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FIOS INVISÍVEIS EM EDUCAÇÃO

Fernanda Monteiro Rigue


Gilberto Oliari
Raquel Brum Sturza
(organizadores)

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NOTA: Dado o caráter interdisciplinar desta coletânea, os textos publicados respeitam
as normas e técnicas bibliográficas utilizadas por cada autor. A responsabilidade pelo
conteúdo dos textos desta obra é dos respectivos autores e autoras, não significando a
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ções diversas (art. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

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CONSELHO EDITORIAL

Ivanio Dickmann – Brasil


Aline Mendonça dos Santos – Brasil
Fausto Franco Martinez – Espanha
Jorge Alejandro Santos – Argentina
Miguel Escobar Guerrero – México
Carla Luciane Blum Vestena – Brasil
Ivo Dickmann – Brasil
José Eustáquio Romão – Brasil
Enise Barth – Brasil
Martinho Condini – Brasil

EXPEDIENTE

Editor Chefe: Ivanio Dickmann


Financeiro: Maria Aparecida Nilen
Diagramação: Renan Fischer
Imagem da Capa: Polin Moreira

FICHA CATALOGRÁFICA

F521 Fios invisíveis em educação. / Fernanda Monteiro Rigue, Gil-


berto Oliari, Raquel Brum Sturza (organizadores). 1.ed. –
Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2020.

ISBN 978-65-990146-8-0

1. Educação. I. Rigue, Fernanda Monteiro. II. Oliari, Gil-


berto. III. Sturza, Raquel Brum.

CDD 370.1 – (Edição 22)

Ficha catalográfica elaborada por Karina Ramos – CRB 14/1056

EDITORA DIÁLOGO FREIRIANO


[CNPJ 20.173.422/0001-76]
Av. Osvaldo Aranha, 610 - Sala 10 - Centro
CEP 95.330-000 - Veranópolis - RS
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www.dialogofreiriano.com.br
Whatsapp: [54] 98447.1280

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Fernanda Monteiro Rigue
Gilberto Oliari
Raquel Brum Sturza
(organizadores)

FIOS INVISÍVEIS EM EDUCAÇÃO

Diálogo Freiriano
Veranópolis - RS
2020

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ÍNDICE

APRESENTAÇÃO ... 9

A ESCOLA NA TECITURA DE TEIAS ... 11


Gilberto Oliari

A POTÊNCIA DA LEITURA COMO FIO INVISÍVEL


DE ACESSO AO/NO MUNDO ... 25
Raquel Brum Sturza e Fernanda Monteiro Rigue

MUNDO COMUM E ESCOLARIZAÇÃO:


UM ENSAIO NECESSÁRIO ... 39
Fernanda Monteiro Rigue

FIANDOGRAFIA: VARIAÇÕES, CONTAMINAÇÕES,


MODOS (INFINITOS) DE PENSAR, LER E ESCREVER
EM EDUCAÇÃO ... 53
Alice Copetti Dalmaso

O DISPOSITIVO DA ESCRITA: MOBILIZAÇÕES SOBRE AS


PRÁTICAS DE SI ENTRE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO ... 67
Ana Paula Parise Malavolta e Fernanda Pereira Ébani

CULTURAS JUVENIS NAS REDES SOCIAIS ... 89


Karina Dias Silveira

O CORPO QUE É MEU, MAS NÃO ME PERTENCE ... 115


Bruna Pereira Bem

AS CIÊNCIAS DA NATUREZA E SEUS FIOS INVISÍVEIS


NA ESCOLARIZAÇÃO BRASILEIRA ... 131
Micheli Bordoli Amestoy e Fernanda Monteiro Rigue

A (RE)EXISTÊNCIA DOS PROFESSORES SOBRE A


MIRA DA VIOLÊNCIA: UM DIÁLOGO SOBRE
A EXISTÊNCIA ... 149
Viviane Martins Vital Ferraz e Rosane Carneiro Sarturi

5
REVERBERAÇÕES DA CORPOREIDADE: O ESPAÇO
EDUCACIONAL E A ÉTICA DA DIFERENÇA ... 171
Ana Paula Parise Malavolta, Pablo Henry Silveira Wouters,
Naiara Simões Jornada e Eluizi Maurent Carvalho

RELATOS E EXPERIÊNCIAS COMO ESTRATÉGIAS PARA


A FORMAÇÃO DE PROFESSORES ... 187
Caroline dos Santos Giuliani, Andreia Ines Dillenburg
e Angélica Pott de Medeiros

EXISTÊNCIAS EXIGENTES: O QUE TEM ATRAVESSADO


A DOCÊNCIA HOJE? ... 199
Celina Saideles Pires, Fernanda Monteiro Rigue
e Lucila Pereira Morin

PEDAGOGIA CRÍTICA E TEORIA DA COMPLEXIDADE:


ONDE AS PARALELAS SE ENCONTRAM ... 213
Francisco Milanez

GÊNEROS TEXTUAIS E PEDAGOGIA CRÍTICA NA SALA DE


AULA: ALGUMAS REFLEXÕES ... 227
Gisélia Pereira Morin e Ravenna Seixas da Silveira

A ESCOLA NA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO:


REFLEXÕES SOBRE OS PROCESSOS DE ENSINO
E APRENDIZAGEM ... 243
Julio César Pinheiro Chaves

O ENSINO DE ÁLGEBRA NO 8º ANO E OS REGISTROS DE


REPRESENTAÇÃO SEMIÓTICA: CARACTERÍSTICAS DE
COMO OS PROFESSORES IDENTIFICAM E ENSINAM OS
OBJETOS MATEMÁTICOS ALGÉBRICOS ... 265
Luani Griggio Langwinski

ESCOLA COMO UM ESPAÇO DE VIVÊNCIAS, REFLEXÃO E


COMPARTILHAMENTO: A GESTÃO ESCOLAR E A
FORMAÇÃO INICIAL DO/A PEDAGOGO/A ... 283
Lucila Pereira Morin, Ravenna Seixas da Silveira,
Gisélia Pereira Morin e Celina Saideles Pires

DESAFIOS DO ENSINO DE HISTÓRIA NOS ANOS FINAIS DA


REDE PÚBLICA DE ENSINO ... 299
Magno de Souza Holanda

6
AS PRÁTICAS DO LETRAMENTO LITERÁRIO:
A FORMAÇÃO DO LEITOR ATIVO ... 317
Remilda Porfírio dos Santos

MOVIMENTO DE REORGANIZAÇÃO CURRICULAR DA


EDUCAÇÃO INFANTIL DO MUNICÍPIO DE CHAPECÓ:
REFLEXÕES INICIAIS ... 331
Simone Pedersetti, Ana Maria Andreola Badin
e Melissa Borges da Silva

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APRESENTAÇÃO

[...] espacios donde abrir preguntas que real-


mente importen y compartir saberes que ver-
daderamente nos afecten (GARCÉS, 2013, p.
86).

Inspirados no pensamento de Marina Garcés (2013) é que nos


movimentamos em busca da obra que você, caro leitor, tem em mãos
nesse instante. Obra que foi planejada a partir de uma série de encon-
tros teóricos que nos permitiram habitar o território da pesquisa no
campo da educação. Nesse tom, a pensamos como espaço que expande
a abertura de perguntas que realmente importam, compartilhando sa-
beres e vivências tão pertinentes para o contemporâneo.
A propulsão que viabilizou a materialização da presente obra
emerge a partir do intento de reunir estudos que pensam a potência dos
fios invisíveis em educação. Fios aqui pensados e inspirados no conceito
de Fiandografia (DALMASO, 2016). Fiandografia como nome “[...] para
dizer sobre a construção das relações entre leitura e escrita, compõe
uma trama-tecido, passível e aberta, (...) como um caminho, um trace-
jar-tecer-costurar fios de escrita (...)” (DALMASO, 2016, p. 06).
Fios-linhas que nos compõem, que permitem compormos uma
produção de existências rumo ao mundo comum. Fiandar como experi-
mentação, como composição, como licença poética. Das fiandeiras das
aranhas, o Fiandar que emerge das Fiandeiras. Movimento, teias!
(DALMASO, 2016).
Escola, Formação de Professores e Filosofia são as temáticas de
interesse que nos mobilizam a arquitetar os múltiplos fios que compõem
a presente coletânea. Temas que, dentro das suas multifacetadas pos-
sibilidades, atravessam os modos como percebemos os passos e descom-
passos do que chamamos de educação escolar no Brasil.

Dra. Fernanda Monteiro Rigue


Ms. Gilberto Oliari
Ms. Raquel Brum Sturza

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A ESCOLA NA TECITURA DE TEIAS
Gilberto Oliari1

Considerações iniciais

A escola, como instituição social, busca de diferentes modos


construir distintas relações entre pessoas e matérias de estudo. Ela,
através de suas características busca interligar sujeitos, sociedades e
conhecimentos compreendidos como herança cultural.
O lócus onde se produz este ensaio é o grupo de Pesquisa Filo-
sofia, Cultura e Educação - FILJEM/PPGE/UFSM. Em sua produção,
tomo duas referências essenciais para pensar e escrever sobre a relação
entre a escola e o mundo comum. O primeiro deles é o livro Un mundo
común da professora e pesquisadora espanhola Marina Garcés (2013);
neste, Garcés (2013) problematiza o contexto de privatizações individu-
ais das existências e aponta algumas pistas para ressignificar o mundo
comum e os processos educativos. O estudo dessa obra desafiou-nos a
olharmos para além da nossa volta e perceber o quanto algumas práti-
cas escolares e educativas tem se tornado vazias de sentido, desgasta-
das e irreais, muito distantes do mundo que nos é comum.
Dessa forma, nos sentimos desafiados a pensar, repensar e pro-
duzir algo, a partir de Garcés (2013). Assim deparei-me com uma ques-
tão: “como a escola pode tornar o mundo comum uma potência educa-
tiva?”. Desse modo, parti em busca de outros textos, com relações pos-
síveis e com argumentos potentes para sustentar uma tese. Nessa
busca, dei-me conta das relações possíveis com Arendt (2007), Massche-
lein e Simons (2017), entre outras que já havia realizado em outros mo-
mentos e já sustentavam meu modo de pensar e escrever. Mas, ainda
não convencido da pertinência e das relações possíveis continuei bus-

1Graduado em Filosofia e Ciências da Religião - UNOCHAPECÓ; Mestrado em Educação


UNOCHAPECÓ; Doutorando em Educação PPGE/UFSM. Professor de Educação Básica
e de Universidade. Bolsista Programa UNIEDU/FUMDES Pós-Graduação.

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cando incessantemente, em outras áreas de leitura argumentos que pu-
dessem sustentar minhas ideias e promover uma maior relação entre
as reflexões que pretendo sustentar. Foi aí que me deparei com a leitura
literária que, muitas vezes, é vista somente como uma leitura por pra-
zer, mas que é capaz de infinitas e significativas relações do mundo
passado, com o presente e o futuro.
Foi nesse percurso, que encontrei o poema “A teia” de Lara de
Lemos (1974) - uma poetisa brasileira. Num primeiro momento foi difí-
cil a sua leitura e compreensão através da profundidade de suas pala-
vras e, o exercício de pensar relações entre o poema e o livro de Garcés
(2013) para problematizar um modo de significar a escola. No entanto,
a imagem que o poema nos propõe nas entrelinhas (uma teia) tornou-
se muito latente em minha construção textual. Assim, o objetivo desse
ensaio é traçar alguns pontos comuns entre os textos lidos (pensados e
debatidos nos encontros do FILJEM) para refletir sobre as possibilida-
des de pensar a escola como uma possibilitadora da produção de teia
que enreda o que acontece no mundo comum e o torna esses aconteci-
mentos matéria de estudo.
Percebi a potência da aproximação entre o poema de Lemos
(1974) e a obra de Garcés (2013) justamente quando, logo no início do
livro, deparo-me com o relato de Garcés ao se encontrar diante de tantas
e inúmeras questões: “as vezes me sinto como uma aranha minúscula
que se sustenta sobre uma infinidade de fios invisíveis, sempre a ponto
de romper-se e precipitar-se ao vazio” (GARCÉS, 2013, p. 18 - tradução
livre). Como seres humanos, nos encontramos cotidianamente sobre o
fios de teias que não sabemos ao certo quem as construiu no entanto,
podemos pensar que a escola por onde cada um passou pode ter possi-
bilitado sua construção, hoje utilizamos para nos sustentar e significar
as coisas e fenômenos do mundo.
Desse modo, nesse caleidoscópio de leituras, pensamentos, re-
flexões e problematizações busco produzir este ensaio. Assim, divido-o
em cinco seções (que é o número de estrofes do poema de Lara Lemos),
início cada uma delas apontando destaques a conceitos ou a ideias de
Lemos (1974) relacionando-o com as de Garcés (2013) bem como com
outras leituras e outros escritos.

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A teia se tece / de grade sem ferro / do negro sem fresta / do muro
sem pedra

As teias, notadamente produzidas inicialmente pelas aranhas,


ao longo da história potencializaram o imaginário literário e científico
da humanidade, promovendo infindáveis interpretações e compreen-
sões, mesmo que implícitas, de realidades ora não ditas explicitamente,
mas jamais negadas. Por sua simplicidade, robustez e complexidade
chamam atenção; seja pela força que possuem, seja pelo modo peço-
nhento de se produzir dentro das habitações. Sua forma maleável e re-
sistente dá a ela condições de habitação, de sustentação entre espaços
vazios, de subsistência, bem como permite a sua habitante capturar pe-
quenos outros insetos que passariam despercebidos e imperceptíveis
não fosse sua produção.
São formadas por fios que até meados do ano de 2015 eram con-
siderados a produção biológica mais resistente do mundo. Algo produ-
zido por um ser vivo com resistência muito superior à sua composição.
Desse modo, desejamos relacionar a produção de teias, com a produção
das aulas escolares que transformam o quantitativo de informações co-
tidianamente deixadas à disposição pelas mídias, em conhecimento
(conceitos, teorias, teoremas) que possibilitam aos alunos interpretar e
atribuir sentido e significado ao mundo.
Para expressar meu modo de compreender a escola, e, talvez
poder expressá-la, é preciso reconhecer que a escola é uma instituição
que possibilita a constituição de inúmeras teias através de seus compo-
nentes curriculares. Cada componente é único em seu modo de consti-
tuir-se justamente porque cada um possui em seu interior fios diferen-
tes em sua constituição. Podemos considerar como fios os diversos mo-
dos (culturais, cognitivos, políticos, curriculares, epistemológicos, etc.)
de produzir singularidades dentro de si.
Essa produção de singularidades, muitas vezes tem relação di-
reta com a forma como se relaciona com o conhecimento.
Em meio a tantos dispositivos e tecnologias de aprendizagem
que cedem às pressões mercantis, que estão sempre competindo entre
si, que apontam para a não validade dos conhecimentos tradicionais
encontramos a escola, com todas as características que conhecemos. Sa-
bemos que a principal tarefa da escola (e, dos professores por extensão)

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é selecionar as matérias de estudo do mundo comum e colocá-los sobre
a mesa para estudo dos alunos (MASSCHELEIN, SIMONS, 2017).
Esse conhecimento, entendido como uma herança, deve ser
transmitidos às gerações de recém chegados. No entanto, essa trans-
missão deve “[...] seguir tecendo um mapa imprevisível de alianças com
outras tentativas” (GARCÉS, 2013, p. 94 - tradução livre), nas quais
seja possível produzir outros saberes e fazeres próprios da humanidade.
Sendo assim, a transmissão deve ser da ordem da problematização e da
tentativa de estabelecer novas e possíveis relações.
Ou seja, os acontecimentos, objetos e fenômenos do mundo - que
se tornam matéria de estudo na escola, quando compreendidos como
herança e, portanto como necessários às futuras gerações, tornam-se
fios que possibilitam a construção individual (ou coletiva) de teias. Es-
ses conhecimentos podem possuir a força resistente, tal qual os fios pro-
duzidos pelas aranhas. Eles possibilitam que quem os recebe (ou se uti-
liza deles) perceba o que acontece ao seu redor, ou no mundo comum e
atribua a esses acontecimentos sentido e significado.
Nessa direção Marina Garcés indica que é necessário, nos pro-
cessos educativos dar o que pensar. Por isso, deve-se investir em “[...]
uma prática de fronteira cuja força está na multiplicidade de frentes e
de táticas” (GARCÉS, 2013, p. 93 - tradução livre), ou seja deve-se bus-
car construir os processos educativos tecendo redes, nas quais é possível
enredar as informações do mundo e transformá-los em conhecimentos
através das atividades pedagógicas que se desenvolvem na escola. In-
vestir em práticas pedagógicas de fronteira exige fios resistentes e am-
plos para que àquilo que for sendo capturado possa possuir sentido.
Seguindo a direção de Garcés podemos pensar que é preciso te-
cer a aula, ou os momentos de ensino como linhas capazes de “[...] traçar
um precário espaço de vida que talvez permitirá (ou não) viver algum
ou alguns dos que ali caiam. Mundos comuns precários, tentativamente
conectados” (GARCÉS, 2013, p. 95 - Tradução livre). Neste aspecto, no
processo da aula, não há garantias, deixam-se os diversos conhecimen-
tos em aberto ao imprevisível.
Para tanto, o acesso ao conhecimento precisa “[...] acender o de-
sejo de pensar, abrir as portas deste desejo a qualquer um que queira e
assumir as consequências deste desejo compartilhado desde a igual-
dade” (p. 96). Esse desejo pode se livre de utilizações, ou de instrumen-
talizações do saber, pois é preciso apostar na fruição, na obtenção de

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conhecimentos sem a intenção de usufruir dele; conhecer pela simples
ação de conhecer sem se preocupar com a utilização.

A teia se tece / do árduo da espera / do aço da espada / e sua


ameaça

As teias são produzidas através de um árduo trabalho, das mais


diversas espécies de aranha, embora pareçam simples produções, seu
processo de construção demanda tempo, esforço, perseverança e resis-
tência para se produzir diante das adversidades que lhe são impostas.
A motivação para sua produção é a sobrevivência diante das dificulda-
des impostas pelo meio em que vive (pequenos animais não esperam ser
atacados pelas aranhas e se tornarem alimentos). Sua forja tende a ser
um processo de problematização das ameaças constantes advindas do
meio em que vive.
Desse modo, entender a escola na tecitura de teias tende a pro-
blematizar o seu papel no meio em que existe. Cabe a escola “capturar”
àquilo que “ronda” o mundo comum e tornar a sua presa, matéria de
estudo através dos diferentes componentes curriculares. Assim, através
do aço da espada é capaz de abrir brechas para os pensamentos e apon-
tar trabalhos de relações e de significações necessárias para tornar o
mundo, em sua existência concreta, algo comum para todos.
A fim de produzir essa teia a escola necessita de tecnologias e
metodologias para alicerçar o trabalho docente. Afinal, curiosidade e
interesse geram trabalho, que é inconcebível sem as tecnologias escola-
res. Tecnologia é pensada de modo muito simples por Masschelein e Si-
mons (2017): quadro, giz, papel, caneta, livro, assim como a carteira e a
cadeira da sala de aula. Esses instrumentos têm como objetivo criar
disciplina para o que se está desenvolvendo na aula: “sentar em uma
carteira não é apenas estado físico; isso também acalma e focaliza aten-
ção […] a lousa mantém o professor com os pés no chão” (MASSCHE-
LEIN, SIMONS, 2017, p. 55).
Através das diferentes tecnologias utilizadas, torna-se possível
a tecitura da teia. Visto que os conhecimentos podem ser entendidos
como fios; é preciso amarrá-los, uns aos outros para que formem teias.
Dessa forma os conceitos, teorias e teoremas apresentados na escola,
tem uma função importante na tecitura da teia pois, podem capturar os

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objetos, acontecimentos e fenômenos do mundo e torná-los comum para
alunos e professores. E, essa construção da teia se faz com instrumentos
do cotidiano que são tecnologizados para facilitar a ação pedagógica.
Utilizando-se de tecnologias, ou ferramentas especificamente escolares,
torna-se necessário pensar o modo como elas são utilizadas.
Nesse sentido, os métodos de ensino também podem ser consi-
derados como tecnologias: “tempo, espaço e recursos são organizados
para tornar possível a experiência do ponto de partida e o evento de
encontro” (MASSCHELEIN, SIMONS, 2017, p. 58). Os autores citam
alguns exemplos como: o ditado, que retira a função inicial das palavras
e transforma-as em um jogo de aprendizado; a escrita, que possibilita
os alunos ensaiar-se dando forma a algo e a si mesmo; os exames, que
exercem uma pressão necessária, que desenvolve uma disciplina para o
estudo.
E, são essas metodologias, quando abrem espaços para a parti-
cipação dos alunos, que possibilitam que cada um construa sua teia. É
preciso destacar que a ideia da escola na tecitura de teias, pretende de-
fender a ideia de que na escola, cada um tece a sua teia, à qual será
utilizada posteriormente, ao longo de toda a vida, para significar o que
cada um experiencia.
Assim como a aranha necessita de esforço para produzir a teia,
na escola para que a tecitura aconteça é preciso disciplina. Nesse sen-
tido, Masschelein e Simons (2017, p.65) destacam, ainda, a necessidade
de autoridade e de disciplina na escola, pois “deixar seu próprio mundo
da vida e elevar-se acima de si mesmo requer um esforço sustentado,
facilitado por respeitar as regras”. Essas regras buscam focalizar a
atenção, minimizar a distração e manter (quando necessário) o silêncio,
a fim de que o exercício do aprendizado seja possível. As tecnologias
escolares são ajustadas “para tornar possível o tempo livre; que permite
o próprio ‘ser capaz’ ou a experiência do ‘posso fazer isso/ sou capaz’”
(idem, p. 65).
Ou seja, para produzir teias é preciso que cada se esforce. Cada
um deve juntar os diferentes fios e amarrá-los para que a rede possa
ser um suporte importante. Ninguém pode simplesmente se apropriar
da redes do outro. É preciso disciplina para, utilizando-se dos fios de
conhecimentos produzidos pela humanidade ao longo do tempo, produ-
zir a própria rede.

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A teia se tece / da fala da insídia / da rede que enreda / na mesma
cilada

Para os pequenos insetos a teia é quase imperceptível. Ela está


ali, localizada estrategicamente, à espera do distraído, do apressado, do
curioso a fim de capturas entre seus fios. Para alguns a teia é perigosa,
no entanto, para aquela que a forja é o modo de enredar o que a sus-
tenta; montar uma emboscada para transformar em vida aquilo que se
prendeu. Essa produção exige planejamento, conhecimento e disposi-
ção.
Por emboscar pequenos e grandes fenômenos do mundo, a es-
cola enreda grandes perigos a si. Acontecimentos, temas, problemas ou
emblemas contemporâneos fazem parte desse perigo. Visto que a função
da escola é dar o que pensar aos alunos sobre o que acontece no mundo
e possibilitar atribuição de sentido àquilo, alguns sistemas (políticos,
éticos, religiosos, etc.) sentem-se ameaçados e tornam-se “grandes inse-
tos” presos a tei, prontos para destruí-la e impedi-la de executar sua
tarefa.
Neste viés, se compreendemos que é papel da escola possibilitar
a tecitura de teias, podemos pensá-la como um “dispositivo” que desafia
seus integrantes a capturar aquilo que passa por entre os fios e trans-
formar isso em sustento, ou atribuir um sentido e um significado à isso.
No entanto, embora a teia possa ser individual, ela captura informa-
ções, acontecimentos e fenômenos que são comuns a muitas pessoas,
assim chama-se atenção para “[...] a dimensão comum de nossa riqueza
compartilhada” (GARCÉS, 2013, p. 145 - Tradução livre). Desse modo,
a constituição das teias pode (talvez, deve) ser compartilhada se levar
em consideração as inúmeras possibilidades de interpretação do
mundo.
O compartilhamento da tecitura da teia pode garantir que ela
não seja destruída pelos “grandes insetos” quando estes são embosca-
dos. Em outras palavras, quanto mais comum e coletivo se produzir e
se transmitir um conhecimento nas escolas, mais resistente ele pode ser
e possibilitar maior durabilidade de sentido àqueles que o acessam.
Pensar a escola como teia requer estabelecer um outro modo de
propor o que se ensina. Deve-se levar em consideração que é possível
aprender “desde a potência concreta de cada situação” (GARCÉS, 2013,
p. 146 - Tradução livre), isso implica uma suspensão de moralismos,

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ideologias e de prescrições sociais que projetam um “deve ser” nas pes-
soas. Isso faz perceber a riqueza da concretude do mundo, levando em
consideração que “a riqueza inapropriável do mundo é o que aparece, o
que se faz pensável e visível, quando aprendemos de novo a vê-lo desde
nosso contato mais íntimo com ele” (GARCÉS, 2013, p. 145 - Tradução
livre).
Os autores Masschelein e Simons (2017, p. 26) afirmam que “a
escola é uma invenção (política) específica da pólis grega e que surgiu
como uma usurpação do privilégio das elites aristocráticas e militares
na Grécia antiga”. Assim escola tentava romper com o paradigma de
seleção natural, o qual considera que alguns, por sua ‘superioridade’’,
teriam direitos a aprender mais sobre o mundo. Estabeleceu-se, desse
modo, “um tempo e espaço que estava, em certo sentido, separado do
tempo e espaço tanto da sociedade quanto da família” (idem), a fim de
colocar conteúdos sobre a mesa escolar para que todos estudassem de
forma igual.
Há em Masschelein e Simons (2017) uma compreensão de que
a escola é um local de tempo livre – tempo não produtivo, não econô-
mico, para que todos estudem e aprendam; tenham as mesmas oportu-
nidades.

A escola oferece o formato (ou seja, composição particular de tempo,


espaço e matéria, que compõe o escolar) para o tempo-feito-livre, e
aqueles que nele habitam transcendem a ordem social (econômica e
política) e suas posições (desiguais) associadas. E é esse formato de
tempo livre que constitui a ligação comum entre a escola dos atenien-
ses livres e a coleção heterogênea das instituições escolares (faculda-
des, escolas secundárias, escolas primárias, escolas técnicas, escolas
vocacionais, etc.) da nossa época (MASSCHELEIN, SIMONS, 2017, p.
29).

A escola, oferece tempo e espaço para que os recém-chegados


conheçam o mundo e, com esses fios de conhecimento signifiquem o
mundo que é comum, produzindo teias. Essas teias não devem ser con-
sideradas em sua produtividade econômica, mas em sua fruição de
acesso àquilo que foi produzido em tempos passados (conhecimentos)
que no tempo presente se possibilita interpretar o comum. É nesse
tempo livre da sociedade e dos fins econômicos que se propõe a tecitura
de teias.

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A teia se tece / de liça, contenda / açoites, cobiça / invídia, solér-
cia.

Na tecitura da teia exige-se luta, desejo e astúcia. Sendo uma


construção de muitos fios, a teia tende a ser um conjunto que luta,
mesmo que estática em seu lugar, para atingir um objetivo. Uma teia
de aranha existe porque uma aranha a criou com trabalho e persistên-
cia instintiva. Sua criação estabelece laços que são capazes de sustentar
a teia no vazio entre duas extremidades fixas. Laços que produzem di-
versas relações possíveis.
As escolas existem porque inúmeros conjuntos de pessoas as
criaram e as fundamentaram com persistência e trabalho árduo. A cri-
ação das escolas estabelece, não só a constituição de um espaço físico
para o conhecimento mas, um espaço para relações entre pessoas que
desejam conhecer o que acontece, para atribuir sentido e significado aos
acontecimentos a ele - para construir teias.
Na escola tratamos essencialmente de relações humanas que
tem passado por grandes processos de transformações. Afinal vivemos
um grande processo de privatização extrema da existência individual e
um aumento dos enfrentamentos culturais que distinguem grupos se-
melhantes e diversos (GARCÉS, 2013, p. 28). Isso significa afirmar que
a convivência em coletivos comuns, que buscavam aproximações exis-
tenciais e que nestes coletivos dialogavam com outros coletivos bus-
cando campos de proximidade, contemporaneamente está prestes a dei-
xar de existir. Inúmeros são os incentivos (principalmente tecnológicos
e midiáticos) para o cada indivíduo busque por si mesmo o sentido e
significado de suas ações no mundo.
Associada a essa privatização extrema da existência individual
podemos acompanhar “[...] a diluição de fronteiras institucionais e dis-
ciplinares; o acesso universal à informação e aos recursos culturais e,
finalmente a organização do trabalho em rede” (GARCÉS, 2013, p. 86 -
tradução livre), apontando assim para discursos que defendem o fim da
escola. Desse modo, podemos notar que as transformações transcendem
perspectivas de individualidade e se tornam presença na coletividade
humana (o contrário também pode ser verdadeiro). Em outras palavras,
estamos em um tempo que tende a transformar os modos individuais e
coletivos de se relacionar, sejam as relações consigo mesmo (de subjeti-
vidade), sejam as relações coletivas (de intersubjetividade).

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Essa sociedade tecnologizada e privatizante tende a totalizar os
sujeitos, preenchendo suas lacunas existenciais com ideias que buscam
apontar certo “acabamento” de conhecimentos e saberes. Desse modo o
sujeito acaba por acreditar que não há outras coisas à conhecer, que não
há pessoas além das mídias sociais, que não há relações humanas para
além das redes sociais digitais.
Neste ensaio, desejo problematizar e se contrapor a ideia de que
pode-se aprender qualquer coisa individualmente. A teia de relações
construída na escola, requer o esforço coletivo de vários sujeitos, desse
modo ela se fortalece e se expande, ampliando as possibilidades de re-
lação, de sustentação.
A tecitura de teias na escola tem a pretensão de reunir pessoas
e criar batalhas cotidianas “necessariamente múltiplas nas quais se ex-
pressa o desejo comum de fazer mundo” (GARCÉS, 2013, p. 23 - tradu-
ção livre); desde que esse desejo seja implicar-se e comprometer-se com
o mundo comum e agregar algo a ele para seu crescimento, expansão e
preservação. Essas pessoas que se reúnem na escola, não são iguais (en-
tre professor e aluno existe uma assimetria ontológica e uma diferença
intergeracional), no entanto é a partir das diferenças que se parte em
busca de constituir teias.
A escola que possibilita a tecitura de teias, através das diferen-
tes relações “[...] abre assim, um campo de relações que, por que está e
não está em poder de um, nos situa no terreno concreto de nossa inter-
dependência” (GARCÉS, 2013, p. 16 - tradução livre). Essas relações
tendem a chamar atenção para a necessária compreensão da interde-
pendência que possuímos. E, desse modo, constrói comunidades de sen-
tido através dos diferentes conhecimentos que são compartilhados pelos
diferentes seres que se encontram na escola.
Construir teias na escola consiste em “[...] poder criar e trans-
formar coletivamente nossas condições de existência” (GARCÉS, 2013,
p. 22 - tradução livre) através das trocas que se realizam nela. Mais do
que isso na escola, os diferentes fios (conhecimentos, e/ou sujeitos), apa-
rentemente separados por espaços, devem perceber “[...] espaços vazios
onde se possam abrir perguntas que realmente importem, e comparti-
lhar saberes que verdadeiramente nos afetem” (GARCÉS, 2013, p. 86 -
tradução livre).
Nesse aspecto, a teia escolar rompe com a ideia da teia de ara-
nha; a segunda é construída individualmente, a primeira é coletiva e

20
demanda luta constante. Desse modo, os saberes e fazeres a humani-
dade tornam-se implicação coletiva na escola. Não é apenas um sujeito
produzindo uma teia, são coletivos de alunos e professores que lutam
em conjunto para tecê-la.

A teia se tece / de nomes antigos / de amigos perdidos / no elo


das celas

Para além da tecitura biológica da teia, produzida pela aranha,


encontramo-nos no imaginário literário e científico. Nesse bojo, pensa-
mos que a teia é construída por palavras e pessoas que se relacionam e
que são capazes de relacionar espaços, palavras e gestos. Desse modo,
os nomes antigos e os amigos perdidos podem se tornar o elo entre o
passado, o presente o futuro; podem se tornar um elemento potente no
aprendizado do mundo que nos é comum.
Pensar a escola como produtora de teias é apostar em modos de
aprendizagem onde seja necessário aprender a ser afetado e a transgre-
dir “[...] a relação de indiferença que nos conforma como consumidores
e espectadores do real. Começamos a pensar quando aquilo que sabe-
mos (ou não sabemos) afeta nossa relação com as coisas, com o mundo,
com os outros” (GARCÉS, 2013, p. 92 - tradução livre). Ou seja, é preciso
que a teia tecida na escola, seja de fato utilizada para afetar as relações
(com pessoas, informações, acontecimentos e fenômenos do mundo) e
produzir sentido a partir dessas afetações.
Nem sempre a teia, constituída a partir do que é ofertado na
escola fica completa, por isso “[...] a educação volta a ser um desafio
para as estruturas existentes e um terreno de experimentação”
(GARCÉS, 2013, p. 92 - tradução livre). Ou seja, é preciso sempre pau-
tar-se pelo princípio da experimentação, da tentativa e do ensaio. Novos
fios podem constantemente se relacionarem, desde que sua ligação seja
experimentada.
Nesse sentido, Masschelein e Simons (2017) apontam que há
uma questão de atenção e de mundo (ou abrir, criar interesse, trazer à
vida, formar) (MASSCHELEIN, SIMONS, 2017, P. 43). A escola “foca-
liza a nossa atenção em algo […] infunde na nova geração uma atenção
para com o mundo: as coisas começam a falar (conosco). […] Trata-se do
momento mágico quando alguma coisa, fora de nós mesmos nos faz pen-

21
sar […]” (idem, p. 51). Essa chamada de atenção para o mundo é possí-
vel desde que haja uma abertura, que seja criado interesse por aquilo
que está fora de nós mesmos e nos faz pensar. Aquilo que antes não
fazia parte do mundo do aluno, agora começa fazê-lo e gera interesse;
torna-se algo que “toca e nos leva a estudar, pensar e praticar” (idem,
2017, p.52).

Considerações (quase) finais

É preciso compreender que buscamos apontar que a teia que se


produz na escola é uma construção permanente. Em nossos lugares de
habitação, quando se vê uma teia de aranha, logo busca-se varrê-la dali,
no entanto em pouco tempo, a persistente aranha (ou no caso escolar,
as persistentes aranhas) construirá outra teia.
A teia produzida pela/na escola tem com ponto inicial a diversi-
dade de conhecimentos existentes sobre as coisas e fenômenos do
mundo. Esses conhecimentos não são necessariamente materialidades
concretas que se pode pegar na mão e manipular; são conhecimentos
que se prendem na subjetividade de cada aluno. Preserva-se os conhe-
cimentos, emite-os aos alunos e este o guarda onde ninguém pode tirá-
lo em sua consciência/inconsciência. Além da diversidade de conheci-
mentos, há a diversidade de alunos e professores o que demanda a ne-
cessidade de criar teias adequadas para cada aluno poder aprender.
Os métodos (ou tecnologias) utilizadas na escola, são outro ele-
mento importante na tecitura das teias, afinal eles facilitam o modo
como o professor vai disponibilizar a herança de conhecimentos aos alu-
nos. O modo dessa transmissão, diz muito sobre a sua própria condição
e as ameaças constantes de deserdamento.
Para torna-se uma teia, que fica a espreita das coisas e fenôme-
nos do mundo e, ao mesmo tempo capturá-los e transformá-los em ma-
téria de estudo a teia escolar precisa estar livre, precisa de tempo livre
para efetivar sua predisposição.
Para que a teia tenha pertinência e continue existindo é neces-
sário que ela estabeleça diferentes relações. Primeiramente relação en-
tre a sociedade e os sujeitos a qual exige um terceiro; alguém que possa
apresentar esse mundo ao recém-chegado, o professor. Este por sua vez
estabelece uma relação direta com os alunos através de sua presença
pedagógica e do seu modo de enredá-los no processo de aprendizado.

22
Essa relação é perpassada por uma série de elementos que devem ser
levados em consideração para que a relação seja profícua, mesmo sendo
da ordem do indeterminável.
Por fim, não menos importante, a teia é tecida através das dife-
rentes materiais, disciplinas ou componentes curriculares que os pro-
fessores apresentam ou dispõe sobre a mesa e convocam os alunos a
experimentá-la, saboreá-la com o intuito principal de agregar-lhe co-
nhecimentos científicos para além do senso comum. São as matérias de
estudo que devem afetar os alunos e movimentá-los na busca por dife-
rentes saberes, pela ampliação constante da rede.

23
Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspec-


tiva, 2007.

GARCÉS, Marina. Un mundo común. Barcelona: Edicions Bellaterra,


2013.

LEMOS, Lara de. Amálgama. Pref. Gilberto Mendonça Teles. Porto


Alegre: Globo: IEL, 1974. Disponível em: https://www.escri-
tas.org/pt/t/12531/a-teia consultado em 20/11/2019.

MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Em defesa da escola: uma


questão pública. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.

24
A POTÊNCIA DA LEITURA COMO FIO INVISÍVEL
DE ACESSO AO/NO MUNDO

Raquel Brum Sturza2


Fernanda Monteiro Rigue3

Introdução

Este capítulo toma corpo com intuito de traçar a potência da


leitura dos livros como horizonte de acesso ao mundo, e “[...] situá-lo na
sucessão das gerações” (PETIT, 2019, p. 20). Leitura de livros que com-
põem muitos dos espaços que conhecemos popularmente como bibliote-
cas4, espaços físicos em que se guardam livros e documentos, dispostos
ordenadamente para estudo e consulta.
Tomando como referência o texto ‘Ler o mundo: Experiências de
transmissão cultural nos dias de hoje’ construído por Michele Petit
(2019) é possível considerarmos que não podemos tomar as bibliotecas
simplesmente como locais de acesso à informação, pois, conforme a au-
tora:

[...] são também reservatórios de sentidos nos quais encontramos me-


táfora científicas que dão ordem ao mundo que nos rodeia e metáforas

2 Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2015), Especialista


em Gestão Educacional pela Universidade Federal de Santa Maria (2016), e Mestra em
Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Fede-
ral de Santa Maria (UFSM) (2019). Atualmente é Doutoranda em Educação pelo
PPGE/UFSM (desde 2019).
3 Doutora (2020) e Mestra (2017) em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Edu-

cação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Licenciada em Química


pelo Instituto Federal Farroupilha (2015).
4 “É interessante você saber que não é à toa que a palavra biblioteca tem sua origem nos

termos gregos biblíon (livro) e theka (caixa), significando o móvel ou lugar onde se guar-
dam livros. Foi no Egito que existiu, desde o século IV a.C., a mais célebre e grandiosa
biblioteca da Antiguidade, a de Alexandria, que tinha como ambição reunir em um só
lugar todo o conhecimento humano. Seu acervo era constituído de rolos de papiro manus-
critos – aproximadamente 60 mil, contendo literatura grega, egípcia, assíria e babilônica”
(PIMENTEL, BERNARDES, SANTANA, 2007, p. 21).

25
literárias e artísticas nascidas do trabalho lento e recolhido de escri-
tores ou artistas que realizaram um trabalho de transfiguração de
suas próprias provocações (PETIT, 2019, p. 36).

Bibliotecas que ultrapassam as quatro paredes que as cercam.


Bibliotecas que são mundos onde se encontram e concentram múltiplas
histórias, fatos e fábulas contados por pessoas. Pessoas que viveram um
contexto e tempo histórico diferente, com nuances e forças completa-
mente diferentes e/ou distantes das pessoas que folheiam as páginas
dos livros.
Conforme apresenta o texto produzido por Pimentel, Bernardes
e Santana (2007), voltado ao curso técnico de formação para os funcio-
nários da educação, realizado por meio de uma parceria com o Governo
Federal, existem vários tipos de bibliotecas, a saber:

a) escolar – localiza-se em escolas e é organizada para integrar-se com


a sala de aula e no desenvolvimento do currículo escolar. Funciona
como um centro de recursos educativos, integrado ao processo de en-
sino-aprendizagem, tendo como objetivo primordial desenvolver e fo-
mentar a leitura e a informação. Poderá servir também como suporte
para a comunidade em suas necessidades; b) especializada – sua fina-
lidade é promover toda informação especializada de determinada
área, como, por exemplo, agricultura, direito, indústria etc. c) infantil
– tem como objetivo primordial o atendimento de crianças com os di-
versos materiais que poderão enriquecer suas horas de lazer. Visa a
despertar o encantamento pelos livros e pela leitura e a formação do
leitor. d) pública – está encarregada de administrar a leitura e a in-
formação para a comunidade em geral, sem distinção de sexo, idade,
raça, religião e opinião política. e) nacional – é a depositária do patri-
mônio cultural de uma nação. Encarrega-se de editar a bibliografia
nacional e fazer cumprir o depósito legal. Em alguns casos, essa bibli-
oteca, única, em cada país, necessita de uma política especial de re-
cursos e, por falta de interesse na conservação do patrimônio nacional,
torna-se um depósito de livros, sem meios suficientes para difundir
sua valiosa coleção. f) universitária – é parte integrante de uma insti-
tuição de ensino superior e sua finalidade é oferecer apoio ao desen-
volvimento de programas de ensino e à realização de pesquisas (p. 23).

Em se tratando especificamente da biblioteca do tipo escolar, os


autores consideram que:

[...] a experiência nos vem mostrando que na prática muitas das bibli-
otecas escolares vêm sendo utilizadas inadequadamente, sob a visão

26
de um conceito ultrapassado. Assim, é comum observá-las sendo usa-
das como simples depósitos de livros. Com relação à questão adminis-
trativa, também é comum encontrarmos à frente das bibliotecas esco-
lares pessoas que, apesar de extrema boa vontade, não estão capaci-
tadas para esta tarefa (PIMENTEL, BERNARDES, SANTANA, 2007,
p. 24).

Nesse tom, a biblioteca que existe no espaço escolar5 não pode


ser apenas um espaço de atividade pedagógica “[...] servindo como apoio
à construção do conhecimento e de suporte a pesquisas. Deve ser, (...)
espaço (...) para que todos que nela atuam possam utilizá-la como uma
fonte de experiência” (PIMENTEL, BERNARDES, SANTANA, 2007, p.
25).
Levando essa temática em conta, esta escrita é ensaística.
Tendo como referência Jorge Larrosa (2003), o qual se embasou nas
obras de Theodor Adorno.

Para o ensaísta, a escrita e a leitura não são apenas a sua tarefa, o


seu meio de trabalho, mas também o seu problema. O ensaísta proble-
matiza a escrita cada vez que escreve, e problematiza a leitura cada
vez que lê, ou melhor, é alguém para quem a leitura e a escrita são,
entre outras coisas, lugares de experiência, ou melhor ainda, é alguém
que está aprendendo a escrever cada vez que escreve, e aprendendo a
ler cada vez que lê: alguém que ensaia a própria escrita cada vez que
escreve e que ensaia as próprias modalidades de leitura cada vez que
lê (LARROSA, 2003, p. 108).

Em termos de processo de criação, o ensaísta seleciona um cor-


pus, uma citação, um acontecimento, uma paisagem, uma sensação,
algo que lhe parece expressivo e sintomático, e a isso dá uma grande
expressividade (LARROSA, 2003, p. 111). Nessa oportunidade, o corpus
do ensaio está na atenção das autoras para a potência do movimento da
leitura dos clássicos.
No livro ‘Por que ler os clássicos?’, o escritor Ítalo Calvino (2016)
afirma que:

5“A importância dada pelo governo ao livro didático e o controle crescente sobre ele, exer-
cido pelo governo federal, pelos estados e municípios, decorrem da percepção de que é
necessário compensar - via políticas públicas - as desigualdades criadas por um sistema
econômico e social injusto, com enormes discrepâncias socioeconômicas entre ricos e po-
bres” (FREITAG; COSTA; MOTTA, 1989, p. 19).

27
Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo
as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços
que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais
simplesmente na linguagem ou nos costumes (CALVINO, 2016, p. 11).

Neste território, há o reconhecimento de uma cultura herdada


de gerações anteriores, tomadas como importantes criadoras do mundo.
As gerações interpretam e agem sobre o mundo, produzindo experiên-
cias humanas, perpetuadas nas histórias narradas, cantadas ou escri-
tas em livros. Tendo como referência essa compreensão de Calvino
(2016), é que pensamos com ênfase acerca dos clássicos no presente en-
saio. Contudo, não excluímos os demais estilos nesta escrita.
Acerca do ato de ler, Petit (2019) nos serve de inspiração. Se-
gundo ela, a compreensão do ato de ler pode ser entendida da seguinte
forma:

Lembram-se de algumas páginas, de algumas frases ou de uma ima-


gem que os surpreenderam e com as quais recompuseram suas ma-
neiras de representar-se o mundo, ou desenharam de outra maneira
seus próprios contornos. Esses fragmentos se tornaram um recurso
para pensar sua experiência, para lhe dar sentido. Às vezes uma única
frase, que se leva em um caderno ou na memória, ou até mesmo es-
quecida, faz com que o mundo se torne mais inteligível (PETIT, 2013,
p. 86-87).

Neste sentido, por meio de uma revisão bibliográfica de caráter


qualitativo, trataremos de traçar a potência da leitura dos livros como
esse horizonte, como fio invisível de acesso ao/no mundo, principal-
mente a partir dos pensamentos escritos de Hannah Arendt (2016a,
2016b) e Michele Petit (2013, 2019).

Um mundo que se abre

A construção desta escrita encontra-se pautada na compreensão


de que a leitura dos livros possibilita o acesso ao mundo. Um mundo
que, na concepção de Arendt (2016a) precisa ser permanentemente pre-
servado. Compreendemos o mundo tendo em vista os escritos de Arendt
(2016a), a partir daquilo que lhe confere um sentido comum e, a partir
da sua percepção nos seus aspectos frágeis e duráveis, bem como por
sua capacidade de renovação pela ação conjunta dos homens. O mundo,

28
além de ser o espaço ocupado pelos objetos fabricados pelos homens, é
também o lugar da reunião entre estes, por meio do exercício pleno da
ação e da palavra, de seu sentido político.
Com Grossi (2008) é possível compreendermos que “[...] é nos
livros que temos a chance de entrar em contato com o desconhecido,
conhecer outras épocas e outros lugares” (p. 03). Na concepção que ado-
tamos, o passado tem sempre algo a revelar a cada nova geração imersa
no mundo comum. Para Arendt (2016b), o esforço de pensar o passado
surge como um apelo às novas gerações, que se inserem no ‘entre’. Entre
o passado e o futuro. O presente está jogado entre o passado e o futuro.
As gerações de seres humanos estão nesse embate temporal, entre as
forças do passado, reveladoras de estórias ainda não esquecidas e a
força do futuro, contingente em trajetórias de incertezas, do que está
por vir (ARENDT, 2016b).
Na tensão entre o passado e o futuro, as gerações buscam per-
manentemente encontrar e selecionar experiências humanas narráveis.
A materialização da narrativa, a transmissão dada na arte de contar
estórias, revela possibilidades de expressar e exercitar o pensamento.
Por sua vez, se pensarmos em termos do contemporâneo, verifi-
camos a acelerada emergência das tecnologias e dispositivos de infor-
mação e comunicação que tem tornado essa mesma informação cada vez
mais veloz e, em alguns casos, despreocupada com suas contingências
que possibilitaram sua emergência. Na perspectiva de Arendt (2016b),
estamos gradativamente perdendo o que ela chama de ‘fios da tradição’.
Os homens, segundo ela, aproximam-se cada vez mais do esquecimento
da existência de um mundo comum. Na configuração de um mundo sem
raízes e sem certezas, escreve Arendt (2016b):

Sem a tradição firmemente ancorada – e a perda dessa firmeza ocor-


reu muitos séculos atrás –, toda a dimensão do passado foi também
posta em perigo. Estamos ameaçados de esquecimento, e tal olvido –
pondo inteiramente de parte os conteúdos que se poderiam perder –
significaria que, humanamente falando, nós teríamos privado de uma
dimensão, a dimensão de profundidade na existência humana. Pois
memória e profundidade são o mesmo, ou antes, a profundidade não
pode ser alcançada pelo homem a não ser através da recordação (p.
131).

29
Neste sentido, mais do que nunca, Arendt (2016b) expõe a com-
preensão sobre a importância de preservar o mundo, mesmo com a cres-
cente ruptura dos fios da tradição. O mundo, para Arendt (2016a), “[...]
é um artifício humano, fabricado pelas mãos de mulheres e homens, que
surge pela ação e pela palavra, os assuntos humanos”(p.65), isto é, atra-
vés das realizações no tempo histórico, contados e recontados às novas
gerações. Nesse contexto, o mundo comum é o cenário das histórias hu-
manas, tanto das atuações presentes quanto as do passado, quer diga
respeito às realizações culturais ou a nosso modo de compreender e co-
municar-nos sobre tudo isso, o mundo é o que temos em comum
(ARENDT, 2016a, p. 65).
Em ‘A condição humana’ (ARENDT, 2016a), a pensadora expõe:

O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos


para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida
tanto no passado quanto no futuro, preexistia à nossa chegada e so-
breviverá à nossa breve permanência nele. É isso o que temos em co-
mum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles
que aqui estiveram antes e com aqueles que virão depois de nós. Mas
esse mundo comum só pode sobreviver ao vir e ir das gerações na me-
dida em que aparece em público (ARENDT, 2016a, p. 68).

O passado tem sempre algo a revelar a cada nova geração


imersa no mundo comum. O esforço de pensar o passado surge como um
apelo às novas gerações que vivem o presente. Arendt (2016b), afirma
“[...] o mundo, visto que feito por mortais, se desgasta, e, dado, que seus
habitantes mudam continuamente, corre o risco de tornar-se mortal
como eles” (p. 243). Para tanto, compreende-se a importância de aten-
tarmos para a forma com que preservamos o mundo.

Para preservar o mundo contra a mortalidade de seus criadores e ha-


bitantes, ele deve ser, continuamente, posto em ordem. O problema é
simplesmente educar de tal modo que um por-em-ordem continue
sendo efetivamente possível, ainda que não possa nunca, é claro, ser
assegurado (ARENDT, 2016, p.243).

Conforme Arendt (2016b), o conservadorismo, no sentido de


conservação, faz parte da essência da atividade educacional, cuja tarefa
é sempre abrigar e proteger alguma coisa – a criança contra o mundo,
o mundo contra a criança, o novo contra o velho, o velho contra o novo.

30
Mesmo a responsabilidade ampla pelo mundo, implica no que Arendt
(2016b) chama de uma atitude conservadora.
Arendt (2016a) ainda aponta uma gama de coisas tangíveis que
se mostram como registros, como testemunhos de países, de nações, do
passado. Dentre elas, figuram os livros, que estão implicados com o ato
de ler e que de certa forma apresentam o mundo os recém-chegados.

Status objetivo do mundo cultural, que, na medida em que contém


coisas tangíveis – livros e pinturas, estátuas, edifícios e música – com-
preende e testemunha todo o passado registrado de países, nações e,
por fim, da humanidade. Como tais, o único critério não social e au-
têntico para o julgamento desses objetos especificamente culturais é
sua permanência relativa e mesmo sua eventual imortalidade. So-
mente o que durará através dos séculos pode se pretender em última
instância um objeto cultural (ARENDT, 2016b, p. 254).

Os livros, enquanto objetos tangíveis como mencionado anteri-


ormente, mostram-se como bons arquivos (para a conservação do
mundo), principalmente se pensarmos em termos educacionais. Pois, ao
realizar a escrita de um livro, mesmo que um livro didático, o autor
propõe algo de mundano, de mundanidade. Captura o que está em seu
tempo presente, os acontecimentos, a história, os momentos de resis-
tências e de tentativa de preservação do mundo e lhe dá um caráter de
arquivo, que se torna uma herança para as próximas gerações, para as
crianças e os jovens. Mencionando Arendt (2016b) “[...] dado que o
mundo é velho, sempre mais que elas mesmas, a aprendizagem volta-
se inevitavelmente para o passado, não importa o quanto a vida seja
transcorrida no presente” (p. 246).
Em se tratando de escolarização, o que verificamos com recor-
rência são instâncias que põe em funcionamento:

[...] corpo versus mente, afeto versus razão, dicotomias que empobre-
cem as vivências do humano dentro do espaço educacional. Como pen-
sar em um, sem pensar, necessariamente, no outro? Como os proces-
sos de aprender e produzir conhecimento podem estar separados das
vivências do corpo, de suas memórias, histórias, dos afetos que o cons-
tituem? Talvez seja justamente isso que o cenário educacional esteja
tentando enunciar/denunciar em nome próprio: o corpo está adoe-
cendo, está cansado, está perdendo o sentido de permanecer nesses
espaços (MALAVOLTA, RIGUE, BIAZUS, 2020, p. 99).

31
Com base nessa crescente dicotomia que assola os ambientes
escolarizadores, pensamos que ao realizar a leitura dos livros, as crian-
ças e os jovens, estão diantes de um mundo que se abre. Um mundo que
vem ao encontro de potencializar os sentidos, os afetos, as multiplicida-
des que circundam suas existências. Para Petit (2019), os livros en-
quanto objetos mostram-se como agentes possíveis para a transmissão
cultural e para além disso, “[...] permitem recuperar o sentimento da
própria continuidade e a capacidade de estabelecer laços com o mundo”
(p. 79). Acerca da transmissão cultural:

A transmissão cultural, mais particularmente a leitura, trata-se de


construir um mundo habitável, humano, poder encontrar ali o seu lu-
gar e locomover-se; celebrar a vida no cotidiano, oferecer as coisas po-
eticamente; inspirar narrativas que cada pessoa fará de sua própria
vida; alimentar o pensamento, formar o “coração inteligente”, como
diria Hannah Arendt, que teria acrescentado que é preciso transmitir
o mundo às crianças, ensiná-las a amá-lo, para que elas um dia te-
nham vontade de assumir a responsabilidade por ele (PETIT, 2019, p.
23).

O passado, presente nas histórias, está sempre inacabado, à es-


pera de ser acessado por cada criança e jovem, um ser novo no mundo
de histórias partilhadas. Assim, a narrativa presente nos livros revela
o extraordinário: a imortalidade dos sentidos da existência humana nas
histórias, através das quais as experiências e afetos de uma geração são
preservados. Ao compartilhar a memória, há o exercício da imaginação,
modos de pensar o mundo, um legado às futuras gerações. Ao contar
histórias, os seres humanos ganham uma nova presença no espaço co-
mum, dando sentido ao que passou e também a este mundo humana-
mente possível. Conforme Petit (2019):

Eu lhe entrego fiapos de saber e ficções para que você seja capaz de
simbolizar a ausência e enfrentar, tanto quanto possível, as grandes
questões humanas, os mistérios da vida e da morte, da diferença entre
os sexos, o medo do abandono, do desconhecido, o amor, a rivalidade.
Para que escreva sua própria história entre as linhas lidas (p. 22).

O que o adulto expressa à criança quando põe e abre livros di-


ante dela está ligado à parte daquilo que os humanos descobriram e
está encerrado neles. Neste sentido, as crianças e jovens poderão “[...]

32
consultá-los para dar sentido à sua vida, saber o que outras pessoas
pensaram sobre as perguntas que você faz, você não está sozinha para
enfrentá-las” (PETIT, 2019, p. 22).
No que tange os escritos de Petit (2019), é possível verificarmos
que para a autora, esses adultos são mediadores culturais: professores,
escritores, artistas, cientistas, bibliotecários, promotores de leitura e
psicólogos, os quais “[...] permitem, assim, uma nova travessia com es-
ses momentos nos quais, passo a passo, se constrói um mundo habitá-
vel” (PETIT, 2019, p.34). Mediadores que transmitem as crianças e jo-
vens “[...] cada um com sua arte e seu gênio próprio, lançam passarelas
para as crianças que não tiveram transmissão cultural, por uma razão
ou outra (PETIT, 2019, p.32).
Aí, quando adultos mediam a transmissão cultural, os livros,
que têm suas páginas encharcadas, marcadas de história, mostram-se
como formas de preservar, retratar o presente e o passado. Para além
disso, os livros mostram-se como bons recursos didáticos a serem utili-
zados pelos professores no ambiente escolar, como capazes de propiciar
às novas gerações um contato discursivo e visual com o passado. Assim,
a leitura dos livros pode ser uma das formas de introduzir as novas ge-
rações no mundo. Por sua vez, é evidente que essa leitura do mundo
realizada por meio dos livros no ambiente escolar, vem ao encontro de
uma permanente problematização, tendo em vista que é esse um dos
mais importantes percursos que situam o estudante como alguém capaz
de pensar por si.
Desta forma, se pensarmos em termos de educação escolar pú-
blica, a leitura dos livros aparece como um universo que pode ser aces-
sado por crianças e jovens de diferentes contextos sociais e econômicos.
Um meio por onde as vidas transitem por épocas outras, até mesmo
contemporâneas, que se encontram entre as linhas das obras que habi-
tam as bibliotecas. Petit (2019) aponta que:

Mais que isso, lá onde falta uma transmissão de histórias familiares,


a leitura - e a escrita - de poemas, mitos, contos e romances, junto com
a contemplação de obras de arte, ajudam a reencontrar a espessura
simbólica e imaginária que tanto nos é necessária para modelar luga-
res em que viver, se lançar e fazer o próprio caminho (p.35).

33
Como possibilidade de situar a criança e o jovem no mundo, o
exercício da leitura é abertura. Abertura de mundos que aqui nos pomos
a ensaiar na escrita. Afetadas pelo fragmento de Petit (2013):

Este espaço criado pela leitura não é uma ilusão. É um espaço psíquico
que pode ser o próprio lugar da elaboração ou da reconquista de uma
posição de sujeito. Porque os leitores não são páginas em branco onde
o texto é impresso. Os leitores são ativos, desenvolvem toda uma ati-
vidade psíquica, se apropriam do que leem, interpretam o texto, e des-
lizam entre as linhas seus filhos desejos, suas fantasias, suas angús-
tias (PETIT, 2013, p.43).

Acreditamos que a leitura é potência, é pulsão, que afeta o corpo


daquele que lê. A experiência da leitura possibilita a partir de imagens
ou fragmentos recolhidos nos livros, por exemplo, podermos desenhar
uma paisagem, um lugar, um habitar próprio. Um espaço em que, con-
forme Petit (2019), “[..] podemos desenhar nossos contornos, começar a
traçar nosso próprio caminho e nos desprender um pouco do discurso do
outro ou das determinações familiares ou sociais” (p.109).
Levando isso em conta, a leitura é também potente em se tra-
tando de educação escolar. Conforme Petit (2019) a leitura é como “[...]
forjar uma arte de viver” (p. 36), uma espécie de passagem que dá
acesso ao imaginário, que conforme Petit (2019), trata-se daquilo que
constituímos ao ler e parece muito próximo do que elaboramos durante
as nossas viagens, “[...] uma reserva selvagem e poética que poderemos
revisitar, às vezes muito tempo depois, mesmo que tenhamos esquecido
a maior parte do que lemos ou percorremos” (p. 123), ao mesmo tempo
que também estabelece um caminho para os fatos, os acontecimentos
da/na humanidade.

O que a experiência da leitura tem de insubstituível talvez seja o fato


de abrir os olhos e provocar esse pensamento vivo, o fato de atrair
ideias, sugerir comparações insólitas, inspirar, despertar. O que cons-
titui seu valor são esses momentos em que as palavras surgem, os elos
são tecidos em que somos de certa forma fecundados (...) (PETIT,
2019, p. 66).

A escola, como espaço disposto a compor um rol significativo de


conhecimentos para formação das crianças e dos jovens, toma espaço de
destaque nesse mundo da leitura. Nesse campo que exercita o intelecto,

34
a criatividade, a arte de habitar o mundo pelo viés da leitura. Mas não
se trata de uma leitura mecânica e também programada, com fins me-
ramente avaliativos. Conforme escreveu Paulo Freire (1989):

Creio que muito de nossa insistência, enquanto professoras e profes-


sores, em que os estudantes “leiam”, num semestre, um sem-número
de capítulos de livros, reside na compreensão errônea que às vezes
temos do ato de ler. Em minha andarilhagem pelo mundo, não foram
poucas as vezes em que jovens estudantes me falaram de sua luta às
voltas com extensas bibliografias a serem muito mais “devoradas" do
que realmente lidas ou estudadas. Verdadeiras “lições de leitura" no
sentido mais tradicional desta expressão, a que se achavam submeti-
dos em nome de sua formação científica e de que deviam prestar con-
tas através do famoso controle de leitura. Em algumas vezes cheguei
mesmo a ler, em relações bibliográficas, indicações em torno de que
páginas deste ou daquele capítulo de tal ou qual livro deveriam ser
lidas: "Da página 15 à 37". A insistência na quantidade de leituras
sem o devido adentramento nos textos a serem compreendidos, e não
mecanicamente memorizados, revela uma visão mágica da palavra es-
crita. Visão que urge ser superada (p. 12).

Com base nessa reflexão, fica evidente que a leitura desenvol-


vida no ínterim dos bancos escolares precisa extrapolar o viés prescri-
tivo e avaliativo utilizado em algumas das práticas pedagógicas adota-
das por professoras e professores. Ao passo que consideramos perti-
nente enfatizar a necessidade de extrapolarmos a leitura dos muros das
instituições escolares. Em termos de formação humana e transformação
social, acreditamos urgente a necessidade de estratégias que viabilizem
o acesso aos livros e prática da leitura no maior número possível de
espaços públicos. Afirmamos isso por acreditarmos que a leitura é meio
indispensável para que o sujeito se transforme enquanto pessoa hu-
mana, socialmente e economicamente situada no mundo.

Tramando considerações

Apontar a compreensão de que a leitura dos livros é horizonte


que possibilita o acesso ao/no mundo é a potência do presente ensaio.
Os livros fazem parte da composição de muitos dos espaços comuns, pú-
blicos, como é o caso das instituições escolares, mais especificamente de
suas bibliotecas, como mencionamos anteriormente.

35
Ao pensarmos a realidade educacional brasileira os livros mos-
tram-se como artefatos democráticos capazes de potencializar a aber-
tura ao mundo, o alargamento de possibilidades, uma intensidade de
vida, uma transformação, que pode ocorrer por meio do acesso à leitura
por crianças e jovens que frequentam esses espaços. Como um mundo
que se abre, uma chance de perceber e compreender o passado, com vis-
tas a habitar o mundo comum que é presente.
Arendt (2016a, 2016b) e Petit (2019) nos possibilitaram realizar
muitas das costuras e atravessamentos teóricos do ensaio, para pensar
a leitura como um fio invisível que atravessa a vida e também os pro-
cessos educativos formativos que permeiam às instâncias escolares.
Uma potência de ingresso ao/no mundo, por todos aqueles que têm a
possibilidade de acessá-la.
Leitura que, ao nosso ver ultrapassa a lógica da neutralidade e
passividade, amplificando a capacidade de problematização de crianças
e jovens frente ao que lêem. Viver a leitura de modo a ultrapassar a
lógica do procedimento, com um fim único de responder questões em
provas e testes. Viver a leitura como prática de liberdade, como alarga-
mento da vontade individual de acessar mundos outros, comunitários,
múltiplos.

36
Referências Bibliográficas

ARENDT, H. A condição Humana. trad. Roberto Raposo. 13. Ed. Rio


de Janeiro Forense Universitária, 2016a.

ARENDT, H. Entre o Passado e o Futuro. Perspectiva. São Paulo,


2016b.

CALVINO, I. Por que ler os clássicos? São Paulo. Companhia das


Letras, 2016.

FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se com-


pletam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.

FREITAG, B.; MOTTA, V. R.; COSTA, W. F. O livro didático em


questão. São Paulo: Cortez Autores Associados, 1989.

GROSSI, G. P. Leitura e sustentabilidade. Nova Escola, São Paulo,


SP, n° 18, abr. 2008.

LARROSA, Jorge. O ensaio e a escrita acadêmica. Revista Educação


e realidade jul/dez 2003 p. 101-115.

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um corpo-potência: notas sobre educação e política. Revista Interins-
titucional Artes de Educar. Rio de Janeiro, v. 6, n.1, pág. 92-118,
janeiro-abril, 2020.

PETIT, Michèle. Ler o mundo: experiências de transmissão cul-


tural nos dias de hoje. Trad. Julia Vidile. São Paulo. Editora 34,
2019.

PETIT, Michèle. Leituras: do espaço íntimo ao espaço público.


Trad. Celina Olga de Souza. São Paulo, Editora 34, 2013.

PIMENTEL, Graça; BERNARDES, Liliane; SANTANA, Marcelo. Bi-


blioteca Escolar. Brasília: Universidade de Brasília, 2007.

37
38
MUNDO COMUM E ESCOLARIZAÇÃO:
UM ENSAIO NECESSÁRIO

Fernanda Monteiro Rigue6

Introdução

O presente texto toma corpo como um ensaio. Uma experiência


acessível de ensaiar um movimento do pensar7 que trama leituras, con-
cepções, diálogos, tensionamentos e afetações.

O ensaísta problematiza a escrita cada vez que escreve, e problema-


tiza a leitura cada vez que lê, ou melhor, é alguém para quem a leitura
e a escrita são, entre outras coisas, lugares de experiência, ou melhor
ainda, é alguém que está aprendendo a escrever cada vez que escreve,
e aprendendo a ler cada vez que lê: alguém que ensaia a própria es-
crita cada vez que escreve e que ensaia as próprias modalidades de
leitura cada vez que lê. (LARROSA, 2003, p. 108)

“O ensaio é, também, sem dúvida, uma figura do caminho da


exploração, do caminho que se abre ao tempo em que se caminha” (LAR-
ROSA, 2003, p. 112), como um solo com fios invisíveis que se percorre
enquanto me relaciono com os textos, com as frases, com as experiências
vivenciadas durante esse percurso de estudo e escrita.
A produção deste ensaio teve como principal disparador a lei-
tura compartilhada da obra ‘Un mundo común’, da filósofa espanhola
Marina Garcés (2013). A referida leitura foi desenvolvida no cerne do
Grupo de Estudos e Pesquisa: Filosofia, Cultura e Ensino Médio
(FILJEM) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), durante o
segundo semestre do ano de 2019.

6 Doutora (2020) e Mestra (2017) em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Edu-


cação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Licenciada em Química
pelo Instituto Federal Farroupilha (2015).
7 “Pensar depende das forças que se apoderam do pensamento. (...) Pensar designa a ati-

vidade do pensamento (...). Pensar como atividade é sempre uma segunda potência do
pensamento, não o exercício natural de uma faculdade, mas um extraordinário aconteci-
mento no próprio pensamento, para o próprio pensamento. Pensar é uma enésima potên-
cia do pensamento. É preciso ainda que ele seja elevado a essa potência, que se torne “o
leve”, “o afirmativo”, “o bailarino”” (DELEUZE, 2018, p. 139).

39
Esta escrita se trama em meio ao segundo ano e seis meses do
curso de Doutorado em Educação, bem como uma série de atividades de
estudos e pesquisas que tenho desenvolvido concomitantemente com a
elaboração da tese. Pensando nessa contingência, faz-se necessário en-
fatizar as múltiplas turbulências, idas e vindas que me capturam en-
quanto me percebo pressionando as teclas do notebook. Capturas que
dizem de um tempo histórico, de um território-tempo situado na região
sul do Brasil e da América Latina.
Contexto geopolítico atravessado por apreensões múltiplas, que
dizem de embates políticos partidários, marcados e consubstanciados
por vertentes que, em sua maioria, tem alimentado a proliferação de
discursos que apelam para formas imateriais de violência, em prol de
políticas ‘x’ ou ‘y’. Territórios contaminados por embates que envolvem
muito mais que bens materiais e naturais, nacionais e internacionais,
mas sim, a sobrevivência de culturas e etnias que aqui habitam. For-
mas de vida que se constituíram/constituem nesses espaços, compor-
tando existências.
Tendo em vista essa contingência que tem atravessado o con-
texto em que escrevo esse ensaio, o mesmo também é composto por uma
série de livros que tem me servido de inspiração: Certeza do Agora
(PESSANHA, 2002); Não no ensinaram a amar ser mulher (BUSS,
2018); Educação Comunicação Anarquia: procedências da sociedade de
controle no Brasil (CORRÊA, 2000, 2006, 2014); O falso princípio da
nossa educação (STIRNER, 2001), entre outros.
Textos, existências e potências que são horizonte de possibili-
dade para habitar a pesquisa e a vida, para ‘conhecer com vontade’
(STIRNER, 2001). Pesquisa-vida que convergem para uma implicação
no mundo, um compromisso com o mundo, nessas esferas da vida que
ora são globo-mundo, ora são eu-mundo. Infinidades que Marina Garcés
permite pensar, nas páginas que produziu e publicou em 2013.
Há um mundo! Nele habitam seres das mais diversas nature-
zas. Em meio a essa gigantesca diversidade de seres, estão os seres hu-
manos. Indivíduos que com o passar dos séculos tem produzido estraté-
gias múltiplas e heterogêneas com intuito de povoar e conviver. A ques-
tão chave que põe em fluxo a escrita de Garcés (2013), por exemplo,
passa por pensar o envolvimento dos indivíduos e suas existências como
um problema comum. Nesse fluxo muitos pontos são trazidos para o

40
debate, dentre eles, alguns tomarão relevo no ensaio, a saber: implica-
ção e o compromisso. Em que medida as instituições escolarizadoras
têm contribuído para que desenvolvamos compromisso e implicação
para com o mundo comum?

Educação escolar: tramando desassossegos

cultivo olheiras
para marcar tempos
e não esquecer dos meus cansaços
traços de humanidade
que vingam no rosto
dimensões de noites insones
presas em valas
profundo roxo escurecido
meus olhos são dois sois
que não se apagam
que projetam uma sombra
cada vez maior (BUSS, 2018, p. 63)

O poema ‘Subjetivação dos cansaços’ de Michelle Buss (2018) é


linha com pontos esparsos que viabiliza a emergência da seguinte pro-
blematização: Estaríamos nós vivendo tempos de cansaço na educação?
Com essa questão me pego a rizomar sobre os escritos de Garcés (2013)
e, os inúmeros artífices filosóficos que a autora utiliza para movimentar
a sua noção de mundo comum. Intrincado nesse pensar a autora escreve
que:

[...] el despertar del pensamento passa por uma transformación íntima


del sujeto, por su desplazamiento de lo próprio y privado al território
de lo común, de uma razón común. Del <<yo pienso>> y el <<yo veo>>
que organiza el reino de la opinión, a un pensar y um ver impersonales,
impropios y abiertos sin dejar por ello de ser singulares. (GARCÉS,
2013, p. 14).

A transformação íntima do sujeito toma relevo como elemento


indispensável para a emergência de uma dimensão de mundo comum
em seu próprio corpo. A “[...] necesidad de pensar el ser como inacaba-
miento, el anonimato como condición ontológica de su continuidade y el
mundo como la medida interna y variable su dimensión comum”
(GARCÉS, 2013, p. 16) reitera a problematização inicial desse ensaio,

41
expandindo mais horizontes: Estaríamos nós tendo a chance de produ-
zir um mundo comum na educação escolar? Estaríamos possibilitando
aos jovens habitarem um mundo comum em educação escolar?
Que horizonte de possibilidades temos visto em educação esco-
lar quando os fins educativos justificam os meios? Quando presencia-
mos crianças e jovens em meio às prospecções de futuro projetadas pela
sociedade, família e escola, precisando cada vez mais produzir ‘respos-
tas corretas – marcadas com V ou F’? Que chance temos tido de produzir
um mundo comum no ínterim da educação escolar?
Não se pode negar a importância da narrativa que alimenta o
lugar-escola (PESSANHA, 2002) enquanto espaço de horizontalização
dos conhecimentos historicamente produzidos. Por sua vez, o que tam-
bém não se pode negar é que o modo como majoritariamente tem ope-
rado essa instituição, suas ferramentas, estratégias e maquinarias, há
um direcionamento na condução das condutas dos sujeitos (professores
e estudantes), produzindo efeitos ainda mais fortes e efetivos que a pro-
messa direcionada ao desenvolvimento dos conhecimentos pré-estabe-
lecidos nos currículos. Mas aqui não se quer estabelecer/buscar função-
escola, função-professor, longe disso.
O que quero tensionar com isso é, o quanto a educação escolar,
em meio aos seus limites e garantias, tem dificultado a possibilidade de
pensar um mundo comum, no que tange o compromisso e a implicação
dos indivíduos nele implicados. O quanto à educação escolar tem agen-
ciado tudo e todos, principalmente por meio de suas garantias, sem que
tenhamos a chance de atentar e pensar no que isso tem contribuído para
habitarmos e operarmos em prol de um mundo comum, de uma vida
humana.
O que tem acontecido com frequência é um investimento e au-
mento expressivo de estratégias de avaliação e verificação da aprendi-
zagem que pensam os estudantes e suas atividades escolares dentro do
escopo delineado no contexto das habilidades e das competências. Es-
tratégias que favorecem noções meritocráticas no ambiente escolar,
sem que, para isso, o estudante precise dotar-se de uma série de forças
que pensam seu ambiente vivencial, as problemáticas de seu tempo,
suas relações humanas e éticas no ambiente privado e público.
Garcés (2013) escreve “Que no nos corresponde ya comprometer-
mos con las causas del mundo sino implicarnos en él” (p. 73). Quando a
autora constrói esse pensamento me chega imediatamente o horizonte

42
de que não basta defendermos ou não a existência de qualquer que seja
a engrenagem que põe em funcionamento a o dispositivo 8 da escolariza-
ção. Comprometer-se e implicar-se com a escola e o que acontece ali, diz
da nossa responsabilidade ética com o mundo comum, logo, estar impli-
cado com a escola diz da necessidade de problematizá-la permanente-
mente.
Problematizá-la ultrapassa a lógica do bem e do mal, do certo e
do errado, do emprego de juízo de valor. Problematizá-la diz do fluxo de
“[...] dejarse afectar para poder entrar en escena” (Idem, 2013, p. 74).
Implicar-se no sentido de afetar-se enquanto agente que estabelece pro-
ximidade com o mundo e com os outros. Aí, o que Garcés (2013) chama
de ‘força do anonimato’ toma relevo como abertura para produção da
“[...] arte de produzir encontros” (CORRÊA, 2014, p. 02). Encontros que
se produzem em meio a questões comuns, comuns ao que nos é humano.
Encontros como vínculos, como auto convocatória que nos abre
a chance de pensar um mundo comum. Contudo, atentando ao que tem
acontecido no âmbito da escolarização brasileira o que temos visto é a
ascendência de terras arrasadas no que diz respeito a produção de en-
contros e vínculos. O que temos, embora também apareçam outras pos-
sibilidades, é a ascendência de um adoecimento em massa de professo-
ras e professores, que não tem dado conta da série de decretos e leis que
fazem da organização institucional educativa uma ‘tendência’ conforme
o governo vigente. Estudantes cada vez mais responsabilizados pelos
sucessos ou fracassos obtidos a partir da realização de provas e também
exames vestibulares.

À educação escolar é dada essa tarefa de produzir um povo. Ela faz


convergir as forças materializadas em exercícios, coerções e figuras
que moldam cada um de nós segundo a forma subjetiva do cidadão
comum. É na escola que se processa a individualização mais extrema

8“[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, orga-


nizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunci-
ados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito
são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes ele-
mentos. Em segundo lugar, (…) entre estes elementos, discursivos ou não, existe um tipo
de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser
muito diferentes. (…) Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação
que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma
urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante (FOUCAULT,
2015, p. 364).

43
cujo efeito é nossa indiferenciação em meio a todos. Modificar cada um
segundo o mesmo processo para todos (CORRÊA; RIGUE; FELTRIN,
2018, p. 74).

Professores e estudantes severamente atacados por diferentes


universos sociais, o que diz de uma responsabilização crescente dos es-
paços escolares como aqueles ‘salvadores’ das problemáticas e mazelas
sociais, políticas e econômicas do país. O que tem acontecido também é
uma acolhida expressiva desse discurso que coloca a instituição escola
como espaço de ‘salvação’, tanto por parte dos professores, quanto por
parte dos pais ou responsáveis. Narrativa que, ora serve para vanglo-
riar a escola, ora para atacá-la deliberadamente.
Em termos de funcionamento da escolarização, mais precisa-
mente da instituição escolar, Max Stirner (2001) em seu texto ‘O falso
princípio da nossa educação’ propõe questionamentos que tensionam
muitas das naturalizações que cercam a escola. Espaço institucionali-
zado que estabelece diretrizes e normativas estendidas a crianças e jo-
vens. No percurso de escrita, Stirner (2001) considera que:

O que ocorre simplesmente é que o poder das instituições estabelecido


pela destruição sistemática de toda relação, pública ou privada, que
possa fornecer ao indivíduo um lugar para opor resistência à institui-
ção. O processo não é exclusivamente político nem existencial; é am-
bas as coisas. Tanto o mundo interno como o externo são afetados. O
resultado é uma espécie de cegueira dupla, um enclausuramento du-
plo, a perda de dois tipos de força: a força animal e a força política (p.
24).

