer a escrita ou sobrepor a leitura, mas de que de


um ponto de vista científico da neurociência os demais dependem de uma leitura
eficaz. A leitura efetiva o sentido para o vocabulário, para aspectos semânticos
das palavras e para uma comunicação e compreensão claras. Outro fato impor-
tante colocado tanto pela neurociência como pela psicolinguística é a necessida-
de de um ensino contextualizado e que possibilite a aprendizagem de todos.

A professora, psicolinguista e pesquisadora, Leonor Scliar-Cabral destaca


sobre a aprendizagem da leitura e da escrita que

Aprender a ler e escrever depende de muitos fatores tais como


condições reais para que as crianças se tornem motivadas, ex-
periência funcional prévia com material impresso, exposição a
contextos narrativos e um contexto de ensino-aprendizagem in-
teligente, onde professores e crianças possam em conjunto cons-
truir o letramento. (SCLIAR-CABRAL, 2003b, p. 41).

788
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Assim, entende-se a importância de trazer a leitura para todos os âmbitos


da vida do indivíduo, seja no seu dia a dia em atividades rotineiras e automáticas,
seja no aspecto cultural ou da aquisição de conhecimentos. A leitura abre possibi-
lidades para se compreender as funções sociais que se exerce em uma sociedade.
Ela abre caminhos para a discussão e a reflexão. No entanto, todos estes aspec-
tos sociais da leitura ocorrem se o indivíduo dispuser de uma leitura eficiente que
possibilite a compreensão do que se lê, ou seja, uma leitura fluente.

Bem, tendo todos esses conceitos definidos e partindo dos pressupostos


sobre os processos cognitivos envolvidos na aprendizagem da leitura, conforme
já consolidados nos estudos de Dahaene (2012), Capovilla e Capovilla (2004) e
Zorzi (2008; 2010) sobre a importância das habilidades de consciência fonológi-
ca, trazemos a intervenção com a utilização de recursos tecnológicos digitais.

O que se diferencia, nesta pesquisa, é que propomos que estas atividades


de remediação fonológica sejam desenvolvidas com o auxílio de recursos tecnoló-
gicos digitais (MARTINO, 2015). A utilização de mídias digitais no espaço psicope-
dagógico é recente e gera desafios. Porém, as tecnologias digitais podem superar
barreiras e possibilitar a inclusão do indivíduo nas mais diversas atividades. O uso
desses recursos digitais pode enriquecer o processo de aprendizagem da leitura,
além de auxiliar para a superação de possíveis lacunas nas habilidades de cons-
ciência fonológica. Todo e qualquer instrumento tecnológico, ou não, necessita
ser utilizado de forma adequada, de modo contextualizado, para que tenha inci-
dência positiva.

Na questão da aprendizagem mediada por recursos tecnológicos digitais


e principalmente nos casos de indivíduos com dificuldades de aprendizagem, os
quais sofrem com as barreiras e impedimentos relacionados as suas dificuldades
com a leitura, podemos dizer que as tecnologias abrem horizontes de acesso e
consequente inclusão. Conforme nos pontuam Kretzer e Vieira (2019, p. 47)

[...] a aprendizagem mediada pelo uso das mídias digitais busca,


sobretudo, uma construção social e política dos sujeitos envol-
vidos neste processo uma vez que tais recursos podem romper
barreiras físicas, já que emergem de uma relação entre socieda-
de e cultura digital, potencializando as trocas entre os indivíduos
e os integrando.

789
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Por acreditarmos na relação entre aprendizagem, inclusão e suas possibili-


dades através da utilização de recursos tecnológicos, é que propomos a interven-
ção psicopedagógica em indivíduos com dificuldades na leitura.

Caminho metodológico

A pesquisa traz uma abordagem experimental (PRODANOV; FREITAS,


2013) pautada na qual se determina um objeto de estudo, no caso o efeito das
mídias digitais na competência leitora. Tendo como campo teórico-metodológico
o da aprendizagem com foco na leitura expressiva (SCHARDOSIM, 2015).

Foram propostas intervenções psicopedagógicas em remediação fonológi-


ca através da utilização de mídias digitais para a melhora da fluência na leitura em
indivíduos com dificuldades de aprendizagem. Os indivíduos foram separados em
dois grupos Controle e Experimental. Os grupos foram compostos por indivíduos
na faixa etária entre 7 e 12 anos aproximadamente, todos estudantes de escola
pública e com dificuldades na leitura.

A pesquisa destaca uma análise qualitativa dos dados das observações


da aprendizagem a partir das intervenções com e sem o uso das mídias digitais
(MD) dos indivíduos do grupo controle (GC) em relação aos indivíduos do grupo
experimental (GE). A análise qualitativa pretende verificar o progresso na apren-
dizagem da habilidade de leitura do indivíduo durante as sessões de intervenção,
estabelecendo relações entre as suas dificuldades, os objetivos da atividade e os
recursos tecnológicos digitais utilizados.

Se propõe uma análise quantitativa dos dados dos escores dos testes de
leitura (KRETZER; VIEIRA, 2019), a partir das intervenções com e sem o uso das
mídias digitais (MD) dos indivíduos do grupo controle (GC) em relação aos indiví-
duos do grupo experimental (GE). Com dados quantitativos do nível de fluência
leitora dos indivíduos dos dois grupos pretende-se complementar a pesquisa a
fim de que esses possam embasar futuras pesquisas, bem como possibilitar a am-
pliação do conhecimento científico na área da leitura.

Finalmente, vale mencionar que esta pesquisa se constitui em um proces-


so dinâmico, no sentido de interação e de construção de propostas de atividades
psicopedagógicas mediadas por recursos tecnológicos digitais, levando em con-
sideração as observações psicopedagógicas do comportamento e progresso da
aprendizagem da leitura dos indivíduos participantes com fins para colaborar na

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

qualidade dos processos de aprendizagem e na flexibilização destas para todos,


propondo a inclusão digital e social, com vistas ao desenvolvimento integral do
ser humano.

Resultados esperados

Espera-se que o uso das mídias digitais (MARTINO, 2015) como mediado-
ras do processo de aprendizagem da leitura seja de grande valia para a estimula-
ção dos processos cognitivos (DAHEANE, 2012) inerentes às tarefas de leitura,
para que sejam realizadas de maneira mais lúdica e interativa (MORAN, 2013),
possibilitando a formação cidadã e a inclusão.

Em outras palavras, espera-se observar um impacto positivo do uso dos


recursos tecnológicos digitais no desenvolvimento dos processos de leitura, es-
timulando os indivíduos com dificuldades de aprendizagem a desenvolverem a
fluência leitora, possibilitando a equidade na aprendizagem em comparação com
demais estudantes que não apresentam dificuldades de aprendizagem na lei-
tura, bem como o engajamento do indivíduo para que este seja sujeito ativo do
processo.

Como resultado secundário, espera-se que os resultados desta pesquisa


possam ser aplicados futuramente em benefício de outros indivíduos que tam-
bém apresentem dificuldades de aprendizagem relacionadas com a leitura. Que
as atividades psicopedagógicas de desenvolvimento das habilidades de cons-
ciência fonológica (CAPOVILLA; CAPOVILLA, 2004), mediadas pelos recursos
tecnológicos digitais possam auxiliar professores, tanto das turmas regulares do
ensino fundamental (inicial) como os professores do Atendimento Educacional
Especializado, a fim de proporcionar uma metodologia dinâmica, motivadora, lú-
dica e que desenvolva a fluência leitora.

Considerações essenciais

Reiterando, este estudo objetivou investigar as contribuições dos recursos


tecnológicos digitais para o desenvolvimento da competência leitora em indiví-
duos com dificuldades de aprendizagem, sempre pensando no indivíduo numa
perspectiva inclusiva e cidadã.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Acredita-se que a aprendizagem mediada por recursos tecnológicos digi-


tais traz benefícios que vão além da melhora das habilidades de consciência fo-
nológica e da leitura. Através das tecnologias podemos proporcionar uma efeti-
va inclusão, disponibilizando os recursos necessários para que o indivíduo possa
acessar conhecimentos de maneira flexibilizada as suas características.

Os resultados dos testes de leitura de palavras e de texto ainda não foram


analisados em profundidade, pois a pesquisa ainda está em andamento. No entan-
to, pode-se ressaltar que no que tange aos resultados secundários desta pesqui-
sa em relação às possibilidades desenvolvidas pelos indivíduos, já podemos dizer
que muitas barreiras foram superadas. Os indivíduos com dificuldades de apren-
dizagem, ao longo de sua vida escolar, têm uma relação conflituosa entre o querer
ler e o conseguir ler, o que, aparentemente, causa prejuízos acadêmicos e psico-
lógicos. No entanto, ao longo das sessões de intervenção realizadas em 2020, os
indivíduos demonstraram, repetidas vezes, persistência, motivação, satisfação e
alegria ao realizar atividades que envolviam leitura e escrita mediadas pela utili-
zação de recursos tecnológicos.

Com isso, podemos apreender que as mídias digitais são recursos atraen-
tes, instigantes e intuitivos, o que compreendemos poder colaborar com o proces-
so de construção de autonomia dos indivíduos em relação a sua aprendizagem.
Bem como, pensando não só nas barreiras físicas, procedimentais, mas também
atitudinais, nas quais os indivíduos com dificuldades de aprendizagem se deparam
diariamente nas atividades escolares, os recursos tecnológicos podem ajudar a
superar. Acreditamos não apenas na melhora da fluência leitora, mas também nas
questões motivacionais e consequentemente na melhora da autoestima dos indi-
víduos envolvidos nessa pesquisa.

Desta forma, entende-se, em relação ao uso da tecnologia com indivíduos


com dificuldades de aprendizagem, que tanto psicopedagogos como professores
devam compreender que as mídias digitais podem exercer um papel significativo
no desenvolvimento da competência leitora, ao proporcionar um universo de es-
tratégias e atividades dinâmicas capazes de promover a automatização dos pro-
cessos de decodificação. Em suma, espera-se que os resultados dessa pesquisa
possam embasar práticas psicopedagógicas inovadoras e beneficiar, ainda que
indiretamente, outros indivíduos que também apresentem dificuldades nas ha-
bilidades de leitura.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Referências

CAPOVILLA, A. G. S.; CAPOVILLA, F. C. Problemas de leitura e escrita: como iden-


tificar, prevenir e remediar numa abordagem fônica. 4. ed. São Paulo: Memnon,
Fapesp, 2004.
DAHEANE, S. Os neurônios da leitura: como a ciência explica a nossa capacidade
de ler. Trad. Leonor Scliar-Cabral. Porto Alegre: Penso, 2012.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 41. ed. São Paulo: Editora: Paz e Terra, 2002.
KRETZER, E. C., VIEIRA, G. V., Dislexia e Competência leitora: uma investigação
sobre a contribuição das mídias digitais. PSIQUE, Lisboa, Portugal, v. XV, fascículo
1, p. 42-65, jan./jun. 2019. Disponível em: http: //journals.ual.pt/psique/wp-con-
tent/uploads/2019/07/42-65-Eliane-Kretzer-Gicele-Vieira.pdf. Acesso em: 27
abr. 2020.
MARTINO, L. M. S. Teoria das Mídias Digitais: linguagens, ambientes e redes. 2.
ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
MORAN, J. M. Novas Tecnologias e mediação pedagógica. Campinas, SP: Editora
Papirus, 2013.
PRODANOV, C. C.; FREITAS, E. C. de. Metodologia do Trabalho Científico:
métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. Novo Hamburgo:
FEEVALE, 2013.
SCHARDOSIM, C. R. Estratégias para a compreensão leitora: um estudo no 6º
ano do ensino fundamental. UFSC: 2015. Disponível em: https: //repositorio.ufsc.
br/bitstream/handle/123456789/158442/336826.pdf?sequence=1&isAllowe-
d=y. Acesso em: 23 jul. 2019.
WEISS, M. L. Psicopedagogia clínica: uma visão diagnóstica dos problemas de
aprendizagem escolar. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
ZORZI, J. L. Guia prático para ajudar crianças com dificuldades de aprendizagem:
dislexia e outros distúrbios – um manual de boas e saudáveis atitudes. Pinhais/PR:
Editora Melo, 2008.
ZORZI, J. Falando e escrevendo: desenvolvimento e distúrbios da linguagem oral
e escrita. Curitiba: Melo, 2010.

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GOOGLE CLASSROOM – UMA
PLATAFORMA COM POSSIBILIDADES
DE INCLUSÃO DIGITAL1

Eydie Luciana Miglioranza Stanqueviski2


Rosana de Fátima Vieira dos Santos Gotz3

RESUMO: O presente trabalho faz o relato de uma experiência vivenciada em uma


instituição da Rede Pública Estadual no município de Pato Branco no ano de 2017.
Nesse período a ferramenta Google Classroom ainda não era conhecida, tampouco
utilizada pelos docentes, hoje com a atual situação que vivenciamos em virtude
da pandemia provocada pela COVID 19, ela se tornou a principal ferramenta de
ensino utilizada pelo Estado do Paraná para as aulas remotas. O trabalho com a
plataforma Classroom buscou a interação inclusiva com as mídias digitais entre
professor e aluno visando melhorar a apropriação dos conteúdos estudados.
Após analisar o funcionamento desse recurso, o professor regente criou com seus
alunos a sala virtual da classe por meio do e-mail com extensão @escola e estes
foram convidados a participar. Com essa plataforma foi possível que o professor
criasse tarefas, perguntas, enviasse trabalhos e atividades de pesquisa, podendo
estas ser enviadas de forma individual ou coletiva. O professor, após analisar a
atividade postada também tinha a possibilidade de enviar uma devolutiva aos alu-
nos dando-lhes ciência de como foi seu aproveitamento. O desenvolvimento da
proposta foi constantemente avaliado pelos envolvidos e sendo sempre adaptada
conforme a necessidade. Percebeu-se, inicialmente, que os alunos faziam e ainda
fazem constante uso dos recursos tecnológicos, porém limitam-se ao uso de re-
des sociais e sites de entretenimento. No início da implementação da proposta,

1 Relato de Experiência desenvolvida em um Colégio do Município de Pato Branco, pertencente


à Rede Estadual de Ensino do Estado do Paraná. Não contém exposição e imagem de alunos.
Apenas o relato da experiência vivenciada pela professora coautora nesse texto.
2 Secretaria de Estado da Educação – Paraná . eydilu.mig@gmail.com
3 Secretaria de Estado da Educação – Paraná . rosana.gotz@hotmail.com

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

percebeu-se alunos que não conheciam como funcionava um e-mail, pois ainda
não o haviam utilizado, outros, porém, dispunham de conhecimento suficiente
para auxiliar professor e alunos. Os discentes que encontraram dificuldades em
realizar o trabalho proposto, foram orientados pelo professor em sala de aula, vis-
to que elas possibilitam acesso à internet.

PALAVRAS-CHAVE: Inclusão Digital; Interação; Aprendizagem.

ABSTRACT: The present work reports on an experience carried out in an institution


of the State Public Network in the city of Pato Branco in 2017. At that time Google
Classroom tool was not yet known, nor was it used by teachers. Today, with the current
situation we are experiencing due to the pandemic caused by COVID 19, it became the
main teaching tool used by the State of Paraná for remote classes. The work with the
Classroom platform sought an inclusive interaction with digital media between teacher
and student, in order to improve the acquisition of the studied contents. After analyz-
ing the operation of this resource, the conducting teacher created with his students the
virtual classroom of the class, through the email with extension @escola and students
were invited to participate. With this platform, it was possible for the teacher to create
tasks, questions, send papers and research activities, which can be sent individually or
collectively. The teacher, after analyzing the posted activity, also had the possibility to
send a feedback to the students, giving them knowledge of how they were doing. The de-
velopment of the proposal was constantly evaluated by those involved and was always
adapted as needed. It was initially noticed that students made and still make constant
use of technological resources, but they are limited to the use of social networks and
entertainment websites. At the beginning of the implementation of the proposal, it was
noticed that students did not know how an email worked, because they had not yet
used it; others, however, had enough knowledge to assist the teacher and other stu-
dents. The students who found it difficult to carry out the proposed work were guided by
the teacher in the classroom, as the rooms allow access to the Internet.

KEYWORDS: Digital Inclusion; Interaction; Learning.

Introdução

A sociedade passa por momentos de transformações. Essas mudanças ocor-


rem devido às novas tecnologias de informação e comunicação, que aos poucos,
vão se interligando à atividade educativa. As tecnologias digitais de informação e
comunicação (TDIC) estão cada vez mais presentes no cotidiano, influenciando

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

hábitos e modificando as formas de apreensão de conhecimento, uma vez que se


trabalha, diverte-se, comunica-se e relaciona-se em diversos contextos.

Nesse sentido, a evolução da informática trouxe consigo inúmeros impac-


tos que, por sua vez, atingiram diversas áreas sociais, incluindo a educação. A tec-
nologia se faz presente na escola e no aprendizado do aluno, seja pelo uso de equi-
pamentos tecnológicos seja por meio de projetos envolvendo educação. A partir
dessa realidade, as reflexões em torno do assunto tomaram conta da sociedade há
várias décadas influenciando a formação do sujeito contemporâneo.

Muito se ouve falar e pesquisas apontam para a grande necessidade de se


envolver as mídias digitais na educação e o quão essas ferramentas já vêm sendo
utilizadas no mercado de trabalho, porém a realidade que temos é outra. Sabemos
dessa necessidade, porém pouco se faz uso das ferramentas tecnológicas, a ne-
cessidade de estimular os estudantes já é assunto que vem sendo pesquisado a
várias décadas, como podemos observar pelo que nos diz Sancho:

O ritmo acelerado de inovações tecnológicas exige um sistema


educacional capaz de estimular nos estudantes o interesse pela
aprendizagem. E que esse interesse diante de novos conheci-
mentos e técnicas seja mantido ao longo da sua vida profissional,
que, provavelmente, tenderá a se realizar em áreas diversas de
uma atividade produtiva cada vez mais sujeita ao impacto das
novas tecnologias. (SANCHO, 1998, p. 41).

É perceptível que a inovação tecnológica está presente do cotidiano de


docentes e discentes, se a Escola proporcionar o uso de tecnologias como uma
metodologia a ser utilizada em sua prática pedagógica, estará gradativamente
promovendo melhorias no processo de ensino e aprendizagem.

Com o avanço das tecnologias de informação, foi possível a criação de fer-


ramentas que podem estar sendo utilizadas pelos professores em sala de aula,
permitindo assim maior disponibilidade de informação e recursos para os edu-
candos. Desta forma a tarefa de ensinar passa a figurar de modo mais dinâmico,
eficiente e inovador.

Para que isso se torne habitual nas instituições de ensino, o uso das fer-
ramentas tecnológicas na educação deve ser visto sob a ótica de uma nova me-
todologia de ensino, a qual possibilita a interação digital dos educandos com
os conteúdos propostos, ou seja, o aluno tem a oportunidade de interagir com

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

diferentes ferramentas que possibilitam aprender de maneira mais dinâmica e


com a utilização dos recursos tecnológicos.

O papel da escola enquanto instituição social é atender de modo satisfa-


tório as exigências da modernidade, propiciar conhecimentos e habilidades ne-
cessários ao educando para que ele exerça sua cidadania. Dessa forma a inclu-
são das Tecnologias deve ser utilizada como um recurso para auxiliar o professor
na integração dos conteúdos curriculares. Essa integração favorece em muito a
aprendizagem dos educandos e aproxima os atores do processo, pois ambos têm
a possibilidade de construir conhecimento através da escrita, reescrita, troca de
ideias e experiência e até mesmo no desenvolvimento de projetos.

As Instituições de ensino precisam estar atentas às necessidades do es-


tudante de hoje, o aluno manifesta o interesse em interagir com os conteúdos
propostos de forma mais participativa e dinâmica. O aluno precisa interagir com
outros estudantes, criar e enfrentar sempre novos desafios.

Diante dessa necessidade o papel da escola é o de oferecer recursos e me-


todologias para que estes estudantes possam vivenciar o conhecimento de forma
plena, e a tecnologia educacional demonstra ser grande aliada nesse processo

As tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) têm como ca-


racterísticas o fazer e o refazer, transformando o erro em algo que pode ser re-
visto e reformulado e, assim, produzir novos saberes. Nesse sentido, professor e
aluno precisam percorrer juntos e traçar objetivos na mesma direção, mantendo
um ritmo de cooperação.

Ademais, o professor em suas ações educativas deve ser aquele que se dis-
põe a testar possibilidades e equipamentos, aquele que não tem receio de colo-
car a tecnologia na mão do estudante, aquele que estimula o aluno a utilizar os
mais variados recursos tecnológicos em seu processo de aprendizagem, aquele
que permite e instiga o aluno a produzir conhecimento e compartilhá-lo. Podemos
analisar o que afirma Veiga quando manifesta sua opinião diante dessa necessida-
de tão evidente no contexto educacional:

É preciso evoluir para se progredir, e a aplicação da informática


desenvolve os assuntos com metodologia alternativa, o que
muitas vezes auxilia o processo de aprendizagem. O papel então
dos professores não é apenas o de transmitir informações, é o de
facilitador, mediador da construção do conhecimento. Então, o
computador passa a ser o ‹aliado› do professor na aprendizagem,

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

propiciando transformações no ambiente de aprender e questio-


nando as formas de ensinar. (VEIGA apud MORAN, 2007, p.2).

As tecnologias se apresentam sempre com potencial transformador e nes-


se contexto as conexões virtuais são responsáveis pela circulação em tempo real
de inúmeras informações que podem efetivamente transformar esses caminhos
como possibilidade para aprendizagem. Os educadores enfrentam um constante
desafio de produzir conhecimento primando pelo protagonismo juvenil, desper-
tando a atenção para as mudanças atuais. Atualmente dominar as tecnologias é
um dos principais meios de inserção social. As nossas instituições são vistas como
espaços onde a aprendizagem deve contemplar esta realidade, pois as influências
tecnológicas e as inter-relações que se estabelecem com os objetos de aprendiza-
gem podem potencializar o desenvolvimento de diferentes habilidades.

Nesse contexto, após vários meses de formação e preparo dos educadores


por meio da capacitação oferecida pela Secretaria de Estado da Educação, atra-
vés do programa Conectados 2.04, optou-se por implementar a plataforma Google
Classroom em algumas turmas, objetivando a interação virtual entre docentes e
discentes, a apropriação de conteúdos e simplificação na distribuição e avaliação
de trabalhos.

O Google Classroom (google sala de aula) é um serviço gratuito para esco-


las. É uma plataforma de aprendizagem mista que visa simplificar a criação, dis-
tribuição e classificação de tarefas sem a utilização de papel. Com a utilização
desta ferramenta professores e alunos se conectam facilmente, dentro e fora das
escolas, facilitando a criação de turmas, distribuição de tarefas, comunicação e
organização.

Os alunos são convidados a participar da sala virtual através do banco de


dados da instituição. Cada classe cria uma pasta separada no Drive do usuário res-
pectivo, na qual o aluno pode enviar o trabalho para ser avaliado pelo professor.
Aplicativos  para  dispositivos  móveis, disponíveis para  IOS  e  Android permitem
os usuários tirar fotos e anexar a atribuições, compartilhar arquivos de outros
aplicativos e acessar informações off-line.  Os professores podem acompanhar
o progresso de cada aluno e, depois analisar as atividades, fazer uma devoluti-
va do trabalho, com comentários, para que o aluno revise e melhore a tarefa. Os

4 Conectados 2.0: O Projeto CONECTADOS é a uma iniciativa da Secretaria de Estado de


Educação do Paraná (Seed-PR) que prevê a utilização pedagógica de ferramentas digitais com
alunos.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

professores podem publicar anúncios em um fluxo de classe, no qual os alunos


podem adicionar comentários.

Desenvolvimento

A tecnologia se faz cada vez mais presente. Assim, “O uso da tecnologia


está além do ‘fazer melhor’, ‘fazer mais rápido’, trata-se de um ‘fazer diferente’”
(ROLKOUSKI, 2011, p.102). Partindo dessa definição apresentamos a plataforma
Google Classroom à comunidade escolar, pois nossa instituição está gradativamen-
te promovendo a inserção à cultura digital por acreditar que este não é processo
estático, pois está em constante mudança.

