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Camila Avarca

Temas contemporâneos
em psicologia
Sumário
Capítulo 2 – Disciplina TEMAS CONTEMPORÂNEOS EM PSICOLOGIA.............................. 06

1.1  Contemporaneidade e complexidade.................................................................................... 06

1.2  A busca pela ordem................................................................................................................... 08

1.3  Da modernidade para a pós-modernidade/modernidade líquida................................. 11

1.4 Lidando com a complexidade.................................................................................................. 12

1.5  Relação entre a Psicologia e as estratégias de acessibilidade disponíveis atualmente para


portadores de necessidades especiais............................................................................................ 15

1.5.1  Contextualizando a deficiência no Brasil..................................................................... 15

1.6  As deficiências e o padrão de normalidade em questão................................................... 16

1.7  A atuação do psicólogo e as estratégias de acessibilidade disponíveis......................... 18

1.7.1  E quando consideramos discriminação em razão de deficiência?.......................... 21

1.8  A polêmica entre uso de drogas e a estratégia de redução de danos........................... 23

1.8.1  A saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS)................................................... 23

1.8.2  As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência................................................... 27

1.8.3  A estratégia de redução de danos como práticas de ampliação da vida.......... 28

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Capítulo1 Disciplina TEMAS
CONTEMPORÂNEOS EM
PSICOLOGIA
Introdução
As novas configurações do mundo contemporâneo exigem dos psicólogos a necessidade de rever
suas antigas certezas a respeito do homem e construir novas referências para os fenômenos
humanos cada vez mais complexos e transmutáveis.

Podemos ilustrar inúmeros fenômenos contemporâneos que têm impactado no processo de saúde
mental das pessoas, sobretudo nas grandes metrópoles: o uso abusivo de drogas, o adoecimento
psíquico por situações de racismo ou violência de gênero, a dificuldade no processo de inclusão
de pessoas cuja sociedade exclui por destoarem dos padrões sociais pré-estabelecidos.

Como lidamos com situações tão diversas, multifatoriais e com diferentes complexidades? A
psicologia responde a todas essas demandas?

Antes de começarmos a abordar os principais temas contemporâneos que têm sido grandes
desafios para a profissão, precisamos situar, historicamente e do ponto de vista sociológico, os
principais aspectos de nossa sociedade contemporânea. Também veremos a seguir os principais
desafios de nossa sociedade, marcada pela globalização e pela volatilidade das relações
humanas.

1.1  Contemporaneidade e complexidade


Para discutir o tema da contemporaneidade, precisamos iniciar a conversa com uma discussão
teórica sobre modernidade: ou - melhor dizendo – do que se trata o projeto da modernidade.

A ideia de tratarmos a modernidade como um projeto é particularmente importante, porque


não se trata de algo acabado, finalizado, e sim ainda em construção. Sendo assim, não se
refere somente de uma delimitação de tempo histórico: há estratégias e modos de ser e de
nos relacionarmos atualmente que foram efeito do processo de construção de uma sociedade
moderna. Veremos a seguir:

Quando pensamos rapidamente sobre o termo “moderno”, geralmente atribuímos a ele a


noção de algo novo, inovador e arrojado. Não é mesmo? E isso faz sentido se recorremos ao
dicionário1 para compreender seu significado:

Há 12 anos essa pesquisa eletrônica indica tendência, e não modismo, que estão mais em alta,
catalogando-as para servir como referência para toda a indústria de fitness. Neste sentido,

1 Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/moderno/.

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Temas Contemporâneos em Psicologia
os seus resultados podem ajudar o profissional de educação física a tomar decisões quanto
ao investimento em formação continuada, bem como aos gestores planejarem as melhores
estratégias para maximizar os resultados.

MODERNO
mo·der·no
Relativo ou pertencente aos nossos tempos, à nossa época.

Que revela as ideias, os hábitos e o gosto dominante da nossa época.

Que se beneficiou dos avanços científicos e tecnológicos mais recentes.

Que rompe com os modelos tradicionais ou convencionais.

Que está na moda.

Há outros significados em relação ao termo “moderno”, a partir de uma linha da história da


humanidade, que se encontra localizada no final da Idade Média até o período da Revolução
Francesa, conforme a figura a seguir:

476 1.453 1.789


± 4.000.000 a.C.

± 4.000 a.C.
± 4.000 a.C.

Pré- Idade Idade Idade Idade


História Antiga Média Moderna Contemporânea

476 d.C. 1.453 1.789 Dias Atuais

Fonte: https://goo.gl/images/NWuc1x.

Entretanto, alguns autores, como o sociólogo Zygmunt Bauman, acreditam que não se é possível
identificar uma data exata que marque o início ou o fim da era moderna. Mais importante
do que determinar as datas a partir de grandes acontecimentos na história da humanidade,
nos cabe avaliar o que se produziu nesse período enquanto civilização e os impactos dessas
produções em nossa vida cotidiana até hoje. Há outros autores, como o sociólogo Bruno Latour,
por exemplo, que sustentam a ideia que ainda não saímos da era da modernidade, porque
ainda não superamos os principais aspectos e os grandes desafios impostos a ela, como: a
busca pela ordem social e pelo controle dos comportamentos para conter o caos e o interesse

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em construir no campo científico verdades que se pretendam universais (ou seja, experimentos
científicos que se justifiquem independentemente das variáveis culturais, sociais, econômicas e
históricas). Em síntese, tratam-se de aspectos impossíveis de se concretizarem, basta observarmos
a realidade que nos cerca: situações sociais bastante complexas que dependem de muitas
variáveis para serem compreendidas.

Podemos citar como exemplo o fenômeno do uso prejudicial de álcool e outras drogas em
nossa sociedade. Não há um único fator que explique o porquê as pessoas utilizam as drogas
compulsivamente. Do mesmo modo, não há uma abordagem, nem mesmo uma corrente dentro
da psicologia, que possa determinar um tratamento único que faça todas as pessoas pararem
de utilizar drogas. Ou seja, não há possibilidades de compreender os fenômenos sociais, nem
mesmo de produzir conhecimento científico, se não considerarmos os aspectos sociais, culturais e
econômicos de um povo, levando em consideração a autonomia dos sujeitos. Também temos que
questionar conhecimentos científicos que se pretendam universais.

1.2  A busca pela ordem


A ordem - dentre as várias tarefas impossíveis que a modernidade se propôs - era a principal.
Ela é oposta ao caos, mas ambos nasceram em um mesmo momento histórico: no momento da
transição entre a Idade Média e o Estado Moderno.

Na idade média, o mundo era ordenado pelo divino (que pode ser caracterizado por um
momento histórico marcado pela supremacia da Igreja Católica, pelo sistema de produção
feudal e por meio da sociedade hierarquizada - em que a igreja e Deus eram o centro de
todas as relações sociais e humanas). Não havia espaço para a construção do conhecimento
científico nesse momento. A vida em sociedade era pré-determinada. Nessa sociedade, os
estamentos ou camadas sociais eram estanques e não permitiam passar de uma camada social
para outra. Os nobres eram a camada dos que lutavam; o clero, dos que rezavam e os servos
eram a camada dos que trabalhavam. Os servos trabalhavam nos feudos. O sistema político-
econômico, portanto, era organizado a partir do poder do rei: o sistema feudal era monárquico
e se organizava pela relação servil de produção.
(...) neste mundo feudal, não se conhecia nem mesmo o acaso, tudo simplesmente era. (BAUMAN,
1999, p. 12).