Cegueira dupla que não propõe possibilidade alguma que ultra-


passe a lógica da escola, bem como suas garantias9. Garantias que ope-
ram na lógica do não dito, conforme escreve Corrêa (2000):

[...] são os elementos mais ativos da escola enquanto dispositivo. Estas


garantias envolvem todo um complexo de controle sobre o tempo, so-
bre os saberes e sobre os corpos que são exercidos por meio de progra-
mas de ensino, seleções de conteúdos, leis, horários, avaliações, etc.

9Como é o caso da Indústria Acadêmica que alimenta os conhecimentos a serem desen-


volvidos no ambiente escolar. Indústria Acadêmica como “[...] indústria responsável por
propagar as pesquisas científicas no âmbito da academia, que mobiliza a produção de
conhecimento em massa, normatizado e semiformado” (RIGUE; PEIXOTO, 2020, p. 289).

44
que fazem penetrar a disciplina, o disciplinamento, por toda a socie-
dade (p. 75).

Cegueira que alimenta o esfacelamento do que nos une en-


quanto seres humanos, já que individualiza todos e cada um por meio
da via totalizadora, “[...] conteúdos, saberes e conceitos que atravessam
a vida de todos e cada um que frequentam a escola” (RIGUE; CORRÊA,
2018, p. 233). Levando isso em conta, Stirner (2001) apresenta elemen-
tos que ao meu ver contribuem para que percamos a nossa implicação
no mundo.

[...] meus alunos estão inseguros com relação a si próprios, são versões
contemporâneas dos homens e mulheres vazios de Eliot, como se ti-
vessem sido virados pelo avesso e sacudidos. (...) A pessoa foi sugada
e depois esbofeteada por onda após onda de demanda e de retórica –
os grandes espaços internos de solidão e silêncio que são de alguma
maneira partidos, invadidos e reduzidos. O que resta da pessoa parece
estar invariavelmente enrijecido numa postura defensiva e protetora-
mente encolhido numa pequena caverna da alma, sem vontade de sair
(STIRNER, 2001, p. 25-26).

Estudantes e também professores que, como membros/agentes


dessa maquinaria escolar, não tem tido nos horizontes escolarizadores
sentidos comuns para compor os espaços-tempo tomados como educati-
vos.

Para meus alunos, importância e significado estão sempre em algum


lugar à distância, em algum local no futuro, situados depois de imen-
sos vales e montanhas, e eles só poderiam alcançá-los caminhando pe-
sadamente através do tempo, arrastando-se durante anos de classe
para classe na esperança de serem admitidos naquilo que foram ensi-
nados como sendo cultura ou sociedade. Existe muito mais em jogo do
que simplesmente a aquisição de habilidades e credenciais necessá-
rias para a obtenção de um emprego. A coisa está relacionada com a
existência em si, como se meus alunos tivessem sido sistematicamente
esvaziados de sua própria existência pelas instituições, e agora preci-
sassem ganhá-la de volta através da obediência e da prestação de ser-
viços (STIRNER, 2001, p. 25).

Essa reflexão de Stirner (2001) acerca das estratégias e pers-


pectivas que balizam as vidas que habitam as instituições dá condições

45
de pensar que “[...] é sempre uma batalha entre receptividade dos nos-
sos amigos e as negações da instituição: somos alimentados por um pro-
cesso e esvaziados pelo outro” (p. 25). O que serve de combustível para
um dualismo permanente entre o que se espera dos sujeitos e o que, de
fato, esses sujeitos podem dar em termos de condições de possibilidades
humanas, seus afetos, suas presenças. “O caminho institucional está
sempre cortando e costurando, remendando as partes segmentadas de
uma realidade já destruída pela própria instituição” (STIRNER, 2001,
p. 27), o que, a meu ver, inviabiliza que nos impliquemos com as ques-
tões comuns do mundo, com as questões da “[...] vida em comum”
(GARCÉS, 2013, p. 29), já que o que está em jogo (prevalência) é nossos
percursos nas instituições, nosso ‘sucesso’ nesses espaços estabelecidos
como formais.
Vida em comum que, para Garcés (2013) “[...] es algo mucho
más básico: el conjunto de relaciones tanto materiales como simbólicas
que hacen posible uma vida humana10” (p. 29). Vida que ela escreve:

Una vida humana, única e irreductible, sin embargo no se basta nunca


a sí misma. Es imposible ser sólo um individuo. Lo dice nuestro cuerpo,
su hambre, su frío, la marca de su ombligo, vacío presente que sutura
el lazo perdido 11 (GARCÉS, 2013, p. 29).

Com essa noção de vida em comum de Garcés (2013) “[...] el ser


humano no puede decir yo sin que resuene, al mismo tiempo, un noso-
tros12” (p. 29). Um nós que é diferente, múltiplo e heterogêneo. Um nós
que rejeita a totalização, os parâmetros homogeneizadores, visto que
torna indispensável respeitar as particularidades. Um nós que está im-
plicado como o vazio de sentido que se abre quando fazemos experiência
anônima com nossa proximidade com o mundo e com os outros
(GARCÉS, 2013).
Em termos de escolarização, temos visto uma sofisticação signi-
ficativa de estratégias que não levam em consideração a necessidade de

10 “[...] é algo muito mais básico: é conjunto de relações tanto materiais como simbólicas
que fazem possível uma vida humana” (p. 29).
11 “Uma vida humana, única e irredutível, porém nunca é suficiente. É impossível ser

apenas um indivíduo. Nosso corpo diz que, sua fome, seu frio, a marca de seu umbigo,
vazio presente que sutura o laço perdido” (GARCÉS, 2013, p. 29).
12 “[...] o ser humano não pode dizer sem ressoar, ao mesmo tempo, um nós” (p. 29).

46
implicação e compromisso do estudante e, ao mesmo tempo do profes-
sor, para com as atividades no/do mundo. Temos alimentado exames,
testes e provas que servem única e exclusivamente para avaliar o que
chamam de ‘absorção de ensino’ por parte dos estudantes, por meio da
aplicação de provas e mais provas iguais para todos, sem que isso esteja
vinculado com um pensamento individual acerca do próprio meio, do
próprio mundo, da vida humana. Escolarização que aparece cada vez
mais aproximada de narrativas que defendem uma suposta neutrali-
dade científica, podando a possibilidade do estudante de expor-se ao im-
previsto, ao desconhecido, reduzindo-se aos resultados preestabelecidos
(GARCÉS, 2013, p. 86). Narrativas que subestimam a capacidade cria-
tiva e inovadora dos jovens, as quais alimentam a mercantilização da
educação pela via do mercado acadêmico e intelectual, o qual tem se
preocupado com vias meritocráticas, as quais têm produzido ainda mais
desigualdades do que práticas comunitárias.
Com Garcés (2013) é possível verificar que a escola “[...] como
institucionalización de la educación, há acabado siendo, em gran parte,
la fábrica de los indivíduos produtores-consumidores de la sociedade
capitalista13” (p. 91). Sociedade que acaba potencializando a reprodução
de misérias e desigualdades, pela via de um discurso de necessidade de
adaptação flexível para com as tendências que, por meio do embate de
forças vão emergindo, como é o caso da lógica das competências que tem
contaminado nossos programas e orientações programáticas no con-
texto da América Latina. Linhas que tomam relevo que inibem tantas
outras.
Lugar-escola (PESSANHA, 2002) como um espaço de erudição
de saber que permanece como um bem (STIRNER, 2001). Um bem su-
postamente adquirível que intensifica a produção de “[...] corpos solidi-
ficados” (STIRNER, 2001, p. 79), que nutrem circuitos de cumprimento
de tarefas, separadas por disciplinas ou áreas do conhecimento/itinerá-
rios que não tomam “[...] la vida como problema común14” (GARCÉS,
2013, p. 98).
Com Garcés (2013) fica visível que é preciso “[...] assumir el pen-
samento como problema y no como solución15” (p. 99), o que coloca para

13 "[...] como institucionalização da educação, acabou sendo, em grande parte, a fábrica de


produtores-consumidores individuais da sociedade capitalista” (p. 91).
14 “[...] vida como problema comum” (GARCÉS, 2013, p. 98).
15 “[...] assuma o pensamento como um problema e não como uma solução” (p. 99).

47
escanteio o conhecimento como ‘verdade’ estável, mas sim como inaca-
bamento, como processo de busca, de vontade.
De modo geral, o que temos assumido em termos de instituição
escolar básica no Brasil, levando em conta, por exemplo, a Base Nacio-
nal Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio (BRASIL, 2018) e a
Reforma do Ensino Médio (BRASIL, 2017), é uma postura que se alinha
a noção da necessidade de estabelecer conhecimentos básicos comuns
para “[...] todos e cada um”16 (RIGUE, 2017, p. 119). Postura que ali-
menta a promessa de sanar as dispersões que a Lei de Diretrizes e Ba-
ses da Educação Nacional (LDBEN) nº 9.393 de 1996, ainda provocava.
Uma escolarização que coloca, de uma vez por todas, todos os
estudantes “[...] em uma situação de prospecção de futuro” (RIGUE,
2017, p. 118) como “[...] uma questão chave para subjetivar todos e cada
um” (RIGUE, 2017, p. 118). Conforme Corrêa (2006):

[...] vai-se ao futuro para ver o tipo de aluno que se quer, olha-se de lá
e procede-se ao planejamento e execução das estratégias para a trans-
formação dos indivíduos que se tem nos tipos que se quer. Aqui o tra-
tamento individualizado visa a transformar o outro no mesmo, colocar
todos num sistema que chama de pública uma educação para uso pri-
vado do Estado. Acentua-se a universalização da estratégia de formar
pessoas abertas para o treinamento, que querem ser treinadas, que
desejam e crêem no trabalho urbano assalariado, que vivem o ideal de
fazer prospecção da própria vida: o que eu quero ser? Produz-se com
isso um horizonte de vontade, de querer, de ser alguém. Neste hori-
zonte estão disponíveis as figuras do patrão, do empregado, do funci-
onário do Estado, das profissões técnicas e científicas. (p. 111).

Prospecção que precisa de conhecimentos mínimos vinculados e


reconhecidos a tendências internacionais, que as tornam indispensá-
veis para que o país se coloque enquanto status de desenvolvimentismo
no cenário internacional. Nesse rol de narrativas que compõem os do-
cumentos, discursos se conjuram com a promessa de produzir modifica-
ções no âmbito prático do trabalho nas escolas, por sua vez, em se tra-
tando de formação pedagógica para a rede dos professores que já atuam
nesses espaços e, professores em formação inicial, pouco ou quase nada

16“É sempre pelas forças que atingem o corpo que podemos ser transformados ou modifi-
cados. Assim, a produção de uma nação e seu povo em harmonia depende de programas,
campanhas e uma capacidade de atingir a todos” (CORRÊA; RIGUE; FELTRIN, 2018, p.
74).

48
se vê movimentar/modificar. O que aponta para um descompasso signi-
ficativo que já anuncia uma espécie de fracasso na implementação dos
mesmos.
Mesmo que os docentes em atitudes isoladas, reúnam esforços
para contribuir com a produção de estratégias que favoreçam a produ-
ção de um sentimento e atitude de implicação e compromisso, pequeno
tem sido o espaço destinado para tal, em termos de organização curri-
cular e conteudista dos conhecimentos.

Considerações Finais

A problematização que inspirou a construção desse ensaio


(LARROSA, 2003) foi a seguinte: Em que medida as instituições esco-
larizadoras têm contribuído para que desenvolvamos compromisso e
implicação para com o mundo comum? Esta permitiu que desenvolvesse
um percurso teórico, tramando algumas das considerações levantadas
por autores como: Pessanha (2002), Stirner (2001), Garcés (2013) e Cor-
rêa (2000, 2006, 2014). Trajetória que aconteceu em meio ao curso de
doutoramento em educação situado na região sul do Brasil.
Nesse andarilhar ensaístico (LARROSA, 2003), me senti captu-
rada por uma série expressiva de pensamentos construídos por autores
que ousaram pensar a escolarização. Processos naturalizados como in-
dispensáveis para todos e cada um, como se nada na vida fosse possível
caso não vinculado às instâncias escolarizadoras.
Aí, emergiu a consideração do quanto temos abandonado o foco
em uma educação que se comprometa e implique com o mundo comum,
com a vida humana. O quanto estamos dificultando a formação de pes-
soas abertas a composições particulares e comunitárias que priorizem
uma construção anônima do coabitar. O quanto à resolução de questões,
produção e coleta de dados, combinação de escores, tem prevalecido em
meio as vidas envolvidas no trabalho pedagógico (estudantes, professo-
res, familiares, amigos, entre outros) diário realizado nos espaços deno-
minado educativos. O quanto os documentos norteadores e balizadores
da engrenagem escolar tem dado invisibilidade às estratégias educaci-
onais que abandonam as garantias da escolarização (CORRÊA, 2000),
com a promessa de uma formação completa de um cidadão.
O que toma relevo é que essa noção de formação completa pro-
metida pelos documentos balizadores encontra-se comprometida com

49
uma tendência capitalista, dentro de um cenário neoliberal, o que de-
manda determinadas ênfases, em detrimento de outras (cumprimento
de tarefas, resolução de questões em provas, entre outros). Nesse tom,
o comprometimento que parece importar não está vinculado com as cau-
sas/problemáticas do mundo (fome, vulnerabilidade, violência, entre
outros), mas sim com as questões individuais/privadas, que na maioria
dos casos vem ao encontro de retroalimentar competições, dispositivos
meritocráticos.
Com esse ensaio (LARROSA, 2003) pode-se constatar um des-
compasso entre o que aparece em termos de narrativa e o que tem a
chance de acontecer no âmbito do trabalho pedagógico realizado nas es-
colas. O quanto a formação desenvolvida no espaço escolar não tem tido
a chance de atentar para aspectos como o compromisso e a implicação
para com o mundo comum. O quando a vida humana perante o meio
social aparece condicionada ao ‘sucesso’ dos sujeitos no âmbito escolar.
Mundo comum que encontra-se pouco presente nas ênfases empreendi-
das nas práticas escolares. Vida humana capturada pelas estratégias
cada vez menos potentes quando tratamos de experiência, da significa-
tiva vivência da descoberta. Relações-encontros comprometidos, profes-
sores e estudantes com infinitos modos de existência reduzidos a cum-
primento de tarefas.
Contudo, há também outros tantos fios invisíveis, linhas trans-
versais possíveis. Abandonar as garantias da escolarização (CORRÊA,
2000) talvez seja um caminho, reconhecer os seus limites também.
Quem sabe, abandonar o saber sem vontade (STIRNER, 2001) esteja
vinculado a “[...] invenção de liberdades onde se quer que elas aconte-
çam” (CORRÊA, 2006, p. 185).

50
Referências Bibliográficas

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1996. Disponível:<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_con-
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51
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STIRNER, Max. O falso princípio da nossa educação. São Paulo: Ima-


ginário. 2001.

52
FIANDOGRAFIA: VARIAÇÕES, CONTAMINAÇÕES, MODOS
(INFINITOS) DE PENSAR, LER E ESCREVER EM EDUCAÇÃO

Alice Copetti Dalmaso17

Que linhas temos traçado sob os outros, em nossas relações? Qual


linha tem importado mais do que as outras?
Quais linhas têm composto sua vida? Qual linha você traça e se su-
perpõe a outra? Há linhas que fazem respirar e saltar, ou as imobili-
zadoras dominam seus gestos? E a que preço, para “você e para os
outros [...]? Qual linha você interrompe, qual você prolonga e retoma
[...]? (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 77). Você inventa linhas de
fuga, traçando-as efetivamente, na vida? Onde elas estão, como são
constituídas, na docência, na linguagem, numa leitura e escrita?
(DALMASO, 2016, p. 85).

Fiandar por linhas de escrita, fios de vida, narrativas, lembran-


ças, sensações, emoções, sob gestos e trejeitos de um ou mais corpos.
Trato nesses escritos de contar um pouco sobre como um verbo-opera-
ção-metodologia – Fiandar – pôs a funcionar um modo de produzir pes-
quisa em educação, a Fiandografia. Com ele, conto sobre um modo de
pesquisar que deu corpo a uma tese de doutorado em educação, para
posteriormente invocar um modo plural e atento de estar no mundo,
arregimentando um corpo fiandográfico, que se multiplica em muitos
modos de habitar lugares de ler, escrever e pensar a educação e seus
infinitos atravessamentos. Os/as leitores/as possíveis desses escritos se
encontrarão com uma escrita poético-caótica, como toda escrita que pre-
tende se inventar no próprio ato de escrever.
Em meados de 2014 costuravam-se linhas de pensamento, es-
crita e corpo, cujo sentido intentavam produzir uma pesquisa em edu-
cação Fiandográfica. A partir de perspectivas que conduzem a co-emer-
gência de mundos e filosofias (DELEUZE; GUATTARI, 1995, 1996,
1997), experimentei possibilidades de ler e escrever junto de diversas
linguagens, textuais e não textuais, produzindo uma complexa teia de

17Bióloga, mestre e doutora em Educação. Docente do Departamento de Metodologia do


Ensino da Universidade Federal de Santa Maria (MEN/UFSM). Pós-doutoranda no La-
boratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/Unicamp).
E-mail: alicedalmaso@gmail.com.

53
pensamento-escrita, e que levou o titulo de Fiandografia: experimenta-
ções entre leitura e escrita numa pesquisa em educação (DALMASO,
2016).
A Fiandografia e o verbo Fiandar, que será melhor delineado
nas demais páginas deste manuscrito, recorre a uma operação-ação-
postura-movimento que nasceu do desejo de uma escrita de tese que se
produzisse com uma leitura que não cessasse, enquanto se escrevia: ler
e escrever como ações sem início nem fim, onde leitor e escritor mistu-
ram-se, confundem-se, em escrileituras (CORAZZA, 2013). Isso impli-
cava em desconfigurar e amontoar ideias, desvincular-se de certa nor-
matividade de uma escrita e de uma pesquisa acadêmica, de consensos
entre autores, de verdades sobre educação. Iniciava-se um esforço de
um estudo que não se constituísse em mensagens prontas, de rebanho:
a intenção era reunir apenas desejos, locuções com investimentos (e de-
sinvestimentos) de si, na desmontagem e agenciamentos com muitas
linguagens, variantes, obtusas, silenciosas, dissensuais. Ainda hoje, Fi-
andar e a Fiandografia permanecem nesse chão: inventar espaços de
escrita e, por sua vez, possibilidades de vida e pensamento com ela.
Durante o percurso da pesquisa, fui movimentada a aprender
sobre a permissão de ler como efetiva produtora de um texto. Ou seja,
tratava-se de um processo de auto consentimento para, a partir do que
estudava, lia, ouvia, percebia, sentia, pudesse escrever ao meu modo,
mostrando como estava sendo afetada por esse campo de heterogêneos
sobre conceitos de ler e escrever, leitura e escrita. Assim, fui apren-
dendo a escrever por diversas instâncias da linguagem escrita, e a con-
tar na pesquisa de que maneira realizava uma tessitura de pontos de
força, que disparavam escritas e novas buscas por leituras que me apro-
ximassem sobre modos de ‘dar a ver’ mundos (LAPOUJADE, 2017). No
movimento de dar a ver, fui investindo num percurso de escrileituras
que não estivessem em falta com alguém ou alguma coisa, uma pro-
posta ou, especificamente, o ideal de um texto, de uma pesquisa, de um
sujeito.
Fui montando, alinhavando, misturando textos que procura-
vam fugir da ideia de linguagem exclusivamente considerada “como um
suporte (de significado), como um instrumento (de expressão, de comu-
nicação) ou como veículo (de informação)” (LARROSA, 2004, p. 299). Ou
seja, procurei tratar a escrita ao modo como os autores que utilizei tam-

54
bém a tratavam, de modo não soberanamente objetivante e instrumen-
tal, mas como experiência e experimentação, na relação com ela e de
seu desfrute, numa certa desenvoltura de degustar o texto que se lê e
se escreve, ao procurar operar a instância de “fazer passar a experimen-
tação e o desejo pela relação com o texto, não só a compreensão ou o
sentido” (LARROSA, 2004, p. 303).
Nessa perspectiva, de uma experimentação com o que se lê e se
escreve, a paisagem da pesquisa (ou mesmo da construção de um texto,
de um artigo, de uma aula) vai sendo feita por arranjos, maquinações e
o percurso não é outra coisa do que as conexões que vão sendo inventa-
das no próprio fazer, não importando tanto o que os elementos juntados
significam, tampouco o que vai acontecer ou qual o próximo passo. In-
teressa mais “mobilizar o corpo, o pensamento, sensibilizá-los de modo
que cada um experimente a paisagem, faça conexões, traçando linhas e
acompanhando-as, linhas por meio das quais a paisagem se desmancha
e se inventa” (GODOY, 2007, p. 135).
Nas demais linhas arremato alguns escritos produzidos desde o
início da tese, junto às pesquisas-escritas mais atuais que tem surgido
na decorrência de ocupar o lugar de docente do ensino superior, traba-
lhando com o ensino de ciências e biologia para crianças, adolescentes
e jovens, em cursos de formação de professores. Aqui, faço ventilar a
perspectiva de uma pesquisa-escrita-pensamento Fiandográfico, atre-
lado ao que venho procurando operar com o verbo Fiandar e seu caráter
pragmático em meio aos espaços educacionais, enquanto campo de ex-
periência possível para infinitas pesquisas e escritas.

Fiandar: linhas práticas de vida

Dias de chão seco, eram caminhos de desertificação.


A angústia fora soterrada pela surpresa do não-ter. Sob os olhos da-
queles que curvam-se diante da pobreza, o que se mostrava esbofete-
ava suas vergonhas, fazendo-os se recompor diante de uma vida que
não se assusta com a dor do não-ter, não-ser. Os salvadores queriam
esconder-se e sorriam pela vergonha de serem homens.
Um dia como qualquer outro, atravessado pelas visitações dos olhares.
Ela, ágil, com ventre escondido que diz esperar um filho, além daquela
que brincava à porta do casebre, no entorno do que dava vergonha.
Decidida, a criança brinca com os arredores de cheiros e devires in-
confessáveis: lama, merda, água, cão. Cães misturavam-se a ela, ob-
servadora e exibicionista do que não se tem, não se é. Composições e

55
conjugações por entrar em contato-contágio com um mundo, seu
mundo.
[a vergonha compõe células de um adulto, apenas]
O calor acentuava a coletiva incapacidade de desconstranger. O suor
acentuava a timidez caricata dela, a mãe. Eram todos iguais ali, na
incapacidade de fazer valer o real desejo de ajudar quem nunca pedira
por ajuda.
[A poeira, uma criança, pés ao fundo de uma cama, o suor da tese mo-
rena dela, latidos.]
Um tempo que escorria como os pingos que caíam pelas dobras de sua
barriga era o mesmo tempo em que fugiam para dentro do automóvel.
A vergonha incitava a pensar sobre a saudável vida abundante que
tinham longe dali. Sentados na continuidade do caminho da desertifi-
cação, em vista longe, observam Andressa em sua vida, uma vida.
Já não eram mais os mesmos.
Escrito produzido a partir do encontro com a morada de uma estu-
dante, em Dilermando de Aguiar (DALMASO, 2016, p. 81).

A palavra Fiandografia trata de uma licença poética que se sus-


tenta com a criação e conjugação do verbo Fiandar e certa ‘brincadeira’
com suas variações: [Fiar] uma grafia, um movimento de fiandar – ali-
nhavar, costurar, pregar, ajustar, alinhar, brotar, dar nó na grafia, es-
crever os fios, fios que se escrevem.
Das fiandeiras das aranhas, um verbo ainda não catalogado na
língua portuguesa foi inventado, o Fiandar, derivação da palavra Fian-
deiras. As Fiandeiras ou Fieiras são denominados os apêndices nos ab-
domens de alguns aracnídeos que produzem o que conhecemos por fios
de seda, os quais formam as conhecidas teias. Dependendo da espécie
de aranha, os fios produzidos pelas glândulas são usados para formar
estruturas e desenhos diferentes, o que varia também em função da fi-
nalidade da construção das suas teias (DALMASO, 2016).
Para dar potência ao verbo Fiandar, foi necessário desenvolver
uma atenção em observar os movimentos e repousos, modos de existên-
cia de aranhas, para aprender com os devires de um animal (DE-
LEUZE; GUATTARI, 1997), seus modos de habitação e contágios.
O que é a teia para uma aranha? O que é a presa para uma
aranha? O que temos a aprender, enquanto modo de avizinhar-se com
as aranhas, com seu gesto inato de não ter “saboreado alguma presa
para se pôr a tecer” (DELIGNY, 2018, p. 17)? Como articulam e movem
suas fiandeiras? Como são seus pelos urticantes e quelíceras, seus sal-
tos? Aprendi a perceber suas horas sem movimento nem alimento, ou

56
as aranhas que não construíam teias, as velocidades de variadas espé-
cies que observava, num jogo de heterogêneos que se cruzavam.
Aprendi a observar as aranhas teceloas, que podem permanecer dias
em pontas ou centros de arquiteturas de teias, movimentadas unica-
mente pela vibração; bem como as aranhas mais ‘errantes’, que va-
gueiam em busca de alimentos, realizando uma tocaia, ou colocando-se
ao acaso do encontro com presas que possam passar por elas. Apelos,
arrancagens, precipitações, espera e reserva, abatimento, desengates,
morte, vida. Cores, posturas, teias de uma aranha ‘respondem’ a outras
cores, posturas, gestos, lentidões, paralisias, deslocamentos sutis de ou-
tros seres.
Não estabeleci a semelhança da aranha durante a pesquisa
para que se faça como uma aranha, imitando-a. Tracei analogias, fiz
alusões, para perceber, assim como faz Deligny (2018), sobre o quanto
somos todos artesãos de infinitas redes ao longo de nossas vidas. O mote
é poder aprender com modos de afetar e ser afetado de um animal, de
encontrar um animal em nós e, dessa co-habitação de mundos, produzir
infinitas redes de relações de pensamento, escrita e ação. Colocar ‘as
coisas todas juntas’, pinçando em textos de zoologia e filosóficos e lite-
rários, para atentar aos interstícios de criação, entre uns e outros, es-
tabelecendo relações de contraponto, num objeto de poética e de pensa-
mento. De todo modo, esses seres abjetos de medo e repulsa desorgani-
zaram, literalmente, os tecidos usados de uma vida e, feito costurar, sob
condições incertas, outras instâncias do pensar.

Fonte: acervo pessoal da pesquisadora

57
O tecido preto e o bordado surgiram, então, para ajudar a pro-
duzir um corpo-teia-texto-aranha Fiandográfico, como um tempo-es-
paço de atenção, um hábito atencional o qual fui criando na rotina para
que algo se passasse18 no trato com essas materialidades e no gesto de
bordar, assim como a força da leitura de um texto pode nos colocar
numa “dimensão pré-subjetiva e processual, aquém do indivíduo, pro-
movendo um encontro com a alteridade que habita a subjetividade
(KASTRUP, 2005, p. 53). Pude perceber que, ao tornar a Fiandografia
uma artesania de linhas de bordado, colocava-me a dispor de uma aten-
ção que espera, à espreita, que algo se passe na relação com as linhas,
com o silêncio do manuseio com as cores, com o tipo de ponto que esco-
lhia, fazendo ‘vibrar a teia’ enquanto se fiandava, bem como enquanto
se escrevia. Quando, ainda hoje, crio esses tempos e espaços para bor-
dar, quero entrar em relação com esse tecido, com as lãs, com o que
penso e escrevo (escrevendo em mim o texto que outrora tenha lido, com
os ditos e não ditos, com signos diversos, com as conversas e aconteci-
mento vividos, que acabam se tornando escrita).

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora

18“Numa frase pronunciada ou escrita; no olhar ou no sorriso de alguém; num raio de luz;
numa hora do dia, alguma coisa se passa, que não existia antes; e um novo, um inédito
se faz, mesmo que não consigamos apreendê-lo.” (CORAZZA, 2013, p. 94)

58
Fiandar-bordar-traçar-arrematar-escrever-compor com: linhas
e fios de vida produzidos por e entre materialidades múltiplas, consti-
tuindo um espaço aberto de colher momentos com os dedos das mãos;
instalar-se pelos entres, construindo conexões não sentidas/experimen-
tadas, enquanto se pensa sobre o que se aprende com os modos de po-
voamento das aranhas, com sons e gestos de uma criança, seus pios,
suas vogais, silêncios, sons inauditos, com o modo traidor de existir em
meio às coisas do mundo; o que se aprende quando se experimenta com
personagens da literatura, para que se possa escrever dentro de um sem
fim de lugares da sensação; aprender a escrever com a leitura de textos
literários e filosóficos; aprender com espaços de fala coletiva dentro da
universidade, ou mesmo com os tempos de silêncio destes espaços, onde
e quando nada se passa, nada faz sentir e sentido para ser dito e escrito;
o que se aprende com a vibração de qualquer coisa animada ou inani-
mada que se dá a ver, ouvir, existir. Tudo isso: é dedilhar a composição
dessas escritas, fiandar grafias, tornar-se, desde então, sempre outra
coisa.

Fonte: <http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/fiandar/>

59
Fiandar, sobretudo, tem dirigido um verbo em aberto, como um
emaranho de fios suspensos e impermanentes a serem sempre costura-
dos, como um convite persistente às desmontagens de modos operató-
rios e consensuais de pesquisar, de comunicar, de entrar em relação
com palavras, textos, seres, com composições de leitura, de escrita, de
pensamento, de vida.
A Fiandografia segue tateando problemas onde possa configu-
rar relações mais estreitas entre as práticas de pensamento das artes,
ciências e filosofia, percebendo como cada um desses campos podem se
contaminar uns aos outros, trocando partículas por entre seus envoltó-
rios, suas linguagens, gestos e procedimentos específicos. O objetivo é
que, destes contatos, algo novo possa ser continuamente criado, fecun-
dado.
Um breve fio da atualidade: fiandografar um manto-cobertura-
superfície-conceito-ideia19. Experimentações com tentativas de impres-
são botânica num tecido de algodão, inscrições de textos à mão, palavras
soltas escritas e bordadas, desenhos. Um manto que pode se associar a
uma performance, tornando-se um ser híbrido, comunicador do agenci-
amento ciências-artes, vestido de gestos que pudessem dar a pensar so-
bre os devires infinitos que uma floresta pode nos colocar.

Tivemos que criar intervalos de um tempo e um modo atencional de


entrar no que o manto nos evocava a manipular: um laboratório al-
químico, aprendizado prático que deseja ‘honrar a criação de conexões,
de protegê-las contra os modelos e normas" (STENGERS, 2017, p.
15). Catar folhas, flores, chás, misturar tudo, e brincar com a possi-
bilidade de perceber as diferentes tonalidades de gradientes de cores
extraídas dos pigmentos fotossintéticos de diferentes plantas. Esco-
lher linhas e pontos, brincar de fazer seres, atravessar o manto bor-
dando entre silêncios e ruídos, entre os sons do mundo; acoplar dese-
nhos produzidos pelos colegas; palavras escritas no tecido, fragmentos
de textos tensionados durante a disciplina, poemas, força da palavra

19Relativo a uma vestimenta confeccionada a partir das tentativas de realizar procedi-


mentos que procuravam instaurar conexões entre os encontros produzidos na disciplina
Arte, Ciência e Tecnologia (LABJOR/UNICAMP, 2019), ministrada e coordenada pela
professora Susana Dias. O problema central da disciplina consistia em como criar intimi-
dade com uma ecologia de devires próprios das florestas, instaurando algumas questões:
‘O que comunicam as florestas? O que podemos aprender com elas?’. Dos materiais pro-
duzidos na disciplina, produziu-se a exposição Floresta de Afetos, cuja referência completa
é possível encontrar ao final desse trabalho.

60
que se conjuga com as linhas de um bordado, escritas no tecido, dese-
nhos e demais inscrições que possam surgir, nas interações com ma-
teriais, ideias, conversas, encontros, no manuseio e experimentação
com os materiais. (DALMASO; VILELA, S.p., 2019)

Fiandar tem sido exatamente isso: uma autopermissão coletiva,


de poder compor com tudo, de criar um laboratório de micro composi-
ções, de exploração de materiais, autores, ideias, percepções, para quiçá
proliferar coisas ainda não pensadas e sentidas. Deglutir e deformar
autores, encontrar seres cósmicos por entre nossa escrita, suspender
julgamentos excessivamente professorais/brancos/narcísicos/cristãos
que possa haver em nosso discurso mental, abrir os poros para saberes
ancestrais e primitivos, escolher nossas palavras como armas, desabili-
tar o controle dos acontecimentos nas relações com as coisas do mundo,
tomar lucidez do efeito dos encontros, escrever sem destino e esperar
um problema em aberto dar um novo corpo aos gérmens de vida – pala-
vras - que habitam a nossa garganta (ROLNIK, 2018).

Fonte: <http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/alice-dalmaso-e-mariana-vilela-de-
viracoes-floresta/>

61
Por último, importante registrar que atualmente se tem tam-
bém fiandografado com modos de existir-criança, traçando escritas a
partir da pesquisa de pós-doutorado, que se intitula Experimentar (com)
um modo de existir-criança: composições para pensar ciências, artes, di-
vulgações, educações (LABJOR/UNICAMP/2019-2020). Em linhas ini-
ciais e soltas, procuro me instaurar na presença de uma ou mais crian-
ças, dando-lhes o “direito de existir” (LAPOUJADE, 2017), procurando
não lhes impor modos de existência a ponto de serem expulsas de suas
próprias realidades e alteridades, mas atentando sobretudo ao que
aprendemos com seus devires, ao que e como elas compõem suas exis-
tências-corpo no mundo, e como isso pode dar a ver modos outros de
pensar as ciências, as artes, comunicação, educação. Trata-se de afir-
mar, acima de tudo, que a criança, na sua forma indisciplinada de es-
cuta e experimentação com coisas animadas e inanimadas, encaminha-
nos para um mundo todo rico e vivo, desmantelando mundos conheci-
dos, óbvios e dados, e disparando afetos alegres e ativos.

Observar. Pairar. Andar em círculos repetidos. Fazer trajetos, incon-


táveis trajetos. Disruptivos e irritantes, cheios de grito, e de som
agudo.
Rir descontroladamente por medo do que pode essa coisa liquefeita.
Encarnar o destemido mundo: a água, mesmo corrente, é sempre um
lugar de parada. Parar de agir, para agir com a água.
João parecia assumir a sua própria coragem de molhar os que estão
por perto e que não querem ser molhados. As mãos pequenas que ten-
tam virar e torcer a abertura da torneira. Não ver a água jorrar longe
não era uma opção. Algo parecia irromper nele, quase tremendo,
quando encontra o gelado da água que sai da torneira e molha seus
pés. Ou encontrar os grandes pingos que caem do ar condicionado e
perceber o quão gelado era. Molhar a cabeça e deixar os pingos caírem,
viando o rosto com a expressão de frio, em torno de um riso alegre.
A água que sai da mangueira cava um buraco no chão. Espaço, buraco,
e a água que some: é sempre algo inédito de quase inata admiração.
Essa coisa que não se pode pegar, chamada água, até fazer buraco ela
faz. E mata o calor, e rega as plantas, e ‘água’ a cenoura que esta a
crescer, porque comer cenoura tirada da terra parece compor toda a
graça do mistério: será que é grande o tamanho da parte laranja que
irá sair da terra?
Não sei.
Observar o João é permanecer na inquieta pergunta aberta:
Resta ainda, uma criança possível, em nós?
(Blocos de escrita Fiandográfica)

62
Ser mais afetada pelos devires, mapas, trajetos mentais e cor-
porais de uma criança (DELEUZE; GUATTARI, 1997), do que teorizar
esses conceitos. Reparar, dar a ver, testemunhar (LAPOUJADE, 2018),
por em evidência as forças que permitem atestar e testar o cosmos com-
partilhado o qual co-habitam, a ponto de colocar o seu corpo para luga-
res inéditos do pensar e do sentir: uma criança autista que “é atraída
pela água que dança num tanque de pedra (DELIGNY, 2018, p. 135);
outra, que brinca de reunir, em meio às suas pernas, um conjunto de
pedrinhas; outra que paira em observar uma formiga que caminha, e a
alegria de outra que sente prazer do esvaziar de uma onda do mar sob
seus pés, descontrolados. Existências mínimas se tornam pontos de en-
contro, interesse, de vontade de conhecer através e com o corpo. Elas
entram em e se modulam com devires-menores, mínimos, invisíveis, in-
capturáveis. É nessa composição de velocidades e movimentos que se
instauram as leituras e escritos atuais, para pensar o que podemos
ainda ser, em como habitarmos, existirmos, inventarmos também novos
modos de existir em educação. Hesitar, sobretudo, em seguir fazendo
das crianças – e de nós mesmos – “filhotes de homem” (DELIGNY, 2018,
p. 165), infinitamente uma criança ‘preenchida’, posto que, em nossos
projetos escolares e governamentais, parece ser sempre “a imagem do
homenzinho evoluído que a criança deverá incorporar” (p. 162).
Fiandar, assim, deseja insistir no além-ver, no encontro com
múltiplos e estranhos modos de existências, os quais possam disparar
muitas crianças - animais, plantas, fungos, moléculas - virtuais em nós.

Arremates de um porvir

Produzir uma pesquisa e escrita fiandográfica, até aqui, consis-


tiu em afirmar como adentramos e permanecemos no campo dos pro-
cessos que nos tomam e com os quais, voluntariamente, nos relaciona-
mos. Como vaguear entre as coisas assegurando certa leveza e confi-
ança no devir, como ler e escrever sem procurar regras e leis, como cui-
dar das coisas e seres que nos rodeiam, atentando à alteridade que
pulsa em nós, e de cultivar certa artesania que se aventura em experi-
mentar conceitos em meio à vida, ainda que o já pensado e o já dito
persista em nós?
Desabitar e criar ritmos de outras escritas e enunciados, ao
compor com as infinitas materialidades que estão aí, à nossa disposição.

63
Conjugar e escrever com pessoas, personagens, corpos físicos, biológi-
cos, verbais. A partir de um pressuposto ético de afinar em nós novos
modos de atentividade - essa atenção aos outros, aos infinitos modos de
existência humanos e não-humanos, que nos ponha a habitar novos mo-
dos de relacionamentos e responsabilidades (VAN DOOREN et al,
2016).
Fiandar como um grande ‘sim!’ à abertura da perda de uma ‘su-
posta’ identidade fixa sobre qualquer coisa, bem como um certo cuidado
para que o campo téorico não torne toda a nossa vida pouco pragmática,
pouco corpo, pouca relação e experimentação, perdendo aquilo que nos
é comum: a palavra (e a pesquisa) que dança, que se torna atenção, vín-
culo, presença.

O que eu quero dizer é que alguma coisa acontece por causa desse
vínculo. Acontece algo novo no mundo. A relação só existe, enquanto
o vínculo é algo que se cria. Eu diria, então, que mesmo se houver um
sujeito e um objeto, o que se cria é um novo vínculo. É esse o papel da
experimentação. Criar um vínculo é o que faz os cientistas dançarem.
(DIAS et al, 2016, p.165)

Nessa dança feita de trajetos, coletivos e solitários, que consti-


tuem e fazem uma rede, somos invocados a ocupar diferentes percep-
ções em relação aos demais, formando fios invisíveis e deformando ou-
tros visíveis, posto que sujeitos e objetos “estão abertos a surpresas, cri-
ações e descobertas” (DIAS et al, 2016, p. 157). Se dançamos, enquanto
vivemos, pesquisamos, lemos e escrevemos, deixamo-nos tocar por essa
forte magia que é escrever, construindo diferentes territórios de afeto e
pensamento, produzindo uma escrita contaminada e conjugada por se-
res diversos, modos de existências múltiplas e acontecimentos por vir.
E, fiandar, nesse movimento, encosta alusivamente ao aracniano de De-
ligny, o qual “nunca se sabe se ele trama, ou se consiste apenas em ser
tramado” (DELIGNY, 2018, p. 23).
A perspectiva da abertura, da curiosidade e do devir é que am-
plia uma Fiandografia: coreografias de escrita, tramas de muitos seres
que se comunicam, danças e contradanças que se contaminam, dando a
ver, quiçá, novos mundos em educação.

64
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66
O DISPOSITIVO DA ESCRITA: MOBILIZAÇÕES SOBRE AS
PRÁTICAS DE SI ENTRE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

Ana Paula Parise Malavolta20


Fernanda Pereira Ébani 21

NASCE UMA ESCRITA

Esta é uma escrita que irá propor ao leitor e a quem vos es-
creve pensar sobre os processos da escrita, tensionar suas definições,
suas práticas, suas infinitas formas de existir. Propõe-se que em um
primeiro passo se possa pensar a escrita enquanto algo bem mais po-
tente do que meras definições trazidas nos dicionários; e aqui defendê-
la como um processo que transcende, que não se limita, nem se finda,
algo que esta a todo momento se (re)construindo, se (re)inventando e se
(re)descobrindo. Sendo assim, como um processo singular, que produz
afetações em toda e qualquer pessoa que habita a escrita seja no campo
da Psicologia, seja no campo da Educação. Neste ensaio as autoras dei-
xam um pouco de si e compartilham com quem está fazendo a leitura,
suas reflexões, buscando que o leitor interprete, se afete e se toque a
sua maneira. Nesta perspectiva da escrita enquanto um processo sin-
gular que mexe com subjetividades, será proposto pensar este processo
enquanto dispositivo para a significação de vivências subjetivas de mu-
lheres. Enquanto algo que proporciona um novo olhar, seja para vivên-
cias atuais ou do passado, seja para algo dolorido ou feliz, sobretudo
como um processo que permite (re)visitar estes lugares e mobilizar no-
vos significados diante deles mesmos.
Neste caminho, o método escolhido para guiar as discussões
deste ensaio é a Revisão de Literatura Narrativa, pois acredita-se que

20 Graduação em Psicologia pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das


Missões- URI Santiago (2015), Mestrado em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Gradu-
ação em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria (PPGART/UFSM) na
Linha de Pesquisa Arte e Visualidade (2017). Atualmente é Doutoranda pelo Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria (PPGE/UFSM)
na Linha de Pesquisa Educação e Artes.
21 Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai

e das Missões – URI Campus Santiago.

67
esta se aproxima mais da proposta, com o intuito de investigar, delinear
e problematizar a temática aqui apresentada. Este método é constituído
por dois propósitos, sendo estes pensados como: “a construção de uma
contextualização para o problema e a análise das possibilidades presen-
tes na literatura consultada para a concepção do referencial teórico da
pesquisa” (VOSGERAU, ROMANOWSKI, 2014, p.170). Diante disso
optou-se pela pesquisa narrativa por ser vista como a mais ampla e
apropriada para descrever e discutir o desenvolvimento ou o “estado da
arte” de um determinado tema ou assunto, partindo de um ponto de
vista teórico ou contextual. Este tipo de revisão basicamente se consti-
tui da análise de literatura publicada em livros, artigos de revista, do-
cumentos em meio eletrônico, na interpretação e análise crítica pessoal
do autor (ROTHER, 2007).
Conquanto, tomamos como escritas mobilizadoras de sentido os
seguintes livros: “Mulheres que Correm com os Lobos”, best-seller es-
crito pela psicanalista americana Clarissa Pinkola Estés, publicado
pela primeira vez em 1992. Neste livro, a autora propõe utilizar alguns
contos de fadas e mitos para desvendar a figura da Mulher Selvagem,
sendo este um espectro da personalidade das mulheres, visto por Cla-
rissa como destruído e mascarado ao longo do tempo pela sociedade pa-
triarcal. Assim, para ela, os problemas enfrentados pela mulher mo-
derna se dão em decorrência da transformação da Mulher Selvagem em
uma criatura domesticada (KOLLENZ, 2018). Para a jornalista Bar-
bara Nickel e a artista Mariana Bandarra (2017), o livro mistura histó-
rias folclóricas com uma profunda análise psicológica para resgatar a
natureza feminina indomável, contendo doses de espiritualidade e sa-
bedoria. Elas caracterizam a experiência de ler este livro como “multi-
facetada e poderosa: às vezes sedutora, outras, aterrorizante. Mesmo
que as histórias sejam povoadas por mocinhas, bruxas, vilões, animais
e criaturas mágicas, a protagonista do livro é a própria leitora”.
O outro livro se chama “O Papel de Parede Amarelo”, escrito por
Charlotte Perkind Gilman, publicado pela primeira vez em 1892. Tido
como um clássico da literatura feminista, ele retrata a vida de uma mu-
lher passando por uma depressão, porém como se passa no séc. XVIII o
diagnóstico é visto como histeria, feito pelo seu marido e médico. Ele
aluga uma casa de campo para ela se cuidar e realizar o tratamento,
entretanto ela é deixada muito sozinha e acaba imersa em seu caos e

68
busca refúgio secretamente na escrita em um diário (RODRIGUES,
2016).
Muito se acredita que a escrita é autobiográfica, pois a autora
também passou por problemas psicológicos e um relacionamento con-
trolador, e ao final do livro há um breve relato sobre a vida da autora e
sobre sua luta feminista. Desse modo, acredita-se que o que acabava
perturbando Charlotte (e consequentemente a personagem do livro) era
a contrariedade em relação às convenções da época que acabavam im-
pondo à mulher um papel submisso, de obediência em relação ao ma-
rido, e isto gerava certo incômodo em mulheres com uma visão mais
liberta (CUNHA, 2018).
E o terceiro livro se chama “A Princesa Salva a Si Mesma Nesse
Livro”, escrito por Amanda Lovelace, publicado em 2017. Este é um li-
vro repleto de poemas sobre a vida da autora, sua infância, adolescên-
cia, até seus vinte e poucos anos.São poemas que abordam temas deli-
cados que podem servir como um gatilho para o leitor, porém ao mesmo
tempo, a autora traz a importância de que ninguém precisa salvar você
do dragão, pois você tem capacidade para fazer isto por você mesma
(GEORGAKOPOULOS, 2018). O livro é dividido em quatro partes, “a
princesa”, “a donzela”, “a rainha”, “você”, combinando o imaginário de
conto de fadas com a realidade feminina do século XXI, discorrendo so-
bre temas como: amor, perda, sofrimento, redenção, abuso sexual e emo-
cional, gordofobia, cura, empoderamento, entre outros (MIRANDA,
2019).
Portanto, delimitaram-se enquanto singularidades ativas
neste estudo mulheres que escrevem, pois as autoras enquanto pesqui-
sadoras mulheres, sentem a necessidade de legitimar este espaço, e
ainda mais, carregam bagagens que em certos momentos ocuparam-se
da escrita para se refazer, se tornarem mais leves e passíveis de car-
regá-las.
Para seguir este caminho, buscou-se o acompanhamento de al-
gumas escritas e proposições teóricas que possibilitam a mobilização da
temática desta proposta. Desse modo, há a aproximação com Roland
Barthes, diante de suas prospectivas a cerca da leitura, escrita e escri-
tura; Michel Foucault, por meio de seus delineamentos sobre as práti-
cas de cuidado de si, entendendo a escrita como um recurso simbólico
de cuidado singular; Giorgio Agamben e Jacques Derrida , acerca da
escrita, linguagem e diferença, e por fim Simone de Beauvoir e Virginia

69
Woolf, mobilizando os agenciamentos sobre o ser mulher e a potência
da escrita como uma engrenagem simbólica para esta singularidade.
Antes de entrar nas discussões e reflexões propostas, se faz ne-
cessário falar sobre o lugar onde esta pesquisa nasce e perpassa. Pri-
meiramente, considerou-se a singularidade mulher das autoras e seus
lugares enquanto atuantes da Psicologia, área que se mobiliza pelas lu-
tas e (re)significações do ser mulher na contemporaneidade. Nesse sen-
tido o tema proposto, pode contribuir ao campo psi a partir do momento
em que pode-se pensar a Psicologia enquanto uma área que a todo mo-
mento afeta, tensiona, toca e mobiliza as pessoas. Diante disso, a escrita
é pensada aqui como um meio de comunicação que possibilita exteriori-
zar os afetos, exteriorizar para si próprio, ou para outras pessoas. Ex-
teriorizar muitas vezes para entender o que se passa, para aliviar ten-
sões ou para deixar registrado para sempre algo que tocou alguém, con-
tudo, exteriorizar da forma necessária a cada um: a escrita não morre,
ela marca, registra, permanece no tempo. Então, propõe-se pensar este
processo como um dispositivo de atuação para psicólogos, como um ins-
trumento potente para práticas e intervenções em diferentes contextos,
entre eles o campo da educação. Por sim, acredita-se que, todo ser hu-
mano que possui subjetividades singulares, precisa de um meio que for-
neça auxílio para dar conta do peso e da leveza de carregar tantas afe-
tações, da forma que for mais significativa a cada um, sendo que a es-
crita pode se apresentar como uma engrenagem possível de potenciali-
zação de vidas a partir de um determinado campo de afetos.

PRIMEIRO TRAÇO - A ESCRITA: LINGUAGEM, ESCRITURA E


LEITURA

Para dar início a este percurso acredita-se que primeiramente


é necessário falar a respeito do processo que se dará como foco desta
proposta de pesquisa e seus tensionamentos: a escrita. A escrita pode
ser definida pelo dicionário Michaelis (2000, p.243) como: “1 Represen-
tação de palavras ou ideias mediante o uso de sinais. 2 Aquilo que se
escreve”. A partir disto, propõe-se alguns questionamentos: pode-se es-
gotar as definições de escrita a partir destas palavras apenas? Somente
desta forma deve-se pensar o processo de escrita? De que outras formas
pode-se tensionar a refletir sobre a escrita e suas formas de existência?

70
Além disso, o que a escrita realmente produz? Estas e outras questões
iniciais servirão como guia neste emaranhado de reflexões propostas.
Então, dentre novas formas para conceber a escrida pode ser
pensá-la enquanto escritura. Um conceito que o filósofo Roland Barthes
(1915-1980) pensa como a escrita que se refere a inscrição que surge do
texto no leitor e do leitor no texto. Desta forma, precisa-se pensar a es-
crita permeada pela leitura, sendo esta pensada como um processo que
extrapola o sentido de contaminação. E assim, a leitura para Barthes é
fundamentalmente, ato de inscrição, ou seja, escritura, “prática que
possibilita o autoconhecimento e a autocrítica da linguagem, respei-
tando as infinitudes do texto que se lê e do que se está a escrever, mo-
mento também constitutivo de fazer literário” (VIVIAN, 2015, p.25). Se-
gundo Barthes (2004), assim se desvenda o ser total da escritura, onde:

“Um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas


e que entram umas com as outras em diálogo [...]; mas há um lugar
onde essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, [...] o
leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se
perca, todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade do
texto não está em sua origem, mas no seu destino [...] a obra é um
fragmento de substância, ocupa alguma porção do espaço dos livros.
Já o texto é um campo metodológico. [...] o texto mantém-se na lingua-
gem: ele só existe tomado num discurso” (BARTHES, 2004, p.64-67).

Assim, pode-se pensar leitor e texto em um diálogo, e sendo as-


sim constituindo uma relação, deste modo quando se pensa uma rela-
ção, sabemos que não existe uma absoluta plenitude, mas uma relação
que gera tensões e afetos. Porém, aí que está uma das partes mais ricas
neste processo, pois o texto estabelecendo uma relação dialógica a partir
das diferenças com o leitor, constitui-se como um meio que projeta no-
vos significados e pode atualizar sentidos (VIVIAN, 2015). Com isto,
retomando a escritura nesse terreno da relação, pode-se pensar que ela
se realiza, não pelo aprofundamento ou investigação dos significados do
texto, mas sim pelos sentidos simbólicos que são despertados, descen-
tralizados e infinitos (VIVIAN, 2015).
Diante disso, tencionando sobre o leitor, se faz necessário pen-
sar o leitor que também em algum momento foi escritor, em algum mo-
mento ocupou outro espaço ou até mesmo estes dois espaços simultane-
amente. Assim, considera-se importante quando a autora Ilse Vivian

71
(2015) traz que “a dinâmica da escritura impulsiona o leitor à constru-
ção de sentidos que dão transparência a sua existência, o que o conduz
constantemente a novas interrogações sobre si mesmo e, com isso,
abrem-lhe novas possibilidades de modos de ser” (2015, p.30). Desta
forma, compreende-se a escritura enquanto um processo significativo
para a subjetividade de cada singularidade, como um processo que
(re)constitui e transforma, transcendendo meros significados impostos
a escrita e a leitura.
O que a leitura propõe “não é a intenção de outro sujeito, pre-
sumivelmente escondido por trás do texto, mas o projecto de um mundo,
a proposição de um modo de ser no mundo, que o texto desvela diante
de si mesmo” (RICOEUR, 2011, p.131). Então, segundo Vivian (2015),
é nesse sentido que a leitura pode se constituir enquanto proposição
existencial, um processo onde na medida em que a escritura se consti-
tui, através de estranhamentos, concordâncias, desconfiança, apropria-
ções, pactos, suspensões, prolongamentos e rupturas, pode-se estabele-
cer um lugar de deslizamentos entre múltiplos e distintos universos.
Vê-se também a necessidade de falar sobre algo que de certa
forma faz parte da escrita e escritura, que é a linguagem. A linguagem
vem para realizar a mediação entre texto e leitor, assim é o que está
entre o que se lê e o que fica inscrito em si mesmo. Sendo assim, a lin-
guagem nunca é neutra (VIVIAN, 2015), pois muito mais que um mero
instrumento de mediação, pode ser pensada como um fluxo importante
pelo qual se atravessam diversos sentidos.

“A linguagem não solicita apenas o que ela mesma produz e, de outro


modo, não produz apenas o que lhe é solicitado. Ela é transgressão de
si mesma, quando, no ato da leitura, é dissimulação, desconstrução,
pluralidade, descontinuidade, ou seja, quando lhe escapam por entre
sentidos rastros que fogem às estruturas internas ou a qualquer sig-
nificado que lhe possa ser imposto por alguma lógica absoluta” (VI-
VIAN, 2015, p.27).

Neste sentido tão potente, Barthes (2004) traz muito a impor-


tâncida do papel da literatura de representar ativamente a soberania
da linguagem frente à instituição científica (BARTHES, 2004). Neste
ponto a escritura “implica a ideia de que a linguagem é um vasto sis-
tema em que não se privilegia nenhum código ou, se preferir, nenhum

72
é considerado central e seus departamentos mantêm relação de hierar-
quia flutuante” (BARTHES, 2004, p.10). Este é um conceito muito sig-
nificativo que o autor traz, pois acaba com a questão da delimitação da
linguagem imposta pela ciência. E nesse mesmo ponto, o autor traz que
a escritura pode abrir o espaço completo da linguagem, pois diferente-
mente do discurso científico que quer ser um código superior, a escri-
tura quer ser um código total (BARTHES, 2004). Portanto, o filósofo
Jacques Derrida (2011) auxilia a entender isto quando diz que:

“A escritura é desabrigada da concepção de totalidade, ou seja, vai de


encontro ao movimento histórico que sempre teve como intenção “con-
firmar a escritura numa função segunda e instrumental: tradutora de
uma fala plena e presente (presente a si, a seu significado, ao outro
[...]), intérprete de uma fala originária que nela mesma se subtrairia
à interpretação” (DERRIDA, 2011, p.9).

A escritura não é, portanto, derivação, mas isso só é possível


porque jamais houve a “linguagem natural” da qual ela derivaria ou,
mais veementemente ainda, corromperia. Tería-se que imaginar uma
“arquiescritura” da qual a linguagem seria produto – e a metafísica oci-
dental, inspirada no logos, trataria de impor o recalcamento do seu du-
plo (a escritura) com o propósito de reduzir sua diferença. Trata-se, por-
tanto, de um movimento interno a esta arquiescritura da qual deriva o
desejo da “fala plena” ou do “pensamento absoluto” (DERRIDA, 2005,
p.69). De modo semelhante, o filósofo Giorgio Agamben (2006) identi-
fica que a linguagem está situada em um “não lugar” entre a voz e a
Voz, da qual diferiria o som que vem do animal e a voz humana, respec-
tivamente. Seu fundamento seria, portanto, meramente negativo, um
“nãolugar” que se estabelece negativamente em relação à voz, mas essa
negatividade deve ser entendida como potência, uma vez que mobiliza
diferentes vozes e linguagens, que não se efetuam na mesma dimensão,
mas sim em seus tensionamentos e desconstruções.
Portanto, a noção de escrita que atravessa, Barthes, Derrida e
Agamben não separa a escrita da fala, da voz. A escrita, no sentido es-
trito, permanece evidentemente secundária, mas ela só pode ser secun-
dária porque a língua original “natural” nunca existiu: foi sempre, ela
própria, uma construção que possibilita uma comunicação. Esse con-
ceito procura se deslocar da oposição binária, propondo uma inscrição
geral independente das escritas particulares, que usualmente se opõem

73
à fala. A escrita não se refere somente à inscrição, mas à possibilidade
de inscrição. Nesse sentido, a escrita não é um derivado gráfico, poste-
rior à fala, mas a possibilidade de articulação entre fala e escrita, como
um traço de articulação e comunicação.
Por conseguinte, a escrita é concebida como um sistema de tra-
ços e o essencial dessa formulação é que o traço não deriva de uma pre-
sença, o que faria dele uma marca empírica. O traço implica a retenção
da diferença numa estrutura em que a diferença aparece como tal. Afir-
mar que a diferença se apresenta como tal, significa que ela mesma se
apresenta como diferença e não como presença de uma diferença. Nesse
caso, a escrita se instaura pela diferença não como uma identidade, nem
tampouco a diferença entre duas identidades.

SEGUNDO TRAÇO - A ESCRITA COMO PRÁTICA DE SI:


TECENDO AMARRAÇÕES SINGULARES

Neste segundo momento, propõe-se pensar a escrita enquanto


prática de cuidado de si, conceito este trazido por Michel Foucault para
introduzir a relação de subjetividade estabelecida entre sujeito e ver-
dade (WANZELER, 2011). Para alcançar este conceito Foucault retor-
nou aos gregos, onde para eles a noção de cuidado de si era fundamen-
tada pela ideia de “epimeleia heautou”. Sendo esta, considerada uma
atitude geral, uma forma de atenção ou de algumas ações pelas quais
as pessoas, enquanto seres humanos, acabam assumindo, modificando,
purificando, se transformando e se transfigurando. “Tratava-se de um
conjunto de preceitos e práticas que funcionavam como exercícios, defi-
nindo os destinos na história da cultura, da filosofia, da moral e da es-
piritualidade ocidentais” (WANZELER, 2011, p.10-11).
Diante disso, muito do conceito do cuidado de si, foi pensado
através de Sócrates (470 a.C. - 399 a.C.) pela famosa frase “conhece-te
a ti mesmo” e por isso, baseia-se muito pela busca do conhecimento de
si, busca pela verdade. Assim, alegava-se que o conhecimento de si era
considerado um suporte ao conjunto rico e denso de noções, práticas,
maneiras de ser e formas de existência propostas pelo autor (WAN-
ZELER, 2011). Com isto, pode-se pensar o cuidado de si como forma de
liberdade, pois a partir do momento que se tensiona a si mesmo, se toma
consciência de suas verdades enquanto sujeito. Dessa forma, Foucault
buscou pensar um “sujeito de subjetividade”, ou seja, pensar “quais

74
eram as formas e as modalidades da relação consigo mesmo, por meio
das quais o indivíduo se constituía e se reconhecia como sujeito” (FOU-
CAULT, 2006(b), p.195).
A noção do cuidado de si pensada por Foucault (2006) na leitura
entre os gregos e romanos deve ser compreendida como um dever, uma
obrigação fundamental e um conjunto de procedimentos. Constituindo-
se este como o problema central em torno do qual Foucault se colocou.
Deste modo, “do ponto de vista filosófico, significa ter cuidados com a
alma, com a verdade e com a razão. Nesse sentido, estuda princípios,
práticas e relações do cuidado de si a partir de experiências” (WAN-
ZELER, 2011, p.16). E é desde este ponto que se pensou que pode-se
analisar a escrita enquanto uma experiência que pode ser compreen-
dida como um campo de reverberações da experiência, ponderando esta
enquanto um instrumento potente para mobilizar muitas histórias de
vida e consequentemente a possibilidade de acessar a si próprio. A ex-
periência da escrita assim, pode entrar em contato com o conhecimento
de si, refletindo sobre a trajetória de cada um e todos os atravessamen-
tos que os constituem. Isto se legitima também a partir do momento em
que “a preocupação de Foucault na sua tarefa de desvelar a história do
pensamento do cuidado de si reside em poder definir as condições nas
quais o ser humano problematiza o que ele é, o que faz e o mundo em
que vive” (WANZELER, 2011, p.28).
Enquanto sujeito de ação no cuidado de si, Foucault pensa a
alma, pois esta encontra-se numa posição, de certo modo singular,
sendo uma forma transcendente do sujeito em relação ao que o rodeia,
aos objetos de que dispõe, bem como aos outros com os quais se relaci-
ona, ao seu próprio corpo e a ele mesmo (FOUCAULT, 2006). Para
tanto, ele traz a importância de ocupar-se consigo, e isso significa ocu-
par-se enquanto se é “sujeito de certas situações”, podendo ser sujeito
da ação instrumental, sujeito de relações com o outro, sujeito de com-
portamentos e atitudes em geral, sujeito da própria relação consigo
mesmo. É dessa forma, por ser esse sujeito que se deve estar atento
consigo mesmo.

“Com efeito, a partir do momento em que incide sobre a alma en-


quanto sujeito, o cuidado de si poderá distinguir-se muito claramente
de três outros tipos de atividades que, também elas, podem passar,

75
mas não o são cuidados de si: primeiramente a do médico, em se-
gundo lugar a do dono da casa, em terceiro a do enamorado” (FO-
CAULT, 2006, p.72).

Sendo assim, pode-se pensar a partir da perspectiva de que o


médico se ocupa do corpo e não da alma, e em vista disso no cuidado de
si o indivíduo ocupa-se com sua alma enquanto sujeito. E ao ocupar-se
consigo mesmo o sujeito ocupa-se com o objeto de si mesmo (FOU-
CAULT, 2006(c)). Portanto, quando se faz essa aproximação entre me-
dicina e moral, segundo Foucault (2006), o que deve-se observar é a
ideia de reconhecer-se como doente ou ameaçado pela doença. Assim, o
homem deve reconhecer-se como indivíduo imperfeito, ignorante e que
precisa ser corrigido, formado e instruído. Deve reconhecer-se também
como indivíduo que sofre certos males e que está em estado de necessi-
dade (WANZELER, 2011). Sendo assim, todas as pessoas enquanto su-
jeitos passíveis e suscetíveis aos males da atualidade, acabam adoeci-
das, afogadas em sentimentos conturbados e precisando de um meio
que possibilite encontrar fugas para estes percalços. Nesse caso, “o cui-
dado de si se dá, então, em função da necessidade de correção e de re-
paração, isto é, do restabelecimento de um estado que talvez nunca te-
nha existido, mas cujo princípio é indicado pela natureza” (WAN-
ZELER, 2011, p.55). Para isto, Foucault (2006(d), p.116) traz que
“mesmo na fase adulta, podemos nos corrigir. Mesmo se nos enrijecer-
mos, existem meios de nos endireitarmos e de nos tornarmos o que po-
deríamos ter sido e nunca fomos”.
É importante ressaltar que Foucault (2006), no período de es-
tudo do conceito do cuidado de si, aponta como práticas de si, os meca-
nismos de existência experimentados pelos sujeitos em sociedade. As-
sim, essas práticas estão envoltas em certa “cultura de si”, cujos jogos
entre o verdadeiro e o falso vão conformando o ser e oferecendo discur-
sos de existência. Estes se constituem historicamente como experiência,
podendo e devendo ser pensados para sua realização (FOUCAULT,
2006(b)). Portanto, as práticas podem ser entendidas como “formas e
modalidades da relação do indivíduo consigo mesmo, por meio das quais
ele se constitui e se reconhece como sujeito” (WANZELER, 2011, p.64).
Ademais, Foucault (2006) também enfatiza que a necessidade de pôr
em prática uma tecnologia de si, tem como objetivo o acesso à verdade,
enquanto vontade de verdade. Portanto, no contexto desta proposta de

76
pesquisa a escrita pode se constituir enquanto uma prática do cuidado
de si significativa para se entrar em contato com a verdade, neste caso,
pensando esta como as vivências, como a trajetória singular, como a
verdade que cabe a cada um quando entra em contato com o conheci-
mento de si.
Deste modo, o olhar que irá ser dirigido a si mesmo indica “os
movimentos que se dão no pensamento, as representações que nela apa-
recem, as opiniões e os julgamentos que acompanham estas represen-
tações, as paixões que agitam o corpo e a alma” (FOUCAULT, 2006(b),
p.555). Sendo assim, o exercício de si se constitui num olhar que “per-
mite à razão, em seu livre arbítrio, observar, controlar, julgar e estimar
o que se passa na sucessão das representações e das paixões” (WAN-
ZELER, 2011, p.88).
Diante o exposto, chegou-se a compreensão da escrita enquanto
um processo que possibilita exercer uma prática de cuidado de si, fa-
zendo com que se busque o autoconhecimento, a verdade, exercendo
uma atenção voltada a própria subjetividade e suas infinitas formas de
existir. Para tanto, ressalta-se de que esta pesquisa propõe se utilizar
de escritas singulares de mulheres para pensar este processo, sendo as-
sim, porque o ser mulher? Porque justamente a escrita de mulheres
dará sustentação para a pesquisa? Para pensar sobre isso buscou-se em
Virginia Woolf e Simone de Beauvoir algumas inspirações que mobili-
zassem a importância de se recorrer às mulheres. Então, primeira-
mente propõe-se a reflexão sobre este excerto da biografia de Simone de
Beauvoir (2009), escrita em 1963:

“Eu disse como esse livro [O segundo sexo] foi concebido; quase fortui-
tamente, querendo falar de mim, percebi que precisava descrever a
condição das mulheres […] Tentei pôr em ordem no quadro, à primeira
vista incoerente, que se ofereceu a mim: em todo caso, o homem se
colocava como o Sujeito e considerava a mulher como um objeto, o Ou-
tro. […] Um dos mal-entendidos que meu livro suscitou foi que se pen-
sou que nele eu negava qualquer diferença entre homens e mulheres:
ao contrário, ao escrevê-lo medi o que os separa; o que sustentei foi
que essas dessemelhanças são de ordem cultural e não natural. Contei
sistematicamente como elas se criam, da infância à velhice, examinei
as possibilidades que este mundo oferece às mulheres, as que lhes são
recusadas, seus limites, suas oportunidades e faltas de oportunidade,
suas evasões, suas realizações” (BEAUVOIR, 2009, p.210-211).

77
Deste modo, a autora elucida o que propôs em uma de suas
obras quando trouxe que as mulheres eram consideradas como o “ou-
tro”, ou seja, não sendo consideradas em sua representatividade en-
quanto sujeito, assim como os homens da época. Nessa mesma obra ci-
tada, O Segundo Sexo (1980), ela faz uma análise profunda, conside-
rando tanto a opressão sofrida pelas mulheres, quanto as suas dificul-
dades em se desvencilharem dos laços que as prendem a tal situação. A
autora compreende que, ao longo dos tempos, a mulher assumiu esse
lugar do outro, da pura alteridade com valoração negativa, onde sua
identidade é determinada pelo homem (SANTOS, 2010). Ademais, a
sua afirmação “Não se nasce mulher, torna-se mulher” vem acompa-
nhada da explicação de que “nenhum destino biológico, psíquico ou eco-
nômico define a forma que a mulher ou a fêmea humana assume no seio
da sociedade” (BEAUVOIR, 1980(b), p.9). Mas, ela também traz que a
dimensão humana é sempre paradoxal, tendo em vista que “o homem
que constitui a mulher como um outro encontrara nela profundas cum-
plicidades” (BEAUVOIR, 1980, p.15).
No mesmo caminho de Beauvoir, Virgina Woolf (2012, p.9), em
seu artigo “Profissões para mulheres” busca desmistificar o feminino e
resume a si mesma como “uma jovem num quarto com um tinteiro”.
Com esta frase ela acaba descartando uma essência pré-determinada
de mulher do lar, imposta pela cultura patriarcal, e faz de si o que es-
colheu, uma escritora. Este fato toma maior proporção ainda, quando
ela sugere o mesmo a outras mulheres lançando a elas a possibilidade
de escolha, elucidando que cada uma deve fazer algo de sua existência
e que isso diz respeito somente à própria vontade, e, portanto, não há
ninguém além de si mesma que possa saber o que será feito (OLIVA,
2013). Neste sentido, Simone de Beauvoir em sua questão “O que é uma
mulher?” (BEAUVOIR, 2009, p.15), “sintetiza bem a negação das impo-
sições destinadas ao feminino, e abre às mulheres possibilidades para
construírem cada uma o seu futuro” (OLIVA, 2013, p.240).
Então trazendo um pouco das reflexões apresentadas por essas
mulheres, via-se que enquanto um homem era livre para se entregar à
sua imaginação e escrever o que quisesse e sentisse, às mulheres viviam
uma realidade diferente, com alguns assuntos e vontades lhes sendo
vedados (OLIVA, 2013).

78
“Falando sem metáforas, ela pensou numa coisa, uma coisa sobre o
corpo, sobre as paixões, que para ela, como mulher, era impróprio di-
zer. E a razão lhe dizia que os homens ficariam chocados. Foi a cons-
ciência do que diriam os homens sobre uma mulher que fala de suas
paixões que a despertou do estado de inconsciência como artista. [...]
Isso creio é uma experiência muito comum entre as mulheres que es-
crevem – ficam bloqueadas pelo extremo convencionalismo do outro
sexo. Pois, embora sensatamente os homens se permitam grande li-
berdade em tais assuntos, duvido que percebam ou consigam contro-
lar o extremo rigor com que condenam a mesma liberdade nas mulhe-
res” (WOOLF, 2012, p.16-17).

Logo, o problema para Woolf não está no ato de escrever, na


capacidade e potencialidade, mas sim, no que impede a mulher de es-
crever: “Por dentro, penso eu, a questão é muito diferente; ela ainda
tem muitos fantasmas a combater, muitos preconceitos a vencer” (WO-
OLF, 2012, p.17). Portanto, estas questões muitas vezes podem acabar
pesando muito mais do que doenças e limitações físicas, sendo que lutar
e vencer preconceitos e fantasmas, como a autora diz, pode-se tornar
um fardo muito mais pesado de se carregar. Sendo assim, contribuindo
com o ponto de vista de Beauvoir, pode-se pensar que a definição da
mulher pelo homem em relação a ele mesmo, não permite que a mulher
experiencie totalmente a viagem de um escritor à imaginação e retorne
em suas linhas (OLIVA, 2013).

“Todo indivíduo que se preocupa em justificar sua existência a sente


como uma necessidade indefinida de se transcender. Ora, o que define
de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser
humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num
mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. Pretende-
se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência
será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e
soberana. O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação
fundamental de todo sujeito, que se põe sempre como o essencial, e as
exigências de uma situação que a constitui como inessencial. Como
pode realizar-se um ser humano dentro da condição feminina? Que
caminhos lhe são abertos? Quais conduzem a um beco sem saída?
Como encontrar a independência no seio da dependência? Que cir-
cunstâncias restringem a liberdade da mulher, e quais pode ela supe-
rar?” (BEAUVOIR, 1980, p.23).

Ressalta-se que não se trata aqui de responder as questões


acima trazidas por Beauvoir, mas sim, buscar agenciamentos possíveis

79
nestas proposições, tecendo o intuito de formular uma possibilidade de
liberdade para as mulheres que possa se mobilizar pela escrita. Mulher!
Singularidade de resistência que luta pelos seus direitos básicos a tan-
tos anos, e que por meio de suas palavras busca-se elucidar o processo
da escrita diante de suas dimensões simbólicas de potência e práticas
de cuidado de si. Desse modo, a utilização de livros escritos por mulhe-
res nesta proposição, buscará legitimar ainda mais este lugar de resis-
tência, buscando movimentar a percepção de todos acerca da importân-
cia que a escrita pode ter quando está em mãos de mulheres potentes,
transformando-as e trazendo novos meios de existência.

TERCEIRO TRAÇO - A ESCRITA COMO UM DISPOSITIVO DE


INTERVENÇÃO NO CAMPO DA PSICOLOGIA: POSSIBILIDA-
DES DE COMPOSIÇÕES TRANSDISCIPLINARES

Nesta última parada se faz necessário refletir sobre tudo o que


já foi exposto aqui e ir além, pensando a escrita enquanto um disposi-
tivo potente para utilização no âmbito da Psicologia. Primeiramente é
preciso retomar a escrita, enquanto escritura (BARTHES, 2004), en-
quanto ato de inscrição do leitor no texto e vice versa, indo além do mero
ato de passar uma caneta sobre um papel, mas um ato que auxilia ao
sujeito revisitar e expressar algo de si. Desta forma, pode-se pensar que
o que há de si na escrita é o que há de sagrado numa escritura, mas não
no sentido de algo intocável. “Uma escrita é posta em jogo para ser lida,
destruída, reconstruída, perdida, encontrada. A escrita fica à deriva,
nesse mar de tantos sentidos que há no mundo. Outros virão e tomarão
nossa escritura como quiserem” (SILVEIRA, FERREIRA, 2013, p.258).
A escrita ao possibilitar a leitura e seus desdobramentos, atra-
vés de produções escritas por mulheres dimensiona a composição da
análise deste estudo. Estas produções apresentam livros compostos por
escritas de si, sendo que “as escritas de si são os escritos de afetos, das
afecções nascidas no encontro com a “experiência mestiça” de habitar o
mundo” (SILVEIRA, FERREIRA, 2013, p.259). Percebe-se assim, a es-
crita como uma possibilidade poética no campo da Psicologia, uma vez
que quando se passa a vê-la desta forma, podem-se encontrar novos mo-
dos de expressão, novas formas de viver e existir no mundo, revisitando
e reinventando processos de subjetivação de potência de vida.

