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2
Enfoque histórico-cultural e
aprendizagem desenvolvimental:
contribuições na perspectiva do Gepedi.
Livro I
Série Ensino Desenvolvimental
Volume 14
3
Direção Editorial
Willames Frank da Silva Nascimento
4
Coleção Biblioteca Psicopedagógica e Didática
Conselho Editorial
Ms. Achilles Delari Junior
Pesquisador Aposentado | Brasil
5
Dra. Maria Aparecida Mello
Universidade Federal de São Carlos | Brasil
Série
Ensino Desenvolvimental
Direção
Dra. Andréa Maturano Longarezi e
Dr. Roberto Valdés Puentes
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Roberto Valdés Puentes
Andréa Maturano Longarezi
Enfoque histórico-cultural e
aprendizagem desenvolvimental:
contribuições na perspectiva do Gepedi
Livro I
Série Ensino Desenvolvimental
Volume 14
Colaboradores:
Bianca Carvalho Ferola
Cecília Garcia Coelho Cardoso
Cláudia Silva de Souza
Ewellyne Suely de Lima Lopes
Flávia Pimenta de Souza Carcanholo
Grasiela Maria de Sousa Coelho
Ione Mendes Silva Ferreira
José Bartolomeu Jocene Marra
Leandro Montandon de Araújo Souza
Lucielle Farias Arantes
Naíma de Paula Salgado Chaves
Patrícia Lopes Jorge Franco
Paula Alves Prudente Amorim
Ruben de Oliveira Nascimento
Waleska Dayse Dias de Sousa
7
DIREÇÃO EDITORIAL: Willames Frank
DIAGRAMAÇÃO: Willames Frank
S660p
PUENTES, Roberto Valdés; LONGAREZI, Andréa Maturano,
ISBN: 978-65-88994-48-1
DOI: 10.29327/545065
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 12
Roberto Váldes Puesntes
Andréa Maturano Longarezi
Capítulo 1 17
Pesquisas histórico-culturais e desenvolvimentais realizadas no âmbito do
GEPEDI: estado da arte
Roberto Valdés Puentes
Andréa Maturano Longarezi
PARTE I 40
CONTRIBUIÇÕES DO GEPEDI NA PERSPECTIVA DO
ENFOQUE HISTÓRICO-CULTURAL
Capítulo 2 41
O termo mediação em textos de Lev S. Vigotski: caracterização, enfoques
e implicações na educação
Ruben de Oliveira Nascimento
Capítulo 3 79
A constituição humana pela unidade personalidade-psique-atividade:
contribuições de S. L. Rubinstein para o campo educacional
Leandro Montandon de Araújo Souza
Capítulo 4 122
Contribuições de L. I. Bozhovich para a compreensão da formação e
desenvolvimento da personalidade: Um estudo introdutório
Ione Mendes Silva Ferreira
Andréa Maturano Longarezi
Capítulo 5 154
A psicologia histórico-cultural soviética (1917-1991): Problemas de
paternidade associados as obras e autores importantes
Roberto Valdés Puentes
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Capítulo 6 176
Docência com adolescentes: contribuições para um ensino
desenvolvimental
Cláudia Silva de Souza
Capítulo 7 199
Os princípios didáticos na perspectiva marxista da educação: uma análise à
luz da teoria da subjetividade
Naíma de Paula Salgado Chaves
Roberto Valdés Puentes
PARTE II 235
CONTRIBUIÇÕES DO GEPEDI NA PERSPECTIVA DA TEORIA
DA APRENDIZAGEM DESENVOLVIMENTAL
Capítulo 8 236
A periodização do desenvolvimento e a teoria da atividade de estudo de
D. B. Elkonin
Ewellyne S. L. Lopes
Capítulo 9 267
V. V. Davidov: contribuições à teoria da atividade de estudo 267
Cecília Garcia Coelho Cardoso
Roberto Valdés Puentes
Capítulo 10 311
Aportes de V. V. Repkin para o desenvolvimento da teoria da atividade de
estudo (1963 – 2019)
Paula Alves Prudente Amorim
Roberto Valdés Puentes
Capítulo 11 345
Princípios didáticos, orientações metodológicas e desenvolvimento
integral do estudante: contribuições de L. V. Zankov
Bianca Carvalho Ferola
Andréa Maturano Longarezi
Capítulo 12 381
Obutchénie por unidades: uma concepção histórico-cultural de didática
desenvolvimental
Andréa Maturano Longarezi
10
Capítulo 13 415
A aprendizagem criativa do sujeito: um estudo à luz da Didática
Desenvolvimental e da Teoria da Subjetividade
Flávia Pimenta de Souza Carcanholo
Capítulo 14 451
Por uma Didática Desenvolvimental da Subjetividade no ensino de
Música na escola
Lucielle Farias Arantes
Capítulo 15 487
Formação didática de professores “em” e “para” uma abordagem
desenvolvimental: um olhar a partir dos contextos soviético e brasileiro
Andréa Maturano Longarezi
Capítulo 16 522
Desenvolvimento dos motivos formadores de sentido de professores e
estudantes em conceitos matemáticos no ensino fundamental
Patrícia Lopes Jorge Franco
Capítulo 17 561
Colaboração e criatividade na formação para o desenvolvimento de
professores universitários
Walêska Dayse Dias de Sousa
Capítulo 18 598
Trabalho e docência universitária: a formação contínua como processo
político-pedagógico-psicológico de produção de conhecimento
Grasiela Coelho
Capítulo 19 630
A formação do professor de/em línguas em Moçambique pela estratégia
da intervenção didático-formativa: das abstrações à síntese possível para a
didática do Português
José Bartolomeu Jocene Marra
11
APRESENTAÇÃO
12
Subjetividade”, de Naíma de Paula Salgado Chaves e Roberto Valdés
Puentes.
Integram a segunda parte, Contribuições do Gepedi na perspectiva da
teoria da aprendizagem desenvolvimental, os textos “A periodização do
desenvolvimento e a teoria da atividade de estudo: uma análise das
contribuições de D. B. Elkonin à luz da teoria da subjetividade”, de
Ewellyne Suely de Lima Lopes; “Teoria da atividade de estudo:
contribuições de V. V. Davidov”, de Cecília Garcia Coelho Cardoso e
Roberto Valdés Puentes “Teoria da atividade de estudo: contribuições de
V. V. Repkin”, de Paula Alves Prudente Amorim e Roberto Valdés
Puentes; “Princípios didáticos, orientações metodológicas e
desenvolvimento integral do estudante: contribuições de L. V. Zankov”,
de Bianca Carvalho Ferola e Andréa Maturano Longarezi; “Obutchénie por
unidades: uma concepção histórico-cultural de didática desenvolvimental”,
de Andréa Maturano Longarezi; “A aprendizagem criativa do sujeito: um
estudo à luz da Didática Desenvolvimental e da Teoria da Subjetividade”,
de Flávia Pimenta de Souza Carcanholo; “Por uma didática
desenvolvimental da subjetividade no ensino de Música na escola”, de
Lucielle Farias Arantes.
Por fim, a terceira parte, Contribuições do Gepedi para a formação de
professores na perspectiva desenvolvimental, a integram a “Formação didática de
professores “em” e “para” uma abordagem desenvolvimental: um olhar a
partir dos contextos soviético e brasileiro”, de Andréa Maturano
Longarezi; “Desenvolvimento dos motivos formadores de sentido de
professores e estudantes em conceitos matemáticos no Ensino
Fundamental”, de Patrícia Lopes Jorge Franco; “Colaboração e
criatividade na formação para o desenvolvimento de professores
universitários”, de Waleska Dayse Dias de Sousa; “Trabalho e docência
universitária: a formação contínua como processo político-pedagógico-
psicológico de produção de conhecimento”, de Grasiela Maria de Sousa
Coelho; “A formação do professor de/em línguas em Moçambique pela
estratégia da intervenção didático-formativa: das abstrações à síntese
possível para a didática do Português.”, de José Bartolomeu Jocene Marra.
O leitor terá acesso imediatamente ao conteúdo na íntegra de cada
um dos capítulos que aqui se anunciam, por esse motivo não pretendemos
adiantar detalhes ao longo da apresentação. Apenas desejamos oferecer
13
uma visão geral das partes mostrando a unidade interna que as constitui,
bem como a relação intrínseca que existe entre elas. A primeira parte
aborda alguns fundamentos histórico-culturais que dão sustentação às
teorias da aprendizagem desenvolvimental e da atividade de estudo, bem
como à formação de professores nessas perspectivas, a saber, o conceito
de mediação, a unidade personalidade-psique-atividade, o período da
adolescência e os princípios didáticos marxistas, com base na obra de
renomados autores como L. S. Vigotski e A. N. Leontiev, mas,
sobretudo, à luz de referenciais que são pouco usados no Brasil, tais
como, S. L. Rubinstein, L. I. Bozhovich e Fernando González Rey
(Albertina Mintáns Martínez e colaboradores). A essas questões somam-se
os desafios que enfrenta a academia brasileira em relação à sistemática
dificuldade para acessar obras escritas em idiomas estranhos algumas das
quais, inclusive, enfrentam problemas de paternidade.
A segunda parte reúne estudos teóricos e de intervenção
relacionados com as teses mais relevantes obtidas no âmbito da
aprendizagem desenvolvimental em geral, bem como da atividade de
estudo em particular, levando em consideração os aportes produzidos no
interior dos sistemas didáticos desenvolvimentais. Os quatro estudos
teóricos procuraram sistematizar e analisar, inclusive a partir de outros
referenciais (Teoria da Subjetividade), as contribuições mais relevantes dos
principais representantes dos sistemas didáticos Zankoviano e Elkonin-
Davidov-Repkin. As três pesquisas de intervenção, por sua vez, tiveram
como objetivo conceber novas formas de organização da aprendizagem
desenvolvimental. Uma delas com uma proposta de educação dialética
desenvolvimental, sob a base da obutchénie por unidades, com foco para as
unidades conteúdo-forma, imitação-criação e ruptura-desenvolvimento.
As outras duas, com proposições didáticas inovadoras para a
aprendizagem da Música e da Matemática em escolas de aplicação em
diálogo com a Teoria da Subjetividade a fim de superar limitações da
atividade de estudo decorrentes de uma concepção de aprendizagem
desenvolvimental na perspectiva do enfoque histórico-cultural da
atividade.
A terceira parte aborda a formação de professores, considerado
um dos temas mais relevantes e frágeis no interior da perspectiva
histórico-cultural e da teoria da aprendizagem desenvolvimental. O
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enfoque é realizado, essencialmente, do ponto de vista histórico-cultural
como fica manifesto pelas referências que dão sustentação aos estudos. O
capítulo que abre a terceira parte, traz um estudo teórico que sintetiza os
fundamentos da obutchénie por unidades que sustentam as pesquisas de
campo que encerram o livro. A proposição inicial consiste em uma
perspectiva de formação profissional docente pautada na organização
didática pela via de unidades dialéticas, movimentos e ações didáticas que
impulsionam o desenvolvimento integral de professores, mediado pelo
conhecimento científico produzido sobre a docência e formado pela
unidade nuclear que orienta toda essa proposição: a unidade conteúdo-
forma. Os demais capítulos contemplam quatro pesquisas de intervenção
didático-formativas de professores, integradas pelas proposições didáticas
expressas no capítulo que abre a seção, realizadas em níveis diferentes
(educação básica e ensino superior). No conjunto, os trabalhos abordam o
desenvolvimento dos motivos, os processos de imitação-criação, o papel
da categoria filosófica marxista “contradição” e da categoria psicológica
“liberdade-felicidade” no processo de formação continua, bem como o
desenvolvimento profissional de professores de língua na educação
superior em Moçambique.
O livro reúne a produção e as pesquisas que temos desenvolvido,
juntamente com o grupo de estudos, sistematizando os resultados de
investigações realizadas a partir de uma mostra representativa das
dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas entre 2014 e
2021, com o qual o leitor interessado poderá perceber, por um lado,
aquilo que tem sido objeto de preocupação no grupo nos últimos dez
anos; por outro, as escolhas epistemológicas, teóricas e metodológicas
adotadas para abordar esse objeto, com o qual é possível perceber o que
diferencia e aproxima o Gepedi dos demais grupos de pesquisas
brasileiros vinculados a essas três temáticas.
O Gepedi, para ser grato a quem têm ajudado nessa árdua
caminhada, gostaria de retribuir aos colegas e grupos de pesquisa que ao
longo desses quatorze anos acompanharam a nossa trajetória, nos
apoiaram e confiaram na franqueza e honestidade de nosso trabalho.
Mencionar cada um seria impossível, mas divulgamos uma lista no nome
dos quais agradecemos a todas e todos por essa parceria de mais de uma
década. Nosso reconhecimento sincero, em primeiro lugar, a Orlando
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Fernández Aquino (Cuba/Brasil) e Fabiana Fiorezi de Marco (Brasil), com
quem temos dividido várias ações do grupo ao longo de toda sua
existência, bem como a Vladimir Vladimirovich Repkin (Ucrânia),
Fernando González Rey (Cuba/Brasil), José Carlos Libâneo (Brasil),
Tatiana Akhutina (Rússia), Michel Roth (Canadá), Alberto Labarrere
(Cuba/Chile), Yulia Solovieva (Rússia/México), Natálya V. Repkina
(Ucrânia), Manoel Oriosvaldo de Moura (Brasil), Lyubomyr Sherstyuk
(Ucrânia), José Zilberstein Toruncha (Cuba/México), Vladimir P.
Zinchenko (Rússia), Boris G. Mesheriakov (Rússia), Dmitry Leontiev
(Rússia), Raquel Marra Madeira Freitas (Brasil), Josélia Euzébio da Rosa
(Brasil), Ademir Damázio (Brasil), Gloria Fariñas León (Cuba/México),
Guillermo Arias Beatón (Cuba) e Isauro Beltrán Núñez (Cuba/Brasil).
Nosso agradecimento também a todos os alunos da graduação e
pós-graduação que confiaram em nós, procuraram e cursaram nossas
disciplinas, afiliaram-se ao Gepedi, desejaram ser nossos orientandos e
trilharam seu próprio caminho de pesquisa, efetuando contribuições
importantes na área a partir do tratamento de objetos de estudo
específicos. Agradecimento para as centenas de estudantes, professores,
pesquisadores brasileiros e interessados em geral que têm nos
acompanhado ao longo desses dez anos nas quadro edições do Colóquio
Internacional Ensino Desenvolvimental. Por fim, nossa admiração,
respeito e agradecimento também para os colegas que confiaram no
periódico do grupo Obutchénie. Revista de Didática e Psicologia
Pedagógica, que, por seu tempo de existência, ainda não está qualificado
pela Capes e, mesmo assim, publicaram resultados de suas pesquisas e/ou
organizaram edições especiais, sob a forma de dossiês.
Desejamos a todas e todos uma ótima leitura e um momento
oportuno de reflexão, aprofundamento e crítica consequente.
16
Capítulo 1
17
acesso às suas obras na segunda metade dos anos de 1980, estando
disponível hoje uma vasta bibliografia. São mais raros, todavia,
estudos relacionados com a Teoria Histórico-cultural da Atividade
e, mais ainda, em relação a Davydov (LIBÂNEO, 2004, p. 10).
18
L. V. Zankov (1901-1977), N. F. Talizina (1923-2019) e V. V. Repkin
(1927), no âmbito da aprendizagem desenvolvimental.
Todas essas pesquisas no contexto da psicologia histórico-cultural
(da atividade, da personalidade e da subjetividade), bem como da teoria da
aprendizagem desenvolvimental (sistema Elkonin-Davidov-Repkin,
sistema Zankov e sistema Galperin-Talizina) só passaram a ter um lugar
assegurado no campo acadêmico educacional, mesmo que discreto se
comparadas com aquelas realizadas a partir de outras perspectivas
teóricas, há pouco tempo. Libâneo (2004) ressalta, no campo do ensino,
os trabalhos de Manoel Oriosvaldo de Moura, orientandos e seguidores
(MOURA, 1998, 2000, 2002, 2003, 2016; MOURA; ARAUJO; SERRÃO,
2019; CEDRO; MORETTI; MORAES, 2019; ROSA; DAMAZIO;
ARAUJO; ASBAHR; MOURA; SERRÃO; EUZEBIO, 2013; SFORNI,
2003), além dos trabalhos de Duarte (1996, 2000, 2003), centrados em
aspectos filosóficos e epistemológicos da teoria histórico-cultural. À esses
destacamos também os estudos da orientanda e seguidora de Newton
Duarte, Lígia Márcia Martins e seus orientandos (MARTINS, 2008, 2013;
MARTINS; ABRANTES, 2016; DANGIO; MARTINS, 2016;
GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019), os do próprio José Carlos
Libâneo com Raquel M. M. Freitas (LIBÂNEO, 2004, 2016; LIBÂNEO;
FREITAS, 2013, 2018; FREITAS; LIBÂNEO, 2019), os de Nereide
Saviani (2012),4 de Sandra Valéria Limonta Rosa (ROSA; SYLVIO, 2016;
FREITAS; ROSA, 2015), de Suely Amaral Mello (MELLO, 2010a,b,c,
2015), de Isauro Beltrán Núñez, colaboradores e orientandos (NÚÑEZ;
MELO; GONÇALVES, 2018; NÚÑEZ; RAMALHO, 2017;
GONÇALVES; NÚÑEZ, 2017), de Héctor José García Mendoza, Oscar
Tintorer Delgado e orientandos (MENDOZA; DELGADO, 2018, 2020;
SILVA OLIVEIRA; MENDOZA, 2020) e os de Orlando Fernández
Aquino e orientandos (AQUINO; RODRIGUEZ, 2020; NETO;
AQUINO, 2020; LOPES; AQUINO, 2018).
19
De um modo geral, a influência das pesquisas nas formas de
funcionamento das escolas e nas diretrizes nacionais para a formação de
professores tem sido bastante limitada. Sobre esse aspecto, com foco na
trajetória desse pensamento no Brasil e seu impacto no âmbito das
políticas públicas educacionais, Libâneo (2017) já sinalizou:
20
elaboração de outro texto permitiu identificar apenas 31 produções sobre,
ou relacionadas, com Teoria da Atividade de Estudo. Eventos (Endipe e
Anped) e periódicos (Revista Brasileira de Educação, Educação e
Sociedade, Educação e Pesquisa) nacionais importantes destacam-se por
ser um reflexo da baixa expressividade desse tipo de pesquisa do ponto de
vista quantitativo (PUENTES, 2019).
Do ponto de vista qualitativo, pelo contrário, foi preciso
reconhecer a consistência teórica que têm atingido esses trabalhos e seu
incremento significativo e paulatino nos últimos quinze anos. Em relação
à teoria da atividade de estudo cumpre ressaltar os trabalhos de diversos
grupos de pesquisa, por exemplo, Implicações Pedagógicas da Teoria
Histórico-Cultural da Unesp/Marília (FILHO, 2018; MILLER, 2017,
2018; CLARINDO; MILLER, 2018; CLARINDO; MILLER, 2016),
Teorias da Educação e Processos Pedagógicos da PUC/GO (LIBÂNEO,
2004, 2014, 2016; LIBÂNEO; FREITAS, 2017; FREITAS, 2016),
Trabalho Docente e Educação Escolar da UFG - TRABEDUC (ROSA;
SYLVIO, 2016), Didática Desenvolvimental e Profissionalização Docente
da UFU/MG (PUENTES, 2015, 2017a; PUENTES; AMORIM;
CARDOSO, 2017; PUENTES; AMORIM; CARDOSO, 2018;
PUENTES; LONGAREZI, 2019b; LONGAREZI, 2019a; b; c; 2020a;
b), Atividade Pedagógica da USP/SP (MEDEIROS; SFORNI, 2016;
MOURA, 2017; ROSA; MATOS, 2018; ROSA; DAMÁZIO, 2016;
ASBAHR, 2016), Instrução, Desenvolvimento e Educação da Uniube
(AQUINO; CUNHA, 2015) e A perspectiva sócio histórica cultural e da
atividade e o ensino-aprendizagem de língua estrangeira da USP
(FERREIRA, 2012, 2016).
Da produção sobre teoria da atividade de estudo realizada no
Brasil sobressaíram em 2019, pelo menos, três aspectos. Em primeiro
lugar, uma acentuada concentração das pesquisas no campo das didáticas
específicas, especialmente da Matemática, sem ignorar que começam a
emergir estudos sobre a aprendizagem em outras áreas, como por
exemplo, língua inglesa, geografia, educação física. Em segundo lugar, a
natureza predominantemente descritiva dos trabalhos efetuados na
perspectiva da didática geral. Em terceiro lugar, o número ainda reduzido
de pesquisas do período soviético ao qual o pesquisador brasileiro tem
acesso.
21
Para que se tenha uma ideia, nos últimos quase trinta anos apenas
13 obras ou trabalhos sobre atividade de estudo, elaborados por autores
do período soviético, tinham sido referenciados na produção brasileira
sobre essa temática. Isso significa que, independentemente do aumento
significativo das pesquisas no âmbito nacional, elas continuam a trabalhar
sobre a base de um número reduzido de fontes originais, selecionadas de
maneira aleatória e vinculadas, sobretudo, com as fases iniciais de
desenvolvimento da teoria. Por outro lado, observa-se uma marcada
influência de estudos realizados por membros do grupo de Moscou (o que
lhe concede um modo particularmente moscovita de perceber a temática)
e forte concentração em apenas alguns autores. Todas as referências
identificadas estão vinculadas a, particularmente, cinco autores: D. B.
Elkonin (1 trabalho), V. V. Davidov (10 trabalhos), V. Rubtsov (1
trabalho), A. K. Márkova (1 trabalho em coautoria com Davidov) e V. V.
Repkin (1 trabalho). Quatro dos cinco autores pertencem ao grupo de
Moscou e mais de 75% de toda essa produção corresponde apenas a um
deles: V. V. Davidov (PUENTES, 2019).
Sendo assim, a visão que se tinha no Brasil até quatro ou cinco
anos atrás a respeito da teoria da atividade de estudo era,
fundamentalmente, parcial, moscovita e davidoviana. Para agravar a
situação, soma-se a enorme dificuldade que enfrenta o pesquisador
brasileiro para acessar essa produção científica em língua russa, o que
obriga a consultar traduções efetuadas muitas vezes por nativos que
dominam o português, mas que desconhecem a teoria ou por estrangeiros
que manifestam um domínio da teoria, mas que por algum motivo fizeram
cortes drásticos e comprometedores em algumas das obras e trabalhos por
eles traduzidos.5
Nesse contexto é que o Gepedi se insere, em 2011, com a
publicação de duas obras referências, a primeira, intitulada Panorama da
didática: ensino, prática e pesquisa (Papirus, 2011), organizada por Andréa
22
Maturano Longarezi e Roberto Valdés Puentes; a segunda, Trabalho didático
na universidade: estratégia de formação (Alínea, 2011), da autoria de Orlando
Fernández Aquino e Roberto Valdés Puentes. Naquela, o capítulo inicial,
de autoria de José Carlos Libâneo analisa os dados de sua pesquisa tendo
como referência teórica, entre outras, o enfoque histórico-cultural, com L.
S. Vigotski e, a teoria da aprendizagem desenvolvimental, com Davydov e
Márkova (1982). No segundo livro, a fundamentação teórica que sustenta
o trabalho metodológico como conteúdo da estratégia de
desenvolvimento didático dos professores universitários que se propõe é,
na sua essência, histórico-cultural, colocada em manifesto pelo emprego
do pensamento de L. S. Vigotski, A. N. Leontiev e de vários autores
cubanos formados dentro dessa perspectiva, inclusive por universidades
soviéticas.
A partir desse momento, todo o trabalho de pesquisa, docência,
orientação e publicação realizado no interior do Gepedi, esteve orientado
de maneira crescente, sistemática e intensa nas perspectivas histórico-
cultural, da teoria da aprendizagem desenvolvimental e da atividade de
estudo. Como fruto desse trabalho nasceram o Colóquio Internacional
Ensino Desenvolvimental (2012), a Coleção Biblioteca Psicopedagógica e
Didática (2012) e o periódico científico Obutchénie. Revista de Didática e
Psicologia Pedagógica (2017)6. Ao longo desses dez anos de atividade, o
Gepedi conseguiu ampla inserção no contexto dos estudos histórico-
culturais no âmbito nacional e internacional, por intermédio do
estreitamento de vínculos com numerosos grupos de pesquisa no Brasil,
Chile, Cuba, México, Espanha, Rússia, Ucrânia, Itália etc. Conseguiu
também, por um lado, dar continuidade à tradição histórico-cultural e,
sobretudo, da teoria da aprendizagem desenvolvimental e, pelo outro,
realizar importantes contribuições nesse campo pelos objetos específicos
de pesquisa e pelo modo peculiar adotado na abordagem dos mesmos.
Entre os aportes mais significativos do grupo podemos listar os seguintes:
6 Até o momento foram efetuadas quatro edições do colóquio (2012, 2014, 2016,
2018), publicadas 24 obras como parte da coleção e 15 números da revista Obutchénie,
com mais de 100 matérias (dossiê, várias, entrevistas, resumo de teses e dissertações,
traduções, resenhas, etc.). Além disso, foram efetuadas 28 orientações de dissertações
de mestrado e teses de doutorado dentro da temática, 10 das quais ainda estão em
andamento, bem como 10 projetos de pesquisa financiados por agências de fomento.
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(1) Um estudo crítico de parte da produção efetuada no âmbito da
União Soviética e, posteriormente, no contexto dos países que
nasceram com a desintegração da União Soviética em 1991,
especialmente depois de 1996, com a criação da Associação
Internacional de Aprendizagem Desenvolvimental. As pesquisas
no geral, limitavam-se ao período soviético, especialmente aos
anos iniciais desse período, à produção efetuada no contexto do
enfoque histórico-cultural da atividade, na Rússia, em Moscou,
por A. N. Leontiev, D. B. Elkonin e V. V. Davidov. Além disso,
essa produção era assumida como um dogma, ignoradas as críticas
oportunas e saudáveis iniciadas desde a década de 1970, inclusive
no interior do próprio enfoque da atividade.
(2) A busca pela superação de um enfoque parcial, russo, moscovita,
lentiviano, elkoniano e davidoviano que predomina nas pesquisas
na américa latina e no Brasil, incorporando no debate a
compressão sobre a teoria desenvolvimental que se foi gerando
no interior de grupos extremamente produtivos e originais como
é o caso, por exemplo, do grupo de Kharkov, conduzido por V.
V. Repkin, com pontos de vistas comuns, mas sobretudo
diferentes em relação ao grupo de Moscou em aspectos como o
sujeito da atividade de estudo, o conteúdo, a estrutura e o
processo formativo dessa atividade.
(3) A realização de pesquisas teóricas e de intervenção relacionadas ao
estudo dos fundamentos epistemológicos, teóricos e
metodológicos de uma nova concepção de aprendizagem
desevolvimental e de atividade de estudo com base nas
peculiaridades e demandas da escola brasileira.
(4) A realização de pesquisas relacionadas à formação de professores
e à atividade pedagógica, o aspecto provavelmente mais frágil até
hoje no interior da teoria da aprendizagem desenvolvimental.
(5) A divulgação intensa e sistemática da produção soviética e pós-
soviética sobre a teoria por intermédio da tradução e publicação
em português de trabalhos relevantes e vigentes.
(6) A busca pela superação das limitações da teoria, sobretudo, em
relação à sua compreensão acerca do conceito de sujeito, a
24
unidade do cognitivo e afetivo, tentando dialogar com outras
teorias, como por exemplo, a Teoria da Subjetividade de
Fernando González Rey e colaboradores.
(7) O desenvolvimento de pesquisas-formação, pela via de
intervenções didático-formativas em contextos educacionais
públicos brasileiros, com a produção de conhecimento sobre
processos formativos desenvolvimentais, a partir de demandas
próprias da realizada brasileira.
(8) A elaboração e a proposição de uma metodologia de pesquisa, que
vem sendo designada de intervenção didático-formativa. Um tipo
de pesquisa na qual se intervém no contexto educacional por meio
da formação didática de professores, fazendo da pesquisa,
simultaneamente, intervenção didática em classes de estudantes e
formação continuada de professores (LONGAREZI, 2017).
(9) A produção de uma organização didática desenvolvimental e de
formação de professores nessa perspectiva (com a sistematização
de unidades, movimentos e ações didáticas), para contextos
escolares cujas realidades coadunem com as que caracterizam o
Brasil.
25
e pós-soviético, mais da metade desconhecidos no Brasil7 e na outra
(PUENTES; LONGAREZI, 2019a) aspectos relevantes do pensamento,
vida e obra de três representantes expressivos de ambas as teorias: V. V.
Repkin, N. V. Repkina e V. V. Rubtsov.
A atualização dos dados foi feita com base na análise de parte do
conteúdo e, sobretudo, da bibliografia soviética e pós-soviética (inclui
tanto a produção de autores dos novos países que nasceram com a
desintegração da União Soviética, bem como de seguidores de outros
países) empregada nos 19 artigos que integram os últimos dois dossiês do
periódico científico Obutchénie. Revista de Didática e Psicologia
Pedagógica, o primeiro intitulado Sistema Didático Elkonin-Davydov-Repkin
(v. 5, n. 2, maio/ago, 2021) e o segundo, Atividade de estudo e prática docente:
entre a teoria e a prática, a busca de caminhos possíveis para um processo pedagógico
transformador (v. 5, n. 3, set./dez., 2021). O seguinte quadro (Quadro 1)
apresenta na primeira coluna a lista completa dos artigos publicados e
autores nos dois dossiê mencionados8, na coluna do centro as referências
de autores soviéticos e pós-soviéticos vinculados às teorias da
aprendizagem desenvolvimental e da atividade de estudo, na última coluna
as obras editadas pelo Gepedi relacionadas a essas duas teorias que foram
citadas por esses 19 artigos.
26
Quadro 1 – Título de artigos e autores, referências e obras do Gepedi citadas nesses
artigos
27
(2020)
Repkin (2019)
Professores que ensinam matemática Davidov (1982, 1986, 1988, Davidov (2019)
nos anos iniciais: as transformações 2019) Puentes, Cardoso e
oriundas do planejamento de uma Davidov e Márkova (1987) Amorim (2017, 2019)
tarefa de estudo alicerçada no sistema Puentes, Cardoso e Amorim Puentes e Mello (2019)
elkonin-davidov (Maria Marta da (2017, 2019) Longarezi e Puentes
Silva) Puentes e Mello (2019) (2013)
Elkonin (1999, 2009) Puentes (2018, 2019a,
Longarezi e Puentes (2013) b, c, d)
Leontiev (2001) Repkin (2019a, b, c)
Puentes (2018, 2019a, b, c, d) Repkin e Repkina
Repkin (2014, 2019a, b, c) (2019)
Repkin e Repkina (2019)
Partes, medidas e frações Davidov (1982, 1988) Puentes e Longarezi
equivalentes: o movimento do Davidov e Márkova (1987) (2020)
pensamento teórico de professores Leontiev (1978, 1983)
que ensinam matemática (Iraji de Puentes e Longarezi (2020)
Oliveira Romeiro, Vanessa Dias
Moretti)
A Desenvolvimento de situações Davidov (1982, 1988, 2017) Davidov (2017)
desencadeadoras de aprendizagem Longarezi e Puentes (2017) Longarezi e Puentes
por meio de quatro ações de estudo (2017)
davidovianas em um contexto de
formação inicial de professores
(Josélia Euzébio da Rosa, Frank
Becker)
Conceitos Geométricos no primeiro Davidov (1982, 1988) Longarezi e Puentes
ano escolar: manifestações em livro Leontiev (1978) (2013)
didático de Sistema de Ensino Davidov, Gorbov, Mikulina e Longarezi (2018)
Desenvolvimental (Osvaldo Augusto Savelieva (2012) Puentes (2013)
Chissonde Mame, Ademir Damazio) Gorbov, Mikulina e Savel'eva
(2008).
Elkonin (1987)
Longarezi e Puentes (2013)
Longarezi (2018)
Puentes (2013)
Talízina (1987, 2001)
Dossiê - Atividade de estudo e prática docente: entre a teoria e a prática, a busca de caminhos
possíveis para um processo pedagógico transformador (Obutchénie, vol. 5, n. 3, 2021).
Apresentação (Stela Miller) Davidov (1988, 1999, 2019) Davidov (2019)
Elkonin (2019) Elkonin (2019)
Puentes (2019) Puentes (2019)
Puentes e Longarezi (2019) Puentes e Longarezi
Leontiev (1978, 1988) (2019)
Atividade de estudo e organização do Davidov (1988, 1999) Davidov e Márkova
trabalho docente (Marta Sueli de Faria Davidov e Slobódchikov (1991) (2019)
Sforni, Giselma Cecília Serconek e Davidov e Márkova (2019) Elkonin (2019)
Maria Sandreana Salvador da Silva Elkonin (1961, 2019)
Lizzi)
Organização da atividade de estudo Davidov (1988, 1999, 2019) Davidov (2019)
das crianças na escola: conceitos e Davidov e Slobódchikov (1991)
princípios metodológicos essenciais Leontiev (1983)
(Ana Maria Esteves Bortolanza, Elkonin (1986, 1987)
Anderson Borges Corrêa, Neire Tsukerman (2003)
Márcia da Cunha) Repkin (2003)
28
neoformações psíquicas na atividade Leontiev (1978) Skotarenko (2019)
de estudo (Cléber Barbosa da Silva Lompscher (1999)
Clarindo) Matveeva, Repkin e Skotarova
(2019)
Repkin (2014)
Por que é necessário começar a Davidov (1981, 1987, 1988, Puentes, Cardoso e
atividade de estudo pela via do 1990, 1992, 1999) Amorim (2018)
pensamento teórico? (Armando Leontiev (1978, 2005)
Marino Filho) Elkonin (1961, 1999)
Lompscher, Márkova e Davidov
(1987)
Repkin (2003)
Puentes, Cardoso e Amorim
(2018)
29
textos); (5) pela análise dos títulos dos artigos publicados nos dois dossiês
observa-se ainda uma concentração de estudos na área de Matemática em
pesquisas que se realizam no campo das didáticas específicas; contudo,
além da emergência de estudos sobre a aprendizagem em outras áreas,
como por exemplo, educação física, também surgem autores interessados
em campos até então de pouco interesse como a formação da
personalidade e o papel das emoções no desenvolvimento dos motivos.
O segundo quadro (Quadro 2) contém a lista completa dos
autores do período soviético e pós-soviético cujas produções estão
vinculadas com as teorias da aprendizagem desenvolvimental e da
atividade de estudo, e foram referenciados na produção brasileira nos
últimos dois anos, o número de obras referenciadas por autor e o número
total de referências. No total, são 23 autores, 68 trabalhos e 148
referências.
30
V.V.Davidov
N.I.Matveeva, 1 1,47 1 0,67 1 100
V.V.Repkin e
R.V.Skotarenko
H.Giest e 1 1,47 1 0,67 --
J.Lompscher
M.Hedegaard e 1 1,47 1 0,67 --
S.Chaiklen
S.Chaiklen e 1 1,47 1 0,67 --
M.Hedegaard
V.Rubtsov 1 1,47 1 0,67 --
G.Nikola e 1 1,47 1 0,67 --
N.F.Talizina
V.V.Davidov, 1 1,47 1 0,67 --
S.F.Gorbov,
G.G.Mikulina e O.V.
Savelieva
S.F.Gorbov, 1 1,47 1 0,67 --
G.G.Mikulina e
O.V.Savelieva
V.V.Repkin e 1 1,47 1 0,67 1 100
N.V.Repkina
P.Ya.Galperin, V.A. 1 1,47 1 0,67 --
Zaporozhets e
D.B.Elkonin
Total 68 148 21
Fonte: Os autores.
Do mesmo modo que acontecia em 2019, continua a predominar:
(1) marcada influência de estudos realizados por teóricos russos,
moscovitas, sobretudo, A. N. Leontiev (18%), V. V. Davidov (35,81%) e
D. B. Elkonin (17%), ou por leontivianos, davidovianos e elkonianos; (2)
predomínio de estudos de V. V. Davidov, pois do total de trabalhos (68),
20 (29,41%) são dele sozinho ou em parceria e do total de referências
efetuadas (148), 53 (35,81%) são também deles; (3) ampla centralização
ainda de trabalhos e referências em apenas alguns autores: cinco autores
(21%), são responsáveis por 46 (74,88%) dos trabalhos e por 107
(71,88%) referências, ainda quando a dispersão, no geral, é maior pois, em
2019, V. V. Davidov era responsável por 75% do total de publicações; (4)
V. V. Davidov, D. B. Elkonin e V. V. Repkin se consolidam no Brasil, do
mesmo modo que na União Soviética e no pós-União Soviética, como os
autores mais importantes das teorias da aprendizagem desenvolvimental e
da atividade de estudo na perspectiva do sistema didático Elkonin-
Davidov-Repkin, com isso, a influência da visão moscovita, davidoviana e
elkoniana continua a ser grande, porém, menor do que antes; (5) a
diminuição da hegemonia dos representantes do grupo de Moscou, que se
31
inicia no Brasil com a divulgação dos trabalhos de autores do grupo de
Kharkov (V. V. Repkin, N. V. Repkina, N. I. Matveeva e R. V.
Skotarenko), passou a ser ainda maior com a incorporação da obra de
autores da Alemanha (J. Lompscher e H. Giest) e Dinamarca (Mariane
Hedegaard e Seth David Chaiklin); (6) ausência no Brasil de traduções dos
textos de autores alemães e dinamarqueses.
Os dados atualizados revelam que 91,30% dos textos de autores
do período soviético e pós-soviético referenciados em publicações no
Brasil e 14,18% do total das referências correspondem ao trabalho
colaborativo que o Gepedi vem desenvolvendo para a ampliação e difusão
dessa produção. Entretanto, a contribuição do grupo não se restringe à
divulgação, no Brasil, da obra dos principais representantes das teorias da
aprendizagem desenvolvimental e da atividade de estudo, inclui a
utilização desse material na pesquisa para a produção de conhecimento a
respeito de ambas teorias em aspectos até o momento pouco trabalhados,
que têm gerado divergências no âmbito cientifico nacional e internacional
ou fazendo aquilo o que Davidov (1996[2019]) solicitava praticamente no
ocaso de sua vida, que era ajudar a completar a teoria da atividade de
estudo e da aprendizagem desenvolvimental, ajudando a resolver os
problemas que surgiram durante a implementação de ambas, entre outras
coisas, pela via do diálogo com outras teorias que foram emergindo no
interior do enfoque histórico-cultural, aprimorando o trabalho teórico que
permite fundamentar a necessidade e eficácia da aprendizagem com base
na compreensão da atividade, a criação de novos métodos para a
aprendizagem de conteúdos em disciplinas diferentes, o desenvolvimento
das necessidades, motivos e emoções, bem como o estudo da atividade
pedagógica e a formação de professores etc.
Espera-se que o capítulo que abre esta obra tenha atingido o
propósito que se colocou de situar as temáticas centrais da obra (enfoque
histórico-cultural, aprendizagem desenvolvimental e atividade de estudo)
no contexto atual das pesquisas brasileiras em educação e didática e, de
maneira simultânea, situar as contribuições do Gepedi no contexto dessas
temáticas a partir do resgate de seu trabalho nos campos da docência,
orientação, pesquisa, produção científica e divulgação; constituindo-se
assim num estado da arte dessa produção.
32
Referências
33
DUARTE, Newton. Vigotski e o "aprender a aprender": crítica às
apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. Campinas:
Autores Associados, 2000.
34
LIBÂNEO, José C. A Prefácio. In: LONGAREZI, A.M.; PUENTES, R.
V. Fundamentos psicológicos e didáticso do Ensino Desenvolvimental. Uberlândia:
EDUFU, 2017.
35
enquanto campo de tensão contraditória. Revista Educação (UFSM),
Santa Maria. Vol. 45, 2020a, p. 1-32.
36
MELLO, S. A. Ensinar e Aprender a Linguagem Escrita na Perspectiva
Histórico-Cultural. Revista de Psicologia Política, v. 10, p. 329-343, 2010c.
37
NETO, Henrique C. M ; AQUINO, O. F. A relação entre aprendizagem e
desenvolvimento segundo Vygotsky: notas introdutórias. Revista Alpha, v.
21, p. 108-116, 2020.
38
PUENTES, R. V.; LONGAREZI, A. M. (Org.). Ensino desenvolvimental:
vida, pensamento e obra dos principais representantes russos. Livro 3. 1.
ed. Uberlândia: Edufu, 2019a, v. 6, 420p.
39
PARTE I
CONTRIBUIÇÕES DO GEPEDI
NA PERSPECTIVA DO
ENFOQUE
HISTÓRICO-CULTURAL
40
Capítulo 2
Introdução
41
capítulos que compõem este livro, escrito pelos estimados autores e
autoras.
Um dos autores abordados nos estudos do GEPEDI é Lev
Semionovitch Vigotski - Лев Семёнович Выготский (1896-1934),
pioneiro da psicologia histórico-cultural. As contribuições desse autor tem
repercutido em diversas áreas de conhecimento até os dias de hoje e
servido de base para se pensar o processo educativo, mostrando a
amplitude de seu legado teórico. Um tema muito apresentado em sua obra
é o da mediação. Neste capítulo, abordaremos esse importante assunto
partindo dos textos do autor.
Para Wertsch (1988 p. 33), “la contribución más original e
importante de Vygotsky consiste en el concepto de mediación”. Esse
autor comenta que na época de L. S. Vigotski se colocava a necessidade da
análise genética no estudo da mente considerando-se a origem social da
atividade mental. Mas Wertsch (1988) assinala que “Vygotski fue el
encargado de redefinir y ampliar esas ideas mediante la introducción de la
noción de mediación mediante el empleo de instrumentos y signos” (p.
33). Para Rivière (2002), é com a teoria histórico-cultural que L. S.
Vigotski constituirá um novo olhar sobre a “función de mediación activa de
los instrumentos y signos” (p. 30, grifo do autor).
Esses autores indicam a importância da ideia de mediação na
teoria do psicólogo bielorrusso L. S. Vigotski, e a caracterizam mediante o
emprego ativo de instrumentos e signos, analogia própria da teoria
histórico-cultural de L. S. Vigotski. Segundo Van der Veer e Valsiner
(2009), essa teoria envolve a produção do autor entre 1928 e 1931,
aproximadamente.
Contudo, o termo mediação aparece em outros textos e períodos de
produção de L. S. Vigotski, indicando ser uma ideia que se entrelaça com
muitos fios de sua obra. Por isso, é importante estudar como o termo se
repete na obra do autor e como ele emerge na tessitura de sua teoria.
Neste trabalho buscamos esse objetivo realizando uma pesquisa
bibliográfica na obra do autor, em textos publicados e traduzidos em
português e espanhol. O percurso metodológico envolveu leitura
sistemática dos textos de L. S. Vigotski com a finalidade de localizar o
termo mediação.
42
Na medida em que o termo era localizado nos textos de L. S. Vigotski,
iniciávamos um estudo dos argumentos que o explicavam na tessitura do texto
em questão, para entender o que compunha o termo e o seu uso. A partir disso
correlações eram feitas com outros textos do período, que ajudavam no seu
entendimento e na compreensão do seu uso.
As menções mostraram aspectos diversos em sua expressão, mas
mantinham a ideia de um elemento intermediário compositor entre duas
partes. Os aspectos permitiram uma classificação segundo o que
entendemos o que suas formas comunicavam, no seu contexto de uso.
Como as menções apareciam em diversos textos na obra do autor,
as classificações também refletem o momento da obra em que o termo
aparece, conferindo particularidades teóricas ao termo, segundo o
momento da obra e as discussões que se faziam nesse momento.
Este trabalho reflete parte da tese de doutorado em Educação
desenvolvida na Universidade Federal de Uberlândia sob orientação da
Profa. Dra. Andréa Maturano Longarezi. Contudo, acrescenta discussões
novas e aborda outras mediações não tratadas na tese.
43
la psicología del comportamiento” (VYGOTSKI, 1991b). Esses textos
estão publicados na edição espanhola Obras Escogidas, no volume I. De
acordo com a edição, o primeiro título foi publicado em 1926, em
Moscou, mas se baseia na comunicação do autor no II Congresso
Nacional de Psiconeurologia realizado em Leningrado em 1924. O
segundo título foi escrito em 1925 e publicado no mesmo ano em Moscou
e Leningrado.
Muitas das discussões desenvolvidos nesses dois textos estão
refletidas em outros textos do autor publicados no período, e se
entrelaçam com as discussões desenvolvidas pelo autor entorno da
mediação indicada.
Nos referidos textos, os trechos que mencionam o termo são,
respectivamente:
44
que enfatizava que todos os atos psíquicos, incluindo os movimentos
conscientes (voluntários), surgiam estritamente de reflexos (arco-reflexo);
b) a análise da estimulação sensorial seria a explicação dos atos psíquicos,
estabelecendo-se relações entre psique, consciência e influências
sensoriais; c) a existência de traços ocultos no arco-reflexo, nas regiões do
sistema nervoso humano, tidos como reflexos ocultos (não manifestados
externamente) ou inibidos em uma das partes do arco-reflexo (CUNY,
1964; HERRNSTEIN; BORING, 1971; PESSOTTI, 1976; LOMOV,
1989; SOUZA JUNIOR; LOPES; CIRINO, 2011; GONZÁLEZ REY,
2011a).
Nas passagens citadas é possível notar que L. S. Vigotski toca
nessa importante questão científica e metodológica: para a reflexologia,
parte dos reflexos implicados na psique ficavam ocultos, ou seja, eram
fenômenos psíquicos, porém não acessíveis à observação direta de um
observador ou experimentador (não se manifestam externamente). Essa
perspectiva influenciava a metodologia de investigação da reflexologia,
como podemos verificar no comentário de Bechterev (1965) sobre a
finalidade de suas investigações:
45
Para Vygotski (1991b, p. 42), ao explicar o comportamento
humano inteiro somente por suas manifestações externas, sem considerar
os fenômenos subjetivos (na psique, no mental), a reflexologia se
assemelhava à psicologia subjetiva que estudava a psique pura, abstraída
do comportamento. Para ele, assim, mostravam posturas dualistas.
Vygotski (1991a, 1991b) apresenta esse argumento: se é admitida a
existência de reflexos ocultos, eles devem ser considerados como parte da
conduta, sublinhando que “el comportamiento del individuo está
organizado de forma que son justamente los movimientos internos poco
conocidos los que le orientan y dirigen” (VYGOTSKI, 1991b, p.40).
Vygotski (1991a) parte da reflexologia com base em pesquisas de
Viktor P. Protopópov (1880-1957)10, e propõe colocar o foco na fala
apontando a locução como objeto, por considerá-la um “hecho particular
de las condiciones de comunicación que determinan la interrelación del
hombre con el medio circundante a través de sua esfera motriz” (p. 5).
Nesse texto, Vygotski (1991a) não está restringindo o problema à
esfera motriz ou aos órgãos articulatórios, mas realçando a fala, a locução.
Vygotski (1991a) ressalta que a fala já vinha sendo considerada pela
reflexologia: “haya que considerar el habla como un sistema de reflejos
condicionados es algo que no es necesario repetir, pues para la
reflexología esto constituye una verdad casi evidente” (VYGOTSKI,
1991a, p. 5). Mas ao frisar a fala, a linguagem, L. S. Vigotski está
avançando em direção ao exame ampliado e aprofundado das vertentes
mais complexas do comportamento, de uma perspectiva nova.
Para colocar sua proposta em termos científicos e práticos,
Vygotski (1991a, 1991b) aponta para a interação verbal dos sujeitos de um
experimento e centra sua atenção no reflexo verbal inibido, com o
pensamento sendo o fenômeno a se estudar: “Béjeterev muestra, tras I. M.
Séchenov, que el pensamiento no es otra cosa que un reflejo inhibido,
retenido, un reflejo interrumpido en sus dos terceras partes,
46
concretamente en el pensamiento con palabras, que es él caso más
frecuente de reflexo verbal contenido” (VYGOTSKI, 1991a, p. 7).
Segundo Cuny (1964), para a reflexologia, o pensamento
corresponderia a um reflexo inibido em sua terceira parte. A terça parte
do arco-reflexo se refere à ação do sistema nervoso efetor que
desencadeia as respostas musculares ou motoras circunstanciadas pelas
fases ou etapas anteriores que são, pela ordem, os nervos aferentes que
transmitem o estímulo recebido pelos órgãos sensoriais, e o sistema
nervoso central que os organiza para, enfim, produzir as reações em nível
de sistema efetor (CUNY, 1964).
Contudo, Vygotski (1991a) afirma que “la reflexología está
obligada a tener también en cuenta los pensamientos y la totalidad de la
psique si quiere comprender el comportamiento” (p. 8). Vygotski (1991a)
assinala que a psique é movimento inibido, e não somente o que se pode
objetivamente tocar ou o que se pode ver. Então, reflete o seguinte:
47
porque o autor comenta que a palavra, como reflexo completo, tem duplo
papel: estímulo (excitante) e reflexo.
Vygotski (1991a, p. 7-9) argumenta que, no âmbito da
reflexologia, quando um sujeito responde ao experimentador em voz alta
com uma palavra associada ao experimento, isso é considerado uma
reação verbal ou reflexo condicionado. E questiona: por que não
considerar o mesmo quando o sujeito pensa essa palavra (mentalmente),
sem a pronunciar em voz alta? No segundo texto em análise, Vygotski
(1991b) apresenta questionamento igual: “Y si la pronuncio [a palavra]
silenciosamente, para mí, si la pienso ¿dejará por eso de ser un reflejo y
cambiará su naturaleza? Y ¿donde está el límite entre la palabra
pronunciada y no pronunciada?” (p. 53).
Vygotski (1991a, 1991b) frisa que a palavra, manifestada na
interação verbal entre os sujeitos de um experimento, atesta o ato
psíquico, o mental, integrado à conduta. Nos referidos textos, o autor
considera a mesma coisa em relação à linguagem não verbal presente no
experimento. Com isso, ele aponta para uma visão integral de ato psíquico
e conduta centrando na palavra como reflexo completo, sendo a locução
tida como um ato primordial da comunicação entre o homem e seu meio
(e entre os homens), e vista como objeto de pesquisa. Para ele, a análise
aprofundada da fala ampliaria o círculo de estudo das vertentes mais
complexas do comportamento e da atividade psíquica, sem restringir à
observação dos reflexos manifestados externamente, somente.
Essas discussões refletem na forma de mediação expressada por
L. S. Vigotski: reflexos internos manifestados indiretamente, ou de forma
mediada, nos reflexos externos. Portanto, uma observação indireta dos
reflexos encobertos (fala silenciada) nos recessos da psique, nos reflexos
manifestados (pensamento com palavras), que envolva a fala, a locução.
Isso significa frisar a palavra, a linguagem, e não a vertente motriz
puramente.
Para tanto, duas considerações de Vygotski (1991a, 1991b) devem
ser observadas. A primeira envolve a investigação científica indireta com
foco nas declarações verbais dos sujeitos de um experimento, com
destaque para a palavra como reflexo completo, reversível, e a interação
verbal seguindo como o objeto de análise o tempo todo. Para o autor, essa
perspectiva não se confunde com o método da introspecção clássica
48
(método imediato ou direto) que ressalta somente o depoimento isolado
no próprio sujeito da experiência (apercepção) e sua interpretação apenas.
A segunda envolve a compreensão do papel dos reflexos inibidos na
estrutura da psique, cuja possibilidade de acesso se dá em função do
mecanismo de interinfluência dos sistemas de reflexo sobre outros
sistemas de reflexo (pensamento e fala).
Para Vygotski (1991a, p. 9):
49
Por isso, a linguagem, esse instrumento de comunicação social,
também é um instrumento de comunicação íntima do homem
consigo mesmo. Ao mesmo tempo, o caráter consciente de nossos
pensamentos e atos deve ser entendido como esse mesmo
mecanismo de transferência de nossos reflexos para outros
sistemas ou, para utilizar os termos da psicologia tradicional, como
uma reação circular [um feedback]. (VIGOTSKI, 2003, p. 171-172).
50
comportamento sem a psique, porque “este não existe en el hombre sin la
psique, como tampoco esta última sin él, ya que la psique y el comportamiento
son la misma cosa” (VYGOTSKI, 1991d, p. 35).
Além disso, Vygotski (1991d) considera necessário não limitar “el
estudio del comportamiento humano a su aspecto biológico, ignorando el
factor social” (p. 35). Para isso, considera indispensável uma nova
psicologia (ou a reestruturação da psicologia) e um novo sistema científico
baseado no materialismo dialético (e não no materialismo fisiológico), que
envolvesse nessas mudanças uma nova visão biossocial de psique e
comportamento. Para tanto, ele aponta na direção do ensino das
disciplinas psicológicas nas escolas superiores, dos manuais utilizados e da
teoria pedagógica.
Esses comentários preliminares nos levam à segunda menção ao
termo, que se encontra no livro “Psicologia Pedagógica”, publicado em
1926. A menção localiza-se no primeiro capítulo, intitulado “a pedagogia e
a psicologia”, e emerge no seguinte parágrafo:
51
do desenvolvimento psicológico. Para o autor, isso vinha afetando o
próprio conceito científico de educação e a prática pedagógica.
Assim como colocado no texto do prólogo ao livro de
Thornidike, Vigotski (2003, p. 41-43) reitera essa mesma crítica no Livro
“Psicologia pedagógica”, agora com base em discussões de Hugo
Munsterberg (1863-1916)11 e de Pável P. Blonski (1884-1941)12. O autor
volta a ressaltar o caráter estreito que a psicologia pedagógica adquiriu
aplicando material já preparado pela Psicologia Geral, na forma de
fragmentos de psicologia teórica aplicada para fins práticos, tomando da
psicologia teórica os capítulos de interesse do pedagogo, como atenção,
memória, imaginação etc. Por meio desse material fragmentado se
decidiria como deveria ser o ensino.
Essas discussões combinam com a parte final (ou terceira razão)
indicada por L. S. Vigotski: “Finalmente, não é possível conceder um
papel de especialista somente à psicologia” (VIGOTSKI, 2003, p. 42).
Partindo de contribuições de William James (1842-1910), Vigotski (2003)
afirma: “James destacou, acertadamente, que é um grave erro pensar que é
possível inferir diretamente da Psicologia, para uso educativo,
determinados programas, planos ou métodos de ensino” (p. 41). Dentre
as contribuições de James, destacadas por L. S. Vigotski, está a
compreensão de que a pedagogia não nasceu da psicologia, mas que elas
deveriam andar no mesmo passo, de maneira coordenada.
11 Segundo Benjamin Jr. (2009), Hugo Munsterberg foi um nome ligado à psicologia
aplicada, sendo às vezes considerado o fundador da psicologia industrial, acreditando
que a psicologia tinha as ferramentas certas para determinar a relação entre satisfação
no emprego e maior rendimento no trabalho. Antes de sua morte, publicou livros
sobre a psicologia industrial, a psicologia e o direito, a psicologia e o ensino, a
psicoterapia e a psicologia dos filmes.
12 Segundo nota de Guilhermo Blanck, à página 44 da edição de Psicologia Pedagógica,
52
Entre essas duas razões, encontramos a menção ao termo
mediação: “em segundo lugar, não podemos deixar que a vida – sem a
mediação de qualquer ciência – promova as exigências pedagógicas; essa é
uma questão da pedagogia teórica” (VIGOTSKI, 2003, p. 42).
Ao nosso ver, duas questões precisam ser verificadas para nos
aproximarmos da ideia de mediação da ciência, indicada por L. S.
Vigotski: que visão de ciência o autor adota nesse livro; e como vida e
exigência pedagógica se integram pela mediação da ciência.
Como mencionado anteriormente, Vygotski (1991d) ressalta a
perspectiva materialista dialética como alternativa de superação do
dualismo prevalente na psicologia e na reflexologia, à época. Junto a isso,
aponta para uma orientação marxista de ciência.
Vigotski (2003) comenta a natureza da ciência dizendo: “toda tese
teórica é comprovada ou verificada mediante a prática, e sua veracidade só
se estabelece quando a prática construída sobre aquela se justifica” (p. 78).
Na análise de Gruner (2006), a visão de Marx sobre a composição entre
teoria e prática não é de uma mera união de dois termos, mas diz respeito
a entidades que se juntam com um propósito de profunda transformação
da realidade. Segundo Gruner (2006), sua lógica é de que a ação é a
condição do conhecimento e vice-versa, produzido no interior de um
mesmo movimento que é o da própria realidade social e histórica, e não
no movimento do puro pensamento teórico ou da pura ação prática.
Vigotski (2003) frisa que a Psicologia não pode fornecer nenhum
tipo de conclusão pedagógica, diretamente, mas sublinha: “como o
processo de educação é um processo psicológico, o conhecimento dos
fundamentos gerais da psicologia ajuda, naturalmente, a realizar essa tarefa
de forma científica” (VIGOTSKI, 2003, p. 41).
Mas, como isso se realizaria? Vigotski (2003) completa dizendo:
53
compreensão dessas leis. No tocante às reações, Vigotski (2003) comenta:
“na base da ação educativa dos próprios alunos deve estar o processo
integral de reação com seus três componentes: percepção da excitação
[estímulo], elaboração [processamento] da mesma e a ação de resposta”
(p. 75-76). Podemos notar L. S. Vigotski novamente chamando atenção
para os reflexos psíquicos internos, como comentado anteriormente.
Vigotski (2003, p. 76) completa essa discussão dizendo que a
Pedagogia anterior reforçava o primeiro momento apenas, sem dar relevo
aos processos psíquicos internos que são os que elaboram internamente o
material fornecido pelo meio, modificando-os13. Entendemos, com base
nesses comentários, que essa pedagogia igualava o primeiro e o terceiro
momentos da reação, ignorando o segundo. Isso se denota pela
observação de Vigotski, de que esse tipo de pedagogia transformava os
alunos em “esponjas”, ou seja, recebedores e repetidores de
conhecimentos alheios.
Essa pedagogia desconhecedora das leis das reações e das
condições de sua formação, não tinha muito a oferecer porque realçava a
influência artificial da educação apenas de fora para dentro, mas sem
reconhecer o papel decisivo dos processos internos, psíquicos, como
expressão igualmente importante na reação completa. O aluno era visto
como passivo no processo de conhecimento.
É interessante observar que essa discussão de L. S. Vigotski
estende-se em sua obra. No livro “Imaginação e Criação na Infância”,
publicado em 1930, com base em palestras para pais e professores,
Vigotski (2009) continua desenvolvendo essas discussões entorno de uma
visão dialética e mais consciente da expressão da criança no processo
educativo, dizendo:
13No livro “Imaginação e criação na infância”, publicado pela primeira vez em 1930,
Vigotski (2009) afirma que “as marcas das impressões externas não se organizam
inercialmente no nosso cérebro, como objetos numa cesta. São, em si mesmas,
processos; movem-se, modificam-se, vivem e morrem” (p. 36-37).
54
desenvolva e orientar esse desenvolvimento para algum lado
(VIGOTSKI, 2003, p. 72)14.
14 Na publicação espanhola do mesmo livro preparada por Pablo del Río e Amelia
Álvarez, a tradução dessa passagem é: “Una educación justa y científicamente
concebida no se reduce, realmente, a una copia mecánica, en la forma externa, de
ideales, sentimientos o aspiraciones totalmente extranãs a los niños. Una educación
justa consiste en despertar en el niño todo cuanto en él está oculto, en cooperar para
que se desarrolle, y en orientar este desarrollo en una determinada dirección”
(VYGOTSKI, 2007, p. 56).
55
parte da vida social y como participación organizada de los niños en esa
vida” (p. 125). Nesse texto, Vygotski (1997b) assinala que o meio social e
sua estrutura são fatores decisivos para a educação, e reclama a
necessidade de um sistema cientificamente elaborado para a teoria
pedagógica da educação dessas crianças, que compreenda a formação de
seus vínculos com o ambiente.
Vigotski (2003) discorre sobre a escola como um meio educativo
baseado em vínculos artificialmente criados com a realidade objetiva,
frisando que sua instituição e o conteúdo de sua ideologia sempre foram
sociais, e o meio social escolar, nela estabelecida, quem, em última
instância, educa de fato.
Para Vigotski (2003, p. 77-78), a criança (o indivíduo), apoiada na
educação escolar, olharia para além do seu meio à luz do pensamento
científico. A vida, e suas forças espontâneas, por sua vez, adaptaria a
criança (o indivíduo) ao ambiente (ou ao meio) existente, com hábitos
diversos daquelas formados e praticados na instituição escolar15. Assim, o
autor comenta que se fazia necessário melhor organizar o fluxo de forças
espontâneas da vida no curso do crescimento da criança, e ordenar a
heterogeneidade das influências do meio sobre esse crescimento, pela
educação, o que requer um vínculo entre vida, escola e sociedade, em
busca do novo16.
autora): “É digno de nota que a ideia de meio (sredá - среда) perpassa as considerações
de Vygotsky sobre diversos temas, entre os quais se destaca o desenvolvimento
humano. O autor rompeu de modo mais profundo com essas considerações
dicotômicas sobre hereditariedade X ambiente também explorando a acepção de sredá
como ambiente psíquico ou cultural e mental no qual o homem se insere, acepção
vigente no idioma russo desde o século XVIII (Pequeno Dicionário Enciclopédico
Brockhaus e Efron, citado em Vygotsky, 1935/2010). Vygotsky assinalou também a
importância de considerar a influência do meio a cada momento da vida da criança:
‘o meio, no sentido imediato dessa palavra, modifica-se para a criança a cada faixa
etária. Alguns autores dizem que o desenvolvimento da criança consiste na gradativa
ampliação de seu meio.’ (Vygotsky 2010, p. 683). Com essa afirmação, o autor revê
observações já presentes na ‘Psicologia Pedagógica’, texto que sustenta o desafio de
educar observando a transição entre o ‘pequeno’ e o ‘grande’ mundo da criança – ou
seja, entre o microcosmo da família e da escola e a sociedade socialista’.
56
Essas discussões encontram eco na menção que Vigotski (2003)
faz aos primeiros anos da Revolução Socialista de 1917. O autor comenta
que muitos reagiram contra a escola em favor da vida, e em favor do
clamor das ruas. Uma reação aos efeitos da escola czarista, que Vigotski
(2003) analisa como sendo “uma reação justa contra uma escola isolada da
vida por uma muralha chinesa” (p. 77)17. Para Vigotski (2003, p. 303-304),
“os problemas da educação serão resolvidos quando se resolverem os
problemas da vida”, e esta deveria ser vista como criação do novo. Nesse
percurso, “a pedagogia, como criação da vida, ocupará o primeiro lugar”
(VIGOTSKI, 2003, p. 304).
57
Para Vygotski, la actividad (deyatel’nost) no era respuesta o reflejo
solamente, sino que implicaba un componente de transformación
del medio con ayuda de instrumentos. El concepto de actividad
estaba muy estrechamente relacionado con el de mediación. El
empleo de útiles y medios representa, el mismo tiempo, el
desarrollo de un sistema de regulación de la conducta refleja (pero
que no se confunde con ella) y la unidad esencial de construcción
de la conciencia.
58
preciso realizar “un salto dialéctico que modifica cualitativamente la
propia relación entre el estímulo y la reacción”. (p. 62).
Ao sublinhar o uso de signos, Vygotski (1995d) enfrenta o
determinismo contido no conceito de reflexo, e a noção estímulo-resposta
que o acompanha, assinalando que o diferencial estaria em que o homem
usa, de forma voluntária e de modo consciente, estímulos artificiais que
cumprem o papel de signo, e que estes estariam no centro do processo de
desenvolvimento das funções psíquicas superiores: “La relación más
esencial que subyace en la estructura superior, es la forma especial de
organización de todo el proceso, que se construye gracias a la
introducción en la situación de determinados estímulos artificiales que
cumplen el papel de signos” (VYGOTSKI, 1995d, p. 123).
Nessas discussões do autor, a linguagem é assumida como um
exemplo básico não redutível à noção pavloviana de sistema de sinais, que
busca superar na ideia de que o aspecto psicológico central no uso de
signos é a significação:
59
Para Vygotski (1995b, p. 36), “el desarrollo culural se superpone a
los procesos de crecimiento, maduración y dessarrollo orgánico del niño,
formando con él un todo. Tan sólo por vía de abstracción podemos
diferenciar unos procesos de otros”. Vygotski (1995b) afirma que “el
desarrollo de la lenguaje infantil puede servir de ejemplo afortunado de
esa fusión de los planos de desarrollo: el natural y el cultural” (p. 36).
A visão de desenvolvimento cultural tem implicações
educacionais. Vygotski (1995e) assinala que “la historia del desarrollo
cultural del niño nos acerca de lleno a los problemas de la educación” (p.
303). Ao analisar o desenvolvimento das operações aritméticas, Vygotski
(1995f) comenta que “la cultura fundamental en el desarrollo del cálculo
radica en el paso de la percepción directa de la cantidad a la mediada, al
hecho de que el niño comience a equiparar las cantidades con
determinados signos, a operar con tales signos” (p. 208). Sobre o
desenvolvimento da linguagem escrita, comenta: “en psicología, el
problema del lenguaje escrito está muy poco estudiado como tal, es decir,
como un sistema especial de símbolos y signos cuyo dominio significa un
viraje crítico en todo el desarrollo cultural del niño” (VYGOTSKI, 1995g,
p. 184).
Essas questões são colocadas também no âmbito da Educação
Especial. Vygotski (1997c) frisa que a história do desenvolvimento
cultural da criança com deficiência constitui-se num problema central para
a defectologia. Nessa discussão, o autor também envolve a linguagem
como exemplo.
60
Vygotski e Luria (2007) afirmam que é graças à inclusão do
símbolo que se explica o modo de mudanças das funções psíquicas e suas
relações estruturais. Esses autores comentam que as inclusões das
operações simbólicas formam uma composição totalmente nova no
campo psíquico; e que essas operações fazem a relação entre ação
involuntária e voluntária.
61
El pensamiento no solo está externamente mediado por signos,
sino también internamente por significados. La comunicación
inmediata entre conciencias es imposible física y psicológicamente.
Esto solo puede ser logrado por una via indirecta y mediada. Este
camino consiste en la mediación interna del pensamiento, primero
a través de los significados y luego a través de las palabras. Por eso,
el pensamiento nunca es equivalente al significado directo de las
palabras. (VIGOTSKI, 2012, p. 512).
62
Comunicación y generalización. La faceta interna de la acción
mediada se descubre em la doble función del signo: 1)
comunicación y 2) generalización. Porque: toda comunicación
exige generalización. (VIGOTSKI, 1991i, p. 130).
63
objeto do trabalho; 3) os meios de trabalho, o instrumental de trabalho”
(MARX, 2012, p. 212)19.
O segundo aspecto remete à ideia desenvolvida pelo autor, em
textos anteriores, que o ser humano, dominando os estímulos, dominará a
própria conduta. Essa ideia encontra-se na mediação pelo signo (ou
simbólica). Para Vygotski (1995c), o homem é capaz de sair da esfera
rígida do condicionamento dominando os estímulos presentes numa dada
situação-problema. Segundo Vygotski (1995c, p. 289), “la clave para
dominar la conducta radica en el dominio de los estímulos”. Nessa parte
de sua obra, o autor desenvolve a analogia entre instrumento e signo,
concebendo o signo como um instrumento psicológico.
Então, Vigotski (2012, p. 180) comenta:
64
Assim, a formação de conceitos tem as operações intelectuais
(atenção voluntária, abstração, seleção, análise, síntese etc.) e o uso
funcional da palavra (simbolização por meio da palavra como signo) como
seus elementos básicos.
No primeiro capítulo desse livro, intitulado “El problema y el
método de investigación”, Vigotski (2012, p. 18-19) levanta uma discussão
que reforça o acima exposto. O autor considera a relação entre
pensamento e fala, vendo a generalização com um extraordinário ato
verbal do pensamento, sendo o significado da palavra pertencendo tanto
ao domínio da fala quanto ao domínio do pensamento:
65
1934. Uma característica importante é a relação da criança com os objetos
mediada pelos conceitos.
Vigotski (2012) desenvolve estudos sobre conceitos cotidianos e
conceitos científicos no desenvolvimento da criança, mostrando a
distinção entre eles e como revelam fraquezas e fortalezas em sua
formação. O conceito cotidiano é forte justamente no seu emprego
espontâneo, ou seja, na sua aplicação a uma variedade de situações
conforme a riqueza do seu conteúdo empírico e vínculo com a experiência
pessoal da criança. Mas, o autor comenta que nesse momento a criança
tem mais ciência do objeto do que do próprio conceito. No caso do
conceito científico, sua fraqueza está justamente no que lhe falta da
riqueza e força do conceito cotidiano. Por outro lado, a força do conceito
científico está em que a criança compreende melhor o próprio conceito,
situação que o conceito cotidiano não consegue realizar.
Para Vigotski (2012), importa verificar como essas linhas se
desenvolvem, em que altura elas se encontram e como vai se
desenrolando a compreensão do conceito, pela criança. O autor examina
essa questão considerando que a linha do conceito cotidiano é constituída
por conceitos com propriedades mais simples, e que a linha dos conceitos
científicos é constituída por conceitos mais complexos. Assim, os
conceitos cotidianos seriam conceitos com propriedades mais simples,
enquanto os conceitos científicos teriam propriedades mais complexas
(superiores). Portanto, os conceitos espontâneos se desenvolveriam “de
baixo para cima”, e os científicos “de cima para baixo”. Para ele, o aspecto
principal do desenvolvimento dos conceitos científicos é a definição
verbal primária que, uma vez aplicada, desce até ao concreto, ao
fenômeno. O conceito cotidiano tem lugar fora de um sistema
determinado de conceitos, possuindo a tendência de subir até as
generalizações (parte superior de seu desenvolvimento). Para Vigotski
(2012, p. 370), “esto conduce a un aumento en el nivel de los conceptos
cotidianos, que son reelaborados bajo la influencia del hecho de que el
niño haya dominado os conceptos científicos”.
Dessas discussões emerge a mediação pelos conceitos espontâneo
e científico. Diferentemente do modo como se forma o conceito
espontâneo na criança em seu contato direto com coisas distintas (da coisa
ao conceito), em que participa a comunicação com o adulto, o conceito
66
científico vai do conceito à coisa. Esse conceito vai se constituindo ao
longo do desenvolvimento da criança à medida que ela se torna ciente do
objeto, tornando-se ciente do próprio conceito e a operar abstratamente
com ele. Isso se dá ao longo do desenvolvimento da criança, e o fator
intelectual e o uso voluntário do conceito são pontos nodais no processo.
67
contexto perceptível imediato. As redes conceituais se estruturam
em teorias que os sujeitos dispõem para interpretar e transformar a
realidade, transformando-se a si mesmas no contexto social. Os
conceitos devem ser compreendidos na dinâmica dos sentidos e
significados que eles adquirem nas relações que se estabelecem
entre eles no marco da teoria (no caso da disciplina escolar, as
teorias científicas). (NUÑEZ, 2009, p. 48-49)
68
comunicações, em sala de aula, não são unilaterais, não são simétricas, não
são lineares.
69
comunicación es una comunicación sin palabras a menudo silenciosa, una
comunicación de género totalmente peculiar” (p. 286).
Vygotski (2006a) assinala que, no decorrer do primeiro ano de
vida do bebê, prevalece uma comunicação visual-direta, pré-linguística e
emocional (transferência de afetos), baseada em entendimento mútuo,
ocorrendo também a presença de uma imitação ainda inicial (imitação de
movimentos, de reações fônicas etc.).
Vygotski (2006a) comenta que, por volta do décimo mês de vida,
se produz uma importante mudança: “desaparecen los movimientos, y se
inicia el desarrollo de formas de comportamiento más complicadas: la
primera utilización de la herramienta y el empleo de palabras para
expressar el deseo” (p. 288). O autor continua dizendo: “de ese modo
comienza un nuevo período que acaba después de los limites del primer
año de vida. Ese período marca la crisis del primer año que viene a ser el
punto de unión entre el primer año y la infância temprana” (VYGOTSKI,
2006a, p. 288).
A segunda peculiaridade da situação social do bebê, apontada por
Vygotski (2006a), é: “aunque todo su comportamiento está inmerso en lo
social, carece todavía de los medios fundamentales de la comunicación
social en forma de la lenguaje” (p. 285).
Ao examinar o final do primeiro ano de vida, Vygotski (2006b)
assinala que ocorrem três momentos de crise: o primeiro se refere ao
andar como forma principal de deslocamento no espaço, o segundo se
refere à linguagem e o terceiro se refere aos afetos e à vontade. Vygotski
(2006b) considera esses três momentos o conteúdo da crise do primeiro
ano de vida, mas concentra sua análise na linguagem: “elegimos el lenguaje
porque está más vinculado con la aparción de la conciencia infantil y con
las relaciones sociales del niño” (p. 320)21.
70
Segundo Vygotski (1995h) os meios de relação social se dão de duas
maneiras: relações diretas e mediadas. Para o autor, a primeira se baseia em
formas instintivas, de movimentos e de ações expressivas, sendo o contato
estabelecido por meio de toques, gritos e olhares: “Toda la historia de las
primeras formas de contacto social en el niño está repleta de ejemplos similares:
el contacto se establece por medio del grito, de tentativas de asir al otro por la
manga, de miradas” (VYGOTSKI, 1995h, p. 148).
A segunda maneira é uma etapa superior de desenvolvimento em
que se tem relações mediadas com o uso do signo, graças ao qual se
estabelece a comunicação entre os homens: “de por si se entiende que la
forma superior de comunicación mediada por el signo, es el produto de
las formas naturales de la comunicación directa; estas últimas, sin
embargo, se diferencian esencialmente de esta forma de comunicación”
(VYGOTSKI, 1995h, p. 148).
Considerações Finais
71
uma nova etapa se configura, e a mediação pela linguagem prevalece.
Contudo, na mediação da ciência, o conhecimento científico é o que
prevalece.
A segunda característica é a relação entre a linguagem e os
processos psíquicos, internos. Desde a mediação dos reflexos psíquicos,
busca-se a compreensão da psique em suas linhas internas de
manifestação, sem ignorar suas manifestações externas. Nesse sentido, a
fala torna-se um componente fundamental de análise do psiquismo
humano em sua totalidade.
A terceira característica é servir de meio simbólico compositor
entre o homem e as condições sociais e culturais, numa atividade
orientada a um fim. A teoria histórico-cultural vai desenvolver essa ideia
ao máximo, com base na concepção de trabalho, em Marx. O simbólico é
sua expressão externa, e o significado seu núcleo.
Nessa discussão, dois fatores têm que ser levados em conta na
ideia de signo como instrumento psicológico mediador: ter origem social;
e ter sido inventado pelo homem e ser usado por ele, intencionalmente,
em sua relação com o mundo.
Essas facetas permitem que o signo, como instrumento, seja uma
extensão do sujeito, mas ao mesmo tempo não se confundir com ele,
justamente por ser meio. Como comenta Fitchner (2010, p. 249), “um
meio faz parte do sujeito e resulta da atividade do sujeito, mas ao mesmo
tempo se diferencia do sujeito porque, numa certa perspectiva, o meio é
também parte do objeto, espelha certas qualidades desses objetos com os
quais tem uma relação”. Fitchner (2010) comenta que, no caso dos signos,
“espelham não o objeto em si a que fazem referência, mas a compartilha
da forma de referir o objeto” (p. 249). Em Vygotski (1991e) lemos que o
instrumento precisa de um significado porque “el instrumento guarda conexión
con el significado (del objeto)” (p. 122, grifo do autor).
Por fim, concluímos que a ideia de mediação percorre toda a obra
de L. S. Vigotski, como mostram os dados da pesquisa. Seu
entrelaçamento com a teoria de L. S. Vigotski é constante, e envolve
bastante a educação. No final do texto “O problema da consciência”,
lemos o seguinte: “el hecho central de nuestra psicología es el hecho de la
acción mediada” (VYGOTSKI, 1991e, p. 130). O termo mediação
72
aparece desde os primeiros escritos de L. S. Vigotski publicados, e segue
em sua produção até o fim, o que, ao nosso ver, corrobora essa afirmação.
A atividade humana simbolicamente mediada e socialmente
constituída são partes vitais da teoria de L. S. Vigotski. Os signos e
símbolos são os meios de produção do homem em seu mundo. O homem
inventou e vem utilizando os signos e os símbolos. A natureza simbólica
humana, usando a expressão de Pino (2005), nos permite pensar o próprio
homem, a humanidade. Por outro lado, nos permite também acessar o
melhor e o pior do ser humano nas marcas do simbólico.
Referências
73
FREDERICO, C. O Jovem Marx 1843-1844: as origens da ontologia do ser
social. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
74
PAVLOV, I. P. Condições de elaboração dos Reflexos Condicionados. In:
PAVLOV, I. P. Técnica da Exploração Objetiva dos Grandes Hemisférios
Cerebrais. Obras Escolhidas. São Paulo: Hemus, 1970b, cap. 3, p. 57-64.
VAN DER VEER, R.; VALSINER, J. Vygotsky: uma síntese. 6 ed. São
Paulo: Edições Loyola, 2009.
75
Educação & Sociedade, Universidade de Campinas, v. XXI, n. 71, p. 21-44,
jul. 2000. O manuscrito é de 1929.
76
VYGOTSKI, L. S. El problema del desarrollo de las funciones psíquicas
superiores. In: VYGOTSKI, L. S. História del Desarrollo de las
Funciones Psíquicas Superiores. Obras Escogidas. Madrid: Visor, tomo III,
cap. 1, 1995b, p. 11-46.
77
VYGOTSKI, L. S. El primer año. In: VYGOTSKI, L. S. Problemas de la
Psicología Infantil. Obras Escogidas. 2 ed. Madrid: Visor, tomo IV, 2006a,
p. 275-318.
78
Capítulo 3
79
Neste capítulo, buscar-se-á destacar a valiosa teoria de Sergei
Leonidovich Rubinstein - - Сергей Леонидович Рубинштейн (1889-
1960), em especial, a partir das contribuições abertas por seu pensamento
na compreensão do fenômeno da constituição humana e as possibilidades
de sua instrumentalização no campo educacional. Em face do propósito
do presente, cabe situá-lo no conjunto de produções, desenvolvidas no
âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas em Didática Desenvolvimental
e Profissionalização Docente – GEPEDI, que favorecem o acesso de
pesquisadores contemporâneos ao pensamento e obra da matriz histórico-
cultural (FEROLA, 2019; LONGAREZI; FRANCO, 2013;
NASCIMENTO, 2014; LONGAREZI; ARAÚJO; PIOTTO; MARCO,
2018; LONGAREZI; PUENTES; ARAUJO, 2020; LONGAREZI;
PUENTES, 2020; PUENTES; LONGAREZI, 2020; LOPES, 2020;
CARDOSO, 2020; AMORIM, 2020; SOUZA, 2016). Trabalhos que,
como este capítulo, evidenciam a intensidade de um coletivo vivo e
diversificado, cujas produções, ainda que assinadas por uns poucos,
irremediavelmente carregam em si marcas do coletivo no qual se fizeram
possíveis.
Sergei Leonidovich Rubinstein, psicólogo e teórico soviético,
nascido em Odessa, Província de Kherson, no Império Russo, é autor de
uma produção filosófico-psicológica materialista histórico-dialética de
inestimável valor, mas ainda pouco explorada no ocidente, se comparada a
capilaridade do alcance das produções de outros autores a ele
contemporâneos e representantes das produções de matriz Histórico-
Cultural. O acesso às suas obras ainda é difícil, apenas um limitado
número de suas publicações foi traduzido para a língua portuguesa e/ou
espanhola. Para além dos empecilhos da língua, fatores históricos também
favoreceram o estabelecimento de entraves à pesquisa científica, em
especial, o rigor da censura sofrida por S. L. Rubinstein durante o período
stalinista da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS.
O que, definitivamente, não significa que seu pensamento não
fora objeto de importantes investigações e reconhecimento de todo tipo.
80
É evidência disso o modo como em 1943, S. L. Rubinstein23 se torna o
primeiro psicólogo a integrar a Academia de Ciências da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS, um claro reconhecimento de sua
fundamental atuação na delimitação da Psicologia como uma ciência
independente naquele contexto histórico. Também é derivado de seu
trabalho a criação do setor de Psicologia no Instituto de Filosofia da
URSS em 1945, que junto a seus estudantes integrantes, conseguiram
estabelecer as prioridades da pesquisa psicológica a partir do estudo
comparado dos problemas da Psicologia, considerando as direções já
estabelecidas pela pesquisa acadêmica na Europa e América. Também se
destacou por aproveitar-se das investigações psicológicas produzidas ao
longo da Segunda Grande Guerra (1939-1945), que permitiram-lhe
compreender melhor os limites do fundamento neurofisiológico do
desenvolvimento humano, sendo um dos poucos psicólogos daquele
momento histórico empenhados na defesa da conexão entre a produção
psicológica nacional e internacional. Ainda que seu pensamento tenha
sofrido rigorosas restrições e censuras, é notório o reconhecimento que
ainda lhe é prestado, por exemplo, na manutenção de um escritório
memorial em sua homenagem no Instituto de Psicologia da Academia
Russa de Ciências.
Por outro lado, é essa postura crítica, ativa e atenta ao
desenvolvimento mundial do pensamento psicológico que lhe impôs
duras retaliações e que, colateralmente, exerceram grande influência na
descontinuidade dos estudos iniciados, reduzindo drasticamente os
impactos que seu pensamento e obra poderiam gerar. Araujo (2012)
comenta o relato de A. N. Shadan24, no qual é explicado o contexto da
reestruturação das universidades soviéticas pós 2ª Grande Guerra. Neste
processo, S. L. Rubinstein e outros psicólogos sofreram uma severa
repressão, acusados de não terem superado as teorias psicológicas burguesas, de
certa forma, desdobramentos dos Processos de Moscou (1934-1938),
momento no qual se testemunhou um expurgo em massa de todo aquele
considerado contrário ao regime. Em 1949, durante uma sessão do
81
conselho diretivo da Universidade de Moscou, S. L. Rubinstein foi
dispensado25 da função de professor titular da cátedra de Psicologia,
afastado das atividades de pesquisa além de ter seus livros confiscados,
reassumindo suas atividades acadêmicas apenas em 1956, 3 anos após a
morte de Stalin.
A instrumentalização do pensamento de S. L. Rubinstein na
pesquisa apresentada sinteticamente neste texto se deu em um movimento
compreensivo e interpretativo do fenômeno constituição humana, com
vistas a encontrar as potenciais contribuições que o referido fenômeno
pode oferecer para o campo educacional. Uma vez que o humano se
constitui historicamente, torna-se de suma importância o entendimento
deste processo com vistas a organizar as práticas educacionais e muni-las
com um conteúdo capaz de favorecer o desenvolvimento humano
universal, integral e harmonioso. Nesse sentido, é preciso destacar a
importância e o sentido dos termos compreensão e interpretação anteriormente
indicados.
Compreender, indica a condição fundamental da realidade exterior
como realidade objetiva, passível de ser percebida, analisada e alcançada
pela inteligência humana. Revela que, metodologicamente, esta realidade
observada, seja ela material, social ou psíquica, orienta o olhar
investigativo, tal realidade é fonte de manifestações, fenômenos, seres,
entre outros, que na pesquisa transformam-se em objeto de análise,
observação e teorização com vistas à sua compreensão.
Complementarmente, é preciso considerar que essa ação de compreender
a realidade não se dá no vazio, representa o agir intencional do próprio
pesquisador, caracterizado enquanto sujeito histórico.
A historicidade singular de sua pessoa implica a existência de uma
outra realidade, tão fundamental quanto aquela exterior a pouco
comentada, mas agora interior ao sujeito que pesquisa, subjetiva. Tal
qualidade subjetiva revela que a objetividade da realidade exterior terá sua
compreensão dependente das qualidades interiores do pesquisador em
questão. Da formação que este vivenciou ao longo de sua vida, dos
82
conteúdos teóricos, metodológicos e conceituais que domina, das
motivações que o alimentam e das emoções que o afetam em cada
momento da pesquisa. Por isso, é também interpretativa, é resultado de
um processo criativo daquele que ativamente busca compreender a
realidade investigada. Em outras palavras, a pesquisa ilustra em certa
medida o próprio objeto de sua investigação ao revelar-se como expressão
da unidade interno-externo.
É certo dizer que ambas as orientações investigativas são em
essência inseparáveis, dessa forma, as ações de compreender e de
interpretar se fizeram presentes enquanto fundamento metodológico do
trabalho como um todo, ainda que a estrutura do texto, em algum
momento, apresente um ou outro termo isoladamente. Mais do que isso,
tais orientações investigativas além de representarem parte da metodologia
adotada também expressam a instrumentalização do pensamento de S. L.
Rubinstein inicialmente pretendida. Não é possível, neste prisma,
compreender-se a realidade observada sem que os fenômenos
investigados se tornem objetos de interpretação deste pesquisador, mas
também não é possível qualquer interpretação puramente ideal e
desprovida da relação estabelecida para com uma realidade objetiva e
exterior, cuja inteligência humana e o esforço de teorização buscam
alcançar.
Dito isso, é certo afirmar-se que o enfrentamento do problema
das contribuições para o campo educacional que o processo de
constituição humana pode desvelar no pensamento de S. L. Rubinstein se
deu pela análise da concepção de desenvolvimento presente nas obras
encontradas, investigando-se a unidade estabelecida entre os fenômenos
Personalidade, Psique e Atividade, à luz do estudo do processo de
filogênese-ontogênese. A adoção da inicial em maiúsculo para cada um
destes fenômenos representa uma opção metodológica importante e que
precisa ser entendida de modo adequado. Estará incorreta, por exemplo, a
compreensão que assumir a Personalidade como um conceito que indica a
ideia de uma personalidade única, geral, ou ainda como uma forma ideal a
ser buscada pelos processos formativos diversos, como os escolares. O
uso em maiúsculo do termo, neste trabalho, visa distinguir o fenômeno
em sua forma conceitual da particularidade de sua manifestação singular
em determinada pessoa em específico. Dessa forma, o conceito
83
Personalidade indica o fenômeno, comum aos humanos e cujo esforço de
compreensão e interpretação se faz presente ao longo desta pesquisa.
Diferentemente da personalidade, da psique e da atividade, em minúsculo,
que indicam a particularidade de uma manifestação específica, que apesar
de singular, carrega em si as qualidades essenciais do fenômeno humano
que os conceitos Personalidade, Psique e Atividade buscam definir.
Como poderá ser verificado, o fenômeno constituição humana
exigiu sua observação e análise enquanto um processo formativo, no qual
a Personalidade se revelou como expressão da relação sistêmica e
dialética estabelecida entre a Atividade e a Psique, a partir do
tratamento teórico e metodológico adotado. Deriva deste fato que as
contribuições para o campo educacional não se restringiram à educação
escolar, mas antes se referiram à educação enquanto fenômeno amplo e
intrínseco àquele processo formativo que caracteriza a natureza da
constituição humana. Evidentemente, a educação escolar está contida na
educação entendida como tal fenômeno maior e ontogenético do
humano, sua qualidade educacional escolar representa uma forma
particular de sua manifestação e que não foi negligenciada por esta
investigação.
No conjunto do pensamento rubinsteiniano, encontra-se uma
marcante riqueza de distintos objetos e problemas investigados, dentre
eles, e em especial, o da constituição humana que foi assumido nesta
pesquisa como seu objeto de investigação, analisada a partir da totalidade
filogênese-ontogênese. Tal fenômeno, cuja observação e análise é
instrumentalizada a partir da Teoria da Atividade, da Teoria do Reflexo e
do Princípio do Determinismo, viabiliza a compreensão dos modos como
a Personalidade é elaborada e desenvolvida em meio à relação externo-
interno estabelecida pela Atividade do sujeito que interage com a realidade
na qual este se insere, considerando ainda que esta Atividade é também
mediada pelas qualidades psíquicas interiores da pessoa. Constitui-se
humano na medida em que forma e desenvolve sua Personalidade,
juntamente como os demais fenômenos psíquicos que a compõe, a partir
da Atividade específica que desempenha e sob a influência simultânea dos
limites e das possibilidades impostas por sua realidade.
É comum às pesquisas com temáticas educacionais que suas
análises contenham em si elementos essencialmente normativos, ou seja,
84
que suas investigações tenham como foco as possibilidades de um
determinado fenômeno ser, ou ocorrer, de modo específico e diverso
daquele em que normalmente é ou ocorre. Ilustrativa e comparativamente,
é a evidência de que existem problemas no processo de alfabetização das
crianças em seus primeiros anos escolares que motiva a pesquisa
educacional relativa à alfabetização, visando enfrentar aqueles problemas,
pensando possibilidades de uma nova alfabetização, na qual tais desafios
tenham sido, ou possam ser, superados. É certo dizer que algo semelhante
ocorre em relação a este trabalho. Foi do reconhecimento desta
potencialidade normativa que a pesquisa estabeleceu o objetivo da
formação e do desenvolvimento humano a ser perseguido pelas
Atividades formativas, precisamente, o desenvolvimento humano
universal e harmonioso.
De modo mais preciso, o trabalho assumiu como
desenvolvimento universal a especificidade de um desenvolvimento
psíquico integral que alcance o conjunto das propriedades internas,
psíquicas, fundamentais responsáveis pela formação e pelo
desenvolvimento da Personalidade, contemplando as variadas formas de
manifestação de seus elementos cognitivos, emocionais, volitivos e
comportamentais. Integral por considerar o humano em sua totalidade e,
universal por intencionar sua acessibilidade sem restrições de classe
ou qualquer tipo, universal por entender o desenvolvimento integral
da Personalidade como um direito de toda a humanidade26.
Disso resulta o fato de que o melhor desenvolvimento a ser
perseguido pelas Atividades formativas, além de buscar contemplar,
formar e desenvolver todos aqueles elementos psíquicos comentados e
reconhecendo a relação sistêmica estabelecida entre eles ao longo do seu
desenvolvimento, precisa ainda objetivar que suas práticas possibilitem
85
um equilíbrio de cada um deles, tomados em particular. É fundamental
que além de oferecer as oportunidades para um desenvolvimento
integral e universal da Personalidade, que este processo se dê
harmoniosamente, ou seja, que atenda à totalidade das
propriedades cognitivas, emocionais, volitivas e comportamentais
que caracterizam os alicerces da Personalidade humana. Em outras
palavras, sem atrofiar ou hipertrofiar qualquer um destes elementos em
comparação com os demais, harmonioso no sentido de pretender o amplo
desenvolvimento de todos, em seu conjunto e na relação que estabelecem
entre si27.
Para tanto, e considerando que S. L. Rubinstein ocupa uma
posição central no estabelecimento de uma Teoria da Atividade, e com
grande potencial de contribuição em novas investigações diversas, é
correto dizer que se constituiu enquanto objetivo geral da pesquisa,
compreender a constituição humana no pensamento de S. L. Rubinstein e
na unidade estabelecida entre os fenômenos Personalidade, Psique e
Atividade. Com vistas a viabilizar este objetivo geral, foram definidos dois
objetivos específicos que auxiliassem o alcance daquele anterior, são eles:
1 – Investigar a centralidade da Atividade e da Psique na constituição
humana, como se formam e se desenvolvem na relação dialética e
sistêmica estabelecida entre elas, fazendo emergir a Personalidade e 2 –
Analisar como a constituição humana, em especial, em seus processos de
86
formação e desenvolvimento da Personalidade, implicam possibilidades de
condicionamento28 ontogenético humano, de elaboração de Atividades
formativas, com vistas à favorecer a constituição humana universal e
harmoniosamente desenvolvida.