O Estado Moderno, sobretudo a partir da mudança do sistema econômico feudal para o


capitalismo, nasceu com a busca por uma sociedade planejada, rumo ao progresso social e
econômico. A meta principal, nesse momento, passa a ser ordenação e classificação de seu
território. Entendia-se que era necessário conhecer a sociedade em seus mínimos detalhes para
poder controlá-la.

Para se conhecer detalhadamente, a fragmentação do mundo é tida como a solução: o mundo


fragmentado (conhecido em todas as suas partes) é um mundo governável. Mas, diante dessa
pretensão, cabe nos perguntar: é possível produzir conhecimento sobre todas as coisas? É
possível controlar e governar todas as situações? Bauman e outros teóricos entendem que não.

À medida em que se fragmenta e classifica um objeto, ele passa a adquirir outros sentidos e
direcionamentos:
As pessoas tornam-se multifuncionais por causa da fragmentação da função; as palavras
tornam-se polissêmicas por causa da fragmentação do significado (...). (BAUMAN, 1999, p. 21)

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A seguir, uma demonstração gráfica que nos ajuda a observar a infinidade de produções a
partir da fragmentação:

Questões Classificação, ordenação

VAMOS DAR UM EXEMPLO ATUAL...


Vamos tentar compreender o que significa ter saúde fragmentando o
próprio termo, de acordo com a proposta moderna de construção de
conhecimento.

Fragmentando o termo, nós temos, por um lado, que estruturar uma análise
só sobre o conceito de saúde. O que é estar saudável? Ter saúde não
depende de outros determinantes sociais? Ter saúde aqui no Brasil é a
mesma coisa que ter saúde na Alemanha? E na China?

Esse pequeno exercício já nos mostra que a fragmentação nos faz criar
novas perguntas e novos significados para o próprio termo saúde.

Portanto, podemos concluir que o projeto de modernidade estabeleceu formas de compreender


e agir no mundo, de acordo com a necessidade de estabelecer a ordem: excluindo o que não
“serve”, classificando e ordenando como modo de organizar povos e suas existências, tendo
como grande legitimador dessas práticas a ciência, na busca por verdades absolutas.

Busca-se fugir de indeterminações e ambivalências e se espera conquistar a natureza e


subordiná-la às necessidades humanas.

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VOCÊ CONHECE?

Zygmunt Bauman

Fonte: wikimedia. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Zygmunt_


Bauman,_fot._M._Oliva_Soto_(6144135392).jpg>. Acesso em: 05 jun. 2018.

Zygmunt Bauman nasceu no dia 19 de novembro de 1925, em uma família judia de origem
polonesa. É considerado “um dos poucos sociólogos contemporâneos nos quais ainda se encon-
tram ideias” (PALLARES-BURKE; 2004:2). Seu intelecto é, de fato, ao mesmo tempo rebelde e
rigoroso. É fiel ao presente, mas cuidadoso em reconhecer a sua genealogia, ou melhor, genea-
logias (BAUMAN, 2005, p. 8).

Concebe a sociologia não como uma disciplina “independente” de outros campos do conhec-
imento, mas como uma que fornece a ferramenta analítica para se estabelecer uma vigorosa
interação com a filosofia, a psicologia social e a narrativa.

Escapou da segunda guerra mundial, de seus horrores e holocausto que aguardavam os po-
loneses, mudando–se para a Rússia juntamente com a sua família, em 1939. Logo após, alis-
tou-se no exército polonês, aliado ao exército vermelho, onde lutou contra o (regime Nazista
ou contra o Nazismo).

De lá voltou após a guerra, quando se filiou ao partido comunista, estudou na Universidade de


Varsóvia e conheceu a Janina, com quem está casado há 55 anos e com quem teve três filhas:
Anna (matemática), Lydia (pintora) e Irena (arquiteta).

Confiantes e animados pelo sonho de criar uma sociedade mais justa e igualitária, Zygmunt e
Janina ali construíram suas carreiras (ele como professor da Universidade de Varsóvia e ela
como editora de roteiros cinematográficos) e criaram sua família, até que uma nova onda de

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Temas Contemporâneos em Psicologia
antissemitismo e repressão esmagou seus sonhos e os forçou ao exílio. Após três anos em Israel,
o convite para o cargo de chefe do departamento de sociologia na Universidade de Leeds
trouxe Bauman e sua esposa à Inglaterra, onde permanecem até hoje.

É igualmente discreto quanto ao seu papel no “outubro polonês”, de 1956, quando participou
do influente movimento reformista que desafiou a liderança do Partido dos Trabalhadores
Unidos e a subjugação de seu país às ordens de Moscou.

Então veio 1968, que se revelaria um momento decisivo em sua vida. Bauman, que apoiava o
incipiente movimento dos estudantes poloneses, teve seus trabalhos proibidos pelo Partido Co-
munista, quando o antissemitismo foi usado para reprimir estudantes e professores universitári-
os que exigiam o fim do sistema unipartidário em nome de “liberdade, justiça e igualdade”.
Após três anos em Israel, o convite para o cargo de chefe do departamento de sociologia na
Universidade de Leeds trouxe Bauman e sua esposa à Inglaterra, onde permanecem impedi-
dos de lecionar. No ano de 1971 mudou-se para a Inglaterra, e leciona aulas na Universidade
de Leeds. A partir de então, a sua vida intelectual foi extremamente produtiva. Compartilha
de seu intelecto e emoção com a sua esposa Janina, a qual ele sempre manifestou uma enorme
gratidão. Sua esposa teve uma participação significativa e reflexiva ao longo das suas edições
e vida acadêmica.

Bauman vê a globalização como uma “grande transformação” que afetou as estruturas es-
tatais, as condições de trabalho, as relações entre os Estados, a subjetividade coletiva, a pro-
dução cultural, a vida quotidiana e as relações entre o eu e o outro (BAUMAN; 2005:11).

Fonte: BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Zahar, 2005.

1.3  Da modernidade para a pós-


modernidade/modernidade líquida
Para Bauman, nada na história simplesmente termina, de modo que práticas modernas ainda
circulam por entre o que ele chama de pós-modernidade ou modernidade líquida, de modo
que se segue “vivendo com a ambivalência”. O que realmente mudou é o fato de que se pode
observar a modernidade, seus efeitos e julgar sua construção: isto representa a ideia de pós-
modernidade, não só uma existência definida por ser pós, nem pela marcação de uma data
histórica. Tem características marcadas a partir do capitalismo enquanto estrutura econômica
majoritária no mundo, mas nasce, sobretudo, a partir de uma reflexão crítica sobre o processo
anterior para que se possa pensar em modos de recriar a história de nossa humanidade a
partir de ações, pesquisa e produção científicas que abarquem a complexidade e acolham as
ambivalências.

Para definir as condições da pós-modernidade e discutir as transformações do mundo moderno


nos últimos tempos, o sociólogo sempre preferiu usar o termo “modernidade líquida”. O líquido
tem relação com a metáfora da fluidez: na passagem da modernidade para a modernidade
líquida, podemos fazer alusão à própria condição da vida moderna atualmente: vulnerável,
incapaz de manter a mesma identidade por meio tempo e suscetíveis a estar em estado de
passagem e transformação das relações sociais, marcada pela condição da temporariedade.

A pós-modernidade não é o descrédito da modernidade; é o ato de olhar para trás e perceber


a necessidade de mudança.

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É a modernidade atingindo a maioridade. (BAUMAN, 1999)

Em outras palavras, é se permitir viver sem garantias, mas com sustentação ética: ao passo que
causa ansiedade não ter respostas para todos os fenômenos e, tampouco ter uma única resposta
para as mesmas situações, viver com a ambivalência é uma saída para a emancipação.