80
Por conseguinte, compreende-se a escrita como um instrumento
privilegiado de escuta de si mesmo, pois trabalha com as marcas que os
ares do tempo imprimem no corpo afetivo do sujeito (ROLNIK, 1993).
Nesse sentido, a escrita constituindo-se então como um dispositivo que
permite pensar sobre o que afeta e transborda em cada um, pode se
estabelecer como um lugar onde o sujeito pode cuidar de si (FOU-
CAULT, 1984/1985), aliviar-se, recompor-se, para voltar a enfrentar o
mundo. Seguindo por este viés, Rolnik (1993) proporciona a ideia de que
a escrita trata as “marcas-ferida”, aquelas cuja experiência produz no
sujeito certo estado de enfraquecimento da potência de agir, e que então
pode encontrar na escrita outro sentido, como uma nova alternativa e
novo lugar para caber na singularidade do ser. O que “equivaleria a
dizer: tratar-se no escrever” (SILVEIRA, FERREIRA, 2013, p.257).
A Psicologia, enquanto uma área das ciências humanas, pro-
cura compreender a existência humana, estudar suas singularidades,
estabelecendo por vezes o objetivo de facilitar a convivência consigo
mesmo e com o outro, através de subsídios que auxiliem este objetivo
de lidar com as experiências da vida, de entender e dar conta da vida
cotidiana (TELES, 1989). Desta forma, as autoras aqui enquanto sin-
gularidades ativas da Psicologia buscaram compreender as dificuldades
que atender as demandas de quem busca este Campo suscita. Pois, os
psicólogos (as) acabam escutando muitos relatos, histórias que por ve-
zes mexem com as próprias histórias de vida de si mesmo, e por vezes
acabam marcando-os e os deixando sobrecarregados com o peso de es-
cutar tanto e guardar para si. Sendo assim, “a escrita pode ser uma
importante forma de fazer visível, especialmente o trabalho psi, ques-
tão que é sempre difícil para nós, dar um corpo, uma materialidade ao
nosso trabalho” (SILVEIRA, FERREIRA, 2013, p.255). Seja esta uma
escrita em forma de diário de bordo ou apenas escritas sobre as suas
vivências, mas, por exemplo, “uma experiência tão íntima como a de
escrever sobre um caso clínico revela uma forma de fazer própria a clí-
nica, aquilo que seria nosso, que somos nós enquanto profissionais”
(SILVEIRA, FERREIRA, 2013, p.258).
A escrita pode ser um meio de se entender muitas vezes aquilo
que no momento em que ocorreu deixou afetações, ou para poder lem-
brar e revisitar as histórias que estão sendo compartilhadas. Assim,
quando se direciona ao processo da escrita, se passa a habitar um novo

81
mundo. Neste sentido, um mundo do fazer Psicologia, de múltiplos olha-
res ocupados em desprenderem-se dos sentidos prontos, estando sem-
pre em um processo constante de vir a ser. “A escrita tem também esse
caráter incontrolável: ao começar a escrever nunca sabemos por qual
caminho o texto irá, o que também nos aproxima dos processos terapêu-
ticos que acompanhamos” (SILVEIRA, FERREIRA, 2013, p.257-258).
Posto isto, a escrita pode potencializar a apropriação das práticas psi e
também a criação de um corpo simbólico para os entendimentos teóricos
de cada um.
Pensando com relação aos pacientes que buscam a Psicologia, a
escrita também pode se constituir enquanto um instrumento possível
de utilização. Afinal, se para os psicólogos (as) pode ser uma forma de
desafogar o que está os exaurindo, para os pacientes podem-se ter di-
versos efeitos terapêuticos. É importante que o sujeito possa narrar sua
própria história por vezes indizível pela língua falada e assim, é neces-
sário encontrar outras formas de habitar esta produção.

“[...] Nossa própria existência não pode ser separada do modo pelo
qual nós podemos nos narrar. É contando nossas histórias que nos
damos uma identidade. [...] E não há muita diferença se essas histó-
rias são verdadeiras ou falsas: tanto a ficção quanto a história verifi-
cável são construções identitárias” (RICOEUR, 1985, p.213).

Portanto, cada sujeito é repleto de características, vivências e


uma história singular, sendo importante que estes possam entender e
olhar para si próprios. É como se cada sujeito fosse feito de um emara-
nhado de coisas, de linhas que os envolveriam, do corpo, dos amores, do
trabalho, das relações, da escola, enfim, dos diversos atravessamentos
que os constituem. Para isto, o sujeito se faz e se desfaz o tempo todo.
Já o olhar que se constrói enquanto psicólogos (as), pode consistir em
ver e sentir esse emaranhado de linhas que agenciam uma singulari-
dade, questionando algumas quando se percebe que é algo possível, tra-
çando uma reinvenção em seus movimentos.

“O trabalho do (a) psicólogo (a) consistiria em acompanhar esses pro-


cessos, perceber as mudanças em sua capacidade de expressão da pró-
pria vida, por vezes emprestar palavras. Por vezes acolher, deixá-lo
ficar num espaço vazio, protegido do mundo. Assim também pode ser
o trabalho de propor uma escrita. Seria como oferecer um lugar para
o outro” (SILVEIRA, FERREIRA, 2013, p.256).

82
Consequentemente, no que diz respeito, ao trabalho ético do
psicólogo (a), não cabe a este julgar a escrita dos sujeitos, mas sim, uti-
lizar este método como um dispositivo de apoio frente aos processos de
constituição de si, de cuidado de si. A escrita é um modo de comunica-
ção, um meio que pode ser explorado das mais diversas formas, tra-
zendo assim o objetivo deste ensaio ao buscar explorar as infinitas pos-
sibilidades deste instrumento na Psicologia e na Educação.
Neste sentido, com a realização deste ensaio buscou-se compre-
ender e elucidar o processo da escrita enquanto um dispositivo perti-
nente para a significação de vivências na área da Psicologia em sua in-
terlocução com o campo da Educação. Nesse sentido nos mobilizamos a
refletir sobre uma escrita que pode ser importante para a narração de
histórias e constituição de identidades de distintas singularidades. As-
sim, trazer o quanto a escrita pode dimensionar práticas de si no campo
da Psicologia e da Educação, significa delinear a história daqueles que
chegam até estes espaços, desafogando as experiências que afetam e
que deixam os próprios atuantes da área emaranhados e por vezes sem
saber o que fazer, como algo pertinente a todo e qualquer ser humano.
Por fim, através do amparo teórico em Roland Barthes, Michel Fou-
cault, Giorgio Agamben, Jacques Derrida; Simone de Beauvoir e Virgi-
nia Woolf, esperamos ter conseguido produzir uma sustentação teórica
coesa e que faça sentido ao leitor que acompanhou este trajeto.

83
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Bottman.

87
88
CULTURAS JUVENIS NAS REDES SOCIAIS

Karina Dias Silveira22

Este artigo apresenta a possibilidade de pensar as redes sociais,


em especial o Instagram23, como campo de aprendizado para além das
relações virtuais estabelecidas. A tentativa de reflexão pautada por este
espaço que possibilita interação por meio das imagens, através da pro-
posta metodológica de um grupo focal24, visou apreender, a partir da
visão dos jovens sujeitos que transitam por estes espaços, a forma pela
qual se relacionam socialmente utilizando as redes que os aproximam
de pessoas as quais se dispõem a seguir, e de uma infinidade de imagens
que partem de outras realidades.
Estes jovens25, ao se conectarem ao Instagram, se veem frente
a diversas figuras sociais – digitais influencers26 , cantores, celebrida-
des, blogueiros e blogueiras, que se estabelecem como referenciais,
construídos com a colaboração das imagens (fotografias digitais, ima-
gens de cultura de massa, ícones de beleza e comportamento) – perpas-
sando seu cotidiano. Neste sentido, baseada na lógica do capitalismo
contemporâneo, a sociedade se firma hoje sobre uma imensa rede de
processamento digital, metabolizando forças vitais, lançando e relan-

22 Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) Li-


nha de Pesquisa LP4 - Educação e Artes, pela Universidade Federal de Santa Maria.
Mestra em Educação (2017), pelo PPGE - LP4 - Educação e Artes, pela UFSM; Especia-
lista em Gestão Escolar - Orientação e Supervisão (2016), pela UBM; Graduada em Artes
Visuais - Licenciatura Plena em Desenho e Plástica (2013), pela UFSM.
23 O Instagram é uma rede social baseada em imagens, que permite aos usuários a publi-

cação de fotos e vídeos de curta duração. Dentro da plataforma, os usuários podem aplicar
efeitos nas fotos, bem como interagir com os demais, por intermédio de comentários e
curtidas. Além disso, um usuário pode seguir o outro para poder acompanhar suas posta-
gens e atividades dentro da rede.
24 Grupo focal participante da dissertação de Mestrado “@essanaosou_eu: Um estudo so-

bre as culturas juvenis nas redes sociais”, de Karina Dias Silveira, defendida em 2017,
sob orientação do prof. Dr. Marcelo de Andrade Pereira.
25 Estudantes do ensino médio noturno de uma escola estadual da cidade de Santa Maria,

com faixa etária entre 17 a 20 anos, que acessam a rede social Instagram com grande
frequência ao dia.
26 Influenciadores digitais – figuras as quais são amplamente seguidas e compartilham

conteúdo digital (de autoria própria ou publicitária) dentro das redes sociais.

89
çando constantemente ao mercado novos produtos, serviços e subjetivi-
dades (SIBILIA, 2015). Podemos considerar que subjetividades passam
a se produzir junto à cultura digital a partir do momento mesmo em
que estes jovens buscam os referenciais dentro dessa cultura de massa,
de certa forma inconscientemente, acabando por reproduzir certos pa-
drões arquétipos e tipos humanos virtualizados que visam produzir co-
letividades e inseri-los a um grupo.
Outro viés que concomitantemente acompanha este jovem são
suas vivências escolares. Sibilia (2012, p. 52) nos interpõe a seguinte
colocação:

Para começar, então, se a atmosfera em que estamos imersos mudou


tanto, caberia retomar aqui a pergunta central: para que precisamos
de escolas agora? Ou melhor, o que gostaríamos que esse artefato fi-
zesse com os corpos e as subjetividades que todos os dias transitam
por seus domínios, cada vez mais cheios de grades e tentativas de con-
trole? (SIBILIA, 2012, p. 52)

Ao buscar situar um lugar para a escola nos dias de hoje, reto-


mando as considerações de Sibilia, indago: para que precisamos dela na
atualidade? Se antes as escolas buscavam por formar sujeitos em for-
matos moldados às necessidades da sociedade industrial, pautada em
um ideal normativo, hoje os novos sujeitos, que vivem as intensidades
do mundo conectado ainda se veem diante de uma mesma estrutura
pedagógica de ensino.
Para a autora, o que passa a se observar é a perda de eficácia
de sua oferta, na medida em que a mesma se encontra em desajuste
com o que os jovens buscam se aproximar nos dias de hoje (SIBILIA,
2015). Mesmo que talvez em certo descompasso com o que experimen-
tam online, a escola os auxilia na construção de suas subjetividades.
Este jovem, que transita em suas fases de vida – muda, habita, desa-
bita, vai, vem, volta, troca, é, deixa de ser – percorre diferentes cami-
nhos para se constituir como sujeito. Porém, nos dias de hoje, até que
ponto estes lugares são constituídos por ele? Seriam lugares que ele de-
seja habitar, e que ele supõe construir – ou lugares culturalmente cons-
truídos?
A tecnologia, atualmente utilizada por estes jovens de diferen-
tes formas, a partir do uso de seus próprios celulares, computadores,
tablets, abriga plataformas para os processos de conectividade, bem

90
como é fonte para busca de informações, de aproximação com imagens,
vídeos, jogos, sites de busca, sendo um agente facilitador do seu cotidi-
ano e de inscrição no espaço social. Ao situarmos a realidade social cons-
truída a partir da década de 1990, com a popularização dos meios ele-
troeletrônicos, e a criação de dispositivos que eram capazes de propor-
cionar a troca de mensagens textuais, neste período foi dado início a um
outro tipo de construção inter-humana, que têm nestes fluxos digitais
emergentes seus principais interesses e ponto de partida.
A geração de jovens que nasceu a partir deste período construiu
diferentes maneiras de interação com o outro, configurando a conectivi-
dade como sua aliada nos processos de interatividade, convivência e,
neste sentido, na plasmação de outros modos de relação espaço tempo-
ral. Portanto, hoje buscamos entender a lógica de uma indústria cultu-
ral momentânea que gera potencialidades intencionais de consumo
para criar novas condições humanas, onde as pessoas se sintam atraí-
das e pertencentes a um determinado grupo (COELHO, 2006).
A mídia, concebida como ferramenta primordial da indústria
cultural, comunica-se inerentemente aos produtos da própria indústria,
com um poder de persuasão capaz de despertar o desejo de consumo nas
pessoas. Compartilhamos, desta forma, a ideia da utilidade dos próprios
sujeitos, tomados como consumidores de si e do outro, que se firmam
nas teias das redes sociais.
Face à estas referências, os jovens expõem em seus perfis ima-
gens e recortes de uma vida. Coexistem, vida na escola e vida online.
Castells (1999) aponta que não somos os mesmos desde que nos encon-
tramos nas redes sociais, visto que estas nos contaminam de variadas
formas. Por meio deste novo modo de se expor, que possibilita encontros
com imagens diversas, estamos sujeitos a nos configurar de novas ma-
neiras. Talvez que estas novas configurações revelem sujeitos mais
abertos à exposição nas redes, visto que se trata de um cenário que pos-
sibilita a apresentação de recortes. Conforme Cardon (2012, p. 47),

os novos internautas, mais jovens, menos diplomados e sociologica-


mente diversos, agruparam-se em nichos de proximidade para conver-
sar, zombar, difundir informação, valorizando sua identidade. Atra-
vés dessas microfalas, muito mais próximas da troca verbal do que da
publicação de um artigo, eles se apropriaram da Internet como espaço
social de um tipo particular. Essa Internet da conversação desempe-
nhou um papel decisivo na democratização dos usos dela feitos. Os

91
novos internautas aproveitaram do fato de que a Internet não era ape-
nas uma ágora “muito pública”, mas também um local onde suas colo-
cações não seriam submetidas aos critérios tradicionais de seleção.
Por outro lado, foram inseridos no “paradoxo da privacy”, expondo-se
livremente ao mesmo tempo que desejam não ser vistos por todos.

Além de ser um local “muito público”, o viver nas era das redes
sociais traz a questão de poder ser quem se quiser ser. Diante das pos-
sibilidades de filtrar, os jovens podem se expor tendo por parâmetro
padrões previamente estabelecidos, que facilitam o contato social den-
tro destes espaços. Todavia, devemos considerar as questões que dispa-
ram nos jovens a vontade de se tornarem visíveis, de consumo de pro-
dutos de moda, aparelhos de tecnologia de ponta, estilos de vida, e atu-
alizações – para que possam continuar fazendo uso de diferentes apli-
cativos em seus celulares, entre outras inovações que são oferecidas,
questões essas disparadas pelas redes sociais.
Proporcionando um espaço interacional aos jovens, o dispositivo
é situado por Agamben (2009, p. 40) como termo remete a “qualquer
coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, de-
terminar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as con-
dutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”. No entendimento
do filósofo italiano, “ao ilimitado crescimento dos dispositivos no nosso
tempo corresponde uma igualmente disseminada proliferação de pro-
cessos de subjetivação” (AGAMBEN, 2009, p.41).
Frente ao dispositivo redes sociais, os jovens se percebem diante
de espaços que os convidam a se produzir enquanto sujeitos, visando
preencher determinados formatos sociais e digitais nele presentes.
Neste sentido, proponho como linha condutora para a escrita deste ar-
tigo, pensar: como estariam funcionando os processos de construção
subjetiva, a partir das vivências destes jovens no âmbito da rede social
Instagram?
Pensar nas imagens hoje validadas pelos jovens, sua relação
com as redes sociais e o espaço escolar é o anelo central da presente
escrita. Neste sentido, busco observar como esses sujeitos jovens se edu-
cam diante e por tal realidade vivida dentro das redes, indagando como
têm acontecido a dinâmica em relação àquilo que validam em seus per-
fis em redes sociais, de modo a entender como constroem imagens tendo
em vista aquilo que é socialmente [melhor] aceito.

92
Bauman (2008, p. 08) afirma que “todas as sociedades são fábri-
cas de significados”. Valendo-se desta afirmativa, proponho tratar: o
que os impinge a mostrar esses recortes de si? Buscam com qual finali-
dade aplicar filtros nas imagens que produzem? Ao considerar a possi-
bilidade de tornar-se visível publicamente, o jovem tem dentro das re-
des sociais a possibilidade de mostrar – dentro do formato que desejar
– a realidade por ele produzida, não necessariamente vivida ou cotidi-
ana, uma realidade de exceção, que suspende o laço necessário do pare-
cer com seu referente real. Baseada em referências suas ou no que julga
melhor aceito dentro da rede, este jovem tem dentro do seu próprio per-
fil a possibilidade de mostrar um mundo moldado a seus critérios. Para
Cardon (2012, p. 53),

de um ponto de vista simplesmente quantitativo, essa atração pelas


redes sociais mudou profundamente as relações nas telas digitais.
Não são mais uma porta aberta para um mundo de documentos frios
e longínquos, mas uma janela viva para nosso cotidiano. Essa inserção
da Internet na sociabilidade dos indivíduos e também em sua sociabi-
lidade reflete a transformação sociológica desses públicos. De fato, a
dinâmica das redes sociais se caracteriza pela chegada massiva, na
Internet, de uma população muito mais jovem e oriunda de meios po-
pulares.

O jovem, dentro das redes sociais, conta com diversas formas


para parecer ser – figura inventada ou real, destacando-se aquele que
consegue a maior aceitação do público, diante de “likes”, as famosas op-
ções de curtir do Instagram. Desta forma, podemos entender que cada
vez mais a hierarquização dentro da Internet tem dado ênfase a certos
conteúdos em detrimento de outros, em função do que têm maior escala
de visualização, considerados “válidos” ou “melhores” para serem assis-
tidos/seguidos.
Neste sentido, podemos considerar que assim iniciam as valida-
ções disseminadas nas redes sociais. O que um sujeito de grande in-
fluência digital, que comumente é chamado de digital influencer, pu-
blica na web, acaba por virar fenômeno – tanto de aceitação como de
rejeição. Conforme Sibilia (2016, p. 38),

as ‘celebridades da internet’ que, sem fazerem nada em particular,


mas aquilo que todos costumam fazer – exibir sua vida e seu corpo nas
redes sociais -, conquistam muitos seguidores e, portanto, despertam

93
o interesse das empresas, que lhes oferecem dinheiro para postar fotos
promovendo seus produtos de modo mais ou menos velado. Quanto
mais honesto pareça esse gesto – ou seja, quanto menos óbvio seja o
fato de que a pessoa está sendo paga para isso -, mais interessante
será para a companhia investidora, pois o que funciona mesmo nesse
tipo de marketing encoberto são as recomendações supostamente de-
sinteressadas de um ‘amigo confiável’.

Ao se ter em vista esses tipos de interesses, os jovens são cerca-


dos de influências digitais diversas, vindas de diferentes sujeitos que
buscam interferir neste contexto virtual, de forma a fornecer conteúdos
de sua ordem de interesse, ou de interesses subjacentes aos seus, de
ordem maior. Para Cardon (2012, p. 76),

[...] o risco dessa informação conversacional é de que, subjetivamente,


ela seja guiada apenas por rumores do dia ou estratégias inspiradas
por novas técnicas de marketing. Certos tratamentos de informações
na Internet são testemunhas dessa tendência: a corrida pela informa-
ção que faz a economia do aproveitamento, o interesse sem fim dos
blogueiros por anedotas em evidência, a multiplicação de julgamentos
de gosto sobre personalidades e vedetes, a circulação febril de rumo-
res, as querelas narcisistas dos utilizadores do Twitter, etc.

Neste sentido, pode-se afirmar que algumas das imagens dentro


dessa rede social funcionam despertando desejos, sejam elas nas mais
variadas formas para que se consiga tal fato. Porém, cabe lembrar que
é do interesse do próprio usuário a função de seguir quaisquer sejam as
figuras, que exercem ou não este tipo de função dentro do Instagram.
O que segue, diante da realidade hoje veiculada pelas redes so-
ciais, é que cada jovem assume papel único frente ao que vive – movi-
menta seu perfil, se adequa às propostas de funcionamento e faz com
que o círculo das redes sociais continue sendo alimentado. Perante este
fato, surge como ponto de reflexão: “as tecnologias digitais de comuni-
cação e informação possibilitaram o avanço de um novo regime de po-
der: aquele que converteu você, eu e todos nós nas personalidades do
momento” (SIBILIA, 2016, p. 47).
Esta afirmação leva-nos a compreender que o sujeito jovem e
‘personalidade do momento’ tem em seu perfil no Instagram a possibi-
lidade de mostrar, a quem quiser ver, seu recorte de realidade. Cabe,
assim, a questão de como essa dinâmica têm acontecido e dentro disso,
as formas pela qual o mesmo se ‘educa’ e procura seus próprios sentidos

94
frente à vasta quantidade de imagens que passa por seus olhos, em um
simples correr do feed27 das pessoas que segue.
Desta forma, tomando como pontos centrais as redes sociais, o
dispositivo (AGAMBEN, 2009), os jovens, as imagens, os estudos cul-
turais e a cultura visual, busco dentro deste ambiente de conexões pen-
sar como as imagens passam a fazer sentido na vida dos jovens. Pode-
mos considerar o dispositivo rede social como uma esfera de ação na
qual os jovens se fazem presentes não apenas por sua própria vontade
e interesse, mas como imperativo para a inscrição no espaço social con-
temporâneo.
Neste sentido, a dinâmica que a seguir será descrita dentro
deste artigo, parte da dissertação de mestrado por mim elaborada, foi
pensada e realizada de forma a acompanhar o movimento das redes.
Aconteceu em um primeiro momento presencialmente, em um encontro
junto ao grupo focal participante, e, posteriormente, foi sendo desenvol-
vida de forma online, dentro do perfil @essanaosou_eu28, dentro do Ins-
tagram.
Penso que para discutir as questões aqui presentes, a inserção
no ambiente online teve especial importância, pois pude perceber o
quanto as interações que lá acontecem são pensadas, cuidadas. Ao me
aproximar dos dez participantes do grupo focal através do perfil @essa-
naosou_eu, pude acompanhar suas postagens, entender suas opiniões,
de modo a constatar o quanto estes sujeitos são capturados por essa
dinâmica das redes sociais.
Diante da centralidade do papel da imagem dentro desta pes-
quisa, procuro elucidar a forma pela qual faço uso do termo, a partir de
Joly (2009, p. 61), que pensa a imagem como “uma mensagem visual
composta de diferentes tipos de signos, o que equivale [...] a considerá-
la como uma linguagem e, portanto, como um instrumento de expressão
e de comunicação”. Ou seja, quer ela seja expressiva ou comunicativa,
constitui sempre uma mensagem para o outro, mesmo quando este ou-
tro é o próprio autor da mensagem.

27 Chama-se de feed o lugar onde se agrupam todas as imagens postadas por uma deter-
minada pessoa dentro do Instagram.
28 Perfil criado no Instagram, onde os participantes interagiam junto à pesquisadora, res-

pondendo à algumas questões dentro do próprio aplicativo.

95
Estudos Culturais e Cultura Visual

Em seguimento à discussão proposta, elenco aqui como um dos


conceitos que perpassam a possibilidade de uso das redes sociais como
campo de pesquisa –
os Estudos Culturais. Abordando neste artigo esta perspectiva, que
abriga as diversas possibilidades de aprendizagem diante da cultura,
sugiro a ideia da construção de conhecimento perante a realidade inte-
rativa, embasando as questões do aprender junto às redes sociais. Neste
sentido, para Costa (2004, p. 13)

[...] os Estudos Culturais, ao operarem uma reversão nesta tendência


naturalizada de admitir um único ponto central de referência para os
estudos da cultura, configuram um movimento das margens contra o
centro. Sua principal virtude talvez seja a de começar a admitir que a
inspiração possa advir de qualquer lugar, contribuindo para desfazer
os binarismos tão fortemente aderidos às epistemologias tradicionais.
Assim, é preciso admitir que está em atividade, neste final de século,
um novo campo de estudos que se apresenta como politicamente muito
atraente e promissor, e que se esboça conectado às variadas concep-
ções e práticas que vêm marcando os contextos destes tempos.

Abrindo um leque de possíveis referências para o estudo da cul-


tura, os Estudos Culturais tratam dos diferentes espaços que subsidiam
a construção de conhecimento, sendo um destes as redes sociais. Estes
espaços, na medida em que acompanham as vivências contemporâneas
dos sujeitos, fazendo parte de seu cotidiano, podem direcionar suas es-
colhas e passam a contribuir em suas construções socioculturais.
Sardar e Van Loon (1998) definem cinco pontos para aproxima-
ção com os Estudos Culturais. O primeiro deles diz respeito à noção de
que um dos objetivos dos Estudos Culturais é o de mostrar as relações
entre poder e práticas culturais, buscando uma forma de expor como o
poder atua modelando estas práticas. Conforme apontado pelos auto-
res, o desenvolvimento dos estudos da cultura acontece de forma a ten-
tar captar e compreender toda a sua complexidade no interior dos con-
textos sociais e políticos. Portanto, a cultura tem uma dupla função: ela
é, ao mesmo tempo, o objeto de estudo e o local da ação e da crítica
política, e está atrelada a uma avaliação moral da sociedade.
Alinhada à perspectiva aqui abordada, vinculo o campo da Cul-
tura Visual e sua relação com as imagens. Considerando que o ambiente

96
das redes sociais pode ser entendido dentro dos Estudos Culturais como
espaço de trocas e aprendizagem, o campo da Cultura Visual entra
nesta mescla conceitual frente às relações e tencionamento diante das
imagens. A Cultura Visual, entendida como

[...] campo de fronteiras difusas, demarcado muito mais por esboços


inacabados, referências dialogais (por vezes vociferações) do que pro-
priamente por marcos conceituais precisos, delineadores, que possam
resultar em alguma instalação minimamente confortável. Filiada aos
Estudos Culturais, estabelece estreita relação com as discussões de-
correntes da chamada virada cultural, ou cultural turn, quando as
análises econômicas, políticas e sociais enveredaram rumo às inter-
pretações culturais. (MARTINS, 2016, p. 177)

Nesse sentido, a própria Cultura Visual nos oferece um campo


de estudos que sugere o exercício de problematização de conteúdo. Por
meio de seu viés problematizador, temos a possibilidade de discutir a
imagem e seu valor, questionando o que estas visualidades trazem de
nós, buscando compreender o que nos faz sentido a partir de cada uma
delas. No contexto aqui assumido, a Cultura Visual foi abordada como
campo teórico que discute as imagens e subsidia as questões subjacen-
tes aos Estudos Culturais. Para Hernandez (2013, p. 92),

em um mundo dominado por dispositivos da visão e tecnologias do


olhar, a finalidade educativa que proponho com a pesquisa com e so-
bre as imagens a partir da cultura visual é explorar nossa relação com
as práticas do olhar, as relações de poder em que somos colocados, e
questionar as representações que construímos de nossas relações com
os outros, pois, ao final, se não podemos compreender o mundo e in-
tervir nele, é porque não temos a capacidade de repensá-lo e oferecer
alternativas aos relatos naturalizados.

Justamente pelo viés de desnaturalizar o que já está instituído


dentro das redes sociais, e em busca de deslocar o olhar desses jovens
frente ao que as imagens comunicam, é que o presente artigo se vincula
ao campo educacional. A Cultura Visual, no que tange às imagens, abre
um leque de possibilidades para problematizações acerca das mesmas,
para que estas possam de fato assumir sentido aos jovens.
Abordar o contexto da Cultura Visual implica em “considerar
que as imagens e outras representações visuais são portadoras e medi-
adoras de significados e posições discursivas”, como aponta Hernandez

97
(2011, p. 33). Ou seja, as imagens deixam de ser apenas meros artefatos
representacionais, pois passam a condensar ou exprimir os posiciona-
mentos dos sujeitos que as experimentam, quer como produtores, quer
como consumidores e são, em muitos casos, determinados e condiciona-
dos por elas. Filho (2016, p. 109) situa que

os dias de hoje, comumente ditos e vistos como o tempo do domínio da


imagem visual e da virtualidade, são marcados pela profusão e disse-
minação veloz e voraz das visualidades. A predominância da imagem
visual, produzida e consumida nas mesmas intensidades e velocida-
des, tem desafiado a educação, na medida em que também lhe cabe,
na mediação e condução dos processos de formação, refletir sobre as
consequências, possibilidades, benefícios e riscos intrínsecos a essa tal
‘era das imagens’.

Na tentativa de refletir, justo pelo viés educacional, sobre o que


estas imagens têm transmitido à estes jovens, que a proposta da reali-
zação da oficina junto ao grupo focal tomou força e sentido. Para Mar-
tins (2015, p. 23), “a cultura visual discute e trata a imagem não apenas
pelo seu valor estético, mas, principalmente, buscando compreender o
papel social da imagem na vida da cultura”. Ou seja, tencionar as ques-
tões culturais e políticas defendidas pelo viés dos Estudos Culturais
dentro do campo da Cultura Visual é dar o devido poder às imagens,
discutindo-as de forma a ampliar significações que as mesmas possam
estar carregando.

A pesquisa na provisoriedade

Pesquisar dentro das possibilidades das redes sociais é lidar


com provisoriedades, com construções constantes. É caminhar, transi-
tar sobre conexões vívidas e cheias de intensidades. Foi percorrido um
caminho onde não são possibilitadas bases sólidas para afirmações: es-
tas por hora podem valer, mas que talvez, em seguida, estarão sujeitas
à substituição por outras perspectivas.
No universo das possibilidades de uma análise de conteúdo, des-
taca-se a busca pelo significado das mensagens, baseados na descrição,
análise e interpretação das mesmas, buscando o sentido que possa estar
por detrás das palavras (SEVERINO, 2007). A análise de conteúdo pos-

98
sibilita com que os dados, originados a partir de perguntas, via entre-
vistas ou depoimentos, configurem indicadores significativos de resolu-
ção frente à própria questão de pesquisa.
Assim sendo, o presente artigo pontua sobre a dinâmica de um
grupo focal, dentro de uma proposta de trabalho denominada oficina,
onde foram gerados dados e interações aqui apresentados. De acordo
com Gatti (2005, p. 30), o grupo focal é entendido como um espaço que
possibilita a compreensão dos processos de construção da realidade por
determinados grupos sociais, na tentativa de entender suas práticas co-
tidianas, comportamentos e atitudes, se firmando assim como uma téc-
nica importante para o conhecimento de representações, percepções e
valores prevalentes no trato de determinado aspecto, relevantes ao pro-
blema de estudo.
A autora complementa ainda que o grupo focal permite com que
sejam obtidas perspectivas diferentes sobre a mesma questão, dando
lugar a compreensão das ideias partilhadas e dos modos pelos quais os
indivíduos se influenciam diante dos demais (GATTI, 2015, p.30). Por
meio desta abordagem, pontuando sobre as questões de investigação
propostas, se fez necessário estabelecer de que modo esta temática po-
deria ser investigada no conjunto de suas ações. Para tanto, passo a
explicar os procedimentos metodológicos atrelados à pesquisa reali-
zada.

Grupo focal, oficina e as reflexões sobre as dinâmicas das redes

A partir de uma dinâmica trabalhada em formato de oficina,


junto a um grupo focal de 10 jovens, estudantes do ensino médio, com
faixa etária entre 17 a 20 anos, da cidade de Santa Maria, realizou-se
um encontro presencial dentro da escola frequentada pelos mesmos,
composto pelas seguintes etapas: assistência de dois vídeos e prospec-
ção sobre a atividade seguinte, que realizou-se online dentro do Insta-
gram da pesquisa, o @essanaosou_eu.
Na primeira parte da sequência proposta, foram apresentados
dois vídeos aos estudantes. O primeiro deles, publicado em 12 de abril
de 2016, pela Kerith Lemon Pictures, que questiona – “Are you living

99
the life that you post?”. Intitulado como “A social Life”29 , o vídeo de 1
minuto e 5 segundos que mostra a realidade de uma jovem chamada
Meredith, que está vivendo a vida que sempre sonhou, no entanto, ape-
nas no âmbito virtual, online, em seu perfil de uma rede social. Dentro
de sua casa, Meredith aparece como alguém entristecida e preocupada
tão somente com o que suas publicações vão gerar de comentários entre
seus amigos. Ela se esforça para viver uma vida equilibrada: ficar em
forma, trabalhar duro e se conectar com amigos, porém um dia ela
acorda e percebe que seu reflexo é meramente a coleção de fotos que ela
compartilhou com os outros. Essa é a sua vida? Ou apenas uma marca
impressa na rede social com muito cuidado? A resposta a esta questão
já foi de antemão dada.
O vídeo, pensado na perspectiva de quem se conecta excessiva-
mente junto às redes, questiona este tipo de comportamento, e aborda
algumas questões frente ao que se pode chamar de imagem desejada
dentro de uma rede, e a própria realidade da situação em que o sujeito
se encontra fora dela.
O segundo vídeo, publicado em 2 de junho de 2014, por Higton-
Bros, sob o título “What's on your mind?”30 traz a seguinte indagação
diante do contexto das redes sociais: elas podem ser deprimentes por-
que a vida de todos os outros é melhor do que a sua... mas são vidas
reais?
Com a duração de 2 minutos e 35 segundos, o vídeo narra a vida
de um jovem, que ao se deparar com imagens de seus amigos felizes
dentro de uma rede social, acaba por tentar simular estes momentos,
para que também possa postá-los, mesmo que sua realidade não se as-
semelhe a deles e sequer em relação à forma como de fato vive. Sentado
na sala em um lado do sofá, e sua namorada na extremidade oposta,
jantando comida requentada, posta a seguinte frase “sushi with my girl
tonite!!!” para compartilhar seu momento feliz com os amigos. Em uma
sequência de acontecimentos que beiram mais a tragédia do que a feli-
cidade, o protagonista do vídeo narra sua vida, que na realidade anda
em uma fase muito difícil, o que contrasta significativamente com o que

29 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=GXdVPLj_pIk>. Acesso em maio de


2017.
30 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=QxVZYiJKl1Y>. Acesso em maio de

2017.

100
posta dentro de sua rede social, que apenas enfatiza o quanto incrível é
a sua vida.
Neste sentido, a proposta da oficina se firmou na ideia do debate
frente às visualidades assistidas, onde cada participante abordou suas
ideias diante do conteúdo dos vídeos. A segunda parte da proposta com
o grupo focal tratou da interação online com o Instagram da pesquisa.
A ideia de que a pesquisa tomasse seu formato em dois momentos foi ao
encontro do que considerei constituir conectividade com a vida destes
jovens. Além disso, optei pelo uso de um espaço digital onde os jovens
pudessem interagir com a proposta, e responder de forma facilitada ao
que lhes era perguntado.
Na sequência das atividades propostas, os participantes inicia-
ram a seguir, dentro da rede social Instagram o perfil @essanaosou_eu,
para que neste espaço respondessem à dez questões, que forneceram
elementos à discussão do problema da pesquisa. Cada questão foi lan-
çada no perfil @essanaosou_eu, e foi solicitado que fossem respondidas
na forma de comentário, abaixo de cada foto/pergunta. Aos que aceita-
ram a proposta de participar da oficina, foi informado que o perfil da
pesquisa também passaria a os seguir, para desta forma se aproximar
de suas postagens dentro das redes. Abaixo elenco as questões que em-
basaram a atividade proposta.

De que imagens seriam compostas seu Instagram?


Que tipos de filtros são aplicados por você, neste contexto?
Quanto a imagem pode afirmar, validar, ou até duvidar do que é aceito
por você?
Por que mostrarmos esses recortes?
Buscamos com qual finalidade aplicarmos filtros em nosso dia a dia, e
os colocar na rede, à prova de aprovações e desaprovações?
Podemos dizer que existe um filtro aplicado por nós, com base no que
acreditamos ser “o melhor” a ser mostrado?
O que podemos afirmar diante de tantas imagens... que essas tem valor
maior, sobre as que não foram postadas?
E esse nosso julgamento de valor, surge de onde?
Por que acreditamos que essas imagens podem dizer mais do que ou-
tras?
Que filtros de valor acabam por estar entranhados junto à elas, sem que
sequer pairamos para pensar diante de tais questões?

101
Desdobramentos da pesquisa

Para análise e discussão da proposta trabalhada na oficina, foi


utilizada a análise de conteúdo para apreensão acerca dos resultados,
visto sua preocupação diante do caráter subjetivo dos dados da pes-
quisa. Bardin (2016) afirma que os objetivos básicos da análise do con-
teúdo são a superação da incerteza sobre a leitura feita do objeto de
estudo, tornando-a válida, assim como a busca pelo enriquecimento da
leitura, aprofundando a compreensão do significado do assunto tratado
e, com isso, gerando a pertinência das inferências que serão originadas.
Não obstante, o processo de compreensão diante da realidade
analisada junto a este grupo de jovens, baseou-se em uma análise te-
mática que visou primordialmente recolher subsídios de ordem subje-
tiva, apresentados ou representados nas narrativas textuais dos parti-
cipantes. A análise temática consistiu na identificação dos temas recor-
rentes que geram significado para os dados da pesquisa (BARDIN,
2016). Ou seja, nesta metodologia de análise foram elencados os ele-
mentos chave que apareceram nas falas dos sujeitos pesquisados.
Estas narrativas reverberaram significações, que foram apre-
endidas e agrupadas sob a forma de categorias. Foram elencadas de
acordo com a quantidade de vezes que aparecem na fala, e devido a sua
singularidade no contexto inserido. Desta forma, foram divididas entre:
padrões, filtros e formas de ser visto. A primeira delas – padrões – en-
tendida pela perspectiva de Adorno (2002, p. 9), quando assinala que
“os clichês seriam causados pelas necessidades dos consumidores: por
isso seriam aceitos sem oposição”, neste sentido forjando necessidades
e desejos, dissemina pelas tecnologias digitais o que a indústria cultural
define como necessário.
Dada a necessidade de se sentirem inseridos dentro do contexto
das redes sociais, os jovens se utilizam da imagem para que seja fir-
mada esta relação. Aumont (1993, p. 78) afirma que a produção das
imagens jamais é gratuita, e que neste sentido, sua fabricação em fun-
ção de determinados usos passa por dentro da questão – “para que que-
remos que elas sirvam?”. Diante dos certos fins pelos quais são produ-
zidas – propagandas, informações, ideologias em geral – a sua vincula-
ção a um domínio simbólico faz com que a mesma possibilite processos
de mediação entre espectador e realidade.

102
Dentro destes processos mediados, temos a segunda categoria
elencada na análise dos dados – os filtros –, abordados a partir de Au-
mont (1993), o qual afirma que as imagens agem sobre o espectador.
Desta forma se pode entender que o sujeito recebe influência diante das
imagens com as quais se relaciona, e neste sentido passa a fazer uso de
seus critérios de seleção e filtragem (AUMONT, 1993).
As formas de ser visto aqui são entendidas a partir de Sibilia
(2016), uma vez que a mesma situa que diante das relações que hoje se
mercantilizam ao serem mediadas por imagens, triunfa um modo de
vida baseado no parecer, nas aparências e a transformação de tudo em
mercadorias.
Dentro das proposições de análise elencadas, a seção a seguir
apresenta a pesquisa realizada junto aos estudantes, localizando seus
pontos de contato e possíveis desdobramentos diante das questões de
padronizar, filtrar e das formas de ser visto.

Conectividade e imagens: por uma perspectiva questionadora

Dentro das redes sociais, são infinitas as referências, os pontos


de vista, as maneiras oferecidas de poder ser, e diante destas questões,
este jovem sujeito precisa se situar em um entre. Entre a escola e entre
as imagens com as quais se relaciona na rede, entre do que lhe sugerem
como melhor opção, e entre o que o mesmo entende como uma melhor
opção para si. Ao considerar todas as possibilidades que as redes sociais
oferecem, a interação a partir de imagens tem sugerido novas formas
de estes jovens relacionarem-se com o mundo. Ninguém passa por uma
imagem sem que por elas não se afete (AUMONT, 1993).
Discutindo sobre as novas possibilidades de aprender, o artigo
intitulado Communicating to Connect—Reaching Today’s New Fami-
lies, de Jeanette McCulloch e Amber McCann, publicado em maio de
2017 pelo Journal of Human Lactation, situa as novas formas de conec-
tividade, apontando que a nova geração tem duas características fun-
damentais em comum: eles todos acreditam que o seu modo de ver o
mundo está certo, e eles todos querem respeito diante da forma pela
qual veem o mundo. Assim, apontam que diante do entendimento frente
os valores secretos que os jovens mantêm, poderíamos aprender mais
sobre como eles aprendem, e desta forma efetivamente poder ajudá-los,
bem como prover educação e suporte durante as suas experiências com

103
base na conectividade (McCULLOCH; McCANN, 2017). Diante desta
nova forma conectada de se relacionar com o mundo, possibilitar com
que os jovens operem questionamentos e uma postura reflexiva frente
às imagens encontradas nas redes sociais parece ser um caminho para
que estas relações aconteçam de forma mediada.
Para tanto, as discussões realizadas junto aos estudantes na
oficina proposta para a pesquisa, puderam suscitar nestes jovens novas
formas de pensar em relação ao que vivem no âmbito da rede social
Instagram. Dentro da escola, a dinâmica realizada oportunizou minha
aproximação com suas opiniões diante do uso das redes sociais e suas
possíveis formas de filtrar a realidade. Em uma roda de conversa infor-
mal, os alunos foram pontuando suas opiniões frente às dinâmicas so-
ciais do Instagram, e neste sentido iam discutindo sobre “a realidade
das redes sociais soar falsa”, por saberem que o que lá é postado nem
sempre condiz com a realidade – ao menos, não a realidade na acepção
de referente factual.
Quando questionados sobre quem são as figuras que seguem
dentro desta rede, mencionam que são “conhecidos ou amigos, dicas de
maquiagem, famosos, páginas de tatuagem, de marcas de luxo, de
moda, de comida, páginas de academia, de futebol, páginas de times, de
jogadores”. Estes são seus principais disparadores de conteúdo, são os
perfis os quais seguem e veem diariamente as imagens por eles posta-
das.
Ao discorrerem sobre o que mostram dentro das redes sociais,
um participante descreve – “mas é que assim né, a pessoa tem a rede
social, pode tirar 5 fotos, ela vai selecionar a melhor e vai pegar e vai
dar uma ajeitadinha na foto e daí vai postar, e daí geralmente a pessoa
posta a mais bonita e tem gente que posta né, mas pra ganhar curtida,
ou sei lá, tem disso. É querer mostrar uma imagem boa”. Foram nestas
falas, e nas respostas às questões dentro do próprio Instagram que sur-
giram as categorias abaixo elencadas.

Padrões

O padrão foi um tópico recorrente na fala dos alunos participan-


tes da oficina, pois os mesmos pontuaram que dentro do Instagram exis-
tem determinados padrões a serem seguidos. Foram citados tanto pa-
drões em relação a comportamentos, quanto em relação às imagens, as

104
quais devem ser sempre “bonitas, coloridas, com contraste, para chama-
rem atenção”, afinal “a gente vai postar o que repercute mais, o que eu
penso que vai repercutir mais”.
Ao citarem que preferem postar imagens que remetam a uma
“vibe cool e bem de vida”31 – assumem que este seria o padrão esperado
dentro do Instagram. Porém, ao mencionarem estar postando “coisas
aleatórias, coisas minhas, de momentos” estão simplesmente mos-
trando suas imagens, sem pensar criticamente sobre as escolhas que
foram feitas ao postar.
Neste sentido, o momento da oficina funcionou para que eu pu-
desse também problematizar pontos de vista diferentes dos quais os es-
tudantes apontavam, visto que os mesmos, no decorrer de suas falas,
acabavam pontuando que realmente a lógica das redes sociais os “influ-
enciava a postarem coisas que nem sempre faziam parte de suas vidas”.
“Quando eu vou no melhor canto da casa, coloco a minha melhor roupa
de marca e tiro umas 17 fotos, para aí escolher uma, eu faço o que es-
peram que eu faça dentro do Instagram”.
Diante de tais colocações, expresso o quanto o formato das ima-
gens lá dentro expostas valorizam determinadas realidades, tal como a
“vibe cool”, que determina que todos os momentos postados são momen-
tos felizes, quanto o “bem de vida”, que disparou nestes jovens a vontade
de mostrar o melhor recorte possível de quem são, para expor na rede.

Filtros

Possibilidades diversas são as que os filtros nos oferecem – no


sentido de recorte, de invenção de um novo formato, de uma nova cor,
de um novo contexto para o que se deseja mostrar. Um filtro pode servir
como uma peneira, separando o que deve ou não ser visto, moldando as
imagens ou realidades em conformidade com as necessidades do con-
texto em que serão expostas.
A própria palavra filtrar já nos serve em diversos sentidos, se-
jam eles literais ou metafóricos. Quando usamos este termo, estamos a
nos referir que será executada uma separação de partes. O que eu filtro

31 Pode-se entender o termo como passar uma imagem feliz.

105
eu separo, seleciono, escolho uma parte em detrimento de outra. A pa-
lavra em si já nos denota diferentes possibilidades dentro de algo que
era inteiro, e agora será filtrado, para que adquira um novo formato.
“Para mim, a palavra filtrar já remete a tirar o melhor daquilo”,
e por isso, para estes jovens, “algumas imagens podem estar aparen-
tando momentos que não vivemos realmente, ou aparências que verda-
deiramente não são nossas”. Aumont (1993, p. 111), falando sobre a
imagem e o efeito do real, define que este conceito tanto “com intuito de
crítica ideológica quanto com intuito psicológico”, pode situar o especta-
dor como regulador do investimento na imagem. Ou seja, além de um
próprio filtro existente na imagem, existe a intensidade pela qual o su-
jeito que a vê interage e a interpreta.
Frente às imagens, são de diferentes ordens as conexões que
passam a ser estabelecidas – baseadas no contexto do expectador. Neste
sentido, os jovens, ao se inserirem na realidade do Instagram, perpas-
sam por imagens filtradas e moldadas a um formato que valoriza certas
formas de se mostrar, pois “sim, no Instagram existem muito mais fil-
tros de comportamento. Pq eu não posso postar uma foto fazendo qual-
quer coisa, em qualquer lugar, pq julgam por isso”.
Ainda, neste sentido, uma das jovens que participou da pes-
quisa considera – “acho que no Instagram o que aparecem mais mesmo
são os filtros de comportamento. Porque cada um acaba postando as
imagens que todo mundo posta, para não se sentir excluído do con-
texto”. Ao pensar a partir das suas colocações, pode-se entender que
para além das questões diante de postar o que é esperado dentro de
uma rede social, em função de determinados comportamentos padroni-
zados, o que colabora na manutenção destes formatos moldados são as
questões de sentirem-se inseridos em determinado contexto. Diante da
situação, precisam acabar se encaixando para que se sintam como par-
ticipantes de tal realidade virtual.
Para outra participante, a opinião foi de que sim, “acho que fil-
tro de comportamento existe, mas sem se dar conta. Acabo postando o
que todos postam, pra não ser diferente”. Neste sentido, as respostas
dos estudantes indicam certa consonância com o que lhes é ofertado, em
termos de imagem, e poucas formas de questionar esta realidade pre-
determinada. As questões simbólicas vinculadas à imagem, baseadas
no seu contexto de produção e cultura inserida, delineiam o quanto a

106
sociedade, ao se utilizar desta interação visual pode disseminar ques-
tões subjetivas junto a sua veiculação.

Formas de ser visto

De fato, a pesquisa pensada dentro das conexões em rede da


atualidade não busca por estudar estabilidades, mas sim compor com
variáveis e variados comportamentos e sujeitos. Segundo Sibilia (2015,
p. 63)

As tecnologias [...] da atualidade, por exemplo, estão reduzindo cada


vez mais a possibilidade de permanecer oculto, alheio ao controle, fora
do alcance das redes. Não só porque não é mais possível se esconder,
mas, sobretudo, porque ninguém mais parece desejar fazê-lo – muito
pelo contrário, aliás.

Frente a quase o que se possa chamar de impossibilidade à re-


sistência, muitas vezes sequer se desejando resistir aos chamados digi-
tais, os jovens aqui citados buscam situar-se onde os respingos de uma
vida em trânsito, entre conexões, encontram um espaço onde possam
olhar para si e entender que é necessária uma pausa, um momento
offline, para poder enxergar com certo distanciamento o que vivem.
“É que quando tem Internet né, tá tudo ali. Mas não é a mara-
vilha que postam. As coisas ruins ficam todas guardadas. Mas eu acho
que o que a gente faz não pode ficar como vitrine, e isso depende de cada
um”. Se em determinado momento vivenciar o que a ferramenta possi-
bilita pode soar em bom tom, o que deve ser analisado é a questão de
aceitar que existem imagens que neste espaço possam aparecer e soar
como indicadoras de formas de ser. Neste sentido, ao responder que “a
gente acaba postando a foto mais bonita pra receber mais curtidas, mas
não que a que não foi postada tenha um valor menor”, pode-se perceber
que o posicionamento, na maioria das vezes, é no sentido de acabar ce-
dendo à dinâmica ali presente em função de um “gosto comum” que
acaba sendo validado por estes jovens.
Neste sentido, ainda pensando nas possibilidades diversas de
se filtrar no Instagram, uma jovem responde que: “acho que o filtro
ajuda muito a deixar ambientes mais agradáveis e mais bonitos mesmo.
As pessoas querem mostrar que estão vivendo momentos legais em lu-

107
gares bonitos, ou que estão mais bonitas”. Penso que este seja o mo-
mento em que entram as questões relativas a um ponto muito impor-
tante dentro das discussões da pesquisa. As questões relativas ao que-
rer mostrar, e desta forma dar funcionamento ao dispositivo, funcionam
“porque agora estamos todos ‘livremente’ conectados [...]. E exercemos
essas práticas com devoção cotidiana, o tempo todo, porque querermos
e por que isso nos agrada” (SIBILIA, 2015, p. 177).
O mostrar tornou-se agradável e necessário. O que antes não
existia necessidade de ser mostrado, hoje é postado em função talvez do
parecer cool, e de acordo com a sociedade conectada em que se vive. É
na esteira deste entendimento que Sibilia (2016, p. 58), situa que exis-
tem limites

para as possibilidades criativas desse eu que fala e se mostra en-


quanto vai se construindo. De fato, o narrador de si não é onisciente e
nem tudo pode inventar a seu respeito, pois muitos dos relatos que
dão espessura ao eu são inconscientes, involuntários e até mesmo con-
traditórios ou indesejados. E, além disso, boa parte desses discursos
se origina fora de si, já que os outros também os narram. E, como se
sabe, os outros não são apenas o inferno mas também costumam ser o
espelho, e possuem a capacidade de afetar a própria subjetividade dos
modos mais diversos.

Entender que por muitas vezes estes movimentos possam acon-


tecer de forma involuntária é importante dentro deste contexto, pois por
muitas vezes o que acaba sendo feito dentro de uma rede social é o sim-
ples movimento de cópia, mas que envolve muito mais questões subje-
tivas dentro da realidade destes jovens.

Considerações finais

Pensar a educação a partir das diversas novas relações vividas


por estes jovens atravessados por redes, conectados, que são convidados
ao mundo das visualidades, não é tarefa fácil. Também, de certa forma,
buscar respostas sólidas neste momento em que estamos nos configu-
rando frente à novos formatos dentro das redes surge como uma pro-
posta que arrisca fracassos e refutações. Sugiro que, neste sentido, to-
dos nós possamos considerar que hoje são poucas as certezas a serem

108
afirmadas. São poucos os lugares de onde eu, como pesquisadora, e es-
ses sujeitos jovens, como protagonistas destas redes, podemos apontar
algumas pistas e firmar certas ideias, pois diante da fluidez das redes
são sempre possíveis novos caminhos.
Entender que os protagonistas destas redes se situam dentro
delas como meros participantes é uma forma muito rasa de aproxima-
ção. Os movimentos ali pensados de forma alguma podem ser entendi-
dos como simples, pois “já que todos estão, eu posso estar também”.
Penso que a questão esteja para além deste pensamento, pois o aceite
aos irresistíveis convites de se viver dentro das redes quase que já não
recebem negações. Agamben (2009) nos situa como sujeitos frente aos
dispositivos, porém cabe a nós a percepção de quanto estes dispositivos
acabam por reverberar em nossas ações. Estaríamos nós, frente a uma
tentativa de entender processos de utilizar os dispositivos de forma
apropriada, sendo isso algo impossível a ser feito? De fato, se nos gui-
armos pelas assertivas de Agamben, não existe uso correto. Nesse sen-
tido, pontua que o dispositivo tem em si a própria faculdade de aprisio-
namento.
Então, nesta tentativa de de dentro deste próprio aprisiona-
mento, gerar novas formas talvez mais pensadas de olhar para o que se
está produzindo, e procurar as reverberações disso, seja mais arriscado
ainda. Bem, de certa forma não existe mais tempo e nem lugar para nos
situarmos em lugares alheios ao dispositivo, pois vivemos em uma soci-
edade conectada que nos sugere adequação a este novo modo de ser.
Porém, neste sentido, penso que, mesmo de dentro, podemos sugerir
movimentações que possam soar de forma positiva frente à realidade
que têm perpassado as redes sociais. Se o viver dentro das redes, se o
expor acaba por ser a nova forma de se relacionar como o mundo, que
possamos realizar tal tarefa de forma consciente.
Estamos simplesmente fazendo o dispositivo rede social girar,
ou pelo contrário, estamos fazendo com que o dispositivo ganhe cada
vez maior dimensão e acabe por ser a força de nossa realidade? Diante
do que até aqui pude perceber, os jovens convidados para a pesquisa
tratam a ideia da dinâmica das redes sociais como algo exterior a si.
Como pude observar, os jovens pensam que talvez sim, que suas
ideias possam colaborar com conformidades dentro da rede social ana-
lisada, porém de certa forma se sentem alheios a isso. Quando levados
a pensar, e ao perceberem que fornecem o que a rede social os convida

109
a trazer, situam que estão simplesmente deixando o exterior falar mais
alto. Estão deixando os recortes que são convidados a postar, sem con-
siderar que o que ali mostraram é fruto do que sabem ser bem aceito.
Para alguns, os bons momentos do Instagram “não substituem
as coisas que acontecem aqui na escola, porque nós vivemos aqui, e não
lá”. Mas aprendem aqui, e aprendem lá. Talvez aí tenhamos uma boa
ideia para dar continuidade à discussão. Que possamos seguir, vivendo
dentro das redes, e pensando, para além delas.

110
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113
114
O CORPO QUE É MEU, MAS NÃO ME PERTENCE

Bruna Pereira Bem32

Introdução

Em torno do tema corpo e a mulher, tenho refletido há alguns


anos sobre as inúmeras vezes que tentei me refazer enquanto mulher.
Aos pedaços eu tentei fazer caber o que já não cabia mais no mesmo
lugar, momentos estes enfrentados com muita dor e quietude. Trago
como tema deste estudo: “O corpo que é meu, mas não me pertence: uma
narrativa (auto) biográfica”, seguido dos autores: Luiza Romão obser-
vando a história do Brasil em contraponto com o corpo da mulher, Ca-
therine Serrurier colocando o amor materno em questão, desmistifi-
cando a maternidade, Paul Ricoeur e Philippe Lejeune viabilizando in-
fluentemente a narrativa autobiográfica, Simone de Beavouir liber-
tando o copo feminino, e demais autores.
Quando paro para refletir sobre a minha vivência da materni-
dade, penso a partir de qual momento me dei conta que já não era mais
a mesma? E, o quanto encarar este fato mexe fortemente comigo? Sendo
assim, indago que tensionamentos são produzidos acerca da materni-
dade através de uma narrativa (auto) biográfica sobre ser mulher/mãe?
O objetivo geral deste trabalho foi construir uma narrativa
(auto) biográfica acerca dos tensionamentos produzidos no processo de
ser mulher/mãe e a relação disso com a maternidade.
Neste trabalho é problematizado o corpo feminino e suas nuan-
ces com a maternidade, a nível de reflexão sobre como os corpos foram
educados ao longo dos tempos para corresponder as expectativas da so-
ciedade. Todas estas problemáticas são vistas através de narrações de
experiências de vida da própria autora, trazendo inevitavelmente o
meio social para está conversa. Logo refletir sobre as redes de apoio
voltadas ao processo de ser mãe, abordando estudos/narrativas de mu-
lheres/mães contando sobre seu processo de maternidade será de muito

32Psicóloga pela Universidade Regional Integral do Alto Uruguai e das Missões – URI,
Santiago – RS, Brasil.

115
valia para problematizar os fios invisíveis que permeia estes caminhos
em nossa sociedade.

O CORPO QUE É MEU, MAS NÃO ME PERTENCE


Esse corpo de mulher-mãe que por vezes me enaltece
e por outras me entristece.

Neste capítulo eu trago o corpo em questão e as suas mais di-


versas formas de o sentir. Pensando o quanto o lugar desse corpo res-
pinga no mais íntimo de nossos sentimentos, talvez pelo fato do mesmo
se encontrar em moldes já prontos, não se importando com a subjetivi-
dade de cada sujeito. Eu trago minhas reflexões (através de narrativas
pessoais) conversando com autores e com o social.
Inicio esta conversa contando que em momentos de angústia e
solidão, enquanto o ato de maternar invadia a minha existência, eu era
abraçada pela falta de um olhar ou de uma escuta que conseguisse en-
tender o real motivo do meu sofrimento enquanto mãe-mulher.
Eu percebia os diálogos se fecharam, não por falta de interesse,
mas sim pela falta de capacidade em atingir o real objetivo existente
nesta busca pela escuta. Percebi como se os sentimentos que permea-
vam dia e noite pelo meu corpo e cérebro, fossem um botão de flor. Na
árdua espera por esse processo de desabrochamento, aconteceram vá-
rias fusões de sentimentos. Além dos sentimentos em relação ao olhar
do outro sobre eu no lugar de mulher-mãe, também existia o meu espe-
lho interno batendo a todo momento na porta da existência sobre a au-
toestima. Esse lugar está perdido, ele permeia sobre meu corpo tocando
em feridas e frustrações, onde qualquer tentativa de mudança, esbarra
na questão mulher-mãe, e as gavetas só se abrem para arquivar mais
sentimentos.
O sentir-se mulher já é algo que pesa sobre as vidas, o perceber-
se mulher mãe, consequentemente, traz um peso muito maior, bem
como descreve Birman (1999, p. 93,94):

Isso não quer dizer, contudo, que o desejo da mulher assim esboçado
repudie a maternidade e a transforme num objeto de horror. Não se
trata disso seguramente. Não é isso que podemos perceber no campo
social da atualidade. O que está em pauta é a positividade do puro
desejo da mulher, que pode se desdobrar ou não no ser da materni-
dade. Com isso, ser mãe não é condição (sine qua non para ser uma

116
verdadeira mulher, o traço definidor de sua identidade sublime. Isso
é indecidível, pois depende do desejo das diferentes singularidades fe-
mininas arroladas. Dessa maneira, o ser femininamente mulher não
passa mais agora pelo ranço obsceno da obrigatoriedade e da impossi-
bilidade de ser mulher, sem que esta sofra as penas, dores e delícias
da maternidade.

Quando é colocado para as mulheres separadamente o lugar de


mulher e de mãe (colocando que não é possível existir nesses dois âm-
bitos a mesma pessoa) as coisas ficam ainda mais difíceis, principal-
mente quando a fala é da mulher que ousa contar o lado obscuro de
maternar, (indo contra a forma como todas as mulheres foram educadas
a ser), esta mulher é julgada, isolada, rotulada, maltratada e humi-
lhada. É perdido o direito de ser chamada de mãe dignamente, na mi-
nha concepção maternar é perder o controle da vida, e dos direitos de
existir sobre a singularidade, e é desta forma que a vida das mulheres-
mães vão ficando cada vez mais enrijecidas, é como se fosse perdido a
educação que a mulher deveria exercer para não romper os padrões so-
ciais.
Não estou dizendo que maternar é somente ruim e muito menos
somente bom. A maternagem é singular, ou pelo menos deveria ser.
Mas a invasão e a dessensibilização deste lugar da mulher é o q faz o
ato de maternar ser por muitas vezes traumatizante, isolando esta mu-
lher do resto do mundo. Lembrando que a mulher que escolhe não ma-
ternar também sofre julgamentos, pela falas romantiza(dor)as sobe a
maternidade. Essa falta de espaço, e esses julgamentos sobre a mulher-
mãe é o que fazem com que ela sofra e de fato este sofrimento reflete na
vida do filho(a). Quando uma mulher-mãe consegue esboçar seus senti-
mentos ela resgata seu lugar como ser humano digno de sentir, de fato
o filho(a) sente o bem estar da mãe causador de prazer no filho(a). Sobre
esta fala Serrurrier afirma:

Dizendo isso, a mãe reconhece seus limites como mãe: ela gosta muito
do filho, mas também gosta muito de sua vida de mulher, da qual o
trabalho faz parte. Dizendo isso, confessando-lhe sua divisão, ela vive
uma verdade. E nenhuma verdade materna, dita afetuosamente, pode
fazer mal à criança.” (SERRURIER, 1993; p. 124).

Quando uma mãe-mulher não se permite sentir, ela isola-se de


si mesmo e do mundo, não conseguindo viver com essa dor e não sendo

117
permitida expressa-la, causando a exclusão social. Lembro muito bem
o momento inicial que o fato da exclusão social em decorrência da ma-
ternidade começou a atingir minha sanidade, foi quando percebi que os
amigos e colegas escaparam de mim, seguindo suas vidas, porém nos
excluindo (pois já éramos dois, eu e meu bebê) e aos poucos nossas vidas
foram se distanciando de vez, afinal o meu estado já não fazia mais
parte da rotina deles.
Eu por vezes iniciei amizades novas com particularidades em
comum como a maternidade, o não desejo (no momento) de ser mãe, o
desejo de ser a melhor mãe possível, o resgate de uma relação que já
havia sido rompida, seguindo para um parto humanizado e uma ama-
mentação em livre demanda (os dois últimos muitíssimos doloridos). Na
amamentação senti com mais impacto a exclusão social, afinal eu era
mãe e pela visão da sociedade meu dever era cuidar e amamentar meu
bebê, minha vida deveria se resumir nestas duas funções, pois as meni-
nas são educadas desde muito cedo para exercer esse posto.
Segundo observação de Dandurand (1994, p.9):

As posições das mulheres sobre a maternidade se situam num contí-


nuo entre dois pólos: um, no qual, a condição materna é vista como
exasperante, exigente ou mesmo destruidora; o outro, na qual ela é
apresentada como única, rica e insubstituível.

Por essa falta do meio termo possível na maternidade, é que se


criam duas faces para ela, cada uma compondo extremidades, e nunca
a conformidade entre os dois lados, causando o isolamento de ambas as
partes, cada uma em sua realidade. Quando decidi amamentar natu-
ralmente fui colocada pela sociedade no lugar da mãe que materna e
que corresponde as necessidades do bebê, usando seu seio para uso
único e exclusivo dele, jamais como objeto de desejo da mãe no lugar de
mulher e só.
Mesmo o desejo de amamentar sendo muito grande, a exclusão
que ele me trouxe causou sofrimento, me colocando num lugar diferente
da mulher que eu sempre desejei ser, (aquela do corpo aceitável pela
sociedade nos seus devidos padrões). Junto com a pele que fragilizava,
se dissolvia uma mulher anterior para nascer outra totalmente perdida
e desorientada nesta nova caminhada cheia de desafios e descobertas.

118
Estas duas mulheres que habitavam em mim (uma anterior a materni-
dade e outra posterior), precisavam se (re)encontrar, dialogar, se (re)co-
nhecer, se aceitar e definir um único caminho a seguir, apesar de feri-
das e reconstruções precisas, tinha uma vida adormecida que precisa
voltar a luz. Tenho a convicção de que somente o fato de eu reconhecer
minhas dores e necessidades enquanto mãe-mulher já é o passo inicial
para a longa caminhada da identificação sobre o que eu mereço receber
e fazer para que as coisas se organizem, fala da importância em “ajus-
tar-se, conduzir-se, localizar-se física ou intelectualmente, identificar e
resolver problemas que ele põe”(JODELET, 1989, p. 1).
Enquanto o seio materno mudava seu formato para nutrir o fi-
lho, a vida também mudava suas formas em conjunto. Junto com o seio
cheio de leite transbordavam as lágrimas, num movimento rápido e cir-
cular de sentimentos que pareciam querer me acordar para nova reali-
dade que se apresentava, traziam uma intenção de impacto sobre mim,
para que assim eu pudesse ver/aceitar que eu já não tinha os mesmos
amigos (quase nem um), que eu já não tinha o mesmo corpo. Eu não
tinha mais visibilidade alguma, exceto pela minha mãe, que até me
emociono neste momento ao lembrar o quanto ela foi forte me trazendo
potencial em todos os momentos. Bem como observa Takashima (1994,
p.91):

Nas famílias, as pessoas devem se reapropriar de suas capacidades e


criatividades em elaborar e escrever sua trajetória histórica tor-
nandose, mesmo em meio a suas fragilidades, necessidades de apoio e
assistência, em sujeitos de direito a uma cidadania; portanto, meio
e fim de um mesmo processo.

Minha mãe também mudou sua aparência em efeito desta en-


trega maçante e nada fácil que juntas enfrentamos, as marcas físicas
que imergiram em nosso corpo e rosto retratam o envolvimento máximo
e de fato muito árduo que tivemos em todos os momentos. Mesmo en-
frentando momentos de angústia uma dava força para outra seguir,
cada uma a sua forma de encorajar.
Em algumas poucas vezes que enfrento minha dor e me encorajo
para olhar esse corpo, eu não o reconheço, eu fui educada pela escola e
pela sociedade a não amar um corpo que não estivesse nos padrões.
Neste instante sinto azia ao tentar descrever esses momentos, a memó-
ria que já estava pronta para ser escrita me afoga e foge, insistindo em

119
ficar no escuro mais um pouco. Sobre esse silêncio que me freou a nar-
ração, Riccoer (2003) se opõe dizendo o quanto este suposto esqueci-
mento possa vir de uma idéia com intuito de esconder essa história nar-
rada, como uma forma de se defender desta lembrança, fugindo dela e
mostrando o quanto essas falas podem vir de um lugar “político social”,
que nos ensina a todo momento o que se pode ser feito ou não. Este fato
pode apossar-se de minha estória tentando me alertar (mesmo de forma
inconsciente) que eu não posso narrar tantas verdades pois algumas
destas podem não ser aceitas pela sociedade me trazendo diversos jul-
gamentos.
Acredito que muitas mulheres se calam pelo medo destes julga-
mentos, acabando por enfrentar suas dores no escuro. Halbwachs
(1990) ressalta que as memórias sempre serão compostas pelo grupal,
pois sem ele é impossível existirem as memórias, partindo do principio
que só existimos através de relações com o outro. Infelizmente eu sei o
quanto existem mulheres identificadas com os medos do julgamento por
uma mínima tentativa de ser quem são, mas acredito que através desta
identificação elas possam se permitir existir ao menos por um momento,
neste “pensamento social” possibilita(dor), de vida.
Eu sei o quanto é necessário aceitar que para florir, é preciso
antes de mais nada doer inteiro, mas mesmo aceitando eu me pego
questionando essa dor que em momentos me atordoa deixando minhas
noites e dias exaustivos mentalmente.
Penso que assim como este processo, será minha história, na
verdade eu tento me agarrar a esta esperança de desabrochamento
como uma saída do casulo, para assim tentar seguir meus dias de forma
mais humana, respeitando meus limites. Alguns dias eu consigo, outros
não.
A culpa era uma visita inoportuna, que quase todos os dias en-
trava sem ao menos ser convidada, eram muitas as culpas (suspiro ao
lembrar o quanto elas pesam). Era culpa por esse corpo não estar pro-
duzindo fora da maternidade, era como se esse corpo somente pudesse
existir dentro da maternidade e viver único e exclusivo para ela, e de
fato assim se sucedia. Também tinha culpa por sempre ter a sensação
que eu deveria estar me doando ainda mais para a maternidade, culpa
por me sentir cansada e muitas vezes infeliz, culpa pelo desejo de estar
vivendo algo a mais, além da maternidade. Culpa por perceber que mi-

120
nha mãe também estava extremamente cansada por me auxiliar cons-
tantemente com os afazeres da maternidade, e o pior, eu observava que
minha mãe também sentia culpa, culpa por não conseguir fazer mais
por nós, apesar de estar fazendo tudo que podia, alias muito além do
que qualquer um pensou em fazer, muito mais do que ela mesma pen-
sou um dia em fazer e ser. Percebo o quanto a culpa é uma constante
na vida das mulheres e principalmente as mulheres-mães. Bem como
nos diz Serrurier (1993; p. 129):

Culpada, e de mil formas, por não ser a mãe perfeita dos mitos. Por
não fazer tudo pelos filhos, por não saber evitar doenças, ou as notas
baixas, por resmungar quando eles acordam a noite ou por reclamar
de suas roupas estragadas... Culpada também hoje porque, com toda
literatura que explica e aconselha, não temos mais direito de não nos
sairmos bem.Essa culpa é a inimiga número um da maternidade feliz.
Ela provoca tristeza infinita (e indefinida!) que encontramos com
tanta freqüência nas mães jovens.Trata-se, portanto, de um inimigo a
abater, imperativamente! É preciso ser uma mãe feliz!

O quanto “ser essa mãe feliz” pesa sobre as mulheres de uma


maneira tão forte ao ponto de nos tirar a paz, precisamos ser felizes
para obter a saúde mental adequada para maternar, porém as obriga-
ções da maternidade nos tiram a paz, lembrando também que são pou-
cas as mães que tem rede de apoio para dividir os cuidados com o fi-
lho(a). A rotina exaustiva nos tira até mesmo momentos de laser com
nossos filhos. É muito cruel com as mães, exigir essa “felicidade” sem
oferecer apoio.
É necessário discutir sobre a maternidade real, essa romantiza-
ção a coloca em um lugar de plenitude, e não respeita a singularidade
de cada relação mãe-filho(a). Os julgamentos fantasiados de boas inten-
ções estão a nossa volta o tempo todo, destruindo nossa saúde mental,
está que, inevitavelmente, respinga em nossos filhos.
Nós mulheres-mães somos julgadas por estarmos em casa cui-
dando dos filhos, por estar trabalhando, por ter filhos, por optar em não
tê- los, “Ser mãe hoje não é tão simples; recusar a sê-lo menos ainda”
(SERRURIER, 1993; p. 8). Somos julgadas por estudar ou por não estu-
dar, por amamentar ou não amamentar, o mais complicado é que somos
educadas para julgar.

121
O pior é que muitas vezes os julgamentos vem de mulheres, esse
processo de auto sabotagem fala sobre o quanto está despedaçado o lu-
gar da mulher na sociedade; “O comportamento autodestrutivo esconde
o desejo inconsciente de vingança , de fazer o outro sofrer pela dor que
sentem”. Essas mulheres-mães não suportam sua dor e acabam por de-
positar essa frustração em outra mulher-mãe, agindo como se a mater-
nidade pudesse somente ser boa, romantizando toda relação mãe-fi-
lho(a). (Cavalcanti p 77 O mito de Narciso).
Essa romantização da maternidade definida pelo dicionário Mi-
chaelis (2018) como um termo que se utiliza para falar da maternidade
de uma forma idealizadora, imaginando momentos irreais, fazendo com
que algo pareça melhor do que realmente é, colocando o ato de maternar
no lugar de completude deixando ainda mais difícil para as mães reco-
nhecerem seu desejo por vivencias além de maternidade, ou até mesmo
falar sobre o lado escuro, solitário e sofredor que também a compõe.
Essa situação onde a dor é romantizada só permite a existência de uma
mãe e jamais de uma mulher, a educação social está aí para nos dizer
que é assim que tem que ser. A sua existência só pode ter vida neste
lugar de mãe, eu sentia que só seria bem vinda se meus assuntos fossem
sobre o filho(a), se minha aparência fosse a que a sociedade denomina
correta para uma mãe, se meu corpo somente existisse para acalentar
o filho(a) .
Gutman chama a atenção para a questão de identidade e auto-
estima que muitas vezes permeia a função materna, afirmando que
além dos cuidados inerentes à criação dos filhos há também "a nossa
necessidade de sermos reconhecidas, de nos sentirmos vivas ou valiosas
à medida que somos indispensáveis para o outro" (GUTMAN, 2013, p.
117). Se uma mãe não consegue ao menos ser respeitada pela sua con-
dição materna, o reconhecimento por desempenho de tal tarefa se en-
contra muito longe da realidade, a sua identidade fica cada vez mais
perdida e quebrada.
Esse corpo encoberto, transborda(dor) de sentimentos, almeja
por um caminho seguro, mas não o encontra. Após muitas procuras é
descobri(dor) de que o caminho está dentro dele e que o processo deve
ser feito de dentro pra fora. Depois de ter este pensamento já concluído
e aceito, então entra o feminismo e a terapia , lançando sobre minha
vida quase tudo o que eu precisava para me reconstituir como mu-
lher/mãe socialmente. Cazarré (2016) comenta o quanto o feminismo

122
pode ser um fornecedor de “empoderamento feminino”, pelas indentifi-
cações que ele causa na vida das mulheres, estas identificações podendo
ser potencializadoras de força, des(educando) todas as formas cruéis de
ser ver que a sociedade nos impôs.
Esse corpo que anteriormente não suportava se olhar, inicia
uma caminhada longa e desafiadora, encarando os paradigmas e este-
reótipos que foram lançados sobre os corpos femininos ao longo dos tem-
pos. Nesta árdua busca por uma identidade mais gentil com o meu ser,
percebo o quanto me narrar provoca catarses, antes jamais imaginadas,
[...] ”ao tentar me ver melhor, continuo me criando, passo a limpo os
rascunhos de minha identidade, e esse movimento vai provisoriamente
estilizá-los ou simplificá-los.” (LEJEUNE, 2008, p.121). Este processo
de aceitação e reelaboração além de necessário é extremamente dolo-
roso. Foi um processo longo e sofrido, senti na pele a dor da aceitação
em não ser mais a mesma pessoa, senti também a falta de espaço e a
desvalorização em relação a este tipo de sofrimento.
A briga interna com a minha existência sobre esta mulher que
se apresentava era diária. Eu sentia a todo momento o quanto eu pre-
cisava me conhecer, ou me reconhecer, bem como nos diz Cavalcanti
(2003, p. 88): “O autoconhecimento promove a melhor capacidade de re-
lacionamento com o outro interno e com o outro externo, como real-
mente este outro é , e não como foi distorcido pelas projeções e idealiza-
ções”. Me propus a ir de peito aberto conversar com aquela mulher que
habitava em meu corpo, neste diálogo interno percebi que para manter
minha saúde eu precisava me desligar daquela Bruna que tentava a
todo momento corresponder as expectativas do outro, mas poderia e de-
veria ser aquela que correspondesse seus próprios desejos. Aos poucos
eu fui entendendo que o corpo é muito mais que uma imagem, ele é o
convite ao diálogo ou não, ele se mostra aberto ou fechado, inteiro ou
despedaçado. Cada parte tem uma grande estória por trás. Assim como
cada vestimenta ou calçado, pode trazer um corpo que foi obrigado a se
ajustar nos padrões impostos, vivendo em um aperto social onde suas
vontades, dores e desejos jamais terão coragem a desfilar. Já era este o
entendimento de Beavouir (1970), segundo Irigaray (2002), onde coloca
que o corpo da mulher nunca deve ser definido, mas sim o potencializa-
dor da liberdade.
Encontramos ditadores de regras sobre o corpo feminino em vá-
rios espaços, muitas vezes estas regras iniciam dentro de nossas casas,

123
se estendendo à instituições (como na escola onde nos educam para pre-
enchermos os moldes sociais), até mesmo usado de nossa fé e nosso es-
tado de maternar, assim como está colocado em A BÍBLIA, (2002, I Ti-
móteo 2:9-15 p. 1531):

Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes, se enfeitem


com pudor e modéstia; nem tranças, nem objetos de ouro, pérolas ou
vestuário suntuoso; mas que se ornem, ao contrário, com boas obras,
como convém a mulheres que se professam piedosas. Durante a ins-
trução, a mulher conserve o silêncio, com toda submissão. Eu não per-
mito que a mulher ensine ou doutrine o homem. Que ela conserve,
pois, o silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não
foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em trans-
gressão. Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que,
com modéstia, permaneça na fé, no amor e na santidade.

Eu lembro quantos encontros eu desmarquei por não estar com


o cabelo escovado ou a depilação em dia. Quantos encontros eu nem ao
menos pude marcar por saber que eu não conseguiria preencher os re-
quisitos que a sociedade denomina como básicos para uma mulher apre-
sentável. Eu me perdia, me sentia frustrada, sofria por não conseguir
atingir totalmente o ideal de mulher. Nesse momento fico com a voz
embargada, consigo perceber o quanto isso é um fator de extrema an-
gustia sobre minha vida.
Escrever que eu posso existir, eu a mulher imperfeita, posso e
devo existir é liberta(dor), eu consigo vomitar essas frustrações por não
ser a mulher ideal do corpo aceitável. A escrita é composta por uma
quantidade de princípios e suas idéias que compõe a experiência com o
social e todo seu contexto. [...] A palavra constitui o meio no qual se
produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças [...]. “A pa-
lavra” tem o potencial de assinalar épocas muito singulares de cada
pessoa no contexto de sua vivência dentro das relações. (BAKHTIN,
2009, p. 42).
Quanto mais a mulher se coloca em uma posição abaixo dos de-
mais, deixando seus potenciais em posição inferior, mais ela é vista
como feminina, é como se a feminilidade fosse definida pela posição li-
mitadora da submissão.