Segundo os estudiosos Hoffman e Fagundes (2008, p.01),

Cultura é a representação das manifestações humanas; aquilo


que é aprendido e partilhado pelos indivíduos de um determina-
do grupo. A Cultura Digital é a cultura de rede, a cibercultura que
sintetiza a relação entre sociedade contemporânea e Tecnologias
da Informação (TIs). Ao mesmo tempo em que a Cultura Digital
abriga pequenas totalidades e seus significados, mantém-se des-
provida de um sentido global e único. Esta é a cultura da diversi-
dade, da liberdade de fluxos, de conhecimentos e de criações que
dá corpo e identidade às organizações que delas se constituem
(Amadeu, s.d.). É a cultura dos filtros, da seleção, das sugestões e
dos comentários. (COSTA, 2002).

Dessa maneira, visto que a cultura digital reflete na apreensão do conheci-


mento e que essa ocorre de maneira partilhada, a utilização da plataforma atendia
o anseio tanto dos alunos como dos professores referindo-se às alternativas de
interação e aprendizagem. Ela oportuniza também que o professor veja o aluno
além do seu boletim escolar, mas como um agente criativo com capacidade de
produzir e expressar suas potencialidades além da nota conquistada.

Sabe-se que a internet atinge cada vez mais o sistema educacional, e que a
escola, enquanto instituição social, é convocada a atender de modo satisfatório
às exigências da modernidade. Nesse sentido, deve-se propiciar esses conheci-
mentos e habilidades, necessários ao educando, para que ele exerça integralmen-
te a sua cidadania. Entende-se que ao utilizar as redes como ferramenta auxiliar,
rompe-se, gradativamente, as barreiras impostas pelas paredes da escola e partir
disso proporcionando contato com um mundo diferente envolvendo culturas e

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

realidades ainda desconhecidas, pois o trabalho possibilita troca de experiências


visto que envolve trabalhos colaborativos.

Ao optar por desenvolver essa atividade considera-se que o uso da infor-


mática na educação implica em novas formas de comunicar, de pensar, ensinar/
aprender. O uso das Tecnologias em sala de aula deve ser visto e utilizado como
um recurso para auxiliar o professor na integração dos conteúdos curriculares.

O uso do Classroom reforça a ideia de que temos a nossa disposição muitas


inovações tecnológicas para utilização em sala de aula, o que vem ao encontro
com uma sociedade pautada na informação e no conhecimento. Há duas décadas,
os parâmetros curriculares nacionais já faziam referência às «novas» tecnologias
educacionais, ressaltando a necessidade e importância das mesmas:

As novas tecnologias da comunicação e da informação permeiam


o cotidiano, independente do espaço físico, e criam necessidades
de vida e convivência que precisam ser analisadas no espaço es-
colar. A televisão, o rádio, a informática, entre outras, fizeram
com que os homens se aproximassem por imagens e sons de
mundos antes inimagináveis. (...) Os sistemas tecnológicos, na so-
ciedade contemporânea, fazem parte do mundo produtivo e da
prática social de todos os cidadãos, exercendo um poder de oni-
presença, uma vez que criam formas de organização e transfor-
mação de processos e procedimentos. (BRASIL, 2000, p.11-12).

O trabalho com Classroom teve início no segundo semestre de 2017, a par-


tir de um convite aos alunos regularmente matriculados no primeiro ano turma
“B” do referido Colégio, os quais totalizavam um número de 40. Como se trata-
va de uma atividade de sala de aula, todos participaram e assim a sala virtual foi
formada. Foi apresentada a plataforma, suas características e funcionalidades.
Diante da demonstração de interesse e curiosidade, a sala foi criada e deu-se
início ao desenvolvimento das atividades. Os alunos participantes do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), sob coordenação do professor
regente e acompanhados pela equipe pedagógica puderam auxiliar no desenvol-
vimento das atividades de criação e organização das turmas.

Por meio desse recurso tem-se a possibilidade de apresentar um traba-


lho diferenciado com organização e planejamento, sucedida pela participação
dos alunos. No decorrer do desenvolvimento do trabalho foi possível perceber
que para tornar possível o envolvimento e a utilização dos recursos tecnológicos

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

é necessário que alunos e professores tenham acesso e cursos de capacitação e


atualizações permanentes. É inegável que a capacitação seja fundamental, pode-
mos confirmar isso quando entendemos o que nos diz Chiapinni:

A formação do professor é fator imprescindível para que a es-


cola consiga melhorar a capacidade do cidadão comunicante,
uma vez que o professor pode adotar em sua prática cotidiana
uma postura que subsidia e estimula o aluno a refletir sobre o
que significa comunicar-se em nossa sociedade, como também
aprender a manipular tecnicamente as linguagens e a tecnologia.
(CHIAPINNI, 2005, p.278).

Partindo desse pressuposto, esse trabalho oportuniza uma forma diferen-


te de aprendizado. No momento em que o aluno percebe que sua produção e que
as considerações sobre esta estão postadas na sala virtual, ele sente curiosidade
e começa interagir.

Assim, teve início o trabalho com o Classroom no Colégio. Após a criação


da turma “1º B Conectados”, o professor sugeriu que os alunos escrevessem uma
autobiografia em letra cursiva e entregassem. Na sequência fotografou a produ-
ção e postou na plataforma, com opção de visualização individual. Em seguida, o
educando analisou a devolutiva do professor e teve a oportunidade de reenviar. O
professor reavaliou e atribuiu nota. Muitos tiveram dificuldade em fazer a tarefa
em casa. Então foram auxiliados no colégio por colegas, professores do Pibid e
professor-regente.

O desenvolvimento desse trabalho foi interessante, pois educador e edu-


cando estavam inseridos na mesma plataforma, explorando os recursos disponí-
veis. Quando acontecia algum erro nas postagens, o autor era notificado “profes-
sor, você postou para todo mundo e era só para o aluno”; e a indignação em não
conseguir postar era colocada nos comentários “se não der certo agora...”. Essa
tentativa de erro e acerto são motivadoras e oportunizam a aprendizagem.

Como forma de socializar os conhecimentos, os alunos que autorizaram,


tiveram suas produções linkadas para visualização coletiva, proporcionando um
debate mediado pelo educador a fim de observar as possíveis falhas e possibilida-
des de acertos.

O professor se manteve sempre atento, acompanhando a evolução que vi-


venciava a cada dia em sua prática pedagógica. E como também ministrava aulas

801
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

nas outras turmas de primeiro ano, poderia fazer assim, um comparativo entre o
rendimento dos alunos que participavam do projeto com as outras turmas que
não estavam participando. A necessidade de o professor estar em constante aper-
feiçoamento e capacitação para acompanhar as mudanças e as ferramentas dis-
poníveis atualmente, a fim de compreender a importância de seu uso pode ser
comprovada quando lemos o que nos dizem Sampaio e Leite (1999, p. 19):

Cada vez mais o professor: (...) deve levar em conta o ritmo ace-
lerado e a grande quantidade de informações que circulam no
mundo de hoje, trabalhando de maneira crítica com a tecnolo-
gia presente em nosso cotidiano. Isso faz com que a formação
do educador deva voltar-se para análise e compreensão dessa
realidade, bem como para a busca de maneiras de agir pedago-
gicamente diante dela. É necessário que professores e alunos co-
nheçam, interpretem, utilizem, reflitam e dominem criticamente
a tecnologia para não serem por ela dominados.

O professor necessita ter clareza em seus objetivos e elaborar seu plane-


jamento de forma objetiva. Referindo-se ao planejamento e a prática docente
Moran, lembra-nos que,

cada docente pode encontrar sua forma mais adequada de in-


tegrar as novas tecnologias e os procedimentos metodológicos,
mas também é muito importante, além de aprender a explorar
todas as possibilidades que as tecnologias oferecem que o edu-
cador aprenda dominar as formas de comunicação interpessoal/
grupal e as de comunicação audiovisual/telemática. (MORAN,
2000, p.32).

O autor afirma, ainda, que os alunos estão prontos para a multimídia, pois
são de uma geração que nasceu sob o fascínio das novas tecnologias. Todavia, o
professor que é de uma geração diferente terá que adequar sua forma de trabalho
para atrair essa plateia acostumada a cor e movimento. Para isso, será necessá-
rio que o professor se atualize e aprenda a utilizar as tecnologias existentes. Não
basta ter um laboratório e/ou sala de vídeo equipado, é necessário que se saiba
operá-los. Mas, de acordo com o ponto de vista proposto, o maior desafio hoje é a
busca de uma abordagem que possibilite a aproximação de referenciais que supe-
rem a fragmentação e reprodução do conhecimento, uma prática pedagógica que
torne o indivíduo sujeito ativo do processo de ensino e aprendizagem.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Considerações finais

O trabalho desenvolvido propiciou tanto para discentes como docentes um


grande desafio. Fazer uso das tecnologias englobando os conteúdos propostos no
Plano de Trabalho utilizando o Classroom foi gratificante e inovador no Colégio
Estadual Professor Agostinho Pereira.

No início da implementação do projeto, houve dificuldade porque os alu-


nos não estavam acostumados com tarefas envolvendo mídias digitais. Sabe-se
que tem um dispositivo sempre a sua disposição, o que demonstrava acesso e co-
nhecimento nessa área, no entanto, pode-se constatar que não é bem assim.

Alunos e professores apresentaram dificuldades em trabalhar com mídias


digitais. Professores precisam de formação para colocar a tecnologia na mão
do estudante, estimular o aluno a utilizar os mais variados recursos tecnológi-
cos em seu processo de aprendizagem e instigá-lo a produzir conhecimento e
compartilhá-lo.

Pode-se verificar que a interação entre educador e educando é produto-


ra de conhecimento, pois um aprende com o outro. Segundo o grande educador
brasileiro Paulo Freire (1997), “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende
ensina ao aprender”.

Assim, com o uso dessa plataforma, é possível trabalhar qualquer tipo de


conteúdo recorrendo a recursos audiovisuais, o que favorece o aprendizado e a
assimilação do conhecimento. É possível, também, trabalhar a interdisciplinari-
dade, uma vez que outros professores podem ser convidados a fazer parte da sala
de aula virtual. Isso é maravilhoso! Há possibilidade de inserir nesse processo a
participação de pais ou responsáveis para que acompanhem o desenvolvimento
do(s) filho(s).

Outra questão a ser considerada é a praticidade, posto que o conteúdo


planejado está disponível e a economia de papel é grande, porque é impossível
fazer muitas impressões, devido ao gasto elevado. Todas as atividades podem ser
realizadas de modo digital. O professor elabora a tarefa, posta no mural com ex-
plicações para que tenham acesso e entendam como deverão proceder. Assim que
a tiverem concluído adicionam para que possam ter uma devolutiva

Além disso, há possibilidade de o docente poder emitir um feedback aos alu-


nos em tempo real, pois assim que o professor recebe uma tarefa de algum aluno,

803
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ele pode lê-la e corrigi-la, acrescentar comentários e observações. E, se o aluno


também estiver online, ele pode conversar com o professor sobre a correção, tirar
dúvidas e discutir alterações de nota, tudo isso na mesma hora. Isso reduz drasti-
camente o período de tempo entre a realização de um exercício e a correção dele,
permitindo assim maior participação e envolvimento dos alunos.

Permite aos professores uma redução do tempo destinado para adminis-


trar pilhas de folhas de papel e consiga assim mais tempo para trabalhar com os
alunos. Todos os documentos podem ser arquivados num drive “núvem”.

Logo, a plataforma do Google Classroom oportuniza ao professor definir de


modo online detalhes e prazos para a entrega de atividades propostas, pois, após
o prazo estabelecido pelo professor a plataforma não permite mais o envio do tra-
balho. Os alunos que costumam deixar tudo para a última hora terão um motivo a
mais para se planejar com antecedência.

Outro benefício é que a plataforma não exige presença física, pois todas as
tarefas são feitas através da rede, mesmo alunos que estejam afastados da sala
de aula por motivos de doença ou viagem podem realizar os exercícios propostos
dentro do prazo. Basta ter um computador com conexão à internet em casa, o que
já é comum atualmente.

A plataforma ainda não faz referências comerciais, não contém nenhum


tipo de propaganda, nem vende suas informações e as de seus alunos para outras
empresas com fins publicitários. Ela disponibiliza diversas opções de visualização
de dados e agrupa todas as tarefas realizadas pelos seus alunos em um só lugar; o
Google Classroom permite ao professor visualizar os dados sobre os estudantes de
várias maneiras. É muito fácil acompanhar como as notas dos alunos evoluíram ao
longo do período letivo, ou perceber, por exemplo, se a distância entre a nota mais
alta e a mais baixa da turma aumentou ou diminuiu.

Dessa forma, com base nas informações referentes aos resultados obtidos
no início do ano, foi possível perceber, no segundo trimestre, uma significativa
melhora na participação dos alunos nas atividades e assim gradativamente me-
lhoraram seu rendimento. Cabe salientar que o trabalho proposto está em cons-
tante avaliação e passa a ser adaptado de acordo com as necessidades do aluno e
planejamento do professor.

Ao longo do período em que a ação foi desenvolvida, foi possível perceber


que o interesse e o envolvimento dos estudantes nas atividades que envolviam

804
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

leitura e produção textual foi gradativamente melhorando comparando com os


alunos dos outros primeiros anos que não estavam participando da ação.

Pode-se, inicialmente, concluir que a plataforma é uma ferramenta eficaz e


pode facilmente ser utilizada em qualquer disciplina como uma possibilidade de
trabalhar com as mídias digitais.

Referências

BRASIL. PARÂMETROS Curriculares Nacionais - MEC – Ministério da Educação:


Ensino Médio; Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2000.
CHIAPINNI, L. A reinvenção da catedral. São Paulo: Cortez, 2005.
DEMO, P.E. É errando que a gente aprende. Nova Escola. São Paulo, n.144, pp.
49-51, ago. 2001.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários a prática educativa.9ed.
São Paulo: Paz e Terra,1997.
MORAN, J. M.A educação que desejamos: Novos desafios e como chegar lá.
Papirus, 2007.
MORAN, J. M.A integração das tecnologias na educação. Artigo publicado na
revista Informática na Educação: Teoria & Prática. Porto Alegre, vol. 3, n.1 (set.
2000)
ROLKOUSKI, E. Tecnologias no ensino da matemática. Curtiba: Ibpex, 2011
SAMPAIO, Marisa Narcizo, LEITE, Lígia Silva. Alfabetização tecnológica do pro-
fessor. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
SECRETARIA DA EDUCAÇÃO. Cultura Digital 2017. Conectados 2.0. Governos
do Estado do Paraná. 2017. CreativeCommons – Atribuição – Não comercial –
Compartilha Igual 4.0 Internacional (Apostila).
SANCHO, D. Os professores e sua formação. Lisboa: Nova Enciclopédia, 1998.

805
TRANSTORNO DE ESPECTRO AUTISTA,
INCLUSÃO E LINGUAGEM: UM ESTUDO
A PARTIR DA LEGISLAÇÃO E DAS
PESQUISAS NA ÁREA DA LINGUÍSTICA
APLICADA1

Gabrieli Aparecida Guedes2


Cristiane Malinoski Pianaro Angelo3

RESUMO: Alunos com transtorno de espectro autista (TEA) têm o direito garan-
tido por lei de frequentarem as escolas comuns, participando dos processos de
escolarização de forma efetiva. Para tanto, é necessário que o professor conheça
esse transtorno e esteja preparado para trabalhar com esse alunado, favorecen-
do a sua inclusão e desenvolvendo suas habilidades. Diante disso, esta pesquisa,
de natureza bibliográfica, tem por objetivos: a) estudar a legislação que ampara
as pessoas com TEA; b) levantar as características de linguagem dos alunos com
esse transtorno, de modo a ampliar a compreensão dessa temática. Os resultados
indicaram que a legislação brasileira tem se aperfeiçoado para favorecer uma me-
lhor compreensão acerca do TEA e garantir-lhe todas as políticas de inclusão, com
direito à educação em escolas regulares. Indicaram também que, as pesquisas têm
desmistificado concepções equivocadas e preconceituosas sobre o transtorno, as
quais acabam provocando a exclusão das crianças com TEA no âmbito escolar.
1 A pesquisa foi desenvolvida junto ao projeto “Leitura e escrita: dificuldades de ensino e aprendi-
zagem no ensino básico” (UNICENTRO/Fundação Araucária).
2 Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO).gabrieliguedesgt@gmail.com
3 Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). cristiane.mpa@gmail.com

806
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Assim, compreende-se que, com um trabalho direcionado e planejado que ofereça


desafios cognitivos ao aluno com necessidades educacionais especiais, é possível
propiciar-lhe avanços no domínio da linguagem, essencial para que ele responda
às demandas da escola e da sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Transtorno de espectro autista; Linguagem; Legislação;


Linguística Aplicada.

ABSTRACT: Students with autism spectrum disorder (ASD) have the right guaranteed
by law to attend ordinary schools, participating in schooling processes effectively.
Therefore, it is necessary for the teacher to know this disorder and be prepared to work
with this student, favoring their inclusion and developing their skills. Therefore, this bi-
bliographic research aims to: a) study the legislation that supports people with ASD; b)
to raise the language characteristics of students with this disorder, in order to broaden
the understanding of this theme. The results indicated that the Brazilian legislation has
been improved to favor a better understanding about the ASD and to guarantee to the
person with this disorder all the inclusion policies, with the right to education in regular
schools. They also indicated that researches have demystified misconceptions and pre-
judices about the disorder, which end up causing the exclusion of children with ASD at
school. Thus, it is understood that, with targeted and planned work that offers cogniti-
ve challenges to students with special educational needs, it is possible to provide them
with advances in the domain of language, essential for them to respond to the demands
of school and society.

KEYWORDS: Autistic spectrum disorder; Language; Legislation; Applied Linguistics.

Introdução

Nas últimas décadas, alguns pesquisadores da área da Educação Especial


(AUADA; SHIMAZAKI, 2015) vêm se debruçando na busca por alternativas pe-
dagógicas, que possam propiciar condições para que o aluno com necessidades
educacionais especiais se aproprie do mundo letrado, de modo significativo, com
possibilidades de inserção ativa na sociedade. Na Linguística Aplicada ainda são
poucos os trabalhos que se voltam aos sujeitos com necessidades especiais, quer
estudando as características da linguagem de alunos com alguma necessidade,
como Baumgärtner e Weisheimer (2018), quer apresentando ou discutindo alter-
nativas de trabalho, junto a esse público, para desenvolver suas habilidades lin-
guísticas e otimizar o seu processo de inclusão social, como Angelo e Menegassi

807
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

(2019). As lacunas nas pesquisas em Linguística Aplicada, que envolvam sujeitos


com alguma necessidade especial, motivaram o desenvolvimento deste trabalho,
que pretende contribuir por meio de um estudo a respeito das características de
linguagem de alunos com transtorno de espectro autista (TEA), a partir de pesqui-
sas realizadas na área.

Segundo a definição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos


Mentais, DSM-5 (2014), são caracterizadas com TEA as pessoas que apresen-
tam alterações qualitativas das interações sociais recíprocas, na comunicação,
um repertório de interesse e atividades restritas, estereotipadas e repetitivas.
Ressalte-se que esse manual absorveu as subcategorias do autismo como a
síndrome de Asperger, o transtorno desintegrativo da infância e os transtor-
nos globais do desenvolvimento não especificado, e propõe a classificação de
Transtorno do Espectro Autista (TEA) em substituição a de Transtornos Globais
do Desenvolvimento (TGD).

Entende-se que o primeiro passo a ser dado para favorecer a inclusão e


a escolarização do aluno com TEA é o conhecimento, por parte do professor e
da equipe pedagógica a respeito desse transtorno. Diante disso, neste trabalho,
tem-se por objetivos: a) estudar a legislação que ampara as pessoas com TEA; b)
levantar as características de linguagem dos alunos com esse transtorno, de modo
a ampliar a compreensão dessa temática. Para tanto, inicialmente, foi realizado
um estudo da legislação recente, sobre Educação Especial, e da legislação para
o atendimento ao aluno com TEA. Após, foram levantadas as características do
TEA, especialmente no que se refere à linguagem, a partir de pesquisas (artigos,
dissertações e teses) que abordam essa temática na área da Linguística Aplicada.

Autismo: um olhar pedagógico

O Transtorno de Espectro Autista (TEA) engloba desordens do desenvol-


vimento neurológico, os quais são presentes desde o nascimento ou começo da
infância. O diagnóstico precoce é fundamental para que o quadro possua uma
evolução favorável, já que o transtorno não possui cura e o tratamento é à base
de estímulos.

Segundo Biasão (2014), Léo Kanner foi quem fez a primeira investigação
acerca do autismo infantil e foi considerado, nos Estados Unidos, o fundador da
Psiquiatria Infantil, ao levantar pesquisas sobre distúrbios mentais severos em

808
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

crianças, definindo o autismo como sendo um distúrbio caracterizado por uma


inabilidade inata de relacionar-se com outras pessoas. Ainda de acordo com
Kanner (1943), o isolamento obsessivo e a falta de comunicação são umas das ca-
racterísticas fortes do autista ligadas a pouca interação social.

Em 1943, Leo Kanner descreveu pela primeira vez onze crian-


ças que compartilhavam características do que ele chamou de
Autismo Infantil. Os sintomas descritos por ele foram um isola-
mento extremo desde o início da vida e um desejo obsessivo pela
preservação da mesmice. (KANNER, 1943, apud BIASÃO, 2014,
p. 115).

Embora haja muitas variações no quadro do TEA, outro comportamento


que costuma ser atribuído ao indivíduo com TEA é a uniformidade, visto que os
autistas utilizam os significados das palavras com a mesma conotação, não for-
mam sentenças e falam de si mesmo na terceira pessoa.

Segundo Cunha (2013), a mudança de rotina também é algo peculiar na


vida do autista, em razão de que alguma alteração, nessa rotina, ou até mesmo no
local onde esse aluno passa a maior parte do tempo, poderá lhe causar desespero.
Portanto, tudo deve ser realizado como da primeira vez. Caso isso não ocorra, o
indivíduo poderá reagir com aflição, frustração e desenvolver crises de choro, gri-
tos, autoflagelação, dentre outras manifestações.

Profissionais da educação têm um papel importante na identificação des-


ses sinais de alerta, já que estão em contato direto com esses alunos. Para Cunha
(2013), é interessante que o professor observe atentamente seu aluno quando
ele apresentar algumas dessas características: retirar-se e isolar-se das outras
pessoas; não manter contato visual; desligar-se do ambiente externo; resistir ao
contato físico; não demonstrar medo diante de perigos; não responder quando
for chamado; apresentar birras; não aceitar mudanças de rotina; usar as pessoas
para pegar objetos; demonstrar hiperatividade física, agitação desordenada, cal-
ma excessiva e/ou apego e manuseio não apropriado de objetos; apresentar mo-
vimentos circulares no corpo; demonstrar sensibilidade a barulhos, estereotipias
e/ou ecolalias; ter dificuldades para simbolizar ou para compreender a linguagem
simbólica; ser excessivamente literal, com dificuldades para compreender senti-
mentos e aspectos subjetivos de uma conversa.

809
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Com relação às estereotipias, Cunha (2013) aponta que essas peculiarida-


des podem expressar alegrias, emoções, frustrações, ansiedades, momentos de
excitação, mas também podem privar esses indivíduos de experiências motoras
maturativas, ocasionando a regressão e o bloqueio de habilidades.

Diante disso, a observação das estereotipias deve ser feita com


todo o cuidado e sensibilidade. Evitando-se o cercamento e a
irritação, é primordial inibir a constante recorrência aos movi-
mentos adequados, de cunho simbólico e social, que produzirão
progressos na área cognitiva, motora e comunicativa. (CUNHA,
2013, p. 26).

Por isso, é fundamental que a formação profissional e as políticas públicas


deem condições práticas às escolas no exercício da educação inclusiva, auxiliando
o docente a lidar com questões como a hiperatividade e as estereotipias e a defi-
nir algumas estratégias pedagógicas que possam ajudar esse aluno.

Bianchi (2017) aponta que o sujeito com TEA possui uma comunicação
comprometida, é sensível ao toque, evita olhar e tocar outras pessoas, ou seja, é
de difícil contato; em um segundo momento quando ele começa a ter confiança
no seu professor ele passa a estabelecer uma maneira de comportamento e, por
fim, o aluno ganha autonomia para explorar o ambiente e as pessoas que o cercam.

Para Portolese e Spalato (2013), de início, o professor precisa ensinar seu


aluno a responder quando seu nome é chamado, e assim compreender instruções
verbais simples de maneira direta e indireta, sendo direta a instrução dada especi-
ficamente para o aluno; e indireta a instrução dada para o grupo. O próximo passo
é o professor se questionar sobre o que ele quer que o aluno saiba fazer, o que ele
deve saber para que possa ser trabalhado o conteúdo. Também é interessante o
professor fazer o uso de uma rotina e ensinar seu aluno a segui-la, já que o autista
tem receio a mudanças repentinas no cotidiano, sem um aviso prévio de que vão
ocorrer alterações (PORTOLESE; SPALATO, 2013).