Por emancipação podemos compreender as ambivalências e poder viver com elas. Significa
também estar aberto à alteridade, compor com o que nos parece diferente e se permitir
composições relacionais.
A relação aberta pelo ato da emancipação é marcada pelo fim do medo e o começo da
tolerância. (...) a consciência da condição pós-moderna revela a tolerância como sina. Ela
também torna possível - apenas possível - o longo caminho que leva do fado ao destino, da
tolerância à solidariedade. (BAUMAN, 1999, p.248-251)

Emancipação, portanto, é um primeiro aspecto importante para compreendermos os desafios


da psicologia na contemporaneidade.

Superação do individualismo enquanto modo de vida é um segundo aspecto. Em tempos de


modernidade líquida, marcada pelas relações voláteis, fluidas e temporárias, o individualismo
assume um papel fundamental que precisa ser repensado.

O século XX teve transformações com a passagem da sociedade de produção (capitalismo) para


a sociedade de consumo (capitalismo tardio ou capitalismo neoliberal). Com isso, houve também
intenso processo de fragmentação da vida humana. Nos afastamos da relação comunitária
(entendendo comunidade como grupos, sentimento de nação e pertencimento em movimentos
políticos) para focalizar na autorrealização. Nesse sentido, a identidade pessoal se restringiu,
de modo que o significado e propósito da vida e da felicidade passou a ser canalizado a tudo
aquilo que acontece com cada pessoa individualmente e não em relação à noção coletiva e o
sentimento de pertença.

1.4  Lidando com a complexidade


O caminho para a emancipação, autonomia dos sujeitos e modos de viver mais coletivos, requer
análises do modo moderno de viver, como discutimos no subcapítulo anterior, a partir da inclusão
da diferença, inclusão da ambivalência na construção do conhecimento e, sobretudo, a adesão
a perspectivas teóricas que nos permitam pensar os fenômenos e suas complexidades.
Não existe resposta fácil para problemas complexos. (ANTÔNIO LANCETTI)

E como essa discussão dialoga com a prática psicológica? Vamos discutir.

O sociólogo francês Edgar Morin propõe, em seus últimos estudos, uma nova concepção para
a construção do conhecimento: no lugar da especialização, simplificação e fragmentação,
propõe-se o conceito de complexidade.

Para o autor, nossa sociedade contemporânea, sobretudo a ocidental, tem o grande desafio de
introduzir as incertezas no campo científico. Assim como Bauman, Morin critica a compartimentação
do saber científico e a necessidade de grandes verdades universais (sobretudo a partir de
pesquisas no campo das ciências exatas e naturais), características de uma sociedade modera.

As limitações causadas pela fragmentação do conhecimento, de acordo com o educador, são


responsáveis pela tendência de aplicar conceitos abstratos vindos das ciências exatas e naturais
ao universo humano e isso resulta em desconsideração por aspectos como o ambiente, a história,

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aspectos políticos ou mesmo da psicologia na análise da vida cotidiana. Ao invés de construirmos
um saber que leve em conta a complexidade, estamos reduzindo os fenômenos desse modo. É
preciso enfrentar as incertezas com base nos aportes recentes da ciência transdisciplinar.

VAMOS VER O EXEMPLO...


Uma construção reducionista sobre o atendimento psicológico em saúde
mental levará em conta somente a descrição dos sintomas que o usuário
está sentindo (p. ex., se está ouvindo vozes, logo será necessária uma
consulta com o médico psiquiatra, sem explorar outros aspectos da vida do
usuário).

Uma construção que leve em conta as incertezas e a complexidade


possibilitará que o psicólogo faça uma escuta mais detalhada da vida do
usuário, seus desejos, sentimentos, medos, anseios. Vai explorar os aspectos
sociais e econômicos da vida do usuário, buscando compreender os
determinantes sociais na relação com a sua saúde-doença. Não vai fechar
um diagnóstico somente com bases nos sintomas, vai buscar atendimento
compartilhado com outros profissionais de saúde, incluindo o médico
psiquiatra. E, por fim, não vai orientar sua conduta pela “cura” da doença
do usuário, mas sim pela construção de melhores possibilidades de vida
para ele, vivendo com ou sem a doença.

Para recuperar a complexidade da vida nas ciências e nas atividades humanas, Morin recomenda
um pensamento crítico sobre o próprio pensar e seus métodos, ou seja, uma profunda reforma
do pensamento que, fundamentalmente, irá pressupor a consciência de si e do mundo.

Não há transformações se não tomarmos consciência crítica sobre o mundo, sem reduzi-lo a
operações exatas simplistas ou opiniões de senso comum.

O foco é a transdisciplinaridade. Isso significa a superação do modo de pensar dicotômico


das dualidades, estimulando um modo de pensar marcado pela articulação de saberes (não a
fragmentação deles).

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VOCÊ CONHECE?

Edgar Morin

Fonte: pgl.gal. Disponível em: <http://pgl.gal/os-7-saberes-necessarios-a-educa-


cao-do-futuro-segundo-edgar-morin/>. Acesso em:05 jun. 2018.

Edgar Morin nasceu em 1921, em Paris. Seu nome verdadeiro é Edgar Nahoum. Fez os estudos
universitários de História, Geografia e Direito na Sorbonne, onde se aproximou do Partido Co-
munista, ao qual se filiou em 1941. Teve papel ativo no movimento de resistência à ocupação
nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Depois do fim da guerra, participou da ocupação
da Alemanha. Em 1949, distanciou-se do PC, que o expulsou dois anos depois. Ingressou no
Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), onde realizou um dos primeiros estudos et-
nológicos produzidos na França, sobre uma comunidade da região da Bretanha. Criou o Cen-
tro de Estudos de Comunicações de Massa e as revistas Arguments e Comunication. Em 1961,
rodou o filme Crônica de um Verão, em parceria com o documentarista Jean Rouch. Em segui-
da, fez uma série de viagens à América Latina. Em 1968, começou a lecionar na Universidade
de Nanterre. Passou um ano no Instituto Salk de Estudos Biológicos em La Jolla, na Califórnia,
onde acompanhou descobertas da genética. Redigiu em 1994, com o semiólogo português
Lima de Freitas e o físico romeno Basarab Nicolescu, um manifesto a favor da transdiscipli-
naridade. Em 1998, promoveu, com o governo francês, jornadas temáticas que originaram o
livro A Religação dos Saberes. Em 2002, a Justiça o condenou por difamação racial devido a
um artigo no qual dizia que “os judeus, que foram vítimas de uma ordem impiedosa, impõem
sua ordem impiedosa aos palestinos”. Morin, que é judeu, pagou 1 euro como pena simbólica.
Ainda diretor de pesquisas no CNRS, ele é doutor honoris causa em universidades de vários
países e presidente da Associação para o Pensamento Complexo.

Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/1391/edgar-morin-o-arquiteto-da-com-


plexidade.

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Temas Contemporâneos em Psicologia

1.5  Relação entre a Psicologia e as estratégias


de acessibilidade disponíveis atualmente para
portadores de necessidades especiais

1.5.1  Contextualizando a deficiência no Brasil

A Organização das Nações Unidas (ONU) (2006) expõe que existem cerca de 600 milhões de
pessoas no mundo com algum tipo de necessidades especiais, das quais, 400 milhões vivem em
países que estão em desenvolvimento. Mais de 82% das pessoas com necessidades especiais
vivem abaixo da linha de pobreza e, em sua maioria, constituem-se de crianças.