Essa espécie de confinamento simbólico é praticamente assegurada


por suas roupas (o que é algo mais evidente ainda em épocas mais

124
antigas) e tem por efeito não só dissimular o corpo, chamá-lo continu-
amente à ordem (tendo a saia uma função semelhante à sotaina dos
padres) sem precisar de nada para prescrever ou proibir explicita-
mente [...]: ora com algo que limita de certo modo os movimentos, como
os saltos altos ou a bolsa que ocupa permanentemente as mãos, e so-
bretudo a saia que impede ou desencoraja alguns tipos de atividades
(a corrida, algumas formas de se sentar, etc.); ora só as permitindo à
custa de precauções constantes, como no caso das jovens que puxam
seguidamente para baixo uma saia demasiado curta, ou se esforçam
por cobrir com o antebraço uma blusa excessivamente decotada, ou
têm que fazer verdadeiras acrobacias para apanhar no chão um objeto
mantendo as pernas fechadas.. (BOURDIEU, 2003, p. 39).

Eu posso rasgar a blusa modeladora da vida, aquela que res-


salta o aceitável e esconde o intolerável. Eu coloco no lixo o calçado aper-
tado, que limita os meus passos e os seleciona. Eu rasgo a saia ou a
calça que exalta minha sexualidade mesmo em momentos que este não
é meu desejo. Eu abro meu peito para mostrar sem esquivos o seio mar-
cado pela maternidade, este cheio de significados e significantes.
A Bruna de antes, consegue conversar com a Bruna de agora,
em caminho a programar um futuro no existir cada vez mais livre e
humano.
Bem como analisa Certeau (1998, p. 241), da forma como ”a so-
ciedade representa-se dentro de uma ordem simbólica social” sabemos
o quanto esse processo em sua maior parte é manipulador principal-
mente sobre o que se coloca ou o que é retirado desse corpo, mudando
sua aparência de acordo com a determinação social bem como Luiza Ro-
mão (2017 DIA II. 1ª CULPA) descreve:

quarenta de cintura
trinta de quadril
quantos suicídios
cabem numa fita métrica?

A maquiagem que não poderia faltar, mas deveria existir na


medida certa (de acordo com padrões sociais), hoje se permite ir a luta
de rosto limpo, por outras vezes permite o exagero, dosando o eu, colo-
cando o meu existir ali, da forma como ele se apresenta no momento.
Assim eu conseguindo sentir pelo menos o mínimo de vida, rasgando-se
para costurar-se com a linha imperfeita da existência humana, sem cor
definida e qualidade observada.

125
Somente o fato de eu estar narrando, reelaborando, (re)memo-
rando, resistindo e (re)existindo através desta escrita e das provocantes
reflexões que ela me causa, eu consigo imaginar o alivio de uma outra
mulher e principalmente mulher-mãe ao me escutar, pois é assim que
me sinto quando encontro leituras que me permitem existir através de
suas colocações, assim como Luiza Romão (2017 DIA 9. 1ª MENSTRU-
AÇÃO) :

(...) pra mocinha não levo jeito


falta mão
sou seios livres
sem foto depilação

dos saltos
só conheço os que fazem voar
tenho fúria muita
e infâmia sem pesar

quando virei mocinha


me queriam abas
patas-fincadas
mas sou ave rapina
do anjo
roubei as asas

Essas leituras me fazem pensar que (apesar do adoecimento da


sociedade em relação a rótulos), existe uma saída gentil com o ser hu-
mano. Onde entre os fios invisíveis que dão existência as relações hu-
manas não existem dedos apontados e sim mãos estendidas ao convite
de uma mesma caminhada. Eu consigo mudar a educação forçada sobre
como devo ser, criando a minha própria forma de existir, (re)educando
traumas e restos de sentimentos que a educação anterior possa ter dei-
xado. Eu sinto, eu me sinto, depois disso eu consigo me respeitar mais,
criar uma relação amigável com a minha existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eu finalizo esse trabalho de alma lavada, a sensação é de alivio,


não pelo término mas pelas potentes reflexões que ele me causou. Eu
nunca mais serei a mesma mulher depois dele. Essa experiência me
colocou em um lugar (ou em vários) onde eu, sozinha, não teria forças

126
para explorar, esse desnudar de memórias (que o método qualitativo
sobre narrativa autobiográfica propõe) a cargo de analisar seus percal-
ços no ser humano me fez evoluir muito. Em especial o que tange o mo-
mento de percepção em não ser mais a Bruna de antes e perceber em
que momento e o porquê esse processo ocorreu, (sendo ele em momentos
de escritas narrativas provocadoras de insights, este último me condu-
zindo a encarar com inteligência lugares de dor que a sociedade coloca
a mulher mãe). Enquanto fui trazendo minhas memórias pude perceber
na própria pele o movimento de reflexão que o trabalho propôs, eu ob-
servava o tanto do outro que existe em nós seres humanos, este olhar
também era notável em momentos em que eu levava mais de mim e
deixava um pouco do outro (ou vise versa). Neste estudo tive o propósito
através do metódo já citado, percorrer os caminhos da mulher (e princi-
palmente mulher mãe), trazendo questões que permeiam a matern-
dade, como os sofrimentos maternos, principalmente aqueles que envol-
vem o corpo e suas inúmeras questões, na tentativa de uma mulher-
mãe existir dignamente nesta sociedade machista e romantizadora em
que vivemos, ou sobrevivemos.

127
Referências Bibliográficas

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128
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129
130
AS CIÊNCIAS DA NATUREZA E SEUS FIOS INVISÍVEIS
NA ESCOLARIZAÇÃO BRASILEIRA

Micheli Bordoli Amestoy33


Fernanda Monteiro Rigue34

INTRODUÇÃO
“O caminho institucional está sempre cor-
tando e costurando, remendando as partes
segmentadas de uma realidade já destru-
ída pela própria instituição”
(STIRNER, 2001, p. 27)

O planejamento das políticas educacionais no Brasil têm de-


monstrado crescentes investimentos que carregam no discurso o in-
tento de modificar a rede de ensino que formaliza o que se (re)conhece
enquanto sistema nacional de ensino escolar brasileiro. Azevedo (2003)
diz que “[...] política pública é tudo o que um governo faz e deixa de
fazer, com todos os impactos de suas ações e de suas omissões” (p. 38).
Nessa tônica, por meio de diferentes documentos oficiais nacionais, es-
taduais e municipais da educação (leis, decretos, diretrizes, pareceres,
entre outros), emergem iniciativas de “[...] modificação de políticas edu-
cativas que atravessam governos das mais distintas perspectivas polí-
ticas partidárias no contexto nacional” (RIGUE; AMESTOY, 2019, p.
159).
O Plano Nacional de Educação (PNE) se constitui em um exem-
plo de planejamento educacional dentro do cenário das políticas públi-
cas educacionais do Brasil, o qual tem se caracterizado como “[...] objeto
de várias batalhas históricas no decorrer dos anos, desde o movimento
dos pioneiros em 1932 até os dias atuais” (SANTOS; AZEVEDO, 2019,
p.107).

33 Doutora e Mestra em Educação em Ciências pela Universidade Federal de Santa Maria


(UFSM). Pós-doutoranda em Educação em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde (PPGECQVS/UFSM). E-mail: micheli-
amestoy@gmail.com.
34 Doutora (2020) e Mestra (2017) em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Edu-

cação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Licenciada em Química


pelo Instituto Federal Farroupilha (2015).

131
Os planos de educação estaduais e municipais se originam dos
PNE. O PNE, Lei nº 13.005 de 2014, prevê a elaboração de Planos Es-
taduais e Planos Municipais de Educação, respectivamente pelos Esta-
dos e Municípios, para dar suporte ao cumprimento das metas nacio-
nais.
O PNE de 2014 tem como foco orientar a execução de denomi-
nadas ‘melhorias’ das políticas públicas educacionais e, para isso traça
diretrizes e metas para a educação brasileira para a década (2014-
2024). Entre suas metas, o PNE estabelece que a União, estados e mu-
nicípios devem implementar

[...] universalizar o ensino fundamental de 9 (nove) anos para toda a


população de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos
95% (noventa e cinco por cento) dos alunos concluam essa etapa na
idade recomendada, até o último ano de vigência deste PNE (BRASIL,
2014, Meta 2).

O arquivo que dá corpo ao PNE (2014) discorre acerca da neces-


sidade de uma Base Nacional Curricular, estabelecendo como uma de
suas estratégias a formulação e implementação da Base Nacional Cur-
ricular Comum (BNCC), como prospecção para a melhoria da Educação
Básica, abrangendo a educação infantil, o ensino fundamental e o en-
sino médio, tanto de escolas públicas quanto privadas do país35.
No PNE, a BNCC está relacionada às metas que dizem respeito
à universalização do ensino fundamental (Metas 2 e 3); à avaliação e ao
IDEB (Meta 7); e à formação de professores (Meta 15) (BRASIL, 2014).
Nas estratégias 2.2 e 3.3 do plano fica exposta a preocupação de

[...] implantação dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvol-


vimento que configurarão a base nacional comum curricular do ensino
fundamental e do ensino médio, respectivamente (BRASIL, 2014).

E na estratégia 7.1:

[...] o estabelecimento mediante pactuação interfederativa de diretri-


zes pedagógicas para a educação básica e a base nacional comum dos
currículos, com direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvi-

35 Em exceção as escolas militares.

132
mento dos (as) alunos (as) para cada ano do ensino fundamental e mé-
dio, respeitada a diversidade regional, estadual e local (BRASIL,
2014).

A proposta da emergência de uma Base de abrangência nacional


se apresentou em meio a polêmicas e discussões de caráter político e
partidário, ao mesmo tempo em que profissionais da área e demais in-
teressados discutiam acerca de sua aceitação ou não, sobre seus efeitos
positivos ou não para o andamento das atividades escolares no país.
Com isso, é possível apontar que a BNCC representa um campo de dis-
putas profundas entre projetos distintos de sociedade e de educação es-
colar, e ao mesmo tempo está no centro da discussão sobre o projeto de
nação atual (VEIGA, 2015).
De acordo com Freitas, Silva e Leite (2018):

A Base Nacional Comum Curricular insere-se no âmbito do currículo


prescrito e por isso se constitui como um discurso pedagógico oficial.
Ela representa o desejo governamental do que se deveria fazer na es-
cola expressando-se através de diferentes formas, mas com uma forma
intencionada e estruturada de comunicar suas pretensões (FREITAS;
SILVA; LEITE, 2018, p. 862).

Entre os principais defensores da BNCC encontram-se funda-


ções associadas e financiadas por grupos empresariais. Dentre elas,
destacam-se o grupo Todos pela Educação, a Fundação Leman, os Ins-
titutos Airton Senna e Unibanco. Em diversos momentos – durante as
intensas discussões sobre a BNCC – “[...] os representantes de tais fun-
dações utilizaram veículos de comunicação, impressos e digitais, para
apresentar argumentos favoráveis à BNCC” (GIROTTO, 2018, p. 19).
Os Institutos Ayrton Senna e o Unibanco (Projeto Jovem de Futuro -
PJF) realizam parcerias com escolas públicas tanto de Ensino Funda-
mental quanto Ensino Médio. Essas parcerias se realizam por meio da
utilização de programas uniformizados e replicáveis para todo o país, a
partir de um forte controle e monitoramento dos resultados.
O Movimento pela Base Nacional Comum (MBNC), desde 2013,
se apresenta como um grupo não governamental de pesquisadores e
profissionais da área da educação reunidos com o intuito de colaborar
para construção da base. Na composição do MBNC, encontram-se gran-
des instituições privadas que se associam com instituições educacionais

133
globais, carregando o discurso de promover mudanças na educação es-
colar dos países, especialmente no âmbito curricular e da avaliação e,
consequentemente, na formação docente.
No caso do MBNC, destacamos algumas instituições privadas
ou fundações e institutos aos quais os integrantes representam, como a
Fundação Lemann, principal apoiadora e articuladora da reforma cur-
ricular, Cenpec, Fundação Roberto Marinho, Instituto Natura, Insti-
tuto Ayrton Senna, Instituto Unibanco, Fundação Itaú Social, Santan-
der, Porvir, Insper – que também fazem parte do Movimento Todos pela
Educação.
Além desses, somam-se ao Movimento Todos pela Educação o
Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Na-
cional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) – associações
de direito privado, sem fins lucrativos, interessadas na educação pú-
blica do país.
Na correlação de forças entre o público e o privado, o último:

[...] pode influenciar muito na definição do currículo nacional, o que


trará consequências ainda maiores para a democratização no país,
com o aumento do processo de mercadificação já em curso (PERONI;
CAETANO, 2015, p. 338).

Diante desse cenário escolar brasileiro, o presente estudo tem


como objetivo tecer apontamentos que pensam as modificações realiza-
das na educação escolar brasileira (BNCC e do Novo Ensino Médio),
mais precisamente aquela que diz respeito a área do conhecimento das
Ciências da Natureza e suas Tecnologias. Para isso, foi realizada uma
análise na versão da BNCC (BRASIL, 2017), dando especial atenção
para a etapa do Ensino Médio.
Nesse sentido, a produção da BNCC e do Novo Ensino Médio
está situada dentro de um extenso contexto de políticas públicas educa-
cionais bem como de discussões sobre a ‘determinação’ do que deve ou
não ser ensinado na Educação Básica. Diante disso questionamos: Há
quem e para quem se afirma servir a atual pretensão de Ensino Médio
e BNCC?

134
NOVO ENSINO MÉDIO E AS CIÊNCIAS DA NATUREZA

No ano de 2017, emergiu a Lei nº 13.415 que operou com a alte-


ração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394
do ano de 1996. Alteração que veio ao encontro de uma mudança na
compreensão do último nível da Educação Básica brasileira, o Ensino
Médio. A referida Lei foi assinada pelo então Ministro da Educação José
Mendonça Bezerra Filho36, em meio ao governo do presidente em exer-
cício Michel Temer37.
A Lei nº 13.415 conta com seis (6) páginas, que alteram desde
carga-horária básica anual da educação escolar, até uma noção de or-
ganização curricular da escolarização, passando pela política de fo-
mento da implementação de escolas de Ensino Médio em tempo inte-
gral.
No art. 24 da Lei nº 9.394 do ano de 1996, por exemplo, passa a
vigorar que a carga mínima anual será de “[...] oitocentas horas para o
ensino fundamental e para o ensino médio, distribuídas por um mínimo
de duzentos dias de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo reservado
aos exames finais” (BRASIL, 2017), o que deverá ser ampliado de forma
progressiva nos termos do Ensino Médio “[...] para mil e quatrocentas
horas, devendo os sistemas de ensino oferecer, no prazo máximo de
cinco anos, pelo menos mil horas anuais de carga horária, a partir de 2
de março de 2017” (BRASIL, 2017).
Com narrativa de flexibilidade, o denominado Novo Ensino Mé-
dio, prevê um currículo composto por uma BNCC, bem como itinerários
formativos. Itinerários dispostos com foco no que chamam de áreas do
conhecimento38, além de formação técnica e profissional. Ambos, orga-
nizados a partir da relevância para o contexto local e possibilidades dos
sistemas de ensino. Dentre as áreas do conhecimento, tem-se as Ciên-
cias da Natureza e suas Tecnologias, que na referida lei estabelece a
necessidade de uma BNCC que defina direitos e objetivos de aprendi-
zagem nesse nível de ensino, contemplando essa mesma área.

36 Administrador de empresas e político.


37 Advogado, escritor e político. Após o impeachment da ex presidente Dilma Rousseff, em
31 de agosto de 2016, assumiu o cargo de presidente do Brasil.
38 A saber “I - linguagens e suas tecnologias; II - matemática e suas tecnologias; III -

ciências da natureza e suas tecnologias; IV - ciências humanas e sociais aplicadas” (BRA-


SIL, 2017).

135
Conforme a opção por organização em formato de áreas do co-
nhecimento, o Novo Ensino Médio deixa de distinguir a organização dos
currículos por disciplinas, como era o caso da Química, Física e Biologia,
por exemplo. Prática que era adotada na Lei nº 9.394/1996, que tem
norteado as instituições até meados de 2017.
Teoricamente, o Novo Ensino Médio não exclui a presença de
disciplinas nos currículos das instituições, já que a abordagem por área
do conhecimento vem ao encontro de mobilizar todos os componentes.
Por sua vez, em termos do que aparece, do que é dito e visível, é possível
verificar uma passagem em termos de nomenclatura que desvia os ho-
lofotes das disciplinas até então em vigência.
Como esse movimento é feito? A partir da promessa das compe-
tências e habilidades a serem desenvolvidas nos termos da área do co-
nhecimento, por cada rede e, respectivas instituições. Competências 39
como sendo a mobilização de conhecimentos, habilidade, atitudes e va-
lores para resolver demandas do cotidiano. Como tudo aquilo que via-
biliza aos alunos desenvolverem plenamente as habilidades e aprendi-
zagens tomadas como ‘essenciais’ pela BNCC.
Essa justificativa de considerar as particularidades e caracte-
rísticas de cada região vem ao encontro de uma suposta qualificação do
trabalho pedagógico exercido pelo professor. Por sua vez, em termos de
formação inicial e continuada docente, não se verifica nenhum empre-
endimento de forças para que esse impacto positivo seja possível, o que
coloca toda modificação normativa e curricular na Educação Básica,
desvinculada dos processos formativos empreendidos nas instituições
superiores no Brasil contemporâneo.
Há, aí, um engendramento escolar da Educação Básica que, no-
vamente, acontece anterior a formação dos professores para atuarem
nesses espaços. Novamente, pelo fato da pesquisa desenvolvida por Ri-
gue (2017) já apontar as relações de forças empreendidas em sua gene-
alogia que trama a educação escolar no Brasil, sob o ponto de vista da
disciplina de Química, como uma espécie de rede que se materializa
antes mesmo da formação de pessoal qualificado para atuar nesses es-
paços formais. Nesse sentido:

39 As competências chamadas de gerais da BNCC são: Conhecimento; Pensamento cien-


tífico, crítico e criativo; Repertório cultural; Comunicação; Cultura digital; Trabalho e
projeto de vida; Argumentação; Autoconhecimento e autocuidado; Empatia e cooperação;
Responsabilidade e cidadania.

136
A formação dos seus professores é marcada, até hoje, e dirigida pelas
mesmas técnicas que resultam em confundir aprender com a capaci-
dade de ser ensinado e conseguir pontos para aprovação nas discipli-
nas. A formação de licenciados em Química, em sua quase totalidade,
valoriza a formação técnica na área científica, expressa por boas notas
nas disciplinas, e considera isso condição para um bom desempenho
como professor em sala de aula. As licenciaturas têm operado de um
modo geral, pela redução do trabalho educacional ao emprego de téc-
nicas didáticas de ensino de conteúdos (RIGUE, 2017, p. 120).

A partir dessa constatação, é visível o quanto a narrativa pre-


sente no Novo Ensino Médio, alimenta a promessa de que produzir mo-
dificações em documentos legais pode vir a dar conta de uma verdadeira
alteração na condução do trabalho pedagógico exercido nas escolas.
Como se uma coisa fosse, inevitavelmente, reverberar em outra.
Além disso, é importante destacar que, tendo como referência a
área das Ciências da Natureza e suas Tecnologias há um universo infi-
nito de conceitos e saberes que pouca chance tem de serem vistos de
forma inter relacionada no âmbito dos cursos de formação. Cursos or-
ganizados de forma distinta e isolada, que pensam a aprendizagem a
partir da lógica da resolução de questões em provas e execução de expe-
rimentos em laboratórios. Ao mesmo tempo em que os cursos da área
possuem estratégias didáticas e metodológicas, já que as pensam a par-
tir das especificidades de cada disciplina.
Como é possível que um docente desenvolva uma prática pela
via das habilidades e competências, se nos cursos de formação é dada
ênfase a outras esferas? Se em cursos de formação não há uma preocu-
pação para o desenvolvimento de situações que provoquem e tensionem
os conhecimentos da área das Ciências da Natureza?
Tendo em vista esse olhar para o Novo Ensino Médio e seus ri-
zomas no âmbito da formação docente, a seguir trataremos de atentar
para a BNCC do Ensino Médio.

137
BNCC DO ENSINO MÉDIO: TRAMANDO CONSIDERAÇÕES

Após a leitura do documento que materializa a BNCC, em es-


pecial, da área de Ciências da Natureza, foram emergindo situações re-
flexivas e problematizadoras das quais compartilharemos nos parágra-
fos a seguir.
A implementação da BNCC em todas as escolas brasileiras,
pressupõe uma série de mudanças não apenas no currículo escolar, mas
também com muito impacto no currículo e na formação de professores.
Isso porque, o currículo que era pensado por meio de componentes cur-
riculares (Biologia, Física, Química, Matemática, Português, etc.) passa
a ser organizado em cinco áreas/itinerários, a saber: Ciências da Natu-
reza e suas Tecnologias, Ciências Humanas, Linguagens, Matemática
e Formação Técnica e Profissional.

Figura 1: Competências Gerais da Educação Básica

Fonte: BRASIL, 2017.

138
Um dos itens que chama bastante atenção na lei do Ensino Mé-
dio é a não obrigatoriedade das escolas oferecerem todos os cinco itine-
rários formativos aos estudantes matriculados. Logo, como a obrigato-
riedade menciona apenas as disciplinas de Português e Matemática, o
grave problema de falta de professores no Ensino Médio, principal-
mente nas áreas de Química e Física, ‘resolve-se’ como em passe de má-
gica. Uma vez as escolas não tendo professores específicos da área e não
sendo obrigadas, por lei, a oferecer todos os itinerários, a grande parte
das escolas públicas no país poderá não oferecer, por exemplo, a área
das Ciências da Natureza e suas Tecnologias.
Com intento de solucionar o problema do histórico déficit de
professores, instala-se mais um problema eminente oriundo de políticas
públicas desconectadas das especificidades dos cursos de formação, bem
como distantes da sala de aula e do chão de trabalho da escola pública:
Como estudantes da escola pública que não tiverem contato com a área
do conhecimento, nesse caso Ciências da Natureza e suas Tecnologias,
poderão interessar em carreiras científicas e carreiras docentes vincu-
ladas a essa especificidade? Professores de Biologia, Física e Química?
Mais uma vez, essa modificação que atravessa diretamente a organiza-
ção curricular, é mais uma das tantas propostas que tendem a não re-
solver as problemáticas que sobrevoam o trabalho nas escolas (falta de
professores qualificados, falta de materiais didáticos, pouco tempo para
planejamento, violência, estruturas precárias, entre outros) e, pior
ainda, aumentar o efeito dominó dos mesmos.
Outro impacto que atravessa a BNCC (BRASIL, 2017), decor-
rente do Novo Ensino Médio (BRASIL, 2017) é a validação, até então
inexistente, da Educação Básica na modalidade Ensino a Distância
(EAD). A partir de agora, será possível que até 20% da carga horária do
curso diurno seja ofertada a distância, bem como 30% do curso noturno
e 80% da Educação de Jovens e Adultos (EJA). As atividades realizadas
a distância poderão contemplar até 20% da carga horária total, podendo
incidir tanto na formação geral básica quanto, preferencialmente, nos
itinerários formativos que dão corpo aos currículos.

139
FORMAÇÃO DE PROFESSORES E A INTERDISCIPLINARI-
DADE

Quando realizamos o esforço em analisar as implicações da


BNCC à formação de professores, verificamos alguns impasses nas exi-
gências estipuladas no documento como, por exemplo, a presença da in-
terdisciplinaridade em todos os temas. O que queremos dizer com isso?
Que discordamos da presença da interdisciplinaridade? Pelo contrário,
salientamos a importância da vinculação entre os diferentes componen-
tes curriculares na construção do conhecimento. Por sua vez, para que
o cumprimento dessa exigência ocorra, trabalhar de forma interdisci-
plinar e não apenas dizer que trabalha de tal modo, algumas mudanças
precisam ocorrer. De acordo com Veiga (2012):

[...] A docência requer formação profissional para seu exercício: conhe-


cimentos específicos para exercê-lo adequadamente ou, no mínimo, a
aquisição das habilidades e dos conhecimentos vinculados à atividade
docente para melhorar sua qualidade (VEIGA, 2012, p.14).

Atualmente, a maioria das universidades forma professores em


cada um dos componentes do currículo do Ensino Médio: Biologia, Fí-
sica, Geografia, História, Química, Português, etc. Quando verificamos
o que a BNCC sugere como conteúdo que compõe as cinco diferentes
áreas, toma relevo um investimento em termos de componentes curri-
culares que se desenvolvam em meio ao trabalho interdisciplinar e, não
disciplinar. Na área de Ciências da Natureza e suas Tecnologias, por
exemplo, uma das três competências listadas tem a seguinte redação:

Analisar fenômenos naturais e processos tecnológicos, com base nas


relações entre matéria e energia, para propor ações individuais e co-
letivas que aperfeiçoem processos produtivos, minimizem impactos
socioambientais e melhorem as condições de vida em âmbito local, re-
gional e/ou global (BRASIL, 2017, p. 554).

Uma das habilidades que integram essa competência tem a se-


guinte redação:

(EM13CNT101) Analisar e representar, com ou sem o uso de disposi-


tivos e de aplicativos digitais específicos, as transformações e conser-
vações em sistemas que envolvam quantidade de matéria, de energia

140
e de movimento para realizar previsões sobre seus comportamentos
em situações cotidianas e em processos produtivos que priorizem o de-
senvolvimento sustentável, o uso consciente dos recursos naturais e a
preservação da vida em todas as suas formas (BRASIL, 2017, p. 555).

Trabalhar de forma interdisciplinar é um investimento, pelo


menos em termos de narrativa, que corrobora e alimenta uma antiga
luta dentro das compreensões de currículo escolar, conforme defendido
por Fracalanza, Amaral e Gouveia (1986), Brandi e Gurgel (2002). Crí-
ticas e constantes tensionamentos quanto ao trabalho disciplinar, prin-
cipalmente oriundas das perspectivas críticas e pós-críticas de pensar
educação. Com a habilidade mencionada acima (EM13CNT101), é pos-
sível perceber tamanha complexidade que cerca o trabalho pedagógico,
que também demandam de outras áreas para se efetivarem na apren-
dizagem dos alunos.
Com base nesse olhar, o que fica saliente é um forte emprego de
forças para a realização da interdisciplinaridade. A grande questão é:
Quem/Qual instituição qualifica o professor com essa competência in-
terdisciplinar? De acordo com Gobato e Viveiro (2017) houve um au-
mento no número de universidades oferecendo esses cursos em todos os
estados da federação, porém há ainda dificuldade em produzir avanços
nessa área (Ciências da Natureza), uma vez que o modelo de formação
de professores possui um forte pendor na especificidade disciplinar, até
mesmo aqueles cursos denominados de Ciências da Natureza.
Diante disso, de que forma professores licenciados em Biologia,
Física ou Química poderão atuar interdisciplinarmente para dar conta
dos currículos que irão emergir a partir da BNCC? Há um local de tra-
balho, nas escolas públicas, onde os professores possam se reunir e pla-
nejar atividades em conjunto? O que acontecerá na prática?
Com esses questionamentos, nos parece que provavelmente os
docentes que atuam nas escolas continuarão fazendo o trabalho que já
vinha em curso. Até porque muitos desses professores ministram aulas
em duas ou mais escolas no mesmo dia, contabilizando 40 horas ou até
60 horas semanais. Trabalho pedagógico que ultrapassa o momento
presencial com os alunos. Esses professores planejam suas aulas, ela-
boram e corrigem provas, muitas vezes no período que se estende a es-
tada na escola.

141
Assim, o texto que compõe a BNCC atrelado ao Novo Ensino
Médio nos parece impor, para a concretização de sua saga interdiscipli-
nar, a necessidade de: ampliar as escolas atuais e construir novas esco-
las, que incluem espaços/ambientes de trabalho para os professores,
proporcionando o encontro entre professores de disciplinas diferentes
para (re) pensar, preparar as aulas de forma articulada e conjunta.
Impõe também que as Universidades formem professores com
outro perfil, como é o caso do perfil interdisciplinar. Ao passo que tende
a ofertar e expandir o acesso a cursos da área das Ciências da Natureza.
O que, ao mesmo tempo, vai afetar diretamente na criação de cursos de
especialização no campo das disciplinas: Biologia, Física e Química.
Demanda, também, que os professores da escola pública te-
nham dedicação exclusiva a um único estabelecimento e recebam bons
salários, de forma integral (não parcelados como tem acontecido no es-
tado do Rio Grande do Sul40). Aumenta-se as exigências sobre a profis-
são docente, mas ressoa a questão: há políticas públicas voltadas para
o aumento do salário do professor e um plano de carreira que inclua a
dedicação exclusiva para professores de Educação Básica? Em que me-
dida isso é possível no atual político-econômico contexto brasileiro?
No momento em que vivemos, sob o peso de uma Emenda Cons-
titucional (EC) nº 95 de 2016 que limitou os gastos públicos em Educa-
ção e Saúde, de que forma é possível obter verbas para projetar e cons-
truir novas escolas, ofertar novos cursos, contratar novos professores e
preparar os futuros professores para efetivamente atuarem de forma
interdisciplinar?
Dito isso, no atual cenário educacional do país, as competências
e habilidades previstas na BNCC já nos parecem emergir de forma en-
fraquecida. Exatamente por não se alinharem ao sistema fortemente
disciplinar do Ensino Médio que tem dado corpo ao modo que pensamos
e operamos educação escolar no Brasil. Além disso, mesmo que na hi-
pótese de um trabalho pedagógico interdisciplinar prosperar, essa in-
terdisciplinaridade tem que ter por alicerce uma efetiva compreensão

40Ver em: RIGUE, Fernanda Monteiro; AMESTOY, Micheli Bordoli; VEIGA, Adriana
Moreira da Rocha. Contexto do professorado no Rio Grande do Sul: o desgaste da profissão
docente em tempos adversos. In: MACHADO, Gabriella Eldereti; OLIVEIRA, Valeska
Fortes de. Temas emergentes a educação - Docências em movimento no momento atual.
São Paulo: Pimenta Cultural, Vol. 1, p. 90-109, 2019.

142
dos conceitos e conteúdos que compõem os saberes de cada área do co-
nhecimento, realidade que torna uma formação na área das Ciências da
Natureza extensa e deveras complexa.
O Ensino Médio é uma das etapas mais importantes na forma-
ção dos estudantes, é o período que antecede o ingresso na Universidade
ou no mercado de trabalho. Não há dúvidas que formar um professor de
Biologia com capacidade de dialogar com seus colegas da Física e da
Química é um investimento mais do que legítimo para as Universidades
responsáveis por essa formação.
Por sua vez, o que não podemos esquecer é que existe uma his-
tória de investimentos individuais que empreenderam forças para que
fosse possível materializar uma formação escolar e universitária da
forma que temos hoje. O que pressupõe dizer que o sucesso de uma prá-
tica pedagógica escolar não se encontra única e exclusivamente vincu-
lada a promulgação de uma lei, que na maioria dos casos atende a ten-
dências internacionais41. Prerrogativas que correspondem a financia-
mentos educacionais, bem como rankings que ditam acerca de uma ‘su-
posta’ qualidade educacional, desde o local até o cenário internacional.

PARA NÃO CONCLUIR

Este estudo esteve debruçado em atentar para o Novo Ensino


Médio e para a BNCC, com foco no Ensino Médio (BRASIL, 2017), mais
precisamente quando diz respeito a área do conhecimento das Ciências
da Natureza e suas Tecnologias. Dentro do campo da produção desses
documentos, desenvolvemos um olhar para o contexto de políticas pú-
blicas educacionais do Brasil.
Com a questão: Há quem e para quem se afirma servir a atual
pretensão de Ensino Médio e BNCC do Ensino Médio? Percebemos que,
para que a escola pública possa ofertar todos os itinerários formativos,

41 O documento da Base registra dez competências gerais para a Educação Básica e re-
força que as competências têm orientado os currículos de diferentes países. Além disso,
esse enfoque é adotado nas avaliações da Organização para a Cooperação e Desenvolvi-
mento Econômico (OCDE), instituição que coordena o Programa de Avaliação Internaci-
onal de alunos (PISA). O PISA, instrumento de avaliação externa internacional, é refe-
rência para as políticas públicas educacionais nos países da América do Sul. Além da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), por
meio do Laboratório Latino-americado de avaliação da qualidade da Educação para Amé-
rica Latina.

143
significa dizer que é preciso existir todos os professores das diferentes
áreas nas escolas.
Logo, com o déficit de professores já conhecido, o que verifica-
mos é um impulsionar ainda maior da distância que separa as escolas
particulares de classe alta, das escolas públicas destinadas à população
de baixa renda, já que pouquíssimas escolas públicas terão quadro do-
cente suficiente para suprir todos os itinerários. Realidade distante das
instituições particulares, já que nesses espaços normalmente existe um
quadro de professores completo para atender a demanda.
Tramado a isso está a constatação de que, ao não permitir que
estudantes pobres tenham acesso a certas áreas que compõe os itinerá-
rios formativos (já que é obrigatório que cada escola oferte no mínimo
um itinerário formativo), os mesmos estarão restringindo os horizontes
de possibilidade, seja de formação básica, seja de formação superior e
posterior atuação profissional.
Com essa constatação consideramos que a atual pretensão de
Ensino Médio (BRASIL, 2017) e BNCC (BRASIL, 2017) acaba por res-
tringir, em termos de possibilidade, o acesso ao conhecimento escolar,
principalmente para os estudantes dos pequenos municípios e das esco-
las com número limitado de estudantes. Isso porque, provavelmente fi-
cará restrito o número de itinerários a que terão acesso durante a for-
mação.
Isso se torna muito grave no momento em que ações afirmati-
vas, na forma de cotas para estudantes oriundos de escolas públicas,
cotas para negros e outras políticas de inclusão, dão acesso para a po-
pulação mais pobre às instituições de ensino superior (públicas e priva-
das). Como o estudante de escola pública vai poder frequentar/se inte-
ressar por cursos universitários nas áreas de Ciências da Natureza se
as escolas, durante a Educação Básica, não oferecerem itinerários de
Ciências da Natureza e suas Tecnologias, por exemplo?
O que queremos dizer com isso é que, se é apontado na BNCC
(BRASIL, 2017) a coerência de itinerários formativos no Ensino Médio,
que todos estes tenham condições para serem oferecidos. Caso contrá-
rio, a própria orientação que conduz a organização curricular das insti-
tuições estará alimentando um aumento de disparidade no acesso aos
conceitos e conhecimentos escolares por parte dos estudantes. Como um
corte e costura, como bem mencionou Stirner (2001) que remenda as
partes segmentadas que a própria instituição constrói.

144
Com o processo desencadeado pela via da emergência do Novo
Ensino Médio (BRASIL, 2017) e da BNCC do Ensino Médio (BRASIL,
2017), deixamos como problemáticas as seguintes questões a serem de-
senvolvidas em outras oportunidades: é possível mensurarmos o que se
espera em termos de formação escolar no Brasil? A qual projeto o Brasil
se vincula quando implementa o Novo Ensino Médio e a BNCC?
Logo, com esse percurso de investigação o que queremos desta-
car é a forte tendência escolar que vem sendo vinculada ao âmbito das
habilidades e das competências, a qual tem foco especial no Ensino Mé-
dio, trazendo a tona regimes de colaboração que colocam as instituições
privadas no holofote do trabalho profissional com jovens, principal-
mente. Trabalho que não mais precisa ser feito dentro dos limites da
escola, mas sim no contexto externo. Aí, a nosso ver, abre-se um leque
de fios invisíveis com força que adentram no ambiente escolar, princi-
palmente público, que capturam jovens para o trabalho desde a mais
tenra idade. Além, é claro, de um maior público interessado em comple-
tar a carga-horária da Educação Básica de formação básica em cursos
EAD.

145
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146
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148
A (RE)EXISTÊNCIA DOS PROFESSORES SOBRE A
MIRA DA VIOLÊNCIA: UM DIÁLOGO SOBRE A EXISTÊNCIA

Viviane Martins Vital Ferraz42


Rosane Carneiro Sarturi43

INTRODUÇÃO

“Nessa terra de gigantes, que trocam vidas por diamantes”


(GESSINGER, HUMBERTO; ENGENHEIRO DO HAWAII; 1987)

Segundo os recentes dados estatísticos divulgados pelo Atlas da


Violência em 2019, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), e conforme o Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
o qual divulgou que, de acordo com o Sistema de Informação sobre Mor-
talidade do Ministério da Saúde (SIM/MS), o Brasil registrou 31,6 ho-
micídios por cem mil habitantes, alcançado um índice inédito na histó-
ria do país, no que se refere à violência letal. O que agrava a situação
ainda mais é o perfil da vítima: jovens entre quinze a dezenove anos,
em sua maioria, negros, moradores de áreas de periferias e, em média,
com sete anos de estudo, chegando ao máximo ao segundo ciclo do en-
sino fundamental. Fato que representa pouca escolaridade, visto que a
atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9394/96) prevê o
acesso público e gratuito ao ensino formal, a partir dos quatro anos de
idade até os dezessete anos. Direito estabelecido pela lei nº 12.796, de
04 de abril de 2013. Dentre os motivos geradores desses índices, des-
taca-se o crescimento das seguintes esferas de micropoderes: o narco-
tráfico e sua complexa rota de distribuição em território nacional e in-

42 Pedagoga. Especialista em Docência do Ensino Superior (Faculdade São José/RJ). Es-


pecialista em Psicopedagogia e Orientação Educacional (UFRRJ). Mestra em Educação
pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS). Doutoranda em Educação
(UFSM). E-mail: vivi.mvferraz@gmail.com
43 Pedagoga. Especialista em Currículo por Atividades e Orientação Educacional. Mestra

em Educação (UFSM) e Doutora em Educação (UFRGS). Pós-doutorado em Políticas Pú-


blicas na Universidade de Valência. Professora Associada III e coordenadora do Programa
de Pós-graduação em Educação (PPGE/UFSM). Líder do Grupo de Pesquisa ELOS. E-
mail: rcsarturi@gmail.com

149
ternacional; o acesso às armas de fogo; a atuação e o controle das milí-
cias; a população carcerária e a disputa/guerra entre facções; o poder
paralelo em todas as esferas das organizações criminosas frente a de-
manda do mercado legal e ilegal (CERQUEIRA et al, 2019). Dados que
se aproximam dos dados da tese abaixo:

A tese sobre democracia, cidadania incompleta e violência é desdo-


brada por Peralva (2000) considerando novas configurações que
singularizariam um cenário que potencializaria violências nos centros
urbanos brasileiros na virada do século: 1) aumento do acesso a armas
– aspecto frisado por vários entrevistados em distintas pesquisas,
em áreas de pobreza (Peralva, 2000;Zaluar, 1999; Castro e al, 2001,
entre outros); 2) “juvenilização” da criminalidade ; 3) maior visibili-
dade e reação da violência policial, em particular contra jovens em
bairros periféricos; 4) ampliação do mercado de drogas poder de fogo
do crime organizado, em especial do narcotráfico, em distintos centros
urbanos; e 5) cultura individualista e consumo - “individualismo de
massa” - derivado de expectativas não satisfeitas, potencializando vi-
olências (ABRAMOVAY, 2005, p. 60-61).

Este cenário evidencia graves consequências no nosso modelo


de desenvolvimento econômico e social. Em tempo em que a sociedade
brasileira envelhece, o aumento significativo na letalidade dos jovens
causa um impacto, tanto no campo da “produtividade da força de traba-
lho”, quanto no contexto das desigualdades sociais e justiça social. O
documento reitera esta evidencia ao afirmar que: “[...] a falta de opor-
tunidades, que levava 23% dos jovens no país a não estarem estudando
nem trabalhando em 2017, aliada à mortalidade precoce da juventude
em consequência da violência, impõem severas consequências sobre o
futuro da nação” (CERQUEIRA et al, 2019, p. 06).
Outro ponto apontado pelo estudo destaca que houve um cres-
cimento no aumento da violência letal contra grupos nomeados popu-
larmente como “minorias”: negros, população LGBTI+ e mulheres em
crimes classificados como feminicídio. Esse dado revela um crescente
movimento de intolerância a grupos específicos.
Com base nesse novo contexto histórico de violência urbana o
Ipea vem desenvolvendo estudos que buscam responder perguntas cru-
ciais, tanto no que concerne aos nichos do tráfico e do armamento,
quanto no que tange ao desenvolvimento social inclusivo de grupos vul-
neráveis por meio de políticas públicas sociais. O foco não seria apenas

150
as medidas de enfrentamento, mas de inclusão a um sistema mais equi-
tativo.
“É possível deter a violência?”. Essa é a questão problematiza-
dora que direcionou uma das pesquisas realizadas pelo Ipea, em 2015.
Um dos pontos sinalizados pelo estudo está relacionado ao lugar social
da Educação e do aumento da frequência escolar no impacto do desen-
volvimento social, da redução da violência e da prevenção da criminali-
dade:

O acesso à educação tem forte impacto na redução da violência. Pes-


quisas recentes apontam que um aumento de 1% da taxa de frequên-
cia escolar de jovens com idades entre 15 e 17 anos reduz a taxa de
homicídio em 5,8%. Entre 1992 e 2012, a presença dos jovens entre 15
e 17 anos nos bancos escolares apresentou um acréscimo de 59,7%
para 84,2% (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA,
2016, p. 01).

Esse é o ponto de encontro entre as pesquisas acima desenvol-


vidas e este estudo. Quando as pesquisas apontam ser necessário maior
investimento não apenas no que concerne ao campo da segurança pú-
blica, mas também ao campo da construção de políticas públicas sociais
que visam a diminuição da desigualdade social, buscando uma equi-
dade cidadã. Dentre estas políticas públicas sociais, destacamos a Edu-
cação como uma mola propulsora para este desenvolvimento econômico
e social, sendo relevante fazermos a análise não apenas do acesso à edu-
cação, mas a sua permanência ao longo do período de formação que cor-
responde à Educação Básica e ao acesso ao Ensino Superior. Esse é um
desafio ainda maior. O acesso à educação já é uma realidade possível.
O contraste está em garantir a permanência do jovem em condições de
vulnerabilidade social por residir em áreas de risco, seja pela atuação
do narcotráfico, pelos combates constantes entre os traficantes e as ins-
tituições de segurança pública, seja pela extrema pobreza e pelo “este-
reótipo” cultural que se materializou como uma verdade na sociedade
brasileira: homem negro, morador de comunidades carentes, jovem.
Basta olharmos para os dados estatísticos apresentados pelo Atlas da
Violência 2019 para vermos que a violência atinge com maior letalidade
esse grupo, assim como as mulheres negras. Fato que revela um per-
verso cenário histórico-cultural brasileiro.

151
Apesar do Ipea apontar a educação como um caminho possível
pouco resultado efetivo teremos se não olharmos para as outras cenas
e personagens presentes nesse cenário de violência extrema. Assim
como há uma frase que diz: é preciso cuidar de quem cuida; também, é
preciso cuidar e educar quem educa (SCHELB, 2016). Vale lembrar
que, na mira dessa violência urbana e letal, há um educador que por
vezes deixou a sua família sem saber se voltaria para casa. Será que
estamos preparados para lidar com essa realidade? Como desenvolver
uma formação de sentimento de “pertença”, de “presença”, de “co-pre-
sença”, de “ser-junto” diante de situações em que a sua própria vida está
em risco. Professores que atuam em áreas de risco caminham por um
fio de navalha. Como garantir a permanência do estudante se há uma
constante troca de educadores, se há uma evasão e essa evasão não ape-
nas (des)qualifica o processo de ensino-aprendizagem, mas a própria
superação da desigualdade social?
Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi compreender como se
constitui a produção de sentidos do “ser” educador que atua na mira das
violências, principalmente em áreas de vulnerabilidade social sobre o
objetivo da educação, a partir da perspectiva da existência, o “ser-no-
mundo”, “ser-com”, “ser-junto” e “ser-em”. Além de compreender o im-
pacto das violências pelo viés pessoal e impessoal do “ser’ educador e os
sentidos de “pertença”, “pre-sença”, “co-presença” e (re)existência
no/do/com o cotidiano e suas influências nas práxis44 pedagógicas. Para
desenvolver esse diálogo reflexivo com o público a que se destina essa
obra, debruçamo-nos no campo das pesquisas narrativas pelo seu cará-
ter qualitativo e subjetivo, a partir do método (auto)biográfico, tendo
como construção de conhecimento um entrelaçamento entre Paulo
Freire, o campo do existencialismo sobre a existência humana e as mi-
nhas memórias como docente da rede pública municipal e estadual do
Rio de Janeiro. A proposta de rememorar experiências de vida e ressig-
nificar o espaçotempo45 e o lugar vivido ocorre a partir do entendimento
de que o educador, por ser um dos protagonistas da educação, precisa

44 Para Freire (2007, p.42), práxis significa “a reflexão e ação dos homens sobre o mundo
para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimi-
dos”.
45 Termo presente na obra Espaçostempos da/na escola: o cotidiano e o transbordamento

do racional de Mello (2003). Para a autora, as palavras tempos e espaços são transcritas
juntas por significa que qualquer ato humano é indissociável destes dois elementos.

152
ser ouvido. Atitude reflexiva que frequentemente não é levada em con-
sideração durante a construção e a implementação de políticas públicas.
Para compreender o objetivo deste estudo nos atentaremos ao
conceito de violência. “A violência é ressignificada segundo tempos, lu-
gares, relações e percepções, e não se dá somente em atos e práticas
materiais” (ABRAMOVAY, 2005, p. 54). Apesar de reconhecermos que
o conceito de violência é polissêmico e que cada ser atingido por um tipo
de violência poderá nomeá-la de múltiplas formas, sentidos e significa-
dos, debruçamo-nos sobre o conceito apresentado pela Organização
Mundial da Saúde, por ser um dos órgãos responsáveis pela produção
dos dados sobre a violência letal:

O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, con-


tra si próprio, outra pessoa, ou um grupo ou uma comunidade, que
resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte,
dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (KRUG
et al., 2002, p. 05).

Esses dados estatísticos não representam apenas um número,


mas uma vida que se findou cedo demais, uma dor familiar, uma perda
irreparável, tanto no campo humano, quanto no social. E essa perda se
torna ainda mais perversa quando atravessa os muros escolares, seja
na forma da bala perdida, seja pela guerra entre facções rivais ou pelas
violências durante o combate entre policiais e traficantes em uma de-
terminada comunidade. Nesse terreno intersubjetivo todos saem emo-
cionalmente feridos, tanto os moradores e os familiares envolvidos
quanto os que visam garantia a segurança pública. O impacto da vio-
lência urbana na escola deixa marcas profundas na qualidade da edu-
cação brasileira: cabe chamar a atenção para o fato de que as violências
nas escolas não se resumem a uma série de dados objetivos, mas a ex-
periências vivenciadas de formas múltiplas e distintas por aqueles que
as sofrem: “O que me acontece e o que eu percebo como tal?” (ABRA-
MOVAY, 2002, p. 342). Quando Abramovay pergunta “O que me acon-
tece e o que eu percebo como tal?”, ela traz a reflexão para o campo da
intersubjetividade e do repensar a existência humana e o seu processo
de humanização. Não somos um número em um gráfico, mas um ser
concreto em constante processo de formação preenchido por sentidos,
significados, historicidades, experiências, sentimentos, percepções e

153
uma vontade que vai muito além da sobrevivência: a vontade de viver
e de exitir.

DIÁLOGO REFLEXIVO SOBRE A EXISTÊNCIA

“Por isso continuo perguntando: Por que sou professor? Uma pergunta
que ouço com frequência também entre meus pares. A resposta talvez
possa ser encontrada numa mensagem deixada por um prisioneiro de
campo de concentração nazista no qual, depois de viver todos os hor-
rores da guerra, (...)- ele pede aos professores que “ajudem seus alunos
a tornarem-se humanos”
(MOACIR GADOTTI, 2003, p. 02)

Quando olhamos para os dados estatísticos sobre a violência,


logo pensamos: o que nos torna humanos? Nascemos já com esta no-
menclatura pré-determinada em nossa formação. Mas esta nomencla-
tura não é uma garantia dessa nossa condição humana. Daí, surge essa
inquietação científica na produção dos sentidos e significados de uma
existência em prol do desenvolvimento da humanização no ser de cada
indivíduo. Freire (2007) apresenta-nos o ser humano como um ser on-
tológico e inconcluso, ou seja, em constante processo de formação. Nesse
movimento, a singularidade e a coletividade histórico-cultural cami-
nham lado a lado, e ambas, exigem, por um processo de conscientização,
uma postura de reflexividade crítica e de autonomia para alcançar a
humanização e a liberdade de pensamento. Liberdade de pensamento
aqui entendida como resultado do processo reflexivo da autonomia.
Para o autor, cada ser, com aporte da educação crítica, torna-se autor
da sua própria existência, ultrapassando o limite imposto pela socie-
dade reprodutora de um sistema extremamente seletivo, excludente e
desigual.
A construção de um ser autor atravessa as imagens falsas e as
representações sociais estereotipadas que situam a condição humana
como um lugar de luta pela sobrevivência por meio do trabalho e da
obediência a certos dogmas tradicionais. A visão existencialista reco-
nhece o sujeito da aprendizagem como o autor responsável, não apenas
pelos sentidos e significados de sua existência, mas pela construção da
existência do Outro. O Eu não é compreendido como algo único, mas
como fruto da relação dialógica e dialética entre o Eu, o Tu e o Outro. A
construção da existência e de seu conhecimento torna-se parte de um

154
processo de formação integral e contínua. O que faz com que a ação pe-
dagógica e as práticas escolares ocupem um lugar de mediação e de cor-
responsabilidade pelo desenvolvimento do processo de humanização.
Freire (2007), ao afirmar que o ser humano é um ser histórico,
social e cultural, rompe com os paradigmas do empirismo e do “ina-
tismo”. O empirismo centrava a formação humana na figura do profes-
sor, onde o aprendente era como uma folha em branco e, ao longo da
vida, ia sendo “moldada”, “escrita” pelo conhecimento que estava fora
de si mesmo. Já para o inatismo, o homem já nascia com todas as con-
dições biológicas para aprender, ou seja, sua personalidade, seus valo-
res e seus hábitos já faziam parte da sua estrutura interna, não ha-
vendo influência do meio.
Ao enxergar o espaçotempo e o lugar em que as pessoas atuam
com suas mazelas, contextos e realidades vividas, Freire (2007; 2000)
instiga a Educação a desenvolver a reflexividade crítica dentro do seu
próprio sistema com seu conjunto de métodos, de práticas e de formação
do corpo docente. A formação católica progressista de Freire pautada
pelo ideal da libertação do povo que vivia em condições desumanas,
marginalizadas e opressoras influenciou a sua construção existencia-
lista. Assim, a existência é uma busca pela libertação, uma libertação
contextualizada, crítica e transformadora da realidade em que se vive.
O valor do Ser está na construção de si mesmo, como algo inacabado,
inconcluso e autônomo. Porém esta autoconstrução não se faz em um
percurso solitário, mas no seio de uma comunidade, de um grupo, de
uma ação-reflexão coletiva, visto que, por essência, somos seres relaci-
onais e sociais. Há um olhar que transpõe o entendimento de sobrevi-
vência e alcança o patamar de “vivências” permeadas pelos binômios:
pessoal/social; sensibilidade/racionalidade; criatividade/produtividade.
É o campo da tomada de consciência dialógica; da conscientização para
uma práxis histórica em uma sociedade tão desigual. “Paulo Freire é
um pensador comprometido com a vida: não pensa ideias, pensa a exis-
tência”46.
Partindo dessa premissa teórica, visando qualificar ainda mais
os estudos sobre a existência humana, debruçamo-nos sobre alguns es-

46Palavras do professor Ernani Maria Fiori, no prefácio da obra, Pedagogia do Oprimido


(FREIRE, 2007).

155
critos da filosofia existencialista. O existencialismo é uma forma de hu-
manismo e “a existência precede a essência, ou se se preferir, que é ne-
cessário partir da subjetividade” (SARTRE, p. 03). O sentido da subje-
tividade aqui é amplo, uma vez que reconhece que o ser humano passa
a existir, encontra a si mesmo, passa a ser um ser no mundo e se cons-
trói a partir de suas projeções de futuro e o que fez de si mesmo (ser-
em-si e ser-para-si). Nem sempre esta projeção de si significa o que que-
ria ser. No entanto, essa subjetividade interligada ao “si mesmo”
guarda o ser responsável pelo o que se é ou se tornou, assim como pela
responsabilidade pelos outros engajando toda a humanidade. “O ho-
mem é o futuro do homem” (SARTRE, 1970, p. 07).
A realidade humana e a condição de sua existência afirmam que
o Eu depende do Outro e o Outro é tão necessário e verdadeiro quanto
o Eu. Essa condição relacional corpo-mente-mundo se conecta pela in-
tersubjetividade, onde cada um passa a ser algo aos olhos do outro, uma
projeção do vir a ser e sobreviver ao seu devir. Ou seja, uma projeção do
ser em constante processo de (trans)formação (SARTRE, 1970).

Assim, o homem que se alcança diretamente pelo cogito descobre tam-


bém todos os outros, e descobre-os como sendo a própria condição de
sua existência. Ele se dá conta de que só pode ser alguma coisa (no
sentido em que se diz que alguém é espirituoso, ou é mau ou é ciu-
mento) se os outros o reconhecerem como tal. Para obter qualquer ver-
dade sobre mim é necessário que eu considere o outro. O outro é in-
dispensável à minha existência tanto quanto, aliás, ao conhecimento
que tenho de mim mesmo. Nessas condições, a descoberta da minha
intimidade desvenda-me, simultaneamente, a existência do outro
como uma liberdade colocada na minha frente, que só pensa e só quer
ou a favor ou contra mim, desse modo, descobrimos imediatamente
um mundo a que chamaremos de intersubjetividade e é nesse mundo
que o homem decide o que ele é e o que são os outros (SARTRE, 1970,
p. 13).

O homem não é um ser pronto, acabado. É um ser em constru-


ção, que se faz. Se faz em nome da moral, da ética, da criação e da in-
venção. Invenção que só se institui como mudança se for em nome da
liberdade de si e do outro. Essa prática da liberdade se faz na ação do
sujeito concreto. O ser humano não é alguém desligado do mundo, do
contexto das demais personagens de uma narrativa vivida. É parte ins-

156
tituinte e instituída. Assim, a prática da liberdade não se faz pela re-
produção, pela dominação ou pelos modelos pré-estabelecidos, mas pela
ousadia da invenção de uma ação-reflexão mais justa, autêntica, eman-
cipatória e questionadora sobre a forma como agimos sobre o mundo e
somos afetados por ele. As relações de consciência de si, do outro e do
mundo exigem uma postura de colocar-se no lugar do outro, de uma
empatia e uma alteridade, distanciando-se do humanismo voltado ape-
nas para o Eu. Dessa forma, o humanismo passou a ser compreendido
como:

[...] homem está constantemente fora de si mesmo, é projetando-se e


perdendo-se fora de si que ele faz com que o homem exista; por outro
lado é perseguindo objetivos transcendentes que ele pode existir;
sendo o homem essa superação e não se apoderando dos objetos senão
em relação a ela, ele se situa no âmago, no centro dessa superação.
Não existe outro universo além do universo humano, o universo da
subjetividade humana (SARTRE, 1970, p. 18).

A emancipação humana nasce dessa compreensão que a exis-


tência humana está vinculada a uma historicidade, a uma cultura, a
uma sociedade que precisam ser lidas, interpretadas, compreendidas
por uma linha teórica crítica que nos permita dialogar com o outro em
suas condições humanas e subumanas. Vale ressaltar que a cultura é a
arte que herdamos de gerações passadas, mas podemos fazê-la, refazê-
la, criá-la e recriá-la, a partir da singularidade e da pluralidade que
nos coabitam.
Não há uma (trans)formação se não houver um diálogo sobre as
amarras que nos prendem e nos distanciam. Essa é ação transcendente
do ser que pode modificar e ampliar o seu repertório de compreensão
sobre o que é a vida, surpreendendo a si mesmo e aos demais membros
de uma comunidade. A transcendência está alinhada ao ato de desafiar-
se e de movimentar-se em prol do Ser do humano. Muito além de habi-
tar no mundo está o desejo e a responsabilidade de (trans)formá-lo.
A existência começa pelo corpo como ‘lugar” onde a vida acon-
tece e se concretiza em sensibilidades, atitudes e construção de uma
identidade que pode ser modelada ou fluida. Dessa forma, a construção
da existência perpassa por um corpo que é atravessado pelo contexto
histórico-social e cultural. Além das relações dialógicas. Quando pensa-
mos no diálogo como um instrumento de formação humana, pautamo-

157
nos na obra “Eu e Tu”, do filósofo Buber (2001). O humano pauta-se na
relação dialógica e de reciprocidade entre o “Eu-Tu” ou “Eu-Isso”: “[...]
Meu Tu atua sobre mim, assim como eu atuo sobre ele [...]” (BUBER,
2001, p. 62).
A relação “Eu-Tu” significa aquilo que é essência do homem e
do encontro com o outro (a natureza; os seres humanos e os seres espi-
rituais). É a ontologia. Já a relação “Eu-Isso” é a interação com o mundo
e seu conjunto de vivências, conhecimentos e experimentações. É o afas-
tar-se do “Eu-Tu”, algo necessário à condição humana para o entendi-
mento de mundo, mas que pode ser perigoso se houver apenas uma pre-
ocupação com o “Isso”. Para o autor, a existência humana é ancorada
na dialética, na práxis e no diálogo. Reconhece o amor como uma condi-
ção do diálogo, onde o “Tu” é a centralidade de uma condição de vida
pessoal e social. É o lugar do outro no eu. É uma práxis inter-humana
(BUBER, 2001).
Já o filósofo Heidegger (2005a, p. 15), na obra “Ser e Tempo”,
compreende que a existência humana se faz no pensar: “É por esta ver-
tigem de Ser e Tempo que pensar é o modo de ser do homem, no sentido
da dinâmica de articulação de sua existência. Pensando, o homem é ele
mesmo, sendo outro”.
O ser-no-mundo só se constitui pela palavra, pelo diálogo, suas
nuances como as falas, as pausas, os silêncios e as produções de sentidos
da “pre-sença” e da “pertença”. A “pre-sença” é o alicerce de um diálogo
interpretativo, conectando o “Ser-com” e o “Ser-junto”: “O ser-em é, pois,
a expressão formal e existencial do ser da pre-sença que possui a cons-
tituição essencial de ser-no-mundo. O “ser-junto” ao mundo, no sentido
de empenhar-se no mundo, [...] é um existencial fundado no ser-em”
(HEIDEGGER, 2005a, p. 92).
O reconhecimento da existência e da condição humana possibi-
lita o se reconhecer “no olhar do outro e na sua pre-sença e co-pre-sença.
Ou seja, o reconhecimento de si é o reconhecimento do outro e do
mundo. É o estar em volta, estar dentro e estar entre. A pre-sença é
abertura para o mundo, é a disposição, a emoção e o afeto. É o ser do
cuidado pautado pela consciência de sua finitude e sua vontade e senti-
dos de ser e existir: “O mundo da pre-sença é um mundo compartilhado.
O ser-em é ser-com os outros. O ser-em-si intramundano destes outros
é co-pre-sença. [...] O outro vem ao encontro em sua co-pre-sença no

158
mundo” (HEIDEGGER, 2005a, p. 170-171). No que se refere ao conceito
de presença e ao ser-no-mundo, Freire (2000) explica que:

Na verdade, falo da ética universal do ser humano da mesma forma


como falo de sua vocação constituindo-se social e historicamente não
como um “a priori” da História. A natureza que a ontologia cuida se
gesta socialmente na História. É uma natureza em processo de estar
sendo com algumas conotações fundamentais sem as quais não teria
sido possível reconhecer a própria presença humana no mundo como
algo original e singular. Quer dizer, mais do que ser no mundo, o ser
humano se tornou uma presença no mundo, com o mundo e com os
outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um “não-
eu” se reconhece como “si própria”. Presença que se pensa a si mesma,
que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que
faz mas também sonha, que constata, compara, avalia, valora, que de-
cide que rompe. E é no domínio da decisão da avaliação, da liberdade,
da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se im-
põe a responsabilidade (p. 20).

A existência é antes de tudo uma inquietação que nos move e


um compromisso com a vida, com o eu, o outro e o mundo. Ou seja, um
compromisso social. Um compromisso que transpõe “a individualidade”
e alcança “a individualidade coletiva e intersubjetiva”. Daí, a relevância
de entendermos a natureza humana e o compromisso da educação com
o processo de emancipação, de autonomia e de liberdade. Por quais ca-
minhos? O princípio da alteridade, da comunicação mútua, da comu-
nhão dialógica, da escuta ativa. O ser humano como um ser concreto se
desenvolve em um lugar dotado de heranças histórico-culturais e eco-
nômicas. Um ser capaz de pensar. Aliás, esta é a inquietação que o pro-
fessor universitário Heidegger (2005b) questionava em suas aulas: o
que é aprender? O que é aprender a pensar? Para o autor o aprender
era mais importante do que o ensinar, uma vez que, mesmo os que en-
sinam, precisariam aprender a pensar e a questionar. O aprender é o
ato da pergunta, principalmente perguntar e pensar sobre aquilo que o
mundo não quer pensar ou te proíbe a pensar. Aquilo que reconhecemos
como relevante precisa nos provocar a um movimento de busca por per-
guntas e respostas que nos levem além do óbvio, do dito, do exposto.
Grave é o não pensar e sobre o que não pensamos. Daí a máxima do
autor: deixar pensar; deixar aprender. E a esse lugar de aprendente
cabe a todos, educandos, educadores, cidadãos (MARTINI, 2005).

159
Para ser capaces de pensamiento hemos de aprenderlo, ¿Qué es apren-
der? El hombre aprende en cuanto pone su hacer y omitir en corres-
pondencia con lo que de esencial se le adjudica en cada caso. Apren-
demos el pensamiento en la medida en que atendemos a lo que da que
pensar (HEIDEGGER, 2005b, p.16).

Um posicionamento muito próximo dos escritos de Freire. “Sem


a leitura do mundo, o sujeito não é capaz de interpretação e crítica de
seu momento histórico. Nem tampouco é capaz de projetar sua emanci-
pação enquanto projeto intersubjetivo, que acolhe o outro no seu reco-
nhecimento, na solidariedade, [...]” (MARTINI, 2005, p.12). Nesse sen-
tido, Heidegger e Freire concordam que cabe à educação ensinar a pen-
sar. Esse é um ato revolucionário e comprometido com a formação hu-
mana:

A liberdade que Freire e Heidegger invocam em termos de deixar


aprender e ser livre para pensar, além de representarem um risco,
decorrente da finitude e precariedade do homem que se coloca no ca-
minho do pensar, significam ainda hoje uma grande ousadia. Isso por-
que, cada vez mais, o poder hegemônico de nações com domínio cien-
tífico e tecnológico, e consequentemente com poderio bélico e domínio
dos meios de comunicação, insiste em impor sua visão de mundo e sua
forma de pensar ao resto do mundo, dificultando qualquer tentativa
de pensar por si mesmo e a partir de suas próprias tradições, tal como
esses grandes mestres propuseram que fosse a tarefa do educador
(MARTINI, 2005, p.13).

Mas ensinar a pensar, aprender a pensar e aprender e aprender


não são atividades fáceis. Elas exigem conhecer a historicidade e a rea-
lidade situacional e local. Exige ter um panorama político, econômico e
social sobre aquilo que se questiona e se quer conhecer. Exige ter a ou-
sadia de perguntar o que não costumamos perguntar e, consequente-
mente, costumamos não responder e não pensar. Ao relacionarmos o
campo filosófico sobre a existência humana com o campo da violência,
buscamos pensar sobre o que nos torna humanos em nosso cotidiano
relacional. E nos questionamos:

Onde aprendemos a odiar com tanta intensidade? Como aprendemos


isso com tanta facilidade? Essas duas perguntas estão sendo feitas por
todos(as) aqueles(as) número muito grande de pessoas. Por quem
ainda não se conformou com as mais diferentes formas de violência
que, cada vez mais, tomam conta de nosso cotidiano local e planetário.

160
A resposta para a primeira pergunta me parece óbvia. Talvez até por
isso é que não a tenhamos ainda encontrado. Os seres humanos apren-
dem a odiar nos locais onde constroem sua existência. Ou seja: nos
seus lares, nas escolas, nas ruas, nos clubes, nos templos religiosos
que frequentam. Enfim, nos espaços cotidianos em que suas vidas
acontecem. Até porque não podemos nos esquecer de outra coisa muito
simples: a vida se constrói nas pequenas coisas. No cotidiano (BAR-
CELOS, 2006, p.125).

Uma das formas de combater a violência, além da presença do


poder público por meio das políticas públicas sociais que garantam os
direitos humanos e constitucionais básicos como: saúde, saneamento
básico, educação, segurança, lazer, etc., é investir urgentemente na
educação reflexiva, visando provocar mudanças na realidade e na pers-
pectiva de vida desses educandos e educadores que vivem sobre a mira
da violência. A educação salva vidas e precisamos cuidar de quem
educa, mas para tal é preciso desenvolver uma escuta sensível e dar voz
aos educadores que vivem esse estresse psicológico diário como se esti-
vessem em uma guerra civil. Ouvir o educador é ajudar a comunidade
a compreende o seu processo histórico-social e, a partir desse conheci-
mento, pensar em estratégias eficazes para a redução da violência ur-
bana no entorno da escola e na comunidade como um todo.

NA MIRA DA VIOLÊNCIA URBANA: UM RELATO DE EXPERI-


ÊNCIA DE UMA EDUCADORA EM BUSCA DE SI, DO OUTRO E
DA HUMANIZAÇÃO

“Paz sem voz, não é paz, é medo.”


(YUKA, MARCELO; O RAPPA; 1999)

Eu47 nunca vou esquecer aquela cena. Era um dia letivo qual-
quer no ano de 2002. De repente, eu vi mães, pais, familiares e vizinhos
subindo as rampas que davam acesso ao primeiro e ao segundo andar

47Neste item do texto, optei pela escrita em primeira pessoa do singular para atender à
metodologia adotada neste estudo, pesquisa de abordagem qualitativa no campo das nar-
rativas (auto)biográficas, cujo objetivo é construir sentidos e ressignificar a memória e a
experiência vivida. Para tal, narro “cenas” da minha história de vida como docente da
rede pública envolvendo situações de violências urbanas pelas quais presenciei no ambi-
ente escolar.

161
do Centro Integrado de Educação Pública (CIEP). Logo em seguida, des-
ciam as rampas de forma apressada puxando as crianças e as mochilas.
Diante daquela confusão, sem entender o que estava acontecendo, fi-
quei bem assustada. A confusão era algo inesperado: traficantes pedi-
ram para fechar tudo e as crianças serem retiradas das escolas. Logo
haveria confronto armado. Ninguém passa por uma experiência como
essa sem ser atravessado pelo medo, pela vontade de desistir, pela
perda da esperança. Por uma fração de tempo perdi o chão, as certezas
e a coragem de prosseguir. O CIEP ficava situado em uma região rode-
ada por seis comunidades carentes, além estar em um dos maiores bol-
sões de pobreza do Rio de Janeiro.
O trajeto diário entre um trabalho e outro e a volta para casa
sempre me deixavam apreensiva, mas essa é a realidade da população
carioca. Mas, naquele dia, eu vi o impacto da violência urbana dentro
do ambiente escolar. Naquele momento, por um movimento de empatia
e de alteridade eu enxerguei a violência diária que nossos educandos e
seus familiares passavam. A visibilidade midiática da violência, por ve-
zes, só reflete a violência letal, que por si só já é uma barbárie, mas há
uma violência invisível, sorrateira, que corre entre as frestas das vielas
e dos percursos cotidianos em que vivem as personagens centrais da
comunidade escolar: o medo, o terror, a opressão, a ameaça constante.
Viver sob a mira da violência não apenas causa graves impactos sociais,
adoece o ser humano e o afasta de sua natureza, o ser-no-mundo e o Ser
Mais. Estudantes na mira da violência apresentam uma série de ques-
tões pessoais e sociais que comprometem tanto a sua aprendizagem,
quanto a sua permanência no ambiente escolar. Até hoje sou capaz de
sentir o efeito do pânico atravessando o meu corpo. Só aprendemos por-
que temos um corpo que primeiro sente e dá sentido para aquilo que
nos defrontamos ou desejamos aprender. A aprendizagem nem sempre
se refere apenas aos aspectos positivos, mas também aos traumas. Ali
eu me coloquei no lugar do meu educando. Como aprender sobre a mira
da violência diariamente? Comigo foi apenas um dia e com eles? Quan-
tas vezes? Quantas noite? Quantas manhãs? Quantas vezes ao longo do
mesmo dia? A guerra não está apenas em outros países, está ali naquele
lugar que muitos ainda conseguem sobreviver.
Por ter tido essa experiência no meu local de trabalho e ter sen-
tido no corpo, nos aspectos emocionais e na minha condição cidadã e
humana decidi investir no estudo no campo da violência. A Unesco vem

162
desenvolvendo pesquisas com vários atores da comunidade escolar para
compreender esse fenômeno. Me debrucei sobre as pesquisas desenvol-
vidas pela Unesco e coordenada por Abramovay (2002; 2005; 2016). As
pesquisas abordam os tipos de problemas enfrentados por estudantes
que vivem em situações constantes de violência extrema: estudantes
relataram que sentem medo, revolta, ficam nervosos pelo medo de se-
rem atingidos por uma bala perdida ou por serem confundidos com pos-
síveis criminosos, além de sentirem dificuldade de concentração, medo
de sair de casa, medo do trajeto até a escola. Os danos causados englo-
bam a esfera social como o isolamento social e abandono/evasão escolar;
a esfera psicológica, como crise do pânico, trauma, baixa autoestima,
dificuldades de aprendizagens, defasagem no desenvolvimento acadê-
mico que refletem na sua vida pessoal. Os estudantes relataram que:

É um sentimento de não pertença e de desvalorização da escola e por


extensão, de si”. [...] Violência incomoda muito a gente que quer estu-
dar e sofre com tudo isso, por esse motivo muitos alunos param de
estudar, porque escola é para estudar, não para me sentir em uma
delegacia. [...] não me sinto segura, é como se eu fosse para o colégio e
não tivesse a certeza de voltar para casa. [...] o ensino é muito fraco, a
escola precisa ter ensino mais avançado (ABRAMOVAY, 2016, p. 55).

Esse sentimento de não pertença acaba também invadindo o ser


do educador, visto que, por um espírito de sobrevivência, tendemos a
nos proteger daquilo que nos coloca em risco. Esse sentimento pode au-
mentar ou diminuir. Vai depender das ações pedagógicas coletivas de-
cididas em grupos em prol de uma educação libertadora e (trans)forma-
dora que vai substituindo esse sentimento e insegurança por uma espe-
rança e um desejo de fazer a diferença no local em que o ser educador
se constitui. Foi assim que consegui superar o medo e retornar no dia
seguinte. A equipe diretiva, pautada por projetos de cidadania, de edu-
cação de qualidade e de ampliação do repertório cultural, desenvolveu
práxis pedagógicas que envolvessem toda a comunidade e a trouxesse
para este ambiente, fazendo com que todos percebessem o poder da edu-
cação e sua contribuição para o desenvolvimento integral do ser.
Muitas vezes, durante o trajeto para o trabalho, ouvi tiros e
senti muito medo. Todavia, quando olhava para os nossos alunos que
estavam conosco todos os dias e para os ex-alunos, que no contraturno
dos seus colégios voltavam para o CIEP, para participarem das oficinas

163
de música, de dança, de ballet, de cidadania, de canto, de folclore, den-
tre outras, tínhamos a certeza de que estávamos caminhando para a
diminuição da violência lá fora. Muito desses alunos estavam na zona
de risco e, ao encontrarem no CIEP um abrigo educacional qualitativo,
trocavam as horas de ócio e de vivência da violência urbana, por horas
de aprendizagens, de convivências e de compartilhamentos. Ali ocorria
o processo de humanização. Ali acontecia o deixar viver e o deixar exis-
tir.
Diante da ressignificação dessas memórias acredito que aos
professores que atuam na mira da violência e caminham sobre o fio da
navalha como eu caminhei, cabe nos instigarmos a responder uma in-
quietação latente e urgente: “O que faremos com que fizeram de nós?”
Esta não é uma pergunta fácil de ser respondida, uma vez que muitos
professores, durante o percurso, adoecem, são vítimas de violências fí-
sicas e, até mesmo, de armas de fogo, seja de forma intencional ou não.
Como já destacamos, a violência possui múltiplos sentidos e só cabe ao
sujeito da experiência “dizer a sua palavra” (FREIRE, 2007) e fazer as
suas escolhas.
Vale destacar que uma das pesquisas realizadas por Abramo-
vay (2002) evidenciou que os professores se sentem desvalorizados pela
sociedade, assim como os educandos de áreas de periferia que sofrem
com as situações de violências e, consequentemente, passam a ter me-
nos concentração nas aulas, produzindo a não-aprendizagem e a desa-
tenção. Por outro lado, o professor desmotivado e com medo tende a pe-
dir a transferência de unidade escolar, o que aumenta a rotatividade de
professores nessa região, fator que agrava ainda mais a situação, visto
que esses estudantes de área de risco e de vulnerabilidade social preci-
sam de uma educação de qualidade capaz de proporcionar a equidade e
a justiça social. Pesquisas desenvolvidas pelo Ipea já apresentadas
neste estudo apontam que a educação é um meio para diminuir a vio-
lência urbana, no entanto, a ascendência social está vinculada à apren-
dizagem significativa e qualitativa, sem ela permanecerá a escalada da
desigualdade social e do agravamento das violências,
Precisamos cuidar do educador, a partir de políticas públicas,
que garantam o seu direito à vida, sua dignidade salarial e suas condi-
ções saudáveis de trabalho. Destaco a dignidade salarial, uma vez que
os baixos salários levam os professores a assumirem duplas e triplas

164
jornadas de trabalho, em único dia, ao longo de toda a semana. No en-
tanto, muitas vezes, não é suficiente para cobrir os seus gastos referen-
tes as necessidades básicas de sua família. Esse é um dos fatores apon-
tados por educadores concursados que atuavam em área de risco e de-
sistiram da docência. O investimento nas áreas sociais, principalmente,
na educação é sinônimo de desenvolvimento humano, logo desenvolvi-
mento econômico. Inclusive é uma das exigências dos Organismos In-
ternacionais / Organismos Multilaterais como a Organização para a Co-
operação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e Organização das Na-
ções Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco); e previsto
na Constituição Federal (1988). Movimento iniciado em 2000, no Fórum
Educação para Todos: o compromisso Dakar. O que instituiu o Plano
Nacional de Educação (PNE), por meio da Lei nº 10.172/01 (BRASIL,
2001). Já a Lei nº 13.005 (BRASIL, 2014) instituiu o PNE, de 2014 a
2024, tendo como uma das vinte metas a melhoria do rendimento dos
educadores: “Meta 17: valorizar os(as) profissionais do magistério das
redes públicas de educação básica, de forma a equiparar seu rendi-
mento médio ao dos(as) demais profissionais com escolaridade equiva-
lente, até o final do sexto ano de vigência deste PNE”. Não é favor. É
um acordo internacional visando a melhoria da educação.
Um professor entrevistado pela pesquisa desenvolvida por
Abramovay (2005), considera a violência como um fenômeno histórico-
social que:

[...] vai criando uma animosidade entre as pessoas, que também é


agravada pela questão das drogas, do medo, do crime organizado, da
polícia corrupta, das leis que não funcionam, que valem para algumas
pessoas mais que pra outras. Então, isso tudo gera um clima de vio-
lência na sociedade (p. 64).