A investigação se caracterizou como sendo uma pesquisa de
natureza teórica cuja abordagem do objeto investigado se deu pelo
conteúdo filosófico-psicológico do pensamento de S. L. Rubinstein, foi
viabilizada pelo método da unidade de Vigotski (2017, 2018) e buscou a
apreensão da totalidade a partir de sua decomposição em unidades. De
modo mais preciso, a pesquisa não buscou desmembrar a realidade nos
diferentes elementos que a compõe para então os analisar separadamente,
pelo contrário, todo esforço analítico foi marcado pela decomposição da
realidade em suas unidades. Por este método, buscou-se a compreensão
das unidades e suas particularidades, não isoladamente, mas vendo-as no
todo, tendo em vista uma totalidade a ser discernida, definida e
compreendida como tal. Isso significa que da análise da totalidade do
fenômeno revelaram-se determinadas particularidades, suas unidades, que
mesmo parciais ainda continham em si qualidades essenciais próprias
daquela totalidade, permitindo que pelas unidades a totalidade fosse
compreendida.
87
Do esforço abstrativo (RUBINSTEIN, 1968, 1973b;
DAVYDOV, [19--]) de estabelecimento dos nexos conceituais e de sua
estrutura sistêmica e a partir do método de decomposição em unidades
(VIGOTSKI, 2018) desvelou-se que a Personalidade e a Atividade
estabelecem entre si uma verdadeira unidade fundamental, mediada pela
Psique, e que contém em si as qualidades essenciais próprias da totalidade
do fenômeno observado, a filogênese-ontogênese. Dessa forma, o
entendimento da relação sistêmica e dialética estabelecida entre
Personalidade, Psique e Atividade como tal unidade essencial, cuja análise
permite a compreensão e interpretação da totalidade da constituição
humana, se evidenciou como produto desta investigação, mas
simultaneamente também como meio, como parte do método que a
viabilizou. Para tanto, fez-se metodologicamente necessário o
estabelecimento dos nexos conceituais, assim como das propriedades
psíquicas essenciais, que determinam o processo de formação e
desenvolvimento da Personalidade essencialmente vinculados às formas
históricas assumidas pela Atividade da pessoa, e sua mútua e recíproca
dependência, na medida em que por meio daquela unidade e de suas
relações se revelava a essência do fenômeno amplo, da constituição
humana, do qual partiu esta pesquisa.
88
Aquilo que vale para o conjunto da humanidade tem que valer
também em certo sentido para cada indivíduo. Não só a
humanidade no seu conjunto, como também cada ser humano
é, de certo modo, colaborador e sujeito da história da
humanidade e possui também a sua própria história, pois o
desenvolvimento da personalidade é mediado pelos resultados
da sua actividade, assim como o desenvolvimento da
humanidade é transmitido pelos produtos da sua prática
social, através da qual se estabelece a continuidade histórica
das gerações (RUBINSTEIN, 1973e, p. 132).
89
externo-interno sem trair-se teórica e metodologicamente, seja reduzindo
a realidade exterior à uma produção psíquica e espiritual do sujeito (tal
como fazem os idealistas) ou reduzindo a realidade interior, as
propriedades humanas espirituais, ao mero resultado direto de uma
causalidade unilateral originária do exterior.
É na contraposição a estes reducionismos que S. L. Rubinstein
define seu entendimento acerca da qualidade primária do ser. Mas,
paralelamente, é preciso reconhecer que ao longo da história, em especial
a do desenvolvimento da psicologia (por exemplo, a teoria do paralelismo
psicofísico29), o reconhecimento desta qualidade primária da realidade em
relação à consciência, foi por vezes e erroneamente confundida como
fator anulador da capacidade de Atividade e criatividade dos sujeitos
humanos. Sem dúvida, a posição da psicologia Materialista Histórico-
Dialética rubinsteiniana é diametralmente oposta a esta interpretação que
reduz a influência da realidade exterior a uma causalidade linear definidora
dos efeitos psíquicos que se manifestarão nos diversos sujeitos que as
experimentam.
Por tanto, o entendimento adequado da fundamentação teórica e
metodológica do pensamento de S. L. Rubinstein no Materialismo
Histórico-Dialético reivindica a compreensão de dois fatores que, no nível
da aparência, podem parecer incongruentes, mas, em essência,
dialeticamente convergem entre si como qualidades complementares do
mesmo fenômeno. Primeiro, reconhecer que sua fundamentação no
Materialismo Histórico-Dialético não reduz a influência externa a uma
causalidade linear e unilateral não significa, segundo, que se desconsidere a
função determinante que esta realidade exterior, material e social, cumpre
no estabelecimento de condições muito particulares propiciadoras ou
limitadoras do desenvolvimento humano. Em outras palavras, a
compreensão da qualidade primária do ser em relação à consciência que
deriva do caráter materialista da teoria rubinsteiniana depende,
essencialmente, da revisão do conteúdo significativo do princípio do
90
determinismo, historicamente tão marcado por interpretações
reducionistas e antidialéticas como as anteriormente apontadas.
A interpretação que reduz a função das influências e condições
exteriores a uma causalidade linear e determinante dos efeitos psíquicos
em sua forma final, representa uma simplificação típica de um
materialismo mecanicista. Nos limites desta percepção, anula-se a
possibilidade da dialeticidade, os elementos superestruturais e espirituais
(sociais e psíquicos) não seriam capazes de promover modificações
daqueles fenômenos dos quais derivam, constituindo-se apenas como
“sombras” daqueles.
91
determinado contexto de influências externas, nem o próprio ambiente no
qual se insere e onde se constitui o humano que trabalha, são idênticos
nos diferentes momentos históricos. Na medida em que as condições
internas medeiam os efeitos da influência vivida a partir da realidade
exterior na relação ativa para com ela estabelecida, tanto a humanidade
quanto o homem individualmente se constituirão de modos diferentes em
momentos distintos. No mesmo processo, a realidade continuamente será
modificada pela ação humana, caracterizando a relação dialética que
impulsiona sua própria historicidade.
92
relacionais é única, singular. Só essa distinção primordial já implicaria
variadas formas de interação com a realidade e garantiria o alcance de
diferentes efeitos a partir da vivência de condições e influências externas
semelhantes. Precisamente, a vivência, é singular e própria do sujeito que a
experimenta no contato, também singular, que estabelece para com a
realidade exterior e objetiva. Dada a historicidade dos elementos e das
formas psíquicas, mais precisamente, dado o modo como o
desenvolvimento das condições internas do sujeito se dá continuamente
nas relações que este estabelece com a realidade na qual se insere, vê-se
que os efeitos decorrentes da vivência representada nessa unidade
externo-interno, dimensões respectivamente objetiva-subjetiva, são
também historicamente determinados.
93
lado, e complementarmente, esta diferenciação exige uma caracterização
da teoria do reflexo que viabilize o entendimento mais preciso desta
diferenciação indicada. Em essência, a teoria do reflexo se constitui
enquanto um desdobramento da fundamentação epistemológica
Materialista Histórico-Dialética. Isso significa que por esse prisma teórico,
o psíquico, tal como a consciência e a Personalidade, é entendido
enquanto fenômeno secundário, todos os processos que participam de sua
formação e desenvolvimento estão determinados pela unidade constituída
a partir das condições objetivas da realidade histórica (material e social)
com as condições internas, também históricas, do próprio sujeito a partir
da Atividade que este desenvolve para com a realidade na qual se insere.
No nível da aparência, da mesma forma como dito para o
princípio do determinismo, a teoria do reflexo pode parecer incongruente
em relação à qualidade ativa e criativa que caracteriza a compreensão
rubinsteiniana das propriedades interiores humanas. Pode parecer
incongruente afirmar qualquer Atividade e criatividade no reflexo, já que,
a princípio, o termo parece referir-se apenas à passividade de um
determinado efeito produzido por uma causa externa, tal como a imagem
vista pelo sujeito frente ao espelho. Por outro lado, e de modo figurado
neste momento, também vale pensar a seguinte provocação: o reflexo é
dependente do espelho, ou mais precisamente, da superfície
refletora. A luz refletida por determinada superfície não é idêntica
àquela recebida, na verdade, é o resultado da interação da luz
recebida com as propriedades da superfície refletora.
Evidentemente a figura de linguagem não substitui as análises que
a seguirão, mas como argumentação ilustrativa, auxilia a revelar que as
qualidades e propriedades do espelho representam os elementos
mediadores que transformam a influência exterior experimentada e, se
desconsideradas, não permitem a compreensão verdadeira dos efeitos que
resultam da interação daquelas influências externas para com as
propriedades internas de quem as vivencia. Seus efeitos só poderão ser
devidamente compreendidos na relação particular entre eles estabelecida.
Ainda que seja evidentemente óbvia a simplicidade da analogia do espelho
(ou da superfície refletora), não é excessivo o cuidado em lembrar que o
universo humano é fundamentalmente dinâmico, histórico, social, enfim,
vivo. Tornando muito mais complexa a relação externo-interno do que a
94
referida analogia poderia, de fato, explicar, o que também não invalida a
utilidade do caráter sintético e ilustrativo de sua imagem.
Para se analisar a questão com maior cuidado, é certo dizer que
são duas as condições primárias para que a existência e constituição
humana se façam possíveis, primeiramente, sua existência corpórea e
funcional, genericamente, de um corpo munido de propriedades
fisiológicas funcionais e suficientes para a manutenção da vida e produção
de suas condições de existência. São algumas qualidades típicas da
fisiologia humana, que ultrapassam uma simples forma corporal específica
e distinta de outros animais, a funcionalidade própria dos órgãos
sensoriais, seus tipos e níveis de sensibilidade, a existência e
funcionamento do córtex cerebral, a especificidade de sua mão com a qual
manipula o ambiente, a existência de uma estrutura fonoaudiológica que
possibilite a fala, e todas as demais características definidoras da espécie
humana.
A segunda condição, é a existência da realidade exterior (material e
social) na qual se encontram as possibilidades e limitações postas pela
natureza, onde também se encontram as sociedades humanas
acompanhadas do conjunto de conhecimentos, práticas, hábitos, crenças
etc., historicamente acumulados, organizada em um determinado nível de
evolução de suas forças produtivas, caracterizada por formas específicas
de divisão do trabalho e organização social, e incontáveis outros
elementos exteriores a cada indivíduo particular. Como elemento
primário, está determinada a possibilidade de qualquer constituição
humana pela satisfação antecipada e simultânea das suas condições de
existência concreta, tanto as do corpo quanto aquelas da realidade
exterior.
Na relação estabelecida entre os sujeitos e sua realidade social,
material e histórica, possibilitada por aquelas condições anteriores, os
sujeitos se constituem enquanto pessoas, enquanto Personalidades. De
início, dado o funcionamento de seus órgãos sensoriais, a existência dos
objetos, seres e fenômenos que compõe a realidade pôde ser percebida. A
realidade exterior, nesse processo, torna-se conhecida pelo sujeito. O
conhecimento, ou antes, as sensações e as percepções que o possibilitaram
não são a própria realidade, são o efeito da influência da realidade no
sujeito particular, dada por sua atuação e por suas propriedades sensoriais,
95
são suas imagens. Tal como o conhecimento, todos os fenômenos
psíquicos se constituem como imagens resultantes da relação estabelecida
entre o sujeito e a realidade exterior.
96
percepções, conhecimento e consciência da realidade. Só existem na
unidade daquele sujeito com aquela realidade, determinadas pelas
propriedades específicas tanto da pessoa que atua quanto das influências e
condições postas pela realidade na qual se insere. Por isso são imagens,
seu conteúdo gnosiológico é inseparável tanto dos objetos e fenômenos
concretos que lhes dão origem, quanto das condições internas e da
conduta daquele que com eles interage.
97
especialmente, o modo específico de atuação dos órgãos sensoriais, o
funcionamento do córtex cerebral e do cérebro de modo geral
considerado enquanto órgão do psíquico) determinam possibilidades de
atuação dos sujeitos em sua realidade, é nessa atuação em que se
estabelece a relação com a realidade, mais precisamente, a unidade pessoa-
realidade. O caráter ativo, a Atividade do sujeito é definidora da relação
que este estabelece para com sua realidade. Um terceiro ponto, o
reconhecimento de que os fenômenos psíquicos são resultados da relação,
da interação possibilitada por aquelas pré-condições, é atuando na
realidade que os sujeitos simultaneamente experimentam suas influências
e manifestam seus efeitos resultantes e dependentes de suas condições
interiores.
As sensações, percepções, conhecimentos, a consciência e, de
modo amplo a própria Personalidade, são reflexos psíquicos derivados da
Atividade do sujeito no mundo e elaborados no sofrer destas influências
experimentadas a partir Atividade desenvolvida. Tais reflexos são
determinados pelas especificidades dos objetos, seres, fenômenos e
condições exteriores que geram sua influência na dependência da
qualidade da Atividade exercida pelo sujeito na realidade na qual se insere
e das condições interiores deste sujeito da Atividade. No que se refere à
teoria do reflexo, é correto afirmar que estes três pontos representam seus
elementos gerais. São gerais pois se fazem presentes em qualquer
manifestação particular do fenômeno da constituição humana, social ou
individualmente considerados. São gerais pois se mantém presentes e
atuantes ao longo de todo o desenvolvimento histórico das sociedades e
dos sujeitos. São gerais pois são essenciais, a existência de qualquer
formação social passada, presente ou futura, assim como de qualquer
Personalidade em qualquer tempo, essencialmente dependerão do arranjo
destas influências gerais.
98
efeito de uma causa externa depende não sòmente do corpo onde
se origina essa causa, como também do corpo sobre o qual se
verifica a acção. As causas externas actuam através de condições
internas (formadas na dependência de influxos externos). A teoria
do reflexo a que nos estamos referindo significa, na essência, que o
princípio do determinismo, na sua concepção materialista
dialéctica, se aplica à actividade psíquica do cérebro. Essa
concepção materialista dialéctica do determinismo constitui a
premissa geral da teoria da actividade psíquica considerada como
reflexo. É ela, em derradeira instância, que unifica os conceitos de
actividade psíquica como reflexo do mundo e como função do
cérebro (RUBINSTEIN, 1968, p. 13).
99
Para este autor, é o sujeito que, pela e na Atividade, desvela a
realidade ao atuar sobre ela e, desvelando-a, descobre também a si mesmo.
Simultaneamente, se constitui a partir das influências experimentadas na
vivência de sua interação com a realidade, influências estas cujos efeitos
dependem de suas condições interiores. Produz, ao mesmo tempo, sua
realidade, seus conhecimentos sobre a realidade, a si mesmo enquanto
Personalidade (cognitiva, emocional, volitiva e comportamentalmente) no
exercício ativo de interação para com a realidade, continuamente
modificando seus modos de agir sobre ela na medida em que constrói e
transforma a si e ao mundo.
Eis a essência do sentido de existência no prisma de Rubinstein
([19--]), ou seja, a condição de ser do sujeito, de existir enquanto tal
implica, necessariamente, o sofrer das influências e das condições
exteriores da realidade na qual se inclui, sendo inerente ao fato de existir
sua condição de agir, de influenciar e estar exposto à influência. É de tal
qualidade do ser, que existindo influencia e sofre influência, pela e na
Atividade, faz derivar sua consciência simultaneamente como seu produto
e condição. Condição essa que ao considerar a especificidade do ser, que
existe, nas relações também específicas que estabelece com a realidade
particular na qual se inclui, singulariza os sujeitos e, consequentemente,
singularizando suas Personalidades em formação e desenvolvimento.
Da mesma forma como a realidade determina as influências e as
condições nas quais os sujeitos se constituirão, será na constituição destes
sujeitos que as Personalidades em elaboração, com suas especificidades
psíquicas, atuarão na transformação da realidade. Desta prática social, que
no limite alcança em maior ou menor grau a Atividade individual de cada
sujeito, que a realidade exterior, material e social será continuamente
modificada. Em síntese, a humanidade historicamente produz-se a si
mesma, filogenética e ontogenéticamente, na medida em que os
sujeitos se constituem humanos, produzindo e reproduzindo as
condições e modos humanos de existência.
De modo sintético, é correto dizer que em S. L. Rubinstein o
princípio do determinismo exige sua interpretação enquanto relação,
ou seja, como um verdadeiro fenômeno dialético entre a realidade
(suas influências e condições), e o interno (o espaço de manifestação ativa
100
e criativa do psíquico), dada a partir da unidade externo-interno
estabelecida pela Atividade.
Estabelecer a unidade Personalidade-Psique-Atividade
como fenômeno primário do movimento desta investigação
representou, dessa forma, analisar o processo da constituição
humana na especificidade da sua condição de sujeito ativo, criativo,
singular e coparticipante de sua própria constituição. Como dito, na
“explicação dos fenômenos psíquicos, quaisquer que sejam, a personalidade se apresenta
como um conjunto de condições internas através das quais passam, modificando-se, todos
os excitantes externos (RUBINSTEIN, 1959, p. 14-15, grifo do original)”.
Metodologicamente, a opção por partir-se da análise da Personalidade
representou assumir a forma sistêmica de interconexão destes fenômenos,
desvelando suas interconexões e reconhecendo suas especificidades nos
modos como participam e integram a constituição humana. Assim, a
análise da unidade decomposta Personalidade-Psique-Atividade revelou e
possibilitou a compreensão da totalidade observada, nas formas
particulares com as quais se manifesta na realidade.
Por isso, a “actividade expressa a relação concreta do ser humano
com a realidade, na qual aparecem realmente as características da
personalidade (RUBINSTEIN, 1973d, p. 12)”. Se a qualidade da
Atividade da pessoa é dependente de suas condições internas, valida-se a
unidade instrumental desta investigação ao confirmar-se que a
Personalidade é a expressão da Psique e da Atividade, em unidade
dialética e na relação que estabelecem para com a realidade. Investigar a
formação da Personalidade exigirá, evidentemente, a contínua e atenta
observação da relação que tal processo formativo estabelece para com a
Atividade de modo geral.
101
Simultaneamente a tal processo de relacionamento e modificação
da realidade, o homem supera os limites da percepção superficial dos
fenômenos que observa ao seu redor. Relacionando e modificando seu
ambiente, desvela as qualidades e propriedades do objeto ou fenômeno
manipulado, vislumbra e torna conhecida sua essência e as relações
envolvidas no processo de sua Atividade. Alcança a condição de sujeito
ativo deste processo de interação com a realidade na medida em que se
torna consciente dos resultados de seu trabalho, torna-os produto de sua
intencionalidade, impondo-se ao mundo, dessa forma, como
Personalidade.
102
ou efectivo. Para o indivíduo na sua unidade não são essenciais,
decisivas e determinantes as normas biológicas, mas as normas
sociais da sua evolução. No sistema de relações que determinam
aquelas as relações sociais são determinantes (RUBINSTEIN,
1973e, p. 120, ajuste meu).
por Jaime Carvalho Coelho, o termo que motiva essa nota de rodapé está
apresentado como afectivas. Em uma leitura comparada de S. L. Rubinstein (1977),
obra publicada pela editora cubana Pueblo y Educación e traduzida por Sarolta
Trowsky, nota-se o emprego do termo efectivas. Comparados os diferentes significados
entre os referidos termos no conjunto do pensamento rubinsteiniano, é minha
opinião que houve um erro no processo datilográfico no volume VII da obra
publicada em 1973. Mantenho a citação ajustada na língua portuguesa garantindo a
homogeneidade do tratamento textual dado, mas deixo a referência em língua
espanhola como recurso analítico comparativo. “[...] la personalidad es el individuo
concreto, histórico y vivo, que está implicado en las relaciones efectivas o reales con
respecto al mundo real o efectivo. Para el individuo en su unidad no son esenciales,
decisivas ni determinantes las normas biológicas, sino las normas sociales de su
desarrollo. En el sistema de las relaciones que determinan aquéllas son determinantes
las relaciones sociales (RUBINSTEIN, 1977, p. 741)”.
103
psíquica condicionada pelas circunstâncias objectivas da vida do
homem e, por sua vez, condicionadora da conduta deste,
incorpora-se à inter-relação universal dos fenómenos num duplo
plano: na qualidade de condicionada e na qualidade de
condicionante (RUBINSTEIN, 1968, p. 322).
104
resultados gerados por suas ações sobre a realidade manipulada. Com isso,
consegue estabelecer a intencionalidade de seus atos, prevendo os
resultados que sua Atividade provoca na realidade, torna-se capaz de
estabelecer objetivos a serem perseguidos e cujo alcance é absolutamente
dependente de sua ativa participação. A formação e o desenvolvimento
dos elementos psíquicos surgem como um resultado desse processo, na
medida em que se produzem, toda a estrutura psíquica é reorganizada na
forma de uma estrutura nova, nesse processo forma e desenvolve-se
enquanto Personalidade33. De resultado da Atividade, à medida em que se
estabelece e se transforma, o psíquico passa a condicionar a própria
Atividade, dialeticamente transformando a fonte que anteriormente o
produziu e que continuamente o modifica.
105
como a realidade viabiliza a relação ativa da Personalidade para com esta
realidade. Mais ainda, o psíquico, que participa da elaboração da Atividade
humana, é formado e desenvolvido nesta própria Atividade, na vivência
das influências exteriores experimentadas nessa relação e transformadas
pelas qualidades internas, psíquicas e fisiológicas, das Personalidades que
as sofrem.
Vê-se que não se trata de um formalismo arbitrário a centralidade
ocupada pela Atividade na formação e desenvolvimento da Personalidade.
É por meio dela que a relação do sujeito para com sua realidade é
estabelecida, é a partir dela que a influência da ação humana sobre a
realidade se realiza. É por ela que a influência recíproca da realidade e das
condições externas, históricas e sociais, são vivenciadas pelos múltiplos
sujeitos. É no seu exercício que as qualidades essenciais da realidade são
reveladas, ao mesmo tempo em que são descobertos, ou seja, tornam-se
conscientes ao humano os efeitos que sua ação gera nesta realidade com a
qual se relaciona. Tais descobertas tornam possível a intencionalidade e o
planejamento da própria Atividade pelo estabelecimento de objetivos a
serem alcançados por seu exercício. Pontualmente, as qualidades que
fazem da pessoa um sujeito ativo e consciente se constituem como
elementos essenciais da Atividade.
Seja o trabalho considerado em sentido amplo e social ou, ainda,
seja a Atividade considerada em sentido restrito e individual, se
fundamenta como fenômeno essencial da formação da Personalidade. E
se, como dito, a “<<ontogênese>> do homem é a vida da personalidade,
o processo do desenvolvimento individual” (RUBINSTEIN, 1972b, p.
164)”, é correto abstrair-se da análise desse processo o fato de que a
constituição humana se faz possível e é essencialmente dependente da
forma como a pessoa se estabelece enquanto sujeito ativo e consciente das
práticas sociais que participa nas suas relações com o mundo ao seu redor.
Em outras palavras, não seria possível o estabelecimento da unidade
Personalidade-Atividade sem a mediação da psique, precisamente na
106
forma das propriedades e dos processos psíquicos que a compõe, tal
como a consciência, a vontade, as emoções, a memória, o caráter, entre
outros.
Sinteticamente, é a Atividade que possibilita a constituição
dialética da unidade pessoa-realidade, dessa unidade e da mútua e
simultânea influência de suas qualidades psíquicas e sociais que a
formação e o desenvolvimento da Personalidade, consequentemente, da
constituição humana, se fazem possíveis. Os diversos sujeitos, nos
distintos momentos históricos e nos variados contextos sociais e culturais
nos quais se incluem, estabelecem tal unidade a partir de sua Atividade.
Por meio da Atividade e na unidade pessoa-realidade estão
determinadas as formas condicionantes, não os efeitos resultantes,
como se darão o desenvolvimento da Personalidade nas suas
múltiplas possibilidades particulares. Consequentemente, é nesse
mesmo processo em que se manifesta a ontogênese humana.
107
ações, ocorre dialeticamente a transformação da natureza, da realidade
externa e social na qual aquele se inclui. Da mesma forma, pela ação da
pessoa, a realidade concreta se modifica estabelecendo novas formas de
influência e novas condições de existência exteriormente determinadas
para o conjunto dos sujeitos que integram um dado contexto histórico e
social.
A Personalidade, como expressão da singularidade da pessoa e do
nível de seu desenvolvimento psíquico em unidade com sua atuação na
realidade, não só se forma como se transforma ao longo desse processo.
Em meio a dialética e contínua tensão e influência das modificações dos
fatores externos e internos à pessoa ao longo de sua existência, a
Personalidade acumula reiteradas modificações quantitativas que
culminam, em certo ponto, em uma transformação qualitativa de suas
propriedades. Como resultado, dá-se novas modificações de sua própria
Atividade e das relações que estabelece com as demais pessoas e com a
sua realidade, determinando novamente a causalidade de novas
modificações tanto de suas qualidades psíquicas interiores quanto de sua
realidade exterior, dialética e ininterruptamente.
108
possível a compreensão da constituição humana, assim como também a
possibilidade de instrumentalização deste saber com vistas a alcançar
objetivos educacionais.
Mesmo que o foco analítico-abstrativo esteja neste momento
centrado argumentativamente no fenômeno da Personalidade, a
compreensão da filogênese-ontogênese enquanto generalização do
processo de constituição humana, exige o entendimento das relações e
mútuas influências estabelecidas por suas propriedades internas,
essenciais. Em meio ao gradativo desvelamento da relação sistêmica
existente entre as propriedades gerais da Personalidade, evidenciou-se
com grande nitidez sua dependência em relação ao sistema que configura
a organização de suas qualidades essenciais decompostas neste processo.
Dito de modo mais preciso, ao longo da investigação alguns processos,
funções e fenômenos psíquicos revelaram possuir uma importância
principal na qualidade da unidade dialética que estabelecem para com a
Atividade e no que se refere à formação e desenvolvimento da
Personalidade, precisamente, a Consciência, a Vontade, as Emoções, as
Aptidões e o Caráter35.
É preciso considerá-los como propriedades essenciais que em
unidade definem o fenômeno da Personalidade, estão todos em interação,
mútua e recíproca influência, mas, precisamente em relação à formação e
desenvolvimento da Personalidade, revelaram conexões específicas. Se
compreendidos como fenômenos isolados ou independentes, ainda que
em interação, não seria possível a compreensão adequada da natureza da
Personalidade e, metodologicamente, se perderia o foco na compreensão
da totalidade filogênese-ontogênese que é a razão fundamental de todo o
esforço investigativo e do uso destes recursos metodológico-
instrumentais. Como o tratamento pormenorizado destes fenômenos
extrapolaria os limites e os objetivos deste trabalho, em Souza (2019)
109
poder-se-á encontrar uma cuidadosa análise de cada um deles, servindo de
fonte complementar a quem, porventura, se interessar.
110
se desenvolvem, sendo a Personalidade a expressão da unidade dialética
delas estabelecida. Processos próprios da constituição humana e que
guardam grande potencial instrumental didático-pedagógico.
Ainda que dependente de estudos que avancem rumo a
intervenções práticas na realidade escolar, é certo dizer que uma escola,
pensada nos moldes aqui propostos, não teria nos conhecimentos
curriculares seus principais objetivos formativos, seus estudantes não
estariam na escola com vistas ao aprendizado de determinado
conhecimento específico apenas. Na verdade, o modelo de escola que
deriva das presentes proposições se assenta na percepção que os
conhecimentos curriculares representam meios, instrumentos que
comporão as Atividades educativas escolares organizadas pelo
professor com vistas ao desenvolvimento de determinadas
propriedades, socialmente desejáveis, da Personalidade em suas
múltiplas formas particulares de manifestação concreta. Neste
segundo caso, seu objetivo formativo é o desenvolvimento
consistente, universal, integral e harmonioso da Personalidade,
sendo que para isso, instrumentalizará as Atividades de ensino-
aprendizado, assim como os conhecimentos escolares, como instrumentos
didáticos viabilizadores das condições do desenvolvimento da
Personalidade pretendido.
Fará isso organizando cuidadosamente as Atividades educativas
capazes de influenciar as propriedades, fenômenos e processos psíquicos.
Fazendo da Atividade educativa o meio pelo qual a pessoa vivencia a
experiência de interação com a realidade, em especial, as influências e as
condições da realidade na qual se insere. Nunca perdendo de vista que os
efeitos das influências externas vivenciadas a partir da Atividade são
internamente elaborados a partir da mediação da Psique. As
propriedades psíquicas internas que caracterizam cada Personalidade, à
medida em que se formam e se desenvolvem, e em unidade para com a
Atividade, transformam os modos como aquela influência externa é
vivenciada, consequentemente, modificando a forma como produzem-se
seus efeitos e determinando modificações na própria estrutura da
Atividade.
Vê-se que a proposição que deriva desta pesquisa não assume o
conhecimento como fim da formação, seja ela escolar ou não, mas como
111
meio. Nesse sentido, os conhecimentos atuam como conteúdo da
Atividade formativa e elemento orientador da conduta. Em outras
palavras, o que está posto é a proposição de uma estrutura de organização
das Atividades formativas capaz de propiciar um meio externo
cuidadosamente organizado para, primeiramente, condicionar um
determinado tipo específico de Atividade que estabeleça a interação da
pessoa com o conjunto dos conhecimentos exteriores e interiores em
foco. Segundo, que tal Atividade estimulada propicie a vivência de
influências específicas que melhor ofereçam condições para um
determinado desenvolvimento pretendido.
Tão importante quanto o esforço de elaboração, planejamento e
execução das Atividades formativas, é a habilidade de avaliação
diagnóstica contínua das aptidões e de seus níveis de desenvolvimento no
conjunto das pessoas com os quais se desenvolve o trabalho formativo.
Para o desenvolvimento de Atividades educacionais com vistas à
formação e o desenvolvimento de Personalidades integrais e harmoniosas,
se fará necessário o acompanhamento de fenômenos essencialmente
psíquicos, tal como a memória, a percepção, a atenção, as emoções, a
consciência, as motivações, entre outros. O fato é, como visto, os
fenômenos psíquicos encontram na Atividade o elemento propiciador de
suas formações e desenvolvimento, mas à medida em que esta formação e
desenvolvimento ocorre, transformam a Personalidade e determinam
novas formas de estabelecimento da Atividade.
É inseparável aos fenômenos psíquicos seu vínculo para com a
Atividade humana na medida em que é dela que derivam sua existência e
seu nível de desenvolvimento. Mas ao mesmo tempo, é inseparável da
Atividade o conteúdo interno da Personalidade, essencialmente
representado pela Psique que determina limites e possibilidades para o
estabelecimento da própria Atividade. Diagnosticar, nesse sentido,
significa saber reconhecer na Atividade a expressão da ativa
participação dos fenômenos psíquicos que viabilizaram a forma
final assumida por uma Atividade específica. Mas, inversa e
dialeticamente, também significa reconhecer os próprios
fenômenos psíquicos como expressões reflexas das Atividades que
os propiciaram e os desenvolveram.
112
A psique, a consciência, ao desenvolver-se na
actividade, também se manifesta na actividade e na
conduta. Actividade e consciência não são dois
aspectos dirigidos para diferentes direcções. Ambos
formam um todo orgânico, não são idênticos, antes
constituem uma unidade. O homem que é movido por
um impulso qualquer, trabalhará de maneira diferente
quando tem consciência do mesmo impulso de quando
não tem, isto é, quando estabelece um objectivo para o
qual se dirige. O facto de ter consciência da sua actividade
faz mudar as condições de direcção da mesma e, com isso,
também o seu desenvolvimento e o seu carácter. Esta
actividade deixa de ser um simples complexo de reacções
de resposta aos estímulos externos de ambiente e passa a
regular-se de outra maneira (RUBINSTEIN, 1972a, p. 30,
grifo meu).
113
Personalidade. Precisamente, na forma como estão intrinsecamente
envolvidos os fenômenos da Personalidade, da Psique e da Atividade no
processo maior da constituição humana analisada a partir da totalidade
filogênese-ontogênese. A abstração realizada a partir do pensamento
rubinsteiniano representou o meio utilizado para a percepção da relação
existente entre a Atividade e a Psique na forma como as influências
externas são possibilitadas e vivenciadas, respectivamente. Como
expressão deste movimento evolutivo próprio apresentado nesta relação
sistêmica emerge a Personalidade, que na medida em que se constitui e
desenvolve, transforma em essência tanto a própria Atividade quanto a
Psique em um contínuo movimento evolutivo marcado pela interação
recíproca e dialética entre Personalidade, Psique e Atividade, eis a vida da
Personalidade e que caracteriza a especificidade da constituição humana.
Como dito, é a Personalidade “a base que determina o estudo de
todo o psiquismo do homem (RUBINSTEIN, 1973e, p. 13)”, mas não
apenas a Psique é revelada nas particulares formas como se manifesta a
Personalidade, também a Atividade, na medida em que é por meio dos
variados modos do comportamento humano que se faz possível a
formação e o desenvolvimento psíquico revelado pela Personalidade. “As
qualidades psíquicas da personalidade manifestam-se tanto na sua conduta
como nos seus actos e acções, formando-se simultaneamente com elas
(RUBINSTEIN, 1973e, p. 20)”. É por isso que a análise da Personalidade
se evidenciou tão importante no esforço de se compreender a constituição
humana, afinal, por meio dela faz-se possível a compreensão do humano
em sua integralidade, não fracionado em elementos desconectados ou
independentes. Observar a Personalidade é observar a totalidade do
humano real cuja constituição busca-se compreender, “a personalidade é o
indivíduo concreto, histórico e vivo (RUBINSTEIN, 1973e, p. 120)”. Por
isso, somente pelos processos que a determinam, a dialética entre
Atividade e Psique, que a constituição humana poderá ser compreendida,
precisamente, como processo ontogenéticamente sincrônico à
constituição da própria Personalidade, afinal, “o ser humano não nasce
como personalidade, mas converte-se nela (RUBINSTEIN, 1973e p.
132)”.
Buscou-se analisar o humano real e integral, cuja constituição
precisa considerar a materialidade de sua condição funcional fisiológica,
114
mas não isoladamente, e sim unida ao contexto histórico, social e material
exterior. Reconhecendo a função essencial da Atividade que possibilita sua
interação com a realidade na qual se insere e, mais ainda, contemplando o
complexo processo no qual, dialeticamente, Atividade e Psique
manifestam-se nos processos de formação e desenvolvimento da
Personalidade. Fazendo-a integrar cada vez mais a dinâmica na qual todos
estes fatores anteriores resultam na particularidade da manifestação final
do humano integral observado. Ser humano, neste sentido, representa um
processo em contínua (re)elaboração, daquele que, sendo a expressão de
um corpo com sua natureza fisiológica, ainda é simultaneamente um
sujeito social, que trabalha colocando-se ativamente em relação com sua
realidade e com outros humanos, mas também um sujeito psíquico dotado
de vontade, de emoções e de um vasto conteúdo interior com o qual
elabora seus sentidos acerca da realidade, dada as influências que dela
recebe. Ser e constituir-se humano significa, deste modo,
estabelecer-se como Personalidade.
Conclusivamente, tem-se revelado um elemento novo, tese
principal desta análise, precisamente, só há constituição humana a
partir das unidades que nele e com ele se estabelecem. A partir de S.
L. Rubinstein o humano é compreendido em sua totalidade e, dessa
forma, passível de apreensão pela consciência apenas por meio das
unidades que o revelam e o constituem. Muitas surgiram ao longo da
análise, a filogênese-ontogênese, a Atividade-Personalidade, a Atividade-
Psique, o externo-interno, a pessoa-realidade e tantas mais.
É verdade, a Personalidade aqui delineada carrega em si uma
parcela da esperança própria do espírito e do pensamento da modernidade
que, por meio das melhores qualidades humanas (ciência, técnica e artes)
acredita ser possível alcançar um futuro melhorado pela superação das
condições opressoras que definem a atualidade. Ou seja, apresenta duas
das principais características da utopia discutidas por Chauí (2008), a
angústia para com o presente, marcado pela desigualdade, pelo privilégio
entre outros problemas, mas que visa conseguir conquistar no futuro a
reconciliação, a superação, a justiça, a igualdade etc., não na promessa de
um outro mundo, mas neste. Isso significa que este trabalho reconhece a
crise estrutural, existencial, política, social, moral, e tantas mais, porque
passam as diversas sociedades humanas e seus sujeitos no dia a dia de suas
115
vidas particulares. Mas esse reconhecimento não pode ser confundido
com a descrença pós-moderna, que desacredita de qualquer avanço já
alcançado e da possibilidade de algum alcance por meio daquelas
melhores qualidades humanas. Para estes as promessas da ciência, de
melhoria da vida humana; da técnica, de fartura e prosperidade; e das
artes, de refino do belo, se converteram no presente momento em seu
oposto, na intensificação da desigualdade, na miséria crescente, na guerra
e na violência.
Ainda que tais críticas sejam fundamentadas, não coincidem as
conclusões. Se para estes a evidência da gravidade destes problemas da
atualidade os conduz ao fatalismo distópico e à descrença, neste trabalho,
são os mesmos problemas que fazem nascer os motivos para seu
enfrentamento. Não pela esperança tola, que aguarda inerte a solução
futura, tal como vinda de um salvador, pelo contrário, na forma de luta, da
certeza que a historicidade da realidade evidencia a possibilidade de sua
transformação, que é melhor viver da/na luta por aquilo que pode ser, do
que se conformar com o como a realidade é. Por isso o estudo da
Personalidade foi tão significativo aqui, não por buscar defini-la
simplesmente nas leis de sua formação e desenvolvimento, como também
feito, mas por ansiar que a partir desta compreensão refinada se possa
oportunizar a formação e o desenvolvimento de Personalidades melhores,
que compartilhem o dever moral e o desejo de participação na construção
de um mundo e de humanos melhores.
Referências
116
https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/29765/1/Aprendizagem
DesenvolvimentalAtividade.pdf.
CHAUÍ, Marilena. Notas sobre utopia. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 60,
ed. spel, p. 7-12, jul. 2008. Disponível em:
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-
67252008000500003&script=sci_arttext&tlng=pt. Acesso em: 19 out.
2019.
117
LONGAREZI, Andréa M; PUENTES, Roberto V.. Apresentação. In:
LONGAREZI, Andréa M.; PUENTES, Roberto V. (Orgs.). Fundamentos
psicológicos e didáticos do Ensino Desenvolvimental. Uberlândia: EDUFU, 2017.
118
PUENTES, Roberto V.; LONGAREZI, Andréa M. Didática
desenvolvimental: sessenta anos de tradição teórica, epistemológica e
metodológica. Obutchénie. Revista de Didática e Psicologia Pedagógica.
GEPEDI/ Uberlândia: EDUFU, 2017b, vol. 1. n.1, p. 9-19.
Disponível em:
<http://www.seer.ufu.br/index.php/Obutchenie/article/view/38417/22
696> Acesso em: 06/07/2018.
119
RUBINSTEIN, S. L. Princípios de Psicologia Geral: A memória. A
imaginação. O pensamento. Lisboa: Estampa, 1973b. 248 p. v. 4.
120
SOUZA, Leandro Montandon de Araújo; LONGAREZI, Andréa
Maturano. A Sociologia no Ensino Médio: a fragilidade de sua presença
como componente curricular e os desafios diante de seu
desmantelamento. In: PUENTES, Roberto Valdés; FALEIRO, Wender
(org.). Ensino Médio: desafios e perspectivas. 1. ed. Uberlândia: EDUFU,
2018. v. 9, cap. 1, p. 27-67. ISBN 978-85-7078-483-4. Disponível em:
http://www.edufu.ufu.br/catalogo/ebooks-gratuitos/ensino-medio-vol-
3-desafios-e-perspectivas. Acesso em: 1 ago. 2019.
121
Capítulo 4
Introdução
122
bozhovichiana; bases para formulações críticas e dialéticas acerca do que
se concebe como desenvolvimento integral do sujeito.
O estudo teórico é parte de uma pesquisa de Intervenção
Didático-Formativa (IDF)38 realizada em um Centro Municipal de
Educação Infantil (CMEI) de Goiânia/GO; traz uma importante
discussão no campo da psicologia pedagógica tomado por base a obra da
psicóloga soviética, orientanda e colaborada de L. S. Vigostski, Lidia. I.
Bozhovich; e se encerra no conjunto de pesquisas (SOUZA, 2019;
LONGAREZI; FRANCO, 2013; NASCIMENTO, 2014; LONGAREZI,
ARAÚJO, PIOTTO, MARCO, 2018; LOPES, 2020; CARDOSO, 2020;
AMORIM, 2020; entre outros) desenvolvidas no âmbito do Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre Didática Desenvolvimental e Profissionalização
Docente - GEPEDI, com a finalidade de aprimoramento teórico da
produção de diferentes autores do período soviético e pós-soviético (L. S.
Vigotski, S. L. Rubinstein, L. V. Zankov, D. B. Elkonin, V. V. Davidov,
V. V. Repkin etc.).
Nascida em Kursk no Império Russo, L. I. Bozhovich dedicou-se,
fundamentalmente, aos estudos de psicologia infantil, com foco para o
desenvolvimento da personalidade da criança, a formação de sua
motivação e o estudo experimental dos conflitos afetivos.
123
Figura: Lidia Ilyinichna Bozhovich
Fonte: http://psyprofi.com/wp-content/uploads/2012/12/bozhovich-
lidia.jpg
124
excepcionalmente forte no trabalho de investigação. Grande
polemista, porém, flexível e aberta à crítica, gerou no seu
laboratório um espaço de discussão franca, de crítica e autocrítica,
de respeito e incentivo a novas ideias, o que contribuiu
decisivamente para a produtividade de seus integrantes e para o
desenvolvimento de novas linhas de pesquisa39 (Robbins, 2004;
Chudnovsky, 2009) (MITJÁNS MARTÍNEZ, 2016, p. 168).
.
Com esse espírito combativo e analítico L. I. Bozhovich estuda a
personalidade como sistema que se relaciona em determinados níveis de
desenvolvimento psíquico, formada desde os primórdios da vida infantil.
Seus estudos levam-na a defender o caráter ativo da personalidade à
medida em que vai sendo formada. Orientada pelos princípios de seu
professor L. S. Vigotski, procura avançar no sentido de produzir uma
teoria em que os aspectos afetivos e emocionais se constituíssem em
unidade à dimensão cognitiva. Daí sua enorme contribuição para o campo
da psicologia infantil.
125
psicológicas que subsidiassem o trabalho pedagógico dos professores nas
escolas (ROBBINS, 2004).
Nesse sentido, as contribuições dessa autora podem ajudar na
compreensão dos processos de formação e desenvolvimento da
personalidade desde a mais tenra infância, como também sobre a
importância de se buscar uma qualidade superior para os processos
formativos docentes que sejam efetivamente promotores do
desenvolvimento da personalidade das crianças na educação infantil.
O pensamento de L. I. Bozhovich destaca-se, dentre muitos
outros aspectos, pela sua expressa compreensão de que os processos de
formação e desenvolvimento da personalidade são mediados pelas
necessidades e motivos eminentemente humanos. Salienta, ainda, que
estes surgem e sofrem transformações a cada período do
desenvolvimento. Para ela, os motivos e as necessidades que compõem e,
de certa forma, direcionam a formação da personalidade humana são
tomados como fatores de primeira ordem e, por essa razão, considerados
responsáveis por estimular o indivíduo em suas atividades.
40 Uno de los problemas psicológicos fundamentales, sin cuyo estúdio no pueden ser
llevados a la práctica dos fines de la educacíon [...] es la formación de las necessidades
y motivaciones humanas como factores de primer orden que estimulan al individuo
em sus atividades [...]. Los conceptos de necessidad y motivaciones no han
encontrado, todavia en la psicología un valor concreto ni uma definición aceptable.
126
Os estudos empreendidos por L. I. Bozhovich sobre formação e
desenvolvimento da personalidade incorporaram diversas teses
desenvolvidas por L. S. Vigotski dentre as quais destacamos quatro que
nos parecem centrais neste trabalho:1. situação social de desenvolvimento;
2. perezhivanie41; 3. relação entre emoções, afetos e necessidades; e 4. o
caráter mediador dos signos na definição e desenvolvimento das funções
psicológicas superiores (ROBBINS, 2004).
A situação social de desenvolvimento “[...] não significa nada mais que o
sistema de relações entre a criança de uma certa idade e o meio”
(VIGOTSKI, 2001, p. 190; tradução nossa), ou seja, corresponde à forma
como a criança vivencia as novas condições de vida e de atividade a que
tem acesso. Para L. S. Vigotski, de acordo com Bozhovich, (1976, p. 123),
a situação social de desenvolvimento corresponde à “[...] relação especial dos
processos internos de desenvolvimento e das condições externas que são
típicas de cada etapa, que condiciona a dinâmica do desenvolvimento
psíquico durante o período evolutivo correspondente”, bem como às
novas formações psicológicas, qualitativamente peculiares, que emergem
no final deste período. Isso traz implicações substanciais ao
desenvolvimento infantil, uma vez que esse se realiza com base na relação
entre a atitude já formada na criança configurada a partir do modo como
127
ela vivencia as condições em que o seu desenvolvimento acontece. Esse
movimento dialético e contraditório é considerado a principal força
motriz do desenvolvimento.
128
L. I. Bozhovich destaca que perezhivanie, no sentido tratado por L.
S. Vigotski, integra tanto a esfera cognitiva, quanto a afetiva; o que,
inevitavelmente, implica considerá-la na dimensão das emoções.
129
No que diz respeito à relação entre emoções, afetos e
necessidades para a formação e o desenvolvimento da personalidade, L. I.
Bozhovich (1978, p. 13) vai identificar tal relação como “esfera
motivacional humana”. Ademais, vai afirmar que essa esfera motivacional
subjaz a todo o desenvolvimento mental em ontogénese, o que permite a
um sujeito “atingir o nível que o caracteriza como uma personalidade"
(GUTKINA, 2018, p. 6). Tudo isso vai justificar a definição por parte de
L. I. Bozhovich das emoções, das necessidades e dos afetos como capa
central do psiquismo (BOZHOVICH, 1978, p. 13).
Sobre o último conceito acima destacado, o caráter mediador dos
signos na definição e desenvolvimento das funções psicológicas superiores, L. I.
Bozhovich buscou compreender, assim como o fez L. S. Vigotski, não só
a importância da mediação dos signos para o desenvolvimento das
funções psíquicas superiores (enquanto esfera cognitiva), mas também a
sua influência sobre as esferas afetivas da personalidade (necessidades e
motivos).
Assim, com base nas declarações de L. S. Vigotski sobre o
desenvolvimento de funções mentais superiores em ontogênese, L. I.
Bozhovich construiu um modelo do desenvolvimento da esfera da
personalidade da criança por analogia com a esfera cognitiva. Nesse
sentido, para ela, o mecanismo de formação de necessidades espirituais
superiores na esfera afetiva da personalidade é semelhante ao mecanismo
de formação de funções psíquicas superiores na esfera cognitiva. As
necessidades espirituais superiores, portanto, emergem das necessidades e
emoções naturais através da mediação que ocorre como resultado da
apropriação da cultura humana, por meio dos signos que são próprios
dessa cultura. Assim, a necessidade elementar de novas vivências
(perezhivanie), considerada por ela como uma força motriz do
desenvolvimento mental da criança como resultado da mediação na
ontogênese, pode transformar-se na mais alta necessidade cognitiva
espiritual por meio de um estímulo significativo. Essa pesquisadora
interpretou essas mudanças psicológicas como mudanças qualitativas na
psique humana indicativas do desenvolvimento da personalidade.
Compreendido o desenvolvimento das funções psíquicas
superiores a partir da relação dialética que essas funções estabelecem com
e sobre as esferas afetivas da personalidade como um todo, L. I.
130
Bozhovich concluiu que o desenvolvimento dessas esferas é orientado
pelas mesmas leis que guiam o desenvolvimento de todo o processo,
muito embora não seja possível distinguir entre as componentes afetivos e
intelectuais da personalidade. Essa elaboração definiu a principal linha
investigativa desenvolvida pela autora ao longo de seus mais de trinta anos
de fecundo trabalho científico sobre a personalidade (ROBBINS, 2004).
131
advertindo seus leitores de que as elaborações nela apresentadas estão
assentadas em concepções tratadas por L. S. Vigotsky, que, conforme já
mencionado, foi também seu orientador de doutorado.
As ideias de L. I. Bozhovich pautaram-se, principalmente, na
concepção vigotskyana de que o desenvolvimento psíquico na ontogénese
desencadeia uma série de mudanças qualitativas importantes na psiquê
infantil. No entanto, essas mudanças só podem ser processadas pela
criança por meio de “complexas relações interfuncionais [que] dão início a
formações psíquicas, totalmente novas; sociais pela sua natureza (funções
psíquicas superiores) específicas do homem”42, que se estabelecem entre a
criança e a experiência social acumulada pelas gerações anteriores
(BOZHOVICH, 1976, s/p, nota da autora para a edição cubana, tradução
nossa).
Desse modo, seria acertado afirmar que o desenvolvimento
psíquico da criança, inicialmente elementar, ocorre somente sob a base do
legado sócio-histórico-cultural deixado pelas gerações precedentes; melhor
dizendo, a partir do patrimônio histórico a que tem acesso, considerado,
certamente, o lugar social que ocupa em uma sociedade de classes.
132
Bozhovich (1976) adverte, ainda, que as mudanças qualitativas nas
funções psíquicas elementares se ‘mediatizam’ por meio do pensamento,
tornando-se, assim, funções intelectualizadas e, portanto, voluntárias e,
desse modo, dirigidas pelo próprio sujeito. De acordo com a autora,
Vigotski demonstrou essa compreensão, de forma experimental e sob
diversas perspectivas. Um exemplo emblemático trazido por ela refere-se
ao surgimento de sistemas psíquicos novos, sua estrutura e sua função na
esfera dos processos psíquicos cognitivos que vão formar a memória da
criança. Segundo esse entendimento, inicialmente a memória da criança se
manifesta enquanto uma percepção direta do mundo, mas que, a partir
das interações que vai estabelecendo com esse mundo, torna-se cada vez
mais mediada e lógica, ou seja, de percepção direta, a memória passa à
“percepção categorial” e, desse modo, cada vez mais dirigida
voluntariamente pelo ser humano (BOZHOVICH, 1976, p. 3).
Apoiando-se inicialmente nesses e em outros pressupostos
vigostikyanos, Bozhovich (1976; 1978, 1956), desenvolve importantes
investigações sobre a formação e o desenvolvimento da personalidade da
criança; sobre o estabelecimento de leis que regem esse complexo
processo; sobre as forças que o impulsionam e, ainda, sobre as condições
que o determinam. A autora buscou, desse modo, compreender o caráter
concreto da ontogênese nas diferentes etapas da formação da
personalidade na criança. Suas investigações iniciaram-se pelo estudo das
relações existentes entre as condições de vida e de educação da criança e
as particularidades de sua personalidade. Foi no curso dessas investigações
que a autora reafirmou sua compreensão de que as condições de vida da
criança não seriam capazes, por si mesmas, de determinar a formação da
sua personalidade. Identificou, ainda, que frente a condições externas
semelhantes, podem formar-se distintos traços e qualidades psíquicas que
dependem fundamentalmente das interrelações que cada criança
estabelece de modo único e particular com a realidade circundante.
Dito de outro modo, cada etapa do desenvolvimento da criança se
caracteriza por uma combinação própria das condições externas e internas
do seu desenvolvimento. Esse desenvolvimento, por sua vez, cria a
posição interna da criança, entendida como condição específica de cada
criança em cada idade do seu desenvolvimento.
133
De acordo com Bozhovich (1976), para compreender como se
forma, na criança, uma nova qualidade psíquica é necessário diferenciar a
posição objetiva que a criança ocupa na vida e em sua própria posição
interna.
44 Todo esto plantea que para comprender cómo se forma en el niño una u otra
nueva cualidad, es necesario diferenciar la posición objetiva que el ninho ocupa em la
vida y su propia “posición interna”, es dicir, como el por toda la historia de su
proprio desarrollo que le ha proporcionado determinada experiencia y en el curso del
cual se han formado sus cualidades, se relaciona con la realidad que le rodea y cuál es
su actitud ante las exigencias que la vida le plantea (BOZHOVICH, 1976, s/p. nota
introductoria para la edición cubana).
134
na fase pré-escolar45, seguem sendo fundamentais as necessidades de
comunicação e, também, as cognitivas, embora ambas as necessidades
apresentem formas distintas de satisfação em cada uma dessas fases. Na
idade escolar46, por exemplo, cria-se uma situação social para a criança que
vai, por sua vez, determinar a satisfação de novas necessidades inerentes a
esse período da vida, por exemplo, a necessidade cognoscitiva de
assimilação dos fundamentos das ciências.
Nessa nova situação social do desenvolvimento da criança, criada
com a chegada à idade escolar, a necessidade de comunicação vai, então,
se tornando cada vez mais extensiva ao grupo de colegas. Todo esse
processo prepara a criança para a etapa seguinte, chamada pela autora de
idade escolar média47, na qual vai configurar-se uma nova situação social
de desenvolvimento do estudante, que, por sua vez, passa a exigir a
satisfação de outras necessidades (BOZHOVICH, 1956; 1976; 1978).
Na idade escolar média, por exemplo, a presença de um coletivo
já suficientemente organizado faz surgir na criança/adolescente a
necessidade de encontrar um novo lugar social, ou seja, a necessidade de
reconhecimento de seus companheiros e de responder às exigências
estabelecidas pelo grupo (BOZHOVICH, 1976).
Em suma, é possível dizer que, em cada etapa de vida da criança
surge nela uma determinada caracterização psíquica, que, por seu turno,
responde à situação social do desenvolvimento, assim como à sua posição
interna, como também às novas formações que nela se apresentam na
relação com o mundo que a rodeia. Sendo assim, em cada etapa de vida da
criança é possível observar como ela, enquanto sujeito que assimila a
experiência social acumulada, transforma-se em criadora dessa
experiência, (BOZHOVICH, 1976).
135
formações que se apresentam nele, o papel que o coletivo
desempenha nas diferentes etapas, etc. Analisa-se como a criança, a
partir de um sujeito que assimila a experiência social acumulada,
torna-se o criador desta experiência, o criador dos valores materiais
e espirituais que produzem o desenvolvimento de toda a psique
humana. (BOZHOVICH, 1976, s/p. nota introdutória da edição
cubana, tradução nossa)48.
48 Para cada etapa se da una caracterización del atendiendo ala situación social del
desarrollo, a su posición interna, a las nuevas formaciones que en la misma se
presentan, al papel que juega el colectivo en las diferentes etapas, etc. Se analiza cómo
el niño, de sujeto que asimila la experiencia social acumulada, se transforma en el
creador de esta experiencia, en el creador de los valores materiales y espirituales que
levan ya en sí el desarrollo de toda la psiquis humana (BOZHOVICH, 1976, s/p,
nota introductoria para la edición cubana).
136
Associando o conceito de personalidade à ideia de liberdade, L. I.
Bozhovich, considera que o ser humano se converte em personalidade
quando alcança um nível de desenvolvimento que o torna capaz de guiar
sua conduta e atividade e isso, de certa forma, colocá-lo-ia relativamente
independente das influências do meio. Para a autora, ao alcançar esse
patamar de desenvolvimento da personalidade, o ser humano passa, então,
a atuar conforme objetivos prévios e conscientemente formulados
(BOZHOVICH, 1976).
Entretanto, esse nível de desenvolvimento da personalidade
somente pode ser alcançado quando o ser humano atinge a idade adulta,
ou seja, quando, supostamente, o resultado de todo o curso do
desenvolvimento ontogenético se completaria. Todavia, durante todo seu
curso, esse desenvolvimento apresenta uma conformação que o torna
peculiar para cada um, em cada época da vida. Essa peculiaridade vai
demandar, portanto, processos organizados de orientação e de educação,
o que traduz o entendimento dessa autora acerca do papel fundamental
que ocupa a educação no desenvolvimento da personalidade do indivíduo
desde a mais tenra idade.
A concepção de personalidade como uma estrutura integral implica
ainda tentar compreender o que constitui o centro dessa estrutura. Para a
autora, esse núcleo estrutural constitui a direção ou orientação da
personalidade, em cuja base se encontra o sistema hierárquico de motivos. É,
portanto, em torno dos motivos que, na sua perspectiva, se estruturam todas as
outras peculiaridades da personalidade (BOZHOVICH, 1976; 1978).
Em que pesem os limites para o desenvolvimento de investigações
sobre a formação da personalidade da criança, L. I. Bozhovich adverte
que o estudo desse objeto enquanto uma estrutura integral e complexa
pode ser o caminho para alcançar o objetivo educacional da sua formação,
o que pode ser alcançado por meio da prática educativa; isso, claro, se a
formação da personalidade for entendida nas suas complexas inter-
relações com a realidade (BOZHOVICH, 1976).
137
Este princípio consistiu nos aspectos ou qualidades da
personalidade da criança no contexto da estrutura geral da
personalidade e dentro do papel que desempenham no processo de
inter-relação da criança com a realidade que a rodeia
(BOZHOVICH, 1976, s/p, prólogo, tradução nossa)49.
138
psicológicos científicos; efetivamente não foi. Pelo contrário, o
conhecimento das leis da vida psíquica das crianças é praticamente
suprido pelo que L. I. Bozhovich chamou de “intuição pedagógica”51;
essa, por sua vez, elaborada experimentalmente como resultado de um
longo trabalho desenvolvido diretamente com crianças (BOZHOVICH,
1976, p. 2, tradução nossa).
Historicamente, isso teve suas causas, uma vez que a prática da
educação precedeu o desenvolvimento da psicologia científica.
139
prática a formação do homem (BOZHOVICH, 1976, p. 2,
tradução e negrito nossos). 52
140
o que ela chamou de “maturidade social” (BOZHOVICH, 1976, p. 3).
Para tanto, em sua compreensão, seria indispensável a produção de um
processo educativo que permitisse alcançar a formação integral da
personalidade de cada criança.
Para a autora:
durante el desarrollo infantil de los rasgos negativos, que con frecuencia surgen en las
condiciones de una educación espontánea y que exigen para su superación un trabajo sério.
He aquí por qué, en nuestra opinión, la tarea fundamental de las ciências pedagógicas
consiste en la dabraión de un sistma único de educación infantil, y no en la solución de
problemas aislados, aunque también importantes relacionados con la eliminación de las
grietas provocadas por el nivel centífico aún insuficiente del trabajo educativo con los niños
(BOZHOVICH, 1976, p. 3).
141
processo denominado pela autora de “maturidade social”, que fosse capaz
de alcançar a plena formação da sua personalidade, consiste em uma tarefa
bastante complexa, mesmo em uma sociedade socialista como a que
caracterizava a, então, União Soviética. Um projeto dessa magnitude
pressupunha, segundo ela, um alto nível de desenvolvimento da própria
ciência pedagógica, como também das investigações psicológicas, estas,
por sua vez, apoiadas tanto na teoria quanto na prática educativa.
Para a autora, existiram dificuldades e limites importantes na
consecução desse objetivo tanto a União Soviética, quanto em outros
países socialistas que empreenderam esforços nesse sentido. Essas
tentativas padeceram “em grande medida, da falta de solução dos
problemas de educação que exigem os esforços conjuntos do
pensamento pedagógico e psicológico” (BOZHOVICH, 1976, p. 15,
tradução nossa) 55.
Não resta dúvida acerca da compreensão dessa psicóloga soviética
da implicação mútua entre pedagogia e psicologia. Entretanto, enfatiza
que a pedagogia sempre atua conforme os objetivos demarcados pela
sociedade em determinada etapa histórica do seu desenvolvimento. Isso
pressupõe considerar que os objetivos educacionais de uma dada
sociedade, em certo tempo e espaço coincidem com as aspirações dessa
mesma sociedade, a partir das exigências históricas que a ela são
direcionadas.
Mesmo considerando a relevância de tal aspecto e sua implicação
na realidade educativa de cada lugar, ainda há, segundo a autora, a
necessidade de se pensar sobre as qualidades psíquicas que devem ser
educadas nas crianças e jovens em todas as etapas educativas, respeitando,
claro, as particularidades psicológicas de cada idade.
55[...]
en considerable medida, de la falta de solución de aquellos problemas de
educación que exigen los esfuerzos conjuntos del pensamiento pedagógico y
psicológico (BOZHOVICH, 1976, p.15).
142
graus primário, médio e superior da escola (BOZHOVICH, 1976,
p. 7, tradução nossa)56.
56Ante todo debe señalarse la ausencia de una concreción científicamente fundada de los
objetivos generales de la educación para determinadas edades, lo que es posible sólo si nos
apoyamos en las particularidades psicológicas de la edad del niño. Por supuesto se pueden
enumerar detalladamente las qualidades de la personalidad que imprescindiblemente deben
ser educadas en los niños, digamos de los grados primarios, medios y superiores de la
escuela”(BOZHOVICH, 1976, p 7).
57 Cada qualidad cambiará su contenido y estructura en dependencia de la estructura
143
Essa compreensão se complexifica quando se leva em
consideração a questão da definição dos objetivos concretos da educação
por idades.
144
determinar as particularidades que precisam ser construídas pelo
educando em cada período do seu desenvolvimento para que, a partir daí,
se possa criar um modelo concreto de conduta e de atividade levando em
consideração as diferentes idades (BOZHOVICH, 1976; 1978; 1987). Em
outras palavras, há de se definir o complexo de particularidades da
personalidade que poderão ser desenvolvidas ao longo da escolarização,
para que a pedagogia possa, desse modo, delinear e viabilizar sua
formação.
Entretanto, teoricamente, esse problema não havia sido
formulado pela pedagogia até então. A tarefa de criar um programa de
trabalho educativo orientado pelas idades colocou a pedagogia frente à
necessidade de delimitar e formular objetivos educacionais concretos para
cada ano de estudo. Ao contrário disso, o que L. I. Bozhovich identificou
foram programas educativos cuja organização estava estabelecida sobre
bases empíricas, portanto, não necessariamente científicas, pois nesses
programas não estavam indicadas as linhas principais pelas quais se daria o
desenvolvimento da personalidade da criança em cada idade.
Na ausência de uma orientação científica para esse problema, a
solução se reduziria à enumeração de conhecimentos concretos, hábitos e
habilidades esperadas para a criança em determinada idade. Nas palavras
da própria autora, o resultado de tudo isso é a criança dividida em partes
e, dessa forma, também educada por partes.
145
Depreende-se, a partir daí, que uma das ideias fundamentais
defendidas no âmbito da psicologia histórico-cultural da personalidade
bozhovichiana seja a de que o principal problema da pedagogia passa,
inevitavelmente, pela organização de um processo educativo bem
orientado em todos os seus aspectos, ou seja, que se tenha uma
elaboração clara dos objetivos concretos da educação para cada período
do desenvolvimento da criança.
Considerações finais
146
histórico-cultural da personalidade do que propriamente uma didática
desenvolvimental da personalidade. Há de se destacar, no entanto, que os
esforços teóricos observados para a formulação de tal perspectiva didática
têm colocado a ideia do caráter ativo e gerador da psique humana, bem
como da unidade do cognitivo e do afetivo no centro das discussões
(PUENTES; LONGAREZI, 2017a).
Pensar sobre tudo isso do ponto de vista didático nos parece uma
tarefa de fundamental importância, cujos esforços investigativos ficam
como convite para que a Didática Desenvolvimental se debruce, tomado
o desenvolvimento da personalidade como finalidade dos processos
educativos, no qual o pensamento teórico (já devidamente defendido e
tratado no âmbito da psicologia histórico-cultural da atividade) compõe
apenas uma parcela das intenções de processos educativos que se
pretendam desenvolvedores do humano em sua integralidade.
Referências
147
BOZHOVICH, L. I. Las etapas de formación de la personalidad en la
ontogénesis. En: La Psicología Evolutiva y Pedagógica en la URSS. Antología.
Editorial Progreso. Moscú, 1987.
148
Desenvolvimental. Anais do Colóquio do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre
Atividade Pedagógica – GEPAPE, Goiânia, 2017.
149
________. Didática desenvolvimental: um olhar para sua gênese na
tradição da teoria histórico-cultural e possíveis desdobramentos para a
realidade brasileira. FRANCO, Adriana de Fátima; TULESKI, Silvana
Calvo; MENDONÇA, Fernando. Ser ou não ser na sociedade capitalista: o
materialismo histórico-dialético como método da Psicologia Histórico-
Cultural e da Teoria da determinação social dos processos de saúde e
doença. Goiânia: Editora Phillos, 2020b, p. 54-87.
150
MITJÁNS MARTÍNEZ, Albertina. L. I. Bozhovich: vida, pensamento e
obra. In: LONGAREZI, Andréa M.; PUENTES, Roberto V. (Orgs.).
Ensino Desenvolvimental: vida, pensamento e obra dos principais
representantes russos. Uberlândia: EDUFU, 2016, p. 165-196. Livro 2.
Coleção Biblioteca Psicopedagógica e Didática. Série Ensino
Desenvolvimental.
151
http://www.seer.ufu.br/index.php/Obutchenie/article/view/38113/215
67. Acesso em: 06/07/2018.
152
Antologia - Livro 1. Uberlândia: EDUFU, 2017. v. 4. cap. 1, p. 15-38.
ISBN 978-85-7078-433-9.
153
Capítulo 5
Introdução
62 Uma versão inicial desse texto foi publicada na revista Educativa, Goiânia, v. 19, n.
2, p. 449-473, maio/agos., 2016. O autor agradece a colaboração técnica oferecida
por Joanna Jakuszko (no idioma russo) e Vivian Garcez (no inglês), as informações
oferecidas pelo psicólogo e professor universitário cubano Guillermo Arias Beatón,
as sugestões realizadas pelos colegas Andréa Maturano Longarezi, Maria Aparecida
de Melo, Suely Amaral Mello, Lucielle Farias Arantes, Ruben Nascimento, Orlando
Fernández Aquino, Rossana Abbiati Spacek, bem como o apoio financeiro das
agências de fomento CNPq e FAPEMIG.
154
algumas adulterações foram o resultado de meros descuidos dos
tradutores (problemas técnicos), mas outras decisões foram de caráter
intencional (desvios éticos) escondendo sob um véu ideológico quase
imperceptível os interesses dos profissionais envolvidos nesse processo.
Por fim, assevera que o verdadeiro papel do tradutor é dizer a mesma ou
quase a mesma coisa que o autor disse.
Riscos similares a esses que Prestes menciona em relação à obra
de Vigotski, correm outros psicólogos russos e suas obras desde o início
de suas traduções e publicações, tanto dentro quanto fora da ex-União
Soviética. Isto é, além do problema de adulterações de conceitos e
distorções de ideias provocadas por problemas técnicos e éticos
envolvendo o trabalho de tradução que têm transformado o que é ou o
que poderia ser em algo bastante diferente, temos também no interior da
psicologia do período soviético erros cometidos que geraram, pelo menos
entre os acadêmicos e pesquisadores latino-americanos, atribuições
inadequadas de paternidade, bem como decisões autorais que provocaram
mistérios e confusões envolvendo títulos importantes.
Em tal sentido, o presente trabalho se situa no contextos das
pesquisas e publicações realizadas no interior do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Didática Desenvolvimental e Profissionalização Docente –
GEPEDI, que favorecem o acesso de pesquisadores contemporâneos ao
pensamento e obra da matriz histórico-cultural (FEROLA, 2019;
LONGAREZI, 2017; LONGAREZI; FRANCO, 2013; NASCIMENTO,
2014; LONGAREZI; ARAÚJO; PIOTTO; MARCO, 2018;
LONGAREZI; PUENTES; ARAUJO, 2020; LOPES, 2020; CARDOSO,
2020; AMORIM, 2020; SOUZA, 2019; LOPES, 2020; PUENTES, 2017;
CARCANHOLO, 2020) e tem dois objetivos fundamentais. O primeiro é
tornar público um mistério ou uma enorme confusão gerada em torno de
dois títulos e dois psicólogos russos. O segundo é descrever as etapas
pelas quais passou o processo de identificação e esclarecimento da
confusão, bem como explicar as possíveis razões que podem ter gerado
essa questão.
Olhando dessa maneira, a história que aqui é relatada pode
parecer estrondosa e lamentável. Em efeito o é, contudo não configura
plágio, mentira ou alteração intencional de autoria. Trata-se sim, de uma
confusão envolvendo autorias que se gerou muito provavelmente pela
155
falta ou pelo pouco cuidado que se teve durante o processo de edição da
obra em questão.
Do ponto de vista metodológico, com o objetivo de auxiliar no
trabalho de identificação e esclarecimento dos fatos, procurou-se localizar
o maior número possível de fontes documentais em russo e espanhol,
cotejar essas provas em seus aspectos cronológico e autoral e, por fim,
relatar todo o processo tentando ser objetivos, responsáveis e respeitosos
com os autores, tradutores e editoras envolvidos, bem como com os
leitores interessados na temática.
Entretanto, adverte-se que o presente texto, ainda assim, é muito
mais circunstancial do que erudito. Ele simplesmente nasceu da
necessidade de esclarecer fatos que foram surgindo durante o processo de
elaboração de uma obra de divulgação científica. Admito também que não
sou caçador de mistérios, nem especialistas na temática, muito menos
conhecedor da maioria dos autores evocados aqui. Além disso, muito
provavelmente não tive acesso a todas as fontes relacionadas com os fatos
descritos e, muito provavelmente jamais vou ter, porque uma parte dessa
história se perdeu no tempo ou porque partiu junto com as pessoas
envolvidas que já não estão mais entre nós.
Por esse motivo, longe de alimentar o desejo de gerar polêmicas
ou divulgar histórias que em lugar de esclarecer fatos ajudam a produzir
especulações e mal-entendidos, o propósito desse trabalho tem sido o de
preservar a integridade científica de autores e obras, honrar a verdade,
corrigir um erro, sermos justos com aqueles que foram lesados e
restaurarmos a legitimidade de assinaturas.
63No Brasil, a tradutora Denise Bottmann, responsável pelo blog "Não gosto de
plágio", comprovou em uma pesquisa importante que existia um número significativo
156
estar aí aguardando o momento de serem tornados públicos em uma
época em que erros e denúncias de má conduta científica são tão
frequentes.
No período da União Soviética (1917-1991), especificamente, o
caso mais polêmico de usurpação de direitos autorais que se conhece no
ocidente provavelmente seja aquele que relaciona a Mikhail Mikhailovich
Bakhtin (1895-1975) com a obra de Pavel Nikolaevich Medvedev (1892-
1938) e de Valentin Nikolaevich Volóshinov (1895-1936). Essa questão
vem se arrastando desde a década de 1960 e voltou à tona muito
recentemente com a publicação, do livro Bakhtin desmascarado: história de um
mentiroso, de uma fraude, de um delírio coletivo (Parábola, 2012), dos genebrinos
Jean-Paul Bronckart e Cristian Bota e, de uma crítica a esse livro redigida
pelo autor russo Serge Zenkine (2014). Na obra Bakhtin desmascarado se
acusa o teórico de mentiroso por ter declarado cinquenta anos atrás que
era o autor efetivo da obra mais importante de Medvedev e da quase
totalidade dos escritos de Volóshinov. Na resenha de Zenkine, pelo
contrário, defende-se a unidade da obra de Bakhtin e alerta-se para o fato
do perigo que se corre quando a complexidade de um pensamento teórico
se reduz a plágios, mentiras, fraudes e delírios coletivos como é feito no
livro citado. Enfim, o caso Bakhtin continua ainda sem ser resolvido e
exige que seja tratado com muita cautela.
Em relação à Psicologia Histórico-Cultural não se tinha notícia de
problema algum associado a erros, mistérios ou confusões de autoria,
muito menos a concessões inadequadas de paternidade, até o momento
em que o Grupo de Estudos e Pesquisas em Didática Desenvolvimental e
Profissionalização Docente – GEPEDI, vinculado ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia, decidiu
trabalhar na elaboração de uma obra de divulgação científica: 1) Ensino
desenvolvimental: vida, pensamento e obra dos principais representantes russos
(Volume II).
La elaboração do livro Ensino Desenvolvimental: vida, pensamento e obra
dos principais representantes russos (Volume II), quatro autores trabalhavam
em duas pesquisas diferentes relacionadas com os psicólogos Leonid
157
Abramovich Venguer (1925-1992) e Valéria Serguéyevna Mukhina (1935)
quando, em uma conversa informal, no Brasil, com os psicólogos
cubanos, Gloria Fariñas León e Guillermo Arias Beatón,64 este último,
amigo tanto de Venguer quanto de Mukhina, me confirmou algo que
antes tinha relatado para a professora doutora Suely Amaral Mello, da
UNESP/Marília: o livro mais divulgado em espanhol e português de
Mukhina, intitulado Psicologia pré-escolar (Pablo del Río Editor, 1978; Visor,
1983; Martins Fontes, 1996), e o livro mais conhecido em espanhol de
Venguer, com o título Temas de psicologia pré-escolar (Temas de psicologia
pré-escolar, Científico-Técnica, 1976; Pueblo y Educación, 1978) eram um
mesmo e único livro.
As circunstâncias me obrigavam a abandonar a pesquisa ou a
esclarecer os fatos até onde fosse possível. Como o leitor pode perceber,
escolhi o segundo. Afinal de contas, o esclarecimento do assunto era
importante porque envolvia uma das obras de psicologia pré-escolar mais
citada em Cuba e no Brasil, e em algum desses dois países poderia estar
sendo referenciado o autor errado.
O primeiro passo consistiu em localizar e cotejar as diferentes
versões da obra publicadas em espanhol e em português para confirmar
os fatos. O resultado permitiu comprovar, em primeiro lugar, que entre as
versões publicadas na Espanha e no Brasil com a assinatura de Mukhina
não existiam diferenças; em segundo, que, se entre os livros publicados na
Espanha e no Brasil, assinados por Mukhina, e o livro publicado em
Cuba, assinado por Venguer, não eram totalmente idênticos, pelo menos
noventa por cento do conteúdo de ambos era exatamente o mesmo.
O segundo passo resultou na validação das duas hipóteses que a
partir desses dados iniciais se elaboraram: a) o livro que dera lugar a essas
versões tinha sido escrito e publicado, inicialmente, em russo por
Mukhina, e por Venguer conjuntamente ou; b) tratava-se de um erro
técnico cometido por alguma das editoras envolvidas no processo de
tradução e edição.
64Depois desse encontro inicial, em 2014, sustive com o professor Beatón, em 2015,
una troca intensa de correios eletrônicos que me ajudaram a esclarecer muitas das
questões tratadas neste texto.
158
Algo muito mais grave, como um caso típico de plágio ou
usurpação de direitos autorais cometidos por um dos autores, jamais foi
cogitado aqui. Esse caso de paternidade não deve ser confundido com os
comuns processos irregulares de má conduta ética cometidos por qualquer
que for, seja no esforço por se apropriar de maneira criminal da produção
intelectual do outro, seja no intento por domesticar, reprimir, amordaçar e
submeter um pensamento científico aos interesses ideológicos de
poderosos grupos políticos, ou governos inteiros a que se fez referência
inicialmente.
159
outra obra tinha tornado Venguer tão relevante fora da União Soviética
como Temas de psicología preescolar, nem Mukhina com Psicología de la edad
preescolar ou Psicologia da idade pré-escolar. Ao mesmo tempo, um deles
poderia não ser merecedor desse reconhecimento.
L. A. Venguer (Kharkov, 1925 – Moscou, 1992) formou parte do
grupo numeroso de discípulos, seguidores e colaboradores vinculados a A.
V. Zaporozhets (1905-1981). Trabalhou no campo da psicologia infantil e
pré-escolar e, por suas contribuições importantes, passou a ser
considerado um dos teóricos mais reconhecidos no tema das capacidades
cognitivas das crianças, bem como um dos principais representantes da
terceira geração de seguidores da escola de Vigotski (cf. Puentes, 2015).65
Por sua vez, Valéria Serguéyevna Mukhina (22 de janeiro de 1935,
cidade de Ussuriisk), formou-se em Química pela Faculdade de Biologia e
Química do Instituto Estatal Pedagógico de Moscou em 1956. A partir de
1962, começou a lecionar no Departamento de Psicologia do próprio
Instituto, em 1965. Adquiriu o título de Candidata a Doutora em Ciências
Psicológicas e, em 1972, de Doutora em Ciências Psicológicas. De 1988 a
1992, desempenhou o cargo de Chefe do Departamento de Psicologia do
Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da Faculdade de Educação e
Psicologia da Universidade Estatal Pedagógica de Moscou e de 1992 a
1998 foi diretora desse mesmo Instituto (cf. Mello e Campos, 2015).66
65Os resultados de seus estudos deram lugar à sua tese de doutorado intitulada O
desenvolvimento de habilidades cognitivas durante a primeira infância (1969).
Durante os anos que se seguiram, escreveu numerosas obras sobre desenvolvimento
intelectual das crianças, diagnóstico, habilidades etc. Alguns dos títulos mais
importantes dessa primeira etapa foram Percepção e ação (em coautoria com A. V.
Zaporozhets, V. P. Zinchenko e A. G. Rúzskaia) (1967), Percepção e aprendizagem
(1969), Jogos didáticos e exercícios de educação sensorial de crianças pré-escolares
(1973), A gênese das habilidades sensoriais (1976) e O desenvolvimento de
habilidades cognitivas na educação infantil (1986). Além disso, escreveu e publicou
em parceria com seu filho A. L Venguer, trabalhos tais como Escola da origem do
pensamento (uma série de quatro livros). M.: Conhecimento, 1982, 1983, 1984, 1985
(2ª ed., 1994, 3 ª Edição: M. Abetarda, 2010); O início da escola (Editorial
Conhecimento, 1994); Atividades inteligentes: brincar em casa com nossos filhos em
idade pré-escolar (tradução de Marta Shuare, Editora Visor, Madri, 1993) (Puentes;
Longarezi, 2015).
66Como Venguer, Mukhina especializou-se no campo da psicologia do
desenvolvimento mental das crianças. Recebeu importantes condecorações nacionais
pela obra desempenhada na coordenação de projetos de pesquisa executados na ex-
160
Com essas duas hipóteses acerca da autoria das obras
mencionadas anteriormente e com os dados sobre ambos os autores,
partiu-se para a pesquisa. Ao longo do trabalho, as informações que iam
aparecendo me faziam acreditar em uma ou em outra hipótese
indistintamente. A descoberta de três fatos importantes me levou a
descartar de imediato a hipótese de que o livro tinha sido publicado,
inicialmente, na ex-União Soviética pelos dois autores, e a imaginar que só
Mukhina poderia ser considerada a autora legítima de todos esses
trabalhos. Tratam-se de 1) o original de duas obras publicadas pela editora
russa Educação (Просвещение), com os títulos de Psicologia pré-escolar
(Психология дошкольника, 1975) e Psicologia infantil (Деtская
психология, 1985), assinadas única e exclusivamente por Mukhina, cujos
conteúdos eram similares (Quadro I),67 e o conteúdo dessas duas obras
com aquelas publicadas na Espanha, no Brasil e em Cuba também. Às
duas obras russas o nome de Venguer está associado, mas apenas na
condição de redator ou editor; 2) uma bibliografia completa elaborada
pela própria Mukhina com mais de 470 títulos registrados na qual se
mencionam, além dos russos mencionados, aqueles publicados pelas
editoras espanholas Pablo del Río Editor e Visor. Não há nenhum registro
relacionado à obra publicada no Brasil, com título escrito em parceria com
Venguer na forma de livro antes de 1976, nem menção alguma à obra
intitulada Temas de psicología preescolar; e, por fim, 3) uma bibliografia
161
bastante completa da obra de Venguer em que não se faz menção ao livro
publicado pelas editoras cubanas.
Мухина, В. С. Мухина, В. С.
Fonte: O autor.
162
no Brasil, mas também da obra publicada em Cuba e atribuída
“erroneamente” a Venguer. Contudo, ainda ficava em aberto a segunda
questão: o erro cometido em Cuba era de caráter técnico e as editoras
cubanas deveriam ser responsabilizadas pela atribuição inadequada de
autoria?
Sabe-se que tanto Venguer como Mukhina viajaram e
permaneceram em Cuba na década de 1970, ministrando palestras e
cursos sobre psicologia infantil e pré-escolar. Durante as visitas técnicas e
de assessoramento realizadas, ambos os autores deixaram em Cuba textos
que depois foram publicados com o propósito de facilitar a circulação de
seus conteúdos entre os profissionais que se formavam na área
educacional.70 Como exemplo, na época foi publicado um texto de
Mukhina com o título de Psicologia Infantil (1974), bem como alguns artigos
de Venguer, além desse livro já mencionado.
O Instituto Cubano da Infância, responsável pela coordenação do
trabalho de assessoramento dos profissionais soviéticos no país, teria sido
o encarregado de tramitar junto a Venguer a autorização para a publicação
de suas conferências.
Sendo assim, a segunda parte do problema também parecia estar
resolvida: as editoras cubanas não teriam cometido erro técnico de
atribuição inadequada de paternidade, porque elas apenas publicaram o
livro tramitado pelo Instituto Cubano da Infância com a anuência do
próprio Venguer.
Dadas as possíveis questões técnicas e específicas que o curso da
indagação aconselhava e que, seguramente, Beatón, ao nos alertar sobre o
assunto, não teve em conta pela especificidade da situação, decidi retomar
a ideia inicialmente abandonada, mas agora redigida de maneira diferente,
divida em quatro partes e, ao mesmo tempo, acrescentando um dado
novo: 1) Mukhina e Venguer eram colegas de trabalho e amigos; 2) juntos,
os psicólogos teriam realizado diversas pesquisas no campo da psicologia
70De acordo com Beatón, amigo de Venguer, a prática de doar os direitos autorais a
editoras cubanas era habitual nessa época entre autores soviéticos como manifestação
de colaboração, entusiasmo e amizade. Como exemplo, Lídia I. Bozhovich (1908-
1981) cedeu seus direitos sob o livro Psicología de la personalidad el niño escolar (Havana,
1965) que fora editado pelo Departamento de Psicologia do Ministério da Educação
de Cuba.
163
infantil; 3) o resultado dessas pesquisas realizadas em conjunto seria
publicado na União Soviética; 4) esse resultado poderia ter sido divulgado
tanto na forma de livro, quanto de comunicação científica ou artigo; 5)
ambos os autores publicaram mais tarde de maneira individual o conteúdo
desses trabalhos, tanto dentro como fora da ex-União Soviética, movidos
por uma decisão pessoal ou, simplesmente, guiados pelas circunstâncias.
Dessa maneira, retornou-se ao trabalho de pesquisa a partir
do cotejamento dos livros Psicologia pré-escolar de Mukhina, publicado
na Rússia em 1975, e Temas de psicología preescolar de Venguer,
publicado em Cuba em 1976. É impossível apresentar aqui, por razão
óbvia de espaço, o resultado completo dessa tarefa de análise do
conteúdo integral das duas obras. No entanto, isso pode ser feito ao
menos com os sumários e, assim, auxiliar o leitor no trabalho de
identificação das autorias (Quadro II).
O quadro a seguir (Quadro II) apresenta o conteúdo do sumário
das duas obras publicadas: a primeira em russo; a segunda em espanhol.
164
escolares na URSS.
Capítulo 8: As condições do desenvolvimento Capítulo 4: A idade inicial.
da personalidade do pré-escolar. -O desenvolvimento psíquico da criança no
Capítulo 9: O desenvolvimento dos motivos e a primeiro ano de vida.
formação da autoconsciência da criança na -O desenvolvimento da esfera emocional.
idade pré-escolar. O complexo de animação.
Capítulo 10: O desenvolvimento dos -O papel que desempenha a comunicação entre a
sentimentos. criança e o adulto.
Capítulo 11: O desenvolvimento da vontade. -O desenvolvimento dos movimentos e das ações.
-O desenvolvimento da orientação no ambiente
Quinta seção. O desenvolvimento psicológico circunstante.
da criança pré-escolar. -O desenvolvimento da atividade com objetos.
-Surgimento de novos tipos de atividades na idade
Capítulo 12: O desenvolvimento da fala na inicial.
idade pré-escolar. -Surgimento da atividade plástica.
Capítulo 13: O desenvolvimento sensorial na -O desenvolvimento da fala.
idade pré-escolar. -O Desenvolvimento intelectual.
Capítulo 14: O desenvolvimento do -O desenvolvimento da percepção e formação das
pensamento na idade pré-escolar. representações acerca das propriedades dos
Capítulo 15: O desenvolvimento da atenção, a objetos.
memória e a imaginação na idade pré-escolar. -O desenvolvimento do pensamento.
Conclusão. A preparação psicológica para o -Premissas para a formação da personalidade.
ingresso na escola. Volume II:
Capítulo 5: A idade pré-escolar.
-A brincadeira como atividade diretriz.
-O papel da brincadeira no desenvolvimento
psíquico da criança.
-O desenvolvimento das atividades produtivas.
-O desenvolvimento dos elementos da atividade
didática e de trabalho.
- Assimilação de ações e interesses didáticos.
-Condições para o desenvolvimento da
personalidade.
-Desenvolvimento dos motivos da conduta e
formação da autoconsciência.
-Desenvolvimento dos sentimentos do pré-
escolar.
-O desenvolvimento da vontade.
-O desenvolvimento da fala.
-O desenvolvimento sensorial.
-O desenvolvimento das ações de percepção.
-O desenvolvimento do pensamento.
-O desenvolvimento da atenção, a memória e a
imaginação.
-A preparação psicológica para seu ingresso na
escola.
Fonte: O autor.
165
ao estudo da criança na idade pré-escolar e da terceira à quarta seção; do
quinto ao décimo quinto capítulo passaram a fazer parte do capítulo 5 que
transformou o resto da obra em tópicos específicos.
Contudo, contrariando a ideia inicial de que o livro publicado em
Cuba era o mesmo que o publicado na Rússia por Mukhina - salvo as
alterações visuais existentes, e as mudanças já mencionadas – me deparei
com o fato de que o mesmo continha um novo capítulo em que se
abordavam questões não tratadas em qualquer dos capítulos da obra de
Mukhina, relacionadas às principais diretrizes no estudo do
desenvolvimento psíquico da criança, e o desenvolvimento das pesquisas
sobre psicologia infantil na idade inicial e pré-escolar na União Soviética.
Sendo assim, concentrei a atenção na relação de amizade existente
entre Mukhina e Venguer. A intenção era localizar não apenas um livro
publicado por ambos antes dessa data, mas de todo e qualquer tipo de
trabalho escrito em parceria ou individualmente que sinalizasse à
aproximação dos autores ao conteúdo daquele livro publicado tanto em
Cuba como na Rússia.
Devemos admitir que até o presente momento, na América
Latina, inclusive em Cuba onde Venguer e Mukhina eram bastante
conhecidos, não se sabia muita coisa em relação à profundidade dos
vínculos pessoais e de trabalho existentes entre eles e, muito menos, em
relação ao resultado que esses vínculos tinham gerado em termos de
produção científica. Devo admitir também que foram muito gratificantes
as descobertas a esse respeito. Nessa última fase de levantamento, foram
localizadas, se não todas, as evidências, pelo menos algumas em número
suficiente que ajudaram a esclarecer o mistério envolvendo as obras, os
autores e as editoras mencionadas da melhor maneira possível, do ponto
de vista técnico e ético.
Essas evidências me permitiram concluir que, mesmo que Mukhina e
Venguer não tenham escrito nem publicado algum livro juntos antes de 1976, e
que depois pudesse ser editado no exterior com autorias individuais, a obra
publicada em Cuba nesse ano com o título Temas de psicología preescolar poderia
ser atribuído a Mukhina tanto quanto a Venguer. Da mesma maneira que o
livro publicado por Mukhina, na Rússia, em 1975, com o título de Psicologia pré-
escolar poderia ser atribuído a Venguer ou a ela.
166
Porém, algo dessa natureza podia ser possível? É estranho, mas é
possível. Os documentos localizados permitiram constatar que Mukhina e
Venguer, além de serem bons amigos, juntos construíram também uma
importante parceria profissional e acadêmica ao longo de quase trinta anos
que se estendeu desde a década de 1960 até, muito provavelmente, à
morte de Venguer em 1992. Essa parceria deixou numerosas e
importantes contribuições teóricas no campo da psicologia infantil, a
maior parte delas na década de 1970. Aliás, durante trinta anos,
exatamente entre 1958 e 1988, salvo em duas oportunidades (1983 e
1986), Mukhina só escreveu e publicou com Venguer.
Um total aproximado de vinte trabalhos foram produzidos por
Mukhina e Venguer na forma de artigos, programas de disciplinas e livros,
quinze dos quais já foram localizados como resultado desse trabalho.
Dessa lista, podem ser mencionados os artigos O desenvolvimento da
personalidade na idade pré-escolar (1973), O desenvolvimento dos motivos e a formação
da autoconsciência na criança (1973), O desenvolvimento dos sentimentos na idade pré-
escolar (1973), O desenvolvimento da vontade na idade pré-escolar (1974); O
desenvolvimento sensorial na idade pré-escolar (1974), O desenvolvimento do
pensamento na idade pré-escolar (1974), A preparação psicológica da criança para o
ingresso na escola (1974); diversos programas de estudo da disciplina
Psicologia Infantil para os cursos ministrados nos Institutos Superiores
Pedagógicos; o livro Psicologia: manual didático para os institutos de pedagogia
(1987).71
167
Além desses trabalhos redigidos em colaboração com Mukhina,
Venguer publicou, sozinho, na maior parte das vezes, artigos e livros
importantes no período de 1965 a 1976. Em 1969, divulgou suas duas
primeiras monografias intituladas Восприятие и обучения. дошкольный
возраст (Percepção e aprendizagem da idade pré-escolar), pela editora
Просвещение (Iluminação), e O desenvolvimento de habilidades cognitivas durante a
primeira infância (Tese de Doutorado, 1969). Dois anos antes tinha publicado
em parceria com A. V. Zaporozhets, V. P. Zinchenko e A. G. Ruzskaia o
livro Восприятие и действие (Percepção e ação, Moscou, 1967). Nos
Estados Unidos, o Journal of Russian and East European Psychology, divulgara
também no seu Vol. 10, nº 1, de 1971, um total de sete artigos seus: “A
ascensão de ações perceptivas” (p. 5-22); “Desenvolvimento perceptivo
através do domínio da atividade orientada ao objeto” (p. 22-37);
“Desenvolvimento perceptivo no contexto da atividade produtiva” (p. 38-54);
“Várias leis de desenvolvimento perceptivo” (p. 55-67); “A pedagogia da
percepção e a noção de formação de atos perceptivos” (p. 68-73); “Formação
sensorial na história da educação pré-escolar” (p. 73-83); “Formação sensorial
em Jardins de Infância Soviéticos e a tarefa de formar a percepção das
crianças” (p. 83-108).72
168
Pouco depois, Venguer publicaria ademais os livros Brincadeiras didáticas
e exercícios de educação sensorial com crianças pré-escolares (1973); A gênese das habilidades
sensoriais (Moscou, 1976) e O diagnóstico do desenvolvimento intelectual do pré-escolar (em
parceria com V. V. Jolimovskaia, Moscou, 1978).