Um primeiro aspecto nos chama a atenção, portanto: há relação intrínseca entre as deficiências
e os aspectos sociais, econômicos, históricos e políticos de um país. Veremos um pouco mais a
seguir.

No Brasil, estima-se que 15% da população brasileira apresenta algum tipo de necessidade
especial, sendo que 820 mil são crianças/adolescentes entre 0 e 17 anos.

Mais especificamente em relação ao Censo realizado pelo IBGE em 2010, temos as seguintes
informações:

•• Cerca de 45,6 milhões de brasileiros declararam ter alguma deficiência (23,9% da


população), dentre as quais:

•• 13,2 milhões com deficiência física (7%);

•• 6,5 milhões com deficiência visual severa (3,4%);

•• 6 milhões com dificuldade para enxergar (3,1%);

•• 506 mil cegos (0,26%);

•• 9,7 milhões com deficiência auditiva (5,1%);

•• 2,1 milhões com deficiência auditiva severa (1,1%);

•• 344,2 mil surdos (0,18%).

De acordo com o site do Núcleo de Especialização e Educação para o deficiente físico e mental
(NEED), estima-se que 70% das deficiências poderiam ser PREVENIDAS, ou seja, os fatores
etiológicos das deficiências têm relação com um bom trabalho de prevenção, sobretudo em
relação ao pré-natal e ao puerpério adequados.

Desse modo, a deficiência pode ser entendida como “uma limitação que alguns seres humanos
adquiriram não somente por herança biológica, mas por problemas sociais básicos não
resolvidos, como acesso à educação, à saúde, à moradia, entre outros” (GAIO, 2006, p. 26).

Dentre os principais fatores etiológicos da deficiência, estão:

•• Pré-natais e seus aspectos genéticos, ambientais, multifatoriais

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O pré-natal é o acompanhamento médico que toda gestante deve ter, a fim de manter a
integridade das condições de saúde da mãe e do bebê. Durante toda a gravidez são realizados
exames laboratoriais que visam identificar e tratar doenças que podem trazer prejuízos à
saúde da mãe ou da criança.

Tais intercorrências podem ser de fatores genéticos e/ou ambientais, tais como:

•• Desnutrição materna;

•• Má assistência à gestante;

•• Doenças infecciosas na mãe;

•• Fatores tóxicos na mãe;

•• Fatores genéticos (hereditários e/ou cromossômicos).

Nessa fase, é de extrema importância o acompanhamento sistemático da equipe de saúde,


bem como o acesso aos exames laboratoriais.

Por isso, a importância de uma rede de saúde adequada a toda população.

•• Perinatal ou puerpério

O período perinatal é aquele que envolve o momento do nascimento e o, exato e imediato,


momento após o nascimento (até o 30º dia após o parto), envolvendo toda a problemática
do atendimento materno-infantil, ou seja, má assistência ao parto e traumas do parto (uso de
fórceps). Assim sendo, qualquer intercorrência que acontece no momento do parto, ou logo
após a ele, é um grande fator de risco às deficiências, como é o caso da prematuridade e da
infecção hospitalar.

•• Pós-natal

As causas pós-natais são aquelas que acontecem após o nascimento, isto é, do 30º dia de vida
até a adolescência. De forma geral, incluem as causas microbianas, desnutrição, intoxicações,
traumatismos cranioencefálicos, fatores ambientais, familiares e condições socioeconômicas e
infecções.

Nesse sentido, prevenir é uma necessidade urgente e pressupõe o conhecimento das causas da
deficiência ou situações de risco. Outro aspecto fundamental é a organização de sistema de
saúde público que garanta atendimento de qualidade, sobretudo na atenção primária com
ações e pré-natal e puerpério.

1.6  As deficiências e o padrão de


normalidade em questão
Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza
física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as
demais pessoas. (LEI N.º 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015)

De acordo com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da Organização
das Nações Unidas (ONU), o Brasil ratificou com valor de emenda constitucional, em 2008,

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Temas Contemporâneos em Psicologia
em que é totalmente inadequado o termo “pessoa portadora de deficiência ou portador de
deficiência”.

Por quê? As pessoas não portam, nem carregam as deficiências. As pessoas com deficiências
vivem e são desejantes como qualquer outra pessoa. Assim, como nomear o outro que tem
alguma deficiência? Em primeiro lugar: pelo nome!

Querer saber primeiro o que a pessoa tem para depois saber o que ela é subtrai sua
subjetividade. Depois, do ponto de vista técnico, é importante utilizar adequadamente as
terminologias, conforme a seguir, a fim de evitar preconceito e estigmas atribuídos às pessoas
com deficiência:

Cadeirantes, amputados, ostomizados Pessoa com deficiência física


Autista Pessoa com transtorno do Espectro Autista
Síndrome de Down Pessoa com deficiência intelectual
Surdo Pessoa com deficiência auditiva
Cego Pessoa com deficiência visual

Outro aspecto importante é que ter deficiência não significa estar doente.

Podemos entender por doença o processo e o estado causado por uma afecção em um ser
vivo, que altera o seu estado de saúde. Este estado pode ser provocado por diversos fatores,
podendo ser intrínsecos ou extrínsecos ao organismo enfermo. Ligado, portanto, à noção de
enfermidade e às moléstias. No entanto, as deficiências podem ser compreendidas em duas
outras dimensões, conforme figura a seguir:

DEFICIÊNCIA
Deficiência: perda ou anormalidade da estrutura
ou função - nível do órgão.
Ex.: Olho lesado
Dimensão
descritiva
Incapacidade: restrição de atividades - nível da
pessoa.
Ex.: Não ver

Dimensão Desvantagem: condição social de prejuízo, na


valorativa relação do indivíduo com o meio. Nem sempre
associada à incapacidade.
Ex.: Não aprender, não trabalhar, não desenvol-
ver pensamento representativo

17 Laureate International Universities


Ou seja, a deficiência se apresenta no indivíduo através da ausência ou diminuição de algumas
capacidades, que podem ser físicas, mentais, sensoriais ou anatômicas, recaindo em uma
alteração da vida quotidiana do indivíduo e não se relaciona, necessariamente, com o estado
de adoecimento em seu sentido estrito. Muitas podem ser causadas por uma doença (como é o
caso de deficiências em decorrência da sífilis congênita), mas também poderiam ser causadas
por outros fatores, como acidentes automobilísticos.

NÃO DEIXE DE LER


De perto ninguém é normal.

No mundo não existem “os normais” e “os anormais”. Todos são seres humanos de igual valor,
com características diversas.

Retirado do site: http://www.movimentodown.org.br/.

1.7  A atuação do psicólogo e as estratégias


de acessibilidade disponíveis
De acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,
há duas atuações em relação ao cuidado com as pessoas com deficiência: a habilitação e a
reabilitação. A primeira tem o objetivo de ajudar os que possuem deficiências congênitas ou
adquiridas na primeira infância a desenvolver sua máxima funcionalidade.

No entanto, a reabilitação executa medidas que ajudam pessoas com deficiências ou prestes
a adquirir deficiências a terem e manterem uma funcionalidade ideal na interação com seu
ambiente.

São profissionais que atuam tanto na habilitação quanto na reabilitação: terapeutas


ocupacionais, técnicos de órteses e próteses; fisioterapeutas; psicólogos; assistentes sociais;
fonoaudiólogos, entre outros.