O lugar da experiência é único, entretanto, ao ser comparti-


lhado, promove a reflexividade crítica e nos move a questionar o verda-
deiro papel da educação. Vale ressaltarmos que as pesquisas narrativas
(auto)biográficas não têm como objetivo comprovar hipóteses, mas dia-
logar com as memórias ressignificadas. Entendemos que: “É experiên-
cia aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao
nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiên-
cia está, portanto, aberto à sua própria transformação” (LARROSA

165
BONDÍA, 2002, p. 25-26). É um olhar que entrelaça a formação acadê-
mica, profissional, científica, mas principalmente, humana. O saber da
experiência conecta o homem concreto a sua comunidade humana, que,
ao mesmo tempo, é pessoal e coletiva; objetiva e subjetiva; dotada de
hábitos, mas anseia também por mudanças estruturais e existenciais.
A experiência de si nos ensina a estar no mundo à luz dos olhos do outro,
do ser-no-mundo e do ser-com-o-outro, a mudança que queremos ver
acontecer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde os primórdios a busca por um sentido para a existência


humana sempre nos aquietou. Dentre os filósofos que versam sobre essa
temática, há um entendimento maior e mais aceitável pelo viés da pro-
dução de sentidos de forma individual e coletiva. O ser só se constitui e
só se reconhece por meio de sua relação construtiva com o outro e a
Educação trama um percurso itinerante em busca de provocar um en-
contro dialógico, reflexivo e ativo em prol da humanização.
Humanização pelo encontro do Ser Mais, termo freiriano, onde
o Ser Mais seria uma vocação ontológica do ser humano em prol da li-
berdade e da emancipação, tanto de si como do outro, sendo um dos
pilares para o desenvolvimento da democracia, da justiça social e da
equidade. Essa é a nossa vocação: “[...] Vocação negada na injustiça, na
exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas, afirmada no
anseio da liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos, pela recuperação
de sua humanidade roubada” (FREIRE, 2007, p. 177).
Para finalizar este diálogo amoroso em prol da educação quali-
tativa diante do cenário das violências urbanas, destacamos uma fala
do professor Antônia Nóvoa48 onde enfatiza que houve um tempo em
que a Educação era vista como uma preparação para a vida e posterior-
mente, passou a ser vista como a vida em si. No entanto, ele compre-
ende que a “Educação é mais do que a própria vida’. Para os que andam
diariamente sobre o fio da navalha e colocam a sua própria vida em
risco, compreendem que a educação é a existência humana. Será que

48Palestra “Como será a educação das próximas gerações?”, proferida pelo professor Dr.
Antônio Nóvoa, em 05 de agosto de 2019, no evento no qual a UFSM lhe concedeu o título
de Dr. Honoris Causa.

166
viver é o mesmo que existir? Queremos somente sobreviver? Viver?
Acredito que todos os dias desejamos existir. Existir é sentir, refletir,
compartilhar, conviver, ressignificar, amar. Amar no sentido freiriano,
como uma condição humana permeada pelo caminho dialógico com ou-
tro. O Eu só existe se o Outro existir. Isso vai além da sobrevivência e
do viver. Isso é humanização.

167
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20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educa-
ção nacional. Para dispor sobre a formação dos profissionais da educa-
ção e dar outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF,
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170
REVERBERAÇÕES DA CORPOREIDADE:
O ESPAÇO EDUCACIONAL E A ÉTICA DA DIFERENÇA

Ana Paula Parise Malavolta 49


Pablo Henry Silveira Wouters50
Naiara Simões Jornada51
Eluizi Maurent Carvalho52

Linhas Iniciais

A presente escrita surge embasando-se em observações realiza-


das dentro de uma escola no interior do Rio Grande do Sul, diante de
um olhar permeado pela Psicologia crítica dentro do ambiente escolar
aonde ocorre o processo de ensino aprendizagem; considerando que este
possui suas modulações da relação professor aluno dentro deste sistema
composto por engrenagens diversas. Com isso sente-se a necessidade de
falar sobre as linhas de ideologias e pensamentos que atravessam os
corpos que compõem estes espaços e o lugar que os mesmos ocupam
dentro de reverberações singulares e coletivas no campo da Educação.
A escrita deste artigo é uma forma de olhar as diferenças en-
quanto potência dentro do prisma educacional uma maneira de resistir
a pensamentos e métodos padronizadores dentro da realidade do sis-
tema escolar que ainda percebe o sujeito como uma máquina de produ-
ção de capital; considerando que a educação tradicional produz uma
forma de silenciamento do processo criativo e das singularidades hu-
manas, ocasionando muitas vezes o fracasso escolar.

49 Graduação em Psicologia pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das


Missões- URI Santiago (2015), Mestrado em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Gradu-
ação em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria (PPGART/UFSM) na
Linha de Pesquisa Arte e Visualidade (2017). Atualmente é Doutoranda pelo Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria (PPGE/UFSM)
na Linha de Pesquisa Educação e Artes.
50 Acadêmico do Curso de Psicologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai

e das Missões – URI Campus Santiago.


51 Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai

e das Missões – URI Campus Santiago.


52 Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai

e das Missões – URI Campus Santiago.

171
Pensando a partir do método de ensaio de Larrosa (2003), aonde
há uma crítica e uma reflexão sobre a metodologia da escrita acadêmica
e o que ela nos proporciona, nos aventuramos aqui a palavrear possibi-
lidades de percepções e sentidos. Com efeito, a maneira de escrever den-
tro da esfera cientifica está limitada a regras, limites e restrições, ca-
racterizados pelos dispositivos de controle da escrita, logo também da
leitura, do pensamento e também da linguagem, gerando o que este au-
tor intitulou de conformismo linguístico que posteriormente produz ou-
tras formas de conformismo dentro da linha de pensamentos e áreas do
estudo humano. O “ensaio” é visto como uma forma de liberdade, con-
tudo as vezes deixado de lado como metodologia de escrita no campo
acadêmico, pelo fato de que este convoca uma quebra ao ortodoxo como
diria Adorno (2003). Este tipo de escrita rompe barreiras mostrando o
que metodologias padronizadas tentam esconder em suas linhas ou não
possibilitam enxergar ou (re) inventar.
O objetivo principal desta escrita é proporcionar uma reflexão
ao leitor que entra em contato com estas palavras e páginas, partindo
de filósofos e teóricos contemporâneos, contudo não pretende-se uma
escrita empírica e rígida, mas uma linguagem que produzam pensa-
mentos e questionem, uma escrita híbrida e impura (LARROSA, 2003),
potencializando a expressão e a criação. Assim, este artigo deseja afetar
o leitor produzindo reflexões e quebras de paradigmas engessados e en-
rijecidos.
A costura de conceitos e teorias que pretende esta escrita, que-
bra com os paradigmas estáticos da filosofia/psicologia/educação ou da
escrita científica empírica tradicional, tecendo uma “colcha de retalhos”
aonde Deleuze, Guattari, Foucault e Agamben encontram-se e conver-
sam através das suas ideias e pensamentos potentes vinculados ao que
foi observado pelos autores em suas experiências dentro do ambiente
escolar e educacional. Este rompimento com o conformismo e com o tra-
dicionalismo da escrita dentro da academia, agencia-se, diretamente
com o pensamento da psicologia crítica dentro da escola aonde vem tra-
zer uma nova ótica sobre o ensino e a aprendizagem, analisando o ali-
samento que se encontra estriado, em defesa de uma escola onde pos-
sam habitar corpos nômades (DELEUZE E GUATTARI, 1997).
Pensa-se esta escrita como uma junção de dois tecidos (os con-
ceitos filosóficos e as observações realizadas) através de uma linha (os

172
pensamentos e afetos dos autores), tensionando as barreiras fronteiri-
ças que excluem e segregam, assim como pretende a escrita de um en-
saio, focando em uma escrita agenciada pelo acontecimento (LAR-
ROSA, 2003). Nessa acepção, Adorno (2003) vem dizer que a técnica do
ensaio é uma mistura de raças puras de teorias e linhas de pensamento
que trazem junto de si, o compartilhamento e unificação de saberes
fragmentados que formam os famosos “experts”, sendo assim um mé-
todo potente para este artigo já que o objetivo é a união das diferenças
e engrenagens do sistema educacional.
As instituições que cercam o viver em sociedade no momento
presente, em especial a escola vem moldando as singularidades que ha-
bitam os espaços comunitários, sabe-se que depois da família a escola é
a segunda instituição que adentramos com o intuito de passarmos pelo
processo de ensino aprendizagem, contudo não é um processo que vise
uma forma de educação criando cidadãos críticos e livres com suas pró-
prias ideologias e pensamentos, e sim um treinamento de formas para
a produção capitalista e industrial do mercado de trabalho. Ao campo
da educação e de todas essas construções que compõem a forma de se
fazer educar instaura-se um controle muito rígido, onde a norma dita
os padrões que devem ser seguidos para que exista o bom e ruim o certo
e errado para seguir a diante em um processo educacional que traga
resultados alarmantes e coloque o sujeito em situações de sucesso, des-
viando-se de um desejo potente e genuíno, para um desejo capitalista
que traga um prestigio econômico.
A escola é um ambiente de convívio humano que parte das dife-
renças, e quando se fala destas, pensa-se como algo que é da ordem da
diversidade e subjetividade de cada sujeito que se encontra dentro do
processo de escolarização, logo, as diferenças constituem o ser humano.
A problematização que esta escrita convida o leitor a fazer é fundamen-
tada nestas questões: A educação tem olhado para as diferenças? Qual
o lugar que os corpos que compõem o sistema da educação estão ocu-
pando hoje dentro da escola?
Baseando-se nesses questionamentos e na problemática que
este artigo vem discutir, pensa-se em uma construção de pensamento
crítico sobre os processos políticos e de ensino que vem atravessando as
escolas atuais e com os modelos de educação ainda vigente dentro das
mesmas que atravessaram e permearam as diversas formas de vida
dentro da sociedade brasileira. A escola e seu processo educador vem de

173
um modelo muito antigo onde o engessamento de conceitos e ensina-
mentos eram tidos como ideal de aprendizagem, não liberando espaço
para as potências da arte e do devir que compõem e enriquecem o apren-
der. Atualmente esse modelo não se alterou, ou seja, não teve muitas
mudanças, o que faz com que escritas como esta se façam necessárias.
Assim, pensar essas articulações dentro dos ambientes escolares torna-
se fundamental, pois muitos educadores desconhecem novas aborda-
gens de ensino aprendizagem e acabam por reproduzir algo que já está
pronto.
O lugar da escola é permeado por linhas infinitas de diversida-
des e de encontros, onde o todo se torna o grande aprender. Todo este
processo que estamos falando não se modula e não se organiza apenas
entre paredes e livros didáticos, pois as singularidades existem para
além destes enquadres, precisa-se pensar e (re) criar. A liberdade do
criar, sentir e produzir agenciamentos potencializados pelo pensamento
crítico e pelo afeto dentro da sala de aula, num sistema que possui en-
grenagens de funcionamento e paradigmas engessados, é um desafio
para psicologia crítica. Contudo está juntamente com a filosofia da di-
ferença e os mais diversos campos da expressão como a arte por exemplo
são aliadas, como uma grande marreta que quebra paredes e destrói
muros entre a reflexão e o enquadramento e congelamento de conceitos
ou de metodologias tradicionais tomadas como verdades absolutas.
Logo, esta escrita se reverbera como um disparador e potencializador
para pensar novos métodos em defesa de uma educação inventiva e li-
bertadora.

Corpo em “formas”: o poder disciplinador como processo de


subjetivação

As observações dentro do espaço escolar foram realizadas em


uma turma de terceiro ano, com jovens em uma faixa etária de dezes-
sete a dezenove anos. Com isso adentrou-se ao espaço escolar de conví-
vio destes sujeitos para serem feitas algumas análises do viver social
dentro da escola e do processo de ensino aprendizagem. Duas aulas de
conteúdos distintos foram observadas juntamente com a hora do inter-
valo e foram realizados alguns grupos de escuta com esses jovens, aonde
dinâmicas foram utilizadas para que estes colocassem livremente suas
percepções, sustentando um espaço seguro diante de suas questões.

174
A escola tem uma forma arquitetônica muito disciplinar tradi-
cional que impera ainda hoje, dentro dos ambientes educacionais, as
salas ainda são organizadas em fileiras de frente para o quadro negro,
aonde o professor ainda como figura de autoridade professa o seu saber
para os alunos. Na tentativa de vencer conteúdos, algumas escolas têm
nas portas de suas salas de aula pequenas janelas aonde antigamente
monitores ou figuras de poder pertencentes à direção ficavam obser-
vando, cuidando como o professor atuava e se os alunos eram discipli-
nados e mantinham a ordem.
Dentro deste prisma de acontecimentos é que Foucault (1999),
vem postular o conceito de panóptico, pois a construção deste artefato
aconteceria em formato de anel pela periferia, ou seja, pelos indivíduos
que se quer vigiar, e ao centro deste anel uma grande torre, onde é pos-
sível ter uma visibilidade muito grande sobre os atos e relações dos vi-
giados. Dentro dessa torre vazada de largas janelas, coloca-se alguém
para que então o controle seja de fato realizado, e assim todos os passos
e acontecimentos são controlados e percebidos. Baseando-se também na
criação arquitetônica das prisões europeias que foram observadas e
questionadas por Jeremy Bentham em 1785. Contudo pensa-se este
conceito para além do movimento de edificação arquitetônico de aprisi-
onamento e sim como uma espécie de controle de singularidades e cor-
pos, que devem ser padronizados para manter-se uma homeostase den-
tro do ensino, o que podemos pensar em uma rostificação normatizadora
do aluno e professor dentro da sala de aula.
O panóptico visa um olhar abrangente de vigilância, para o que
está transviando uma normatividade imposta por uma cultura social de
convívio, neste caso muitas vezes as diferenças percebidas dentro de
sala de aula (FOUCAULT, 1999). Entretanto é mais do que estudado e
afirmado dentro das mais diversas áreas da psicologia e filosofia que
cada ser humano é constituído por processos de subjetivação formando
singularidades distintas. Nesse sentido, a busca por “formas” que en-
quadrem um certo grupo social é, no entanto, uma anulação de singu-
laridades, uma cadeia de silenciamentos de corpos, trancafiando as po-
tencialidades e a dialética do processo de ensino-aprendizagem dentro
de “formas” específicas de atuação.
Diante destas “formas” Foucault (1999) denominou a dociliza-
ção de corpos em seus escritos, salientando que:

175
O Homem-máquina” de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução
materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro
dos quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o
corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode
ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. (FOU-
CAULT, 1999, p. 163).

Os corpos que compõem o prisma da educação são subjetivados


e manipulados por controles muitas vezes sutis, mas que interferem na
constituição singular de cada sujeito que ali está. As salas enfileiradas,
as janelas nas portas, e uma constante cobrança com perguntas e frases
já introjetadas dentro do inconsciente coletivo que chegam desde a mais
tenra idade dentro do ambiente escolar aos jovens e até as crianças
neste espaço são formas de manipulação e uma tentativa de docilização:
“O que você vai ser quando crescer ?”, “Estude para ser alguém na vida”;
são exemplos de dizeres populares que causam angústia ao jovem que
está saindo do ambiente escolar e adentrando o meio acadêmico e mer-
cado de trabalho.
O controle imposto neste caso sobre estes corpos diz tanto da
parte física, quanto psíquica de uma subjetivação capitalista de produ-
ção, aonde não pensa-se na constituição de um cidadão crítico de livre
pensamento e sim em um sujeito atravessado por linhas capitalistas,
ligadas aos meios de produção do mercado de trabalho dentro da socie-
dade que acorrentam e aprisionam as singularidades. Embotam-se as-
sim, as diferenças que são as válvulas de escape deste sistema com-
posto por engrenagens capturadoras.
Nesse caminho, abre-se espaço para refletirmos sobre a se-
guinte questão que tem permeado a muito tempo o prisma da educação:
“Por que as áreas da sociologia, filosofia, psicologia e artes, não possuem
uma aparição tão intensa dentro das salas de aulas”? Sabemos que es-
tas áreas do conhecimento estão dentro dos espaços da expressão e das
ciências humanas, que compõem a potência humana do livre pensa-
mento e criação. Logo, por estarem ligadas a estas duas palavras ante-
riores, vinculam-se também a crítica e aos questionamentos mobili-
zando linhas ao ser humano a viver a sua liberdade e criatividade, bem
como refletir sobre o porquê dos acontecimentos da vida. Estes saberes
distanciam-se da padronização engessada que as instituições em espe-
cial a escola disciplinadora vem trazer em seus discursos e atos laten-
tes, prezando a lógica, o resultado e as competências.

176
“Desrostificação”: a potência da diferença das formas-de-vida

Pensar um espaço para educação que permita uma certa “Des-


rostificação”, implica lutar por um espaço afetado por forças e formas,
numa via de encontro entre o caos e potência. Nessas possibilidades, a
invenção de mundos plurais que desvia da maneira padronizada dos
modos de existir que por muitas vezes dociliza corpos, recorta e captura,
instrumentos para além deles mesmos, enquanto uma parte de um todo
ou como uma ferramenta com direções ou funções determinadas.
Há um rosto padrão, dominante pré-estabelecido construído a
partir de determinados marcadores econômicos, políticos e sociais. As
linhas que atravessam os corpos fora destes marcadores, podem sofrer
consequências que vão da opressão a psicopatologização de uma singu-
laridade. Um diagnóstico por muitas vezes afiança, o processo complexo
de afirmação de uma condução normativa do rosto padrão do aluno e
professor normatizado, sendo as Desrostificação uma possibilidade de
desconstrução de lógicas patológicas. A escola é um espaço de descober-
tas e criações de mundos a qual diversas vezes recorta a potência cria-
tiva para a produção de crianças/ adolescentes - projeto de um adulto
que será produtivo.
Pensa-se com base em Deleuze e Guattari (1997) na possibili-
dade de composição de olhares outros diante dos corpos que habitam o
campo educacional. Diante destes pensadores, salientamos o conceito
de Corpo Sem Órgãos, vinculado a um corpo onde habita intensidades
que circulam em um espaço onde encontra-se bricolagens, fluxos que se
atravessam e se encontram que potencializam o pensar criativo de dis-
tintas singularidades que constituem um espaço. Nessa linha de aná-
lise, o encontro de corpos diversos produz significados e agenciamentos
como um rizoma, que se alastra e interpela outros corpos, sustentando
e possibilitando trânsitos e deslocamentos simbólicos.
O corpo apresenta maneiras de intensificação e articulação das
potencialidades da vida como meio de inscrição e disseminação de rela-
ções humanas, como o lugar e limite de onde o sentido parte, faz fron-
teira, transgride, partilha, colide, compõe com outros corpos. É impos-
sível duvidar de que chegamos ao mundo com um corpo, uma vez que o
corpo se impõe segundo uma realidade concreta em sua espessura mas-
siva, como uma forma viva que se move e se manifesta em sua existên-

177
cia. Nossas práticas e nossas técnicas implicam gestos, posturas e mo-
vimentos nas interações que estabelecemos com outros corpos, objetos
e pessoas.
Segundo Deleuze e Guattari (1997), o corpo sem órgãos trata de
um corpo fluído por onde passam as forças que promovem as ações. Um
corpo marcado pelo signo da ausência, mas pleno de vida; uma vez que
vida é ação, atividade. Neste sentido, o CsO é o lugar vazio, a presença
e a ausência. As intensidades que constituem o CsO são tamanhas que
expulsam todo e qualquer significado fazendo do corpo um lugar de pas-
sagem. Neste corpo, resta sempre o vazio a ser preenchido. Se é possível
falar em falta em relação ao CsO, trata-se de uma falta fundamental
que designa a incompletude, o ser inacabado, o processo constante de
construção dos modos de subjetivação. O CsO é o lugar da experimen-
tação. É o rompimento com qualquer passado ou valor que se imponha
tentando imobilizar a potência criativa da existência. Este corpo esca-
paria de definições sobre si próprio, abrindo-se para movimentos invo-
luntários que respondem às reações que lhe são impostas, fazendo-se,
assim, vulnerável e potente na sua relação com o desconhecido.
Cada singularidade carrega consigo um horizonte de potencialidades,
vidas múltiplas que reverberam novos verbos que vão sendo compostos
juntos, nas ramificações do “entre”. Marcados pela pluralidade de refe-
rências estas singularidades sentem-se confusas, pois, estão diante de
um emaranhado de pensamentos, compreendendo suas necessidades e
singularidades. Apropriar-se de si novamente exige uma desterritoria-
lização, e uma atualização, possibilitando novas formas de sentir, saber
e agir, reinventando modos de ser e estar consigo e com o outro. Seres
em variância aberto para as intensidades que neles habitam livres para
o indeterminado, linhas que desviam da produção mecânica e previsí-
vel.
Em meio as amarras que empurram uma rostificação do su-
cesso, do bom aluno, capitaneando uma captura do erro como um ab-
surdo, do diferente como doente, do fracasso como fruto de uma culpa
individual. Pensa-se nos lugares de poder que habitam as escolas e se
dobram nas figuras dos professores, diretores, coordenadores que às ve-
zes tomam para si a função de arrebanhar corpos plurais em torno do
dever, das disciplinas. Esta disciplina busca o enquadramento que an-
gustia indivíduos que já passam por períodos como adolescência, perí-
odo este marcado pelo novo, pelas experiências primárias de um novo

178
corpo, trazendo para esse ambiente uma carga negativa onde não deve-
ria existir, pois o “aprender” ou o “ensinar” não tem papeis demarcados,
e sim deveriam mobilizar-se por uma troca mútua. Emergir nos micro-
fascismos travestidos de “ é o melhor para você”, processos violentos de
rostificação ao custo de uma modelização normatizada da infância e da
adolescência que repete, consome, obedece se atualiza em muitos cená-
rios escolares.
Habitar o desconforto das linhas de fuga em meio as que nos
aprisionam é deixar a capacidade plural de inventar, ousar, rizomar,
confundir, sabotar, cortar caminhos (DELEUZE e GUATTARI, 1995).
Pela perspectiva rizomática, não existem caminhos certos, pois estes
escapam da tentativa totalizadora e fazem contato com outras raízes.
Contra aprisionamentos, as linhas de um rizoma se abrem e se movem
para todas as direções, delineando caminhos para as experimentações,
construindo e desconstruindo singularidades, explorando afetos e sen-
sações. Podemos enfatizar Deleuze e Guattari (1990, p. 34) quando es-
tes nos chamam para o entendimento do processo de “fazer rizoma”.
Neste fazer

existem linhas que não podem ser resumidas em trajetórias de um


ponto e que fogem da estrutura; linhas de fuga, devires, sem futuro
nem passado, sem memória (...). Evoluções não paralelas, que não pro-
cedem por diferenciações, mas que pulam de uma linha para outra,
entre seres totalmente heterogêneos; fissuras, rupturas imperceptí-
veis, que quebram as linhas, mesmo se retomam em outro lugar, pu-
lando por cima dos cortes significantes (…) é tudo isso o rizoma (DE-
LEUZE e GUATTARI, 1997, p. 34).

Em meio a acontecimentos que jogam estas singularidades


numa forma ideal de ser, baseando-se no controle de comportamentos,
onde as dobras do fora engendram modos-de-existir, o campo educacio-
nal, por vezes engendra-se por vetores que agenciam processos de sub-
jetivação modulados por regras e normativas. Porquanto, enquanto pos-
sibilidade de invenção de outras possibilidades de ser/estar/fazer o
campo educacional, escrevemos em defesa de um corpo que que possa
se reverberar enquanto potência. Por meio desta prospectiva, Agamben
(2014) discorre sobre o conceito de forma-de-vida, a partir dos campos
da Biologia e da Zoologia, como um modo de viver que considera a exis-

179
tência por meio da apresentação de modos singulares de formas de ha-
bitar o mundo como possibilidade de vida, e sempre e primeiramente
enquanto potência. Nessa concepção, uma forma-de-vida em sua potên-
cia também é política, pois

comportamentos e formas de viver, nunca são prescritos por uma vo-


cação biológica específica, nem atribuídos por uma necessidade qual-
quer, mas, por mais ordinários, repetidos e socialmente obrigatórios,
conservam sempre o caráter de uma possibilidade, isto é, colocam
sempre em jogo o próprio viver (AGAMBEN, 2014, p. 14).

Com efeito, mobilizar os modos de viver implica também em


movimentar o habitar de uma Forma-de-vida. Por conseguinte, a partir
de Agamben (2014), o habitar se constrói pelos meios que uma forma-
de-vida constitui nas relações que estabelece no comum. Por meio desta
possibilidade de análise, todo modo de viver não pode ser separado da
sua forma de apresentação e relação no/com espaço, pois de acordo com
Agamben (2014, p. 13), pensar as formas de viver implica pensar a sua
construção, onde “está em jogo o seu próprio viver e, no seu viver, está
em jogo antes de tudo o seu modo de viver”.
Nesse caminho, compreende-se que Agamben (2014) reflete
acerca de uma forma-de-vida que dá a si mesma sua norma de viver,
sua diretriz. Esse deslocamento de perspectiva em muito se afasta da
vida que se vincula somente a obedecer e repetir regras dadas pela po-
sitividade do direito e pelo utilitarismo econômico, imperativos de uma
sociedade produtivista, cujo horizonte último e desejado é aquele de viés
utilitário e efetualista. Essa prática ética de criar uma forma-de-vida
constitui um estilo de existência que oferece possibilidade de resistência
aos dispositivos de dominação e enuncia novas formas e perspectivas
para a política, em última instância. Nesse aspecto, a política que vem
surge a partir da profanação de uma política capturada por forças eco-
nômicas e jurídicas, enfraquecida e amealhada por interesses outros do
que aqueles que formam a polis originariamente em sua matriz grega.
Ademais, se assumirmos que a vida se delineia e se alinhava
por processos inventados pelas formas-de-vida, estaremos de algum
modo nos distanciando do aparelhamento educacional e dos dispositivos
de controle. Novamente com Agamben (2014), entendemos que um dis-
positivo significa:

180
Qualquer coisa que tenha de qualquer modo a capacidade de capturar,
orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar, e assegurar os
gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não
apenas as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão,
as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., nas quais a cone-
xão com o poder é em certo sentido evidente, mas também a caneta, a
escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navega-
ção, os computadores, os telefones celulares e – porque não- a lingua-
gem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, no qual há
milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem perce-
ber as consequências para as quais ia ao encontro – teve a inconsciên-
cia de fazer-se capturar (AGAMBEN, 2014, p. 39).

Com o conceito de dispositivo, defendido por Agamben (2014),


percebe-se um núcleo, uma sinalização para uma tentativa de diagnós-
tico como possibilidade de pensarmos o acontecimento da vida sem os
dispositivos que a determinam, influenciam, manipulam. Para tanto,
Agamben (2014) aponta para a direção de que devemos permanente-
mente tornar inoperosos os dispositivos de controle atuantes na socie-
dade.
A potência pode ser analisada assim, como uma dimensão do
mundo onde as ações humanas de ser, fazer e agir, criam a partir da
construção de relações e encontros, um espectro de vida pautada na pró-
pria possibilidade da impotência e da inoperosidade. Nesta mesma
perspectiva, Pereira e Icle (2018), apresentam o texto “Pedagogia per-
formativa e seus não-lugares: reverberações da khôra a partir de Platão,
Derrida e Agamben”,com o qual é possível ressaltar pela potência da
inoperosidade, a possibilidade de criação de um espaço multidimensio-
nal de sentidos e ações, atualizando, por conseguinte, os laços que vin-
culariam uma singularidade a outra na esfera do comum (PEREIRA,
2013, p. 31).
Essa perspectiva nos permite compreender que as relações hu-
manas no âmbito do comum, podem ser baseadas pela ética e pela di-
ferença, parecendo serem permeadas por um força que atua na potência
e inoperosidade. Ou seja, os meios relacionais e afetivos que modulam
o contato humano, de algum modo são necessariamente regidos por nor-
mativas e regras, como dispositivos de controle. No entanto, a imanên-
cia dos afetos e dos encontros singulares podem ser desconstruídos e
reinventados, ativando sua potência e operando pela inoperosidade.

181
Nesse caminho, pensar as relações de encontro entre a estética relacio-
nal e a inoperosidade, no âmbito da arte contemporânea, requer um
certo posicionamento de abertura à diferença do outro; diferença esta
que baseia-se em seu modo singular de olhar e perceber o mundo, que
diz respeito também aos seus modos de constituição histórica e cultural.
No entendimento de Agamben (2002, p. 09), na manifestação
potencial da vida, especificamente, da vida humana, no que se refere à
sua condição política e ética, constata-se que em todos os tempos exis-
tiu/existe a atuação da potência diante das formas de viver e criar meios
de relações possíveis. Por esta percepção, a vida em Agamben (2002, p.
10) figura como inapreensível, pois as suas dimensões residem em toda
e qualquer condição vital mediada pela potência, direcionando-se ao
aleatório, ao novo, para aquilo que vem, e que vem em sua singulari-
dade.
O mais instigante do posicionamento sobre a potência em
Agamben (2009) é o fato de que ao anunciar a vida como inapreensível,
ele embarca em uma opção literário-filosófica em constante movimento
de deslocamento, de retorno e de reposicionamento de argumentos e
perspectivas que apontam para vários caminhos e direções. Nesse per-
curso, Agamben (2009) procura demonstrar que a forma da vida hu-
mana foi cindida, fraturada em relação a totalidade da vida. Ademais,
o filósofo aponta para a necessidade de uma retomada da condição ori-
ginária, no sentido de fazer frente à sua apreensibilidade.
Por esta via, salienta-se que Agamben (2002, p. 56) constrói
suas considerações sobre a potência desde Aristóteles, com quem com-
preende a mesma como a força (dynamis) que promove um novo estado,
agencia o movimento ou a mudança de um estado a outro, vinculando a
sua materialidade. Nesse sentido, se a potência pode ser considerada
como um princípio de movimento relacional e afetivo, compreende-se
que sem potência não há movimento. Dessa forma, a singularidade mo-
bilizar-se-ia como uma condição necessária para efetivação do movi-
mento de encontro ao afeto, ao outro. Do mesmo modo, uma singulari-
dade que se expressa em sua realidade de existência, contém, além de
seu ser real, o ato, diante das potencialidades que permitem-lhe man-
ter-se em ato, o que significa dizer que somente a potência em sua cons-
tante atualização mantém o ato e, ao manter-se em ato, atualiza sua
própria potência. Nesta acepção, o movimento não é uma passagem da
singularidade para um outro lugar simbólico, mas sim, a passagem de

182
um tipo singular de ser à outro tipo singular de Ser - de Existir (AGAM-
BEN, 2002).
Em contrapartida, todo ato e movimento é uma atualização e
não atualização ao mesmo tempo, como a experiência do que é possível
e do que não é possível, entre os limites daquilo que se efetiva em ato.
Para Agamben (2007), é a partir do reconhecimento da condição poten-
cial que se encontra inserida a vida humana, uma vez que o ser humano
pode fazer a experiência em constante abertura artística e criativa com
o mundo, com os demais seres humanos e consigo mesmo.
Ao definir a vida como potência, Agamben (2009), procurou a
partir do retorno aristotélico ao conceito, demonstrar de que forma
aquilo que nomeamos de vida é inapreensível, pois a vida é potência que
se realiza em ato. Nesta perspectiva, com grande intensidade, a vida é
definida em Agamben (2009, p. 45) pela ideia de que o ser humano é
acima de tudo “potência de potência”, como um constante vir-a-ser po-
tencialidade, criatividade e inventividade de si mesmo, de sua singula-
ridade.
Nesta linha de enunciação, percebemos que a possibilidade da
inoperosidade está profundamente imbricada na forma-de-vida que de-
termina a potência do corpo que está vivendo. Todos vivem a sua vida,
mas nem todos a vivem como se fosse uma ‘forma de vida’. Sobre a cons-
tituição de uma ‘forma de vida’ Agamben (2017), nos fala sobre uma
forma de vida que “[...] não pode ser separada da sua forma, uma vida
para qual, em seu modo de viver, está em jogo o seu próprio viver e, no
seu viver, está em jogo antes de tudo o seu modo de viver” (p. 13-14).
Então, a constituição de uma ‘forma de vida’ se dá no momento em que
os dispositivos são desativados, e a potência se torna uma forma de
vida, e, esta ao mesmo tempo em que se transforma em uma forma de
vida, igualmente torna-se destituinte, fazendo inoperosas todas as for-
mas singulares de vida regidas por dispositivos. Deste modo, ao nos
afastarmos destes mecanismos de controle e poder, abriremos possibi-
lidade de caminhos para a liberação da potência da vida no campo da
educação; caminhos para a liberdade de Ser/fazer no movimento poético
da processualidade dos acontecimentos da existência diante de sua ima-
nência ética e política. Por fim, acreditamos que um corpo pode vir a se
reverberar no campo educacional diante de uma perspectiva de recons-
trução da subjetividade como acolhimento do outro, desde um olhar

183
ético, em uma relação de encontro e alteridade, buscando a composição
de uma visão crítica e descentrada de mundo.

184
Referências Bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Altíssima pobreza: regras monásticas e formas


de vida. Ttradução Selvino J. Assmann. – 1. Ed. – São Paulo: Boitempo,
2014.

AGAMBEN, Giorgio. Infancia e historia: destrucción de la experien-


cia y origen de la história. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2001.

AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte. Belo Horizonte: Editora


da UFMG, 2006.

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios.


Chapecó: Argos, 2009.

AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento: ensaios e conferên-


cias. Tradução de António Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica Edi-
tora, 2015.

Agamben, Giorgio. Profanações. Tradução e apresentação de Selvino


José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs vol.1, Capitalismo


e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs vol.3, Capitalismo


e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1996.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, História da Violência nas


Prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

LARROSA, Jorge. O Ensaio e a Escrita Acadêmica. Educação e Re-


alidade. Julho de 2003.

PEREIRA, Marcelo de Andrade; ICLE, Gilberto. Pedagogia perfor-


mativa e seus não-lugares: reverberações da khôraa partir de Platão,
Derrida e Agamben. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 67,
p. 121-137, jan./fev. 2018.

185
PEREIRA, Marcelo de Andrade. Pedagogia crítico-performativa:
tensionamentos entre o próprio e o comum no espaço-tempo escolar. Ca-
derno CEDES, Campinas, v. 37, n. 101, p. 29-44, abr. 2017.

186
RELATOS E EXPERIÊNCIAS COMO ESTRATÉGIAS
PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Caroline dos Santos Giuliani53


Andreia Ines Dillenburg54
Angélica Pott de Medeiros55

INTRODUÇÃO

Na atualidade compreende-se como relevante o debate sobre a


necessidade da formação de professores para atuar na Educação Básica,
sustentada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei
9.394/96. No atual cenário nota-se que a criação de programas de for-
mação pedagógica ocorreu para atender a estas expectativas. Estes cur-
sos são direcionados especialmente aos professores, portadores de di-
ploma de educação superior, que queiram se dedicar à educação básica
(BRASIL, 1996). Fator que reforça a exigência de cursos que supram os
problemas relacionados ao distanciamento do processo de formação do-
cente e a atuação profissional, assim como, da preparação de professo-
res harmonizados com as práticas pedagógicas no sentido de construir
competências e habilidades (PEREIRA, 2004). Percebe-se que muitas
instituições de ensino superior se movimentaram no sentido da criação
de licenciaturas para suprir esta necessidade.

53 Graduada em Nutrição pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) (2015). Li-
cenciada em Nutrição pelo Programa Especial de Graduação (PEG - UFSM) (2016). Téc-
nica em Alimentos - Colégio Politécnico da UFSM (2018). Mestranda em Ciência e Tec-
nologia dos Alimentos (PPGCTA - UFSM).
54 Graduada em Educação Especial pela Universidade Federal de Santa Maria-UFSM.

Especialista em Gestão Educacional e Especialista em Tecnologias da Informação e Co-


municação aplicadas a Educação-TICS ambas pela UFSM e Mestre em Educação pela
mesma instituição. Atualmente cursa Doutorado em Educação UFSM- Linha de Educa-
ção Especial e Pós-Graduação em Docência de LIBRAS pela Uníntese
55 Bacharela e Licenciada em Administração pela Universidade Federal de Santa Maria

pela Universidade Federal de Santa Maria Mestra em Administração (PPGA/UFSM)


Doutoranda em Administração pelo Programa de Pós-Graduação em Administração na
Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC e Professora Assistente curso de Admi-
nistração pela Universidade Federal de Santa Maria.

187
Diante disso, em 2009, a Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), criou o Programa Especial de Graduação de Formação de Pro-
fessores para a Educação Profissional e Tecnológica (PEG), objetivando
formar professores em nível superior para a docência. A partir do in-
gresso do discente como portador de diploma de bacharel, ou tecnólogo
em curso superior, o curso proporciona uma formação pedagógica geral,
a partir da formação metodológica e prática.
O Estágio Curricular Supervisionado do referido programa, com
duração de 30 horas, foi realizado nos cursos Técnicos em Agropecuária
e Administração, ambos do Colégio Politécnico da UFSM. As aulas fo-
ram ministradas nas disciplinas de Produção Agroindustrial, do Curso
Técnico em Agropecuária, e Introdução a Custos e Gestão da Qualidade
no Curso Técnico em Administração, no período de agosto a dezembro
de 2016. Neste cenário, questionam-se quais as reflexões que emergem
de uma prática de estágio e como esta influência na atuação docente.
A partir disso, o presente artigo busca relatar as experiências
vividas, desafios e dificuldades encontradas durante o estágio docente
curricular realizado em Cursos Técnicos da Universidade Federal de
Santa Maria, assim como analisar a influência do curso de formação de
professores como ferramenta de desenvolvimento ao docente.

METODOLOGIA

A presente pesquisa caracteriza-se como qualitativa, a qual se-


gundo Gil (2002), é menos formal do que a análise quantitativa. En-
tende-se por pesquisa a atividade básica da ciência na sua indagação e
construção da realidade. A pesquisa alimenta a atividade de ensino e a
atualiza diante da realidade do mundo (MINAYO et al., 2009). A aná-
lise qualitativa depende de diversos fatores, como a natureza dos dados
coletados, extensão da amostra, instrumentos de pesquisa e pressupos-
tos teóricos que conduziram a investigação. Pode-se, contudo, definir
esse processo como uma sequência de atividades, que envolve a redução
dos dados, sua categorização, interpretação e a redação do relatório.
Segundo Minayo et al., 2002, a pesquisa qualitativa responde a
questões muito particulares e se preocupa com um nível de realidade
que não pode ser quantificado. Isto é, ela trabalha com o universo de

188
significados, motivos, crenças, aspirações, valores e atitudes, que cor-
responde a um espaço mais profundo dos processos e das relações que
não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.
A coleta de dados ocorreu por meio da análise e discussão dos
relatórios e práticas desenvolvidas no estágio Estágio Curricular Su-
pervisionado III. As discussões ocorreram por meio de Grupos Focais
(GF). Os Grupos Focais são grupos de discussão que debatem sobre um
tema em particular, essa técnica se distingue por possuir característi-
cas próprias, principalmente pelo processo de interação entre os grupos,
que é uma resultante da busca de dados (KITZINGUER et al., 1999).
Em uma vivência de proximidade, o Grupo Focal permite que o
processo de interação grupal se desenvolva, contribuindo para as tro-
cas, descobertas e participações (DEBUS, 1997; DALL’AGNOL et al.,
1999).
De acordo com Iervolino et al., 2001, o GF é adequado para ser
consultado em estágios de exploração de uma pesquisa, quando pre-
tende-se ampliar a avaliação e compreensão a respeito de um programa,
projeto ou serviço. Também pode ser associado a outras técnicas de co-
leta de dados simultaneamente.
Este estudo consiste em um relato de experiência vivenciado
pelas alunas da disciplina de Estágio Curricular Supervisionado III, do
Programa Especial de Graduação de Formação de Professores para a
Educação Profissional (PEG) da Universidade Federal de Santa Maria
realizado durante o segundo semestre de 2016.
O Estágio Curricular Supervisionado, com duração de 30 horas
foi realizado nos cursos Técnicos em Agropecuária e Administração.
Ambos do Colégio Politécnico da UFSM. As aulas foram ministradas
nas disciplinas de Produção Agroindustrial, do Curso Técnico em Agro-
pecuária, e Introdução a Custos e Gestão da Qualidade no Curso Téc-
nico em Administração, no período de agosto a dezembro de 2016.

REFERENCIAL TEÓRICO
O CURSO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

O Programa Especial de Graduação de Formação de Professo-


res para a Educação Profissional e Tecnológica (PEG), criado em 2009,
tem como objetivo formar professores em nível superior para a docência.

189
Este proporciona uma formação pedagógica geral, a partir da formação
metodológica e prática.
O curso conta com uma carga horária de 315 horas de estágios,
essas atividades de estágio são importantes para a formação profissio-
nal. Neste processo pedagógico, o acadêmico cria um vínculo entre a
formação teórico-científica e a realidade. Esta articulação possibilita
que o estudante estabeleça relações entre a teoria, à prática e as situa-
ções do cotidiano.
Conforme a Lei nº 11.788 de 25 de setembro de 2008, que dispõe
sobre o estágio de estudantes, estágio é ato educativo escolar supervisi-
onado, desenvolvido no ambiente de trabalho. Visa a preparação para o
trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino re-
gular em instituições de educação superior, de educação profissional, de
ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino funda-
mental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos. O
estágio faz parte do projeto pedagógico do curso, além de integrar o iti-
nerário formativo do educando. Visa ao aprendizado de competências
próprias da atividade profissional e à contextualização curricular, obje-
tivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e para o tra-
balho.
De acordo com as normas de estágio do Programa Especial de
Graduação, no Estágio Supervisionado III “A” ou Docência Orientada,
o estudante estagiário deverá planejar e ministrar, no mínimo, 30 ho-
ras-aula. As atividades ocorrem em espaços formais e não formais de
ensino, sob a supervisão dos professores orientadores. Nessa etapa, o
estágio deve ser acompanhado pelo professor orientador da UFSM e
pelo professor regente da turma, ou responsável, que também avaliará
o processo de docência, para a qual será disponibilizado um formulário
contendo os itens a serem avaliados. A distribuição da carga horária
semestral, fundamentalmente, envolve as seguintes ações: Conceber
ações e conhecimentos que definem a prática docente; planejar as ativi-
dades que circunscrevem a prática docente; receber orientações sobre
os planejamentos educacionais pelos professores orientadores; refletir
criticamente sobre a prática desenvolvida nos espaços do estágio. A
orientação do estagiário é feita pelo professor orientador, ao longo do
desenvolvimento das diferentes atividades realizadas. Os professores
regentes dos espaços de realização do estágio são, também, responsá-
veis pela supervisão das atividades desenvolvidas. O acompanhamento

190
do desempenho do estagiário, relacionado a todas as atividades desen-
volvidas, é de responsabilidade do professor orientador, subsidiados
pelo professor regente.

A PRÁTICA DO ESTÁGIO: DA FORMAÇÃO AO PLANEJA-


MENTO

Segundo Bossle (2002), planejamento de ensino é uma constru-


ção orientadora da ação docente, que como um processo, organiza e dá
direção à prática coerente com os objetivos a que se propõe. Tem que
responder aos seguintes questionamentos: Como? Com quê? O quê?
Para quê? Para quem? na forma de um plano. Para que se concretize a
atividade docente é necessário que haja outras instâncias de planeja-
mento que são o projeto político-pedagógico e o projeto curricular, que
nortearão a ação docente coesa e responsável, e precedem o planeja-
mento de ensino propriamente dito.
As práticas pedagógicas incluem desde o planejar e estruturar
a dinâmica dos processos de aprendizagem até caminhar no meio de
processos que vão além dela, garantindo o ensino de conteúdos e de ati-
vidades considerados fundamentais para aquele estágio de formação do
aluno, e, através desse processo, criar nos alunos mecanismos de mobi-
lização de seus saberes anteriores construídos em outros espaços edu-
cativos (FRANCO, 2015).
Durante o estágio foi elaborado um planejamento de cada aula,
um plano de ensino e um relato com pontos positivos e pontos negativos,
assim como apontamentos do que poderia ser melhorado para as próxi-
mas aulas. O processo foi acompanhado pelo professor orientador do
estágio ligado ao PEG.
De acordo com Franco (2015), planeja-se o ensino com a inten-
ção da aprendizagem futura do aluno, porém, por mais eficiente que o
planejamento de ensino seja não será possível controlar a imensidão de
possibilidades das aprendizagens que cercam o aluno. Como saber o que
o aluno aprendeu? Como planejar o próximo passo de sua aprendiza-
gem? Precisamos de planejamento de ensino ou de acompanhamento
crítico e dialógico dos processos formativos dos alunos?

191
RESULTADOS E DISCUSSÕES

Os estudos relacionados à formação de professores evidenciam


que os saberes necessários não se detêm apenas aos conhecimentos dos
conteúdos das disciplinas. Quem ensina sabe que para ensinar é preciso
muito mais do que conhecer a matéria, apesar de que esse conhecimento
seja fundamental. É recorrente a confusão de que as habilidades neces-
sárias às práticas docentes são resumidas apenas ao talento natural dos
professores. Percepções como domínio de bom senso, intuição, experiên-
cia e cultura, equívoco que prejudica o processo de profissionalização do
ensino (GAUTHIER et al., 1998).
O professor em processo de formação, dentro da perspectiva de
uma epistemologia, crítica da prática, enriquece-se quando percebe
como construir, rever, criticar e ressignificar, em processo, tais conhe-
cimentos (FRANCO, 2015).
O saber docente não provém de uma única fonte, pois é um sa-
ber social, plural e temporal, emanado da formação profissional e das
experiências cotidianas do professor. Sendo assim, os saberes docentes
são caracterizados em: saber curricular, saber de formação profissional,
saber experiencial e saber disciplinar (TARDIFF, 2014).
De acordo com Carvalho e Gil-Pérez (2011) são oito os elementos
fundamentais ao exercício da docência: conhecimento da matéria que
será ensinada, saber preparar as atividades, saber dirigir as atividades,
saber pesquisar e utilizar os resultados de pesquisas, saber avaliar, co-
nhecer e questionar o pensamento docente, adquirir conhecimentos teó-
ricos sobre a aprendizagem, saber analisar de forma crítica o ensino.
Esses elementos devem ser concebidos a partir de cursos de formação
docente.
Essa formação dos futuros professores tem sofrido críticas rela-
cionadas à sua efetividade, pois, apesar da necessidade de um profundo
conhecimento acerca da matéria que será lecionada, é necessária a in-
tegração do saber cientifico a concepção de ensino/aprendizagem, assim
como a prática pedagógica, para uma formação docente mais adequada
(CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2011).
Compreende-se que o professor tem um papel fundamental na
formação social e acadêmica de seu aluno. Há mudanças constantes nas

192
formas de aprender e ensinar, por isso os cursos de formação de profes-
sores preparam seus futuros professores para a nova realidade da sala
de aula, e estes deverão atuar como mediadores da aprendizagem.
Há relatos de que o professor sabe a matéria, porém não sabe
como transmitir esse conhecimento ao aluno. Assim como relatos de que
o docente não sabe como conduzir a aula, ou que é distante e não se
importa com o aluno (PACHANE et. al, 2004). Segundo Dayrell (1996),
o docente deve deixar explícito o que irá abordar e despertar o interesse
dos alunos para que estes participem, questionem, valorizem o profes-
sor e o que ele está ensinando.
Para construir conhecimento, o professor deve interagir com o
aluno, sem que existam dois mundos diferentes: o do professor e o do
aluno. Segundo o autor, o aluno só aprende quando o conhecimento se
torna significativo para ele, quando estabelece relações substantivas e
não arbitrárias entre o que se aprende e o que ele conhece. Para que
ocorra o processo de aprendizagem é preciso que haja um diálogo entre
o conhecimento a ser ensinado e a cultura de origem de cada discente
(DAYRELL, 1996). Existem diversos obstáculos na prática docente,
entre os principais podemos elencar a inexperiência, a autonomia exa-
gerada por parte do professor, as relações entre aluno e professor. A
partir do que foi vivenciado no processo ensino-aprendizagem durante
a realização dos estágios, muitas foram as dificuldades percebidas.
Primeiramente é necessário que o docente apresente conheci-
mento acerca da matéria que será ensinada. (CARVALHO; GIL-PÉ-
REZ, 2011; TARDIFF, 2014; GAUTHIER et al., 1998). Outra postura
importante é a de entrar em contato com a instituição para que os do-
centes estagiários tomem o conhecimento da ementa das disciplinas,
com seus objetivos e os conteúdos a serem abordados. Muitas vezes es-
tes conteúdos são novos para o estagiário ou este deverá estudá-los para
construir possibilidades metodológicas que sejam positivas aos discen-
tes. A partir daí o professor se posiciona como um pesquisador, em
busca de conteúdos que serão transmitidos aos seus alunos, confir-
mando o argumento de Freire (2002), não há docente sem discente. Vale
destacar também que quando houve dificuldades em relação à disci-
plina, o professor responsável pela disciplina estava disponível para es-
clarecimentos.

193
O conhecimento sobre a matéria a ser ensinada não é a única
habilidade necessária ao docente, de acordo com a literatura, conheci-
mentos teóricos sobre aprendizagem, saber preparar atividades e dirigi-
las, assim como saber avaliar, também são necessários para a prática
docente. E foi objetivando suprir a necessidades dessas habilidades, que
ingressamos no curso de formação de professores, onde, ao longo de três
semestres aprendemos sobre as teorias da aprendizagem e metodolo-
gias de ensino.
Outra habilidade necessária à prática docente é o saber experi-
encial e essa habilidade foi uma das principais dificuldades encontra-
das, devido à falta de experiência. Tendo em vista que, enquanto pro-
fessoras estagiárias, entramos na sala de aula somente com o conheci-
mento teórico acerca das matérias e da docência. Sabemos que o profes-
sor deve levar em conta o aluno, sua origem, cultura e deve buscar in-
teração para que possa transmitir conhecimento e torná-lo significativo
para o discente.
E foi assim que o estágio foi realizado, buscando pôr em prática
todo o conhecimento acerca de ensino/aprendizagem desenvolvido nas
disciplinas do curso de formação de professores, o que foi de suma im-
portância, pois auxiliou no andamento das aulas. Tendo o aporte de um
professor orientador do estágio, ligado ao curso de formação de profes-
sores, contribuindo para o desenvolvimento metodológico no estágio.
Tal experiência contribuiu para o saber experiencial, ou seja, a experi-
ência docente, a qual é formada no decorrer da prática docente, porém,
já saímos do curso com esta vivência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da realização dos estágios curriculares do Programa


Especial de Graduação de Formação de Professores para a Educação
Profissional e Tecnológica, tivemos a oportunidade de refletir sobre a
prática docente e seus principais desafios.
Reconhecemos a importância da formação de professores para o
aprimoramento de suas práticas docentes, pois, apesar de haver a
crença popular da existência do talento natural do professor, os cursos
de formação pedagógica são importantes ferramentas. Estes cursos pro-
porcionam uma oportunidade de desenvolvimento aos bacharéis e tec-
nólogos, enquanto futuros professores, de desenvolver as habilidades

194
necessárias para a prática docente, as quais, de maneira resumida, são
três: conhecimento da matéria, conhecimento acerca de metodologia e
ensino/aprendizagem, e experiência docente.
O curso de formação de professores oportuniza o desenvolvi-
mento de duas importantes habilidades, o conhecimento pedagógico e a
experiência docente. Além disso, podemos vivenciar na prática a condu-
ção da relação aluno/professor, centrando as aulas no aluno, levando
em conta seus problemas, dificuldades e sua origem/cultura, além de
relacionar a teoria com os acontecimentos cotidianos, facilitando assim,
seu aprendizado.

195
Referências Bibliográficas

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buição ao coletivo docente. Revista Movimento, Porto Alegre, v. 8, n.
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197
198
EXISTÊNCIAS EXIGENTES:
O QUE TEM ATRAVESSADO A DOCÊNCIA HOJE?

Celina Saideles Pires56


Fernanda Monteiro Rigue57
Lucila Pereira Morin58

Introdução

O que motivou a escrita desse estudo foi pensar os atravessa-


mentos que constituem o exercício da docência no contemporâneo. Exer-
cício que acontece em meio a instituições de ensino escolares. Embora
muitos sejam os modos e possibilidades de se pensar a escola, ela conti-
nua sendo um tema importantíssimo e relevante, “[...] na medida em
que se trata de uma instituição forte e poderosa tanto no imaginário
social quanto para a constituição de sujeitos dos novos tempos” (COU-
TINHO, 2010, p. 15).
Articulada com todos os mecanismos sociais, a escola organi-
zada de acordo com diretrizes gerais, mais que um lugar de passagem,
é território para o desempenho da profissão docente. Profissão que “[...]
sofre constantemente com a desvalorização econômica, os professores
assumem sobrecarga de trabalho, respondem a uma série de responsa-
bilidades e demandas” (RIGUE, DOMINGUES, 2018, p. 42).

[...] a educação escolar está submetida a um consenso mundial, a uma


qualificação internacional e a uma lógica de gestão empresarial. A cul-
tura da competição e o caráter privatista das definições inerentes à
globalização da educação funcionam como um rolo compressor que an-
tecipa o estabelecimento das relações entre a economia, a sociedade e

56 Mestranda em Políticas Públicas e Gestão Educacional pela Universidade Federal de


Santa Maria (UFSM). Pedagoga pelo Centro Universitário Franciscano. Psicopedagoga
Clínica e Institucional pela Uninter. Pós-graduanda em Gestão, Orientação e Supervisão
escolar pela Uninter.
57 Doutora (2020) e Mestra (2017) em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em

Educação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Licenciada em Quí-


mica pelo Instituto Federal Farroupilha (2015).
58 Mestranda em Educação pelo PPGE da UFSM. Especialista em Gestão Educacional

pela UFSM. Pedagoga pela UFSM.

199
a escola; desconhecendo as realidades em sua singularidade, menos-
prezando as contradições que aí se estabelecem (CERVI, 2013, p.75).

Os contornos que materializam a atividade do profissional da


docência, o(a) professor(a), tem como ponto de emergência a Formação
Inicial nos cursos de Licenciatura, que acontece majoritariamente nas
Instituições de Ensino Superior (IES) - sejam elas públicas ou privadas.
Essas formações, respondem a normativas e orientações específicas.

As letras, unidas formam palavras e, tornadas palavras, compõem fra-


ses, produzem discursos. É importante instrumento para a construção
de modos de conceber o sujeito. Modos de ser mulher, modos de ser
homem, modos de não ser mulher, modos de não ser homem, modos
de ser cidadão, modos de ser estudante, modos de ser pesquisador,
modos de ser professor. Quando esses discursos se tramam com a ca-
pacidade e o poder de proposição de normativas que são força para
proliferação de diretrizes, eles operam reverberando redes discursivas
e representações identitárias de ser sujeito. (RIGUE, VEIGA, 2019, p.
612).

Tendo em vista essa série de discursos que se tramam para nor-


mativas e orientações à Formação Inicial do(a) professor(a) no Brasil,
construímos esse trabalho como uma espécie de convite a sobrevoar as
condições a que a profissão do(a) professor(a) tem sido submetida na
atual conjuntura social, econômica e política brasileira, principalmente
no que tange às instituições de caráter privado. Condições que atraves-
sam o campo de trabalho do professor, mas que, por vezes “[...] não toma
um local de destaque nas discussões e temáticas dos cursos de gradua-
ção que norteiam a Formação Inicial docente” (RIGUE, DOMINGUES,
2018, p. 38).

Situações emergentes como: violência, situação econômica, tecnolo-


gias e mídias digitais; precarização da estrutura física e organizacio-
nal da escola; avaliações externas e dependência na figura gestora do
Estado brasileiro; indisciplina exacerbada e a vulnerabilidade social
como um todo; são problemáticas concretas e reais que podem vir a
dificultar o exercício profissional e a prática pedagógica do professor
(...) (Idem, 2018, p. 38).

Sabendo dessa realidade dos cursos de formação e do trabalho


do(a) professor(a) desempenhado na escola, este estudo é elaborado a
partir de um exercício ensaístico (LARROSA, 2003).

200
O ensaio não procede nem por indução ou dedução, nem por análise
ou síntese. Sua forma é orgânica e não mecânica ou arquitetônica,
nisso se parecendo com as obras de arte, especialmente com a música
e a pintura. O ensaio se situa, de entrada, no complexo (LARROSA,
2003, p. 112).

Elaboramos uma escrita que combina reflexões teórico-biblio-


gráficas que atentam para as estratégias que têm contribuído para o
aumento da regulação/cobrança social e institucional por um exercício
docente, como se o mesmo pudesse ser mensurado como mercadoria e,
ao mesmo tempo, vivências/narrativas autobiográficas, que permitem
materializar a corporificação desses controles e vigilâncias no fazer do
dia-a-dia da escola. Assim,

O ensaísta não define conceitos, mas desdobra e tece palavras, preci-


sando-as nesse desdobramento e nas relações que estabelece com ou-
tras palavras, levando-as até o limite do que podem dizer, deixando-
as à deriva (Idem, 2003, p. 114).

À deriva, atentamos para o exercício docente e a escola, seguido


pelo exercício docente e o que não aparece acerca das práticas profissi-
onais dos professores. Para tanto, o ensaio “[...] é, também, sem dúvida,
uma figura do caminho da exploração, do caminho que se abre ao tempo
em que se caminha” (Idem, 2003, p. 112).

Exercício Docente e a escola

O trabalho do(a) professor(a) em sala de aula, de certa forma, é


resultado de uma ‘idealização’ do que seja o esperado da sua atividade
pedagógica. Quando tratamos de instituições de caráter privado, por
exemplo, temos a idealização desse trabalho fortemente reforçada,
tendo em vista que nessas instituições é possível ter uma vigilância
mais significativa tanto por parte dos pais, quanto por parte da equipe
diretiva no que tange o cumprimento das atividades por parte do(a) pro-
fessor(a). Dizer isso é o mesmo que apontar que nas instituições priva-
das as normas que prescrevem o andamento das mesmas, são exigidas
e reiteradas permanentemente. Acerca da norma é possível considerar
que:

201
[...] a norma classifica, mede, avalia e hierarquiza os sujeitos, seus
comportamentos e suas capacidades: seu poder estabelece a noção de
normalidade e, concomitantemente, ao definir o que é normal, deter-
mina também a anormalidade (COUTINHO, 2010, p. 23).

Há uma normalidade priorizada historicamente pelo sistema


educacional. O campo das habilidades cognitivas dos estudantes são
centradas em alcançar os objetivos das instituições. Dentre esses obje-
tivos estão: analisar, memorizar ou compreender, desempenhando um
papel, na maioria dos casos de mecanização e exclusão. Esse campo nor-
matiza o normal do anormal. Todavia, quando tratamos de educação,
pensamos que essa precisa olhar a pessoa que adentra ao seu espaço de
forma integral, como um ser social. Ser que está inserido na escola, logo,
não à margem dela.
Nesse contexto escolar, existe o Projeto Político-Pedagógico
(PPP), o qual aparece como um processo de esclarecimento de objetivos
e linhas de ação adequada para alcançar a função da escola de determi-
nada escola. O PPP precisa estar relacionado aos interesses dos profis-
sionais da educação e da comunidade escolar.
A função da escola dita à compreensão que determinada escola
tem de educação, de sociedade e de formação humana. A função da es-
cola pode ser marcada por duas tendências que ditam o fazer e o pensar
da gestão escolar: “[...] uma prioriza o mercado; outra prioriza a eman-
cipação humana” (WITTMANN; KLIPPEL, 2012, p.166).
Por sua vez, conforme a Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996,
lei que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, mais pre-
cisamente no título VI, que trata dos profissionais da educação, verifica-
se que:

Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-


á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em
universidades e institutos superiores de educação, admitida, como for-
mação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e
nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em
nível médio na modalidade Normal. (BRASIL, 1996)

Formação que vinculada a Constituição Federal de 1888, mais


precisamente com o Art. 205, responde a seguinte premissa:

202
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será pro-
movida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da ci-
dadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1888).

O pleno desenvolvimento da pessoa, a nosso ver não pode uma


priorizar o mercado, em detrimento da emancipação humana. Tendo em
vista esse contexto contraditório da educação e as práticas de gestão
escolar59 com tendências opostas, antagônicas e contraditórias observa-
mos que “[...] o ato pedagógico é o espaço social onde se sustam todas
as discriminações e desqualificações, sejam étnicas, religiosas, econô-
micas e sociais (WITTMANN; KLIPPEL, 2012, p. 171). Isso significa
que a visão que a escola tem de sua função determina a sua compreen-
são de pessoa humana e sua ação determinante na administração da
educação nas instituições públicas e privadas60.
Nessa contradição/paradoxo que assola o fazer do professor nas
escolas, tendo em vista os parâmetros que as instituições adotam para
a formação dos estudantes, percebemos uma distância entre o conceito
de gestão escolar e gerência. Com Wittmann e Klippel (2012) é possível
considerar que “[...] a gestão escolar, que tem como a principal função
garantir a emancipação das pessoas, opõe-se a uma gerência, a qual, na
forma capitalista de produção exige a exploração das pessoas” (p.155).
Para compreendermos o distanciamento entre o conceito de ges-
tão escolar e gerência tomou relevo o estudo de Oliveira e Vasques-Me-
nezes (2018), que no texto ‘Revisão de literatura: o conceito de gestão
escolar’ visam contribuir para a sistematização do tema gestão escolar,
identificando a existência ou não de lacunas na literatura sobre o as-
sunto, analisando as publicações e a evolução do conceito de gestão.

59 “Originário do latim gestione, o conceito de gestão refere-se à ação e ao efeito de gerir


ou de administrar” (OLIVEIRA, VASQUES-MENEZES, 2018, p. 879). Ainda para os au-
tores, “O processo de gestão deve coordenar a dinâmica do sistema de ensino como um
todo e de coordenação nas escolas em específico. Indo além, discute a importância da ar-
ticulação das diretrizes e políticas educacionais públicas, e ações para implementação
dessas políticas e dos projetos pedagógicos das escolas. Esse projeto deve estar compro-
missado com os princípios da democracia e com um ambiente educacional autônomo, de
participação e compartilhamento, com tomada conjunta de decisões e efetivação de resul-
tados, acompanhamento, avaliação e retorno de informações” (Idem, 2018, p. 880).
60 Conforme Oliveira e Vasques-Menezes (2018) “No Brasil, essa autonomia se iniciou no

final da década de 80, ganhando força a partir da Constituição de 1988 (...) da Nova Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDB/96) (...), que instituíram a ges-
tão democrática escolar como princípio” (Idem, 2018, p. 882).

203
Conforme os escritos dos autores “[...] gerenciar uma escola é diferente
de gerenciar outras organizações sociais, devido à sua finalidade, estru-
tura pedagógica e às relações internas e externas” (OLIVEIRA, VAS-
QUES-MENEZES, 2018, p. 880).
A gerência escolar está voltada ao trato com questões adminis-
trativas, financeiras e avaliativas, no sentido de buscar resultados nas
diferentes avaliações, sejam elas externas ou internas, tornando estas
competitivas e transformando-as em rankings. Nesse modo de pensar a
organização e escolar, valem, somente, os resultados de avaliações, pre-
valecendo o quantitativo.

As políticas públicas voltadas para a avaliação e sua influência sobre


a gerência ou ingerência na escola, que determina ou não as estraté-
gias de administração escolar. A coexistência do discurso da democra-
tização da gestão escolar com práticas avaliativas que se apoiam
numa gerência mais voltada para resultados do que para ações con-
sistentes. A participação da comunidade na gestão como um dos prin-
cipais fatores de melhoria da qualidade da educação nas escolas tam-
bém é discutida nessa categoria, assim como o compromisso, o envol-
vimento de todos no projeto pedagógico da escola e no cotidiano, em
que se compartilham decisões sem autoritarismo (OLIVEIRA, VAS-
QUES-MENEZES, 2018, p. 893).

Tanto a gerência como a gestão escolar aparecem como instân-


cias que buscam melhor qualidade de ensino. Por sua vez, o que distan-
cia um conceito do outro está vinculado com o seu fim, sua finalidade.
Enquanto a gestão escolar vincula-se a formação humana e conceitual
dos estudantes, a gerência, prioritariamente busca resultados adminis-
trativos, financeiros e avaliativos.
De qualquer modo, a educação escolar, conforme já menciona-
mos anteriormente, possui princípios básicos que não estão comprome-
tidos única e exclusivamente com resultados/notas estanques, ao con-
trário, com um pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. Pensando dessa
forma,

[...] a escola precisa de um novo trabalhador que busque o coletivo, e


que seja gerida sem os constrangimentos da gerência capitalista, em
decorrência do trabalho cooperativo de todos os envolvidos no processo
escolar, em direção ao alcance de seus objetivos verdadeiramente edu-
cacionais (OLIVEIRA, VASQUES-MENEZES, 2018, p. 880).

204
Há uma contrariedade presente entre o que se espera do traba-
lho da escola e, consequentemente do exercício profissional do professor.
Ora se enfatiza a necessidade de uma formação escolar voltada para
humanização, ora para a ênfase na produção de resultados satisfatórios
em aprovações nos exames e avaliações de pequena e larga.
O olhar para a escola e seu projeto educativo aparece para Oli-
veira e Vasques-Menezes (2018) como um compromisso que reitera a
necessidade de um envolvimento de todos no andamento das atividades
escolares. A gestão escolar de caráter democrático aparece como algo
que “[...] todos os membros da equipe escolar em torno de objetivos, me-
tas, decisões e compromissos comuns” (Idem, 2018, p. 881).
O compromisso comum que Oliveira e Vasques-Menezes (2018)
mencionam, aparece nesse ensaio como algo que atravessa o âmbito
ético do trabalho nas escolas. Um universo que ultrapassa o cumpri-
mento da lei, da norma. Um âmbito que se compromete com o processo
educativo, em detrimento de um fim que exclui todas as nuances possí-
vel.
Após o empenho aqui empreendido, na sequência tratamos de
abordar acerca do exercício docente na escola e aquilo que não aparece.

Exercício Docente e o que não aparece

O trabalho desempenhado por professores nas instituições es-


colares desenvolve-se em meio a um ambiente de trabalho dotado de
uma cultura organizacional. O livro de Márcia Silva Di Palma ‘Organi-
zação do trabalho pedagógico’ (2012) discorre acerca dos desafios que
são impostos diariamente aos professores. Nesse, Palma (2012) discute
gestão e docência em tempos de atividade escolar. Para ela a chamada
cultura organizacional é constituída “[...] num conjunto de normas in-
formais, não escritas, mas que orientam o comportamento dos membros
de uma determinada organização no desempenho de suas atividades
cotidianas” (PALMA, 2012, p. 90).
A cultura organizacional diz de vários aspectos das instituições,
que também atravessam as regras de conduta valorizadas e deprecia-
das (Idem, 2012). Atentar para o campo da cultura organizacional é in-
dispensável, na medida em que ela diz respeito à “[...] atividades que
expressam e reforçam as práticas instituídas da organização” (Idem,

205
2012, p. 90) e isso acarreta a consequência de que “[...] embora já exis-
tam maneiras mais eficientes de alcançar o mesmo resultado, o proce-
dimento interno continua a ser empregado independentemente de não
existirem explicações lógicas para determiná-lo” (Idem, 2012, p. 90).
A linguagem verbal e não verbal também dita a cultura organi-
zacional, o que interfere no andamento das atividades que desenvolve
a equipe que compõe a escola. O que queremos dizer com isso é que, o
trabalho empreendido pelo(a) professor(a) se dá em meio a uma cultura,
a uma forma de pensar a escola e sua organização/andamento. Desse
modo, o sentido que é dado no âmbito da docência, em boa parte, acon-
tece envolvido/capturado por esse modo de pensar a cultura organizaci-
onal de determinada instituição de ensino.
Se tomarmos como exemplo a docência em instituições particu-
lares, por exemplo, há premissas que balizam o andamento das aulas,
das atividades formais. Assim como nas instituições públicas, existem
prerrogativas que conduzem o trabalho na escola, como por exemplo o
PPP.

A cultura é considerada não como uma rede de comportamentos con-


cretos e complexos, mas como um conjunto de mecanismos que in-
cluem controles, planos, receitas, regras e instruções que governam o
comportamento (SILVA; ZANELLI, 2004, p. 416).

Ressonâncias nos produzem como professor(a), nos estabelecem


atividades mínimas e básicas para permanência com vinculação traba-
lhista nas instituições. Por sua vez, em instituições privadas, têm-se
uma ação particularizada que reivindica dos docentes um cumprimento
de tarefas com ainda mais força. A elaboração de planejamentos fora do
horário de trabalho na escola, a construção de provas/avaliações e lon-
gas listas de exercício, a correção de trabalhos, o envolvimento com
mensagens via aplicativo de celular e e-mail, entre outras tarefas, di-
zem de exigências que o docente fica submetido além da sua atividade
didático-pedagógica presencial com os estudantes. Ademais, o modo de
funcionamento de cada instituição, sua logística e princípio educativo,
dita também os parâmetros a que os docentes precisam estar vincula-
dos. Por exemplo, existem instituições que exigem dos docentes o uso
de uniforme, determinado tipo de posicionamento social e político - con-

206
duta -, predominância de crenças religiosas, como no caso das institui-
ções de caráter confessional e, obrigatoriedade do uso de determinados
livros didáticos.
Tratando especificamente dos livros didáticos, verifica-se um
trato de similaridade com esse material e os conteúdos a serem desen-
volvidos pelo professor durante o ano letivo. Em alguns ambientes es-
colares, o uso obrigatório do livro didático aparece como um dispositivo
que regula o andamento das aulas, bem como as ênfases didáticas e
pedagógicas dos professores. Há escolas, por exemplo, que remetem
uma boa aula à presença dos livros didáticos nas carteiras dos estudan-
tes. Além disso, os livros tomados como ‘bons’ encontram-se vinculados
a presença de longas questões resolvidas, de exames vestibulares reco-
nhecidos no cenário nacional.
Nas instituições privadas, existe uma normativa que vincula o
exercício do professor a utilização de sistemas de ensino de empresas
que trabalham com a elaboração de materiais didáticos. Esse material
precisa ser utilizado na íntegra pelo professor, do qual o planejamento
também fica condicionado ao seu uso. Esse material, na maioria dos
casos, na forma de livro didático, contém prescrições e orientações, as
quais também condicionam os planejamentos.
O livro didático ora aparece como um facilitador, como um re-
curso, ora opera como um limitador do trabalho docente, deixando de
lado a individualidade do professor enquanto docente e, do estudante
enquanto aprendente.
Com isso, o planejamento do professor fica guiado pelo livro di-
dático, onde suas ações educativas seguem nesse rumo conforme o que
é estabelecido a priori. O professor com esse ‘manual’ segue o cumpri-
mento das atividades sem um olhar individualizado ao educando, cum-
prindo conteúdos, páginas e atividades, seguindo a rigor o protocolo teó-
rico prático determinado e definido pelo manual do professor que segue
no livro didático. Manual que é elaborado por pessoas que não orbitam
o território da escola, suas particularidades. Essa distância, aparece
como um empecilho, já que para Paraná (2006) precisamos considerar
os processos inerentes ao conhecimento e ao contexto social onde:

[...] conteúdos são essenciais, pois transcendem o contexto particular


dos educandos e garantem acesso ao conhecimento nas múltiplas di-
mensões - política, econômica, científica, étnico-social, entre outras-,

207
contribuindo para a formação da consciência histórica e política dos
educandos (p.110).

De certa forma a busca por resultados escolares que alimentem


aprovações e rankings, atendem a produção de sucessos escolares que
respondem a uma noção de formação escolar. Por sua vez, o docente que
atua nesse espaço que reduz o trabalho pedagógico a obtenção de apro-
vações, precisa abrir mão dos diferentes percursos individuais que cada
estudante atravessa em uma sala de aula. Com Ivo José Both (2017) é
possível perceber que a qualidade da educação se encontra no processo
educacional, não necessariamente no produto, por sua vez, “A escola
tem privilegiado demasiadamente a dimensão cognitiva dos educandos,
colocando em segundo plano ou ignorando as dimensões corpórea, social
e afetiva” (SILVA, 2012, p.82).
No que tange a esse modo de conduzir o andamento da escola-
rização, ousamos dizer que aí opera muito mais uma gerência escolar
do que uma gestão escolar. Sem esquecer, é claro, que boa parte das
instituições dessa natureza são providas por indivíduos ou empresas de
consultoria, sem formação pedagógica, que olhem para essa atividade
dentro da lógica capitalista que maquina o mercado. Estratégia empre-
sarial que empreende esforços para construir na equipe uma racionali-
dade governamental corporativa (KNIGHTS, 2002). Estratégia que
atinge a condução das condutas de todos, procurando a preconização de
relações econômicas como problema principal.

Considerações Finais

Em teoria, fazer que o aluno aprenda conteúdos, memorize fórmulas


e esteja munido de conceitos científicos é bem menos complicado que
humanizá-los (MOCELIN, SILVA, 2019, p.123)

A reflexão de Mocelin e Silva (2019) é inspiração para traçarmos


as considerações finais deste ensaio (LARROSA, 2003). Com ela é pos-
sível compreendermos que a docência preocupada com a formação de
pessoas atentas ao que acontece no dia-a-dia, demanda uma atividade
pedagógica que ultrapassa as lógicas conteudistas do trabalho educaci-
onal. Extrapola uma ação enquanto modelagem e mera transposição.

208
Uma formação humana diz de um campo de experimentação
que precisa compor todos os aspectos do trabalho pedagógico. O cum-
primento de tarefas, resolução de exercícios com estudantes e segui-
mento a risca das prescrições presentes em materiais didáticos elabo-
rados por empresas e consultorias, não é prerrogativa para um trabalho
humano significativo de formação de crianças e jovens nas escolas.
O exercício da docência que aparece nos documentos e discursos
oficiais não leva em conta a série de atravessamentos que dizem da cul-
tura organizacional das instituições às quais os professores encontram-
se vinculados e, ao mesmo tempo, submetidos.
O presente exercício ensaístico (LARROSA, 2003) combina re-
flexões teórico-bibliográficas que atentam para as estratégias que têm
contribuído para o aumento da regulação/cobrança social e institucional
por um exercício docente que responde a produção cada vez maior de
resultados ‘estanques’, no que tange a obrigatoriedade de seguir pres-
crições e normas institucionalizadas no trabalho com os estudantes em
sala de aula.
O que tensionamos neste ensaio se trama com a concepção de
que temos enquanto professores e professoras perdido a autonomia do
trabalho docente, em meio a discursos que ‘supostamente’ a potenciali-
zam. Há, cada vez mais, deliberações que determinam o que o profes-
sor(a) precisa fazer. Há, cada vez mais, docentes adoecidos. Adoecidos
por não darem conta das prescrições e prospecções que as estratégias
empresariais têm produzido sobre seus corpos. Estratégias que fazem
com que o encantamento pela docência se resuma a uma frustração, um
vazio, pois o docente muitas vezes lança mão de suas estratégias edu-
cacionais para cumprir com o que lhe é imposto. Dito de outro modo,
fazer parte de uma ‘empresa escolar’ demanda do docente uma espécie
de apagamento, anulamento.
Resulta desse movimento, o aumento significativo de adoeci-
mento dos professores que atuam nas escolas, principalmente em insti-
tuições de caráter privado, que exercem sobre os docentes um controle
mais presente e individualizado.
Ressignificar e trazer a tona o que o patrono da educação brasi-
leira escreveu na década de 90, nos parece uma importante chance para
reiterar que “[...] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as
possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”
(FREIRE, 1996, p. 52).

209
É indispensável que, após a construção deste ensaio ressoe a
tônica do quanto o exercício docente que não aparece, tem ditado os mo-
dos de ensinar crianças e jovens no contexto das instituições privadas,
principalmente. O quanto modos de organização e andamento institu-
cional, tem empreendido esforços para o apagamento da autonomia do
docente, reduzindo-o a um mero colecionador de experiências que resu-
mem a experiência do trabalho pedagógico a prescrições existentes em
materiais didáticos.
Nos parece que as formas de regulação e vigilância do exercício
docente tem reduzido os professores a meras “[...] máquinas de ensinar”
(CORRÊA, 2006, p. 124). Máquinas que, dentro do escopo de relações
econômicas e de mercado, tem degradado suas potências e possibilida-
des.
O exercício docente vigiado/inspecionado/capturado tem sido
afetado pela precariedade de um compromisso comum em educação es-
colar, compromisso com a formação humana das crianças e dos jovens.
Compromisso que dá espaço a uma série de demandas da gerência es-
colar, que exige dos professores a produção de resultados ‘mensuráveis’
na ‘empresa escolar’.
De que adianta um investimento maçante em Formação Inicial
significativa dos profissionais da educação escolar, se os ambientes es-
colarizados, na sua maioria de caráter privado, tem ditado ‘modos de
ser professor(a)’ que divergem em número e grau das premissas de for-
mação? De que tem adiantado expandirmos nossos diálogos e reflexões
no âmbito acadêmico, se no chão das escolas temos sido capturados por
‘gerências’ que se sentem autorizadas a nos dizer sobre o exercício do-
cente?