Cabe salientar que o aprendizado do aluno autista não é algo imediato, po-
dendo levar o docente a frustrações, pois muitas vezes não se tem a expectativa
alcançada através da atividade apresentada a esse aluno; é fundamental o profes-
sor estar ciente de que o aluno com o TEA é resistente à aprendizagem, tornando
um desafio para o professor tomar a atenção mesmo que mínima desse aluno, a
considerar então um sucesso quando isso acontece.

810
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Ordenamento legal sobre os direitos dos autistas

As pessoas com TEA possuem os mesmos direitos garantidos a todos os


cidadãos do país por meio da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e de outras
leis nacionais. As crianças e os adolescentes autistas possuem todos os direitos
previstos no Estatuto da Criança e Adolescente – Lei 8069 (BRASIL, 1990), e os
maiores de 60 anos, com autismo, estão assegurados pelo Estatuto do Idoso – Lei
10.741 (BRASIL, 2003).

Uma das mais importantes leis brasileiras, relacionadas ao autismo, é


a Lei Berenice Piana - Lei 12.764 (BRASIL, 2012), sancionada pelo Congresso
Nacional, a qual institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa
com Transtorno do Espectro Autista. De acordo com esta lei, a pessoa com esse
transtorno é aquela portadora de síndrome clínica, caracterizada por meio dos
seguintes aspectos,

I - Deficiência persistente e clinicamente significativa da comu-


nicação e da interação sociais, manifestada por deficiência mar-
cada de comunicação verbal e não verbal usada para interação
social; ausência de reciprocidade social; falência em desenvolver
e manter relações apropriadas ao seu nível de desenvolvimento;
II - Padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, inte-
resses e atividades, manifestados por comportamentos motores
ou verbais estereotipados ou por comportamentos sensoriais
incomuns; excessiva aderência a rotinas e padrões de comporta-
mento ritualizados; interesses restritos e fixos. (BRASIL, 2012).

Entre as diretrizes da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa


com Transtorno do Espectro Autista está “o incentivo à formação e à capacitação
de profissionais especializados no atendimento à pessoa com transtorno do es-
pectro autista, bem como a pais e responsáveis”. (BRASIL, 2012). Na prática, as
instituições de ensino devem desenvolver estudos, debates e práticas pedagógi-
cas, e propiciar cursos, simpósios, seminários e outros eventos, buscando a forma-
ção e atualização de recursos humanos para atuar com as crianças e adolescentes
inseridos no espectro autista.

A lei em parágrafo único assegura que, em caso de comprovada a necessi-


dade, o aluno com TEA incluído nas classes comuns de ensino regular terá direi-
to a acompanhante especializado para auxiliá-lo em sala. Esse profissional, que

811
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

trabalha com a criança autista dentro da sala de aula e a acompanha nos demais
ambientes da escola, é chamado de tutor, acompanhante ou professor auxiliar. Ele
é responsável por participar da reintegração do aluno com TEA, auxiliando o pro-
fessor em interações sociais e na adaptação/acesso ao currículo.

A Lei Berenice Piana (BRASIL, 2012) permitiu abrigar pessoas com o TEA
nas leis de pessoas com deficiência, como o Estatuto da Pessoa com Deficiência
– Lei 13.146 (BRASIL, 2015), e nas normas internacionais assinadas pelo Brasil,
como a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com defi-
ciência – Lei 6.949 (BRASIL, 2000). A Lei 13.146 (BRASIL, 2015), a Lei de Inclusão
da Pessoa com Deficiência, ou Estatuto da Pessoa com Deficiência, (BRASIL,
2012) estabelecem os direitos das pessoas deficientes. Desde 2012, para efeitos
legais, os autistas são considerados deficientes, eles estão incluídos nessa legisla-
ção. Portanto, direitos previstos nesta lei, como atendimento prioritário, atenção
integral pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e acesso às vagas de trabalho compa-
tíveis com sua deficiência, são extensíveis às pessoas com autismo.

Ressaltem-se, também, algumas políticas públicas que regem questões


mais específicas do cotidiano. A Lei 13.370 (BRASIL, 2016) garante o direito a um
horário especial ao servidor público federal que tenha cônjuge, filho ou depen-
dente com deficiência de qualquer natureza, sem a exigência de compensação de
horário. A Lei 8.899 (BRASIL, 1994) garante passe livre no sistema de transporte
coletivo interestadual às pessoas portadoras de deficiência, comprovadamen-
te carentes. A Lei 12435 (BRASIL, 2011) altera a Lei 8.742 (BRASIL, 1993) - Lei
Orgânica da Assistência Social (LOAS), para oferecer a garantia de 1 (um) salário-
-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência, que comprove não possuir
meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. A Lei
7.611 (BRASIL, 2011), a qual dispõe sobre a educação especial e o atendimento
educacional especializado, garante que “Art. 2º A educação especial deve garan-
tir os serviços de apoio especializado voltado a eliminar as barreiras que possam
obstruir o processo de escolarização de estudantes com deficiência, transtornos
globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação”.

A Lei 13.977 (BRASIL, 2020) – Lei Romeo Mion – institui a criação da


Carteira de Identificação de Pessoas com Transtorno de Espectro Autista
(CIPTEA). A nova norma altera a Lei Berenice Piana (BRASIL, 2012) a qual ins-
titui a Política de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA. De acordo com a
nova Lei, a CIPTEA deve assegurar às pessoas com TEA atenção integral, pronto

812
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

atendimento e prioridade no atendimento e no acesso aos serviços público e pri-


vado, em especial nas áreas de saúde, educação e assistência social. De acordo
com a Lei, a carteira deve ser expedida pelos órgãos estaduais, distritais e muni-
cipais que executam a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com
Transtorno do Espectro Autista. Para adquiri-la a família deve apresentar um
requerimento, acompanhado do relatório médico com a indicação do código de
Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à
Saúde (CID).

A Lei 13.977 (BRASIL, 2020) estabelece que

Os estabelecimentos públicos e privados referidos na Lei nº


10.048, de 8 de novembro de 2000, poderão valer-se da fita que-
bra-cabeça, símbolo mundial da conscientização do transtorno
do espectro autista, para identificar a prioridade devida às pes-
soas com transtorno do espectro autista.

No âmbito do Estado do Paraná, destacamos a Lei 17.555 (PARANÁ, 2013),


que instituiu as diretrizes para a Política Estadual de Proteção dos Direitos da
Pessoa com TEA. Esta lei considera pessoas com TEA aquela com prejuízo, na
comunicação e nas relações sociais, conforme critérios clínicos definidos na clas-
sificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados com saú-
de – CID e na Organização Mundial de saúde – OMS. No âmbito da lei 19.584
(PARANÁ, 2018), que altera a Lei 17.555 (PARANÁ, 2013), destaca-se o artigo 3:

Art. 3º Quando da formulação e implantação das políticas públi-


cas em favor das pessoas com TEA, deve o Estado estabelecer
as seguintes diretrizes junto às instituições de ensino por ele
mantidas:
I – Utilizar profissionais, estudantes e docentes das instituições
de ensino superior, de forma a auxiliar na formação de profissio-
nais aptos a diagnosticar e tratar o TEA precocemente, por meio
de cursos, palestras e programas de incentivo profissional em
diferentes níveis;
II – Garantir parcerias com as instituições de ensino para a pro-
moção de cursos, palestras e programas de incentivo ao profis-
sional, nos diversos níveis;
III – Promover a inclusão dos estudantes com TEA nas classes co-
muns de ensino regular com o apoio e as adaptações necessárias
da tecnologia da educação;

813
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

IV - Incentivar a formação e a capacitação de profissionais espe-


cializados na pesquisa e no atendimento da pessoa com TEA;
V - Indicar às instituições de ensino superior a inserção do estu-
do do autismo com base científica no seu quadro de disciplinas
em seus cursos de medicina e outros ligados à área de saúde,
educação e tecnologia. (BRASIL, 2018).

No que se refere especificamente à Educação, a lei é mais um reforço na


luta pela inclusão, ao estabelecer que o autista tem o direito de estudar nas clas-
ses comuns de ensino regular. Para assegurar esse direito são importantes duas
instruções: a Instrução 01/2016 (PARANÁ, 2016) e a 15/2018 (PARANÁ, 2018)
– SEED/SUED. De acordo com essas normativas, no âmbito do Estado do Paraná,
aluno com TEA tem direito de receber Atendimento Escolar Especializado em
Sala de Recursos Multifuncionais, como também de contar com professor de
apoio especializado.

Pode-se notar que a legislação brasileira, e no âmbito do Paraná, tem se


aperfeiçoado para favorecer uma melhor compreensão acerca do TEA e garantir
à pessoa com esse transtorno todas as políticas de inclusão, com direito à educa-
ção em escolas regulares, e em prol de uma vida plena e produtiva.

A linguagem da criança com TEA

Para atingir os objetivos de: levantar pesquisas da área da Linguística


Aplicada que abordem a linguagem do aluno com TEA e suscitar e discutir as
características da linguagem do aluno com TEA, usou-se como fonte o Google
acadêmico, que é uma ferramenta de pesquisa dentro do próprio propulsor de
busca do Google e que visa a examinar palavras-chave em livros, teses, resumos,
entre outros arquivos disponíveis na internet. Escolheu-se esse banco de dados
porque se considera que o Google acadêmico é a primeira fonte de investiga-
ção do pesquisador, antes de consultar outros bancos, como Banco de Teses e
Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES) e o Instituto Brasileiro de Informação em Ciências e
Tecnologia (IBICT).
Assim, delimitaram-se algumas palavras-chave para que se pudessem efe-
tuar tais processos: autismo, transtorno de espectro autista, TEA, Linguística
Aplicada. Ressalte-se que nesse processo de busca descartaram-se as pesquisas
na área de língua estrangeira, como também aquelas que têm como foco outras

814
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

questões ligadas ao TEA, como inclusão e apoio familiar, ou que têm foco em ou-
tros espaços, que não sejam a escola. Selecionaram-se, assim, as pesquisas publi-
cadas em revistas de Linguística Aplicada, ou inseridas na Linguística Aplicada e
publicadas em revistas multidisciplinares, de Educação ou de Letras/Linguística.
A partir dessas delimitações, foram encontradas as seguintes pesquisas, as quais
são apresentadas no Quadro 1.

TÍTULO DO TEXTO TIPO/REVISTA/ANO AUTOR(ES) OBJETIVO DA PESQUISA

Linguagem escrita e Artigo Chayene Cristina Compreender como o


autismo: um estudo Anais do XII Santos Carvalho autista se apropria da
de caso em uma sala EDUCERE, Congresso linguagem escrita e como
de aula regular em Nacional de Educação. este processo incide em
São Luís – MA 2015. seu desenvolvimento
cognitivo e social.
Estereotipias Artigo Isabela Barbosa do Abordar o conjunto
motoras e Rev. bras. linguist. apl. Rêgo Barros característico do autismo
linguagem: aspectos [online]. 2016, vol.16, Renata Fonseca Lima por meio da concepção do
multimodais da n.4, da Fonte isolamento e a negação
negação no autismo. presente em sua linguagem.
Compreensão Tese de doutorado em Lídia de Almeida Compreender a leitura
leitora e síndrome Linguística Aplicada Correia de pessoas com a
de asperger: uma do Programa de Síndrome de Asperger,
proposta de ensino. Pós- Graduação da considerando que tenham
Universidade Estadual concluído, pelo menos,
do Ceará. 2018 o ensino fundamental I
e que apresentem bom
desempenho quanto à
descodificação do código
escrito.
Linguagem em Artigo Carmen Teresinha Analisar como o aluno
registro escrito de Caderno de textos Baumgärtner; com TEA leve manuseia
aluno com TEA leve. – VII CÍRCULO Irací Casemiro a linguagem em registro
– RODAS DE Weisheimer escrito no ambiente
CONVERSA escolar.
BAKHTINIANA.
UNIOESTE. Cascavel-
PR, 2018.

815
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Discutir resultados de
uma pesquisa – ação
O desenvolvimento
desenvolvida junto as SRM
de habilidades de Artigo Cristiane Malinoski
onde foram desenvolvidas
leitura do gênero Revista Linguagens, Pianaro Angelo
práticas de ensino das
notícia em Sala Educação e Sociedade. Renilson José
habilidades de leitura do
de Recursos 2019. Menegassi
gênero discursivo/textual
Multifuncionais
notícia a um aluno com
necessidades especiais.
As características
sistemáticas Analisar recursos
Artigo
de recursos multimodais (fala, gesto,
Domínios de Lingu@
multimodais Douglas Vidal objetos, movimentos
gem, v. 14, n. 1, p. 37-
mobilizados por Santiago corporais) realizados
64, 11 fev. 2020.
uma criança com por uma aluna com o
TEA em turnos de diagnóstico de TEA.
fala corporificados.
Quadro 1. Pesquisas relacionadas ao TEA
Fonte: Elaborado pela pesquisadora.

Com o objetivo de compreender como o autista se apropria da linguagem


escrita e como este processo incide em seu desenvolvimento cognitivo e social,
em uma escola privada de São Luís-MA, Carvalho (2015) desenvolveu a pesquisa
intitulada “Linguagem escrita e autismo: um estudo de caso em uma sala de aula
regular em São Luís–MA”. A pesquisa foi feita em uma escola regular de cunho
privado em São Luís, com dados gerados pelos sujeitos envolvidos, uma criança
autista e sua professora.

As análises foram realizadas a partir de uma abordagem discursiva, com


base em Bakhtin (2009), considerando-se o sujeito autista capaz de produzir e in-
teragir. Ante ao estudo feito, a pesquisa apontou que a criança autista possui con-
dições reais de se apropriar da escrita. De acordo com Carvalho (2015, p. 36518),

Pode-se perceber que o ensino da escola campo está centrado


no objetivismo abstrato, que como se viu em Bakhtin (2009) tra-
ta-se de um ensino voltado para o uso de normas, regras, a partir
de uma visão micro para o macro. Dessa forma, a criança ao invés
de aprender a produzir enunciados, só conseguiu reproduzir le-
tras e números, constatando-se práticas de ensino tradicionais

816
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

e sem um trabalho específico para o autista. Além de um ensi-


no centralizado na concepção do objetivismo abstrato, voltado
principalmente ao método de Maria Montessori, que segundo
Vygotski (1991) o método da médica italiana considera somente
a precisão e a beleza das letras que suas crianças desenham ao
invés do conteúdo de suas escritas. O que não possibilita o de-
senvolvimento potencial do sujeito autista.

A pesquisa de Carvalho (2015) demonstra que, é preciso pensar que o pro-


cesso de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita não como meramente
um conjunto de técnicas, mas sim como prática cultural. Para o autista, não é dife-
rente, pois quando inserido no meio social escolar ele tem oportunidades reais em
estar em um meio que propicia as interações entre sujeitos.

O artigo “Estereotipias motoras e linguagem: aspectos multimodais da ne-


gação no autismo”, de Barros e Fonte (2016), teve por objetivo discutir o lugar de
uma criança autista na linguagem a partir dos seus movimentos de negação, que
apresentam diferentes configurações multimodais do ‘não’ no autismo. As auto-
ras partem da concepção de linguagem como um processo dialógico multimodal,
no qual os interlocutores compartilham e usam diferentes modos semióticos na
interação.

Ao problematizar o lugar de uma criança autista na linguagem a partir de


diferentes aspectos multimodais do ‘não’, as autoras constatam que “estereotipias
motoras e vocalizações, frequentemente não atestadas como linguagem [...] apre-
sentam significado de negação, marcando o lugar da criança na linguagem”, cons-
tituindo-se como recursos enunciativos da criança autista. Barros e Fonte (2016,
p. 761) ressaltam que:

[...] entender uma estereotipia guiada pelo ‘não’ como possibi-


lidade de linguagem, permite que pensemos no autismo como
um modo peculiar de funcionamento subjetivo e consideremos,
talvez, alguns comportamentos que a literatura científica e não
científica destaca por estereotipias, como alguns sinais semân-
ticos do ‘não’.

Assim, é necessário que os professores e demais interlocutores compreen-


dam as pistas multimodais, gestuais ou vocais, da linguagem das crianças autistas
inseridas no contexto interativo, para que possibilitem a promoção e a constitui-
ção da linguagem do sujeito com TEA.

817
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Na pesquisa “Compreensão leitora e síndrome de Asperger: uma propos-


ta de ensino” (CORREIA, 2018), foi investigado o desempenho em compreensão
leitora de estudantes com a Síndrome de Asperger (AS), após a aplicação de uma
proposta de ensino fundamentada na abordagem conciliadora de leitura. Essa
abordagem propõe que a compreensão leitora é construída pelo leitor com base
na decifração do código escrito somada aos seus conhecimentos de mundo, e con-
siderando também, os diversos contextos, sendo eles: linguístico, temporal, espa-
cial, social, cultural, de escrita entre outros.

A pesquisa, de natureza aplicada e procedimento experimental, foi com-


posta por seis estudantes diagnosticados com AS com idades a partir de 11 anos,
que já concluíram o Ensino Fundamental I. Esses alunos foram divididos em 2 gru-
pos, sendo um submetido à intervenção com uma proposta de ensino baseada no
uso de estratégias básicas de leitura, e um grupo controle, que vivenciou outro
tipo de atividade, com o uso de livros de imagens. Foram utilizados também qua-
tro instrumentos: sendo os dois primeiros, o questionário e o teste de decodifi-
cação relacionados à definição da amostra, e o terceiro e o quarto se tratando do
teste de compreensão leitora geral e do teste de compreensão leitora inferencial,
utilizados na fase da coleta de dados.

Os resultados da pesquisa de Correia (2018) indicaram que as quatro estra-


tégias básicas utilizadas, combinadas com as tarefas direcionadas às dificuldades
comuns dos alunos, aplicadas de forma sistemática e rotineira, contribuíram efe-
tivamente para a melhoria das dificuldades de compreensão leitora de estudantes
com AS. Indicaram também que, as dificuldades comuns de compreensão leitora
que ocorreram em leitores com AS estão relacionadas à compreensão inferencial,
caracterizando-se como dificuldades de desvendar o implícito, de fazer deduções,
de relacionar elementos textuais. No entanto, podem ser amenizadas por meio da
implementação de atividades direcionadas, sistemáticas e rotineiras, que abran-
jam o uso de estratégias básicas de leitura e envolvam instruções explícitas.

A pesquisa “Linguagem em registro escrito de aluno com TEA leve”


(BAUMGÄRTNER; WEISHEIMER, 2018) teve por objetivo compreender como o
aluno com TEA leve manuseia a linguagem escrita materializada na sala de aula
no ensino fundamental II, em uma escola da área urbana de um município do
Oeste do Paraná. Com base na perspectiva histórico-cultural do desenvolvimen-
to humano, de Vygotsky, articulada com os pressupostos dialógicos do Círculo
de Bakhtin, as pesquisadoras constataram que é necessário levar em conta que

818
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

o processo de ensino e aprendizagem da escrita não é puramente mecânico, mas


que está ligado às práticas culturais; e para o aluno com TEA isso não pode ser
distinto, visto que quando incluso no ensino regular, interage com outros sujei-
tos, o que amplia sua competência no uso da linguagem. As pesquisadoras ressal-
tam que “[...] é indispensável o ensino da função social dos textos; ensinar o aluno
ser leitor e escritor, para que ele não faça um texto apenas por fazer, ou apenas
para desempenhar uma tarefa escolar para ganhar uma nota”. (BAUMGÄRTNER;
WEISHEIMER, 2018, p. 1174).

Em uma perspectiva bastante próxima, o artigo “O desenvolvimento de


habilidades de leitura na sala de recursos multifuncionais a partir do gênero no-
tícia” (ANGELO; MENEGASSI, 2019) constitui-se a partir de uma interface en-
tre Linguística Aplicada e Educação Especial, discutindo as práticas de ensino
das habilidades de leitura do gênero discursivo/textual notícia, de um jornal im-
presso, a um aluno com necessidades especiais no contexto de Sala de Recursos
Multifuncionais (SRM), com o intuito de compreender como a apropriação dessas
habilidades se constitui nesse contexto.

A pesquisa fundamentou-se nos postulados dialógicos de linguagem, a par-


tir do Círculo de Bakhtin, e dos pressupostos da pesquisa-ação. Os resultados da
pesquisa indicaram: a) possibilidades de ampliação das capacidades de decodifica-
ção e das capacidades de compreensão – principalmente quanto às habilidades de
localização de informações explícitas e de inferências; b) ampliação do repertório
lexical; c) apreensão de características peculiares do gênero: aspectos sociais (re-
conhecimento do jornal como suporte da notícia, identificação do local e da data
de circulação do jornal), aspectos da temática da notícia, aspectos da estrutura
composicional da notícia (título, imagem, lide) e aspectos de estilo (marcação de
tempo, de espaço e recursos lexicais). Assim, a pesquisa-ação demonstrou que os
conhecimentos sobre o gênero notícia mobilizados em favor do desenvolvimento
das habilidades de leitura, em um trabalho direcionado e planejado, ofereceram
desafios cognitivos ao aluno com necessidades educacionais especiais e propicia-
ram-lhe avanços no domínio da leitura, fator essencial para que ele responda às
demandas da escola e da sociedade.

O artigo “As características sistemáticas de recursos multimodais mobili-


zados por uma criança com TEA em turnos de fala corporificadas” (SANTIAGO,
2018) buscou analisar os recursos multimodais (fala, gesto, objetos, movimentos
corporais) realizados por Luiza, pseudônimo de uma criança com o diagnóstico

819
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

TEA. Os dados linguístico-interacionais, referentes às produções verbais de Luiza,


permitem observar que tais enunciados estão correlacionados a algum gesto.
Essa estrutura linguístico-gestual torna-se central para a compreensão de como
essa criança faz para ser entendida, e, para demonstrar suas interações socioco-
municativas em uma determinada situação interativa. Embora Luiza apresente al-
gumas restrições do ponto de vista dos recursos verbais, ela os mobiliza de modo
articulado e faz uso dos recursos não-verbais para construir e participar de situa-
ções. Assim, a investigação multimodal possibilitou dar visibilidade a uma gama
de recursos linguísticos e gestuais empregados por essa criança. Nesse sentido,
o estudo apresentado por Santiago (2018) ofereceu subsídios importantes para
a compreensão de como os sujeitos com TEA interagem, e como os outros inter-
locutores interagem com eles, propiciando um aprofundamento das perspectivas
sobre habilidades comunicativas e sociais no transtorno.

Conforme foi possível observar, as pesquisas analisadas são fontes de va-


liosas informações para o conhecimento, bem como para a busca por alternativas
pedagógicas por parte de professores que contam com alunos autistas em suas
salas de aula. Os pesquisadores salientam que o professor precisa inicialmente
compreender os conhecimentos prévios que cada aluno com TEA traz consigo,
como também deve atentar-se para seus gestos, movimentos, aspectos peculia-
res da linguagem, a levar em conta, assim, essas maneiras como forma de intera-
ção. Cabe ao professor saber lidar com o ‘não’ já que o autista apresenta formas
peculiares para lidar com o uso dessa palavra, recorrendo ao uso de atividades
que chamem a atenção do autista para então obter êxito na execução das práticas
propostas. Cada autista apresenta sua identidade, e não há receitas prontas para
saber lidar com eles, cabe aos professores buscar caminhos diferentes que o ins-
tiguem a progredir em sua aprendizagem.

Considerações finais

A discussão das pesquisas acadêmicas possibilitou construir conhecimen-


tos acerca do TEA, pois, conforme Thompson (2014), quanto maior o conheci-
mento acerca do autismo por parte das pessoas que interagem com tais crianças,
maiores serão as possibilidades de intervenções mais precisas e, portanto, mais
eficazes. Desse modo, se o professor de Língua Portuguesa conhece as caracte-
rísticas do TEA, pode trabalhar práticas e atividades que favoreçam as interações
sociais das crianças com TEA com esse professor e seus colegas, ampliando o

820
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

desenvolvimento da autonomia e da linguagem dessas crianças, algo fundamental


para que eles se tornem cidadãos críticos e ativos na sociedade atual.

