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Juscelino Francisco do Nascimento

(Organizador)

Língua Portuguesa:
Formação, Ensino e
Interdisciplinaridade
Língua Portuguesa:
Formação, Ensino e
Interdisciplinaridade
Reitor
Prof. Dr. José Arimatéia Dantas Lopes
Vice-Reitora
Profª. Drª. Nadir do Nascimento Nogueira
Superintendente de Comunicação
Profª Drª. Jacqueline Lima Dourado
Língua Portuguesa: Formação, Ensino e Interdisciplinaridade.
Juscelino Francisco do Nascimento
1ª Edição: 2020
Revisão
Ana Paula Lima de Carvalho
Editoração
Francisco Antônio Machado Araújo
Diagramação
Allyson Barbosa
Apoenna Caetano
Capa
Gabriel Estrela da Silva
Editor
Ricardo Alaggio Ribeiro
EDUFPI - Conselho Editorial
Ricardo Alaggio Ribeiro (presidente)
Acácio Salvador Versas e Silva
Antônio Fonseca de Oliveira Andrade
Solimar Oliveira Lima
Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz
Viriato Campelo
Serviço de Processamento Técnico da Universidade Federal do Piauí
Biblioteca José Albano de Macêdo

L755 Língua Portuguesa: formação, ensino e interdisciplinaridade /


Organizado por Juscelino Francisco do Nascimento. – Teresina,
PI: EDUFPI, 2020.
271 p.
Inclui Bibliografia
ISBN 978-85-509-0567-9


1. Língua Portuguesa. 2. Ensino – Pesquisa (Português). 3. Formação Docente.
I. Nascimento, Juscelino Francisco do. I. Título.

CDD 469

Elaborada por Rafael Gomes de Sousa CRB 3/1163


Língua Portuguesa: Formação, Ensino e Interdisciplinaridade.
Org. Juscelino Francisco do Nascimento

Autores
Adriana Regina de Jesus Santos
Ana Rita Carrilho
André Pedro da Silva
Bernadete Lema Mazzafera
Domingos Pedro Arsénio
Eduardo Dias da Silva
Jislaine da Luz
Lucila Pesce
Maríndia Becker
Marta Tibola
Maria Adaiane da Silva Sousa
Maria Izabel Oliveira da Silva
Paulo Osório
Rayla Estefane da Silva Carvalho
Renato de Oliveira Dering
Roberta Rocha Ribeiro
Vinícius da Silva Carvalho
Yasmin Maria Macedo Torres Galindo

1ª Edição: 2020
PREFÁCIO
O ensino de Língua Portuguesa no Brasil se reformula a cada
época, oportunizando a rediscussão praxiológica de temas a partir de
outros enfoques, abordagens e perspectivas teórico-metodológicas. Nesses
muitos anos de pesquisa, os trabalhos de Linguística e Linguística Aplicada
seguem contribuindo significativamente para expandir horizontes sobre o
que seja linguagem, língua e ensino, e, consequentemente, desvinculando
a histórica e clássica relação entre ensino de português e gramática, bem
como as dicotomias dela decorrentes, a saber, língua/gramática, teoria/
prática e universidade/escola (OLIVEIRA; ARRIEL, 2018).

Os tempos são outros e as demandas globais e tecnológicas da


contemporaneidade incumbem-se de aumentar e integrar o escopo das
complexidades existentes em torno dessa aprendizagem. São os alunos e o
professor que possuem língua e a usam para se significarem e significarem
o mundo à volta. Da condição de objeto (langue) a sujeito (parole), o fato é
a língua produzida em significados culturais, em práticas sociais que letram
sob diferentes perspectivas, em meios às identidades que se movimentam
em interação e negociação de sentidos.

Não basta apenas problematizar e descrever o ensino


contextualizado de gramática no texto, se não se sabe para quem ou para
que se estabelece determinada ação. Nessa lógica, outras conexões sociais
criam volume, especialmente por conta da urgência crítica que se libera ao
refletir sobre o que fazemos ao ensinarmos língua portuguesa brasileira
em dado contexto, e isso inclui o dizer/fazer (AUSTIN, 1962); ou sobre
o que ensinamos/aprendemos em termos de linguagem em sala de aula;
ou quando, para quem, com qual intenção e a serviço de quem o fazemos.
São questionamentos como esses que aguçam, conforme o pensamento
de Freire (2008), nosso papel político de docentes transformadores, e que
repercutem em níveis de conteúdo, mas, sobretudo, em mediação em sala
de aula (GERALDI, 1994). Para tanto, não há receitas, não há modelos.
Há apenas repertórios que trazem à existência singularidades alimentadas
de possibilidades outras para se promover um ensino de língua portuguesa
situado.
A coletânea de estudos com que este livro nos brinda assim se
substantiva! A problematização suscitada pelos autores, nos capítulos que
seguem, torna rebuscadas e abundantes as reflexões, na medida em que
desloca as referidas perguntas pragmáticas para a enunciação do gênero
aula de português (CERUTTI-RIZZATTI, 2012). Com certeza, outros
elementos linguísticos e pedagógicos ganham contornos e criam poros.

No texto “Da oralidade à escrita: desconstrução do preconceito


linguístico a partir da variação diamésica”, Maria Adaiane da Silva Sousa,
à luz da abordagem da sociolinguística variacionista, analisa a des/
construção do preconceito linguístico a partir da variação diamésica. Para
isso, desenvolve uma pesquisa qualitativa de método etnográfico com
alunos ingressantes do curso de Letras da UFPI.

O texto “Reflexões sobre aquisição e interferências no


desenvolvimento da linguagem oral da criança”, assinado por Bernadete
Lema Mazzafera e Adriana Regina de Jesus Santos, reflete sobre os
aspectos que interferem na aquisição e desenvolvimento da linguagem oral
da criança a partir da revisão de estudos sobre a temática.

André Pedro da Silva e Yasmin Maria Macedo Torres Galindo,


com o artigo “Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a lateral L no
contexto do ensino privado”, descrevem estatisticamente a manifestação
das variáveis presentes no fenômeno de semivocalização da lateral líquida
/l/, com a finalidade de analisar, apreender e sistematizar essa variante em
treinos ortográficos desenvolvidos por turmas de 2º a 5º ano do ensino
fundamental particular de um colégio situado em Jaboatão dos Guararapes
– Pernambuco, bem como de discutir quais os fatores influem sobre seu
aparecimento ou desaparecimento.

Roberta Rocha Ribeiro assina o texto “A transitividade em


livros didáticos de português”, no qual, por meio do que intitula de
‘releitura sintética’, busca explicitar a maneira como quatro livros didáticos
de ensino fundamental e médio, adotados em escolas de Goiânia – Goiás,
retratam a transitividade, sugerindo uma abordagem funcionalista para o
tratamento do fenômeno em aulas de Português.

Domingos Pedro Arsénio, Paulo Osório e Ana Rita Carrilho,


no texto “O uso dos pronomes pessoais na variedade angolana do
Português”, dedicam-se à análise das causas dos desvios e as dificuldades
no uso dos pronomes pessoais retos e oblíquos por alunos da 9ª Classe do
Complexo Escolar Samora Moisés Machel na Angola.

No artigo “Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor


frente às propostas de leitura da BNCC para o ensino fundamental”,
Eduardo Dias da Silva e Renato de Oliveira Dering, com base nas teorias
de letramento, analisam o documento regulador buscando discutir como
suas orientações e posições contribuem (ou não) para as habilidades
leitoras no ensino fundamental.