210
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é ensinando que se avalia, é avaliando que se ensina. Curitiba: Inter-
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212
PEDAGOGIA CRÍTICA E TEORIA DA COMPLEXIDADE:
ONDE AS PARALELAS SE ENCONTRAM

Francisco Milanez 61

INTRODUÇÃO

Neste ensaio vamos tratar da possível complementaridade en-


tre a pedagogia crítica e a teoria da complexidade com vistas a uma
educação crítica (amorosa) e complexa. Vamos analisar algumas quali-
dades e insuficiências da pedagogia crítica bem como, também, quali-
dades e insuficiências da teoria da complexidade, ambas como formas
de contribuição para formação de um estudante com uma visão ampli-
ada do mundo e da sociedade. Nos propomos a explorar as diferentes
facetas dessas duas visões de mundo, bem como observar as limitações
práticas delas e, ao final, apontar um possível caminho de trabalho con-
junto e complementar. Essa proposta justifica-se pelo fato de que a prá-
tica pedagógica tem mostrado os limites de ambas visões, uma por sua
limitação paradigmática e outra pela sua falta de base prática de hu-
manidade, que poderiam ser superados, caso possa se desenvolver essa
complementaridade.

ORIGENS

A minha experiência pedagógica de vários anos trabalhando


educação ambiental com professores escolares de diferentes níveis,
sempre buscando trabalhar numa linha de Pedagogia Crítica (PC) em-
basada na reflexão sobre o momento histórico, político e social em que
se desenrolam tanto os desafios das questões ambientais quanto suas
possíveis soluções, sempre foi prazerosa e frutífica, mas não impediu de
me deparar constantemente com os limites que estão postos, muitos de
forma subliminar, a nossa forma atual de pensar. O reconhecimento da

61 Biólogo, arquiteto e urbanista, especialista em análise de impacto ambiental pela


UFAM, mestre em Educação e Ciências e Doutorando de Educação em Ciências, ambos
pela UFRGS, está desenvolvendo um método para o ensino de sistemas complexos e está
presidindo da AGAPAN.

213
cultura, da experiência, da autonomia, da competência, do bom senso,
do comprometimento do educando aliados à abertura, rigorosidade e
amorosidade (FREIRE, 1996) são as bases para um diálogo liberta-
dor/inclusivo e para tomada de decisões e intervenções conscientes no
mundo, mas não nos impedem de ver a realidade de forma fragmentada
e linear que a forma de pensar mecanicista cartesiana semeou e per-
meia nossa cultura dominante. Poucas coisas são mais perigosas do que
a incapacidade de relacionar ações setoriais com seus efeitos em outras
áreas e a prova disso está na incapacidade atual da humanidade de li-
dar com o desafio da sustentabilidade planetária à medida que cada
setor propõe soluções que afetam negativamente ou imprevisivelmente
outros. Não possuímos capacidade de interpretar o conjunto das ações
nem seus efeitos sinérgicos. Isso ocorre massivamente com a economia,
a saúde, o urbanismo e o meio ambiente, só para dar alguns exemplos,
tornando nosso planeta tecnicamente inadministrável. Nossa cultura
de isolamento de variáveis acabou por criar uma ciência que não sabe,
nem tem metodologia para lidar com o mundo como ele é, multivariável
e sinérgico, onde muitas variações estatisticamente irrelevantes defi-
nem os resultados, nunca de uma forma isolada, mas em interação com
muitas outras. Isso nos permite prever eventos em ambiente contro-
lado, artificial, mas nos deixa impotentes para prever os acontecimen-
tos no mundo fora dos laboratórios.
Por outro lado, ao trabalhar em minha busca por uma visão
sistêmica e integrada da realidade, que iniciou motivada pela tentativa
de compreender o funcionamento dos ecossistemas na ecologia, tive as
mais variadas experiências que foram, pela incapacidade de trabalhar
com sistemas complexos das atuais metodologias, me conduzindo para
a mudança paradigmática aqui representada pela Teoria da Complexi-
dade (TC) tanto com referência a forma de olhar o mundo quanto aos
caminhos utilizados para a produção de conhecimento sobre o mundo.
Nossa visão atual acaba por isolar os problemas, sem nunca tentar tra-
balhá-los de forma unificada, e com isso produzir soluções para algumas
questões que geram problemas para outras num infindável efeito do-
minó. Nossa visão segmentada, linear, simplificante e desconectada
tem gerado problemas, ao invés de soluções, em todas as áreas do co-
nhecimento e em suas práticas. Ao adentrar na TC fui identificando
noções que já trazia da Ecologia e da Física, mas que, ao serem ampli-
adas, mostram seu potencial em outras áreas do conhecimento como:

214
resiliência, homeostase, incerteza, irredutibilidade, hologramática, re-
cursividade que, junto com noções da TC como: emergência, organiza-
ção, autonomia e relação sujeito/objeto/meio e causalidade complexa
contribuem para que possamos refletir sobre o mundo em bases total-
mente integradas e transdisciplinares. Buscando aplicar o novo para-
digma trazido pela TC propus e desenvolvi a Noção Complexa de Saúde
(NCS) (MILANEZ, 2017) que constitui uma terceira via em relação às
duas noções dominantes de saúde: a biomédica e a psicossocial, ela traz
para o campo da saúde os princípios da TC mudando com isso, radical-
mente, a forma como vemos a saúde e também as relações que com ela
acontecem. Nela os fatores que se relacionam com a saúde, além de se
multiplicarem indefinidamente, deixam de ser determinantes da saúde,
como nas outras duas noções, passando a ser também por ela determi-
nados através de uma relação multicausal complexa. A mudança noci-
onal não se restringe, portanto à ampliação do espectro das relações da
saúde, mas se dá sobretudo na forma de interação dessas relações entre
si e com ela. Com a finalidade de divulgar essa experiência, ministrei
duas disciplinas que incluíam a NCS, prática que, ao observar os resul-
tados nos estudantes, me conduziu a conclusões pedagógicas surpreen-
dentes. Observei que a utilização da NCS para explicar a TC tornou o
ensino bastante abstrato e desafiador da TC uma prática palatável e
motivadora para os educandos. Observei que, mesmo dominados por
uma noção hegemônica simplificadora de saúde, os estudantes tinham
também uma experiência intuitiva pessoal que mostrou ser muito útil
para a compreensão da visão complexa na saúde, pois se apoiava em
vivências que todos tinham, dando um sentido novo a essas experiên-
cias e integrando-as de uma forma harmônica e compreensível, embora
requintada, em suas histórias de vida. O resultado prático para os es-
tudantes foi a releitura que fizemos de suas próprias pesquisas, através
do olhar complexo, causando ampliações e refinamentos não só no corpo
como nos objetivos buscados. Foram as experiências vividas nessas dis-
ciplinas que me fizeram comprovar e amadurecer outra ideia, que havia
proposto junto com a NCS, que chamei de Pedagogia Recursiva (PR)
(MILANEZ, 2017), baseada na recursividade da forma descrita por Mo-
rin (2003, 2015a,) como o movimento generativo que cujo produto é ne-
cessário para a própria produção formando uma dinâmica auto-produ-
tiva e auto-organizacional, resultando num processo criativo evolutivo
porque se transforma no tempo. A noção de que não existe retorno ao

215
ponto de partida, mas que voltasse sempre a uma nova realidade. Atra-
vés da prática docente e da observação da interação entre essas duas
noções, a NCS e a PR, conclui que havia encontrado um caminho facili-
tador da aprendizagem da complexidade o que me levou a propor um
método para o ensino de sistemas complexos que utiliza a NCS associ-
ada a uma PR e, através dessa associação permite ensinar dois sistemas
complexos ao mesmo tempo, sendo um deles a NCS e o outro podendo
ser um sistema complexo qualquer como uma cidade, um ecossistema
ou um sistema de produção agroecológica. Esse caminho pedagógico,
que se trata de uma possibilidade totalmente aberta, permite estudar
simultaneamente dois sistemas complexos desconhecidos utilizando
como referência a experiência pessoal que cada um tem de sua saúde.

SOBRE AS CONEXÕES

Embora, a TC que embasa toda essa trajetória, permita, atra-


vés de seus princípios, perceber a interdependência entre o sujeito e o
meio, a impossibilidade de redução das relações, a irreversibilidade da
história, a incerteza e a emergência de fenômenos que não se encontram
nas partes de um sistema, (MORIN, 2005a, b) tudo isso não nos impõe
uma visão crítica da forma como Freire (1987) trabalha, porém nos dão
os meios coerentes para não só alcançar esta visão, mas fazê-lo de uma
forma ampliada em sintonia com a mudança paradigmática em direção
à complexidade. Claro é que, em nenhuma circunstância é possível ga-
rantir uma trajetória onde há liberdade, mas é possível propiciar ambi-
entes mais ou menos favoráveis ao exercício de uma visão crítica, enco-
rajadora e criativa sobre a realidade em que vivemos.
As convergências entre as duas visões não acontecem na
forma de sobreposição, mas de complementação. Algumas são especial-
mente marcantes como é o caso do erro que Freire (1996) acolhe e rela-
ciona com abertura e não discriminação, e com sua importância no pro-
cesso de aprendizagem, e Morin (1996) vê no erro a negação de outras
formas de ver o mundo e também como falha de interpretação na comu-
nicação. O erro e a ilusão começam pelo mentir para si próprio e evo-
luem na defesa das próprias teorias, passam pela racionalização das
coisas e culminam nas cegueiras paradigmáticas inscritas cultural-
mente nas pessoas. São esses mesmos erros que dificultam ou até im-

216
pedem o respeito aos saberes dos educandos, à diversidade, o reconhe-
cimento do condicionamento em que nos encontramos, a humildade,
marcam o não saber escutar e por consequência o dialogar, frustram
as possibilidades cooperativas e a assunção da identidade cultural pro-
duzindo falhas na criticidade, na apreensão da realidade e na conse-
quente tomada de decisões conscientes tão caras a PC e tão relevantes
para a alegria e esperança necessárias para intervir no mundo
(FREIRE, 2014b). Outra complementação é na ideia de diversidade e
interdependência que Freire (2014b; SOUZA, 2015) desenvolve na re-
lação unidade na diversidade e Morin (2005b), certamente inspirado na
ciência da ecologia, expande da bioética para a ética planetária onde a
interdependência e o consequente respeito e compreensão da diversi-
dade constroem novas relações numa sociedade-mundo que “é uma con-
dição prévia para sair da crise da humanidade, mas a reforma da hu-
manidade é uma condição prévia para chegar a uma sociedade-mundo
para além da idade de ferro planetária” (MORIN, 2002, p. 167). Não
menos importante é a noção de autonomia em Freire (1996) que é cen-
tral a pedagogia freireana e inclui desde o pensar autônomo do edu-
cando, o agir autônomo, a autonomia escolar e a autonomia popular.
Constituindo as bases do pensar e do agir em todos os níveis, a autono-
mia constitui-se também na finalidade da própria educação. Em Morin
(2005a) a autonomia começa pela recuperação da noção de Si que é atu-
alizada na ideia de organização de si que conduz as ideias de produção,
regeneração, reorganização e reprodução de si, esse si para ele é a au-
tonomia. Essa autonomia, que é a base dos sistemas complexos, forja
seus limites e constitui a razão de sua própria existência como organi-
zação. Esta produz as características de auto regulação e liberdade do
sistema em relação ao meio, mas ela desemboca na noção de autonomia
dependente (MORIN, 2005a) que considera que a independência do ser
vivo depende do meio ambiente. Essa visão de autonomia dependente
parece ser muito coerente com a de Freire (1979) que valoriza a auto-
nomia do educando sempre aliada a interdependência da sociedade. A
postura de Freire (1996) de que educar exige rigorosidade metódica
para pensar certo, é “uma das condições necessárias a pensar certo e
não estarmos demasiado certos de nossas certezas” (MORIN, 1996, p.
30). Essa abertura que é quesito essencial à humildade de aprender se
articula perfeitamente com a noção de incerteza defendida por Morin
que desenvolve a ideia da imprecisão e provisoriedade do conhecimento

217
humano que, aliada à noção de ecologia da ação (MORIN, 2007) onde
uma ação se inscreve em um contexto e no jogo com este, por suas inter-
retro-ações pode desviar-se do seu fim chegando até a produzir o efeito
contrário ao pretendido (MORIN, 2005b). Morin (2014) ressalta que a
abertura ao inesperado nos tira da prisão de nos instalarmos de ma-
neira segura em nossas teorias e ideias e nos fechamos para o novo que,
sempre vem, e precisa ser incluído. “A mente humana deve desconfiar
de seus produtos “ideais“ que lhe são ao mesmo tempo vitalmente ne-
cessários. Necessitamos estar permanentemente atentos para evitar
idealismo e racionalização” (MORIN, 2014, p. 32). A ideia de que para
que possamos ter uma visão crítica da realidade necessitamos vigiar
constantemente nossa tendência a sermos prisioneiros de nossas pró-
prias ideias parece ser um ponto em comum entre os dois caminhos aqui
apresentados. Outra característica que une estas duas visões é sobre a
inutilidade e a impossibilidade de separar a racionalidade da afetivi-
dade, coisa que nossa civilização tentou praticar, e só gerou os desequi-
líbrios por causa de uma produção de conhecimentos sob a hegemonia
da razão e repressão à afetividade. Iniciando por parte das ciências du-
ras e da filosofia, mas paulatinamente avançando sobre as demais fa-
cetas da vida, em especial sobre as relações, produzindo um distancia-
mento na forma de objetividade que poderíamos dizer que invadiu até
as relações humanas. Iniciando por uma desconexão afetiva da huma-
nidade com a natureza, que se transformou apenas numa relação de
domínio e utilidade e, a seguir, dela consigo mesma, pela qual estamos
pagando através da desumanização das relações que nos custa sofri-
mento, solidão e depressão, que se tornam epidêmicos e refletem na
educação através da baixa autoestima e dificuldade de criar vínculos
nos estudantes. Essas mudanças produzem consequências no dia a dia
escolar em aspectos como a tolerância, a autonomia, a cooperação, o
querer bem, o comprometimento, a segurança, a alegria e a esperança.
A busca por amorosidade, constantemente apontada como essencial na
relação do ensino por Freire (1979), bem como esperança e alegria são
bases de uma ética inclusiva e propositiva que movimenta uma educa-
ção voltada para o intervir no mundo através de decisões conscientes.
Para Morin “a fé ética é o amor. Mas é um dever ético proteger a raci-
onalidade no coração do amor” (2005b, p. 202).

218
Por outro lado, vários princípios da TC que não encontram pa-
ridade na PC também estão em harmonia com o pensamento crítico po-
dendo inclusive servir para ampliar a reflexão. É o caso da resiliência
que dá nome à capacidade de recomposição de um sistema e os limites
que põem em risco esta recomposição. Noção oriunda da física que se
tornou inestimável na ecologia e tem igual valor para qualquer sistema
vivo, leia-se qualquer sistema que inclui seres vivos. É de imenso auxí-
lio para a compreensão do mundo e seus limites, especialmente numa
época em que estamos ultrapassando muitos limites na sociedade seja
de saúde física, ambientais, de sanidade mental, nas relações entre hu-
manos. A noção de homeostase é igualmente útil na educação para a
compreensão do comportamento variante dos sistemas que, embora di-
nâmico, constitui um equilíbrio, pois o equilíbrio vivo é sempre dinâ-
mico e o estático é a morte. Outra importante ideia para auxiliar a com-
preensão da sociedade é a de autopoiese que nos permite explorar a
idéia de autoprodução de si mesmo, a capacidade regenerativa dos sis-
temas que constantemente estão se produzindo embora para um obser-
vador desavisado a vida pareça apenas estar se mantendo. Essa ideia
de que para manter apenas o que temos necessitamos estar constante-
mente reconstruindo é muito útil na compreensão das relações sociais
também. A dialógica segundo Morin, que se diferencia da dialética por-
que em lugar da uma síntese hegeliana que supõe a solução das contra-
dições numa unidade superior, aquela mantém os antagonismos for-
mando fenômenos complexos (MORIN, 2005b). A causalidade complexa
traz uma quebra importante na linearidade causal que embasa grande
parte do entendimento em nossa sociedade, na medida em que não
existem mais causa e efeito pois todos os elementos agem uns sobre os
outros provocando e recebendo simultaneamente influências. Esse con-
ceito é muito útil por estar mais de acordo com o que realmente se ob-
serva na vida e amplia com isso nossa percepção sobre influenciar e ser
influenciado. A noção de hologramática (MORIN, 2005b) é importante
para a percepção da de que não só a parte se inscreve no todo, mas o
todo também se encontra inscrito na parte. Em vários níveis podemos
observar que a informação do todo se encontra nas partes como no caso
da informação genética onde cada célula possui toda a informação do
corpo. Outra importante noção para aprimorar a compreensão da reali-
dade é a de emergência, principal característica dos sistemas complexos

219
não lineares, vem a ser um fenômeno que por não se encontrar em ne-
nhuma das partes, é exclusivamente um produto da interação entre
elas, emerge das relações complexas ali estabelecidas (MORIN, 2005b).
O melhor exemplo de emergência é a vida que, por consequência, con-
tribui para a compreensão de tantas outras emergências. De todas as
contribuições da TC para uma educação crítica, possivelmente, a de
maior dimensão seja e a relação sujeito/objeto que subverte a ilusão da
neutralidade e introduz a influência do “criador” sobre a “criatura” de-
senvolvendo assim uma noção muito mais precisa de ciência e produção
de conhecimento por reconhecer a impossibilidade da própria precisão.
Isso somado à relação objeto/meio que de certa forma já foi parcialmente
abordada junto a noção de autonomia, pois um sistema, embora autô-
nomo, depende e é influenciado pelo meio onde se encontra. Daí se pode
concluir que estudar um objeto fora de seu meio é um caminho para
conhecer como ele não é, e por aí poder melhor entender sobre grande
parte da pesquisa que é realizada in vitro, ou seja num laboratório e
porque depois não apresenta os mesmos resultados a campo.
Por outro lado, a PC tem também contribuições, fora das con-
vergências, que são muito importantes para a TC levar o novo para-
digma à prática educacional e produzir uma visão condizente com a
complexidade que busca explicar. Começando pelo respeito com os sa-
beres dos educandos que a TC, embora seja inclusiva e respeitosa em
relação aos conhecimentos do paradigma atual e à diversidade, não tra-
balha os conhecimentos oriundos dos estudantes como base para a cons-
trução do novo. Por influência da PC, conforme descrevi acima, utilizei
amplamente das vivências pessoais dos estudantes na construção das
noções da TC. A criticidade, que está presente em ambos caminhos, tem
aspectos diferentes em cada um deles. Na PC ela é central e está vol-
tada à evolução do saber ingênuo que, em superação, através do critici-
zar-se transforma a curiosidade ingênua em curiosidade epistemológica
que resulta de procedimentos metodicamente rigorosos (FREIRE,
1996), enquanto na TC volta-se à crítica do paradigma mecanicista-car-
tesiano e sua forma de interpretar o mundo, propondo uma nova meto-
dicidade (MORIN, 2005a). Certamente elas se complementam e contri-
buem uma para a ampliação crítica da outra. A corporeificação das pa-
lavras pelo exemplo é uma essencialidade da PC, pois exige a coerência
do que se ensina através das práticas pessoais do professor, não pode-
mos ensinar o que não acreditamos e vivemos. Ensinar a complexidade,

220
nesta linha de raciocínio, significa viver a complexidade e isso é profun-
damente revolucionário numa sociedade que faz um discurso e pratica
outro. A reflexão crítica sobre a prática é uma das maiores riquezas da
PC, pois considera a necessidade constante de avaliar e aperfeiçoar as
práticas através da atividade crítica constante. “O seu “distanciamento”
epistemológico da prática enquanto objeto de sua análise, deve dela
“aproximá-lo” ao máximo” (FREIRE, 1979, p. 44). A noção de ser condi-
cionado, mas não ser determinado que, graças a ser inacabado pode ser
sujeito da história ao invés de objeto. O determinismo levaria ao fata-
lismo e a alienação enquanto o condicionamento leva a consciência de
que temos uma opção de mudança, mas que não se dá de forma mágica
a medida que estamos vinculados a visões e crenças das quais podemos
nos libertar através do esforço crítico e prático. Recuperar o valor do
bom senso como forma de quebrar as durezas e as formalidades e como
forma de encarar o inesperado que se faz constante na existência. A
convicção de que a mudança é possível é indispensável tanto na mu-
dança social como na paradigmática, ambas olhando como um todo pa-
recem impossíveis, mas através da crença na mudança vão se acumu-
lando movimentos que podem perfeitamente provocar a mudança. A cu-
riosidade é a mola, às vezes não dita, de qualquer mudança ambiciosa
como as em tela, na verdade é a mola de toda investigação que busca
desvendar e de toda prática que busca transformar.

SOBRE AS POSSIBILIDADES

O que temos aqui é um diálogo entre dois gigantes. Um repre-


senta tudo que há de melhor na academia europeia, aprofundamento,
grande conhecimento, ousadia e um olhar para o futuro. O outro, repre-
senta tudo o que há de requintado na cultura brasileira ou na cultura
do terceiro mundo e o que há de criativo democrático inclusivo, porque
não dizer revolucionário. Um pratica o diálogo entre espertos, aula ex-
positiva e debate. O outro, um diálogo do libertador que constrói com o
povo ao lado dele, em diálogo em que ambos estão se construindo. Duas
experiências completamente distintas, mas complementares, uma olha
para mudança social que necessita a humanidade para ser humani-
dade, a outra olha para mudança paradigmática que também precisa-
mos na mesma direção, no mesmo caminho para nos tornarmos mais
humanos, uma ética planetária. Casamento feliz, casamento de ideias

221
criativas, complementares, inclusivas que visam o bem-estar profundo
para todas as pessoas. Um representa um passeio das humanidades
dentro das ciências duras e uma busca de unificação do conhecimento
humano, o outro, buscando a libertação das populações marginalizadas
por essa mesma experiência colonizadora que se reproduziu dentro dos
países pobres, busca a libertação através do empoderamento dos indi-
víduos para de forma coletiva escolherem e construírem seu próprio
destino.
Os Saberes Necessários à Educação do Futuro se fundem com
uma Pedagogia da Autonomia num conjunto de possibilidades que po-
dem conduzir nossas populações marginalizadas a uma libertação já co-
nectada com uma nova forma de olhar o mundo e a vida. “A missão da
educação para a era planetária é fortalecer as condições de possibili-
dade da emergência de uma sociedade-mundo composta por cidadãos
protagonistas, consciente e criticamente comprometidos com a constru-
ção de uma civilização planetária.” (MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003,
p.98). O fundamental é que o professor e os alunos saibam que a postura
deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indaga-
dora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve. “O que importa
é que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos”
(FREIRE, 1979, p.96).
Diante da disputa que se estabelece entre os campos das ciên-
cias humanas e das ciências duras que aqui representamos pela PC e
TC, cabe lembrar que ambos não têm conseguido resolver de forma sa-
tisfatória os problemas da humanidade. As ciências humanas com sua
sensibilidade e amplitude qualitativa da realidade têm levantado ques-
tões pertinentes sobre o poder, a manipulação, o preconceito, as dife-
renças culturais e simbólicas, as emoções, as formas de expressão que,
contribuindo tremendamente para entender cada vez mais a humani-
dade, o que nem sempre tem assegurado soluções objetivas às questões.
Enquanto isso as ciências duras, com sua visão quantitativa da reali-
dade, têm evoluído de forma exponencial na direção da produção de tec-
nologias cada vez mais fragmentadas cuja objetividade se restringe ao
resultado específico sem levar em conta seus efeitos sociais e globais,
produzindo, com isso, uma espécie de objetividade cega.
A proposta de juntar duas ideias tão diferentes pode ser insti-
gante, mas é só através da prática e a reflexão crítica sobre ela que

222
poderemos avaliar se esse casamento teórico terá espaço no mundo da
educação. Disso trata-se nosso desafio.

223
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225
226
GÊNEROS TEXTUAIS E PEDAGOGIA CRÍTICA
NA SALA DE AULA: ALGUMAS REFLEXÕES

Gisélia Pereira Morin62


Ravenna Seixas da Silveira63

INTRODUÇÃO

Atualmente, sabemos a grande necessidade da pausa para a re-


flexão e da avaliação e reavaliação do processo de ensino em sala de
aula, para que este contemple uma educação mais humanitária e cons-
ciente. Apesar de encontrarmos inúmeros trabalhos direcionados para
esse viés, com este trabalho propõe-se um olhar diferenciado para o pro-
cesso de ensino em sala de aula, pois se acredita que novas contribui-
ções são sempre bem-vindas, enriquecem e auxiliam os professores.
Ademais, acredita-se que o ato de ensinar não deve ser visto somente
pela linha “conteudista” e de forma descontextualizada, mas sim, acima
de tudo, deve ser voltado para se ensinar a ser cidadão, com autonomia
e com pensamento crítico.
No que diz respeito a essa ideia, Freire (2016) lembra que o co-
nhecimento deve ser construído por meio de diálogos, ou seja, a apren-
dizagem deve desenvolver nos alunos a criatividade, a motivação, a per-
cepção, a atenção, etc. Nesse contexto, percebo o professor como o pro-
fissional que, segundo Nunes (2011, p. 139), deve romper com estereó-
tipos, trazer para as aulas temas atuais e transversais, aceitar as dife-
renças e buscar motivar os alunos.
Outro item importante refere-se à escolha por materiais que
usem os gêneros textuais, pois essa visão se enquadra nas propostas da
Pedagogia Crítica. De acordo com as Orientações Curriculares Nacio-
nais para o Ensino Médio, faz-se necessário “um sentido que supere o

62 Graduada em Letras Espanhol e Literaturas de Língua Espanhola (Licenciatura) e


especialista em Tecnologias da Informação e da Comunicação Aplicadas à Educação, am-
bas pela UFSM. Atualmente é graduanda em Letras Português pela UNIPAMPA.
63 Graduanda do curso de Licenciatura em Física pela UFSM. Participante/bolsista do

Programa de Residência Pedagógica do curso de Física. Participou do Programa Institu-


cional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), subprojeto da Física/UFSM.

227
seu caráter puramente veicular, dar-lhe um peso no processo educativo
global desses estudantes, expondo-os à alteridade, à diversidade, à he-
terogeneidade, caminho fértil para a construção da sua identidade”
(BRASIL, 2006, p. 129).
Neste contexto, o presente trabalho tem como principal objetivo
o de expender algumas reflexões sobre a importância da utilização e
trabalho com gêneros textuais em sala de aula, seguindo o viés da pe-
dagogia crítica.
Para a realização desta pesquisa, utilizaram-se, como referen-
cial teórico, Marcuschi (2002, 2008, 2011), para embasar as reflexões
sobre Gêneros Textuais e Freire (2016), Rajagopalan (2003) e Giroux
(1997) para discutir a Pedagogia Crítica. Já como enquadre pedagógico,
utilizaram-se as Orientações Curriculares Nacionais (OCEMs) e os Pa-
râmetros Curriculares Nacionais (PCNs).
A escolha da temática justifica-se pela necessidade sentida pe-
las pesquisadoras durante as práticas em sala de aula, bem como, de
insatisfações observadas no próprio processo de ensino, uma vez que
esteve voltado para a aquisição de léxico e de alunos/as passivos/as e
aulas sem espaço para o diálogo e debate de ideias, sendo aulas direci-
onadas para uma linha Estruturalista64. Com isso, as atividades se tor-
navam desinteressantes e os/as alunos/as pouco se motivavam para o
processo de aprendizagem.
Outro ponto importante que justifica essa pesquisa está na pre-
ocupação em promover um ensino mais reflexivo nos/as educandos/as,
de maneira que eles/elas sejam ativos/as e participativos/as no processo
de aprendizagem, com vez e voz em sala de aula, contribuindo para a
valorização e motivação para aprender.
A partir de tais inquietações, percebeu-se que as aulas, seja das
humanas como das exatas, não contemplavam um ensino voltado para
a formação de alunos conscientes, com um pensamento crítico, capazes
de atuar e de transformar a sociedade. Nesse sentido, acredita-se ser
indispensável que as aulas propiciem um espaço para o diálogo, leitura

64Segundo Abadía (2000, p. 39-72), na linha mais Formalista / Estruturalista, o processo


de aprendizagem se dá de maneira mecânica, dedutivo, por memorização, repetição, as
atividades tem o foco na gramática e se apresentam de maneira descontextualizada. O/a
professor/a é visto/a como o/a protagonista da aprendizagem dos/as alunos/as, sendo es-
tes/as passivos/as em sala de aula, somente respondendo a estímulos.

228
e discussões de textos, de maneira que se possa, ao transcorrer dos con-
teúdos, fazer relações com a realidade dos/as alunos/as, de modo que o
aprendizado não seja algo mecânico e descontextualizado.
De acordo com o explicitado nas linhas anteriores, entende-se,
após reflexões, que o ideal seria buscar soluções para auxiliar no pro-
cesso de aprendizagem, de modo a contemplar uma educação mais cons-
ciente, isto é, “capaz de formar um sujeito crítico, livre pensador, cons-
trutor de uma nova realidade” (LIMA; LAGO, 2008, p. 5), deixando de
lado a “educação bancária”, definida como aquela educação em que “o
educador faz comunicados e depósitos que os educandos, meras incidên-
cias, recebem pacientemente, memorizam e repetem” (FREIRE, 2016,
p. 80) [grifos do autor].
É para essa concepção tradicional de educação que Freire (2016)
chama a atenção, sendo que, de acordo com essa visão, considera-se o/a
aluno/a como um depositório de informações, onde os/as educandos/as
recebem os depósitos feitos pelo/a professor/a, guardam e memorizam
como se fossem arquivos permanentes (FREIRE, 2016, p. 81).
Assim, propõe-se, de modo inicial, uma aclaração do conceito de
gênero textual, bem como, o porquê de se pensar o ensino com base ne-
les, além de alguns esclarecimentos quanto às terminologias referentes
a “gênero” e “tipologia textual”.
Na continuidade, apresenta-se algumas considerações sobre a
Pedagogia Crítica e as contribuições que tal perspectiva acrescenta no
processo de ensino e aprendizagem dos/as educandos/as, tendo como
base, principalmente, os estudos de Paulo Freire (2016).
Ao concluir o estudo, apresentam-se as principais reflexões e
possibilidades que o estudo proporciona ao processo de ensino, uma vez
que apresenta pontos positivos de se adotar gêneros textuais nas aulas,
tendo como viés a questão da criticidade, de modo que o/a estudante
seja autônomo no seu processo de aprendizagem, além de prepará-los/as
para a vida, com ações oriundas de um pensamento crítico e reflexivo.

METODOLOGIA

O presente estudo classifica-se como pesquisa qualitativa, do


tipo pesquisa bibliográfica. A pesquisa qualitativa se dá em uma situa-
ção natural, na qual possui “dados descritivos, tem um plano aberto e

229
flexível e focaliza a realidade de forma complexa e contextualizada”
(LUDKE & ANDRÉ, 1986, p. 18).
De acordo com Pizzani et al. (2012, p. 54), entende-se como pes-
quisa bibliográfica “a revisão da literatura sobre as principais teorias
que norteiam o trabalho científico. Essa revisão é o que se chama de
levantamento bibliográfico ou revisão bibliográfica, a qual pode ser re-
alizada em livros, periódicos, artigo de jornais, sites da Internet entre
outras fontes”, exigindo tempo, dedicação e minuciosidade nos dados.
Para isso, os passos ao qual o estudo foi submetido foram, em
um primeiro momento, na leitura e escrita das subseções da revisão da
literatura, onde semanalmente era lidos textos e feito discussões e ano-
tações. Logo após, foi montado o artigo, com algumas reflexões baseada
em experiências vivenciadas pelas autoras e por leituras de teóricos na
área.

CONSIDERAÇÕES SOBRE GÊNEROS TEXTUAIS

Com a facilidade de acesso à informação, pode-se facilmente en-


contrar diversificados estudos relacionados aos gêneros textuais, bem
como várias definições para gênero, de modo que “é inegável que a re-
flexão sobre gênero textual é hoje tão relevante quanto necessária,
tendo em vista ser ele tão antigo quanto a linguagem, já que vem es-
sencialmente envolto na linguagem” (MARCUSCHI, 2011, p. 18). Dessa
maneira, considera-se como gênero a definição advinda dos estudos de
Marcuschi (2008, p. 155), em que são:

[...] os textos que encontramos em nossa vida diária e que apresentam


padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições
funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados
na integração de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas [...]
são formas textuais escritas ou orais bastante estáveis, históricas e
socialmente situadas. (MARCUSCHI, 2008, p. 155).

Em outras palavras, os gêneros não podem ser considerados


como formas estanques e rígidas, mas sim, “devem ser vistos na relação
com as práticas sociais, os aspectos cognitivos, os interesses, as relações
de poder, as tecnologias, as atividades discursivas e no interior da cul-
tura” (MARCUSCHI, 2011, p. 19), não são estáveis, nem puros, pois

230
podem mudar, variar e fundir com outros, de modo a manter sua funci-
onalidade em determinado contexto.
Em contrapartida ao conceito de gênero textual, encontramos a
tipologia textual. Muitos materiais didáticos acabam confundindo gê-
neros com tipologias, causando dificuldade e confusões. Nesse contexto,
segundo Marcuschi (2002, p. 22), “usamos a expressão tipo textual para
designar uma espécie de sequência teoricamente definida pela natureza
linguística de sua composição {aspectos lexicais, sintáticos, tempos ver-
bais, relações lógicas}” [grifos do autor]. São as categorias de narração,
argumentação, exposição, descrição e injunção. Já os gêneros textuais
são inúmeros, tais como: bilhete, cartas, lista de compras, horóscopo,
resenha, bula de remédio, etc.
Após tais considerações, passa-se para as questões de gênero
textual e ensino, uma vez que, ao trabalhar com gêneros textuais em
aula, o/a professor/a abre espaço para a troca de informações, para o
diálogo, aproximando os conteúdos da realidade escolar. Com isso, a
aprendizagem torna-se significativa, abrindo lacunas para o posiciona-
mento crítico, para a reflexão e para a argumentação em aula. Além
disso, ao pensar os gêneros textuais no ensino das diversas áreas do
conhecimento, seja no ensino fundamental ou médio, acredita-se que
eles se fazem um instrumento valioso no processo de ensino e de apren-
dizagem, promovendo o desenvolvimento cognitivo e pessoal dos/as alu-
nos/as, de maneira que, ao relacionar os temas das aulas com o contexto
em que se está inserida, a aprendizagem configura-se de maneira sig-
nificativa.
A aproximação dos gêneros textuais nas aulas torna-se uma
oportunidade para trabalhar os conteúdos no seu uso autêntico, de ma-
neira que “o ensino com base em gêneros deveria orientar-se mais para
aspectos da realidade do aluno” (MARCUSCHI, 2011, p. 31), tornando
o processo de aprendizagem pautado em um contexto real de uso, e não
isoladas, na qual os/as alunos/as não sabem onde nem quando usar o
que aprendem em sala. Com relação a isso, Passarelli (2012, p. 116)
relata que “a escrita é um objeto social. Assim, a tarefa da escola é levar
o aluno a perceber o significado funcional do uso da escrita, propiciando-
lhe o contato com as várias maneiras como ela é veiculada na socie-
dade”.

231
Nesta perspectiva, entende-se a aprendizagem como um pro-
cesso e não como produto, bem como destaca o Referencial Curricular
Lições do Rio Grande:

[...] as práticas de ensino devem partir de uma visão de aprendizagem


como uso-reflexão-uso, com oportunidades cíclicas para a retomada e
o aprofundamento dos conteúdos. Isso quer dizer que é preciso haver
sempre novas oportunidades para ler, escrever, solucionar problemas,
contrastar, reler, reescrever, melhorar a produção, individual ou cole-
tivamente. Nesse processo, a construção do conhecimento se dá fun-
damentalmente com o outro e para o enfrentamento de desafios de
novos usos das linguagens. (RIO GRANDE DO SUL, 2009, p. 48).

Assim, a utilização dos gêneros textuais em sala de aula propor-


ciona um aprendizado contextualizado, de modo que se coloca em prá-
tica o uso-reflexão-uso, com a reflexão de temas reais em que os/as alu-
nos/as estão familiarizados/as, bem como proporcionam “o desenvolvi-
mento da autonomia do aluno no processo de leitura e produção textual
como uma consequência do domínio do funcionamento da linguagem em
situações de comunicação” (LOPES-ROSSI, 2011, p. 71). Com isso, per-
cebe-se que os gêneros “circulam na sociedade de várias maneiras e nos
mais variados suportes. Exercem funções sociocognitivas e permitem
lidar de maneira mais estável com as relações humanas em que entra
a linguagem” (MARCUSCHI, 2011, p. 23), ou seja, com isso, compre-
ende-se que a aprendizagem deve ser “como um processo complexo e
interativo, que se constitui na relação do sujeito com as situações con-
cretas nas quais está inserido” (NUNES, 2011, p. 17).
Neste contexto em que a aprendizagem deve fazer parte da vida
cotidiana do/a aluno/a, Edgar Morin destaca que “é preciso situar as
informações e os dados em seu contexto para que adquiram sentido”
(MORIN, 2001, p. 36), tornando o processo de criação e de escrita moti-
vador aos alunos/as. Para a concretização de tal ideia, os gêneros textu-
ais servem como ferramenta pedagógica, uma vez que

Falar, escutar, ler, escrever, compreender, interpretar, conferir, duvi-


dar, questionar, concordar, contrapor são, entre tantas outras habili-
dades, alicerce para a condição de gente, de pessoa com identidade e
com história de vida. Dessa forma, se a linguagem configura-se como
uma capacidade essencialmente humana, nada melhor do que ali-
cerçá-la com a diversidade de gêneros textuais como coadjuvantes da
ação pedagógica. (MELLO et al., 2015, p. 62).

232
Para Nunes, os/as professores/as devem "ampliar suas percep-
ções trazendo propostas de novos conhecimentos, materiais e formas de
ver as coisas, a fim de aguçar seus processos perceptivos” (NUNES,
2011, p. 138). Nesse contexto, propor atividades novas com gêneros tex-
tuais que fazem parte do dia a dia dos/as educandos/as faz toda a dife-
rença para motivá-los/as e tornar o ensino contextualizado e significa-
tivo.

CONSIDERAÇÕES SOBRE PEDAGOGIA CRÍTICA

Atualmente, encontra-se facilmente estudos voltados para a Pe-


dagogia Crítica, tais como Freire (2016) e Giroux (1999). Destaca-se
também, a utilização de Rajagopalan (2003) para falar da Pedagogia
Crítica já no âmbito da Linguística Aplicada.
Para a realização deste trabalho, os estudos sobre Pedagogia
Crítica foram centrados, principalmente, em Paulo Freire (2016), que
nasceu em Recife no ano de 1921. Freire escreveu mais de 20 livros e
destacou-se na área da Educação Popular, com ênfase na escolarização,
na formação da consciência política e acreditava em um método de al-
fabetização dialético (MARCOTTI, 2012, p. 13). Em 2012, pela lei
12.612, Paulo Freire torna-se Patrono da Educação Brasileira. Segundo
Marcotti (2012),

Paulo Freire utiliza o termo conscientização para a educação, pois só


conscientizando-se os seres seriam capazes de desvelar-se da reali-
dade, percebendo-se no papel, neste caso, de opressores. Sendo assim,
a finalidade da Pedagogia de Freire é conscientizar, é quando a edu-
cação faz com que o homem se realiza como ser da práxis, capaz de
refletir e agir. Para ele Educar é conscientizar, e os seres só se consci-
entizam do que são quando são capazes de entenderem-se a si mesmo
e o lugar que está ocupando. (MARCOTTI, 2012, p. 19).

De acordo com isso, as aulas devem propor um trabalho que


exercite a reflexão e o pensamento crítico dos/as educandos/as. Em ou-
tras palavras, considera-se o/a educando/a como um ser capaz de pro-
duzir significados no meio em que está inserido, de modo que se seguem
as concepções apresentadas por Freire.
Para melhor contextualizar, explica-se, a partir dos estudos de
Rajagopalan (2003), que “a Pedagogia Crítica nasceu das inquietações

233
vividas ou reproduzidas na sala de aula, [...] enquanto um autêntico
espelho das contradições e tensões que marcam a realidade que se ve-
rificam fora da escola” (RAJAGOPALAN, 2003, p. 105).
Nesse contexto, a educação não se restringe intrinsecamente às
questões que envolvam somente a sala de aula e/ou às questões contem-
pladas nos materiais didáticos utilizados (sejam livros, apostilas, etc.),
mas sim, vai além da sala, no sentido que engloba e perpassa os muros
das escolas. Por isso, o que se faz dentro da sala de aula, repercute fora
da escola, de modo que “o que torna a pedagogia crítica distinta é a
vontade do pedagogo de servir de agente catalisador das mudanças so-
ciais” (RAJAGOPALAN, 2003, p. 106).
Para este autor ainda, o/a professor/a crítico/a é idealista, mo-
vido/a por convicções e, mesmo que suas ações sejam restritas e em pe-
quenas escolas com poucas turmas com um tempo reduzido, acredita
que suas pequenas atitudes podem, de maneira lenta, desencadear
grandes mudanças sociais com consideráveis consequências para a vida
dos/as educandos/as (RAJAGOPALAN, 2003, p. 106). Para as concep-
ções de Giroux (1997), os/as educadores/as críticos/as

[...] fornecem argumentos teóricos e enormes volumes de evidências


empíricas para sugerir que as escolas são, na verdade, agências de
reprodução social, econômica e cultural. Na melhor das hipóteses, o
ensino escolar público oferece mobilidade individual limitada aos
membros da classe trabalhadora e outros grupos oprimidos, mas, em
última análise, as escolas públicas são instrumentos poderosos para a
reprodução de relações capitalistas de produção e de ideologias legiti-
madoras da vida cotidiana. (GIROUX, 1997, p. 148).

Neste sentido, faz-se extremamente necessário que os/as educa-


dores/as tornem-se críticos/as e reflexivos/as nas suas práticas diárias
e que, aos poucos, mudem a realidade da Educação, no sentido de deixar
de lado o ensino tradicional que está enraizado nas escolas, formando
pessoas reprodutoras de conhecimentos, passivas e sem voz. Sobre esse
ensino que grande parte das escolas disseminam, está relacionada a
uma visão tradicional da educação, chamada por Freire de Educação
bancária,

[...] onde os professores assumem o papel de opressores que por sua


vez são os que sabem mais por isso apenas transmitem o conheci-
mento sem que haja diálogo entre eles, e o aluno oprimido cala-se e

234
passivamente recebe esses depósitos de conhecimento, sem possibili-
dade de argumentar, criticar, ou posicionar-se. (MARCOTTI, 2012, p
23).

Pensando nisso, acredita-se que o processo de aprendizagem


deve dar conta de uma educação com princípios libertários, ou seja,
“aquela capaz de formar um sujeito crítico, livre pensador, construtor
de uma nova realidade” (LIMA, LAGO, 2008, p. 5). De acordo com a
proposição apresentada, no Referencial Curricular Lições do Rio
Grande encontra-se como objetivo da aprendizagem a “formação do ci-
dadão, um cidadão capaz de participar criticamente no mundo, apto ao
trânsito nas sociedades complexas contemporâneas e preparado para o
enfrentamento com a diversidade e o trânsito intercultural” (RIO
GRANDE DO SUL, 2009 p. 131).
Outro ponto relevante refere-se às crenças da população em re-
lação à educação. Muitas pessoas acreditam que o ato de educar deve
ser visto de uma maneira neutra às questões que estão fora da escola,
de modo que,

[...] o professor que se atreve a criar um espaço dentro de sala para


que seus alunos possam discutir livremente a própria vida fora da sala
de aula e procurar relacionar o que se aprende nos livros à realidade
que eles vivem no seu dia a dia é visto com desconfiança e tachado de
agente provocador ou alguém que confunde a nobre tarefa de educar
com a prática nefasta de “fazer cabeças”, de doutrinar. (RAJAGOPA-
LAN, 2003, p. 110).

De acordo com Silva (2004), “a Pedagogia Crítica recusa a tese


de que o conhecimento e a escola são neutros e que, portanto, os profes-
sores devem ter uma atitude neutra” (SILVA, 2004). Levando em conta
que “ensinar exige compreender que a educação é uma forma de inter-
venção no mundo” (FREIRE, 2016, p. 96), o/a educador/a crítico/a tem
a tarefa de “estimular a visão crítica dos alunos, de implantar uma pos-
tura crítica, de constante questionamento das certezas que, com o pas-
sar do tempo, adquirem a aura e a ‘intocabilidade’ do dogma” (RAJA-
GOPALAN, 2003, p. 111). Ir além dos conteúdos programáticos e trazer
questões atuais da sociedade são indispensáveis para o trabalho de
um/a professor/a reflexivo/a e crítico/a, professor/a que almeja o cresci-
mento social, intelectual e cognitivo das suas turmas, que se preocupa

235
com o processo de formação e com as pessoas que estarão atuando frente
à sociedade no futuro.
Para finalizar, destacam-se alguns pontos que são imprescindí-
veis para o ensino crítico segundo Duboc (2015, p. 222), na qual tem-se:
a valorização do conhecimento que os estudantes já possuem, ou seja,
“atividades que se voltam para experiências, saberes, interesses e pers-
pectivas dos alunos (partir do que lhe é familiar)” (DUBOC, 2015, p.
222); o acesso a novos conhecimentos, que são “atividades que colocam
o aluno em contato com novas experiências e perspectivas, convidando-
o a conhecer o que não lhe é familiar ou a pensar sobre uma perspectiva
nova” (DUBOC, 2015, p. 222); conceituações, “momento em que o pro-
fessor explica, argumenta ou descreve os objetivos da atividade” (DU-
BOC, 2015, p. 222); conexões locais e globais, que é a “consciência da
multiplicidade de sentidos” (DUBOC, 2015, p. 222); expansão da pers-
pectiva, que é a “ampliação da visão de mundo do aluno” (DUBOC,
2015, p. 222); e transformação que são “atividades que desenvolvam a
transposição” (DUBOC, 2015, p. 222).
As autoras Maranhão e Paula (2008), baseadas nos estudos de
McLaren (1997), destacam que “a educação crítica tem a função de con-
sertar e transformar o mundo (...). Ele fornece a direção histórica, cul-
tural, política e ética para aqueles na educação que ainda ousam acre-
ditar” (MCLAREN, 1997, p. 192 apud MARANHÃO; PAULA, 2008, p.
4) [grifos do autor]. E acrescentam que “ao educador crítico cabe o papel
de questionar os conteúdos programáticos e estruturas das instituições
de ensino e da sociedade” (MARANHÃO; PAULA, 2008, p. 4).
Assim, entende-se que a educação deve contemplar um ensino
crítico, uma vez que “educar-se criticamente significa analisar a totali-
dade dos fenômenos sociais, posicionando-se frente às questões, ao in-
vés de somente reproduzi-las” (MARANHÃO; PAULA, 2008, p. 5). Em
outras palavras, uma educação que reflete sobre questões relevantes
aos/as educandos/as, disponibilizando espaços para dialogar, discutir e
posicionar-se. Para isso, faz-se necessário movimentar os conhecimen-
tos prévios dos/as estudantes, questões que, muitas vezes, passam pelo
senso comum e, assim, desconstruir e reconstruir conceitos.

236
CONCLUINDO

Após tais reflexões sobre gêneros textuais e Pedagogia Crítica,


compreende-se que ambos estão permeadas e direcionadas para o pro-
cesso reflexivo e crítico dos/as estudantes, oportunizando um ambiente
para que as aulas ultrapassem os muros das escolas e cheguem até as
casas de cada aluno/a, modificando formas de pensar, posicionar e agir
deles/as e de seus familiares.
Aqui, percebe-se o/a educando/a como um ser ativo, criativo, au-
tônomo, com voz e espaço dentro da sala de aula, onde possa perguntar,
questionar, apresentar inquietações, dúvidas e angústias, que possa
tentar e errar, que dialogue com colegas, professor/a e com o conteúdo,
que traga exemplos e leve os exemplos para seu espaço social. Entende-
se aqui, a escola como uma extensão da sociedade em que os/as alu-
nos/as estão inseridos, na qual busca formar cidadãos conscientes e re-
flexivos de seu agir em sociedade.
Percebe-se também, que o presente estudo pode motivar os/as
professores/as que, muitas vezes, estão sobrecarregados com excesso de
atividades, como planos de aula, e não possuem tempo para elaborar
um material ou adequar suas aulas para de fato formar alunos/as mais
conscientes, e acabam por reproduzir atividades, tornando o processo
de aprendizagem falho e semelhante ao ensino tradicional.
A proposta exibida pela Pedagogia Crítica refere-se a pensar al-
ternativas pedagógicas que representam a “base para formular-se uma
educação social democrática e coletivista despida de individualismo
egoísta e relacionamentos sociais alienantes” (GIROUX, 1997, p. 67).
Segundo Oliveira (2015, 31), a Pedagogia Crítica desperta no/a edu-
cando/a a capacidade de ir além do material didático usado em sala de
aula, dando a “oportunidade de conceber a realidade por detrás do senso
comum, para além do que a ideologia dominante impõe como verdade”.
No que se refere a considerar os/as estudante como um ser ca-
paz, que já possui conhecimentos prévios, Freire destaca a importância
de “respeitar a leitura de mundo do educando para ir mais além dela”
(FREIRE, 2016, p. 120), ou seja, valorizar os saberes que os/as alunos/as
já possuem, suas experiências e suas dúvidas, para assim, direcioná-
los/as para novos saberes e experiências, de modo que ampliem seus
conhecimentos, sendo que, segundo Freire (2016), “ensinar exige res-
peito aos saberes dos educandos”.

237
Assim, um dos saberes indispensáveis para a prática educativa,
referenciada por Freire, elucida que “ensinar não é transferir conheci-
mento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua cons-
trução” (FREIRE, p. 24, 2016).
De fato, o ensino crítico, aliado aos gêneros textuais dentro da
sala de aula

[...] serve para promover oportunidades de letramento do educando no


mundo mais amplo, para mais além das suas identidades e comuni-
dades locais de atuação e de interação, para, em última análise, poder
redimensionar o que já conhece e valoriza e, então, crítica e conscien-
temente, promover mudanças. (RIO GRANDE DO SUL, 2009, p. 133).

De acordo com o documento, o exercício da reflexão, da critici-


dade, do diálogo e da interação em sala de aula com outras culturas e
experiências concretiza os postulados de uma educação consciente que,
ao valorizar o/a educando/a e percebê-lo/a como um ser capaz, torna-se
um/a aluno/a consciente de seu processo de aprendizado. Com isso,
pode-se entender que, segundo Oliveira (2015):

[...] cabe à Pedagogia Crítica fazer com que o discente seja capaz de
enxergar para além daquilo que está posto no livro didático ou no cur-
rículo escolar; há que se possibilitar ao aprendiz a oportunidade de
conceber a realidade por detrás do senso comum, para além do que a
ideologia dominante impõe como verdade. (OLIVEIRA, 2015, p. 31).

Para finalizar a presente seção e com base em todo o exposto


acima, acredita-se que o ensino com base em gêneros textuais, perme-
ado pela criticidade, auxiliam o/a estudante a se constituir como um ser
ativo na sociedade, com um pensamento reflexivo e crítico, valorizando
os saberes de cada um/a em sala de aula, tronando o processo de apren-
dizagem significativo.
Também, considera-se importante que o/a educador/a, de
acordo com Hartman (2015, p. 13) esteja em constante processo de re-
flexão sobre a sua prática, de maneira que a reflexão se dê antes, du-
rante e depois das aulas, por intermédio da “análise e avaliação crítica
de pensamentos, posturas e ações passadas, atuais e/ou futuras”.

238
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241
242
A ESCOLA NA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO:
REFLEXÕES SOBRE OS PROCESSOS DE ENSINO
E APRENDIZAGEM

Julio César Pinheiro Chaves65

Introdução

O tema deste artigo versou sobre a Educação na Sociedade do


Conhecimento, estando a mesma imersa numa redefinição paradigmá-
tica no presente século. Por conseguinte, essa sociedade, em constante
evolução, caracteriza-se por ser influenciada pelos fenômenos da globa-
lização e da virtualização da realidade, dentre muitos outros.
O fenômeno da globalização está relacionado a vários concei-
tos, como internacionalização, liberalização, universalização e ociden-
talização. Nesse contexto, Diniz (2007) elucida em seu trabalho o se-
guinte conceito:

A globalização pode ser descrita como um processo de difusão de


ideias, valores, condutas e diversidades culturais, formas de produção
e de trocas comerciais, múltiplos serviços, desenhos organizacionais,
pesquisa e desenvolvimento na área da ciência e da tecnologia, novos
materiais, nova logística de meios, miniaturização eletrônica e gestão
de ecossistemas, que atravessam e rompem as fronteiras nacionais
(DINIZ, 2007, p. 44-45).

Esse fenômeno está presente nos mais diversos campos que


permeiam, sustentam e compõem a sociedade atual, tais como política,
direitos humanos, saúde, informática, educação e cultura. A tendência
do fenômeno da globalização é de crescimento sem limites num mundo
sem fronteiras, ampliando e divulgando a cultura de todos os povos.
A respeito do significado da virtualização da realidade ou rea-
lidade virtual, poderiam ser apresentados alguns entendimentos, mas
atendo-se a um deles, usado pelo senso comum, o termo refere-se a
obras literárias de ficção ou também apresentadas em filmes e novelas,

65Mestre e Doutor em Ciências Militares. Graduado em Sistemas de Informação e Espe-


cialista em Gestão e Docência no Ensino Superior pela Universidade Luterana do Brasil
(ULBRA).

243
ou seja, um fato não existente no plano real, mas verdadeiro no plano
potencial ou imaginário (CHAVES, 1999).
Outro entendimento mais adequado aos dias atuais é defen-
dido por Lévy (1996, p.17) que considera o virtual “um lugar”, ou seja,
possui existência definida, mas não está fisicamente presente e que “a
virtualização pode ser definida como o movimento inverso da atualiza-
ção”. Por exemplo, uma loja considerada virtual é atual e existente,
como também os produtos lá vendidos são reais, mas o consumidor pode
estar em qualquer lugar do mundo. Ao falar que um documento ou men-
sagem enviada por alguém está virtualizada, imagina-se que esteja em
algum lugar do ciberespaço.
Portanto, a virtualização consiste em redefinir o que é atual
dentro de um espaço temporal transparente para o indivíduo. Assim, a
virtualização da realidade é um dos efeitos da globalização, mas que
influencia tremendamente a sociedade, no sentido de dar mais liber-
dade a mesma, alterando o modo de relacionamento das pessoas no
tempo e no espaço. A rede mundial de computadores, a internet, aliada
aos meios de comunicação de massa, disponibiliza os meios para a refe-
rida virtualização e também produz um impacto profundo no aspecto
da divulgação das informações, do conhecimento e da cultura.
Nesse contexto, a escola também está inserida e deve procurar
os caminhos para progredir, modificando seus modelos tradicionais,
indo ao encontro da sociedade que incessantemente muda seus paradig-
mas. Dessa forma, para buscar essa transformação, a escola poderá ter
como princípios do processo ensino-aprendizagem, características como
a criatividade e a inventividade.
As Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) propi-
ciam novas formas de organização social, como visual, virtual e em rede,
desde o nível local até mundial, graças à internet. Hoje temos à nossa
disposição uma nova rede técnica, o ciberespaço e as diversas formas de
sociabilidade online ou redes sociais, a cibercultura, configurando ou
influenciando todas as práticas contemporâneas, inclusive as da escola.
O intercâmbio mundial de informações e o uso crescente de
serviços online influenciam o ritmo das mudanças tecnológicas, sociais
e educacionais. Nesse sentido, torna-se necessário, constantemente, no-
vos olhares sobre para onde estão conduzindo essas mudanças, para
também direcionar as práticas pedagógicas para acompanhar a evolu-
ção e atender os anseios da sociedade.

244
Diante de uma sociedade dinâmica, complexa e em constante
desenvolvimento é interessante que o processo de ensino e aprendiza-
gem acompanhe essa evolução. Assim, é importante que se faça uma
atualização constante e uma avaliação criteriosa de novos modelos e
novas práticas, a fim de que haja uma ruptura definitiva com os para-
digmas conservadores.
Consequentemente, o presente artigo procurou investigar
quais os processos atuais e tendências para o futuro, que colocam o en-
sino e aprendizagem dentro do contexto de uma educação globalizada.
Nesse sentido, teve como objetivo refletir sobre o cenário atual e sobre
determinados aspectos voltados para o futuro do ensino e aprendizagem
da escola inserida no contexto da Sociedade do Conhecimento.
Assim, diante desses cenários, realizou-se uma pesquisa qua-
litativa e documental indireta, consistindo na utilização de referências
teóricas já publicadas. Os principais tipos de informações coletadas fo-
ram decorrentes de pesquisa documental de fontes primárias, ou seja,
dados do Ministério da Educação (MEC), pareceres de especialistas; e
pesquisa bibliográfica de fontes secundárias, tais como matérias de jor-
nais, artigos de revistas especializadas ou não, produções audiovisuais,
monografias, dissertações, livros (DAL-FARRA, 2015).
O exame dos dados coletados foi realizado de acordo com a
Análise de Conteúdo (DAL-FARRA, 2015), com uma análise de texto
das informações coletadas, produzindo uma reflexão objetiva dos dados
pertinentes ao assunto investigado.

A educação e o cenário tecnológico

Moran (2010, p. 11) relata que “muitas formas de ensinar hoje


não se justificam mais” e que “muitas aulas convencionais estão ultra-
passadas”. Comenta que o caminho para a educação em uma sociedade
mais conectada é a utilização das tecnologias no ensino presencial e vir-
tual, mas que as tecnologias, apesar de importantes, “não resolvem as
questões de fundo” (MORAN, 2010, p. 12).
Uma questão a ser verificada e analisada em todas as escolas
públicas e privadas é que a mera existência de equipamentos, ferra-
mentas tecnológicas e softwares não significa que elas serão usadas em
sua plenitude ou de forma correta ou de que haverá uma melhoria sig-

245
nificativa na educação. Tal questão não equacionada de maneira ade-
quada, pode desestimular professores e estudantes para o uso da tecno-
logia como meio de implementação de mudanças e evolução do ensino e
aprendizagem.
Uma mudança significativa na educação é realizada com a
adoção de bibliotecas virtuais, mas o que vemos na maioria das escolas
de ensino presencial é o uso do livro impresso ou de apostilas impressas
ou o material disponibilizado em algum meio virtual da instituição para
que o aluno possa imprimir. Um dos óbices para a utilização de biblio-
tecas virtuais relaciona-se a grande falta de dispositivos eletrônicos ou
Tablets nas escolas, que poderiam ser disponibilizados para todo o corpo
docente e discente, facilitando o acesso às bibliotecas virtuais.
Os recursos físicos ou virtuais atualmente disponíveis para a
educação são computador, notebook, tablet, smartphones, datashow,
lousa digital, mídias (DVD e CD-Rom), pendrive, Internet, hipermídia,
QR code, ferramentas para educação à distância – como fórum-chats,
grupos ou lista de discussão, correio eletrônico (e-mail), ambiente vir-
tual de ensino e aprendizagem (AVA), redes sociais, tecnologias sem fio,
computação nas nuvens, e-Learning e m-Learning.
Além dos recursos citados, apontam-se ferramentas virtuais
como blogs, hot potatoes, webquest, webfólio, podcasts, curso mídias na
educação e outros que podem ser utilizadas no processo educacional,
possibilitando ao estudante que construa sua aprendizagem por meio
da internet e por outro lado, viabilizando o acompanhamento e a avali-
ação dos discentes pelo professor (BRASIL, 2009).
Esses recursos tecnológicos, segundo Masetto (2010), auxiliam
tanto no desenvolvimento do ensino presencial quanto na educação a
distância. Sobre os mesmos, o referido escritor acrescenta que as novas
tecnologias:

Exploram o uso de imagem, som e movimento simultaneamente, a


máxima velocidade no atendimento às nossas demandas e o trabalho
com as informações dos acontecimentos em tempo real. Colocam pro-
fessores e alunos trabalhando e aprendendo a distância, dialogando,
discutindo, pesquisando, perguntando, respondendo, comunicando in-
formações por meio de recursos que permitem a esses interlocutores,
vivendo nos mais longínquos lugares, encontrarem-se e enriquecerem-
se com contatos mútuos (MASETTO, 2010, p. 152).

246
Moran (2010, p. 32) fala da importância de integrar as tecno-
logias na escola, aprendendo a explorar todas as capacidades dos recur-
sos tecnológicos disponíveis, permitindo ao docente diversificar a sua
forma de dar aula, de realizar atividades e de avaliar, tanto no ensino
presencial quanto no virtual. Nesse mesmo sentido, o referido autor
considera que a educação escolar precisa incorporar mais as novas lin-
guagens, e que “é importante educar para usos democráticos, mais pro-
gressistas e participativos das tecnologias, que facilitem a evolução dos
indivíduos” (MORAN, 2010, p. 36).
As alternativas de integração e interação educacionais são
inúmeras com o uso da tecnologia. Hoje temos aulas a distância com
interação online e aulas presenciais com interação a distância. O im-
portante é, de acordo com Moran (2010, p. 61), “conectar sempre o en-
sino com a vida do aluno”, por “todos os caminhos possíveis”.
Em todo o caso, as mudanças ocorridas no cenário tecnológico
oferecem à escola um desafio de incorporar as TIC nos processos educa-
cionais de forma que agregue relevância ao ensino, oportunizando me-
tas e estratégias inovadoras, meios tecnológicos dinâmicos e que con-
corra para uma aprendizagem de qualidade capaz de superar os proble-
mas presentes na atual Sociedade do Conhecimento.
No tocante a metas e estratégias relacionadas à tecnologia na
Educação, o Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL, 2014, p.64)
prevê, para até o final desta década, a universalização do acesso à in-
ternet, a triplicação da relação computador/aluno(a) nas escolas da rede
pública de educação básica e da promoção da utilização pedagógica das
TIC. No referido plano, também consta a estratégia de promoção da re-
forma curricular dos cursos de licenciatura e estímulo à renovação pe-
dagógica, incorporando as modernas TIC (Ibdem, 2014, p.79).
Verifica-se, portanto, que as políticas atuais do governo con-
templam ações a serem realizadas, visando à melhoria da qualidade dos
ensinos fundamental e médio, no tocante às TIC. Depreende-se que os
investimentos em meios tecnológicos para as Instituições de Ensino Su-
perior ficam a cargo das mesmas, já que a maioria é particular e as
Universidades públicas possuem autonomia administrativa.
Infere-se, também, que ainda está longe o atendimento à meta
de mobiliar as escolas com os meios de informática adequados; isso sem
levar em consideração a situação da manutenção do material existente,

247
ou seja, qual o percentual deste material em condições ideais de funci-
onamento.
Ainda, mencionando uma iniciativa do governo federal, vi-
sando à tecnologia na Educação, foi criado pela Portaria nº 522, de 9 de
abril de 1997, do Ministério da Educação (MEC), o Programa Nacional
de Informática na Educação - Proinfo, com a finalidade de promover o
uso pedagógico da tecnologia no ensino público fundamental e médio,
em parceria com os governos estaduais e municipais.
Conceitualmente, o funcionamento do ProInfo era para ser de
forma descentralizada, onde deveria existir em cada unidade da Fede-
ração uma Coordenação Estadual, e os Núcleos de Tecnologia Educaci-
onal (NTE), dotados de infraestrutura de informática e comunicação
que reuniriam educadores e especialistas em tecnologia de hardware e
software (BRASIL, 1997).
Houve uma revisão do Proinfo feita pela Secretaria de Educa-
ção a Distância (SEED), do MEC, materializada no Decreto nº 6.300, de
12 de dezembro de 2007, onde passou a ser denominado Programa Na-
cional de Tecnologia Educacional-Proinfo. Tal programa deixava a cri-
tério dos Estados e Municípios a adesão ao mesmo, bem como prover a
infraestrutura tecnológica necessária e a viabilização e incentivo do
treinamento de professores para utilização pedagógica das TIC (BRA-
SIL, 2007a). Em seguida, foi criado o Programa Nacional de Formação
Continuada em Tecnologia Educacional - Proinfo Integrado, ofertando
cursos de capacitação de professores para o uso didático-pedagógico das
TIC (BRASIL, 2007b).
Até os dias atuais, parece que não foi realizada nova atualiza-
ção do Proinfo Integrado, conforme se constata nas consultas realizadas
nas páginas da internet disponibilizadas pelo MEC, pois, em função da
evolução da tecnologia, o conteúdo dos cursos ofertados pelo programa,
como de Introdução à Educação Digital, Tecnologias na Educação, Ela-
boração de Projetos e outros (BRASIL, 2007b), certamente, necessita-
riam estar compatíveis com a tecnologia moderna.
Por outro lado, verifica-se que o MEC em parceria com o Mi-
nistério da Ciência e Tecnologia lançou, em 2008, o Portal do Professor
com o objetivo de apoiar os processos de formação dos professores bra-
sileiros e enriquecer a sua prática pedagógica. O portal é uma impor-
tante ferramenta de apoio ao professor para o desenvolvimento dos te-

248
mas curriculares, do ensino fundamental e médio, e para o uso dos re-
cursos multimídia e das ferramentas digitais. Nele, o professor poderá
se integrar a um conjunto de professores do país, como também obter
acesso a sites e portais nacionais e internacionais para auxiliar a pes-
quisa (BRASIL, 2008).

A posição do professor e do estudante diante do cenário tecno-


lógico

Com relação à tecnologia no processo educacional, Parcianello


e Konzen (2011) colocam que ela favorece todos os níveis de aprendiza-
gem, desde a educação básica até a formação acadêmica; como também,
ela permite que educador e educando ampliem suas interações presen-
ciais e virtuais. Entretanto, a evolução das TIC, decorrente da globali-
zação ainda não está presente em sua plenitude, no contexto educacio-
nal.
Coll (2014), em entrevista à revista Nova Escola, afirma que,
no Brasil, dois em cada dez professores são usuários do computador em
sala de aula e, quanto ao modo de utilização, essa ferramenta é empre-
gada em processamento de textos, confecção de telas de apresentação
de tarefas e em atividades banais, sem transformar a prática de ensino.
Behrens (2010, p. 69-70) comenta que o avanço das TIC não
admite um ensino superior que se evidencie por uma prática conserva-
dora, repetitiva e acrítica; que a economia globalizada espera que o pro-
fissional tenha uma formação diferenciada. Alude, ainda, que o desafio
da universidade é de operacionalizar, ou seja, dotar o estudante de fer-
ramentas que lhe possibilite uma educação continuada. Nesse sentido,
o estudante precisa:

[...] ultrapassar o papel passivo, de escutar, ler, decorar e de repetidor


fiel dos ensinamentos do professor e tornar-se criativo, crítico, pesqui-
sador e atuante, para produzir conhecimento. [...] O volume de infor-
mações não permite abranger todos os conteúdos que caracterizam
uma área do conhecimento. Portanto, professores e alunos precisam
aprender a aprender como acessar a informação, onde buscá-la e o que
fazer com ela (BEHRENS, 2010, p. 71).

Sabe-se que as tecnologias estão em constante evolução. O mo-


derno hoje se torna obsoleto em pouco tempo. Tais assertivas são bem

249
adequadas para além das escolas, pois as políticas de investimentos em
recursos tecnológicos não preveem a modernização constante e imedi-
ata do que se torna obsoleto. Entretanto, os meios tecnológicos existen-
tes, obsoletos ou não, necessitam de pessoal capacitado para absorver e
incorporar em sua prática pedagógica as ferramentas disponíveis para
o ensino e aprendizagem.
Com relação à capacitação dos docentes para a apropriação
das tecnologias modernas, alguns autores apontam vários fatores para
a não conveniente absorção, por exemplo, a constatação de que “nos cur-
sos de graduação, pouco, ou quase nada ainda, está sendo proposto aos
futuros professores” (BASZTABIN et al., 2006, p.877). Tal assertiva re-
mete para, naquela época, uma deficiência curricular ou tratamento de
maneira superficial da inserção de ferramentas tecnológicas no pro-
cesso de ensino e aprendizagem.
Marconi e Pulga (2010, p. 2) no artigo em que mencionam so-
bre o desenvolvimento do curso de capacitação, aludem que “a ênfase
do curso deve ser a criação de ambientes educacionais de aprendizagem,
nos quais o aluno executa e vivencia uma determinada experiência, ao
invés de receber do professor o assunto já pronto”. Nesse caso, os auto-
res comentam uma deficiência na proposta pedagógica dos cursos de
formação de professores e que torna precária a maneira efetiva deles
intervirem na relação com as TIC.
Em outro estudo, que tratou sobre um curso voltado para 113
professores e gestores de escolas públicas municipais, dentro da concep-
ção do Proinfo Integrado, nos anos de 2008 e 2009, visando à formação
continuada na inclusão digital desses profissionais, com o intuito cen-
tral dos mesmos utilizarem os recursos transmitidos em suas práticas
pedagógicas nas escolas, Medeiros (2010) colocou que a quantidade de
professores participantes foi muito reduzida em comparação com o uni-
verso existente; e que os principais fatores alegados pelos que não con-
cluíram o curso foram a falta de disponibilidade de horário para parti-
cipar de cursos de formação e o não funcionamento dos laboratórios e
as máquinas sucateadas nas respectivas escolas.
Em sua investigação sobre a formação do professor para uso
da tecnologia, (PAIVA, 2013, p. 218) conclui que a mesma “raramente
acontece de forma sistematizada [...] fica, geralmente, restrita a inicia-
tivas individuais”. Sistematização significa uma maneira organizada,

250
adequada e com metodologia pertinente para se construir um conheci-
mento. Em seu trabalho, a referida autora cita várias fontes de forma-
ção que podem capacitar o professor a usar a tecnologia em suas ativi-
dades, como por exemplo, livros, periódicos, tutoriais e manuais, blogs,
cursos, busca na web, pares, alunos, projetos colaborativos, apoio insti-
tucional, lista de discussão e experiência prática (Ibdem, 2013, p. 218).
Compulsando uma pesquisa como exemplo de tantas outras
realizadas, no tocante à formação de professores para o uso de tecnolo-
gias e que obtiveram resultados semelhantes, Nogueira et al. (2013)
chegaram à conclusão sobre a necessidade dos professores receberem
formação de qualidade para atuar de forma competente com as TIC; e
também da necessidade de capacitação permanente dos professores
face ao desenvolvimento tecnológico contínuo, que exige novos conheci-
mentos para utilização nos processos de ensino.
Pelo que foi colocado nas pesquisas aludidas, ao longo dos anos
a inserção do cenário tecnológico na prática pedagógica do docente, de
forma significativa, não vem sendo bem equacionada, refletindo em sua
atuação nas práxis educativas na sala de aula. A inferência da formação
inadequada ou da lacuna na formação inicial e continuada do docente
que não contempla as novas tecnologias na educação pode estar relaci-
onada a diversos fatores, por exemplo, falta de prioridade nas políticas
públicas para a educação, no que diz respeito a planejamento, investi-
mento e efetiva valorização profissional do docente; a limitação das es-
colas ao acesso à internet e a falta de motivação dos docentes e discentes
por parte da escola.
A mudança dos paradigmas das práticas pedagógicas somente
será efetuada por profissionais adequadamente preparados. Moran
(2007, p.18) alude que “bons professores são as peças-chave na mu-
dança educacional. Os professores têm muito mais liberdade e opções
do que parece. A educação não evolui com professores mal preparados”.
Pode-se inferir que grande parte dos docentes não viveu sob a
égide da utilização massiva da tecnologia, para executar os seus proce-
dimentos e, portanto, estão mais afetos a modelos tradicionais de edu-
cação, fazendo parte de uma geração de “desconectados tecnológicos”.
Por outro lado, a maioria dos estudantes já está familiarizada com a
utilização de determinadas tecnologias, fazendo parte dos nascidos na
geração dos “conectados tecnológicos”.

251
Dessa forma, o cenário apresenta um “gap geracional”, onde
os professores, durante grande parte da vida, não tiveram a possibili-
dade de conviver com a utilização massiva da tecnologia. Teoricamente,
os professores não têm o mesmo domínio das TIC, que possui a geração
atual. Os alunos têm maior rapidez de apreensão da utilização e manejo
dos equipamentos modernos. Por isso, é necessária a união de todos os
interessados em determinados projetos, no âmbito da sala de aula ou
da escola, a fim de haja uma maior interação entre professores e alunos,
numa colaboração mútua, visando à apropriação de alguma nova tecno-
logia, no ensino e aprendizagem.

Reflexos da internet e das redes sociais para a cognição

Antes da consolidação do mundo globalizado, as informações,


os conhecimentos e os saberes construídos levavam semanas, meses, ou
seja, bastante tempo para serem difundidos para a maioria dos países.
Hoje, a Internet aliada às redes eletrônicas e aos dispositivos eletrôni-
cos móveis modificou a percepção do mundo, onde as informações, os
conhecimentos, os saberes são disponibilizados de forma quase instan-
tânea para todas as localidades.
Nesse novo contexto virtual e de convergência de mídias, a Es-
cola tem acesso à memória cultural da humanidade, acumulada no
tempo e arquivada eletronicamente em qualquer lugar do planeta, com
milhares de informações e complexidades de contextos, tanto próximos
como distantes da realidade dos usuários. Com isso, a Internet, também
conhecida por rede mundial de computadores e que já faz parte do coti-
diano da sociedade, tornou-se um novo lugar de pesquisa, utilizando as
ferramentas de busca mais usuais, como Google, Yahoo, Bing e Amazon.
A produção do conhecimento que antes era mais individual ou
coletivamente restrito ao ambiente local das instituições, agora pode
ser construída coletivamente por pessoas ou grupos geograficamente
distantes. A cultura da participação ou a criação de projetos de inteli-
gência coletiva foi potencializada pela Internet. As ferramentas de in-
teratividade, softwares, equipamentos eletrônicos e as redes sociais
permitem as várias conexões, a convergência de sentido, o encontro de
saberes que permite a produção coletiva dentro e fora das instituições.