Por fim, compreende-se que, com um trabalho direcionado e planejado que


ofereça desafios cognitivos ao aluno com TEA, é possível propiciar-lhe avanços
no domínio da linguagem, primordial para que o aluno se desenvolva, atingin-
do sua capacidade plena em relação à demanda apresentada pela escola e pela
sociedade.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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823
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

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824
FLORENCE WELCH EM TRADUÇÃO:
ANÁLISE DAS TRADUÇÕES DOS
POEMAS “MONSTER” E “BECOME
A BEACON” PARA A LÍNGUA
PORTUGUESA1

Leonardo Rigon Kasmarek2

RESUMO: A presente pesquisa busca desenvolver uma análise das traduções dos
poemas “Monster” e “Become a Beacon” de Florence Welch, contidos na obra
Useless Magic, para a Língua Portuguesa realizadas por nós como tradutores/
pesquisadores. Analisamos as traduções finais como produto tendo como supor-
te teórico a teoria dos polissistemas de Itamar Even-Zohar (1970), a teoria dos
Estudos Descritivos da Tradução de GideonToury (1995), procedimentos técni-
cos de tradução de Rafael Lanzetti et al (2006), entre outros teóricos. Um dos ob-
jetivos desta pesquisa é inserir a autora Florence Welch dentro do polissistema
literário brasileiro por meio das traduções dos poemas, para que fique conhecida
por sua literatura, visto que não foram encontrados trabalhos acadêmicos sobre
a autora em sites de pesquisas brasileiros. Outro objetivo é visualizar a análise
dos produtos finais é verificar quais elementos foram estrangeirizados e quais
foram domesticados para o polissistema brasileiro, visualizando quais foram as
escolhas dos tradutores em relação à rima, estrutura, etc. A pesquisa apontou

1 Artigo derivado de Trabalho de Conclusão de Curso.


2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná. leonardo_kasmarek@hotmail.
com

825
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que as traduções dos poemas apresentam, na maior parte delas, uma tendência
estrangeirizante, deixando as traduções similares ao texto-fonte, exceto alguns
itens específicos que foram domesticados para fazer mais sentido ao público do
polissistema brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: Florence Welch; Poesia; Estudos da Tradução.

ABSTRACT: The following research has the aim of developing an analysis from the
translations to Portuguese of the poems Monster and Become a Beacon by Florence
Welch inserted in the book Useless Magic, carried out by us as translators/researchers.
We analyse the final translations as product supported theoretically by polysystem
theory by Itamar Even-Zohar (1970), Descriptive Translation Studies by Gideon Toury
(1995), Technical Procedure of Translation by Lanzetti et. al. (2006), among others
theorists. One of the aims of this research is to introduce Florence Welch into Brazilian
literary polysystem, in order to present her literary work for Brazilian readers, as the-
re are no academic works about the author in Brazilian’s research websites. Another
objective of the present research is to analyze the translated texts and to verify whi-
ch elements were maintained or tamed to Brazilian polysystem, observing which were
the translators’ choices about rhythm, structure, etc. The research has shown that the
poem’s translation had, most of time, a maintance inclination, keeping the translations
similar to the source-language, except for some specific items that were tamed to make
sense to Brazilian polysystem readers.

KEYWORDS: Florence Welch; Poetry; Translation Studies.

Introdução

Welch é uma cantora, compositora e escritora britânica que desde o lança-


mento de seu primeiro álbum, Lungs (2009), chamou atenção por suas canções,
as quais, eventualmente, são dotadas de um teor cativante. Como exemplo, po-
demos citar o single Dog Days Are Over que aborda o tema de superação de pro-
blemas e momentos sombrios que a vida pode proporcionar. Com músicas que
misturam o fantástico, o espiritual e o real, Florence Welch alcançou prestígio no
mundo musical, tendo a oportunidade de cantar em desfiles de moda da Vogue
assim como ser atração principal de shows de grande importância, como o Rock
in Rio e Lollapalooza.

Florence criou vários hits a partir de anotações e poemas que escreveu du-
rante sua vida cotidiana e ao longo das turnês que realizou ao redor do mundo.

826
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Em 2018, com o apoio da editora Penguin, Florence Welch lançou seu primeiro
livro, o Useless Magic, que reúne todas as letras de seus quatro álbuns juntamen-
te com suas poesias. Essa obra apresenta, além do teor poético e musical, aspec-
tos fotográficos que chamam atenção pela qualidade e profundidade com que se
relacionam com as letras das músicas e com as poesias. O sucesso foi tão grande
que a grife Gucci lançou, juntamente com a artista, uma versão com uma capa per-
sonalizada da obra. Apesar do sucesso de seu livro, os poemas da Florence Welch
ainda não foram traduzidos para o Português, fator que impulsiona esta pesquisa.

Assim, diante desse fato, a proposta principal deste trabalho é refletir so-
bre o processo tradutório dos poemas contemporâneos de Florence Welch para a
Língua Portuguesa, sob à luz dos Estudos Descritivos da Tradução, sobretudo no
que tange à noção de Gideon Toury sobre os Estudos da Tradução orientados para
o produto (product oriented).

Como objetivo específico desta proposta, busca-se executar a tradução


dos poemas “Monster” e “Become a beacon” do livro Useless Magic, de Florence
Welch, originalmente escritos em Língua Inglesa, para a Língua Portuguesa. O
processo tradutório também envolverá a análise dos textos-fontes e de suas res-
pectivas traduções que serão inseridas no polissistema literário brasileiro. Com
base nas teorias de Bassnett (2002), Toury (1995), Even- Zohar (1970), entre ou-
tros, busca-se destacar a importância dos Estudos da Tradução como uma base
teórica sólida que sustentará a execução da tradução que será feita pelo pesqui-
sador deste trabalho.

O principal motivo para a realização desta pesquisa foi a ausência de tradu-


ções dos poemas de Florence Welch para Língua Portuguesa, visto que sua obra
Useless Magic foi lançada recentemente em 2018. Em sites brasileiros de pes-
quisas acadêmicas não encontramos nenhum material sobre a autora, motivo que
deu força a esta pesquisa. Outro motivo, e não menos importante, foi o incentivo
para que as pessoas conheçam o trabalho da autora, que compreende tanto poe-
sia e música, quanto fotografia, e que tem conquistado um espaço de prestígio na
esfera literária e artística entre os admiradores e críticos literários. Dessa forma,
traduzir alguns poemas de Florence Welch será uma forma de inseri-la no polissis-
tema literário para então mostrarmos o valor de sua obra para o leitor brasileiro.

827
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Estudos da Tradução

Os Estudos da Tradução nos revelam que o início da prática da tradução não


é expressamente cravado em uma linha do tempo. O que podemos afirmar é que
a tradução teve influência em fatos importantes da história. Segundo Bassnett
(2005, p. 59):

As perseguições dos tradutores da Bíblia durante os séculos que


os estudiosos estavam avidamente traduzindo e retraduzindo
autores gregos e romanos clássicos é um importante elo na cor-
rente do desenvolvimento do capitalismo e a queda do feudalis-
mo. Do mesmo modo, a abordagem hermenêutica dos traduto-
res do Inglês e Alemão Românticos se conecta com a mudança de
conceitos sobre o papel individual em um contexto social.

A tradução tem grande importância no mundo, visto que é ela que possibi-
lita a transição de ideias entre duas línguas com códigos linguísticos distintos. Sua
importância data desde as primeiras traduções da Bíblia até as traduções de gran-
des obras literárias, de discursos e de ideologias. Tendo em vista a importância so-
cial e cultural que a tradução desempenha, pensamos em fazer uma pesquisa que
pudesse demonstrar a beleza e a responsabilidade de uma atividade que muitas
vezes não recebe o devido reconhecimento.

A atividade tradutória tem sido realizada desde os romanos, seguindo por


meio das primeiras traduções da Bíblia e se perpetua com um vasto campo até
a contemporaneidade. Segundo Munday (2010, p. 7) “[...] ao longo da história, a
tradução escrita e oral exerceu um papel crucial na comunicação inter-humana,
e não menos importante em prover importantes textos para propósitos religio-
sos e acadêmicos”. Ao discutirmos as teorias da tradução, muito devemos à James
S. Holmes, que criou um mapa no qual ele expôs as diversas áreas tocadas pelos
Estudos da Tradução. Nele, Holmes esquematiza os estudos da tradução sub-
dividindo-as entre “pura” e “aplicada”. Do lado em que se situa a parte aplicada,
Holmes nos mostra que os estudos da tradução podem ser práticos, podendo ser
realizadas por intermédio de cursos de tradução, materiais e ferramentas que au-
xiliam o tradutor, assim como a crítica da tradução. Do lado em que se situa a par-
te pura, o autor nos mostra que ela pode ser tanto teórica quanto descritiva. No
que tange à parte teórica, ela poderá ser tanto geral quanto parcialmente teórica.
Se ela for descritiva, ela poderá ter um processo tradutório voltado ao produto,
ao processo ou voltado à função. Com este mapa, Holmes foi capaz de demostrar

828
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

o modo como o processo tradutório poderia ocorrer, o que deu base para várias
teorias da tradução.

Fonte: Mundy, 2010.

Na década de 1970 o israelense Itamar Even-Zohar desenvolve a teoria


dos polissistemas, no qual a palavra “polissistema” é definida por Shuttleworth e
Cowie como “[...] heterogênea, um conglomerado hierarquizado (ou sistema) de
sistemas os quais interagem para trazer um contínuo processo dinâmico de evolu-
ção dentro do polissistema como um todo”. (apud MUNDAY, 2010, p.108).

Mirian Ruffini em sua tese de doutorado, ao citar a teoria de Even-Zohar,


afirma que com os polissistemas:

[...] abre-se a possibilidade de estudar os sistemas e suas interre-


lações ao longo do tempo e na atualidade, levando-se em consi-
deração todos os elementos pertencentes ao sistema literário e
à literatura traduzida. A convivência de antigos e novos elemen-
tos, em diferentes camadas, com diversos valores e naturezas,
configura a aceitação do heterogêneo, da diversidade e da varie-
dade. Outro fator crucial da teoria dos polissistemas é a exclusão
do julgamento de valor na seleção da literatura a ser estudada.
(RUFFINI, 2015, p. 27).

829
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Ou seja, Even-Zohar utiliza várias línguas e culturas para que eles, de ma-
neira dinâmica, criem um processo contínuo de transformação dentro do polissis-
tema como um todo, aqui entendido tanto como língua fonte como a língua alvo.
O autor teve um olhar que demonstrou que a tradução não pode ser feita apenas
palavra por palavra ou termo pôr termo, mas sim que deve ser adaptada de acordo
com as características da língua alvo, para que os leitores consigam compreender
melhor o que o texto de origem tinha a dizer.

Gideon Toury, que já tinha trabalhado com Itamar Even-Zohar na criação


da teoria dos polissistemas, lança em 1995 os “Estudos descritivos da Tradução -
e Além”, o qual tinha o objetivo de criar uma teoria geral da tradução. Para Toury
(apud MUNDAY, 2010, p. 110):

O que está faltando não são isoladas tentativas refletindo exce-


lentes intuições e fornecendo uma boa visão (o que muitos estu-
dos existentes certamente fazem), mas de um ramo sistemático
que prossiga de forma clara e provida com uma metodologia e
técnicas de pesquisa feita de maneira tanto explícita como possí-
vel e justificada dentro do próprio estudo da tradução [...].

Portanto, Toury cria uma forma sistemática de mostrar como o processo


tradutório acontece. Para o autor, não há uma tradução inteiramente adequada,
pois, aspectos como a cultura e língua alvo devem ser considerados enquanto está
sendo feita uma tradução. Por meio do mapa que Holmes fez, Toury cria sua teoria
no ramo dos estudos descritivos, que subdividiu o processo tradutório com foco
no produto (product oriented), foco no processo (process oriented) e com foco
na função (function oriented). Dentro desta pesquisa, temos como base o foco no
produto, o qual Toury tem como objetivo tentar entender o que acontece na men-
te do tradutor durante o processo tradutório a partir de um produto (tradução)
final.

Susan Bassnett em sua obra Estudos da Tradução (Translation Studies)


afirma que no campo da tradução a poesia é a que mais demanda tempo para ser
estudada, dado os diversos desafios que existem no processo de sua tradução. A
autora exemplifica utilizando os estudos que André Lefevere fez sobre este tópi-
co, e que nomeou como sete estratégias para a tradução de poemas, sendo elas:
tradução fonética, tradução literal, tradução métrica, poesia em prosa, tradução
rítmica, tradução de verso branco e por último a interpretação. Bassnett ainda
afirma que o maior problema de traduzir poemas de tempos remotos é que tanto

830
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

os poetas como a significância deste poema também estão mortos para a atuali-
dade. Por meio disso conseguimos visualizar a dificuldade que a tradução da poe-
sia possui.

Em uma nova proposta de reformulação dos procedimentos técnicos de


tradução, Rafael Lanzetti et al (2006) nos apresenta duas vertentes dos procedi-
mentos técnicos, sendo eles procedimentos estrageirizadores ou procedimentos
domesticadores.

Rafael Lanzetti afirma que:

Os procedimentos estrageirizadores aproximas o texto de che-


gada do texto original, através do recurso de manutenção de
itens lexicais, estruturas e estilo. Os procedimentos domestica-
dores afastam o texto de chegada do texto original, aproximando
a tradução das estruturas linguísticas e da realidade da língua da
sociedade-alvo. (LANZETTI et al., 2006, p. 3).

A partir dessa definição, o autor explicita as técnicas a partir da divisão ci-


tada acima. Lanzetti divide os procedimentos estrangeirizadores em duas verten-
tes: a tradução palavra-por-palavra e a manutenção.

A tradução palavra-por-palavra pressupõe que “o texto de chegada terá o


mesmo número de palavras do texto original, obrigatoriamente na mesma ordem
sintática.” (LANZETTI et al, 2006, p. 5). Por exemplo, se a frase em inglês for “she
speaks three languages” em Português a tradução será “ela fala três idiomas”, con-
tendo o mesmo número de palavras do texto original e mantendo a mesma ordem
sintática. Essa técnica não apresenta nenhuma dificuldade tradutória lexical, sen-
do uma das mais utilizadas quando possível no processo tradutório.

A manutenção, segundo o autor:

Denominada anteriormente por outros autores da tradução


como tradução literal, é subdividida em quatro subcategorias:
manutenção de itens lexicais do texto-fonte, manutenção de
estruturas sintáticas do texto fonte, manutenção do estilo do
texto-fonte e manutenção de itens culturais da cultura-fonte.
(LANZETTI et al., 2006, p. 6).

A primeira subcategoria, a manutenção de itens lexicais do texto-fonte,


também conhecida como empréstimo, “ocorre quando o tradutor decide manter,

831
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

no texto de chegada, um item lexical da língua fonte”. (LANZETTI et al, 2006, p.6).
Essa permanência de um item do texto-fonte pode ocorrer com ou sem aclima-
tação. Quando a aclimatação ocorre “[...] palavras estrangeiras adquirem nova
forma ortográfica condizente com o sistema fonético-ortográfico da língua de
chegada”. (LANZETTI et al, 2006, p. 6). Por exemplo, a palavra Whisky se trans-
forma em Uísque com a aclimatação para a língua Portuguesa. Quando não há a
aclimatação, o item simplesmente permanece da mesma maneira como é escrito
em língua inglesa.

Tradução do poema “monster”, de Florence Welch:

Através dos procedimentos técnicos de tradução apresentado por Lanzetti,


começaremos analisar a tradução do poema Monster de Florence Welch (anexo
1). Nós escolhemos esse poema, pois ele retrata as dificuldades que temos em se
doar de coração para outra pessoa, seja em um relacionamento entre amigos, fa-
miliares ou amantes. Ele também contrastará com o poema Become a Beacon, o
qual mostra a outra faceta desse sentimento.

Em um primeiro momento notamos que a tradução tende a ser mais estran-


geirizada, pois aproxima o texto de chegada ao texto-fonte. Nota-se também que
a estrutura e o estilo do texto de chegada ficaram iguais ao do texto-fonte.

Ao analisarmos a manutenção desses itens, visualiza-se que há a manuten-


ção de estruturas sintáticas do texto-fonte, pois a ordem sintática da maioria dos
itens é semelhante ao do texto-fonte. No quinto verso há a frase “at what cost”, no
qual chega no texto-fonte como “a que custo”, seguindo a mesma estrutura sintáti-
ca do texto-fonte. O mesmo ocorre no décimo quarto verso que diz “but you have
to satisfy the monster” e chega no texto-alvo como “mas você tem que satisfazer
o monstro”, seguindo a mesma ordem sintática do texto original.

Ao realizarmos a tradução da palavra “monstro” nos deparamos com certa


dificuldade. Pensamos se não seria esse o caso de, possivelmente, fazermos uma
equivalência desse item para algo como “egoísmo” ou “arrogância”, visto que a
interpretação do poema nos demonstra que seria esse o significado do monstro.
Nós decidimos não substituir esse item, pois acreditamos que, após pesquisa rea-
lizada, esse item abranja de fato o que o eu-lírico quis dizer. Para Julio Jeha:

Ao contrário da maioria dos gregos, Aristóteles considerava o


monstro não o resultado da punição divina para faltas humanas,

832
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

mas sim uma questão do estágio em que o conhecimento se en-


contrava. Para o filósofo, o monstro não era uma ofensa contra a
natureza, mas simplesmente um desvio do que nela usualmente
ocorria. Gêmeos eram monstruosos por causa de sua raridade.
A redescoberta das obras de Aristóteles no século 13 pode ter
direcionado o conceito de monstro para a ordem natural, pois
ele adquiriu os significados de “pessoa desfigurada” e “ser mal-
formado”. Sob a fluência duradoura dos seus textos, um “indiví-
duo com uma má-formação congênita grave” seria considerado
um monstro. Um hermafrodita, que, nos tempos de Aristóteles,
seriateras, maravilha, tornou-se monstruosidade na Alta Idade
Média (1000-1300). (JEHA, 2007, p. 8).

Aristóteles, portanto, acreditava que o monstro desvia os caminhos natu-


rais. O eu-lírico nos mostra que esse monstro do poema é o sentimento egoísta que
temos (por isso a ideia de talvez temos posto tal item) de sempre estar satisfazen-
do a nós mesmos, por mais que estejamos nos relacionando com outras pessoas. O
eu lírico nos mostra que as pessoas tiram “partes da sua vida” para alimentar esse
sentimento, essa necessidade de atenção, de ser visto e reconhecido. Às vezes as
pessoas fazem coisas absurdas para se sentirem amadas e valorizadas, coisas que
fogem a lógica natural das coisas. Por isso é um monstro, é algo que habita nas
pessoas e ao mesmo tempo controla elas, pois ele precisa ser alimentado.

No trecho em que o texto-fonte apresenta a frase “how awful” ficamos em


dúvida em relação a como traduziríamos o item “how”. Inicialmente decidimos in-
serir na tradução o item “quão”, no qual ficaria como “quão horrível” no texto-alvo.
Entretanto, ao revisarmos nossa tradução, optamos por utilizar o item “que” no
lugar de “quão”, ficando no texto-alvo como “que horrível”. Decidimos mudar esse
item, pois acreditamos que este seja mais comum aos leitores brasileiro, visto que
o item “quão” já não é tão utilizado quanto “que” nesse polissistema.

Notamos também que há a manutenção do estilo do texto-fonte. Nessa


manutenção a pontuação e o registro formal foram mantidos no texto-alvo.
Observa- se que o poema do texto-fonte apresenta apenas um sinal de pontua-
ção, o ponto final, o qual é mantido no mesmo local no texto-alvo.

Apesar de o texto-alvo apresentar uma predominância estrangeirizadora,


a tradução também possui alguns traços domesticadores, visto que ambos os pro-
cedimentos andam em conjunto. A domesticação mais comum que ocorre nesta
tradução é a do sistema linguístico, que utiliza da transposição para domesticar
o texto-fonte. Como exemplo temos os versos de número dez, onze e doze: “To

833
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

make human sacrifices/ a late night conversation/ a private thought” chegando


ao texto fonte como “Fazer sacrifícios humanos/ uma conversa tarde da noite/
um pensamento privado”. Nota-se que os adjetivos “sacrifices, late e thought”
mudaram de local no texto-alvo. Optamos por fazer essa inversão, pois no polis-
sistema brasileiro o adjetivo vem depois do substantivo e, caso mantivéssemos
na mesma ordem, não seria lido com naturalidade pelos leitores inseridos nesse
polissistema.

Optamos por deixar a tradução mais estrangeirizada, pois gostaríamos que


o texto-alvo se aproximasse do texto-fonte e porque gostaríamos que o sentido
e a forma do texto não sofressem mudanças. Desse ponto de vista, concorda-
mos tanto com Haroldo de Campos, ao seguir a estrutura do poema, quanto com
Jakobson e Mario Laranjeiras, ao visualizar o texto como um todo para realizar a
tradução.

Florence Welch exibe nesse poema os esforços postos em prática para


uma autossatisfação. O monstro de que o eu-lírico apresenta é o sentimento de
necessidade que possuímos. Necessidade de atenção, de amor, de contato com
outro alguém. Esse sentimento é chamado de monstro, pois não se anseia neces-
sariamente por um outro alguém, para compartilhar uma vida a dois, mas o que
é fundamental em si é se sentir bem com você mesmo, mesmo que o sentimento
por um outro alguém não seja verdadeiro ou intenso. Faz-se necessário, portanto,
alimentar esse sentimento que é egoísta, no qual é preciso fazer “sacrifícios hu-
manos”, ou seja, é necessário utilizar dos sentimentos dos outros para conseguir
alimentar esse sentimento monstruoso. Apesar de monstruoso e terrível, esse é
o monstro que mais amou o eu lírico, visto que esse sentimento nos acompanha
desde que nascemos.

Tradução do poema “become a beacon”, de Florence Welch:

Também utilizando os procedimentos técnicos de Lanzetti, analisaremos


a tradução do poema Become a Beacon de Florence Welch (anexo 2). Nós esco-
lhemos este poema, pois ele contrasta com o poema Monster analisado anterior-
mente. Essa é uma característica marcante na estética da autora: em um dado mo-
mento as coisas são pacíficas e belas e no outro momento já se tornam caóticas
e estranhas. No primeiro poema, Monster, temos a representação do egoísmo e
da monstruosidade que habita em cada um de nós. Nesse, por outro lado, há a

834
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

esperança que também habita o ser humano e, como demostra o poema, é a fun-
ção de cada um deixar essa chama/esperança queimar dentro de si. Ao selecio-
narmos esse poema entendemos que, por mais que haja escuridão e monstros em
nossos corações, é necessário que a luz se propague e que se tornemos um farol,
em especial, para nós mesmos, internamente, para conseguir de algum modo se
encontrar e confrontar seus monstros interiores.

Esta tradução, assim como a outra, possui em sua totalidade mais proces-
sos estrangeirizadores, aproximando o texto-alvo ao texto-fonte. Entretanto,
esta tradução também possui traços domesticadores, nesse caso, mais acentua-
dos do que no outro poema.

O primeiro processo estrangeirizador que notamos é a manutenção das


estruturas sintáticas do texto-fonte, que coincide com as estruturas sintáticas
do texto-alvo com o texto-fonte. O primeiro verso é apresentado como “keep
that flame alive” e é traduzido para “mantenha aquela chama viva”. Ele exempli-
fica muito bem a mesma ordem sintática em ambos os textos. No segundo verso,
a frase “the future is within you”, que é traduzida para “o futuro está dentro de
você”, também apresenta essa mesma manutenção. Essa chama a qual o eu-lírico
se refere é a esperança e, de algum modo, a mudança de velhos hábitos. Quando
você decide se desapegar de velhos costumes que não fazem bem a você, você se
torna um farol para você mesmo, com esperança para o futuro que virá a partir de
uma possível mudança.

Outro exemplo dessa permanência da estrutura sintática são os hipera-


tivos “raise”, “hold” e “let” dos versos quatro, cinco e seis que permanecem no
texto-alvo como “eleve”, “mantenha” e “deixe”. Observa-se que na maior parte da
tradução permanece sendo utilizada essa técnica de mantimento das estruturas
sintáticas do texto-fonte.

No segundo verso nós decidimos manter a palavra “you” que está em


maiúsculo no texto-fonte na nossa tradução. Portanto, a palavra “você” do segun-
do verso do texto-alvo, é mantida em maiúscula, pois acreditamos que esse recur-
so foi utilizado pelo eu-lírico para enfatizar que a chama que está viva, a esperan-
ça habita dentro de “você” e em nenhum outro local.