Mukhina, por sua vez, tinha publicado mais de cinquenta
trabalhos antes de redigir e divulgar o livro Psicologia pré-escolar (1975), além
daqueles que escrevera com Venguer. Os temas mais recorrentes nesses
trabalhos foram: a imitação no desenvolvimento da criança, a formação
das ações mentais, o desenvolvimento psicológico da consciência e as
regularidades básicas do desenvolvimento psíquico da criança. Contudo,
previamente à publicação do livro parece ter escrito muito pouco sobre
temas que lá foram abordados com relação ao desenvolvimento da
percepção, do intelecto na criança pré-escolar e das atividades orientadas
com objetos, bem como sobre o papel das brincadeiras no
desenvolvimento infantil e a relação entre ensino e desenvolvimento
psíquico, etc (cf. Mukhina, s/d), temas sobre os quais Venguer dedicou
boa parte de sua obra intelectual, especialmente aqueles que se referem ao
desenvolvimento da atividade perceptiva e das capacidades cognitivas e
intelectuais.
Como pode ser observado, a maior parte dessas publicações
assinadas pelos dois psicólogos, bem como aquelas que Venguer assinara
sozinho ou com outros autores, saíram, ou já estavam escritas, antes da
publicação russa do livro Psicologia pré-escolar (1975), das edições cubanas
dos livros Temas de psicología preescolar (1976), das edições espanholas de
Psicología de la edad preescolar. Un manual completo para compreender y enseñar al
niño desde que nace hasta los siete años (1978) e da edição brasileira de Psicologia
da idade pré-escolar (1996).
Basta prestar atenção inicialmente à lista das produções que
Mukhina e Venguer realizaram em conjunto e para perceber que sete
delas, pelo menos, coincidem plenamente com seis dos quinze capítulos e
com as conclusões da edição russa do livro Psicologia pré-escolar de Mukhina
as quais deram lugar ao resto das publicações. Em outras palavras, metade
dessa obra era resultado da produção coletiva de ambos. Agora, há de se
atentar para a lista completa das publicações efetuadas por Venguer,
sozinho ou com outros autores, e novamente será possível perceber que
alguns desses trabalhos coincidem (e isso foi confirmado também no
169
conteúdo) com pelo menos mais três capítulos, ou com partes
importantes deles. Estou fazendo referência ao capítulo 3, sobre as
regularidades fundamentais do desenvolvimento psíquico, especialmente
no que tange a relação entre ensino e desenvolvimento; ao capítulo 6,
sobre o papel da brincadeira como atividade principal na idade pré-
escolar; ao capítulo 7, destinado ao estudo das atividades produtivas e aos
elementos didáticos e de trabalho da criança pré-escolar. Ao todo, nove
dos quinze capítulos da obra, bem como as conclusões finais, receberam
de maneira direta ou indireta a contribuição de Venguer.
Enfim, esses inéditos indícios, ainda que incompletos, permitem
afirmar que as obras em análise poderiam ter sido redigidas tanto por
Mukhina quanto por Venguer, não só pelo que ambos escreveram juntos
a esse respeito previamente, mas também pelo que o próprio Venguer
escreveu e publicou sozinho que, especulo, deve ter sido utilizado por
Mukhina com o consentimento explícito dele.
Resta apenas saber, agora, por que tanto Mukhina como Venguer
publicaram sozinhos os livros Psicologia pré-escolar (1975) e Psicologia
infantil (1985), bem como Temas de psicologia pré-escolar (1976),
respectivamente. Essa parte da história é um mistério ainda em questão,
embora pouco relevante se comparado à confusão gerada pelas
publicações em separado, que só foi esclarecida quarenta anos depois. A
ideia de que ambos os autores publicaram separadamente porque a
amizade que existiu entre eles teria ficado abalada não se sustenta, hoje em
dia, pelo fato de que não existiu inicialmente uma obra conjunta, salvo os
artigos mencionados, até porque, depois dessa história envolvendo as duas
obras, tanto Mukhina como Venguer escreveram e publicaram juntos pelo
menos outros seis trabalhos entre 1976 e 1988.
Uma coisa é fato: na condição de redator dos dois livros didáticos,
Venguer sabia que Mukhina os estava publicando sozinha e usando o conteúdo
dos artigos escritos em conjunto. Outras duas questões precisam ser indagadas:
primeiro, se Mukhina sabia da publicação de Venguer em Cuba; segundo, se o
próprio Venguer sabia da concretização dessa publicação, pois jamais fez
menção a ela nas bibliografias por ele preparadas.
170
Considerações Finais
171
envolvidos nos problemas de autoria analisados. Ficou, dessa maneira,
preservada a obra grandiosa realizada pela psicologia do período soviético,
o aporte significativo de seus representantes, a qualidade técnica e
científica das obras geradas e, ao mesmo tempo, esclarecidos os fatos,
restaurada a verdade e feita justiça àqueles que foram afetados pelos
problemas de paternidade cometidos, ou pelas decisões individuais
tomadas.
Referências
172
[dissertação de Mestrado]. Uberlândia: Programa de Pós-Graduação em Educação.
Universidade Federal de Uberlândia, 2019.
173
MUJINA, Valeria S. Psicología de la edad preescolar: un manual completo para
comprender y enseñar al niño desde que nace hasta los siete años. Madrid:
Visor libros, 1985.
174
PUENTES, Roberto Valdés; LONGAREZI, Andréa Maturano. Vida,
pensamento e obra de Leonid A. Venguer: o teórico das capacidades
cognoscitivas das crianças pré-escolares. In: PUENTES, Roberto Valdés;
LONGAREZI, Andréa Maturano (Orgs.). Ensino desenvolvimental: vida,
pensamento e obra dos principais representantes russos. Volume II. 1ª edição.
Uberlândia: Edufu, 2015, p. 181-217.
175
Capítulo 6
Introdução
176
destacando a dimensão histórica de sua constituição, tendo em vista uma
premissa essencial, segundo a qual “através dos outros constituímo-nos”
(VIGOTSKI, 2000, p. 24). Nesta perspectiva, enfatiza-se a necessidade de
o desenvolvimento ser guiado pelo ensino, isto é, que este seja
sistematizado para conduzir e exercer sua influência sobre aquele.
Todavia, ainda que o ensino se adiante ao desenvolvimento,
segundo Venguer (1975), ele deve considerar, necessariamente, as próprias
leis de desenvolvimento. Sob este enfoque, o autor faz referência à
concepção vigotskiana sobre os períodos sensíveis que ocorrem ao longo do
desenvolvimento da criança, e se caracterizam por serem, especialmente,
propícios para a assimilação de certos tipos de aprendizagem. A existência
destes momentos relaciona-se à maturação das funções psíquicas, uma vez
que quando uma nova função psíquica começa a se constituir, as crianças
são mais sensíveis às formas de ensino em que essas funções psíquicas se
baseiam. Deste modo, se bem conduzido, nestes períodos o ensino pode
exercer um maior efeito sobre o desenvolvimento.
Somos de acordo que a apropriação de elementos culturais
acontece nas mais variadas práticas sociais, sobretudo no contexto escolar.
Contudo, tal apropriação é ativa, uma vez que a subjetividade elege e
transforma aspectos que fazem sentido na história do sujeito, na formação
da sua personalidade, o que nos leva a problematizar sob que condições o
ensino conduz ao desenvolvimento.
Com o intuito de contribuir com tal questão, este trabalho
apresenta uma discussão, fruto de uma pesquisa de doutorado sobre a
docência com adolescentes (SOUZA, 2016), na qual se destaca a
importância do ensino na formação da personalidade dos estudantes.
Busca-se proporcionar ao leitor algumas das principais contribuições
levantadas a partir da tese, no que se refere aos processos educativos na
formação da personalidade do estudante que se encontra numa etapa
específica de desenvolvimento humano, a adolescência.
Desenvolvimento
177
processos não se limita a fatores biológicos. Neste sentido, Facci (2004)
ressalta que, “filogeneticamente, o homem já nasce hominizado, mas é o
convívio com outros homens, a interação e apropriação dos bens
culturais, no desenvolvimento ontogenético, que permitirão que haja o
desenvolvimento do complexo psiquismo humano” (FACCI, 2004, p.
204). A condição humana não é dada ao nascer, uma vez que a criança
ainda não tem os recursos simbólicos para adentrar no universo da
cultura. É graças à mediação do outro, que já detém a significação cultural
que, paulatinamente, o indivíduo se introduz nas práticas sociais, nas
relações humanas (PINO, 2005).
A mediação, feita via signos ou instrumentos é o canal por meio
do qual as funções psíquicas superiores se desenvolvem. Estas se
caracterizam por apresentarem uma origem social, controle voluntário e a
realização consciente. As funções psicológicas superiores modificam a
estrutura do funcionamento mental e estruturam a personalidade, sendo
que o desenvolvimento de tais funções passa pela apropriação dos bens
culturais e, para isso, é fundamental a contribuição do processo de
escolarização (FACCI, 2004, p. 210).
De acordo com Cunha (2000, p. 67, grifo do autor), “a escola tem
enfatizado mais o seu papel de ensinar, restringindo-o a fornecer
informações, valorizando a memorização, a repetição, a aprendizagem de
conteúdos isolados e menos a educação ‘como desenvolvimento da personalidade
dos educandos e de sua condição de sujeitos individuais’. (REY: 1995:20)”. No
entanto, o processo ensino-aprendizagem pressupõe uma relação dialética
entre professor-aluno, na qual as funções de ambos vão sendo
desenvolvidas. Partindo dessa premissa fundamental é que articulamos
neste trabalho, a adolescência como etapa do desenvolvimento humano, o
desenvolvimento da personalidade do estudante e os processos de ensino-
aprendizagem.
A atividade mediadora é a base das formas culturais de
comportamento e, conduzindo a prática pedagógica, o professor tem
papel destacado nesta atividade (VIGOTSKI, 1995, p 53). Concordamos
que “[...] os educadores, de uma forma geral, precisam estar atentos às
peculiaridades do desenvolvimento psíquico em diferentes etapas
evolutivas, para que possam estabelecer estratégias que favoreçam a
apropriação do conhecimento científico” (FACCI, 2004, p.78). Conforme
178
aponta Kostiuk (1991), é necessário que o professor tenha clareza de
como o ensino influi sobre o desenvolvimento dos alunos, e que se
estudem maneiras de valorizar a eficácia dos diversos métodos de ensino
na constituição integral dos sujeitos
A personalidade é resultante do desenvolvimento da psique em
condições sociais e, deste modo, o processo educacional pode intervir
significativamente em sua direção e formação. Sob esta perspectiva, os
objetivos e métodos educacionais terão êxito quando estiverem apoiados
nas necessidades desenvolvimentais do estudante, a partir da compreensão
da personalidade e dos caminhos de sua formação. Ademais, as estruturas
psíquicas relacionadas às necessidades e motivações humanas também se
desenvolvem e são formadas ao longo do processo educacional,
evidenciando a relação dialética entre ensino e desenvolvimento
(NEIMARK, 1975).
O objeto de nosso estudo situa-se na interface de quatro grandes
campos do saber científico: a Psicologia Escolar, a Psicologia do
Desenvolvimento, a Psicologia da Personalidade e a Educação, sobretudo
os estudos sobre o Ensino Desenvolvimental (PUENTES;
LONGAREZI, 2013; LONGAREZI; PUENTES, 2013; PUENTES,
2015, aos quais este trabalho soma-se às produções que têm sido
realizadas na última década neste campo.
Encontramos na literatura russa e cubana autores que
compartilham do Enfoque Histórico-Cultural e que desenvolveram
pesquisas muito importantes a partir dos estudos vigotskianos,
produzindo um legado para a compreensão da adolescência inexistente
em nossas produções brasileiras. Desse modo, trouxemos para este
estudo, sobretudo, as contribuições de L. B. Bozhovich (2003), L. G.
Domínguez García (2003a) e T. V. Dragunova (1980). Estas últimas
desenvolveram pesquisas sobre a personalidade humana, em especial,
direcionadas para o estudo das características psicológicas da
personalidade na adolescência, um dos focos principais de nosso estudo.
Em meio a tantos saberes, o Enfoque Histórico-Cultural constitui
a confluência desses campos, a partir do qual investigamos a compreensão de
professores de adolescentes sobre as características psicológicas dos seus alunos e sua
influência na prática pedagógica. Para tal, realizamos entrevistas semidirigidas e
formulamos algumas questões para os docentes responderem de modo
179
que, posteriormente, pudéssemos analisá-las à luz do nosso enfoque
teórico, sobretudo com as contribuições da pesquisadora soviética Lidia I.
Bozhovich (1908-1981) quanto ao desenvolvimento psíquico no período
da adolescência.
Para Bozhovich (1976), o lugar que o sujeito ocupa no sistema de
relações sociais, bem como a atividade realizada neste sistema é a
condição fundamental que determina a formação da sua personalidade.
Esta é decisiva para caracterizar o homem, pois propicia formas de
conduta e atividades mais elevadas e conscientes e permite uma integração
de todas as suas atitudes voltadas para a realidade em que vive. Por
conseguinte, “as reações do homem e todo o sistema de sua vida afetiva
interna são determinados por aquelas particularidades da personalidade
que se formaram durante o processo de sua experiência social”
(BOZHOVICH, 1976, p. 99).
Nesta perspectiva, González Rey (2013, p. 241) define a
personalidade como “o sistema subjetivo auto-organizador da experiência
histórica do sujeito concreto”. A personalidade é compreendida como
uma organização sistêmica da subjetividade individual, “comprometida
com o momento atual de expressão e subjetivação do sujeito”, um sistema
autônomo, que se constitui constantemente num “processo gerador de
sentidos ao longo da história do sujeito individual” (GONZÁLEZ REY,
2013, p. 254, 256). Nesta mesma linha, Domínguez García (2007, p. 58) a
define como “nível superior de organização dos componentes da
subjetividade e de regulação do comportamento”.
Considerada como o nível mais avançado de integração de
conteúdos e funções psicológicas, a personalidade intervém na regulação e
na autorregulação do comportamento do sujeito. A estrutura da personalidade
é entendida como a forma em que se organizam e se integram os seus
conteúdos para definirem seus sentidos psicológicos. Estes, por sua vez,
expressam-se, principalmente, de duas formas: as unidades psicológicas
primárias e as formações motivacionais (FERNÁNDEZ, 2003).
As unidades psicológicas são as necessidades, os motivos, o
caráter, os interesses, as atitudes e os hábitos, constituindo-se em
“conteúdos parciais, estáveis, portadores de determinado valor emocional,
expressas em diferentes formas definidas comportalmentalmente ou
psicologicamente” (FERNÁNDEZ, 2003, p. 301). Já as formações
180
psicológicas (ou motivacionais) são mais estáveis e englobam a identidade
pessoal, os ideais, as intenções e a concepção de mundo.
A caracterização psicológica por idades define-se pela estrutura
integral da personalidade do sujeito, que é diferente em cada etapa do
desenvolvimento humano. “Cada etapa do desenvolvimento se caracteriza
não apenas pelo conjunto de particularidades isoladas, senão por uma
estrutura integral peculiar da personalidade da criança, assim como pela
existência de uma tendência do desenvolvimento específico para esta
etapa” (BOZHOVICH, 1976, p.353). Tomando-se por base tais
considerações sobre a estrutura e a dinâmica da personalidade, é possível
compreendermos as relações entre a formação da personalidade e o
desenvolvimento psicológico na adolescência.
A adolescência e a juventude têm sido tradicionalmente definidas
na literatura sobre o desenvolvimento humano como idades de trânsito
entre a infância e a vida adulta, sendo considerados momentos centrais no
processo de socialização dos indivíduos, no decurso do qual o sujeito se
prepara para cumprir determinados papeis sociais próprios da vida adulta,
nos campos profissionais e relacionais (DOMÍNGUEZ GARCÍA, 2003).
Contudo, até o século XVIII, a adolescência era confundida com
a infância, pois não era considerada uma fase do desenvolvimento
humano. Com o processo de escolarização e o distanciamento paulatino
da criança em relação ao mundo do trabalho, a adolescência passou a ser
reconhecida como etapa do desenvolvimento humano (ARIÈS, 1981).
Desde então, os fatores de ordem biológica e individual foram associados
à adolescência, que era percebida como fenômeno universal. Ainda hoje,
predominam concepções naturalizantes sobre a adolescência,
universalizando e patologizando este período do desenvolvimento
humano, considerando-a naturalmente conflituosa, turbulenta, difícil,
cheia de crises e instabilidades que são atribuídos ao psiquismo do
adolescente (CHECCHIA, 2006).
A visão naturalizante da adolescência encontrada na literatura já
foi problematizada por outros autores como Mascagna (2009), Leal
(2010), Bock (2004) e outros. A perspectiva Histórico-Cultural tem
questionado a visão hegemônica, que reduz o conceito de adolescência a
uma categoria homogênea ou abstrata, uma vez que a constituição
histórica e social considera que “(...) as representações, significações,
181
atributos e papeis socialmente vinculados aos adolescentes apresentam
variações em uma mesma sociedade ao longo da história, bem como entre
distintas conjunturas ou contextos sociais” (CECCHIA, 2006, p. 131).
Sob este enfoque, é preciso compreender as singularidades presentes em
adolescências diferentes, em distintas formas de vivenciar a condição de
ser adolescente, que variam segundo a classe social, o gênero, a raça, o
contexto sócio-histórico no qual os adolescentes se situam, dentre outros
fatores.
A influência do meio (entorno) na formação da personalidade
varia significativamente em cada etapa. Vigotski (1935) aponta que o
papel do entorno no desenvolvimento do sujeito deve ser abarcado a
partir de uma perspectiva relativa, uma vez que o meio não se traduz
numa condição que determina o desenvolvimento, objetivamente,
entretanto, deve-se considerar o prisma da relação existente entre o sujeito
e seu entorno.
O autor salienta que as experiências emocionais do sujeito
explicam a influência do entorno no desenvolvimento psicológico de
forma que, uma mesma situação ambiental/social pode influenciar
pessoas distintas de formas diferentes, de acordo com a idade em que
ocorrem e da forma como se relaciona emocionalmente com os
acontecimentos.
O entorno exerce sua influência sobre o sujeito conforme ele
organiza as suas experiências emocionais para desenvolver sua atitude
interna face às demandas situacionais. De acordo com Vigotski (1935),
mais importante do que saber quais são as características constitucionais
do sujeito, importa descobrir quais destas características desempenharam
um papel decisivo na determinação da relação deste com uma dada
situação. Então, as diversas situações vitais suscitam efeitos diferentes no
desenvolvimento, dependendo dos sentidos e significações atribuídas pelo
sujeito.
Compreendendo-se que o desenvolvimento da personalidade se
constitui dialeticamente nas relações entre sujeito e sociedade, a educação
apresenta um papel fundamental, uma vez que o processo ensino-
aprendizagem tem lugar privilegiado ao longo do desenvolvimento da
personalidade do estudante. Para González Rey e Mitjáns Martínez (1989,
p. 103), “o processo de educação necessita de uma inter-relação
182
permanente entre a assimilação de conhecimento e o desenvolvimento da
personalidade do aluno; ambos os elementos constituem uma unidade
indissolúvel.
Neste sentido, os estudantes não se apropriam do conhecimento
por meio de mecanismos padronizados de assimilação ou por sequências
de operações generalizadas, uma vez que o educando deve individualizar
os conhecimentos que recebe e, desse modo, desenvolver a sua
capacidade para utilizá-los de forma generalizada nas várias situações da
vida. Cada ser é único, com condições singulares. Logo, a informação que
o sujeito individualiza ao longo da vida escolar “constitui a base do
sistema de operações que definem a constituição de suas próprias
capacidades, e tem um importante papel nas operações que desenvolve
como personalidade” (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ,
1989, p. 104). Tendo essa base de discussão teórica estabelecida,
apresentaremos, a seguir, os caminhos da pesquisa.
Caminhos da pesquisa
183
a compreensão da constituição da subjetividade humana, o Enfoque
Histórico-Cultural e a Teoria Histórico-Cultural da Subjetividade.
Os pressupostos vigotskianos apresentam, como princípios
metodológicos na investigação dos fenômenos psicológicos, a análise de
processos e não somente de resultados e a explicação ao invés da
descrição, o que significa buscar a gênese e a essência dos fenômenos.
Nesta perspectiva, toda e qualquer produção humana é desenvolvida na e
pela cultura, ideologicamente inscrita num dado contexto social
(VIGOTSKI, 2000).
A subjetividade é compreendida como um sistema em
desenvolvimento no qual o individual e o social constituem-se
reciprocamente em sua rede de significações e sentidos (GONZÁLEZ
REY, 2002). Logo, há uma relação constitutiva entre sujeito individual e
subjetividade social, pois “o sujeito individual está constituído pela
subjetividade social e, por sua vez, é um dos momentos constituintes
daquela, por meio das consequências de suas ações criativas dentro do
tecido social em que atua” (GONZÁLEZ REY, 2013, p. 136).
Os nove professores que participaram da pesquisa atuavam no 3°
Ciclo de ensino (correspondendo aos sétimos, oitavos e nonos anos) de
uma escola pública de educação básica e ministravam aulas de disciplinas
diversas, sendo os alunos adolescentes o principal público de seu trabalho.
A escolha dos participantes foi realizada mediante o contato da
pesquisadora com os professores na escola e livre adesão. Foram
aplicados questionários e realizadas entrevistas com os docentes. Os
questionários tratavam de questões objetivas e de informações gerais
como faixa etária, sexo, tempo de atuação na área educacional e formação.
As entrevistas constaram de questões que investigaram a
compreensão do professor de adolescentes sobre as características
psicológicas dos seus alunos na docência, abarcando os processos de
comunicação entre eles e com os adultos, a dimensão motivacional dos
adolescentes perante o estudo e as principais demandas destes alunos.
Buscou-se conhecer também como o professor organiza a sua prática a
partir de tais aspectos. Por fim, as questões versaram sobre a formação
inicial e continuada.
Fundamentados na epistemologia qualitativa, segundo a qual o
conhecimento é uma produção construtivo-interpretativa, cujo caráter
184
interpretativo é oriundo da necessidade de se atribuir sentido às
expressões do sujeito estudado (GONZÁLEZ REY, 2002, p. 31), a
análise dos dados foi realizada de forma interpretativa, partindo-se do
pressuposto que neste processo, o pesquisador integra, reconstrói e
produz indicadores, que só fazem sentido no conjunto da pesquisa.
185
relaciona-se à preparação profissional para lidar com as nuances que as
características relacionais dos adolescentes conferem ao processo ensino-
aprendizagem. Tais relações exigem determinadas disposições pessoais do
professor, como abertura para o diálogo e dinamicidade para modificar
suas práticas a partir das demandas discentes.
Dentro dos sistemas de comunicação, as relações entre os adolescentes
foram identificadas como outro aspecto que dispensa uma atenção
especial dos docentes, uma vez que destacam as características
psicológicas discentes nestas relações e assinalam a importância de um
manejo adequado destas relações no coletivo da sala de aula. Importa
ressaltar que a posição social do adolescente, ou seja, o novo papel que ele
ocupa nos grupos do qual faz parte é a base para a sua nova situação
social de desenvolvimento.
Em nossa pesquisa, constatamos que foram feitas muitas
referências às características psicológicas dos adolescentes no âmbito das
relações entre eles, as suas dificuldades relacionais e o sofrimento de
muitos alunos oriundos de suas necessidades de aceitação no grupo, no
coletivo da sala de aula. Contudo, poucas práticas foram citadas a partir de
tais observações, o que pode indicar uma dificuldade dos docentes em
realizar o manejo do coletivo com a finalidade de contribuir com tal
aspecto. Acreditamos que ações neste viés, talvez requeiram um maior
investimento numa formação docente que abarque, dentre outros temas,
teorias e manejos de grupo, associadas ao desenvolvimento psicológico
dos adolescentes no contexto escolar.
A segunda dimensão mais ressaltada pelos docentes foi a atividade
de estudo. Foi destacada a falta de interesses de muitos alunos pelo estudo e
muitos docentes mencionaram práticas pedagógicas desenvolvidas para
despertarem o interesse discente no processo ensino-aprendizagem. A
maior parte das compreensões docentes incide sobre as motivações dos
alunos para o estudo, bem como sobre o papel do professor na formação
da motivação para os estudos.
Por fim, com menor intensidade, os docentes direcionam suas
compreensões à dimensão da identidade pessoal do adolescente. Nesta
dimensão, um aspecto destacado na docência junto a adolescentes é a
compreensão da singularidade do aluno, ou seja, da personalidade que está
em desenvolvimento e, como tal, requer do professor sensibilidade para
186
perceber até onde incidem as características gerais do aluno adolescente
no coletivo da sala de aula e em que momento se apresentam as demandas
específicas do processo de formação da personalidade do aluno.
Os sistemas de comunicação foi o aspecto mais mencionado na
docência com adolescentes, o que vai ao encontro da principal mudança
na situação social que ocorre na adolescência: a mudança no sistema de
relações. Nesta perspectiva, a pesquisa indicou que para que o professor de
adolescentes promova o desenvolvimento, é importante que se inclua os
sistemas de comunicação como fundamento de suas metodologias na
prática pedagógica.
Defendemos que o conhecimento sobre a adolescência e as
relações entre ensino e desenvolvimento podem contribuir,
significativamente, para que a docência com adolescentes tenha mais
condições de promover o desenvolvimento humano, conforme preceitua
o Ensino Desenvolvimental (PUENTES; LONGAREZI, 2013;
LONGAREZI; PUENTES, 2013; PUENTES, 2015).
Buscamos, ao longo do trabalho, investigar como a compreensão
do professor de adolescentes sobre as características psicológicas dos seus
alunos influencia sua prática pedagógica. Em nosso objetivo geral,
consideramos, primeiramente, que as compreensões docentes se inserem
num contexto social muito mais amplo que não depende, somente, da
relação professor-aluno. Neste enfoque, concordamos com González Rey
e Mitjáns Martínez (1989), segundo os quais é equivocado se pensar que a
criança e o jovem somente se educam no período de sua vida escolar, pois
o processo de educação da personalidade é ilimitado, uma vez que a
educação e o desenvolvimento ocorrem no decorrer de toda a vida
humana.
A compreensão docente apresenta-se como aspecto significativo
no desenvolvimento da personalidade do adolescente. Ela envolve
conhecimentos gerais sobre a adolescência como etapa evolutiva, mas
requer também a observação da singularidade de cada aluno. Ademais,
múltiplos fatores devem ser considerados, tais como as representações
sociais sobre a adolescência, o conhecimento da situação social de
desenvolvimento do aluno, das leis que regem o desenvolvimento
humano, das regularidades e tendências de cada idade ao longo desse
187
processo, da posição interna de cada adolescente, dentre outros aspectos
levantados neste trabalho.
A identificação das características psicológicas dos estudantes é
apenas um dos aspectos da compreensão docente. Outro aspecto
importante é o posicionamento do professor mediante tal compreensão,
ou seja, as suas ações, a sua prática, o seu manejo de sala, a constituição
permanente do seu “fazer pedagógico” que, por sua vez, está inserido
num contexto escolar de uma dada sociedade.
Concordamos com Menezes (2004), segundo a qual, muitas vezes,
a formação do professor não contempla o conhecimento de tais
dimensões em sua complexidade e a principal via de conhecimento
docente torna-se a experiência profissional. Desse modo, a produção de
sentidos sobre tais questões é constituída no dia a dia, no chão da sala de
aula, baseada, sobretudo, nas experiências vividas junto aos alunos.
A adolescência é uma etapa do desenvolvimento humano com
características, peculiaridades, tendências psicológicas e regularidades
próprias. Não obstante, no Enfoque Histórico-Cultural, a situação social
do desenvolvimento apresenta-se como categoria central para
entendermos todas as transformações que ocorrem nesta fase, pois diz
respeito à grande reestruturação que se opera nas relações do sujeito com
o seu meio, pelas mudanças que apresentam, sobretudo, um caráter
qualitativo, resultando em novas formações na personalidade.
Os aspectos apontados neste trabalho nos fazem questionar sobre
que tipo de concepções e metodologias de ensino é preciso se desenvolver
para se contribuir efetivamente na formação da personalidade do
estudante, tendo em vista que o desenvolvimento desta deva se direcionar
para a conquista da capacidade de autodeterminação do sujeito.
Nesse sentido, há uma indicação de que a organização
metodológica considere o desenvolvimento da personalidade do
adolescente no processo ensino-aprendizagem. Entendemos que o estilo
de mediação pode ser determinante para a obtenção de resultados
satisfatórios, uma vez que é na relação entre docentes e estudantes e
destes com seus pares que o processo acontece de forma mais
significativa. Isto posto, destacamos a intencionalidade do processo
ensino-aprendizagem para que seja formada, no educando, uma
orientação ativa-transformadora para o conhecimento.
188
Para tal, há que se contemplar, nas atividades pedagógicas, a
existência de ações intencionais para que os estudantes sejam mais
propositivos, que compreendam o erro como parte do processo e não
como algo a ser temido ou motivo de vergonha. A formação de
estudantes ativos, criativos e audazes requer que “o processo educativo
contemple espaços para a individualização do conhecimento, para a
formulação de perguntas, problemas, questionamentos” (GONZÁLEZ
REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 1989, p. 108). Sob esse enfoque, “o erro é
um momento necessário da aprendizagem e do desenvolvimento da
personalidade; saber utilizar o mesmo como fonte de estímulo e de
desenvolvimento é um importante elemento do processo educativo”
(GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 1989, p. 108). Inclusive, a
compreensão do erro como momento necessário na aprendizagem, e não
como vergonha, é um elemento que contribui para a formação de
qualidades como a persistência, a segurança e a autocrítica construtiva,
incidindo no desenvolvimento da esfera moral.
Outro aspecto a ser ressignificado diz respeito ao processo
avaliativo, conduzindo-o como momento propício e oportunidade do
educando de identificar as dificuldades e superá-las. A capacidade de
discussão pode ser ensinada em todos os conteúdos, por meio do
incentivo à apresentação de argumentos lógicos, à escuta ativa e à
mediação e conflitos relacionais.
A segurança em si mesmos pode ser construída, sobretudo, por
meio de uma organização adequada do coletivo da sala de aula, que se
atente para mecanismos sutis nas relações como olhares, gestos e palavras
que incentivem o estudante a confiar em sua capacidade de superação e
desenvolvimento de suas potencialidades. Tendo em vista que no período
da adolescência a relação com os pares é extremamente sensível para os
estudantes, revela-se extremamente importante a atitude atenta do
docente para conduzir as atividades em grupo de forma a propiciar o
maior desenvolvimento possível do alunado. A contemplação de todos
esses elementos demanda perspectivas pedagógicas e metodologias
consistentes e intencionais.
González Rey e Mitjáns Martínez (1989) apontam que o
desenvolvimento de alguns aspectos da personalidade, tais como os
interesses, a flexibilidade, a capacidade de reflexão e de estruturação do
189
campo da ação, garantem uma orientação ativa-transformadora do educando
para o conhecimento, tornando-o sujeito do processo de aprendizagem. O
estudante com tal orientação é capaz de se implicar no processo ensino-
aprendizagem que, por sua vez, converte-se numa via de desenvolvimento
de suas potencialidades. De acordo com González Rey e Mitjáns Martínez
(1989), isso pode ser feito estimulando elementos psicológicos da
personalidade, tais como a sua iniciativa, persistência, capacidade de
discussão e segurança em si mesmo, ao longo de sua escolarização. Esses
elementos serão significativos no modo como o aluno utiliza os seus
conhecimentos.
Nesse sentido, como despertar o interesse pelo conhecimento dos
estudantes, que estratégias utilizar em sala de aula para que eles aprendam
o significado de flexibilidade e a vivenciem, bem como a capacidade de
reflexão e proposições para agir no mundo, são questões sobremaneira
importantes a serem consideradas na docência que se pretende guiar por
uma orientação ativa e transformadora.
Por outro lado, alunos que não desenvolvem tais características de
personalidade, apresentam aspectos como a rigidez, a falta de interesses, a
pobreza de reflexão e insegurança, sendo conduzidos por uma orientação
passivo-descritiva ao longo do processo ensino-aprendizagem.
Consequentemente, tais alunos se implicam de forma insatisfatória em sua
escolarização, pois trabalham com as informações apenas para cumprir
com as exigências que, para eles são externas, de modo que o ensino
perde o seu valor educativo e não apresenta nenhuma significação para o
desenvolvimento da personalidade.
Os autores assinalam que as reflexões, as ideias, as dúvidas e as
vivências produzidas na atividade de estudo, durante a assimilação de
conhecimentos, são elementos fundamentais para que o professor
conduza o processo de individualização do conhecimento. Muitas vezes,
tais elementos não são cultivados nem estimulados pelo professor no
processo ensino-aprendizagem. Deste modo, se incita a “condição
passivo-reprodutivista”, ou seja, a capacidade do educando para
reproduzir a informação, sem sentido educativo para si. Este modo de
compreender o processo ensino-aprendizagem o reduz a memorizar e a
reproduzir, e não a pensar.
190
Um processo ensino-aprendizagem adequadamente desenvolvido
é fundamental para a educação da personalidade, uma vez que nele, além
de obter conhecimentos, o aluno desenvolve interesses, aprende a se
expressar, a defender seus critérios, a formar suas convicções, a propor
questionamentos mediante a realidade, a educar sua persistência, sua
autocrítica, dentre outras particularidades centrais para o desenvolvimento
da personalidade. Assim, é essencial o papel criativo e ativo do professor,
que deve adequar o material pedagógico às particularidades dos
estudantes, desenvolvendo atividades que estimulem a participação dos
alunos, estimulando a dúvida e a reflexão (GONZÁLEZ REY;
MARTÍNEZ, 1989, p. 109).
Outro fator a ser destacado para se considerar na prática
pedagógica e sua importância na formação da personalidade do estudante,
é considerar a unidade entre os aspectos cognitivos e afetivos, uma vez
que na escola, os parâmetros de qualidade exigidos para a avaliação da
aprendizagem têm sido eminentemente cognitivos e, neste sentido,
componentes afetivos tais como as emoções e os sentimentos, muitas
vezes não são considerados como características intrínsecas à formação
humana (FARIÑAS, 1999). Tal dicotomia reflete-se no pensamento
equivocado segundo o qual os aspectos cognitivos devam ser tratados
exclusivamente pela Pedagogia, da mesma forma que os aspectos
emocionais/relacionais/afetivos devam ser tratados somente pela
Psicologia.
Entendemos que, uma vez que o processo ensino-aprendizagem
ocorre, sobretudo, em sala de aula, local onde os estudantes convivem
entre si, por meio de trocas e interações, torna-se fundamental considerar
a qualidade da convivência dos estudantes neste espaço e nos demais
ambientes da escola, favorecendo relações saudáveis, onde a violência
física e psicológica seja combatida por toda a comunidade escolar. As
vivências dos estudantes, ou seja, o modo como se relacionam
afetivamente com as experiências sociais são determinantes para o
desenvolvimento adequado da personalidade dos alunos e,
consequentemente, de suas aprendizagens.
Nesta perspectiva, Toassa (2009) lembra-nos de que Vigotski
apresenta uma compreensão dialética do psiquismo, e por isto, não separa
pensamento/cognição de afeto/emoção. O autor estabelece que a emoção
191
e a cognição formam uma unidade, preconizando que, assim como a
memória, a atenção e o pensamento, os afetos consistem em funções
psicológicas superiores, portanto, passíveis de mediação. Tanamachi e
Meira (2003, p. 50) destacam que “na medida em que é impossível separar
processos intelectuais e afetivos, para que a aprendizagem ocorra, é
preciso que se estabeleça um vínculo que possa levar o aluno a dirigir sua
atenção para o objeto do conhecimento”. Ademais, conceber o sujeito em sua
condição subjetiva é essencial para a compreensão do seu processo de aprendizado, pois
torna possível reconhecer e compreender as emoções do sujeito
produzidas no processo de aprendizagem, que é repleto de produção de
sentidos.
Assim, González Rey (2013) indica a importância do sentido que
o processo de aprendizagem tem para o sujeito, em sua condição singular,
dentro de sua trajetória de vida. Para o autor, ao considerarmos a
condição subjetiva do sujeito aprendente, é possível acessarmos as
emoções que são geradas em outros espaços da vida, mas que surgem em
sala de aula. Nesta perspectiva, o sujeito da aprendizagem não se constitui
como mero assimilador de conhecimentos, mas sujeito ativo, gerador de
sentidos na produção do conhecimento.
O autor sublinha que os processos sociais nem são externos aos
indivíduos e nem estanques, mas são sistemas complexos em que o
indivíduo é, ao mesmo tempo, constituinte e constituído. Suas
ponderações levam-nos a compreender a complexidade das relações
estabelecidas no contexto escolar, esclarecendo o modo como os
elementos de sentido, que se estendem àqueles gerados nos processos
relacionais restritos ao espaço escolar, se integram e constituem a
subjetividade escolar.
González Rey (2013) ressalta que os elementos de sentido
presentes em configurações subjetivas de espaços sociais concretos
relacionam-se, constantemente, com outros elementos de sentido de
diferentes espaços sociais e é precisamente nesses espaços
interconectados, constituídos histórica e culturalmente, que a
personalidade se desenvolve. Compreender a articulação de tais elementos
e considerá-los, atuando de forma a promover o desenvolvimento
psíquico dos estudantes por meio do ensino trata-se de um desafio ainda a
ser superado.
192
Assim como os estudantes levam para a escola conhecimentos
aprendidos em outros espaços, eles também podem apresentar elementos
afetivo-relacionais que foram gerados em outros ambientes sociais para a
escola e, muitas vezes, surgem situações que precisam da mediação da
equipe pedagógica, como, por exemplo, o aluno que está apático porque
presenciou uma briga familiar em casa. O inverso também pode
acontecer: vivências escolares são levadas para o ambiente familiar,
demandando atenção e cuidado da família e articulação desta com a
escola. Todas essas inter-relações constituem a subjetividade do estudante
e impactam no processo ensino-aprendizagem e no desenvolvimento de
sua personalidade. Neste viés, faz-se necessário a elaboração de propostas
educacionais que contribuam na construção de um processo de
escolarização que, realmente, reconheça a subjetividade dos estudantes no
processo de elaboração do conhecimento e, a partir disso, atue na tríade
ensino-aprendizagem-desenvolvimento.
Considerações Finais
193
respeito à importância do conteúdo de Psicologia do Desenvolvimento e
Psicologia da Educação nas licenciaturas, tema abordado pela tese de
Checchia (2015) sobre a disciplina Psicologia da Educação nas
licenciaturas. Por sua vez, a Psicologia Escolar, pode contribuir muito
com propostas de formação continuada, que contemplem um sólido
referencial teórico sobre a adolescência.
A experiência profissional oferece ao docente variadas vivências
que tornam o seu conhecimento um sólido referencial que vai sendo
ressignificado, gradualmente, a partir do cotidiano da sala de aula. O
professor se depara, no cotidiano escolar, com alunos que demandam
formas de atuação muito peculiares à etapa em que vivem, exigindo-lhe
determinados conhecimentos e habilidades que ultrapassam o domínio
dos conteúdos e apontam para a importância de saber conduzir as
relações interpessoais, considerando as características psicológicas desse
público. Logo, torna-se fundamental a organização do coletivo da sala de
aula, tendo em vista os impactos deste na formação da personalidade do
aluno, cujo processo intensivo de formação da identidade pessoal o torna
extremamente sensível às opiniões sociais.
Ao reconhecermos a importância dos conhecimentos acumulados
pelos docentes ao longo de sua trajetória profissional, tivemos como
desafio transformá-los em saberes sistematizados, que pudessem ser
compartilhados coletivamente sem perder de vista a dinamicidade do
processo da docência. Não obstante, ressaltamos a importância da
formação continuada para auxiliar o docente a compreender o seu
cotidiano, a partir do conhecimento teórico, por meio do qual ele poderá
desenvolver novos modos de pensar e fazer a sua atuação profissional.
Seguramente, faz-se necessário investir na formação docente para
que este utilize seus recursos criativos e autônomos e, consequentemente,
possa contribuir para que os estudantes também desenvolvam sua
personalidade de forma ativa, criativa e autônoma, ao longo de sua
escolarização. Entendemos que as metodologias estão inteiramente
relacionadas às concepções de ensino-aprendizagem e, consequentemente,
os processos almejados a partir da tríade ensino-aprendizagem-
desenvolvimento apontam para que sejam considerados, na prática
pedagógica, alguns princípios, tais como: o caráter histórico-cultural do
conhecimento, a importância da função da mediação docente no processo
194
ensino-aprendizagem-desenvolvimento, o papel do ensino na formação da
personalidade do educando, os períodos sensíveis das etapas do
desenvolvimento humano e as pistas decorrentes desse estudo para que
sejam desenvolvidas metodologias que instiguem e potencializem o
desenvolvimento psicológico dos estudantes.
Esperamos que as sistematizações realizadas no presente estudo
contribuam para a produção de subsídios teóricos sobre as relações entre
ensino e desenvolvimento de adolescentes, no Enfoque Histórico-
Cultural. Este trabalho sobre a docência com adolescentes, longe de
pretender esgotar um tema tão complexo, apresenta-se como um
conjunto de informações que podem servir como pressupostos na
constituição de um Ensino Desenvolvimental, voltado para a
adolescência. Tais pressupostos podem tornar-se fonte de estudo e de
outras pesquisas, além de constituir-se em conteúdos para cursos de
formação inicial e continuada de professores da educação básica. A partir
das considerações deste trabalho, indicamos também que sejam feitas
novas investigações com os adolescentes, com o intuito de contribuir para
melhorar a qualidade de um ensino desenvolvimental.
Referências
195
(Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2006.
196
GONZÁLEZ REY, F. L. Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e
desafios. São Paulo: Thompson Learning, 2002. 188 p.
197
PUENTES, R. V. Ensino Desenvolvimental: a teoria da atividade de
estudo de V. V. Davidov e D. B. Elkonin. In: AMARAL, C. T.; MOURA,
J. G. de (Org.). O saber e as práticas pedagógicas no século XXI: questões em
debate. Curitiba: CRV, 2015, v. 1, p. 167-186.
198
Capítulo 7
Introdução
199
A Didática é aqui assumida enquanto eixo central da pesquisa,
a partir do estudo de uma de suas categorias específicas, os
“princípios didáticos”. A Didática é a teoria e prática da organização
do processo de ensino-aprendizagem fundamentado na unidade
dialética e complexa dos modos, condições e fundamentos de sua
realização, visando à formação integral do ser humano. Isso posto,
apresentaram-se as seguintes questões: “qual a relevância da categoria
de princípios para a Didática na perspectiva marxista da educação?”;
“a compreensão crítica e a análise sobre os sistemas de princípios
didáticos formulados sob a orientação da educação marxista podem
revelar novas interpretações quanto ao entendimento da unidade
dialética entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento e,
principalmente, de sujeito?”; “que pressupostos teóricos são
necessários para essa análise e compreensão dos sistemas de
princípios como categoria fundamental da Didática na perspectiva
marxista da educação?”
Tais questionamentos estiveram orientados pelo objetivo de
sistematizar as tipologias e classificações elaboradas sobre os
princípios didáticos na perspectiva marxista, a partir da análise crítica
à luz de alguns dos pressupostos da Teoria da Subjetividade. Desse
modo, o percurso da investigação esteve integrado por três
momentos distintos, mas complementares: a) estudo, discussão e
aprofundamento da Teoria da Subjetividade como fundamento e eixo
estrutural para as análises, leitura e interpretação dos princípios
didáticos na perspectiva marxista; b) processo de localização,
tradução, catalogação, sistematização e classificação de sistemas de
princípios didáticos elaborados por diversos autores, em contextos
históricos, sociais, culturais, políticos e econômicos distintos, na
perspectiva marxista da educação; e c) discussão e análises dos
fundamentos filosóficos, psicológicos e pedagógicos dos sistemas de
princípios didáticos na perspectiva marxista da educação localizados e
selecionados.
O texto pode ser localizado no âmbito das pesquisas
realizadas no interior do Grupo de Estudos e Pesquisas em Didática
Desenvolvimental e Profissionalização Docente – GEPEDI, que
favorecem o acesso de pesquisadores contemporâneos ao
200
pensamento e obra da matriz histórico-cultural (FEROLA, 2019;
LONGAREZI, 2017; LONGAREZI; FRANCO, 2013;
NASCIMENTO, 2014; LONGAREZI; ARAÚJO; PIOTTO;
MARCO, 2018; LONGAREZI; PUENTES; ARAUJO, 2020;
LOPES, 2020; CARDOSO, 2020; AMORIM, 2020; SOUZA, 2019;
LOPES, 2020; PUENTES, 2017; CARCANHOLO, 2020).
201
Abuljanova, B. F. Lomov e B. G. Ananiev,) e nas concepções psicológicas
da personalidade de G. Allport e F. Guattari. Seu ponto característico é o
entendimento do caráter gerador da psique, convicção que contradiz as
concepções psicológicas marxistas da maior parte dos autores que lhe
precederam. Este entendimento entra em contradição, sobretudo, com a
teoria cultural-histórica da atividade, de A. N. Leontiev e seguidores.
O caráter materialista nesta concepção de subjetividade defendida
por González Rey, ultrapassa o entendimento de materialismo como
sinônimo de determinismo; além disso, mantendo a defesa de seu caráter
histórico, social, cultural, no papel do trabalho e da atividade na
constituição humana, conforme afirma Marx (2008):
202
produção da existência (determinante) e a esfera das ideias e da
consciência (determinada), sem uma ideia de unidade ou de práxis como
mediação entre a objetividade e a subjetividade, entre o material e o
espiritual, entre a base e a superestrutura, carece de uma análise
consistente de sua filosofia. A Teoria da Subjetividade de González Rey
assume, de partida, a posição marxista sobre a materialidade, que une
dialeticamente a realidade objetiva, os sujeitos e suas transformações, e
que, a partir disso, ativa nossas interpretações e coerência do fundamento
apreendido.
Diante dessa breve consideração a respeito da base materialista da
Teoria da Subjetividade de González Rey fica evidente a indissociabilidade
entre a concepção materialista e a lógica histórico-dialética como
coerência de sua perspectiva marxista. Ao considerar as origens materiais
e a ação interativa e implicada do homem na sua ação de transformar,
criar, produzir, relacionar-se e viver suas experiências demonstra-nos sua
compreensão do homem como gerador de sentidos subjetivos.
Na Teoria da Subjetividade considera-se que o social e o
individual são sistemas que se constituem mutuamente, em que um não se
sobrepõe ao outro. Nas palavras do autor,“a subjetividade não tem causas
externas, ela expressa produções diante das situações vividas”
(GONZÁLEZ REY, 2017, p. 51). A subjetividade é simultaneamente
individual e social, se produz na vida. Isso inviabiliza pensar em
determinação social. Nessa direção, é essencial compreender a
subjetividade como um sistema configuracional, em que não há relação
imediata entre os diferentes elementos dos sistemas e tampouco que a
soma deles define a subjetividade. A subjetividade é a produção que
emerge da articulação desses sistemas (individual e social) na sua relação
com a cultura. Portanto, a Teoria da Subjetividade compõe-se de
conceitos que dão unidade a um sistema de configuração de sentidos
subjetivos e significados. As configurações são sistemas em movimento
que guardam a qualidade de compreender o sujeito como gerador e
produtor de subjetividades num processo ativo que expressa a vitalidade
da vida.
González Rey (2005a,c) apresenta um arcabouço teórico
detalhando todo o percurso histórico em que o campo da psicologia foi
sendo desenvolvido, explorando assim os fundamentos e concepções que
203
cada momento histórico, social, econômico e político engendrou em sua
constituição. Diante dos argumentos de que o sujeito se constitui pela
reprodução, assimilação, interiorização, apropriação e consciência como
reflexo, traz novos argumentos que contradizem a noção de sujeito
determinado e passivo, ao reconhecer o caráter produtor de sua
subjetividade a partir da experiência vivida na atividade humana. É uma
totalidade, uma rede complexa e implicada entre sujeito e a realidade (que
não é só o hoje, mas a vida de toda a humanidade) que, ao ser vivida, é
continuadamente pensada, transformada e produzida.
A psicologia soviética foi pioneira no desenvolvimento de uma
concepção que ampliou a compreensão dos fenômenos psicológicos
condicionando-os aos aspectos sociais, históricos e culturais
(GONZÁLEZ REY, 2005a). A explicação sobre a questão da formação
social do psiquismo se deu sobre a base de dois processos: o reflexo e a
interiorização, os quais, segundo González Rey (2005a), dão atribuição
primária ao objeto.
A partir do estudo consistente contextualizado das obras de
Vigotski e Rubinstein, dentre outros, González Rey (1997, 2005a, 2005b,
2005c, 2005d, 2007, 2012a, 2012b) elaborou os elementos essenciais para
o desenvolvimento da categoria subjetividade77. Essa categoria analítica
esteve presente desde o início de suas investigações e seu
desenvolvimento foi se constituindo a partir das análises críticas dos
principais períodos e ideias de Vigotski e Rubinstein, mais
especificamente, da produção teórica de ambos. Destes pesquisadores,
González Rey (2012c) coloca:
204
que Rubinstein nos legou a partir de suas últimas obras, o que teve
outra grande semelhança com Vygotsky. Ambos, Vygotsky e
Rubinstein, foram, a meu ver, os autores mais importantes da
nascente psicologia cultural-histórica que emergiu no devir da
Psicologia Soviética. (GONZÁLEZ REY, 2012c, p. 270).
205
em uma ontologia78 própria. Para tanto, defende a necessidade de uma
mudança epistemológica e metodológica que apoie a produção desse
conhecimento, orientada para uma realidade de caráter sistêmico, dialético
e dialógico.
Compreendido, de modo geral, o movimento investigativo e
crítico que González Rey desenvolve para propor a Teoria da
Subjetividade, passamos a discutir sobre os principais conceitos que
formam a base para a análise dos sistemas de princípios didáticos que
apresentaremos mais adiante. Trataremos primeiramente do conceito que
subjetividade.
O termo “subjetividade” trata de um processo qualitativo do ser
humano (sujeito como gerador e produtor de subjetividades num
processo ativo que expressa a vitalidade da vida), seja ele social ou
individual, que envolve emoções e processos simbólicos que se integram
em novas unidades subjetivas, o que possibilita o desenvolvimento da
personalidade79 como uma nova qualidade humana, a subjetividade, a
partir de um movimento dialético entre o social e o individual. O
momento individual é constituído por um sujeito comprometido e
implicado permanentemente no processo de suas práticas sociais, de suas
reflexões e de seus sentidos subjetivos. Os sentidos subjetivos expressam,
portanto, o microcosmo de toda a sua vida. O modo como as experiências
histórico-sociais são vivenciadas pelo indivíduo e pelas instâncias sociais
resultam em configurações subjetivas que emergem no curso destas
experiências.
206
Nesta compreensão, entende-se que é um processo que nos
permite adentrar nas complexas formações “simbólico-emocionais”80 que
estão na base das produções humanas. Assim, tornam-se importantes
elementos de estudo: a gênese deste processo; a relevância do afeto, das
emoções sem sobreposição ao cognitivo e vice-versa; a consciência como
unidade dialética; e a cultura.
Outro conceito fundamental é o de “sujeito”. Vejamos nas
próprias palavras do autor: “o sujeito representa aquele que abre uma via própria
de subjetivação, que transcende o espaço social normativo dentro do qual suas
experiências acontecem, exercendo opções criativas [...]” (GONZÁLEZ REY,
2017, p.73). Nessa perspectiva, fica evidente o caráter gerador e produtor
do sujeito na unidade do simbólico-emocional. A produção é uma
dimensão fundamental para a subjetividade. A experiência pode ser a
mesma para os sujeitos, o que vai mudar é a maneira como cada um sente
e produz sentidos subjetivos. Isto posto, fica claro que a unidade do
simbólico (cognitivo, criatividade, fantasia, imaginação) e do emocional
representa o “sentido subjetivo”, e define o caráter subjetivo das
experiências humanas. Em outras palavras, sentido subjetivo é a unidade
do simbólico-emocional a partir da experiência vivida pelo sujeito. É uma
produção do sujeito na sua interação com o mundo, tornando a realidade
subjetiva, nutrindo-se constantemente da experiência vivida, não só de
suas ações do momento atual, mas também dos sentidos historicamente
configurados. O sentido se caracteriza como produção singular: não é
universal, pois traz a marca da história do sujeito e de sua ação nos
contextos atuais de sua vida. Deste modo, o sentido está sempre
envolvido na subjetividade, tanto social como individual.
207
É preciso entender a unidade simbólico-emocional como uma
chave de análise crítico-interpretativa das concepções teóricas-
metodológicas que fundamentaram a elaboração de princípios didáticos na
perspectiva marxista, para buscar, em profundidade, desvelar a aparência
formal de integrar afetivo e cognitivo e sua realização. Aliado a essa
compreensão, temos como máxima de análise o conceito de sujeito no
reconhecimento de seu caráter ativo, gerador, reflexivo, criativo e sua
relação com o social em permanente estado de tensão e rupturas,
podendo gerar novos sentidos subjetivos e, assim, unidades de
subjetivação individual e social.
Com base nesses conceitos, González Rey defende a ideia da
aprendizagem enquanto uma produção subjetiva na qual se desenvolve e
se criam, a partir do conhecimento, recursos para enfrentar exigências e
situações da vida que cobram seu posicionamento, decisão e participação,
e não a mera reprodução acrítica do quanto aprendido. A aprendizagem e
o desenvolvimento do sujeito estão intrinsicamente relacionados e são
processos interativos, de qualidade e produção subjetiva que integra o
individual e o social. Desse modo, é essencial transcender a concepção
cognitivo-intelectual do processo de aprender ou de um processo
plurideterminado no qual o emocional e o relacional são considerados
uma adição ao cognitivo para favorecê-lo ou estimulá-lo. Mitjáns Martinez
e González Rey (2012) explicam o significado que a produção do
conhecimento tem como essencial à categoria do sujeito que aprende. A
natureza psicológica do aprender é inseparável da subjetividade. A
subjetividade alimenta-se de uma produção simbólica de origem cultural e
de uma produção social e histórica. Desse modo, essa produção na prática
social é portadora de uma emocionalidade que se constitui no sujeito,
sentidos que permitem falar da mente como sistema gerador,
compreendendo que a aprendizagem escolar como um processo em que a
personalidade está ativamente implicada.
Esta explicação nos coloca diante de uma reflexão importante, de
que a produção do sujeito tem como matéria prima sua vida social e
cultural, articulada a todos os seus processos subjetivos constituídos em
sua experiência vivida. Assim, esta produção caracteriza o sujeito que
aprende e desenvolve pela capacidade de produzir configurações
subjetivas que explicam o desenvolvimento de recursos, de operações,
208
funções e decisões que assume em novas experiências de forma ativa e
comprometida. Nestes termos, o elemento-chave para compreender a qualidade
da aprendizagem e do desenvolvimento é a capacidade geradora do sujeito frente
às situações em que usa esse saber.
Ao não considerar o envolvimento emocional dos alunos, promovendo
meramente um exercício cognitivo que se aplica ao desenvolvimento puramente
intelectual, o processo de ensino-aprendizagem institucionalizado permanece
desprovido de sentido subjetivo. Compreender o ser humano é vê-lo como
processo, como fenômeno em andamento, que vive a contradição e, por não
estar totalmente determinado, é essencialmente mutável, é transformador, é
desafiado por si mesmo a superar-se.
209
Os “princípios didáticos” configuram um sistema e são
postulados gerais sobre a estruturação do processo de ensino-
aprendizagem em correspondência com os objetivos e fins da educação,
fundamentando a direção e orientação do trabalho docente na formação
intelectual e no desenvolvimento do estudante, conforme os objetivos da
sociedade em questão. Eles têm caráter sistêmico e processual, pelo que a
não observância de um dos princípios didáticos que compõem o sistema
coloca em fragilidade o cumprimento dos demais e, por conseguinte, afeta
o processo e o resultado da finalidade do sistema e da educação. No
sistema de princípios, cada unidade cumpre determinados objetivos do
ensino e, ao mesmo tempo, se subordina às finalidades de todo o sistema
e da educação, o que exige que sejam observados em sua integralidade
(KLINGBERG, 1972; DANILOV, 1972).
Os princípios didáticos originam-se do desenvolvimento histórico
da prática educativa a partir de suas determinadas regularidades,
características gerais e regras, o que corrobora para o caráter científico da
Didática. O processo de ensino-aprendizagem assume, assim, sua
explicação e orientação científica com o apoio de outras ciências. Não é
demais enfatizar que uma investigação sobre os fundamentos filosóficos,
psicológicos e pedagógicos que orientaram a produção de princípios
didáticos na perspectiva marxista da educação remete-nos a possibilidade
de pensar/transformar a realidade brasileira a partir de princípios
didáticos, pois guardam em si a função de garantir que as finalidades da
educação e da sociedade se materializem. Por exemplo, podemos, ao
longo da leitura da análise interpretativa dos sistemas de princípios
didáticos, ir produzindo um desejo de que princípios didáticos, na
perspectiva da Teoria da Subjetividade, ampliem cada vez mais nossa
compreensão de que o processo de aprendizagem nos torna cada vez mais
perto de nossa humanidade, e de que sejamos todos sujeitos autorais de
nossa história em unidade uns com os outros.
Desse modo, nosso estudo corrobora a importância do
conhecimento dos fundamentos e finalidades do processo educativo na
hora de viabilizar a criação de condições para que passem da esfera teórica
à esfera prática. Isto é, compreender as finalidades e os objetivos gerais da
Educação é essencial para entender a existência e as relações humanas na
sua dinamicidade, complexidade e entrelaçadas pelas condições históricas,
sociais, culturais e econômicas. Assim, extraem-se fundamentos que
210
desestabilizam a tradicional estrutura limitadora do pedagógico apenas às
paredes da sala de aula, negando-se a educação como ação política que
proporciona conhecimentos e habilidades para uma vida produtiva no
contexto de construção de uma sociedade democrática, intercultural e
cidadã.
A pesquisa teve como critério de delimitação a escolha de autores
cujos trabalhos apresentam uma base filosófica materialista e dialética a
respeito do caráter histórico-cultural da sociedade e dos indivíduos, bem
como sobre o papel da educação, da escola e dos processos de ensino-
aprendizagem no desenvolvimento do psiquismo humano, formulada por
K. Marx, F. Engels e V. I. Lenin, fundamentalmente.81 A partir desse
critério, foram selecionados os sistemas de princípios didáticos
estabelecidos por autores soviéticos e russos, alemães, cubanos e
brasileiros que se apresentam no quadro a seguir (Quadro 1).
81A presente pesquisa levou em consideração, como fonte de inspiração de natureza teórica
e metodológica, os estudos prévios sobre princípios didáticos realizados por (SILVESTRE
ORAMAS; TORUNCHA ZILBERSTEIN, 2000, 2002; NÚÑEZ, 2009).
211
O quadro anterior permite conferir que foram localizados 17
(dezessete) sistemas de princípios didáticos elaborados ao longo de um
período de quase noventa anos, isto é, entre, aproximadamente, 1930 e
2017.A maior quantidade de propostas foi elaborada por autores
soviéticos e russos (7); seguida pelas brasileiras (5); cubanas (3) e alemãs
(2). O sistema de princípios de Vigotski, Leontiev e Galperin, foi
resultado da interpretação teórica da obra desses três autores realizada
pelo professor e pesquisador cubano Isauro Beltrán Núñez (2009), a partir
de Talizina (1988), para o caso específico de Galperin. As propostas
soviéticas foram elaboradas, maioritariamente, entre 1965 e 1975, etapa na
qual o desenvolvimento dos fundamentos teóricos e metodológicos da
educação atingiu seu nível mais elevado. Os sistemas de princípios
didáticos elaborados no contexto do Brasil, excetuando a proposta de
Libâneo (1990), são muito recentes.
No quadro seguinte (Quadro 2), por sua vez, apresenta-se um
panorama geral que indica: a) a distribuição das propostas de sistemas de
princípios didáticos no processo de ensino-aprendizagem na Educação
Básica e na formação de professores; b) os autores desses sistemas de
princípios didáticos; c) a nacionalidade dos autores; d) a quantidade exata
de princípios em cada sistema; a origem ou procedência desses sistemas.
212
Autores alemães
Análises críticas, interrogações sobre a unidade
8. Lothar Klingberg 9
de leis do ensino, princípios didáticos e regras
9. Coletivo de Autores 7 Estruturação da educação socialista.
Autores cubanos
10. Guillermina Labarrere Reyes e Resposta à exigência de construção da educação
9
Gladys Valdivia Pairol socialista.
11. Margarita Silvestre Oramas e José Revisão dos principais sistemas de princípios
8
Zilberstein Toruncha didáticos e investigações experimentais.
Autores brasileiros
12. José Carlos Libâneo 6 Estudo teórico: a Didática
Aproximação da Teoria Cultural-Histórica e a
13. Marta Sueli de Faria Sforni 5
Didática.
14. Leandro Montandon de Araújo Didática desenvolvimental para o ensino da
4
Souza Sociologia no Ensino Médio.
Total de princípios (EA) 100
Princípios Didáticos – Formação de professores (FP)
Autores Quant. Origem
Autores cubanos
Pesquisas no Ensino Médio e no Ensino
Superior com o objetivo de estruturar ações
15. Albertina Mitjáns Martínez 7
sistêmicas para desenvolver a criatividade em
sala de aula – formação de professores.
Autores Brasileiros
16. Maria Amélia Santoro Franco 4 Didática para a formação de professores.
Didática desenvolvimental para a formação de
17. Andréa Maturano Longarezi 8
professores
Total de princípios (FP) 19
Fonte: Chaves (2019)
213
Cultural-Histórico)82 parte da necessidade de direcionar o processo de
ensino-aprendizagem às exigências da sociedade conforme o contexto
histórico, social e cultural, a fim de constituir o novo homem para uma
nova sociedade socialista. No caso dos autores brasileiros, a preocupação
está na qualidade do ensino-aprendizagem e a valorização da escola
pública, buscando assim a defesa da democracia, da justiça social e da
dignidade da pessoa, de modo que os estudos empreendidos vão na
contramão do sistema capitalista que impera no país.
Face a esse contexto, elaborar princípios didáticos pautados nos
pressupostos teórico-metodológicos da teoria do conhecimento
materialista histórico-dialético teve como orientação superar a relação
dicotômica entre teoria-prática e propor uma nova forma de organização
do processo de ensino-aprendizagem, tendo como fundamento a
Didática. Nesse sentido, buscou-se a valorização dos conhecimentos
científico-culturais, a constituição social e histórica do homem, a atividade
como produção humana e os resultados de estudos da Psicologia, tais
como orientações sobre periodização da atividade de estudo, motivação,
formação de conceitos, como base para a transformação da realidade e
construção de uma sociedade capaz de superar a hegemonia dos ditames
do capitalismo.
Os princípios didáticos aqui estudados se constituíram a partir de
diretrizes e fundamentos para a direção e orientação do trabalho docente
com o objetivo da formação das operações intelectuais e o
desenvolvimento da personalidade do estudante, conforme os anseios da
construção de um homem e uma sociedade socialista. Daí a importância
de, a partir da Teoria da Subjetividade, repensar concepções e
intencionalidades de conceitos que impactam em sua aceitação sem uma
análise mais abrangente e descolada de condicionantes muitas vezes já
sedimentados. González Rey, ao desenvolver sua teoria, assume a
indissociabilidade entre a concepção materialista e a lógica histórica e
dialética como coerência de sua perspectiva marxista. Desse modo, ao
considerar as origens materiais e a ação interativa e implicada do homem
na sua ação de transformar, criar, produzir, relacionar-se e viver suas
214
experiências, demonstra-nos sua compreensão do homem como gerador e
produtor de sentidos subjetivos.
Adicionando a essa matriz teórica as contribuições da perspectiva
cultural-histórica, retomamos novamente o conceito de subjetividade para
substanciar ainda mais nossa análise interpretativa sobre “as formas
complexas em que o psicológico se organiza e funciona nos indivíduos,
cultural e historicamente constituídos e nos espaços sociais das suas
práticas e modos de vida” (GONZÁLEZ REY, 2017a, p. 52). Desse
modo, a subjetividade não se reduz a formas de expressão e processos
simples, mas como complexas integrações simbólico-emocionais que se
organizam de forma simultânea na experiência vivida e no sujeito dessa
experiência. A subjetividade individual e a subjetividade social interagem e
reciprocamente se constituem sem imediatismos e nem determinismos. É
com essas contribuições que constituímos o referencial para repensar,
interpretar e refletir sobre os fundamentos que orientaram a elaboração
dos sistemas de princípios didáticos.
Nesse exercício investigativo e de comunicação desta pesquisa
assumimos o ser humano na sua condição geradora, produtora e subjetiva,
o que, com isso, expressa um nível qualitativo dos processos humanos nas
condições da cultura que permite transcender os processos de adaptação e
assimilação.
215
dos princípios sempre responde, em primeiro lugar, ao critério de
afinidade filosófica e ideológica: uma concepção marxista de educação.
Autores/quantidade de sistemas
Nacionalidade Alemães Cubanos Brasileiros
Russos / 7 sistemas
2 sistemas 2 sistemas 2 sistemas
Klingberg - 1972
Autor/Ano
Libâneo – 1990
Davydov- 1975
Danilov - 1975
Zankov - 1975
Leontiev 1999
Sforni - 2015
-Nuñez 2009
Savin - 1972
1988
1
Caráter científico do ensino x x x x x x x x x x x 11
1
Unidade2 do ensino com a vida:
x x x x x x x x x x x 11
2 teoria/prática
Caráter3consciente e ativo na
assimilação dos alunos sob a x x x x x x x x x x 10
3
guia do professor
4
Sistematização do ensino x x x x x x x x x 9
4
5
Ensino que desenvolve x x x x x x x x 7
5
O caráter
6 sistêmico e da
solidez da assimilação dos x x x x x x x 7
6
conhecimentos
A unidade
7 do concreto e
abstrato: x x x x x x x 7
7
Percepção/visualização
Unidade8 da educação e o
x x x x x x 6
8 ensino
9
A acessibilidade x x x x x x 6
9
Atenção1 às particularidades
individuais sob o caráter x x x x x x 6
10 coletivo do ensino
Fonte: Chaves (2019, com base em Silvestre Oramas e Zilberstein Toruncha, 2002).
216
do professor. Podemos, ainda, destacar que os primeiros cinco princípios
mais recorrentes constituem alicerce estrutural para todos os outros,
sendo, por meio desses que se dá a direção para o desenvolvimento de
sistemas na perspectiva marxista da educação. Portanto, fica evidente que
os autores estabeleceram os princípios didáticos sob a perspectiva
marxista, mantendo-se atentos aos objetivos da construção ou
consolidação da sociedade socialista e do novo homem socialista. Desse
modo, não há possibilidade de compreendê-los descolados de seu
contexto histórico, social e político.
Total
Temas mais recorrentes Mitjáns
Franco Longarezi
Martínez
Autor/Ano 1997/2017 2013 2017
217
substanciais em seus fundamentos. São sistemas de princípios que
orientam e possibilitam processos formativos que considerem a educação
como promotora do desenvolvimento humano.
Vale ainda ressaltar que os sistemas de princípios didáticos em sua
constituição prezam pela materialidade da tese teórica vigotskiana de que
“a única boa obutchénie83 é a que se adianta ao desenvolvimento”
(VIGOTSKI, 2010b, p. 114).
emocional
Unidade
5 Ensino que desenvolve aprendizagem-
desenvolvimento
Unidade do
O caráter sistêmico e da solidez da assimilação
6 simbólico-
dos conhecimentos
emocional
7 A unidade do concreto e abstrato: Subjetividade
218
Percepção/visualização
Unidade do
8 A unidade da educação e o ensino simbólico-
emocional
9 Acessibilidade
Atenção às particularidades individuais sob o Subjetividade
10
caráter coletivo do ensino
Princípios Didáticos mais recorrentes nos
Categorias de
N. sistemas formulados para formação de
Análise
professores (FP)
Unidade
Princípio da natureza social do conhecimento e
1 aprendizagem-
da formação humana
desenvolvimento
O trabalho docente precisa abrir tempo e espaço
para o diálogo e desenvolver o olhar do Sentido
2
pesquisador dos alunos: argumentação e Subjetivo
curiosidade para descobertas novas.
Atividade que integre formativamente alunos e
3 Subjetividade
docentes: processos de criação coletiva.
Aprendizagem como processo ativo do aluno
Unidade do
(professor) que integre seus mecanismos
4 simbólico-
cognitivos e afetivos e promova a autonomia:
emocional
auto formação.
Princípio da contradição e do confronto como
5 Dialética
geradores da ruptura e do desenvolvimento
219
compreender e assumir como conteúdo de estudo o social que se faz
presente no indivíduo, mas também como o indivíduo se faz presente no
social.
Para esse texto em questão, escolhemos destacar duas categorias
principais, sujeito e subjetividade examinando os princípios mais
recorrentes, conforme os quadros 3 e 4, sob o principal aspecto do caráter
construtivo-interpretativo. Isto é, a produção do conhecimento aqui
desenvolvida representa uma produção da pesquisadora (autora principal)
apoiada no conjunto das informações, de sentidos subjetivos gerados
durante o processo de pesquisa, e não como apropriação da realidade.
Desse modo, o conhecimento produzido ganha condição permanente de
transformação, uma vez que a realidade não é um sistema meramente
externo.
Dentre os princípios mais recorrentes, conforme os quadros 3 e 4,
destaque-se a concepção de sujeito que trazem em seu bojo. O sujeito,
nos sistemas de princípios didáticos aqui em estudo, é aquele que age de
forma ativa e consciente na atividade de apropriação ou assimilação dos
conhecimentos, habilidades e hábitos resultando em seu desenvolvimento
intelectual, isto é, na formação de suas operações cognitivas.
Desse modo, esses princípios apontam para um conceito de
sujeito que se desenvolve, se constitui pelo seu caráter ativo e consciente
em atividades que criam direta e intencionalmente um tipo organizativo e
metodológico para a assimilação de conteúdos de valor social almejados
por determinada sociedade. Com isso, a assimilação de conhecimentos e o
desenvolvimento das operações cognitivas são dois aspectos que se inter-
relacionam. Assimilando os conhecimentos científicos e cumprindo
determinadas tarefas cognitivas, os alunos, simultaneamente, desenvolvem
suas potencialidades mentais. Nessa abordagem, percebe-se que os
conteúdos escolares são condições necessárias para o sujeito se
desenvolver e se constituir.
Ao defender a escola como espaço social de interação, produção e
comunicação em que o estudante se sinta envolvido e capaz de
estabelecer, realmente, relações efetivas, não são importantes apenas os
conhecimentos científicos, mas essencialmente todos os demais
elementos. Se não há uma cultura de relação onde os estudantes se sintam
envolvidos, pertencentes e possam criar vínculos como fundamento
220
central da aprendizagem, há um distanciamento do conceito de sujeito.
Nesse sentido, não ter espaço social na escola implica em não criar
condições adequadas para que os estudantes tenham capacidades para se
integrar e agir de tal maneira que favoreça seus processos de
aprendizagem e de desenvolvimento subjetivo. Assim, importa não só a
aprendizagem do conteúdo, mas como aquele conteúdo passa a se integrar
e se articular a múltiplos espaços da vida da pessoa que aprende.
Diante do exposto, analisar a categoria sujeito nos sistemas de
princípios didáticos nos coloca em diálogo com o individual e o social,
com a unidade do simbólico- emocional, com o sentido subjetivo, com
caráter produtor, criador do sujeito e com a unidade de aprendizagem-
desenvolvimento. De certa forma, nestes princípios didáticos mais
recorrentes, o sujeito ainda não é aquele que pensa, produz e se posiciona
a partir de sentidos subjetivos, o que é a qualidade fundamental de suas
experiências.
Passamos agora à categoria subjetividade, a fim de entender a
relação entre a questão da particularidade individual e coletiva e a
subjetividade, o individual e o social. A relação individual e social é
observada nos sistemas de princípios analisados, mas há uma
predominância do social em relação ao individual. Como observamos, os
sistemas de princípios didáticos em estudo não contemplam fundamentos
em que expressam a concepção de sujeito gerador e produtor de sentido
subjetivo - produção subjetiva em uma experiência vivida historicamente
situada-, como apontamos na categoria anterior.
Se analisarmos o princípio “unidade do ensino com a vida:
teoria/prática”, a preocupação é estabelecer uma contextualização da
realidade à sua necessidade de adequação de atitudes/comportamento.
Por sua instância, os fundamentos que orientam este princípio abordam a
importância de unidade da escola com a vida, o desenvolvimento integral
do estudante, atenção às particularidades individuais, ao papel ativo,
consciente do estudante, a relação com a realidade, dentre outros temas
que aproximam reconhecer a relevância do processo histórico, social e
cultural na formação do estudante.
Este propósito se desenvolve, ainda, em duas vertentes: a)
valorizam o cognitivo e o afetivo como atributos em separados,
defendendo a importância de conhecer a realidade do estudante, seus
221
interesses e emoções, mas não em unidade com o cognitivo; b) e em um
outro modelo de defender a unidade do cognitivo e o afetivo.
Nestes dois movimentos, a subjetividade ainda aparece como um
elemento paralelo à objetividade e ao sujeito que age ativamente em seus
processos mentais e afetivos ao responder às atividades propostas. Porém,
o papel ativo é um processo que implica gerar e produzir ideias próprias a
partir dos conhecimentos desenvolvidos.
Portanto, o fato de não compreender que o sujeito se expressa em
cada um dos momentos de sua vida desconsidera o complexo processo do
desenvolvimento da subjetividade, o que faz caracterizá-la em processo
linear e fragmentado. A subjetividade não marca a exclusividade do
individual, mas se faz no processo em que o individual e o social são
fatores imbricados.
O fato de, ainda, não considerar a realidade social como um
cenário complexo no qual a atividade humana e os sujeitos emergem e as
relações sociais como gênese dos sistemas subjetivos humanos
complexos, impede a subjetividade de ser plenamente desenvolvida.
Considerações Finais
222
emocional na constituição da subjetividade; e a motivação como conteúdo
pontual de ativar a ação.
Esses elementos, discutidos a partir das categorias de análise,
criam espaço para se desfazer do apego que se desenvolveu aos clássicos
da teoria, o que gerou, muitas vezes, sua aceitação e adoção
desacompanhada da crítica e atualização necessária. O espaço que se
almeja por essa pesquisa é criar e produzir novos sentidos subjetivos e
configurações que possam, de certa forma, integrar novos estudos e
tornar um movimento de pesquisa na Didática, consequentemente, em
sistemas princípios didáticos que considerem: o sujeito como produtor,
gerador, ativo e intencional; a subjetividade como processo de produção
individual e social; a unidade do simbólico-emocional; os sentidos
subjetivos como produção da experiência vivida na atividade pedagógica;
a unidade desenvolvimento-aprendizagem; o caráter dialético dos
processos da produção humana; a motivação como produção subjetiva; o
caráter histórico, social e cultural da atividade humana etc.
Há de se considerar que nenhum destes elementos tem um fim
em si mesmo, mas todos se fazem significativos e promovem novos
sentidos porque conjuntamente potencializam a dinamização de um
movimento a partir de uma concepção que na que não há dicotomia entre
o cognitivo e afetivo, interno e externo, social e individual. A Teoria da
Subjetividade, como pressuposto teórico da análise assumida pela
pesquisa, possibilitou uma nova interpretação, principalmente das
categorias sujeito e subjetividade. Mesmo assim, não buscamos apresentá-
la como uma teoria “salvadora”, mas como fonte essencial para repensar
questões que levem em consideração que o processo de produção de
conhecimento não adquire valor fora do sentido subjetivo que o sujeito
atribui a ele, à elaboração de sistemas de princípios didáticos e,
principalmente, integrar articuladamente o simbólico e o emocional.
Da análise realizada, salientam-se os avanços na formulação de
princípios didáticos, em especial de autores contemporâneos, como por
exemplo soviéticos e russos, cubanos e brasileiros. Eles desenvolveram
importantes temas como produção, criatividade, dialética, diálogo e
reflexão como espaço para o novo e expressão singular do sujeito,
salienta-se que tais temas ganharam ênfase dos autores para desenvolver o
sujeito na sua totalidade.
223
Como síntese, ainda, destacamos a possibilidade de elaborar um
novo sistema de princípios didáticos caso se estabeleça como critério o
caráter recorrente dos mesmos no interior das diferentes tipologias e
classificações. Esse novo sistema poderia estar integrado por cinco
princípios, a saber: 1) caráter científico do processo de aprendizagem
desenvolvimental colaborativa; 2) a unidade da aprendizagem
desenvolvimental colaborativa com a vida: práxis; 3) o caráter consciente e
ativo da aprendizagem dos alunos, sob a orientação e em colaboração e
diálogo com o professor; 4) sistematização e solidez do processo de
aprendizagem desenvolvimental colaborativa e; 5) o processo de
aprendizagem que desenvolve sobre a base da interação colaborativa e
dialógica.
Pode-se ressaltar que esse novo sistema de princípios expressa um
conteúdo qualitativo específico que tem como essência a sua capacidade
potencializadora do desenvolvimento do sujeito. Portanto, pode servir de
base para futuras propostas de estudo e investigação aliadas aos
pressupostos epistemológicos e metodológicos da Teoria da
Subjetividade, avançando, assim, na compreensão do caráter gerador do
sujeito na unidade do simbólico-emocional.
Face ao exposto, concluímos que os sistemas de princípios
didáticos representam uma grande contribuição qualitativa ao processo de
aprendizagem desenvolvimental colaborativa e à formação de professores,
portanto, o que buscamos salientar é que essa categoria cada vez mais se
firme como propósito da Didática, e que seja aprimorada e revisitada pela
constante concepção dialética do conhecimento. Em síntese, um sistema
de princípios didáticos cria novos significados e sentidos quando o sujeito
é compreendido por seu caráter gerador, criativo, ativo, intencional e
produtor de sentidos subjetivos, a natureza psicológica do aprender é
inseparável da subjetividade. É essencial enfatizar que as sugestões têm
inspiração na Teoria da Subjetividade, a qual se orienta para a promoção
da emancipação do sujeito e que procura contribuir para o
desenvolvimento individual e social, favorecendo o compromisso e a luta
por uma sociedade mais justa.
Consideramos, após nossa análise dos sistemas dos princípios
didáticos na perspectiva marxista, que uma concepção Didática dos
processos de aprendizagem marxista da educação, ao formular princípios
224
didáticos que tiverem como fundamento uma concepção filosófica,
psicológica e pedagógica que ignorou o caráter gerador, produtor do
sujeito e a unidade simbólico-emocional, será objeto de um importante
exercício crítico. Será preciso estabelecer um novo diálogo realmente
dialético e histórico que parta de uma concepção de sujeito, ensino,
aprendizagem e desenvolvimento em toda sua totalidade e particularidade,
que carrega em si o caráter transformador da gênese humana.
Referências:
225
COELHO, Grasiela Maria de Sousa. Trabalho docente e atividade
pedagógica: a prospecção da liberdade-felicidade na trama da formação
contínua do Campus Amílcar Ferreira Sobral (CAFS). 2020. 258f. Tese
(Doutorado em Educação). Programa de Pós-graduação em Educação.
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2020. Disponível em:
https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/30042/3/TrabalhoDoce
nteAtividade.pdf
226
GONZÁLEZ REY, F. L.; MITJÁNS MARTÍNEZ, A. Subjetividade:
Teoria, epistemologia e método. Campinas: Editora Alínea, 2017.
227
GONZÁLEZ REY, F. L. O pensamento de Vigotsky: contradições,
desdobramentos e desenvolvimento. São Paulo: Hucitec, 2013.
228
GONZÁLEZ REY, F. L. Epistemología cualitativa y subjetividad. São Paulo:
Educ, 1997.
229
LIBÂNEO, J. C. Democratização da Escola Pública: a Pedagogia Crítico
Social dos Conteúdos. São Paulo: Loiola, 15 ed. 1985.
230
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Moraes, 1984.
231
RUBINSTEIN, S. L. Problemas das faculdades e questões da teoria
psicológica. In: LONGAREZI, A. M.; PUENTES, R. V. (Orgs.). Ensino
Desenvolvimental: Antologia – Livro 1. Uberlândia: EDUFU, 2017, p. 111-121.
232
VYGOTSKI, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem,
desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 2017.
233
Vygotski Revisitado: una historia crítica de su contexto y legado. 1 ed.
Buenos Aires: Colección "Mente y cultura”, jun/2016b. p. 183-198.
234
PARTE II
CONTRIBUIÇÕES DO GEPEDI
NA PERSPECTIVA DA TEORIA
DA APRENDIZAGEM
DESENVOLVIMENTAL
235
Capítulo 8
A periodização do desenvolvimento e
a teoria da atividade de estudo de D. B. Elkonin84
Ewellyne S. L. Lopes
236
desse trabalho, é imprescindível considerar a amplitude de sua obra,
repleta de contribuições para se pensar todo o desenvolvimento psíquico
infantil e sua ligação com a educação.
Na psicologia histórico-cultural, há uma estreita conexão entre
desenvolvimento e educação, portanto, é de suma importância
compreender como esses conceitos são considerados nessa perspectiva
teórica. Assim, justifica-se a busca por aprofundar o entendimento sobre a
obra de Elkonin, dado que se coloca como um dos principais teóricos do
desenvolvimento na psicologia soviética, tendo destaque sua proposta
sobre a periodização do desenvolvimento psíquico, publicada em 1971, e
seu trabalho no campo educacional, posto figurar como um dos
fundadores do sistema didático Elkonin-Davidov-Repkin86 e da teoria da
atividade de estudo. Dessa feita, as sessões seguintes trazem novos aportes
sobre a obra desse autor por meio da apresentação e análise de
bibliografias, até então, pouco ou nunca exploradas na literatura brasileira.
Apresenta-se ainda análise sobre a relação entre essa proposta de
periodização e a teoria da atividade de estudo com o intuito final de
contribuir para a abertura de novas possibilidades de entendimento e
avanço sobre desenvolvimento e educação.
237
Blonsky, Rubinshtein, Vigotski e Smirnov estabeleceram, já na década de
1920, elementos que definiram o modo como o desenvolvimento foi
considerado nas décadas seguintes, isto é, como um processo determinado
pelas condições sociais e históricas concretas em que a criança vive, em
estreita relação com a aprendizagem, tendo a atividade como principal
motor e o adulto como seu organizador. No trabalho de Elkonin, além
dos pontos mencionados, tem destaque também as asserções da teoria da
atividade de Leontiev.
O fundamento da psicologia histórico-cultural de que o social é a
fonte do desenvolvimento sobressai-se como linha mestra que
interconecta os pilares do pensamento de Elkonin. É nesse sentido que se
destaca a ideia de que o indivíduo que uma criança se tornará como
resultado de seu desenvolvimento, constituir-se-á de elementos já
existentes na sociedade, incluindo necessidades, motivos, tarefas sociais e
emoções. Assim, a origem do desenvolvimento, que se dá por meio da
assimilação de experiências e conhecimentos construídos pela
humanidade, está no ambiente e nos modelos sociais ideais (ELKONIN,
1989).
A partir desse ponto, infere-se que somente a educação e a
aprendizagem podem promover o desenvolvimento psíquico, pois este
não resulta de um processo simples de amadurecimento, nem é
determinado por forças internas do indivíduo (EL’KONIN, 1967). Tais
processos, por sua vez, não acontecem de forma espontânea e aleatória,
sendo necessário que sejam conduzidos e organizados por aquele que já
assimilou essa bagagem sociocultural, o adulto. De acordo com Elkonin e
Zaporozhets (1956/1961),
238
socialmente elaboradas que foram criadas na sociedade. À
medida que assimilam a experiência social, diferentes
capacidades são formadas nas crianças8788 (ELKONIN;
ZAPOROZHETS, 1956/1961, p. 498, destaques dos
autores).
87 “El desarrollo psíquico de los niños tiene lugar en el processo de educación y enseñanza realizado
por los adultos, que organizan la vida del niño, crean condiciones determinadas para su
desarrollo y le transmiten la experiencia social acumulada por la humanidade en el
período precedente de su historia. Los adultos son los portadores de esta experiencia
social. Gracias a los adultos el niño assimila un amplio círculo de conocimientos
adquiridos por las generaciones precedentes, aprende las habilidades elaboradas
socialmente y las formas de conducta que se han creado en la sociedad. A medida que
asimilan la experiencia social se forman en los niños distintas capacidades”
(ELKONIN; ZAPOROZHETS, 1956/1961, p. 498).
88 Todas as traduções realizadas no presente texto, identificáveis por terem suas
239
Os processos de assimilação e aprendizagem acontecem por meio
da atividade, que é, segundo Elkonin (1989), o modo como se dá a relação
entre a criança e a sociedade, representada, especialmente, pela relação
criança-adulto. Por isso, tais processos não ficam restritos ao contexto das
instituições escolares e ao ensino formal, acontecendo em todas as etapas
da vida da criança por meio das atividades realizadas. Destaca-se que, em
cada etapa, essa aprendizagem se caracteriza por seu conteúdo e pelo tipo
de atividade em que, predominantemente, ocorre, ou seja, cada etapa se
caracteriza por uma atividade principal distinta (ELKONIN, 196-/2019).
Conclui-se que a relação da criança com o meio social é o
elemento definidor do desenvolvimento psíquico infantil, na perspectiva
de Elkonin. Conforme afirma, juntamente com Zaporozhets, o
desenvolvimento “se dá sob a influência determinante das condições de
vida e educação, em correspondência com o meio ambiente e sob a
influência orientadora dos adultos”89 (ELKONIN; ZAPOROZHETS,
1956/1961, p. 493). Em suma, o desenvolvimento se dá no social, para o
social e determinado pelo social.
científicos que foram organizados e publicados por seu filho, Boris D. Elkonin. Em
1989, no livro Trabalhos psicológicos selecionados, encontram-se entradas escritas entre
dezembro de 1965 e novembro de 1983. Em 2004, na revista russa Voprosy Psichologii,
são publicadas entradas do período de dezembro de 1960 a março de 1962.
240
O texto Sobre o problema da periodização do desenvolvimento psíquico da
infância, publicado pela primeira vez em 1971, é tomado como referência
fundamental – e frequentemente única – para o estudo da periodização do
desenvolvimento psíquico infantil na perspectiva de Elkonin. Entretanto,
há três capítulos91, publicados em 1956, que contam com sua contribuição
e trazem um panorama amplo e detalhado sobre as características de cada
período. Constituem-se assim, como referência importante de suas ideias
sobre o tema.
Quanto à teoria da atividade de estudo, conforme aponta Davidov
(1996), Elkonin deu o pontapé inicial para seu estabelecimento em 1959,
quando atuava como chefe do Laboratório de Psicologia de Crianças em
Idade Escolar. É válido mencionar que, esse mesmo movimento resultou
no estabelecimento do sistema didático conhecido como Sistema Elkonin-
Davidov-Repkin, dentro do qual a referida teoria encontrou espaço para
se aprimorar. A análise dos títulos das produções teóricas sobre a teoria
(PUENTES, 2019b) e das produções de Elkonin (ELKONIN, 1989;
LAZARETTI, 2011), leva à conclusão de que sua maior participação na
teoria se deu até meados da década de 1970 por meio de diversos artigos e
capítulos de livros.
Com isso em vista, no presente trabalho, recorreu-se à análise das
produções datadas entre os anos de 1956 e 1974, no intuito de
compreender a ligação entre a hipótese sobre a periodização e a teoria da
atividade de estudo.
No tocante à periodização do desenvolvimento, nesse intervalo
temporal, encontram-se alterações na distribuição dos períodos, no
91 Estes capítulos foram escritos por Elkonin e colegas, compondo o livro Psicologia
organizado por Smirnov, Leontiev, Rubinshtein e Tieplov publicado na Rússia, em
1956. Usualmente, a autoria dos referidos capítulos é atribuída exclusividade a
Elkonin. No entanto, o prólogo do livro de que fazem parte aponta que os capítulos
tiveram a contribuição de L. V. Blagonadezhina, L. I. Bozhovich e A. V.
Zaporozhets, sem especificar como esta ocorreu. A lista de trabalhos bibliográficos
de Elkonin constante no livro Trabalhos psicológicos selecionados (1989) esclarece a ordem
dessas contribuições e indica que o capítulo Caracteristica general del desarrollo psiquico de
los niños foi escrito com Zaporozhets, e o capítulo Desarrollo psiquico de los escolares com
Blagonadezhina e Bozhovich. Portanto, o único capítulo de autoria exclusiva de
Elkonin é o que discorre sobre o desenvolvimento das crianças do nascimento até a
idade escolar, intitulado Desarrollo psiquico del niño desde el nascimiento hasta el ingreso en la
escuela.
241
elemento propulsor das mudanças de um período ao outro e, de grande
relevância, na visão sobre a unidade entre afeto e cognição. Na teoria da
atividade de estudo, percebe-se, com o passar dos anos, maior ênfase dada
à influência da atividade de estudo sobre a formação da personalidade e
maior preocupação com os motivos e as necessidades como elementos da
estrutura da atividade de estudo. Como se verá, tais mudanças decorrem
do amadurecimento do pensamento de Elkonin a partir de suas pesquisas
e reflexões e resultam em novas formas de abordar tanto o
desenvolvimento psíquico quanto o processo de aprendizagem.
Nos textos publicados em 1956, a periodização etária é desenhada
conforme a inserção da criança na escola. Tem-se os períodos do
nascimento até a entrada na escola – primeira infância, infância inicial e
idade pré-escolar – e os períodos escolares, que se subdividem em idade
escolar primária, média e preparatória (ELKONIN; ZAPOROZHETS,
1956/1961). Destaca-se o fato de a atividade de estudo ser considerada
principal em todos os períodos escolares (de 11 a 18 anos), os quais se
diferenciavam pelos motivos, interesses e formas de pensamento próprios
de cada um.
Foi em meados de 1961, conforme entrada em seus diários, que
Elkonin (2004) diz estar convencido de que na adolescência ocorre o
domínio das normas e relações sociais, por meio da reprodução das
relações adultas. Nesse mesmo ano, Elkonin inicia o estudo sobre o
desenvolvimento da personalidade do adolescente, juntamente com
Tatiana V. Dragunova. A conclusão advinda desse estudo, de que a
comunicação com pares etários se configura como a atividade principal
nesse faixa etária (DRAGUNOVA; ELKONIN, 1965) possibilitou que
um período com uma ênfase desenvolvimental no domínio das relações e
normas sociais se interpusesse entre dois períodos com foco no
desenvolvimento cognitivo. Essa nova configuração é ilustrada por
Elkonin (1989) conforme a figura 1 e, aliando-se a sua compreensão sobre
as crises etárias, possibilitou a visualização da regularidade na alternância
entre os períodos com ênfase no desenvolvimento da esfera social-afetiva
com aqueles que privilegiam o desenvolvimento da esfera cognitiva-
operacional.