252
Para Castells (2003 apud SILVA, 2011, p. 27) passamos a ex-
perenciar uma sociedade em rede e dominada pelo poder da internet.
Segundo seu entendimento:

Esta sociedade em rede é a sociedade que eu analiso como uma socie-


dade cuja estrutura social foi construída em torno das redes de infor-
mação microeletrônicas estruturada na internet. Nesse sentido, a in-
ternet não é simplesmente uma tecnologia; é um meio de comunicação
que constitui a forma organizativa de nossas sociedades; [...] O que a
internet faz é processar a virtualidade e transformá-la em nossa rea-
lidade, constituindo a sociedade em rede, que é a sociedade em que
vivemos

No contexto vigente, da Sociedade do Conhecimento, a infor-


mação é a mola propulsora da revolução tecnológica proporcionada pelo
advento da internet, a qual, sinteticamente, Silva (2011, p.18) aponta
que “a internet é um espaço digital, uma rede conectada de computado-
res pelo mundo todo, sem o controle de nenhuma instituição”.
A falta de um controle qualitativo da rede mundial de compu-
tadores permite um tráfego de todo tipo de informações, podendo as
mesmas serem verídicas, falsas, tendenciosas, preconceituosas, etc. Por
conseguinte, é imprescindível uma investigação ou um conhecimento
prévio da fonte emissora da informação; ou em função da sua quanti-
dade excessiva, seria interessante que um mediador definisse ou fil-
trasse as informações pertinentes para os estudantes.
As redes sociais, extremamente utilizadas pela sociedade para
o compartilhamento da informação e do conhecimento, são definidas por
Ferreira (2011, p. 214) como “um conjunto de pessoas, com algum pa-
drão de contatos ou interações, entre as quais se estabelecem diversos
tipos de relações e, por meio delas, circulam diversos fluxos de informa-
ção”. Essas redes, por exemplo, Facebook, MSN, Skype, Twitter, Goo-
gle+, estão disponíveis em sistemas fixos e móveis para uso dos educa-
dores para trocar experiências, criar grupos de discussão, divulgar
eventos, enviar vídeos, etc.
O uso de dispositivos móveis na educação deve ser considerado
pelos educadores, pois para os alunos os equipamentos do tipo smar-
tphone já fazem parte do cotidiano dos mesmos e a utilização, dessa
tecnologia em projetos pedagógicos colaborativos em sala de aula, dará

253
a conotação de que a escola procura empregar meios que fazem parte
da realidade em que vivem.
A utilização de redes com certeza estimulará a prática educa-
tiva, incrementando a interação dos docentes com os discentes, desper-
tando o interesse colaborativo de ambas as partes, tanto no ensino pre-
sencial quanto a distância, pois os alunos sabem mais do funcionamento
da tecnologia, mas não sabem relacionar os conhecimentos. Além disso,
essa utilização permitirá o intercâmbio de informações e saberes entre
as instituições locais ou geograficamente distantes.
As redes também servem de vetor de desenvolvimento cogni-
tivo, na medida em que, aproveitando-as como processo de aprendiza-
gem, elas tornam-se um desafio à criatividade. Acrescenta-se a isso, o
crescimento do pensamento complexo do cérebro, em função da maneira
de navegar entre páginas web na internet, por meio de links ou hiper-
textos, que obriga o mesmo a traçar possibilidades de navegação ou for-
mas diferentes de pesquisas (GABRIEL, 2013).

Tendências para o futuro da escola e do ensino e aprendizagem

As tendências podem ocasionar reflexos na maneira de plane-


jar, de atuar, de pensar e de agir das instituições, com relação a seus
alunos e a sociedade de maneira geral. Da mesma forma, as tendências
podem afetar o ensino e a aprendizagem com a quebra de paradigmas
atuais, visando o acompanhamento da evolução da sociedade.
Através do tempo, grandes mudanças são causadas pelas ge-
rações, modificando comportamentos, atitudes, hábitos, profissões, re-
lações sociais, rompendo com o que existia de convencional ao longo das
décadas. Assim, já passamos pela geração dos baby Boomers, dos nasci-
dos durante ou após a segunda guerra mundial; pela geração X, dos
nascidos da metade dos anos 60 até os anos 80; e pela geração Y, dos
nascidos entre 80/90 até meados da década de 2000 (GIL, 2015).
Os pertencentes à geração Z, de meados da década de 2000 em
diante já estão em condições de frequentar as Instituições de Ensino
Superior (IES), juntamente com os da geração Y que já frequentam. As
características dos integrantes da Y referem-se:

[...] a familiaridade demonstrada à comunicação, às tecnologias digi-


tais, à mídia. Tem seu auge na década de 90 com o advento da Internet

254
e das novas tecnologias miniaturizadas, o que causou uma forte mu-
dança comportamental com as ferramentas de busca e de comunica-
ções com outras pessoas, sem sair de casa e em tempo real ( GIL,
2015, p. 11).

Além das características citadas, a geração Y “gosta de com-


partilhar informações pelas redes sociais, sendo uma geração adepta à
rapidez e à instantaneidade” (GIL, 2015, p. 11). Pode-se colocar que a
geração Z herdou as características da Y, somando-se àquelas, a habili-
dade de que desde os primeiros anos de vida, já estão em contato com a
modernidade e não apresentam quaisquer dificuldades em manusear
os equipamentos eletrônicos.
Em função do exposto a respeito das gerações, é importante
entender e compreender o perfil e as características desta e das futuras
gerações para a escola traçar suas estratégias, planejar e executar as
mudanças necessárias para atender as demandas futuras do ensino e
aprendizagem.
Com relação ao nível de ensino para um profissional, antes só
com o básico e um treinamento servia para toda vida. Entretanto, hoje
já não atende as demandas do mercado. Consequentemente, a formação
em um IES, de acordo com Saraiva (2015, p. 9) se tornará “requisito
para um número crescente de atividades, ao ponto de que muitos países
já se colocam como objetivo integrar 100% de sua população nesse nível
de ensino”.
Saraiva (2015, p. 9) coloca que o surgimento de novos conceitos
de sociedade e aprendizagem indicam o sentido permanente e o desen-
volvimento continuado da educação e de que “o aprender deve tornar-
se uma prática cada vez mais disseminada no tecido social”.
No rumo das mudanças, o ensinar e o aprender tomam novas
tendências, com algumas já em pleno uso em determinados países. O
flipped classroom ou active learning é um exemplo cuja concepção exige
uma nova ambientação da sala de aula, adotando uma estrutura inver-
tida, um novo formato de aula colaborativa, onde os alunos sentam-se
numa mesa redonda em pequenos grupos. A aula em si, emprega meto-
dologia de pesquisa baseada em projetos e o professor percorre mesa a
mesa, orientando o processo individualizado e coletivo de produção de
conhecimento (BRAGA, 2013).

255
Nesse novo ambiente, a aula expositiva é completamente irre-
levante para o aprendizado, pois não tem sentido o aluno ficar muito
tempo em sala de aula, recebendo um conteúdo que pode ser mais bem
colocado via online. Assim, o aluno aprende fazendo, estudando, lendo,
compreendendo, discutindo, debatendo, praticando e ensinando, inse-
rido em uma aula colaborativa.
Outra tendência é o aprendizado baseado em jogos, segundo
Braga (2013). Já existe software com conteúdo do ensino fundamental
de matemática e de língua portuguesa. A disciplina é contextualizada
em um cenário e percurso montados por designers e educadores. A pro-
gressão no jogo depende dos acertos às respostas dos exercícios criados
em cada conjunto de informações e atividades. O próximo passo é dire-
cionar-se para a educação superior. O jogo apresenta uma grande ri-
queza de criatividade, interatividade e de consistência no desenvolvi-
mento do raciocínio cognitivo e na capacidade de crianças, jovens e adul-
tos aprenderem em cima de uma realidade mais lúdica.

Características de escola e de docente para a sociedade do co-


nhecimento

As escolas que desejam atender aos anseios da sociedade do


conhecimento necessitam de uma educação de qualidade, onde profes-
sores e alunos transformem suas vidas com uma aprendizagem contí-
nua e que aprendam, segundo Moran (2010, p. 13) “integrar em novas
sínteses o real e o imaginário; o presente e o passado olhando para o
futuro; ciência, arte e técnica; razão e emoção”.
Na direção de uma educação de qualidade é preciso também
um ensino de qualidade, ao qual Moran (2010) refere-se que muitas ins-
tituições estão distantes desse conceito e o mesmo aponta algumas ca-
racterísticas de qualidade a atingir:

Uma organização inovadora, aberta, dinâmica, com um projeto peda-


gógico coerente, aberto, participativo; com infraestrutura adequada,
atualizada, confortável; tecnologias acessíveis, rápidas e renovadas.
Uma organização que congregue docentes bem preparados intelec-
tual, emocional, comunicacional e eticamente; bem remunerados, mo-
tivados e com boas condições profissionais, e onde haja circunstâncias
favoráveis a uma relação efetiva com os alunos que facilite conhecê-
los, acompanhá-los, orientá-los (MORAN, 2010, p. 14).

256
Mercado (2002, p. 12) fala do desafio da escola de não apenas
incorporar as TIC nos currículos, mas também de cientificar-se sobre os
conhecimentos tecnológicos dos discentes, para então planejarem as
práticas pedagógicas adequadas. Para tornar a escola um ambiente
mais interessante mais adequado para o futuro do aluno, além da in-
corporação das TIC, com o acesso às diversas redes existentes e a inter-
ligação com as diversas fontes de conhecimento e centros de pesquisa,
cabe à escola “conduzir o processo de mudança da situação do professor,
que é o principal ator destas mudanças” e também “conscientizar toda
a sociedade escolar, especialmente os alunos, da importância da tecno-
logia para o desenvolvimento social e cultural” (Ibdem, 2002, p. 14).
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (UNESCO) preocupada com a produção de habilidades no
século XXI, com relação aos sistemas educacionais, considerados por ela
um dos pilares do desenvolvimento social e econômico, criou o Projeto
de Padrões de Competência em TIC para Professores. Esse projeto es-
tabelece um conjunto básico de qualificações que devem ser adquiridas
pelos docentes, tendo como objetivo geral “não apenas melhorar a prá-
tica docente, mas também fazê-lo de forma a contribuir para um sis-
tema de ensino de mais qualidade, que possa dar prosseguimento ao
desenvolvimento econômico e social do seu país” (UNESCO, 2008, p. 5).
O projeto acima aludido divide o aprendizado em três grandes
pilares. O primeiro é a alfabetização tecnológica, ou seja, ensina-se o
professor a usar as tecnologias. O segundo é o aprofundamento do co-
nhecimento, onde o professor aplica a habilidade aprendida na solução
de problemas complexos em projetos colaborativos. O terceiro pilar é
chamado de criação do conhecimento. O último pilar considera que as
tecnologias estão tão incorporadas por todos, que passam a produzir co-
nhecimento a partir delas e poderão elaborar recursos e ambientes de
aprendizagem baseados nas TIC (UNESCO, 2008, p.8-12). Esse pro-
cesso delineado não é simples e precisa estar inserido, desde o início, na
lógica de formação do professor.
O que se espera da formação do docente é que ele obtenha a
capacidade de aprender a aprender e que seja um mediador, criando
estratégias mais adequadas com as TIC, visando estabelecer e preparar
as oportunidades de aprendizagem para os alunos, ajudando-os a pen-
sar e a inovar. Nesse sentido, Mercado (2002) infere as características

257
de um novo perfil para o professor, exigido pela sociedade do conheci-
mento:

Comprometido - com as transformações sociais e políticas; com o


projeto político-pedagógico assumido com e pela escola; Competente
- evidenciando uma sólida cultura geral que lhe possibilite uma prá-
tica interdisciplinar e contextualizada, dominando novas tecnologias
educacionais para realizar atividades de investigação; Crítico -[...]
um intelectual que desenvolve uma atividade docente crítica,
comprometida com a ideia do potencial do papel dos estudantes na
transformação e melhoria da sociedade em que se encontram inseri-
dos; Aberto à mudanças ao novo, ao diálogo, à ação coopera-
tiva; que contribua para que o conhecimento das aulas seja relevante
para a vida teórica e prática dos estudantes; Exigente - que promova
um ensino exigente [...]; que ajude os alunos a avançarem de forma
autônoma em seus processos de estudos, e interpretarem criticamente
o conhecimento e a sociedade de seu tempo; Interativo - que concorra
para a autonomia intelectual e moral dos seus alunos [...], possibili-
tando ao aluno desenvolver-se em todas as dimensões: cognitiva,
afetiva, social, moral, física, estética (MERCADO, 2002, p.17).

Considerações finais

Antes da globalização o cenário era estável, lento, previsível,


simples e controlável. As instituições hierarquizadas dominavam tudo
e a pessoa abria mão da sua individualidade e se submetia cegamente
às suas determinações. Hoje, com as TIC mais evoluídas, disseminadas
e mais baratas, as pessoas vivem num cenário globalizado, onde o
mundo tornou-se instável, veloz, fora de controle, imprevisível e com-
plexo. O indivíduo que antes era limitado, hoje vive conectado em rede,
com acesso a tudo o tempo todo, mobiliza pessoas, trabalha e produz o
conhecimento, sem precisar muito das estruturas controladoras anti-
gas.
As pessoas adaptadas aos processos inerentes às estruturas
antigas devem aprender a lidar com esse novo cenário, com esse novo
indivíduo, que tem mais liberdade, é mais bem informado e mais móvel.
A maneira que as coisas funcionavam antigamente e davam certo, hoje
corre sério risco de não darem. Agora, o período é de mudança de cená-
rio, da antiga sociedade industrial, com instituições controladoras e in-
divíduos estáticos para uma sociedade do conhecimento, em constante

258
mudança, com indivíduos críticos, interativos e informados, que traba-
lham em grupo e que aprendem a evoluir.
As políticas públicas têm sinalizado a sua prioridade na edu-
cação com o fornecimento de recursos digitais às escolas públicas, por
meio de programas como o Proinfo, visando completar a dotação em ma-
terial. Entretanto, as políticas voltadas para capacitação inicial de pro-
fessores ainda não estão bem equacionadas, pois o docente, ao início da
carreira, ainda demonstra dificuldades em inserir o uso das TIC, de
forma interdisciplinar, nos seus processos pedagógicos. A formação ini-
cial dos professores tem que ser muito bem delineada para que não se
dependa tanto da capacitação continuada, quando o professor já está
em atividade na escola.
No que diz respeito à formação inicial e continuada dos pro-
fessores, com relação à integração pedagógica com as TIC, não se trata
de adquirir uma formação técnica, mas, sim, de obter conhecimentos
básicos da tecnologia apropriada no momento da formação inicial e
mesmo procedimento para a atualização tecnológica, na capacitação
continuada. Além dos referidos aprendizados, eles devem realizar a
contextualização prática das TIC com as propostas pedagógicas e com
as formas de atuação em sala de aula, com efetiva aplicabilidade,
agindo como mediadores do saber, estimulando os alunos à prática
constante de pesquisas e a autonomia na construção do próprio conhe-
cimento de maneira crítica e cooperativa, tudo em consonância com o
Projeto de Padrões de Competência em TIC, da UNESCO e com o perfil
para o professor, exigido pela sociedade do conhecimento.
A escola, nos seus níveis de Educação Básica e de Educação
Superior, incluída no contexto da Sociedade do Conhecimento, tendo
como uma das suas atribuições a de introduzir o uso das TIC para o
aperfeiçoamento constante do ensino e aprendizagem, tem pela frente
grandes desafios de garantir as necessidades, os meios e de estimular a
capacitação continuada de professores para o uso didático-pedagógico
das TIC, como também a qualificação dos administradores, orientado-
res pedagógicos, supervisores e a integração com a comunidade.
Complementarmente, para a evolução da Educação, não basta
à escola somente o aporte dos equipamentos modernos, sobretudo ela
deve realizar a reestruturação constante de todos os processos internos,
o planejamento e a criação de novos conteúdos para atender as várias
possibilidades de integração da moderna tecnologia em evolução, dando

259
condições mais adequadas para o ensino e aprendizagem mais intera-
tivo e dinâmico, que contribua efetivamente para o desenvolvimento da
sociedade.
A possibilidade de utilização da internet e das redes sociais
para fins educativos é ilimitada. A nova realidade tecnológica possibili-
tada pela internet permite a realização de projetos de pesquisa, media-
dos pelo docente, com o acesso a bibliotecas online, a produções online
das universidades e a artigos de revistas científicas; como também per-
mite a interação por teleconferência, acesso a blogs e grupos de discus-
são, fatores esses que tornam disponível a universalização do ensino e
aprendizagem. As redes sociais amplamente divulgadas se tornam um
espaço de uso coletivo que incrementa a aprendizagem colaborativa e
ativa, estendendo a interação professor-aluno para além da sala de
aula, tornando-se uma ferramenta tanto no ensino presencial quanto a
distância.
A escola também pode adotar um modelo híbrido de educação,
mesclando atividades presenciais com atividades mediadas por tecno-
logia, podendo desenvolver trabalhos em um novo ambiente de sala de
aula invertida, com pequenos grupos. A convergência cada vez maior
dos dois ensinos também possibilita o aprendizado por meio de jogos,
onde o conhecimento é aplicado e reforçado imediatamente. A metodo-
logia de jogos pode incentivar o aluno a frequentar a aula, evitando a
evasão, como também pode permitir ao docente reforçar conteúdos de
forma diferenciada, possibilitando que todos os alunos atinjam os obje-
tivos propostos de forma homogênea.
O aluno mudou, mas algumas escolas ainda não. A escola ne-
cessita estar voltada para a educação da sociedade do conhecimento,
que fomenta a ideia de que o aluno necessita aprender para além da
escola, pois não é só nos bancos escolares que ele aprende. Por fim, a
escola deve aliar-se à tecnologia, que abre as portas do futuro e elimina
as fronteiras, tornando o conhecimento público e compartilhado.

260
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264
O ENSINO DE ÁLGEBRA NO 8º ANO E OS REGISTROS DE
REPRESENTAÇÃO SEMIÓTICA: CARACTERÍSTICAS DE
COMO OS PROFESSORES IDENTIFICAM E ENSINAM OS
OBJETOS MATEMÁTICOS ALGÉBRICOS

Luani Griggio Langwinski66

Introdução

A Álgebra é a linguagem da matemática (CONDILAC, 1979).


Contudo, como qualquer língua, ela não é simples. É construída, e exige
da língua natural67 para essa construção, que permite produzir uma
variedade de tipos de discursos (DUVAL, 2011).
O estudo da Álgebra compreende um espaço bastante significa-
tivo de abstração e generalização, além de propiciar a capacidade de
desenvolvimento de uma poderosa ferramenta para resolver problemas
(PONTE, BRANCO, MATOS, 2009; DUVAL, 2011). No entanto, exis-
tem dificuldades referentes ao fazer pedagógico com a linguagem algé-
brica e em cálculos algébricos efetuados, que dificultam a compreensão
dos conceitos associados (KIERAN, 1995).
Quando nos referimos à Álgebra, nossa ideia deve ir além de
que esta é a área da matemática que compreende o estudo de operações
entre os números e de resolução de equações, normalmente associada à
manipulação de regras de transformação de expressões - monômios, po-
linômios,… - (PONTE; BRANCO; MATOS (2009)), se reduzindo apenas
ao simbolismo formal. Devemos ter a visão de que ela proporciona a
capacidade de “pensar algebricamente numa diversidade de situações,
envolvendo relações, regularidades, variação e modelação” (p. 10).
Segundo a Base Nacional Comum Curricular - BNCC (2017), é
fundamental que o trabalho com a Álgebra faça parte dos processos de

66 Mestre em Ensino pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste. Profes-


sora de Matemática do Ensino Fundamental II – Colégio Bertoni; Membra do colegiado
de Licenciatura em Matemática da Faculdade de Ensino Superior de São Miguel do Igu-
açu – Uniguaçu-FAESI.
67 Para Duval (2011) a língua natural são discursos que podem ser produzidos oralmente

ou em forma de escrita.

265
ensino e aprendizagem desde o Ensino Fundamental – Anos Iniciais até
o Ensino Médio, respeitando cada fase escolar e cognitiva do aluno.
De acordo com Pontes, Branco e Matos (2009), os elementos cen-
trais no currículo, em relação aos conceitos fundamentais da Álgebra
clássica, distinguem-se em três grandes temas: a manipulação de ex-
pressões algébricas – polinômios, frações algébricas, etc. -; a resolução
de equações, inequações e sistemas; e o trabalho elementar com fun-
ções. Segundo os autores, “símbolos, expressões algébricas, equações,
sistemas, inequações e funções continuam a ter um papel central no
currículo da Álgebra escolar” (p.14), no entanto, agora, busca-se mais
promover e desenvolver o pensamento algébrico dos alunos, dando
maior ênfase ao estudo de sequências e as atividades de modelação.
Diante do que foi exposto sobre a Álgebra e o ensino de Álgebra,
e da relevância desse assunto para a Educação Matemática e para os
professores que ensinam Álgebra, o objetivo deste trabalho é mostrar
características de como os professores identificam e ensinam os objetos
matemáticos algébricos nas suas diferentes representações e revelar as
analogias feitas por eles. Dados esses que são resultados da pesquisa
de mestrado68, que teve como sujeitos cinco professores de matemática
da rede pública do Estado do Paraná que ensinam Álgebra para os 8 os
anos. As análises e discussões dos dados tiveram respaldo na Teoria
dos Registros de Representação Semiótica - TRRS, de Raymond Duval.
Para tanto, o artigo foi organizado, primeiramente, apresen-
tando a TRRS e sua relação com o ensino de matemática. Na sequência
descreve a metodologia, revela os resultados e por fim, apresenta as
considerações finais.

Os Registros de Representação Semiótica – RRS e o ensino de


matemática

As representações semióticas são entendidas como produções


constituídas pelo emprego de signos, utilizadas para expressar, objeti-
var e tratar as representações. A utilização das representações semió-

68O ensino de álgebra e os Registros de Representação Semiótica: um olhar para a prática


dos professores do 8º ano do Ensino Fundamental (LANGWINSKI, 2018).

266
ticas, não são apenas essenciais para fins de comunicação, como tam-
bém necessárias ao desenvolvimento da atividade matemática (DU-
VAL, 2009).
Para Duval (2003, 2009, 2011), as representações semióticas
são fundamentais na aprendizagem da Matemática em razão da abs-
tração dos objetos matemáticos, que só são acessíveis por meio de seus
diferentes registros de representações, tais como a língua materna, a
escrita aritmética e algébrica, gráficos, tabelas, figuras geométricas, en-
tre outros. Segundo esse teórico “A análise do conhecimento não deve
considerar apenas a natureza dos objetos estudados, mas igualmente a
forma como podemos ter acesso a eles por nós mesmos.” (DUVAL, 2011,
p. 15).
A ideia fundamental dessa teoria é de que a compreensão em
Matemática supõe a coordenação de ao menos dois registros de repre-
sentação semiótica. Segundo Duval (2009), um objeto matemático só se
deixa reconhecer pela sua representação, garantindo só ser possível que
os sujeitos em fase de aprendizagem compreendam a Matemática se
conseguem perceber a diferença de um objeto de sua representação. Por
exemplo, os números são objetos matemáticos que podem ser represen-
tados na forma decimal, fracionária, etc.
Para Duval (2009), sem as representações semióticas torna-se
impossível a construção do conhecimento pelo sujeito que apreende os
conceitos matemáticos. Conforme este autor, os sistemas semióticos de-
vem proporcionar três atividades cognitivas ligadas à representação:
formação - implica em selecionar um conjunto de caracteres de um con-
teúdo percebido, imaginado ou já representado em função, que são pos-
sibilidades próprias de representar o objeto no registro escolhido; trata-
mento – operações que envolvem uma transformação no interior de um
mesmo registro. Exemplo: 1/2; 0,5; 5 x 10-1. E conversão - transforma-
ções que se fazem passar de um registro para o outro. Exemplo: o regis-
tro em língua natural ‘um número e o seu dobro’ para o registro algé-
brico n e 2n.
A mudança de registro de uma representação dada após um tra-
tamento é o primeiro passo do pensamento matemático. Porém, a ativi-
dade de conversão é menos imediata e menos simples do que parece ser.
Na conversão entre dois registros de representação ocorrem dois fenô-
menos, denominados o da congruência e o da não congruência.

267
Quando a representação terminal (no registro de chegada) transpa-
rece na representação de saída (enunciado) e a conversão se asseme-
lha a uma situação de simples codificação, então há congruência (há
correspondência semântica das unidades de significado entre os dois
registros). Se a representação terminal não transparece absoluta-
mente, então caracteriza-se a não congruência. (BASSOI; PECCIN,
2014, p. 191 grifos das autoras).

A questão da compreensão em Matemática, do ponto de vista


cognitivo, não se refere em termos de justificativas ou explicações, mas
de reconhecimento, já que trabalhamos apenas com as representações
semióticas ou sobre as representações semióticas. Principalmente em
Álgebra o que é preciso reconhecer, ou seja, não confundir, “são as ope-
rações de substituição semiótica variadas e heterogêneas: uma letra por
um número desconhecido, [...] vários números por uma letra, os símbo-
los designando as grandezas positivas e negativas [...] etc.” (DUVAL et
al., 2014, p. 51 grifos dos autores).

Procedimentos metodológicos

Sendo a pesquisa de natureza qualitativa (LUDKE; ANDRÉ,


1986; CARVALHO, 2006; GIBBS, 2009), adotou-se a observação em
ambiente natural sem intervenções da pesquisadora nas aulas dos su-
jeitos.
Para a coleta de dados, foi realizada uma entrevista semiestru-
turada, com registros em gravações de áudios individuais e as aulas
observadas foram gravadas em vídeo, as gravações foram todas trans-
critas para análise. Durante as observações das aulas, quando necessá-
rio, foram feitas anotações por escrito, o que Tremblay (2008) chama de
diário de campo.
A pesquisa foi realizada no município de Santa Terezinha de
Itaipu, localizada na região sudoeste do estado do Paraná. O município
conta com quatro colégios estaduais, dois localizados na região central
e os outros dois, um em cada bairro de maior população no município,
os colégios foram nomeados como C1, C2, C3 e C4.
Para a escolha dos sujeitos da pesquisa, considerou-se: estarem
lecionando nos 8º anos; tempo de trabalho lecionado com esse ano (série)
superior a dez anos para atender aos objetivos da pesquisa; lotados nos
colégios estaduais do município de Santa Terezinha de Itaipu. A escolha

268
pelo 8º ano foi devido ao ensino de Álgebra ser iniciado formalmente
neste ano escolar.
Fizeram parte da pesquisa cinco professores, que se enquadra-
vam nas considerações ressaltadas acima. Eles foram tratados nas aná-
lises como P1 e P2 que lecionavam no colégio C1; P3 que lecionava no
C2; P4 que lecionava no C3 e P5 que lecionava no C4.
Foram observadas quatro aulas de cada professor, com exceção
de P3 que foram observadas seis aulas, totalizando 22h/aulas de obser-
vação. Como o objetivo era observar o início do conteúdo de Álgebra, as
aulas abordaram os conteúdos: expressões algébricas, polinômios e suas
operações e produtos notáveis. As observações foram feitas no período
de 07 de abril a 22 de maio de 2017 e sempre em aulas geminadas.
Para organização das análises, na perspectiva de Duval (2003,
2009, 2011), destacou-se o modo como os conteúdos algébricos foram
abordados pelos professores, selecionando as atividades cognitivas liga-
das à representação, a saber, formação, tratamento e conversão dos re-
gistros, e utilizou o termo representações intermediárias 69 para as re-
presentações não formais utilizados pelos professores.

Resultados

Os dados das entrevistas e as observações em sala de aula per-


mitiram à percepção de características de como os professores identifi-
cam os objetos matemáticos algébricos e verificar como eles conduzem
esse ensino nos diferentes modos de representação.
O material de apoio utilizado pelos professores era um único Li-
vro Didático (LD) escolhido por todos os colégios do município, trata-se
do livro Matemática: compreensão e prática (2015), da autoria de Ênio
Silveira.
No decorrer das observações das aulas, foram encontrados ele-
mentos de diferentes naturezas operados pelos professores para expli-
car os conteúdos aos alunos. O quadro a seguir apresenta os conteúdos
que foram trabalhados pelos professores durante as aulas observadas.

69“Duval chama a atenção para a complementaridade de registros necessários à passa-


gem de um registro a outro que Damm (1999, p.149) denomina de representação inter-
mediária.” (BASSOI, 2006, p. 55).

269
Quadro 1: Conteúdos trabalhados pelos professores durante as observações.

Professor P1 P2 P3 P4 P5

Soma e sub- Divisão de Divisão de po- Expressões al- Expressões


tração de poli- monômio linômios; Di- gébricas; algébricas;
nômios e mul- por monô- visão de poli- Atividade com O piqueni-
tiplicação de mio; Poten- nômios; o Tangran; que algé-
polinômios; ciação de O quadrado Fatoração da brico.
Conteúdos Expressão monômios. da diferença diferença de
numérica com de dois ter- dois quadra-
a soma e a di- mos. dos.
ferença dos
quadrados, de
dois termos.

Fonte: LANGWINSKI (2018, p. 86).

Ao longo do texto, são destacadas as três atividades cognitivas


ligadas à representação: formação, tratamento e conversão.
Segundo Duval (2009), a formação implica em fazer a “desig-
nação nominal de objetos, a reprodução de seu contorno percebido, a
codificação de relações ou de certas propriedades de um movimento. ”
(DUVAL, 2009, p. 55).
P4 e P5 formalizaram a palavra expressão. P4 utilizou o exem-
plo numérico e P5 fez referência às operações matemáticas. O registro
língua natural foi utilizado por P4 e P5 para identificarem os elementos
que constituem uma expressão.

P4: [...] vamos lá, pensa em um número, todo mundo pensa-


ram? (As: aham) Tá, dobra. [...] isso, multiplicar por dois. É a
expressão vezes dois. O número que você pensou vezes dois.
Tá beleza? Mais dez. O resultado dessa expressão mais dez.
Certo? Dividi por dois. (A: eita) Agora este valor menos o nú-
mero que você pensou. Aquele “xis” que você estava pensando,
que você já sabe. (A1: pronto!)
A6: dobra é fazer ele [o número pensado] vezes dois?
P4: daí ia dar dez. E se eu tivesse mandado vocês somar oito?
(As: quatro) E se eu tivesse mandado vocês somar onze? (As:
tumulto) Aí vocês se enroscaram, por isso que a gente escreve
a expressão.

270
P5: Expressão é quando a gente tem que fazer multiplicação,
potência, raiz quadrada tudo junto.

P4 e P5 estão fazendo a formação da sentença algébrica no re-


gistro falado. Ele pode ser feito também no registro escrito. À medida
que são expostos os dois registros para o aluno, torna-se mais fácil a
compreensão ao existir congruência entre os dois registros.
Quanto à formação do que é perímetro para os professores P3,
P4 e P5, temos como significado as palavras lado e soma. Presenciamos
na fala de P3 a ausência da palavra “medida” que está diretamente li-
gada ao conceito de perímetro, o que tem sido uma luta cognitiva na
construção das ideias/conceitos de perímetro e área.
P3: [...] O que que é perímetro mesmo?
As: é a soma de todos os lados.
P3: é a soma de todos os lados!

P4: Vamos relembrar, perímetro é só a? [contornava a figura


com o dedo].
A2: é a área!
P4: não. Olha lá no rodapé da sala, eu vou ter que medir lá, lá,
lá e lá [apontava com o dedo para os lados da sala]. [...] é a soma.

P5: isso, mas antes disso, o que é o perímetro?


As: é a medida de todos os lados/ é o contorno/ a soma do con-
torno.
P5: é a medida do contorno de uma volta, então quando dá toda
a volta dela.[...]
A resposta de P3 derivou de um exercício que pedia para calcu-
lar o perímetro da figura na forma algébrica. P4 fez uso de duas repre-
sentações intermediárias diferentes para se referir ao perímetro: estava
com a figura de um quadrado nas mãos contornando-a com o dedo e
utiliza o exemplo da medida do lado do rodapé. A professora P5 estava
relembrando o conteúdo da aula anterior e com o registro falado reforça
a significação de perímetro.
Quanto ao modo como os alunos foram introduzidos nas letras
e nas operações com letras em expressões literais, os professores refor-
çavam as explicações, dando exemplos para justificar os procedimentos

271
de resolução, como mostra o Quadro 21, trazendo algumas atividades
que foram propostas por P1, P2 e P3 durantes suas aulas.

Quadro 2: Atividades de fixação.

P1 P2 P3
Simplifique as expres- Efetue as divisões a seguir: Desenvolva algebrica-
sões: a) (-3 a4b6) : (-6ab5) mente cada quadrado da di-
a)[(x + y)2 – (x2 + y2)]2 b) (x4y4z4):(x2y3z4) ferença de dois termos.
b) (x + y)2 – (x – y)2 c) (6 x6) : (- 3 x-4) a)( x – 3)2
c)(2x – 1)2 – (x– 3)2 + b)(x/3 – 2)2
5(2 – x2)2 – (3–x)2 c)(9 x2 – 2)2
d)(x3 – y3)2
e)(x2 – y2)2
f)(- x - y)2
g)(xy – z)2
h)(x/2 – y/3)2

Fonte: LANGWINSKI (2018, p. 89)

Decorrente, apresentam-se os tratamentos realizados pelos


professores. Lembrando que para Duval (2003, 2009), estes são trans-
formações que acontecem em um mesmo registro.
P2 e P5 fazem uma transformação na escrita de um número
mostrando aos alunos outra representação desse mesmo objeto mate-
mático utilizando o registro numérico, ambos transformam a escrita de-
cimal para a escrita fracionária. P2 faz esse tratamento na explicação
dos exemplos do conteúdo de divisão de monômios, resolvendo a divisão
de monômio, letra e) (- 3/5 xyz2) : ( 0,2 yz). Já P5 faz a transformação na
correção das tarefas de radiciação, letra b).
Observe como se deu o discurso desses professores durante o
tratamento:
P2: aqui gente, nós temos uma fração e um número decimal. Eu
não sei como vocês fizeram. Se já fizeram direto, ou se transfor-
maram esse daqui, três quintos em decimal, ou transformaram
o decimal em fração. [a turma está pensativa] eu prefiro que
vocês transformem o número decimal em fração. Que às vezes
quando vocês forem transformar esse daqui em decimal [apon-
tou para o três quintos] pode acontecer uma dízima periódica,
indefinida, lá zero seis seis seis, daí se for tirar uma prova real
depois, vê que não vai fechar. Vai faltar alguns valores. Então

272
eu prefiro transformar esse aqui [apontou para o 0,2] em fração.
[...] menos três quintos dividido por zero dois, e o zero dois [o
professor escreveu no ladinho do quadro, quando disse ‘zero
dois’ escreveu 0,2] não é zero vírgula dois que nós lemos, como
é que é?
A1: dois décimos.
P2: isso, dois décimos. Então como você leu, você muda. Se você
leu dois décimos, então dois décimos [e escreveu a fração 2/10]
certo é assim que transforma. Eu já falei para vocês e depois
também, você vai contar uma casa decimal significa? Um zero
no denominador, é isso? Dez, cem, mil. Se fosse zero zero dois,
dois centésimos. E a divisão como é que a gente faz?
A fala do professor ‘como você leu, você muda’ referente à fala
dois décimos para a transformação 2/10 é congruente, no entanto
quando ele fala ‘zero dois’ para referir-se a 0,2 pode causar um conflito
para o aluno na significação da escrita posicional desse número. A pre-
ocupação de P2 em homogeneizar a representação, transformando 0,2
em 2/10, deve ter sido possivelmente para mostrar aos alunos como é o
processo de resolução da divisão de frações, tendo em vista que o exem-
plo seguinte também era com números decimais.
Quanto a P5, diante de sua fala entendemos que ela faz a trans-
formação de 1,21 em 121/100, porque compreende que para os alunos é
muito mais simples visualizar e encontrar a raiz quadrada de um nú-
mero inteiro do que de um número decimal.
P5: [...] O que que nós aprendemos sobre raiz de número deci-
mal?
A: que tem que transformar em fração.
P5: e como transforma um número decimal em fração?
A: tem que tirar a vírgula.
P5: isso! Tirei a vírgula, gente oh, [riscou a vírgula do 1,21] ficou
cento e vinte e um sobre? (As: cem). Porque que sobre cem nessa
fração? (As: por que tem duas casas depois da vírgula). Duas
casas depois da vírgula, cento e vinte e um sobre cem. [...].
Essa mudança feita pelos professores nestas operações possibi-
litou aos alunos conhecerem o mesmo objeto matemático em mais de
uma representação, ainda que no mesmo registro.

273
Segundo Duval (2009), a escrita de um número representa o ob-
jeto matemático quantitativo e tem uma significação operatória atre-
lada aos tratamentos, permitindo efetuar as operações referentes
àquela representação. Os tratamentos não são os mesmos para a repre-
sentação decimal e para a representação fracionária. Se P2 tivesse es-
colhido a representação decimal para resolver a divisão, o processo ope-
ratório exigido seria outro. Bem como a transformação efetuada por P5,
pois, como afirma Duval (2003), o custo cognitivo entre uma operação e
outra não são os mesmos.
Nem sempre os tratamentos são simples manipulações de letras
e números, por exemplo, o desenvolvimento da expressão (a + 3).(a - 3)
não tem o mesmo custo cognitivo que a passagem do polinômio a 2 – 9
para a sua forma fatorada, ou seja, a conscientização do funcionamento
cognitivo próprio de cada um dos registros, exige a compreensão de que
eles nem sempre permitem efetuar os mesmos tratamentos matemáti-
cos, determinando buscas específicas para cada um dos registros (DU-
VAL; MORETTI, 2016).
O exemplo da Figura 1 pode ser comparado como uma decom-
posição regressiva em elementos de base, que se limita ao único objetivo
da resolução das equações, que é o funcionamento da “ferramenta equa-
ções”, no que concerne aos algoritmos ou às regras de transformações
de escrita, ou seja, os “conhecimentos procedimentais”: desenvolver, fa-
torar e mudar um termo de membro (DUVAL et al., 2014).

Figura 1: Forma fatorada do polinômio a2 – 9


Fonte: LANGWISNKI (2018, p. 93)

Na sequência, a explicação do exemplo da Figura 1, utilizado


por P1 para iniciar o conteúdo do produto da soma pela diferença de
dois termos: (a + b).(a – b) .

274
P1: A primeira parte é a soma e a segunda parte é a diferença,
que é a subtração. Esse caso está bem prático para vocês resol-
verem, você vai pegar e multiplicar o primeiro pelo primeiro é o
mesmo método, pega o primeiro termo e multiplica pelo, pelos
dois termos seguintes. Depois pega o segundo termo multiplica
pelos dois termos seguintes, usando o jogo de sinal, fazendo a
soma dos expoentes e depois reduzindo ao máximo que você pu-
der. [...] Então a gente só corta eles aqui, não precisa aparecer
o zero ali. E o b, menos b ao quadrado. O que que acontece aqui
oh, pegamos o primeiro termo ao quadrado menos o segundo
termo ao quadrado [afirmou mostrando o resultado].
Neste episódio, primeiramente P1 faz a formação do processo do
tratamento, mostrando aos alunos como deve ser a sequência dos pro-
cedimentos a serem tomados. Nessa explicação, o que P1 fez foi mostrar
aos alunos como se dá o resultado do produto fatorado, ou seja, a téc-
nica. P1 não fez o tratamento contrário, que seria tomar um polinômio
qualquer sendo o produto da soma pela diferença de dois termos (a2 -
b2) e fatorar.
P4, a partir de uma pergunta de um aluno, mostra a volta desse
tratamento após apresentar a representação geométrica do quadrado
da soma.

Figura 2: Representação geométrica do quadrado da soma de dois termos


Fonte: LANGWISNKI (2018, p. 94)

A5: agora faz uma coisa, tira aquele quadradinho do lado. [o


aluno estava se referindo ao quadrado menor da figura].
P4: e agora? [o professor apagou a figura que o aluno se referiu].

275
Figura 3: Representação geométrica do quadrado da diferença de dois termos
Fonte: LANGWISNKI (2018, p. 95)

A: como assim?
A5: eu acho que fica quase a mesma coisa só que em vez de ficar
dois ax, fica ax.
P4: e agora que nós tiramos esse quadradinho, como vai ficar?
A5: fica dois a mais 4 xis. [o aluno contou a quantidade de cada
letra representando os lados].
P4: olhem para cá. [o professor pegou a figura de sulfite para
mostrar aos alunos].
A7: “xis” elevado ao quadrado mais dois a “xis”, eu não sei mais.
P4: “xis” ao quadrado, menos a ao quadrado.
A5: “xis” ao quadrado MAIS DOIS A “XIS” menos a ao qua-
drado.
P4: is-so. Por isso que fica o quadrado do primeiro menos o qua-
drado do segundo. Então quer dizer, oh, eu vou fazer o contrário
aqui oh. [escreveu a2 – b2] como que fica a fatoração dele aqui?
(As: ...) é a mesma coisa gente, só que é ao contrário. Agora vou
fazer com letra e número [escreveu a2 – 4] esse como é que vai
ficar?
As: a mais quatro vezes a menos quatro/ a mais quatro vezes a,
pera aí.
P4: agora peguei vocês. Vê se a expressão algébrica vai dar esse
valor.
As: a ao quadrado/ dois. A ao quadrado mais dois vezes a ao
quadrado menos dois.

276
P4: beleza! Vou escrever igual vocês estão falando. [escreveu a
expressão como os alunos disseram (a2 + 2)(a2 – 2)].

Apesar de todo esforço feito por P4 de trazer as figuras recorta-


das, desenhar a figura no quadro e escrever a expressão algébrica, não
garantiu que os alunos compreendessem a relação entre os três regis-
tros. A volta da transformação do registro geométrico para o algébrico
deve ser compreendida como uma equivalência de área. É importante
compreender que os termos de uma equação de um quadrado perfeito
correspondem a áreas, é essa significação que deve ser atribuída pelo
aluno e que na maioria das vezes não é ensinada pelo professor ou dei-
xada passar despercebida, pois para ele isso já é claro.
De acordo com Duval et al. (2014), existe uma diferença cognitiva
importante quando se trata de efetuar as duas operações originárias da
técnica: desenvolver e fatorar. Desenvolver é uma operação que se co-
meça e que se desenvolve automaticamente aplicando uma sequência
de operações; já para fatorar é preciso reconhecer cada termo numérico
como o produto possível de dois números. E ainda mais, ela deixa certo
equívoco didático, porque as duas letras “a” e “b” “podem ser substituí-
das seja por outra letra, seja por um número (que será então o quadrado
de outro).” (ibidem, p. 41 grifos do autor). Ao perceber que os alunos
estavam confusos, na fatoração da expressão a 2 - 4, o ato de o professor
fazer o registro escrito (a2 + 2)(a2 – 2) para os alunos visualizarem o que
estavam falando, possibilitou que eles percebessem onde estava o erro.
Duval (2009) afirma que é preciso criar condições para que o
aluno visualize um mesmo objeto matemático em várias representa-
ções, ainda que no mesmo registro, gerando uma significação dos con-
ceitos matemáticos.
A maioria dos tratamentos se deu na simplificação de frações al-
gébricas e na fatoração das expressões algébricas, o que já era esperado,
devido ao conteúdo observado.
A conversão consiste na transformação da representação de
um objeto matemático em uma representação em outro registro, se-
guindo as mudanças referentes a cada registro. Para Duval (2003, p.
15), “a capacidade de converter implica a coordenação de registros mo-
bilizados”. As conversões que aconteceram durante as observações das
aulas se estabeleceram comumente entre os registros língua falada e

277
escrita algébrica, língua falada e língua escrita, figural e escrita algé-
brica e vice-versa.
P3 e P5 usando o livro didático, recorreram às atividades para
que fosse encontrado o perímetro, as figuras relacionavam os elementos
para usá-los como expressão algébrica. As conversões em maior parte
se deram entre o registro falado e o registro escrito. P4 foi o professor
que mais se destacou usando representações diferentes, usou o tangram
para apresentar a conversão da forma figural para a escrita algébrica
da área do triângulo e representou geometricamente a expressão algé-
brica dos produtos notáveis, além do registro numérico e língua natural.

Considerações finais

Como o objetivo deste trabalho foi mostrar características de


como os professores identificam e ensinam os objetos matemáticos al-
gébricos nas suas diferentes representações e revelar as analogias fei-
tas por eles, conclui-se que eles veem a Álgebra como o cálculo com le-
tras. Percebe-se que o tempo de trabalho não amenizou a problemática
deles não compreenderem o estatuto da letra. Segundo Duval et al.
(2014) na Álgebra a letra assume um valor operatório, em que, o impor-
tante é que o aluno entenda e saiba diferenciar o valor operatório seja
ele como incógnita, variável ou como nenhum dos dois – como parâme-
tro.
Destaca-se o esforço de cada professor em explicar minima-
mente cada passo de cada transformação feita. Por entender que a Ál-
gebra é um conteúdo abstrato, eles acabam se atendo as regras de ma-
nipulação dos símbolos e utilizando exemplos numéricos na tentativa
de minimizar esse distanciamento que acabou sendo criado entre a Arit-
mética e a Álgebra.
Os professores se preocupam em preparar o aluno para o uso
dos algoritmos e propriedades algébricas, frisando os procedimentos e
regras. É notória a ênfase dada por eles nos procedimentos de resolução,
ou seja, a preocupação em ensinar a técnica. Não tiramos o mérito de
que exercitar os tratamentos algébricos não seja importante no ensino
de Álgebra, porém, o grande problema é que os professores acabam fi-
cando apenas na escrita literal, não garantindo que o aluno compreenda
a função dos elementos algébricos (Duval et al. 2014).

278
Do ponto de vista da língua natural, os professores impregnam
na letra, segundo a Teoria dos Registros de Representação Semiótica,
um único significado, ainda que usem o termo variável para a letra que
está sendo manipulada, eles a veem como incógnita. Não apenas os re-
gistros escritos são importantes, a fala também é muito potente. Usar
as palavras exatas e corretas, segundo os pressupostos de Duval (2004)
potencializa o ensino de matemática, pois o registro falado ele produz
no outro o significado do termo utilizado.

279
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281
282
A ESCOLA COMO UM ESPAÇO DE VIVÊNCIAS, REFLEXÃO
E COMPARTILHAMENTO: A GESTÃO ESCOLAR E A
FORMAÇÃO INICIAL DO/A PEDAGOGO/A

Lucila Pereira Morin70


Ravenna Seixas da Silveira71
Gisélia Pereira Morin72
Celina Saideles Pires73

INTRODUÇÃO

Repensar, refletir, avaliar e reavaliar o processo de ensino para


a contemplação de uma educação mais humanitária e consciente se faz
fulcral no contexto atual. No que diz respeito a essa ideia, Freire (2002)
lembra que o conhecimento deve ser construído por meio de diálogos,
ou seja, a aprendizagem deve desenvolver nos alunos e nas alunas a
criatividade, a motivação, a percepção, a atenção e etc. Nesse contexto,
percebe-se o professor e a professora como profissionais que devem rom-
per com estereótipos, trazer para as aulas temas atuais e transversais,
aceitar as diferenças e buscar motivar os alunos e as alunas tendo em
vista a busca pelo novo e o processo de ensino-aprendizagem (NUNES,
2011).
Dessa forma, o presente trabalho apresenta como temática a
atuação dos/as bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de Inicia-
ção à Docência (PIBID), subprojeto da Pedagogia/Anos Iniciais no que

70 Pedagoga pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em Gestão


Educacional pela UFSM. Pós-graduanda em Educação, nível de mestrado, pelo Programa
de Pós-Graduação em Educação da UFSM. Graduanda do curso de Educação Especial
pela UFSM.
71 Graduanda do curso de Licenciatura em Física pela UFSM. Participante/bolsista do

Programa de Residência Pedagógica do curso de Física. Participou do Programa Institu-


cional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), subprojeto da Física/UFSM.
72 Graduada em Letras Espanhol e Literaturas da Língua Espanhola pela UFSM. Espe-

cialista em Tecnologias da Informação e da Comunicação Aplicadas à Educação pela


UFSM. Graduanda em Letras Português pela UNIPAMPA.
73 Pedagoga pelo Centro Universitário Franciscano. Psicopedagoga Clínica e Institucional

pela Uninter. Pós-graduanda, nível de mestrado, pelo Programa de Pós-Graduação em


Políticas Públicas e Gestão Educacional da UFSM. Pós-graduanda em Gestão, Orientação
e Supervisão Escolar pela Uninter.

283
tange a gestão escolar. É um estudo revisado e expandido resultante da
monografia de especialização do Curso de Gestão Educacional da Uni-
versidade Federal de Santa Maria/RS.
A motivação para o estudo emergiu da experiência das autoras
com relação a participação no PIBID e nos processos de gestão escolar
vivenciados em práticas nas escolas na cidade de Santa Maria/RS/Bra-
sil, que exigiu um olhar mais atento às questões da gestão, ou seja, pro-
curando superar práticas muitas vezes executadas sem planejamento e
organização. Dessa forma, tendo em vista esse processo de distancia-
mento e de análise, de ação e de reflexão sobre a realidade, esta pes-
quisa justifica-se pela inquietação que as autoras sentiram frente à es-
cassez dessas discussões na atuação dos/as bolsistas do PIBID, sendo
que a gestão está imbricada no fazer pedagógico.

METODOLOGIA

Este trabalho apresenta como temática a atuação dos/as bol-


sistas do PIBID/Pedagogia/Anos Iniciais no que tange a gestão escolar.
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, do tipo Estudo de
Caso Observacional (BOGDAN; BIKLEN, 1994).
A respeito da pesquisa qualitativa, Triviños (1994, p. 131)
acrescenta que:

[...] A pesquisa qualitativa não segue sequência tão rígida das etapas
assinaladas para o desenvolvimento da pesquisa quantitativa. Pelo
contrário. Por exemplo: a coleta e a análise dos dados não são divisões
estanques. As informações que se recolhem, geralmente, são interpre-
tadas e isto pode originar a exigência de novas buscas de dados. Esta
circunstância apresenta-se porque o pesquisador não inicia seu traba-
lho orientado por hipóteses levantadas a priori cuidando de todas as
alternativas possíveis, que precisam ser verificadas empiricamente,
depois de seguir passo a passo o trabalho que, como as metas, têm sido
previamente estabelecidos. As hipóteses colocadas podem ser deixa-
das de lado e surgir outras, no achado de novas informações, que soli-
citam encontrar outros caminhos. Desta maneira, o pesquisador tem
a obrigação, se não quer sofrer frustrações, de estar preparado para
mudar suas expectativas frente a seu estudo. O denominado "relatório
final" da pesquisa quantitativa naturalmente que existe na pesquisa
qualitativa, mas ele se vai constituindo através do desenvolvimento
de todo o estudo e não é exclusivamente resultado de uma análise úl-
tima dos dados [...].

284
Dessa forma, segundo o autor, a pesquisa qualitativa permite
analisar os aspectos implícitos ao desenvolvimento das práticas organi-
zacionais e a abordagem descritiva é praticada quando o que se pre-
tende buscar é o conhecimento de determinadas informações, sendo
este um método capaz de compreender os fatos e fenômenos de deter-
minada realidade. Assim, tais concepções vão ao encontro com a pro-
posta deste trabalho, na qual se possam analisar os dados obtidos de
maneira aberta sem uma sequência pré-determinada, além de perceber
a maneira como acadêmicas e acadêmicos/bolsistas percebem as ques-
tões que por vezes são deixadas de lado ao longo do curso ou da correria
do dia a dia, mas que são essenciais para a formação de profissionais
preparadas/os e empenhadas/os frente aos alunos e alunas e conscien-
tes de sua responsabilidade social.
Diante disso, justifica-se a opção pelo Estudo de Caso Observa-
cional (BOGDAN; BIKLEN, 1994) para esta pesquisa, porque esta é
uma categoria típica de pesquisa qualitativa, tendo em vista que “[...] a
técnica de coleta de informações mais importante dela é a observação
participante” (TRIVIÑOS, 1994, p. 135).
Como opção teórica para fundamentar este estudo, optou-se pe-
los/as autores/as Ramos, Fernandes e Sarturi (2012) para falar acerca
do PIBID/Pedagogia. Quando se falou em gestão democrática, gestão
educacional e gestão escolar, os estudos de Libâneo (2001), Freire
(2002), Gadotti (2003), Paro (2005) e Vieira (2007) foram potencializa-
dores de discussões, alinhados aos documentos legais (BRASIL, 1988;
1996).

A ESCOLA COMO ESPAÇO DE VIVÊNCIAS, REFLEXÃO E


COMPARTILHAMENTO DE IDEIAS

A escola é um lugar especial, um lugar cheio de vida e de espe-


rança, seja ela com todas as condições de trabalho, seja ela uma escola
onde falta tudo. É na escola que acontecem os melhores momentos de
nossas vidas, desde a infância até a juventude. A sala de aula é um
espaço de relações, cada indivíduo tem sua história particular e repre-
sentações sociais, nesse espaço, como em outros, também se consolida a
visão transformadora na construção e (re)construção da aprendizagem,
um papel essencialmente crítico e criativo.

285
A sala de aula não é só um lugar para estudar, mas trata-se de
um espaço para se encontrar, conversar, confrontar-se com o outro e
discutir sobre as diferentes opiniões; lugar que concretiza as relações
sociais existentes ao convívio cotidiano. Conforme o autor Gadotti
(2008, p. 93) o âmbito escolar, de maneira ampla, “[...] deve gerar insa-
tisfação com o já dito, o já sabido, o já estabelecido. Só é harmoniosa a
escola autoritária. A escola não é só um espaço físico. É, acima de tudo,
um modo de ser, de ver. Ela se define pelas relações sociais que desen-
volve”.
Assim os processos de gestão precisam se consolidar, tendo em
vista que o princípio da gestão é fazer com que todos/as trabalhem jun-
tos/as, que possam refletir e dialogar acerca da realidade educacional,
segundo Libâneo (2001, p. 105) a gestão democrática “[...] valoriza a
participação da comunidade escolar no processo de tomada de decisão,
concebe-se a docência como trabalho interativo, aposta na construção
coletiva dos objetivos e do funcionamento da escola, por meio da dinâ-
mica intersubjetiva, do diálogo e do consenso”.
Primeiramente faz-se necessário entender o conceito de ges-
tão, sendo que ela supera o conceito de administração. O conceito de
administração escolar é mais burocrático e usado como sinônimo de ma-
nipulação por estar ligado as teorias clássicas de administração geral,
principalmente as elaboradas por Taylor e por Fayol, no início do século
XX (SANTOS, 2008, p. 40). A gestão, segundo Lück (2006, p. 23), “[...]
supera o enfoque limitado da administração, a partir do entendimento
de que os problemas educacionais são complexos em vista que deman-
dam visão geral e abrangente, assim como ação articulada, dinâmica e
participativa”.
Convém destacar que gestão escolar e gestão educacional pos-
suem significação parecida, mas dimensões diferenciadas. A gestão es-
colar ocorre no micro, enquanto a gestão educacional ocorre no contexto
macro. Por exemplo, os processos de gestão escolar ocorrem no âmbito
escolar, da escola, envolvendo o corpo docente, a equipe diretiva, os/as
alunos/as, a comunidade escolar, etc. A gestão educacional ocorre em
âmbito nacional, as políticas públicas e os processos que envolvem a
tomada de decisão que vai afetar a escola. É o contexto mais amplo de
gestão. Assim:

286
[...] quando se fala sobre gestão educacional, faz-se referência à gestão
em âmbito macro, a partir dos órgãos superiores dos sistemas de en-
sino, e em âmbito micro, a partir das escolas. A expressão gestão edu-
cacional abrange a gestão de sistemas de ensino e a gestão escolar.
(LÜCK, 2011, p. 25).

Dessa forma, a gestão escolar e a gestão educacional estão im-


bricadas e se relacionam mutuamente, pois a gestão permeia todos os
segmentos do sistema como um todo, tanto no macro quanto no micro
(LÜCK, 2011), pois se constituem em área estrutural de ação na deter-
minação da dinâmica e da qualidade do ensino.
Vem ao encontro da perspectiva sistêmica que diz que “[...] os
‘objetos’ de estudo são redes de relações embutidas em redes maiores
[...]” (CAPRA, 2006, p. 49), assim, na prática, “[...] as organizações for-
madas com esse princípio [...] têm mais probabilidade do que as outras
de estabelecer processos baseados no relacionamento, como a coopera-
ção e a tomada de decisão por consenso” (idem).
A perspectiva sistêmica tem por pressuposto a gestão democrá-
tica, como seu conceito evidencia, dialogando com as práticas dos/as bol-
sistas do PIBID/Pedagogia, na especificidade dos Anos Iniciais, pois:

[...] um dos destaques do subprojeto é a autonomia que é dada para as


equipes das escolas, uma vez que podemos, dentro do grupo, definir
objetivos e metodologias de trabalho de acordo com a realidade do
nosso público-alvo, atentando para os objetivos do subprojeto. Como
temos uma coordenadora de bolsistas no grupo, isso facilita muito,
pois é esta que faz o elo entre o grupo e a coordenadora do subprojeto,
que instiga o grupo a buscar soluções para os problemas [...]. (Relató-
rio Escola 1, 2015).

Esse excerto retirado do Relatório do PIBID/Pedagogia/Anos


Iniciais, no ano de 2015 evidencia a importância de ser, realmente, de-
mocrática, não apenas constar no papel e ser uma prática hierárquica.
A gestão democrática não nega a diversidade, não teme as divergências
de ideias, mas busca, através do diálogo, uma forma para solucionar os
problemas e não pretende “[...] estimular o clima democrático na escola
por meios e caminhos autoritários” (FREIRE, 2002, p. 27). Essa percep-
ção tem que estar clara nos processos de gestão, tendo em vista que se
deve:

287
[...] respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do educando e, a
prática, procurar a coerência com este saber, me leva inapelavelmente
à criação de algumas virtudes ou qualidades sem as quais aquele sa-
ber vira inautêntico, palavreado vazio e inoperante. De nada serve, a
não ser para irritar o educando e desmoralizar o discurso hipócrita do
educador, falar em democracia e liberdade mais impor ao educando a
vontade de arrogante do mestre [...]. (ibid., p. 36).

Dessa forma, a gestão democrática precisa estar na circulação


das informações, na divisão do trabalho, na escuta da opinião do grupo,
que é uma das grandes dificuldades, pois existem muitas opiniões e
ideias num coletivo de pessoas na escola e manter a coerência entre a
utopia e a realidade da escola, pode ser um grande desafio, no qual apa-
rece o cansaço, o desânimo e as desistências (GADOTTI, 2003).
Nesse âmbito, um dos pressupostos para que o PIBID/Pedago-
gia/Anos Iniciais se insira nas escolas é o Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (IDEB) abaixo da média nacional, o que se configurou,
na maioria dos casos, em escolas de periferias da cidade de Santa Ma-
ria/RS, assim, “[...] trabalhar com crianças que aprenderiam indepen-
dente da mediação do professor é fácil, difícil é trabalhar em um meio
ao qual fatores externos interferem de forma negativa no processo de
ensino e aprendizagem” (Relatório Escola 3, 2014).
Para melhor aclarar, entender os processos que compõe a gestão
escolar e a gestão educacional, perceber os caminhos que as políticas
públicas tomaram, usar da autonomia que as escolas receberam para
formular seus documentos legais, de acordo com a sua realidade educa-
cional, a fim de buscar uma transformação social, faz parte das atribui-
ções de um/a gestor/a.
Para tal, é necessário que se entenda que a gestão pública é
composta por três dimensões (VIEIRA, 2007): o valor público (expressa
à intenção das políticas), as condições de implementação e as condições
políticas (ambas fazem parte da prática, das intenções do/a gestor/a).
Ideias de baixo custo tendem a ser limitadas, pois a boa educação re-
quer investimento grande, porém a dimensão financeira é muitas vezes
ignorada e as ideias acabam ficando nas promessas e planos, por con-
sequência, no papel. Para isso, é preciso atentar para, que:

[...] se quisermos caminhar para [...] a democratização, precisamos su-


perar a atual situação que faz a democracia depender de concessões e

288
criar mecanismos que construam um processo inerentemente demo-
crático na escola. [...] Não basta, entretanto a necessidade de partici-
pação da população na escola. É preciso verificar que condições essa
participação pode tornar-se realidade. (PARO, 2005, p. 19-40).

Os planos de educação enfrentam dois problemas: o excesso de


propostas e a falta de previsão orçamentária, por isso a importância em
definir metas de curto, médio e longo prazo, sendo que:

[...] parte da dificuldade da gestão diz respeito ao fato dela se situar


na esfera das coisas que têm que ser feitas. E o que tem que ser feito
nem sempre agrada a todos. Não dá votos; ao contrário, fere interes-
ses. Desestabiliza o que está posto. Por menores que sejam as mudan-
ças pretendidas, atingem pessoas. Corporações. Mudar nunca é sim-
ples. (VIEIRA, 2007, p. 59).

A gestão se faz em interação com o outro. Se na primeira con-


trovérsia o gestor ou a gestora é abandonado/a, imediatamente se de-
para com mais dificuldades, em nome do que é necessário fazer, passa
da popularidade para a rejeição, em uma arena de interesses contradi-
tórios e conflituosos. A gestão exige humildade e concordância, realizar
decisões em situações complexas, formação de gestores/as de reflexão e
atitude; se tratando da parte teórica, três adjetivos são significativos: a
gestão educacional, a escolar e a democrática (ibid., 2007).
Dessa forma, é preciso deixar claro que a gestão educacional
tem um conjunto de atividades como o planejamento, o acompanha-
mento e a avaliação das iniciativas desenvolvidas pelas diferentes ins-
tâncias do Poder Público na oferta de ensino, em uma esfera macro. Já
a gestão escolar situa-se no plano da escola, na proposta pedagógica,
com a finalidade de promover o ensino e a aprendizagem como direito
de todos (determinado pela Constituição Federal de 1988 e pela LDB
9.394/96), envolve a tarefa cotidiana de ensinar e aprender, em uma
esfera micro. Ambas se entrelaçam mutuamente, pelo fato da busca a
educação como “direito de todos”.

A REPERCUSSÃO DO PIBID/PEDAGOGIA/ANOS INICIAIS


NAS ESCOLAS

A autonomia e a participação não podem ficar só no papel, pre-


cisam ser sentidas no conselho da escola ou colegiado, na escolha do

289
livro didático, no planejamento do ensino, na organização de eventos
culturais, esportivas e recreativas. Não basta apenas assistir é neces-
sário o diálogo. A gestão democrática é, portanto, atitude e método, “[...]
é um objetivo e um percurso. É um objetivo porque se trata de uma meta
a ser sempre aprimorada e é um percurso, porque se revela como um
processo que, a cada dia, se avalia e se reorganiza” (BRASIL, 2007).
Assim, é preciso ter em vista que o/a aluno/a:

[...] aprende apenas quando ele se torna sujeito da sua aprendizagem.


E para ele tornar-se sujeito da sua aprendizagem ele precisa partici-
par das decisões que dizem respeito ao projeto da escola que faz parte
também do projeto de sua vida. Passamos muito tempo na escola, para
sermos meros clientes dela. (VIEIRA, 2007, p. 58).

A gestão democrática deve estar na circulação das informações,


na divisão do trabalho, no estabelecimento do calendário escolar, no
processo de elaboração de novos componentes curriculares, na capaci-
tação dos recursos humanos, etc. O que demanda tempo, atenção e tra-
balho. Logo, “[...] pode-se afirmar que em última instância, a cul-
tura/postura democrática e o sentido público da prática social da edu-
cação são alicerces da gestão democrática” (BRASIL, 2007). Dessa
forma:

[...] o que vemos no PIBID é que ele é completo. Inserimo-nos nas es-
colas, participamos das reuniões pedagógicas desde o início do ano le-
tivo, familiarizamo-nos com o ambiente escolar. Muitas vezes, esse é
o primeiro contato que os bolsistas têm com a realidade escolar brasi-
leira, na condição de (futuro) professor [...]. Quando conhecemos nosso
ambiente de trabalho, vamos para as turmas observar as crianças na
classe regular, para termos uma noção de sua interação com a turma,
como os conteúdos estão sendo trabalhados, a proposta de trabalho da
professora regente. Procuramos obter o máximo de informações possí-
veis, todas elas são importantes para traçarmos um perfil do aluno
que teremos na Sala Multi. No decorrer das atividades, buscamos es-
tabelecer um vínculo com a professora regente, para saber se esse
aluno está progredindo nas aulas, como não vemos as crianças todos
os dias, essa troca de informações, esse trabalho conjunto com a re-
gente é de suma importância para o nosso trabalho [...]. (Relatório Es-
cola 2, 2015).

Nesse fragmento fica nítido o quanto a escola como um todo se


envolve com a aderência ao programa. Dentro da escola, há uma pro-
fessora que atua como supervisora, ela é o elo entre o grupo de bolsistas

290
vindos/as da universidade com a escola. Essa relação mexe com a estru-
tura da escola e instiga os professores e as professoras que há anos estão
no magistério, a repensar sua prática, de se envolver em atividades de
cunho acadêmico, como, por exemplo, a elaboração de artigos e apresen-
tações em eventos. A partir dessa interlocução, a necessidade da forma-
ção continuada se torna latente e, de forma indireta, os/as professo-
res/as acabam se envolvendo de tal forma com o programa que buscam
se capacitar. Dentro das produções do PIBID há listas dos trabalhos
produzidos e apresentados pelos/as bolsistas, dentro deles, é possível
encontrar parcerias com as supervisoras das escolas.
Apesar de haver a divisão de tarefas e a escuta de todos/as os/as
envolvidos/as, ainda se percebe princípios tradicionais da administra-
ção presentes nas escolas e, portanto, vê-se no PIBID uma alternativa
para a superação deste conceito, já que a partir dele é possível repensar
a prática em sala de aula e criar ações mais democráticas no contexto
escolar.
A partir dessa primeira interlocução entre escola e universi-
dade, parece que os horizontes da escola se abrem e esta (representada
pela sua equipe gestora) começa a procurar outras parcerias que pos-
sam contribuir para o processo de ensino e aprendizagem de seus alu-
nos e de suas alunas, pois:

[...] com a aderência ao PIBID da Pedagogia para os Anos Iniciais, as


professoras das demais áreas do conhecimento começaram a se inte-
ressar e a procurar o programa na sua especificidade, para contribuir
com o trabalho que vinha sendo realizado. Hoje na escola há três PI-
BID atuando: da Pedagogia/Anos Inicias; Interdisciplinar da Educa-
ção Física; e da Filosofia. (Relatório Escola 1, 2015).

É possível perceber que as contribuições do PIBID/Pedago-


gia/Anos Iniciais não se restringem aos alunos e as alunas inseridos/as
no subprojeto, mas abrangem a escola como um todo. É uma porta que
se abre para a escola, muitas vezes esquecida pela universidade ou lem-
brada apenas em momentos finais do curso para estágios ou eventuais
atividades de observação e inserção, sem, em alguns casos, um retorno
para a escola. O PIBID insere o acadêmico e a acadêmica na escola e dá
possibilidades para a sequência do trabalho. Na continuidade desse, a
escola consegue perceber o envolvimento e o retorno que este programa
proporciona.

291
O PROCESSO FORMATIVO DOS/AS FUTUROS/AS PEDAGO-
GOS/AS A PARTIR DO OLHAR DAS PESQUISADORAS

Dentro das atividades do PIBID/Pedagogia/Anos Iniciais, a ges-


tão democrática sempre se fez presente, pois é levada em consideração
a opinião das bolsistas atuantes no subprojeto bem como das coordena-
doras e supervisoras na tomada de decisões. É um trabalho que só se
faz com a cooperação de todos/as, pois somente uma equipe que planeja
junto, que pensa em conjunto, consegue pôr em prática suas ideias e
obter resultados satisfatórios, pois ao compartilhar o poder rompe-se
com as formas hierárquicas de gestão ocorrendo à inserção da coletivi-
dade no ambiente escolar facilitando, assim, a participação de todos/as.
A participação é a palavra-chave para a gestão democrática, porque
possibilita o envolvimento não só dos profissionais da educação como
também de toda a comunidade escolar (VIEIRA, 2007).
Nesse sentido, nas observações feitas com o grupo de bolsistas,
atentando para os papéis de gestão desenvolvidos no subprojeto PI-
BID/Pedagogia/Anos Iniciais, a interação, a tomada de decisões em con-
junto foi um aspecto evidenciado na hora dos planejamentos por esco-
las, quando se tinha que analisar a realidade das crianças inseridas no
subprojeto e decidir por qual caminho trilhar. Inclusive no momento de
produzir trabalhos acadêmicos para eventos dentro e fora da UFSM,
era notável o quanto os grupos discutiam e analisavam as reais possi-
bilidades de escrever, naquele momento, um artigo ou se o necessário
era esperar mais um pouco. Não se via imposição de ninguém para es-
crever, sempre foi algo que o grupo discutia entre si, mesmo os grupos
tendo ciência da importância de escrever sobre sua prática.
A Lei de Diretrizes e Bases de 1996 (BRASIL, 1996) voltou-se
às unidades de ensino, passando a gestão escolar, o foco da política edu-
cacional, para o âmbito escolar. Uma das principais atribuições para a
escola, segundo a LDB, é elaborar e executar a proposta pedagógica (o
norte da escola, identidade e história), orientando a partir de uma ges-
tão autônoma, observando as diretrizes, o desempenho e os recursos.
Outra tarefa específica é gerir seu patrimônio imaterial (as pessoas, as
ideias e a cultura) e material (prédios, livros e instalações) e acima de
tudo priorizar o “coração das responsabilidades” (VIEIRA, 2007): o en-
sino e a aprendizagem, o plano de trabalho do/a professor/a, assegurar
os dias letivos e horas-aula.

292
Importante salientar a relação da escola com a comunidade,
buscar a criação de processos de integração, informar aos pais e respon-
sáveis sobre a frequência e o desempenho dos alunos e das alunas, com
o objetivo de promover no indivíduo o exercício da cidadania e conquista
na qualificação e profissionalização para o mundo do trabalho (RAMOS;
FERNANDES; SARTURI, 2012). Esse ponto foi contemplado com o PI-
BID/Pedagogia/Anos Iniciais, pois no decorrer das atividades, depois
que já se conhecia as crianças inseridas no subprojeto, fazia-se uma vi-
sita as casas destas, no intuito da pesquisa socioantropológica, para que
a família pudesse entender as atividades do subprojeto e a importância
deste no processo de ensino-aprendizagem de seu filho ou de sua filha.
As bolsistas do subprojeto, em reunião, relatavam as experiências e
aprendizagens que essas visitas proporcionavam, deixando claro que a
proposição das atividades mudava depois dessas visitas, pois quando se
reconhece a realidade das crianças, entende-se o porquê de alguns com-
portamentos e até da falta de frequência de alguns/algumas alunos/as.
Não pode haver uma dicotomia entre escola e comunidade/família, pois
essa parceria é de suma importância para o processo de ensino e apren-
dizagem.
É nesse âmbito que ocorre a articulação entre a teoria e a prá-
tica, pois os/as bolsistas são instigados/as a pensar e refletir acerca das
atividades realizadas. Primeiro se pensa acerca do que se irá fazer, após
a aplicação, reflete-se sobre o que foi feito, ou seja, se os objetivos foram
alcançados, etc. Isso ocorre na elaboração dos relatórios de atividades,
que são diários. Posteriormente, os dados coletados são analisados para
elaboração de trabalhos acadêmicos: resumos, artigos, caderno didático,
etc. Essa percepção da teoria articulada com a prática fica evidente
quando se pensa na realidade dos acadêmicos e das acadêmicas dentro
de suas turmas, na universidade:

[...] é incrível vermos o que aprendemos na aula no dia anterior ser


evidenciado na Sala Multi, com as crianças. Muitas vezes estamos na
aula e a professora começa a discussão de um texto e, no dia seguinte,
conseguimos perceber esses processos que a teoria nos mostrava bem
na nossa frente, com nosso aluno. “Tanto que nas aulas é nítida a di-
ferença de quem é estagiário ou bolsista de algum PIBID daquele que
não está inserido em escolas, há uma separação absurda”. (Relatório
Escola 2, 2016).

293
A vivência justifica a teoria e a teoria concede base para as ex-
periências, embasando-as. Esse processo de reflexão sobre o ocorrido é
que faz a diferença, a intencionalidade na educação. Quando se tem
essa tomada de consciência logo na formação inicial é que se consegue
perceber a importância de uma prática que caminha ao lado da teoria;
a teoria fornecendo subsídios para que a prática seja objeto de reflexão
e análise. Ou seja,

[...] não se pode compreender a construção histórica da educação na


qual, de um lado, alguém “pensa”, teoriza, planeja e, de outro, alguém
age e faz a “prática”. Essa dicotomia entre o “fazer” e o “pensar” não
deve acontecer na prática social da educação, pois é na conjugação de
ambas que a teoria adquire sentido e a prática se fortalece e mostra
consistência (BRASIL, 2007, p. 63).

A teoria e a prática não são opostas. Pelo contrário, se comple-


mentam e uma existe em razão da outra, por isso, reforça-se a necessi-
dade de alinhamento entre elas, dialogando permanentemente. Para
Freire (2005), teoria e prática são inseparáveis, uma práxis autêntica,
que possibilita que se pense/reflita sobre a ação. A “[...] práxis, porém,
é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem
ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimido” (ibid.,
p. 38). A práxis proporciona a educação para a liberdade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o objetivo de apresentar as considerações finais do traba-


lho, retoma-se aqui o problema de pesquisa que provocaram as análises
desenvolvidas ao longo do estudo, que é: Tendo em vista a gestão esco-
lar, será que o trabalho desenvolvido pelos/as bolsistas do PIBID/Pe-
dagogia/Anos Iniciais, contribuiu para a formação inicial do/a peda-
gogo/a? A partir desse problema de pesquisa, elencou-se como objetivo
geral: compreender a contribuição que o trabalho desenvolvido pelos/as
bolsistas do PIBID/Pedagogia/Anos Iniciais traz para a formação ini-
cial do/a pedagogo/a, tendo em vista a gestão escolar.
A LDB 9394/96 ao instituir em seu Art. 12 a incumbência aos
estabelecimentos de ensino de “elaborar sua proposta pedagógica [...]
articular-se com as famílias e a comunidade criando processos de inte-
gração da sociedade com a escola” (BRASIL, 1996), torna diretamente

294
possível às escolas a mobilização social intermediada pelo Projeto Pe-
dagógico que se constitui peça chave no processo de ensino e aprendiza-
gem.
Neste contexto, em relação à gestão escolar na íntegra, mesmo
que de forma micro, é possível afirmar que as atividades desenvolvidas
pelo grupo de bolsistas dentro do PIBID/Pedagogia/Anos Iniciais bus-
cam ser democráticas, sendo elas em todo momento “[...] um objetivo e
um percurso. É um objetivo porque se trata de uma meta a ser sempre
aprimorada e é um percurso, porque revela como um processo que, a
cada dia, se avalia e se organiza” (GRACINDO, 2009, p. 33). Contudo,
mesmo havendo o compartilhamento de ideias, a divisão de tarefas e a
escuta de todos/as os/as envolvidos/as, ainda se percebe princípios tra-
dicionais da administração presente nas escolas. Isso foi observado mui-
tas vezes nos pronunciamentos das diretoras quando, em alguns mo-
mentos, insistiam em demonstrar seu autoritarismo; ou então, quando
se percebia a resistência de alguns/algumas professores/as para parti-
cipar das atividades, pois isso ia custar-lhes mais tempo e trabalho dis-
pensado; ou então, quando se percebia que para muitos pais as decisões
a serem tomadas não cabiam a eles.
Diante disso, destaca-se a necessidade de (re)construir o con-
ceito de gestão impregnado pelos princípios tradicionais da administra-
ção escolar, que se centrava no interesse em controle técnico e detri-
mento da emancipação, que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), Lei Nº 9394/96 (BRASIL, 1996) não conseguiu superar
no contexto escolar. Para tanto, percebe-se no PIBID uma alternativa
para a superação deste conceito, já que a partir dele é possível repensar
a prática em sala de aula e criar ações mais democráticas no contexto
escolar.
O grupo de trabalho do subprojeto pesquisado objetiva um pro-
cesso de reflexão-ação-reflexão (RAMOS; FERNANDES; SARTURI,
2012), no qual o diálogo é sempre mediador. Além disso, prima-se pelo
aprimoramento das estratégias desenvolvidas no subprojeto, em prol do
processo de ensino-aprendizagem de todos/as os/as envolvidos/as.
Trata-se de um espaço de construção e (re) construção de saberes e
aprendizagens, tanto por parte das acadêmicas/bolsistas quanto das
professoras supervisoras. Por isso a necessidade de se trabalhar com
questões que envolvem a gestão, mesmo que essas, muitas vezes, se
configurem num desafio para a prática.

295
Sendo assim, como resultado desta pesquisa, percebeu-se que o
trabalho desenvolvido no PIBID/Pedagogia/Anos Iniciais possibilita aos
bolsistas uma reflexão-ação-reflexão (RAMOS; FERNANDES; SAR-
TURI, 2012) sobre a realidade vivida e, portanto, contribui significati-
vamente para a formação inicial do/a pedagogo/a.
Logo, conclui-se que é possível caracterizar o PIBID/Pedago-
gia/Anos Iniciais como um potencializador de experiências formativas,
pois incita em todos os envolvidos o entendimento da importância de
uma gestão pautada no diálogo, na participação, na definição de papéis
dentro da equipe, construção de elos entre o grupo, escolas e universi-
dade.