Há também, como dito anteriormente, alguns procedimentos domestica-


dores que apresentaremos a seguir. No quarto verso, o eu lírico utiliza “high” que

835
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

tradicionalmente seria traduzido como “alto”. Foi utilizada a palavra “alturas” para
criar sentido com a palavra “eleve” do verso anterior, mantendo a ideia de subli-
mação desse sentimento. A técnica utilizada nesse verso é a domesticação do es-
tilo através da generalização da palavra “high”. Elevar o amor neste caso significa
se amar em primeiro lugar, deixar o seu amor vivo e brilhante independentemente
das vezes que as pessoas duvidaram ou fizeram mal-uso desta luz/paixão/amor.
Por isso é importante manter ele elevado, nas alturas, para que todos vejam e te-
nham esperança.

No sexto verso do texto-fonte o eu lírico utiliza “Miles and miles” para dar
um sentido de distância de alcance para o brilho do amor que é emitido pelo farol,
visto aqui como a alma e o coração do eu lírico. Na tradução, entretanto, utiliza-
mos “quilômetros a fio”. Nota-se que unidade de medida utilizada no texto-fonte
não é a mesma utilizada no texto-alvo, tendo como consequência a domesticação
extralinguística, mais especificamente a transferência, no qual se substitui um
item cultural do texto-fonte para outro do texto-alvo, visto que fará mais senti-
do para os leitores daquele polissistema. Ao utilizar essa técnica, foi necessário
observar o polissistema de chegada para fazer tal procedimento domesticador.

Considerações finais

Podemos afirmar que o tradutor optou por manter a forma dos poemas
quanto aos itens que foram domesticados. A estrutura dos poemas, em especial
o poema Become a Beacon, fazem parte da estética da autora, visto que grande
parte de seus poemas foram feitos em cadernos de anotações com desenhos para
complementar o sentido do texto.

Notamos, portanto, que mesmo havendo procedimentos domesticadores,


as traduções possuem em sua maioria procedimentos estrangeirizantes, manten-
do a forma o texto-alvo. Essa análise foi possível, pois acessamos a tradução final,
a qual Toury define como produto, e analisamos quais foram as técnicas utilizadas
pelo tradutor desses poemas. Devemos lembrar que essa definição de produto
foi criada por Toury a partir do mapa que Holmes com o objetivo de estruturar os
Estudos da Tradução.

Observamos que os poemas do texto-fonte apresentam versos brancos,


o que resultou na escolha de mantermos os versos brancos nas traduções, pois

836
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

levamos em consideração a forma do texto-fonte, visto que eles estão dispostos


de uma maneira a criar sentido para os leitores do polissistema de chegada.

Acreditamos, enfim, que o objetivo de inserir a artista no polissistema bra-


sileiro foi alcançado. A partir das traduções dos dois poemas será possível para o
público brasileiro conhecer e apreciar as obras de Florence Welch. A partir desta
pesquisa os leitores desse polissistema poderão conhecer e buscar se aprofundar
na música e literatura da artista.

Referências

AMORIM, L. M.; RODRIGUES, Cristina Carneiro; STUPIELLO, Érika Nogueira de


Andrade. Tradução: perspectivas teóricas e práticas.1. ed. – São Paulo: Editora
Unesp Digital, 2015.
BASSNETT, S. Translation Studies. 3. ed. London: Routledge, 2005.
JEHA, J. (org).Monstros e monstruosidades na literatura. Belo Horizonte: edito-
ra UFMG, 2007.
MUNDAY, Jeremy. Introducing translation studies. 2 ed. London: Routledge,
2010.
RUFFINI, M.. A tradução da obra de Oscar Wilde para o português brasileiro:
paratexto e O retrato de Dorian Gray. 238 fls. 2015. Tese (Doutorado em Estudos
da Tradução) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2015.
TOURY, G. Descriptive translation studies and beyond. v.4. Philadelphia: John
Benjamins, 1995.
WELCH, F. Useless Magic. Fig Tree London, 2018.

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DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ANEXOS

ANEXO 1:

Monster Monstro

So you start to take pieces of your own life Então você começa a tirar partes da sua
And somewhat selfishly vida
Other people’s lives E de alguma maneira egoísta
And feed them to the song Da vida de outras pessoas
At what cost E alimenta-as nas canções
This wondrous creature A que custo
That becomes more precious to you Esta criatura incrível
Than the people that you took from Que se torna mais preciosa para você Do
How awful que as pessoas das quais você tirou
To make human sacrifices Que horrível
A late night conversation Fazer sacrifícios humanos
A private thought Uma conversa tarde da noite
All placed upon the altar Um pensamento privado
But you have to satisfy the monster The Tudo oferecido no altar
moster has loved you for longer Than Mas você tem que satisfazer o monstro
anyone else. O mostro que te amou por mais tempo
Que qualquer outro alguém.

ANEXO 2:

Become a Beacon Transforme-se em um farol

Keep that flame alive Mantenha aquela chama viva


The future is within YOU O futuro está dentro de VOCÊ
It burns bright in your heart. Ela queima viva em seu coração
Raise your love Eleve o seu amor
Hold it high Mantenha-o nas alturas
Let it shine for miles and miles Deixe-o brilhar por quilômetros a fio
You are not alone Você não está sozinho

838
MARCAS CULTURAIS NO PROCESSO
TRADUTÓRIO: ESTUDO DA TRADUÇÃO
DO SKETCH THE KING OF BOONLAND

Ana Flávia Will1


Giovanna Bendia Pereira2
Mirian Ruffini3

RESUMO: Este estudo aborda a análise da versão traduzida (pelas autoras des-
te trabalho) do sketchThe King of Boonland, de Doug Case e Ken Wilson, e as re-
flexões acerca do processo de tradução e revisão do texto em português. Tais
percepções foram construídas tendo como base a aplicação dos procedimentos
técnicos de tradução de Lanzetti et al. (2009) e a teoria dos polissistemas de Even-
Zohar (2013), além das perspectivas teóricas de Venuti (2002) e Bassnet (2005).
O intuito da pesquisa foi abordar um texto cômico da esfera das artes teatrais,
sob o viés de teorias do campo dos estudos descritivos da tradução, a partir da
construção de uma ponte entre os sistemas culturais vinculados ao par linguístico
Inglês-Português, ou seja, texto e língua fonte e alvo. Concluiu-se, após o estudo,
que, apesar de a versão traduzida levar em conta o contexto e a língua-fonte do
texto original, não foi possível transpor de forma completa as marcas culturais
que causam o efeito humorístico no sketch, dificultando a boa aceitação do tex-
to traduzido enquanto gênero cômico no polissistema brasileiro. Não obstante,
a pesquisa foi relevante para a construção de repertório científico no campo dos

1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Pato Branco. anawill1994@gmail.com


2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Pato Branco. giobendiap@gmail.com
3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Pato Branco. mirianr@utfpr.edu.br

839
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

estudos descritivos da tradução e para a percepção crítica das autoras enquanto


tradutoras.

PALAVRAS-CHAVE: Polissistemas; Processo tradutório; Estudos descritivos da


tradução.

ABSTRACT: This study approaches the analysis of the translation (by the authors of
the article) of the sketch The King of Boonland, by Doug Case and Ken Wilson, and the
reflections around the process of translation and revision of the text in Portuguese. Such
perceptions were built based on the application of the technical procedures of transla-
tion by Lanzetti et al (2009) and Even-Zohar’s polysystem theory (2013), besides the
theoretical perspectives of Venuti (2002) and Bassnet (2005). This research’s aim was
to approach a comical text from the drama/theater context under the light of theories in
the area of translation descriptive studies, through the construction of a connection be-
tween the cultural systems which are connected to language pair (English-Portuguese),
which means, text and language as source and target. It was possible to conclude, after
the study, that even though the translated version takes the context and the source-lan-
guage from the original text into account, it was not possible to completely transpose
the cultural marks causing the comical effect in the sketch, which makes it more difficult
for the translated version to be highly welcomed as a comical gender in the Brazilian
polysystem. Nonetheless, the research was quite relevant by means of amplifying the
scientific repertoire in the field of translation descriptive studies and for the critical self
perception of the authors of this article as translators.

KEYWORDS: Polysystems; Translation Process; Descriptive translation studies.

Introdução

Este estudo trata das marcas culturais no processo tradutório do sketch The
King of Boonland e foi realizado por acadêmicas, com a orientação e supervisão da
Profa. Dra. Mirian Ruffini, docente do curso de Licenciatura em Letras Português-
inglês e do curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Tecnológica
Federal do Paraná, Campus Pato Branco.

Inicialmente, este artigo trata do texto que aqui é objeto de análise e sua
respectiva tradução (inédita, realizada para fins desse estudo acadêmico), da me-
todologia e autores utilizados, seguido da análise dessa versão traduzida e con-
clusões a partir do estudo.

840
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

O texto escolhido foi o sketch The King of Boonland, de Doug Case e Ken
Wilson (CASE; WILSON, 2002, p.17-21).

Para melhor compreender as características e os detalhes importantes na


obra, é necessário inicialmente compreender o que é o sketch, ou em português,
esquete. Nas palavras de Patrice Pavis, especialista da área da dramaturgia, o es-
quete é:

uma cena curta que apresenta uma situação geralmente cômi-


ca, interpretada por um pequeno número de atores sem carac-
terização aprofundada ou de intriga aos saltos e insistindo em
momentos engraçados e subversivos. [...] Seu princípio motor é
a sátira, às vezes literária (paródia de um texto conhecido ou de
uma pessoa famosa), às vezes grotesca e burlesca (no cinema e
na televisão) da vida contemporânea. (PAVIS, 2015, p. 143).

Em outras palavras, esquete é um gênero textual dramático, curto e cômi-


co, tal qual a obra ora analisada.

Esse sketch foi encenado pela primeira vez em 1981, aproveitando-se do


momento do casamento entre a Princesa Diana e o Príncipe Charles na Inglaterra
(CASE; WILSON, 2002, p.17). Como os autores apontam nos comentários que an-
tecedem o script, no texto original, o rei trazia um presente para os noivos, mas
na versão traduzida para fins deste estudo, ele tenta visitar a rainha da Inglaterra
para entregar um presente de seu povo (CASE; WILSON, 2002, p.17).

O texto é um diálogo que conta com poucos personagens, cuja ambienta-


ção se dá no Castelo de Buckingham, em Londres, na Inglaterra. Não há indício
temporal no texto para que se faça possível identificar em que momento na histó-
ria ele ocorre, mas é possível concluir que ele não leva mais do que alguns minutos
para atingir o clímax e seu desfecho.

O enredo do sketch gira em torno da discussão entre um guarda novato do


Palácio de Buckingham e um homem que se apresenta como Rei da Bonlândia. O
suposto rei alega que está ali para visitar a Rainha da Inglaterra, e insiste que pre-
cisa entrar. O guarda rebate que aquele país não existe, o que desencadeia uma
série de argumentos absurdos que “comprovam” a existência de Bonlândia, inclu-
sive apontar no mapa a localização exata do país – no meio do Atlântico. No fim, o
rei convence o guarda de todo com toda aquela história nonsense e espalhafatosa,

841
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

e consegue entrar no palácio, deixando até uma gorjeta para o guarda ir tomar
uma xícara de chá (CASE; WILSON, 2002, p.17-21).

Metodologia

Este estudo foi desenvolvido a partir da tradução inédita do texto em ques-


tão (ANEXO 1), da Língua Inglesa (original da obra) para a Língua Portuguesa, e
recebeu o título de O Rei da Bonlândia.

Após a tradução e revisão literária das teorias de tradutores da área dos


Estudos Descritivos da Tradução, foi possível identificar as ocorrências de pro-
cedimentos técnicos estrangeirizadores e domesticadores de que trata Rafael
Lanzetti et al. (2009), utilizados no processo de tradução.

Em seguida, foi empregada a teoria dos polissistemas de Itamar Even-


Zohar (2013), os passos do processo tradutório e a interdependência entre língua
e cultura na concepção de Susan Bassnett (2005), além da percepção de Laurence
Venuti (2002) quanto à tradução estrangeirizante e os vestígios do tradutor para
aprofundar o estudo e as intercorrências do processo tradutório, chegando enfim
aos resultados que serão abordados mais à frente.

Resultados e discussão

A versão traduzida do sketch The King of Boonland, em contraste com o tex-


to original de Doug Case e Ken Wilson em inglês (CASE; WILSON, 2002, p.17-21),
foi inicialmente analisada sob as concepções mais técnicas e os procedimentos de
que trata Lanzetti et al. (2009).

Segundo o autor,

Os procedimentos estrangeirizadores aproximam o texto de


chegada do texto original através do recurso de manutenção de
itens lexicais, estruturas e estilo. Os procedimentos domestica-
dores afastam o texto de chegada do texto original, aproximando
a tradução das estruturas linguísticas e da realidade extratextual
da língua e da sociedade-alvo. (LANZETTI et al., 2009, p.3).

842
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Com base nos preceitos estrangeirizadores do autor, foi possível identi-


ficar, na versão traduzida, a ocorrência de certos procedimentos técnicos como
abordado na obra. Eles são exemplificados a seguir.

PROCEDIMENTO TÉCNICO
VERSÃO ORIGINAL VERSÃO TRADUZIDA
ESTRANGEIRIZADOR
What’s so special about a O que é tão especial em uma Tradução
banana? banana? “palavra-por-palavra”

Just put the banana in your Só coloque a banana na sua Tradução


ear! orelha! “palavra-por-palavra”

Buckingham Palace Palácio de Buckingham Manutenção de itens culturais


da cultura-fonte
Pound Libra Manutenção de itens culturais
da cultura-fonte
Tabela 1. Exemplos de Procedimentos Técnicos Estrangeirizadores (LANZETTI et al., 2009, p. 5)

De acordo com o autor, quando se fala em traduções literais ou “palavra-


-por-palavra”, pressupõe-se que “o texto de chegada terá o mesmo número de pa-
lavras do texto original, obrigatoriamente na mesma ordem sintática.” (LANZETTI
et al., 2009, p. 5). Podemos observar esse modo tradutório nos trechos “What’s so
special about a banana?” e “Just put the banana in your ear!”, que foram traduzidos
literalmente como “O que é tão especial em uma banana?” e “Só coloque a banana
na sua orelha!”.

Além disso, Lanzetti et al. (2009, p.7) também explana a respeito do proce-
dimento técnico chamado de manutenção de itens culturais da cultura fonte, no
qual

[...] o tradutor decide reproduzir o item cultural do texto-fonte no


texto de chegada sem nenhuma explicação ou explicitação. Isso
ocorre principalmente quando o tradutor julga que o item cultu-
ral presente no texto-fonte é compreensível ao público leitor do
texto de chegada. (LANZETTI et al., 2009, p.7).

Com base nisso, exemplos como Buckingham Palace e pounds foram traduzi-
dos sem maiores explicações de contexto, pois presume-se que o leitor seja fami-
liar com o significado desses termos na cultura de partida.

843
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Quanto aos aspectos domesticadores apresentados por Lanzetti et al.


(2009), alguns trechos foram identificados e estão exemplificados na tabela a
seguir.

PROCEDIMENTO TÉCNICO
VERSÃO ORIGINAL VERSÃO TRADUZIDA
DOMESTICADORES
Boonland Bonlândia Adaptação

Boonos; Boonitos Bons; Boninhos Adaptação

Here we are Nós estamos aqui Transposição

Go and buy yourself a cup of tea Vá comprar uma xícara de chá Transposição
para você
And we want to give the queen a E nós queremos dar um Transposição
special Boonese present presente especial da Bonlândia
para a Rainha
Sentry-box Guarita Sinonímia
Tabela 2. Exemplos de Procedimentos Técnicos Domesticadores (LANZETTI et al., 2009, p. 7)

Para Boonland, boonos e boonitos, que foram palavras de destaque na cons-


trução do país fictício, optou-se pelo procedimento domesticador chamado adap-
tação, que Lanzetti et al. descreve como “mudanças profundas no estilo do texto,
adaptando-o ao novo contexto editorial e/ou ao público ao qual se destinará a tra-
dução.” (2009, p.17).

Para Boonland, a escolha foi pelo acréscimo do sufixo “-lândia”, que traz a
ideia de lugar e soa mais familiar à Língua Portuguesa (como em Disneylândia), e
pela retirada de uma letra O, pois o som criado pela repetição dessas vogais é co-
mum ao idioma de partida, mas não ao de chegada. Já as moedas boonos e booni-
tos foram traduzidas como bons e boninhos, que também soam mais familiares à
cultura de chegada, em especial o sufixo -inhos que é um diminutivo comum em
português.

Já o procedimento transposição é definido por Lanzetti et al. (2009, p.8)


como “a mudança da ordem sintática de um ou dois elementos sintáticos do tex-
to-fonte. Ocorre por razões de obrigatoriedade sintática ou pragmática da língua
de chegada.” Com base na explicação dada pelo autor, é possível notar esse pro-
cedimento na processo tradutório dos trechos: “Here we are”, que foi traduzido
para o português como “nós estamos aqui”; “go and buy yourself a cup of tea” e sua

844
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

tradução: “vá comprar uma xícara de chá para você” e no trecho “and we want to
give the queen a special Boonese present” que foi traduzido como “e nós queremos
dar um presente especial da Bonlândia para a Rainha.”

A transposição se faz necessária, pois, mesmo que a escolha tradutória de


modo geral tenha sido por um texto mais literal e estrangeirizante, é preciso que o
material traduzido se adeque à gramática da língua de chegada.

Por fim, o autor define a sinonímia como a tradução de “um elemento lexi-
cal do texto-fonte por um sinônimo na língua-alvo”. (LANZETTI et al., 2009, p. 10).
Esse procedimento foi identificado na tradução do termo sentry-box, que é o local
designado aos guardas do Palácio. A opção de tradução foi guarita, termo mais
genérico e abrangente mas de significado mais habitual na Língua Portuguesa.

Após essa percepção, é necessário analisar alguns pontos mais focados no


aspecto cultural e sua influência na obra e traduções.

A autora Susan Bassnett aborda a relação entre língua e cultura como uma
das questões centrais nos estudos da tradução e, a partir da leitura de sua obra, é
possível identificar três pontos relevantes para que ocorra o adequado exame do
processo tradutório.

Primeiramente, o tradutor deve identificar a influência de signos semió-


ticos que exercem interferência direta sobre a recepção do texto traduzido, eis
que ocorre a necessidade de levar em consideração questões gramaticais e lexi-
cais, mas que também precisa-se contextualizar o texto considerando uma série
de elementos extralinguísticos que influenciam em sua percepção na língua-alvo
(BASSNETT, 2005, p.35).

Em seguida, busca-se o reconhecimento das diferentes realidades, para


que dessa forma possa ocorrer a transferência e uma reestruturação do texto que
se adeque de forma satisfatória à língua-alvo, ou, como a autora identifica, a deco-
dificação e recodificação do texto (BASSNETT, 2005, p.37 e ss.). Nesse contexto, a
autora aponta que “[...] não há texto totalmente original, porque a própria língua,
em sua essência, já é uma tradução”; e que “[...] todos os textos são originais por-
que toda tradução é [...] uma invenção e enquanto tal, constitui um texto único”.
(BASSNETT, 2005, p.61). Em outras palavras, cada tradução é, tecnicamente fa-
lando, um novo texto e essa percepção não pode ser ignorada.

Por fim, a autora aponta o estabelecimento da interligação inata entre lín-


gua e cultura. “A língua, portanto, é o coração do corpo da cultura, e é a interação

845
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

entre os dois que resulta na continuação da energia-vida”, escreve (BASSNETT,


2005, p.36). É a partir dessa relação de interdependência entre elas que a própria
tradução deve ocorrer, considerando não apenas o sistema linguístico, mas o sis-
tema cultural fonte e alvo e as marcas culturais que permanecem no decorrer do
processo tradutório (BASSNETT, 2005, p.35-36).

No caso da versão ora analisada em Português do sketch, essas marcas cul-


turais ficaram bastante evidentes, pois optou-se por manter esses traços cultu-
rais, sem alteração para o sistema cultural de chegada. Não obstante, o próprio
humor característico desse gênero textual se evidencia em grande parte através
dessas referências extralinguísticas, então alterá-las no processo seria, na per-
cepção das autoras, um desserviço à própria obra.

Com uma perspectiva semelhante, aborda-se os preceitos da teoria dos


polissistemas de Even-Zohar. A partir deles e da “observação de leis que regem a
diversidade e a complexidade dos fenômenos mais que o registro e a classificação
desses” (EVEN-ZOHAR, 2013, p. 1), compreende-se que é necessário entender
a complexidade dos fenômenos para que seja possível transpor seu conteúdo e
forma para outro polissistema sem maiores perdas.

Zohar também afirma que, “geralmente, o centro do polissistema inteiro é


idêntico ao repertório canonizado mais prestigiado. [...] De modo semelhante, o
status de qualquer repertório literário está determinado pelas relações que exis-
tem no (poli)sistema”. (2013, p. 9-10).

A versão estudada de The King of Boonland foi escrita em meados de 1980,


e a percepção de cômico e seus moldes eram distintos dos vistos nos dias atuais.
Muitas obras com teor semelhante ao sketch analisado foram produzidas na mes-
ma época, como Mr. Bean, o icônico personagem britânico criado com apenas al-
guns anos de diferença, em 1990, e que causa percepção humorística a partir de
seu jeito atrapalhado e nonsense, o que remete justamente ao monarca apresen-
tado no sketch.

A partir dessa leitura, percebe-se a necessidade da pesquisa mais aprofun-


dada sobre o polissistema de origem quando se analisa uma obra. Além disso, é
necessário que o momento histórico em que o texto foi escrito seja levado em
consideração para que o processo tradutório ocorra com fluidez e tenha um resul-
tado adequado, de modo que as marcas culturais que enriquecem o texto-fonte
sejam mantidas.

846
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Por fim, aborda-se a concepção de Laurence Venuti, que defende a tra-


dução estrangeirizadora. O autor aponta que “[...] a tradução nunca pode ser
simplesmente a comunicação entre similares, porque ela é fundamentalmente
etnocêntrica”. (VENUTI, 2002. p.27). Venuti entende que a língua é uma relação
de poder e que línguas que não o inglês, língua mais traduzida no mundo, são co-
locadas em uma posição “inferior”, como minorizantes (VENUTI, 2002, p.26-27).

Com relação ao uso de método de tradução estrangeirizante, ele também


ressalta que, “[...] se o resíduo é liberado em pontos significativos numa tradução
que é de forma geral legível, a participação do leitor só será interrompida mo-
mentaneamente”. (VENUTI, 2002, p.29). Assim, manter uma tradução estrangei-
rizadora, segundo Venuti, seria mais benéfico à obra e, também, ao leitor, cuja
percepção da obra como um todo ocorre de forma mais plena quando é possível
perceber essas variações características da tradução com marcas do tradutor e
da cultura fonte.

Por fim, após a análise teórica do processo tradutório aqui objeto de estu-
do, pontue-se que, ao estabelecer a relação entre os polissistemas de origem e de
chegada, deve-se considerar que esses polissistemas ditam certas regras para o
resultado final, mas ao manter os resíduos em pontos significativos (tal qual foi
realizado nesta versão em Português do sketch), é possível mostrar ao leitor ain-
da de forma fluida que aquele é um texto traduzido, proveniente de um contexto
diferente, cujas marcas culturais (mesmo na versão traduzida) são essenciais para
atingir o objetivo do texto (nesse caso, o humor), além de, é claro, ressaltar e valo-
rizar o trabalho do tradutor, que nesse momento atua como elemento-chave para
o acesso livre e igualitário à literatura, à arte e à cultural global como um todo.

Considerações finais

Após o aprofundamento do estudo do processo tradutório e elementos-


-chave envolvidos na tradução do sketch The King of Boonland do Inglês para o
Português, é possível pontuar algumas observações finais.

Considerando os aspectos culturais e as peculiaridades do gênero textual


sketch, houve certa dificuldade em transpor as marcas culturais para a manuten-
ção do humor dentro do texto, o que não diminuiu a qualidade da versão traduzi-
da, mas certamente desacelerou o andamento da tradução.

847
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A opção tradutória das autoras deste estudo foi pela tradução estrangei-
rizante, com apenas algumas adaptações domesticantes, seguindo a perspectiva
dos teóricos trabalhados no que tange à manutenção de elementos tipicamente
culturais e outros vestígios do tradutor que seriam necessariamente relevantes
para a concretização do objetivo do texto em si, qual seja, o humor.

Conclui-se, por fim, que estudos como este possibilitam a contínua tomada
de consciência e desmistificação de que o ato tradutório é uma atividade automá-
tica de transcrição de vocábulos de um idioma para o outro; ele é, na verdade, um
trabalho complexo e amplo que abrange também a análise de sistemas culturais e
tudo o que isso implica.