242
Figura 1 - Periodização do desenvolvimento psíquico infantil (ELKONIN,
1989, p. 487)
0-1 ano
1 ano
1-3 anos
3 anos
3-7 anos
7 anos
7-11 anos
11-12
anos
11-15
anos
15 anos
15-18
anos
Adulto
243
sendo aluno e sua atividade principal continua sendo o estudo”92, porém,
as mudanças alcançadas no final da etapa anterior trazem as “premissas
necessárias para mudar fundamentalmente a situação do adolescente na
sociedade ao seu redor”93.
Quase 15 anos mais tarde, Elkonin considera a atividade como
uma conquista valiosa na psicologia soviética, tendo em vista ter
possibilitado que “pela primeira vez, a solução do problema sobre as
forças propulsoras do desenvolvimento psíquico uniu-se diretamente à
questão dos princípios de divisão dos estágios no desenvolvimento
psíquico das crianças” (ELKONIN, 1971/2017, p. 153).
É nesse sentido que o autor recorre diretamente às atividades
principais como marcos definidores de cada período do desenvolvimento
infantil. Acresce-se a isso, seu posicionamento de que a atividade não deve
ser vista somente como uma ação objetiva, mas como um modo de
relação entre o indivíduo e a sociedade, na qual ocorrem os processos de
aprendizagem, assimilação e desenvolvimento (ELKONIN, 1989). Cada
período desenvolvimental caracteriza-se por uma atividade principal,
caracterizada pelo aspecto da realidade com o qual a criança interage de
forma mais intensa, isto é, para o qual se orienta (ELKONIN,
1971/2017).
Entre 1967 e 1970, destacam-se anotações nos diários científicos
de Elkonin (1989) que indicam seu empenho em compreender a
periodização e as forças motrizes do desenvolvimento. A análise dessas
entradas evidencia tópicos como as crises etárias, o conteúdo da atividade
principal, a relação da criança com a sociedade, a contradição entre
aspectos operacionais e motivacionais da ação objetiva e, destacadamente,
a unidade entre afeto e cognição. Todos os tópicos participam da
construção de sua hipótese sobre a periodização, mas, a unidade afeto e
cognição é o elemento que imprimiu de forma mais contundente uma
mudança em seu pensamento.
244
Buscando minimizar ou eliminar a visão dicotômica acerca da
personalidade e da cognição, que caracterizava a compreensão do
desenvolvimento psíquico dentro da psicologia, Elkonin (1989) defende
que haveria um ponto de conexão entre os sistemas “criança-objeto
social” e “criança-adulto social”: o caráter social do objeto da atividade,
seja ele coisa ou pessoa. Para ele, o objeto da atividade não se constitui
somente como uma coisa com propriedades físicas ou características
pessoais, mas como um objeto social em sua função e origem. A fim de
atuar no mundo, a criança deve aprender mais do que as propriedades e
peculiaridades desses objetos. Por um lado, deve assimilar o modo social
de interagir com eles. Por outro, deve assimilar o modo de comportar-se
nessa sociedade já que os adultos não se resumem a indivíduos com
características pessoais, mas são, na verdade, adultos sociais, ou seja,
membros da sociedade definidos pelas diferentes posições que nela
ocupam.
Sendo assim, a criança se relaciona sempre com o social, numa
espécie de tríade cambiante. Em determinados momentos tem-se, criança-
objeto-adulto, e em outros, criança-adulto-objeto. A ênfase e o conteúdo
da atividade da criança definem essa relação. Por conseguinte, em todas as
ações da criança com objetos subjaz o caráter social que condensa tanto
seu aspecto material quanto seu aspecto humano-relacional. Essa
concepção e a análise dos conteúdos objetais de cada período
desenvolvimental, levam Elkonin (1989, 1971/2017) à conclusão de que
há uma alternância entre esses períodos. Em determinados períodos a
relação criança-adulto tem como foco o objeto social, em outros, o adulto
social.
Nos períodos em que o foco recai sobre o objeto social, a criança
desenvolve os modos de ação com as ferramentas para atuar no mundo
social em que se encontra. O desenvolvimento das habilidades
cognoscitivas e operacionais ganha destaque nesses momentos, tendo
primazia o como fazer. Quando o adulto social se torna o foco da
criança, sua concentração volta-se para o como ser. Nesses períodos, a
criança busca entender como é ser adulto, tentando alcançar a
compreensão do comportamento deste não na ação pela ação, mas no que
está por trás desta, ou seja, quais motivos e necessidades o levam a agir. A
alternância de períodos é motivada pela dissonância entre o que a criança
245
percebe entre os dois aspectos que visualiza na atuação do adulto na
sociedade – o como ser e o como fazer – e imprime um ritmo ao
desenvolvimento, provocando o seu avanço.
É com base nesses postulados que Elkonin (1971/2017) afirma
que o desenvolvimento psíquico infantil é um processo único e integral e
não cindido entre duas linhas paralelas, a afetiva e a cognitiva. Em sua
proposta, ambas se encontram em um mesmo percurso desenvolvimental.
Seu raciocínio leva à conclusão de que, em todos os períodos de sua vida,
a criança está envolvida com objetos sociais por meio da relação com
adultos sociais. Dessa forma, mesmo uma ação em que os aspectos
cognitivos são mais evidentes comporta também o aspecto motivacional,
estando esses dois aspectos ligados pela origem social dos objetos da
atividade. A explicação dessa unidade constitui-se como sua grande
contribuição para a compreensão do desenvolvimento psíquico infantil.
No tocante à teoria da atividade de estudo, é possível afirmar que
sua trajetória se caracteriza por um protagonismo cambiante entre seus
principais teóricos – Daniil B. Elkonin, Vasily V. Davidov e Vladmir V.
Repkin. Considerando as publicações e os diferentes momentos teóricos
por que passou a teoria, conforme apresentado por Puentes (2019b),
Elkonin domina o cenário teórico, até meados da década de 1970, com
suas publicações acerca dos aspectos mais fundamentais da teoria. Nas
décadas posteriores, Davidov e Repkin assumem o protagonismo,
contribuindo para ampliação e aprimoramento do núcleo central da teoria
em tópicos concernentes a sua estrutura, conceito e conteúdo. Após a
morte de Davidov, em 1998, coube a Repkin dar continuidade e avançar a
teoria até os dias atuais, juntamente com outros pesquisadores que
ganharam destaque com o passar dos anos.
A teoria da atividade de estudo guarda uma relação simbiótica
com o sistema Elkonin-Davidov-Repkin, tanto na sua origem quanto na
sua evolução. O momento inicial das pesquisas acerca da teoria é também
o momento de idealização, experimentação e concepção do sistema,
caracterizado como um período de intensa produção experimental e
teórica. Nesse momento, Elkonin coordenava o grupo de pesquisa do
qual Davidov fazia parte. Com o passar do tempo, grupos de pesquisa e
laboratórios ligados ao sistema se espalharam por inúmeras cidades
soviéticas, inclusive na cidade ucraniana de Kharkov, onde se estabeleceu
246
o grupo liderado por Repkin, que se tornou proeminente dentro do
sistema devido a suas contribuições (PUENTES, 2019a).
Em cerca de cinquenta anos, pontos de viragem relevantes se
deram ao longo do processo de gênese e desenvolvimento da teoria. Com
base nessas movimentações, Puentes (2020) propõe uma divisão em três
períodos distintos: a etapa operacional (1959-1970), a etapa motivacional
(1971-1996) e a etapa emocional (1997-2018). Tendo em vista o intuito
desse capítulo, serão discutidas somente as duas primeiras etapas, das
quais Elkonin participou efetivamente.
Davidov (1996), Repkin (1997/2019) e Zuckerman (2003) dão
destaque ao pioneirismo e à contribuição de Elkonin à teoria. Conforme
relato de Davidov (1996), ocupando o posto de chefe do Laboratório de
Psicologia de Crianças em Idade Escolar, em 1959, Elkonin foi o
responsável pelo delineamento e coordenação das primeiras pesquisas
realizadas. Tendo em vista que a atividade de estudo já havia sido definida
como a atividade principal de crianças em idade escolar por Leontiev
(2009), Elkonin e Zaporozhets (1956/1961) e Elkonin, Blagonadezhina e
Bozhovich (1956/1961), ela se tornou objeto da primeira investigação
proposta por Elkonin ao grupo.
A partir dessas primeiras pesquisas, Elkonin reconhece a
inexistência de conhecimentos concernentes à estrutura, definição e modo
de formação da atividade de estudo bem como a ausência dessa atividade
no cotidiano das escolas soviéticas. Isto posto, defende a necessidade de
defini-la e traçar os caminhos para que fosse aplicada na prática educativa,
tendo em vista que, sendo a atividade principal da criança em idade
escolar, seria a forma preponderante para promover o desenvolvimento
psíquico (DAVIDOV, 1996).
A influência de Elkonin nesse primeiro delineamento da teoria é
corroborada quando Davidov (1991/2019; 1997) emprega o termo
“abordagem de Elkonin” ao se referir às ideias acerca da relação entre
aprendizagem e desenvolvimento que a subsidiaram. Nesse sentido,
enfatiza que apesar de seu caráter dinâmico e da necessidade de continuar
em aprimoramento, “os princípios da teoria da Atividade de Estudo
devem permanecer de acordo com os fundamentos estabelecidos por
Elkonin” (DAVIDOV, 1991/2019, p. 239). Assim, pode-se afirmar que
os principais fundamentos da teoria – o caráter primordial do conteúdo
247
no processo de aprendizagem, a estrutura da atividade de estudo e o
objetivo da tarefa de estudo – foram apresentados por Elkonin na etapa
operacional (1959-1970).
De acordo com Puentes (2020), nesse primeiro momento, as
pesquisas se voltam para a análise do desenvolvimento de aspectos
operacionais, ganhando maior relevância os conteúdos escolares e a
formação dos modos de ação como fator de impacto no desenvolvimento
das crianças.
O primeiro texto de El’konin (1960/1961), apresentando os
resultados iniciais das pesquisas do grupo, traz a estrutura da atividade de
estudo como um resultado expressivo. Os elementos destacados são a
tarefa de estudo e as ações de estudo, de controle e de avaliação. A tarefa
é considerada a unidade de análise, sendo seu objetivo, modificar o
próprio sujeito da ação e não somente os objetos com os quais ele atua, o
que caracteriza a própria atividade. Dessa forma, ao resolver uma tarefa de
estudo, o aluno deverá ter assimilado modos de ação com objetos que lhe
permitirão resolver outras tarefas semelhantes posteriormente. Apesar de
ganhar destaque entre os demais elementos, esta tarefa não se dissocia
destes. A realização das ações de estudo possibilita que as crianças
assimilem os modos de ação. No que lhe diz respeito, a ação de controle
possibilita que a criança compare a ideia de uma ação iminente com o
modelo dado anteriormente. Por fim, a ação de avaliação proporciona a
oportunidade de avaliar quanto foi assimilado do material aprendido, de
maneira que possa ser usado posteriormente na resolução de problemas
práticos. Resumidamente, tem-se que a atividade de estudo é composta
por quatro elementos que se relacionam de modo recíproco (ELKONIN
196-/2019).
Outra definição importante realizada nesse momento, e que se
mantem como um dos pontos essenciais da teoria, diz respeito ao objetivo
definido para a atividade de estudo, qual seja, a autotransformação do
próprio sujeito. Nesse sentido, apesar de ser definida como uma ação
objetal, ou seja, uma ação na qual o sujeito atua com objetos e ideias,
podendo transformá-los, o objetivo e o resultado dessa atividade é, de
fato, as transformações que se intendem imprimir sobre o próprio sujeito
(ELKONIN, 196-/2019).
248
Os fundamentos pontuados acima, resultam da contribuição
direta de Elkonin, e exemplificam o que, de acordo com Puentes (2020),
define essa primeira etapa como marcadamente direcionada para o
aspecto operacional do desenvolvimento psíquico. É perceptível que os
fundamentos se relacionam com o desenvolvimento intelectual e as
operações necessárias para promovê-lo. Destaca-se que, mesmo quando
aponta para a transformação do sujeito, esta ocorre pela via da assimilação
de modos de ação, o que pressupõe um conteúdo operacional e cognitivo.
Na mesma direção, chama a atenção que aspectos relacionados aos
motivos e às necessidades, investigados anteriormente por outros
estudiosos, sejam completamente desconsiderados.
Há mais de uma razão que justifique o caráter operacional da
teoria nesse momento. Em primeiro lugar, destaca-se que os objetivos do
grupo de pesquisadores era
249
aprendizagem consciente, o que era insuficiente para alcançar os objetivos
propostos (ELKONIN, 196-/2019).
Ademais, a influência da teoria da formação por etapas das ações
mentais de Galperin imprimia-lhe um caráter operacional, pois, conforme
destacam Repkin (1977/2019) e Puentes (2020), baseados em aportes de
Leontiev, essa abordagem caracterizava-se por volver em torno do sistema
de operações para a execução da tarefa de modo adequado,
negligenciando as condições e os modos de origem desta, dentre os quais
se incluem os motivos e as necessidades.
Contudo, para além dessas questões de ordem prática e de
delineamento da pesquisa acerca da teoria da atividade de estudo, o que de
fato elucida essa ausência dos motivos e necessidades nessa primeira etapa
de desenvolvimento da teoria é o posicionamento de Elkonin, naquele
momento, acerca da dualidade do processo de desenvolvimento psíquico.
Em uma entrada em seus diários científicos, em janeiro de 1961, Elkonin
(2004) relata uma discussão com pesquisadores do laboratório liderado
por Lydia Bozhovich. Entre outros pontos, esses pesquisadores apontam
o fato de que a atividade de estudo, conforme concebida pelo grupo de
Elkonin, se voltava somente para a esfera intelectual, não englobando a
formação da personalidade como um todo. Ademais, ressaltam o fato de
que, no estudo de Elkonin e seu grupo, não havia lugar para as
necessidades e os motivos ou para as relações sociais.
Refletindo sobre a situação, Elkonin (2004) considera que se
expressou de maneira inadequada em seu relatório e apresentação, ao
sinalizar a ligação entre a atividade de estudo e o processo de formação da
personalidade, o que deu a entender que esta atividade resultaria na
assimilação do conhecimento e na formação da esfera das necessidades e
dos motivos. O autor expõe então, o que seria sua concepção a respeito
da relação entre as duas esferas do desenvolvimento psíquico.
Em primeiro lugar, a seu ver, necessidades e motivos também
seriam assimilados em atividades organizadas com base em formas de
ensino, as quais, todavia, se distinguiriam daquelas que ocorriam na
atividade de estudo. Afirma inclusive que, sem grandes rigores, poderia
dizer que tais atividades seriam uma espécie de atividade de estudo,
porém, com um conteúdo diferente. Enquanto nesta, o conteúdo é a
ciência, naquelas, o conteúdo seria a moral e regras sociais, por exemplo.
250
Então, a esfera afetiva e das necessidades não se formaria no processo de
assimilação de conhecimento que se dá na atividade de estudo. Por fim,
acrescenta que, com a entrada da criança na escola, se inicia um novo
estágio do desenvolvimento cujo principal conteúdo é a assimilação do
conhecimento e, simultaneamente, surge uma atividade independente,
específica e completamente diferente de assimilação das relações sociais e
da moral. Assim, as duas esferas do desenvolvimento seriam formadas a
partir de atividades completamente distintas (ELKONIN, 2004).
Essa exposição de ideias clarifica como o pensamento de Elkonin
se direciona, naquele momento, no que tange à questão da inclusão dos
motivos e necessidades na atividade de estudo, ou seja, estes não seriam
foco de atenção porque estariam ligados a outro tipo de atividade.
Consequentemente, sua visão acerca da atividade de estudo estava
limitada pela concepção de que esta vinculava-se estritamente ao
desenvolvimento da esfera intelectual. Esse é o sentido encontrado na sua
afirmação de que na escola se formam tanto as qualidades essenciais da
personalidade quanto os distintos processos psíquicos, em vez de afirmar
que isso aconteceria especificamente na atividade de estudo (ELKONIN,
1961/2019).
Seguindo a divisão proposta por Puentes (2020), em 1971, começa
a segunda etapa da teoria, a motivacional, em que o foco desloca-se para a
formação dos motivos que levariam a criança a realizar a atividade de
estudo e, consequentemente, desenvolver-se. Davidov e Márkova
(1981/2019) defendem que as pesquisas realizadas na década de 1960
possibilitaram que hipóteses sobre a influência da atividade de estudo
sobre o desenvolvimento intelectual e moral da criança fossem levantadas
e, por isso, ganharam relevância nos anos posteriores
251
desenvolvimento intelectual – seu principal foco na etapa anterior – mas,
também o desenvolvimento moral, que engloba o caráter voluntário das
ações e a motivação para o estudo.
Em um panfleto direcionado para professores e pais de estudantes
do ensino fundamental, sob o título Psicologia da aprendizagem de crianças em
idade escolar (Психология обучения младшего школьника), publicado em 1974 e
reproduzido em 1989 na obra Trabalhos psicológicos selecionados, Elkonin
condensa suas principais contribuições para a teoria da atividade de
estudo, incluindo abordagens que coadunam com as mudanças de rumo
que caracterizaram a etapa motivacional da teoria.
Elkonin (1974/1989) afirma que a educação escolar no nível
fundamental pressupunha o cumprimento de três tarefas interligadas:
viabilizar a aquisição de conhecimento científico pelas crianças por meio
do contato com as propriedades básicas e fundamentais da realidade;
formar a atividade de estudo de modo a torná-la uma constante na vida
dos indivíduos; e, lançar mão de todas as possibilidades de formação, na
criança, de motivos para a aprendizagem e seu desenvolvimento.
Nesse texto, Elkonin (1974/1989) apresenta pela primeira vez,
uma nova estrutura para a atividade de estudo, que se destaca pela
inclusão dos motivos para a aprendizagem e que encontra eco nas
publicações de Davidov e Repkin, nos anos seguintes (DAVIDOV,
1979/2019, 1986/2019, 1991/2019; MATVEEVA; REPKIN;
SKOTARENKO, 1975/2019; REPKIN, 1976/2019a, 1977/2019).
De acordo com Elkonin (1974/1989), a satisfação da criança em
realizar uma atividade socialmente valorizada e útil é o motivo inicial para
começar a frequentar a escola. Todavia, esse motivo tem um caráter muito
amplo e dissociado da atividade de estudo, tendo em vista que apresenta
um caráter externo a esta, pois a importância social da atividade não se
conecta diretamente com o conteúdo a ser estudado. Em decorrência
disso, perde sua importância gradualmente e não atua como motivador
para a aquisição do conhecimento científico. Sendo assim, faz-se
imprescindível que novos motivos, relacionados à aquisição dos modos
generalizados da ação ou para o autodesenvolvimento, isto é,
correspondentes ao conteúdo da aprendizagem, sejam formados. Tais
motivos são denominados de cognitivo-educativos e passam a ser o
primeiro elemento da estrutura da atividade de estudo. Os elementos
252
descritos anteriormente – tarefa de estudo, ações de estudo, controle e
avaliação – continuam a integrar essa estrutura.
Além desse novo cuidado dispensado aos motivos, a abordagem
das funções sociais da atividade de estudo também indica uma ampliação
da teoria para além de questões intelectuais e operacionais. Elkonin
(1974/1989) pontua que a convivência em sala de aula demanda o
ajustamento da criança às regras sociais estipuladas para manter a
organização e o bom andamento das relações entre as crianças e destas
com o professor. O cumprimento dessas regras indica que a criança
adquiriu um comportamento coletivista, ou seja, mostra-se capaz de se
atentar às necessidades de todo o grupo. Como resultado, a criança passa
a regular o próprio comportamento e desenvolve a habilidade de formar
condutas voluntárias avançadas. Como conclusão, tem-se que a
aprendizagem deve ser considerada para além da função formadora de
conhecimentos e habilidades, tendo em vista que pode atuar na formação
de traços da personalidade.
Posicionamento semelhante em relação às funções sociais da
atividade de estudo é encontrado no trabalho de Repkin (1976/2019b). A
seu ver, essa atividade tem como uma função social, o espaço que abre
para que os seres humanos possam assimilar os conhecimentos científicos
que os levarão a adquirir as capacidades que lhes caracterizam como tal.
Ademais, inclui as “novas gerações no sistema de relações sociais, na
atividade abertamente coletiva, em cujo curso assimilam-se os valores
morais e as normas sociais que estão na base de qualquer atividade
coletiva das pessoas” (REPKIN, 1976/2019b, p. 317-318). Portanto, essa
é a primeira atividade socialmente padronizada com que a criança se
depara e que a impele a adequar-se às normas sociais.
É possível encontrar, na etapa operacional, menções pontuais e
superficiais sobre a formação da personalidade da criança no contexto da
atividade de estudo. Por exemplo, El’konin (1960/1961) cita a existência
de uma responsabilidade dos formadores sobre a tarefa prática de moldar
a personalidade da criança. Contudo, não há aprofundamento dessa
discussão em nenhum trabalho publicado nessa etapa. Diferentemente, na
etapa motivacional, o desenvolvimento da personalidade é claramente
considerado como um dos objetivos da formação da atividade de estudo
na criança e, por isso, uma preocupação para os estudiosos da teoria.
253
Nesse sentido, Elkonin (1974/1989) destaca que
254
socialmente estabelecidos), os resultados da atividade de estudo são
usualmente reconhecidos em sua forma individual (conhecimento,
habilidades, modos de ação) (ELKONIN, 1974/1989).
Os trabalhos de Repkin e Davidov também passam a indicar essa
preocupação com a formação da personalidade. Repkin (1976/2019b, p.
319) argumenta que o estudo é um processo de formação da
personalidade dos indivíduos, sendo essa atividade, “uma forma específica
de dinamismo da personalidade, como uma atividade do indivíduo,
durante a qual ele gera motivos e metas vitais específicos”.
Davidov e Márkova (1981/2019), por sua vez, defendem que a
atividade de estudo se configura como pré-requisito tanto para o
desenvolvimento intelectual quanto social e motivacional. Por estar
fundamentalmente relacionada à formação da personalidade do aluno e da
esfera que determina seu comportamento, a qual inclui valores, motivos,
objetivos, regras sociais e relações interpessoais, deve ir além da
transmissão do conhecimento e da elaboração e aprimoramento de ações
e operações. Isto porque, o
255
mostra-se consolidado no referido texto, mas resultou de um processo
reflexivo em torno, principalmente, da questão da unidade entre afeto e
cognição. Tópicos como jogo de papéis, atividade de estudo,
desenvolvimento da personalidade na adolescência e o desenvolvimento
psíquico como um todo representam os gatilhos para esse processo, que
alterou o posicionamento de Elkonin e afetou suas contribuições no
âmbito da teoria da atividade de estudo bem como do desenvolvimento
psíquico infantil.
A preocupação com a questão da unidade entre afeto e cognição
havia sido colocada por Vigotski já na década de 1930, mas de acordo
com as anotações em seus diários científicos, foi em 1965, que Elkonin
(1989) fez uma formulação inicial acerca da problemática. Refletindo
sobre a atividade de jogo de papéis, considera que, nessa atividade, a
criança afasta-se do objeto na busca por compreendê-lo a partir da
perspectiva do adulto, porque seu objetivo é desvendar as relações e
normas sociais adequadas para interagir com ele. Conclui assim, que a
chave para explicar essa capacidade de atentar-se para um objeto para
além de sua funcionalidade residia na unidade entre os aspectos social e
intelectual do desenvolvimento. Acrescenta que Vigotski não havia
conseguido solucionar essa questão porque sua atenção esteve restrita à
perspectiva “criança-objeto”, o que representa somente um dos lados da
questão.
Seguindo essa linha de pensamento, Elkonin (1989) argumenta
que a essência para compreender a questão do desenvolvimento psíquico,
da personalidade como um todo, está na unidade entre afeto e cognição.
Nesse sentido, o desenvolvimento psíquico e o desenvolvimento da
personalidade podem ser considerados coincidentes, englobando, num
processo único, tanto a esfera cognitivo-operacional quanto a social-
afetiva.
Essa compreensão associa-se ao caráter social dos objetos que,
conforme já mencionado, representava a possibilidade de conexão entre
os sistemas “criança-objeto social” e “criança-adulto social”. Para tanto, as
atividades não ficam restritas a atividades de relações com coisas ou
pessoas como simples objetos. Ainda que tendo conteúdos diferentes,
estão sempre destinadas a desvendar e aprofundar a relação da criança
com a sociedade. Conclui-se, então, que o desenvolvimento de ambas as
256
esferas se dá em todos os períodos, ainda que haja o predomínio de uma
delas. É por isso que, no período pré-escolar há um desenvolvimento
cognitivo intenso, porém, em apoio à socialização. Na adolescência, de
maneira semelhante, a assimilação do conhecimento científico denota-se
como a essência da ciência adulta e apoia a formação do sentimento de
maturidade (ELKONIN, 1989).
Na mesma direção, Elkonin (1989) assume a ação objetal como
uma unidade de interação social, portadora de uma contradição em si
mesma. Por um lado, é humana e traz em si a relação com a sociedade e a
essência humana. Por outro, é material, carregando a relação com a
essência das coisas. Dessa forma, traz tanto o lado técnico-operacional
quanto o lado social. Com isso em vista, o autor conclui que as tarefas, os
modos de ação e os objetos são sempre socialmente motivados.
A nova postura diante da ação e da própria atividade gerou uma
flexibilização no pensamento elkoniano. Em relação à teoria da atividade
de estudo, tem-se que, na etapa operacional, seus preceitos se assentavam
na ideia de que a assimilação das necessidades e motivos aconteceria
somente em uma atividade que contemplasse o conteúdo social e que a
atividade de estudo se voltava somente para a assimilação do conteúdo
científico. Na etapa motivacional, o entendimento é de que a assimilação
de qualquer conteúdo, por ser socialmente motivado, possibilita
desenvolvimento em ambas as esferas em todas as atividades. Decorre daí
que a formação da personalidade também se dá na atividade de estudo.
Há dois textos de Elkonin que trazem indícios dessas mudanças
na teoria da atividade de estudo. O primeiro, escrito em meados da década
de 1960 e publicado somente em 1989 na obra Trabalhos psicológicos
selecionados, traz a preocupação de Elkonin (196-/2019) em investigar a
atividade de estudo com o intuito de esclarecer questões acerca da
formação da personalidade das crianças. Em suas palavras,
257
habilidades, conhecimentos ou métodos de raciocínio das crianças
(ELKONIN, 196-/2019, p. 151).
258
Os processos de autoconsciência e autoavaliação, apontados na
citação acima, estão diretamente associados a dois elementos da estrutura
da atividade de estudo: ação de controle e ação de avaliação. A primeira
dessas ações diz respeito à determinação da voluntariedade da atividade de
estudo, isto é, indica o grau de intencionalidade da criança na atividade,
sua disponibilidade para se envolver e realizá-la. É nesse sentido, que a
atividade de estudo assume uma importância que vai além da assimilação
do conteúdo material ou didático. Para além desse resultado, promove
mudanças qualitativas no modo de raciocinar do estudante, no que se
refere ao controle, voluntariedade e envolvimento do sujeito com a
atividade (ELKONIN 196-/2019).
A partir desse entendimento, é possível visualizar uma nova
preocupação por parte de Elkonin em relação à qualidade dos processos
psíquicos envolvidos na atividade de estudo. A novidade reside no fato de
que tais processos e seu desenvolvimento não ficavam restritos à aquisição
e ampliação dos modos de ação dominados pela criança. Passa a ter
importância, o fato de possibilitarem que as ações da criança fossem
voluntárias e, ao mesmo tempo, autocontroladas. Essas características da
ação seriam os reais indicadores de que a criança estaria se direcionando
para adquirir autonomia no processo de aprendizagem, qualidade
fundamental para atestar a formação da atividade de estudo e da
personalidade (ELKONIN, 1989).
De acordo com Elkonin (196-/2019, p. 157), a ação de avaliação
“se torna um aspecto muito importante para quantificar a influência da
Atividade de Estudo realizada pelo aluno, sobre si mesmo, como sujeito
da atividade”. Nesse sentido, ao contrário do modo como usualmente é
concebida, a avaliação não funciona somente para quantificar os
conhecimentos e habilidades acumulados pela criança. Ela deve ser
realizada pela própria criança a fim de verificar o grau de assimilação dos
modos de ação e sua generalização, ou seja, o quanto a criança será capaz
de aplicar o que foi assimilado diante de tarefas e situações semelhantes
que lhe serão impostas futuramente. Dessa forma, configura-se, de fato,
como uma ação para verificar a transformação do sujeito no processo da
atividade de estudo.
A partir dessas considerações, é compreensível que Elkonin
(1989), em aulas sobre psicologia infantil proferidas na Universidade
259
Estatal de Moscou, em meados da década de 1970, reconheça entre as
principais neoformações da idade escolar a capacidade de autocontrole e
sua relevância na formação da personalidade. Em suas palavras,
260
como referência na apresentação dos períodos etários e sua ordem de
sucessão, é preciso reconhecer que o grande esforço de Elkonin
(1971/2017) está direcionado para demonstrar que o desenvolvimento da
personalidade é perpassado também pelo desenvolvimento da esfera
operacional-cognitiva e não somente da esfera social-afetiva.
Conclui-se, por fim, que a influência exercida por Elkonin, no que
se refere, especificamente, às mudanças ocorridas na segunda etapa da
teoria da atividade de estudo, está diretamente relacionada com as
concepções teóricas sobre as quais construiu sua hipótese acerca da
periodização do desenvolvimento psíquico. Tais concepções centram-se
na ideia de que os processos e objetos constituintes da vida possuem um
caráter dual: material e social. E, somente um processo desenvolvimental
que contemple as esferas afetiva e cognitiva do psiquismo desenvolvendo-
se interligadas em uma linha única é capaz de possibilitar a formação
humana.
Considerações Finais
261
Sendo assim, e considerando a celeridade e proporção das
mudanças vividas pelas sociedades locais e global nos últimos cinquenta
anos, as inovações quanto aos paradigmas científicos e epistemológicos e
o caráter histórico da infância, apontado pelo próprio Elkonin, é coerente
recorrer a sua obra como uma fonte de ideias para a compreensão do
desenvolvimento psíquico, sem, contudo, perder o olhar crítico e voltado
para a realidade sócio-histórica atual.
Referências
262
<http://old.experiment.lv/rus/biblio/vestnik_1/v1_davidov_iz_
istorii.htm>. Acesso em: 04 Mai. 2020.
263
ELKONIN, Daniil B. Questões psicológicas relativas à formação da
atividade de estudo. In: PUENTES, R. V.; CARDOSO, C. G. C.;
AMORIM, P. A. P. (Org.). Teoria da Atividade de Estudo: contribuições de
D. B. Elkonin, V. V. Davidov e V. V. Repkin. Curitiba: Editora CRV;
Uberlândia: Edufu, 1961/2019. p. 141–143.
264
ELKONIN, D. B. Выдержки из научных дневников (1960-1962)
(Excertos dos diários científicos (1960-1962)). Voprosy Psychologii, v.
01, p. 09–21, 2004.
265
Estudo: contribuições de D. B. Elkonin, V. V. Davidov e V. V. Repkin.
Curitiba: Editora CRV; Uberlândia: Edufu, 2019b. p. 83–137.
266
Capítulo 9
Introdução
267
virtude de seus aportes teóricos e de suas publicações, um dos mais
importantes estudiosos, do ponto de vista teórico, acadêmico e político,
que contribuiu de maneira significativa para o desenvolvimento e para a
consolidação das teorias da Atividade de Estudo, da Aprendizagem
Desenvolvimental e da Didática Desenvolvimental. Nesse sentido, o
objetivo geral foi descobrir a extensão teórico e metodológico que o
pensamento e a obra do autor experimentaram, em relação a concepção
de sujeito e a elaboração do conceito, do conteúdo e da estrutura da
Atividade de Estudo.
No Brasil, as pesquisas no âmbito do Enfoque Histórico-Cultural,
da Aprendizagem Desenvolvimental e da Atividade de Estudo ainda são
recentes e tímidas quando comparadas com aquelas que se realizam no
interior de outras concepções teóricas, mas cresceram significativamente
nos últimos anos (PUENTES, 2019c; PUENTES; LONGAREZI, 2021).
A maior parte da produção do período soviético e pós-soviético
relacionada especificamente com Aprendizagem Desenvolvimental e
Atividade Estudo que mais influência tem exercido nas investigações
nacionais está relacionada a A. N. Leontiev, o sistema Elkonin-Davidov-
Repkin, o grupo de Moscou e a V. V. Davidov, o que dá a ela um caráter
leontiviano, moscovita e davidoviano.
V. V. Davidov é a figura mais emblemática entre os
representantes do sistema Elkonin-Davidov-Repkin e do grupo de
Moscou. O contato com sua obra no Brasil está para comemorar em
breve trinta anos e se mantém em uma tendência crescente, mesmo
quando hoje divide de maneira mais expressiva do que antes espaço com
o pensamento e obra de outros autores. As primeiras referências
brasileiras associadas ao trabalho desse autor datam da primeira metade da
década de 1990 (LIBÂNEO, 2004) e os intelectuais mais representativos
no país em relação com o estudo e divulgação de seus pressupostos
teóricos e metodológicos são Nereide Saviani (1994), por ter sido
provavelmente a primeira a se referir a ele, e José Carlos Libâneo
(LIBÂNEO, 2004; LIBÂNEO; FREITAS, 2006; LIBÂNEO; FREITAS,
2013), por ter nos apresentado suas ideias de maneira mais sistematizada e
profunda.
Apesar da tendência crescente no Brasil dos estudos relacionados
com a obra de V. V. Davidov, os aspectos relacionados com sua
268
concepção de sujeito da Atividade de Estudo, bem como a ascensão de
seu pensamento a respeito do conceito, conteúdo e estrutura dessa
atividade, não tinham sido objeto de análise sistemático. Os estudos
nacionais na perspectiva da Aprendizagem Desenvolvimental e da
Atividade de Estudo têm, por um lado, priorizado os aspectos
operacionais dessas teorias, ignorando ou negligenciando com isso a
abordagem do próprio sujeito dela; pelo outro, lidado, no geral, com o
conceito, conteúdo e estrutura da Atividade de Estudo de maneira
estática, abandonando uma aproximação dialética que leve em
consideração o verdadeiro movimento de gênese e constituição tanto do
conceito como desses dois componentes.
Por esse motivo, o presente trabalho, mesmo mantendo, e até
reforçando, o caráter moscovita e davidoviano que caracterizam as
pesquisas brasileiras sobre a temática, avança quando assume como objeto
um aspecto específico do problema. A nossa abordagem foi realizada
partindo do pressuposto de que esse tipo de estudo teórico é fundamental
para novas elaborações no campo da Didática, especificamente, no
contexto brasileiro. A análise levou em consideração aspectos
metodológicos que permitiram elaborar uma interpretação subjetiva do
pensamento de V. V. Davidov, por meio da interpretação documental de
sua obra, compreendendo suas ideias não como um resultado de coleta de
dados, mas como uma construção hipotética do saber que o autor
elaborou a partir de suas percepções e estimativas.
O capítulo deve ser situado no contextos das pesquisas e
publicações realizadas no interior do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Didática Desenvolvimental e Profissionalização Docente – GEPEDI, que
favorecem o acesso de pesquisadores e interessados ao pensamento e obra
no enfoque histórico-cultural (FEROLA, 2019; LONGAREZI, 2017;
LONGAREZI; FRANCO, 2013; NASCIMENTO, 2014; LONGAREZI;
ARAÚJO; PIOTTO; MARCO, 2018; LONGAREZI; PUENTES;
ARAUJO, 2020; LOPES, 2020; CARDOSO, 2020; AMORIM, 2020;
SOUZA, 2019; LOPES, 2020; PUENTES, 2017; CARCANHOLO,
2020).
269
Aprendizagem desenvolvimental: Sistema Elkonin-Davidv-Repkin e
Atividade de Estudo
270
processo de aprendizagem ativo do conhecimento e não a reprodução
mecânica de conhecimentos prontos e acabados. Nesse sentido, a
aprendizagem foi entendida como o momento em que o conteúdo é
assimilado por meio da solução motivada e proposital de tarefas de uma
determinada categoria.
A teses iniciais da Aprendizagem Desenvolvimental começaram
emergir no final da década de 1950. A mesma tinha o intuito de contribuir
com a consolidação de uma educação de caráter socialista, inspirada no
legado teórico de L. V. Vigotski, S. L. Rubinstein e A. N. Leontiev, sobre
o papel e o lugar da aprendizagem no desenvolvimento do psiquismo
humano. Assim, a partir dos conceitos de atividade e de atividade
principal99 criados por A. N. Leontiev, de zona de desenvolvimento
próximo, desenvolvido por L. V. Vigotski, irrompeu uma concepção
específica de Aprendizagem Desenvolvimental do ponto de vista da
atividade conhecida com o nome de sistema Elkonin-Davidov-Repkin
(PUENTES, 2017; PUENTES; LONGAREZI, 2020).
O sistema Elkonin-Davidov-Repkin foi, de acordo com Davidov
(1996[2019]), o único que estabeleceu como objetivo considerar
integralmente o conceito de Atividade de Estudo como base da
aprendizagem que desenvolve. Essa concepção foi marcada pelo
surgimento do grupo de Moscou, a partir das pesquisas realizadas pelos
seus principais representantes, D. B. Elkonin, V. V. Davidov e
colaboradores, com o intuito de estabelecer o conceito, o conteúdo e a
estrutura da Atividade de Estudo; as bases lógico-psicológicas de
estruturação das disciplinas escolares; as peculiaridades do
desenvolvimento psíquico dos alunos no processo da Atividade de
Estudo; as reservas do desenvolvimento psíquico dos educandos nos
271
diferentes anos escolares; as particularidades da organização do
experimento formativo.
A periodização estabelecida por Elkonin (1971[2017]) contribuiu
ao oferecer uma base consistente à gênese de uma teoria
metodologicamente significativa a respeito da história do
desenvolvimento da psique da criança. A partir desses fundamentos surgiu
a necessidade de examinar a relação entre as leis históricas que dominam o
desenvolvimento da atividade prático-cognitiva e a atividade adequada
realizada pela criança, que reproduz as capacidades historicamente
formadas. É por isso que o período inicial de gênese e consolidação do
sistema foi caracterizado pelo desenvolvimento de um grande número de
pesquisas dedicadas a elaborar as bases de importantes teorias —
psicológica da Atividade de Estudo, da generalização teórica, da
modelagem, do diagnóstico, no movimento de ascensão do abstrato para
o concreto, da transição de um nível para o outro, da cooperação, da
comunicação, etc. (PUENTES; LONGAREZI, 2019) — e a construir um
programa de formação para professores das escolas experimentais. Nesse
sentido, tornou-se possível respaldar experimentalmente o protagonismo
da Teoria da Aprendizagem Desenvolvimental na formação psíquica dos
escolares e estabelecer alguns requisitos psicológicas e pedagógicas
particulares para sua implementação.
Os representantes do sistema Elkonin-Davidov-Repkin
sustentaram a tese de que a didática adequada é aquela que cria as
condições necessárias para que o aluno desenvolva uma Atividade de
Estudo que permita avançar desde o nível mais simples de aprendizagem
(funcional), até o mais complexo (desenvolvimental), incluindo na
organização desse processo a participação de professores e colegas, para
atingir os estágios posteriores, a aprendizagem colaborativa (assistida,
orientada ou regulada) e autônoma (independente ou autorregulada). À
vista disso, a base da aprendizagem que desenvolve está no conteúdo do
qual derivam os métodos de organização desse processo; logo, o papel do
professor, na referida situação, não é ensinar o conteúdo, mas organizá-lo
na forma de tarefa de estudo e colaborar com o aluno no processo de
solução dela. Nesse sentido, ele participa de modo colaborativo, regulando
a Atividade de Estudo e o próprio processo de aprendizagem do aluno.
272
Assim, a Atividade de Estudo foi considerada a teoria central do
sistema. Embora psicólogos russos A. N. Leontiev, S. L. Rubinstein, L. I.
Bozhovich e colaboradores tenham realizado várias pesquisas a respeito
dos aspectos específicos da Atividade de Estudo, não demonstraram sua
estrutura objetiva, seu processo de formação e seu papel no
desenvolvimento psicológico das crianças. De acordo com Elkonin
(1974[2019]), isso aconteceu porque a análise do desenvolvimento
psicológico das crianças e os processos de desenvolvimento do
pensamento, da memória, da percepção e da personalidade foram
direcionados independentes da atividade principal. Desse modo, o papel
do estudo, como atividade principal nos anos iniciais do nível
fundamental, estava fora do objetivo das investigações naquele momento.
Os membros do sistema, fundamentados em uma série de
suposições teóricas desenvolvidas anteriormente pela psicologia infantil,
assumiram analisar os mecanismos psicológicos da Atividade de Estudo, a
noção de sujeito dessa atividade, bem como seu conceito, conteúdo e
estrutura. Um papel relevante foi desempenhado por V. V. Davidov.
273
interpretativa de nove textos escritos ou publicados por V. V. Davidov no
período de 1979 a 1998.100
O quadro a seguir (Quadro 1) contém o número de vezes que os
termos “sujeito”, “personalidade” e “atividade” aparecem nos artigos
analisados de V. V. Davidov (1979-1998).
274
No total, o termo “sujeito” aparece setenta e duas vezes,
“personalidade” trinta e “atividade” setecentas e vinte e sete vezes. Os
dados mostram que se bem o objetivo da Atividade de Estudo era o
processo de autotransformação do sujeito da atividade (ELKONIN,
1961[2019]; REPKIN, 1997[2019]),101 as pesquisas experimentais
realizadas em laboratórios e escolas experimentais de massa, entre 1979 e
1998, privilegiaram a análise da atividade objetiva, em lugar da elaboração
de uma concepção de sujeito dessa atividade.102 O resultado das pesquisas
mostram a quantidade de produções preocupadas com as mudanças
ocorridas do ponto de vista teórico em relação ao conceito, conteúdo,
estrutura e processo formativo da Atividade de Estudo e o tema do sujeito
e da personalidade deixados em um segundo plano. Contudo, o sujeito e
seu estudo foi negligenciado, mas não excluído.
101 Repkin (1997[2019], p. 376), escreveria que a Atividade de Estudo deve ser entendida
como uma atividade para a autotransformação do sujeito.
102 Na obra de Elkonin e de Davidov, os termos “sujeito” e “personalidade” ora foram
empregados tendo o mesmo sentido, ora definindo o sujeito como aquela criança que é
capaz de resolver tarefas de estudo de maneira colaborativa e a personalidade como a criança
que realiza a tarefa de maneira autônoma (PUENTES, 2019a).
275
O sujeito das necessidades e motivos
103 Essa preocupação passou a ser expressada pelo Elkonin na segunda metade da
década de 1969 não apenas nos seus diários científicos, mas também em artigos sobre
a relação entre os diferentes níveis de desenvolvimento da atividade de estudo e os
níveis de formação dos interesses cognitivos (cf. ELKONIN, 1961[2019]).
104 De acordo com Puentes (2019d), entre 1961 e 1970, a concepção de sujeito
276
mesmo tempo, o sujeito passou a ser visto como aquele que possui a
capacidade de se envolver conscientemente na atividade e realizar
determinadas ações porque sente a necessidade e a motivação para se
envolver e efetivá-las.
Contudo, esse conceito manteve uma conexão com a concepção
de sujeito das ações cognitivas, pois, para os teóricos do sistema, o motivo
que surge do interesse promovido no aluno pelo conteúdo seria
efetivamente capaz de transformá-lo em sujeito da Atividade de Estudo.
Segundo V. V. Davidov, em texto escrito com Márkova (DAVIDOV;
MÁRKOVA, (1981[2019], p. 205), “a análise da posição do aluno na
Atividade de Estudo e o sentido que essa atividade tem para ele
estimularam o início de uma série de pesquisas sobre a motivação para o
estudo (MÁRKOVA, 1980)”.
Desde esse ponto de vista, a ação que impulsiona a atividade do
sujeito ainda estava estreitamente ligada aos modos generalizados de ação
e aos conceitos científicos; assim, o sujeito das necessidades e dos motivos
era visto também como o sujeito das ações cognitivas. Com isso, apesar
de Davidov (DAVIDOV; MÁRKOVA, (1981[2019]) evidenciar que o
conteúdo principal da Atividade de Estudo era a assimilação dos modos
generalizados de ação no âmbito dos conceitos científicos, considera o
sujeito da motivação como aquele capaz de se transformar em sujeito da
atividade, sendo este o ponto mais elevado na formação das características
individuais, que ocorre quando o aluno começa a dominar a estrutura
geral da Atividade de Estudo, a reconhecer as características individuais
do seu estudo e a fazer uso desse tipo de atividade como forma de
estruturar as interações sociais com os outros alunos.
Para Davidov (1986[2019]), o ingresso na escola permite ao aluno
adquirir uma nova posição social na vida e realizar a Atividade de Estudo
para atender seus interesses cognitivos. Desse modo, tal ingresso age
como premissa psicológica para que surja a necessidade de assimilar os
conhecimentos teóricos. De acordo com o autor, “o pensamento teórico,
ao se constituir como o conteúdo da Atividade de Estudo é, ao mesmo
tempo, a sua necessidade. A atividade humana se correlaciona com certa
necessidade, enquanto as ações são relacionadas aos motivos”
(DAVIDOV, 1986[2019], p. 220).
277
A necessidade do pensamento teórico surge nos alunos dos anos
iniciais no processo de assimilação do conhecimento durante a resolução
de tarefas de estudo, em colaboração com o professor; a princípio, em
ações de estudo mais simples, dirigidas à solução de ações mais
complexas. Esse processo de formação da necessidade da Atividade de
Estudo leva o aluno a assimilar o conhecimento teórico; o motivo, por sua
vez, conduz à apropriação dos modos de sua reprodução por meio de
ações de estudo direcionadas à solução da tarefa de estudo.
O sujeito da Atividade de Estudo, do ponto de vista de Davidov
(1991[2019]), é aquele que tem necessidades e motivos para a execução de
ações de estudo. Contudo, ainda no começo da década de 1990 as
necessidades-motivos da Atividade de Estudo, como componentes
principais do sujeito, não tinham sido ampla e adequadamente
pesquisadas.
278
circunstâncias essenciais que preparariam os alunos para dominar o
conhecimento teórico e desenvolver o desejo de aprender.
279
Podemos observar que, enquanto a noção de sujeito das
necessidades e motivos se baseia na ideia das forças motrizes para a
execução da ação de estudo, sua concepção de sujeito individual e coletivo
se sustenta na avaliação do nível de autonomia do aluno no processo de
aprendizagem. Inicialmente, nos anos iniciais, essa habilidade ocorre em
colaboração com o professor, de forma coletiva: toda a turma se torna
sujeito da aprendizagem e, posteriormente, cada indivíduo se torna sujeito
de sua aprendizagem individual, o que acontece ao final do nível
fundamental, quando o aluno internaliza a capacidade coletiva de
aprender.
A Atividade de Estudo, segundo Davidov (1991[2019]), é
realizada pelo sujeito da atividade; a princípio, pelo coletivo e,
posteriormente, pelo individual. Nesse sentido, a atenção passou a estar,
também, na transição que o aluno vivencia no processo de assimilação dos
conhecimentos teóricos em um tipo de Atividade de Estudo específica e
não nos conhecimentos que ele assimila por meio dela. Contudo, o exame
mais detalhado da singularidade do sujeito coletivo da Atividade de
Estudo e o conteúdo do conceito psicológico do sujeito individual não foi
realizado nessa época.
O sujeito da Atividade de Estudo, portanto, é, em um primeiro
momento, o grupo de alunos que trabalha em conjunto, que realiza a
tarefa de estudo (reflexiva): “(...) não podemos descobrir portadores
individuais ou ‘dons’ da reflexão no processo de estudo, o sujeito da
reflexão não é individualizado, a reflexão existe de uma forma
interpsíquica”. (DAVIDOV; SLOBODCHIKOV; ZUCKERMAN,
1992[2019], p. 244). Assim, era preciso identificar como o aluno objetiva
as alterações que ocorrem dentro de si no processo de aprendizagem, pois
“é precisamente esse problema que nos parece a chave para o segredo da
capacidade de estudar, de ser sujeito da atividade de estudo”.
(DAVIDOV; SLOBODCHIKOV; ZUCKERMAN, 1992[2019], p. 248).
Para responder a essa pergunta, V. V. Davidov, em colaboração
com Slobodchikov e Zuckernan (1992[2019]), descreveu a estrutura da
Atividade de estudo, na qual os limites da capacidade de aprender podem
suscitar a presença de três etapas durante o processo reflexivo,
relacionadas entre si, mas são inflexíveis umas às outras: (1) atividade
cognitiva; (2) atividade de comunicação e cooperação; (3) atividade de
280
autoconsciência. Apresentaremos, sucintamente, o modus operandi de cada
uma.
Na etapa da atividade cognitiva, o objeto de trabalho conjunto
entre o professor e o aluno se efetiva no conceito científico e nos modos
de ação. O sujeito da Atividade de Estudo está no professor e no
conteúdo, sendo que o mecanismo para produzir a reflexividade se
concentra nas situações criadas pelo docente. Nesse nível, o pensamento
se direciona para a resolução de tarefas, a fim de que o sujeito adquira
consciência dos fundamentos das suas próprias ações.
Na atividade de comunicação e cooperação, a esfera da existência
da reflexividade está na comunicação e na cooperação entre alunos e
professor. Para Davidov, Slobodchikov e Zuckerma (1992[2019]), o
sujeito da atividade é o grupo de alunos envolvidos no debate, que
trabalha em conjunto na tarefa de estudo e utiliza, como mecanismo para
produzir o pensamento, a interação reflexiva entre os alunos. O resultado
desse trabalho se encontra na reflexibilidade como habilidade do grupo
para distinguir e coordenar posições.
A atividade de autoconsciência, por sua vez, tem como objeto o
trabalho conjunto entre professor e aluno, a transição da criança de uma
posição para outra, do desconhecido ao conhecido. Nessa etapa, o sujeito
da atividade é o aluno, que adquire por resultado a reflexibilidade como
habilidade individual para estabelecer seus limites e se autotransformar.
Reconhecemos que, segundo os representantes do sistema, os
componentes da Atividade de Estudo, tais como conteúdo, estrutura e
motivação, apenas serão suficientes para atingir o objetivo primordial da
aprendizagem desenvolvimental se a Atividade de Estudo for realizada
pelo aluno como sujeito da aprendizagem e não como objeto. Ademais,
isso também dependerá da relação estabelecida entre o professor e os
alunos, como parceiros capazes de realizar algo em comum, na forma de
diálogo de estudo.
O diálogo de estudo, além de ser um processo de cooperação
entre alunos e professor, é a fonte de desenvolvimento não só daqueles,
mas também deste. Há vários motivos para acreditarmos que a função do
diálogo de estudo diz respeito não apenas ao desenvolvimento dos
discentes, mas também dos docentes. Quando estes promovem tal
atividade, como um tipo de comunicação interpessoal, eles também são
281
participantes. Quando acontece o diálogo, o aluno passa a ser fonte de
desenvolvimento capaz de torná-lo sujeito da aprendizagem; para o
professor, um entendimento da própria compreensão da relevância da
atividade pedagógica. Assim, o diálogo de estudo, para o educador, como
um meio de comunicação interpessoal, é modelado em forma de
criatividade profissional na qual ele se desenvolve como pessoa criativa.
Portanto, as normas estabelecidas dentro de um grupo de pessoas
se baseiam no diálogo e na cooperação, nos motivos que permitem a
comunicação quando o aluno sozinho não é capaz de resolver uma
determinada tarefa. Assim, a presença do diálogo entre professor e aluno é
possível apenas quando o aprendiz reflete sobre a sua ação e conclui que
esta não teve sucesso e precisou de avaliação e controle. Dessa forma, a
comunicação, além de presumir o plano ideal, considera também a
reflexão do aluno sobre si mesmo, já que avalia suas ações.
Nesse sentido, o plano ideal surge a partir da comunicação entre
alunos e professores e representa a base de uma determinada cultura. A
consideração do plano ideal de um indivíduo e o estudo do
funcionamento daquele podem nos levar à possibilidade de descrever o
sujeito individual. Mas, o que é sujeito individual? Para Davidov
(1998[2019], p. 298), “é a iniciativa de um indivíduo de definir os
objetivos da atividade coletiva e a responsabilidade para consigo mesmo e
com os outros”. A atividade coletiva é praticada pelo sujeito coletivo.
Qualquer atividade coletiva possui formas materiais e espirituais de sua
realização, ou seja, algo que é chamado de comunicação. A comunicação
entre alunos e professores é a reflexão sobre suas ações, métodos usados
para executar uma ou outra ação, no plano ideal ou imaginativo; essa é a
atividade individual consciente do sujeito individual.
282
Segundo Libâneo (2004), apesar de continuar evidenciando o
papel dos motivos, V. V. Davidov passou a reiterar que as ações são
ligadas muito mais a necessidades fundamentadas em desejos do que a
necessidades baseadas em motivos. A relevância dessa perspectiva é óbvia,
pois põe em destaque a relação entre a afetividade e a cognição e sua
inserção na subjetividade. Para Davidov (1998[2019]), por detrás das
ações, estão as necessidades e as emoções, que antecedem a ação, a
linguagem e o diálogo na relação com o outro. Segundo o autor,
283
além de necessidades espirituais, possui também desejos.
(DAVIDOV, 1998[2019], p. 292).
284
Contudo, embora o autor tenha evidenciado que a necessidade, o
desejo e a emoção são aspectos importantes da atividade psicológica, o
desejo ainda não tinha sido detalhado em sua estrutura. Davidov
(1998[2019]) reconheceu que a maioria das pesquisas na área da
psicologia, de alguma forma, não esclarecia os fundamentos pelos quais a
pessoa aceita a tarefa e deseja atingi-la com sucesso, pois, até então, não se
conhecia praticamente quase nada a respeito da emoção de um sujeito.
285
Conteúdo e estrutura da 1986 0 28 8
atividade de estudo
286
Conceito de Atividade de Estudo na perspectiva de V. V. Davidov
287
Dessa maneira, a Atividade de Estudo ficaria definida como
aquele tipo específico de atividade humana que tem como propósito a
automodificação, a auto alteração, a autotransformação (psíquica e da
personalidade) do sujeito dela (a criança ou o aluno), pela via da
assimilação do objeto de estudo (os conteúdos escolares).
Há, pelo menos, três textos de Davidov (1979[2019], 1991[2019],
1996[2019]), que, de um modo ou de outro, apresenta a sua compreensão
do “conceito de Atividade de Estudo”. No primeiro deles para fixar que o
conceito de Atividade de Estudo não pode ser identificado com o
conceito mais amplo de “assimilação”, pois “somente dentro da atividade
propriamente de estudo os processos de assimilação intervêm como seu
objeto direto e como sua tarefa” (DAVIDOV, 1979[2019], p. 172). Com
base em A. N. Leontiev e D. B. Elkonin, reconhece que esse tipo de
atividade é principal para os escolares dos anos iniciais do nível
fundamental, entre os sete e dez anos de vida, o estudo se forma nesse
período e no seu interior surgem as neoformações correspondentes e
determina no período em questão o caráter dos demais tipos de atividade.
No texto com Márkova, publicado em 1981 (DAVIDOV;
MÁRKOVA, 1981[2019]), o autor amplia sua apreciação a respeito do
conceito de Atividade de Estudo ao agregar mais algumas qualidades ao
mesmo:
288
Leontiev) e em estreita vinculação com a teoria da formação por
etapas das ações mentais e dos tipos de aprendizagem de P. Ya.
Galperin, N. F. Talízina e colaboradores;
(5) o termo “atividade” é entendido, no sentido amplo, como o elo
interno do processo de aprendizagem não como o conjunto das
funções psíquicas isoladas, mas como atividade do aluno na
condição de sujeito, de personalidade; no sentido mais específico,
como atividade interna do sujeito que é portadora de certa
estrutura (por um lado, atividade-ação-operação” e, pelo outro,
“motivo-objetivo-condição”).
289
no contexto terminológico, não existem na teoria tradicional de
aprendizagem.
[...]
A primeira diferença entre a Atividade de Estudo e a tradicional
consiste no seguinte: de acordo com a teoria tradicional, os alunos
recebem os conhecimentos prontos do livro didático. Na teoria da
Atividade de Estudo o professor não possui tal conhecimento de
maneira acabada. Quem deve ter esse conhecimento é o
metodólogo, mas os professores inteligentes também devem tê-lo
e, ao mesmo tempo, fazê-lo surgir enquanto os alunos assimilam
os conhecimentos no próprio processo da Atividade de Estudo
(DAVIDOV, 1996[2019], p. 252-258).
290
A função e importância dos conteúdos não se limita a capacidade
intelectual do sujeito, mas se estende para outras dimensões da formação
psíquica, bem como para o desenvolvimento da personalidade, pois
abarca de maneira simultânea tanto o desenvolvimento “intelectual e
moral”, como a “transição da atividade para seu produto subjetivo”.
Contudo, há dois aspectos do conteúdo da Atividade de Estudo
que merecem o maior cuidado. Em primeiro lugar, os componentes dos
quais esse conteúdo está feito na perspectiva dos principais representantes
da teoria, sobretudo de V. V. Davidov. Em segundo, o comportamento
assumido por esses componentes ao longo do processo de
desenvolvimento histórico da própria Teoria da Atividade de Estudo,
quanto do pensamento de V. V. Davidov.
Puentes (2019b, c; 2020a, b), em publicações recentes estabelece
várias periodizações relacionadas com o processo de gênese e
consolidação da Teoria da Atividade de Estudo, no período entre 1959-
2019, com base na análise do comportamento de diferentes categorias.
Uma das categorias estabelecidas na sua pesquisa foi o “conteúdo” da
Atividade de Estudo, sua composição ou essência e o processo de seu
desenvolvimento. Essas periodizações foram elaboradas a partir da
abordagem da obra escrita por D. B. Elkonin, V. V. Davidov e V. V.
Repkin a respeito da Atividade de Estudo.
Em um desses trabalhos, Puentes (2019c) estabelece as três etapas
na que se poderia periodizar o desenvolvimento da Teoria da Atividade de
Estudo, a saber: (1) etapa operacional (1959-1970); (2) etapa motivacional
(1971-1996) e; (3) etapa emocional (1997-2018). Em um dos primeiros
artigos de Elkonin (1961[2019], p. 142) sobre Atividade de Estudo, ao
abordar seu objetivo, ele definiu também o componente fundamental que
caracterizaria o conteúdo dessa atividade ao longo da primeira etapa, é
dizer, “o domínio de determinados modos de ação”. Em um texto
posterior (ELKONIN, 196-[2019]), completaria a ideia inicial ao definir o
que entendia por “domínio dos modos de ação”. Segundo ele, os modos
de ação eram aquelas ações particulares que o sujeito realiza com um dado
material que se destina à discriminação dela de tal forma que todas a ações
consequentes são definidas durante essa ação. Elkonin, com uma postura
galperiana, afirma também que esses modos estão associados ao domínio
291
da base orientadora da ação subsequente e os define agora de uma
maneira um pouco diferente:
292
que permitem que as crianças “reproduzam e consolidem em modelos
uma relação singular das coisas que aparece ao mesmo tempo como
assento geral das manifestações particulares do sistema estudando”
(DAVIDOV, 1972, p. 408). Elkonin (196-[2019], p. 154) disse
praticamente o mesmo quando defini os “modos de ação” como “uma
ação particular com um dado material que se destina à discriminação do
mesmo de tal modo que todas as habilidades consequentes são definidas
durante a sua execução”.
Davidov (1979[2019]) estabelece as diferenças que existem entre a
generalização substantiva ou essencial (teórica) e a generalização empírico-
formal. Relaciona essa última com a distinção das propriedades gerais e
aparentemente iguais de uma variedade de objetos ou fenômenos pela via
da comparação e orientação da pessoa para essas propriedades. A
primeira, por sua vez, envolve a análise das condições de origem de algum
sistema de objetos mediante sua transformação real ou psíquica. Esta leva
ao desenvolvimento do pensamento teórico, enquanto que aquela conduz
ao pensamento empírico ou espontâneo.
Apenas um ano depois, Davidov (1980[2019]) atualiza
consideravelmente a sua concepção de conteúdo da Atividade de Estudo,
ao admitir que o mesmo estava basicamente constituído por, além do
domínio dos modos generalizados de ação já estabelecido anteriormente,
pelos conceitos científicos e pelas leis da ciência. E volta a atualizá-la
imediatamente no ano seguinte quando afirmo que o conteúdo da
Atividade de Estudo era a “assimilação dos modos generalizados de ação
na esfera dos conceitos científicos e as mudanças qualitativas no
desenvolvimento psíquico da criança que acontecem sobre essa base”
(DAVIDOV; MÁRKOVA, 1981[2019]). Com isso, o produto final da
Atividade de Estudo, isto é, a transformação do aluno, passava a aparecer
explicitamente também no seu conteúdo.
Assim, o autor reafirma aquilo que passaria a ser o foco
fundamental da Aprendizagem Desenvolvimental e da Atividade de
Estudo, pelo menos no que se refere ao ponto de vista dos representantes
293
do sistema no grupo de Moscou,108 até a segunda metade da década de
1990, isso é, o desenvolvimento do pensamento teórico como conteúdo
de ambas teorias. Davidov (DAVIDOV; MÁRKOVA, 1981[2019], p.
204) escreveria que “a formação do pensamento teórico dos estudantes é
o foco da Atividade de Estudo”.
Na fase final de sua vida, ainda que no início daquela que Puentes
(2019c) considera de etapa emocional (1996-2018), Davidov (1998[2019])
mudou de maneira radical seu posicionamento teórico a respeito do papel
da reflexão, do pensamento e da tarefa na atividade psicológica geral e
passou a priorizar a esfera das necessidades, desejos e emoções de uma
pessoa no processo de sua constituição humana.
294
Estrutura da Atividade de Estudo na perspectiva de V. V. Davidov
295
Na fase inicial dessa segunda etapa, Davidov (1972) teria
especificado e esclarecido o conceito de estrutura da Atividade de Estudo
no processo de análises dos tipos de generalização do pensamento teórico
dos alunos, ao estabelecer que a mesma refletia as ações que garantem a
solução da tarefa de estudo, mas não propus qualquer modificação nela.
Na fase final, Davidov (1979[2019], 1980[2019]) retomaria novamente a
estrutura da atividade, mas apenas aspectos específicos dela. No primeiro
texto, analisa alguns dos componentes fundamentais da Atividade de
Estudo, isto é, o sistema de ações particulares para a resolução da tarefa
de estudo. A maior contribuição do texto está na enumeração de ações
básicas de estudo que não tinham sido identificadas até então: (1)
transformação da situação para colocar de manifesto a relação geral do
sistema que se analisa; (2) modelagem da relação assinalada em forma
gráfica e simbólica; (3) transformação do modelo da relação para o estudo
de suas propriedades em forma pura; (4) distinção e organização de uma
série de tarefas práticas concretas particulares, que se resolvem pelo modo
generalizado de ação; (5) controle do cumprimento das ações anteriores;
(6) avaliação da assimilação do modo generalizado de ação como resultado
da solução da tarefa de estudo em questão.
No segundo texto, Davidov (1980[2019]), ignorando a estrutura
proposta por D. B. Elkonin, em 1974, que contém como elemento novo
os motivos cognitivos de estudo característicos de um período dominado
por uma preocupação intensa em relação as forças motrizes do
desenvolvimento dos modos generalizados de ação e dos conceitos
científicos, apresenta e caracteriza a estrutura inicialmente proposta por
D. B. Elkonin (1961[2019]): (1) As situações de estudo (as tarefas); (2) as
ações de estudo; (3) controle; (4) avaliação. Se no texto anterior tinha sido
relevante a especificação das ações como componentes da estrutura da
Atividade de Estudo, nesse texto foi importante as duas características das
situações de estudo que V. V. Davidov estabeleceu. Em primeiro lugar,
que nas situações de estudo os alunos assimilam os modos generalizados
de ação para diferenciar as propriedades dos conceitos com o objetivo de
resolver algum tipo de tarefa concreta prática; em segundo lugar, que a
reprodução dos modelos desses modos de ação aparece como objetivo
básico do estudo como trabalho.
296
De acordo com Davidov (1980[2019]), a grande diferença entre a
resolução de tarefas práticas e concretas nas situações de estudo e em
qualquer outro âmbito é que naquelas as tarefas se assimilam de um modo
distinto. Por exemplo, nas situações de estudo a escrita de um ditado é
precedida por um trabalho em que as crianças estudam primeiro a
composição das palavras e as regularidades segundo as quais se combinam
e as regras gerais da ortografia. Já a solução de um problema de aritmética
está precedida pelo estudo das propriedades gerais e dependências das
magnitudes, dos modos de ação para encontrá-las nos enunciados do
problema e dos meios de representa-las pela via de operações aritméticas.
O segundo momento no pensamento de V. V. Davidov se
corresponde com a etapa de inflexão metodológica (1981-1990).
Sobressai, ao longo de toda a década de 1980, o predomínio de
trabalhos sobre Atividade de Estudos escritos por V. V. Davidov,
sozinho ou em parceria com colaboradores do grupo de Moscou.
Sobressai também o número de reformulações a que foram submetidos
o conteúdo e a estrutura dessa atividade, sobretudo, a partir dos
trabalhos de V. V. Davidov.
Em dois trabalhos específicos V. V. Davidov aborda a estrutura
da Atividade Estudo. No artigo junto com Márkova (DAVIDOV;
MÁRKOVA, 1981[2019]), ele trata da estrutura, mas deixa a mesma do
jeito que tinha sido estabelecida pelo D. B. Elkonin (1961[2019]), sem
sequer considerar as atualizações de 1974 em relação aos motivos
cognitivos de estudo. Contudo, a novidade da proposta de V. V. Davidov
está no fato de que, mesmo mantendo os componentes da estrutura
definida na etapa inicial, o aspecto dos motivos cognitivos de estudo foi
incorporado como parte da tarefa de estudo. Mais uma vez, a estrutura da
Atividade de Estudo segundo V. V. Davidov seria a seguinte: (1) tarefa de
estudo; (2) ações de estudo; (3) ações de controle; (4) ações de avaliação.
No livro intitulado Problemas de aprendizagem desenvolvimental
(DAVIDOV, 1986), o autor faz a maior reformulação da estrutura da
Atividade de Estudo nesse segundo momento de sua obra. Entre as
questões relevantes a ressaltar do texto de Davidov (1986[2019])) estão,
por um lado, a definição dos conhecimentos teóricos enquanto conteúdo
da Atividade de Estudo. Pelo outro, a especificação dos componentes
estruturais da Atividade de Estudo, a saber: 1) as necessidades; 2) os
297
motivos; 3) as tarefas; 4) as ações; 5) as operações, bem como com a
definição que faz de alguns deles. Se por uma parte essa proposta
manifesta o modo particular de V. V. Davidov enxergar a estrutura da
Atividade de Estudo, diferente em alguns aspectos das propostas de
Elkonin (1961[2019], 1974[2019]), guarda com elas estreita relação. Além
disso, reafirma o movimento, iniciado nos períodos anteriores, de
aproximação da estrutura dessa atividade específica com a estrutura da
atividade psicológica geral elaborada por Leontiev (1975[1985]), ao se
estabelecer um novo componente: as operações.
O texto de Davidov (1986[2019]) avança com a caracterização das
peculiaridades da ação de estudo, por diversas vezes abordada em outros
estudos precedentes, mas nunca de maneira tão explícita. De acordo com
o autor, essa ação se subdivide, por sua vez, em outras quatro ações: 1) a
ação inicial (principal), que consiste na transformação dos dados da tarefa
de estudo com a finalidade de colocar em evidência determinada relação
universal do objeto dado; 2) a ação de modelagem em forma objetal, gráfica
ou com signos da relação universal diferenciada; 3) a ação de
transformação do modelo com o objetivo de estudar a propriedade da
relação universal do objeto que tem sido diferenciada; 4) a ação de dedução e
construção de um determinado sistema de tarefas particulares. Entretanto,
surpreendentemente, V. V. Davidov não descreve o novo componente
que incorpora à estrutura da Atividade de Estudo, é dizer, as operações.
O terceiro momento de desenvolvimento do pensamento de V.
V. Davidov a respeito da estrutura da Atividade de Estudo se estende
entre 1991 e 1998 e se corresponde com a etapa de inflexão crítico-
emocional na história da formação da Teoria da Atividade de Estudo
(1991-2002). O aspecto mais relevante da etapa e do momento foi a
elaboração de uma nova abordagem para a compreensão da estrutura e
do conteúdo da atividade psicológica geral, cujo foco esteve na
dimensão emocional dessa atividade.
Há dois textos de Davidov (1991[2019], 1997[2019]), em especial,
que permitem captar o nível de desenvolvimento atingido pelo
pensamento do autor a respeito de toda a problemática envolvendo, em
primeiro lugar, as teorias da Aprendizagem Desenvolvimental e da
Atividade de Estudo; em segundo lugar, a estrutura da atividade, sem bem
não especificamente de estudo, mas psicológica geral.
298
O texto que abre esse último momento, é um balanço bastante
objetivo e crítico do estado atual atingido pela Teoria da Atividade de
Estudo depois de trinta anos de desenvolvimento contínuo. Nele,
Davidov (1991[2019]), entre muitos outros problemas da teoria, dá
destaque para três deles: (1) a necessidade de aumentar as pesquisas sobre
as características psicológicas do sujeito da atividade, uma vez que a
atenção principal tinha sido dada à estrutura da própria Atividade de
Estudo, à natureza da tarefa de estudo, assim como à sua manifestação
nas disciplinas escolares específicas; (2) a necessidade de pesquisar melhor
e de maneira mais sistemática os motivos, pois a esfera necessidade-
motivacional do sujeito dessa atividade tinha sido pouco analisada e a
maioria dos estudos existentes foram feitos por meio de observações, o
que permitiu descrever apenas as características externas dessa esfera; 3) a
necessidade de estudar a conexão existente entre a formação da Atividade
de Estudo do aluno e o desenvolvimento de sua personalidade.
Esses três problemas colocam de manifesto a questão de que se
bem as necessidades e motivos, já desde a primeira metade da década de
1970, passaram a integrar a estrutura da Atividade de Estudo, vinte anos
depois o foco ainda estava no papel deles como combustíveis das ações e
não no estudo do processo de desenvolvimento dos mesmos, na pesquisa
de suas leis internas, de seu conteúdo, estrutura e formação. As pesquisas,
por intermédio do método do experimento didático-formativo,
priorizavam, sobretudo, a análise do processo de formação das ações de
estudo, controle e avaliação.
Davidov, no texto de 1991, tinha deixado de fora uma questão
de extrema importância, mas sobre a qual não se tinha tomado
consciência ainda no interior do sistema Elkonin-Davido-Repkin:
trata-se do lugar das emoções no processo de formação da Atividade
de Estudo nas crianças e sua relação com os processos cognitivos. A
preocupação pela natureza das emoções e seu papel no
desenvolvimento cognitivo dos alunos só emergiria na obra do V. V.
Davidov na fase final de sua vida e, por isso mesmo, o aporte teórico
realizado ainda não teve o impacto significativo que se supõe que
deva ter futuramente na estrutura da Atividade de Estudo.
A nova abordagem sobre os desejos e emoções foi realizada por
Davidov (1997[2019]) em um texto baseado em reflexões da natureza
299
teórica e especulativa sem dados de pesquisas de campo que deram
sustentação às teses apresentadas. Trata-se de uma apresentação cheia de
problematizações, novas elaborações, hipóteses de trabalho e
interpretações sem nenhuma tese conclusiva. Por esse motivo, V. V.
Davidov tem o mérito de levantar um novo problema, muito mais do que
avançar no seu estudo. Entretanto, com sua morte, em 1998, sobretudo,
com a paulatina desintegração do sistema didático desenvolvimental, essas
ideias caíram no esquecimento.
Insistamos mais uma vez que Davidov (1998[2019]) realizou dessa
vez uma abordagem da estrutura e do conteúdo da atividade psicológica
geral, não do estudo como atividade específica. V. V. Davidov adota a
estrutura geral da atividade proposta por Leontiev (1975), mas a amplia ao
propor dois novos componentes: o desejo e as emoções. De acordo com
Leontiev (1975), o desejo não fazia parte da estrutura psicológica da
atividade, mas V. V. Davidov passou a considerar que tinha uma
importância fundamental. A questão estava, de acordo com V. V.
Davidov, em descobrir como o desejo se transforma em uma necessidade
natural da pessoa. Por fim, estabeleceu os componentes da nova estrutura:
(1) desejos; (2) necessidades; (3) emoções; (4) tarefas; (5) ações; (6)
motivos para as ações; (7) meios usados para executar ações; (8) planos da
cognição (percepção, memória, pensamento, imaginação e criatividade) e;
(9) vontade (a atenção como controle).
A relevância científica desse artigo de Davidov (1998[2019]) está
no fato de ter elevado essa temática para um patamar científico nunca
antes atingido no interior da teoria da atividade e superar, com isso, as
teses fundamentais predominantes à época, com a introdução do estudo
das emoções e da unidade do cognitivo-emocional se recorrer a nenhum
dos recursos teóricos comumente empregados.
Considerações Finais
300
impulsionar a formação das capacidades cognitivas mediante a formação
de modos generalizados de ação no âmbito dos conceitos científicos. A
ideia era desenvolver o pensamento teórico, isto é, descobrir por que
meios os alunos poderiam melhorar e potencializar sua aprendizagem.
Pela magnitude dos aportes teóricos e práticos oferecidos por V.
V. Davidov à aprendizagem escolar, destacamos suas principais
contribuições a respeito da Teoria da Atividade de Estudo, à qual ele
dedicou grande parte da sua vida profissional e científica. Seus estudos a
respeito da temática se mostram relevantes para a análise dos processos de
aprendizagem das escolas brasileiras de nível fundamental. No entanto, a
implantação de suas proposições exige uma mudança de postura
significativa por parte das instituições de ensino, pois sua função não
poderá ser apenas atender as necessidades básicas de aprendizagem,
aquisição de habilidades, aptidões e valores para o trabalho, mas
proporcionar um espaço capaz de promover o desenvolvimento das
capacidades humanas (simbólicas, valores, sentimentos, emoções, motivos
e outros) que permitem e favorecem a formação integral do sujeito.
Levando-se em consideração as características e as realidades das
instituições de ensino no Brasil, nas quais predomina um modelo de
aprendizagem tradicional, qualquer mudança requer um incentivo maior a
respeito de duas questões fundamentais: em primeiro lugar, uma
reformulação no interior dos cursos de formação de professores no país
que considere maior inserção dos futuros docentes nas escolas de
educação básica, uma alteração radical do currículo que substitua os
conteúdos empíricos que são ensinas por conteúdos teóricos que devem
ser aprendidos em processos colaborativos e dialógicos, por intermédio
do método de pesquisa e a melhoria na qualidade da formação dos
próprios formadores de formadores; em segundo lugar, políticas públicas
que favoreçam a criação de escolas-experimentais nas quais esse tipo de
trabalho posso ir sento implementado, testado e melhorado, medidas ágeis
que permitam a socialização e generalização de experiências bem-
sucedidas e a transformação das escolas de aplicação vinculadas as
universidades públicas no que elas verdadeiramente deveriam ser: escolas
de pesquisa, intervenção e experimentação didático-pedagógica.
Ademais, será preciso investigar uma concepção de didática que
tenha como propósito um processo humano de aprendizagem, organizado
301
adequadamente em ambientes de colaboração e participação ativa e mútua
entre professor e aluno, capaz de impulsionar o desenvolvimento
humano; um processo de mediação à apropriação de conceitos teóricos
relevantes para o desenvolvimento dos estudantes, cujo princípio é
colocar o aluno em patamares superiores àqueles em que se encontrava
antes de participar da experiência educativa. Nesse sentido, acreditamos
que a abordagem apropriada para fornecer as ferramentas capazes de
auxiliar no planejamento e na execução de ações que possibilitem a
formação do sujeito é a Atividade de Estudo, considerada a teoria central
da Teoria da Aprendizagem Desenvolvimental.
Salientamos que se faz necessário pesquisar ainda mais as
características internas da formação dos componentes estruturais da
Atividade de Estudo, a compreensão das tarefas de estudo, das ações de
estudo, de controle e de avaliação, bem como da esfera das emoções do
sujeito da atividade. Porém, acreditamos que a Teoria da Atividade de
Estudo, na perspectiva de V. V. Davidov, pode contribuir, futuramente,
com intervenções para a melhoria da qualidade dos processos de
aprendizagem realizados no interior das salas de aula, sem desconsiderar
as caraterísticas e as exigências concretas desse contexto.
Referências
302
(Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia, 2020. Disponível em:
https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/29765, acesso em 06 de
setembro de 2020. DOI: https://doi.org/10.14393/ufu.di.2020.486
303
DAVIDOV, V. V. Os problemas psicológicos do processo de
aprendizagem dos escolares de menor idade. (1979). In: PUENTES, R.
V.; CARDOSO, C. G. C.; AMORIM, P. A. P. (Orgs.). Teoria da atividade de
estudo: contribuições de D. B. Elkonin, V. V. Davidov e V. V. Repkin.
Curitiba: CRV; Uberlândia: EDUFU, 2019. p. 171-173.
304
DUSAVITSKII, A. K. A relação entre os conceitos de sujeito individual e
coletivo. Ciência e Educação Psicológica, n. 2, p. 5-13, 2001.
305
GONZÁLEZ REY, F. L. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-
cultural. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.
306
LONGAREZI, Andréa M.; ARAUJO, Elaine S.; PIOTTO, Debora;
MARCO, Fabiana F. Vida e obra de Vitaly Vladimirovich Rubtsov: o
teórico da atividade conjunta. PUENTES, Roberto V.; LONGAREZI, A.
M. (Orgs.). Ensino Desenvolvimental: vida, pensamento e obra dos principais
representantes russos. Livro III. Campinas: Paco Editorial. Uberlândia.
Edufu. 2019.
307
PUENTES, R. V. Didática desenvolvimental da atividade: uma
aproximação ao sistema Elkonin-Davidov-Repkin. In: PUENTES, R.
V.; MELLO, S. A. (Orgs.). Teoria da atividade de estudo: contribuições
de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Uberlândia: EDUFU,
2019a, p. 25-54.
308
Obutchénie, Uberlândia, v. 4, n. 1, jan./abr., p. 201-239, 2020. DOI:
https://doi.org/10.14393/OBv4n1.a2020-57369
309
SAVIANI, Nereide. Educação Infantil versus educação escolar:
implicações curriculares de uma (falsa) oposição. In: ARCE, Alessandra;
JACOMELI, Mara Regina Martins. Educação Infantil versus Educação Escolar?
Entre a (des) escolarização e a precarização do trabalho pedagógico nas
salas de aula. Campinas/SP: Autores Asociados, 2012.
310
Capítulo 10
Introdução
311
antiguidade, especialmente aos filósofos medievais que já discutiam,
naquela época, as questões relativas à atividade.
Mas, de acordo com Davidov (2019e), a teoria genuinamente
filosófica da atividade foi criada pelos filósofos alemães (Kant, Fichte,
Schelling e, especialmente, Hegel). Tributária da pedagogia, da filosofia, da
fisiologia e, em especial, da psicologia histórico-cultural, a teoria da
Atividade de Estudo emergiu a partir da busca por uma forma de
aprendizagem diferente daquela consolidada na ex-União Soviética dos
anos de 1950. A Atividade de Estudo seria aprimorada no interior de um
movimento de psicólogos e didatas soviéticos que, ao longo de mais de
cinquenta anos de estudo, desenvolveram a concepção que ficou
conhecida como Aprendizagem Desenvolvimental, teoria que se destina,
fundamentalmente, “a preparar os alunos para a atividade criativa, não [...]
o desenvolvimento do pensamento em si, mas [...] dos alunos como
sujeitos da aprendizagem, que precisam pensar para resolver seus
problemas” (REPKIN; REPKINA, 1997 apud REPKIN; REPKINA,
2019b, p. 35).
As pesquisas realizadas acerca da aprendizagem desenvolvimental
deram curso a diversas tendências educacionais direcionadas, todas elas,
por três grandes concepções psicológicas, ou seja, desenvolvimental da
atividade, desenvolvimental da personalidade e desenvolvimental da
subjetividade, sendo que a primeira foi aquela que teve, ao longo do
tempo, maior número de pesquisas teóricas e práticas (PUENTES;
LONGAREZI, 2017). Alguns princípios da didática desenvolvimental
acabariam sendo interpretados de maneiras diferentes, sobretudo aqueles
ligados ao pensamento de Vigotski, gerando, com isso, no interior dessa
didática, o surgimento de pelo menos três sistemas bem distintos: (a)
sistema Zankoviano (PUENTES; AQUINO, 2019), (b) sistema Galperin-
Talízina (PUENTES; LONGAREZI, 2020) e (c) sistema Elkonin-
Davidov-Repkin (PUENTES, 2017, 2019b, e, f).
O sistema Elkonin-Davidov-Repkin, como a própria
nomenclatura subentende, desenvolveu suas teses fundamentais a partir
dos trabalhos de Elkonin, Davidov e Repkin, em colaboração com um
grupo numeroso de cientistas e professores (cf. PUENTES;
LONGAREZI, 2020). Vladimir Vladmirovski Repkin (1927), filólogo,
filósofo, psicólogo e didata, foi uma das figuras que mais contribuiu na
312
sua consolidação; primeiro, desenvolvendo pesquisas teórico-
experimentais na cidade de Kharkov e; depois, com o fim da União
Soviética, em toda a república da Ucrânia. Junto com Elkonin e de
Davidov, V. V. Repkin foi o teórico e líder mais importante dessa
concepção: participou ativamente da criação, do fortalecimento e
consolidação do grupo de Kharkov e realizou aportes significativos no
campo da didática da língua russa e, principalmente, da teoria e da prática
da Atividade de Estudo.
A dissertação de mestrado surgiu da carência de pesquisas,
sobretudo brasileiras, destinadas à análise do pensamento psicológico,
pedagógico e didático de Repkin e suas possíveis contribuições para o
desenvolvimento da teoria da Atividade de Estudo em suas diferentes
vertentes. Repkin, a partir de 1963, assumiu a implementação de uma
proposta de aprendizagem desenvolvimental, para o qual realizou uma
série de experimentos buscando compreender o princípio da atividade e,
em colaboração com outros estudiosos da didática desenvolvimental,
elaborar uma teoria psicológica que fundamentasse o processo de estudo,
os tipos, a estrutura e o conteúdo desse tipo específico de atividade
humana. Ele entendia que “o estudo dessa atividade tem importância não
apenas científica, mas também, e sobretudo, [...] prática e aplicada”
(REPKIN, 2014, p. 86).
Os trabalhos realizados por Repkin alcançariam importância
científica, prática e aplicada, tal como indicada no trecho acima? Em que
consistiria, afinal, a contribuição desse ucraniano, colaborar de Davidov e
de Elkonin, para os rumos da teoria da Atividade de Estudo? Repkin
traria de fato contribuições importantes a esta já famosa teoria? Os
estudos recentes de Puentes e Longarezi (2020) projetam alguma luz sobre
esse problema ao identificarem a Atividade de Estudo como um sistema
complexo: formado por estudos dotados de uma matriz teórica comum,
mas com pontos de vista divergentes sobre diferentes questões.
Compreender esse sistema, por isso, passa tanto pelo estudo daquilo que
há de comum nos autores, quanto o que cada um, individualmente,
agregou à teoria. Por isso mesmo, segundo Puentes e Longarezi (2020, p.
224-225), “uma visão mais integral, contemporânea e dialética sobre o
sujeito, a atividade de estudo, a aprendizagem e o desenvolvimento
313
passam, necessariamente, pelo regaste da obra, do pensamento e da
projeção de autores, tais como, V. V. Repkin [...]”.
A nossa hipótese é a de que Repkin teria trazido contribuições
importantes à elaboração da Atividade de Estudo, podendo ser
considerado um dos principais responsáveis pela sua inserção e
consolidação nas escolas de massa. As suas obras monográficas relativas à
Atividade de Estudo, embora importantes, foram menos teóricas. Ele
escreveu mais de quarenta livros didáticos de língua russa, de orientações
metodológicas e dicionários e atuou na formação de professores
(PUENTES; LONGAREZI, 2020, p. 225). Além dessa vasta experiência
didática, o fato de Repkin fundar e coordenar, durante mais de vinte anos,
o grupo de pesquisa de Kharkov, dá provas suficientes da sua importante
atuação como didata e psicólogo, fazendo-nos esperar dele mais do que
uma contribuição marginal ao sistema.
O objetivo geral do presente capítulo é apresentar os resultados
mais importantes da análise realizada sobre o progresso teórico-
metodológico do pensamento e da obra de Repkin em relação à Teoria da
Atividade de Estudo, a partir da avaliação das contribuições do autor para
o desenvolvimento da teoria com foco nos seguintes aspectos: a) objetivo
da Atividade de Estudo, b) conceito de Atividade de Estudo, c) conteúdo
da Atividade de Estudo e, d) estrutura da Atividade de Estudo.
Desenvolvimento
110Apenas um único texto de V. V. Repkin tinha sido publicado no país, até o ano de
2018, a saber, REPKIN, V.V. Ensino desenvolvente e atividade de estudo. Ensino em
Revista, Uberlândia, v. 21, n. 1, p. 85-99, jan./jun. 2014.
314
(manuscritos, relatórios sobre trabalhos de pesquisa, relatórios e discursos
em congressos e conferências, palestras para alunos, professores e o
público em geral); em terceiro, que a maior parte de seus trabalhos
publicados estão relacionados com livros didáticos, orientações
metodológicas e dicionários para a aprendizagem de língua russa; em
quarto, que sua produção intelectual e acadêmica publicada está,
principalmente, em russo e ucraniano, com pouquíssimo vínculo
linguístico com os idiomas mais comuns na América Latina; em quinto
lugar, que algumas obras russas traduzidas para o espanhol tenham
sofrido cortes indevidos e inexplicáveis de partes importantes
relacionados com suas pesquisas e publicações (PUENTES; AMORIM;
CARDOSOS, 2017; PUENTES; CARDOSO; AMORIM, 2018, 2019).
Porém, a contribuição de V. V. Repkin foi significativa no campo
da teoria e da prática da aprendizagem desenvolvimental, assim como,
para o fortalecimento e consolidação do grupo de Kharkov, do qual foi
líder durante décadas (PUENTES; AMORIM; CARDOSOS, 2017;
PUENTES; CARDOSO; AMORIM 2018, 2019). Além disso, estabeleceu
novos grupos e laboratórios em outras repúblicas soviéticas, bem como
ajudou V. v. Davidov a fundar a Associação Internacional de
Aprendizagem Desenvolvimental, da qual sempre foi se vice-presidente
(PUENTES; CARDOSO; AMORIM, 2019).
A prática da Aprendizagem Desenvolvimental e,
consequentemente, da Atividade de Estudo, teve autorização para ser
aplicada nas escolas da Ucrânia e de outros países vizinhos há mais de
vinte anos. Foi vivendo essa realidade que V. V. Repkin e seus
colaboradores puderam fazer algumas confirmações sobre o sistema,
tanto em relação a sua eficácia quanto às dificuldades associadas à sua
implementação. Essas dificuldades estavam relacionadas com “várias
versões de livros didáticos de aprendizagem desenvolvimental [...] cada
uma das quais alegou ter sua própria interpretação especial do sistema”
(REPKIN; REPKINA, 2019b, p. 27).
Repkin considera que essas diferentes interpretações da teoria e da
prática da Aprendizagem Desenvolvimental agravaram o avanço,
principalmente, de sua prática. Assim, propõe em suas pesquisas terminar
o que foi iniciado, sobretudo, por Davidov “e chegar a uma conclusão
lógica, por meio da construção de um modelo teórico coerente e
315
consistente” (REPKIN; REPKINA, 2019b, p. 27). As partes a seguir
analisam as possíveis contribuições do Repkin em relação a aspectos
específicos da Teoria da Atividade de Estudo
316
Repkin e Repkina (2019b) não desconsideram as atividades
reprodutivas em suas reflexões, porém, compreendem que o aspecto
psicológico da Atividade de Estudo se evidencia melhor e se aprende mais
facilmente apreendidos naquelas atividades criativas. A criatividade, eles
observam, é mais um produto das habilidades e necessidades do
indivíduo, do que de certos conhecimentos elementares. Levando em
conta que o principal objetivo da Atividade de Estudo é “preparar os
alunos para a participação em atividades criativas” (REPKIN; REPKINA,
2019b, p. 34), o aspecto psicológico deve ser o foco.
Sendo assim, o objetivo da Atividade de Estudo é desenvolver
nos alunos suas próprias necessidades e habilidades, de modo que a
aprendizagem nunca acontece descolada do desenvolvimento. Para a
psicologia e a pedagogia tradicionais a aprendizagem e o desenvolvimento
eram considerados “processos diferentes, embora intimamente
relacionados” (REPKIN; REPKINA, 2019b, p. 34). Porém, segundo
Repkin e Repkina (2019b, p. 34), o processo de aprendizagem se funde
com o do desenvolvimento, quando a experiência cultural e histórica, em
vez de ser simplesmente transmitida, é recriada pelo aluno em parceria
com o professor. Além disso, Repkin (1977[2019d], p. 350) salienta “que a
Atividade de Estudo surge apenas no âmbito de um tipo especial de troca
de atividades que se desenvolve como uma solução conjunta de tarefas
recebidas pelo aluno com base nas generalizações conceituais feitas pelo
professor.”
A grande questão estava “no ‘que’ e em ‘como’ deve ser
desenvolvido o processo de aprendizagem” (REPKIN; REPKINA,
2019b, p. 34) e a resposta para ela vinha sendo formulada desde o início
das pesquisas soviéticas sobre o objetivo da Atividade de Estudo.
Os primeiros experimentos de D. B. Elkonin e V. V. Davidov
buscaram enfrentar os problemas causados pelo ensino tradicional no
desenvolvimento dos modos de ação dos alunos das séries iniciais do nível
fundamental, particularmente no caso do pensamento teórico. Para
Elkonin (1989[2019b], p. 162), “[a] Atividade de Estudo tem como
conteúdo aprender modos generalizados de ação no mundo dos conceitos
científicos”. Sendo assim, o êxito da Atividade de Estudo está na
capacidade do aluno de adquirir o modo generalizado de ação, focando
em certo conceito geral e não em modos de ação com base em conceitos
317
empíricos ou específicos. Tanto isso é certo que Repkin (1977[2019d], p.
346) notou que a “característica do conteúdo objetivo da Atividade de
Estudo carece de uma precisão que consiste em que a meta da Atividade
de Estudo” seja “a assimilação não dos modos generalizados de ação, mas
apenas daquelas que foram generalizadas na forma de conhecimento
científico, em particular, na forma de conceito.” Sendo assim, foi
realizada um experimento com crianças das séries iniciais do nível
fundamental com a intensão de desenvolver esse tipo particular de
pensamento com base na ideia de A. N. Leontiev, que nivelava o
desenvolvimento com assimilação.