As autoras Jislaine da Luz, Maríndia Becker e Marta Tibola,


no artigo “O ensino da língua portuguesa em sequências didáticas nas
escolas estaduais do norte do Mato Grosso: percepções dos caminhos da
formação continuada pela voz dos professores do ensino fundamental”,
apresentam as percepções de professores de língua portuguesa em
formação continuada sobre o trabalho pedagógico a partir de sequências
didáticas envolvendo produções textuais discentes em face da diversidade
de gêneros discursivos proposta em documentos legais de escolas estaduais
do norte de Mato Grosso.

O artigo “Aplicação do ensino híbrido na disciplina de língua


portuguesa: estudo de caso no ensino médio”, de Maria Izabel Oliveira
da Silva e Lucila Pesce, registra uma experiência de ensino híbrido de
língua portuguesa com estudantes do 2º ano do ensino médio de uma
escola pública estadual da zona sul de São Paulo, na qual buscou-se, a
partir do uso da ferramenta pedagógica smartphone, investigar em que
medida a referida proposta favorece a aprendizagem conceitual de língua
portuguesa, bem como descobrir seu impacto no engajamento discente
em aulas presenciais e em ambientes virtuais.

O artigo “Linguística Aplicada e ensino de língua portuguesa:


uma visão metodológica para o aprendizado da leitura e da escrita”,
produzido por Rayla Estefane da Silva Carvalho, apresenta, em caráter de
revisão bibliográfica, o papel e a contribuição da Linguística Aplicada para
a prática pedagógica em sala de aula de língua portuguesa.

O artigo “O letramento científico de alunos surdos no ensino


de química”, de autoria de Vinícius da Silva Carvalho, discute a realidade
de alunos surdos no contexto de ensino diante da condição soberana
do ouvintismo e apresenta a urgência de se dialogar sobre o letramento
científico para o aluno com essa necessidade específica a partir da
criação e da adaptação de sinais científicos comprometidos com aspectos
morfológicos da LIBRAS em livros de química e/ou de ciências.

De modo geral, os aspectos e assuntos inerentes ao ensino/


aprendizagem de língua portuguesa que se mostram evidentes nesta obra
celebram, por meio de diferentes contextos, o desafio docente atual.
Não são inaugurais, mas emergentes, urgentes e até mesmo insurgentes!
Eles nos inquietam ao mesmo tempo em que nos instigam a pensar. Há
questões que vão desde a oralidade às relações de escrita pautadas no
uso social da língua, que passam pela descrição linguística ou pelo texto/
discurso e vão (in)diretamente à dimensão do ensino da língua. Nos
capítulos percorridos, demandas contemporâneas, como inclusão social e
diversidade linguística e cultural, aparecem, criando linhas de tensão por
entre as páginas escritas conspiradoras dos significados traduzidos por
novos modos de vida sociais, contextuais, qualitativos e culturalmente (a
serem) considerados dentro do processo.
Os capítulos do livro apresentam diferentes lugares de
fala – representados por seus autores e pelas vozes dos participantes
– cartografados por pesquisas desenvolvidas em distintas regiões ea
transitarem entre Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste do Brasil,
Portugal e Angola, sem, no entanto, terem suas problematizações limitadas
às fronteiras de enunciação. São problemas locais de língua, linguagem e ensino
de línguas, mas que também refletem aspectos globais. Re/inauguram,
portanto, a partir de seu loci, repertórios de existências e possibilidades
outras. Tudo em prol da pluralidade de nossa língua e das possibilidades
de efetivação desse ensino: ambos variam, mudam e estão a serviço da
interação produzida em contextos educacionais. Língua portuguesa e
ensino são sempre sociais, diria Bakhtin (1992). Por isso, valorizam quem
fala/escreve manifestando-se em vida.

Prof. Dr. Hélvio Frank de Oliveira

Universidade Estadual de Goiás


Referências
AUSTIN, John Langshaw (1962). How to do things with
words. New York: Oxford University Press.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São


Paulo: Hucitec, 1992.

CERUTTI-RIZZATTI, Maria Elizabeth. Ensino de língua


portuguesa e inquietações teórico-metodológicas: os gêneros discursivos
na aula de português e a aula (de português) como gênero discursivo. Alfa,
v. 56, n. 1, p. 249-269, 2012.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz


e Terra, 2008.

GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. Portugal:


Indústrias gráficas de Aveiro, 1994.

OLIVEIRA, H. F.; ARRIEL, T. D. G. Ensino/aprendizagem de


língua portuguesa na escola: explorando letramentos. Revista Brasileira
de Linguística Aplicada, v. 18, n. 3, p. 451-477, 2018.
sumário
Capítulo 01. 14
Da oralidade à escrita: desconstrução do preconceito
linguístico a partir da variação diamésica
Maria Adaiane da Silva Sousa

Capítulo 02. 42
Reflexões sobre aquisição e interferências no
desenvolvimento da linguagem oral da criança
Bernadete Lema Mazzafera e Adriana Regina de Jesus Santos

Capítulo 03. 56
Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a lateral L no
contexto do ensino privado
André Pedro da Silva e Yasmin Maria Macedo Torres Galindo

Capítulo 04. 84
A transitividade em livros didáticos de português
Roberta Rocha Ribeiro

Capítulo 05. 116


O uso dos pronomes pessoais na variedade angolana do
Português
Domingos Pedro Arsénio, Paulo Osório e Ana Rita Carrilho
Capítulo 06. 154
Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às
propostas de leitura da BNCC para o ensino fundamental
Eduardo Dias da Silva e Renato de Oliveira Dering

Capítulo 07. 172


O ensino da língua portuguesa em sequências didáticas nas
escolas estaduais do norte do Mato Grosso: percepções dos
caminhos da formação continuada pela voz dos professores
do ensino fundamental
Jislaine da Luz, Maríndia Becker e Marta Tibola

Capítulo 08. 190


Aplicação do ensino híbrido na disciplina de língua
portuguesa: estudo de caso no ensino médio
Maria Izabel Oliveira da Silva e Lucila Pesce

Capítulo 09. 214


Linguística Aplicada e ensino de língua portuguesa: uma
visão metodológica para o aprendizado da leitura e da
escrita
Rayla Estefane da Silva Carvalho

Capítulo 10. 236


O letramento científico de alunos surdos no ensino de
química
Vinícius da Silva Carvalho

sobre o organizador e os autores 264


01.
DA ORALIDADE À ESCRITA:
DESCONSTRUÇÃO DO PRECONCEITO
LINGUÍSTICO A PARTIR DA VARIAÇÃO
DIAMÉSICA

Maria Adaiane da Silva Sousa (UFPI)

adaianesousa@hotmail.com

1. INTRODUÇÃO

O Brasil é constituído por uma vasta extensão territorial e


apresenta uma diversidade cultural, geográfica e étnica vigente desde
o período da colonização. Assim, é inegável o grande processo de
miscigenação, resultado da mistura de diferentes etnias, culturas e línguas.
Em vista disso, é trivial postular que uma língua pura, imutável e homogênea
jamais existiu ou existirá nesta nação. Com efeito, os falantes de variedades
menos privilegiadas são concebidos como sujeitos que não dominam sua
própria língua, o que ocasiona o chamado preconceito linguístico.

Nessa perspectiva, este artigo possui como meta principal


investigar a interferência da variação diamésica na observância e
distinção entre comunicação oral e escrita, analisando a ocorrência desta
variação em alunos ingressantes no curso de Letras da UFPI. Busca-se

Da oralidade à escrita: desconstrução do


preconceito linguístico a partir da variação diamésica .15
apresentar o perfil sociolinguístico dos alunos, averiguar se estes já foram
estigmatizados em suas práticas linguísticas e se, com isso, sofreram
preconceito linguístico, seja durante a oralidade ou a escrita. Importa,
ainda, apresentar como os alunos concebem fala e escrita, de modo a
evidenciar a variação diamésica.Nesse âmbito, foi realizada uma pesquisa
qualitativa e interpretativa, com um viés etnográfico, ancorada nos estudos
da sociolinguística variacionista, cuja aplicação se deu por implementação
de um protocolo verbal oral e outro escrito, mostrando neste caso, pelo
viés da fala e da escrita, a funcionalidade de cada modalidade no cotidiano.