Em relação às Tecnologias Assistivas (cujo termo ainda é novo), são utilizadas para identificar
todo o arsenal de recursos e serviços que contribuem para proporcionar ou ampliar habilidades
funcionais de pessoas com deficiência e, consequentemente, promover vida independente
(autonomia) e inclusão social. São exemplos de tecnologias assistivas:

•• muletas, próteses, órteses, cadeiras de rodas e triciclos para pessoas com dificuldades de
locomoção;

•• próteses auditivas e implantes cocleares para pessoas com deficiência auditiva;

•• bengalas brancas, lupas, dispositivos oculares, audiolivros e softwares para ampliação e


leitura de tela para pessoas com deficiência visual;

•• painéis de comunicação e sintetizadores de voz para pessoas com deficiência de fala;

•• dispositivos como calendários diários com figuras simbólicas para pessoas.

18
Temas Contemporâneos em Psicologia
Quando pensamos na inclusão da pessoa com deficiência – seja no ambiente escolar ou no
universo do trabalho - os recursos de acessibilidade são uma das maneiras de ultrapassar
as barreiras impostas pela deficiência, possibilitando que o indivíduo interaja com o meio
favorecendo, assim, sua autonomia. É a possibilidade de uma inclusão não excludente, onde
a condição de diferente em suas possibilidades, da pessoa com deficiência, é respeitada. O
recurso assistivo proporcionará a acessibilidade aos espaços, aos materiais didáticos e a todos
os equipamentos disponíveis no ambiente.

Com tantas possibilidades, por que será que ainda temos políticas públicas que não favorecem
a inclusão das pessoas com deficiência? O que diz nossa legislação a esse respeito?

O Estatuto da pessoa com deficiência é destinado a assegurar e a promover, em condições de


igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência,
visando à sua inclusão social e cidadania.

Nos anos 2000, foi apresentada na Câmara dos Deputados a primeira versão do Estatuto.
Após três anos dessa apresentação, no ano de 2003, foi instituída uma Comissão Especial para
analisar as propostas contidas nesse projeto, a partir de uma série de audiências públicas e
seminários estaduais.

Depois de um longo período de tramitação no Congresso, o projeto de lei foi instituído em 2006.
Essa demora aconteceu por atrasos na votação, pois não havia um consenso da sociedade civil
organizada sobre alguns dos tópicos. Nove anos depois, no dia 6 de julho de 2015, o Estatuto
da Pessoa com Deficiência foi finalmente instituído.

Ele é representado pela Lei 13.146, sendo originalmente chamado de Lei Brasileira de Inclusão
da Pessoa com Deficiência. O Estatuto trata sobre a acessibilidade e a inclusão em diferentes
aspectos da pessoa com deficiência na sociedade.

PARA SABER MAIS

Para acessar essa lei na íntegra, acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-


2018/2015/lei/l13146.htm.

Em linhas gerais, a lei descreve a necessidade de superação das barreiras de acessibilidade,


institui as residências inclusivas e aponta aspectos que possam ser considerados discriminação
em razão da deficiência.

Por barreiras, podemos compreender qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento


que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício
de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação,
ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros, classificadas
em: barreiras urbanísticas, barreiras arquitetônicas, barreiras nos transportes, barreiras nas
comunicações e na informação, barreiras atitudinaise barreiras tecnológicas.

1.7.1  E quando consideramos discriminação em razão de


deficiência?

19 Laureate International Universities


Toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito
ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e
das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações
razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.

É vedada a possibilidade de cobrança diferenciada por serviços como: educação, plano de


saúde, hospedagem, ingresso no cinema e táxi.

Praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de deficiência tem pena de


reclusão de 1 a 3 anos e multa, aumentada em 1/3, se quem realizou a discriminação é alguém
que presta cuidados à pessoa com deficiência.

A psicologia, nesse contexto, tem o papel fundamental de propiciar a inclusão da pessoa


com deficiência nas diferentes instituições (como, p. ex., intervindo junto à escola na inclusão
escolar de crianças e adolescentes, ou facilitando processos junto às organizações em ações
de empregabilidade das pessoas com deficiência ou necessidades especiais). Ademais, pode
trabalhar em diferentes frentes propiciando essas ações inclusivas, como:

•• Nas equipes de saúde;

•• No aconselhamento genético;

•• No acompanhamento familiar;

•• Nos equipamentos das áreas de Saúde, Educação, Assistência Social, Cultura, etc.;

•• Nos processos clínicos.

NÃO DEIXE DE CONHECER...


Acessar o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência: http://www.pessoacomdefi-
ciencia.gov.br/app/sites/default/files/arquivos/%5Bfield_generico_imagens-filefield-descrip-
tion%5D_0.pdf.

Em todos os cenários, o apoio familiar, e da rede de suporte da pessoa com deficiência, será
importante discutir o significado da deficiência com os pais e com toda a família, assinalando
o significado de ter um filho com deficiência e o significado da condição em si: sem mascarar a
realidade, mas apontando todas as possibilidades de intervenção.

Será necessário pensar em estratégias de diminuição da ansiedade dos pais, levando-os a


perceber suas competências para criar um filho, mesmo que este tenha uma deficiência, assim
como diminuir a autocrítica dos pais em relação a atitudes para com os filhos.

É importante proporcionar condições para que os pais possam assumir suas responsabilidades
com o filho e acompanhar essas famílias no que diz respeito a acolher o filho com deficiência e
contribuir para seu desenvolvimento.
A melhor maneira de lidar com o deficiente é despir-se dos próprios preconceitos. Quando
os preconceitos e pré-conceitos conseguem ser transformados, as pessoas percebem com mais
facilidade que as crianças e adolescentes com deficiência passam pelas mesmas experiências
sociais, os mesmos processos de desenvolvimento, aprendizado psicológico, vivência escolar que
os demais. (ZACHARIAS; SILVEIRA, 2011)

20
Temas Contemporâneos em Psicologia

NÃO DEIXE DE CONHECER...


Para acessar o histórico de conquistas das pessoas com deficiência, acesse: http://www.sdh.
gov.br/assuntos/pessoa-com-deficiencia/pdfs/catalogo-para-todos.

NÃO DEIXE DE VER...


Sugestão de filme: Helen Keller e o Milagre de Anne Sullivan.

Sinopse: A incansável professora Anne Sullivan tenta fazer com que Helen Keller, uma garota
cega e surda, se adapte e entenda o mundo que a cerca. Para isso, entra em confronto com os
pais da menina que, por piedade, a tratam de forma mimada.

PARA SABER MAIS

Produzir um ensaio a partir do tema das Estratégias e tecnologias de acessibilidade para


Pessoas com Deficiências (PCD), Pessoas com Necessidades Especiais (PNE) ou pessoas com
mobilidade reduzida.

O ensaio é um texto opinativo em que se expõe ideias, críticas, reflexões e impressões pes-
soais, realizando uma avaliação sobre determinado tema.

Para saber mais sobre como produzir um ensaio, acesse: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/


handle/123456789/116800/DICAS_SOBRE_COMO_ESCREVER_UM_ENSAIO.pdf?se-
quence=1.

1.8  A polêmica entre uso de drogas e a


estratégia de redução de danos

1.8.1  A saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS)

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado em 1988 por meio da Constituição Federal Brasileira
após mobilização de diferentes movimentos sociais, com o objetivo de construir uma rede de
saúde gratuita e de qualidade para a população brasileira. Contudo, foi somente em 1990
que o Congresso Nacional a aprovou em lei, apresentando os princípios e diretrizes dessa nova
política de saúde.

21 Laureate International Universities


Quais são os três princípios do SUS que norteiam todas as políticas públicas de saúde, incluindo
a atuação de todos os profissionais de saúde? Vamos relembrar?

Princípios
•• Universalidade: TODAS as pessoas têm direito a TODOS os serviços de saúde.