Referências

BASSNET, S. Estudos da Tradução. Trad.: Sônia T. Gehring, Letícia V. Abreu e Paula


A. R. Amtinolfi. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005.
CASE, D.; WILSON, K. English Sketches - Sketches from the English Teaching
Theatre, books 1 & 2. London: Macmillan, 2002. Disponível em: <https: //vdoc-
uments.site/english- sketches-books-1-and-2-tapescripts-and-teaching-notes.
html>. Acesso em: Ago. 2020.
EVEN-ZOHAR, I. Teoria dos polissistemas. Trad.: Luís Fernando Marozo, Carlos
Rizzon, Yanna Karlla Cunha. In: Revista Translatio, Porto Alegre, 4, p.2-21, 2013.
Disponível em: <https: //seer.ufrgs.br/translatio/issue/viewFile/2211/22&gt;>.
Acesso em: Ago. 2020.
LANZETTI, R. et al. Procedimentos Técnicos de Tradução – Uma proposta de re-
formulação. Revista ISAT, São Gonçalo-RJ. n. 7. 2009. Disponível em: <https: //
revista.isat.edu.br/?page_id=54>. Acesso em: Ago. 2020.
PAVIS, Pa.. Dicionário de Teatro. Tradução de Maria Lúcia Pereira, J. Guinsburg,
Rachel Araújo de Baptista Fuser, Eudynir Fraga e Nanci Fernandes. São Paulo:
Perspectiva, 2015.
VENUTI, L. Escândalos da Tradução: por uma ética da diferença. Bauru, SP:
EDUSC, 2002.

848
TOLKIEN E POESIA: UMA APRECIAÇÃO
TRADUTÓRIA DE “THE MAN IN THE
MOON STAYED UP TOO LATE”1

Maria Luísa Mackowiak2


Mirian Ruffini3

RESUMO: A vasta obra de John Ronald Reuel Tolkien é frequentemente lembrada


por suas marcantes aventuras e caráter fantástico. Buscando entender aspectos
tradutórios que envolvem a passagem de seus textos do inglês para o português,
consideramos examinar uma de suas obras escrita em uma série de poemas. As
aventuras de Tom Bombadil, especialmente o poema número 5, ‘The Man In The
Moon Stayed Up Too Late’, são considerados na língua inglesa e nas traduções de
William Lagos e de Ronald Eduard Kyrmse para a língua portuguesa, ambas con-
tidas na edição bilíngue de 2008 pela editora Martins Fontes. Para tanto, abor-
damos reflexões teóricas sobre tradução em geral, enfatizando a tradução poéti-
ca com Mário Laranjeira (2003), André Lefevere (2007), Paulo Henriques Britto
(2012) e Álvaro Faleiros (2015). Por meio dos estudos sobre aspectos estruturais
e semânticos, refletimos sobre estratégias utilizadas nos textos dos dois tradu-
tores, suas escolhas lexicais e imagens utilizadas para ilustrar as características
presentes no texto na língua-fonte e como o texto apresenta-se nas diferentes
1 Artigo desenvolvido para a disciplina de “Tradução e Literatura” (2019/1) do Programa de Pós-
graduação em Letras da UTFPR, campus Pato Branco, ministrada pela Professora Doutora
Mirian Ruffini.
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), campus Pato Branco. marialuisama-
ckowiak@gmail.com
3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), campus Pato Branco. mirianr@utfpr.edu.
br

849
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

traduções. Considerando-se que o texto-fonte é um poema, a presença dos ver-


sos caracteriza-se como um elemento significativo para a organicidade de sua tra-
dução. Assim, no decorrer deste estudo, exaltamos pontos que ressaltam tanto o
texto-fonte, quanto a tradução para a Língua Portuguesa.

PALAVRAS-CHAVE: Tradução Literária; Tolkien; Poesia.

ABSTRACT: The great work of John Ronald Reuel Tolkien is frequently remembered by
its memorable adventures and fantastic feature. Seeking for translation aspects that
implicate the transposition from the English language to the Portuguese, we conside-
red to explore one of his works written in a series of poems. The Adventures of Tom
Bombadil, especially the poem “The Man In The Moon Stayed Up Too Late”, are verified
in the translations of William Lagos and Ronald Eduard Kyrmse, both present in the
2008 bilingual edition by Martins Fontes publishing house. Therefore, we approach
theorical observations about translation in general, emphasizing the poetic translation
with Mário Laranjeira (2003), André Lefevere (2007), Paulo Henriques Britto (2012)
and Álvaro Faleiros (2015). Through studies about structural and semantic aspects, we
reflect about strategies used in the texts of both translators, their lexical choices and
images used to illustrate the characteristics that make part of the source language of
the text and how the text presents itself in both different translations. Considering that
the source text is a poem, the presence of the verses is a significative element for its
translation organicity. Thus, throughout this study, we estimate elements that highligh-
ts both source text and its translation to Portuguese.

KEYWORDS: Literary translation; Tolkien; Poetry.

Introdução

Ao pensarmos em Literatura Fantástica, como também em aventura – uma


jornada em busca de um objetivo grandioso, o Bem contra o Mal, características
tais inseridas no decorrer do século XX –, as primeiras histórias das quais lem-
bramos são de alguns hobbits percorrendo a Terra-Média na companhia de elfos,
anões, magos e tantas outras criaturas mágicas. O Hobbit e O Senhor dos Anéis en-
cantam o público mais de meio século após suas publicações, e não são as únicas
obras de John Ronald Reuel Tolkien sobre as quais vários estudiosos debruçam-se
para apreciar as escritas do “autor do século”, como afirmou Tom Shippey (2000).

John Ronald Reuel Tolkien, conhecido como J. R. R. Tolkien ou simples-


mente Tolkien, nasceu em Bloemfontein, África do Sul, em 1892. Filho de pais

850
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

ingleses, retornou à Inglaterra ainda pequeno, órfão de pai aos quatro anos de
idade e de mãe aos doze. Casou-se com sua esposa Edith por volta de 1915; ser-
viu ao Exército Britânico em 1916 e trabalhou para o Oxford English Dictionary,
recebendo uma cadeira na Universidade de Leeds e a Cadeira de Anglo-saxão na
universidade de Oxford4 (SHIPPEY, 2000).

E após isso nada mais aconteceu. Tolkien fez seu trabalho, criou
sua família, escreveu seus livros [...]. Suas publicações considera-
das mais acadêmicas foram uma edição do romance medieval Sir
Gawain and the Green Knight, que ele co-editou com E.V. Gordon
em 1925, e seu curso da Academia Britânica sobre Beowlf em
1936 [...]. (SHIPPEY, 2000, p. 6, tradução nossa)5.

Foi professor na área de estudos da Língua Inglesa da Universidade de


Oxford por cerca de 30 anos – ocupando uma segunda cadeira, da qual se apo-
sentou em 1959 – e faleceu em 1973, dois anos após sua esposa (SHIPPEY, 2000).

Segundo Shippey (2000), o que fica evidente na vida de Tolkien é sua men-
te, a vida e o mundo criados por ele, que eram, ao mesmo tempo, sua paixão. Além
disso, Tolkien era, primeiramente, um filólogo: seus estudos focavam-se no Inglês
Médio e Antigo, numa amálgama de estudos linguísticos e literários – indubitavel-
mente ligados, como afirmam Shippey e o próprio Tolkien.

Por meio do fascínio ao estudar os idiomas antigos, o autor estudou muitos


deles – principalmente o inglês antigo –, com também criou e desenvolveu diver-
sas línguas fictícias ao longo de sua vida. As histórias e o mundo que ele inventou
foram “[...] justamente para oferecer a essas línguas o espaço de seu desenvolvi-
mento”. (GONÇALVES, 2007, p. 149). Assim, “a ficção de J. R. R. Tolkien se desen-
volve no terreno da fantasia e do mito, e suas bases de sustentação são a língua e
a manipulação da linguagem”. (GONÇALVES, 2007, p. 26).

Tolkien escreveu uma obra vasta, que inclui contos, romances, poemas e
descrições sobre a história do mundo criado por ele. Suas obras mais conhecidas
são a trilogia de O Senhor dos Anéis e O Hobbit, ambas amplamente difundidas após
o lançamento de outras obras fantásticas, como as histórias sobre o bruxo Harry
Potter, e, principalmente, após o lançamento de filmes baseados nessas duas
4 “the AngloSaxon Chair at Oxford” (SHIPPEY, 2000, p. 6).
5 And after this nothing else really happened. Tolkien did his job, raised his family, wrote his books
[...]. His main purely academic publications were an edition of the medieval romance Sir Gawain
and the Green Knight, which he co-edited with E.V. Gordon in 1925, and his British Academy
lecture on Beowulf in 1936 [...] (SHIPPEY, 2000, p. 6).

851
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

obras. O Silmarillion pode ser considerada sua obra mais grandiosa, editada por
seu filho Christopher Tolkien e publicada postumamente em 1977.

Dentre as obras de Tolkien, temos a coletânea de poemas As aventuras de


Tom Bombadil, livro abordado neste trabalho. Os textos contidos nesse livro fo-
ram retirados de algumas histórias, alguns não estavam inseridos em obras espe-
cíficas, foram compilados e tiveram sua primeira publicação em 1962. A edição
que analisamos aqui é bilíngue, ou seja, possui tanto os poemas em Língua Inglesa,
quanto suas traduções para a Língua Portuguesa.

Devemos considerar, então, a relevância da obra As aventuras de Tom


Bombadil no contexto brasileiro e, mais especificamente, como uma obra tradu-
zida para a Língua Portuguesa. Por conseguinte, apresentamos algumas consi-
derações sobre a produção poética de Tolkien em As aventuras de Tom Bombadil,
especialmente do poema número 5, ‘The Man In The Moon Stayed Up Too Late’.
Em seguida, abordamos reflexões teóricas sobre tradução em geral, enfatizando a
tradução poética com Mário Laranjeira – considerado como uma das maiores re-
ferências na área de tradução no Brasil –, André Lefevere, Paulo Henriques Britto
e Álvaro Faleiros. Assim, contrastamos algumas passagens das duas traduções –
presentes no livro – do poema ‘The Man In The Moon Stayed Up Too Late’ para o
português, a primeira de William Lagos e a segunda de Ronald Eduard Kyrmse, re-
fletindo sobre possíveis estratégias utilizadas e exaltando pontos que ressaltam
tanto o texto original, quanto a tradução para a Língua Portuguesa.

Tom Bombadil e “The Man In The Moon Stayed Up Too Late”

A obra As aventuras de Tom Bombadil, publicada pela primeira vez em 1962,


contém 16 poemas, escritos ao longo dos anos por Tolkien. No prefácio escrito
por Tolkien para a primeira edição, ele descreve rapidamente a história dos poe-
mas, inserindo-os nos acontecimentos da Terra-Média, lugar em que se passam O
Hobbit e O Senhor dos Anéis.

Apesar de o livro levar o nome do personagem de Tom Bombadil, apenas os


dois primeiros poemas retratam sua figura excêntrica e mítica, o primeiro intitu-
lado igualmente ao livro. Podemos considerar Tom Bombadil como um ser quase
mais antigo que a própria Terra-Média, o qual possui características mitológicas
e é extremamente ligado com a Natureza (SLETHAUG, 1978). Em O Senhor dos

852
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Anéis, os personagens de Frodo e Sam encontram Tom na Floresta Velha e com-


partilham de sua companhia por certo tempo.

Os poemas que tratam de Tom Bombadil [...] e em menor grau


‘Olifante’, ‘O tesouro’ e ‘O último navio’, referem-se a temas re-
lacionados com o ciclo da Terra Média. Também ‘O sino marinho’
relembra o espírito de Frodo Bolseiro, retornando de sua busca.
Ademais, ‘O Homem da Lua foi dormir muito tarde’, ‘O troll de
pedra’ e ‘Olifante’ estão presentes no texto de O Senhor dos Anéis’.
Conforme o tom, os poemas desta obra variam do épico [...] ao
cômico. (KYRMSE in TOLKIEN, 2008, p. 72).

Uma das figuras míticas que aparece nos poemas 5 e 6 é o Homem da Lua,
The Man in the Moon em Língua Inglesa. Segundo Tolkien, o personagem usava sa-
patos prateados, sua barba era feita de fios de prata, usava pérolas nos cabelos,
possuía um cinto largo, com opalas, e um manto cinzento (tradução nossa)6.

O poema número 5, ‘The Man in the Moon stayed up too late’, do qual trata-
mos mais especificamente neste estudo, foi publicado pela primeira vez em 1923,
intitulado de ‘The Cat and the Fiddle: A Nursery Rhyme Undone and its Scandalous
Secret Unlocked’ – algo como “O gato e o violino: uma canção infantil desfeita e
seu segredo chocante descoberto” (SHIPPEY, 2000). O título, bem como o poema,
remete-se a uma tradicional canção infantil em Língua Inglesa:

Hey diddle, diddle!


The cat and the fiddle,
The cow jumped over the moon;
The little dog laughed
To see such sport,
And the dish ran away with the spoon. (BLAND, 2013, p. 164).7

Em seu prefácio para a primeira edição, Tolkien relata que “o Livro Vermelho
registra que o poema Número 5 foi composto por Bilbo [...]” (2008, p. 10), como
também o poema Número 3. Além disso, o poema 5 é cantado por Frodo na taber-
na Pônei Saltitante em O Senhor dos Anéis: a Sociedade do Anel.
6 “The Man in the Moon had a silver shoon,/and his beard was of silver thread;/With opals crow-
ned and pearls all bound/about his girldlestead” (TOLKIEN, 2008, p. 157).
7 “Ei diddle, diddle! / O gato e o violino, / a vaca pulou por sobre a lua; / o pequeno cão riu / de ver
tal esporte, / e o prato fugiu com a colher” (BLAND, 2013, p. 164, tradução nossa).

853
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

A tradução do poema

Ao lermos uma obra de Tolkien no Brasil, procuramos, na maioria das ve-


zes, o texto em Língua Portuguesa, o qual chega até nós por meio da tradução.
Pensando numa relação entre o Brasil e a Inglaterra e a obra de Tolkien, deve-
mos nos recordar dos estudos sobre os polissistemas, desenvolvidos por Itamar
Even-Zohar:

A ideia de que os fenômenos semióticos, ou seja, os modelos de


comunicação humana regidos por signos (tais como a cultura, a
linguagem, a literatura, a sociedade), podem ser entendidos e es-
tudados de modo mais adequado se os consideramos como siste-
mas, mais que como conglomerados de elementos díspares, con-
verteu-se em uma das ideias diretrizes do nosso tempo na maior
parte das ciências humanas e sociais. (EVEN-ZOHAR, 2013, p. 1).

Os poemas de As aventuras de Tom Bombadil estão compreendidos, portan-


to, dentro de um polissistema geral da literatura, um grande “guarda-chuva”, o
qual se ramifica em polissistemas menores, aqui esclarecidos como o polissistema
da Inglaterra e o polissistema do Brasil. Podemos dizer que uma das formas pelas
quais os dois polissistemas se interligam é por meio da tradução; Even-Zohar con-
sidera “[...] a literatura traduzida não apenas como um sistema integral dentro de
um polissistema, mas como um sistema bastante ativo dentro dele” (2012, p. 2).
Para “que a literatura traduzida se torne central ou periférica, e que essa posição
esteja conectada com repertórios inovadores (‘primários’) ou conservadores (‘se-
cundários’), depende da constelação específica do polissistema a ser estudado.
(EVEN-ZOHAR, 2012, p. 2).

Pensando na tradução em si, concordamos com Andre Lefevere (2007)


quando o autor declara que “[...] para leitores que não podem checar a tradução
com o original, a tradução, simplesmente, é o original. Reescritores e reescritu-
ras projetam imagens da obra original, do autor, da literatura, ou da cultura, que
sempre impactam muito mais os leitores do que o original faz” (p. 177-178). Logo,
a tradução tem um papel primordial para os indivíduos que não dominam um idio-
ma estrangeiro ao seu e é por meio dela que entram em contato com obras de
diversos lugares do mundo.

Quanto à tradução de poemas, mais especificamente, consideramos que


“traduzir o poema é trabalhar a língua de chegada para se obter uma relação

854
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

semelhante a nível de significantes que acarretará uma significância correlata à


do poema original”. (LARANJEIRA, 2003, p. 27). De acordo com Mário Laranjeira,
“parece mais razoável, ao invés de se falar de tradutibilidade ou intradutibilidade
absolutas, aceitar que, na verdade, existem graus, aqui maiores, ali menores, de
tradutibilidade” (2003, p. 13).

Para seguirmos com o assunto sobre tradução de poemas, devemos pon-


derar, primeiramente, acerca do conceito de poesia. Segundo Laranjeira (2003),
“[...] a poesia, em maior ou menor grau, ultrapassa sempre os estritos limites da
lingüística (sic) na manifestação da sua significância” (p. 43). Ao nos depararmos
com um poema, uma das primeiras características que observamos é a presença
da poesia, além da forma em versos. No entanto, não devemos nos ater somente
a isso para dizer que um texto é poético, pois a poesia pode estar contida também
em textos em prosa, imagens, frases, entre outros:

A primeira falácia a evitar é a identificação da prosa com a não-


-poesia e a do verso com a poesia. Seria uma redução simplista
que estaria privilegiando alguns dos aspectos meramente for-
mais, escriturais do texto que, embora mereçam - e terão oportu-
namente - a devida atenção, não me parecem dar conta das opo-
sições maiores e mais profundas entre a poesia e a não-poesia.
(LARANJEIRA, 2003, p. 42).

Devemos recordar que para um poema ser classificado como tal é neces-
sário que os versos estejam presentes. Podemos dizer, de um modo bem simples,
que a poesia se mostra presente como o “conteúdo” de um texto e o poema é a
“forma” em versos. No caso de “The Man In The Moon Stayed Up Too Late”, a pre-
sença dos versos é o que define o texto como um poema. Nesse primeiro aspecto,
as duas traduções preservam o texto em versos.

Em relação à tradução desse tipo de texto, Laranjeira declara, então, que


“o tradutor não pode colocar-se diante de um poema como se colocaria diante de
outro texto qualquer. Se a língua do poema é, sob muitos aspectos, uma antilín-
gua, a atitude operante do tradutor de poemas pouco terá a ver com a do tradutor
comum” (2003, p. 51). Vejamos, pois, como se organizam os dois textos em Língua
Portuguesa e quais aspectos possuem caracterizando-se como duas traduções de
um mesmo poema.

855
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

“The Man In The Moon Stayed Up Too Late”: tradução e poema

Como a edição de 2008 é bilíngue, As aventuras de Tom Bombadil possui tan-


to os textos originais em Língua Inglesa, quanto os textos traduzidos para uma
segunda língua, no caso, o português. O exemplar da editora Martins Fontes é es-
pecial, de certa forma, pois apresenta duas traduções para a Língua Portuguesa,
além dos poemas originais. A primeira parte contém as versões de William Lagos,
“[...] em versos brancos, mas mantendo a métrica irregular do poema original”
(RIVERA in TOLKIEN, 2008, p. XV); a segunda expõe as traduções de Ronald
Eduard Kyrmse e “[...] reflete uma tradução mais técnica usando ao máximo o co-
nhecimento profundo do mundo e dos personagens do autor, obrigando toda a
tradução aos preceitos poéticos de Tolkien em relação à rima e à métrica” (Ibidem,
p. XV-XVI).

Ademais, a nota à edição de 2008 esclarece ainda que “a poesia que por-
ventura se perdeu pode, para o leitor que domina a língua inglesa, ser resgatada
na leitura do original, que forma o último bloco deste livro” (Ibidem, p. XVI).

As breves descrições sobre os textos dos dois tradutores já nos revelam


uma certa avaliação das traduções. Enquanto as versões de Lagos são descritas
como possuindo versos brancos e a métrica original, as de Kyrmse são retratadas
com mais detalhes e evidenciam que o tradutor possui amplo conhecimento de
Tolkien e do estilo de seus poemas. Contudo, não devemos nos ater apenas a algu-
mas informações para julgar uma tradução. Aqui fica uma questão a ser pensada:
devemos julgar, avaliar, a tradução de um poema ou de qualquer produto literário?

Para Paulo Henriques Britto (2012), é possível estimar a qualidade de uma


tradução, comparar o texto na língua fonte com o na língua alvo e identificar pon-
tos positivos e negativos; não é uma questão de gosto. Segundo o autor, toda e
qualquer característica de um poema pode ter um significado crucial; “[...] cabe ao
tradutor determinar, para cada poema, quais são os elementos mais relevantes,
que, portanto, devem necessariamente ser recriados na tradução, e quais são me-
nos importantes e podem ser sacrificados” (BRITTO, 2012, p.121).

Vejamos, pois, o título do poema número 5. “The Man In The Moon Stayed
Up Too Late” foi traduzido por Lagos como “O Homem da Lua se demorou demais”,
enquanto por Kyrmse como “O Homem da Lua foi dormir muito tarde”. Uma tradu-
ção literal poderia ser “O Homem na lua ficou acordado até muito tarde”. Sabemos

856
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que o personagem não está na lua propriamente, então as traduções como o


“Homem da Lua” cabem perfeitamente a um contexto na Língua Portuguesa.

A tradução de Lagos traz o verbo “demorar”, junto da partícula “se”, referin-


do-se ao Homem da Lua, para expressar as palavras – verbo e advérbio – “stayed
up late”, e o advérbio de intensidade “demais” para “too”, partícula que expressa
intensidade na Língua Inglesa quando associada a outro vocábulo. Já a tradução
de Kyrmse traz as expressões “foi dormir” para “stayed up” e “muito tarde” para
“too late”. A expressão “foi dormir” exprime o contrário de “stayed up”, que seria
algo como “ficar acordado; ainda assim, com a adição da expressão “muito tarde”,
entendemos que o personagem “ficou acordado até muito tarde”, o que produz o
mesmo entendimento da frase.

Contrastemos, pois, as duas traduções para a primeira estrofe do poema.


Vejamos na tabela a seguir:

The Man In The Moon Stayed O Homem da Lua se demorou O Homem da Lua foi dormir
Up Too Late demais muito tarde
There is an inn, a merry old inn Existe uma estalagem, uma Numa estalagem, velha
beneath an old grey hill, velha [e alegre estalagem, [estalagem
And there they brew a beer so À sombra de uma velha colina ao pé do morro antigo,
[brown [cinzenta; A cerveja que fazem é tão
That the Man in the Moon E lá eles fermentam uma [castanha
[himself came down cerveja [tão acastanhada, Que o Homem da Lua com
one night to drink his fill Que o próprio Homem da Lua sede [tamanha
(TOLKIEN, 2008, p. 154). [desceu uma noite, desceu que nem pôde consigo
para beber até ficar satisfeito (KYRMSE in TOLKIEN, 2008,
(LAGOS in TOLKIEN, 2008, p. 95).
p. 32).
Tabela 1. Poema na língua-fonte e as duas traduções abordadas.

Como exposto anteriormente, Lagos traduziu o poema em versos brancos,


então o esquema de rimas não é o mesmo do poema original. Já Kyrmse manteve
o esquema de rimas original, o qual caracteriza-se como ABCCB.

No primeiro verso, as estruturas sintática e semântica são mantidas na


versão de Lagos, enquanto Kyrmse opta por uma estratégia de achatamento
(LEFEVERE, 2007), ocultando os verbos “existir”, os artigos indefinidos e o adjeti-
vo “merry” (“feliz”, “alegre”).

857
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

No segundo verso, Lagos traduz “beneath” como “à sombra”, optando por


um equivalente na língua alvo (LEFEVERE, 2007). Também muda o padrão sintáti-
co do original (LEFEVERE, 2007) para adaptar-se à estrutura gramatical da Língua
Portuguesa: “old grey hill” torna-se “velha colina cinzenta”. Kyrmse, além de sele-
cionar um equivalente para o vocábulo “beneath” (“ao pé”) e mudar o padrão sintá-
tico, oculta novamente uma palavra, “grey”, a qual qualifica o “old hill” no original.

No terceiro verso, Lagos mantém a ordem sintática, enquanto Kyrmse


modifica toda a sentença, de uma frase na voz ativa (“they brew a beer so brown”)
em Língua Inglesa, para a voz passiva (“A cerveja que fazem é tão castanha”) em
português.

Observamos no quarto e quinto versos que Kyrmse modificou tanto a or-


dem quanto as palavras utilizadas, como “sede tamanha” e “nem pôde consigo”,
para rimarem com os versos correspondentes, terminados em “antigo” (verso 2) e
“castanha” (verso 3). Podemos dizer que o tradutor utilizou a estratégia de acrés-
cimo para preencher requisitos de rima (LEFEVERE, 2007).