Inicialmente, apresentamos uma discussão acerca da língua e


variação, enquanto resultado do contexto sociointeracional dos falantes.
Salientamos a construção do preconceito linguístico como resultante da
pouca valia e importância conferida à diversidade social e linguística do
Brasil. Discutimos, ainda, a vertente da oralidade e escrita, fundamentais
na apreensão da variação diamésica, concernente aos meios distintos
utilizados pelos falantes na sedimentação das práticas linguísticas. Por
último, destacamos a análise dos dados da pesquisa e, assim, observamos
a influência da fala na escrita dos alunos.

Destarte, enfatiza-se que esta pesquisa sedimenta uma discussão


pertinente não somente aos estudiosos da sociolinguística, mas também a
todos que consideram a língua(gem) como protagonista da humanização
dos sujeitos. Este estudo elenca uma reflexão acerca da língua na
perspectiva social de interação, como também na abordagem a respeito da
desconstrução do preconceito linguístico, explícito quando as variedades
linguísticas não são analisadas como resultado da correlação entre língua
e sociedade. Nesse viés, a variação diamésica mostra como e oralidade e a
escrita são meios distintos que os falantes possuem para efetivarem suas
práticas linguísticas e sociais.

16. Maria Adaiane da Silva Sousa


2. LÍNGUA E VARIAÇÃO: UMA PERSPECTIVA SOCIOINTERACIONISTA
DOSSUJEITOS

Em meados do século XX, a Linguística concebe a existência


da relação língua/sociedade, porém desconsidera, inicialmente, a
influência de fatores histórico, social e cultural. Em vista disso, principia o
estruturalismo, o qual define língua como “um produto social da faculdade
da linguagem”, isto é, uma capacidade natural e formal do ser humano em
utilizar a linguagem, conforme constata o pensamento de Alkmim (2006).
Desse modo, Ferdinand Saussure, em seu Curso de Linguística Geral,
estuda a língua como um fenômeno abstrato e formal, sem interferência
direta de aspectos extralinguísticos. No entanto, autores contemporâneos
a ele, como Meillet e outros, analisaram a língua como um fato social
(CALVET, 2002).

Contemporaneamente, a Linguística tem se voltado para


explicar fatos relacionados à língua e à sociedade.Como uma vertente,
a Sociolinguística, que emergiu em 1964, busca analisar a relação entre
a língua e a sociedade. Portanto, volta-se a examinar a língua em seu
contexto social, ou seja, em situações concretas de uso.

Enquanto ciência da língua(gem) e sociedade, a Sociolinguística


possui três vertentes de pesquisa, sendo elas a interacional, a variacionista e a
educacional. A sociolinguística interacional, segundo Camacho (2006), está
direcionada à análise da conversação, de modo que toda interação humana
consiste na dependência de normas e princípios internos e sociais. A
variacionista, fonte de análise nesta pesquisa, apresenta um estudo voltado
para compreender a correlação entre o âmbito linguístico e social. E,
ainda, a sociolinguística educacional que veicula a resolução de problemas
no âmbito da educação. Neste estudo, a sociolinguística variacionista
terá mais evidência, pois, foi averiguado, na pesquisa qualitativa, como
os falantes constroem seus atos comunicativos, observando a escolha

Da oralidade à escrita: desconstrução do


preconceito linguístico a partir da variação diamésica .17
linguística pertinente a oralidade e a escrita, desconstruindo, assim, o
preconceito linguístico.

O Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL), com


base em pesquisa realizada pelo IBGE (2010), explicita que 274 línguas
são faladas por indígenas de 305 etnias diferentes. Assim, postular a
homogeneidade linguística em um país imanentemente diversificado,
constituído por diferentes culturas e etnias, é um equívoco. Dessa maneira,
compreendemos a dinamicidade da língua, uma vez que pode sofrer
variação de acordo com o contexto de interação social que os falantes
estão inseridos.Isso ocorre, pois, segundo Bagno (1999), a língua age, se
manifesta de acordo com as transformações vinculadas na sociedade,
varia conforme a sociedade varia. Nessa perspectiva, não existem
dizeres melhores ou piores, forma errada ou certa de falar. O que há são
construções linguísticas pertinentes a cada situação comunicativa.

Sendo assim, a língua é reflexo dos sujeitos, das convivências


interacionais, retrato da cultura, dos aspectos geográficos e históricos.
Sobre a interferência da cultura na língua, compreende-se que suas práticas
interferem nas nossas vidas e, consequentemente, em nosso modo de
expressão, a linguagem. A esse respeito, Sapir (1980, p. 165) afirma:

Toda língua tem uma sede. O povo que a fala, pertence


a uma raça (ou a certo número de raças), isto é, a um
grupo de homens que se destaca de outros grupos
por caracteres físicos. Por outro lado, a língua não
existe isolada de sua cultura, isto é, de um conjunto
socialmente herdado de práticas e crenças que
determinam a trama das nossas vidas.

É sabido que qualquer língua humana se caracteriza por seu


aspecto dinâmico, sendo fortemente heterogênea e, por isso, apresenta
variação em diferentes níveis estruturais. Conforme compreende Camacho
(2006), temos: variação de nível lexical, que concerne na apresentação

18. Maria Adaiane da Silva Sousa


de mais de uma palavra ou vocábulo designando o mesmo significado;
variação de nível fonológico, a qual consiste na variação sonora das
palavras, por exemplo: falá e comê; de nível morfológico, ocorre quando
averigua alterações na estrutura da palavra, como em as meninas/as
menina; variação de nível sintático, refere-se à variação estrutural das
frases.

Segundo Calvet (2002), como a língua não é homogênea, suas


práticas também não são, haja vista que o falante está inserido em um
espaço social, geográfico e histórico distintos. Assim, averigua que até
mesmo o modo de falar é espontâneo e varia com a situação de uso, já
que nenhum falante é puramente fiel à normatização da língua. Sob o
mesmo ponto de vista, conceitua e distingue variante como “cada uma
das formas de realizar a mesma coisa” (CALVET, 2002, p. 90), isto é,
maneiras alternadas de manifestar as coisas.Já conceito de variável se refere
aos diferentes meios utilizados para se proferir a mesma coisa, como um
fonema ou signo.

Similarmente, Faraco (2008) afirma que a língua, por ser


heterogênea, é formada por variedades e normas, e ambas constituem
uma propriedade intrínseca e inseparável. Nesse viés, a norma culta se
configura como uma das variedades da língua, cujo prestígio foi difundido
por semear papéis históricos e normativos importantes na sociedade. Sem
estes, os falantes não saberiam distinguir a gramática que rege sua língua,
bem como seus usos em determinados veículos de informação.

Posto isso, importa apresentar alguns tipos de variação


pertinentes aos estudos sociolinguísticos elencados por Bagno (2007),
tais como: a variação diafásica, que está relacionada com a capacidade
de monitoração da língua em acordo com a necessidade comunicacional;
variação diacrônica, que concerne às transformações da língua em relação
ao tempo; variação diatópica, a qual consiste em modos de falar diferentes
por influência do espaço geográfico; variação diastrática, em que a língua

Da oralidade à escrita: desconstrução do


preconceito linguístico a partir da variação diamésica .19
varia por interferência da classe social; variação diamésica, vinculada
ao gênero textual, ao meio de comunicação utilizado de modo distinto
na oralidade e na escrita, como um documento escrito, um e-mail, uma
mensagem nas redes sociais e outros.