•• Equidade: todos têm direito aos serviços de saúde, conforme a complexidade de cada
caso, independentemente de sua condição social.

•• Integralidade: as ações de saúde devem entender o usuário como um todo indivisível.

Hoje, após quase 30 anos de criação de nosso Sistema Único de Saúde (SUS), avanços podem
ser observados em relação a ações de prevenção e promoção da saúde, a partir da expansão
da atenção primária, com impactos diretos em indicadores de saúde, como a redução do
indicador de mortalidade materno-infantil, expansão de equipamentos de saúde pública em
todo o Brasil, implantação da Estratégia de Saúde da Família (ESF), que hoje é referência
mundial de combate à desigualdade na atenção à saúde.

Por outro lado, há muitos desafios para a construção de uma perspectiva de saúde integral
compreendida como direito social e amparada em valores democráticos, como, por exemplo, o
subfinanciamento como efeito das crises econômicas, somado ao das medidas de austeridade
fiscal, é mais fortemente sentido pelos grupos sociais mais vulneráveis.

No chamado “campo da Saúde Mental”, verificam-se os mesmos tensionamentos políticos,


sobretudo em relação às propostas e ações direcionadas às pessoas que fazem uso de drogas,
seja para fins recreativos ou por uso compulsivo, especialmente das chamadas drogas ilícitas.

Dentre os avanços no campo da saúde mental, destaca-se a promulgação da lei 10.216/01,


conhecida como “Lei da Reforma Psiquiátrica”, pessoas com “transtorno mental” passaram a
ter garantidos direitos ao cuidado integral em saúde, tratamento digno, de base comunitária
e em liberdade.

PARA SABER MAIS

Vamos conhecer a Lei 10.216/01? Acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/


leis_2001/l10216.htm?TSPD_101_R0=9acddaa9c923de3ca9a19a9a6c2dc541yFE-
0000000000000000de8106c9ffff00000000000000000000000000005ae63e580044f-
fa16b.

Com a implantação da lei da chamada reforma psiquiátrica, para além da constituição de uma
rede substitutiva aos manicômios, foram pressupostas mudanças profundas no modo de cuidar
das pessoas em crise e/ou sofrimento mental.

A tabela a seguir apresentará essas principais mudanças, conforme Rotelli (1991) e Saraceno
(1991), autores precursores da Reforma Psiquiátrica italiana e que serviu de modelo para a
reforma no Brasil:

22
Temas Contemporâneos em Psicologia

REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL - PRESSUPOSTOS


Existência de sofrimento
Doença
em relação ao mundo

Doença (sujeito) Sujeito (doença)

Poder contratual Zero Exercício de Cidadania

Objetivo de curo Produção de Sentido,


Eliminar sintoma Produção de Vida!

Nessa tabela, podemos perceber que o foco não mais se mantém na doença ou no diagnóstico,
mas sim no sujeito. A atuação dos profissionais da saúde, incluindo o psicólogo, passa a incluir
ações que busquem o exercício da cidadania dos usuários de saúde mental, no sentido de
buscar a produção de uma vida digna (e não mais com o único objetivo de curar ou eliminar os
sintomas da doença!).

De modo mais específico, a publicação da portaria ministerial 3088, de 2011, instituindo a


Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), foi o elemento de conexão, do ponto de vista da política
de saúde mental, que operacionalizou a chamada reforma psiquiátrica.

Essa portaria organizou toda a rede de atenção à saúde estipulando que todos os equipamentos
de saúde precisam atender às pessoas em sofrimento ou transtorno mental, em seus diferentes
níveis de complexidade, ou seja, casos mais complexos passam a ser atendidos nos chamados
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), por exemplo.

Os valores apresentados nessa portaria incluem os princípios e as diretrizes do SUS e resgatam


os direcionamentos da Reforma Psiquiátrica. Em síntese, ela pressupõe:

•• Garantia de liberdade e autonomia aos usuários com transtorno/sofrimento mental;

•• Respeito aos direitos humanos; equidade; acesso; integralidade; qualidade dos serviços,
controle social, regionalização;

•• Reconhece os determinantes sociais da saúde como fatores importantes na construção das


patologias em decorrência do sofrimento mental;

•• Combate a estigmas e preconceitos.

23 Laureate International Universities


A seguir, será apresentada uma tabela com todos os equipamentos de saúde que compõem a
Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e que realizam atendimentos às pessoas com sofrimento
ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas.

COMPONENTES DA RAPS
• Unidade Básica de Saúde;
• Núcleo de Apoio à Saúde da Família;
Atenção Básica em Saúde
• Consultório na Rua;
• Centro de Convivência e Cultura.

Atenção Psicossocial • Centros de Atenção Psicossocial, nas


Estratégica suas diferentes modalidades.

• SAMU 192;
• Sala de Estabilização;
Atenção de Urgência e
• UPA 24 horas e portas hospitalares de
Emergência
atenção à urgência/pronto-socorro, Unida-
des Básicas de Saúde.

Atenção Residencial de • Unidade de Acolhimento;


Caráter Transitório • Serviço de Atenção em Regime Residencial.

• Leitos/Enfermaria de Saúde Mental em


Atenção Hospitalar Hospital Geral.

Estratégia de • Serviços Residenciais Terapêuticos;


Desinstitucionalização • Programa de Volta para Casa.

• Iniciativas de Geração de Trabalho e


Estratégias de Renda;
Reabilitação Psicossocial • Empreendimentos Solidários e Cooperati-
vas Sociais.

Fonte: http://u.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/secretarias/803-sas-raiz/
daet-raiz/saude-mental/l2-saude-mental/12588-raps-rede-de-atencao-psicossocial.

24
Temas Contemporâneos em Psicologia

PARA SABER MAIS

Para acessar a portaria 3088, de 2011, na íntegra, acesse: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/


saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html.

1.8.2  As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência

O termo “droga” é atualmente utilizado para generalizar o uso de substâncias que produzem
alterações físicas e/ou psíquicas que modificam os modos de perceber o mundo, sejam elas
lícitas ou ilícitas (MELLO; AVARCA; VIEIRA & LIMA, 2016).

Tendo em vista que as drogas psicoativas se tornaram produtos de consumo e foram atreladas
às promessas de felicidades em nossa sociedade individualizada, é importante que a psicologia
discuta tal tema e relacione as condições sociais e econômicas do uso de drogas, relacionando
com nossa constituição psíquica, estreitamente vinculada ao modo como nos relacionamos com
o sofrimento.

No Brasil, a desigualdade social tem favorecido o aumento do tráfico de drogas, recrutando


jovens pobres para o tráfico, e o enfrentamento direto com a polícia, dando início a uma
verdadeira guerra civil inserida em um ciclo global de guerras às drogas (PASSOS & SOUZA,
2011), resumida em políticas repressivas, marcadas pelo medo e pela querela de que a
sociedade vive ameaçada por traficantes (RODRIGUES, 1993).

Ademais, cabe mencionar nessa discussão, pesquisa recente do Instituto de Segurança Pública do
Rio de Janeiro (2016) que aponta para um dado alarmante: 77% das pessoas que morreram
em confronto com a polícia carioca, entre 2010 a 2014, eram negras ou pardas. Carl Hart
(2015) nos relembra que o “combate às drogas”, sobretudo com foco no uso do crack no
Estados Unidos da década de 1980, manteve-se alimentado por narrativas de raça (com o uso
do crack associado aos negros e/ou pobres) e patologia (pela errática noção de que o crack
causa mais dependência que outras drogas). Portanto, problemas em relação ao uso de drogas
passaram a ser descritos como prevalentes em bairros empobrecidos, fazendo-se crer que se
trata de um problema moral.