Lagos, no quarto e quinto versos, fez algumas modificações sintáticas e op-


tou por traduzir “to drink his fill” como “para beber até ficar satisfeito”, esta última
frase contida em todo o último verso da estrofe, diferentemente do original.

Na tradução para o português, a estrofe de Lagos possui uma estrutu-


ra morfossintática mais longa que o poema de Tolkien, enquanto na versão de
Kyrmse a estrofe parece se alongar na mesma dimensão que a original.

Um dos aspectos que não é abordado por nenhum dos dois tradutores é a
questão fonética, das aliterações e assonâncias presentes nos versos. O próprio
personagem “The Man in the Moon” já possui a aliteração da letra “m”, enquanto
em Língua Portuguesa a aliteração não é preservada. Ademais, o segundo verso
possui as aliterações da letra “b” – “And there they brew a beer so brown” -, da letra
“r” - “And there they brew a beer so brown” – e a assonância da letra “e” - “And there
they brew a beer so brown”.

Se abordássemos as duas traduções considerando a estrofe apresentada e


os diversos aspectos relevantes na tradução de um poema, elas não abarcam to-
das as características do texto de Tolkien. Lembremos que “toda tradução é obri-
gada a alterar o original, mas idealmente essas alterações deverão ser discretas,
de modo a não descaracterizar aspectos importantes do poema; e as eventuais
omissões e acréscimos também devem se dar sobre elementos que não sejam

858
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

cruciais” (BRITTO, 2012, p. 145). No caso de Lagos, a característica marcante das


rimas foi omitida em apreço ao nível semântico; em se tratando de Kyrmse, as al-
terações acontecem com a finalidade de uma construção formal, ao contrário de
Lagos.

De acordo com Álvaro Faleiros (2015), “os critérios que podem determinar
o que é uma tradução melhor não são [...] fixos; o que não quer dizer que não pos-
sam ser objetivados” (p. 268). A palavra melhor é um tanto intensa para descre-
vermos uma tradução. No entanto, respondendo à pergunta feita anteriormente,
podemos, sim, avaliar a tradução de um poema, considerando o que o tradutor
concebeu para sua tradução.

No caso da edição bilíngue abordada, percebemos influências externas que


ocasionaram na presente obra.

Para fugir do dilema entre a tradução literal e a literária, a Editora


[Martins Fontes] decidiu publicar uma edição com o texto origi-
nal e duas versões, uma literal, o mais fiel possível ao significado
do original, e outra, em que a fidelidade seria buscada na métrica,
no ritmo, nas cesuras, nas aliterações, no esquema por rimas, na
modificação do formato das estrofes, ou seja, o mais adequada
(sic) poeticamente aos variados esquemas adotados por Tolkien
[...] (LAGOS in TOLKIEN, 2008, p. 4).

Lagos relata como a edição teria sido idealizada pelos organizadores. A


versão “mais literal”, semanticamente falando, seria a do próprio Lagos, e a outra
versão, a qual ele descreve, primeiramente, como “literária”, seria a de Kyrmse.
Constatamos, pois, a influência do mecenato na constituição da obra, ou seja, uma
regulamentação da “[...] relação entre o sistema literário e os outros sistemas que
constituem uma sociedade, uma cultura […] senão a escritura de literatura, pelo
menos sua distribuição […]” (LEFEVERE, 2007, p. 35). Outras obras de Tolkien fo-
ram publicadas pela mesma editora ao longo dos anos 2000: O Senhor dos Anéis
(edição com a trilogia A Sociedade do Anel, As Duas Torres e O Retorno do Rei – 2001),
O Hobbit (2013) e Contos Inacabados (2014).

Contudo, devemos ponderar que

[...] a tradução leva as marcas do sujeito tradutor tal como qual-


quer poema leva, carrega e exibe as marcas do poeta que o ge-
rou. É, pois, mera ilusão pretender-se fazer uma tradução que

859
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

não pareça tradução, se com isso se entende uma tradução que


não tenha as suas próprias marcas (LARANJEIRA, 2003, p. 120).

Logo, as traduções de William Lagos e Ronald Kyrmse, apesar das diferen-


ças entre si e das alterações, de certo necessárias, para a composição de suas ver-
sões, oferecem-nos uma oportunidade de conhecermos ainda mais a obra vasta
de Tolkien. Como Kyrmse declarou em sua apresentação à edição, que quem do-
mine o inglês consiga ver “como ficaram” os poemas e que “[...] o leitor de língua
portuguesa possa apreciar, como numa fotografia em preto e branco de um qua-
dro magistral, algo daquilo que o autor nos quis transmitir” (2008, p. 74).

Conclusão

Considerando que “a tradução é uma reescritura, noutra língua, de uma


leitura do texto” (LARANJEIRA, 2003, p. 29), cada tradutor procura estabelecer
estratégias que melhor se adequam para a construção de um texto na língua alvo.

As tensões entre autor e tradutor, língua-cultura de partida e lín-


gua-cultura de chegada, texto original e texto traduzido sempre
existirão. Eliminar tais tensões não é o escopo a que a tradução
deva visar em nome da fidelidade. Há que se tentar, antes, traba-
lhar essas tensões para obter, [...] um texto homogêneo, não um
texto subalterno (LARANJEIRA, 2003, p. 120).

Na tradução de um poema, sobre a qual tratamos brevemente, o tradutor


deve conceber os diversos aspectos que envolvem o texto original, como a semân-
tica, a sintaxe, as questões fonéticas e estruturais, sem relevar uma característica
em detrimento das outras.

Ao contrastarmos as duas traduções do poema “The Man in The Moon


Stayed Up Too Late”, observamos que William Lagos optou pelo aspecto semânti-
co do poema, o que contribui para a manutenção sintática e de sentido em Língua
Portuguesa, ainda que se afaste das questões estruturais e fonéticas. Kyrmse, por
sua vez, conseguiu unir os diversos elementos necessários para uma tradução
mais próxima ao texto original, como a semântica e a estrutura, com um produto
que demonstra organicidade e fidelidade ao texto-fonte.

Por conseguinte, percebemos uma influência do mecenato, descrito por


Lefevere, na construção e publicação da edição bilíngue pela editora Martins

860
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Fontes. Lagos faria uma tradução “mais literal”, enquanto Kyrmse traduziria “li-
terariamente”, questão que influenciou nas características dos textos traduzidos.
Contudo, consideramos as traduções de Lagos e Kyrmse como um retrato da poé-
tica de Tolkien, ambas sendo orgânicas em si mesmas e de acordo com o poema
fonte.

Devemos nos recordar das palavras de Lefevere, quando este diz que, para
muitas pessoas, o texto traduzido é o original. Não consideramos aqui questões
de gosto ou apreciação de uma tradução sobre a outra, mas sim sua presença no
contexto brasileiro e como tais textos ficarão conhecidos por mais indivíduos por
meio dessa edição. “O texto e a tradução-texto sempre trarão em sua multiplicida-
de intrínseca o germe de novas leituras que os protegerão do envelhecimento, da
caducidade e da morte” (LARANJEIRA, 2003, p. 40). Tolkien e seus escritos vive-
rão quase que eternamente, enquanto textos originais e traduzidos em diversas
partes do mundo, assim como diversas outras obras que vêm e vão à procura de
seus lugares em meio aos vários idiomas e culturas.

Referências

BLAND, J.. The Poetry of Children’s Literature and Creative Writing. In: _______.
Children’s Literature and Learner Empowerment: Children and Teenagers in
English Language Education. Londres: Bloomsbury Academic, 2013.
BRITTO, P. H. A tradução de poesia. In: _______. A tradução literária. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.
EVEN-ZOHAR, I. A posição da literatura traduzida dentro do polissistema literá-
rio. Translatio, v. 3, p. 3-10, 2012. [de Ávila Braga, Leandro trans.]
EVEN-ZOHAR, I. Teoria dos polissistemas. Translatio, v. 4, p. 2-21, 2013. [Marozo,
Luis Fernando, Carlos Rizzon & Yanna Karlla Cunha trans.]
FALEIROS, A. Tradução & poesia. In: AMORIM, L.; M.; RODRIGUES, C. C.;
STUPIELLO, E. (orgs). Tradução &: perspectivas teóricas e práticas [online]. São
Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, pp. 263-275. ISBN
978-85-68334-61-4. Disponível em SciELO Books <http: //books.scielo.org>.
GONÇALVES, D. F.Pseudotradução, Linguagem e Fantasia em O Senhor dos
Anéis, de J. R. R. Tolkien: Princípios criativos da fantasia tolkieniana. Dissertação –
Mestrado. Universidade De São Paulo - Faculdade De Filosofia, Letras E Ciências
Humanas Departamento De Letras Modernas. 2007.

861
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

LARANJEIRA, M. Poética da Tradução: Do Sentido à Significância. São Paulo:


Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
LEFEVERE, A.. O Sistema: Mecenato In: ____. Tradução, reescrita e manipulação
da fama literária. Tradução Claudia Matos Seligmann. Bauru: Edusc, 2007. cap 2,
p. 29-49.
LEFEVERE, A. Tradução: Linguagem – Os muitos pardais de Catulo. In: ____.
Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Tradução Claudia Matos
Seligmann. Bauru: Edusc, 2007. cap 8, p. 101-105.
SHIPPEY, T. J. R. R. Tolkien: Author of the Century. Londres: HarperCollins UK,
2000.
SLETHAUG, G. E. Tolkien, Tom Bombadil, and the Creative Imagination.English
Studies in Canada. vol. 4, n. 3, p. 341-350, 1978.
TOLKIEN, J.R.R. As aventuras de Tom Bombadil (Edição Bilíngue). Tradução de
William Lagos e Ronald Eduard Kyrmse. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

ANEXOS

O REI DA BONLÂNDIA
(Versão traduzida por Ana Flávia Will e Giovanna Bendia Pereira)
Cenário: Em frente ao Palácio de Buckingham.
Personagens: Um guarda, um sargento, o Rei da Bonlândia.
O guarda e o sargento marcham até a guarita.
Sargento: Marcha rápido! Esquerda, direita, esquerda, direita, esquerda,
direita, esquerda, direita! Alto! ... Direita volver! Bradshaw!
Guarda:Senhor!
Sargento:Você está vigiando o Palácio de Buckingham.
Guarda:Sim, senhor!
Sargento:Não esqueça!
Guarda:Não, senhor!
(O sargento sai. O guarda fica parado em silêncio. O Rei da Bonlândia se aproxima do
guarda.)
Rei: Bom dia... Olá! Dia bonito, não? Você fala Inglês? Sprechen Sie
español? Acho que ele é surdo. Ah, bom...

862
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

(O Rei começa a caminhar em direção ao Palácio.)


Guarda:Ei!
Rei: Ó! Ele fala!
Guarda: Onde você está indo?
Rei: Estou indo ao Palácio de Buckingham.
Guarda:Parado!
Rei: Eu não quero ficar parado aqui. Eu quero entrar aqui.
Guarda: Parado!!
Rei: Ai, tá bom.
Guarda:Quem você pensa que é?
Rei: Eu sou Fred, Rei da Bonlândia.
Guarda:Bem, escuta aqui, Fred Rei -
Rei: Não, não, meu nome não é Fred Rei. Eu sou o Rei Fred.
Guarda: Você está querendo dizer que você é um rei de verdade?
Rei: Sim. Eu sou o Rei da Bonlândia.
Guarda:Bonlândia?
Rei: Sim.
Guarda: E onde exatamente fica Bonlândia?
Rei: Rá! Você não sabe onde fica a Bonlândia?
Guarda: Não!
Rei: Ah. Ta, olhe aqui no meu mapa.
(O Rei pega seu mapa.)
Rei: Sim, nós estamos aqui. Agora, esse é o mapa-múndi.
Guarda:Sim.
Rei: E a Bonlândia é aqui.
Guarda:Esse é o Oceano Atlântico.
Rei: Sim, e a Bonlândia é bem no meio.
Guarda: O quê? No meio do Atlântico?
Rei: É.
Guarda: Eu não acredito em você.
Rei: Hã?

863
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Guarda: Acho que você está tentando entrar no Palácio de Buckingham.


Rei: Isso mesmo. Eu estou.
Guarda: Bom, você não pode.
Rei: Sim, eu posso. Espere um minuto... Eu posso provar. Eu sou o Rei
da Bonlândia. Olhe!
Guarda:É uma nota de cinco libras.
Rei: Não, não são cinco libras.
Guarda: Não são?
Rei: Não, são cinco bons.
Guarda:Cinco bons?
Rei: Sim.
(O guarda analisa a nota.)
Guarda: Ah, sim! Cinco bons. Então esse é o dinheiro que se usa na
Bonlândia.
Rei: Sim, é.
Guarda: Quantos bons valem uma libra?
Rei: Meio milhão.
Guarda: Meio milhão?
Rei: Sim, e cem boninhos valem um bon.
Guarda:Agora, escuta aqui -
Rei: Ah! Posso provar que sou o Rei da Bonlândia. Tem uma imagem
minha na moeda de um boninho. Hm... Você tem troco para dez boninhos?
Guarda:Não, não tenho!
Rei: Ah. Tudo bem! Olha, a moeda de um boninho, com minha imagem
nela.
Guarda: Ah, sim. Uma imagem sua.
(O Rei concorda.)
Guarda:Me conta, por que você quer entrar no Palácio?
Rei: Eu estou aqui para trazer à Rainha os melhores votos do povo da
Bonlândia?
Guarda: Os melhores votos do povo da Bonlândia?
Rei: Sim.

864
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Guarda: Quantas pessoas há na Bonlândia?


Rei: Bem, tem eu, minha mãe, e...
Guarda: Não, não! No total! Qual é a população da Bonlândia?
Rei: Hm, bem, tem o pessoal da capital...
Guarda:Da capital?
Rei: Sim, a Cidade da Bonlândia. E tem o pessoal que mora nas monta-
nhas. Nós os chamamos de pessoal da montanha.
Guarda: Muito inteligente.
Rei: E tem o pessoal que mora no lago.
Guarda: No lago?
Rei: Sim.
Guarda:E como eles são chamados?
Rei: Idiotas.
(Risos.)
Guarda:Então, tem o pessoal da capital -
Rei: Cidade da Bonlândia.
Guarda:E o pessoal que mora nas montanhas -
Rei: O pessoal da montanha.
Guarda:E o pessoal que mora no lago.
Rei: Os idiotas.
Guarda:Quantos são no total?
Rei: Hm... Quatorze.
Guarda:Quatorze?
Rei: Sim. E nós queremos dar um presente especial da Bonlândia para
a Rainha.
Guarda:Um presente especial da Bonlândia?
Rei: Sim. Aqui está!
(O Rei pega uma banana de dentro de sua bolsa.)
Guarda: Mas isso é uma banana.
Rei: Eu sei.
Guarda: O que é tão especial em uma banana?

865
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Rei: Não é uma banana qualquer.


Guarda: Não?
Rei: Não. Coloca na orelha.
Guarda: O quê?
Rei: Coloca a banana na orelha.
Guarda: Por quê?
Rei: Só coloque a banana na sua orelha!
Guarda: Tá bom.
(O guarda coloca a banana em sua orelha.)
Rei: Consegue ouvir alguma coisa?
Guarda: Ah, sim!
Rei: Parece com o quê?
Guarda: Um elefante com dor de dente.
Rei: O quê? Esse é o Hino Nacional da Bonlândia. (Ele canta.) Ó,
Bonlândia!
Guarda: Ó!
Rei: Tudo bem. Eu estou falando Bonesiano. */!* é uma palavra em
Bonesiano.
Guarda: E o que */!* significa exatamente?
Rei: Significa “terra do raio de sol e das bananas”.
(O Rei espirra.)
Guarda: O que isso significa?
Rei: Significa que eu peguei um resfriado danado. Agora me devolve a
banana, porque eu não quero me atrasar para o chá com a Rainha.
Guarda: Ah, claro, senhor. Aqui está, senhor.
(O guarda devolve a banana.)
Rei: Muitíssimo obrigado! Ah, isso é para você.
Guarda:O que é isso?
Rei: Meio milhão de bons.
Guarda: Meio milhão de bons?
Rei: Sim. Vá comprar uma xícara de chá para você.

866
OS TCCS DA LICENCIATURA EM
LETRAS DA UTFPR – PATO BRANCO:
UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
SISTEMATIZADA1

Juliana Fressato Carvalho 2


Raquel Souza Tre3
Taisa Pinetti Passoni4

RESUMO: Este estudo sintetiza os resultados de uma revisão bibliográfica sis-


tematizada sobre os Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) da Licenciatura em
Letras Português-Inglês da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR),
Campus Pato Branco. O objetivo da pesquisa, também um TCC do referido curso
de Letras, foi contabilizar os trabalhos e desenvolver um panorama acerca das di-
ferentes áreas que as pesquisas enfocam, desde a criação do curso, 2012, até os
dias desta investigação, 2019. Foram contabilizados 198 TCCs, os quais, a partir
da leitura de seus títulos e resumos, permitiram a identificação de 17 categorias,
nomeadamente: Literatura Comparada, Análise do Discurso, Análise Linguística,
Língua Inglesa, Ensino, Ensino de Língua Portuguesa, Ensino de Língua Inglesa,
Interartes, Libras, Estudos da Tradução, Literatura Brasileira, Literatura Afro-
brasileira, Literatura Portuguesa, Literatura Infantojuvenil, Literatura Alemã,

1 O presente artigo deriva do trabalho de conclusão de curso de Juliana Fressato Carvalho e


Raquel Souza Ter, na licenciatura em Letras Português-Inglês da UTFPR, campus Pato Branco,
sob orientação da profª Drª Taisa Pinetti Passoni.
2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Pato Branco. fressatinha@hotmail.com
3 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Pato Branco. tre.raquel@gmail.com
4 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Pato Branco. taisapassoni@utfpr.edu.br

867
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Literatura de Língua Inglesa e Literatura Italiana. A síntese indica que além das
disciplinas do curso, diferentes projetos ofertados pela Universidade influenciam
os temas. Como principais resultados, identificamos que as pesquisas desenvol-
vidas estão assim distribuídas: a grande área mais explorada pelos TCCs é a das
Literaturas, com um total de 82 trabalhos; as categorias relacionadas ao Ensino
abrangem um total de 51 TCCs; e a Linguística possui 32 estudos. Tais resulta-
dos evidenciam as principais contribuições das pesquisas realizadas no curso de
Letras e apontam temas que ainda precisam ser mais explorados, o que poderá ser
subsídio para TCCs futuros.

PALAVRAS-CHAVE: Formação de Professores; TCCs; Letras.

ABSTRACT: This study summarizes the results of a systematic bibliographic review on


the undergraduate thesis (UT) of the teaching degree in Portuguese-English Languages
and Literature from the Federal University of Technology – Paraná State (UTFPR), Pato
Branco Campus. The objective of the research, also an UT at the teaching degree, was
to account the works and to develop an overview about the different areas the studies
focus on, from the creation of the course, 2012, to the time of the investigation, 2019.
There were 198 identified UCs, which, from reading of their titles and abstracts, allowed
the definition of 17 categories, namely: Comparative Literature, Discourse Analysis,
Linguistic Analysis, English Language, Teaching, Portuguese Language Teaching, English
Language Teaching , Interart studies, Libras, Translation Studies, Brazilian Literature,
Afro-Brazilian Literature, Portuguese Literature, Children’s Literature, German
Literature, English Literature and Italian Literature. The summary indicates that in ad-
dition to the course subjects, different projects offered by the University influence the
themes. As main results, we identified that the developed UCs are distributed as follows:
the most explored area of knowledge is Literature, with a total of 82 works; Education-
related categories cover a total of 51 UCs; and Linguistics has 32 studies. Such results
show the main contributions of the researches carried out in the Undergraduate course
in focus and point out themes that still need to be further explored, which may be a
subsidy for future UCs.

KEYWORDS: Teachers’ Education; Undergraduate Thesis; Language and Literature


Undergraduate course.

Introdução

Quando falamos sobre sistematização, logo vem à nossa mente conceitos


que convergem à ideia organizacional de um determinado conjunto de elementos

868
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

que parecem estar, à primeira vista, baralhados. No entanto, o conceito de siste-


matização adotado neste estudo não vem de uma hipotética desconexão entre as
monografias apresentadas para o curso de Letras, mas sim de uma necessidade
em observar os focos das pesquisas produzidas e suas contribuições para a área
do ensino e das ciências humanas.

Nesse sentido, a noção de sistematização que ancora este estudo surge


como um elemento de ligação que irá categorizar e agrupar os trabalhos de con-
clusão de curso (TCCs), numa tentativa de relacionar esses trabalhos à ementa
curricular e às disciplinas, projetos e demais atividades oferecidas pelo curso de
Letras.

Diante disso, o corpus deste trabalho se define através da produção acadê-


mica desenvolvida pelos próprios alunos de um determinado contexto, relevando,
dessa forma, um recorte temporal (2012 a 2019) que irá proporcionar o material
desta pesquisa. Nesse cenário, tanto a metodologia aplicada quanto o objeto de
estudo em si (os trabalhos de conclusão de curso) compõem um terreno sólido
sobre o qual iremos alicerçar este trabalho.

Partindo dessas premissas, este trabalho desponta como um mediador,


delimitando categorias e propondo levantamentos e apurações acerca das pro-
duções de pesquisas oriundas do curso de Letras. Tendo em mente essa ideia
de registro contabilístico, o que se verá nesta pesquisa são métodos de revisão
e sistematização empregados de forma a realçar a ideia de revisão bibliográfica
sistematizada.

Fundamentação Teórica

Para situar as atividades de pesquisa desenvolvidas no contexto foco deste


estudo, tornam-se relevantes as discussões acerca de aspectos relativos à forma-
ção do professor, pontualmente a partir das diretrizes curriculares e do projeto
pedagógico do curso (PPC) de Letras da UTFPR, Pato Branco (UTFPR, 2015), bem
como das contribuições de autores que abordam a temática.

Sendo Letras um curso de licenciatura que tem como foco a educação, a


pesquisa se torna um caminho para que se promova a formação de indivíduos
críticos e cidadãos preparados para a prática social. As Diretrizes Curriculares
Nacionais para a formação inicial em nível superior (BRASIL, 2015) conceituam
educação e apontam a importância do ser social para a pesquisa:

869
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

§ 1 Por educação entendem-se os processos formativos que


se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no
trabalho, nas instituições de ensino, pesquisa e extensão, nos
movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas
relações criativas entre natureza e cultura. (p. 4).

Tais Diretrizes são tomadas como referência para o direcionamento dos


objetivos do curso de Letras. A partir das Diretrizes Nacionais, é possível obser-
var a importância da pesquisa no caminho acadêmico e a relevância de se formar
professores pesquisadores.

Art. 4º A instituição de educação superior que ministra progra-


mas e cursos de formação inicial e continuada ao magistério,
respeitada sua organização acadêmica, deverá contemplar, em
sua dinâmica e estrutura, a articulação entre ensino, pesquisa
e extensão para garantir efetivo padrão de qualidade acadê-
mica na formação oferecida, em consonância com o Plano de
Desenvolvimento Institucional (PDI), o Projeto Pedagógico
Institucional (PPI) e o Projeto Pedagógico de Curso (PPC).
(BRASIL, 2015, p. 5).

Tal pressuposto pode ser reconhecido na proposta de ajuste do curso


Letras, contexto do qual emerge este estudo:

A promoção de ações didáticas articulando ensino e pesquisa no


âmbito da graduação procura garantir que os futuros profissio-
nais estejam preparados para lançar um olhar teórico para sua
prática em sala de aula, que sejam preparados para trabalhar
com a linguagem em suas mais diversas formas. (UTFPR, 2015,
p. 5).

Sabe-se que durante a trajetória acadêmica, três eixos centrais devem ser
supridos no ensino superior, são eles: ensino, extensão e pesquisa. Como cita o
documento das Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2015), a universidade
deve contemplar a teoria e a prática no processo de formação docente, fundada
no domínio dos conhecimentos científicos e didáticos, contemplando a indisso-
ciabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Ou seja, licenciados em diferentes
áreas devem passar pela universidade e ter a oportunidade de se envolverem com
essas três dimensões do ensino superior.