Em suma, discutimos, até então, a língua na perspectiva


sociointeracionista. Para tanto, consideramos todos os aspectos e
influências externas, os quais constituem a heterogeneidade linguística e
as variações de uma língua. Ademais, devemos considerar a variação como
um fenômeno intrínseco à língua.

3. A ESTIGMATIZAÇÃO DA LÍNGUA: UM MOLDE PARA O PRECONCEITO


Partindo do pressuposto da assimilação contextual inserida na
variação da língua, pode-se deduzir que o Brasil é um país plurilíngue, em
que a diversidade linguística e cultural exerce tamanho papel na sociedade.
Assim, afirmar que uma variedade é inferior a outra constitui uma maneira
de estigmatizar uma variedade e, consequentemente, seu falante.

O sentimento de repulsa frente ao modo como os falantes


utilizam sua língua ainda é muito vigente no cotidiano. Muitas pessoas
acabam por menosprezar a maneira usual e natural de o falante se
expressar. Consoante Bagno (1999), o preconceito linguístico está baseado
na crença na existência de uma única língua portuguesa, que é ensinada nas
gramáticas escolares. De tal forma, entende-se que qualquer manifestação
linguística que foge ao tripé escola- gramática- dicionário é analisada pela
visão do preconceito, como sendo errada, rudimentar e usada por quem
não sabe fazer uso do português.

Sob o prisma das variações linguísticas, depreende-se que


determinadas formas são fontes ao repúdio e preconceito, pois, na maioria

20. Maria Adaiane da Silva Sousa


das vezes, estabelecem-se uma relação mútua entre as variedades falada
e as pessoas de posição estigmatizada pela sociedade. Todavia, observa-
se que mesmo os falantes detentores de conhecimento sobre a norma
culta não utilizam a língua intrinsecamente como é posta na gramática
normativa.

A língua, por ser uma construção social, ocorre como o ciclo da


vida humana: com o tempo, uns se vão e outros emergem. Isso ocorre por
se tratar de uma manifestação social e histórica, sendo resultado da sua
heterogeneidade linguística. Para Faraco (2008, p. 160):

Será preciso também compreender sua realidade


sociocultural e histórica, a língua como um conjunto
múltiplo e entrecruzado de variedades geográficas,
sociais, estilísticas, de registro e de gêneros textuais
e discursivos. Isso implica entender a língua como
diretamente relacionada com a vida e a história dos
diferentes grupos sociais que a utilizam.

Desse modo, diante das nuances linguísticas, é preciso haver


um enfrentamento crítico-reflexivo para difusão de um diálogo maior
em torno de algumas práticas, que antes enaltecem a disseminação do
preconceito, ao invés de explanar as diferentes formas que o falante pode
utilizar a fim de atribuir valor discursivo e social a sua interação.

As diferenças linguísticas são peculiares em qualquer ambiente


social, especialmente no Brasil, que conta com uma diversidade
inquestionável, seja do ponto de vista geográfico, cultural, climático, étnico
e outros. Conforme Mollica (2014, p.27-28), “em contexto desse tipo,
afigura-se idealmente uma nação multiétnica, com grupos socioculturais
conscientes da cultura e identidade linguísticas locais, imbuídos de sua
inserção nacional”.

Da oralidade à escrita: desconstrução do


preconceito linguístico a partir da variação diamésica .21
Tendo isso, observamos a necessidade de analisar o contexto
cultural nacional, para não adotarmos quaisquer juízos de valor sobre
grupos linguísticos, pois estes se constituem como falantes competentes
da língua, assim como os demais. A sociolinguística estabelece que não há
língua ou variedade ruim ou até de difícil entendimento, mas sim aptas aos
papéis que deseja atingir no contexto de sua produção. Como assegura
Camacho (2006, p. 68), para quem “todas as línguas e variedades de uma
língua são igualmente complexas e eficientes para o exercício de todas as
funções a que destina; e que nenhuma língua ou variedade dialetal impõe
limitações cognitivas na percepção e na produção de enunciados”.

Da mesma forma, Mollica (2017) assegura que as práticas de


inferiorizar a diversidade linguística estão difundidas em diretrizes una do
correto/errado vinculado ao padrão culto. Em contrapartida, às vezes até
de modo indesejado, omitem o fato de as variantes se distinguirem da
oralidade para escrita, visto que o falante utiliza de mecanismo linguístico
ou veículos de informação com objetivos proposto para cada ato
linguístico. Por meio dessa concepção, sob o viés da variação diamésica, os
sujeitos fazem uso de recursos diferentes, dependendo do meio utilizado
para propagar a informação.

Se o falante age em acordo com a situação comunicativa,


contextual e histórica da língua, então considerar sua variedade como
errada não passa de um modo primitivo de conceber a língua. Como
postula Alkmim (2006, p. 42)

As diferenças linguísticas, observáveis nas comunidades


em geral, são vistas como um dado inerente ao
fenômeno linguístico. A não aceitação da diferença é
responsável por numerosos e nefastos preconceitos
sociais e, neste aspecto, o preconceito linguístico tem
um efeito particularmente negativo.

22. Maria Adaiane da Silva Sousa


O “erro” se funde conforme o estrato social dos falantes, a classe
social, o grau de formação, o espaço físico, e tudo isso contribui para a
elevação do preconceito. Os falantes são a representação do que falam, não
sendo apenas influenciados por aspectos internos, mas, principalmente,
por aspectos externos ao indivíduo. Então, não há motivos para condenar
o modo de falar de alguns se considerarmos o ambiente situacional do
falante e, ainda, a assertiva de que todos nós somos aptos a usar a língua.

Até este, discutimos a abrangência da diversidade linguística


existente nos diferentes atos de efetivação da língua. É oportuno, ainda,
mostrar que as variações presentes não podem ser concebidas como
maneiras utilizadas por falantes que pouco sabem manifestar sua língua,
mas são maneiras pertinentes e distintas a cada comunidade linguística, haja
vista o fato de que considerar apenas uma única vertente de exposição da
língua como correta é, antes de tudo, um modo de implantar e disseminar
o preconceito linguístico.

4. PERSPECTIVA DE ORALIDADE E ESCRITA

Na humanidade, a invenção da escrita marca a divisão entre


o período da pré-história para a história, uma vez que antes o registro
das expressões humanas se constituía por pinturas rupestres e outras
manifestações que expressassem o pensamento humano daquela época.
Isso se deu até aproximadamente 3500 a.C., período em que a pré-história
finda.

Nesse contexto, Coulmas (2014) assevera que as primeiras


manifestações da escrita surgiram na cidade-estado grega, datando o
século VIII a.C. Em virtude da necessidade de transações comerciais,
nesse período começou a surgir o registro escrito, como em vasos de
cerâmica (óstracos). Com efeito, houve cada vez mais a necessidade de o

Da oralidade à escrita: desconstrução do


preconceito linguístico a partir da variação diamésica .23
ser humano manter a escrita como objeto de identidade em seu cotidiano,
até mesmo pelo fato de ser uma fonte de memória histórica.

A partir da observância comunicativa em sociedade,Marcushi


(2003) expõe a fala como uma produção textual-discursiva que atinge
a finalidade da comunicação oral, através do aparato sonoro humano.
Para isso, não é necessário utilizar métodos de uma tecnologia como
ocorre na escrita, mas modalidades de expressão própria do ser humano
como o aspecto sonoro, gestos, movimentos corporais e a mímica. Em
contrapartida, a escrita é um modo de produção textual-discursiva que
utiliza recursos gráficos, com suas especificidades materiais, situada no
plano do letramento humano, e dispõe da sua tecnologia, como a escrita
alfabética e ideográfica1.