Associou-se o uso de drogas ilícitas, como o crack, à noção de periculosidade (ou seja, que
pessoas que usam o crack são pessoas perigosas em potencial. Tal discurso redundou no
encarceramento em massa da população negra: [nos Estados Unidos, na década de 1980],
“85% dos condenados por delitos relacionados ao crack eram negros, embora a maioria dos
usuários da droga fosse e é composta por brancos”) (HART, 2015, p. 2). No Brasil, atualmente,
os jovens representam 54,8% da população carcerária do país, dentre os quais 61%,
aproximadamente, são negros (BRASIL, 2015).

O “crack” é uma droga derivada da cocaína que teve o início de seu consumo nos Estados
Unidos na década de 1980. No Brasil, o primeiro registro de apreensão policial da droga foi
em 1989, na cidade de São Paulo. Apesar da ênfase do discurso midiático, endossado por
parte da comunidade científica, sobre sua disseminação epidêmica nos últimos 30 anos, duas
pesquisas realizadas com jovens brasileiros nas principais cidades brasileiras, nos anos de
2003 e 2010, demonstram que o padrão de uso do crack não se modificou significativamente

25 Laureate International Universities


em 7 anos. Em contrapartida, a droga mais consumida pelos jovens continua sendo o álcool
(NAPPO; SANCHEZ & RIBEIRO, 2012).

A tabela a seguir mostra os principais resultados dessa pesquisa:

Comparação do uso de drogas psicotrópicas entre estudantes do Ensino


Fundamental e Médio das escola públicas entre os anos de 2004 e 2010:
63,3
65
60
55
50
% uso de droga

45 41,1
40 2004
35
30 2010
25
20
15,7 14,1
15
9,8
10
4,9 4,6 3,7 3,8 3,2
05 2,1 1,6 1,7 1,9 0,7 0,4
00
ol aco ente
s/
conh
a icos cos aína ck
Álco Tab Solv lantes Ma f e t amín nsiolíti Coc Cra
a A n A
In

Atrelar o consumo do crack ao conceito de epidemia, embora não se sustente do ponto de vista
da análise epidemiológica, conforme vimos na tabela acima, tem servido, para construção de
políticas e programas de saúde cujo foco é simplesmente o “combate” ao uso de drogas e não
o interesse pela saúde das pessoas.

Esse é o ponto fundamental da discussão: como tratamos as pessoas que fazem uso de drogas?
Como criminosas ou como sujeitos?

É possível pensar práticas de cuidado que levem em consideração a autonomia dos sujeitos que
fazem uso de drogas? O que faz um psicólogo com um usuário que não quer parar de usar
drogas?

Muitas perguntas cujas respostas não são simples. Vamos lembrar do capítulo 2 desse curso,
sobre os desafios do psicólogo em tempos de modernidade líquida: não há respostas fáceis
para problemas complexos.

1.8.3  A estratégia de redução de danos como práticas de


ampliação da vida

O consumo de drogas como “problema social” tem início na organização dos Estados Modernos
(século XVI) e no período industrial (século XIX), e tem sua ascensão com a expansão do sistema

26
Temas Contemporâneos em Psicologia
capitalista do século XX e com a “Guerra às Drogas”, cujo fruto é o proibicionismo do uso de
drogas.

Tal perspectiva se fundamenta na abstinência, seja esta pessoal (espera-se que as pessoas não
usem drogas) e/ou coletiva (objetiva-se um mundo sem drogas em futuro próximo), proibindo-
se qualquer modalidade de uso, comércio ou produção, além de se tipificar os crimes pelo uso
(RIBEIRO, 2013, p. 27).

Criam-se instituições fechadas, cujo “tratamento” para o “vício” só se faz possível pela
abstinência, a partir de discursos e práticas de criminalização e patologização da vida: ou
seja, o tratamento do usuário é construído com base na culpa (por meio de graves preconceitos
morais) e a partir da ideia de que o único tratamento possível é parar de utilizar drogas,
mesmo que o usuário não queira parar de usar.

Desde 2015, tem-se observado o financiamento público de comunidades terapêuticas (CT). Tais
equipamentos são privados (com fins lucrativos) e operam na lógica da internação (inclusive
compulsória) e do isolamento social (um extremo contrassenso em relação ao que se preconiza
a lei 10.216/2001 que dispõe do cuidado integral, digno e em liberdade das pessoas
portadoras de transtornos mentais).

Outro aspecto que chama a atenção em relação a esses equipamentos são as inúmeras denúncias
de violações de direitos humanos e humilhações apontadas no Relatório da 4a Inspeção
Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas publicada pelo
Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2011).

Nesse quadro de embates complexos, também comparecem modalidades de cuidado que


consideram a construção ética da autonomia dos sujeitos diante do uso de drogas, sem mascarar
os conflitos e tampouco inviabilizar os confrontos. Algumas ações no âmbito da “Redução de
Danos” (RD), por exemplo, têm se configurado junto a outras perspectivas de acompanhamento
às pessoas que fazem uso de drogas, como estratégias potentes para construção de uma nova
proposta de atenção em saúde, podendo ser compreendida como uma política de drogas
democrática.

A partir da década de 1980, é possível mapear ações de redução de danos em vários países
do mundo, a princípio como uma tentativa de diminuição de danos/riscos em relação às doenças
infectocontagiosas que os usuários de drogas estavam expostos pelo compartilhamento de
seringas nas cenas de uso, sendo essa uma via de destaque de transmissão do HIV na época.

Uma das primeiras iniciativas que ganha expressão no âmbito da saúde pública de redução de
danos é registrada em Amsterdam, na Holanda, em 1984, a partir de ações junto aos usuários
de drogas injetáveis para contenção da epidemia de Hepatite B, em um primeiro momento, e
do HIV/AIDS, posteriormente, após se detectar a transmissão do vírus via corrente sanguínea
(RIBEIRO, 2013).

No Brasil, as primeiras ações de redução de danos se deram na cidade de Santos, em 1989. Por
se tratar de uma cidade de zona portuária e de intenso trânsito de drogas, apresentou grandes
taxas de prevalência de HIV/AIDS no período, alertando o poder público para esse problema.
A estratégia utilizada pelo então prefeito da cidade, David Capistrano, foi investir em ações
de redução de danos a partir de trocas de seringas e orientações às pessoas consumidoras de
drogas injetáveis. A repercussão dessas medidas provocou polêmicas e muitos tensionamentos,
sob a alegação que tais ações promoviam/facilitavam o uso de drogas, além de suscitar o
debate sobre utilização indevida de recurso público. Tais ações acabaram se configurando

27 Laureate International Universities


como “apologia ao uso de drogas” pelo poder judiciário de Santos e tipificada penalmente a
partir da lei 6.368, de 1976 (MACHADO e BOARINI, 2013).

Foram necessários seis anos de embates e discussões intensas sobre essas estratégias de saúde
para que se pudesse implementar um programa efetivo de troca de seringas e acolhimento aos
usuários, a partir de ações na cidade de Salvador, por meio do Centro de Estudos e Terapia do
Abuso de Drogas (CETAD), sob a coordenação de Antônio Nery Filho, em 1995.

É também nesse período que o Conselho Federal de Entorpecentes (COFEN) aprova a


estratégia da redução de danos, a partir do “Projeto Drogas”, com apoio político e financeiro
da Organização das Nações Unidas (ONU), como estratégia de governo a partir de duas
premissas:

a. como uma resposta imediata de ações de saúde à epidemia do HIV/AIDS e;


b. por meio da Constituição Federal, de 1988, afirmando que é dever do Estado garantir
ações que visem à redução do risco de doença e outros agravos.