Porém, segundo Repkin e Repkina (2019b, p. 35), a assimilação
dos conceitos teóricos, propostos no experimento, não levaram os alunos
a desenvolverem formas elementares do pensamento teórico. Segundo
eles, a razão disso não acontecer estava na ineficácia no desenvolvimento
desses conceitos para crianças das séries iniciais do nível fundamental.
Nas palavras de Repkin e Repkina (2019b, p. 35):
318
Como se pode notar, a interpretação sobre o objetivo da
Atividade de Estudo, feita por Repkin e a sua equipe de Kharkov, difere-
se um pouco do grupo de Moscou liderado por Davidov. Davidov (1996)
concordava que o objetivo principal da Atividade de Estudo era o
desenvolvimento do aluno como sujeito da atividade, porém para ele o
foco estava no desenvolvimento do pensamento teórico. Para Repkin, por
sua vez, o objetivo principal era tornar o aluno sujeito “da ação
transformadora”, dessa forma o “seu desenvolvimento como
personalidade é uma continuação desse processo, realizado principalmente
fora da escola” (REPKIN; REPKINA, 2019b, p.39).
319
dialético-materialista da psique e da atividade (Rubinstein, Leontiev), a
teoria psicológica da atividade (A. N. Leontiev) e a teoria da formação por
etapas das ações mentais e tipos de aprendizagem (P. Ya. Galperin, N. F.
Talizina e outros). Seguindo essa linha, Repkin reconstrói os passos dados
na direção do conceito da teoria da Atividade de Estudo, permitindo-lhe
avançar na elaboração de uma posição própria. Em seu artigo O conceito de
Atividade de Estudo, publicado pela primeira vez, em 1976, na revista Vestik
da Universidade de Kharkov, ele apresenta o seguinte problema da
Atividade de Estudo: “[n]a maioria das vezes, ela é substituída pelo
conceito de ensino” (REPKIN, 1976[2019b], p. 313).
Segundo ele, a aprendizagem vinha sendo considerada apenas
como “um tipo de atividade” da pessoa, isto é, como uma forma de
desempenho comparável às outras formas de desempenho individuais
típicas, podendo ser explicada a partir simplesmente das leis da formação
dos reflexos condicionados, ou como um processo psíquico com seus
mecanismos nervosos correspondentes. Repkin (1976[2019b],) observa
que, assim entendido, o mecanismo da aprendizagem nivelaria a atividade
da pessoa àquela do animal. Na condição de um tipo de desempenho
qualquer, a aprendizagem se resumiria ao rebaixamento do estado de
incerteza do sujeito e à elaboração de programas comportamentais de
tomada de decisão. Deste modo, ainda que a ideia de aprendizagem
continuasse a valer no contexto escolar e educacional, em se tratando do
indivíduo, o que na prática ocorre é a pura e simples “assimilação”
(REPKIN, 1976[2019b], p. 314).
Repkin entendia a aprendizagem como uma forma de atividade
“específica”, distinta das demais formas de desempenho do indivíduo. O
mecanismo por detrás da aprendizagem, propriamente dita, estaria muito
além daquele do condicionamento a partir de reflexos. Para ele, em vez
disso, a aprendizagem era uma atividade, principalmente, de “assimilação
da experiência histórico-social” (REPKIN, 1976[2019b], p. 314). Esse é o
aspecto que levou a teoria da Atividade de Estudo a um outro nível do seu
desenvolvimento destacando-a das demais teorias do sistema. Para
Repkin, era preciso repensar o lugar do conceito de assimilação no interior
da teoria:
320
Dificilmente pode-se duvidar que o processo de assimilação dos
conhecimentos, das habilidades e dos hábitos é a característica
mais importante da Atividade de Estudo. Contudo, é tão certo que
a análise dessa atividade como uma forma especial de desempenho social
do sujeito não pode ser exaurida mesmo pela mais minuciosa análise
do processo de assimilação, que é um componente e um resultado
de qualquer atividade da pessoa. Ademais, a construção de uma
teoria psicológica da assimilação pressupõe em última instância
uma análise da atividade em cujo âmbito ela é posta em prática. A
identificação do conceito de Atividade de Estudo com conceito de
assimilação é, assim, não tanto a solução de um problema teórico
complexo, quanto uma tentativa peculiar de contornar esse
problema (REPKIN,1976[2019b], p. 314 e 315).
321
[...] a necessidade social a qual se busca satisfazer com a Atividade
de Estudo, consiste não na transmissão de conhecimentos,
habilidades e hábitos, em geral, para as novas gerações, e sim em
provê-las com os conhecimentos científicos como premissa universal
para se dominar os diferentes modos de atividade de trabalho.
322
indivíduo, ela, desde o início, intervém como uma das suas funções
sociais mais importantes.
323
parceiro do professor. [...] deixa de ser escravo dos acontecimentos e
torna-se criador de sua própria vida”.
324
objetivo e pela tarefa que estão solucionando. Segundo Repkin
(1997[2019f], p. 375), “[a] tarefa é o que diferencia uma atividade da outra,
pois cada uma tem suas tarefas específicas”. Como já vimos, a
particularidade da Atividade de Estudo é que seu objetivo e o seu
resultado não têm como foco a transformação do objeto do estudo, mas a
mudança do indivíduo como sujeito da ação. Por isso mesmo, se distingue
das atividades cujo propósito é obter resultados externos, em vez disso,
“deve ser entendida como uma atividade para a autotransformação do
sujeito [...] a mudança de si mesmo como sujeito da atividade” (REPKIN,
1997[2019f], p. 376).
A compreensão do conteúdo objetivo da Atividade de Estudo
exige que essa atividade seja considerada, primeiro, pelo ponto de vista da
assimilação dos modos generalizados de ação e, em seguida, pelo prisma
da aquisição dos conhecimentos científicos, que dão a base para a
assimilação daqueles modos de ação. Para que o aluno consiga se orientar
de maneira autônoma “nas propriedades do conteúdo, só é possível
quando essas são destacadas como as ‘unidades’ estruturais do próprio
conteúdo e sua aprendizagem se aproxima o máximo possível do
conhecimento científico atual” (REPKIN, 1968[2019a], p. 303). Sobre
esse aspecto, Repkin concorda com Davidov (1972, p. 73), para quem o
objeto da Atividade de Estudo são “os conceitos científicos, as leis da
ciência e os modos generalizados sustentados nessas”. Repkin considera a
existência de diversos dinamismos atuantes no processo de estudo,
contudo, orientando-se conforme Zankov (1968), o dinamismo que se
impõe como Atividade de Estudo é a refração subjetiva da tarefa de
estudo.
Ignorar isso, como fizeram outros didatas, representaria adotar
uma perspectiva antipsicológica, incapaz de assimilar o fenômeno
complexo da aprendizagem ao deixar em segundo plano, como uma
questão sem importância, os aspectos relativos ao sujeito da Atividade de
Estudo: “como seu conteúdo objetivamente dado se transforma em
motivos e objetivos específicos do sujeito”; o problema do “entendimento
dos meios e modos pelos quais esse sujeito realiza suas intenções”; como
o sujeito “concretiza os objetivos e tarefas de estudo sancionados pela
sociedade”; e o que se perde com isso principalmente é a capacidade de
325
compreender o “estudo como um processo de formação da personalidade
do homem” (REPKIN, 1976[2019b], p. 320).
Uma investigação psicológica da Atividade de Estudo é assim
fundamental, mas, como afirma Davidov (1977[2019d], p. 281), “até o
momento, as características psicológicas do sujeito foram estudadas muito
pouco, uma vez que a principal atenção foi dada à estrutura da própria
Atividade de Estudo, à natureza da tarefa de estudo, às ações de estudo e
às suas manifestações em disciplinas específicas”. Isso ficou ainda mais
claro quando Elkonin e Davidov (1966) realizaram uma pesquisa com as
séries iniciais do ensino fundamental, cujo objetivo era o desenvolvimento
do pensamento teórico dos estudantes. Ao final do experimento esse
desenvolvimento não se verificou, levando à conclusão de que
“desenvolver o pensamento ignorando a lógica do desenvolvimento do
aluno como sujeito da aprendizagem é simplesmente impossível”
(REPKIN; REPKINA, 2019b, p. 35).
Repkin considera que a autotransformação da pessoa, como
caraterística da Atividade de Estudo, não se dá sem que se tenha
formado antes o sujeito da atividade. A história do desenvolvimento
do sujeito, “o processo de maturação no sujeito dos diferentes tipos e
formas da atividade”, antecede a atividade de autotransformação e
outras atividades da pessoa, revelando-se, também por isso, uma
condição necessária para o desenvolvimento do intelecto, “que está
incluído na atividade e assegura a sua execução” (REPKIN,
1997[2019f], p. 376). A ideia do sujeito está, portanto, intimamente
ligada à ideia de atividade. Repkin (1997[2019f], p. 377) definiu o
sujeito como sendo “fonte de atividade, [...] modo de sua existência e,
em nenhuma outra forma, exceto na atividade, ele existe”. Viu,
portanto, o sujeito como a forma material da existência potencial da
atividade. Nessa perspectiva, o professor sai do lugar de transmissor
do conhecimento e assume a tarefa de ajudar o aluno a ser um
professor de si mesmo.
Na escola podemos confirmar que todos os alunos estão
estudando, porém, não é possível afirmar que todos estão realizando a
Atividade de Estudo. Ela, como insistimos, só acontece quando o aluno
está na condição de sujeito da atividade, isto é, quando “atua
conscientemente e com responsabilidade, [...] livremente, quando [...] faz
326
algo não porque o professor ordenou, mas porque é necessário para ele”
(REPKIN, 1997[2019f], p. 378).
Isso deixa claro aqui que a Atividade de Estudo não é meramente
“estudar”. Repkin (1997[2019f], p. 378-381) sustentou essa diferença
enunciando distintos níveis de estudo, que vão desde o nível das
operações até aos mais complexos. Sempre que o estudo é executado no
nível das operações, o aluno apenas faz o que o professor ordena. Nesse
caso, a aprendizagem é programada. Nela, o conteúdo é fragmentado em
pequenas partes de modo a auxiliar o estudante a não cometer erros
durante a realização da atividade. Além disso, quando ocorre algum
equívoco, o professor se prontifica a ajudá-lo fracionando ainda mais o
conteúdo. A participação da criança nesse nível de estudo está
condicionada ao comando do professor; ele se limita, assim, à mera
repetição da resolução, comportando-se à semelhança de um animal
domesticado. Segundo Repkin (1997[2019f], p. 379), está ausente ali “o
indicador mais importante da Atividade de Estudo – a criatividade”,
componente que, para ele, define o nível mais elevado e complexo da
atividade, que só ocorre sob o pressuposto do aluno enquanto sujeito
ativo.
O caráter “inventivo” e “criativo” da atividade humana emerge,
justamente, quando a criança descobre por si só os meios para satisfazer
suas necessidades. Repkin elaborou uma periodização das leis do
desenvolvimento do sujeito a partir da lógica das suas necessidades. O
recém-nascido humano depende de um adulto para satisfazer as suas
necessidades. Nessa relação de dependência, o primeiro sinal da
subjetividade acontece quando, por meio da comunicação, o adulto
satisfaz a necessidade do bebê, por exemplo, quando a criança chora e só
de a mãe chegar perto e curvar-se ela se acalma. Logo depois a criança
começa a ampliar essa comunicação, interagindo também com os objetos,
formando assim o triângulo “criança-adulto-objeto”. Esse novo período
do desenvolvimento influencia fortemente a criança, que se torna, enfim,
“sujeito em relação aos objetos que a rodeia, pois eles exigem operações”
(REPKIN, 1997[2019f], p. 379-380).
O próximo período do desenvolvimento do sujeito acontece entre
o segundo e o terceiro ano de vida e é marcado pelo que chamamos de
egocentrismo. É nessa fase que a criança sente, de fato, a necessidade de
327
ser um sujeito, pois ela se vê ali, pela primeira vez, como tal. Daí em
diante, e com a expansão do campo de ação da subjetividade, a criança
chega à fase da brincadeira, em que ele realiza mais do que a simples
manipulação dos objetos, permitindo-lhe “o domínio das relações
humanas de forma operacional condicionada” (REPKIN, 1997[2019f], p.
380). Para Repkin a brincadeira é considerada uma etapa essencial do
desenvolvimento, porque nela a criança aumenta “poderosamente a
subjetividade”. Por isso, um erro das escolas de educação infantil, ainda
hoje, é acreditar poder desenvolver o intelecto das crianças ensinando-as a
ler. Ignoram, assim, a particularidade da brincadeira, sua vocação para
desenvolver a criatividade nas crianças dessa idade, pois, ao brincar, elas
assumem papéis e aceitam as regras próprias da brincadeira, executando-as
imaginariamente.
É na fase da pré-escola que o desenvolvimento das necessidades
se intensifica e a criança se auto-realiza, sentindo-se sujeito. Surge, então, a
maior preocupação da aprendizagem desenvolvimental: como realizar o
ingresso da criança nas séries iniciais do nível fundamental. Como
conservar o desenvolvimento da subjetividade sem interrupção? Quais
padrões culturais deverão ser desenvolvidos agora nas crianças? Para
responder a isso, o processo de aprendizagem deve ser organizado com a
participação da criança, de modo que a assimilação tenha caráter de
atividade (REPKIN, 1997[2019f], p. 380).
O conteúdo da Atividade de Estudo pode assim variar
significativamente. Davidov considerava que o conteúdo principal da
Atividade de Estudo era a introdução dos conceitos teóricos e,
consequentemente, o desenvolvimento do pensamento teórico. Por meio
do conceito de “modo generalizado da ação”, que refletia uma ideia
precisa do papel do conhecimento teórico no desenvolvimento da psique,
Davidov pretendia justificar o uso dos conceitos teóricos desde o início da
escolaridade. Repkin e Repkina (2019b, p. 42-43) discordavam, em parte,
da posição de Davidov. Consideravam ser mais correto falar sobre
generalização como um modo de ação, no qual a base objetiva de todo
um gênero de modos de um mesmo tipo é generalizada no conceito. Para
eles, “nem todo conceito científico resume as bases substantivas das
ações” e, assim, “a função mais importante dos conceitos científicos é
fixar a essência de um sistema particular e as leis de seu funcionamento,
328
desenvolvimento e mudança” (REPKIN; REPKINA, 2019b, p. 43). Isso
foi observado nos primeiros experimentos implementados nos programas
de “língua russa, matemática, física, leitura, os quais no decorrer de mais
de 10 anos vêm sendo praticados nas classes iniciais da escola n. 17 da
cidade de Kharkov.” (REPKIN, 1978[2019e], p. 354).
Nesses programas, o conteúdo foi desenvolvido a partir de
complicações próprias do russo e da matemática, como, por exemplo, a
dificuldade de escolher uma letra russa para denotar um som de vogal.
Para enfrentá-las, primeiro os alunos dominaram o conceito, podendo
começar “com uma conversa introdutória, durante a qual foram
explicados, aos alunos, além do conteúdo da tarefa, os requisitos para sua
solução e o sistema de codificação” (REPKIN, 1968[2019a], p. 305).
Depois, definiram os modos generalizados de ação, isso foi percebido em
um experimento em que aquelas “tarefas estabelecias na fase teórica
motivaram as atividades dos sujeitos, dando-lhes uma orientação cognitiva
[...]. O resultado dessa etapa foi a identificação total da base orientadora
do sistema de ações que garantem a solução da tarefa original e a
formação [...] de todos os componentes desse sistema” (REPKIN,
1968[2019a], p. 305). A aprendizagem foi construída, em seguida, com
base na definição concreta desse modo generalizado. No caso da
aprendizagem de matemática, foi proposto aos alunos, de início, o
conceito de número, relacionando tamanho e medida. Com base nesse
conceito, os alunos dominaram o sistema numérico. A noção de número
define o modo generalizado das operações matemáticas. A aprendizagem
se deu, depois, com a definição concreta desse modo generalizado
aplicado a cada uma das quatro operações. O cumprimento dessas ações,
segundo Repkin e Repkina (2019b, p. 45):
329
realizadas pelo aluno não para obter resultados práticos, mas para
expandir suas capacidades como sujeitos.
330
igualmente parciais. Mas, essas “metas parciais” são distinguidas por
Leontiev (1972b) da “meta global” da atividade que para Repkin
(1977[2019d], p. 350) determina os modos de solução de todas as tarefas
parciais em relação a esse sistema”. A característica principal dessa “meta
global” é o fato de estabelecer um “motivo consciente” e pôr em curso,
assim, uma ação consciente, sendo então definida como o “motivo-meta”.
A atividade pensada a partir do seu motivo-meta é o que define, para
Repkin, a unidade estrutural da atividade:
331
1976[2019c], p. 324). Deste modo, a atividade até se realiza, mas não na
forma de uma autêntica Atividade de Estudo. Para ser uma aprendizagem
voltada para o autodesenvolvimento ela deve ter como foco desenvolver
no aluno “o interesse pelo conteúdo dos conhecimentos assimilados”
(MATVEEVA; REPKIN; SKOTARENKO, 1975[2019], p. 332).
Para enfrentar esse difícil problema, Repkin estabelece duas
condições necessárias para a aceitação da meta pelo aluno. Em primeiro
lugar, o “objeto deve existir para o sujeito” (REPKIN, 1976[2019c], p.
325), isto é, deve ser colocado em evidência, como um objeto à parte,
conhecido distintamente pelo sujeito. O conceito de rio, por exemplo,
como algo dotado de nascente, água corrente e margens, enquanto tal, o
distingue do mar, das represas etc. Segundo Repkin (1976[2019c], p. 325),
“[n]o que diz respeito à Atividade de Estudo isso quer dizer que a sua
meta específica não pode ser definida (aceita) adequadamente se para ela
não existem conceitos teóricos como uma forma especial de generalização
dos modos de atividade cognitiva e prática”.
Outra condição para a aceitação do motivo-meta é que aquele
conteúdo teórico se vincule às necessidades presentes no sujeito, ou seja,
ele precisa, de algum modo, já ter formulado para si a necessidade daquele
tipo específico de objeto. Levando-se em conta que o objeto próprio da
Atividade de Estudo é o conhecimento teórico, “a aceitação da meta de
estudo, pelo sujeito, pode ser levada a cabo somente se este tiver uma
necessidade [...] de conhecimentos teóricos, necessidade esta que se revela
na forma de interesses teórico-cognitivos” (REPKIN, 1976[2019c], p.
325), o que só se verifica nas etapas superiores do desenvolvimento.
O encontro do “interesse teórico-cognitivo” com o “objeto a ele
correspondente”, isto é, a objetivação do interesse, indica para Repkin
(1976[2019c], p. 325) “o momento de partida, o elo inicial no ato global
da Atividade de Estudo”. Como explicou Puentes (2019b, p. 70), é o
interesse provocado pelo conteúdo o que determina o motivo que leva a
criança a atuar no estudo como um sujeito.
Resolvida a questão da aceitação da meta, o passo seguinte é
compreender o “sistema de ações” que asseguram a sua real obtenção.
Cabe a ele correlacionar as ações a serem executadas e orientar o ato
global da Atividade de Estudo em vista do seu motivo-meta final, que é “a
assimilação de um conceito (ou de um modo de ação)” (REPKIN,
332
1976[2019c], p. 326). Nesse sentido, a meta de estudo é a assimilação dos
modos de obtenção dos conceitos, ou das condições e leis da origem dos
conceitos, o que requer o desmembramento da tarefa de estudo em uma
série de tarefas auxiliares que pressupõem os modos de alcançar todo um
sistema de metas intermediárias.
No processo de assimilação do conteúdo do conceito ou do modo
de ação, o objeto estudado passa por uma transformação, tornando-se,
primeiro, em um conjunto de relações teóricas, “fundamento geral da
solução de uma série de tarefas cognitivas e práticas” (REPKIN,
1976[2019c], p. 326). A partir daí o próximo passo é a construção do
“modelo material”, de uma espécie de sinalizador que demarca uma
relação específica, permitindo o estudo das propriedades e a descoberta
das condições e formas de solução de uma certa tarefa cognitiva. Esse
modo de ação, por fim, é concretizado nos vários tipos de tarefa do
mesmo gênero. Repkin (1997[2019f], p. 389) exemplifica:
333
suas ações pelo sujeito. Assim, o foco do controle não deve estar apenas
no resultado, mas nos modos de sua obtenção, portanto, “o controle é
realizado, sobretudo, com base nos resultados presumíveis das ações de
estudo, executadas apenas no plano mental, isto é, adquire um caráter de
controle de preferência” (REPKIN, 1976[2019c], p. 327).
Associada à ação de controle está a de avaliação, que, segundo
Repkin, tem a função de despertar no aluno o interesse pelo resultado do
seu motivo-meta final, se o produto da Atividade de Estudo foi conforme
ou não ao motivo-meta. Repkin (1976 [2019c], p. 327) ressalta, porém,
que não se trata ali de “uma constatação formal”, mas sim de “uma análise
substancial, qualitativa dos resultados da Atividade de Estudo e a
confrontação com a sua meta”. Se o resultado e a meta coincidirem, será
um sinal de que a tarefa de estudo de fato se concluiu, deixando o aluno
pronto para uma nova tarefa, mas, se isso não aconteceu, sentira-se
estimulado a voltar às ações de estudo e seu controle. Segundo Repkin e
Repkina (2007[2019a], p. 429):
334
A definição preliminar do sistema de metas intermediárias e das
formas de seu alcance;
A execução do sistema de ações de estudo próprias, cujo lugar
central é ocupado pela transformação específica do objeto e a
construção de seu modelo;
As ações de controle;
As ações de avaliação.
Considerações Finais
335
A teoria da aprendizagem desenvolvimental surgiu na ex-União Soviética
no final da década de 1950, como resultado de diferentes tendências que
se constituíram ao longo de mais de cinquenta anos de construção de um
sistema de aprendizagem e de educação pública daquele país.
O principal objetivo da aprendizagem desenvolvimental é
promover uma educação apta a impulsionar ao máximo o
desenvolvimento psíquico e subjetivo dos estudantes, pondo em prática a
premissa de que “a única boa aprendizagem é a que se adianta ao
desenvolvimento” (VIGOTSKII, 2010). Assim sendo, a aprendizagem
deixa de ser um fim em si mesmo, algo que a escola persegue como o seu
objetivo próprio, e passa a ser meio, condição para que se alcance o fim
educacional efetivo: o desenvolvimento da criança. Para tal, a participação
e a forma como os professores intencionalmente dão à criança acesso a
aprendizagem devem estar orientados para esse processo. Deste modo, a
aprendizagem desenvolvimental deve ocorrer na relação professor-aluno,
sendo tarefa fundamental do primeiro “ajudar o aluno a se ensinar a si
mesmo” (REPKIN, 1997[2019f], p. 377).
Neste contexto surgiu o sistema Elkonin-Davidov-Repkin,
responsável por uma parte significativa das contribuições no campo da
teoria da aprendizagem desenvolvimental a partir de um conjunto de
pesquisas teórico-experimentais realizadas por numerosos grupos de
trabalho espalhados por diferentes repúblicas e países. D. B. Elkonin foi o
idealizador desse sistema a partir de um conjunto de premissas: a) o
autodesenvolvimento contínuo é condição necessária para a existência do
homem; b) a atividade criativo-transformadora é a fonte do
autodesenvolvimento e; c) a ampliação do espaço para a criatividade, a
interação com outros sujeitos e o estudo dialógico é um meio
indispensável desse processo.
O sistema Elkonin-Davidov-Repkin tornou-se, na década de
1970, o sistema oficial alternativo do currículo escolar na Rússia, Ucrânia e
outras partes da União Soviética. Com a desintegração da União Soviética,
em 1991, o sistema enfrentou, talvez, o seu maior obstáculo, mas
sobreviveu. Em 1994, ganhou visibilidade internacional, com a criação da
Associação Internacional de Aprendizagem Desenvolvimental.
O sistema desenvolveu numerosas teorias, mas a Atividade de
Estudo foi sua teoria central. O termo Atividade de Estudo começou a ser
336
usado na psicologia soviética no final da década de 1950, associado ao
conceito de atividade utilizado na análise do problema do processo de
formação e desenvolvimento da psique e da consciência. Elkonin é
considerado o pai da teoria da Atividade de Estudo, pois definiu seu
conceito, conteúdo e estrutura. Com base nesse autor, passou-se a
entender mais claramente que o conteúdo da Atividade de Estudo
engloba, intimamente implicados, tanto a assimilação dos modos
generalizados de ação na esfera dos conceitos científicos, quanto as
mudanças qualitativas no desenvolvimento psíquico da criança.
V. V. Davidov também contribuiu significativamente para o
desenvolvimento do conceito, conteúdo e estrutura da teoria da Atividade
de Estudo. Investigou a formação dos conceitos científicos, os modos de
ação e o desenvolvimento do pensamento teórico em sentido geral.
Destaca-se, também, o seu estudo acerca das emoções, fundamentado na
estrutura da atividade desenvolvida por Leontiev, que enunciava que a
estrutura da Atividade de Estudo, por ser multidisciplinar, precisava
acrescentar mais um componente: o desejo. Porém, Davidov mesmo
afirmaria que ainda se sabe pouco, ou quase nada, sobre as emoções.
Contudo, o presente texto consegue evidenciar que V. V. Repkin
pode ser considerado a terceira mais importante figura do sistema
didático. Sua contribuição foi significativa tanto no campo da teoria, como
na prática da aprendizagem desenvolvimental, assim como para o
fortalecimento e consolidação do grupo de Kharkov, do qual foi líder
durante décadas. Seus aportes mais relevantes estão associados ao estudo
sobre o desenvolvimento da atividade criativa nos alunos, cujo foco não
era apenas o desenvolvimento do pensamento em si, mas a promoção do
desenvolvimento dos alunos como sujeitos da aprendizagem.
Como já foi dito no início e no decorrer deste trabalho, a
Atividade de Estudo é uma teoria aberta e em desenvolvimento,
requerendo ainda um aprofundamento teórico e, principalmente, o
desenvolvimento de sua prática. Fica aqui, como intenção para os nossos
próximos trabalhos, a necessidade de continuar aprimorando os estudos
iniciados, entre outros, por V. V. Repkin.
337
Referências
338
PUENTES, R. V.; CARDOSO, C. G. C.; 114 AMORIM, P. A. P. (orgs.).
Teoria da atividade de estudo: contribuições de D. B. Elkonin, V. V. Davidov
e V. V. Repkin. Curitiba: CRV; Uberlândia: EDUFU, 2019, p. 191-213.
339
(Orgs.). Ensino Desenvolvimental: vida, pensamento e obra dos
principais representantes russos. Livro I. Uberlândia. Edufu. 2013.
340
PUENTES, R. V. O Sistema Elkonin-Davidov-Repkin no contexto da
didática desenvolvimental da atividade (1958-2015). In: PUENTES, R. V.;
CARDOSO, C. G. C.; AMORIM, P. A. P. (Orgs.). Teoria da atividade de
estudo: contribuições de D. B. Elkonin, V. V. Davidov e V. V. Repkin.
Curitiba: CRV; Uberlândia: EDUFU, 2019b, p. 55-81.
341
didática desenvolvimental da atividade. In: PUENTES, Roberto Valdés;
LONGAREZI, Andréa Maturano (Orgs.). Ensino desenvolvimental: vida,
pensamento e obra dos principais representantes russos. Livro III. 1ed.
Jundiaí: Paco Editorial; Uberlândia: Edufu, 2019, v. 6, p. 287-325.
342
da atividade de estudo: contribuições de D. B. Elkonin, V. V. Davidov e V.
V. Repkin – livro I. Curitiba: CRV; Uberlândia: Edufu, 2019b, p. 313-322.
343
SOUZA, Leandro Montandon de Araújo. A unidade Personalidade-
Psique-Atividade no pensamento de S. L. Rubinstein: contribuições para o
campo educacional. UFU, Tese de Doutorado. Ano de obtenção: 2019.
344
Capítulo 11
Introdução
345
Figura 1 - Leonid Vladimirovich Zankov
113 “Ainda quando o trabalho elaborado em torno desse sistema tenha sido difundido
a partir da denominação “sistema Elkonin-Davidov” e que reconheçamos D. B.
Elkonin (1904-1984) e V. V. Davidov (1930-1998) como os precursores dessa
elaboração didática em Moscou, optamos por denomina-lo enquanto “sistema
Elkonin-Davidov-Repkin” por admitir, assim como V. V. Davidov também o fez, há
importante contribuição na Ucrânia, de V. V. Repkin (1927- ) para a edificação do
sistema” (LONGAREZI, 2019c, p. 3). Além disso, em estudo recente (PUENTES;
LONGAREZI, 2020a), já se demonstrou que não foi apenas V. V. Davidov que fez
tal reconhecimento; assim como se tem apresentado dados que corroboram a incluir
V. V. Repkin na nomenclatura do sistema.
114 Não há, especialmente no Brasil, um consenso sobre as produções de P. Ya.
346
didáticos desenvolvimentais soviéticos mais difundidos. Juntos edificaram
a Teoria da Obutchénie115 Desenvolvimental que tem uma história de mais
de sessenta anos (PUENTES; LONGAREZI, 2017b). Longe de qualquer
perspectiva homogeneizadora, os diferentes sistemas didáticos emergem
de um complexo trabalho experimental de grupos distintos de psicólogos,
filósofos, fisiólogos, pedagogos, metodólogos, didatas e professores, que
experimentaram modos particulares de educação desenvolvimental frente
às contraditórias interpretações das teses vigotskianas; o que evidencia
uma realidade controversa e díspar (LONGAREZI, 2019a, b, c; 2020a, b;
2021; PUENTES, 2017; PUENTES; LONGAREZI 2013; 2017a, b, c;
2018a, b; 2020a); contudo, altamente produtiva no campo da psicologia
histórico-cultural e da didática desenvolvimental.
O sistema Zankov parte da premissa central da obra
vigotskiana acerca da relação obutchénie-desenvolvimento: “[...] a única
boa obutchénie é a que se adianta ao desenvolvimento” (VYGOTSKY,
2005, p. 38, grifo do autor). Para L. S. Vigotski, apenas a correta
sistematização e organização da obutchénie ativa os processos de
desenvolvimento psicointelectuais humanos, isto é, somente a boa
347
obutchénie, corretamente organizada do ponto de vista didático e que
se adianta ao desenvolvimento, poderá gerá-lo.
348
ASBAHR, 2018; MELLO, 2015; SMOLKA, 2009; TOASSA, 2013;
LIBÂNEO; FREITAS, 2013; LIBÂNEO, 2004; ROSA, DAMAZIO,
2016; LONGAREZI 2019b, c; 2020a, b; 2021; LONGAREZI;
PUENTES, 2013, PUENTES; LONGAREZI, 2017a, b, c, d; 2018a, b;
2019; entre outros). No âmbito do presente trabalho, focaremos o olhar,
particularmente, para as contribuições do sistema zankoviano para a
Teoria da Obutchénie Desenvolvimental, com ênfase nas proposições que
emergem, particularmente, das obras de L. V. Zankov, no período de
1957-1977. Este recorte temporal justifica-se por corresponder aos
últimos 20 anos de vida do autor, nos quais dedicou, junto à sua equipe de
pesquisa, especial atenção às investigações no campo da obutchénie
desenvolvimental, e que resultaram nos alicerces teórico-metodológicos
do sistema. Este estudo se situa no contexto de várias pesquisas teóricas
(SOUZA, 2019; LONGAREZI; FRANCO, 2013; NASCIMENTO, 2014;
LONGAREZI, ARAÚJO, PIOTTO, MARCO, 2018; LONGAREZI;
PUENTES, 2020; PUENTES; LONGAREZI, 2020b; LOPES, 2020;
CARDOSO, 2020; AMORIM, 2020; FERREIRA, 2021; entre outros)
sobre o pensamento histórico-cultural no período soviético e pós-
soviético realizadas pelo Gepedi e compõe, com elas, uma perspectiva de
aprofundamento sobre a produção no escopo desse referencial.
As bases epistemológicas dos estudos de L. V. Zankov podem ser
remontadas às teses centrais de L. S. Vigotski, de quem foi aluno e
orientando; tendo portanto seus fundamentos na psicologia histórico-
cultural que surge, a partir de estudos e investigações de vários filósofos,
fisiólogos, filólogos e psicólogos soviéticos (S. L. Rubinstein, L. S.
Vigotski, G. D. Lukov, V. I. Asnin, A. V. Zaporozhets, P. I. Zinchenko,
L. I. Bozhovich, dentre outros); pós revolução russa de 1917
(LONGAREZI, 2019a), trazendo contribuições significativas acerca de
questões, entre outras, como a condição material e histórica do homem,
sua influência na formação da consciência, a relação entre pensamento e
linguagem e os processos de obutchénie - desenvolvimento humano
(PALANGANA, 2001; NÚNEZ, 2009).
Conforme destacado, a Teoria Histórico-cultural e a Obutchénie
Desenvolvimental não configuram uma construção teórica homogênea,
emergem do trabalho de pesquisadores e grupos de pesquisa que, mesmo
compartilhando de uma base epistemológica marxista, possuem variados
349
pontos de divergência nas questões teóricas e metodológicas que
investigam; assim como têm sinalizado estudos contemporâneos
realizados no Brasil (LONGAREZI, 2019b, 2020a, b; LONGAREZI;
SILVA, 2018; LONGAREZI; PUENTES, 2017; LONGAREZI;
FRANCO, 2013, 2015; PUENTES; LONGAREZI, 2013, 2017a, 2019;
PUENTES, 2017, 2018; PUENTES; AMORIN, CARDOSO;
MUSIYCHUK, 2016; PUENTES; AMORIN; CARDOSO, 2017, 2018).
Esses trabalhos identificaram pelo menos três correntes de
pensamento que surgem na perspectiva histórico-cultural: 1) “Teoria da
Atividade, representada por A.N. Leontiev, S. L. Rubinstein e os vários
grupos que produziram com eles” (LONGAREZI, 2019b, p. 01); 2)
“Teoria da Personalidade, elaborada pelos coletivos que trabalharam com L.
I. Bozhovich, N.G. Morozova, B.G. Ananiev, B.F. Lomov, L.S. Slavina e
L.I. Aidarova” (idem); e 3) “Teoria da Subjetividade, proposta pelos
psicólogos cubanos F. Gonzáles Rey e A. M. Martínez” (idem). Nesse
contexto heterogêneo, os sistemas didáticos Elkonin-Davido-Repkin e
Galperin-Talízinha emergem, em especial, da Teoria da Atividade
(LONGAREZI, 2020a; 2020b) e o sistema Zankov, por sua vez, se
orienta de modo mais direto às teses centrais de L. S. Vigotski.
Especialmente, a partir das últimas duas décadas, um grande esforço
tem sido realizado pelos pesquisadores brasileiros para a compreensão do
legado intelectual e metodológico dos sistemas desenvolvimentais. No Brasil,
com o recente avanço da pesquisa no enfoque histórico-cultural, são
encontrados trabalhos na área da didática que se apoiam nos aportes teórico-
metodológicos dos sistemas educacionais desenvolvimentais Elkonin-
Davidov-Repkin (LIBÂNEO, 2004; DAMAZIO; CARDOSO; SANTOS,
2014; AQUINO, 2015; AQUINO, CUNHA, 2015; PUENTES; 2017;
PUENTES, AMORIM, CARDOSO, 2017; entre outros) e Galperin-Talízina
(NÚNEZ; RAMALHO; ALBINO, 2013; ALVES; AQUINO, 2015;
AQUINO, CUNHA, 2015; ALVES; MENDOZA, 2015; NÚNEZ,
RAMALHO, 2017; RODRIGUES; FRANCO; BUÊNCIO, 2018; entre
outros). Entretanto, as especificidades do sistema zankoviano são pouco
conhecidas no país, especialmente, pelo restrito acesso às obras de L. V.
Zankov. Portanto, estudos sobre o pensamento e as proposições do autor
configuram uma importante contribuição para o campo da Didática
Desenvolvimental, no contexto brasileiro. Nesse sentido, unimos esforços
por meio do estudo dos princípios e orientações metodológicas zankovianas.
350
Objetivos, metodologia do trabalho e o prenúncio que orienta as
proposições de L. V. Zankov
351
Essas mudanças complexas nos processos neuropsíquicos nos
quais o progresso do desenvolvimento geral dos estudantes é
revelado, em certas condições de obutchénie, podem ser
corretamente entendidas apenas no contexto do conceito marxista-
leninista de desenvolvimento. A tarefa da pesquisa é revelar as
genuínas causas externas e internas do "auto-movimento" que
ocorre no desenvolvimento geral dos estudantes, a relação
específica entre eles, a natureza específica das contradições internas
(ЗАНКОВ, 1963, p. 22, tradução nossa).
352
Figura 2 - Aluno da escola 17 de Krasnogorsk vinculada ao Centro Científico-
metodológico Federal de Zankov - “Eu estudo no sistema L.V. Zankov”
353
O primeiro princípio, da obutchénie com um alto nível de dificuldade,
demanda uma complexificação do material didático previamente existente
na escola primária da URSS. Todavia, esse aumento de dificuldade e a
reestruturação do material não poderiam ser infinitos no sentido da
dificuldade, pois uma vez que o material se torna ininteligível, aquilo que
era positivo para o desenvolvimento converte-se em negativo, um peso
morto na consciência do escolar: “O material da obutchénie que é
inacessível ao entendimento só pode ser memorizado, e o cramming é um
feroz inimigo do desenvolvimento” (ЗАНКОВ, 1963, p. 43). Cramming é a
prática de trabalhar intensamente para absorver grandes volumes de
material informativo em curtos períodos de tempo, ou seja, a
memorização em detrimento da verdadeira assimilação dos conteúdos.
O processo de assimilação dos conteúdos e habilidades precisam
ser controlados. Apenas um controle sistemático, isto é, um
monitoramento constante por parte do professor, baseando-se no
resultado da assimilação, poderá indicar o grau correto da dificuldade da
obutchénie. Deve-se ter clareza que tal controle não pode ser realizado por
meio de notas ou marcas, mas uma definição precisa e diferenciada da
qualidade da assimilação dos conteúdos e habilidades por parte dos
estudantes (ЗАНКОВ, 1963; 1968). Vale ressaltar que a qualidade dessa
assimilação é considerada de demasiada importância para a aplicabilidade
desse princípio, uma vez que ele
354
de obutchénie, especifica-se a medida de dificuldade a ser aplicada a cada
aluno, e que se concretiza nos programas, nos manuais, nos métodos de
obutchénie e nos procedimentos didáticos.
355
o conhecimento da origem dos fenômenos, com suas conexões internas e
o processo de seu desenvolvimento podem ser incluídos na obutchénie do
ensino fundamental, em detrimento do foco nos aspectos externos dos
fenômenos.
Segundo o autor, a base para o estabelecimento desse princípio de
liderança do conhecimento teórico, no Ensino Fundamental, concentra-se
nas pesquisas de L. S. Vigotski e outros cientistas soviéticos que expõem
como o pensamento do escolar caminha de diversas maneiras, incluindo
do abstrato ao concreto. Todavia, o sistema experimental não defende a
formação pura do pensamento teórico nos estudantes. É necessário
reconhecer o papel do conhecimento empírico, uma vez que “O
conhecimento empírico é o ponto de arranque do complexo caminho que
conduz a abstração” (ZANKOV, 1984, p. 36, tradução nossa).
O pensamento teórico não se esgota em definições ou termos,
mas consiste na assimilação das dependências e leis que regem os
fenômenos, na compreensão mais profunda dos conceitos. Nas palavras
do próprio autor:
356
a solução dos problemas que surgem (ЗАНКОВ, 1963). O autor destaca a
importância da fala das crianças:
357
conhecimentos e habilidades, até certo ponto, torna-se um objeto de
consciência” (ЗАНКОВ, 1968, p. 41, tradução nossa).
L. V. Zankov (ЗАНКОВ, 1968), com base em S. V. Ivanov
(ИВАНОВ, 1947), destaca sete características da consciência dos
estudantes em aprendizagem: 1) a consciência do propósito e
objetivos da obutchénie, 2) o domínio consciente do material, 3) a
formação de maneira ativa dos conceitos, 4) o domínio consciente de
habilidades, 5) a consolidação consciente de conhecimentos e
habilidades, 6) a aplicação consciente na prática e 7) a consciência
dos resultados do trabalho desenvolvido.
O autor comenta reforça a importância da formação de uma visão
de mundo dialética e materialista, assim como o faz N. G. Kazansky
(КАЗАНСКИЙ, 1947). Para ele, o desenvolvimento da consciência da
aprendizagem inclui operações intelectuais, fundamentais, de analise,
comparação, sintetização, generalização e elaboração de conclusões. Sh. I.
Ganelin (ГАНЕЛИН, 1961) reforça a importância da consciência da
aprendizagem, atribuindo a ela o papel de proporcionar um profundo
conhecimento dos fatos, além da compreensão das conclusões e
generalizações. Alunos conscientes de sua aprendizagem podem expressar,
adequadamente, seus pensamentos em fala e usar o conhecimento
apreendido na solução de problemas práticos.
Nas lições de trabalho prático, por exemplo, esse princípio é
manifestado no fato de que, ao planejar a produção de um objeto, os
estudantes devem ter consciência da sequência e conexão interna das
operações necessárias, do passo-a-passo da operação e suas relações
com o objeto dado. Evidencia-se, portanto, a necessidade de um auto
monitoramento cuidadoso de todo o processo de trabalho
(ЗАНКОВ, 1968).
De maneira prática, a consciência da aprendizagem implica que o
aluno, ao organizar o processo de estudo, seja capaz de explicar a si
mesmo os fundamentos que sustentam a disposição do material, quais as
necessidades, portanto, de apreender cada elemento e explanar as causas
de erros ao assimila-los (ZANKOV, 1984).
Ao analisar os quatro princípios do sistema didático experimental,
L. V. Zankov (2017) afirma que todo o campo de ação para a
aplicabilidade dessa rede de princípios deriva de um outro princípio
(quinto e último): o trabalho do professor deve ser intencional e
sistemático para o desenvolvimento de toda a classe de estudantes, incluindo os mais
fracos.
358
O alto ideal do genuíno humanismo socialista, que distingue a
Terra dos Soviéticos, exige dar o máximo possível em educação e
desenvolvimento a todos, não apenas à elite. Este requisito
estende-se à escola soviética. Portanto, deve-se tomar cuidado para
assegurar a criação de um trabalho educacional que alcance o maior
desenvolvimento de todas as crianças em idade escolar, incluindo
os mais fracos (ЗАНКОВ, 1968, p. 42, tradução nossa).
359
sistema Zankov falhe em assegurar o desenvolvimento integral,
entretanto, é lacunar ao estabelecer princípios que priorizam um aspecto
do desenvolvimento, em detrimento de outros; fragilizando, na prática, o
alcance do objetivo, declaro por L. V. Zankov, de desenvolvimento
integral.
360
conteúdo. O surgimento das relações recíprocas, baseadas na ajuda
e no enriquecimento em experiência mútuas, cria a base para a
formação do coletivismo (ZANKOV, 1984, p. 76, grifo nosso,
tradução nossa).
361
No que tange à relação professor-aluno, propõe-se o
desenvolvimento de uma relação amigável:
362
pode ser julgado e a eficácia de sua assimilação” (НЕЧАЕВА; РОЩИНА,
2006, p. 47, tradução e destaque nossos).
O que vai assumir um lugar de fundamental importância, nesse
processo, é o manual ou material didático. Ele está elaborado de modo a
que o estudante possa, a partir do seu pensamento e trabalho intelectual,
chegar nos resultados das tarefas e conclusões possíveis.
363
desenvolvimento de suas habilidades, talentos, independência e iniciativa
(ЗАНКОВ, 1968); o que se apresenta como um sistema didático
alternativo no contexto soviético da época; em que a prioridade passa a
ser a atividade do estudante e não mais do professor.
364
A natureza processual da metodologia manifesta-se no fato de que,
no decorrer do domínio de um novo material, o conhecimento
adquirido anteriormente não permanece no mesmo nível, entra em
sistemas novos ou mais amplos de relações e, devido a isso,
progride. O processo - não é um lado quantitativo do material
educacional assimilado no processo de obutchénie, mas uma
característica qualitativa do método em si (НЕЧАЕВА;
РОЩИНА, 2006, p. 86, tradução nossa).
365
Analisadas as propriedades do sistema metodológico observamos
que os aspectos volitivo-emocionais são considerados em, pelo menos,
duas delas: na multilateralidade e nas colisões. Na primeira, por constituir-se
exatamente no objetivo de desenvolvimento integral dos estudantes e, na
segunda, por fazer erguer-se as contradições com que se deparam os
estudantes em situações em que divergem o que se apresentam a eles face
ao seu real desenvolvimento, levando à emergência de dificuldades para
sua solução. Em tais situações, surgem diversos tipos de emoções. Mas, os
aspetos emocionais e volitivos, tal como explicitados, aparecem como
impulsionares para a solução de tarefas cognitivas, portanto, submetidos a
elas.
Contudo, para L. V. Zankov, o trabalho metodológico,
principalmente demonstrado pelas áreas do conhecimento específicas
(aprendizagem da língua, das ciências exatas, biológicas etc.), precisa
incluir procedimentos que permitam destacar percepções pessoais,
sentimentos e imaginação sobre o conteúdo em estudo, o que é diferente
de relatar o próprio conteúdo; por isso os alunos são estimulados a se
expressarem
366
dar-lhe um sinônimo. Se assim o faz, ele estará desperdiçando uma
oportunidade de enriquecer o vocabulário do estudante, pois a palavra
desconhecida toma o mesmo significado do seu sinônimo e não se
adiciona um outro significado ao vocabulário do estudante. Lidar com
uma palavra desconhecida para os estudantes configura uma oportunidade
de enriquecer seu vocabulário se o professor explicar, com clareza, e
revelar suas peculiaridades em relação aos seus sinônimos. “A comparação
desempenha um papel substancial para evidenciar o significado da palavra
explicada em seu sentido específico e, ao mesmo tempo, delimitá-la com
relação ao sinônimo” (ZANKOV, 1984, p. 71, grifo do autor, tradução
nossa).
Em relação aos exercícios escritos, há uma diferença significativa
entre a metodologia tradicional e a metodologia experimental zankoviana.
Na primeira, quando se estuda um determinado tema, os alunos são
encorajados a responderem uma série de exercícios previamente
elaborados sobre o assunto. L. V. Zankov cita, como exemplo, o estudo
do “outono dourado” pelo terceiro ano. Para tanto, os professores
elaborariam uma lista de perguntas e tarefas para serem respondidas pelos
alunos, tais como: “vocês gostam do outono dourado? Como aparecem por
esses dias o bosque, o campo, o rio? Por que nos agrada em particular o
outono dourado?” (ZANKOV, 1984, p. 71, grifo do autor, tradução nossa).
Para o autor, quando se elabora previamente o conteúdo que deve conter
os exercícios, quando se prepara um plano, se limita a liberdade do aluno
para seus relatos.
Contrapondo-se à metodologia tradicional, no estudo de um tema
específico, incentiva os estudantes a se manifestarem livremente,
expressando suas opiniões, ideias e emoções. “Os estudantes das classes
experimentais nunca foram sobrecarregados por indicações sobre o que
deviam fazer ou se deviam escrever, exclusivamente, de um determinado
modo” (ZANKOV, 1984, p. 72, tradução nossa); em verdade, essa
metodologia considera que “O principal é que o escolar busque,
evidentemente, o procedimento adequado para a expressão de suas ideias
e sentimentos” (idem).
Esse recurso metodológico incentiva a imaginação, a liberdade e
as emoções das crianças, a busca na prática pedagógica de que a obutchénie
não seja tediosa e aborrecedora, mas desenvolva emoções positivas nas
crianças. E, nessa ocasião, não necessariamente submete-se esse
desenvolvimento à esfera apenas cognitiva.
Referente às atividades práticas, destaca-se a liberdade criadora em
que se coloca os estudantes. Segundo o autor, o aluno passa pelo mesmo
que um inventor ou construtor e, ao deparar-se com o resultado do seu
367
trabalho, experimenta a alegria de uma criação. Nesse sentido, as
atividades práticas são capazes de despertar nos alunos suas emoções, o
que é motivador da atividade docente e discente (ZANKOV, 1984). As
qualidades volitivas, inseparáveis das emoções, são também
potencializadas pelas atividades práticas, tais como apresentadas.
Para o alcance do objetivo proposto, os alunos precisam vencer os
obstáculos e dificuldades com que se deparam, e lidam com o êxito e o
fracasso dos esforços que empreendem e a conscientização acerca de cada
etapa de trabalho que precisam realizar para a concretização do todo.
Ademais, as atividades práticas são, igualmente, responsáveis pelo
desenvolvimento do autocontrole, devido a formação das capacidades de
auto análise e de previsibilidade das consequências da ação (ZANKOV,
1984).
368
Algumas considerações sobre o desenvolvimento integral com base
nos princípios e orientações metodológicas expressos na obra de
L. V. Zankov
369
multilateralidade, o caráter do processo, as colisões e a variabilidade. Em suma, os
métodos de obutchénie encontrados ao longo da obra zankoviana,
diferentemente do que encontramos nos princípios didáticos, mostram
uma preocupação para além do desenvolvimento cognitivo dos
estudantes. Assim, aproximam-se mais do objetivo geral do sistema de
desenvolvimento integral dos sujeitos.
Destaca-se o fato de que o desenvolvimento emotivo-volitivo
aparece, ao longo da obra, submetido, na maioria das vezes, ao
desenvolvimento cognitivo; isto se dá pela compreensão epistemológica
zankoviana acerca das emoções enquanto aquelas que impulsionam a
atividade de estudo. Isso é um dado que não podemos ignorar. No
entanto, mesmo que, a partir dessa concepção epistemológica, note-se
uma preponderância ao desenvolvimento cognitivo, o sistema Zankov
avança no sentido do desenvolvimento integral do sujeito, revelado pela
preocupação constante na relação entre a obutchénie e os aspectos
cognitivos, volitivos e emocionais no desenvolvimento de estudantes.
Referências
370
vida, pensamento e obra dos principais representantes russos. 1 ed.
Uberlândia: EDUFU, 2012, p. 196 – 220.
371
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atual ensino fundamental. In: In: LONGAREZI, A. M.; PUENTES, R. V.
(Orgs.). Fundamentos psicológicos e didáticos do ensino desenvolvimental.
Uberlândia: EDUFU, 2017, p. 225 – 242.
372
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C.; AMORIM, P. P. (Orgs.). Teoria da Atividade de Estudo: Contribuições de
D. B. Elkonin, V. V. Davidov e V. V. Repkin. Curitiba: CRV; Uberlândia:
Edufu, 2019b.
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(Orgs.). Ensino Desenvolvimental: vida, pensamento e obra dos principais
representantes russos. Livro I. Uberlândia. Edufu. 2013.
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Estudo e Sentido Pessoal: Uma revisão teórica. Obutchénie. Revista de
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http://www.seer.ufu.br/index.php/Obutchenie/issue/view/1448
377
geometria. Obutchénie: R. de Didat. e Psic. Pedag, v. 2, n. 1, p. 193-213,
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378
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edu.ru/zankov60/zankov.php Acesso em: 04 jun. 2018.
379
ЗАНКОВ, Л. В. (ZANKOV, L. V.) Развитие учащихся в процессе обучения
(I — II классы) (Desenvolvimento de escolares no processo de obutchénie)
(I – II Ano). Москва: издательство академии педагогичес, 1963.
380
Capítulo 12
[...] não queremos que todos os elementos [...] sejam novos. Tal
desejo seria absurdo. O novo sempre absorve até certo ponto e
transforma o valioso que está contido no antigo. (ЗАНКОВ,
1963, p. 34).
Introdução
381
campo educacional pelo acesso a uma parte restrita da produção desses
autores; o que, em certa medida, limitou a apreensão do processo de
ascensão do pensamento de L. S. Vigotski e A. N. Leontiev, assim como a
compreensão da complexa e ampla rede de pesquisa que se estabeleceu à
época, a partir da qual a psicologia pedagógica marxista soviética se
estrutura.
A didática e a pedagogia marxistas no Brasil (CURY, 1979;
MELLO, 1982; LIBÂNEO, 1985, SAVIANI, 1980, 1994, 1995;
SEVERINO, 1999; LUCKESI, 1990; FREITAS, 1994; DUARTE, 1993;
GASPARIN, 2005; MAZZEU, 1998; entre outros) se alicerçam sob uma
abordagem filosófica de educação e ensino. Por esse viés, a escola e os
processos educativos a ela associados têm sido tomados como pilares para
a construção da democratização e transformação social, pela via do acesso
aos conteúdos historicamente produzidos pela humanidade, na defesa de
uma pedagogia crítico social dos conteúdos (SAVIANI, 1980, 1994, 1995;
LIBÂNEO, 1985; LONGAREZI; PUENTES, 2020; LONGAREZI;
PUENTES; SOUZA, 2020a; 2020b etc.). Os processos de apropriação-
objetivação, nessa perspectiva, orientam uma abordagem de ensino que
assume a humanização como finalidade (DUARTE, 1993; 1996; 2012;
MARTINS, 2013; entre outros) e a instrumentalização do homem pela
escola, como condição (SAVIANI, 1994; GASPARIN, 2005; MAZZEU,
1998 etc.); sem às quais não se entende possível mudanças concretas nas
relações sociais e nos modos político-econômicos de organização da
sociedade.
A perspectiva didática marxista histórico-cultural, por sua vez, é
mais recente na trajetória da pedagogia brasileira e tem sua entrada no país
por um viés psicológico, a partir, fundamentalmente, dos trabalhos de L.
S. Vigostki e A. N. Leontiev. A chegada dos didatas soviéticos (V. V.
Davidov, V. V. Repkin, G. Repkina, N. V. Repkina, G. A. Zuckerman, P.
Ya. Galperin, N. F. Talizina, L. V. Zankov, M. V. Zvereva, N. V.
Nechaeva, entre outros) e cubanos (I. B. Núñez, J. Z. Toruncha, H. J. G.
Mendoza, O. T. Delgado, etc.), no contexto brasileiro, ganha força
somente no final do século XX. Mas, é praticamente no início do XXI
que se tem, de fato, aprofundado nos estudos dos então designados
sistemas didáticos desenvolvimentais (PUENTES; LONGAREZI, 2020a;
2020b; 2020c; LONGAREZI; PUENTES, 2020), dentre os quais
382
destacam-se os sistemas 1. Elkonin-Davidov-Repkin, 2. Galperin-Talizina
e 3. Zankov. Orientados pelos princípios gerais da Psicologia Histórico-
Cultural da Atividade e da Didática Desenvolvimental, esses sistemas se
constituem em processos educacionais particulares (LONGAREZI,
2020a; 2020b).
Na trajetória dos estudos brasileiros histórico-culturais, observa-se
que a aproximação com essa produção tem sido um esforço de diferentes
grupos dedicados à investigação didático-pedagógica de fundamentação
materialista histórico-dialética. Essa produção, no campo da psicologia
pedagógica, que envolveu um grande número de psicólogos, filósofos,
filólogos, fisiólogos, metodólogos, didatas e professores que trabalharam
intensamente em torno de uma nova psicologia e uma nova didática, no
período soviético (1917-1991), tem sido objeto do trabalho colaborativo
de várias pesquisas realizadas no contexto brasileiro (TULESKI, 2008;
DELARI JR., 2013; SFORNI, 2015; LAZARETTI; MELLO, 2018;
MENDONÇA; ASBAHR, 2018; MELLO, 2015; DUARTE, 2012;
SMOLKA, 2009; TOASSA, 2013; LIBÂNEO; FREITAS, 2013;
LIBÂNEO, 2004; ROSA E DAMAZIO, 2016; LONGAREZI;
PUENTES, 2013, PUENTES; LONGAREZI, 2017c, 2019; entre
outros), em interface com pesquisadores cubanos, mexicanos, chilenos,
italianos, portugueses, ingleses, dinamarqueses, finlandeses, russos,
ucranianos, entre outros; somando esforços para que se ampliem o acesso
ao pensamento e à produção da época, inclusive com traduções para
diferentes línguas.
Como contribuição para o estudo no campo específico da
Didática Desenvolvimental, no Brasil tem-se realizado pesquisas teóricas e
de intervenção (LIBÂNEO, 2004; MOURA, 2016; MOURA; ARAUJO;
SERRÃO, 2018; CEDRO; MORETTI; MORAES, 2018; LONGAREZI,
2017a, 2017b, 2019a, 2019b, 2019c; LONGAREZI; DIAS DE SOUSA,
2018; FRANCO; SOUZA; FEROLA, 2018; ROSA; DAMAZIO;
ARAUJO; ASBAHR; MOURA; SERRÃO; EUZEBIO, 2013; MOURA,
2016; PUENTES, 2017, 2018; etc.), com foco para a compreensão da rica
e complexa produção didática da época, assim como para a análise e
produção de modos particulares de organização didática frente à realidade
escolar brasileira, que resguardem os princípios psicológicos e didáticos
desenvolvedores, bases e fundamentos a partir dos quais se edificaram os
383
vários sistemas didáticos soviéticos elaborados desde a segunda metade do
século passado.
Nota-se que, quanto mais as iniciativas didático-pedagógicas
desenvolvimentais realizadas no Brasil se distanciam dos primeiros
encontros com essa abordagem soviética (no início, com uma influência
mais psicológica do que pedagógica) e, simultaneamente, mais amplo tem
sido o acesso à produção desses psicólogos e didatas, se concretizam mais
profundas e consistentes as produções didáticas histórico-culturais no
país, reveladas tanto em estudos teóricos, quanto em práticas pedagógicas
experimentadas nas escolas públicas brasileiras. Esse esforço tem
resultado em produções originais, com especificidades em suas
proposições correspondentes ao trabalho de intervenções realizado, no
país, em diferentes contextos escolares, envolvendo níveis de ensino
distintos e áreas específicas do conhecimento.
Para os propósitos deste capítulo, toma-se a perspectiva de
“Obutchénie119 por Unidades” (LONGAREZI, 2017b; 2020b;
LONGAREZI; DIAS DE SOUSA, 2018), produzida no bojo desse
movimento de estudos no Brasil, e que, por isso, representa princípios
orientadores para uma educação desenvolvimental pensada “neste” e
“para este” contexto escolar específico. Assim, nos limites deste capítulo,
pretendemos trazer os principais elementos que estruturam essa proposta,
elaborada a partir de pesquisas teóricas (SOUZA, 2019; FEROLA, 2019;
NASCIMENTO, 2014; LONGAREZI, 2019a, 2019b, 2019c;
LONGAREZI; SILVA, 2018; LONGAREZI; PUENTES, 2013, 2017a;
2017b; LONGAREZI; FRANCO, 2013, 2015; LONGAREZI; ARAUJO;
PIOTTO; MARCO, 2018, 2019; PUENTES; LONGAREZI, 2017a,
2017b, 2017c, 2019) e de intervenção didático-formativa (LONGAREZI,
2012, 2014; 2017a; 2017b; FRANCO, 2015; DIAS DE SOUSA, 2016;
GERMANOS, 2016; COELHO, 2020; SOUZA, 2016; FERREIRA,
2021; MARRA, 2018; JESUS, 2021; FEROLA, 2016; entre outros), que
384
revelam um modo didático desenvolvimental produzido em meio às
contradições inerentes à realidade capitalista e neoliberal que,
particularmente, caracteriza o Brasil.
385
(VIGOTSKI, 1996, p. 254) e se faz enquanto processo dialético. Nas
palavras de Marx e Engels (1987, p. 56), “[...] as circunstâncias fazem os
homens assim como os homens fazem as circunstâncias.”.
Nesse sentido, não só o homem é produzido no limiar de uma
dada cultura, mas também a cultura é produzida pela ação material e
simbólica do homem. A materialidade dessa relação se dá pela via da
educação120, pelos processos de apropriação-objetivação nos quais o
humano produz a si mesmo e, simultaneamente, à realidade a que se
insere.
Tomada a constituição humana e social pela unidade homem-
cultura, uma educação escolar que se pretenda dialética e desenvolvedora
encontra seus fundamentos nas leis que regem a dinâmica complexa na
qual se faz vital a prática social da unidade. Por isso, propomos pensar nos
princípios e elementos estruturantes de uma didática que se constitua
dialética e desenvolvedora do homem e da sociedade, alicerçada sob as
forças contraditórias da existência humano-cultural que se efetivam
“como unidade” e “por unidades”.
Nessa abordagem, o desenvolvimento está intrinsecamente
vinculado à constituição da própria unidade, uma vez que é no confronto
de forças contraditórias que os processos psicológicos encontram impulso
e, para os quais, se faz possível a emersão de novas funções, como síntese
da luta e das tensões oportunizadas. Por tal princípio, e para além de
qualquer tipo de apologia, toma-se como horizonte uma proposta de
obutchénie que se materialize como unidade dos contrários.
A unidade, lei geral da dialética, presume sua compreensão
enquanto síntese, na qual elementos, aspectos e/ou dimensões distintas
produzem, pelo choque e confronto, a emergência do novo e se
caracteriza, nuclearmente, pelo o que aqui se tem assumido como unidade.
386
Contudo, uma “Obutchénie por Unidades” implica não somente a
unidade em si, tal como problematizada, mas também a própria obutchénie,
que, no sentido empreendido no contexto da psicologia e didática
desenvolvimental soviéticas, já se constitui enquanto unidade. Assim, uma
“Obutchénie por Unidades”, incluída todas as tensões expressas pelas leis
fundamentais que a regem enquanto processo dialético, funda-se, em
princípio, pelo que designamos de unidade primária, essencialmente,
vinculada ao próprio conceito de obutchénie.
Uma obutchénie desenvolvimental tem sido compreendida como o
processo em que se impulsiona a aprendizagem e o desenvolvimento do
estudante pela via da atividade colaborativa do professor. Davidov (1996)
define obutchénie como
texto, foram realizadas a partir de tradução prévia do russo para o português, por
Andrii Mishchenko, e fruto de aprofundamentos teórico-conceituais produzidos no
interior do Gepedi.
387
professores são direcionados para a organização intencional desse
processo primário123. (ДАВЫДОВ, 1996, p. 252, tradução nossa).
388
tarefa (pode ser chamada de teoria da atividade).125 (ДАВЫДОВ,
1996, p. 252, tradução nossa).
389
princípios elementares de uma educação desenvolvedora, enunciam-se
outras unidades (LONGAREZI, 2017b; LONGAREZI; DIAS DE
SOUSA, 2018), aqui propostas como constituidoras de uma didática
dialética e desenvolvedora: unidades conteúdo-forma, imitação-criação e
ruptura-desenvolvimento.
A unidade conteúdo-forma
390
o domínio do lógico e do histórico encarnado nos signos designados à sua
constituição.
391
interiorização de conceitos e aquisição de métodos e estratégias
cognitivas. (LIBÂNEO, 2008, 14).
A unidade imitação-criação
392
nível possível de desenvolvimento do estudante. O desenvolvimento, em
potencial, depende, como considerou L. S. Vigotski, dos processos de
imitação que ocorrem na colaboração com o outro (mais experiente) na
zona de desenvolvimento possível (ZDP) do estudante. Em suas palavras:
“Pode-se considerar estabelecido, na moderna psicologia da imitação, que
a criança pode imitar apenas o que está na zona de suas próprias
possibilidades intelectuais.” (VIGOTSKI, 2007, p. 354, tradução nossa127).
A imitação, para o psicólogo bielorrusso, “[...] é a forma principal
em que a obutchénie influência o desenvolvimento.” (VIGOTSKI, 2007, p.
357, tradução nossa), respeitado os limites estabelecidos no interstício de
seu estado atual e possível de desenvolvimento. L. S. Vigotski observou,
por meio de estudos experimentais, diferenças nos processos imitativos,
relacionadas aos diferentes estágios de desenvolvimento: “se pudesse
imitar tudo o que quisesse, independentemente do estado do seu
desenvolvimento, ambas crianças teriam resolvido com idêntica facilidade
todos os testes calculados para todas as idades infantis” (VIGOTSKI,
2007, p. 355, tradução nossa).
Dessa maneira, a obutchénie pode influir sobre o desenvolvimento
se for organizada, intencionalmente para potencializar os processos
psíquicos humanos, no intervalo entre os níveis real e potencial do
desenvolvimento, ou seja, na zona de desenvolvimento possível (ZDP).
Seus estudos comprovaram esse potencial, demonstrando que, com a
ajuda e colaboração do outro mais experiente, o estudante pode realizar
aquilo que não consegue solucionar sozinho, desde que esteja em seu nível
possível de realização. “Dissemos que, em cooperação, uma criança
sempre pode fazer mais do que sozinha. Mas devemos acrescentar: não
infinitamente mais, [...] apenas dentro de certos limites estritamente
definidos pelo estado de seu desenvolvimento e suas possibilidades
intelectuais.” (VIGOTSKI, 2007, p. 355, tradução nossa).
127 As traduções das citações de Vigotski (2007) são traduções comparadas. Foram
realizadas pela autora, a partir da edição argentina de “Pensamiento y habla”,
confrontada com o original em russo “Исследование развития научных понятий в
детском возраст. Опыт построения рабочей гипотезы” (Estudo do
desenvolvimento dos conceitos científicos na infância. Experiência na construção de
uma hipótese de trabalho), de Л.С. Выготский (L. S. Vigotski), 1999.
393
A imitação, portanto, é um mecanismo fundamental para o
processo de desenvolvimento, sem a qual só seria possível realizar aquilo
que já se tem desenvolvido: “tudo quanto uma criança não é capaz de
realizar por si mesma, mas pode aprender sob a direção ou a colaboração
do adulto, ou com a ajuda de perguntas orientadoras, incluímos na área da
imitação” (VIGOTSKI, 2006, p. 268).
Atentemo-nos para o que essa perspectiva representa enquanto
superação do conceito clássico de imitação, que temos culturalmente
consolidado; uma vez que, no sentido atribuído por L. S. Vigotski,
imitação não corresponde a uma atividade de reprodução mecânica.
Outrossim, refere-se a uma atividade orientada por perguntas que dirigem,
em colaboração, a atividade psíquica, para além das respostas que se
poderiam dar em um nível real de seu desenvolvimento e, nesse sentido,
se constitui atividade criadora. “Ao falar de imitação, não nos referimos a
uma imitação mecânica, automática, sem sentido, mas sim a uma imitação
racional, baseada na compreensão da operação intelectual que se imita.”
(VIGOTSKI, 2006, p. 268). Nesse sentido, a imitação está na esfera de
tudo o que não se pode realizar sozinho: “ampliamos o significado do
termo, empregando a palavra “imitação” aplicando a toda atividade que a
criança não realiza por si só, mas sim em colaboração com um adulto ou
outras crianças. (VIGOTSKI, 2006, p. 268).
Nessa perspectiva, a zona de desenvolvimento possível é um
conceito fundamental para a concepção de processos desenvolvedores de
educação. É decisiva na relação obutchénie-desenvolvimento porque, dela,
delineia-se o que está ao alcance do estudante. Uma educação e uma
escola que se pretendam desenvolvedoras não podem limitar-se ao que a
criança já consegue realizar sozinha, mas orientarem-se ao que lhe pode
ser acessível em colaboração e orientação do professor. No sentido
atribuído por L. S. Vigotski, é preciso a prática da imitação como
possibilidade de se influir sob o desenvolvimento e é, por isso, que a
imitação (tal como entendida na concepção vigotskiana) se constitui
processo fundamental para impulsionar o desenvolvimento.
Cabe ressaltar, no entanto, que a colaboração (processo
imprescindível para o entendimento da imitação) não quer dizer atividade
de transmissão ou transferência do conhecimento pelo professor
(procedimento que caracteriza uma abordagem tradicional de obutchénie).
394
Apesar da dimensão social dos processos educativos, a aprendizagem é
uma atividade psíquica e, portanto, um processo mental do sujeito.
128 Em se tratando do campo que se constitui sob as bases da unidade, sujeito sócio-
pessoal é “[...] entendido como unidade sujeito social-sujeito pessoal. Tal concepção
de constituição humana se dá, primeiramente, porque não se compreende a existência
do indivíduo descolada do social. Aqui se faz jus à compreensão fundamental
vigotskiana da natureza sócio-histórica do homem. Na mesma medida, assume-se
também que o social não é algo imprimido no indivíduo, como se o mesmo não
criasse formas próprias de significação e produção do mundo. Dessa maneira,
reconhece-se a dimensão da pessoalidade produzida pelo humano que também é o
produtor do social. Nessa relação de unidade sujeito-sociedade, propõe-se a
compreensão de sujeito social- sujeito pessoal ou sujeito sócio-pessoal.”
(LONGAREZI, DIAS DE SOUSA, 2018, p. 460).
129 Ver mais em Dias de Sousa e Longarezi (2018).
395
adaptando-se ao futuro apenas na medida em que este reproduzisse
aquele. É exatamente a atividade criadora que faz do homem um ser que
se volta para o futuro, erigindo-o e modificando o seu presente.
(VIGOTSKI, 2009, p. 13-14).
Toda atividade do homem que tem como resultado a criação de novas
imagens ou ações, e não a reprodução de impressões ou ações anteriores
da sua experiência pertence a esse segundo gênero de comportamento
criador ou combinatório. (VIGOTSKI, 2009, p. 13).
A unidade ruptura-desenvolvimento
396
O princípio desse movimento está nas próprias leis da dialética
(Lefebvre,1995) e tem sua essência no conceito de unidade tomada
como fruto de um movimento de conflito, de luta entre contrários.
[...] (LONGAREZI, 2006, p. 170).
397
Generalização, conforme defende L. S. Vigotski, é tomada de
consciência130 e, “tomar consciência de alguma operação significa
transferi-la do plano da ação para o plano da linguagem, isto é, recriá-la na
imaginação para que seja possível exprimi-la em palavras.” (VIGOTSKI,
2001, p. 275).
Nesse sentido, tomar consciência é fazer no plano da linguagem -
do pensamento - o que é plano de ação, é cria-la pela imaginação para que
se possa, em pensamento e linguagem, materializá-la em palavra. Dito de
outro modo, a tomada de consciência é generalização e, enquanto tal, é a
formação de um conceito superior (VIGOTSKI, 2001); portanto, se
configura como atividade mental.
Nesse processo de formação conceitual,
Porém,
398
Dessa maneira, fica evidente que o desenvolvimento presume
tomada de consciência, em processos de obutchénie que promovam a
emergência de contradições; condição para rupturas, pelas relações
essenciais que caracterizam os fenômenos e que se constituem força
motriz do desenvolvimento (pela via da formação do conceito científico e
das ações mentais.
399
Tomados em sua totalidade, esses movimentos compõem um
processo que tem como fonte propulsora as contradições e superações,
geradoras de novas crises e se organizam de modo a que os três ocorram
simultaneamente, imbricados reciprocamente (FRANCO; SOUZA;
FEROLA, 2018); sem qualquer tipo de hierarquia ou linearidade. Os
movimentos se constituem em um sistema didático de formação de
conceitos e, nesse sentido, contemplam-se reciprocamente seja na sua
particularidade, seja na sua generalidade: diagnóstico, problematização e
formação conceitual.
O diagnóstico acompanha todo processo didático e tem seu
fundamento nos princípios que orientam o conceito de Zona de
Desenvolvimento Possível (VIGOTSKI, 1999, 2007); constitui-se, pois,
crucial para orientar o tipo de colaboração a ser estabelecido no processo
educativo, enquanto unidade imitação-criação. Ele permite identificar o
nível real de desenvolvimento dos estudantes frente a um conceito ou a
um sistema de conceitos; implica a apreensão das formas hipotéticas de
explicação-compreensão que se tem em torno do fenômeno em estudo; e
identifica, em todo o processo, o movimento conceitual produzido pelos
estudantes, sinalizando novas demandas de colaboração. Assim, o
diagnóstico é processual, permite acompanhar o movimento do
pensamento, suas crises, transformações e superações e, por isso, se dá
também em processo de problematização e formação conceitual.
A problematização, por sua vez, compõem os movimentos de
diagnóstico e formação conceitual, assume um papel essencial para tornar
consciente as contradições e gerar crises. Esse movimento implica a
proposição de um (ou mais) problema(s) científico(s) que coloque(m) em
dúvida as hipóteses explicativas consolidadas, que gere(m) a necessidade
de outras formas (científicas) de compreensão dos fenômenos, criando
condições para a formação-desenvolvimento de uma nova qualidade de
pensamento. À medida em que as contradições vão sendo desveladas, vão
também sendo criadas as condições para a emergência de novas
necessidades, direcionadas ao objeto do conhecimento que, nesse caso,
corresponde ao conceito científico.
400
resolver a contradição [...] eles se deparam com o incompreensível
[...]. Nessa situação [...] se orientam para realizar uma ação,
portanto a contradição que se dá no plano mental devido a
situação problema conduz a sua assimilação. Este caráter de
impulsionar a busca ativa do conhecimento pelo aluno, instigado
pelas situações problema, é considerado [...] fundamental para a
estrutura de um processo de ensino-aprendizagem [obutchénie].
(FEROLA, 2016, p. 24-25, acréscimo nosso).
401
apresentação da definição, discriminação e desenvolvimento de
nexos conceituais – foram as ferramentas empregadas para o
desenvolvimento de cada nexo interno do conceito. (FEROLA;
LONGAREZI, 2017, p. 296).
402
se materializa sob a base de rupturas, que emergem da formação-
desenvolvimento do “novo” (produzido como síntese da luta entre as
contradições inerentes aos fenômenos da vida, na condição humana a que
se está imerso), em processo de imitação-criação, oportunizado pela
unidade conteúdo-forma. Nesse sentido, a “Obutchénie por Unidades” se
expressa pelo novo que “absorve até certo ponto e transforma o valioso
que está contido no antigo.” (ЗАНКОВ, 1963, p. 34), conforme anuncia a
epígrafe deste trabalho.
Na concepção histórico-cultural de didática desenvolvimental que
estamos defendendo, as unidades conteúdo-forma, imitação-criação e
ruptura-desenvolvimento se constituem a essência e o prenúncio de uma
perspectiva dialética e desenvolvimental factível à realidade sócio-cultural
brasileira, com base nos movimentos didáticos de diagnóstico,
problematização e formação conceitual.
Pensadas de forma sistêmica e tomadas enquanto totalidade as
unidades (conteúdo-forma, imitação-criação e ruptura-desenvolvimento) e
os movimentos didáticos (diagnóstico, problematização e formação
conceitual), sinalizam, como horizonte, uma proposta de obutchénie que
pode se materializar como unidade dos contrários, condição sine qua non
para uma didática que se pretenda desenvolvimental e dialética.
O esforço de muitas pesquisas tem sido no sentido de produzir
respostas e novas perguntas às questões educacionais com as quais se
deparam cotidianamente na educação escolar brasileira. Produzir
processos que avancem em práticas de ruptura-desenvolvimento, que
contribuam, pela unidade conteúdo-forma, para o desenvolvimento do
pensamento numa qualidade diferente daquela que a vida do cotidiano já
imprime, na unidade imitação-criação, em que os processos psíquicos-
criativos sejam potencializados pela imitação-colaboração, foi o modo
vivenciado pelas pesquisas que têm experimentado uma perspectiva
educativa desenvolvedora pela vivência das unidades.
A análise produzida em torno das unidades possíveis como força
motriz de uma obutchénie-desenvolvimental se revela motivo para a
continuidade, a partir da qual espera-se ter, cada vez mais, o ânimo e a
força para que os esforços imitativo-criativos sejam lançados ao desafio
permanente de rupturas-desenvolvimento, de tal modo que novas sínteses
403
sejam produzidas como possibilidade de luta e unidade em meio às
contradições que caracterizam os contextos nos quais se está inserido.
Não obstante, um olhar para a realidade brasileira, frente à
compreensão da diversidade “na” e “pela” unidade, nos permite concluir
que a educação no Brasil possui terreno fértil para a proposição de
impulsionadores do desenvolvimento dos estudantes, com sentidos e
finalidades edificantes de uma educação mais humanizadora; afinal é na
contradição que se produzem unidades dialéticas, sem a qual o
desenvolvimento não se realiza enquanto processo de superação na
emergência de uma nova qualidade psíquica, objetivo precípuo de toda
Obutchénie Desenvolvimental.
Referências
404
http://www.revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/1030
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405
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Disponível em:
<http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/19820/206
28> Acesso em: 05.03.19.
406
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407
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D. B. Elkonin, V. V. Davidov e V. V. Repkin. 1. ed. Curitiba: CRV, 2019a.
408
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409
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https://edrev.asu.edu/index.php/ER/article/view/3107
LUCKESI, Carlos C. Filosofia da Educação. 21. ed. São Paulo: Cortez Editora,
1990. 181p.
410
MENDONÇA, Ana Bárbara J.; ASBAHR, Flávia da S. F.. Atividade de
Estudo e Sentido Pessoal: Uma revisão teórica. Obutchénie. Revista de Didática
e Psicologia Pedagógica, v. 2, p. 168-174, 2018.
411
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> Acesso em: 06/07/2018.
412
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Flávia S. F.; MOURA, Manoel, O.; SERRAO, Maria Isabel B.; EUZEBIO, J.
S. Movimento do Conhecimento Matemático na História Virtual. Verdim e
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VIGOTSKI, Lev S. Obras Escogidas, tomo IV. Tradução Lydia Kuper. Madri:
Visor Dist. S. A., 1996.
413
VIGOTSKI, L. S. El problema de la edad. In: VYGOTSKI, L. S. Problemas de la
psicología infantil. Obras Escogidas. (L. Kuper, Trad.). 2 ed. Madrid: Visor, 2006.
414
Capítulo 13
Introdução
415
Assim, o problema da pesquisa esteve no sentido de compreender
e responder a seguinte problemática: A aprendizagem humana é sempre um ato
de produção criativa? A partir desse questionamento, derivam-se outros, na
construção e interpretação da pesquisa: A criança é sujeito de sua
aprendizagem? Só aprende o sujeito? Neste viés, a pesquisa teve como objetivo
geral investigar a produção da aprendizagem criativa da criança na
Atividade de Estudo.
Desenvolvemos a metodologia por meio de uma pesquisa de
campo de natureza didática, em um estudo de caso com alunos do
primeiro ano do ensino fundamental para conceber, implementar e avaliar
uma Atividade de Estudo, baseada no Sistema Elkonin-Davidov-
Repkin132, que considerasse a subjetividade do sujeito. Utilizamos
enquanto inspiração os princípios teóricos e metodológicos da Teoria da
Subjetividade, baseados em González Rey.
Discorreremos sobre os principais pressupostos teóricos e
metodológicos das duas teorias e apresentaremos as discussões relativas
aos indicadores gerados a partir da pesquisa de campo e de todo o estudo
teórico que nos levou as considerações da pesquisa. Dessa maneira, temos
o intuito de compreender que a aprendizagem criativa da criança acontece
somente se ela for sujeito em atividade, elaborando para si o propósito de
estudo, na unidade simbólico-emocional.
132 A opção por abordar o sistema didático utilizando os três autores, Elkonin-
Davidov-Repkin diferentemente de como se encontra no Brasil e ainda nas
produções precedentes do GEPEDI, grupo do qual fazemos parte, justifica-se pelo
fato de que “a partir da localização de uma afirmação realizada pelo próprio V.V.
Davidov, em 1997, do pensamento e da produção de V.V. Repkin e dos trabalhos de
importantes representantes da aprendizagem desenvolvimental das repúblicas ex-
soviéticas da Ucrânia e Letônia, bem como das regiões russas da Sibéria
(especialmente da cidade de Tomsk) e Samara, optou-se por nomear de sistema
Elkonin-Davidov-Repkin do modo como é feito em Riga, Kiev, Kharkov, Tomsk
etc.” (PUENTES, 2019b, p. 83-84).
416
Pressupostos teóricos e metodológicos da pesquisa
133 Em todos os momentos que Vigotsky for citado neste texto, será preservada a
grafia original da obra utilizada como referência. Por este motivo, será encontrado no
texto seu nome escrito de várias maneiras: Vigotski, Vygotsky e Vigotsky. Isso
acontece em função da regra de transliteração adotada de cada livro utilizado. Para a
referência bibliográfica, será mantida a grafia de cada edição, com o objetivo de
facilitar buscas futuras, caso o leitor deseje.
134 Obutchénie “é um tipo especial de atividade docente que contempla, ao mesmo
417
têm pressupostos conceituais em comum originando-se de uma mesma
matriz teórica, o Enfoque Histórico-Cultural. Essas teorias sustentam os
conceitos de aprendizagem, desenvolvimento e ato criativo da pessoa. Por
outro lado, interpretam de maneiras diferentes alguns postulados dos
principais representantes do enfoque e, por esse motivo, possuem
algumas divergências conceituais que serão apresentadas posteriormente.
135O nome de Davidov está escrito de maneira diferente (Davydov) pois está
preservada a grafia original da obra utilizada como referência. Por este motivo, será
encontrado no texto seu nome escrito de duas maneiras: Davidov e Davydov.
418
desenvolvimento humano – a criança – produz-se na base de condições
biológicas e sociais, não privilegiando uma em detrimento da outra nem as
dissociando, mas compreendendo num processo dialético entre ambas as
condições” (LAZARETTI, 2013, p. 208). Compreendia-se que o
desenvolvimento da criança perpassa por períodos psíquicos e que estes
se transformam na relação social objetiva com a realidade.
A Teoria da Atividade desenvolvida por Leontiev (2001) foi uma
das bases fundamentais para consolidar as hipóteses de Elkonin acerca da
periodização do desenvolvimento humano. Essa teoria considera que, em
cada fase da vida, existe uma atividade principal – que propulsiona o
desenvolvimento – como condutora da atividade, motivada pelo encontro
das necessidades e do objeto, em uma relação dialética. De acordo com
Leontiev (2001, p. 65), “a atividade principal é [...] a atividade cujo
desenvolvimento governa as mudanças mais importantes nos processos
psíquicos e nos traços psicológicos da personalidade da criança, em certo
estágio de seu desenvolvimento”. E o conteúdo da atividade dominante
ocorre sob a base de condições históricas concretas.
A partir dessas premissas teóricas, Elkonin (2017) definiu os tipos
de atividades principais infantis seguindo uma sequência que alterna
aspectos emocionais e cognitivos, sendo um deles, em específico,
dominante em cada fase do desenvolvimento. A transição de um estágio
do desenvolvimento ao outro é atribuída pelo autor a uma saturação da
atividade principal, assim como a fatores sociais. O processo de
aprendizagem e desenvolvimento perpassa pelas ações com objetos sob a
mediação dos adultos, em um processo de assimilação. Considera que seja
realizada a transmissão do conhecimento culturalmente adquirido pela
sociedade e coloca que “a forma fundamental é a de atuarem em conjunto
criança e adultos a fim de, paulatinamente, estes transmitirem àquelas os
modos planejados pela sociedade para utilizar objetos” (ELKONIN,
2009, p. 217). Assim, é possível verificar o ponto no qual a aprendizagem
de conceitos teóricos origina e consolida a entrada da criança na escola.
Desse momento, depreendem as premissas teóricas que vão fundamentar
o sistema Elkonin-Davidov-Repkin justificando as ações pedagógicas na
idade escolar.
Os estudos realizados por Vasily Vasilyevich Davidov
contribuíram para a consolidação do sistema didático. Ele identificou que
419
a Atividade de Estudo estava ausente nas escolas. Esse fato levou este
pesquisador, juntamente com Elkonin, seu principal mentor na psicologia,
a desenvolver programas de aprendizagem visando uma mudança no
sistema e conteúdo no nível fundamental escolar. A partir dessa
aproximação entre esses dois pesquisadores, com objetivos e fundamentos
teóricos comuns, dava-se início a criação do sistema didático Elkonin-
Davidov-Repkin. “Foi no trabalho desse laboratório que surgiu a hipótese
central explorada nas pesquisas de Davydov: as crianças pequenas podem
desenvolver o pensamento teórico por meio da assimilação de
conhecimento teórico” (LIBÂNEO; FREITAS, 2013, p. 320).
De acordo com os estudos de Davidov, as ações escolares que
envolvem a relação professor-aluno no processo de aprendizagem são
fundamentais, visto que é a partir da percepção do professor sobre a
formação do pensamento teórico-científico do aluno que ele estrutura e
organiza a Atividade de Estudo da criança para ser capaz de realizar
abstrações e generalizações conceituais e saber analisar e resolver
problemas.
Na Atividade de Estudo elaborada por Davydov (2017, p. 219), os
alunos são levados a resolver problemas que identificam a gênese do
conceito a ser estudado, “se os educandos não recebem conhecimentos já
prontos, se eles mesmos revelam as condições de sua origem”, formando
o pensamento teórico do objeto de estudo. A formação do pensamento
teórico é, para Davydov (2017), o fundamento para a atitude criativa da
pessoa em relação à realidade. Essa atitude criadora ou produtiva estaria
ligada à atividade que esteve baseada nos elementos constitutivos
estudados por Leontiev, como objeto, necessidade, motivo, finalidade,
ações, operações, condições – que podem ser identificados em todo tipo
de atividade humana. Todavia, Davidov incorpora, no final da década de
1990, um elemento nessa estrutura psicológica da atividade: o desejo,
sendo este o núcleo básico de uma necessidade. A partir desse novo
aspecto da atividade, são estabelecidas novas relações entre as
necessidades e emoções, evidenciando “as relações entre a afetividade e a
cognição e sua integração na subjetividade” (LIBÂNEO; FREITAS, 2013,
p. 331). Davydov (1999) faz uma tentativa de aproximação entre
afetividade e cognição ao colocar a função da emoção como uma
420
capacidade para cumprir certas ações, capacitando as pessoas para a
apropriação de conhecimentos.
Pode-se especificar o desejo e a necessidade, correspondendo às
emoções e a todas as outras características da atividade do pensamento. A
partir desse ponto de vista, fica claro que o aspecto mais importante na
atividade científica não é a reflexão, o pensamento e nem a tarefa, mas a
esfera das necessidades e das emoções. “As emoções são mais
importantes do que o pensamento; elas são a base para todas as diferentes
tarefas que o homem estabelece para si mesmo, inclusive as tarefas do
pensar” (DAVIDOV, 2019, p. 296).
No entanto, a emoção foi considerada como mais um elemento a
ser incorporado à estrutura psicológica da atividade, mantendo o processo
de assimilação e interiorização de conceitos ainda como referência ao
processo de ensino e aprendizagem. Puentes (2019c) explica que Davidov,
na tentativa de encontrar argumentos para as forças propulsoras das
necessidades e motivos, inclui a emoção e o desejo enquanto
componentes essenciais da Atividade de Estudo e como núcleo básico
para a necessidade e, “de acordo com ele, a questão fundamental estava
em descobrir como o desejo se transforma em necessidade natural do
sujeito” (PUENTES, 2019c, p. 66).
Para a consolidação do sistema Elkonin-Davidov-Repkin, foi de
fundamental contribuição a participação de Vladimir Vladimirovich
Repkin, enquanto um dos mais importantes líderes desse sistema. Seus
estudos concentraram-se entre memória e aprendizagem, e primeiros
experimentos didático-formativos na perspectiva da aprendizagem
desenvolvimental, os quais contribuíram significativamente para a
educação nessa perspectiva. Seu aporte no sistema didático em questão
deve-se pelo seu debruçar na elaboração de uma teoria psicológica e
didática que fundamentasse a função, estrutura, conteúdo e processo
formativo da atividade de estudo (PUENTES; AMORIM; CARDOSO,
2017).
Repkin (2014) elaborou o conceito de sujeito como sendo aquele
que se desenvolve intelectualmente, atuando na atividade. Para tanto, esse
sujeito, pressupõe a presença e implicação na atividade com o objetivo de
autotransformação. Para ele “a pessoa se desenvolve intelectualmente
apenas na medida em que ela se torna sujeito – primeiramente de
421
determinados tipos e formas de atividade e, em seguida, de agregados e
sistemas de atividades” (REPKIN, 2014, p. 88). Essa relação entre
constituição do sujeito na atividade implica numa coexistência em que o
sujeito não existe se não for na atividade, de maneira estreitamente
interligada.
Dessa maneira, o foco estaria não no pensamento teórico, mas na
organização das condições necessárias para que a criança seja o sujeito da
aprendizagem, no estabelecimento de propósitos. O importante é a
criança ter a “capacidade de formular para si próprio uma nova tarefa,
com base na necessidade de esclarecer o modo de ação aprendido
anteriormente” (PUENTES, 2019c, p. 68), estabelecendo os propósitos
de sua atividade.
Essa nova perspectiva de conceitualização do sujeito na atividade,
elaborada por Repkin, entre os anos de 1991 e 2019, traz aspectos
fundamentais para pensar a elaboração da Atividade de Estudo de tal
maneira que seja oportunizada à criança as condições para ser sujeito da
mesma, visto que atribui a ela o protagonismo na elaboração da tarefa de
estudo como preceito para que a aprendizagem aconteça (PUENTES,
2019a;b). Assim, “no processo de aprendizagem de uma tarefa só pode
agir como tal se é resolvida pelo educando” (REPKIN, 2019a, p. 348), a
partir do momento em que ele acolhe a proposta do professor, mas a
redefine para si, com os modos de ação que dispõe e estrutura sua tarefa
de estudo. A ação é colaborativa, mas a atuação da criança como fonte, é
fundamental, “se a criança não está incluída nessa atividade conjunta, não
ocorre nenhum desenvolvimento, já que a criança precisa de sua fonte
(REPKIN, 2019b, p. 373).
Os pressupostos teóricos que conceituam a aprendizagem em
Elkonin, Davidov e Repkin substanciaram os preceitos teóricos e práticos
da Atividade de Estudo desenvolvida no sistema didático por eles
constituído. Embora tivessem seus próprios estudos, experimentos e
definições teóricas, todos os três compartilharam princípios teóricos
semelhantes, trabalharam juntos e, por esse mesmo motivo, foi possível a
criação do sistema de maneira unificada.
Assim, no sistema didático Elkonin-Davidov-Repkin, a aprendizagem é a
autotransformação do aluno, o qual se torna cada vez mais professor de si
mesmo. Dessa forma, o aluno fará parte de um processo no qual ele passa
422
de uma Atividade de Estudo orientada para uma Atividade de Estudo
independente, e, por isso, se transforma e se desenvolve. A aprendizagem
tem um caráter cognitivo e de assimilação, em um processo de
interiorização, tornando individual a experiência social, além de criativa,
na medida em que o aluno, enquanto sujeito do processo, transforma-se
em personalidade, sendo esse um estado que o sujeito autorregula a
atividade que realiza.