Marcushi (2003) ainda explica que a oralidade, mesmo


considerando sua primazia em relação à escrita, não é superior a esta ou
o contrário. Antes, cada uma tem sua função na língua. A escrita, por sua
vez, não pode ser considerada como representação da fala, porque é falha
quanto à reprodução de alguns elementos da oralidade, como os gestos,
os movimentos corporais, a prosódia e outros. A escrita é constituída de
mecanismo de significação própria, como a questão da representação
gráfica da letra, tipos de letras, cores e formatos. Em suma, a oralidade
se destaca como uma perspectiva interacional que está em acordo com
o gênero textual, assim como o contexto situacional de uso, enquanto
a escrita compreende uma maneira específica de produção que ocorre
através da elaboração gráfica das palavras.

Dessa maneira, entre o escrito e o falado existe uma alteração


de planejamento, de modo que na produção do texto escrito, podemos
projetar sua estruturação e organizá-lo de forma a prezar pela linearidade

1  Escritas ideográficas ou ideogramáticas são os sistemas em que os grafemas fazem referência a


morfemas e não a fonemas. Os grafemas representam, então, ideias, noções e não mais porções fônicas da
cadeia falada (DUBOIS, 1983, p. 329)

24. Maria Adaiane da Silva Sousa


do tema discutido. Os textos falados, por sua vez, geralmente tendem a
ser organizados à medida que são elaborados no contexto de produção e,
assim, podem sofrer alteração no decorrer da sua explanação, conforme
explicitam Ilari e Basso (2011).

4.1. UMA COMPREENSÃO DA VARIAÇÃO DIAMÉSICA


Na conjuntura atual, é inviável estudar a oralidade e a escrita
desvinculadas do seu contexto de utilização. Nesse viés, compreende-
se que estas são práticas comunicativas e artefatos sociais imersos na
realidade usual da língua. Desconsiderá-las seria omitir suas funções na
vida dos falantes, de modo que é necessário, antes de tudo, conhecer os
papeis desempenhadas por ambas em seus contextos de uso, para que não
venhamos a discriminar seus usuários, segundo elucida Marcushi (2003).

Neste trabalho, enfatizamos a variação que enfoca aos vários


mecanismos de expressão utilizados na língua, denotado na variação
diamésica, a qual comporta “as profundas diferenças que se observam
entre língua falada e a língua escrita” (ILARI, BASSO 2011, p. 181). Nesse
sentido, compreendemos a dimensão situacional pertinente ao uso da
oralidade e da escrita nos diferentes âmbitos linguísticos.

Salientamos, ainda, que as diferentes maneiras discursivas escritas


e não escritas abrangem os recursos linguísticos pertinentes as suas
finalidades comunicacionais, como esclarece Coulmas (2014, p. 68):

Qualquer contexto sociolinguístico abarca formas


de discurso escrita e não escritas que, tomadas em
conjunto, numa divisão do trabalho com funções
específicas, constituem a totalidade dos recursos
linguísticos da comunidade e se combinam para
satisfazer suas necessidades comunicacionais.

Da oralidade à escrita: desconstrução do


preconceito linguístico a partir da variação diamésica .25
Sobre a variação diamésica, é pertinente elucidar a questão
do gênero discursivo que a circunda, haja vista o fato de este possuir
perspectivas diferentes na maneira como é constituído em cada situação
discursiva, uma vez que o modo como é escrito, a formalidade de um
trabalho científico, distingue-se de uma escrita utilizada em determinada
conversação com um grupo de amigos, em um ambiente informal de
interação. A esse respeito, Ilari e Basso (2011, p. 185) advertem que,
“conforme o gênero a que pertencem, os textos, sejam eles falados ou
escritos, apresentam um vocabulário e uma gramática próprios”.

A adequação que o falante faz da língua em conformidade


com a situação comunicativa é nomeada como variação estilística. De
tal forma, a oralidade e a escrita possuem enfoques distintos, já que o
grau de monitoração da oralidade pode ser menor em relação à escrita,
dependendo do contexto situacional em que forem utilizadas.

Por conseguinte, Bagno (2007) explicita que as atitudes de maior


ou menor grau de formalidade estão interligadas com o que ele destaca
por monitoramento estilístico, caracterizado em uma escala que oscila
entre o grau mínimo e o grau máximo de monitoramento, em acordo
com o comportamento verbal do indivíduo. Assim, o monitoramento
da fala se refere às instruções adquiridas nas normas sociais inseridas no
campo cultural, enquanto o monitoramento da escrita concerne ao grau
de letramento do sujeito, tanto quanto do seu conhecimento na leitura e
escrita.

Em suma, na dimensão da variação diámesica, é pertinente


distinguir os meios de informação da oralidade e da escrita, visto que
ambas possuem funções diferentes de organização e realização. É preciso,
pois, considerar o gênero veiculado para atingir as expectativas funcionais
desejadas pelo falante.

26. Maria Adaiane da Silva Sousa


5. METODOLOGIA

Este trabalho utiliza uma pesquisa qualitativa de natureza


interpretativa pelo viés etnográfico. Conforme cremo, essa abordagem
possibilita meios que favorecem a fundamentação adequada para
demonstração da língua como resultado também das interferências das
práticas sociais. De tal modo, temos por objetivo averiguar a desconstrução
do preconceito linguístico, a partir do enfoque da variação diamésica, isto
é, dos meios distintos empregado na efetivação da oralidade e da escrita
durante os usos linguísticos.

Para Bortoni-Ricardo (2008), o conceito de pesquisa qualitativa


consiste em compreender e interpretar aspectos sociais imersos em
determinado contexto. Esse modeloestá sedimentado no interpretativismo
e, segundo a autora, não existe possibilidades de analisar o mundo
sem considerar o ambiente e suas práticas sociais. Assim, concebe
que o paradigma interpretativista veicula uma investigação do mundo
considerando, para isso, as práticas sociais e seus respectivos campos de
significação.

A construção do corpus desta pesquisa foi feita através da


aplicação do grupo focal2, por meio do recrutamento aleatório de
estudantes ingressantes no primeiro período do Curso de Letras-Português
da Universidade Federal do Piauí, Campus de Picos. Paraa discussão, fez-
se pertinente realizar um recorte da análise e, por isso, selecionamos uma
amostra, destacando três participantes. A realização da pesquisa ocorreu
no dia onze de abril, às quinze horas, em uma sala da UFPI, tendo o
acompanhamento do professor orientador.

2 A técnica dos grupos focais é assentada nas interações grupais, que empreendem discussões com um
determinado foco, a partir de um roteiro de questões previamente elaboradas (SANTOS, CANDELORO
,2006, p. 80).

Da oralidade à escrita: desconstrução do


preconceito linguístico a partir da variação diamésica .27
Primeiramente foi realizado uma entrevista com os participantes,
em que responderam a três perguntas, sem que exigíssemos quaisquer
aspectos de adequação ou formalidade no uso da língua. No segundo
momento, pedimos que redigissem um texto relatando como está sendo a
experiência com o curso de letras, na UFPI. Com isso, abordamos tanto a
questão do uso da oralidade como da escrita, para assim compreendermos
como acontece a execução da variação diamésica, assim como o
entendimento do preconceito linguístico na percepção dos participantes
da pesquisa.