870
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

O ensino se enquadra no que vivenciamos, como docentes em formação,


no dia a dia. Trata-se da possibilidade de se ter acesso aos diferentes conhecimen-
tos relevantes já produzidos na área em foco. A extensão nada mais é do que a uti-
lização do que se adquiriu com o ensino agora orientado para a comunidade, tanto
universitária quanto externa, de modo a articular a produção de conhecimento às
demandas da sociedade. E a pesquisa, por sua vez, intenta para a preparação do
acadêmico em produzir conhecimento cientificamente sistematizado, buscando
informações, fazendo pesquisas relevantes para o melhor desenvolvimento de
sua área de pesquisa e para sua própria qualificação.

Tendo em vista a importância da pesquisa acadêmica, ressalta-se também a


relevância do vínculo entre a pesquisa e as disciplinas do curso. Nesta licenciatu-
ra, de modo geral, é possível dizer que todas as disciplinas envolvem pesquisa, vis-
to que o estudante sempre estará buscando por informações além da sala de aula
para que seu conhecimento seja agregado. Porém, as 49 disciplinas obrigatórias
relativas aos oito semestres letivos descritas dentro da proposta de ajuste do cur-
so, os componentes a seguir abordam diretamente a pesquisa em suas ementas:
Metodologia de Pesquisa (1.º período, 2 aulas); TCC 1 (6.º período, 3 aulas); TCC 2
(7.º período, sem aulas presenciais); Docência em Língua Portuguesa (8.º Período,
2 Aulas); Docência em Língua Inglesa (8.º Período, 2 Aulas).Importante ressaltar
que a maior parte das disciplinas mencionadas ocorre nos três últimos semes-
tres do curso, o que nos leva a refletir sobre a necessidade e/ou a possibilidade
de abordar mais consistentemente a pesquisa nas etapas iniciais da licenciatura,
uma vez que a pesquisa é uma das partes fundamentais na formação do professor
com vistas ao seu aprimoramento profissional. Nesse sentido, corroboramos a
afirmação de Lüdke (2001, p. 80):

[...] o professor pesquisador foi colocado em destaque como o


profissional que, tal como um artista, busca as melhores manei-
ras de atingir os alunos no processo de ensino e aprendizagem e,
utilizando diferentes materiais, procura soluções mais adequa-
das à sua criação.

Considerando que nem todos os estudantes têm a oportunidade de se de-


dicar a projetos paralelos às disciplinas, tais como os de iniciação científica, o TCC
assume caráter fundamental no processo de formação do professor-pesquisador,
pois é nesta etapa que todos os licenciandos necessariamente precisam se enga-
jar com esta atividade.

871
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Metodologia

Este estudo se configura como uma revisão bibliográfica sistematizada, a


qual se estrutura a partir de levantamentos realizados em uma base de dados.
Como cita Reis (2008), essas pesquisas resultam de processo de filtragem do que
se produz em um determinado campo do conhecimento. Em amplo modo, esse
tipo de estudo elucida pontos ainda não explorados em pesquisas anteriores,
concebe um estado da arte para que o trabalho perfaça estudos já encaminhados
e ainda contribua com as reflexões nesta área de interesse de maneira rigorosa-
mente embasada no que já foi construído nesse campo do saber.

[...] realizar um levantamento bibliográfico é se potencializar in-


telectualmente com o conhecimento coletivo, para se ir além. É
munir-se com condições cognitivas melhores, a fim de: evitar a
duplicação de pesquisas, ou quando for de interesse, reaprovei-
tar e replicar pesquisas em diferentes escalas e contextos; obser-
var possíveis falhas nos estudos realizados; conhecer os recursos
necessários para a construção de um estudo com características
específicas; desenvolver estudos que cubram lacunas na literatu-
ra trazendo real contribuição para a área de conhecimento; pro-
por temas, problemas, hipóteses e metodologias inovadores de
pesquisa; otimizar recursos disponíveis em prol da sociedade, do
campo científico, das instituições e dos governos que subsidiam
a ciência. (GALVÃO, 2010, p.1).

Diante disso, a análise proposta por este estudo sistematiza os trabalhos


de conclusão de curso (TCC) escritos por formandos na licenciatura em Letras
Português- Inglês, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, do Campus
Pato Branco. Assim, busca-se elaborar um panorama das contribuições das pes-
quisas realizadas no âmbito desta graduação, bem como apontar as lacunas a se-
rem ainda preenchidas.

Sob esse prisma, o conjunto de TCCs reunidos para esta pesquisa conta
com trabalhos defendidos desde o ano de 2012 - quando da formatura da primei-
ra turma do curso de Letras - até o período de realização da presente pesquisa,
ano de 2019. Segundo a coordenação do curso5, tal período compreende as de-

5 As informações sobre os TCCs do curso de Letras Português-Inglês que não estavam disponíveis
no site da UTFPR foram disponibilizadas por e-mail pela coordenadora Rosangela Aparecida
Marquezi. Aproveitamos a oportunidade para agradecê-la por sua colaboração.

872
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

fesas dos 259 alunos egressos até o primeiro semestre, com a ressalva que estes
têm a opção de realizar suas pesquisas de conclusão em duplas.

Para iniciar a busca pelos TCCs, navegamos no portal da universidade na


aba denominada “serviços”, em seguida em “biblioteca”, acessamos a busca inte-
grada (BiblioTec), na aba “portal de informação” e então em coleções abertas, de-
nominado “ROCA”. Procuramos por trabalhos de conclusão de curso, e, na página
seguinte, pela cidade de Pato Branco. Disso, delimitamos a busca para curso de
Licenciatura em Letras, percurso que resultou na identificação de 131 trabalhos
registrados da plataforma do site da biblioteca da UTFPR.

Após esta primeira etapa, entramos em contato com a biblioteca do


Campus Pato Branco para saber se este seria o total de TCCs disponíveis e obtive-
mos a informação de que poderiam existir trabalhos não digitalizados disponíveis
na coordenação do curso. Sendo assim, encaminhamos um e-mail para a coorde-
nação do curso de Letras que nos autorizou o acesso aos arquivos onde consta-
vam TCCs impressos, disponíveis em pen-drives ou CD room. Assim, consegui-
mos acesso à maior parte dos demais trabalhos escritos que foram desenvolvidos
anteriormente à obrigatoriedade de digitalização dos arquivos para o portal da
biblioteca, o qual somou um total de 67 TCCs arquivados na coordenação do cur-
so. Consideramos, para esta contabilização, somente os trabalhos que possuíam
as seguintes informações: Título, autores, palavras-chave. Uma vez que este
estudo abarca os trabalhos de conclusão de curso defendidos desde o primeiro
semestre de 2012, é pertinente observar que alguns trabalhos, majoritariamente
principiantes, não foram encontrados de forma completa na plataforma Roca,
tampouco na coordenação de Letras do Campus. Embora a ausência desses tra-
balhos não implique, diretamente, um transtorno, faz-se necessária essa observa-
ção a título de alinhar a pesquisa a um padrão ético e transparente. Desse modo, a
presente pesquisa identificou 198 TCCs defendidos na licenciatura em foco.

Para iniciar a análise, estando a leitura de títulos e resumos concluída, or-


ganizamos os trabalhos em 17 grandes áreas temáticas, sendo elas: Literatura
comparada, análise do discurso, análise linguística, língua inglesa, ensino, ensino
de língua portuguesa, ensino de língua inglesa, interartes, libras, estudos da tradu-
ção, literatura brasileira, literatura afro-brasileira, literatura portuguesa, literatu-
ra infanto-juvenil, literatura de língua inglesa, literatura italiana, literatura alemã.
Tal categorização, com a listagem completa dos 198 TCCs analisados para este

873
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

estudo está detalhada no apêndice elaborado pelo estudo completo do qual essa
publicação deriva (CARVALHO; TRE, 2019).

A partir desse levantamento, iremos ao longo da pesquisa explorar mais


minuciosamente o que tal panorama representa, em termos de produção científi-
ca desta licenciatura.

Análise dos dados

Para apresentar a sistematização resultante desse levantamento, caracte-


rizamos aqui as 17 categorias em os 198 TCCs que foram identificados, a partir
de nossa leitura e análise, em especial, tomando como referência as disciplinas
ofertadas pela licenciatura em Letras Inglês-Português em foco.

Os estudos literários são recorrentes dentro do currículo do curso Letras,


no contexto em questão, sendo abordada em seus diferentes gêneros em cinco
disciplinas obrigatórias ofertadas ao longo da graduação, 26 TCCs figuram na ca-
tegoria “Literatura Brasileira”. Sendo esta licenciatura voltada à formação de pro-
fessores de língua portuguesa, a qual se articula em diferentes componentes, mas
em especial, a quatro disciplinas e dois estágios obrigatórios, a categoria “Ensino
de Língua Portuguesa” é composta por 21 TCCs.

Apesar de estar presente nomeadamente em apenas uma disciplina opta-


tiva desta graduação, a categoria “Interartes” contabiliza o significativo número
de 21 TCCs, os quais devem se relacionar a um projeto de pesquisa desenvolvi-
do de 2015 nesta área no Campus Pato Branco6. Estes trabalhos apontam para o
diálogo de diversas áreas artísticas, tais como cinema, música, pintura, escultura,
arquitetura, de modo especial partindo da literatura “como o ponto de referência
dominante” (CLÜVER, 2006, p. 15).

A categoria “Análise do Discurso” contém 18 TCCs em nossa sistematiza-


ção. Tais trabalhos se articulam com a disciplina obrigatória de mesmo nome, a
qual, conforme ementa, concebe “A linguagem e a realidade como práticas cons-
trutivas do sujeito social7”.

6 Projeto de pesquisa ”Narrativa no âmbito da contemporaneidade: pós-modernidade, literatura


comparada e interartes”, coordenado pelo professor doutor Wellington Fiouci, do departamen-
to de Letras, do campus Pato Branco,
7 Descrição presente na ementa da disciplina, disponível em <https: //sistemas2.utfpr.edu.br/
dpls/sistema/acad00/mpPlanoEnsinoInformativo.pcPrintInfoPlaEns?p_Disccodnr=3021&p_
Plaenscodnr=7670&p_Unidcodnr=5>. Acesso em 21/10/2020.

874
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Na categoria “Literatura de língua inglesa”, alinham-se os 18 TCCs relativos


a análises literárias sobre obras (romance, teatro, poesia e conto) cujos autores
têm como primeiro idioma a língua inglesa. Essas pesquisas se vinculam às quatro
disciplinas que abordam os textos literários neste idioma ao longo do curso.

Tratando-se de um curso de dupla habilitação, diferentes componentes


desta licenciatura relacionam-se ao inglês, desde as oito disciplinas voltadas es-
pecificamente ao idioma, bem como as três disciplinas de docência e a dois está-
gios obrigatórios. Articulados a estes elementos, a categoria “Ensino de Língua
Inglesa” apresenta 16 TCCs.

A categoria “Literatura comparada” possui 15 TCCs os quais exploram pon-


tos de contato entre obras de diferentes origens. Não sendo explicitamente iden-
tificada como parte de disciplinas desta licenciatura, esta categoria justamente
evidencia os diálogos possíveis que as várias literaturas abordadas ao longo do
curso possibilitam.

Foram identificados 15 TCCs na categoria “Literatura Infantojuvenil”, a


qual é foco de uma das disciplinas da graduação e caracteriza-se por destacar
obras que sejam voltadas a esta faixa etária de leitores em específico, as crianças
e os adolescentes, independentemente dos idiomas em que são publicadas.

A categoria “Análise Linguística” é composta por 14 TCCs voltados à refle-


xão do funcionamento da língua portuguesa. Estes estudos vinculam-se mais dire-
tamente às três disciplinas da licenciatura que tratam dos estudos estruturais da
língua: morfofonologia, sintaxe, semântica e pragmática.

Já a categoria “Estudos da Tradução” contém 14 TCCs e podem ser relacio-


nadas a duas disciplinas optativas do curso. Além disso, apesar de não voltar-se
à habilitação de tradutores, vinculado ao curso de Letras Português-Inglês, é de-
senvolvido desde 2016 um projeto de pesquisa em tradução8, característica que
deve impactar na produção dos trabalhos de conclusão.

Foram identificados na categoria denominada “Ensino” os oito TCCs que


não se vinculavam à docência nas áreas das línguas e literaturas em inglês e por-
tuguês. Estes trabalhos vinculam-se a temáticas talvez não consideradas centrais
nos cursos de Letras Português-Inglês, como por exemplo, relacionados a diferen-
tes linguagens (como o ensino de Braille, como o TCC de Longhi, em 2013). Tal

8 “Projeto de Pesquisa nos Estudos Descritivos da Tradução”, coordenado pela professora doutora
Mirian Ruffini do departamento de Letras do campus Pato Branco.

875
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

categoria aponta para a abrangência de interesses do alunado desta graduação,


bem como ao perfil transdisciplinar que esta licenciatura pode atender.

Na categoria “Literatura Afrobrasileira” foram identificados quatro TCCs, os


quais possivelmente se vinculam à disciplina “Literaturas Africanas De Expressão
Portuguesa”, ofertada no oitavo período desta graduação. O componente aborda
“questões étnico-raciais, o ensino e a pesquisa sobre África no Brasil, e os temas
transversais que percorrem essa literatura9” as quais se vinculam à legislação bra-
sileira referente às relações étnico-raciais, bem como ao ensino de história e cul-
tura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica10.

Foram identificados quatro TCCs na categoria “Libras”, os quais se relacio-


nam à Língua Brasileira de Sinais, temática tratada em duas disciplinas da gradua-
ção. A presença de pesquisas nesta área evidencia que, apesar de não se tratar de
uma licenciatura que habilita o futuro docente para lecionar Libras, tal temática
pode ser explorada em seus estudos graças à oferta obrigatória de disciplina so-
bre esta língua.

Com dois TCCs identificados, a categoria “Língua Inglesa” abrange estudos


que abordam a dimensão sistêmica da língua, sem relacionar-se explicitamente
com questões relativas ao ensino e à aprendizagem do idioma.

Apesar de estar presente em três disciplinas obrigatórias da matriz cur-


ricular em questão (Literatura Portuguesa do Trovadorismo ao Realismo, no 3º
período; Literatura Portuguesa do Simbolismo ao Neorrealismo, no 4º período; e
Literatura Portuguesa Contemporânea, no 8º período), na categoria “Literatura
Portuguesa” foram identificados somente dois TCCs.

Por fim, as categorias “Literatura Alemã” e “Literatura Italiana”, com um


TCC vinculado a cada uma delas, foram criadas justamente pela dificuldade de
inserir estes trabalhos nos grupos citados anteriormente, mas também pelo intui-
to de apontar a singularidade destas pesquisas, pois a habilitação da licenciatura
em foco não se volta a estas áreas. Entretanto, a que se destacar a vasta gama de

9 Descrição presente na ementa da disciplina, disponível em <https: //sistemas2.utfpr.edu.br/


dpls/sistema/acad00/mpPlanoEnsinoInformativo.pcPrintInfoPlaEns?p_Disccodnr=3040&p_
Plaenscodnr=10634&p_Unidcodnr=5>. Acesso em 25/10/2020.
10 Legislação disponível em <http: //portal.mec.gov.br/escola-de-gestores-da-educacao-basica/
323-secretarias-112877938/orgaos-vinculados-82187207/12988-pareceres-e-resolucoes-
-sobre-educacao-das-relacoes-etnico-raciais>. Acesso em 25/10/2020.

876
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

disciplinas optativas da grande área de literatura – com um rol de 17 disciplinas11


- que podem vincular-se a estes estudos, como é o caso da oferta de “Introdução
aos estudos de literatura italiana12”.

A organização das categorias discutidas está representada no quadro a


seguir:

Categoria Quantidade
Literatura brasileira 26
Ensino de língua portuguesa 21
Interartes 21
Análise do discurso 18
Literatura de língua inglesa 18
Ensino de língua inglesa 16
Literatura comparada 15
Literatura infanto-juvenil 15
Análise linguística 14
Estudos da tradução 14
Ensino 8
Literatura afro-brasileira 4
Libras 2
Língua inglesa 2
Literatura portuguesa 2
Literatura alemã 1
Literatura italiana 1
Quadro 1. Quantidade total de TCCs desenvolvidos por categoria
Fonte: Carvalho; Tre (2019).

Diante da categorização e discussão apresentadas, podemos concluir que


a grande área mais explorada pelos TCCs defendidos pelos licenciando em Letras
Português-Inglês, da UTFPR Pato Branco, é a Literatura, com um total de 82 traba-
lhos, abarcando as categorias de “Literatura Brasileira” (26), “Literatura de Língua

11 Matriz curricular do curso de Letra Inglês-Português da UTFPR, campus Pata Branco, disponível
em <http: //www.utfpr.edu.br/cursos/coordenacoes/graduacao/pato-branco/pb-licenciatura-
-em-letras-portugues-ingles/matriz-e-docentes Acesso em 25/10/2020>.
12 Descrição presente na ementa da disciplina, disponível em: <https: //sistemas2.utfpr.edu.br/
dpls/sistema/acad00/mpPlanoEnsinoInformativo.pcPrintInfoPlaEns?p_Disccodnr=3260&p_
Plaenscodnr=12234&p_Unidcodnr=5> Acesso em 25/10/2020.

877
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Inglesa” (18), “Literatura Comparada” (15), “Literatura Infantojuvenil” (15), ““lite-


ratura afro-brasileira”” (4), “Literatura Portuguesa” (2), “Literatura Alemã” (1) e
“Literatura Italiana” (1). Já as categorias relacionadas ao ensino ficam em segundo
lugar, com um total de 51 TCCs nas categorias de “Ensino de Língua Portuguesa”
(21), “Ensino de Língua Inglesa” (16) e “Ensino” (8). E com 32 TCCs, fica a grande
área da linguística, sendo composta por estudos da “Análise do discurso” (18) e
“Análise Linguística” (14). Tais achados apontam que as pesquisas realizadas nesta
graduação tendem a priorizar os estudos literários, o que, em se tratando de um
curso de licenciatura, aponta para tendência de certo distanciamento de refle-
xões diretamente voltadas ao ensino e à aprendizagem.

Considerações finais

O presente estudo visou contabilizar os TCCs defendidos na Licenciatura


em Letras Português-Inglês da UTFPR, campus Pato Branco, de modo a desenvol-
ver um panorama acerca das diferentes áreas que as pesquisas enfocam, desde a
criação do curso, 2012, até os dias desta investigação, 2019. Foram contabiliza-
dos 198 TCCs, os quais, a partir da leitura de seus títulos e resumos, permitiram a
identificação de 17 categorias conforme síntese do quadro 1.

Sem perder de vista fatores que talvez possam ser limitantes para realiza-
ção de TCCs que enfoquem questões relativas à docência – de modo especial, o
tempo tomado para trâmites relativos ao registro e à aprovação de projetos de
pesquisa junto aos comitês de ética em pesquisa com seres humanos, os quais
podem inviabilizar o contato do professor-pesquisador em formação inicial com
seu contexto mais imediato de atuação profissional - os achados desta revisão
tendem a sustentar “nossa tradição bacharelesca, que leva a não considerar com
o devido valor os aspectos didático-pedagógicos necessários ao desempenho do
trabalho docente com crianças e jovens”. (GATTI, 2014, p. 35).

Longe de findar as discussões a respeito das possíveis trajetórias de pes-


quisa na licenciatura em Letras Português-Inglês, a pesquisa aqui apresentada
visou destacar as produções já desenvolvidas pelos discentes deste contexto e
contribuir para identificação das potencialidades ainda a serem exploradas pelos
futuros graduandos desta licenciatura. Dentre as temáticas ausentes nos TCCs
produzidos até então, e que ainda podem ser objeto de investigações nesta licen-
ciatura, destacamos, de modo especial, a formação do leitor em pesquisas que ar-
ticulem os estudos literários ao ensino de literatura, bem como reflexões acerca

878
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

das relações entre as tecnologias e o ensino de línguas e literatura, principalmen-


te devido à ênfase tecnológica adotada pela instituição.

Referências

BRASIL. Resolução CNE/CP 2/2015, de 1 de julho de 2015. Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério
da Educação Básica. Brasília: Ministério da Educação, 2015.
CARVALHO, J. F.; TRE, R. S. Os trabalhos de conclusão de curso da Licenciatura em
Letras da UTFPR – Pato Branco: uma revisão bibliográfica sistematizada. 2019.
71 f. Trabalho de conclusão de curso – Letras Português/Inglês, Universidade
Tecnológica Federal do Paraná, Pato Branco.
CLÜVER, C. Inter textos / Inter artes / Inter media. Aletria: Revista de Estudos de
Literatura, Minas Gerais, v. 14, 11-41, 2006.
GALVÃO, M. C. B. O levantamento bibliográfico e a pesquisa científica. In:
Fundamentos de Epidemiologia, 2 ed. Barueri, 2011.
GATTI, B. A. A formação inicial de professores para a educação básica: as licencia-
turas. Revista USP, (100), 33-46, 2014.
LONGHI, D. F. O que é Braille? Uma pesquisa bibliográfica. 2013. 46f. Trabalho de
Conclusão de Curso – Letras Português/Inglês, Universidade Tecnológica Federal
do Paraná, Pato Branco.
LÜDKE, M. O professor, seu saber e sua pesquisa. Educação & Sociedade,
Campinas: CEDES, n. 74, p. 77-96, 2001.
REIS, S. Pesquisa em Letramento Crítico no Brasil: um levantamento de disserta-
ções e teses de 1987 a 2006. In: Adja Balbino de Amorim Barbieri Durão; Otávio
Goes de Andrade; Simone Reis. (Org.). Reflexões sobre o ensino das línguas es-
trangeiras. 1ed. Londrina: Moriá, 2008, v. 1, p. 51-83
UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ. Proposta De Ajuste
Do Curso De Licenciatura Em Letras Português-Inglês UTFPR – Câmpus Pato
Branco. Pato Branco: UTFPR, 2015.

879
SOBRE OS
ORGANIZADORES
Letícia Lemos Gritti é mestre e doutora pela
Universidade Federal de Santa Catarina.
Atualmente, é professora adjunta da
Universidade Tecnológica Federal do Paraná,
Câmpus Pato Branco-PR, na graduação e pós-
-graduação em Letras. Desenvolve estudos na
área de Semântica e Pragmática de itens, ex-
pressões e processos linguísticos presentes na
fala e na escrita de produções textuais.

Lovania Roehrig Teixeira é doutora em Letras,


pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (2017). Professora Adjunta dos Cursos de
Letras da Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul, Câmpus de Aquidauana. Desenvolve
estudos em Linguística e em ensino-aprendi-
zagem de Língua Portuguesa perpassando as
áreas de Semântica, Pragmática e Sintaxe. O
foco de seus estudos se dá sobre a semântica
do discurso ficcional, a modalidade, a indexica-
lidade e os demonstrativos nas línguas naturais.

Pedro Afonso Barth é doutor em Estudos


Literários, pela Universidade Estadual de
Maringá (2019). Foi professor colabora-
dor na Universidade tecnológica federal do
Paraná (UTFPR), campus Pato Branco e na
Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Pesquisador no Grupo do CNPq “FORPROLL:
Formação de Professores de Línguas e
Literatura”. Desenvolve estudos na área de
Literatura Juvenil Brasileira Contemporânea,
Literatura Infantil, Ensino de Literatura,
Formação de Leitores, Letramento Literário e
Sagas Fantásticas.

881
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES: ESTUDOS SOBRE LÍNGUA, LITERATURA E ENSINO

Susiele Machry da Silva é mestre e doutora em


Letras pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul. Atualmente, é professora
adjunta da Universidade Tecnológica Federal
do Paraná, câmpus de Pato Branco-PR. Seus
interesses de pesquisa envolvem estudos na
área da Sociolinguística e ensino-aprendizagem
do português como Língua Adicional/Língua
Estrangeira.

Taisa Pinetti Passoni é doutora em Estudos


da Linguagem, pela Universidade Estadual
de Londrina (2018). Professora Adjunta do
Departamento de Letras, área de Língua
Inglesa, coordenadora do Programa de Pós-
Graduação em Letras (PPGL), da Universidade
Federal Tecnológica do Paraná (UTFPR), cam-
pus Pato Branco. Desenvolve estudos na área
de Linguística Aplicada, com ênfase na forma-
ção de professores, política e planejamento lin-
guísticos, internacionalização do ensino supe-
rior, língua inglesa e contemporaneidade.

Yohanna Hemilly Katleen Kühl é mestre


em Letras, pela Universidade Tecnológica
Federal do Paraná (2018), pós-graduada em
Psicopedagogia Institucional, pela Universidade
Positivo (2019). Professora e pesquisadora em
estudos na área da Linguística Aplicada, voltada
principalmente para os contextos de educação
especial e inclusiva, analisado sob a perspectiva
do ensino de língua inglesa.

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