É importante entender que a Atividade de Estudo não é uma
atividade didática vinculada ao professor, e sim um mecanismo
psicológico que se desenvolve no sujeito no período entre os 6 e 11 anos
de idade, com a colaboração do professor. Para constituir este estado
psicológico, é organizado didaticamente situações problemas, que leve à
gênese dos conceitos. A resolução de problemas acontece durante a
resolução de tarefas de estudo a ser redefinida e desenvolvida pelo aluno,
em colaboração com o professor, numa abordagem que remete aos
conceitos teóricos envolvidos. Puentes, Amorim e Cardoso (2017, p. 275)
afirmam que “na perspectiva do ensino desenvolvimental, qualquer tipo
de atividade de estudo é um processo de resolução de tarefas que se
apresenta na forma de problema de aprendizagem capaz de conduzir à
formação do pensamento teórico”. A estrutura da Atividade de Estudo
sofreu várias alterações com o sentido de constituí-la de maneira
completa, à medida que a concepção de aprendizagem, desenvolvimento e
criatividade fosse reelaborada. Basicamente, ela estruturou-se da seguinte
maneira: 1) a tarefa de estudo; 2) as ações de estudo; 3) as ações de
controle; 4) as ações de avaliação, sendo componentes dialéticos que se
entrecruzam.
No caso da Teoria da Subjetividade, esta sustenta uma concepção
da aprendizagem de maneira um pouco diferente da conceituada pelo
Sistema Elkonin-Davidov-Repkin. O estabelecimento das discussões e
definições de aprendizagem, desenvolvimento e criatividade na Teoria da
Subjetividade foi baseado nos trabalhos de: González Rey (2005, 2010,
2012, 2014a,b; 2015a,b); González Rey e Mitjáns Martinez (2017); Mitjáns
Martinez (2012), Mitjáns Martinez e González Rey (2017; 2012).
Podemos considerar que o nuclear da Teoria da Subjetividade é a
compreensão da forma que produzimos subjetivamente no mundo, e não
o mundo vivido pelas pessoas. É o entendimento sobre o modo peculiar
423
como o humano se constitui, sendo a psique conceituada enquanto seu
caráter gerador, na unidade simbólico-emocional. Por simbólico, a Teoria
da Subjetividade define “todos aqueles processos que substituem,
transformam, sintetizam, sistemas de realidades objetivas em realidades
humanas que só são inteligíveis na cultura” (GONZÁLEZ REY, 2015b
apud MITJÁNS MARTINEZ; GONZÁLEZ REY, 2017, p. 55). Os
processos simbólicos englobam os signos, os mitos, a linguagem, as
metáforas, as construções criativas, as imagens, a fantasia, a imaginação,
constituindo um patrimônio cultural, não como produções lineares, mas
como “tudo aquilo capaz de gerar processos singulares irreconhecíveis na
experiência vivida diretamente” (GONZÁLEZ REY, 2015b apud
MITJÁNS MARTINEZ; GONZÁLEZ REY, 2017, p. 55).
O simbólico constitui-se de modo inseparável com o emocional,
em uma construção única. A emoção é definida nessa teoria enquanto
“um processo de ativação somática produzida por uma experiência, que
pode ser exterior ao sujeito, corporal, psíquica” (GONZÁLEZ REY,
2005, p. 215) e que está para além de registros somáticos e fisiológicos,
pois são incorporados as práticas sociais e o desenvolvimento da cultura.
Desta maneira, a subjetividade constitui-se no plano individual e
no plano social, de forma complexa, sistêmica, dialética, dialógica, em um
ato de produção. Um plano não determina o outro, pois não há uma
relação determinista, mas se evocam e se dimensionam. “Cada indivíduo
concreto expressa processos da sociedade em que vive por meio de seus
próprios sentidos subjetivos gerados pela configuração subjetiva
individual de suas experiências de vida” (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS
MARTINEZ, 2017, p. 81). Suas funções psicológicas vão se constituindo
na demanda, na atividade, na necessidade, e se produz na forma de
sentido e configurações subjetivas.
Este conceito de sentido subjetivo elaborado por González Rey
decorreu, em grande parte, do conceito de sentido definido por Vigotski
(2017) enquanto o conjunto de todos os aspectos psicológicos que
emergem na consciência perante a palavra, no processo de diálogo, o que
foi chamado de perezhivanie136. Para González Rey (2014a; 2005), o sentido
136Perezhivanie
é o termo russo usado por Vigotski para fazer referência ao processo
que descreve no texto intitulado O problema do ambiente na Pedologia (VIGOTSKI,
424
é algo mais complexo, referindo-se a uma produção de ideias, na unidade
simbólico-emocional, que vai além de uma produção de significado. O
sentido subjetivo desdobra-se por meio de um sistema emocional, de
produções simbólicas e de memória, que vai se atualizando e se
reconfigurando enquanto o sujeito vive a experiência. Por isso, o sentido
subjetivo não tem princípio nem fim, ele sempre se desdobra em novos
sentidos, se reelabora, a partir do que emerge no curso da experiência,
definindo o que a pessoa sente, motiva e gera nesse processo
(GONZÁLEZ REY, 2014b).
O sentido subjetivo é um atributo fundamental da configuração
subjetiva pois, por meio do fluxo de diversos sentidos subjetivos no curso
de uma experiência, se expressam os estágios subjetivos mais estáveis, e
constitui-se assim a configuração subjetiva, especificando estados
subjetivos dominantes. Essas organizações emergem na atividade e nas
relações que formam o presente, em um sistema de redes de sentidos
subjetivos.
De acordo com a Teoria da Subjetividade, na própria ação de
aprender produzem diversos sentidos subjetivos que são constituintes das
configurações subjetivas que participam deste processo, e que podem
gerar novos sentidos subjetivos. Nessa ação, são necessários não somente
o aparato cognitivo, mas “afetos e condições sociais, em especial, a
qualidade da relação com o Outro que vai mediar esse processo”
(MONTE; FORTES-LUSTOSA, 2012, p. 169). Neste processo de
aprendizagem, é necessário considerar as configurações subjetivas
individuais e sociais que são percebidas pelo indivíduo e contribuem para
novos sentidos subjetivos, transformando a percepção das informações a
partir dos recursos subjetivos que possui e de sua forma de operar. A
aprendizagem escolar deve ser vista, de maneira não determinista, mas
como parte da subjetividade social do aluno. “Na medida que possamos
425
avançar na compreensão da complexidade da aprendizagem, estaremos
em melhores condições para delinear estratégias educativas que a
favoreçam” (MITJÁNS MARTINEZ; GONZÁLEZ REY, 2012, p. 79).
A partir da compreensão de como o sujeito aprende, é possível
pensar melhores maneiras de contribuir enquanto organizador e
colaborador desse processo e alcançar níveis melhores de aprendizagem.
Nessa perspectiva, González Rey (2014b, p. 39) indica que o ensino
escolar seja norteado pela conversação e diálogo que norteie o aluno para
a reflexão e possa “assumir posições, processo facilitador da
emocionalidade na atividade de aprender”. Nesse processo de aprender,
no qual acontece de maneira singular, mas constituído na subjetividade
individual e social, Mitjáns Martinez e González Rey (2012) esclarecem
que os tipos de aprendizagem dependem da condição do aluno no que
tange as suas configurações subjetivas da ação do aprender assim como
sua implicação nesse processo.
Para se caracterizar uma aprendizagem como criativa, é necessário
que o sujeito personalize a informação, confronte o conhecimento e
produza ideias próprias e novas, que vão além do conhecimento
apresentado, através da imaginação e da fantasia, juntamente com a
construção intelectual pessoal, singular e dessa forma criativa.
Partindo das premissas de uma aprendizagem criativa, é possível
identificar quem é este sujeito que aprende criativamente. Dessa forma, o
sujeito é o indivíduo ativo que gera novos espaços de subjetivação e,
segundo Gonzáles Rey “é capaz de se posicionar e de se confrontar a
partir de seus projetos, pontos de vista e reflexões pessoais, sempre que
esses processos representem produções de sentido subjetivo. O sujeito
existe na tensão com o estabelecido” (GONZÁLEZ REY, 2010 apud
MITJÁNS MARTINEZ, 2012, p. 93).
É preciso considerar que a criança aprende através dos recursos
subjetivos que dispõe, de uma história, de um contexto atual e de suas
próprias experiências. Assim, aprender significa ser capaz de produzir
sentidos e configurações subjetivas sobre uma experiência vivida na
unidade dialética, que inclui experiências passadas e estados emocionais
que influenciam, mas não determinam, em um movimento recursivo. Para
estudar a aprendizagem é preciso compreender a subjetividade em sua
estreita relação com o mundo social que a criança vive e com as
426
produções simbólicas e emocionais configuradas em cada criança
concreta, de forma singular.
Estes estudos produzidos da Teoria da Subjetividade são
fundamentados pelos preceitos da Epistemologia Qualitativa. Esta é fruto
dos estudos desenvolvidos por Fernando González Rey (GONZÁLEZ
REY, 2005; 2012; 2014a,b; 2015a,b) e tem como propósito compreender
como o conhecimento do ser humano se produz. Ela é definida por três
características fundamentais: o caráter construtivo e interpretativo do
conhecimento; a legitimação do singular como instância de produção do
conhecimento científico; o ato de compreender a pesquisa nas ciências
antropossociais, como um processo de comunicação, um processo
dialógico (GONZÁLEZ REY, 2015b). Assim, a partir dessas
características, o referido autor elabora uma epistemologia que dá suporte
a uma proposta metodológica Construtivo Interpretativa, na busca de
compreensão da produção do saber, de tal forma que seja possível
pesquisar sobre a subjetividade direcionado ao campo da psicologia.
A Metodologia Construtivo Interpretativa consiste em uma
investigação na qual os participantes precisam, primeiramente, serem
motivados a participar do processo de investigação, imersos em um
cenário social. Após a criação desse cenário social, que compreende toda a
dialogicidade entre o pesquisador e os participantes da pesquisa, em uma
situação convidativa entre os envolvidos, levantando o interesse, a
curiosidade, numa trama relacional viva, é que se pode construir os
saberes que impliquem os participantes partindo das suas necessidades
(GONZALEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017).
Nesta condição de cenário social da pesquisa, é possível
estabelecer uma identificação com a situação de Atividade de Estudo,
desenvolvida no sistema didático Elkonin-Davidov-Repkin, quando
caracterizam tal atividade somente quando há uma implicação conjunta,
professor e alunos no desenvolvimento da atividade, na qual congregam
as necessidades, motivos, ações de estudo, tarefas de estudo, ações de
controle e avaliação.
No entanto, conforme os preceitos da Atividade de Estudo, as
necessidades e motivos estariam relacionados especificamente ao
conteúdo da tarefa de estudo. A esse respeito, difere substancialmente do
conceito de necessidade e motivo na metodologia construtivo
427
interpretativa, a qual se baseia nos estudos desenvolvidos por L.
Bozhovich (2021). Para a autora, a atividade de estudo dos escolares incita
todo um sistema de motivos diversos. Todos esses motivos de estudo
podem ser divididos em duas grandes categorias, “os que estão
relacionados com o conteúdo do próprio processo de estudo e o processo
de seu cumprimento, e os que pertencem ao campo das relações
recíprocas entre a criança e o meio ambiente” (BOZHOVICH, 2021, p.
15).
Ao relacionar com os motivos mencionados anteriormente,
Mitjáns Martinez (2016, p. 178) “considera que ambas as categorias de
motivos são indispensáveis, não apenas para efetuar com sucesso o
processo de aprendizagem, mas também para qualquer outra atividade”.
O motivo está no próprio curso da atividade, é autogerador e, para isso, o
pesquisador precisa estar envolvido, relacionando, observando,
produzindo significados a partir dessa vivência, estabelecendo uma
dialogicidade de forma ativa entre ele e os demais membros da pesquisa.
Isto é o que torna singular essa forma de pesquisar e que promove o
envolvimento dos participantes na pesquisa.
Toda situação ou recurso utilizado que possibilite a expressão do
sujeito no contexto da relação no cenário social da pesquisa pode ser
definido como o instrumento. Porém ele não se aplica, e sim, é como uma
ferramenta de provocação, de tensão durante o diálogo. O instrumento na
pesquisa qualitativa acompanha todo o processo e utiliza da construção de
indicadores que levam às hipóteses os recursos interpretativos. O
pesquisador é o principal instrumento da pesquisa, visto que se
transforma em um criador e produtor no curso da investigação. Para
tanto, ele precisa utilizar de um sistema simultâneo de informações, com
uma diversidade de instrumentos aliados a situações espontâneas,
informais e, assim, interpretar e dar sentido à pesquisa e à construção
teórica (GONZÁLEZ REY, 2015b). O levantamento de indicadores não
é legitimado apenas com uma fala, mas em uma rede de situações que
abarcam outros contextos e que permitem ao pesquisador realizar
interpretações.
Para nossa pesquisa, realizamos a elaboração de indicadores que
sustentavam a interpretação e o levantamento de hipóteses de uma
aprendizagem criativa do sujeito, em atividade, direcionado ao campo da
428
didática. Estamos considerando esta aprendizagem enquanto ato
produtivo do sujeito, na unidade simbólico-emocional.
429
número de forma processual, a partir do trabalho com os diversos
conceitos por ele envolvidos. As Atividades de Estudo elaboradas foram:
uma atividade sobre classificação e outra sobre grandezas e medidas (cf.
CARCANHOLO, 2020). Elas foram desenvolvidas com toda a sua
estrutura (situação de dificuldade; situação problema; tarefa de estudo;
ação de controle; ação de avaliação) e com alguns instrumentos que
consistem como vias de acesso à subjetividade e expressão dos
participantes, a saber: análise documental do planejamento curricular da
professora da turma; observação em sala; observação participante;
completamento de frases; sistemas conversacionais; conversas coletivas
entre as crianças e a pesquisadora, na preparação da Atividade de Estudo;
e, após a realização, conversas individuais durante a Atividade de Estudo;
registro por meio de desenhos; e registro por meio de escrita.
Todos esses instrumentos compuseram o material desenvolvido e
utilizado enquanto construção teórica para realização da análise
interpretativa do processo de aprendizagem e da produção de indicadores,
que emergiram ao longo do processo vivido.
A sala de aula participante da pesquisa de campo era composta
por quinze alunos do primeiro ano do Ensino Fundamental de uma
Escola de Educação Básica na cidade de Uberlândia. Essa quantidade de
alunos é o total de crianças existente nessa turma e todos participaram da
pesquisa. Após autorização e aceite da professora, providenciamos os
Termos de Consentimento Livre e Esclarecido assinados pelos
pais/responsáveis pelas crianças envolvidas e o termo de autorização da
direção da escola. A pesquisa teve seu parecer aprovado pelo Comitê de
Ética137. Assim, os momentos de realização da Atividade de Estudo, tanto
coletivo, como individuais, puderam ser filmados, com o intuito de
contribuir para a análise da Atividade, a partir da autorização dos
pais/responsáveis e com o compromisso de não divulgação e
identificação dos participantes, bem como da realização do descarte das
filmagens assim que a pesquisa fosse concluída.
A partir dos postulados das teorias utilizadas, a Didática
Desenvolvimental e Teoria da Subjetividade, com o foco na aprendizagem
430
criativa, conceituamos que o sujeito é aquele que estabelece um
problema e um propósito, produzindo simbólica e emocionalmente.
Como partimos do pressuposto teórico de que a criança só está na
condição de sujeito quando está em atividade, a análise do processo de
aprendizagem só é possível de ser realizada a partir da atividade e, neste
caso, da Atividade de Estudo.
Após a realização das duas atividades, e do levantamento de
indicadores construídos ao longo de todo o processo, elaboramos a
análise com o intuito de aproximar da tese discutida. Assim, discorremos
sobre o sujeito e a aprendizagem, realizando as construções hipotéticas
que levam a responder à problemática da pesquisa, na interpretação da
aprendizagem criativa da criança enquanto sujeito da mesma.
431
categorias evidenciam os aspectos condicionantes da aprendizagem
considerando sua subjetividade, na unidade simbólico-emocional. Vale
lembrar que dispusemos as categorias organizadas em tópicos separados,
mas todas elas se entrelaçam em uma cadeia de relações.
432
mobilizassem a intenção, o desejo, a vontade por parte deles para àquela
ação, o trabalho acontecia em vão. “O indivíduo, movido por uma
intenção, pode atuar arbitrariamente, orientando sua conduta ou sua
atividade para a obtenção do propósito almejado” (BOZHOVICH, 2021,
p. 25).
No primeiro momento individual da Atividade de Estudo sobre
classificação, notamos que a intenção inicial para a realização da atividade
era da pesquisadora, a qual havia organizado didaticamente aquela
proposta. No entanto, cada criança, ao se deparar com a situação a ela
proporcionada, desde a história que foi contada até os objetos dispostos a
serem classificados, precisou produzir uma intenção para que a atividade
fosse resolvida. Essa teve origem em fontes diversas. Podemos dividir as
crianças em três grupos distintos relacionados à produção da intenção
naquele momento: 1) demonstrou prontamente uma intenção de resolução para
aquela situação; 2) precisou da colaboração da pesquisadora, com uma conversa inicial
para estimular e manifestar sua intenção e 3) precisou de colaboração da pesquisadora
com uma conversa mais elaborada, de tal modo que sentisse confiante para se expressar.
A partir desses três grupos, identificamos uma relação existente do
primeiro grupo com a elaboração do propósito para a Atividade de
Estudo. As crianças desse grupo caminharam de maneira mais autônoma
e com uma produção mais criativa na elaboração dos critérios
estabelecidos para os agrupamentos. Muniz e Mitjáns Martínez (2019, p.
66) explicam que “a intencionalidade é a marca do caráter ativo do
aprendiz”. A curiosidade, o desejo em ajudar a personagem da história138 e
até mesmo cumprir seu papel social em ser um bom aluno são exemplos de
motivação produzida pela criança para demonstrar a sua intenção em
resolver aquela situação de dificuldade estabelecida na pesquisa de campo.
Todavia, o que mais predominou foi a afetividade, que envolvia a ajuda
que dariam à personagem da história. Isso pôde ser evidenciado com as
respostas que obtivemos ao perguntar às crianças sobre o porquê estarem
ali diante daqueles objetos.
433
Após o estabelecimento da intenção é que se torna possível o
estabelecimento do propósito, criando os critérios para a resolução da
tarefa de estudo. Existem outras questões que envolvem a elaboração do
propósito, como suas produções subjetivas relacionadas ao desafio, como
lidar com o novo, suas experiências anteriores, a relação que estabelece
com o faz de conta... e que contribuem para a criança elaborar a tarefa de
estudo necessária para a situação proposta.
No caso das crianças Laura139 e Natália, que se colocavam
passivas nas propostas pedagógicas, respondendo “Não sei” em muitas
perguntas, dificilmente produziam intenção para resolução de situações
problemas. Assim, nesses casos, era preciso estimular ações de
empoderamento pessoal durante os diálogos, a ponto de favorecer novas
configurações subjetivas, que contribuíssem para ser o sujeito de sua
aprendizagem, na tentativa de estabelecer uma relação entre intenção e
ato.
As produções subjetivas não são estáticas, dado que podem ser
modificadas durante todo o processo de desenvolvimento da pessoa e
contribuem para a elaboração do propósito. “Assim, as dificuldades que o
aluno encontra, os resultados que percebe e obtém, as descobertas que
faz, a percepção de contradições, as ideias que produz, ou seja, tudo o que
caracteriza o processo está acompanhado de sentidos subjetivos diversos e
móbeis” (MITJÁNS MARTÍNEZ, 2012, p. 97).
Assim, a partir do momento que o indivíduo passa a se interessar
e implicar na atividade, o caminho para a constituição da relação intenção
e ato, e elaboração do propósito, fica mais evidente. A partir de então, de
acordo com as palavras de Repkin e Repkina (2019, p.40), “ao serem as
ações motivadas pelos interesses do sujeito, esses interesses passam a ser
necessários e adquirem um profundo significado pessoal, tornando-se o
núcleo, o germe das habilidades e necessidades futuras”. Com essa
interpretação, identificamos que o que leva ao ato em si é sua intenção,
seu propósito, mas, abarcado de suas produções subjetivas. O “‘ato’
desdobra-se como ‘evento’ ou ‘acontecimento’, mas também em
434
‘posicionamento’ ou ‘atitude’, ou ainda em ‘ação’ ou ‘realização’”
(MADEIRA-COELHO, 2019, p. 96).
Na primeira Atividade de Estudo, observa-se que quanto mais a
criança estivesse como sujeito na ação mental requerida, na qual a
intenção e o ato voltavam-se para o propósito da atividade, mais era
possível de identificar uma aprendizagem em um nível criativo avançado.
Assim, no caso de Ana, Gustavo, George, Heloísa, Jamile, Marcia e
Mônica que tinham um movimento emocional positivo, de entusiasmo,
confiança e curiosidade, promoviam prontamente uma implicação pela
proposta da Atividade de Estudo, o que permitia a produção, de maneira
mais criativa, para a realização de agrupamentos e, ainda, na atividade
prática, a elaboração de mais possibilidades de grupos, classificando-os.
Embora seja fundamental a organização didática do professor na
elaboração de um planejamento para a aprendizagem de conceitos
teóricos conforme a organização curricular e como dispõe a Atividade de
Estudo, e, ainda, a ponto de contribuir com as crianças para o movimento
da participação, implicação e resolução das situações problemas, isso só
irá acontecer se, de fato, a pessoa motivar a si mesma, produzindo suas
próprias intenções, o que inclui suas vontades, desejos e necessidades.
Lembramos que a intenção e o ato são processos complexos que reúnem
e “caracteriza(m) processos humanos singulares” (MADEIRA-COELHO,
2019, p. 96).
Ainda sobre essa questão, a aprendizagem do aluno na Atividade
de Estudo vai depender de sua compreensão sobre os modos de ação a
serem estabelecidos por ele, dessa forma, entende-se que “é esse o
objetivo que determina a posição do aluno no processo da AD140 como a
posição do sujeito que define novas tarefas de estudo para si mesmo. De
fato, é impossível definir uma tarefa de forma externa” (REPKIN;
REPKINA, 2019, p. 51). A tarefa de estudo é sempre estabelecida pela
própria pessoa, e o professor colabora de diversas maneiras, pelas
organizações didáticas, pelas perguntas instigadoras, por uma situação de
dificuldade estabelecida a partir da Zona de Desenvolvimento Proximal,
observando e interpretando as produções subjetivas desse aluno e o
435
considerando enquanto sujeito de sua aprendizagem na atividade
produzida na Obutchénie.
A partir dessas afirmações, reforçamos nossa hipótese de que a
elaboração de um propósito para a resolução de uma situação problema
na tarefa de estudo requer que reconheçamos a produção subjetiva da
pessoa, sua intenção, os aspectos da unidade simbólico-emocional e o seu
protagonismo, enfim, o sujeito enquanto fonte. Mais sobre essa questão
será tratado na próxima categoria.
436
situação de estudo, para que a tarefa de estudo, enfim, possa ser
estabelecida pelo sujeito. Asbahr (2019, p. 202) alertava que “quando a
atividade de estudo não tem um sentido real, conectado aos motivos do
próprio sujeito, a atividade torna-se formal, meramente reprodutiva”. E,
ainda, requer assumir que essas produções acontecem se houver
motivações, intenções, implicações, desejos e pensamentos em unidade,
para que, diante de uma nova situação de dificuldade, os modos de ação
necessários sejam produzidos pelo sujeito. Nessa perspectiva, entende-se
que para o indivíduo desenvolver como sujeito na atividade “depende dos
motivos que estimulam o aluno a aprender e dar um sentido pessoal ao
que ele faz. Portanto, esses motivos são ao mesmo tempo componentes
integrais da atividade de estudo, assim como seu conteúdo e estrutura”
(REPKIN; REPKINA, 2019, p. 58). Esse sentido pessoal evidencia o
quanto a emoção e o singular do sujeito precisam ser considerados.
Assim, a Atividade de Estudo é construída subjetivamente por
cada criança. Durante os diálogos, percebemos que diversos conceitos
tratados se fizeram presentes de forma subjetiva, pois eram retratados nas
suas experiências compartilhadas, nas falas, nas manifestações de
sentimentos e emoções, e se constituíam durante o processo. Embora a
produção subjetiva não se expresse por uma via direta, foi possível realizar
algumas construções teóricas hipotéticas durante os diálogos que nos
remetem à aprendizagem na Teoria da Subjetividade, que envolve um
processo de produção subjetiva que se expressa em um nível simbólico-
emocional (MITJÁNS MARTÍNEZ; GONZALEZ REY, 2017).
Mesmo que, durante os diálogos, direcionássemos para a
provocação de uma situação de dificuldade aparentemente cognitiva e,
assim, as crianças elaborassem a tarefa de estudo, suas falas representavam
a necessidade da expressão da emoção, do pensamento, da fantasia, da
memória, enfim, da unidade simbólico-emocional. Interpretamos que as
produções subjetivas favorecem nos aprofundamentos dos diálogos,
constituindo situações que ajudam a criança sair de sua zona de conforto e
configurarem novas formas de pensamento, mesmo que não contribuam
primeiramente de forma direta para a resolução da tarefa de estudo. Ao
mesmo tempo, a emergência do sujeito nessas vivências dialogadas ocorre
por sua implicação subjetiva na atividade, embasadas pelas experiências
individuais do estudante, numa relação entre passado e futuro compondo
437
suas produções subjetivas atuais. Essas permeiam a possibilidade de a
pessoa se constituir enquanto sujeito em uma atividade.
Para classificar os objetos na Atividade de Estudo proposta, a
criança requer o envolvimento com sua experiência, seus conhecimentos e
sua história, imbuídos dos seus sentidos subjetivos. Essas experiências
vividas pela criança são a base para a organização de configurações
subjetivas, de maneira dinâmica, concreta, singular, histórica e social,
retratando a existência da unidade simbólico-emocional na ação da criança
em atividade. Um exemplo disso foi a escolha dos critérios para a
classificação, pelo fato de que as crianças sempre iniciavam esse processo
a partir do nível de preferência e/ou de conhecimentos/experiências em
relação aos objetos a serem agrupados. Deixavam por último os objetos
desconhecidos, ou que não gostavam tanto.
Vigotski (2017) apontava para uma nova maneira de entender os
processos vividos, entendia-os como experiências que o indivíduo produz
a partir de seu nível de desenvolvimento e da forma como relacionava
afetivamente com as influências do meio, o qual ele denominou de
perezhivanie. Mitjáns Martínez e González Rey (2017, p. 34) afirmam que a
perezhivanie é “a forma com que o indivíduo subjetiviza a influência
externa com a qual entra em contato, processo complexo que pode ser
mais bem entendido mediante o uso das categorias sentido subjetivo e
configuração subjetiva da ação”, assim, contribui-se para a compreensão
do desenvolvimento da subjetividade do indivíduo.
Na atividade de grandezas e medidas, as experiências anteriores
das crianças, de forma geral, também fundamentaram suas falas, pois
procuravam remeter às vivências para, a partir delas, levantar hipóteses.
Assim, confirmamos o indicador sobre a importância de remeter às
experiências anteriores como base para a construção de novos
conhecimentos, visto que suas experiências contém os sentidos subjetivos
capazes de reelaborá-los a cada nova situação vivenciada, que, no caso da
escola, é a Atividade de Estudo desenvolvida. Quando nos remetemos a
essas vivências, estão atrelados a unidade simbólico-emocional, imersos de
memória, emoção e afeto.
438
A existência mútua: sujeito e atividade
439
atividade ocorre no estabelecimento dessa relação, sem um sobrepor ao
outro, mas de maneira recíproca, mutuamente, constituir sujeito e
atividade. “O sujeito, sendo o que produz sentidos subjetivos, o faz
porque vive esse processo dialético e complexo da experiência que realiza
nas relações que estabelece com os outros, com a natureza, e consigo
mesmo” (CHAVES, 2019, p. 230). O sujeito existe nessa condição
dialética e complexa, nesse processo.
Assim, nas duas Atividades de Estudo realizadas na pesquisa de
campo, evidenciamos que esta condição e existência recíproca de sujeito e
atividade torna-se fundamental para a ocorrência da aprendizagem
criativa. Portanto, a criança precisa ser sujeito na atividade. Essa condição
foi alertada por Repkin e Repkina (2019) com o intuito de considerar a
importância do sujeito para além do desenvolvimento de ações e
operações, sendo ele a condição para a existência da atividade e da
aprendizagem. Os autores explicam que o principal objetivo do sistema é
preparar “o desenvolvimento dos alunos como sujeito da aprendizagem
desenvolvimental, que precisam pensar par resolver seus problemas”
(REPKIN; REPKINA, 2019, p. 35).
Uma evidência dessa relação foi analisada na Atividade de Estudo
sobre agrupamentos. A nossa relação de forma dialógica com a criança era
constante, visto que era uma forma de interpretar o que estavam
pensando e, ainda, de maneira colaborativa, provocar na criança situações
de dificuldades que a levasse a elaborar a situação problema. No entanto,
cada criança reagia de uma maneira própria a cada comentário realizado,
estabelecendo ou não o propósito da atividade. E, ainda, a criança,
enquanto não estivesse no lugar de sujeito da atividade, não estabelecia o
propósito. Para Repkin (2019b, p. 377) o sujeito é “fonte de atividade, é o
modo de sua existência e, em nenhuma outra forma, exceto na atividade,
ele existe”. Isso ficou muito evidente após o momento da primeira
atividade mental, que coletivamente comentamos alguns agrupamentos
que foram realizados. Ao iniciar a atividade prática, em seguida, na qual
poderiam aproveitar para repetir a ideia de agrupamento feito por outro
colega, isso não ocorreu. É a própria criança que precisa estabelecer o
propósito, pois “onde o homem cria, ali ele é sujeito” (REPKIN, 2019b,
p. 377). Ouvir e reproduzir não produz, portanto, não é suficiente para
aprender, se, de fato não foi produzido pela própria pessoa.
440
Considerar a necessidade da emergência do sujeito para que a
atividade seja estabelecida é fundamental para compreender sua condição
nesse processo de produção da aprendizagem. Muniz e Mitjáns Martínez
(2019, p. 35) alertam que “a condição de sujeito não é inata, mas uma
produção que geramos pela posição assumida perante as situações que
enfrentamos, perante posições que de alguma forma ‘subvertem’ o que
está posto”. Diante de uma proposta elaborada pelo
professor/pesquisador qualificada pela situação de dificuldade, a
subversão é a geração de novos modos de ação elaborada pelo sujeito, que
acolhe e percebe a situação de dificuldade, e, transforma em problema.
Assim, aquilo que sabia para resolver uma determinada situação, não é
mais possível nesse momento e precisa produzir uma tarefa de estudo,
com propósito e modo de ação.
No entanto, Repkin (2019b, p. 381) já alertava ao fato de que “é
muito difícil definir as características da atividade que parte da criança
como sujeito e daquela que começa a partir do exterior, do professor”,
que tem o papel de colaborador. Isto decorre porque a implicação da
criança envolve os aspectos que são subjetivos, que provocam desejos,
vontades, sentimentos de segurança para lidar com o novo, imaginação,
lógica e que não têm como ser impostos e nem interiorizados.
Interpretamos que uma das crianças, George, produziu a
Atividade de Estudo sobre agrupamentos desde o início de sua
participação, como sujeito da atividade. Sua implicação enquanto sujeito,
produzindo a atividade, gerou a possibilidade de criar, atrelada a sua
imaginação e fantasia. “A imaginação (como criação e produção) é a
qualidade que sinaliza a presença do subjetivo em todas as funções e
atividades humanas” (GONZÁLEZ REY, 2014a, p. 46). Ao comparar os
tipos de agrupamentos realizados com todos os envolvidos na pesquisa,
essa criança foi a que realizou os grupos mais variados, transcendendo às
possibilidades de classificação apenas por meio das características
físicas/externas dos objetos.
Na Atividade de Estudo realizada sobre os agrupamentos com
outra criança, a Jamile, reafirmou a necessidade da brincadeira,
envolvendo a imaginação e a fantasia como ação primordial para que a
criança estivesse enquanto sujeito e elaborasse a atividade. Sua relação
com o jogo simbólico, ou seja, a fantasia, a brincadeira de faz de conta,
441
fundamentou os critérios estabelecidos para a maioria de seus
agrupamentos. Toda a sua participação na Atividade de Estudo,
qualificada pela existência sujeito e atividade, esteve alicerçada em uma
situação na qual o jogo simbólico estivesse presente.
Isso nos possibilitou compreender que essa criança estava
vivenciando o caminho transitório entre o jogo e a Atividade de Estudo,
conforme estudos apresentados por Elkonin (2009). Nesse viés, Puentes
(2019c, p. 62), baseado nos estudos de Davidov, revela que “a brincadeira
estimula a formação dos interesses cognitivos e o acesso à escola favorece
o cumprimento da Atividade de Estudo, a qual oferece um rico material
para satisfazer os interesses cognoscitivos das crianças”.
A condição para que Jamile estivesse em Atividade de Estudo e,
dessa forma, fosse sujeito dela, foi pela utilização da fantasia, do faz de
conta, da imaginação, oportunizados pelo jogo simbólico. Repkin (2019b,
p. 393) nos alertava para a questão ao indagar: “Que tipo de atividade
pode contribuir para o surgimento da Atividade de Estudo? A essência da
Atividade de Estudo é a atividade da brincadeira, a qual gradualmente se
torna estudo”.
Esse exemplo revela que o jogo simbólico ainda está muito
presente na organização do pensamento da criança e, muitas das vezes,
enquanto atividade principal que mobiliza sua aprendizagem e seu
desenvolvimento. Elkonin (2009, p. 406) explica que “nenhuma outra
atividade se entra com tanta carga emocional na vida dos adultos, nem
sobressaem tanto as funções sociais e o sentido da atividade das pessoas
quanto no jogo”. Essa presença do lúdico e do faz de conta provocou
uma reflexão sobre como essas crianças, imersas no primeiro ano do
ensino fundamental, ainda requerem atividades que permitam a transição
entre a atividade do jogo e do estudo.
Assim, entendemos que, na atividade em que a brincadeira se faz
presente, para o nível de ensino do qual trata-se a pesquisa de campo,
torna-se um elo de ligação na constituição da criança enquanto sujeito da
atividade proposta e por ela produzida. Lembramos que “a condição de
sujeito emerge mediante uma implicação subjetiva, um posicionamento
ativo, reflexivo e essencialmente próprio perante o contexto em que a
criança está inserida” (MUNIZ; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2019, p. 35).
442
Dessa mesma maneira ocorreu na Atividade de Estudo sobre
grandezas e medidas, na qual com a utilização do jogo simbólico, com o
uso da fantasia e da imaginação, as crianças manifestaram-se mais
implicadas na situação e estiveram presentes para a elaboração da tarefa de
estudo e sua resolução. “A fantasia organizada através da imaginação
é um processo gerador não apenas de imagens, mas de modelos que nos
permitem uma representação do mundo e dos outros” (GONZÁLEZ
REY, 2014a, p. 40, grifos do autor). Compreendemos que essa relação de
existência mútua de sujeito e atividade contribui para entender que
somente aprende aquele indivíduo que se torna sujeito.
Considerações Finais
443
Reforçamos que este estudo também traz apontamentos diante
das definições de sujeito, aprendizagem, desenvolvimento e ato criativo.
Mas, nos leva recursivamente a atribuir a esses conceitos novas
perspectivas: o sujeito enquanto fonte, produtor de sua aprendizagem
criativa, em uma atividade subjetivamente produzida, numa perspectiva de
autotransformação e desenvolvimento próprio. Sendo assim, apontar as
críticas, reconhecimentos e congruências das obras da Didática
Desenvolvimental e da Teoria da Subjetividade revelam na abertura para
novas perspectivas, diálogos e reflexões na expectativa de avanços
teóricos e práticos. É, ao mesmo tempo, reconhecer que nos processos
didáticos estão imersas as pessoas: crianças e professores; que possuem
histórias, sentimentos, desejos, emoções e pensamentos, unidos em um
processo de aprendizagem e desenvolvimento. É compreender que
precisamos sempre do outro, que a aprendizagem acontece na relação, na
troca, no diálogo, nutridos pelos aspectos constituintes da subjetividade
individual e social.
Ao refletir sobre o percurso trilhado, desde os conceitos
discutidos e reelaborados no presente estudo, até as construções de
indicadores da interpretação da aprendizagem da criança na pesquisa de
campo, destacamos a necessidade constante da (re)elaboração de novos
princípios didáticos aos estudos realizados sobre a Didática
Desenvolvimental, de tal forma que considerem a subjetividade e a
unidade simbólico-emocional no processo de produtivo e criativo de
aprender da criança.
Referências
444
BOZHOVICH, L. I. O problema do desenvolvimento da esfera de
motivações da criança. In: LONGAREZI, Andréa Maturano; PUENTES,
Roberto Valdés (Orgs.). Ensino desenvolvimental. Antologia. Livro II.
Campinas: Mercados de Letras, 2021, p. 1-30.
445
PUENTES, R. V. (Org.) Ensino desenvolvimental: antologia. Uberlândia,
MG: EDUFU, 2017. p. 211-223.
446
GONZÁLEZ REY, F. L. Subjetividad, epistemología cualitativa y metodología
constructivo-interpretativa. Presentación para la Maestría en Psicología de la
Universidad de San Buenaventura Cali - Colombia. 2015a. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=ek-yWb07v1g Acesso em: 27 nov. 2018.
447
MITJÁNS MARTÍNEZ, A. Aprendizagem criativa: uma aprendizagem
diferente. In: MITJÁNS MARTINEZ, A.; SCOZ, B. J. L.; CASTANHO,
M. I. S. (Org.). Ensino e aprendizagem: a subjetividade em foco. Brasília:
Liber Livros, 2012. p. 85-109.
448
PUENTES, R. V. O sistema Elkonin-Davidov-Repkin no contexto da
Didática Desenvolvimental da Atividade (1958-2015). In: PUENTES, R.
V.; CARDOSO, C. G. C.; AMORIM, P. A. (Org.) Teoria da Atividade de
Estudo: contribuições de D.B. Elkonin, V. V. Davidov e V.V. Repkin.
Curitiba, PR: CRV; Uberlândia, MG: EDUFU, 2019b. p. 83-137.
https://doi.org/10.14393/EDUFU-978-85-7078-497-1
449
VIGOTSKI, L. S. O problema do ambiente na Pedologia. In:
LONGAREZI, A.; PUENTES, R. V. (Org.). Ensino Desenvolvimental:
Antologia. Uberlândia, MG: EDUFU, 2017. p. 15-38.
450
Capítulo 14
Introdução
141 Orientação pelo Prof. Dr. Roberto Valdés Puentes, entre os anos de 2014 e 2018.
451
A ideia de uma didática que fosse capaz de abarcar as
contribuições dos pensadores soviéticos ao conceberem o ensino voltado
ao desenvolvimento, e, concomitantemente, considerasse o sujeito do
processo de aprendizagem como ativo e gerador, conforme teorizado por
González Rey, já perfazia seu desenvolvimento por iniciativa do Prof. Dr.
Roberto Valdés Puentes em seus estudos e pesquisas vinculados à
produção do Grupo de Estudos e Pesquisas em Didática e
Desenvolvimento Profissional Docente (GEPEDI), na Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Uberlândia (FACED/UFU). Este
trabalho representa, assim, um esforço na direção de sistematizar
princípios dessa concepção didática ainda em elaboração por meio da
produção de conhecimento didático-musical.
Apesar de a Educação Musical consistir em um território
delimitado da produção de conhecimento, no intento de iluminar o seu
objeto, mobiliza saberes gestados em distintas áreas. É nesse sentido que a
interlocução com as elaborações decorrentes da Teoria Histórico-Cultural
é vislumbrada. Para tanto, os princípios teóricos e metodológicos são
resinificados no contexto da pesquisa dadas às especificidades do campo
artístico, não sendo possível nem desejável seu traslado literal de uma área
à outra, constituindo-se em dogma. A relevância de sua adoção está em
possibilitar a abertura do conhecimento e da prática pedagógico-musical a
“novas zonas de inteligibilidade”, conforme expressão de González Rey
(2012b), subsidiando uma proposta de aplicação didática que fomente a
potencialização do desenvolvimento integral dos sujeitos e contribua à sua
emancipação, finalidade última da Educação e da pesquisa educacional.
452
contemporaneidade, o ensino musical com seus objetivos, conteúdos e
metodologias, está diretamente relacionado às concepções sobre música e
às suas finalidades, concepções essas suscetíveis a descontinuidades e
mudanças.
No Brasil, a associação da música à educação pode ser observada
desde o período colonial pelas ações dos jesuítas, tanto no processo de
catequização dos indígenas, quanto na instrumentalização do ensino aos
filhos de colonos. Propostas e ações oficiais pontualmente voltadas ao
ensino musical escolar são localizadas desde o Império, mas foi devido à
implementação do canto orfeônico – projeto do maestro Heitor Villa
Lobos – que o ensino de Música na escola, a partir dos anos 1930, ganhou
maior amplitude e efetividade no país, encontrando solo fértil em um
contexto de otimismo pedagógico, em que eram difundidos os ideais da
Escola Nova. O ensino de canto orfeônico perdurou até a década de
1960, quando, já em decadência, deixou de contar com a existência de
seus termos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de
nº 4.024/1961, onde ganhou lugar o termo genérico “iniciação artística”,
com referência às atividades complementares a serem ofertadas na escola.
A partir de 1971, com a LDB 5.692, entrou em cena a “Educação
Artística”, ocasionando inúmeras implicações ao ensino musical. Isso, por
implementar a chamada “polivalência” ao ensino de Arte, com o
componente curricular sendo ministrado por um único professor frente a
modalidades artísticas distintas. Se, em tal contexto histórico, de
progressiva expansão da rede pública e das oportunidades físicas de
acesso à escola, a LDB de 1971 contribuiu para o envolvimento de um
número maior de pessoas com a arte, a perspectiva de um único docente
ministrar todas as modalidades artísticas em um enfoque polivalente
acabou por ocasionar a predominância do ensino escolar voltado a uma
ou outra modalidade, já que não era possível aos professores
aprofundarem seus conhecimentos e competências em cada uma delas.
Com isso, a presença da música no meio escolar foi se limitando cada vez
mais a uma posição periférica, pouco significativa como área de
conhecimento.
Ermelinda Paz (2000) observa que durante a vigência da LDB de
1971, quando da configuração da Educação Artística em caráter
polivalente, “tudo era criatividade”, como que seguindo a um “modismo”
453
sem propósito que acabava por encobrir a fragilidade da formação dos
professores. O próprio Parecer 540 (BRASIL, 1977, p. 26) reforçava a
superficialidade das práticas pedagógicas ao definir o objetivo da
Educação Artística associado ao lazer. Concomitantemente, o período que
se seguiu à referida Lei foi também de presença da visão tecnicista, em
que os professores lançavam mão de atividades preestabelecidas em livros
didáticos, que, muitas vezes, fragmentavam a experiência artística e
instituíam conteúdos descontextualizados em relação às referências
culturais dos alunos. O panorama do ensino musical nas escolas de
educação básica torna-se, de fato, passível a modificações com a alteração
do artigo 26 da LDB de 1996 (Lei nº 9.394/1996), estabelecendo a Música
como “conteúdo obrigatório, mas não exclusivo” (BRASIL, 2008). Para
Maura Penna (2010, p. 141), a Lei fortaleceu conquistas de professores de
Música que lutavam por espaço nas escolas, abrindo-se múltiplas
possibilidades para a área de Educação Musical.
O histórico da música nas escolas brasileiras (QUEIROZ, 2012;
PENNA, 2010) evidencia que ela nunca esteve ausente de processos
formativos nem tampouco das instituições de ensino, sendo alvo de
diferentes abordagens e cumprindo a distintas funções, em consonância
com as tendências pedagógicas vigentes em cada época. E no tempo
presente, qual seria o papel do ensino musical na escola e os
procedimentos didáticos adequados? A resposta à questão pode ser ampla
e multifacetada, contudo, parto do pressuposto de que o ensino musical
deve coadunar para a consolidação do papel mais amplo da própria escola,
como espaço de aprendizagem e formação dos sujeitos situados social e
historicamente, tendo em vista o seu desenvolvimento integral.
Não raro é notar a associação das expressões artísticas às emoções
e à criatividade, mas nem sempre as concepções orientadoras do ensino de
Arte trataram desses aspectos de forma intencional e voltada ao
desenvolvimento humano, para além do espontaneísmo, da finalidade
lúdica, como à época de vigência da Educação Artística. Por outro lado, o
ensino musical no Brasil é também marcado pela tradição das escolas
especializadas na expressão artística, difundindo práticas pedagógicas
cujos processos são bem organizados, mas têm em seu cerne a assimilação
de conteúdos e o aprimoramento de habilidades, importando o
desenvolvimento cognitivo como se o aluno fosse um sujeito apartado de
454
suas emoções. Dessa problemática emerge a necessidade da definição de
princípios didáticos para subsidiarem estratégias pedagógicas no ensino
musical na escola que, diferentemente de prescritivos, embasem a
organização de processos comprometidos com a complexa trama
subjetiva do sujeito que aprende, impulsionando o seu desenvolvimento
psíquico em unidade com a dimensão afetivo-emocional. Daí a adoção de
fundamentos da Teoria do Ensino Desenvolvimental combinados à
Teoria da Subjetividade, aportes teóricos esses alicerçados na Teoria
Histórico-Cultural.
455
Em sua teorização, Vigotsky (1988) cunhou o conceito de área de
desenvolvimento potencial142, considerando que a partir do envolvimento
dos alunos no processo de ensino-aprendizagem constituído por
atividades intencionais com foco à área de suas futuras potencialidades,
eles teriam condições de ultrapassar os limites de suas potencialidades
reais, encontrando no ensino, o impulsionador de seu desenvolvimento
psíquico. O entendimento de Vigotsky e seus seguidores de que o ensino
gerava e impulsionava o desenvolvimento, e, ainda, a valorização do
pensamento teórico, fomentaram importantes alterações na organização
do ensino. Esses aspectos articulados à Teoria da Atividade formulada por
A. N. Leontiev (1903-1979) definiram as bases da Teoria do Ensino
Desenvolvimental, também designada Didática Desenvolvimental.
Foi a partir de pesquisas teórico-práticas que V. V. Davidov
(1930-1998), notável integrante da terceira geração de psicólogos
soviéticos a partir do grupo de Vigotsky, ao lado de D. B. Elkonin (1904-
1984), desenvolveu ao longo de 25 anos a Teoria do Ensino
Desenvolvimental. As pesquisas se davam por meio de experimentos
formativos, com a interferência no processo de neoformações psíquicas
dos estudantes (principalmente do ensino primário) durante a atividade de
aprendizagem, aquela caracterizada como “principal” para as crianças de 6
a 10 anos. Tendo por mote a formação do pensamento teórico, tais
experimentos possibilitaram a materialização da Teoria em programas
para as disciplinas escolares (LIBÂNEO; FREITAS, 2013).
Davidov parte das teses acerca do desenvolvimento humano
mediante a apropriação da cultura e da constituição das capacidades e da
conduta humana nas relações estabelecidas pelos sujeitos no mundo
objetivo, tal como formuladas por Vigotsky e estabelecidas por Leontiev
no âmbito da Teoria da Atividade. Também sob influência do
142 A expressão original em russo, zona blijaichego razvitia, é comumente traduzida para
a língua portuguesa como “zona de desenvolvimento próximo” (ou “proximal”) ou
“zona de desenvolvimento imediato”. A partir de uma análise aprofundada, Prestes
alerta que “zona de desenvolvimento iminente” seria a tradução mais apropriada
(PRESTES; TUNES; NASCIMENTO, 2013, p. 51). Contudo, a tradução do texto
de Vigotski “Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar”
(VIGOTSKII, 1988) utilizada neste trabalho, emprega o termo “área de
desenvolvimento potencial” para se referir ao mesmo constructo teórico, motivo
pelo qual ele será aqui adotado.
456
pensamento de Vigotsky advém o entendimento de Davidov sobre a
importância do processo de escolarização das crianças no
desenvolvimento de suas capacidades de pensamento via a assimilação
dos conceitos científicos. Considerando a periodização do
desenvolvimento mental concebida por Elkonin, Davidov investigou os
processos de neoformações psicológicas em crianças no início de sua
escolarização, corroborando a tese de Vigotsky ao desvelar que elas “[...]
poderiam resolver tarefas de aprendizagem se fossem promovidas nelas
transformações básicas por meio da atividade de estudo, do pensamento
teórico-abstrato e da livre regulação da conduta” (LIBÂNEO; FREITAS,
2013, p. 325).
Ao considerar a atividade prática humana de aprendizagem,
Davidov (1988) se fundamenta na Teoria de Leontiev acreditando que ao
realizá-la, dirigindo-se ao seu objeto, o sujeito não só se apropria de seu
conteúdo, como reproduz em si mesmo as formas histórico-sociais da
atividade externa, a qual, interiorizada, é convertida em atividade
individual, transformando suas conexões internas, redefinido suas
capacidades mentais e, assim, sua capacidade de transformação da
realidade. Contudo, inclui o componente “desejo” na condição de núcleo
de uma necessidade, impulsionando as ações. Considera, assim, o fator
emocional no processo de formação do pensamento e desenvolvimento
humano, muito embora compreendendo que necessidade, desejo e
capacidade de estudar somente surgem no processo da atividade de
aprendizagem.
Tendo em vista que cada tipo de atividade é caracterizado por seu
conteúdo objetal, a atividade de aprendizagem parte dos conteúdos das
diversas áreas de conhecimento com o intuito de promover o domínio de
símbolos e instrumentos culturais, bem como a própria condição do
pensar mediante a generalização conceitual, processo que se constitui
instrumento e conteúdo do conhecimento. Davidov propõe que a escola
desempenhe sua finalidade superando a ênfase no desenvolvimento do
pensamento empírico, necessário em certa medida, como no caso de
diferenciação, classificação de elementos e construção de noções, porém,
limitado por se ater às aparências dos objetos e fenômenos, não
compreendendo sua essência. Invertendo essa lógica tradicional, formal,
que até então predominava na escola russa, o autor define uma proposta
457
pedagógica que, centrada na formação de conceitos teóricos, parte da
análise do objeto desvelando seu princípio interno e ascende do abstrato
ao concreto, incorrendo em generalizações substantivas.
O processo mental denominado “pensamento teórico” envolve,
para além das impressões iniciais desferidas pelos sentidos, a análise, o
pensamento lógico, o raciocínio teórico e as referidas abstração e
generalização substantivas, permitindo, a partir da contemplação do
objeto, conhecer seu fundamento geneticamente original, reconstruir sua
essência na forma de conceito teórico e proceder à sua aplicação aos
objetos em particular e situações concretas da vida. Dessa forma, os
alunos submetidos ao adequado processo de ensino (subsidiados pelo
professor) assimilam o conhecimento, estruturando também seu modo de
pensar dialeticamente. Compreendem, assim, o caminho percorrido na
construção histórica dos produtos da cultura espiritual, desvelando a
gênese e o desenvolvimento do conhecimento.
A concepção de ensino defendida por Davidov (1988, p. 96) não
se refere à imposição de conteúdos nem tampouco à negação do
pensamento empírico e da especificidade da atividade infantil. O autor
ressalta que a necessidade de aprendizagem nas crianças menores se forma
juntamente com a imaginação e a função simbólica, encontrando nas
brincadeiras, na comunicação com os adultos e nas referências difundidas
pelos meios de comunicação de massa, o jogo dos papéis e a possibilidade
de observação do mundo circundante, o que favorece o surgimento dos
interesses cognoscitivos. Sua perspectiva se contrapõe, sim, à promoção
de práticas espontaneístas no ensino escolar, dado ao papel do ensino-
aprendizagem no desenvolvimento.
Para que aluno opere conceitualmente é preciso apreender o
princípio geral do objeto de aprendizagem, compreendendo-o em sua
relação sistêmica com outros conceitos. Distintamente da perspectiva
empírica, em que “a coisa isolada aparece como uma realidade
autônoma”, no âmbito abarcado pela teoria “a coisa aparece como meio
de manifestação de outra dentro de certo todo” (DAVIDOV, 1988, p.
76). Para isso, parte-se de uma tarefa proposta pelo professor que estimule
o pensamento da abstração à generalização. As tarefas de aprendizagem
por meio da resolução de problemas permitem que os alunos, ao se
458
apropriarem dos conceitos, conheçam as condições de origem do objeto,
as relações, as contradições e as transformações nele configuradas.
Quanto ao ensino das artes, Davidov aponta especificidades
considerando os objetivos e técnicas. Para ele, o desenvolvimento da
consciência estética consiste no principal objetivo das disciplinas artísticas,
entendendo-a segundo a doutrina marxista-leninista, “[...] relacionada à
esfera da apropriação subjetiva da realidade, conforme as leis e as formas
da beleza”, o que inclui “sentimentos, gostos, valorações, vivências, ideais
estéticos”. É por meio das categorias de “‘medida’ e ‘perfeição’” (Ibid., p.
120) que se acredita revelar a consciência estética. A formação de tal
consciência nas crianças se expressa na compreensão demonstrada sobre
as obras artísticas, bem como na presença das “leis da beleza” em suas
ações e desejos. A partir da identificação e da assimilação de “modelos da
relação estética em relação à realidade”, objetivados nas obras de arte, a
criança se apropria de meios de expressão utilizados pelos artistas.
Davidov ressalta que as artes, em suas diferentes manifestações,
contêm em comum o potencial de desenvolvimento da capacidade de
imaginação ou fantasia, considerada uma das mais importantes
capacidades humanas. Assim, o conteúdo básico das disciplinas artísticas
é, para ele, “a assimilação pelas crianças de um modo geral de percepção
adequada e criação de uma forma artística” que, entendida nos termos de
uma “composição”, define-se como “a conformação, a combinação, o
estabelecimento de relações, o ordenamento e a unificação das partes ou
elementos de algo destinado a converter-se num todo” (DAVIDOV,
1988, p. 121). Nesse sentido, importante é que as crianças desenvolvam
sua capacidade de percepção do todo, compreendendo composição em
sua integralidade e, ainda, as relações entre as partes, operando mediante
tais relações de modo a criar uma imagem da fantasia, assim como são
elaborados conceitos científicos. É, então, a partir da realização das
atividades que os alunos se apropriam das ações presentes no fazer
artístico, apreendendo os modos de produção de obras de artistas e
tomando-as como modelares para suas próprias composições. Em um
movimento dialético, ao realizar ações formando sua capacidade de
combinação de elementos, a criança passa a ter mais condições de
perceber a expressividade em obras de artistas reconhecidos. Como dito
por Davidov (1988, p. 123), “ao solucionar tarefas de aprendizagem, as
459
crianças vão dominando as ações que constituem um novo modo de
atividade artística ou aprimoram estas ações”.
L. V. Zankov (1901-1977), contemporâneo de Davidov,
responsável por liderar um dos grupos de pesquisa no Instituto de
Psicologia Geral e Pedagógica da Academia de Ciências Pedagógicas da
União Soviética por meio da realização de experimentos didáticos,
também considera as artes e, especificamente, a Música, em sua
potencialidade para o desenvolvimento da consciência estética das
crianças, conferindo-lhe importância ao se ter em vista o desenvolvimento
humano.
No intento de promover o desenvolvimento cognitivo integral
dos estudantes, o didata propôs cinco princípios a embasar sua
abordagem nas escolas de ensino fundamental (ZANKOV, 1984;
GUSEVA, 2017). O primeiro princípio didático se refere ao grau de
dificuldade do ensino, devendo abarcar atividades provocativas, com a
exposição das crianças a situações novas e desafiadoras que exijam seu
empenho na resolução de problemas. O segundo princípio se trata da
ênfase no conhecimento de conceitos teóricos, processo em que os
estudantes são incentivados à observação e análise do objeto de estudo ao
passo em que o professor chama atenção aos padrões e conexões sobre o
assunto. O terceiro prevê a variedade e velocidade de conteúdos,
evitando-se repetições demasiadas e entediantes que não favorecem o
desenvolvimento do potencial dos alunos. O quarto salienta a importância
de que o aluno tenha consciência sobre seu próprio processo de
aprendizagem no decorrer de uma experiência em particular e, o quinto
princípio, trata do planejamento do ensino voltado ao desenvolvimento
individual com seu curso em ambiente coletivo, agregador dos estudantes
com seus diferentes níveis de desenvolvimento cognitivo. Zankov toma
em relevo o ambiente da sala de aula considerando que somente em
espaço confortável, acolhedor, com respeito e afeto, é possível aguçar a
curiosidade dos estudantes, seu desejo e confiança para expor
pensamentos, fazer escolhas e contribuir com o grupo.
Assim como Davidov (1988), Zankov (1984, p. 35-36, tradução
nossa) salienta a importância da relação constante entre as formas de
conhecimento empírico e teórico, bem como entre a experiência e a teoria
no processo do desenvolvimento do conhecimento. Para o autor, a
460
correlação e as inter-relações entre as formas de conhecimento são
dependentes da especificidade da matéria de estudo e da ação didática,
sendo que o conteúdo específico – objeto do ensino – tem grande
relevância para a definição dos procedimentos didáticos (Ibid.).
De acordo com Zankov, a introdução das crianças no estudo
musical se dá pela atividade de canto, desenvolvendo-se a expressão vocal
em estreita relação com as qualidades auditivas. Pode se dizer que tal
atividade se configura contexto da educação auditiva, vocal, da aplicação
de conceitos musical-auditivos e da formação/utilização de hábitos
musicais em uma mútua relação (ZANKOV, 1984, p. 190). Ademais, ao
passo em que se desenvolvem as ideias musical-auditivas, são
desenvolvidas as qualidades psíquicas, incluindo a percepção, a
sensibilidade, a memória, a atenção, e a imaginação.
Os conceitos musical-auditivos são considerados imprescindíveis
ao conhecimento musical, mas é no próprio processo de realização
artística que tais conceitos e habilidades são formados e desenvolvidos
(Ibid., p. 188). Na execução musical – pontualmente no canto coletivo
proposto ao processo de aprendizagem introdutório – desenvolve-se o
chamado “ouvido musical” articulando-se conhecimentos e hábitos e
consolidando a capacidade criativa das crianças.
A atividade de canto abarca a execução de canções e o solfejo de
notas com expressão, prazer e sentido estético, requerendo, para tanto, a
atenção aos aspectos concernentes à emissão dos sons – a respiração, a
pronúncia, a projeção vocal, a afinação – aspectos esses inter-relacionados
à percepção auditiva. Também pertinente aos hábitos musicais está a
percepção visual dos símbolos que representam as notas, tendo sua
reprodução auditiva e vocal consciente precedida pelo “canto interior” ou
“leitura para si”, ou seja, a criação de imagens mentais dos sons com suas
estruturas entrelaçadas (Ibid., p. 192-197, tradução nossa). Para além do
canto, Zankov (1988, p. 200) postula que o envolvimento em qualquer
atividade musical, como a execução instrumental ou a composição,
permite o desenvolvimento dos conceitos musical-auditivos por
compreenderem fenômenos psíquicos complexos.
Em suas propostas voltadas ao ensino artístico, tanto Zankov
quanto Davidov reconhecem a especificidade do objeto de ensino-
aprendizagem e a necessidade de procedimentos que sejam condizentes
461
com suas características, mantendo o princípio reitor de que o ensino
impulsiona o desenvolvimento. Ambos os autores também se atentam à
importância da expressão simbólica e emocional dos sujeitos no processo
de aprendizagem, apesar de tomarem o desenvolvimento das funções
cognitivas como central devido à fundamentação na Teoria da Atividade.
A perspectiva da Didática Desenvolvimental fomenta o ensino
intencional de Música na escola, por meio do qual as crianças podem
conhecer a vasta produção elaborada em distintos contextos históricos e
localidades, compreendendo as circunstâncias de criação das obras,
analisando sua gênese, sua estruturação e desenvolvimento, apreciando,
executando e criando música. A valorização dos processos de pensamento
visando a apreensão de conceitos musicais não se refere à separação do
estudo em “teoria” e “prática”, afastando o sujeito do objeto musical
concreto. Desvelar a essência do objeto trata-se, antes, de reconhecer no
todo em movimento as suas conexões internas, em interação.
A concepção dos didatas soviéticos permite, assim, avançar na
sistematização do ensino musical que se quer voltado ao desenvolvimento
humano. Mas, para a adoção de tais constructos na atualidade faz-se
necessário que o entendimento sobre música leve em conta as pesquisas e
práticas contemporâneas do campo da Arte e, especialmente da Educação
Musical, que ampliam o olhar sobre a expressão artística extrapolando a
noção de “obras musicais” em seu sentido estrito, como produto
universal, pronto e acabado, a encarnar significados estanques. Na mesma
direção é preciso que sejam relativizadas as noções de “perfeição” e “leis
da beleza” mencionadas por Davidov (1988) e também prezadas por
Zankov (1984) ao versarem sobre a consciência estética. É que a
compreensão sobre os processos subjetivos implicados na experiência
artística e na aprendizagem carece ultrapassar os limites do objetivismo
definido na teoria de Leontiev, a qual embasa a Didática
Desenvolvimental. Nesse sentido, a teorização de González Rey (2013b,
2017) proporciona uma nova “zona de inteligibilidade”, permitindo
pensar a Didática Desenvolvimental da Subjetividade no ensino de Música
na escola, em que música e suas práticas podem ser analisadas segundo a
produção de sentidos subjetivos pelos sujeitos, envolvendo seu contexto
histórico, suas histórias de vida, suas referências sociais e culturais.
462
O PENSAMENTO CRÍTICO DE GONZÁLEZ REY, TEORIA DA
SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO
463
Quanto à Vigotsky, se, no segundo momento de sua obra,
sobressaiu a relação direta entre operações externas e internas – o que
consistiu em um relevante antecedente às elaborações de Leontiev – em
seu terceiro momento González Rey nota o retorno à questão da unidade
do cognitivo com o afetivo, preocupação já demonstrada nos primórdios
de sua obra143. Conforme analisa González Rey (2013b), novas
perspectivas surgiram da própria retomada de reflexões e termos
cunhados por Vigotsky no primeiro e terceiro momentos de suas
teorizações. Nessa direção, crucial foi a releitura das categorias “sentido” e
“perizhivanie”, bem como a retomada da visão do autor sobre a unidade
dos aspectos cognitivos e afetivos e do caráter gerador da psique. Desse
movimento crítico e reflexivo, que discutiu a concepção predominante na
Psicologia soviética, emergiram as elaborações de diversos autores,
incluindo as de González Rey, que convergiram no desenvolvimento da
Teoria da Subjetividade, por meio da qual o psicólogo cubano propõe
uma nova zona de inteligibilidade sobre os fenômenos psíquicos atrelada à
compreensão do social e da cultura na perspectiva marxista.
A teorização de González Rey parte do princípio de que o ser
humano é criador, ativo em seu meio social, produzindo cultura e sendo
por ela constituído. Nesse movimento dialético, o autor traz à baila a
condição do sujeito de produtor de sentidos em superação à de
reprodutor de realidades, com o que supera lógicas dicotômicas
predominantes na Psicologia soviética, como a do externo-interno e do
cognitivo-afetivo. Pensar o sujeito como ser ativo, é entender que o
humano não se trata de uma matéria esponjosa a absorver aquilo que lhe
fora outorgado por um corpo social, até mesmo porque tal corpo
constitui-se por sujeitos com suas vivências e intervenções em seus
espaços sociais. Tomar o sujeito como ativo significa entendê-lo como ser
concreto, que, provido de história de vida, atua cotidianamente em seu
464
meio, criando alternativas nas variadas situações de sua existência social, e,
de forma concomitante, desenvolve sua subjetividade.
González Rey reconhece a dimensão biológica da psique humana,
mas defende sua qualidade diferenciada ao considerar as condições
histórico-culturais do desenvolvimento dos indivíduos, conforme
enunciado por Vigotsky em sua principal tese. Assim, os fenômenos
psicológicos não se traduzem como produtos da natureza humana, como
se compreendessem uma essência universal. Mas também não consistem
em “cópia” do social ou reflexo alterado da realidade, nem são
constituídos de forma unidimensional, em seus aspectos cognitivos, para,
daí, originarem os aspectos de cunho afetivo-emocionais (os sentimentos,
a fantasia, a imaginação e a criatividade). Na concepção de González Rey
o sujeito é ativo, é social, é singular e é indivisível em suas dimensões
simbólica e emocional. O autor analisa que Vigotsky, no primeiro e
terceiro momento de sua obra, já apresentara as bases desse pensamento
ao evidenciar o potencial criativo e gerador da psique, a unidade dos
processos simbólicos e emocionais e a representação da psique como
sistema integral.
A perspectiva de González Rey permite analisar o sujeito como
ser ativo em seus espaços de práticas sociais que, em virtude da
capacidade geradora de sua mente, elabora mecanismos próprios para
lidar com as situações objetivas no decorrer de suas experiências,
subjetivando-as. É no contexto de suas práticas sociais que o sujeito,
singular, constitui sua subjetividade individual e, dialeticamente, age no
espaço social subjetivado, por meio de suas ideias, comportamentos,
gestos, constituindo a subjetividade social.
Como indivíduo produtor, o sujeito constitui e desenvolve sua
subjetividade em sua ação desferida no momento atual de sua existência
social, que, por sua vez, é implicada com sua história de vida, com suas
experiências passadas. Isso significa que, diferentemente da
fundamentação que orientou a Teoria da Atividade, não é a partir da
atividade externa, objetiva do sujeito, que se definirá sua dimensão
intrapsíquica, de forma imediata. Na perspectiva da Subjetividade, tal
dimensão se configura a partir da atividade subjetivada, sob a forma de
sentidos subjetivos quando o sujeito, em ação em seus distintos cenários,
constitui processos simbólico-emocionais partilhando ideias, tradições,
465
discursos, representações, valores. É nesse entrecruzar permanente entre
os sentidos produzidos na ação e aqueles relativamente estáveis,
configurados em experiências anteriores, que o sujeito produz sua
subjetividade, desenvolvendo sua personalidade e provocando
modificações nos contextos de suas práticas sociais.
Para além dos elementos objetivos que afetam o humano,
González Rey defende, então, a existência de uma realidade subjetiva que
implica simultaneamente o humano e a subjetividade dos espaços sociais
dos quais toma parte, integrando o histórico e o atual, bem como o
individual e o social no plano subjetivo. A subjetividade trata-se, pois, de
um sistema em desenvolvimento, em que se produzem e organizam
processos simbólicos em unidade indissociável com os emocionais. Essa
unidade, definida como “sentido subjetivo”, caracteriza-se por expressar-
se na ação, nas diversas manifestações do sujeito, e, embora os processos
da ordem simbólica e emocional emerjam uns na presença dos outros, não
se pode afirmar que uns sejam causas dos outros (GONZÁLEZ REY;
MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017, p. 63).
Enquanto Vigotsky concebe o princípio da unidade do cognitivo
com o afetivo para expressar a concepção integradora da psique em um
sistema, González Rey desenvolve a categoria de sentido subjetivo
referindo-se às unidades simbólico-emocionais. González Rey e Mitjáns
Martínez (2017, p. 55) deixam clara a diferença entre os recursos teóricos,
explicando que o “simbólico” evidencia o caráter gerador, produtivo da
psique, tendo em vista a capacidade humana de lidar com símbolos,
tangentes ao imaginário nos espaços culturais. Já o “cognitivo” se
apresenta como forma de conhecer o existente, um produto do
processamento da informação, tendo a ver com a capacidade humana de
lidar com as informações disponíveis no meio.
Os sentidos subjetivos se organizam sob a forma de configurações
subjetivas, as quais consistem em um sistema “auto-organizado em
processo” (GONZÁLEZ REY, 2013a, p. 35, tradução nossa). Elas
integram tanto o aspecto processual quanto aquele relativamente estável
da organização da personalidade. A chamada “configuração subjetiva da
ação” é responsável por integrar as configurações da personalidade aos
sentidos subjetivos gerados durante a ação (Ibid.). As configurações
subjetivas não são independentes nem portadoras de sentidos universais,
466
estáveis, estando em constante reorganização, com sua expressão nas
diversas manifestações do sujeito.
O entendimento de González Rey nega, assim, qualquer caráter
determinista e essencialista e, sobre a base do pensamento dialético,
supera dicotomias notórias na Psicologia soviética – interno/externo,
social/individual, cognitivo/afetivo, simbólico/emocional,
consciente/inconsciente, necessidade/motivo, histórico/atual e
estabilidade/processo – integrando essas dimensões no plano subjetivo.
No campo educacional a Teoria da Subjetividade acarreta
importantes consequências, colocando o aluno no centro do processo de
ensino-aprendizagem como “sujeito que aprende” e se desenvolve. A
aprendizagem passa a ser concebida a partir da produção de sentidos
subjetivos, sentidos esses configurados pelo aluno na ação, no contexto da
sala de aula em uma relação dialética com as configurações subjetivas
constituídas e reconstituídas em situações e momentos diversos, sejam na
escola e ou em outros espaços e contextos, organizadas em sua
subjetividade individual. Sendo assim, a motivação é entendida como
configuração subjetiva da ação de aprender do próprio aluno e não como
conteúdo pontual diretamente associado à natureza do objeto da
aprendizagem (GONZÁLEZ REY, 2014, p. 31).
Considerando o papel exercido pelos professores, a concepção
que prima pela manifestação da subjetividade requer suas ações como
facilitadores da emersão dos sentidos subjetivos considerando o aluno em
sua integralidade, não tão somente em sua condição mental operacional,
portanto, como sujeito que ao pensar, o faz não como capacidade isolada,
mas de forma sistêmica, envolvida em processos emocionais e simbólicos.
Tais processos, com suas origens distintas, não se apresentam de forma
intencional nem integral, articulando-se aos processos vividos em sala de
aula. Assim, a aprendizagem passa a ter um caráter singular e de produção
do próprio sujeito, opondo-se ao ensino “despersonalizado” que separa o
sujeito (com suas emoções e vivências) do objeto do conhecimento
(GONZÁLEZ REY, 2014, p. 31). Nesse sentido, González Rey e Mitjáns
Martínez (2017, p. 147) consideram de fundamental importância que os
professores busquem estratégias para a personalização do ensino, haja
vista a importância do olhar singularizado ao desenvolvimento dos
recursos subjetivos dos aprendizes. Para tanto é preciso que se atentem às
467
expressões individuais e aos sentidos subjetivos constituintes da
subjetividade social.
No intento de promover a expressão do aluno, favorecendo a
emersão de sentidos subjetivos, é primordial a criação de um ambiente
participativo, dialógico em sala de aula, propondo tarefas provocativas por
meio das quais seja instigado a refletir sobre os problemas, a pensar
criticamente, a se posicionar, a propor novas alternativas e caminhos
frente aos desafios. Nessa mesma direção, a avaliação também deve
envolver o aluno estimulando sua capacidade reflexiva e de compreensão
daquilo que ainda não domina (GONZÁLEZ REY, 2014, p. 39- 40).
O objetivo de propiciar a aprendizagem comprometida com a
subjetividade é de promover o envolvimento produtivo do aluno nesse
processo, em que ele gera sentidos subjetivos, sendo capaz de pensar de
forma ampliada, sistêmica. Nessa ótica, as operações e funções se
constituem atreladas às emoções, à imaginação e à fantasia, de modo que
o pensamento atua como motivador e permite ao sujeito vislumbrar
diferentes caminhos e aplicações do aprendido em novas situações. Para
González Rey (2012a, p. 36), “o sujeito que aprende define-se não pelas
capacidades e processos cognitivos envolvidos no processo de aprender,
mas pelas configurações subjetivas que explicam o desenvolvimento dos
recursos do aluno nesse processo”.
O sujeito que aprende é também o que se desenvolve por tratar-se
do sujeito produtor de sentidos, capaz de operar e tomar decisões de
forma ativa em seus múltiplos contextos da experiência social. González
Rey (2014, p. 32) afirma que na tensão da produção singular do sujeito
“ante a possibilidade de alimentar com sua experiência o que aprende e de
alimentar o seu mundo com aquilo que aprende”, se efetivará o seu
desenvolvimento.
A aprendizagem, vista sob o prisma da Subjetividade, não
renuncia ao processo de compreensão dos significados de caráter cultural
e ao uso e desenvolvimento de operações e funções mentais, mas
possibilita a percepção e expressão do psiquismo humano em sua
condição geradora e autônoma em relação às influências imediatas do
externo. Como dito por González Rey, “o sentido subjetivo não se
contrapõe ao aspecto operacional da aprendizagem, senão que acrescenta
uma qualidade da aprendizagem que não tinha sido considerada como
468
intrínseca ao aprender” (GONZÁLEZ REY, 2014, p. 35). Assim sendo,
as operações mentais não se circunscrevem ao sistema lógico-cognitivo.
Elas funcionam em um “sistema de produção de sentido subjetivo que é
parte essencial da operação intelectual, no que uma operação concreta é
apenas uma ferramenta, mas não a condição que assegura a produção de
um sistema de conhecimento” (Ibid., p. 36).
469
contexto do estudo e as relações tecidas pelo pesquisador entre aquilo que
ele apreende da realidade e as representações teóricas que propiciam o
delineamento do estudo. Não cabe, portanto, a utilização rígida de
instrumentos nem a padronização de etapas da investigação. A
metodologia requer distintos instrumentos de caráter interativo, por vezes,
gerados no contexto da pesquisa, a serem utilizados como indutores de
informação, incitando a manifestação de aspectos da vivência do sujeito.
Atuando como fontes de indicadores, os instrumentos consistem, assim,
em vias de informação e mecanismos de comunicação, sendo definidos
como “toda situação ou recurso que permite ao outro expressar-se no
contexto de relação que caracteriza a pesquisa” (GONZÁLEZ REY,
2012b, p. 42-43). De cunho individual ou coletivo, os instrumentos
podem ter sua utilização acompanhada pelo permanente diálogo,
propiciando o caráter relacional no cenário pesquisado.
No contexto das aulas de Música na Eseba/UFU, a própria
organização da sala específica para esse fim, com cadeiras em círculo, era
definida em favor do diálogo e da participação ativa dos sujeitos. As
expressões verbais dos alunos eram incentivadas, fosse para exporem suas
reflexões acerca do objeto em estudo, fosse para comentarem algo que de
alguma maneira os tivessem tocado e desejassem compartilhar com o
grupo. Dependendo do assunto em questão, muitas vezes colocado
espontaneamente por alguma criança, tantas outras se motivavam,
envolvendo-se na dinâmica conversacional acerca da experiência que, em
certa medida, lhes soava comum. Atividades de criação musical em grupo,
especificamente, tiveram sua base em situações conversacionais
envolvendo os membros da turma em pequenos grupos.
Durante o trabalho pedagógico-musical, ao passo em que eu
elaborava hipóteses sobre os sentidos subjetivos envolvidos na
configuração subjetiva da aprendizagem musical dos alunos, as próprias
estratégias de ensino fomentavam, recursivamente, sua produção de
sentidos subjetivos. Dessa forma, tais estratégias consistiam em indutores
à expressão subjetiva individual e à configuração do espaço social
relacional da sala de aula. Os modos singulares com que cada sujeito
respondia aos indutores; os recursos dos quais lançavam mão durante as
atividades musicais; as facilidades, as dificuldades e as preferências
470
demonstradas, possibilitavam conjecturas sobre as distintas formas com
que cada aluno era impactado pela experiência na sala de aula.
As reflexões iniciais mediante o trabalho com as crianças de 3º
ano no ano de 2016 me levaram a construir hipóteses sobre os sentidos
subjetivos constituintes da subjetividade social, os quais se relacionavam
às motivações dos alunos para a aprendizagem musical, especificamente:
os sentidos associados à necessidade de brincar e à representação sobre
música e seu ensino-aprendizagem como ação, atividade prática. Em
momento posterior, já no ano letivo de 2017, planejei e desenvolvi um
processo de ensino-aprendizagem considerando as hipóteses
anteriormente vislumbradas, porém procurando delineá-lo com base em
princípios de uma Didática Desenvolvimental da Subjetividade. Para isso,
foi selecionada uma turma com 13 estudantes do 4º ano (9 e 10 anos),
sendo 6 meninos e 7 meninas, com a qual trabalhei no decorrer de seis
meses.
As aulas realizadas durante vinte e um encontros contaram com
atividades desenvolvidas de forma interligada em um processo fluido, em
que eram abordados os meios expressivos da linguagem musical e as
habilidades musicais (SÁNCHEZ VALLE, 2013) de forma
contextualizada, prezando pela participação ativa dos alunos e instigando-
os a produzirem sentidos subjetivos na medida em que constituíam o
conhecimento com a atuação em sua área de desenvolvimento potencial.
As estratégias pedagógicas envolveram as brincadeiras musicais; a
exploração de instrumentos e de outras fontes sonoras, incluindo
materiais diversos e os sons produzidos pelo próprio corpo; a criação de
estruturas musicais; a participação na elaboração de arranjos para as
canções interpretadas; a apreciação ativa de repertório – com a escuta
atenta dirigida à reflexão sobre aspectos da materialidade sonora e seus
efeitos estéticos, às referências histórico-culturais relativas aos períodos
históricos, compositores, intérpretes e gêneros musicais; a interpretação
de canções e trechos musicais; a sistematização escrita das estruturas
musicais criadas e vivenciadas e a reflexão sobre a relação entre os
conceitos desvelados e sua aplicação a distintos objetos musicais.
Com a atenção voltada às múltiplas expressões das crianças, no
curso do processo pedagógico avancei na construção das hipóteses acerca
de suas concepções sobre música, sobre o ensino-aprendizagem musical e
471
sobre os modos de se perceberem na escola. A partir de então, considerei
que na aula eram configurados sentidos subjetivos associados à sua
necessidade de brincar, de vivenciar a escola com maior liberdade e de
experienciar música como atividade prática em caráter lúdico. Essas
expressões da subjetividade social da sala constituíram o cenário do
ensino-aprendizagem, configurando as subjetividades individuais e sendo
por elas constituídas. Não raras eram as manifestações de sujeitos em
particular que pareciam implicar o grupo, provocando emoções e
processos da imaginação e fantasia em nível coletivo. As expressões dos
diferentes sujeitos eram incitadas pela abertura do espaço de aula ao
constante diálogo e participação, pela utilização de instrumentos escritos e
pela proposição de atividades em pequenos grupos, seguindo aos
preceitos da epistemologia qualitativa em sustentação ao método
construtivo-interpretativo adotado na pesquisa.
472
rindo?”, ouvindo como resposta: “é legal demais!”. A turma prosseguia
como que contagiada pelas risadas, enquanto vários alunos disputavam a
oportunidade de explicar sua reação à escuta. Márcia145 foi a primeira a
explicar: “eu vou falar duas coisas. A primeira é que essa música é muito
engraçada. É boa e... dá pra dançar muito bem. Dá pra requebrar.
Pronto!”. A aluna encerrou a fala sem conseguir controlar os risos. Os
colegas riram junto. Questionei Márcia se havia mais algum aspecto que
lhe chamara a atenção. Sua resposta deu sinais de que, para além da
impressão geral acerca do caráter da música, ela havia notado elementos
mais específicos, talvez como uma expressão do estudo musical na escola
em anos anteriores: “ela tem variações de voz, de instrumentos e de
batidas”. Em sequência surgiram comentários de outras crianças.
A turma prosseguia solicitando, incessantemente, que eu colocasse
É bom cantar para mais uma apreciação. Aquele tinha sido, de fato, o seu
primeiro contato com a canção. Diziam: “professora, põe de novo!”; “nós
podemos dançar?”; “a gente viciou nela!”; “essa música é divertida!”.
Durante a segunda apreciação, os alunos se atentaram melhor à letra e a
determinados elementos musicais. Diogo salientou: “Eu percebi, sabe, no
início, um cara que fica cantando ‘é bom... é bom...’”. Ao mencionar o
trecho em questão o aluno imprimiu qualidade sonora ao texto, entoando-
o. Ao passo em que uma criança expunha suas observações, as outras
complementavam.
Ao mencionar o nome da cantora e compositora Bia Bedran e
aspectos de sua biografia, abordei o papel dos compositores. Ainda na
primeira aula propus que a música fosse cantada uma vez. Ao chamar
atenção para a letra146 que seria entoada, Carlos mencionou que, dentre as
boas ações destacadas pela compositora, faltava dizer algo “importante
para as crianças”: “é bom se divertir!”. A ponderação de Carlos,
juntamente com as manifestações dos alunos quando da apreciação e os
comentários que a seguiram mencionando diversão, não me pareceram
coincidência, mas expressões de sentidos subjetivos associados à
necessidade do lúdico e à compreensão de música como algo divertido –
145Os nomes das crianças são fictícios para garantir seu anonimato.
146“É bom cantar, é bom ouvir, é pensar, é bom sentir; olhar as coisas ao redor, pra
crescer muito melhor; viajar dentro de si, pra poder se descobrir”.
473
fosse pelo efeito das representações sociais acerca do fazer musical como
entretenimento, fosse por buscarem naquele espaço escolar experiências
lúdicas, algo que eu já vinha observando em outras manifestações.
Ao final da aula retomei a colocação inicial de Márcia de que a
música tinha “variações de voz, de instrumentos e de batidas”, dizendo
que, embora parecesse, a gravação apreciada não contava com
instrumentos musicais. Diante as expressões de surpresa e incredulidade
dos alunos com a informação anunciei que na aula seguinte poderíamos
conhecer “segredos interessantes” sobre as escolhas de Bia Bedran para
compor É bom cantar, ouvindo a pergunta de Márcia: “igual a detetive?”.
As atividades programadas para a segunda aula visavam o
desenvolvimento do pensamento reflexivo147 acerca dos meios
expressivos da linguagem musical em contexto, tomando por base a
canção de Bia Bedran. Como os alunos da turma já haviam estudado
Música na Eseba anteriormente, poderiam contar com noções sobre
determinados elementos da estruturação musical, o que se associaria às
informações que eu forneceria, subsidiando a escuta, percepção e
compreensão. Ademais, o desenvolvimento da própria habilidade de
escuta consistia em objetivo das atividades.
Uma das principais características de É bom cantar e que já havia
sido notada por vários alunos nas audições durante a primeira aula, era sua
estruturação a partir de distintas vozes em ostinato. Entoadas sem
acompanhamento instrumental, as vozes humanas e percussão corporal
iam se sobrepondo e formando uma base (imagem abaixo) sobre a qual
era acrescida a melodia principal.
147 Davidov (1988, p. 89) sugere a utilização do termo “pensamento reflexivo” como
alternativa para se referir ao pensamento teórico concernente ao campo artístico e a
outras formas de consciência social, que, assim como o pensamento científico, são
capazes de conduzir o humano a uma distinta compreensão de alguma esfera da
realidade mediante o pensamento organizado.
474
A compreensão dessa estrutura foi, então, tomada como ponto de
partida para o trabalho, se ampliando à percepção dos elementos musicais
e suas inter-relações em cada voz. Em acordo com Davidov (1988, p.
122), a intenção era tomar uma composição para a apreciação e análise de
modo que os alunos “descobrissem” suas peculiaridades, de certa maneira
perpassando etapas de criação artística percorridas por outrem. Se
referindo ao ensino de Artes plásticas, mas podendo transpor seu
pensamento ao ensino musical, o autor explica que nesse processo de
“assimilação do modo geral da atividade artística e representacional pelas
crianças”, vão se estruturando nelas “‘padrões sensoriais’ das relações”
entre os elementos da composição “e os modelos das ações através dos
quais estes padrões são construídos no processo de realização da ideia do
artista”.
Tendo em vista os objetivos das atividades de escuta e análise, me
vali de estratégias baseadas na questão posta por Márcia na aula anterior,
ao me perguntar se agiriam como detetives para conhecerem os
“segredos” da música. Ao chegarem à sala para a segunda aula, os alunos
me encontraram vestindo um casaco do tipo “sobretudo” e usando uma
boina de feltro com aba. Meu intuito era não só de criar um ambiente
fantasioso e divertido, mas de utilizar a imaginação como recurso para
aguçar a escuta e percepção musical. Então falei aos alunos sobre a ideia
de conhecermos “segredos” da música como se fôssemos detetives. Nesse
momento Márcia comentou eufórica: “igual Sherlock Holmes!”,
475
explicando aos colegas: “Ele procura pistas para achar o criminoso, ou ele
procura pistas para saber segredos para achar o criminoso”. Tomando as
considerações da aluna, comentei que detetives precisavam ter um olhar
muito atento para seguirem as pistas, o que em nosso caso faríamos a
partir da audição. Imersos na ideia de “investigação”, Márcia e Lucas
gesticulavam, encarnando o detetive como personagem. Alguém sugeriu
que as “pistas” deveriam ser anotadas em uma caderneta. Aproveitando a
colocação, falei à turma que utilizaríamos um material de apoio que eu
havia preparado para que anotassem suas “descobertas”.
Para introduzir a escuta e análise, expliquei que a música É bom
cantar seria como um “caso” e que, primeiramente, eu precisaria informá-
los sobre alguns aspectos para que procedessem à “investigação”.
Esclareci que ela era formada por várias “camadas”148 e depois, sobre elas,
entrava Bia Bedran cantando a parte principal. Então coloquei a música
para uma primeira apreciação naquela aula, dizendo aos alunos que se
atentassem às entradas das “camadas”. Ao término da escuta, Márcia
comentou: “quando eu ouço essa música eu penso que eles estão num
lugar [...] e os caras que falam ‘é bom...’ [entoa]. Toda hora ficam
aparecendo do lado, aí quando a Bia Bedran vai começar a cantar, ela sai
debaixo da terra”. A imagem mental criada pela criança reforçou aspectos
importantes da estruturação musical: a presença de vozes masculinas
entoando algo contínuo, porém com papel secundário, e que a melodia
principal executada por Bia Bedran, que até certo momento estava
ausente, surgia em destaque.
Vislumbrando uma apreciação mais pormenorizada cada aluno
recebeu, como material de apoio, uma folha com dez questões
orientadoras da escuta. No espaço coletivo, uma criança lia a primeira
questão colocada como um “mistério” a ser desvendado na
“investigação”. Em sequência, um trecho da música era apreciado e cada
criança fazia suas anotações. As três primeiras questões se referiam às
entradas, término e simultaneidade das vozes. Ao passo em que os alunos
148 Para essa atividade utilizei a palavra “camada” ao invés de “voz”, procurando
evitar confusões em um primeiro momento. É que os alunos associavam “voz” à
presença de uma pessoa emitindo sons vocais, sendo que na execução de uma voz,
entendida como parte de uma estrutura musical, pode haver várias pessoas cantando
em uníssono ou mesmo a utilização de outras fontes sonoras que não a vocal.
476
prestavam atenção nessas estruturas, acompanhando o desenvolvimento
de diferentes vozes em concomitância, desenvolviam a habilidade da
escuta ativa. Até a terceira questão foram alternados os momentos de
escuta e de realização dos registros escritos sem compartilhar as
observações. Antes de passar à quarta questão as respostas foram
reveladas e colocadas em debate. Quando alguém apontava algo
interessante que os outros alunos não haviam percebido, ou quando
apareciam dúvidas ou pontos de vista divergentes, a música era
novamente apreciada e, no espaço dialógico, a turma chegava a um
entendimento com a minha interferência organizando o processo
reflexivo.
A terceira e quarta questões incitavam a atenção à qualidade das
estruturas sonoras. A quinta e sexta questões colocavam o desafio de uma
apreciação mais apurada, tendo em vista a compreensão das partes
contidas no todo em processo. Para auxiliar os alunos com recursos
subjetivos que poderiam ser úteis na execução da tarefa proposta, em que
deveriam se atentar às qualidades de apenas uma das vozes em meio à
polifonia, apelei intencionalmente à fantasia, dizendo que, assim como um
detetive ao seguir uma pessoa precisaria superar obstáculos que
porventura encobrissem sua visão, eles deveriam prosseguir no esforço de
acompanhar (auditivamente) apenas uma voz em meio ao tecido sonoro.
A sexta questão, ao indagar “como” era o som da “camada”
seguida, abriu espaço para que os alunos expressassem suas memórias em
relação ao aprendido nas aulas de Música em anos anteriores ou mesmo
em outros espaços de ensino-aprendizagem musical, especificando
qualidades dos sons. Mediante tal questão comecei a abordagem das
propriedades do som Altura, Duração, Intensidade e Timbre, não como
aspectos isolados e sim como meios expressivos da linguagem em
interação no contexto musical. Parti da reflexão conjunta com os alunos,
analisando cada uma das três primeiras vozes com a discriminação de seus
elementos mais característicos.
Para que os alunos de fato percebessem as nuances sonoras, a
repetição de sons em uma mesma altura, bem como os elementos rítmicos
e suas inter-relações, foi, então, desenvolvido um trabalho de escuta e
análise no contexto da execução vocal da canção, indo ao encontro da
proposta de Zankov (1984). Na medida em que cada “camada” da música
477
era executada, suas características eram rememoradas e, recursivamente,
explicados os elementos musicais envolvidos. A própria entonação vocal
viabilizava a compreensão sobre a duração dos sons – se mais curtos ou
mais longos, e sobre a Altura – se repetidos em uma mesma frequência, se
mais agudos ou mais graves. Para instigar a percepção e a apreensão dos
conceitos eu utilizava como estratégia a constante colocação de perguntas
desafiadoras ao invés de oferecer uma explicação pronta.
Ao passo em que as diferentes “camadas” eram entoadas
separadamente, seus elementos característicos iam sendo abordados,
considerando, para isso, tanto as propriedades dos sons em particular,
quanto a relação entre as distintas propriedades envolvidas na execução de
um mesmo som. Aos poucos, as “camadas” foram colocadas à execução
simultânea, inicialmente por dois grupos de alunos, depois por três, quatro
e até cinco, de modo que as estruturas musicais ficaram ainda mais
inteligíveis quando experienciadas e percebidas em sobreposição.
Elementos como pulsação e andamento, que davam unidade às
vozes executadas em conjunto, foram explicitados verbalmente.
Entretanto, o investimento de sentidos pelos alunos se deu com maior
força ao perceberem sua imprescindibilidade à execução em conjunto,
haja vista que cada voz deveria adotar o mesmo parâmetro temporal,
mantendo a regularidade para a harmonização e fluência da música. Da
mesma forma, a Altura era notada em sua horizontalidade, na relação
entre um som e outro da mesma voz, mas também em sua verticalidade,
comparando a entonação empregada nas diferentes vozes. Assim, se a
primeira e a terceira “camadas” eram caracterizadas pela constância das
alturas, ao serem tomadas em comparação, punham em evidência os
parâmetros grave e agudo. Ademais, foi mediante a percepção das notas
repetidas no primeiro e terceiro ostinatos que a ideia de melodia –
característica da voz principal e do quarto ostinato – pôde ser melhor
conjecturada. Como estratégia auxiliar a essa construção, utilizei o recurso
da imaginação, comparando “melodia” a um desenho, como se os sons
fossem contornos esboçados no ar, diferentemente da ideia de linha reta,
para representar sons em uma mesma altura. Outros elementos que
tiveram sua compreensão aflorada no contexto da realização musical de É
bom cantar foram a densidade, com o gradativo acréscimo de vozes; a
métrica (compassos quaternários); o silêncio integrado à composição
478
como elemento expressivo e os ictus iniciais anacruse (primeiro ostinato e
melodia principal) e acéfalo (segundo, terceiro e quarto ostinatos).