No desenvolvimento teórico, apoiamo-nos em estudos


sociolinguísticos, tais como: Bortoni-Ricardo (2008, 2014); Mollica (2014,
2017); Bagno (1999, 2003, 2007);Alkmim (2006); Calvet (2002); Marcuschi
(2003); Faraco (2005, 2008);Ilari e Basso (2011);Coulmas (2014) e outros,
que fomentaram uma discussão pertinente para esta pesquisa.

6. UMA ABORDAGEM COMUNICATIVA DA ORALIDADE PARA ESCRITA

Passemos agora à análise dos dados. Fizemos uso da explicitação


dos diálogos, adquiridos com a pesquisa de campo. Captamos as
informações, por meio de uma entrevista com os participantes, seguido
do protocolo verbal escrito, perspectivas que fundamentam a metodologia
utilizada durante a efetivação do grupo focal.

DA FALA PARA ESCRITA – PARTICIPANTE 1, 18 ANOS

Fale por que você escolheu o Curso de Letras/Português, na UFPI.

O participante afirmou que licenciatura sempre foi seu sonho.


Pensava, inicialmente, em história ou geografia. Porém, no segundo ano
do ensino médio, estudando o romantismo, decidiu que seria Letras o

28. Maria Adaiane da Silva Sousa


curso da sua vida. Com isso, fez o ENEM e obteve êxito na aprovação
para cursar Letras/Português.

Como você distingue oralidade da escrita?

O participante afirmou que distingue a oralidade da escrita, visto


que na língua falada, ele considera o princípio da comunicação, isto é, se
houver comunicação e atingir os objetivos almejados é o que importa.
Quanto à escrita, postula que dependendo da situação comunicativa ou
da intenção do falante, esta precisa estar em acordo a norma-padrão da
língua. Desse modo, segundo o participante, na língua falada “dispensamos
a norma-padrão”. Em contrapartida, na escrita, é necessário ter uma
atenção maior no que concerne à norma-padrão da língua, dependendo
do gênero proposto, bem como o uso da concordância no texto e outros
aspectos. Ressalta, ainda, a preocupação em omitir o uso de gírias na
escrita. Todavia, quando está escrevendo algo mais simples e informal, é
adepto da oralidade dentro da escrita, como ressalta o uso de um “oxente”
“um marmino” ou “algo do tipo”.

Assim, a posição do participante dialoga com Marcuschi


(2003), cujo pensamento postula a fala como sendo uma manifestação
da oralidade, adquirida no convívio diário, em contextos informais e nas
relações sociais, estabelecidas desde o nascimento do falante. É, ainda,
uma maneira que a língua natural se manifesta, enquanto meio cultural e de
socialização entre os sujeitos. Em contrapartida, a escrita é compreendida
como aspecto formal do letramento e adquirido em instituições formais,
como a escola.

Em uma ocasião de informalidade, durante uma conversa com


familiares ou amigos, por exemplo, alguém já lhe corrigiu ou falou
que você não sabe fazer uso da língua? Como ocorreu isso?

Da oralidade à escrita: desconstrução do


preconceito linguístico a partir da variação diamésica .29
O participante informou que tanto já foi corrigido como já
corrigiu outra pessoa. A primeira correção se deu porque ele escreveu em
uma conversa no WattsApp “mel” com “u” e seu interlocutor achou que
ele não sabia fazer uso da língua. O segundo se deu quando um amigo fez
o uso do verbo jogarão no futuro do presente para se referir a uma ação que
havia sido realizada.

O texto escrito pelo participante segue abaixo, fiel à forma que


ele escreveu:

Ótimo curso. Colegas ótimos e que estão sendo uma segunda família. Espero
que ao decorrer do curso eu me torne uma pessoa melhor e um ótimo profissional. Até
agora amo todos os professores e todas as matérias. O TCC já está tomando uma parte
relativamente grande da minha atenção.

Nos quase dois primeiros meses de curso, adquirí insônia fruto das
preocupações quase sempre excessivas. No entanto, a preocupação é válida e demostro
que me interesso pelo diploma.

No fim da licenciatura e almejo bons rendimentos acadêmicos e te que tenha


superado as dificuldades de se estar longe de casa.

No protocolo verbal escrito, o participante relatou como está


sendo a experiência inicial com o curso. Apresentou aspectos positivos
e demonstrou grande empenho pelo curso. No texto em si, pode-se
constatar a influência da oralidade durante a escrita do discente, pois a
palavra “adquiri” está acentuada, denotando que, às vezes, o modo como
utilizamos a língua em situações de oralidade pode interferir no momento
da escrita. Dessa forma, é necessário compreender que o âmbito da escrita
carece de uma apropriação maior da norma-padrão conforme veicula o
gênero utilizado na língua. Logo, aplica-se o conceito de monitoração,
em que o falante tem uma atenção quanto o grau de informalidade e de
formalidade envolvida por determinada situação a qual faz uso da língua.

30. Maria Adaiane da Silva Sousa


Outra peculiaridade apresentada durante a escrita do participante
concerne à grafia da palavra “demostro”, grafada sem o “n”. Esse fato,
além da interferência da oralidade na escrita, sinaliza, também, para um
conceito dos estudos fonéticos, denominados de mudança por analogia3,
que consiste na interferência de paradigmas estruturais recorrentes no uso
da língua, ao invés de outros menos utilizados.

Baseado nisso, constata-se que os falantes da língua têm


pretensão de usar formas menos utilizadas em lugar de outras comumente
efetivadas nos contextos linguísticos. Esse aspecto colaborou na escrita
do verbo “demostro”, sem o “n”. Esse fato ocorreu ocasionalmente, por
analogia ao termo “mostro”, uma vez que foi aplicado com sentido de
“mostrar”, “apresentar” interesse por algo: “demostro que me interesso
pelo diploma”.

No encerramento do texto, o colaborador faz uso da conjunção


aditiva “e”. Eventualmente, ele pode ter “trocado” pelo pronome “eu”.
Tal uso não favoreceu a clareza das ideias, mas houve compreensão sobre
a informação elucidada, como explicita o trecho: “no fim da licenciatura e
almejo bons rendimentos acadêmicos e que tenha superado as dificuldades
de se estar longe de casa”.

No protocolo oral, o participante demonstrou aptidão quanto à


diferença da fala e da escrita. Contudo, a partir do protocolo verbal escrito,
constata-se certa dificuldade na diferenciação da fala para escrita, visto
que são perceptíveis marcas da fala no desenvolvimento do seu texto. Isso
remete ao conceito da variação diamésica, que, segundo Ilario e Basso
(2011), veicula a percepção da diferença entre fala e escrita, sendo esta
necessária por tratar da apropriação e distinção em si tratando do gênero

3  Mudança por analogia significava, para os neogramáticos, alteração na forma fonética de certos
elementos duma língua por forças de seus paradigmas gramaticais regulares. Assim, quando uma mudança
sonora afetasse um elemento qualquer e o resultado fosse a quebra de padrões gramaticais, haveria a
possibilidade de “retificar” isso por meio da analogia, isto é, mudando a forma resultante de modo a torná-
la coincidente com os padrões gramaticais regulares da língua. FARACO (2005, p. 143-143).

Da oralidade à escrita: desconstrução do


preconceito linguístico a partir da variação diamésica .31
escrito citado acima. O colaborador também afirmou que já foi alvo da
estigmatização linguística, como também já criticou outro falante por ter
manifestado uma grafia inadequada.

DA FALA PARA ESCRITA – PARTICIPANTE 4, 18 ANOS

Fale por que você escolheu o Curso de Letras/Português, na UFPI.