296
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298
DESAFIOS DO ENSINO DE HISTÓRIA NOS ANOS FINAIS
DA REDE PÚBLICA DE ENSINO

Magno de Souza Holanda74

INTRODUÇÃO

O artigo versa sobre os desafios do ensino de História nos anos


finais da rede pública de ensino. É sabido que estudos sobre a História
nas escolas públicas e privadas brasileiras evidenciam que essa matéria
teve um percurso repleto de confrontos, sob condições específicas dado
os problemas derivados de uma política educacional complexa que tem
feito a sociedade brasileira viver em constante disputa por uma educa-
ção adequada à crianças e jovens.
Debater sobre uma base curricular comum é essencial para di-
minuir as desigualdades educacionais de um país. E ao ser definido o
que é fundamental ao ensino de todos em cada fase da vida escolar, tem-
se um caminho eficiente para uma aprendizagem adequada, assim os
critérios de qualidade e as expectativas de aprendizado podem ser co-
bradas com maior eficiência.
São diversas as vertentes da disciplina de História e é comum
afirmar que nessa matéria se estuda o passado para ensinar a viver no
tempo presente e construir o futuro. No entanto, refletir a respeito das
experiências vivenciadas pela humanidade no tempo-espaço dá a opor-
tunidade dos estudantes terem contato não somente com uma gama de
informações históricas que formam uma memória coletiva, como tam-
bém ampliar esse contato com inúmeros procedimentos técnicos especí-
ficos para a compreensão das relações e entidades sociais.
O estudo da história pode explicar as questões que envolve a
função do docente, como também questões que se acumulam anual-

74Mestrando em Ciências da Educação pela Universidad de La Integracion de Las Ame-


ricas (2018); Master in Business Administration em Gestão Empresarial pelo CEDEPE
(2008); Especialista em Educação Especial e Educação Inclusiva pela UNINTER (2017);
Especialista em Gestão e Produção de Eventos Culturais (2015); Graduado em Ciências
Econômicas pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (2006).

299
mente em salas de aula e que atrapalham o percurso desses profissio-
nais. Pensar o ensino de História em sua historicidade enseja a busca
constante e definitiva de uma clara compreensão do que significa ensi-
nar História nas escolas públicas nos dias de hoje.
A padronização elencada pela BNCC tem o objetivo de tornar a
aprendizagem desta disciplina mais equitativa, ou seja, os estudantes
terão a oportunidade de exercitar o domínio cognitivo com o conjunto de
fatos, juntamente com procedimentos e atitudes que irão contribuir
para o conhecimento e desenvolvimento do pensamento histórico. Esse
desenvolvimento envolve a mobilização de noções e conceitos relativos
ao tempo e à história.
É relevante destacar que o ensino de História contribui para
construção de um futuro melhor para os jovens, posto que fornece infor-
mações e instrumentos para compreensão da história do mundo, ou
seja, estuda-se a própria vida de cada um. A enorme força que tem o
ensinar história revela a possibilidade de acenar um futuro promissor
ou não, mas não passível de ser perseguido.
A pergunta norteadora é como os desafios do ensino de história
podem ser enfrentados nos anos finais da rede pública no novo contexto
curricular?
Toda a pesquisa poderá dar suporte ao enfrentamento dos de-
safios que é repassar conteúdos de História para rede pública de ensino,
mas não conclui, deixando em aberto para novos debates acerca do en-
sino de História nas salas de aula.

O ensino de História no novo cenário cultural

No Brasil, a história da disciplina História tem sido bastante


debatida. Estudos feitos sobre essa disciplina englobam publicações
acadêmicas, livros didáticos, diretrizes curriculares, projetos e forma-
ção de docentes. Como disciplina escolar, a disciplina História tem cau-
sado recorrentes preocupações na questão do ensino-aprendizagem que
envolvem critérios e formas de seleção e organização curricular, como
também os livros usados (didáticos e paradidáticos), metodologia e prá-
tica de ensino. Percebe-se ser um campo controverso, onde habita con-
sensos políticos e teóricos, interesses e disputas (SILVA; BORGES,
2018).

300
Para Silva e Borges (2018) é possível verificar em diversos con-
textos da história brasileira a preocupação que o Estado tem com a cri-
ação de programas e currículos de História para educação básica. A par-
tir do século XIX, especificamente entres os anos 1841 e 1951, surgiram
18 programas de ensino com reformas curriculares. Os textos contidos
nesses programas são repletos de questões teóricas, objetivos e posições
políticas que constituem não somente a função formal da História como
disciplina escolar, mas também como matéria estratégica na construção
ou manipulação do conhecimento da história no contexto escolar.
Nesse entendimento, passados 13 anos da divulgação dos Parâ-
metros Curriculares Nacionais e 14 anos do surgimento da Lei de Dire-
trizes e Bases - LDB nº 9.394/96, o lugar que a História ocupa está di-
retamente interligado às intenções educativas explícitas na política
educacional concretizada em 1990, bem como no cenário de desenvolvi-
mento tecnológico, na globalização da economia e no período da demo-
cracia brasileira (BITTENCOURT, 2018).
Sabe-se que o repasse do conteúdo de história sempre é pautado
num recorte temporal histórico, com inúmeras leituras e interpretações
de figuras históricas situadas socialmente. O currículo escolar, assim
como a História, não é um simples conjunto vago de conhecimentos es-
colares a serem avaliados, ensinados e aprendidos e sim parte de uma
seletiva tradição ou um acurado exemplo de invenção da tradição (BIT-
TENCOURT, 2018).
Fernandes (2018) diz que hoje é relevante identificar os conteú-
dos de História que estão sendo repassados em sala de aula, que de
alguma forma, prejudicam as interpretações projetadas pelos alunos
em suas vivências sociais. Isto é, a finalidade principal é fazer um
exame detalhado dos conteúdos do ensino de História, compreendidos
como seleções, saberes e proposições legitimados dentro da cultura. O
objetivo dessa análise é, dependendo da disponibilidade de fontes docu-
mentais e também do período, identificar de forma histórica os assuntos
sugeridos na legislação, em programas escolares, em livros e em currí-
culos oficializados.
O argumento é que os assuntos formais de história são incluídos
de forma parcial naquilo que o docente repassa, e representam apenas
um percentual daquilo que os estudantes aprendem. Vale salientar que
o processo de aprendizagem é bem mais amplo do que é determinado
em lei ou em manuais e programas (FERNANDES, 2018).

301
De acordo com Bueno el tal (2017) a preocupação com os assun-
tos de história vem da constatação de que, nos últimos decênios, exis-
tem discussões de diferentes proporções do que realmente deve ser re-
passado aos alunos, trazendo a atenção para quais tipos de conteúdos
tem sido ensinado, as seleções destes assuntos, se são legitimados e em
quais épocas.
Em decorrência desses múltiplos fatores que contornam os sa-
beres escolares, Bueno et al (2017) dizem que tem sido bastante variá-
vel a seleção dos assuntos de História. Logo, parte deles continuam por
conta de memórias ressignificadas ou consolidadas nas tradições de en-
sino; ou recebem reforço nos materiais escolares e em vínculos com aná-
lises de instituições e do mercado editorial; ou recebem influência de
discursos políticos e intelectuais e de planos educacionais apresentados
ou renovados por diferentes regimes; ou são reduzidos ou amplificados
por ações de movimentos sociais e recebem nova organização por meio
de sistemas oficiais de avaliação da aprendizagem.
Neste contexto, argumenta-se que no ensino de História os con-
teúdos abrangem conhecimentos que incluem fatos, tempos, persona-
gens e conceitos históricos em conjunto com seus entrelaçamentos em
dissertações ou em narrativas para serem estudados na sala de aula.
Entretanto, esse planejamento tem sido amplificado em distintas épo-
cas para que outros propósitos ou exigências educativas sejam inseri-
das, que vão mais à frente do conhecimento específico (SILVA, 2017).
Afirma Silva (2017) que no decorrer dos séculos, propostas do
que ensinar história na escola recebeu novos moldes que podem ser en-
contrados na legislação, bem como em programas e materiais escolares.
Umas das mais recentes solicitações para os assuntos de ensino de His-
tória corresponde ao valor concedido aos protagonistas que transforma-
ram a história; outras diz respeito ao tratamento fornecido à história
ensinada como uniforme, no sentido de não demonstrar incompatibili-
dades ou discussões sem esclarecer possíveis divergências; outras inter-
pelam a preocupação em reconhecer as desigualdades, sejam estas eco-
nômicas, políticas, sociais, discriminatórias ou preconceituosas.
Além dessas questões, Silva e Borges (2018) alegam que existe
ainda os movimentos sociais que em suas frequentes lutas por condições
melhores de vida e por direitos, de forma legal, conseguiram tornar
obrigatório sua inclusão como atores reconhecidos nos processos de
transformação histórica. E reconhecendo esse direito, tem sido muito

302
relevante reexaminar os valores e abordagens impostas à idealização
de gerações, pelas concepções históricas disseminadas pela historiogra-
fia e no repasse de conteúdos históricos, corroborando com a exploração
e a desigualdade por parte das elites e seus aspectos de superioridade.
Conforme Silva e Borges (2018) importantes questionamentos
há alguns decênios têm incentivado reflexões acerca das escolhas da
organização do tempo histórico nas ocasiões de ensino. Existem muitas
observações e críticas quanto a apresentação única do tempo linear, que
tem influenciado alunos a entenderem o trajeto incondicional dos acon-
tecimentos, isso bloqueia o entendimento da história como escolha,
construção, conflitos, negociações e embates.
Diante do exposto, nas últimas décadas, propostas para acabar
com as únicas estruturas temporais foram sendo tecidas para que o en-
sino fosse valorizado seguindo a linha da relação do presente com o pas-
sado, e assim, contribuindo com o entendimento de cotidianos com a
possibilidade de cada pessoa se projetar como sujeito histórico com a
capacidade de poder examinar e agir nos acontecimentos da contempo-
raneidade. Como existe forte associação entre a educação e a sociedade
contemporânea, na escola os conteúdos de história precisam também
utilizar metodologias com o uso de novas tecnologias que facilitem o re-
passe de estudos históricos por meio de ambientes digitais para que to-
das as fontes sejam consultadas e reconhecida sua veracidade (SILVA,
2017).

O docente e seu papel no ensino de História

O Ensino de História em grande parte das escolas é visto pelos


alunos como o estudo de coisas do passado que aborda os primeiros
meios de comunicação, o surgimento da escrita, da forma de vida dos
homens antigos, dentre outros. Entretanto, estudar história abrange
muito mais, uma vez que a história vive em constante transformação.
Nesse sentido, o docente como mediador pode repassar conhecimentos
confrontando o distante e o próximo, o geral e o específico, e assim, po-
derá contribuir para um trabalho que preze primeiramente a realidade
concreta para em seguida envolver questões abstratas (SANTOS,
2019). Vale salientar que há livros didáticos que não conseguem forne-
cer aos professores como também aos alunos um direcionamento que
incorpore um aprendizado pleno da disciplina. Isso acontece porque as

303
metodologias indicadas nos currículo de história não se relacionam com
o objetivo concreto da disciplina (SOARES; MONTEIRO, 2019).
Para Soares e Monteiro (2019) discursar acerca do ensino de
História é perceber a contribuição que essa disciplina dar na vida social
dos estudantes, levando em conta suas próprias características. É sa-
bido que o ambiente escolar representa um micro sistema da sociedade
e nele são encontrados uma variedade de ideais, costumes e pensamen-
tos, mas toda a diversidade precisa ser respeitada e valorizada pela es-
cola, uma vez que cada ser humano tem sua singularidade com capaci-
dades e habilidades distintas e são essas particulares que formam um
conjunto, isto é, uma sociedade com os mais variados valores sociais.
Assim, é fundamental que os professores se conscientizem da importân-
cia do aluno e sua condição de aprendiz. Um bom mediador trilha cami-
nhos que instigue a busca pelo conhecimento e isso é alcançado quando
os conteúdos despertam interesse nos educandos.
De acordo com Cabrini et al (2017)

A história estuda as ações dos homens, procurando explicar as rela-


ções entre seus diferentes grupos. Essas relações estão em perma-
nente movimento, são essencialmente dinâmicas e contraditórias.
Produzir história, para nós, é procurar captar, recuperar essas rela-
ções que se estabelecem entre os grupos humanos no desenvolvimento
de suas atividades, nos mais diferentes tempos e espaços. Em decor-
rência disso, necessitamos de um tipo de procedimento adequado aos
fenômenos históricos, que estão sempre em movimento e que eviden-
ciam manifestações contraditórias (CABRINI et al 2017, p.76).

Santos (2019) revela ser importante destacar que o ato de ensi-


nar está associado ao conhecimento do outro, posto que não existe co-
nhecimento finalizado e sim em constante transformação, portanto, é
na transferência de informações que o conhecimento é desenvolvido,
logo todos são aprendizes tanto professor quanto aluno, ambos têm a
capacidade de ensinar e de aprender. Quando se fala de educação, sua
construção não se limita ao ambiente escolar, pois a educação está em
todos os ambientes sejam formais ou informais. Desta forma, é preciso
compreender que a educação precisa ser estimulada e nem sempre
existe motivação dentro da sala de aula, tanto por parte do professor,
quanto por parte dos estudantes.
Na visão de Urban (2015)

304
O diálogo envolvendo o ensinar e o aprender História compreende o
conhecimento e análise das ideias históricas de alunos e de professo-
res. Trata-se de um olhar sobre a prática que centra seu foco na ne-
cessidade de se conhecer e analisar essa relação bilateral no que se
refere ao conhecimento histórico, bem como a forma pela qual o tra-
balho com fontes históricas colabora para a formação das ideias histó-
ricas e da consciência histórica de crianças, jovens, alunos e professo-
res (URBAN, 2015, p.121).

Ressalta Santos (2019) que o trabalho do professor é um ofício


que vive em constante mudança (curriculares, organizacionais, extra-
curriculares, etc), todas definida em incessantes políticas e reformas
educativas. Estas mudanças demanda dos educadores novas competên-
cias e novos papéis. Assim, o professor precisa está frequentemente se
preparando para atuar no contexto escolar.
No entendimento de Santos (2019) a competência do educador
não deve dispensar o controle dos conteúdos curriculares previstos para
o ensino e sim repassar e julgar sua importância, relacionando seus
conceitos básicos e, como parcela inerente desse domínio de conteúdos,
ter a capacidade de repassar didaticamente, o que inclui saber geren-
ciar o ensino/aprendizagem com discernimento e aptidão para decidir
quais assuntos devem ser transmitidos e em que sequência, bem como
que tipo de tecnologia deve ser utilizada.
Na construção do conhecimento histórico, Bittencourt (2018)
afirma que o docente precisa organizar sua didática pedagógica com
base em variadas fontes históricas que contemple documentos escritos,
registros orais, iconográficos, fotografias, filmes, testemunhos de histó-
rica local, literatura, quadrinhos, etc. Esses conteúdos são essenciais
para a construção do conhecimento histórico que podem ser aproveita-
dos nas aulas de variadas formas.
Vale salientar que o ensino de História também deve ser inte-
grado com a tecnologia, para que o desenvolvimento social seja concili-
ado com a história geral, pois no mundo globalizado em que vivemos é
necessário acompanhar a história sem deixar de lado o processo evolu-
tivo de cada nação. Assim, as mídias digitais são de grande valia para
estruturar aulas de história tornando-as bastante interativas e inova-
doras (BITTENCOURT, 2018).

305
Segundo Silva e Borges (2018) existe uma visão peculiar na
busca pelo ensino de História nas escolas que ultrapassa a simples re-
produção dos conteúdos e se projeta mais como palco de construção e
pesquisa de novos conhecimentos históricos. O propósito inicial é seguir
um currículo previamente elaborado à nível oficial, contudo, esses cur-
rículos que, muitas vezes, tem cunho político deixam de concretizar me-
canismos pedagógicos de emancipação humana.
Conforme Miranda e Schier (2016) no desenvolvimento pedagó-
gico dos alunos, o professor de história é um auxiliador/mediador que
transmite os conteúdos de forma apropriada, levando em conta limita-
ções, idade e capacidades dos aprendizes, além do mais, o docente deve
considerar aspectos externos que abrangem o conhecimento da matéria
história como fatores econômicos, sociais e políticos do dia a dia dos es-
tudantes, como também a localidade, a cultura e a própria história,
desta forma, todos poderão absorver melhor os assuntos abordados, des-
pertando assim a curiosidade e o interesse das ações cotidianas da so-
ciedade.
Em História, o papel pedagógico, executado de forma adequada,
desenvolve e forma sujeitos bem como impulsiona os estudantes a cons-
truir um senso crítico, seletivo, coletivo e participativo, com opiniões e
reflexões que despertam o interesse na construção de sua própria his-
tória, que pode ser expandida para espaços bem maiores do que o meio
onde vivem (MIRANDA; SCHIER, 2016).

História na rede pública de ensino

A História ensinada na rede pública de ensino e também na


rede privada, ante as numerosas denominações indica um percurso de
mudanças quanto aos conteúdos, aos objetivos e as metodologias edu-
cacionais do século XIX aos dias de hoje. No ensino de História, as
transformações têm instigado discussões relevantes relacionadas aos
problemas historiográfico e epistemológicos, assim como no tocante ao
significado de sua rejeição e inclusão em projetos curriculares nacionais
e internacionais (BITTENCOURT, 2018).
Em relação a contínua formação de docentes de história, Fon-
seca (2015) diz que hoje é necessário ter em mente que a formação e o
papel de profissionais educativos encontra-se numa posição estratégica,
uma vez que projetos de melhoria da qualidade do ensino está atrelado

306
a qualidade da didática pedagógica dos educadores, sendo necessário
que debates sejam ampliados para acabar de uma vez com as antigas
ideias de requalificação e reciclagem. Nos dias atuais pensar a formação
do professor, sobretudo professores da rede pública, envolve pensar ao
mesmo tempo em diversos aspectos que compõem sua formação inicial,
condições de trabalho, sua formação contínua e sua regulamentação de
carreira.
Para Monteiro (2017) professores em início de carreira enfrenta
um dos maiores desafios que é a escolha do conteúdo adequado que irá
repassar aos alunos no tempo previsto. E no ensino de História torna-
se complexo selecionar assuntos em pouco tempo de aula, uma vez que
nessa disciplina o tempo de aula é reduzido, além do que, História é
uma das matérias pouco apreciada pelos educandos e muitos professo-
res dizem que os conteúdos poderiam ser simplificados, priorizando os
fatos histórico, pois lecionar conteúdos extensos é bastante complexo.
Argumenta Monteiro (2017) que as questões ligadas à História
não despertam interesse dos alunos porque aborda assuntos de um pas-
sado bem distante. Desse modo, o ensino de História precisa ser des-
construído, uma vez que os estudantes consideram uma matéria cheia
de conteúdos que versa somente coisas antigas, que não necessita de
entendimento apenas o trabalho de decorar.
Aduz Monteiro (2017) que o objetivo do professor de história não
é a memorização dos assuntos e sim que todos os alunos o compreen-
dam. Todavia, é grande o desafio enfrentando pelos docentes, pois essa
disciplina tem extensos conteúdos que não facilita o trabalho e o do-
cente tem que selecionar temas que abranjam grande parte do conteúdo
curricular que são essenciais e adaptá-los as circunstâncias de apren-
dizagem à realidade do aluno.
Um problema enfrentado por professores de História segundo
Costa (2019) tem a ver com o caráter da cidadania e a consciência polí-
tica das gerações futuras, formadas nesse cenário paternalista do en-
sino público. É percebido também um despreparo administrativo nas
escolas públicas, bem como um desrespeito histórico que não prioriza a
educação pública, fazendo elevar a crise na rede pública de ensino, le-
vando os professores a exercerem sua profissão de forma inadequada e
sem qualidade.
Para Costa (2019) a metodologia do ensino de história que valo-
riza a crítica e a problematização da realidade, coloca docentes e alunos

307
como sujeitos que produzem conhecimento e história na sala de aula.
Consequentemente, são pessoas históricas que no dia a dia resistem,
atuam e lutam nos variados ambientes de vivência, facilitando assim, o
conceito de cidadania.
Fonseca (2015) elucida que

A história tem como papel central a formação da consciência histórica


dos homens, possibilitando a construção de identidades, a elucidação
do vivido, a intervenção social e praxes individual e coletiva, então
deve ser pensada como disciplina fundamentalmente educativa, for-
mativa, emancipadora e libertadora. Ensinar História processa-se,
sempre, no interior de lutas políticas e culturais (FONSECA, 2015,
p.134).

É necessário investigações constantes por parte do professor de-


vido a exigência que demandam os conteúdos de História. Para incen-
tivar alunos de rede pública é necessário que os próprios alunos tragam
para sala de aula pesquisas, documentários, jornais, livros, revistas,
dentre outros conteúdos com a finalidade de impulsionar uma organi-
zação coletiva. Os alunos devem ver fotos, filmes e objetos, além de se-
rem levados a museus, cuja prática em escolas públicas é bastante res-
trita, posto que esse hábito ainda é pouco apreciado pelos brasileiros e
não há uma lei pública que garanta esse tipo de experiência extraclasse.
Em vista disso, os conteúdos de história se tornam desinteressantes e
maçantes e o trabalho docente não se concretiza adequadamente (FON-
SECA, 2015).

BNCC e História: desafios nos anos finais da rede pública

A Base Nacional Comum Curricular - BNCC, segundo Abreu


(2018) é um documento de categoria regulamentaria da educação básica
brasileira que estabelece um conjunto de direitos e aprendizagens co-
muns que todo aluno deve ter acesso no decorrer de sua vida escolar,
seja da educação infantil até o ensino médio. Essa base vale para toda
categoria de instituição escolar, e precisa ser concretizada em toda rede
de ensino a partir de 2021. A BNCC é uma proposta pedagógica, não se
confundindo com currículo, que direciona Estados, municípios do Dis-
trito Federal na construção de seus currículos de ensino a partir de sua
implantação.

308
Segundo Abreu (2018) as competências específicas do ensino de
História, conforme a BNCC, abrange análise, identificação, interpreta-
ção, comparação e contextualização, onde o aprendiz precisa expandir-
se ao utilizar as habilidades que tem relação com os conteúdos, isso se
aplica ao ensino fundamental. Em relação ao Ensino Médio, as habili-
dades e competências serão associadas às perspectivas de interdiscipli-
naridade, levando em conta todos elementos curriculares que envolve a
área de Ciências Humanas (História, Sociologia, Geografia e Filosofia).
Para Santos e Pereira (2016) a BNCC é um tema bastante dis-
cutido ultimamente no ramo educacional, sendo considerada como im-
portante instrumento para a gestão do currículo nacional.
Segundo o Ministério de Educação (MEC),

A BNCC vai deixar claro os conhecimentos essenciais aos quais todos


os estudantes brasileiros têm o direito de ter acesso e se apropriar
durante sua trajetória na Educação Básica, ano a ano, desde o in-
gresso na Creche até o final do Ensino Médio. Com ela os sistemas
educacionais, as escolas e os professores terão um importante instru-
mento de gestão pedagógica e as famílias poderão participar e acom-
panhar mais de perto a vida escolar de seus filhos (BRASIL, 2016).

Silva (2018) diz que é importante ressaltar que desde a aprova-


ção em 1996 da Lei de Diretrizes de Bases, o ensino médio vem pas-
sando por um acirrado processo de disputa em relação as suas finalida-
des. O ensino médio passou por modificações curriculares de dimensão
nacional, e isso ocorreu em cerca de 20 anos. Ocorreram dois decretos,
duas mudanças na educação técnica profissional, surgiu o ProEMI -
programa indutor de reformulação curricular e larga escala de mudan-
ças nas avaliações. As normatizações, dentre as propostas curriculares,
fundamentaram-se em diferentes concepções conceituais ou mesmo
opostas. Assim, o documento da BNCC vem direcionar o ensino médio
em suas variadas peculiaridades que na rede pública de ensino é de
suma importância dada as dificuldades enfrentadas pelos docentes no
repasse dos conteúdos.
Nos instrumentos que orientam as propostas curriculares base-
ando-se em competências, Silva (2018) diz que há uma predominância
de um conceito de formação humana assinalada pela ideia de adequa-
ção à adaptação, à lógica do mercado e à sociedade através de uma no-

309
ção abstrata da cidadania. Essa fala também é marcada pelo não reco-
nhecimento da importância da cultura como componente que produz,
simultaneamente, a diferença e a identidade. O conceito de competên-
cia corrobora um entendimento de educação escolar que, antagonica-
mente, limita e certifica a formação para a autonomia.
Segundo Ribeiro (2018) no ensino de História contextualizar é
uma tarefa fundamental para o conhecimento histórico e isso não é
muito percebido nos alunos. Baseando-se em vários níveis de exigên-
cias, dos trabalhos mais simples aos mais preparados, os educandos
precisam ser desafiados a contextualizar e aprender. Isto é, saber iden-
tificar e localizar um registro de atividades humanas, identificar luga-
res e momentos peculiares de um acontecimento. Toda tarefa de identi-
ficação é essencial para evitar atribuir significados e sentidos que não
condizem com um período específico, região, comunidade ou grupo so-
cial. Portanto, é de suma importância que todos os alunos possam, em
um contexto, identificar o período em que um evento histórico é exami-
nado e em quais condições foi achado.
Na BNCC, independente do tempo de jornada escolar, é essen-
cial que aja uma construção de metodologias educativas que promovam
aprendizagens conforme as necessidades, os interesses e as possibilida-
des dos alunos, como também com os desafios que a sociedade contem-
porânea apresenta. Ou seja, é preciso levar em conta as diferentes in-
fâncias e juventudes, as diferentes culturas e seu potencial de gerar no-
vas maneiras de existir.
Nesse ínterim, o papel desempenhado pela BNCC é fundamen-
tal, uma vez que demonstra as aprendizagens indispensáveis que todos
os educandos devem expressar e construir, por conseguinte, a igualdade
educacional na qual as individualidades devem ser reconhecidas e aten-
didas. Vale salientar que essa igualdade também precisa valer para as
oportunidades de acesso e continuidade numa escola, pois sem isso o
direito de aprender não será concretizado.
No entendimento de Zamboni (2017) a educação no Brasil ainda
tem muitos percalços que compromete sua qualidade, problemas esses
originários de outras questões além do currículo, todavia para a forma-
ção dos estudantes é preciso que ocorram mudanças nos currículos edu-
cacionais, pois no atual currículo há vestígios de acontecimentos histó-
ricos conturbados vivenciados pela nação brasileira.

310
Fazer com que a qualidade do ensino no Brasil se eleve, apon-
tando claramente o que se deseja dos aprendizes, não é um trabalho
simples, sendo necessário estruturar e organizar todo o currículo edu-
cacional, desde a educação básica até o ensino superior, pois existe um
processo de transformação encadeado que oscila. É uma luta constante
que atravessa a dimensão cultural e geográfica, bem como questões de
políticas públicas existente no Brasil, é preciso equiparar rede pública
com rede privada de ensino (ZAMBONI, 2017).

Considerações Finais

O artigo abordou sobre os desafios do ensino de História nos


anos finais da rede pública de ensino. As políticas educacionais da rede
pública têm implementado sistemas de avaliação do ensino, e hoje a
proposta está voltada para a centralidade do ensino em todas as insti-
tuições. Desta forma, predomina o equilíbrio do ensino, onde todos re-
ceberão os mesmos conteúdos. Essa proposta elencada na BNCC para o
ensino de História pode elevar a qualidade da aprendizagem, na qual
serão repassadas formas de contextualização dos conteúdos e assim as
aulas de história poderão tornar-se mais estimulantes.
Para os conteúdos de História algumas solicitações envolve o
valor direcionado a protagonistas das mudanças históricas e há tam-
bém as que questionam a identificação de desigualdades, sejam estas
econômicas, sociais ou políticas e outras que se referem ao tratamento
fornecido à história ensinada em sua homogeneidade, no sentido de não
apresentar discussões que demonstrem divergências. Vale acrescentar
que ainda hoje se percebe na rede pública de ensino muitas dessas de-
sigualdades.
Nessas diferentes questões perpassam perspectivas para ali-
nhar o currículo na formação dos alunos, integrando estratégias disci-
plinares no ensino de História. É preciso reconhecer e reavaliar as abor-
dagens feitas hoje no repasse dos conteúdos dessa disciplina a fim de
que o conhecimento da história seja disseminado levando em conta va-
lores impingidos à imaginação das atuais gerações. Mesmo sabendo dos
desafios enfrentados por professores de escolas públicas, um bom pro-
cesso de ensino que direciona para aprendizagens plenas depende, prin-
cipalmente, da capacidade que esses docentes têm em organizar diálo-
gos e mediações entre as diferentes formas de conhecimento que estão

311
à disposição dos educandos. O conhecimento necessário ao docente que
ministra o ensino de História pode ser desdobrado e articulado con-
forme os anseios de pesquisa de cada aluno que se interesse, contribu-
indo assim, para o avanço educacional e curricular.
No novo contexto curricular da base nacional o desafio maior é
sua generalidade e necessidade simultânea de ser objetiva e clara para
um público heterogêneo, uma vez que em cada época a escola é sempre
colocada a serviço de diferentes finalidades que no seu conjunto
abrange o seu caráter educativo. É através das metodologias disciplina-
res, ministradas de forma global e articulada, que um conteúdo chega
a sua real finalidade educativa, favorecendo o desenvolvimento de todos
e assim os professores compreenderão sua relação com os objetivos de
aprendizagem.

312
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315
316
AS PRÁTICAS DO LETRAMENTO LITERÁRIO:
A FORMAÇÃO DO LEITOR ATIVO

Remilda Porfírio dos Santos75

Introdução

O presente trabalho aponta uma proposta desafiadora englo-


bando métodos didáticos, visando alfabetização e letramento no desen-
volvimento de práticas de aprendizagem contextualizada, interdiscipli-
nar e multicultural. Uma vez que o letramento possui especificações, o
letramento literário amplia a capacidade de leitura e proporciona escla-
recimento de obras e conteúdos abrangente para o senso comum, crítico
e reflexivo da formação do indivíduo.
Os pilares conceituais de letramento literário definem como um
conjunto de práticas e eventos social englobado a integração entre o lei-
tor e escritor, socializando atividade por meio da leitura de textos lite-
rários, com a principal finalidade de construir e reconstruir relação ao
texto literário lido com a contemporaneidade.
O interesse pelo tema partiu de uma reflexão sobre as práticas
de ensino, que necessita de maior aprofundamento teórico e metodoló-
gico que passa pelo o processo de formação continuada, conduzindo as-
sim, o professor a refletir sobre prática pedagógica desenvolvida de li-
teratura e língua portuguesa em sala de aula do ensino médio, onde a
vertente de estrutura social do alunado tem variação, ou seja, formas
de comunicação, atitudes éticas e morais, leitura de mundo e interpre-
tação textual, promovendo assim uma forma significativa para cidada-
nia.
Com o intuito de promover, orientar, refletir e maior compre-
ensão de diversas práticas social e pedagógica do ensino para o domínio

75Mestre em Ciência da Educação pela Universidade Interamericana (Paraguai), gradu-


ada em Geografia pela Faculdade de Tecnologia e Ciências – FTC, Pós-graduação em
Psicopedagogia Institucional pela Faculdade de Ensino Regional Alternativa – FERA,
Pós-graduação em Educação Ambiental e Sustentabilidade pela UNIPROMINAS, Gra-
duanda do curso de Letra/ Português pelo Instituto Federal de Alagoas – IFAL e Bolsista
do Programa do PIBID pela CAPES.

317
de diversidade que surgira no ensino da língua portuguesa (LP) no con-
texto escolar, o letramento literário tratarão de discussão em especial a
prática de leitura e escrita e seu incentivo.
Quanto à metodologia tem base qualitativa na aplicação teórica
voltado do objetivo aos resultados, contudo, a importância do signifi-
cado do letramento literário, como também oferecer métodos que passa
por reflexões das questões relacionadas ao ensino de língua portuguesa.

Conceituando Letramento Literário

A expressão Letramento é natural na atualidade, remete ao


processo de transposição e apropriação da escrita enquanto tecnologia
inovadora na sociedade hodierna. Além de ser conhecimento de código
simbólico, é uma expressão que faz interação com o agrupamento de
práticas sociais centradas na escrita conforme (KLEIMAM, 1995, SOA-
RES, 2006).
Veja o que diz (PAULINO, 2001, p.56) “ as diferenças entre as
práticas de leitura, derivadas de seus múltiplos objetivos, formas e ob-
jetos, na diversidade também de contextos e suportes em que vivemos.
” O significado de letramento, podemos afirmar que “ não apenas é ca-
paz de ler e compreender gêneros literários, mas aprender a gostar de
ler literatura e faz por opção”.

O letramento literário na formação do leitor atuante

A disciplina Literatura voga no Ensino Médio, fazendo parte da


grade curricular, ao menos em “ tese”, o conhecimento com o texto lite-
rário. Porém o processo de ensino literário em ambiente educativo se
caracteriza mais por estudos sobre obras literárias/ histórias da litera-
tura partir da estética literária.
O documento de ruptura com essa forma e pretende subsidiar
para uma reflexão na questão do currículo do Ensino Médio, de maneira
a implementar as inovações das práticas orientadas pela Diretrizes
Curriculares Nacionais e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais
(BRASIL/MEC,2002).
Os objetivos da disciplina, lê-se:

318
Imersos nesses tempos, mais do que nunca se faz necessária a per-
gunta: por que ainda a Literatura no currículo do Ensino Médio se seu
estudo não incide diretamente sobre nenhum dos postulados desse
mundo hipermoderno? Boa parte da resposta pode ser encontrada tal-
vez no próprio conceito de Literatura tal como o utilizamos até aqui,
isto é, em seu sentido mais restrito. Embora se possa considerar, lato
sensu, tudo o que é escrito como Literatura (ouve-se falar em litera-
tura médica, literatura cientifica, etc.), para discutir o currículo do
ensino médio tomaremos a Literatura em seu stricto sensu: como arte
(grifo meu) que se constrói com palavras. (BRASIL/MEC, 2006, p.52).

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC, p. 85, 2017)


aborda, dentre as competências específicas de Língua Portuguesa (LP),
onde atribuir ao ensino fundamental o desenvolvimento do senso esté-
tico: ” fruir e respeitar as diversas manifestações artísticas e culturais,
das locais e ás mundiais, [...] para participar de práticas diversificadas,
individuais e coletivas, da produção artístico- cultural, com respeito à
diversidade de saberes, identidades e culturas”.

Aporte teórico

Entre estudiosos do letramento literário no processo de ensino


– aprendizagem encontra-se Magda Soares, Rildo Cosson, Angela Klei-
mam e o DCEs. (Diretrizes Curriculares da Educação Básica). “A lite-
ratura, como produção humana, está intrinsecamente ligada ávida so-
cial [...], mas em suas relações dialógicas com outros textos e sua arti-
culação com outros campos: o contexto de produção, a crítica literária,
a linguagem, a cultura, a história, a economia, entre outros” (2008,
p.57).
O letramento por necessidade estar onipresente em todas as
ações de interação que envolve escrita, é a partir do letramento que
compreendemos e nos introduzimos no mundo social, através das diver-
sas maneiras de informações que o letramento se encontra
Segundo Angela Kleimam: “letramento é um conjunto de práti-
cas sociais que usam a escrita enquanto sistema simbólico, enquanto
tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos” (Klei-
mam, 2014, p.19), ou seja, vivemos em uma sociedade letrada, pois o
conceito de letramento amplia-se para diversas áreas; como em: ou-
tdoor, cartas, doutrinas, receitas, jornais, etc.

319
Assim também a literatura quando vista de maneira letrada,
faz com que se torne uma literatura de sentido, como diz Cosson: “é na
literatura e na escrita de textos literário, que encontramos o senso ou
nós mesmos, e da comunidade que pertecemos a literatura nos diz o que
somos e nos incentiva a desejar e expressar o mundo, por nós mesmos”
(Cosson, 2009, p. 17).
Isso mesmo “expressar o mundo por nós mesmo” só assim a li-
teratura transpõe as grandes qualidades existentes nela, seja pela for-
mação do indivíduo crítico, seja pelo dom inerente que a literatura tem
de nós fazer “viajar”.
Segundo Cosson a literatura na escola tem a função de “[...] nos
ajudar a ler melhor, não apenas porque possibilita a criação do hábito
da leitura ou porque seja prazerosa, mas sim, e, sobretudo porque nos
fornece como nenhum outro tipo de escrita faz os instrumentos neces-
sários para conhecer e articular com proficiência o mundo feito de lin-
guagem” (Cosson 2009, p.30).
De acordo com Cosson, Soares (1996) “também garante que se
a literatura é utilizada adequadamente na escola, ela leva ao letra-
mento literário e uma prática de leitura efetiva que vai além do espaço
escolar”. Mas conforme observa a prática da literatura ela não vem
sendo aplicada corretamente, e assim a escolarização da literatura
acaba sendo negativa.
Diante disso o letramento literário, quando aplicado na escola,
auxilia tanto ao aluno quanto ao professor a compreensão da escrita.
Para aprimorar e facilitar a metodologia, aplicada para ser inserida
essa “literatura letrada”, Cosson nos mostram etapa da sequência bá-
sica, sendo elas: a motivação, introdução, leitura, interpretação e avali-
ação. A motivação, de forma lúdica, para a preparação do aluno para
que ele fique incitado a “entrar” no texto; a introdução, quando é feita
a apresentação do autor e da obra; a leitura do texto em si, que deve ter
um acompanhamento do professor.
O autor chama esse acompanhamento de “intervalos” no qual
há a possibilidade de aferição da leitura, assim como solução de algu-
mas dificuldades relacionadas à compreensão de vocabulário ou mesmo
de partes do texto. Isso é fundamental para que o aluno não perca o
interesse ao longo da leitura; A última etapa é a interpretação; e para
o autor ela se dá em dois momentos, um interior e outro exterior.

320
O momento interior compreende a decifração, é chamado de
“encontro do leitor com a obra” e não pode ser substituído por nenhum
tipo de intermediação como resumo do livro, filmes, minisséries. Já o
momento exterior é a “materialização da interpretação como ato de
construção de sentido em uma determinada comunidade” (Cosson,
2009, p. 65).
Como afirma de Cosson “apropriamos literariamente de um ro-
mance quando aprendemos com um personagem que há mais de um
modo de percorrer os caminhos da vida. Por fim, é um processo de apro-
priação da literatura enquanto linguagem, ou da linguagem literária”.
Vale salientar que no âmbito da discussão na questão do letramento do
educador podem-se aguçar para os chamados “ novos letramentos”, “le-
tramentos multissemióticos” e “ multiletramentos” (KLEIMAM, p. 41,
2016)
Dialogando com o autor possamos dizer que o foco principal do
repertório literário, cabe ao docente utilizar em ambientes escolares as
diversas manifestações culturais, reconhecendo que o estudo literário
se faz presente não apenas em textos registrados, mas se faz presentes
em tantos outros suportes e meios.
Sendo assim o objetivo é atingido quando o estudo oferece ati-
vidades sistematizadas e continuas direcionada para o desenvolvi-
mento de conhecimento tanto na habilidade quanto na competência li-
terária, exercendo-se assim, o potencial da instituição de formar o leitor
literário crítico e reflexivo de modo significativo para a sociedade hodi-
erna.
CALVINO, (p. 11, 1995) declara que “só a Literatura com seus
meios específicos nos pode dar: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade,
multiplicidade”.
Destacamos CÂNDIDO, p.180, 2004

Entendo aqui por humanização[...] o processo que confirma no homem


aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão,
a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afina-
mento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida,
o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres,
o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de huma-
nidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos
para a natureza, a sociedade, o semelhante.

321
Na esfera global e educativa cada vez mais pragmáticos, reco-
nhecer o dever e direito a literatura implica que é se dedicar a formação
de leitor ativo que compreenda a literatura com indispensável, pois
transporta o senso comum, no qual desloca viés diferenciado para esfera
mundial e faz descobrir o que pensávamos.
Sendo assim o potencial da literatura garante autonomia e a
liberdade, além disso existem outra questão para ler literatura em es-
paços educativos: conhecer o patrimônio cultural e artístico, conhecer
grandes obras e autores, identificar manifestações culturais em tempos
históricos.

Metodologia e Procedimentos aplicados

Sob a ótica metodológica de base qualitativa se buscou, em es-


pecial, a sensibilização da turma com apresentação de jornais impres-
sos, obras literárias, contos, poemas, poesia literárias, conforme a grade
curricular da série.
Em seguida iniciar com uma roda de leitura e discussões aber-
tas sobre a temática trabalhada e assim a inserir a gramática e a inter-
pretação textual, depois em outro momento sugerir uma análise literá-
rio abordando estrutura de texto, tipos de personagens, tempo, espaço
geográfico, clímax, enredo e narrador.
Contamos com o recurso lúdico pizza literária abordando a aná-
lise e estruturação literária estudada, com o intuito de identificar e re-
conhecer aspectos literários onde a interação com os tempos hodiernos
se faz presente.
Dando continuidade fazermos um sarau de poemas, mini semi-
nário literário com malas literário, exposições de contos, principal-
mente os que remetam para situação atual enfrentado pela sociedade
capitalista e por último possibilitar a criação de uma biblioteca itine-
rante para a comunidade do âmbito escolar, onde envolvera pesquisas,
questionamento, diálogo, orientação e práticas empírica a partir de re-
latos, fortalecendo assim, o capital cultural tanto aluno quanto da co-
munidade institucional, no seu contexto social.

322
Enfim a discente estuda literatura de forma contextualizada,
interdisciplinar e multicultural aguçando assim conhecimentos volta-
dos para o contexto no qual está inserido na sociedade. Bem como for-
mando senso crítico e reflexivo relacionados as questões sócio-político-
social, na esfera planetária.
Geraldi enfatiza a contribuição para o desenvolvimento e a con-
solidação do gosto pela leitura:

[...] leitura-fruição do texto estou pretendendo recuperar de nossa ex-


periência uma forma de interlocução praticamente ausente das aulas
de Língua Portuguesa: o ler por ler, gratuitamente. E o gratuitamente
aqui não quer dizer que tal leitura não tenha um resultado. O que
define este tipo de interlocução é o “desinteresse” pelo controle do re-
sultado’. Recuperar na escola e trazer para dentro dela o que dela se
exclui por princípio- o prazer-me parece o ponto básico para o sucesso
de qualquer esforço honesto no “ incentivo à leitura”

323
Resultados

GRÁFICO I

O QUE É LITERATURA?
Sabem Não sabem

20%
20% - Não Sabem

80% - Sabem

80%

GRÁFICO II

O QUE É LETRAMENTO?

Identifica Não Identifica


Não souberam 10% - Não Souberam

10% 25% - Não Identifica

65% - Identifica

25%

65%

324
GRÁFICO III

A LITERATURA É UM TIPO
DE LETRAMENTO?
Sim Não
Não responderam Ficaram em dúvida

10%
20% 10% - Não responderam
10%
10% - Ficaram em dúvida

20% - Sim

60% - Não

60%

GRÁFICO IV

A LITERATURA PODE NOS


FAZER REFLETIR?

Sim Não Não sabe


20% - Não sabe

20% 30% - Não

50% - Sim

50%

30%

325
Os resultados apontam através de experiência e dos gráficos a
necessidade de trabalhar intensamente o letramento literário de forma
significativa voltado para o processo de ensino aprendizagem, em espe-
cial, no ensino de LP. Com o compartilhamento de leituras no qual há
circulação de textos e respeito pelo o interesse e pelo a grua de dificul-
dade que o discente possa ter na questão à leitura das obras.
Cabe também ao docente a oportunidade de interagir e reco-
nhecer as manifestações culturais que fazem presente em seu contexto
escolar, no que se refere ao ato de tomar algo para si, de fazê-la perten-
cer à pessoa, de internalizar ao ponto daquela coisa ser sua.
Soares salienta, ainda, que

À medida que o analfabetismo vai sendo superado, que um número


cada vez maior de pessoas aprender a ler e a escrever, e a medida que,
concomitantemente, a sociedade vai se tornando cada vez mais cen-
trada na escrita (cada vez mais grafocêntrica), um novo fenômeno se
evidencia: não basta apenas aprender a ler e a escrever. As pessoas as
enfatizam, mas não necessariamente adquirem a competência para
usar a leitura e a escrita, para envolver-se com as práticas sociais da
escrita: não leem livros, jornais, revistas, não sabem redigir um ofício,
um requerimento, uma declaração, não sabem preencher um formu-
lário” …

Considerações finais

Concluir-se que, podemos melhorar a qualidade do ensino da


literatura na sala se aula do ensino médio, com didáticas educacionais
se apropriando de diversas estratégias metodológicas, propicie o desen-
volvimento da alfabetização e letramento do sujeito, no qual contribuirá
para transformação social.
Segundo Cosson o letramento pode ser definido em vertente ge-
rais, como uma articulação/conjunto de práticas e eventos sociais que
engloba a interação leitor e escritor, elaborando exercício socializado na
instituição educativa por meios da leitura de textos literários.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aguça os conteú-
dos necessários à formação “ de leitores em território nacional”. Diante
disso de que o letramento literário não está sendo transmitido de forma
efetiva aos discentes, a atual comunicação busca, a partir dessa visão
uma análise fundamentada no currículo contemporâneo abordado na
BNCC.

326
Segundo Cosson “ela é capaz de tornar o mundo compreensível
transformando a sua materialidade em palavras de cores, odores, sabo-
res e formas intensamente humanas” Ferreiro diz:

Era uma vez uma criança ... que estava na companhia de um adulto...
e o adulto tinha um livro... e o adulto lia. E a criança, fascinada, escu-
tava como a língua oral se torna língua escrita. A fascinação do lugar
preciso que o conhecido se torna desconhecido. O ponto exato para as-
sumir o desafio de conhecer e crescer.

Enfim o ensino de gêneros literários foca somente em suas ge-


mologias tem sido objeto de pesquisa/estudo, que visa o aporte de uma
ensinagem eficaz através de uma arquitextualidade advinha da associ-
ação de obras literárias a elementos estruturais e culturais, por parte
do discente.

327
Referências Bibliográficas

file:///C:/Users/remil/Downloads/1187-3711-1-PB.pdf

file:///C:/Users/remil/Downloads/5762-16337-1-SM.pdf

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular.


Versão Homologada. Brasília: MEC,2017. Disponivel em : htpps://base-
nacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC publicado.pdf. Acesso em
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CÂNDIDO, A. O direito à literatura. In: Vários escritos. 3 ed. São


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KLEIMAM, A. Os significados do Letramento. Campinas, SP: Mer-


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PAULINO, M. G. R. Letramento literário: por vielas e alamedas. Re-


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328
SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista
Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 25, p. 45-46. Jan./abr. 2004.

329
330
MOVIMENTO DE REORGANIZAÇÃO CURRICULAR DA
EDUCAÇÃO INFANTIL DO MUNICÍPIO DE CHAPECÓ:
REFLEXÕES INICIAIS

Simone Pedersetti76
Ana Maria Andreola Badin77
Melissa Borges da Silva 78

Introdução

No Brasil a aprovação da Base Nacional Comum Curricular


(2017) desencadeou e intensificou as discussões sobre a reorganização
curricular nos estados e municípios. Esse processo provocou uma série
de ações que buscaram compreender o currículo como um documento
expressivo e organizador de toda a prática educativa.
Embora esse trabalho descreva um movimento atual, é impor-
tante destacar que, a partir dos escritos de diversos autores, podemos
afirmar que essa preocupação acerca do que se deve ensinar nas escolas
é antiga. Para Pacheco (2009),

A razão de ser da escola está ligada à transmissão de conhecimento,


organizado curricularmente em disciplinas. Rob Moore e Michael
Young (2001, p.198) afirmam que a “visão do currículo como um de-
terminado corpo de conhecimentos a ser transmitido pela escola é tão
antiga como a própria instituição escolar”. O currículo como instrução
é algo que perdura e que é o resultado não só da transmissão formal
do conhecimento em espaços escolares, como também da ligação do
currículo à consagração de uma educação nacional e à formação de
uma política do cuidado (p. 388).

Em nível nacional, as proposições registradas ao longo da his-


tória, demonstram que houve, de tempos em tempos, iniciativas no sen-

76 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da


Fronteira Sul-UFFS
77 Mestre em Educação pela Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS
78 Graduada em Pedagogia pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó - UNO-

CHAPECÓ

331
tido de orientar a organização dos currículos nas redes estaduais e mu-
nicipais. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), por exemplo,
trouxeram a preocupação de organizar os sistemas de ensino em torno
de um referencial teórico comum além de constituírem,

[...] uma das formas de expressão do papel do Estado na busca por


coesão e ordem, atuando no sentido de atingir a uniformização do cur-
rículo nacional, pela definição de um conteúdo mínimo a ser transmi-
tido na escola básica, o que tem sido uma busca recorrente na história
das políticas públicas de educação no Brasil (GALIAN, 2014, p.651).

Observa-se que as ações para uniformização dos currículos pro-


postas pelo Estado aparecem em pauta há muito tempo. Entretanto, as
críticas a esse modelo permanecem contundentes ainda hoje. Embora a
justificativa para a uniformização seja a busca por coesão e ordem, ela
é questionável uma vez corre-se o risco de nivelar todos pelo mesmo
viés, o que seria inviável, dada a dimensão e a diversidade presentes no
contexto brasileiro. Esse pode ser um dos aspectos responsáveis pelo
insucesso de várias propostas educacionais em nível nacional.
Entretanto, embora não se possa afirmar que as propostas con-
tidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), se consolidaram
efetivamente como prática nas salas de aula, é inegável que elas tive-
ram eco, pois além de orientar a produção de materiais didáticos, servi-
ram como base no direcionamento de muitas ações na educação e tam-
bém para novas proposições, como as Diretrizes Curriculares Nacionais
da Educação Básica (DCNs).
Mais recentemente, a publicação da Resolução CNE/CP nº 2, em
22 de dezembro de 2017 que instituiu e orientou a implantação da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC), impulsionou novamente o debate
sobre um currículo comum ao território nacional e sobre o que, de fato,
é relevante ensinar em cada etapa escolar, considerando a diversidade
local, o desenvolvimento dos alunos e o seu percurso formativo. Essa
publicação impulsionou também, a discussão sobre a adequação curri-
cular dos cursos para a formação inicial e continuada de professores,
prevista no Plano Nacional de Educação (PNE, Lei 13.005/2014).
Sobre as proposições que se referem ao currículo no município
de Chapecó (objeto de estudo desse trabalho), a análise da legislação
municipal indicou que se seguiu o mesmo movimento, sendo que a Lei

332
Complementar nº 498, de 17 de Dezembro de 2012, estabeleceu a for-
mulação de currículos como uma das atribuições da Secretaria de Edu-
cação e indicou a necessidade de um currículo municipal que garantisse
a “formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos,
nacionais e regionais” (CHAPECÓ, 2012). Portanto, a secretaria muni-
cipal de educação é a responsável legal pela promoção do debate e efe-
tivação de ações para a construção de um currículo que contemple as
peculiaridades locais sem descuidar do alinhamento à proposta nacio-
nal.
Seguindo esse pressuposto, a secretaria de educação do municí-
pio deu início ao trabalho de reorganização curricular com vistas à pro-
dução de um documento que contemplasse o que estava legalmente pro-
posto, sem desconsiderar as especificidades locais e regionais.
O planejamento dessa ação considerou os princípios da gestão
democrática que levaram ao entendimento de que a validação efetiva
desse documento se daria a partir da participação dos professores, pois
caberia a eles materializar essa proposta, a partir das suas práticas co-
tidianas. Esse foi um passo importante para a viabilização de um tra-
balho que possibilitou o envolvimento de todos os professores.
Democratizar o processo de construção curricular e impulsionar
a participação dos sujeitos na condução das ações conduz a ideia de
construção da autonomia dos sujeitos, tornando estes corresponsáveis
por todo o processo.
Outro aspecto que mereceu relevância durante os estudos foi o
aprofundamento sobre o conceito de currículo e a sua abrangência no
intuito de desconstruir a ideia de currículo apenas como um rol de con-
teúdos. Nesse sentido era preciso entender que os

[...] currículos compreendem a expressão dos conhecimentos e valores


que uma sociedade considera que devem fazer parte do percurso edu-
cativo de suas crianças e jovens. Eles são traduzidos nos objetivos que
se deseja atingir, nos conteúdos considerados os mais adequados para
promovê-los, nas metodologias adotadas e nas formas de avaliar o tra-
balho desenvolvido. A definição de quais são esses conhecimentos e
valores vem sendo modificada nos últimos anos, devido às demandas
criadas pelas transformações na organização da produção e do traba-
lho e pela conjuntura de redemocratização do país. Portanto, a meta
de melhoria da qualidade da educação impôs o enfrentamento da
questão curricular como aquilo que deve nortear as ações das escolas,

333
dando vida e significado ao seu projeto educativo (PRADO, 2000, p.
94).

Considerando o currículo como um instrumento que contempla


a escola como um todo, torna-se imprescindível a compreensão desse
documento como qualificador das ações educativas. Nessa direção tor-
nou-se imperativo desenvolver mecanismos de gestão que possibilitas-
sem a participação efetiva de todos os envolvidos democratizando essa
construção.

A construção participativa e suas implicações práticas

Os processos de construção teórico e práticos nem sempre foram


uma realidade no dia a dia dos professores, pois durante décadas de-
senvolveram seu trabalho a partir de currículos pensados e organizados
por esferas distantes da escola. Em geral as políticas educacionais são
atravessadas por interesses que nem sempre coincidem com os interes-
ses de quem vai desenvolvê-las. Nesse sentido, muitas vezes recai sobre
os professores a tarefa de desenvolver programas que não levam em
conta a realidade escolar e toda a sua diversidade. Morin (2011) deno-
mina os processos que excluem os indivíduos das decisões, como uma
regressão democrática que gera a despolitização e consequente aliena-
ção.
Especialmente em relação ao currículo, esse modo de encami-
nhamento pouco contribui para a qualificação do trabalho docente, pois
não promove a reflexão. Sem reflexão, o trabalho dos professores torna-
se um mero repasse esvaziado de sentidos. Desse modo, torna-se impe-
rativo que se reconheça,

[...] a necessidade de superar o trabalho educativo enquanto contem-


plação, absorção passiva de sistemas explicativos complexos desvin-
culados do movimento da realidade histórico-social, apontando a prá-
xis como fundamento dos projetos pedagógicos. (KUENZER, 2017, p.
350)

Nessa direção ao se pensar num currículo é importante consi-


derar que a construção do conhecimento é um processo que ocorre na
relação teórica- prática, no diálogo e na diversidade de ideias. Desse
modo, a reflexão sobre a realidade empírica, com todas as suas contra-
dições, promove e desencadeia um processo de conhecimento que vai se

334
aprofundando na medida em que os sujeitos vão se construindo como
parte desse processo.
Considerando essa realidade, a proposição de uma base comum
para todo o território brasileiro trouxe algumas incertezas e gerou inú-
meras críticas, pois, num primeiro momento, houve o entendimento de
que mais uma vez os professores estariam fora do processo de constru-
ção e que o currículo viria pronto.
Passado o primeiro impacto, houve uma preocupação em pro-
mover o entendimento de que a base comum tinha como objetivo a cons-
trução de uma referência nacional. Ademais, de certa forma, conside-
rava a diversidade e pluralidade de ideias presentes nas regiões brasi-
leiras, uma vez que se abria a possibilidade de fazer inserções conforme
cada sistema julgasse necessário. Desse modo, apresentava as linhas
gerais, sendo que cabia aos sistemas de ensino construir, a partir da
base, os seus próprios currículos. Assim, o discurso apresentou a ideia
de que,

[...] Era preciso, portanto construir referências nacionais para impul-


sionar mudanças na formação dos alunos, no sentido de enfrentar an-
tigos problemas da educação brasileira e os novos desafios colocados
pela conjuntura mundial e pelas novas características da sociedade –
como a urbanização crescente. Por outro lado, essas referências preci-
savam indicar pontos comuns do processo educativo em todas as regi-
ões e, ao mesmo tempo, respeitar as diversidades regionais, culturais
e políticas existentes (PRADO, 2000, p.95).

Ainda, a BNCC afirma o compromisso com a educação integral


a partir da ideia de uma “[...] construção intencional de processos edu-
cativos que promovam aprendizagens sintonizadas com as necessida-
des, as possibilidades e os interesses dos estudantes e, também, com os
desafios da sociedade contemporânea” (BRASIL, 2017, p. 14).
Entretanto, não basta apresentar o princípio de uma educação
integral, é preciso desenvolver mecanismos que promovam, na forma-
ção continuada, o aprofundamento desse entendimento, pois além de
estar presente esse princípio precisa ser assumido nas práticas cotidia-
nas dos professores, do contrário a BNCC não passará de um instru-
mento de formação aligeirada e precária de mão de obra para fazer
frente às demandas de um mercado também precarizado e uberizado.
Nessa direção, a educação do município de Chapecó, promoveu
várias discussões anteriores à publicação da BNCC com o objetivo de

335
esclarecer alguns pontos, principalmente, o fato de que o currículo da
rede deveria ser adequado a Base, mas poderia conter as especificidades
que se julgasse necessário. Assim os professores puderam entender que,
a partir da publicação, haveria muito trabalho e estudo a ser desenvol-
vido e, somente a partir disso, poderia iniciar a construção do currículo
para a educação infantil no município.
Dadas às circunstâncias históricas e entendendo que os profes-
sores são parte fundamental nesse processo, a secretaria de educação
iniciou o trabalho de construção do currículo considerando a participa-
ção como aspecto imprescindível nesse processo. Assim ponderou-se
que, a qualificação da construção do currículo,

[...] deve derivar da transação, da colaboração, da reflexão e da análise


crítica de documentos oficiais, bem como de um debate constante en-
tre os diferentes sujeitos envolvidos no processo. Desse debate, devem
participar os que respondem pela gestão, tanto em nível sistêmico
quanto escolar, assim como os demais profissionais que, nas escolas e
nas salas de aula, desempenham papel central no planejamento e na
construção do currículo (MOREIRA, 2013, p. 550).

Nesse sentido, partiu-se do pressuposto de que a construção de


um currículo escolar precisava, antes de tudo ouvir os sujeitos envolvi-
dos na ação educativa, conforme os princípios da gestão democrática.
Considerou-se a participação dos professores como elemento aglutina-
dor, imprescindível à efetiva construção do documento num processo
democrático, pois.

[...] A gestão democrática exige a compreensão em profundidade dos


problemas postos pela prática pedagógica. Ela visa romper com a se-
paração entre concepção e execução, entre o pensar e o fazer, entre
teoria e prática. Busca resgatar o controle do processo e do produto do
trabalho pelos educadores (VEIGA, 2002, p.03).

A partir das contribuições de Veiga (2002), fica evidente que to-


dos os envolvidos com o processo pedagógico precisam atuar efetiva-
mente na construção do currículo, pois este é o que embasa sua prática.
Veiga (2002), ainda complementa que a participação coletiva é proposta
pela socialização do poder superando o individualismo, [...] que anula a
dependência de órgãos intermediários que elaboram políticas educacio-
nais das quais a escola é mera executora (p. 4).

336
Considerando o exposto, foi necessário pensar uma organização
que favorecesse a produção do saber, da cultura e do convívio social,
mobilizando os sujeitos em prol da elaboração e reorganização curricu-
lar da educação infantil municipal.
Destarte, os estudos para a construção do currículo da educação
infantil iniciaram-se concomitantemente às discussões sobre a Base
Nacional Comum Curricular – BNCC (2015) e intensificaram-se a par-
tir de sua homologação em 2017. Assim, a partir de 2017 os encontros
para a formação continuada buscaram estabelecer relações entre o cur-
rículo vigente na rede municipal e as proposições da BNCC, garantindo
a todos os professores a oportunidade de analisar, refletir e discutir so-
bre os elementos comuns a esses dois documentos, além de relacionar
possíveis divergências em cada componente curricular.
Segundo os arquivos da secretaria de educação, de 2015 a 2018
aconteceram vários momentos de estudos, sendo que os professores par-
ticiparam do “Dia D – Dia Nacional de Discussão sobre a BNCC” e fo-
ram orientados a contribuir nas plataformas digitais disponibilizadas
pelo MEC. Nesse período as formações abordaram temas sobre os prin-
cípios norteadores e a estrutura do documento base, a linha de tempo
que evidenciou todos os momentos históricos que antecederam a cons-
trução da BNCC, além da parte específica da educação infantil que com-
preende os campos de experiência, os direitos de aprendizagem e desen-
volvimento, além dos objetivos de aprendizagem.
Dando continuidade a esse trabalho, em 2019 se priorizou a pro-
dução do material a ser utilizado pelos professores a partir de 2020.
Essa etapa de estudos e produção demandou uma nova organização,
pois a rede municipal de Chapecó está entre as maiores do estado e tem,
na educação infantil, aproximadamente seiscentos e cinquenta profes-
sores, o que inviabilizaria a presença sistemática de todos que compõem
esse universo.
Segundo Veiga (2002), a participação de representantes no pro-
cesso de tomada de decisões e construção do processo pedagógico evi-
dencia a busca por uma gestão da educação cada vez mais democrática.
A ampla participação fortalece relações e a transparência nas decisões
qualifica e legitima o trabalho educacional.
Por essa razão, definiu-se pela participação presencial por re-
presentatividade por meio de um grupo de trabalho. O critério de esco-

337
lha para os representantes foi o interesse demonstrado pelos professo-
res em participar, sendo que coube a equipe gestora dos Centros de Edu-
cação Infantil Municipais (CEIMs) organizar a seleção respeitando o
número de professores para cada segmento.
Assim criou-se o Grupo de Trabalho (GT), do Currículo com os
Professores da Educação Infantil, constituído por:
● 02 (dois) representantes de gestores;
● 01(um) representante docente de cada CEIM;
● 01(um) representante docente da Pré-escola (anexa a EBM ur-
bana);
● 01(um) representante docente da Pré-escola (EBM do campo);
● 01(um) representante de CEIM indígena.
O grupo de trabalho contou com, aproximadamente, 60 partici-
pantes. É importante salientar que também fizeram parte do grupo de
trabalho, os professores que participaram dos Seminários Estaduais
para a construção do currículo estadual e a equipe de articulação peda-
gógica da educação infantil.
A organização do trabalho com os grupos considerou a partici-
pação efetiva na construção do conhecimento desenvolvendo os objeti-
vos de desenvolvimento e aprendizagem considerando a especificidade
da Educação Infantil.
Seguindo essa lógica, o trabalho com os GTs procurou incenti-
var o aprofundamento sobre os aspectos organizacionais, estruturais,
teóricos e pedagógicos apresentados na BNCC e a sua articulação com
o currículo vigente da rede municipal. Também houve a preocupação de
promover momentos para a participação de todos os professores nesse
processo de construção dos currículos, através de estudos à distância,
mediados pelo representante de sua instituição e também um encontro
onde puderam analisar e avaliar apreciando o que havia sido constru-
ído.
Ainda, para se alcançar os objetivos propostos tornou-se impres-
cindível que se compreendesse a importância teórica e prática desse do-
cumento. Nessa direção, os participantes dos GTs atuaram como mul-
tiplicadores com a função de promover debates e aprofundamento de
estudos de textos relativos ao currículo. Também foram discutidos na
escola os modos de organização do documento a fim de levantar dúvidas
e acolher sugestões. Após a apreciação de todos os professores o docu-
mento foi encaminhado ao Conselho Municipal de Educação (COMED)

338
onde passou pela análise e aprovação dos conselheiros e oficializado
como Currículo Base da Educação Infantil Municipal de Educação.
A gestão democrática propõe uma mudança na forma de conce-
ber e gerir a educação de modo a torná-la mais emancipatória ao per-
mitir escolhas e autonomia aos sujeitos. Nesse sentido torna-se com-
plexa na medida em toda a mudança gera desconforto e insegurança.
Ademais, os processos democráticos demandam maiores responsabili-
dades, o que exige maior reflexão. No contexto trazido por Saviani
(2000) a reflexão é entendida como “um pensamento consciente de si
mesmo, capaz de se avaliar, de verificar o grau de adequação que man-
tém com os dados objetivos, de medir-se com o real” (p. 20). Assim a
educação apresenta-se como genes para os sujeitos refletirem e exerci-
tarem a democracia.
Diante disso, o fazer participativo constituído pelo respeito dos
princípios democráticos valoriza o conhecimento dos profissionais e a
promove a construção de uma cultura de participação de todos os sujei-
tos diretamente ligados à educação.

Mãos à obra: a criação do documento base

Os desafios atuais demandam a democratização dos processos


educacionais mobilizando a participação dos sujeitos envolvidos tanto
no âmbito escolar como na produção de documentos que subsidiam a
organização da educação, exigindo possibilidades reais para sua mate-
rialização. Tais desafios recaem sobre a gestão que, nesse contexto ne-
cessita reinventar-se. A importância da gestão democrática neste con-
texto está em desconstruir paradigmas acerca do conceito de gestão.
Entretanto, Souza (2009), esclarece que existem vários conceitos para
a gestão democrática e indica que para garanti-la não basta haver ins-
trumentos legais, pois esta “[...] só se confirma quando as pessoas do
universo escolar tomam a democracia e o diálogo como princípio não
apenas das suas relações na escola, mas como um fundamento da vida,
em todas as esferas da sociedade” (p.137).
Frente às diversas formas de entender e explicar a gestão de-
mocrática, buscamos em Souza (2009) o amparo teórico para este tra-
balho quando este expõe que,

339
A gestão democrática é aqui compreendida, então, como um processo
político no qual as pessoas que atuam na/sobre a escola identificam
problemas, discutem, deliberam e planejam, encaminham, acompa-
nham, controlam e avaliam o conjunto das ações voltadas ao desen-
volvimento da própria escola na busca da solução daqueles problemas
(Souza, 2009, p. 125).

O entendimento de Souza (2009) apresenta a dimensão da ges-


tão democrática para além das participações burocratizadas e normati-
zadas em conselhos ou associação de pais. Percebe-se, na prática, que
esse ideal de gestão democrática ainda não se materializou por com-
pleto nas redes de ensino, mas é um ideal que merece ser perseguido e
consolidado.
Nesse sentido a gestão democrática do processo de reorganiza-
ção curricular na Rede Municipal propôs um movimento coordenado
com estratégias e ações cuidadosamente pensadas para que se chegasse
ao objetivo proposto. A partir da apropriação sobre os pressupostos teó-
ricos que embasaram a BNCC, foram pensadas formas de estruturação
do documento final. Importante ressaltar que a estrutura do docu-
mento foi amplamente discutida e analisada pelos GTs entendendo-se
que, a compreensão da dinâmica da organização dos quadros contribui
sobremaneira para a sua utilização prática.
Nesse aspecto foram elaborados quadros específicos nos quais
foram organizados os campos de experiência e os grupos etários, se-
guindo a lógica proposta na BNCC conforme se observa:

340
Quadro 1: Matriz Curricular

Etapa: Educação Infantil Regime: Anual Turno: Diurno

GRUPOS ETÁRIOS
Bebês Crianças Bem Crianças Pequenas
EIXOS CURRICULARES (04 meses Pequenas (4 a 5 anos)
a 2 anos) (2 a 3 anos)
Campos O EU, O OUTRO E O X X X
de Expe- NÓS
riências CORPO, GESTOS E X X X
MOVIMENTOS
TRAÇOS, SONS, CO- X X X
RES E FORMAS
ESCUTA, FALA, PEN- X X X
SAMENTO E IMAGI-
NAÇÃO
ESPAÇOS, TEMPOS, X X X
QUANTIDADES, RE-
LAÇÕES E TRANS-
FORMAÇÕES
DIAS LETIVOS ANUAIS: Mínimo 200 dias letivos
Fonte: Chapecó, 2019.

Quadro 2: Quadros Curriculares da Educação Infantil de Chapecó


GRUPO ETÁRIO:
CAMPO DE EXPERIÊNCIA:
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM E SABERES E CONHECIMENTOS
DESENVOLVIMENTO

INDICAÇÕES METODOLÓGICAS

Fonte: Chapecó, 2019.

A nova nomenclatura79 dos grupos etários gerou algumas dis-


cussões em decorrência da mudança. Essas discussões, no entanto, ser-
viram para aprofundar o entendimento sobre cada fase e as suas espe-
cificidades. Entender as peculiaridades de cada etapa e compreender as

79 A nomenclatura Bebês, Crianças bem Pequenas e Crianças Pequenas, utilizada pela


BNCC, foi adotada pelo documento Práticas cotidianas na Educação Infantil: bases para
a reflexão sobre as orientações curriculares (Brasil, 2009).

341
relações entre o desenvolvimento e a aprendizagem facilita o trabalho,
pois

Os quadros curriculares estão organizados por campo de experiências


e grupos etários, com duas colunas: uma com objetivos de aprendiza-
gem e desenvolvimento e outra que identifica os saberes e conheci-
mentos essenciais a serem trabalhados para atingir os objetivos, e na
sequência aparecem às indicações metodológicas. Essa organização
busca garantir o direito da criança ao conhecimento sistematizado,
enfatizando a intencionalidade no planejamento docente (CURRÍ-
CULO BASE, CHAPECÓ, 2019, p. 63).

Percebe-se que na organização geral do documento, houve uma


preocupação em explicitar a ideia de que um currículo vai muito além
da indicação de conhecimentos e metodologias a serem desenvolvidas,
ele deve, sobretudo, propor uma direção, os conceitos, às intenções e os
objetivos de todo o trabalho pedagógico realizado. Trata-se de um docu-
mento robusto que contempla todos os segmentos envolvidos nas práti-
cas educativas, portanto deve conter elementos explicativos de cada
item para que se possa entender a articulação entre eles.
Essa etapa demandou maior tempo e mais aprofundamento nos
temas abordados, pois houve a necessidade de uma tomada de decisão:
quais os teóricos dariam conta de fundamentar as proposições do grupo?
De que forma articular os textos entre si? Como explicitar a relação dos
textos com os quadros propostos? Estas foram algumas das indagações
que permearam todo o trabalho de construção e, para se chegar a um
consenso, houve muitas reflexões e debates que, sem dúvida enriquece-
ram o trabalho.
Nessa direção os textos foram produzidos e discutidos com o GT,
onde puderam inserir sugestões e alterar, caso necessário, com temas
referentes aos aspectos fundamentais do currículo. Sendo que o docu-
mento irá subsidiar o planejamento docente, os textos consideram o pro-
tagonismo infantil, que busca a garantia do direito das crianças a uma
infância com experiências significativas para seu desenvolvimento e
aprendizagem.
Cada texto procurou trazer elementos teóricos que buscaram
contextualizar o universo da Educação Infantil, contribuindo para o en-
tendimento de que o currículo contempla aspectos que vão muito além
da lista de saberes e conhecimentos a serem desenvolvidos ao longo de
cada etapa.

342
Quadro 3
Estrutura do Currículo Base da Educação Infantil Municipal de Cha-
pecó SC
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
1 ASPECTOS HISTÓRICOS DA EDUCAÇÃO INFANTIL EM CHAPECÓ
2 CONCEPÇÕES DA EDUCAÇÃO INFANTIL DE CHAPECÓ/SC
2.1 CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA
2.2 PRINCÍPIOS BÁSICOS E A BNCC
2.3 EIXOS ESTRUTURANTES: INTERAÇÕES E BRINCADEIRA
2.4 CRIANÇA E A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
2.5 ORGANIZAÇÃO DO TEMPO E DO ESPAÇO NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL
2.6 CUIDAR E EDUCAR
2.7 RELAÇÕES INSTITUIÇÃO EDUCATIVA – FAMÍLIA – COMUNIDADE
3. EDUCAÇÃO PARA TODOS: A DIVERSIDADE COMO PRINCÍPIO FORMA-
TIVO
3.1 EDUCAÇÃO ESPECIAL ESCOLAR
3.2 EDUCAÇÃO INSTITUCIONAL INDÍGENA
3.3 EDUCAÇÃO NO CAMPO
4 PAPEL DO PROFESSOR DA EDUCAÇÃO INFANTIL
5 PLANEJAMENTO COMO ALIADO DO PROCESSO DE ENSINO
6 AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO NA EDUCA-
ÇÃO INFANTIL
7 ARTICULAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO INFANTIL E ENSINO FUNDAMEN-
TAL
8 ORGANIZAÇÃO CURRICULAR
8.1 A ORGANIZAÇÃO POR CAMPOS DE EXPERIÊNCIAS
8.2 ORGANIZAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO INFANTIL MUNICIPAL
8.3 MATRIZ CURRICULAR
8.3.1 Dinâmica do Curricular e de Funcionamento da Educação Infantil
8.4 CAMPOS DE EXPERIÊNCIA
8.4.1 O eu, o outro e o nós
8.4.2 Corpo, gestos e movimento.
8.4.3 Traços, sons, cores e formas.
8.4.4 Escuta, fala, pensamento e imaginação
8.4. 5 Espaço, tempos, quantidades, relações e transformações.
8.5 ORGANIZADOR CURRICULAR POR GRUPOS ETÁRIOS E CAMPOS DE EXPERIÊNCIAS
8.6 QUADROS CURRICULARES DA EDUCAÇÃO INFANTIL DE CHAPECÓ
8.6.1 Bebês
8.6.2 Crianças Bem Pequenas
8.6.3 Crianças Pequenas
REFERÊNCIAS
Fonte: Quadro organizado pelas autoras com base no documento.

343
Desse modo, o documento produzido evidenciou a intencionali-
dade em se constituir como um instrumento importante e fundamental
ao trabalho docente.

CONSIDERAÇÕES

A partir do exposto podemos inferir que a secretaria municipal


de educação se desafiou ao propor um trabalho participativo, pautado
nos princípios da gestão democrática.
O início do trabalho gerou inúmeras incertezas sendo que o ca-
minho mostrou-se mais complexo em alguns momentos, pois a constru-
ção coletiva tende a gerar expectativas e inquietações. Controlar a an-
siedade e entender os diferentes pontos de vista foi um trabalho que
exigiu muita reflexão, diálogo e sabedoria dos sujeitos envolvidos no
processo.
Por outro lado, a proposição de algo novo exigiu muito conheci-
mento para argumentar, expor e desenvolver ações para a materializa-
ção de um currículo. Nesse aspecto, a gestão democrática do processo
foi fundamental ao encorajamento, pois sob esse princípio, nenhum dos
sujeitos se sobrepõe ao outro, todos estão em igualdade de condições e
todas as contribuições são importantes.
O princípio da participação democrática também proporcionou
maior colaboração e um sentimento de pertencimento que fortaleceu os
professores da educação infantil. Embora a participação mais intensa
não se evidenciasse em todos, notou-se, ao longo do trabalho, que a mai-
oria dos professores estava motivada em aprofundar os temas relativos
ao currículo, demonstrando o apreço pelas pesquisas, propuseram suas
ideias fundamentadas em grandes autores e em bases científicas.
A participação dos professores nos debates, suas sugestões e o
aprofundamento dos conhecimentos acerca das novas diretrizes, além
de qualificar o trabalho, contribuiu para a legitimação do documento.
Além disso, a participação efetiva no processo de construção do
currículo permitiu aos professores conhecer a dinâmica organizacional
da construção do currículo e favoreceu a sua utilização prática. Também
foi possível perceber que a produção do documento provocou o aprofun-
damento intelectual e, consequentemente, a qualificação da formação
continuada oferecida nesta rede de ensino.

344
Consideramos que ao atender aos princípios da gestão democrá-
tica esse movimento proporcionou aos professores o papel de protago-
nistas, uma vez que participaram ativamente de todo o processo.
É devido reconhecer que esse movimento foi apenas uma ação
na tentativa de materializar os princípios democráticos. A gestão demo-
crática apresenta um leque de mecanismos e configurações, mas perce-
beu-se por meio das avaliações que as formas de encaminhamento do
processo, impactaram os professores e legitimaram esse documento
como uma construção coletiva.
Esperamos que esse trabalho contribua no desenvolvimento de
outras ações que favoreçam a participação efetiva. Respeitar as deman-
das e ouvir a voz dos professores é imprescindível à construção de uma
educação democrática, emancipatória e de qualidade.

345
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