Para a execução das vozes eu utilizava o recurso da regência,
marcando a pulsação, os compassos quaternários e sinalizando as entradas
aos executantes. A partir de um esforço que envolvia a percepção e o
raciocínio, os alunos compreendiam a organização dos fenômenos,
conseguindo se beneficiar da regência no momento do canto, que, por sua
vez, favorecia a compreensão da estrutura musical em ação. Esse
entendimento era viabilizado pelas minhas perguntas provocativas e pela
participação efetiva dos alunos. Os gestos da regência davam unidade à
execução e a impulsionavam, o que não seria possível aos alunos
realizarem sozinhos naquele momento de seu desenvolvimento musical.
Ela também punha determinados elementos musicais em evidência. Ao
tratar do silêncio como elemento integrante do segundo e terceiro
ostinatos, por exemplo, Laura comentou que ele significava uma
“paradinha” na música. Porém, ao se atentar a esse elemento na fluidez do
compasso a aluna percebeu que ele não poderia ser definido como
estagnação e sim, como tempo de ausência de som (pausa) contado no
interior de uma estrutura em constante movimento.
A atividade de canto, além de viabilizar o entendimento dos meios
expressivos da linguagem musical dada à natureza sonora do objeto de
estudo, consistia, juntamente com a escuta, em objeto de ensino-
aprendizagem. Para cantar, as crianças eram orientadas quanto à postura
corporal, à respiração diafragmática, à dicção e à projeção da voz. Outro
aspecto muito importante era a afinação. Para garanti-la, os alunos
precisavam se atentar aos sons de referência e à sua própria entonação
vocal, em um exercício constante de escuta de si mesmo e dos outros.
No grupo, o que era desafiador a uns, poderia não ser a outros,
mas todos tinham tarefas que os colocavam em sua área de
desenvolvimento potencial. Se para Ludmila a dificuldade primeira estava
no aspecto motor, ao espalmar as mãos na realização do segundo ostinato,
para Carlos o desafio estava em lidar com a ansiedade gerada pela
responsabilidade assumida como cantor solista. Já Márcia e Luciano, após
perpassarem a realização dos três primeiros ostinatos e dominarem-nos
com facilidade, receberam o desafio de executar o primeiro e o segundo
479
ostinato de forma simultânea, e, ainda, o quarto ostinato, caracterizado
por uma estrutura melódica e rítmica mais rebuscada.
Embora a atividade de canto fosse coletiva, sua personalização
acontecia a todo momento, pois a participação de cada pessoa e grupo era
observada e aprimorada no próprio contexto da execução. Às vezes, a
demonstração de um trecho ao violão auxiliava a criança ou grupo a
perceber e cantar nas alturas/afinação corretas, o que sozinhas não
conseguiriam fazer. Outras vezes, o apoio necessário estava na regência e
em minhas expressões faciais exageradas. Em certas situações, com a
realização coletiva em curso, era preciso que eu agisse rapidamente,
inserindo minha voz em apoio a determinada pessoa ou grupo, até que se
estabilizasse. Depois minha participação era retirada, gradativamente, para
que os alunos se vissem em situação desafiadora.
Além dos desafios de cunho técnico, havia aqueles da ordem da
interpretação musical, estreitamente relacionados à dimensão emocional.
Não bastava, pois, garantir a correção nas entradas, na afinação das vozes,
no ritmo. Era preciso ainda a atenção quanto às nuances na intensidade e
outros aspectos sensíveis que conferiam expressividade aos gestos
sonoros. No espaço coletivo, de permanente diálogo, também se
desenvolviam determinados processos avaliativos.
As estratégias de ensino requeriam o empenho das crianças em
múltiplas direções, mas mantinham abertos os canais para sua expressão
pessoal. Ao se depararem com os desafios individuais e coletivos
colocados pelas atividades relacionadas à música É bom cantar, as crianças
não só desenvolveram habilidades e iniciaram um processo de
compreensão sobre os meios expressivos da linguagem musical –
fomentando a educação auditiva, vocal, a aplicação de conceitos musical-
auditivos e a formação/utilização de hábitos musicais em uma mútua
relação, conforme preconizado por Zankov (1984, p. 190) – como tiveram
suas emoções e processos da fantasia e imaginação entremeados às
aprendizagens.
Tomando a noção de “vozes”, nas aulas que se seguiram foram
realizadas apreciações de Música Antiga, promovendo o contato das
crianças com a produção de notórios compositores da História da Música,
de modo a ampliar suas referências artísticas. Ainda a partir da ideia de
música estruturada por vozes constituintes de uma base ou “tecido”
480
sonoro, abordei o Funk, apontado pela maior parte dos alunos da turma
como gênero musical de sua preferência e, posteriormente, o Rap. Os
aspectos da estruturação musical tomados em estudo mediante a
apreciação, a análise e o canto constituíram premissas para que os alunos,
em pequenos grupos, criassem suas próprias estruturas musicais em
processos carregados de expressões simbólico-emocionais. A
possibilidade de experimentar os instrumentos e articulá-los em
produções musicais próprias, bem como a oportunidade de vivenciar o
gênero Funk no espaço de aulas, fomentou a livre expressão dos alunos,
indo ao encontro de seus anseios pelo lúdico e da vivência da escola com
maior liberdade.
Considerações Finais
481
pressupostos da Teoria da Subjetividade cunhada pelo psicólogo
González Rey em combinação aos postulados dos didatas soviéticos.
Na perspectiva da Subjetividade, diferentemente da dimensão
intrapsíquica se constituir de forma direta e linear a partir da atividade
externa, do contato com os outros e com os objetos, há o entendimento
de que ela resulta de uma produção do próprio sujeito na medida em que
compartilha ideias, tradições, discursos, representações, valores, etc., em
seus contextos sociais, subjetivando suas experiências. É, pois, em ação,
que o sujeito concreto produz sentidos subjetivos, atualizando
configurações subjetivas organizadas em suas experiências de vida. Assim,
relaciona vivências que lhe são particulares, mas, ao mesmo tempo,
constituídas em contextos sociais também dotados de subjetividade. De
assimilador de conhecimentos, o aluno passa a produtor de sentidos
subjetivos, qualificando seus novos aprendizados com sua experiência
singular, e, recursivamente, nutrindo-se daquilo que aprende, com o que
desenvolve sua subjetividade. Pensar o humano em suas múltiplas
dimensões, portanto, integralmente, envolve reconhecer que o “subjetivo”
não exclui o “operacional”. A capacidade do sujeito de operar
intelectualmente passa a ser percebida como um fenômeno complexo a
abarcar cognição, afetos, emoções, imaginação e fantasia de forma
indissociável.
Tomados em relevo, princípios da Didática Desenvolvimental e
da Teoria da Subjetividade combinados subsidiaram o desenvolvimento
de processos de ensino-aprendizagem musicais com lugar no Colégio de
Aplicação Escola de Educação Básica da Universidade Federal de
Uberlândia (CAp Eseba/UFU), fomentando espaços de aulas voltadas às
crianças do ensino fundamental em caráter dialógico e de constante
“escuta” de suas expressões subjetivas, o que reverberou na elaboração de
atividades e estratégias didáticas e, de forma recursiva, estimulou a
motivação dos alunos à aprendizagem. As prerrogativas da Didática
Desenvolvimental referidas a um sujeito sensivelmente diferenciado
daquele concebido no âmbito da Teoria da Atividade, demonstraram a
viabilidade de uma Didática Desenvolvimental da Subjetividade no ensino
de Música na escola, sendo necessário prosseguir em sua experimentação
e aprofundamento.
482
Referências
483
______; MITJÁNS MARTÍNEZ, Albertina. Subjetividade: teoria,
epistemologia e método. Campinas: Alínea, 2017.
484
VIGOTSKII, L. S. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade
escolar. In: VIGOTSKII, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N.
Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 1988, p. 103-117.
485
PARTE III
CONTRIBUIÇÕES DO GEPEDI PARA A
FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA PERSPECTIVA
DESENVOLVIMENTAL
486
Capítulo 15
Premissas introdutórias
149 O texto traz sínteses produzidas em investigações financiadas pela Capes, CNPq e
Fapemig; cujo trabalho colaborativo de várias pesquisas desenvolvidas enquanto
atividade do GEPEDI, tem possibilitado sistematizar proposições desenvolvimentais
para a formação docente no contexto educacional brasileiro. Elaborações
preliminares foram publicadas em Longarezi (2017) e Longarezi e Silva (2018).
487
educação e/ou formação se constituem. Nesse sentido, não há como um
professor produzir essa mudança junto aos estudantes se ele próprio não
tiver sido educado sob a base da transformação que se espera promover
enquanto atividade educativa desenvolvedora do humano.
Processos educativos, orientados por uma lógica mnemônica de
aquisição do conhecimento reproduzem práticas que seguem o mesmo
processo e conduzem a um pensamento categórico (empírico). O método
é um tipo especial de conteúdo que possibilita muito além do que
aquisição da ciência, possibilita o desenvolvimento de um modo de pensar
mediado por ela. Por isso, formar professores, numa perspectiva de
(trans)formação da sociedade, implica fazer de seu processo de
profissionalização, desenvolvimento do pensamento dialético (teórico)
que lhe coloque na prática educativa alterado por circunstâncias modificadas e,
nesse sentido, em condições de alterar as próprias circunstâncias com a
organização de processos que permitam o mesmo a seus estudantes.
Assim, a formação do professor, organizada por uma lógica dialética
(enquanto educação modificada), terá condições de se constituir
impulsionadora da (trans)formação profissional docente, sob as mesmas
bases teóricas e metodológicas com as quais ele poderá promover uma
atividade docente que se efetive em uma educação escolar desenvolvedora
do pensamento dialético (teórico) de seus estudantes; uma vez que homens
transformados são produtos de outras circunstâncias e de uma educação modificada.
Desse modo, o método é o conteúdo nuclear da formação de
professores, a partir do qual se desenvolvem os demais conteúdos. Nessa
perspectiva, é necessário que a formação de professores seja organizada
na unidade conteúdo-forma (LONGAREZI, 2017; 2019c; 2020b; 2021b), a
partir da qual os fundamentos que sustentam as teorias psicológicas e
pedagógicas, assim como os conteúdos disciplinares que o professor
ensinará, se constituam objeto de sua formação, pela via do método.
Em tais condições temos realizado pesquisas com formação de
professores e gestores pedagógicos (LONGAREZI, 2006; 2012; 2014;
2017; 2019c; 2020b; FRANCO, 2015; DIAS DE SOUSA, 2016;
GERMANOS, 2016; SOUZA, 2016; FEROLA, 2016; MARRA, 2018;
COELHO, 2020; JESUS, 2021; FERREIRA, 2021; entre outras), em
diferentes contextos escolares (Educação Infantil, Ensino Fundamental,
Médio e Superior), que objetivam, fundamentalmente, possibilitar ao
488
docente o desenvolvimento de seu pensamento dialético sobre a docência,
tendo no método sua força propulsora. Este capítulo, tomado como
síntese de uma produção colaborativa em torno dessas várias pesquisas de
campo com formação de professores, realizadas sob tais premissas, analisa
a partir de alguns princípios histórico-culturais de uma educação
desenvolvedora (com base na experiência soviética) e de princípios
didáticos da formação de professores (expressos no contexto brasileiro),
unidades dialéticas, movimentos e ações didáticas específicas, cujos
fundamentos estão assentados no método materialista histórico-dialético
como impulsionador da formação de professores, com base em uma
abordagem desenvolvimental.
489
entrada dessa perspectiva nos países ocidentais vem acompanhada de uma
perspectiva que propagou uma compreensão homogênea da psicologia
histórico-cultural e da teoria desenvolvimental.
Estudos documentais (LONGAREZI; 2019a; 2019c; 2020a;
2020b; 2021a; LONGAREZI, FRANCO, 2013; 2015; LONGAREZI,
ARAUJO, PIOTTO, MARCO, 2018; 2019; LONGAREZI, PUENTES,
2017; PUENTES, LONGAREZI, 2017a; 2017b; PUENTES, 2018; etc.)
da perspectiva histórica e da produção teórica dessa abordagem têm
possibilitado compreender que não há uma didática desenvolvimental una
ou mesmo uma única teoria histórico-cultural (LONGAREZI; 2020a;
2020b); o que nos remete à compreensão da importante participação dos
diferentes grupos e coletivos que trabalharam fortemente à época.
Fundamentadas nessa psicologia, foram produzidas várias
correntes teóricas, às quais identificamos pelo menos três
(LONGAREZI; 2020a; 2020b): uma Teoria da Atividade, cujo corpus
conceitual tem sua gênese nos psicólogos soviéticos A.N. Leontiev
(1903-1979), S. L. Rubinstein (1889-1960) e seus coletivos; uma Teoria
da Personalidade, representada pelos vários grupos compostos pelos
também soviéticos L.I. Bozhovich (1908-1981), N.G. Morozova
(1906-1989), B.G. Ananiev (1907-1972), B.F. Lomov (1927-1989),
L.S. Slavina (1906-1988) e L.I. Aidarova; e uma Teoria da Subjetividade,
proposta pelos psicólogos cubanos F. Gonzáles Rey [1949-2019] e
A.M. Martínez [1949-]).
O modelo de sociedade no período revolucionário da ex-União
Soviética e a produção de novas compreensões sobre o desenvolvimento
humano e sobre o papel da obutchénie150 como seu impulsionador, geraram
150 Obutchénie é a transliteração da palavra russa oбучение “[...] que encerra tanto a
atividade didática do professor quanto a atividade de autotransformação dos alunos.”
(LONGAREZI; PUENTES, 2017, p. 7, nota 1 da apresentação). Davidov define
obutchénie como a “[...] a interação entre alunos e professores, a inter-relação entre a
utchenia (aprendizagem) e os esforços profissionais do professor (se essa interação for
compreendida com a noção de "atividade", então a obutchénie pode ser caracterizada
como uma correlação entre atividade de estudo e atividade pedagógica).”
(ДАВЫДОВ, 1996, p. 252). “Dessa forma, obutchénie se constitui no processo
pedagógico no qual estão implicados professores e alunos e, enquanto tal, expressa a
unidade da ação de ambos, com foco na aprendizagem do estudante que ocorre em
490
a necessidade de se produzir modos didáticos que colocassem o sujeito
em desenvolvimento psíquico. Essa busca por modos intencionais de
produzir desenvolvimento, no âmbito da educação escolar, resultou na
construção de vários sistemas didáticos151, dentre os quais os mais
difundidos são: 1) o sistema Zankov, 2) o sistema Galperin-Talízina152 e 3) o
sistema Elkonin-Davidov-Repkin153 (LONGAREZI, 2019c; 2020a; 2020b).
O primeiro emerge sob influência mais direta das ideias de L. S. Vigotski,
de quem L. V. Zankov (1901-1977) foi aluno; e os dois últimos são
produzidos, essencialmente, a partir dos fundamentos da Teoria da
Atividade. Das Teorias da Personalidade e da Subjetividade não foram
sistematizados modos didáticos de organizar a atividade de estudo
desenvolvedora do humano; embora existam importantes e distintos
fundamentos ante os quais a produção de didáticas para o
desenvolvimento do estudante sob tais abordagens seja uma necessidade
premente.
Neste universo teórico complexo, heterogêneo e, em muitas
circunstâncias, divergente, nasce uma abordagem de educação
desenvolvimental que, como visto, não é una, nem homogênea, mas
491
assume “[...] como pressuposto o caráter ativo da aprendizagem e seu
papel determinante no desenvolvimento do indivíduo.” (NÚÑEZ, 2009,
p. 17). Desde essa perspectiva epistemológica, é produzida, portanto, uma
Teoria da Obutchénie Desenvolvimental, com diferentes vieses, a maioria
dos quais sob a forte as bases da psicologia histórico-cultural da atividade
(LONGAREZI, 2019a; 2019b; 2019c; 2020a; 2020b; PUENTES;
LONGAREZI, 2017a; 2017b).
Essa abordagem de educação desenvolvedora se alicerça a partir
dos princípios gerais da psicologia histórico-cultural, expressa
particularmente nas principais teses vigotskianas:
492
Como o experimento era parte integrante da obutchénie sistemática,
apenas um professor poderia conduzi-lo, o que, por sua vez, foi
transformado de um implementador consciencioso dos planos de
um psicólogo pesquisador em seu verdadeiro coautor. (РЕПКИН;
РЕПКИНА, 2018, p. 3, tradução nossa).
493
A formação continuada dos professores para o trabalho com os
sistemas didáticos não acontecia fora deles e, no mesmo sentido, não
ocorria de forma homogênea. Assim como os sistemas eram distintos,
assim como os coletivos apresentavam particularidades, e até divergências
entre si; os processos de formação docente em serviço também o eram.
Desse modo, a formação profissional dos professores na antiga
União Soviética, realizada no contexto da revolução russa, fortemente
influenciada por uma psicologia histórico-cultural, não ocorria
desvinculada da prática laboral (РУБЦОВ; МАРГОЛИС;
ГУРУЖАПОВ, 2010). A formação em nível de graduação também era
acompanhada de atividades práticas na escola sob a coordenação de
professores da universidade e professores das instituições de ensino. Ao
final, o professor encontrava-se habilitado para a atividade profissional
depois de passar por uma atividade avaliativa aplicada pelo Estado. Ainda
assim, o recém formado, assume a docência com o apoio de um professor
mais experiente que acompanha o jovem professor e o orienta em relação
aos aspectos pedagógicos e psicológicos da atividade profissional.
(MARCO; LOPES; CEDRO, 2019).
Na perspectiva de uma educação desenvolvimental, com o marco
teórico de uma psicologia pedagógica marxista, a preparação profissional
dos professores, naquele contexto, foi assinalada por uma intensa
formação psicológica. Há de se reconhecer, nesse viés, a relevância do
conhecimento das teorias do desenvolvimento para a compreensão e
orientação das teorias pedagógicas enquanto processos interdisciplinares
de estudo e prática pedagógica. Nos institutos de formação dos
professores, criados no início do século XIX e que, nos anos de 1990,
foram fundidos às universidades, lhe ensinavam
494
No caso dos professores das escolas primárias, os conteúdos
disciplinares envolviam as várias áreas do conhecimento. Por sua vez, os
cursos ofertados para professores já em exercício e, portanto, formados,
habilitados para a docência e em atividade profissional, também
envolviam uma forte formação no campo da psicologia, com
acompanhamento de metodólogos e pesquisadores.
495
Marcada pelo hiato entre a formação acadêmico-profissional e a
prática pedagógica, a educação brasileira tem demandas específicas para a
formação profissional docente orientada a uma perspectiva de atuação que
seja desenvolvedora do estudante; dentre as quais identificamos a
necessidade de se somar, ao conjunto de conteúdos do processo
formativo, as bases epistêmicas e os fundamentos do método materialista
histórico-dialético; além dos fundamentos psicológicos e didáticos e dos
conteúdos disciplinares que o professor irá ministrar.
Entende-se que a formação filosófica e epistemológica é
fundamental para uma ação consciente e humanizada da docência no
sentido histórico-dialético necessário à produção de uma educação que
promova o desenvolvimento humano tanto do estudante, quanto do
professor; em que ambos sejam sujeitos no processo educativo. Isso
porque, se limitamos a formação operacional do professor aos processos
técnicos de uma ação para a promoção do desenvolvimento; se o
professor estiver alienado da compreensão teórico-metodológica que
orienta os princípios e processos psicológicos, pedagógicos e
epistemológicos envolvidos no modo de organizar, orientar e colaborar
desenvolvedores; se estiver alienado do entendimento do potencial
desenvolvedor que a educação pode assumir, terá uma formação-ação
meramente técnica e sem a autoria e autonomia que são fundamentais
para uma prática pedagógica consciente e também desenvolvedora do
professor em sua atividade de trabalho.
Assim, a formação do professor é uma atividade educativa de
relevância incontestável para sua atuação humanizada e humanizadora.
Enfim, a docência, como atividade humana, é produção humana que se dá
pela aprendizagem-desenvolvimento. Nesse contexto, o processo de
formação desenvolvimental da docência, enquanto objeto intencional do
formador de professores, não emerge de maneira espontânea, é objeto de
processos educativos e, nesse sentido, são histórico-culturais.
Por isso, mesmo que sob alicerces teórico-metodológicos comuns,
temos a necessidade, no Brasil, de produzir modos e condições de
formação de professores desenvolvedores e para o desenvolvimento,
condizentes com as demandas do contexto sócio-histórico a que estamos
imersos. Afinal,
496
Os processos de individuação realçam a diversidade e põem peso
no papel das práticas socioculturais nas aprendizagens, [...]. Desse
modo, junto com a homogeneidade global, acentua-se a
diversidade sociocultural em que emergem múltiplas culturas e
múltiplos sujeitos, [...]. Tais processos são particularmente
importantes nos estudos da teoria histórico-cultural, considerando-
se que esta teoria tem como uma de suas mais fortes premissas a
influência das práticas socioculturais na gênese e desenvolvimento
de processos mentais. (LIBÂNEO, 2014, p.1).
497
de aprendizagem, mediado pelo sistema de conceitos no qual se está
inserido o conteúdo em formação.
Assim entendido, o trabalho do professor não é o de transmitir a
experiência histórica da humanidade, pela transferência do conhecimento
escolar. Nas palavras de Vigotski (2007, p. 247, tradução nossa):
498
colaborar nesse processo; o que, de longe, não corresponde à função de
agir de forma direta com o conteúdo sobre o estudante.
499
escolar brasileiro. Tem-se acesso a perspectivas pedagógicas diferentes e
alternativas ao ensino tradicional e tecnicista e, portanto, se é capaz de
defendê-las; mas ainda sob uma perspectiva prática reprodutiva e
mnemônica.
A tese que temos defendido, quanto à essa situação que
caracteriza os processos formativos de professores na realidade brasileira,
é a de que essa circunstância se justifica pela ausência de uma vivência
(perejivanie)155 real dos métodos e de estratégias didáticas relevantes para o
exercício de uma educação desenvolvedora e humana. Se
500
Por tais razões, não se pode responsabilizar o professor,
tampouco ignorar o papel dos processos didáticos em sua formação
profissional. O docente se constitui na unidade dialética sócio-pessoal156 e,
sua atividade profissional, revela as mediações vivenciadas nos processos
educativos ao longo de sua escolarização ou mesmo nos processos de
profissionalização pelos quais passou.
As pesquisas que temos realizado (LONGAREZI, 2017; 2020b;
2021b; LONGAREZI; DIAS DE SOUSA, 2018; FRANCO; SOUZA;
FEROLA, 2018; FRANCO, 2015; DIAS DE SOUSA, 2016;
GERMANOS, 2016; SOUZA, 2016; FEROLA, 2016; MARRA, 2018;
COELHO, 2020; JESUS, 2021; FERREIRA, 2021; entre outras)
possibilitaram constatar que a formação conceitual e de ações mentais
sobre a docência, com impactos na prática pedagógica do professor,
fundada no método dedutivo (do abstrato ao concreto), se efetiva
fundamentalmente na unidade conteúdo-forma; ou seja, pela vivência do
método (forma) se faz concreta a formação-desenvolvimento do
professor para o exercício de uma educação desenvolvedora dos
estudantes. Assim,
501
O método tem sido, nesse sentido, o conteúdo teórico e prático
dos processos formativos que temos produzido, dadas as particularidades
e demandas formativas desenvolvedoras de professores; dadas as
peculiares da realidade da escola pública brasileira, bem como dos modos
próprios de pensamento consolidados em contextos capitalistas como os
que caracterizam o Brasil. Em face dessa conjuntura, as investigações que
temos realizado (LONGAREZI, 2006; 2012; 2014; 2017; FRANCO,
2015; DIAS DE SOUSA, 2016; GERMANOS, 2016; SOUZA, 2016;
FEROLA, 2016; MARRA, 2018; COELHO, 2020; JESUS, 2021;
FERREIRA, 2021; entre outras) com formação de professores têm no
método a fonte didática que oportuniza a vivência (perejivanie) necessária à
formação e ao desenvolvimento de professores e estudantes no contexto
educacional brasileiro.
No bojo dessa condição entendida como fulcral para uma
formação docente desenvolvimental nas condições socioculturais
brasileiras, temos defendido, a partir de várias pesquisas-formação157
realizadas com professores e gestores pedagógicos em escolas públicas de
Educação Infantil, Ensino Fundamental, Médio e Superior, que os
processos estejam pautados por uma perspectiva dialética que se constitua
luta dos contrários, enquanto unidades; para as quais produzimos
502
movimentos e ações didáticas, assumidos a partir de alguns princípios
que sistematizamos como orientadores do desenvolvimento profissional
docente desencadeado pela formação de professores nessa abordagem:
503
didáticos desenvolvimentais para a formação e o desenvolvimento do
pensamento conceitual do professor “sobre” e “para” a docência.
504
FERLOA, 2018) e de formação desenvolvimental de professores
(LONGAREZI, 2017): unidades conteúdo-forma, imitação-criação e ruptura-
desenvolvimento .
A primeira, unidade conteúdo-forma, se configura como uma
dimensão central da formação didática do professor, sem a qual entende-
se absolutamente inócua qualquer tentativa de formação desenvolvedora.
O ponto de partida para esse entendimento está na identificação dos
conteúdos que se propõem para a formação docente, em uma perspectiva
didática desenvolvimental, dada a realidade brasileira. Alguns estudos
(LONGAREZI, 2006; 2012; 2014; 2017; LONGAREZI; ARAUJO;
FERREIRA, 2007; LONGAREZI, FRANCO, 2017) no campo da
formação de professores, desenvolvidos a partir dessa abordagem,
levaram à compreensão de que os conteúdos da formação didática para a
docência consistem em: 1. princípios teórico-metodológicos orientadores
de uma educação que promova desenvolvimento, 2. fundamentos teórico-
metodológicos para uma Didática Desenvolvimental e 3. conteúdos
disciplinares e sua base epistemológica; mediados pelo 4. método
(LONGAREZI, 2017). O método, nessa perspectiva, se apresenta como o
conteúdo síntese da relação dialética entre todos conteúdos, o que
possibilita uma concepção e prática de unidade no processo de obutchénie-
desenvolvimento.
A proposta do método como síntese e, nesse sentido, unidade
dialética no processo formativo docente fundamenta-se na compreensão
da imprescindibilidade da vivência (perejivanie), pelo professor, do modo de
formação do pensamento teórico como parte de sua constituição
profissional, para que sejam formadas as funções psicológicas necessárias
a uma prática pedagógica desenvolvedora do estudante. Por isso, a
proposta é a de que o método seja o eixo central do processo de
formação, a partir do qual os demais conteúdos se relacionem, se
confrontem, se constituam enquanto unidade.
A vivência (perejivanie) do método como forma de apropriação-
objetivação da profissionalidade docente já se apresenta como um
prenúncio de outra importante condição para a formação didática do
professor numa perspectiva desenvolvimental: a imitação-criação, segunda
unidade. A gênese dessa interpretação encontra-se na concepção
505
vigotskiana dos conceitos de imitação e criação e suas constituições no
processo intencional de desenvolvimento humano pela via da educação.
506
Imitação e criação estão “coladas” de tal modo que, da mesma
maneira que não existe imitação pura, a partir da qual nada se cria; não se
pode criar sem a oportunidade de imitar na zona de possibilidade, com a
colaboração. Enquanto a imitação é a chave para a criação, essa é a síntese
de um movimento psíquico intenso provocado pela unidade imitação-criação,
unidade que dá viabilidade para o que temos defendido enquanto
processo de vivência (perejivanie), pelo professor, do método. Sem a
possibilidade de imitar, o professor não cria um modo desenvolvimental
de educar; constituindo-se, portanto, em uma unidade sistemicamente
articulada às demais, condição para a formação-desenvolvimento
profissional docente.
A terceira unidade, ruptura-desenvolvimento, compõe esse sistema de
unidades (no qual as unidades conteúdo-forma, imitação-criação e ruptura-
desenvolvimento se constituem enquanto relações recíprocas e
incondicionalmente articuladas), e tem sua identidade estabelecida pela lei
central da dialética (a unidade/luta dos contrários): “[...] pode-se definir a
dialética como doutrina da unidade dos contrários. [...] Todas as outras leis
da dialética [...] são uma revelação, concretização ou complementação do
conteúdo desta lei básica.” (KOPNIN, 1978, p.104). Sob esse prisma, a
essência da lógica dialética reside no entendimento do que se quer
defender em torno da unidade ruptura-desenvolvimento.
A consciência se forma-desenvolve na complexa rede de conexões
nas quais o homem se constitui humano e constitui a humanidade. Na
concretude das relações sociais nas quais o sujeito está imerso e nas quais
produz novas relações, os processos mentais humanos se formam-
desenvolvem, na unidade sujeito social-sujeito pessoal. Nesse sentido, a
consciência para a psicologia soviética
[...] não é dada a priori, nem é imutável e passiva, mas sim formada
pela atividade e usada pelos homens para orientá-los no ambiente,
não apenas adaptando-se a certas condições, mas também
reestruturando-se. A ideia de que os processos mentais dependem
das formas ativas de vida num ambiente apropriado tornou-se um
princípio básico da psicologia materialista. (LURIA, 2008, p. 23).
507
O processo de constituição humana, no entendimento que se quer
pôr em evidência, é assumido como sócio-pessoal e se faz na atividade
humana (também sócio-pessoal). Essa relação dialética se estabelece no
jogo de forças da vida, como luta e tem na contradição a força motriz da
transformação, como possibilidade de ruptura. O movimento de
confronto entre essas forças se materializa na atividade humana. Por meio
das contradições inerentes a ela encontram-se as condições objetivas e
subjetivas da atividade para a formação e o desenvolvimento
(LONGAREZI, 2006).
Esse não é um processo no qual o sujeito fica, como alertado por
Luria, passivo diante da atividade, pelo contrário, é a atividade mental
produtiva do sujeito que possibilita colocar em movimento, em
confronto, as contradições, rompendo com velhos modelos mentais,
rupturas necessárias para novas formas de pensamento. Dessa maneira, a
chave para a transformação está na ruptura possível, gerada no embate
entre as forças contraditórias colocadas em confronto. Assim como a
obutchénie é, para Vigotski (1991), “[...] imprescindível no processo de
desenvolvimento das funções psicológicas, impulsionando o
desenvolvimento da consciência ...” (LONGAREZI; ARAUJO;
FERREIRA, 2007, p. 66); também os processos psíquicos do sujeito o são
indispensáveis. O sujeito ativo, assumido em sua totalidade, mobiliza suas
várias funções psicológicas, acionando e sendo acionado por seus diversos
sentidos; não restritos, portanto, à dimensão racional do homem, ao seu
desenvolvimento cognitivo; incluído nesse processo a dimensão dos
afetos e emoções.
A (trans)formação, processo de ruptura-desenvolvimento, não
pode ser identificada, localizada como produto alcançado ou nível
desejável a ser atingido, pois, consiste em processo a partir do qual são
acumuladas mudanças quantitativas que podem, a depender das
mediações e contradições vivenciadas no contexto humano-formativo,
produzirem uma nova qualidade. A qualidade da mudança depende
também da qualidade das mediações vivenciadas, das unidades conteúdo-
forma, imitação-criação, ruptura- desenvolvimento experimentadas.
No sentido vigotskiano, a mudança se dá mediada pelo
conceito científico e as ações mentais, entendida como processo de
tomada de consciência.
508
[...] a tomada de consciência está baseada na generalização dos
próprios processos psíquicos, o que conduz ao seu domínio. Nesse
processo, o papel decisivo é desempenhado principalmente pela
obutchénie. [...] a tomada de consciência ingressa pela porta dos
conceitos científicos. (VIGOTSKI, 2007, p. 315, tradução nossa).
509
Nos movimentos de diagnóstico, problematização e formação do
conceito científico e dos modos generalizados de ações vão se evidenciando
contradições, gerando crises e confrontando formas distintas de
explicações sobre o mundo, o que produz as condições psíquicas para
a superação de formas consolidadas e a emergência de novas formas
de pensamento, gerando as condições para a formação-
desenvolvimento de funções psicológicas superiores.
Desses movimentos, depreendem-se ações didáticas que, longe
de serem compreendidas como um modelo didático, podem expressar a
concretude do movimento possível de ser produzido como atividade
criativa do professor na unidade com a atividade criativa do estudante.
Consistem essas ações: 1. diagnóstico, 2. problematização, 3. atividade coletiva, 4.
consciência expressa no uso intencional dos significados conceituais e 5. generalização
como objetivação do conceito para si (SOUZA, 2016).
As ações de diagnóstico e problematização correspondem aos dois
primeiros movimentos apresentados e são fundamentais porque
demarcam o ponto de partida para o processo educativo que se constitua
sob a base da contradição e da crise para criar novos interesses,
impulsionadores da formação do conceito e das ações mentais docente.
Na medida em que o formador de professores conheça as habilidades que
já se “[...] têm desenvolvidas e aquelas que eles estão potencialmente aptos
a desenvolver, se torna possível o planejamento intencional das ações [...]
que oferecerão [...] condições para [...] que o desenvolvimento seja
possível.” (SOUZA, 2016, p. 150).
A atividade coletiva, terceira ação, se mostra relevante como modo
de organização do trabalho nos movimentos apresentados, especialmente
porque aproveita a proximidade interpessoal existente entre os
professorandos, feito disso motivo preliminar que incite seus interesses à
participação nas atividades propostas e, nesse sentido, se caracterize como
possibilidade inicial para a constituição dos interesses, no sentido tratado
por Vigotski (2012). Na esfera das emoções, a atividade coletiva tem ainda
um importante papel
510
própria diversidade social pode ser representada nas
diferenças presentes nos estudantes que trabalham em
conjunto. (SOUZA, 2016, p. 153).
511
que caracterizam a docência e a formação de professores no contexto
educacional brasileiro
512
Analisamos, portanto, unidades, movimentos e ações didáticas
propostas para uma formação do professor como mudança das circunstâncias
que, gerada e geradora de uma educação modificada, se constitui condição
para que o processo dialético se efetive. Dessa maneira, os homens podem
mudar suas próprias circunstâncias; assim como se constituem a partir
delas. Os propósitos de educação e desenvolvimento emergem e
encerram-se em unidade.
Referências
513
DIAS DE SOUSA, Walêska D. Processos de imitação-criação como
constituidores da práxis pedagógica. 2016. 343 f. Tese (Doutorado em
Educação) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2016.
Disponível em:
https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/17633/1/ProcessosImit
acaoCriacao.pdf. Acesso em: 03 de mai. de 2017.
514
<http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/19820/
20628>
Acesso em: 05.03.19.
515
Fundamental, Médio e Superior. Brasília, CNPq, Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico, (Projeto de Pesquisa), 2014.
516
LONGAREZI, Andréa M. Experimento de formação gradual: o método
de estudo da gênese dos processos cognoscitivos de P. Ya. GALPERIN.
In: LONGAREZI, A.M.; PUENTES, R.V. (Orgs.) Ensino Desenvolvimental.
Sistema Galperin-Talizina. Editora, 2021a (no prelo).
517
Atividade). Дубненский психологический журнал (Jornal de Psicologia de
Dubna), Dubna/Rússia, n.1, 2015.
518
MARRA, José B. J. Formação de formadores de professores para e por
um Ensino Desenvolvimental de línguas: uma intervenção didático-
formativa na educação superior em Moçambique [Tese de Doutorado]. 147f.
Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de
Uberlândia, MG, 2018.
MARX, Karl. Teses Sobre Feuerbach. In: MARX, Karl & ENGELS,
Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo, Ciências Humanas, 1989.
519
metodológica. Obutchénie. Revista de Didática e Psicologia Pedagógica.
GEPEDI/ Uberlândia: EDUFU, 2017b, vol. 1. n.1, p. 9-19.
Disponível em
<http://www.seer.ufu.br/index.php/Obutchenie/article/view/38417/22
696>
Acesso em: 06/07/2018.
520
VIGOTSKI, Lev S. Pensamiento y habla. Buenos Aires: Colihue, 2007.
521
Capítulo 16
Elementos Introdutórios
522
Educação Básica e Ensino Superior), coletivos didático-formativos e
desenvolver investigações “com” e não “sobre” professores.
Consciente de tais estudos e pesquisas torna-se fundamental
agradecer de modo especial à professora Andréa Maturano Longarezi, sua
sapiência acadêmica e humana, seu rigor conceitual e crítico, ao realizar a
orientação da pesquisa de doutorado –objeto de discussão neste texto-,
com mediações impulsionadoras para referida construção e
aprofundamento.
523
LONGAREZI, 2017a, 2017b) e da Obutchénie Desenvolvimental159 de Vasili V.
Davydov, passaram a sustentar e fundamentar os rumos do doutoramento. As
proposições de Davydov (1986, p. 88-90), sobre a lógica dialética do processo
de conhecimento que leva à ascensão do abstrato ao concreto no pensamento,
e vice-versa, para a formação do pensamento teórico160 e, os postulados de
Vigotski (2001), sobre o movimento dos pensamentos cotidianos e
científicos161, mediados por instrumentos e signos, passaram a conduzir o
grupo e a pesquisa ora mencionada, a outras tantas indagações relacionadas à
educação escolar no Brasil.
Em decorrência desse contexto, das vivências e experiências do
exercício de supervisão pedagógica, a pesquisadora (FRANCO, 2015)
159 Transliteração da palavra russa обучение, obutchénie consite na “[...] interação entre
alunos e professores, a inter-relação entre a utchenia (aprendizagem) e os esforços
profissionais do professor (se essa interação for compreendida com a noção de
"atividade", então a obutchénie pode ser caracterizada como uma correlação entre
atividade de estudo e atividade pedagógica.)” (ДАВЫДОВ [DAVIDOV], 1996, p.
252, tradução e destaques nossos). A obutchénie corresponde, portanto, à unidade da
ação de professores e alunos “[...], com foco na aprendizagem do estudante que
ocorre em processo de colaboração com o professor e com outros estudantes.”
(LONGAREZI, 2020a, p. 4). Neste texto, optamos por não traduzirmos o termo
russo, em razão das imprecisões conceituais que as traduções têm gerado
(LONGAREZI, 2020a; 2020b; LONGAREZI; PUENTES, 2017; LONGAREZI;
SILVA, 2018). Assim, quando estivermos usando obutchénie estaremos nos
referindo a esse processo colaborativo que ocorre entre professores e alunos na
atividade pedagógica. Obutchénie Desenvolvimental, por sua vez, é empregada por
Valsili V. Davydov para designar um tipo de “obutchénie capaz de impulsionar o
desenvolvimento” (Davydov, 1986, p. 5).
160 Conforme Davydov (1986, p. 88-90) “O pensamento teórico se constitui em um
tipo de pensamento que tem por finalidade reproduzir a essência do objeto estudado
no decurso da formação das ações mentais que ocorre no processo intencional de um
ensino[obutchénie] para o desenvolvimento” (FRANCO, 2015, p. 23; acréscimo nosso).
161 Para Vigotski (2001, p. 182-3) o pensamento cotidiano ou espontâneo se refere à
524
esteve imersa nas situações problemáticas do atual sistema educacional
nacional, como professora de educação básica e como supervisora
pedagógica. Nessa condição surgem diversas inquietações, dentre elas a
falta de correspondência dos objetivos da atividade do professor e o seu
conteúdo, com os objetivos das atividades dos estudantes.
Essa inquietação se insurgiu como uma das várias problemáticas
relacionadas ao processo de obutchénie. Por exemplo: a forma e o conteúdo
da organização didática na escola, os métodos e conteúdos desenvolvidos
na educação básica brasileira e suas implicações para o desenvolvimento
integral162 dos estudantes, nem sempre eram/são tomados como objeto
de análise pelos próprios sujeitos do processo, na maioria das pesquisas
acadêmicas.
Mediante a mencionada aproximação, inicial e parcial163, por
vezes, nas ações entre estudantes e professores viram-se certas distorções
e estranhamentos diante do objetivo-fim da atividade pedagógica na
escola. Algumas atitudes desses sujeitos em tais condições apresentavam
indícios de que esses processos não faziam muito sentido para eles.
Dentre as atitudes dos estudantes, por exemplo, observavam-se apatia
diante dos estudos, faltas recorrentes às aulas, distanciamentos de
525
apropriações teóricas, descompromissos com as solicitações do professor,
esquecimentos de materiais escolares, desinteresse com o objeto do
conhecimento, dentre outros. Nas atitudes dos professores observavam-se
o descréditos pelas reuniões pedagógicas, poucos diálogos sobre os
modos e as condições de atuação da prática pedagógica, que pudessem
impactar positivamente o interesse dos estudantes para os conceitos e
conhecimento científico, uma vez que, para eles, as reuniões não atingiam
esse objetivo. (FRANCO, 2015).
Diante dessa problemática na pesquisa partiu-se do seguinte
pressuposto: de que essa distorção- cisões entre o objetivo-fim da
obutchénie na escola e o conteúdo-objeto delas - poderiam aumentar o
descrédito de professores e estudantes, pelo que realizavam no âmbito
escolar. Essa problemática se investigou na pesquisa ora relatada, de
forma sistemática e interventiva. Seria possível desencadear nos
estudantes novos interesses de estudar relacionados ao objeto do
conhecimento científico? Melhor dizendo: Que ações didáticas
mobilizariam o desenvolvimento de motivos formadores de sentido na
obutchénie potencializadores da humanização da professora e dos
estudantes na educação escolar?
O escopo da investigação envolveu uma escola pública municipal
mineira, uma professora de matemática e vinte e um estudantes do
segundo ciclo do Ensino Fundamental, oitavo e nono ano, durante três
semestres letivos consecutivos. Tomou como objetivo geral investigar o
movimento dos motivos desta professora de matemática em sua atividade,
bem como os motivos dos estudantes no processo de formação de
determinados conceitos teóricos matemáticos no campo da álgebra, com
vistas a apreender as ações didáticas impulsionadoras do desenvolvimento
integral de estudantes. Assim como o desenvolvimento pessoal e
profissional da professora, ambos em condição de atividade164. Neste
texto tem-se, particularmente, o objetivo de apresentar a síntese do
526
desenvolvimento dos sujeitos da pesquisa e as ações didáticas apreendidas
no movimento formativo proposto.
No primeiro momento abordam-se os fundamentos filosóficos,
epistemológicos, psicológicos e didáticos do movimento didático-
formativo da professora e estudantes durante a pesquisa. Em seguida, faz-
se referência ao percurso metodológico e as categorias analíticas do
estudo. Posteriormente, apresentam-se os principais argumentos
construídos ao longo da tese, os seus nexos, regularidades e em
decorrência as ações didáticas impulsionadoras do movimento didático-
formativo desenvolvido.
527
forma organizativa dos homens em sociedade através da história.
Este instrumento de reflexão teórico-prática pode estar colocado
para que a realidade educacional aparente seja, pelos educadores,
superada, buscando-se então a realidade educacional concreta,
pensada, compreendida em seus mais diversos e contraditórios
aspectos. (PIRES, 1997, p. 83).
528
seus princípios e leis, com maior exatidão, profundidade e
plenitude o objeto que estuda, mais perfeita e eficaz será como
método do conhecimento e transformação revolucionária da
realidade (KOPNIN, 1966, p. 102-103).
529
em Zilberstein e Oramas (2002); Puentes e Longarezi (2017a), uma
didática que se ocupa, ao mesmo tempo, do processo e do produto, que
se forma não só um novo conceito, mas também os modos de sua
assimilação.
Os estudos apontam (FRANCO, 2015; FRANCO;
LONGAREZI; MARCO, 2015; 2018; FRANCO; LONGAREZI, 2017),
que, quando o foco do processo de obutchénie se concentra mais nos
conteúdos escolares e não no modo e nas condições dos estudantes se
apropriarem dos conceitos teóricos presentes neles, podem ser
acarretados sérios problemas, como já mencionados na introdução, como
a cisão entre sentido e significado da obutchénie realizada por professores e
estudantes, dentro da escola. Consequentemente, isso pode influir
negativamente no processo de internalização (VIGOSTKI, 2001), e a
escola se configura como espaço específico para organização de tal
processo. Segundo o referido autor nesse campo as mediatizações
intencionais oferecem a possibilidade de se desenvolver uma forma
específica de pensamento: o teórico.
Nesse sentido, a pesquisa tomou como fundante as relações entre
obutchénie e desenvolvimento (VIGOSTKI, 2001; PUENTES;
LONGAREZI, 2017a), zona de desenvolvimento próximo (VIGOSTKI,
2001), métodos de ensino (KLINGBERG, 1978), conhecimentos
invariantes (GALPERIN, 2001; TALÍZINA, 2010). Segundo Franco
(2015), do ponto vista teórico esses conceitos trazem,
530
a autonomia e o uso consciente dos conceitos científicos/teóricos, por
parte do estudante para transformação de seu próprio pensamento e do
seu entorno social.
Para Franco (2015), do ponto de vista didático, a obutchénie
organizada a partir do descobrimento da gênese do conceito teórico cria
as condições para que as reelaborações possam ser realizadas ativamente
pelos estudantes, com sistemas de ações do pensamento lógico traçados
para esse objetivo. Da mesma forma, pesquisas organizadas a partir do
descobrimento da gênese desse processo de formação, criam as condições
para que essas reelaborações possam ser realizadas ativamente pela
professora, com sistemas de ações cognoscitivas teórico-práticas
específicas para atingir esse objetivo (FRANCO, 2015).
As ações cognoscitivas teórico-práticas realizadas na pesquisa
foram: leitura de textos sobre o aporte teórico histórico-cultural e dos
resultados de pesquisa interventivas na área da matemática, com o
enfoque da psicologia histórico-cultural; discussões sobre os conteúdos,
métodos pedagógicos, análise do material didático e das orientações
curriculares oficiais; planejamento das Atividades Orientadoras de Ensino,
dos sistemas de ações de aprendizagem dos estudantes com conceitos
teóricos, como: equações fracionárias e com coeficiente fracionário;
equações lineares e quadráticas; funções (FRANCO, 2015).
Do ponto de vista psicológico, uma educação escolar organizada a
partir do confronto entre os dois tipos de pensamento
espontâneo/cotidiano/empírico e o pensamento não espontâneo/não
cotidiano/científico, em um movimento dialético e não antagônico, cria as
condições para as transformações qualitativas e as superações, uma vez
que ambas as formas de pensamento coexistem na vida do estudante, mas
a escola necessita propiciar aos estudantes momentos para que possam ser
confrontados e superados. O mesmo acontece no processo formativo da
professora, entre o que esta já sabe e o que ainda busca conhecer, sob
outras bases didáticas (FRANCO, 2015).
Nos diagnósticos realizados com os estudantes Franco (2015)
constatou que as ações de estudo realizadas, até então, não resultavam em
apropriação e assimilação dos conceitos, pelo movimento inter ao
intrapsicológico, mais provocavam neles o desinteresse pelo objeto do
conhecimento e a perda de sentido dessa atividade para si mesmos.
531
Nessas condições, a necessidade de apropriação teórica não se
concretizava, e com isso, a atribuição de sentido por parte do estudante
deixava de se constituir/formar nas relações concretas produzidas no
contexto da atividade pedagógica. No diagnóstico inicial proposto aos
vinte e um estudantes foram identificados em dezesseis deles um
distanciamento e desinteresse com conceitos matemáticos, como exposto
no quadro 1.
532
Com efeito, se didaticamente ocorre intervenção na organização
da atividade pedagógica, com a criação de outras condições (operações),
pertinentes às ações cognoscitivas (teórico-práticas) dos estudantes e
orientadas pela essência do conceito, mais possibilidades haveriam de se
encontrar as correspondências entre objeto-objetivo e motivo,
modificando qualitativamente o tipo de pensamento a se formar,
consequentemente, os interesses/motivos para estudar/ensinar. Na
direção das superações buscou-se desenvolver na pesquisa esse
movimento. Durante a referida investigação os estudantes fizeram
atividades de autoavaliação sobre cada conceito trabalhado e foi possível
identificar tais movimentos, como exposto no quadro 2 seguinte:
533
Além disso, manifestaram o que lhes faltou para atingir os
objetivos propostos em cada uma das ações e tarefas daquele sistema.
Dito de outra forma, estiveram consciente tanto da sua ação, quanto da
omissão (FRANCO, 2015). Na subseção seguinte se expõem os meandros
desse movimento.
534
a obutchénie no decorrer do processo de investigação (FRANCO, 2015;
FRANCO; LONGAREZI; MARCO, 2015, 2018).
Esse tipo de procedimento criou condições para atuar no
processo de obutchénie (em seus elementos pedagógicos e didáticos) e, ao
mesmo tempo, no processo formativo dos sujeitos, de forma sistemática,
dialética e científica. A coleta de dados ocorreu em momentos inter-
relacionados: diagnóstico e intervenção. No primeiro, mediante entrevista
semiestruturada, formulários e observação das aulas foram analisados os
motivos segundo as categorias de Leontiev, a saber, motivos estímulos e
formadores de sentido.
No segundo, ocorreram os estudos didático-formativos,
Atividades Orientadoras de Ensino, notas reflexivas, ações de
aprendizagem, de registros dos estudantes, gravações em áudio e
anotações de campo, que foram analisados conforme as unidades de
análises: “compartilhamento/interações”; “apropriações/objetivações”;
“atribuição de sentido” (professora). Também, “domínio dos
procedimentos” e “operações lógicas do pensamento”; “atitude
consciente, intencional e orientada à finalidade do estudo” (estudantes).
Os estudos de Franco (2015); Franco, Longarezi, Marco (2015;
2018), evidenciaram que a relação motivo, objetivo-objeto (conteúdo)
para a qual o estudante pode direcionar suas ações, residiram no
desenvolvimento integral de sua personalidade, em especial, as ações
mentais, nas quais tiveram lugar a formação de conceitos e pensamento
teórico. De forma que, a organização didática da obutchénie para a
formação desses processos se constituiu na relação motivo, objetivo-
objeto (conteúdo), na qual, as ações da professora durante a atividade
pedagógica puderam estar direcionadas.
Assim entendeu-se que os produtos subjetivos desses processos
foram as mudanças qualitativas no desenvolvimento da professora, nos
aspectos didático-pedagógicos. Os produtos objetivos desses processos
foram as transformações da realidade, no e pelo trabalho educativo. Isto é,
das relações sociais e concretas entre professor e estudantes, professor e
métodos , entre os próprios estudantes e destes, com o objeto-conteúdo
do conhecimento (FRANCO; LONGAREZI; MARCO, 2015).
Nesse sentido, o procedimento de intervenção didático-formativo
organizou-se a partir dos elementos constitutivos da estrutura interna
535
psicológica da atividade, quais foram: elementos de orientação (objeto,
necessidade e motivo) e os de execução (ações operações e objetivos)
correspondentes.
As ações da professora se relacionaram com a seguinte
‘necessidade’: Promoção da aprendizagem e humanização dos estudantes.
Nesse caso, ela esteva impulsionada pelo seguinte ‘motivo’: fazer com os
estudantes se desenvolvessem de forma conceitual e afetiva. Isto é:
desenvolvimento integral dos estudantes, na sua inter-relação com a
formação das ações mentais, pensamento teórico e conceitos teóricos.
Para tanto, se considerou como ‘objeto’ a organização didática da
obutchénie com vistas a potencializar o desenvolvimento integral do
estudante. Contudo, tais elementos orientadores: ‘necessidade’, ‘motivo’ e
‘objeto’ não se bastaram a si mesmos. Eles necessitaram dos elementos de
execução, para que se objetivassem na realidade da professora. Desta
maneira, os elementos de orientação se relacionaram com os de execução,
e este dinamismo interno permitiu à professora, colocar-se em movimento
e objetivar-se na realidade concreta. Assim, pudemos considerá-los em
condição de atividade, como defendido na perspectiva leontiviana (aquela
que impulsiona o desenvolvimento do sujeito) (FRANCO;
LONGAREZI; MARCO, 2015, p. 2510).
Com efeito, para que as necessidades pudessem ser objetivadas na
atividade da professora, a nível consciente, o procedimento de intervenção
didático-formativo, considerou os seguintes elementos de execução, a
estrutura interna psicológica da atividade de Leontiev (1978):
Ações: i-Leitura de textos sobre a teoria histórico-cultural:
educação, ensino [obutchénie], desenvolvimento, didática, lógica dialética,
formação das ações mentais, pensamento teórico; ii-Planejamento didático
de ações de aprendizagem envolvendo conceitos algébricos, bem como, a
confrontação de conhecimentos da experiência da prática pedagógica e
conhecimentos da didática e ensino [obutchénie] desenvolvimental; iii)
Ações de autoavaliação.
Operações: i) Dinâmicas de estudo participativas e colaborativas,
pesquisadora e professora; ii) Registros dos encontros formativos e das
aulas.
Objetivos: i) Gerais: Analisar os pressupostos teóricos e
metodológicos orientadores da organização do[a] ensino [obutchénie] sob
536
enfoque da teoria histórico-cultural e ensino [obutchénie] desenvolvimental;
ii) Específicos: Identificar os princípios da didática desenvolvimental no
processo de ensino [obutchénie]; comparar as características da lógica
empírica e dialética, tendo em vista organizar o[a] ensino [obutchénie] a
partir da lógica dialética; e desenvolver o processo de formação das ações
mentais ao organizar intencionalmente o processo de ensino [formação]
de conceitos matemáticos teóricos/científicos. (FRANCO;
LONGAREZI; MARCO, 2015, p, 2511; acréscimos nossos).
Conforme as autoras esse movimento se constituiu entre vários
confrontos, conflitos, reelaborações, superações que resultaram nas
elaborações das Atividades Orientadoras de Ensino, (MOURA, 1992),
e seus respectivos sistemas de ações de aprendizagem (produtos objetivos
e subjetivos). Nessas Atividades Orientadoras de Ensino, desenvolveram-
se junto aos estudantes conceitos teóricos algébricos: equação; equação
fracionária e com coeficiente fracionário; equação linear e quadrática;
função linear e quadrática.
Portanto, os dados foram produzidos e coletados mediante a
inter-relação do trabalho educativo e estudos didático-formativos,
totalizando 15 encontros com a professora em que se produziram três
Atividades Orientadoras de Ensino com conceitos algébricos. Os registros
dos encontros de formação, gravados em áudio, no caderno de campo e
em notas reflexivas da professora, possibilitaram apreender produtos
objetivos e subjetivos do seu percurso formativo (FRANCO;
LONGAREZI; MARCO, 2015).
Os dados da totalidade do processo formativo da professora, sob
esse enfoque didático e dialético, foram organizados em unidades de
análise, conforme Vigotski (1991) e representaram o movimento
universal-singular-particular como indivisíveis elementos da essência
investigada. Tais unidades se aproximaram dos isolados de pesquisa,
(CARAÇA, 2002, p.105), pois se constituíram como recorte da realidade,
mas contendo a unidade do todo (FRANCO, 2015; FRANCO;
LONGAREZI; MARCO, 2015, 2018).
Cada um desses isolados foram expressos por episódios, “aqueles
momentos em que fica evidente uma situação de conflito que pode levar à
aprendizagem do novo conceito” (MOURA, 1992, p. 77). Para este autor,
os episódios evidenciam as unidades de análise, por que revelam “a
537
natureza e qualidade das ações” (MOURA, 2000, p.60) da professora.
Esses episódios foram organizados em cenas que, ao longo do processo,
denotaram as manifestações da professora acerca dos motivos formadores
de sentido da obutchénie (FRANCO, 2015; FRANCO; LONGAREZI;
MARCO, 2015, 2018); bem como evidenciaram as manifestações do
pensamento do estudante em relação ao conceito e os sentimentos
gerados neles.
As categorias analíticas da pesquisa observaram o movimento de
organização da obutchénie desenvolvimental, nos seguintes episódios:
Episódios A: As dificuldades de organização da obutchénie para além da lógica
formal; Episódios B: A busca pelo sentido das atividades mediante situação-problemas.
No caso dos estudantes as categorias analíticas foram nos
seguintes episódios: Episódios C: A formação das ações mentais para o
desenvolvimento do pensamento e conceitos teóricos, e os motivos formadores de sentido.
Episódios D: As relações entre o cognoscitivo e as manifestações volitivo-afetivas
positivas no desenvolvimento de motivos formadores de sentido do estudo. Para os
propósitos desse capítulo revelam-se os nexos e regularidades do processo
de desenvolvimento de motivos formadores de sentido no estudo de
conceitos científicos matemáticos, decorrentes de um dos episódios.
538
Durante a pesquisa foram planejadas juntamente com a professora
três Atividades -Orientadoras de Ensino-AOE, em uma delas, trabalhou-
se com o conceito de “funções”, e o seu sistema conceitual inerente.
Assim, durante o desenvolvimento das aulas observaram-se as
regularidades de motivos manifestados pelos estudantes com função de
conferir sentido às suas ações de estudo, e que compuseram uma das
cenas discutidas na tese, no Episódio D, “As relações entre o cognitivo e as
manifestações volitivo-afetivas no desenvolvimento de motivos formadores de sentido do
estudo”, nesse caso, refere-se ao terceiro sistema de ações de aprendizagem
na AOE-III.
O objetivo das ações de aprendizagem do terceiro sistema, na
AOE-III consistiu em: Desenvolver as habilidades do pensamento lógico
diante dos nexos conceituais de função linear e quadrática.
Ações de aprendizagem consistiram em: Prática e aplicação de
modos de ação em situações similares envolvendo o conceito de função.
1) Identificar os movimentos entre as grandezas (variáveis) em uma
relação funcional, analisando o papel de cada uma delas (variável
dependente e independente); 2) Reconhecer os nexos conceituais da
função em situações reais similares, em sequências numéricas, ou padrões
geométricos para construção do conceito de função; 3) Usar as diferentes
linguagens verbal, gráfica e analítica para o estudo e movimento das
variações de determinadas grandezas.
Nas seguintes condições: Em duplas realizar as ações propostas.
No grupo-classe verbalizar as ações de identificação, comparação, análise
e sistematização das ideias. A figura 1 apresenta as tarefas solicitadas aos
estudantes.
539
Figura 1: Ações de aprendizagem dos estudantes com conceito de função.
Nº de triângulos Nº de palitos
1 3
2 5
3 ....
.... ....
540
Para Franco (2015, p. 249), a situação problema pode desafiar os
estudantes a encontrarem a relação principal existente entre triângulos e
palitos, comparando a variação quantitativa e a regularidade entre as duas
grandezas, de modo mediado. Para realizar essa ação de análise e
comparação, os estudantes precisariam abstrair a representação para
descobrirem a relação principal existente na sequência de figuras
geométricas. Na figura 2, encontram-se os diálogos estabelecidos entre os
sujeitos durante as aulas, para formar conceito de função. A cena que se
segue revela apenas o início do processo.
N Sujeitos Diálogos
1 Profa. Quantos palitos nós usamos para formar um triângulo?
2 Grupo- Três
classe
3 Profa. E nessa sequência descrita na folha de atividade quantos palitos
usamos para formar três triângulos?
4 Est.Luc Nove
5 Profa. Será? Observem o que está acontecendo nessa situação representada
na folha. Quantos palitos foram usados na segunda sequencia de
triângulos?
6 Est.Luc Não! Não foram nove, professora. Foram cinco.
7 Profa. E na sequência seguinte quantos palitos foram usados?
8 Est.Ca Sete, porque tem um que depende do outro que está na base.
9 Profa. O que está acontecendo? Vocês precisam observar, dessa sequência, a
relação existente para responder as tarefas da folha. Então, Para um
triângulo precisamos de três palitos, e para fazer dois triângulos?
10 Grupo- Cinco.
classe
11 Profa. E para fazer três triângulos?
12 Grupo- Sete (respondeu a maioria) Nove (responderam alguns)
classe
13 Profa. O que vocês estão vendo acontecer nesse movimento?
14 Est.Mat. O número de palitos está aumentando.
15 Profa. De quantos em quantos?
16 Grupo- De dois em dois.
classe
17 Profa. Então, podemos ver aqui que tem uma grandeza variando e
dependente dessa regularidade quantitativa. De quanto é essa
regularidade para formar um novo triângulo?
18 Est.Vi O triângulo sempre vai precisar de dois novos palitos.
19 Profa. Muito bem. Agora verifiquem os questionamentos de cada tarefa
relacionada com essa situação de sequência dos triângulos e
respondam na folha de vocês.
541
20 Profa. Vamos precisar de quantos palitos a cada novo triângulo?
21 Est.Ca Sei que vamos precisar de dois palitos para cada novo triângulo,
professora. Mas eu não estou entendendo qual variável depende da
outra nessa tarefa seguinte?
22 Profa. Analisando as grandezas que se variam envolvidas na situação,
números de triângulos, que vocês denominaram de (x) e números de
palitos (y), quem depende do outro aqui nessa relação?
23 Est.Vi O novo triângulo depende do outro palito já existente e dos dois
novos.
24 Profa. Então, o triângulo é uma grandeza que depende da variação da outra variável
independente, que são os palitos. Quantos palitos a variável dependente
(triângulos) sempre vai precisar nessa relação?
25 Est.Ca Ué, são dois. Então, o novo triângulo depende desses dois, mais 1 que
já tem lá. Agora entendi!
26 Pesq. A professora escreveu no quadro a seguinte representação:
x= f (p) O número de triângulo em função dos palitos.
27 Profa. A representação algébrica dessa relação de dependência entre as duas
grandezas y = ax + b
y = 2x + 1 Para fazer cada novo triângulo são necessários dois palitos.
A quantidade de um vai depender da variação do outro. Por isso, são 2
dois palitos para formar mais um triângulo. Essa é a lei de formação
dessa função. Agora substituam aí na função para encontrarem o
número de palitos para 18 e para 25 triângulos como está pedindo na
próxima tarefa.
28 Est.Ca Professora, eu vou colocar que meu y é igual 2 palitos, vezes 18
triângulos, mais 1, certo?!
y= 2 (18) +1
y= 36 +1
y= 37
29 Profa. Profa.: Isso mesmo!
542
mesma ação, a fim de que os estudantes pudessem reestruturar seu modo
de pensar.
Depois da realização de tal operação, alguns estudantes
conseguiram identificar a sequência e a dependência com um palito
da base. Percebe-se que a professora não quis referir-se à base do
triângulo no sentido geométrico, mas a utilização de um triângulo
para servir de ponto inicial para a generalização da ideia discutida.
Em seguida, a professora (trecho, n. 13) levantou outra questão: “O
que vocês estão vendo acontecer nesse movimento?”. A intenção dessa ação
didática (fazer questionamentos, levantar hipóteses) sobre as
características do movimento presente na função, se constitui parte
da ação de definição e explicação das características do conceito e da
base orientadora da ação, conforme Galperin (2001). Coube à
professora construí-las com os estudantes.
Com base nesse autor Franco (2015), compreendeu que essa
definição conceitual somente iniciou o processo e vinculou-se
dialeticamente à ação de indução ao conceito que os estudantes tiveram
que realizar, para identificar se o objeto em questão se relacionou ou não
com o conceito, “função”.
A definição inicial de um dado conceito ocupa um lugar
importante junto às demais ações que os estudantes realizam no processo
de apropriação conceitual (identificação, comparação, análise, modos de
reprodução, modos de produção, aplicação e elaboração conceitual), mas
dominar a definição de um conceito trata-se apenas o início do processo
de formação do pensamento teórico sobre o mesmo.
As questões postas pela professora na dinâmica da aula
contribuíram para essa finalidade didático-formativa, pois geraram novas
necessidades cognoscitivas nos estudantes, uma vez que precisaram
solucionar a dúvida. Isso os colocaram em condição de atividade, uma das
condições necessárias para o estudante traçar metas capazes de supri-las.
Entretanto, tais necessidades não bastaram a si mesmas, elas precisaram
da atividade intencional da professora para que pudesse se relacionar com
o objeto conceitual, tendo em vista sua concretização na ação de
aprendizagem (FRANCO, 2015).
A intencionalidade dessa ação mediada contribuíram para que
os estudantes pudessem compreender a lógica dialética do
543
movimento e se atentarem para as relações que estavam para além das
aparências ou da percepção sensorial e concreta, como pode-se notar
nas respostas dos estudantes (trechos, n. 14, n. 16, n. 18): “O número
de palitos está aumentando”; “De dois em dois”; “O triângulo sempre vai
precisar de dois novos palitos.” A partir do momento em que os
estudantes identificaram as relações internas do movimento e suas
características gerais, a professora teve condições de fazer as
sistematizações e a formalização do conceito, de modo que os
estudantes pudessem atribuir sentido pessoal à significação.
Nesse caso, a linguagem formal algébrica passa ser mais bem
compreendida pelo movimento que representa e não somente pela sua
resolução técnica. No (trecho, n. 17): a professora questionou: “Então,
podemos ver aqui que tem uma grandeza variando e dependente dessa regularidade
quantitativa. De quanto é essa regularidade para formar um novo triângulo?”
Quando a professora expressou verbalmente o significado do
movimento da relação funcional, buscou, intencionalmente, chamar a
atenção dos estudantes para a essência da relação principal desse conceito.
Assim o estudante poderia dar a ele um sentido, à medida que conseguisse
realizar as ações e tarefas de aprendizagem, elaboradas e traçadas,
previamente pela professora.
Nessas condições os estudantes puderam reproduzir o modo de
ação geral do conceito no processo de formação das ações mentais e
estabelecer sentidos. A relação substantiva e essencial do conceito de
função, em sua representação algébrica (significação social), pode ser
compreendida pelo estudante, quando este, o relacionou com o objeto de
maneira ativa e consciente dos fins de cada ação realizada nas tarefas de
estudo. As relações de correspondência motivo-objeto-objetivo, na
obutchénie, dizem respeito à produção de sentido e significado do próprio
sujeito, todavia constituído e mediado no social. Por isso, que durante a
pesquisa Franco (2015, p. 251), pode identificar nos estudantes
regularidades de uma “atitude mais consciente, intencional e orientada à
finalidade do estudo durante todo o processo”.
Em outro trecho, (n. 21), um estudante disse: “Sei que vamos precisar
de dois palitos para cada novo triângulo, professora. Mas eu não estou entendendo qual
variável depende da outra nessa tarefa seguinte?”. Para ajudar a estudante a
descobrir essa relação de dependência, a professora não respondeu, mas
544
retornou ao questionamento inicial do estudante, em forma de outra
pergunta (trecho, n. 22): “Analisando as grandezas que se variam envolvidas na
situação, números de triângulos, que vocês denominaram de (x) e números de palitos
(y), quem depende do outro aqui nessa relação?”. Tal questão fez com que o
estudante abstraísse o movimento de dependência, de cada novo
triângulo, sendo determinado pela variação do número de palito.
Conforme Caraça (1984), na relação funcional, uma das grandezas
(a função) é perfeita e univocamente determinada pela variação da outra
(variável independente). O entendimento dessas noções básicas, na
função, não é fácil para os estudantes. Para Scarlassari (2007, p. 32) essa
dificuldade se apresenta porque: “Normalmente o que acontece nas
escolas com as funções, é um trabalho restrito à variável letra, sem análise
gráfica que contribuiria muito no entendimento do aluno [...] O conceito
algébrico de “função” é o que mais deixa explícito a ideia de movimento.
(SCARLASSARI, 2007, p. 32)”.
A professora fomentou novos diálogos entre os alunos e deu-lhes
o “tempo” para justificarem os seus pensamentos. Ao perceberem a
reprodução de um modo de ação geral da relação principal do conceito
“função”, com a existência da relação de dependência entre as grandezas e
a regularidade quantitativa, como expresso no trecho, (n. 23): “O novo
triângulo depende do outro palito já existente e dos dois novos”. E nesse mesmo
instante outro estudante responde no trecho (n. 25): “Ué, são dois. Então, o
novo triângulo depende desses dois, mais 1 que já tem lá. Agora entendi!”.
Franco (2015), entendeu que a afirmação deste estudante ajudou
na sistematização de outro colega: “Professora, eu vou colocar que meu y, é igual
a 2 palitos, vezes 18 triângulos, mais 1, certo?! Y = 2 (18) + 1; y = 36 + 1; y =
37 (trecho, n. 28)”. Conforme Talizina (2002), as ações que se realizam com
as características do conceito servem como meio para a sua apropriação.
Nesse terceiro sistema, observou-se que as ações de aprendizagem
(reprodução e aplicação de modos de ação), foram objetivadas por
diversos estudantes de forma satisfatória: Est. Ca; Est. Ed; Est. Ge; Est.
Is; Est. Mal; Est. Mat; Est. Ra; Est. Vi; Est. Ta; Est. Su; Est. Luc e Est Ri.
Estes estudantes demonstram a caracterização das relações funcionais
entre as duas grandezas que se variaram, conseguiram abstrair o conceito
do procedimento, solucionando o desafio e as tarefas (FRANCO, 2015).
545
Cabe ressaltar tais tarefas se inserem em cada AOE e nos
diferentes sistemas de ações de aprendizagem, orientadas princípios
didáticos distintos do que comumente se exige em grande parte de livros
didáticos. Para Oramas (2002);
Por essa razão, uma das tarefas solicitadas aos estudantes ao final
de cada sistema de ações de aprendizagem das AOE, consistia em
expressar o modo como o pensamento deles estavam em relação ao
conceito trabalhado, bem como, precisavam expressar o sentimento
gerado neles mediante as ações e tarefas desenvolvidas.
Nesse sistema em específico os estudantes, de certo modo,
expressaram a compreensão não somente de determinadas relações
presente no conceito de linguagem algébrica, mas também, novos
interesses cognoscitivos constituídos nesse movimento. Uma vez que em
cada uma das tarefas, desse sistema de ações de aprendizagem envolveu o
estudante numa “[...] busca ativa do conhecimento, adquirindo
consciência de como, porque e para quê fazê-lo” (ZILBERSTEIN;
ORAMAS, 2002, p. 95). No quadro 3, apresentam-se uma dos registros de
estudantes durante esse movimento de atribuir sentido.
(Ação de autoavaliação final. O número de triângulos está em função do número de palitos, que
AOE-III-2013. Est.Ca) existe uma variável dependente da outra e uma regularidade
quantitativa. (+) Hoje achei legal, porque compreendi perfeitamente
546
o movimento da função e com as análises junto com o grupo foi
mais fácil compreender do que só com o que professora diz,
(Ação de autoavaliação final. Eu gostei muito de trabalhar desse jeito nessas aulas, elas foram
AOE-III-2013. Est. Ge.) muito importantes para mim. Hoje consigo compreender melhor a
matéria. A matemática é uma matéria muito difícil, mas quando se
aprende não se esquece, e eu sei bem esses conceitos principais
estudados nessas aulas. Ultimamente eu venho tendo a noção da
importância da matemática, digo isso em relação à prova do
concurso do IFTM que quero fazer. Obrigado por essa
oportunidade.
(Ação de autoavaliação final. Eu achei melhor trabalhar assim, porque é mais fácil de entender a
AOE-III-2013. Est. Is). matéria. Foi importante para mim, porque eu comecei a me dar bem
na matemática. Já tive uma melhora na questão de interpretar o que
se está pedindo na situação problema e na resolução. Antes eu tinha
preguiça e desinteresse, mas agora me acho com mais capacidade.
Atualmente me interesso mais nas tarefas e procuro entregar em dia.
(Ação de autoavaliação final. Apesar de ter certa dificuldade eu tento fazer com ajuda e estou me
AOE-III-2013Est. Ja). sentindo com mais compreensão que antes.
(Ação de autoavaliação final. Eu acho que me sinto melhor para compreender, sempre tenho
AOE-III2013. Est. Loc) atitudes de tentar resolver as tarefas.
(Ação de autoavaliação final. Hoje eu me sinto bem melhor, com comportamento mais calmo e
AOE-III-2013Est. Luc). atitude de aprendizagem.
547
Nas aulas foi possível verificar que professora e estudantes se
relacionaram entre si e com o objeto do conhecimento, de forma mais
ativa, eles se perceberam mais confiantes em si mesmos diante das ações
de aprendizagem, porque se apropriaram de um modo de ação com o
conceito capaz de ajudá-los a construir o conteúdo do pensamento
teórico. Nesse caso, os estudantes se sentiram e se colocaram como
sujeitos ativos do seu processo de aprendizagem impulsionando seu
próprio desenvolvimento (FRANCO, 2015).
Na pesquisa Franco (2015) demonstrou que o modo de organizar
as ações de aprendizagem - por meio de tarefas específicas analíticas
reflexivas sobre a essência do conceito, a fim de destacar e conhecer os
nexos, dependências e as relações nele existentes - formaram novas
capacidades, habilidades, generalizações. Para Dragunova (1980, p. 166), é
preciso criar e desenvolver nos adolescentes a disposição para resolver
esse tipo de tarefa de estudo.
Como apresentado os registros dos estudantes nas ações de
autoavaliação se verificou que a formação do conceito teórico (Davydov,
1981) ou científico (Vigotski, 2001), desenvolveu-se, desde o início do
processo de organização da obutchénie, por meio da análise das relações de
generalidade em um sistema de conceitos. Na pesquisa Franco (2015)
identificou que quando os estudantes se apropriaram do princípio geral do
conceito, tomando consciência de suas relações internas (essenciais, gerais,
particulares) e, também, das demais relações com os conceitos
precedentes (generalizações inferiores e superiores), conseguiram atribuir
um sentido para aquela linguagem algébrica.
No caso do conceito de “função” discutido na cena do episódio
exposto nesse texto, os estudantes se apropriaram da essência de seu
movimento partindo, primeiro de seus traços gerais (de relações de
interdependência entre duas grandezas que se variavam, e da regularidade
quantitativa), e destes, conseguiram extrair os seus traços particulares
(movimento entre as variáveis dependentes e independentes, o tipo de
grandeza a que se referiam: segmento ou de área) (FRANCO, 2015).
Todavia, considerando o contexto de fragilidades da trajetória
estudantil de alguns estudantes com dificuldades em generalizações
precedentes no campo da geometria e aritmética, faltas consecutivas e
com problemas sócio familiares, esse processo de tomada de consciência
548
das relações entre os conceitos não se efetivou em todos os estudantes.
Vigotski (2001, p. 267) esclarece que:
549
motivo da atividade, domínio dos procedimentos, meios lógicos de
apropriação conceitual e a atitude consciente e voluntária.
Os nexos representam a história de desenvolvimento dos motivos
da professora e estudantes no processo de obutchénie-desenvolvimento,
durante a intervenção didático-formativa. Percebeu-se que os resultados
das relações entre professora, estudantes e objeto do conhecimento
matemático, mais especificamente, de alguns conceitos se desenvolveram
em sua unidade didática e dialética (FRANCO, 2015).
A partir desses nexos e regularidades apreenderam-se algumas
ações didáticas impulsionadoras do desenvolvimento dos motivos, com
vistas à resposta a questão nuclear, inicialmente, apresentada na pesquisa:
Que ações didáticas mobilizam o desenvolvimento de motivos
formadores de sentido, na obutchénie, potencializadores da humanização da
professora e estudantes na educação escolar?
Tais ações didáticas foram:
1) Organizar o[a] ensino [obutchénie] propiciando, aos estudantes,
as condições, as ferramentas da cultura e os modos de ações mentais
lógicas e específicas, tendo em vista a apropriação de conceitos teóricos;
2) Analisar o conceito, descobrir a sua essência, a sua lógica
interna para estabelecer finalidades e planejar as ações que possibilitam
tanto a orientação como a regulação do processo, de forma clara e ativa
pelo próprio sujeito em formação;
3) Promover a autonomia e a criação do professor diante dos
processos de análise de sua prática pedagógica, ou seja, diante da
preparação e organização de um[a] ensino [obutchénie] que promova o
desenvolvimento;
4) Considerar o sistema de relações no contexto escolar e os
interesses que decorrem desse campo, os quais incidem sobre os aspectos
cognoscitivos, volitivos e afetivos dos sujeitos;
5) Fomentar no processo didático-formativo os meios e condições
para o professor argumentar sobre as análises de seu trabalho educativo,
além de socializar suas construções com contribuição para seu processo
de humanização e dos seus estudantes;
6) Considerar a dialeticidade entre conteúdo-forma, teoria-método
para a organização da atividade de ensino e estudo [obutchénie], de modo
que suas estruturas psicológicas (necessidades, motivo, conteúdo/objeto;
550
ações, operações e produto/objetivos) se constituam inter-relacionados
no processo didático-formativo;
7) Promover a instrumentalização do processo com base na realidade
sócio cultural do contexto, das especificidades individuais e coletivas das
pessoas, criar novas necessidades formativas a elas relacionadas, estabelecer
metas, ações e objetivos concernentes à sua objetivação;
8) Durante os processos de objetivações mais humanizadoras
estabelecer o movimento da lógica dialética entre a teoria-prática,
objetivo-subjetivo, interno-externo, mediatizado-imediato, teórico-
empírico, conteúdo-forma, nas relações entre os sujeitos, conceito
científico, motivos, significados e sentidos (FRANCO, 2015, p. 272-273;
acréscimos nossos).
Considerações Finais
551
de um movimento de intervenção didático-formativo realizado no
contexto escolar.
Em primeiro momento foram abordados os fundamentos
filosóficos, epistemológicos, psicológicos e didáticos desse movimento,
que envolveu professora de matemática e vinte e um estudantes. Em
seguida, foram evidenciados o percurso metodológico e as categorias
analíticas do estudo. Posteriormente, foram apresentados os principais
argumentos construídos ao longo da tese, com os nexos e regularidades
desse movimento, evidenciando as ações didáticas apreendidas desse
movimento didático-formativo impulsionador de novos sentidos, ou seja,
novos motivos formadores de sentido.
Dessa maneira se trouxe à reflexão alguns aspectos
importantíssimos, tanto no processo de desenvolvimento de novos
sentidos da professor quanto dos estudantes, como: a tomada de
consciência da finalidade de uma dada ação no sistema de atividade do
qual fez parte, e no qual, a necessidade pode ser objetivada.
Outro aspecto importante: esse movimento não se configurou
somente como um enfrentamento psicológico (formativo), mas também
como pedagógico e didático, uma vez que ocorreu no contexto da
educação escolar, com todos os seus limites, contradições e
condicionantes subjetivos e objetivos. Principalmente, por identificar o
conceito teórico/científico presente no conteúdo escolar, a professora
pôde selecionar os métodos mais condizentes para sua apropriação. Assim
como, escolher as formas de organização da aula e os instrumentos
mediadores capazes de impulsionar o desenvolvimento de novas
formações mentais nos estudantes, em especial, o pensamento teórico e
novos “motivos” de se apropriar de um dado objeto do conhecimento.
De modo que, refletir sobre os aspectos didáticos presentes na
obutchénie, exigiu da professora pensar no conteúdo interno do conceito
teórico e no modo de sua apropriação: métodos , instrumentos, modos de
organização da aula, objetivos, contexto sociocultural do estudante e de
seus familiares, realidade da escola, condições de trabalho do professor e
as formas de avaliação.
Ademais, a pesquisa oportunizou instrumentos e mediações
necessárias para professora e estudantes estarem em condição de
atividade, na perspectiva de Leontiev (1978); de modo que à professora
552
coube a análise dos elementos didáticos e formativos da obutchénie, para a
orientação desse processo de formação conceitual, com vistas ao
favorecimento de condições mais propícias para o estudante agir no nível
teórico, fazer generalizações teóricas e não simplesmente empíricas.
Por isso, a professora além de preocupar-se em dominar os
conteúdos, demonstrou a necessidade de saber como formar nos
estudantes as ações correspondentes, a fim de que estes, pudessem operar
com o conceito. Reitera-se a importância e autonomia dos professores
nesse processo, de organização dos instrumentos capazes de auxiliar os
estudantes a descobrirem que todo conceito possui um conteúdo e um
modo de ação sobre ele.
Entende-se que para ser um professor que ensine o estudante a pensar
teoricamente, não basta dominar o conhecimento matemático. Precisa saber
orientá-lo na identificação das características internas do conceito, na
descoberta de suas relações e movimentos. Para tanto, torna-se fundamental
organizar ações analíticas e tarefas específicas para o estudante realizar,
ativamente, indo pelo modo geral de operar com cada conceito, que vai da
descoberta de suas relações gerais para as particulares, indo do todo para as
partes e desta para a compreensão do conceito teórico.
O referido estudo/pesquisa possibilitou apreender as ações
didáticas impulsionadoras desse movimento didático-formativo com a
professora e os estudantes no processo de obutchénie. Esse movimento não
excluiu a experiência, os conhecimentos e as vivências dos sujeitos,
conforme salientado ao longo desse texto. Ao contrário, estes se
constituíram em ponto de partida para identificação das necessidades
iniciais dos sujeitos e geração de novas necessidades não materiais
relacionadas ao objeto-conteúdo de suas atividades.
Nesse sentido, cabe ressaltar como os constructos teórico-
metodológicos da Teoria Histórico-Cultural da atividade e daDidática
Desenvolvimental ofereceram possibilidades para que os pensamentos
dos sujeitos pudessem ser confrontados e reelaborados. Motivos
constituídos de sentido se processaram no dinamismo dessas inter-
relações. Com efeito, foi possível defender a tese de que, no campo da
educação escolar, pode-se fomentar desenvolvimento de motivos
formadores de sentido, uma vez que foi possível estabelecer a inter-
relação de objetivo-objeto-conteúdo na atividade pedagógica.
553
Referências
554
FEROLA, Bianca de C. Sistema zankoviano de ensino e suas implicações
para uma didática na perspectiva histórico-cultural no contexto
educacional brasileiro. Uberlândia: Programa de Pós-Graduação em
Educação. Universidade Federal de Uberlândia. (Projeto de Pesquisa).
Mestrado. 2017.
555
um processo didático-formativo. Zetetiké – Fe/unicamp & Feuff. Revista
de Educação Matemática, v. 24, n. 45 jan/ abr-2016. Disponível em:
ojs.fe.unicamp.br/ged/zetetike/article/download/7480/6373. Acesso em:
25 de set.2016.
556
LONGAREZI, Andréa M. Didática desenvolvimental: intervenções pedagógico-
formativas desenvolvedoras de estudantes do Ensino Fundamental, Médio e Superior.
Brasília, CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico, (Projeto de Pesquisa), 2014.
557
PUENTES, R. V. (Org.) Ensino desenvolvimental: vida, pensamento e obra
dos principais representantes russos. Uberlândia: EDUFU, 2013.
558
MOURA, Manoel. O. et al. Atividade Orientadora de Ensino como
unidade entre ensino e aprendizagem. In: MOURA, M. O. (Org.). A
atividade pedagógica na teoria histórico-cultural. Brasília: Líber Livro, 2010.
559
desenvolvimento de adolescentes em uma perspectiva Histórico-Cultural.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2016.
560
Capítulo 17
Introdução
561
financiado pela CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior. A experiência em Cuba tinha como objetivo principal
conhecer as experiências com a teoria histórico-cultural desenvolvidas
daquele país, referência de estudos nessa perspectiva teórica de psicologia
e educação.
As análises do diagnóstico, fundadas numa perspectiva
materialista histórico-dialética, procuraram indagar a realidade concreta
enquanto totalidade, ou seja, “realidade como um todo estruturado,
dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjunto
de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido”. (KOSIK, 1976, p.
35). Assim, a aparência da realidade foi questionada para que fosse
possível chegar à sua essência.
Nessa busca, a ideia de totalidade considerou o contexto histórico,
social, econômico, político, geográfico, pedagógico, didático, representado
pelas condições, fundamentos teórico-metodológicos que os sujeitos de
pesquisa, professores dos cursos de licenciaturas se serviam para
objetivar-se na profissão.
As análises do diagnóstico orientaram o desenho da formação, etapa
posterior da pesquisa. A formação foi desenvolvida durante um ano e meio em
colaboração com uma professora participante da etapa anterior e foi realizada
na própria instituição lócus da pesquisa. Foi uma etapa marcada pelo estudo e
planejamento colaborativo, atuação docente e avaliação dialogadas, partes
convergentes e indissociáveis de um ciclo formativo integrado. A pesquisa foi
do tipo intervenção didático-formativa.
O capítulo foi organizado nas seguintes seções: 1. Os motivos
formadores de sentido da pesquisa; 2. O lócus; 3. Os sujeitos; 4. Os
procedimentos teórico-metodológicos; 5. Os óculos; 6. Os achados e 7.
Os novos pontos de partida, essenciais para que produção científica
continue o caminho do seu desenvolvimento.
562
As respostas a esta pergunta constituem os motivos formadores
de sentido (FRANCO, 2015) produzidos ao longo de todo o processo
investigativo. Foram sentidos produzidos na medida em que foram
apropriadas significações sociais de estudos anteriores. Esses estudos,
além de serem marcos da área investigativa, indicavam lacunas e
desafiavam a continuidade da produção científica.
O conceito de “sentido” empregado, tem filiação na perspectiva
da Teoria da Atividade, de Leontiev (1978), que compreende a
constituição humana pela gênese do social, por meio da sua atividade,
enquanto ação intencionalmente organizada para alcançar determinado
fim. Nessa constituição ativa de homem, que se apropria dos significados
sociais produzidos pela cultura, ele produz seus próprios sentidos, produz
o social, se transforma, transforma o social, constituindo consciência.
A produção dos sentidos, portanto, está na essência do movimento de
produção humana, que tem na unidade objetivo-subjetivo a sua gênese. O
sentido é produto e processo da relação ativa do homem com a significação
social que também se produz; é síntese provisória produzida na
apreensão/produção de signos enquanto movimento permanente de
constituição de si e do social, ao longo do desenvolvimento.
A apreensão de estudos, indicou motivos e impulsionou a
produção de sentidos para a investigação. Em um desses estudos, (DIAS
DE SOUSA, 2011), é evidenciado como professores universitários
constroem identidade docente no confronto caótico das condições
objetivas de trabalho e representações sociais que lhe são atribuídas.
Conclusão do estudo indica que os professores reconhecem a importância
de uma formação específica para a docência, lacunar em sua formação
inicial, mas têm dificuldades em concretizá-la com o mínimo de aporte
teórico-prático.
Os professores são impulsionados a desenvolver sua trajetória
acadêmica com foco na pesquisa, atividade mais prestigiada no meio
científico, mesmo que a Educação Superior esteja alicerçada no tripé
ensino-pesquisa-extensão. São profissionais super especializados em seus
objetos de pesquisa, mas com quase nenhuma formação para a docência,
atividade menos prestigiada e, por vezes, exercida com a reprodução de
modelos de docência já experimentados enquanto alunos, com precária
intencionalidade teórico-prática.
563
Na maioria das instituições de ensino superior, incluindo as
universidades, embora seus professores possuam experiência
significativa e mesmo anos de estudos em suas áreas específicas,
predomina o despreparo e até um desconhecimento científico do
que seja o processo de ensino e de aprendizagem, pelo qual passam
a ser responsáveis a partir do instante em que ingressam na sala de
aula. (PIMENTA; ANASTASIOU, 2010, p. 37).
564
rupturas e sim, permanências. Os conhecimentos são apresentados como
verdades absolutas, desconsiderando os contextos de sua produção
permanente, cabendo aos estudantes reproduzi-los, em grande parte,
como discursos oralizados, dificilmente, incorporados às práticas sociais
de forma ativa e consciente.
A pedagogia nova foi outra perspectiva pedagógica analisada.
Conforme o mesmo estudo de Saviani (2011), trata-se de uma corrente da
pedagogia e da didática concretizada, sobretudo, pelas experiências
construtivistas, concepção que buscou confrontar a pedagogia tradicional.
Ela esvaziou o papel do professor no processo educativo e deu ênfase às
metodologias de ensino.
A pedagogia nova sido disseminada desde o início do século XX
como concepção de educação centrada no aluno, com ênfase nas
experiências. Tem sido revisitada no contexto do século XXI, sobretudo
com a popularização das tecnologias digitais de informação e
comunicação, ferramentas que possibilitam a utilização das chamadas
metodologias ativas, propagadas como inovações educacionais.
Essa concepção de pedagogia e de didática também não poderia
orientar uma formação para o desenvolvimento. A experiência pela
experiência, o esvaziamento do papel do professor, o processo que não
conflita conceitos do cotidiano com conceitos científicos (VIGOTSKI,
2007), tarefa primordial da escola numa perspectiva histórico-cultural, não
poderia impulsionar o desenvolvimento do pensamento teórico de
professores universitários, pois não se propõe a isso.
A pedagogia nova ou construtivista se propõe a promover
processos educativos em condições de interação por meio da metodologia
do ensaio-erro, como se os conhecimentos a serem apreendidos já não
tivessem alcançado algum desenvolvimento, considerando a sua produção
sócio-histórica. Essa concepção valoriza a interação, as tentativas de
aprender, mas não esclarece a relevância do professor no processo,
tampouco a importância do conteúdo da aprendizagem, as finalidades a
serem alcançadas e a capacidade de autoavaliação do desenvolvimento dos
participantes da relação educativa.
Quanto às contribuições da pedagogia sócio-cultural (FREIRE,
1996) e histórico-crítica (SAVIANI, 2011), elas foram fundamentais na
crítica das práticas escolares, sobretudo as práticas que têm como
565
referência a pedagogia e a didática tradicionais. No país, sobretudo a partir
dos anos de 1980, se produziram influenciadas por estudos críticos das
Ciências Sociais que questionaram as finalidades dos processos
educativos. Essas pedagogias, portanto, têm o mérito de reconhecer a
educação escolar como uma forma de prática social. Como tal, entendem
que a educação escolar deve contribuir com a formação política e
emancipatória dos sujeitos. Nesse sentido, defendem a necessidade de a
prática escolar contextualizar em seu trabalho, os limites da sociedade
capitalista, marcada por desigualdades econômicas e sociais ao longo da
história.
As contribuições da pedagogia histórico-crítica e sócio-cultural,
mesmo importantes, não se ocuparam em formular arcabouço teórico-
prático que evidenciasse, a partir de seus postulados teóricos críticos,
formas de organização das categorias da didática: objetivos, metodologias,
conteúdo e avaliação. Assim, seus pressupostos não seriam suficientes
para fundamentar uma perspectiva de formação para o desenvolvimento
de professores universitários.
Foi uma provocação de Vigotski (2003) que primeiro chamou
atenção para as possibilidades da teoria histórico-cultural como
pressuposto teórico-prático que potencializaria formação para o
desenvolvimento:
566
funções, as metamorfoses ou transformações qualitativas de umas
formas em outras, o entrelaçamento complexo de processos
evolutivos e involutivos, o complexo cruzamento de fatores
externos e internos, um complexo processo de superação de
dificuldades e de adaptação.
567
definindo e transformando, com mais instrumentos criados, o mundo e
suas próprias trajetórias de vida.
A psicologia histórico-cultural e a didática para o
desenvolvimento, portanto, foram as escolhas teórico-práticas da
formação para o desenvolvimento de professores universitários analisada
nesse artigo. Na definição desse tipo de didática é importante considerar:
568
vinculados à área” (LONGAREZI; PUENTES, 2011, p. 186). Ou seja,
nem os próprios professores da área estão pesquisando temas diretamente
vinculados à didática, o que denuncia grave problema a ser enfrentado
nesse segmento da comunidade científica. Além disso, destaca-se uma
produção, majoritariamente, teórica.