A participante afirmou que ser professor sempre foi seu sonho,


porém não sabia de qual área. Como português era a disciplina com a qual
ela mais se identificava, optou por Letras, e assim está cursando.

Como você distingue oralidade da escrita?

Constatou-se que a participante, antes, não distinguia totalmente


a fala da escrita, pois ficou destacando a influência de uma na outra. Ela
afirmou que, na hora de escrever, já aconteceu de redigir a palavra disse
com (i) no final: “dissi”. Segundo a colaboradora, a influência ocorre em
virtude de, normalmente, falarmos mais e escrevermos menos, “a gente
mais fala do que escreve né, lógico”, o que termina influenciando na
escrita.

Sobre esse aspecto, Faraco (2008, p. 169) afirma que “adquirir


familiaridade com as variedades chamadas cultas é, antes de qualquer
coisa, adquirir familiaridade com as práticas socioculturais da escrita”.

No decorrer da interação, ela reconheceu que a escrita requer


uma adequação maior à norma culta da língua. Logo, concebe-se a norma
culta como “variedade efetivamente praticada pelos falantes letrados
nas situações mais monitoradas de fala ou escrita” (FARACO, 2008, p.
188). Assim, o falante deve adequar essas práticas conforme os meios de
interação empregados e considerando, também, os aspectos funcionais da
língua.

32. Maria Adaiane da Silva Sousa


Dessa maneira, é necessário reconhecer a distinção entre a fala e a
escrita, tendo em vista a necessidade de adequar a língua em conformidade
com a finalidade social da interação. Isto remete a Marcuschi (2003, p. 46),
para quem “fala e escrita são diferentes, mas as diferenças não são polares
e sim graduais e contínuas. São duas alternativas de atualização da língua
nas atitudes sócio-interativas diárias”. Isto é, são duas perspectivas que o
falante deve adequá-las ao contexto de uso.

De tal modo, postula-se a indistinção da variação diamésica


pela participante, pois ela afirma que, durante a escrita, eventualmente já
aconteceu de escrever como fala.

Em uma ocasião de informalidade, durante uma conversa com


familiares ou amigos, por exemplo, alguém já lhe corrigiu ou falou
que você não sabe fazer uso da língua? Como ocorreu isso?

A participante afirmou que sim. A situação foi em sala de


aula, inclusive na universidade, quando uma professora a corrigiu pela
inadequação da concordância em uma palavra falada. Desse modo,
adverte-se que a docente considerou a existência única da maneira de falar
a língua, sendo esta maneira a postulada nos parâmetros gramaticais. A
esse respeito, Bagno (2003, p. 139) observa que “[...] isso se nota, por
exemplo, na variação de frequência de uso das regras padronizadas de
concordância verbal e nominal – frequência que é tanto mais baixa quanto
mais baixo for o grau de monitoramento da fala”. Logo, vemos que o
seguimento da concordância verbal e nominal está em acordo com o grau
de monitoramento em que a fala foi empregada. No contexto vigente da
pesquisa, observa-se que o falante utilizou na sua rotina de sala de aula
universitária e considerou a informalidade da comunicação.

Sobre a variação da concordância de número elucidada pela


participante, compreende-se que ela ocorre em virtude da ausência ou não
da marcação morfológica em todos os segmentos linguísticos do sintagma.

Da oralidade à escrita: desconstrução do


preconceito linguístico a partir da variação diamésica .33
Assim, devemos considerar que a variação linguística é um fenômeno
imanente às línguas e acontece de maneira organizada e coerente, com
maior ou menor destaque, dependendo da implementação de aspectos
linguísticos e sociais. Ressalta-se, ainda, que, nas atividades oral e escrita,
é necessário adotarmos a relevância da apropriação ao gênero textual e,
com isso, aplicarmos a adequação da norma que cada gênero requer em
sua construção, como afirma Bortoni-Ricardo (2014).

O texto dessa participante segue abaixo:

O curso de letras, ao meu ver, é o melhor curso. Espero crescer


profissionalmente, além de melhorar como pessoa, desenvolvendo ainda mais meu senso
crítico e meu papel de futura educadora. Vejo no curso boas portas para um futuro
melhor, além de ser uma disciplina fundamental para a educação brasileira que necessita
de mudanças. Espero também aumentar meus conhecimentos, valores e me especializar.
Mestrado, doutorado, quem sabe. Mas de início, quero bons resultados (IRA), e uma
expressiva carga de conhecimento.

A participante demonstrou admirar o curso e enxergarnelr uma


possibilidade de ascensão profissional e pessoal. Esboçou familiaridade
com o texto escrito, embora tenha manifestado traço da oralidade na grafia
da primeira linha, como se vê: “O curso de letras, ao meu ver, é o melhor
curso”. A partir disso, constata-se que a participante traz aspecto que na
fala é bastante usual, todavia, na escrita, não é adequado, considerando
o caráter formal do texto. Observa-se, com isso, o uso inapropriado da
regência nominal, conforme o seguimento explicitado nas gramáticas
normativas. A participante, em seu texto, utilizou “ao meu ver”, como
comumente realizamos em situações não monitoradas.

Conforme visto no protocolo oral, deduz-se que a participante


ressalta certa dificuldade no momento da escrita, por essa ser regrada,
às vezes, pela influência da fala. A despeito disso, demonstra aptidão
pela escrita e faz uma adequação pertinente ao contexto da formalidade.

34. Maria Adaiane da Silva Sousa


Vez ou outra, poré, manifesta aspectos da fala no texto escrito, a saber,
dificuldade na diferenciação da variação diamésica, analisada neste
trabalho como distintos meios de utilização entre fala e escrita. Ainda
ressaltou que já sofreu estigmatização pelo uso da sua fala, por ocasião de
não concordância.

DA FALA PARA ESCRITA – PARTICIPANTE 5, 18 ANOS

Fale por que você escolheu o Curso de Letras/Português, na UFPI.

A participante foi bem sucinta e direta nas suas respostas, não


dando muitas justificativas às perguntas realizadas. Falou que o curso de
Letras veio como uma segunda opção, pois não esperava ser selecionada.
Enfatizou que não queria nenhum tipo de licenciatura, mas sim o curso
de veterinária.

Como você distingue oralidade da escrita?

A participante relatou que possui maior dificuldade no momento


da escrita, até mesmo pelo fato de esta ser vista como veículo da norma-
padrão, em oposição à fala, que é mais habitual e tende a influenciar no
momento da escrita.

Acerca do que temos discutido, Bortoni-Ricardo (2014)


compreende as atividades que envolvem produção oral e escrita como
sendo vinculadas ao gênero textual proposto. Assim, é necessário utilizar
mecanismos linguísticos característicos de cada gênero. A colaboradora
da pesquisa afirmou que sente dificuldade na dimensão do texto escrito
em detrimento da fala que, normalmente, destaca-se como menos formal.
Portanto, pode-se inferir que essa complexidade ocorre, pois ela não
compreende totalmente a diferenciação entre fala e escrita.

Da oralidade à escrita: desconstrução do


preconceito linguístico a partir da variação diamésica .35
Em uma ocasião de informalidade, durante uma conversa com
familiares ou amigos, por exemplo, alguém já lhe corrigiu ou falou
que você não sabe fazer uso da língua? Como ocorreu isso?

A participante relatou que já foi corrigida em um grupo de


WattsApp, por ocasião da grafia de uma palavra e que, em virtude disso,
saiu do grupo por se sentir constrangida. Consoante Faraco (2008), tais
constatações de erro somente demonstram o quanto alguns falantes
não compreendem a dinamicidade da língua, visto que essa cultura do
desacerto apenas enaltece o empobrecimento da cultura linguística no
nosso país.