Tal projeto possibilitou a abertura de Programas de Redução de Danos (PRDs) em esferas


municipais e estaduais em todo o Brasil.

Dois acontecimentos ajudam a compreender como essas articulações permitiram que a estratégia
de Redução de Danos deixasse de ser apenas um conjunto de ações em saúde pública e
passassem a se tornar um dispositivo de visibilidade dos usuários de drogas sobre suas próprias
demandas de cuidado, com base na perspectiva da autonomia. São elas:

•• a criação da Associação Brasileira de Redutores de Danos (ABORDA), em 1996, que


mobilizou os redutores de danos e usuários de drogas a se organizarem politicamente
para que pudessem gerir mais autonomamente as políticas de RD. Tal coletivo realizava
intervenções por meio de financiando estatal ao mesmo tempo em que se conjurava a
política antidrogas repressiva e hegemônica do Estado (PASSOS e SOUZA, 2011) e;

•• a publicação da Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool


e outras Drogas (BRASIL, 2003), alinhada com os princípios de autonomia e liberdade da
Política Nacional de Saúde Mental (BRASIL, 2001), quando a Redução de Danos deixa de
ser exclusiva do Programa de DST/AIDS e passa a se tornar eixo norteador das Políticas
de Saúde.

PARA SABER MAIS

Para acessar a Política na íntegra, acesse: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politi-


ca_atencao_alcool_drogas.pdf.

Esse processo de ampliação e redefinição da Redução de Danos, enquanto modelo de atenção


às pessoas que fazem uso de drogas, implicou enfrentamento e embates necessários em relação
às políticas repressoras proibicionistas pautadas pela norma abstêmica do uso de drogas.

Podemos entender a redução de danos como uma abordagem ou uma estratégia ao fenômeno
das drogas que visa minimizar danos sociais e à saúde associados ao uso de substâncias
psicoativas.

28
Temas Contemporâneos em Psicologia
O início dessas intervenções foi marcado por ações no campo da saúde, que hoje tem se
ampliado da esfera do direito à saúde para a do direito à cidadania e dos Direitos Humanos.
As práticas de redução de danos buscam a socialização política de usuários de drogas de
maneira crítica, no sentido de se tornarem protagonistas, de promoverem o autocuidado com a
saúde e a busca por direitos, pela discussão de políticas governamentais e políticas de estado,
em uma perspectiva que passa pelo individual e também pelo coletivo.

Sobre o termo “Redução de Danos”, é passível de discussão e traz consigo uma gama de
práticas heterogêneas, polissêmicas e controversas no cotidiano dos serviços de saúde e da
assistência. Lancetti (2006; 2015) discute que o conceito de ampliação de vida caberia melhor
ao que chamamos de Redução de Danos, por se tratar de uma perspectiva usuário-centrada de
autonomia, agenciamentos de afetos, vínculos e conexões em um campo clínico-político complexo
e que não depende, necessariamente, da ação de redutores de danos para se fazer valer.

O autor, em seu livro Clínica peripatética, por exemplo, discute o quão potente podem ser as
ações dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), quando pautadas pelos pressupostos da
redução de danos enquanto ética da produção de vida.

A Redução de Danos, enquanto dispositivo de visibilidade aos usuários de drogas e de


resistência à norma da abstinência, só se realiza se a política pública assegurar, não apenas o
sentido da universalidade presente nos princípios do SUS, como saúde para todos, mas também
que permita que o sujeito seja escutado em suas demandas e desejos e respeitado em seu modo
de vida. 

A Estratégia de Redução de Danos é um desafio importante ao SUS, pois demanda espaços


permanentes de análise e de diálogo entre trabalhadores, gestores e usuários de saúde. Nessa
mesma direção, Lancetti (2015) afirma a importância da reforma psiquiátrica brasileira se
reinventar constantemente a partir de movimentos que não se operem em superfícies morais em
relação ao uso de drogas.

NÃO DEIXE DE VER...


Para compreender um pouco mais sobre redução de danos, sugerimos alguns vídeos atual-
mente disponíveis no youtube:

Vício: https://www.youtube.com/watch?v=ao8L-0nSYzg

Coletânea do Conselho Federal de Psicologia (CFP) chamado “Drogas e Cidadania”:

- Episódio 1 – SUS, a solução que a sociedade brasileira construiu: https://www.youtube.com/


watch?v=usLDzJbhdgo

- Episódio 2 - Crack: Epidemia ou Sintoma?: https://www.youtube.com/watch?v=5aPIDEHN-zo

- Episódio 3 - A Volta dos Manicômios: https://www.youtube.com/watch?v=nDyWk7BPK2k

- Episódio 4 - Medicalização e Sociedade: https://www.youtube.com/watch?v=ZlhkVoOEjG4

29 Laureate International Universities


- Episódio 5 - + uma história: https://www.youtube.com/watch?v=6SuaCUef4qs

- Episódio 6 - Gentrificação: Cidades Segregadas: https://www.youtube.com/watch?v=_


Ypr2HaTmSQ

A equipe do É de Lei perguntou a profissionais da Saúde, pesquisadores e usuários da Rede


de Assistência: o que é redução de danos?

https://www.youtube.com/watch?v=cDVR_NBAfyc

30
Síntese
Temas Contemporâneos em Psicologia

Nesta primeira unidade, introduzimos a discussão sobre os processos histórico-sociais da


atualidade a partir da noção de Modernidade Líquida cunhada pelo sociólogo Zygmunt
Bauman, isto é, pudemos perceber como o projeto de termos uma sociedade moderna, pautada
pelo ideal de ciência que se pretende universal, exata e verificável e cujo objetivo é ordenar
e classificar, permitiu maior fragmentação social e acarretou em profundas mudanças em todos
os aspectos da vida humana. Ou seja, estamos em uma época onde as relações são voláteis,
fluídas, repletas de incertezas e inseguranças. É nesse novo paradigma de sociedade que se
funda a constituição da subjetividade do ser humano pós-moderno.

É nesse contexto que novos desafios surgem para nossa profissão. Dentre eles, os que vimos
nessa unidade de aprendizagem: a inclusão das pessoas com deficiência ou com necessidades
especiais, o fenômeno das drogas na contemporaneidade e os desafios do psicólogo no cuidado
às pessoas que fazem uso radical de drogas.

Em relação à temática da pessoa com deficiência, podemos perceber que há um estatuto que
rege os direitos das pessoas com deficiência, dentre eles a necessidade da inclusão social em
uma intensa articulação da rede de cuidados que inclui: família, colegas, escola e serviços de
saúde. O papel do psicólogo é fundamental nessa integração: intervindo sempre em busca
da construção de autonomia, respeitando sempre a singularidade dos sujeitos e organizando
amplamente ações de combate ao preconceito.

Na atenção às pessoas que fazem uso de drogas, focalizamos a importância de não criminalizar,
culpar ou discriminar essa população: além de não ser adequado eticamente à atuação
do psicólogo, tais ações não se constituem enquanto proposta terapêutica de cuidado. Uma
proposta possível de atuação discutida nessa unidade foi a estratégia de Redução de Danos
cujo foco não foi abstinência enquanto norma, mas a partir da singularidade de cada sujeito.
Sabemos que a questão do uso de drogas é bastante complexa, multicausal e multifatorial,
mas a função do psicólogo na conduta terapêutica precisa estar permeada pela noção de
autonomia e pelo respeito às escolhas das pessoas.

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