569
pesquisas de intervenção, publicação de livros, coletâneas, artigos e
dossiês na sua revista eletrônica Obutchénie, seja na realização de eventos
científicos internacionais. Foi no interior do grupo que se consolidou a
necessidade de cunhar um tipo de pesquisa mais adequado a orientar
pesquisas de formação docente para o desenvolvimento. Desse modo,
mais um motivo formador de sentido se produzia para a presente
pesquisa, que levou à escolha teórico-metodológica de realizar pesquisa do
tipo: intervenção didático-formativa com professores universitários.
De acordo com Longarezi (2012), a intervenção didático-
formativa constitui metodologia de pesquisa na qual é feito um amplo
diagnóstico do contexto a ser investigado e com base neste é proposto aos
sujeitos participantes um processo de estudos relacionados ao referencial
histórico-cultural. Além disso, são realizados, em colaboração pesquisador
e sujeito de pesquisa, planejamento, realização, observação e avaliação de
aulas, enquanto momentos interdependentes do processo.
A intervenção didático-formativa (LONGAREZI, 2017a; 2017b;
LONGAREZI; FERREIRA, 2020; LONGAREZI; MOURA, 2017;
FERREIRA; LONGAREZI, 2017; 2018; etc.) é, ao mesmo tempo,
processo investigativo e formativo. Ela propõe o desenvolvimento do
professor e também o desenvolvimento do estudante que participa da
relação educativa. O investigador propõe e colabora com o sujeito da
pesquisa, registrando toda a história em instrumentos criados ao longo da
investigação. O processo é construído tendo como base as necessidades
formativas dos participantes.
Dias de Sousa (2016) também conceitua a pesquisa do tipo
intervenção didático-formativa:
570
Estes foram os motivos formadores de sentido da pesquisa: as
significações sociais que indicavam como os professores universitários
têm se formado, referendados por quais contribuições da pedagogia e da
didática e, além disso, como tem sido produzida a pesquisa em didática.
As significações indicaram escolhas a serem feitas, produzindo sentidos
para a investigação.
O lócus
571
universitária verificada a partir de 2008 como desdobramento da política
do REUNI – Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão
das Universidades Federais. Entre esses professores estavam os
professores das licenciaturas, sujeitos da pesquisa analisada nesse artigo.
Seus esforços estavam concentrados em conquistar espaço e
representação numa instituição que mantinha (e continua a manter) o
poder decisório na mão dos precursores, com pouca disposição em
modificar essa realidade.
Assim, os professores das licenciaturas foram engendrados num
processo de luta política para que tivessem suas áreas de conhecimento
específicas reconhecidas na instituição. Na prática, isso representou a
desvalorização da educação como área principal de conhecimento comum
dos cursos emergentes a partir de 2009, as licenciaturas em Ciências
Biológicas, Física, Geografia, História, Matemática e Química. “Isso faz
com que esses professores se esforcem para desenvolver seus próprios
projetos de pesquisa e extensão, deixando, muitas vezes, o ensino relegado
a segundo plano, visto que ele não configura como objeto das suas
investigações” (DIAS DE SOUSA, 2016, p. 95).
As condições institucionais vividas pelos professores que
participaram da pesquisa marcaram sua realização. Durante os encontros
formativos era comum o compartilhamento de queixas sobre as
dificuldades dos cursos na instituição, a carência de professores, a carga de
trabalho extenuante e a falta de reconhecimento institucional.
Os sujeitos
572
QUADRO 1 – Perfil dos sujeitos da pesquisa
ELEMENTOS DO PERFIL CARACTERÍSTICAS
DOCENTE
Gênero 04 feminino
01 masculino
Idade média 35 anos
Vínculo Institucional Professor do Ensino Superior com
dedicação exclusiva
Titulação 04 doutores
01 doutorando
Experiência docente média 05 anos
Área de atuação Ensino da respectiva área específica
Área de formação inicial Licenciatura em:
Física
Geografia
História
Língua Portuguesa
Química
573
(encontros formativos semanais, disposição para ter aulas planejadas,
observadas e analisadas de maneira colaborativa), fizeram com que quatro
dos professores deixassem a investigação.
A formação, portanto, se concretizou com a participação de uma
das professoras do grupo inicial de sujeitos da pesquisa, doutora na área
de Ensino de Geografia, responsável por disciplinas do núcleo de ensino
da licenciatura em Geografia, entre elas o Estágio Curricular
Supervisionado.
O desenho teórico-metodológico
574
tipo de pesquisa em Didática Desenvolvimental que tem sido
produzida pelo esforço coletivo de um grupo de pesquisadores do
Gepedi; e “[...] se constitui numa ação investigativo-formativa, a
partir da qual se faz, de forma intencional, uma intervenção no
contexto educacional pela via da formação didática do professor; e,
nesse processo, se constitui simultaneamente intervenção didática
junto a classes de estudantes.” (LONGAREZI, 2017a, p. 198).
A intervenção didático-formativa:
Os óculos
575
Na perspectiva histórico-cultural, a característica biológica
conferida ao homem, da fecundação ao nascimento, só se concretiza em
sua máxima potência de humanidade, na interação com outros seres
humanos (VIGOTSKI, 2007). Humanizar-se é uma tarefa que dura toda a
vida, em processos de apropriação-objetivação sócio-histórica que
ocorrem de forma ativa, dialética e em unidades (LONGAREZI; DIAS
DESOUSA, 2018).
Assim, o processo de humanização implica em desenvolver as
unidades objetividade-subjetividade, coletivo-individual, teoria-prática,
conteúdo-forma, nas mais diferentes atividades da vida social, inclusive na
atividade desenvolvida pela escola. Em todas elas o humano se produz ao
mesmo tempo em que se apropria da cultura, transformando a si e a
própria cultura. Para o professor, esse princípio contrapõe perspectiva que
entende a profissão como vocação inata.
Contrapõe também perspectiva que entende a formação docente
como apropriação de uma lista de procedimentos técnicos e objetivos a
serem seguidos. Essa perspectiva tecnicista reduz a formação docente e
desconsidera os sujeitos concretos que dela participam, desconsiderando,
portanto, suas subjetividades. Para a teoria histórico-cultural, a atividade
profissional docente exige produção permanente do sujeito professor,
como sujeito ativo que pensa a sua condição profissional, examina
necessidades e dificuldades, para produzir formas criativas de superá-las,
de modo a impactar o seu desenvolvimento e a própria docência.
Nessa perspectiva teórico-prática, o professor ao se produzir faz
escolhas, atua com o que sabe impulsionado por uma finalidade, ou seja,
se produz na atividade (LEONTIEV, 1978). A didática para o
desenvolvimento é o meio, mediação da mediação cognitiva, ou seja,
trabalho organizado e intencional que considera as categorias didáticas
como mediadoras das relações entre o aluno e os objetos de
conhecimento, razão pela qual o núcleo da didática é a aprendizagem e
por sua vez a razão de ser do processo educativo. (LIBÂNEO, 2010).
A formação docente para o desenvolvimento também considera o
conceito de práxis. Para produzir práxis pedagógica, ou seja, objetivação
da unidade teórico-prática, o professor precisa atuar com consciência de
conceitos teóricos. A teoria potencializa a atividade transformadora,
576
(SÁNCHEZ VÁSQUEZ, 2011), desde que os professores tenham
consciência de si.
Em outras palavras, o professor que produz consciência de si, faz
a crítica do que tem sido a sua experiência de sujeito na atividade docente,
considerando as condições objetivas de que dispõe, os referenciais
utilizados, entre outros, analisa como esses elementos têm satisfeito (ou
não) suas necessidades e a partir daí vive, materializa a sua prática. “A
práxis é, portanto, a revolução, ou crítica radical que, correspondendo às
necessidades radicais, humanas, passa do plano teórico ao prático”.
(SÁNCHEZ VÁSQUEZ, 2011, p. 119). É na perspectiva da práxis que a
formação para o desenvolvimento foi pensada e concretizada.
Além da práxis, mais três conceitos foram nucleares para orientar
a intervenção didático-formativa: imitação, criação e colaboração,
conceitos amplamente analisados na obra de Vigotski e que deram
sustentação ao empreendimento investigativo. Em Vigotski (2007) a
imitação não é um ato mecânico. Imitar significa uma forma particular de
compreender o mundo, apreender significados sociais e transformá-los em
sentidos pessoais.
Assim, imitar é perceber o sujeito fazendo sínteses daquilo que
analisa e observa ao seu redor. É expressão inicial da sua energia pensante,
racional e afetiva do que começa a aprender. Nesse sentido, nenhuma
imitação é igual a outra. Ela é sempre individual, particular, relativa ao
entorno do sujeito, contraditoriamente, produzida a partir do que é
coletivo e social. É o modo humano de aprender.
Para Vigotski (2007), só é possível imitar, ou seja, expressar aquilo
que está em processo de ser apreendido, na sua zona de desenvolvimento
próximo, em colaboração. Assim, um sujeito que não conhece nada de
física quântica, por exemplo, não consegue imitar aquele que sabe esse
tipo de conhecimento. Isso está fora das suas possibilidades atuais, está
além. Ele não foi provocado a pensar nos conceitos da área, não foi
instigado a rever conceitos cotidianos que até o momento atendiam bem
suas necessidades. Entender de física quântica não despertou nele um
motivo formador de sentido para a sua vida e ele não atuou em situações
didáticas intencionais com os conceitos da área.
577
[...] O desenvolvimento decorrente da colaboração via imitação,
que é a fonte do surgimento de todas as propriedades
especificamente humanas da consciência, o desenvolvimento
decorrente da imitação é o fato fundamental. Assim, o momento
central para toda a psicologia da aprendizagem é a possibilidade de
que a colaboração se eleve a um grau superior de possibilidades
intelectuais, a possibilidade de passar daquilo que a criança
consegue fazer para aquilo que ela não consegue por meio da
imitação. Nisso se baseia toda a importância da aprendizagem para
o desenvolvimento, e é isto que constitui o conteúdo do conceito
de zona de desenvolvimento imediato. A imitação, se concebida
em sentido amplo, é a forma principal em que se realiza a
influência da aprendizagem sobre o desenvolvimento. A
aprendizagem da fala, a aprendizagem na escola se organiza
amplamente com base na imitação. Porque na escola a criança não
aprende o que sabe fazer sozinha, mas o que ainda não sabe e lhe
vem a ser acessível em colaboração com o professor e sob sua
orientação. O fundamental na aprendizagem é justamente o fato de
que a criança aprende o novo. Por isso a zona de desenvolvimento
imediato que determina esse campo de transições acessíveis à
criança, é a que representa o momento mais determinante na
relação da aprendizagem e do desenvolvimento. (VIGOTSKI,
2001, p.331).
578
professor não é a transmissão do conhecimento, mas a organização da
Atividade de Estudo dos alunos” (PUENTES, 2019, p. 42).
A atividade de Estudo, portanto, é, eminentemente, colaborativa:
579
reprodutiva, é fácil notar no comportamento humano outro gênero de
atividade, mais precisamente a combinatória ou criadora. (VIGOTSKI,
2009, p. 13).
Os achados
580
A base objetiva dos processos analítico e sintético no
conhecimento é a existência de uma variedade de formas de
movimento da matéria em sua unidade essencial, interna e
necessária. Dado que o próprio mundo é uno e multiforme, nele
existem identidade e diversidade, sendo que o uno existe no
diverso (o idêntico no diverso) e o diverso no uno (o diverso no
idêntico). O conhecimento deve apreender a natureza do mundo
objetivo, refletir o diverso no uno e o uno no diverso, razão por
que cresce a necessidade da decomposição e unificação em sua
unidade. [...]. É tarefa tanto da análise quando da síntese a
reprodução do objeto no pensamento conforme a natureza e as leis
do próprio mundo objetivo. (KOPNIN, 1978, p. 235-236).
581
memorizou e reproduz oralmente, mas que não se objetivaram, ainda, na
prática pedagógica. Ele diz, mas muitas vezes, não faz o que diz.
A segunda referência, empírica, indica que a docência se reproduz
conforme modelos anteriores, sem análise crítica dos professores. A
reprodução ocorre de maneira naturalizada, pois eles não produzem
consciência sobre a fundamentação teórica que as embasam, tampouco
conseguem explicar os motivos teórico-práticos da escolha didática. Os
motivos, quase sempre, são do campo das experiências que já viveram em
outros contextos. Eles as reproduzem, mas não conseguem explicar
porque. Essa referência foi observada de maneira recorrente entre os
professores participantes do diagnóstico da pesquisa. Questionados sobre
as bases didáticas do seu fazer, eles não souberam precisar. O professor
faz, mas não sabe por que faz.
Essas duas referências revelaram a dissociação teoria e prática na
objetivação da relação educativa que é planejada pelo professor. Enquanto
a primeira se sustenta na reprodução de discursos, a segunda se sustenta
na reprodução de práticas naturalizadas. Nos dois casos, ou se fortalecem,
de um lado, as abstrações teóricas ou de outro, as práticas, sem que os
dois polos complementares e contraditórios sejam fortalecidos enquanto
unidade teoria-prática na objetivação da docência, comprometendo a
constituição da práxis pedagógica.
Foi evidenciado no diagnóstico um terceiro tipo de referência da
formação-ação. As referências da práxis, em que a docência se
fundamenta em princípios teóricos-práticos intencionais sendo,
permanentemente, autoavaliada pelos professores. O professor se
apropria de um conceito, pensa sobre ele, se produz de forma ativa com
ele, produzindo também a sua organização didática. Não se trata de uma
objetivação alienada da prática pedagógica, pois o professor avalia
possibilidades do pressuposto teórico, o reinterpreta e o ressignifica no
seu fazer pedagógico.
Na práxis ele desenvolve um processo revolucionário de
empoderamento, pois se humaniza por meio da apropriação sócio-
histórica do conhecimento e se produz ativamente. O professor não toma
a teoria como verdade absoluta. Ele atua com ela: avalia criticamente,
nega-aceita, confronta com os limites da sua realidade, reformula à sua
maneira, a torna parte de si. Ele continua o movimento de produção da
582
própria teoria e de si mesmo como professor. Infelizmente foi uma
referência pouco observada no contexto da investigação. Mesmo assim foi
essencial para orientar a etapa seguinte, a etapa de formação.
Reconhecer as referências da formação-ação do professor
permitiu concluir que os processos formativos não podem ficar limitados
às abstrações teóricas. A docência se materializa no confronto com
problemas e necessidades reais do âmbito do ensino, o que implica
entender que a formação deve oportunizar esses confrontos. Essa seria
uma estratégia didática adequada para orientar formação para o
desenvolvimento.
Considerando que a práxis se constitui na vivência da teoria, na
criação de possibilidades didáticas nela fundadas, esse movimento
também precisa estar presente na formação. Nesse sentido, a vivência da
teoria enquanto procedimento teórico-prático do campo da didática, deve
ser intencional, presente ao longo do processo formativo, não uma ação
solitária do professor, já no exercício da profissão.
O professor sozinho teria dificuldades, do ponto de vista teórico-
prático, de concretizar algo que não conhecesse bem, algo que tivesse apenas
ouvido em palestras que por ventura tenha participado ao longo da sua
formação continuada. Esse modelo formativo, por sinal, das palestras, continua
sendo o modelo hegemônico de formação docente continuada. Trata-se de um
modelo que não está orientado para o desenvolvimento, uma vez que se
fundamenta em princípios da pedagogia e didática tradicionais.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que embora o campo da
investigação em educação tenha sido rico no sentido de caracterizar
diferentes concepções pedagógicas, essas formulações teóricas pouco têm
modificado as práticas. A exemplo de outros estudos (CONTRERAS,
2003; NÓVOA, 2005; GATTI, 2007), os dados dessa investigação
também confirmaram que as transformações das práticas e dos
professores, muitas vezes, não ocorrem por motivos multideterminados.
Entre esses motivos estão a falta de condições objetivas de trabalho,
desvalorização da educação e do professor, identidade docente fragilizada
do ponto de vista da profissionalidade, entre outros. Esses motivos foram
destacados pelos sujeitos da pesquisa como motivos que limitam sua
atuação docente: “Uma das coisas que ficaram mais claras para mim não é tanto a
583
limitação da teoria, mais as limitações das minhas condições de trabalho”. (Sujeito da
pesquisa).
Em outra fala:
Desde que eu estou aqui na UFTM, todo semestre eu tenho várias disciplinas
novas. Isso sobrecarrega a gente muito. E nem sempre a gente faz tudo do jeito
que a gente quer e da melhor forma que a gente poderia fazer. Este semestre,
especificamente, eu estou com seis disciplinas diferentes. E aí tem uma
sobrecarga enorme, porque são seis conteúdos diferentes, seis avaliações
diferentes, seis turmas diferentes. Acaba que isso é bastante complicado.
(Sujeito da pesquisa).
584
para formulação de críticas, exame cuidadoso de abstrações teóricas,
criação conjunta de novos encaminhamentos didáticos que ainda não
foram experimentados. O planejado e concretizado nas aulas deve ser
examinado depois, como parte do processo formativo: avaliar como foi,
como ainda pode ser, como o pressuposto teórico ainda pode se
desenvolver, ao mesmo tempo em que o próprio professor também se
desenvolve.
Os professores precisam ser fortalecidos no seu desejo de
promover mudanças naquilo que têm sido e acreditado enquanto
professores e que já não atende mais às suas necessidades. Precisam ser
apoiados pela via da colaboração. Serem provocados a experimentar
novos caminhos didáticos com respaldo teórico-prático e afetivo para
prosseguir. Nesse sentido, a avaliação não pode ser sinônimo de
julgamento das ações, como na perspectiva da avaliação tradicional, que
pontua um momento isolado do processo e desconsidera o restante do
percurso. Essa concepção cria “sentenças finais” que inibem a invenção
do novo no exercício da docência. A avaliação deve ser momento de
consciência do processo conduzido até aquele instante, para ser possível
formular novas ações e fazer novas escolhas para prosseguir.
Por isso a necessidade de colaboração, numa formação coerente
com a zona de desenvolvimento próximo dos professores (VIGOTSKI,
2007). Ouvir um discurso de mudança pode até motivar o professor, mas
é insuficiente para alterar a rota das suas práticas, sobretudo quando ele se
percebe sozinho e analisa nessa condição de solitude, os limites do seu
contexto quase sempre precário. Estudos que analisam práticas de
professores, (CONTRERAS, 2003; NÓVOA, 2005; GATTI, 2007; DIAS
DE SOUSA, 2016) indicam que elas permanecem inalteradas, pois o
professor continua a reproduzir o modelo tradicional e não se arrisca a
iniciar um novo caminho de si na docência.
Contraditoriamente, os professores esperam melhores resultados dos
estudantes, reproduzindo os mesmos modelos de aulas. Qualificam o processo
como pouco produtivo, mecânico, repetitivo, no qual o estudante tende a
realizar pouco esforço mental (ORAMAS; ZILBERSTEIN, 2003). A
consequência é que não há aprendizagens duradouras, o que foi memorizado
logo é esquecido e o aluno pouco participa.
585
Não se exige uma reflexão profunda, a determinação do essencial,
o estabelecimento de nexos, a argumentação, o vínculo do que se
aprende com a prática social, a valorização da utilidade, a
autovalorização do que se faz, da sua conduta e de seus
companheiros. Essa pobreza gera um estudante com muito pouco
protagonismo no processo da aula, pouco independente, que se
aborrece e, muitas vezes, deseja que o turno das aulas termine logo.
(ORAMAS; ZILBERSTEIN, 2003, p. 21).
586
• Compreendeu que seria importante tomar as categorias da
didática de modo integrado na concretização da relação
educativa;
• Reconheceu a necessidade de ressignificar o planejamento
de ensino, superando a visão burocrática dominante;
• Compreendeu que a sua intervenção junto ao estudante
seria fundamental para ajudá-lo a pensar e fazer suas
próprias escolhas didáticas nas aulas do campo de estágio;
• Elaborou uma estratégia didática de intervenção junto ao
estudante, organizada na forma de questionamentos e
apontamentos teóricos;
• Compreendeu que tais intervenções poderiam colaborar
para que o estudante produzisse sua própria generalização
de conceitos, conectando com os conteúdos das aulas;
• Refletiu sobre a necessidade de rever percursos e opções
didáticas que não se mostraram adequadas à prática
pedagógica;
• Compreendeu que o conteúdo de estudo precisa ser
objeto da atividade mental dos estudantes para
potencializar a aprendizagem e o desenvolvimento;
• Reconheceu a desarticulação entre conteúdo e forma nos
currículos dos cursos de licenciatura e, portanto, procurou
romper com essa contradição;
• Deteve-se na compreensão de que as subjetividades
envolvidas no processo educativo atuam para as
aprendizagens, e, portanto, não podem ser desprezadas,
visto que elas formam unidade com as objetividades.
587
• Vivenciou formas de organizar didaticamente a formação
de conceitos e a partir delas produziu suas próprias
maneiras de organização;
• Produziu, de forma criativa, a interpretação dos conceitos
estudados, na forma de esquemas, exemplos e perguntas
direcionadas aos estudantes;
• Lidou com o inesperado da relação educativa colocando
em prática sua atividade criadora, considerando para isto,
os pressupostos teóricos estudados;
• Organizou e criou suas aulas com consciência de que elas
seriam modelos a serem imitados pelos estudantes e por
isso problematizou a questão junto a eles, incentivando-os
a produzirem suas próprias referências de aula;
• Entendeu que a leitura de um texto produz uma imagem
que aproxima o estudante de um estudo e que esta
estratégia de ensino é adequada para que se produza
novas compreensões dos conceitos nos encaminhamentos
práticos da ação pedagógica;
• Confrontou conhecimentos espontâneos e científicos a
partir de modelos tradicionais de aulas de geografia, para
construir subsídios para novas criações;
• Forneceu orientações verbais e escritas para potencializar
a construção de situações didáticas a serem concretizadas
pelos estudantes. Elas foram referência para o estudante
desenvolver sua criatividade;
• Criou novos encaminhamentos a partir de dificuldades
surgidas na sua própria atuação docente;
• Utilizou o recurso da avaliação para se (re) criar e (re)
formular sua ação no campo da docência.
588
sofisticadas e criativas. Por tudo isso, os sujeitos não podem alienar-se de
si; precisam desenvolver suas potencialidades e se humanizarem,
permanentemente. É a significação genuína da existência.
589
formação permanente? Os poucos projetos de formação do docente
universitário existentes estão orientados para o seu desenvolvimento?
E ainda: pesquisas do tipo intervenção didático-formativa têm
conquistado espaço na área de educação, produzindo construtos teórico-
práticos do campo da formação docente para o desenvolvimento? São
questionamentos provocados por essa investigação. Novos pontos de
partida que as conclusões desse estudo inspiram a desenvolver. É preciso
humanizar o homem. É preciso potencializar a produção de humanidade
de cada professor.
Referências
590
DIAS DE SOUSA, Walêska Dayse. Processos de imitação-criação como
constituidores da práxis pedagógica. 2016. 343 f. Tese (Doutorado em
Educação), Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2016.
Disponível em:
https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/17633/1/ProcessosImit
acaoCriacao.pdf.
Acesso em: 03/05/2017.
591
Desenvolvimental. Anais do Colóquio do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre
Atividade Pedagógica – GEPAPE, Goiânia, 2017.
592
GERMANOS, Erika. Contradições como força de mudança: o processo
de formação continuada de professores do ensino médio enquanto
potencializador da práxis transformadora à luz da teoria histórico-cultural.
(2016). Tese de doutorado. Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia/MG, 2016.
593
LONGAREZI, Andrea Maturano. Didática desenvolvimental:
intervenções pedagógico-formativas desenvolvedoras de estudantes do
Ensino Fundamental, Médio e Superior. Brasília, CNPq, Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, (Projeto de
Pesquisa), 2014.
594
Linhas Críticas, novembro, 2018, vol.24, p. 453-474. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/19815
Acesso em 01/04/2021.
595
NASCIMENTO, Ruben de Oliveira. Um estudo da mediação na teoria de
Lev Vigotski e suas implicações para a educação. 2014. 416f. Tese
(Doutorado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade Federal
de Uberlândia, Uberlândia-MG, 2014.
596
VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Análisis de la funciones psíquicas superiores.
In: VIGOTSKI, L. S. Historia de las funciones psíquicas superiores. Madrid: Visor,
tomo III, 1995.
597
Capítulo 18
Grasiela Coelho
O começo da conversa
598
compreendendo-a a partir da relação com a cultura, com vistas à
humanização. Portanto, podem ser criadas as condições do vir-a-ser e,
consequente, desejo para perseverar na existência humana, por meio da
cultura presente nos objetos e difundida por meio da linguagem. Desse
modo, a humanidade vai se constituindo nas relações sujeito-
conhecimento e sujeito-sujeito, por meio da aprendizagem que provoca o
desenvolvimento cíclico, mas não linear, porque demarcado por crises e
movido pela contradição na/da vida vivida. Cultura é o processo histórico
manifestado como produto da vida humana, em movimento dialético por
meio da transformação da natureza, conjuntamente com o
desenvolvimento das funções psicológicas superiores e da atividade da
conduta humana, considerando a filogênese e ontogênese enquanto
processos essencialmente distintos. Neste processo ocorrem crises que
desencadeiam novas crises, provocando novas aprendizagens e novos
desenvolvimentos.
A humanidade do professor dá-se pari passu à sua formação
oportunizadas pelo trabalho docente e produzindo o seu modo de ser, de
pensar, de sentir e de agir. Nessa constituição, estar e ser com os seus
pares é condição sine qua non para o avanço da aprendizagem na e sobre a
docência, tendo em vista que é na expansão da aprendizagem por meio do
outro, com o outro, favorecendo a tecitura da rede de relações necessária
à compreensão do conhecimento que a docência vai se constituindo. Em
sendo a docência atividade que concebe em seu interior a finalidade de
humanizar o ser, há que se considerar que lida com tarefa que, na
aparência, pode parecer redundante, porém não o é em sua essência essa
necessidade redundante, tendo em vista a estrutura e organização da
sociedade dividida em classes e arrolada de modo fulcral no capitalismo, o
que cria ambiente propício à reificação.
Isto posto, torna-se premente que a docência seja calcada nas
condições objetivas da realidade, considerando os conhecimentos prévios
dos professores e, particularmente, as condições de trabalho e formação,
pois a aprendizagem constitui-se tanto em processo como em produto da
profissão docente, exigindo tanto o domínio dos conhecimentos
generalizados como daqueles específicos, como a capacidade de ter que
lidar com fenômenos sociais de naturezas diversas e amplas, donde surge
a inescapável tarefa de também educar, além de ensinar. Enquanto
599
profissão, tendo a docência um vasto alcance, é inevitável a relação com a
cultura instalada no meio social, relação essa que pode ser de confluência
e/ou confronto. É exatamente nessas confluências e/ou confrontos que o
ser professor vai se constituindo por meio do trabalho docente: frente ao
conhecimento, a seus pares, aos discentes e na amálgama composta por
esses elementos dessa teia de relações sociais, culturais, históricas,
econômicas e políticas.
600
Salienta-se que, no CAFS/UFPI, funcionam o Ensino Básico,
Técnico e Tecnológico (EBTT) e Nível Superior (ES), em prédios
separados, porém no mesmo Campus. Portanto, concepções diversas de
universidade e de ensino, marcadas inclusive pelo próprio caráter
institucionalizado de cada nível de ensino. A partir da intrincada rede de
relações sociais, culturais, históricas, econômicas e políticas,
particularmente aquela que se estabelece entre trabalho e formação,
questionou-se sobre o que os professores entendem acerca da formação
contínua, o que esperam dela, quais são as suas necessidades formativas,
se a formação contínua impacta na vida pessoal e profissional do
professor, delimitando como problema desta pesquisa: como e o que
movimenta o processo formativo que prospecta a liberdade-felicidade do
docente do CAFS?
No atual governo (2019 – 2022) há ênfase no aspecto ideológico,
na vigilância de professores e em uma pedagogia meramente transmissiva
tem como objetivo escamotear os reais problemas da educação, dentre
eles, a formação docente. A fim de causar distração da sua real
intencionalidade que é agravar o desmonte da educação superior, acelerar
o processo de privatização da universidade pública brasileira, tal governo
circunscreve a crise da educação vinculando a moralidade exclusivamente
à religião e à obediência, enquanto que o desenvolvimento moral, na sua
vastidão, está intrinsicamente relacionado à expansão da intelectualidade
humana, do aprendizado ético, afetivo e social. Para tanto, ligar o
conhecimento a vários contextos é condição sine qua non para se instalar a
dúvida, fomentando a capacidade de interpretação da complexa realidade
social, que é histórica, contraditória e tem como base a materialidade e
diversidade dos fenômenos sociais, como assevera Frigotto (2009, p. 129):
601
valores, ideologias, ideias, teorias, emoções e por instituições que
consolidam, produzem e reproduzem as relações sociais.
602
Na atual conjuntura política nacional e global, particularmente,
convém ainda mais o ensino e a educação para a insurgência, a subversão,
a ruptura dos silêncios, a quebra de paradigmas, de estruturas cristalizadas
pelo poder como mecanismo de resistência. A travessia exige. O tempo da
travessia certamente extrapolará a cronologia porque será cronometrado
pelo impacto das afecções, afetos, sentimentos, emoções e da
afetividade170 em corpos-mentes. Comporá ética, afetiva, histórica e
humanamente o ser-tornar-se-sentir-se professor: é preciso equilíbrio em
meio ao caos, é preciso coragem. Em tempos de desmonte da pesquisa, da
educação e do próprio sentido ético da vida é preciso reação: talvez por
não ter sido feito adequadamente a travessia no momento histórico em
que isso coube. Quando coube o rompimento, adiando o inadiável,
optou-se pela coalizão no contexto político brasileiro, como se fosse
possível coalizão com o antagônico, que difere brutalmente do
contraditório, mola propulsora da atividade humana social. Outrossim, ao
se considerar a atividade do trabalho docente e da formação de
professores, a tese a ser confirmada ou não nessa pesquisa foi estabelecida
nos seguintes termos: a constituição do ser-tornar-se-sentir-se docente a
partir das unidades que eclodem na Atividade Pedagógica geram, pelo
603
devir histórico e contradição, a constituição da personalidade humana que
evoca, por meio do coletivo, as possibilidades emancipatórias de exercício
da politicidade e da ética, oportunizando a distinção entre essência e
aparência.
Por meio de abstrações e mediações distintas acerca do objeto, do
método, da metodologia e do contexto, principiou-se o novo ponto de
partida que, todavia, mantém-se como representação. À vista disso, entre
o objeto e o concreto, o particular e a totalidade abstrata, existe a catarse
longa, extenuante e potente do processo, que vai se revelando de modo
não linear pela investigação, no movimento de ascensão do abstrato ao
concreto. O método de pesquisa foi calcado na contradição, no
movimento e na unidade, por meio dos isolados, episódios e cenas
decorrentes da produção coletiva dos dados, a fim de se alcançar as
relações internas do lógico-histórico do fenômeno em questão: a empiria -
na relação com as abstrações produzidas pelo grupo de partícipes - foi
decomposta para que fosse possível a sua posterior análise e síntese,
procedendo com o registro da compreensão do fenômeno alcançada,
tendo por categoria analítica a unidade.
Por isolado entende-se os recortes, os destaques da totalidade,
quer seja, “um conjunto de seres e factos, abstraído de todos os outros que
com eles estão relacionados [...] de modo a compreender nele todos os
fatores dominantes [...] todos aqueles cuja acção de interdependência influi
sensivelmente no fenômeno a estudar.” (CARAÇA, 1951, p. 112).
Tomou-se por isolados os conteúdos dos encontros realizados com os
professores partícipes da pesquisa e as assembleias de curso para a
discussão da proposição que ora é defendida, instrumentalizada pela
materialização advinda das produções textuais, bem como dos áudios
transcritos contendo os diálogos travados nas reuniões em que se
efetivaram ações formadoras, instrumentalização esta que se constituíram
em base para designação dos episódios de formação.
Episódios, na voz de Moura (2000, p. 59), “são ações reveladoras
do processo de formação dos sujeitos participantes de um isolado [...] que
revelam mudança (qualidade nova) [...]” naquilo que os sujeitos de
determinado grupo se propõem a realizar e que é definido no coletivo.
Outrossim,
604
Os episódios serão reveladores sobre a natureza e qualidade das ações.
Quanto à natureza, podemos destacar: se se trata de conceito, de modos
de ação, de valores, de conhecimento estratégico (organização do
trabalho coletivo e das relações de trabalho, criação de atividades
desencadeadoras de aprendizagem), ou se é apenas conhecimento
prático. Quanto à qualidade, os episódios poderão revelar se se trata de
ações coordenadas pelos motivos individuais ou coletivos, se visam à
concretização da atividade ou feitos sem vínculo com os motivos destas
ações, se articulam análise e síntese na avaliação das ações. (MOURA,
2000, p. 60).
605
Assim, definir o isolado desse fenômeno histórico – a formação
contínua dos professores do CAFS – foi o início do processo de análise,
após o conflito inicial do contato com os dados, passando pelos corpus
bruto, empírico até alcançar o analítico, em contínuas retomadas: no início
o caos para, em seguida, chegar ao concreto pensado até alcançar à
condição de exposição, estabelecendo a conexão com o método de
pesquisa. Os episódios, os isolados e as cenas têm unidade, com distintas
identidades entre si, expressando a dialeticidade inerente ao Materialismo
Histórico, o que possibilitou evidenciar as múltiplas determinações nas
suas relações essenciais, distinguindo a essência da aparência no fenômeno
histórico em movimento. Com base nessa compreensão e tendo em
mente a definição dos objetivos dessa pesquisa, analisou-se os isolados e
episódios selecionados, nas suas interdependências, considerando a
complexidade na qual a universidade pública brasileira está envolta
universalmente, captando as particularidades do fenômeno e considerando
as singularidades dele no CAFS, a fim de legitimar o que ficou entendido
como proposta de formação contínua, norteada pelas necessidades e
motivos do coletivo171.
Tendo em vista os objetivos dessa pesquisa, a pesquisa coletiva
possibilitou a criação de contextos em que os partícipes elaboraram textos
escritos individuais e coletivos172, baseados em critérios e características
produzidas no coletivo, intencionando, por meio do confronto, da
avaliação e da sistematização, a contínua retomada do que tinha sido
trabalhado em encontros anteriores, objetivando a descrição, a análise e a
síntese, constituindo o processo em pesquisa-formação que é fomentado
por uma trama de relações singulares. A constituição do coletivo suscitou
conhecimentos sobre cada um e sobre a totalidade, ou seja, evidenciando
171 O coletivo, no contexto desta pesquisa, foi composto inicialmente pelo grupo de
partícipes que aderiu de modo volitivo à atividade formativa proposta e,
posteriormente, expandiu-se ao apresentar a discussão sobre formação contínua nas
assembleias de professores (Cursos de Licenciatura em Pedagogia e Biologia; Curso
de Bacharelado em Administração).
172 A partir da produção individual dos textos, cada partícipe teve acesso aos textos
dos demais e, utilizando o revisor do word, foi fazendo os registros que avaliava como
necessário nos textos dos demais. Após os registros, os partícipes se reuniram para
discutir sobre tais registros, de modo que se chegasse a um consenso. Este
movimento possibilitou a transição dos textos individuais em textos coletivos.
606
características das identidades individuais e coletivas, dos objetivos do
coletivo e do movimento para alcançá-los. Evidenciou-se também
conhecimentos sobre as características da dinâmica de constituição do
coletivo, a produção de seus objetivos e o movimento para alcançá-los,
aflorando o caráter formativo da pesquisa coletiva que “permite aos seus
participantes formarem-se e atuarem como pesquisadores de e na
construção de sua própria realidade” (ALVARADO-PRADA, 2006, p.
110), criando o espaço e o tempo em que foram evocados os seus desejos,
interesses, necessidades formativas e o compartilhamento dos desafios e
dificuldades encontrados na docência na universidade.
Conforme Alvarado-Prada (2006), a concepção teórico-
metodológica da pesquisa coletiva afasta-se dos modelos que, em nome da
objetividade, entendem a não-alteração da realidade como neutralidade ou
a fidedignidade à verdade. Desse modo, os dados não foram somente
coletados pela pesquisadora, mas produzidos continuamente nas fases da
pesquisa, por meio das interações do coletivo e dos seguintes
procedimentos: o diálogo, a construção da própria metodologia e a
construção do coletivo. O diálogo possibilitou que, no compartilhamento
de conhecimentos, surgissem elementos tanto das relações interpessoais,
como de cada pessoa com seus próprios conhecimentos. Confrontar-se,
pois, com seus próprios conhecimentos, requer a existência do outro, a
fim de expandir o amplo e real sentido desses conhecimentos. Uma vez
ocorrido o confronto, os conhecimentos se transformaram em uma
amálgama em que não havia mais o pertencimento dos conhecimentos a
cada um, pois houve compartilhamento que gerou novos conhecimentos.
A construção da própria metodologia de pesquisa foi desenvolvida no
coletivo, considerando a formação para e na construção de
conhecimentos, em um caleidoscópio dos fundamentos teórico-
metodológicos de cada participante, aprimorando as capacidades de
negociar, lidar com as diferenças, fazer consensos e elaborar acordos.
A orientação epistemológica da pesquisa coletiva, na voz de
Alvarado-Prada (2006), é focada na relação sujeitos-sujeitos, ou seja,
abrange todos os envolvidos, inclusive quem propõe/coordena a
pesquisa, tendo em vista que os dados, os objetos e conhecimentos são
produzidos coletivamente, não havendo a distinção pesquisado-
res/pesquisados. Esse movimento dialético, posto que se move a partir
607
das argumentações e contra argumentações, visa o consenso, gera o “rigor
da pesquisa em função da aproximação das explicações [...] sobre a
situação objeto [...] derivadas de elementos ideológicos, políticos, sociais e
culturais específicos do coletivo” (ALVARADO-PRADA, 2006, p. 111)
que, não obstante situem-se no campo do conhecimento científico, são
produções resultantes das relações subjetivas. A devolutiva dos dados
produzidos pelo coletivo ocorreu pela via das ações comunicativas,
objetivando uma contínua reconstrução por meio de atualizações,
correções e alterações. Há que se considerar a dimensão política desse
processo, uma vez que os partícipes estavam envoltos nessa atmosfera
permanentemente, pois se formaram e foram formados politicamente
nesse emaranhado de relações, quer seja “concordando ou fazendo
resistência a elas, construindo as políticas locais e institucionais [...],
formando politicamente os alunos” (ALVARADO-PRADA; OLIVEIRA,
2010, p. 113), o que oportunizou a dialogicidade, considerando também as
dimensões pedagógica, técnica e as concepções teórico-metodológicas.
No entendimento de Alvarado-Prada e Oliveira (2010, p. 119),
“[...] as atuais políticas de formação continuada [...] tendem para um
aligeiramento e barateamento dessa formação. O que [...] provoca seu
empobrecimento e desqualificação [...].” Os referidos autores criticam o
destaque aos aspectos mais imediatistas, por exemplo, técnicas de
transmissão de conhecimentos e metodologias de ensino, em detrimento
“[...] das perspectivas ideológicas, históricas, culturais e sociais do trabalho
dos professores, dificultando, ao invés de facilitar, a análise e
compreensão das diferentes concepções que as permeiam [...].”
(ALVARADO-PRADA; OLIVEIRA, 2010, p. 120). Outro aspecto
considerado são os elementos necessários à formação contínua, quais
sejam: tempo, espaço e meios viabilizadores dessa formação, de modo que
seja assegurada a continuidade com base no ser, no fazer e no pensar,
exigindo investimento no coletivo.
A pesquisa coletiva, no entendimento de Longarezi e Silva (2013),
enfatiza a contribuição de cada sujeito na produção do conhecimento, a
partir da experiência social de cada um, a partir dos conhecimentos
científicos, mas também com base na realidade e na subjetividade de
todos/as os componentes do grupo, bem como nas experiências
profissionais, o que provoca o desenvolvimento autônomo e consciente.
608
Esse movimento vai gerando a conscientização por meio da apropriação
crítica do conhecimento, que conduz a aprendizagem ou transformação,
viabilizando a construção de novos conhecimentos. Nesse sentido,
Alvarado-Prada e Longarezi (2008, p. 114), entendem que “exigir dos
professores aprendizagem [...] de conhecimentos desenvolvidos por
outros e que são alheios à vida cotidiana profissional, mostra que quem
faz tais exigências, não aprendeu como se aprende e como é que os
docentes querem e o que estes precisam aprender.”
Considerando o desenho teórico/metodológico apresentado,
escolheu-se como instrumental para a realização da pesquisa o
questionário semi-aberto173, a produção de textos individuais e coletivos,
bem como o estudo de textos com temáticas relativas à efetivação dos
objetivos da pesquisa. O questionário foi enviado por e-mail para todos os
professores efetivos do Campus Amílcar Ferreira Sobral, que, à época
(2016), totalizava cento e cinco (105). A fim de conhecer-se a realidade
aplicou-se, primeiramente, o questionário semi-aberto para traçar o perfil
profissional e acadêmico dos partícipes da pesquisa, como também para
diagnosticar as especificidades relacionadas à questão-problema e aos
objetivos da pesquisa. Dos trinta e seis (36) professores que se dispuseram
a participar da pesquisa, quando consultados por e-mail somente vinte e
um (21) mantiveram o interesse para a efetiva constituição do grupo,
justificando os demais a não continuidade no propósito por conta dos
inúmeros compromissos assumidos com a UFPI, quer sejam relacionados
à tríade ensino/pesquisa/extensão, quer seja com as suas próprias pós-
graduações (mestrados e doutorados). Dos vinte e um (21) docentes
interessados em participar da pesquisa, somente foi possível a participação
de seis (06) em função de incompatibilidade de horários e dias de
permanência no Campus.
Na constituição do grupo considerou-se os seguintes critérios: um
representante de cada curso (houve representação dos Cursos de
Licenciatura em Pedagogia e Biologia; do curso de Bacharelado em
Administração; do Ensino Médio – EBTT) e formações iniciais diversas
entre si (duas formações iniciais em Licenciatura em Pedagogia; duas
609
formações iniciais em Licenciatura em Biologia; uma formação inicial em
Bacharelado em Administração; uma formação inicial em Licenciatura em
História), bem como a disponibilidade destes para a participação na
atividade formativa. Esta foi a constituição do grupo nuclear que,
posteriormente, expandiu-se em função de as discussões terem ocorridos
também nas assembleias de cursos aos quais foi possível de se realizarem.
Os partícipes foram designados por codinomes: o primeiro nome de cada
um faz referência à prospecção liberdade-felicidade, enquanto devir; o
segundo nome de cada um é alusivo aos sobrenomes da poetisa e dos
poetas autores das epígrafes deste trabalho. Na fase de expansão do
coletivo de partícipes, os presentes nas assembleias de professores dos
cursos de Pedagogia e Biologia, que tiveram seus discursos citados na tese
foram nomeados com os sobrenomes dos poetas e poetisas em primeiro
lugar e, como sobrenome, vêm os temas referentes à prospecção
liberdade-felicidade.
Que nos chegue a bravura, a calma, a intensidade, o compromisso,
a reciprocidade social, a força do afeto e do intelecto materializados pelos
coletivos, impactando na expansão da consciência crítica. Na voz de
Spinoza (1662, p. 3) “[...] toda a felicidade ou infelicidade consiste
somente numa coisa, a saber, na qualidade do objeto ao qual aderimos
pelo amor”, pois que mutatis mutandis “[...] é possível uma felicidade
diferente, real [...] ligada não à realização pessoal, mas ao entusiasmo de
trabalhar em função de um evento, de uma ruptura na ordem estabelecida,
e assim poder dar corpo a uma novidade no mundo.” (BADIOU, 2015, p.
1). Uma novidade que afaste o trabalho docente das tarefas destrutivas e
mecânicas e que o aproxime das tarefas sociais e revolucionárias.
Com apoio nessa discussão essa pesquisa tem como princípios
norteadores: a contradição, o movimento e a unidade (grifos nossos).
Entende-se que a contradição move a trama que tece a própria vida de
maneira não linear, sendo a morte (de tudo e todos) inerente à existência,
dada em um movimento de permanente confronto de pensamentos-
atividades-emoções como o nuclear das forças mobilizadoras do
desenvolvimento. A contradição efetiva-se como unidade e por unidades,
é o motor que carreia a existência humano-cultural, gerando força que
impulsiona a superação-desenvolvimento e revelando a essência enquanto
610
compreensão da síntese da luta entre contrários, da negação da negação,
da mudança do quantitativo para o qualitativo e vice-versa.
A unidade fundamenta a obutchénie174 dialética e desenvolvedora no
contexto da vospitanie, contendo em si mesma a inclusão/exclusão, o
consenso/dissenso, a necessidade/motivo e, sob esta base, constitui-se o
sujeito sócio-pessoal175 ao produzir a si mesmo e a humanidade de modo
concomitante, por meio dos confrontos na insurgência do novo, no
movimento do lógico e do histórico articulado pelos nexos conceituais. Na
dialeticidade, a vida e os conceitos são essencialmente considerados em seus
nexos, cadenciados em devir e perecimento, manifestando a totalidade do
mundo no processo do desenvolvimento, mediatizado pela linguagem que, a
partir do modo particular, provém a conexão entre o universal e o singular e às
transformações progressivas e regressivas da matéria.
Assim, a liberdade-felicidade enquanto produção social humana,
aqui fundamentada no Materialismo Histórico Dialético, na Teoria
Histórico-Cultural, na Teoria da Atividade e na Didática
Desenvolvimental, evocam o mergulho na cultura e convidam ao
pensamento politizado, são chamas que exigem a tomada de consciência,
não se constituindo do solos ipse, tendo em vista que tudo ao nosso redor
impacta na produção desse processo de natureza dialética. Em nada, a
liberdade-felicidade, que é impulsionada pela tomada de consciência,
assemelha-se às ilusões do contemporâneo contexto capitalista, com seus
falsos truísmos aprisionadores da consciência humana, pois, dar-se conta
da realidade compreende ampliar a consciência, reconhecendo nela uma
origem social, pois, como afirma Vygotsky “pode haver graus de
consciência [...]. A consciência das próprias sensações significa apenas que
elas atuam como objeto (excitante) de outras sensações: a consciência é a
sensação das sensações, exatamente da mesma forma que as simples
174 Obutchénie, segundo Longarezi e Dias de Sousa (2018), é a unidade primária que
contempla ensino-aprendizagem, a partir da perspectiva histórico-cultural da
atividade, podendo oportunizar a unidade obutchénie-desenvolvedora, se criadas as
condições adequadas que viabilizem o confronto com as vivências para que ocorram
processos psíquicos internos aos sujeitos, a fim de que a aprendizagem, enquanto
síntese dialética, efetive-se como desenvolvimento.
175 É a “[...] dimensão da pessoalidade produzida pelo humano que também é o
611
sensações são a sensação dos objetos.” (VYGOTSKY, 2004a, p. 14).
Desse modo, as sensações constituem-se em umbral para a apropriação
dos significados, porque carreiam à formação dos conceitos por meio dos
nexos conceituais. As denominações dos objetos e a consciência sobre
eles, quando ampliada, potencializa o desenvolvimento das funções
psicológicas superiores em suas conexões, ao buscar as suas relações na
totalidade, o que promove o desenvolvimento integral do humano, sobre
o qual trata-se a seguir, de maneira situada no universo profissional do
docente universitário.
Convém asseverar que priorizar a felicidade e a liberdade
enquanto produções sociais que anteponham a condição humana, fazendo
escolhas teóricas e pedagógicas que impulsionem a educação, significa, ao
mesmo tempo, contemplar a ruptura, a imaginação e a criação, evocando
o aprendizado ético-afetivo, entendendo ética como “[...] a capacidade do
corpo e do pensamento em selecionar, nos encontros, o que permite
ultrapassar as condições de existência na direção à liberdade e felicidade,
como um aprendizado contínuo.” (SAWAIA, 2003, p. 59).
Este é um tema caro aos estudos filosóficos e psicológicos que
envolve a inscrição da afetividade na linguagem: na atividade humana não
há separação entre as abstrações conceituais e a própria vida vivida, um
constitui o outro e coloca em cena o sujeito encarnado, não um mero
corpo biológico, mas um corpo-linguagem-mente-emoção. A linguagem
que expressa e produz emoção sustenta-se nas interações que constituem
os sentidos entre sujeitos localizados em um contexto específico, com
uma gama de pontos de vista, desejos e intenções decorrentes das
perejivaniia partilhadas ou não. De acordo com Leontiev (2004, p. 109 e
111), os sentidos expressos pelas:
612
do consciente, ao qual conduz necessariamente o desenvolvimento
do trabalho, dos instrumentos, das formas e relações de trabalho
que prepara a separação do sentido e da significação. A primeira
transformação importante, no sentido do alargamento do domínio
do consciente, é realizada pela complexidade das operações de
trabalho e dos instrumentos. A produção exige cada vez mais, de
cada trabalhador, um sistema de ações subordinadas umas às
outras e, por consequência, um sistema de fins conscientes que por
outro lado, entram num processo único, numa ação complexa
única. Psicologicamente, a fusão de diferentes ações parciais numa
ação única constitui a sua transformação em operações. Por este
fato, o conteúdo que outrora ocupava, na estrutura, o lugar de fins
(itálico do original) conscientes de ações parciais, ocupa doravante,
na estrutura da ação complexa, lugar de condições de realização da
ação. Isto significa que doravante as operações e condições de ação
também elas podem entrar no domínio do consciente. Em
contrapartida, não entram aí da mesma maneira que as ações e seus
fins. [...] A ação e o seu fim, quando entram na composição de
outra ação, não se "apresentam" (aspas do original) diretamente na
consciência. Isto não significa que deixem de ser conscientes.
Ocupam apenas outro lugar na consciência; são igualmente, por
assim dizer, controlados, conscientemente, o que significa que, em
certas condições, podem ser conscientes.
613
nas significações particulares, e por um lado, este conteúdo é refletido não
nas próprias significações. [...] devemos igualmente ter presentes no
espírito as transformações que as formas da linguagem e as formas da
consciência social sofrem.” (LEONTIEV, 2004, p. 137).
No que tange às transformações da linguagem e da consciência
social, faz-se mister destacar que, na perspectiva de Leontiev (2004, p.
128), “[...] as relações entre os homens transformaram-se cada vez mais
em puras relações entre as coisas176 que se separam (“se alienam”) do
próprio homem. O resultado é que a sua própria atividade deixa de ser
para o homem o que ela é verdadeiramente.” Na investigação psicológica
calcada na Teoria Histórico-Cultural, na Teoria da Atividade e na
perspectiva Desenvolvimental, estas particularidades de estrutura da
consciência humana exigem a sua consideração, sob pena de que seja
suprimido o concreto histórico, focalizando de modo abstrato o homem
em geral, posto que, segundo Leontiev (2004, p. 133), “[...] alienação não
significa muito simplesmente que qualquer coisa deixou de existir para
mim. O trabalho alienado não é de modo algum um trabalho inexistente
para o operário. Existe para ele, por certo, e entra aliás duplamente na sua
vida: de maneira negativa e de maneira positiva.”.
Reafirma-se, assim, a natureza contraditória da atividade por meio
do conteúdo da própria vida humana; relacionando-a à estreiteza da
consciência social e consciência de classe, pois sua consciência individual é
engendrada nas condições de uma consciência social, à medida em que se
apropria da realidade pelo prisma dos conhecimentos, das significações e
das representações urdidas socialmente, qual seja:
176 Acerca disso, convém o registro (mas essas relações não se reduzem apenas a essa
situação) sobre o que se convencionou chamar na contemporaneidade de “Internet
of Things (IoT), modo como os objetos físicos estão conectados e se comunicando
entre si e com o usuário, através de sensores inteligentes e softwares que transmitem
dados para uma rede, como se fosse um grande sistema nervoso que possibilita a
troca de informações entre dois ou mais pontos.” Disponível em:
https://www.proof.com.br/blog/internet-das-coisas/ Acesso em: 28/03/2020.
614
encarna totalmente nestas relações, assim os sentidos engendrados
pela atividade humana não se encarnam totalmente nestas relações
nem de maneira autêntica nas significações que refletem estas
relações estranhas à vida. É esta a causa da imperfeição e da
inadequação da consciência e da conscientização. Devemos
sublinhar que, se bem que se trate de uma inadequação da
consciência interna, ela não pode ser eliminada de outro modo a
não ser pela transformação prática das condições objetivas que a
criaram. Mais precisamente se essas condições se conservam, esta
inadequação só pode ser eliminada à custa de um repúdio pela
consciência da vida real ou num processo de luta ativa contra as
ditas condições. O homem esforça-se por pôr um fim à
desintegração da sua consciência. Mas se busca a adequação e a
autenticidade da sua consciência, não é por amor abstrato à
verdade. Isso apenas traduz a sua aspiração a uma verdadeira vida;
é por tal razão que esta aspiração é tão intensa e os processos da
tomada de consciência – os mais secretos, da “vida interior” do
homem – tomam por vezes um curso realmente dramático
(LEONTIEV, 2004, p. 139).
615
complementares, como se não formassem o todo contraditório da
docência. Da mesma forma, a tecitura das proposições didáticas
demanda o envolvimento direto dos professores, com indicações
referentes aos nexos conceituais, ou seja, ao que estrutura e
fundamenta um conceito, considerados na produção de tais
propostas (SOUSA, 2016, p. 151).
616
movimento que provoca a superação da imediatez do objeto em função
da condição de mediatização que coloca em evidência, nesse movimento,
as conexões internas, essenciais do mesmo, posto que o “objeto obtém
esta imediatez em relação consigo mesmo, mas só por meio de
determinados procedimentos da atividade do homem e da forma de
movimento do objeto se reproduz nesta atividade.” (DAVYDOV, 1988,
p. 119). Sendo assim, a atividade está internamente conectada ao
conceito de ideal, ou seja, ao devir do objeto, factível pela atividade
consciente do sujeito em função de necessidades finalidades, imagens que
o influem, conforme os significados linguísticos e simbologias, até
alcançar o resultado objetal correspondente a uma necessidade, o que é
executados por meio de ações e operações.
No âmago desse processo está a ontogênese e a apropriação da
cultura, densamente relacionadas ao campo do ideal e do
desenvolvimento da consciência, que direcionam as capacidades
imprescindíveis para que os sujeitos criem e/ou reproduzam utensílios,
ferramentas e objetos, capacidades essas que são possibilitadas por meio
da historicidade que evidencia os procedimentos necessários a tais
produções, como também as contradições postas por cada realidade
objetiva particular. A ontogênese ao demonstrar o desenvolvimento
histórico e cultural do ser, revela como fundante o papel da imaginação
para o desenvolvimento humano e de suas atividades. A Atividade
relaciona-se a uma estrutura e esquemas universais, na transformação de si
e do mundo natural pelo próprio homem, quer dizer, mostra-se na
Atividade a natureza universal do sujeito humano pela lógica dialética.
Ao se discutir o trabalho docente e o seu processo formativo,
compreendeu-se que a apropriação pela aprendizagem transcorre ao longo
de toda a história social, impactada pelo mundo circundante, por meio da
sua atividade produtiva, em seu significado social. A maneira como os
docentes se organizam no trabalho, como se relacionam entre si, bem
como nas diversas atividades sociais e na vida privada, configurada pelas
diferentes estruturas econômicas e culturais, impacta na constituição do
processo de aprendizagem. A educação se faz presente em todos os
campos do cotidiano, de modo planejada ou não, mas o objetivo aqui foi
discutir mais detidamente a Atividade Pedagógica, enquanto obutchénie
617
desenvolvedora, condição indispensável à humanização e formação
docente.
O exercício da docência, enquanto atividade humana, pauta-se na
coletividade, constituindo-se por meios das perejivaniia, em contínuo
processo de vospitanie e de obutchénie. Desse modo, as necessidades
formativas e a própria formação foram arroladas como nucleares para a
vida cotidiana, portanto, indeléveis para o trabalho docente e o seu
processo formativo, nas suas implicações objetivas e subjetivas, nos seus
modos de ser-pensar-agir. Para compreender a categoria trabalho como
unidade dialética foi necessário captar nas relações de trabalho o nuclear
em movimento histórico que evidenciou o essencial por meio da
totalidade, da consciência e da atividade, qual seja, o processo de
formação docente.
Assim, a partir do Materialismo Histórico Dialético, da Teoria
Histórico-Cultural da Atividade e da Didática Desenvolvimental analisou-
se a organização e o desenvolvimento das ações de formação contínua no
recorte temporal registrado, em mobilização pela prospecção liberdade-
felicidade, instigada pelas unidades afeto-cognição, ruptura-
desenvolvimento, motivo-objeto, imaginação-criação e conteúdo-forma,
enquanto processo de desenvolvimento ontogênico e devir histórico.
Neste recorte de pesquisa, toma-se do Isolado intitulado “A
Aprendizagem Docente”, o Episódio intitulado “Afecções, afetos e
emoções - sentimentos delineadores da Atividade Pedagógica”,
apresentado a seguir.
618
Segue a cena A1.1, ocorrida na reunião com os partícipes, em
06/06/2017.
7 Liberdade Lispector Eu acho que é mais pra aquela pessoa que dá aquele curso lá se manifestar
de alguma forma e a gente não tem proveito nenhum.
8 Felicidade Suassuna Porque quando vem a verticalização, ela já vem com uma intencionalidade,
entende?! Que muitas vezes direciona para um mundo contrário do que a gente
entende que seja fator para a expansão da nossa consciência [...] Quantas questões a
gente constrói e tem necessidade das respostas, que não são respostas definitivas,
mas que a gente vai precisando dessas respostas também para ter estabilidade nas
atitudes de pesquisa, compreendendo de forma mais ampla os conhecimentos. A
gente vai formando para agir conscientemente com base neles e não a partir do
vazio, né? Do nada... porque esse é um processo extremamente solitário, tem sido
solitário. Por isso que defendo a importância disso... da necessidade da gente porque
quando isso acontece a gente vai e participa não por imposição, a gente vai porque
aquilo é significativo para a gente...é aquilo que eu preciso aprender a fazer no
cotidiano, que eu não me sinto capaz, geralmente o professor verbaliza muito sobre
imediatismo e quer uma resposta imediata, isso já indica uma concepção de
formação continuada. Tem coisas que a minha formação não me permite ver que
eu posso ver pelo seu sentido...
619
Inicialmente, no “Episódio A1: Afecções, afetos e emoções -
sentimentos delineadores do movimento da Atividade Pedagógica”, na
Cena A1.1, Liberdade Lispector (trecho 1) manifesta a sua contestação
sobre o não-diálogo entre os conceitos das diversas áreas de
conhecimentos, relacionadas às licenciaturas e bacharelados ofertados no
CAFS: na sua compreensão, os conceitos que corroboram com a
constituição da identidade do profissional de cada curso não os aparta
entre si, ao contrário, podem sim dialogar, o que sinaliza a sua capacidade
de compreender a universalidade do conhecimento científico e sua relação
com a obutchénie, evidenciando o seu entendimento sobre os nexos
existentes entre as dimensões universal, particular e singular dos
fenômenos históricos. Felicidade Suassuna (trecho 2), destacou a
historicidade do processo de formação de cada sujeito, pontuando sobre o
acesso a cada conhecimento em sua respectiva singularidade. No trecho 3,
Liberdade Lispector afirma que cursou uma pós-graduação em docência
para se sentir mais “confortável” como professor (sua formação inicial é
bacharelado), ao que Felicidade Suassuna (trecho 4) retruca assinalando
sobre a “insuficiência” da formação inicial e, retoricamente, cita a
“imitação” como recurso de aprendizagem para o professor. Liberdade
Lispector (trecho 5) manifesta anuência ao dizer que às vezes se pega
“fazendo coisas” semelhantes ao que o seu professor fazia.
Compreende-se que, nos trechos supracitados da Cena A1.1, as
unidade conteúdo-forma, imaginação-criação e afeto-cognição,
manifestaram-se na capacidade de entendimento sobre as relações entre o
modo de ensinar-aprender-ensinar, a apropriação do conhecimento e do
seu próprio conteúdo em si, expressos em dialeticidade, pois realçou-se
que é necessária a apreensão das relações internas do fenômeno histórico,
tendo em vista que estas não se revelam na aparência de tais fenômenos,
posto que é exigida acurada análise, a fim de que seja possível captar tais
relações. Desse modo, conforme evidenciou Liberdade Lispector (trecho
1) ao se reportar à relação entre conceitos, interpreta-se que importa tanto
o conteúdo quanto a maneira como se organiza este conteúdo, ou seja, a
forma, a fim de que ocorra a mediação externa por meio dos signos,
provocando as alterações internas por meio dos significados sociais em
interligação com os sentidos pessoais. No trecho 2, Felicidade Suassuna
apontou para a produção de conhecimento oportunizada a partir do
620
conteúdo das diversas áreas de conhecimento, evidenciado novamente a
unidade conteúdo-forma, posto que as diferentes formas de organização
curricular e instrumentalização destas possibilitam diferentes
aprendizagens. Felicidade Suassuna, no trecho 6, referindo-se à formação
contínua destacou que a verticalização do ensino, em função dos
conteúdos e do formato de execução não produzem conhecimentos
pautados nas necessidades formativas dos professores, evidenciando mais
uma vez a unidade conteúdo-forma. Ainda no trecho 6, Felicidade
Suassuna asseverou sobre não bastar os conhecimentos em seus aspectos
conceituais, pois ao se lidar com pessoas também se lida com as emoções,
o que colocou em destaque a compreensão sobre a unidade afeto-
cognição, ou seja, ao se elaborar o pensamento teórico estão postos nesse
processo a afetividade e a volição no campo da consciência. Felicidade
Suassuna, no trecho 8, ao destacar que vislumbra outras perspectivas pelo
sentido do outro, sinalizou para a gênese que dispara a imaginação-
criação, pois a abstração colabora com a efetivação do processo criativo e
expansão da consciência.
Assim, no processo pedagógico-psicológico de produção do
conhecimento, a capacidade de análise decorre da compreensão da
sociedade enquanto sistema que serve a determinados interesses de
produção na relação com a natureza e com o trabalho humano, tendo por
consequência a compartimentalização dos conhecimentos, que é
decorrente de tal modelo de sociedade compreendida equivocadamente
como forma unívoca de organização social. Portanto, a compreensão
manifestada por Liberdade Lispector (trecho 1), evidencia expansão de
consciência que capta tal essência podendo, por analogia, aplicar esse
entendimento na compreensão da mente como um todo, no
funcionamento sistêmico entre suas partes.
A Atividade Pedagógica, enquanto movimento coletivo dialético,
faz abrolhar as condições materiais para que, a partir da história de cada
sujeito sócio-pessoal, sejam produzidos os significados sociais e os
sentidos pessoais que impactam na constituição da afetividade humana,
plasmada pelas afecções, afetos, emoções e sentimentos docentes,
abarcando as ideias, os signos e as essências, evocadas pela interconexão
das funções psicológicas superiores, no movimento de ascensão do
abstrato ao concreto no lógico-histórico dos conceitos. Sendo assim,
621
Quando percebemos, percebemos ao mesmo tempo nossas
afecções corporais e nossas ideias dessas afecções, de modo que as
coisas são experimentadas pela mente e pelo corpo não como
unidades individualizadas, mas como um complexo múltiplo. Do
mesmo modo, as atividades do conhecimento não ocorrem uma de
cada vez ou uma depois da outra de modo sucessivo, mas se dão
simultaneamente. Assim, as mentes são, portanto, mais ou menos
aptas a perceber e compreender essa pluralidade simultânea que é
constituinte da realidade e de sua própria natureza. A
simultaneidade, entretanto, é uma relação temporal, e por isso deve
ser entendida em conjunção com outras relações lógicas e
mereológicas, como, por exemplo, a continuidade (ou
descontinuidade), a diferença e a proporcionalidade. (PUGLIESE,
2017, p. 122).
622
sócio-pessoal nesse processo? Os motivos individuais que fazem eclodir
a necessidade de estar em coletivo são diversos e estão sujeitas a
regulações sociais que afetam tais desejos.
Felicidade Suassuna segue afirmando no trecho 6 que, o processo
de formação contínua, desencadeado pelo-outro-com-o-outro gera o
autoconhecimento, o que culmina no conhecimento da própria Instituição
de Ensino Superior (IES), nesse caso, a UFPI-CAFS em seu contexto
histórico, cultural e social, acompanhando o docente pela vida de modo
permanente. Novamente eclode a unidade conteúdo-forma na cena A1.1,
quando Felicidade Suassuna assinala para a universalidade dos
conhecimentos científicos, ao apontar a necessidade de conhecimento que
abarque a formação da personalidade humana como um todo de modo
sistêmico. A insatisfação com a verticalização da formação docente é
explicitada por Liberdade Lispector no trecho 7, ao fazer referência ao
“Curso de Iniciação à Docência do Ensino Superior”, ofertado pela UFPI,
por força de obrigatoriedade estabelecida em cada edital de concurso. Os
editais preveem que tal curso seja oferecido antes dos recém concursados
adentrarem à sala de aula, mas às vezes, transcorre um ano para que
ocorra o curso. A carga horária é de apenas oito horas.
No trecho 8, Felicidade Suassuna reitera sobre a verticalização,
destacando sobre as possíveis intencionalidades que, no seu
entendimento, podem configurar antagonização às concepções de mundo
que os docentes entendem ser adequadas à expansão da consciência
humana. Interpreta-se nesse mesmo trecho que, Felicidade Suassuna, ao
mencionar a provisoriedade da ciência no que se refere à transitoriedade
dos conhecimentos científicos, devido ao movimento histórico de avanço
ou até mesmo de possíveis retroações que lhe são peculiares devido à
natureza da ciência em si, compreende a inerente contradição posta pela
unidade dialética enquanto categoria. Outrossim, questiona o imediatismo,
evidenciando que assim o entende como prejudicial tanto ao processo de
Vospitanie como de Obutchénie, conforme interpretou-se, pois:
A contradição é [...] real, está nas coisas mesmas. Ela não é uma
transposição conceitual do movimento, nem tão somente uma
expressão limitada e provisória das coisas, resultado de uma análise
incompleta e fragmentária. A essência das relações reais é, sendo
relação, ser luta e choque. Termos e relações são tomados não
623
como eternos, mas como móveis. Estas fórmulas não constituem
uma apologia da contradição, do dilaceramento ou do absurdo.
(LÊNIN, 2011, p. 25).
624
Entretanto, a educação é elemento constitutivo imprescindível à
conjuntura que se proponha a romper com a estrutura consolidada da
ordem capitalista, indo de encontro à conformidade instituída, à alienação
e ao fanatismo que empobrecem a humanidade. Errática ao sistema
vigente, a educação pautada na transformação-emancipação, provoca a
expansão da consciência crítica, conectando-a dialeticamente à realidade
social. Sigamos!
Referências
625
FERREIRA, Ione Mendes. Formação de professores e desenvolvimento
da personalidade na infância: uma intervenção didático-formativa com
professoras da Educação Infantil. Uberlândia: Programa de Pós-
Graduação em Educação. Universidade Federal de Uberlândia. (Tese de
Doutorado). 2021.
626
em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de
Uberlândia, 180 p.. 2021.
627
LONGAREZI, Andréa M; SILVA, Diva S. Formação de professores e
sistemas didáticos na perspectiva histórico-cultural da atividade: panorama
histórico-conceitual. Apresen-tação. Obutchénie. Revista de Didática e
Psicologia Pedagógica. Uberlândia: EDUFU. Vol 2, n.3, 2018, p. 571-590.
Disponível em:
< http://www.seer.ufu.br/index.php/Obutchenie/article/view/47433/2
5643> Acesso em: 21.03.2019.
628
campo educacional. Tese (Doutorado). Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia/MG., 2019.
629
Capítulo 19
Introdução
630
professores da língua portuguesa dos futuros professores desse idioma
para o Ensino Secundário Geral.
Dentre as características de fundo das experiências em alusão
importa afirmar que, em razão das práticas docentes rotineiras e
cansativas, estas redundavam no fracasso e no desgaste, e careciam de
uma ação informada sobre a sua relação e justificação com as questões
culturais, económicas e políticas da sociedade moçambicana. Quer dizer, a
língua portuguesa, enquanto objeto de ensino e meio de comunicação,
não se via mostrar como uma esfera de atividade da linguagem relevante e
interessada por quesões constitutivas do ser humano, da realidade e do
cotidiano da sociedade moçambicana.
Contrariamente, ela sobressaía como que assumindo uma postura
legalmente permissiva em relação ao estabelecimento de um arranjo ou
acordo linguístico nacional homogêneo muito mais próximo ao
cumprimento de uma função pragmático-utilitarista (gramaticalização da
língua) do que uma atividade de pensamento, de consciência, de
constituição ou, pelo menos, de transformação da realidade e do sujeito
falante.
Em razão dessas inquietações cuja substância pode ser vista no
evidente afastamento de investimento da autonomia na construção do
conhecimento linguístico, não fazendo o sujeito aprendente nem agir e tão
pouco exigir uma postura dialógica com a realidade sociocultural e
política, desenvolvemos uma pesquisa sob modalidade estratégica de
intervenção didático-formativa178, visando o desenvolvimento do sujeito
apredente no sentido de o permitir pensar a realidade teoricamente.
Para dar cobro a esta necessidade, fixou-se o objetivo geral o qual
buscou compreender as razões e dimensões do ensino da língua
portuguesa, no contexto universitário da formação de professores de
línguas, em Moçambique, tendo o desenvolvimento das habilidades
didáticas formadoras do formador como sua referência, e apreender
princípios de ação didática na aula de línguas.
631
Do método às esratégias de atuação
632
Uma outra característica fundante do materialismo histórico-
dialético, enquanto conhecimento neste trabalho, é a concepçao da
inseparabilidade do sujeito do seu objeto do conhecimento. Razão
porque, ao se assumir como condição de método, também não separa o
conteúdo do objeto na formação dos professores de línguas e,
porseguinte, se institui como uma práxis que explica o processo de criação
do conhecimento didático em línguas como que se caracterizando por
uma relação dialética entre o conteúdo e a sua forma.
Por outro lado, a nossa orientação epistemológico-metodologica
subsidiou-se de alguns elementos da teoria histórico-cultural e da teoria do
ensino desenvolvimental. No primeiro caso, tem-se o exame de questões
de fundo sobre os modos pelos quais o ser humano se forma e se
desenvolve e, no segundo, evidencia-se a necessidade de compreender a
formação didática do professor de línguas como um processo de
desenvolvimento que se institui na unidade dos princípios que norteiam a
ação do ensino dos professores e dos princípios que orientam a ação
didático-formadora dos professores, ambos (princípios) condicionados
pela realização da atividade (psíquica) possibilitando a formação do
conceito.
Do ponto de vista processual, a estratégia metodológica que
operacionalizou a pesquisa foi a intervenção didático-formativa por
encontrarmos nesta alguns referenciais para a realização da pesquisa com
vista à formação e ao desenvolvimento dos participantes. Tais referenciais
objetivam (1) transformar a realidade dos sujeitos e objetos da formação,
(2) descobrir as formas pelas quais os participantes se mobilizam para
organizar a dinâmica da experiência do grupo e formas com recursos aos
quais pode-se desevolver ações transformadoras do objeto de investigação
utilizando-se recursos que gerem tais transformações (LONGAREZI;
SILVA, 2013).
A metodologia da intervenção didático-formativa consiste em uma
633
como objetivo-fim a formação-desenvolvimento de professores e
estudantes pela atividade pedagógica (objetivo-meio).
(LONGAREZI, 2017, p.198-199).
634
niveladas com as necessidades de formação e baseando-nos na análise do
pesquisador, as “sessões da realidade capazes de desvelar manifestações
do movimento de apropriação dos futuros professores sobre a
organização do ensino” (RIBEIRO; MOURA, 2012, p. 2) através do
recorte, separação e afastamento dos conteúdos emergentes da pesquisa
que constituem “factores dominantes, ou seja, todos aqueles cuja acção de
interdependência influi sensivelmente no fenômeno a estudar”
(CARAÇA, 2002, p. 105). Através do conceito de episódio foi possível
descobrir ações dos participantes presentes num dado isolado cujas
características, ao se tornar visível, assumiram diferentes formas:
conceitos, modos de ação, valores, conhecimento estratégico ou prático.
(MOURA, 2004).
635
Produção analítica e sentidos gerados
636
matéria-prima, a língua compreenderia um sistema estável, acabado e
pronto para ser usado, um uso que estaria condicionado à utilização
correta das suas regras gramaticais, morfossintáticas, fonéticas e
fonológicas.
Cabe salientar que os docentes viriam a concordar que, enquanto
instrumento de comunicação, a língua funcionaria como signo que
estabelece uma relação de mediação entre o objeto e o sujeito da
representação da realidade. Ainda assim, a especificidade do signo foi
compreendida no sentido de que, enquanto língua, o mesmo deveria se
conformar à realidade para ganhar a significação (conteúdo). Longe de ser
um signo ideológico, a sua compreensão nesses termos deu ênfase à
legitimação da língua como um sinal que estaria voltado ao próprio
sistema interno de funcionamento e se caracterizaria por ser neutro na sua
relação com os sujeitos e objetos da realidade.
As colocações acima viabilizaram a necessidade da discussão
sobre as dimensões (da compreensão) da língua, objetivando criar
condições de superação da concepção de língua-instrumento para língua-
enunciado/discurso ou pensamento. Quer dizer, o fim último da
discussão era o de edificar a compreensão de que a língua se institui na
relação dialógica sendo esta responsável, por sua vez, pela formação das
relações de sentido instituídas histórica e culturalmente localizadas.
Para perseguir esta produção conceitual, constituiu o material de
apoio da discussão a linguística de enunciação, tendo sido selecionados os
seus principais elementos, quais sejam a referencialidade, os critérios de
análise do sentido, os traços subjetivos na língua e a constituição do
conceito de enunciação em si. Importante referir que o trabalho sob o
apoio desses elementos foi realizado após uma reflexão coletiva sobre as
formas por meio das quais a significação da palavra produziria relações de
sentido na língua. O resultado desta reflexão apontou duas condições
necessárias à produção das relações de sentido: as dimensões dialógica e
pragmática da língua.
Por um lado, a concepção de diálogo no coletivo consistiu na
fixação da ideia que corresponderia à oralização da língua que, no
processo de ensino-aprendizagem, se materializaria no uso pontual da
língua pelos estudantes em que se obsevaria a interação verbal face-à-face
com recurso às simulações, dramatizações e à incarnação de personagens
637
atribuídas para a representação. Por outro lado, o coletivo dos formadores
recuperou a já conhecida conceptualização da pragmática, como uma das
dimensões da língua, segundo a qual consisteria na língua em uso
caracterizada pelo destaque de questões de sua utilização imediata ou
instantânea.
A análise efetuada mostra que o denominador comum e feliz que
os conceitos acima apresentados é o de que ambos reportam-se à língua
na perspectiva da pessoa que fala e do contexto que dirige ou condiciona a
fala. O que abriu espaço para o estudo das dimensões da significação e
compreensão da língua acima apresentadas.
Os resultados obtidos apontam-nos que a noção de diálogo, ainda
que compreendida inicialmente da forma tradicional, comporta outros
elementos de fundo: além de se caracterizar como uma concretização da
significação da palavra, singulariza-na a ponto de se constituir um
enunciado, uma expressão viva, representando a expressão de uma
posição ideológico-axiológica do sujeito falante.
Nesse sentido aponta-se uma superação concitual importante.
Uma superação expressa na transformação do entendimento da língua-
instrumento para língua-enunciado-pensamento em que se pontua a
superação das relações e lógicas que governavam as unidades
exclusivamente linguísticas para as lógicas de relações histórica e social
dos sentidos. Quer dizer, a língua existe efetivamente se se ligar e entrar
na vida social dos seus falantes através de enunciados (termo mais
bakhtiniano) por serem estes últimos gêneros discursivos típicos e
“relativamente estáveis, caracterizados por um conteúdo temático, uma
construção composicional e um estilo” (FIORIN, 2015, p. 68/9) que nos
permitem dominar determinada esfera de atvidade linguística.
Em relação conceito de pragmática, a análise feita mostrou-nos
que a sua essência convergeria para uma perspectiva estrutural da língua
em que o seu maior propósito, ainda que valorize o uso prático e imediato
da língua, a sua análise integraria elementos de sintaxe e de semântica,
como diria Faraco, “para dar conta a aspectos de significação […] que os
falantes fazem contextualmente com seus enunciados” (FARACO, 2009,
p. 118).
Assim, o estudo coletivo viabilizou a compreensão de que o
campo de conceituação da pragmática vai além do previsto pela
638
linguística. Não se cinge apenas na “língua em uso” mas concebe-na como
atividade no sentido de que
639
Língua e seus processos de ensino na formação profissional
docente
640
em línguas nos processos de construção da significação (ação da
construção do signo/conteúdo).
Tão cedo, o coletivo deu-se conta de que esta síntese primeira
estaria em contradição com a postura conceitual da língua adoptada acima
a qual impõe duas dimensões da mediação, nomeadamente a dimensão
cognitiva e a dimensão didática (a mais tradicional que comporta
elementos objetivos estruturantes da aula que integram a organização do
conteúdo, material de apoio ao ensino e das formas da realização do
ensino, na nossa compreensão, seriam entendidos como consequência da
mediação cognitiva). E, ao mesmo tempo, tal síntese suscitou interesse em
aprofundar em que consisteria e sob qual finalidade a mediação cognitiva
se orientaria para o ensino da língua portuguesa.
Como pesquisadores, tivemos que assumir uma posição política
diante do papel e função do signo. O que significa que esta foi a assunção
para a qual a consistência e a finalidade da mediação cognitiva se
orientaram nos termos que a defendemos aqui. Ou seja: a língua
portuguesa, enquanto signo, além de
641
como uma atividade de interação entre o meio externo e o meio interno
do sujeito falante da língua que integra duas dimensões de atuação,
designadamente as dimensões psiquica e material as quais são
reaponsáveis pelo desencademento da consciência, neste caso, do signo
(língua portuguesa). Ou seja, a consciência, enquanto trama sensitiva,
consitui uma forma que o próprio significado assume materializado em
duas modalidades báseicas: o formato daquilo dentro do qual o conteúdo
objetal existe para o sujeito e a trama em si mesmo. (LEONTIEV, 2006)
Com base nesta ideia construída pelas reflexões coletivas no
grupo, aplicada ao ensino-aprendizagem da língua portuguesa, os
formadores de professores conluíram que a consciência em si ela não
constitui significado ou signo, mas transporta-o constituindo-se em
mensageira deste. O que a caracteriza como o conteúdo transformado e
reduzido da forma ideal da realidade.
Esta conclusão permitiu a compreensão de que no processo de
ensino-aprendizagem da língua portuguesa, os professores não são
mediadores mas organizadores deste processo no sentido de que atuam ao
nível da estrutura externa da atividade a qual é mediada pela sua relação
social e ideológica com os signos culturalmente estabelecidos. Sigifica
afirmar que o ensino não é mediação do professor, mas uma atividade
pedagógica mediada.
Desse modo, constitui uma superação importante o fato de terem
apreendido que o mediador da relação do estudante com com o
conhecimento no processo de ensino-aprendizagem são os signos,
cabendo ambos (professores e alunos) estarem na situação da atividade. O
objeto da mediação, a cultura acumulada ao longo do desenvolvimento
social da humanidade, será apresentado no subiten a seguir.
642
apontava para o conceito de conhecimento de forma muito geral. O que
não permitia precisar as principais dimensões do referido conhecimento.
Ou seja, a ideia de que o conhecimento seria o conteúdo fundamental do
ensino e da aprendizagem da língua portuguesa.
Com vista a dar substância ao estudo, discutiu-se primeiramente
sobre a finalidade do ensino da língua portuguesa, tendo-se desembocado
no denominador comum que indiciava a emergência de duas linhas de
raciocínio, quais sejam a que diferenciava a educação em científica e
tradicional e a que distinguia o conhecimento científico do conhecimento
tradicional.
As percepções reunidas sobre a educação científica
circunstanciaram posicionamentos segundo os quais o fim último da
perspectiva científica consisteria num ensino levado acabo pela escola e
orientado para a aquisição do conhecimento técnico-científico, e a
educação tradicional consistiria numa prática de ensino voltada para os
valores tradicionais, prática esta que deve ocorrer em um ambiente extra-
escolar.
Das percepções adiantadas pela análise efetuada, aponta-se uma
clara discriminação ou, pelo menos, uma dificuldade de um
posicionamento conceitual rigoroso entre a cultura e a ciência
(conhecimento), termos recorrentemente evidenciados como que se
conflitando e se anulando mutuamente em relação aos atributos
conferidos a cada um deles.
Aplicados ao contexto do ensino de línguas, estes
posicionamentos criaram um terreno fértil para o entendimento de que a
formação dos professores visaria à aquisição do conhecimento científico
por meio do qual os professores se habilitariam a ensinar as línguas, no
caso vertente, a língua portuguesa. Todavia, um conhecimento à margem
dos valores culturais por serem tradicionais180 cuja característica essencial
seria a de se opôr à ciência.
A suposta contradição entre os objetivos e finalidades da
educação “tradicional” e da educação técnico-científica como objetos do
conhecimento, condicionado pelo ensino, levou a pesquisa a refletir sobre
180Aqui o tradicional seria entendido como algo obsoleto e ultrapassado, e não como
o clássico.
643
os conceitos que essencializariam a cultura e o conhecimento. Das
produções conceituais obtidas, a cultura foi consesualizada como que
estando mais próxima à perspectiva antropológica que, além de versar
sobre as identidades e modos de vida e comportamento de determinado
povo, se centraria nos grupos minoritários181 cujas características de
organização social das pessoas situar-se-iam à margem de indivíduos
pertencentes a uma sociedade moderna evoluída.
Por sua vez, a ciência ficou associada às noções de conhecimento,
elite ou de civilização atribuídas a certos indivíduos que se tornariam
cultos através do processo de ensino-aprendizagem de que a instituição
escolar se ocupa.
A análise dessas asserções leva-nos a afirmar que elas se
pressupõem mutuamente no que diz respeito à sua qualidade e validade
conceitual para a didática de línguas aplicada ao ensino do português, na
medida em que tanto a cultura quanto o conhecimento, ambos,
representam para o homem a “capacidade de conferir à matéria uma
forma simbólica e ao símbolo uma forma material que caracteriza a ação
criadora do homem” (GOMES et al., 2016, p. 822), o que os legitima,
desta forma, como produtos e produtores do Homem através da
“comunicação e da criação e utilização de instrumentos e signos” (ibidem,
p. 820/1).
À respeito da questão, o debate dos formadores participantes da
pesquisa cedeu a releitura segundo a qual não se pode falar da cultura sem
o conhecimento que o pressupõe e, igualmente, não se pode falar do
conhecimento sem a cultura que o antevê. A mútua pressuposição explica-
se pelo fato de, um e outro, estarem na origem da descrição, interpretação,
represetanção (mediação) e caracterização de determinado sistema de
ideias ou valores (conhecimento), representações da realidade e visão de
mundo.
Entendida como uma releitura significativa dos formadores de
professores, a colocação acima revela uma transformação conceitual em
relação ao conteúdo da formação em língua portuguesa que o consideram
181 É conceito sociológico que explica, não numa perspectiva númerica, a condição
desigual em que se encontram determinados grupos de pessoas (negros, gays etc.) em
relação a benefícios sociais e poderes quer políticos quer económico-culturais
(GUIDENS, 2010).
644
que deve partir da discussão sobre as culturas ou conhecimentos
socialmente instituídos para que não se possa buscar instituir, por via do
ensino da língua portuguesa, processos de significação do mundo com
uma finalidade niveladora de valores e hábitos culturais ou que estimulam
o entendimento da cultura como propriedade particular de indivíduos ou
comunidades.
É que a consideração da cultura-conhecimento, nessa perspectiva,
permite perceber que ela constituiria um instrumento simbólico e material
fundamental para o funcionamento da consciência humana, uma vez
evidenciado comportar-se como um campo de significados socialmente
produzidos para a formação e desenvolvimento humano. Na prática de
ensino, algumas ilações podem ser abstraídas desse entendimento sob a
forma de princípios didáticos a ter em conta para uma didática da língua
portuguesa de caráter desenvolimental. São, portantos, princípios abaixo
apresentados, fruto da abstração do investigador da relação com os dados
da pesquisa no seu todo:
645
Na confrontação surge o que designamos aqui por conhecimento
no sentido de que a língua-discurso, sendo uma entidade extralinguística
de significação, tal como língua-ideologia o é, representa o poder que o
sujeito-falante tem sobre a produção e orientação do conteúdo linguístico
para a satisfação das necessidades de comunicação através de enunciados.
Por outro lado, a língua-ideologia, mais do que um poder particular,
constitui um saber igualmante particular na base do qual a ideologia e o
discurso funcionam sob o prisma das representações.
No contexto da didática do português, essa colocação epistémica
materializa-se passa pela sua conversão em princípio da confrontação-
coabiltação do discurso e do dialógico. Quer dizer, ao funcionar como
representação da realidade, o discurso (efeito de sentido) autoria a língua
ao conhecimento e a ideologia (uma forma particular do saber de que é
atravessado o discurso) confere àquela o ato de fazer o significado aderir
ao objeto a que a própria língua se refere. O que tem impacto na atividade
de mediação desse processo.
646
no professor em que a construção dos sentidos da língua se limitaria ao
significado do léxico dado ausente das formas culturais de utilização da
lingua(gem). Ou seja, evidencia-se aqui a ideia de qua a atividade
linguística praticada no quadro do ensino-formação dos professores da
língua portuguesa na Universidade Pedagógica tem suas raízes
epistemilógicas deficitárias da noção de linguagem em geral.
Ademais, a ideia que se tinha sobre o conceito de atividade
redundava num exercício muito restrito à instrumentalização das etapas de
aula já constituídas. O que não dava espaço à reflexão crítica conducente
à internalização dos processos daí decorrentes.
Para compreender a atividade mediadora, partiu-se do estudo da
noção de conceito, uma entidade que participa na realização da atividade
mental e, por conseguinte, do conteúdo conceitual da língua. A ideia
fundante da noção de conceito é que ela, enquanto imagem mental,
permitiu a que o seu estudo fosse abordado numa perspectiva dialógica,
isto é, se reportando a “diferentes discursos que configuram uma
comunidade, uma cultura, uma sociedade”(BRAIT, 2005, p. 94) mas
também como “processos discursivos instaurados historicamente pelos
sujeitos, que, por sua vez, se instauram e são instaurados por esses
discursos”. (BRAIT, ibidem)
Ao se reportar e processar o discurso construído em torno da
noção de conceito, foi possível compreender a amplitude do conceito de
atividade de mediação em línguas no sentido de que, verdade, tal conceito
não é propriedade nem do professor nem dos alunos uma vez que ambos
se encontram numa relação específica com os signos (língua), uma relação
de mediação que implica uma forma específica de confrotação do
professor e do aluno para a construção dos sentidos.
O que significa que, na aula de línguas, além de se priorizar a
estratégia dialógica como fator desencadeador da formação e do
desenvolvimento, é preciso confrontar dialeticamente o símbolo e a
realidade que aponta, já que o signo pode, ao mesmo tempo, ser
verdadeiro dependendo do poder que se lhe atribui na constituição e
representação da realidade e dos sujeitos. Ou seja, tal como a constituição,
as representações podem ser “falsas en lo que apuntan y dicen pero
verdaderas com respecto a lo que las suporta”(LEFEBVRE, 2006, p. 58).
647
Algumas apreciações do estudo
648
línguas, constituem uma única unidade em que dialeticamente um
elemento se sobrepõe no outro.
A sobreposição em alusão explica-se pelo fato de tanto a cultura
quanto o conhecimento (ciência) são representações que figuram como
“capacidade [do Home] conferir à matéria uma forma simbólica e ao
símbolo uma forma material que caracteriza a ação criadora do homem”
(GOMES et al., 2016, p. 2016).
Nesse desiderato, a concepção de língua como atividade
constituidora da realidade, diz o estudo, precisa que a referida atividade
seja realizada com os enunciados para se tornar uma atividade significativa
do próprio sujeito falante. É que, por um lado, através dos enunciados o
sujeito vive, experimenta e realiza atos humanos e, por outro lado, a língua
não tem como entrar na vida humana senão pelo enunciados: os
encunciados são dialógicos e discursivos.
Referências
649
Educação) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2016.
Disponível em:
https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/17633/1/ProcessosImit
acaoCriacao.pdf. Acesso em: 03 de mai. de 2017.
650
FRANCO, Patrícia L.J; SOUZA, Leandro M. de A.; FEROLA, Bianca de
C. Princípios e movimentos didáticos para uma “Obutchenie por
unidades”. Dossiê Didática desenvolvimental: uma abordagem a partir de
diferentes concepções histórico-culturais. Linhas Críticas. Vol. 24, 2018, p.
359-380. Disponível em:
<http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/19820/
20628> Acesso em: 05.03.19.
651
LIBÂNEO, J. C. Práticas de ensino em um contexto de mudanças:
ensinando a pesnar pelos conteúdos, considerando os motivos dos alunos
e contextos socioculturais institucionais de aprendizagem. In: São Paulo:
SINPRO, 2010. Acesso em 27 de março de 2017. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=AcZEWkA8-E.
652
LONGAREZI, Andréa Maturano; FERREIRA, Ione Mendes Silva.
Intervenção didático-formativa: o problema da pesquisa com formação de
professores no campo da didática desenvolvimental. In: ROSA, Sandra
Valéria Limonta (Org.). Formação de professores e ensino nas perspectivas histórico-
cultural e desenvolvimental: pesquisa e trabalho pedagógico. Curitiba: Appris,
2020. (p. 54-66).
653
Vigotski, L. S. (Ed.). A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
654
SOBRE OS AUTORES
655
Ewellyne Suely de Lima Lopes: Graduada em Psicologia pela
Universidade Federal de Uberlândia (2002), mestre em Gerontologia pela
Universidade Estadual de Campinas (2016) e doutora em Educação pela
Universidade Federal de Uberlândia (2020).
E-mail: ewellyne.lopes@gmail.com
656
Docente e Educação Escolar - TRABEDUC/FE/UFG. Ione Mendes
Silva Ferreira.
E-mail: ionemsilva@hotmail.com; https://orcid.org/0000-0002-4156-2195.
657
educação infantil e Didática na Biologia. Orientadora do Projeto
PIBIC/CNPq: “O impacto afetivo-cognitivo dos meios mediacionais na
formação do pensamento teórico dos licenciandos da UEMG, durante o
ensino remoto emergencial”, vinculado ao Edital PIBIC/UEMG/CNPq
nº03/2020. Orientadora do Projeto PAPq/UEMG nº05/2020: "O
bilinguismo no contexto da educação inclusiva para surdos e o papel da
mediação didática docente: uma revisão sistemática".
E-mail: patricia.franco@uemg.br
658
Ruben de Oliveira Nascimento: Graduado em Psicologia pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestrado em Educação
pela Universidade Federal de Minas Gerais. Doutorado em Educação pela
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia. Pós-
doutorado em Educação, com área de concentração em Psicologia da
Educação, pela Universidade de Aveiro, Portugal. Docente do Instituto de
Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.
E-mail: rubenufu@gmail.com
659
www.phillosacademy.com
660