Abaixo, vemos o texto escrito por ela:

Apriorar mais o conhecimento, aprender a gostar do curso para que se um


dia eu me formar eu ser um bom profissional e passar o meu conhecimento para
outras pessoas.

Estou gostando do curso, e espero me dar bem com os professores, com os


colegas de classe e um dia ser uma boa professora. Não é meu sonho, mas acho que nada
é por acaso, e se Deus quis assim eu me embarco nessa profissão. É sempre importante
não desistir dos nossos sonhos, mas as vezes abre portas ou caminho nas nossas vidas e
devemos aproveita cada oportunidade que aparece em nossos caminhos.

Em oposição aos demais participantes, esta relatou que Letras/


Português não é o seu sonho profissional, mas pretende se esforçar
para desempenhar o melhor no curso e, posteriormente, almeja ser uma
profissional competente.

Na perspectiva da escrita, observa-se que a colaboradora deixa


explícitas marcas da fala na organização do seu texto. Assim, averigua-se,
logo no início, o verbo aprimorar, grafado apriorar, sem o “m”. Isso pode
ser resultado de uma mudança fonética, nomeado por síncope, a omissão
de um segmento no meio da palavra. Conforme compreende Dubois

36. Maria Adaiane da Silva Sousa


(1983, p. 551), “na evolução das línguas, a síncope é um fenômeno muito
frequente de desaparecimento de um ou mais fonemas no interior de uma
palavra”.

Também há marcas da oralidade no seguinte trecho: “para


que se um dia eu me formar eu ser un bom profissional e passar o
meu conhecimento para outras pessoas”. Com isso, observa-se que a
participante não se preocupa com o grau de formalidade exigido no texto
escrito e, assim, escreve como fala.

No que concerne ao protocolo oral, observa-se que a participante


reconhece sua dificuldade quanto à manifestação da escrita, justificando
que isso ocorre pelo preceito estabelecido pela gramática normativa.
Em relação ao protocolo escrito, pode-se averiguar que a colaboradora
expressou a influência da fala na escrita, colaborando, assim, para certa
complicação no que refere à apreensão da variação diamésica. Por fim,
destacamos que ela relatou já foi corrigida por determinado uso da língua
em contextos informais.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Investigar a língua materna enquanto perspectiva linguística e


social de comunicação presentes nas práticas da oralidade e da escrita
possibilitou uma melhor apreensão acerca da diversidade linguística
estabelecida no Brasil. Contudo, observamos, o quanto o preconceito
linguístico ainda se faz presente entre os falantes.

Compreende-se a concepção da língua postulada por Bortoni-


Ricardo (2014), que veicula a língua como firmada sociointeracionalmente,
haja vista o princípio de interferência de fatores sociais e linguísticos, ao
modo que averiguamos seu aspecto funcional e real durante as realizações

Da oralidade à escrita: desconstrução do


preconceito linguístico a partir da variação diamésica .37
humanas de comunicação. Em virtude disso, postular as variedades
linguísticas como uma maneira errônea de utilizar a língua não passa de
uma concepção negativa e ultrapassada na percepção da abrangência
linguística e cultural que circunda no ambiente social. É, antes, um modelo
de estigmatização baseada na existência da homogeneidade linguística.

A partir do pressuposto analisado no protocolo verbal (entrevista)


e no escrito, constata-se que, durante a abordagem da oralidade, os
colaboradores da pesquisa, embora estando no início do curso, manifestam
o conhecimento sobre a distinção entre oralidade e escrita, bem como
sua adequação ao contexto de uso. Em contrapartida, observa-se que no
decorrer do gênero textual escrito, alguns tiveram dificuldade quanto à
grafia de certas palavras, outros postularam a distinção durante o protocolo
oral, mas na realização do texto expressaram certa dificuldade, pois houve
marca da fala na escrita. Ademais, compreendem o preconceito linguístico
como uma forma de menosprezar o falante e seus respectivos modos de
empregar a língua, tendo em vista o fato de já terem corrigido ou sido alvo
de correção.

Apresentamos o perfil sociolinguístico dos alunos quando


averiguamos como eles percebem a língua enquanto uma construção
de variedades linguísticas e sociais, como também apontamos que os
participantes já sofreram ou fizeram correção da fala ou escrita utilizada
por outra pessoa.A propósito disso, refletimos sobre como como
esses fatos cooperam para uma apreensão negativa acerca da língua e,
consequentemente, na disseminação do preconceito linguístico.

Constatamos, também, como os participantes compreendem


a diferença entre fala e escrita, ocasionando a explicitude do conceito
variação diamésica, elucidada nesta pesquisa (ILARI, BASSO, 2011;
BAGNO, 2007).

38. Maria Adaiane da Silva Sousa


Vemos, pois, fala e escrita como atividades distintas em sua
realização, visto que o emprego da variação diamésica deve estar em
acordo com o veículo de utilização da língua, bem como o gênero textual
proposto. Para tanto, o falante pode ou não monitorar seu uso em virtude
da competência comunicativa a qual, normalmente possui.

É necessário ressaltar, ainda, que oralidade e escrita são


modalidades distintas de uso da língua, mas que ambas coadunam com o
ambiente sociocultural pertinente nos seus diferentes meios de emprego.
Sendo assim, o falante não deve estigmatizar as variedades utilizadas,
quanto menos fomentar a disseminação do preconceito linguístico.

Assumimos que este trabalho possui uma postura dialógica


e sociointeracional na demonstração do perfil sociolinguístico dos
participantes, assim como enaltece os segmentos de variação da fala e da
escrita, modalidades de uso da língua. Ademais, explicita que as diversas
maneiras de aplicação da língua são resultado da interferência de vários
fatores sociais, cujos aspectos são justificados na desconstrução do
preconceito linguístico. Por fim, esta discussão favorece não somente
aos estudiosos da língua(gem), mas também aos estudiosos de outras
áreas do conhecimento, precipuamente aos sujeitos inseridos no campo
educacional.

Da oralidade à escrita: desconstrução do


preconceito linguístico a partir da variação diamésica .39
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Da oralidade à escrita: desconstrução do


preconceito linguístico a partir da variação diamésica .41
02.
REFLEXÕES SOBRE
AQUISIÇÃO E INTERFERÊNCIAS NO
DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM
ORAL DA CRIANÇA

Bernadete Lema Mazzafera (Unopar)

bernalema@gmail.com

Adriana Regina de Jesus Santos (UEL)

adrianatecnologia@yhaoo.com.br

1. INTRODUÇÃO

A linguagem verbal é a matéria do pensamento e o veículo


da comunicação social, não existindo sociedade sem linguagem, nem
sociedade sem comunicação (PETER, 2002, p.11). A autora relata que
“como realidade material - organizações de sons, palavras, frases - a
linguagem é relativamente autônoma; e conclui “como expressão de
emoções, ideias, propósitos, ela é orientada pela visão de mundo, pelas
injunções da realidade social, histórica e cultural de seu falante”. (PETER,
2002, p.11)

Reflexões sobre aquisição e interferências no


desenvolvimento da linguagem oral da criança .43
A comunicação realizada por meio da linguagem promove a
interação entre os indivíduos. E, para que essa integração se efetive entre
os participantes da sociedade, torna-se necessário a comunicação como
um pré-requisito funcional da sociedade (CARRASCO, 2001).

Pode-se compreender a linguagem não só como meio de


comunicação, mas também como um dos principais instrumentos de
desenvolvimento dos processos cognitivos do ser humano (FERNANDES,
1998).

O objetivo deste estudo é tecer reflexões sobre os aspectos que


interferem na aquisição e desenvolvimento da linguagem oral da criança.
Para atingir este objetivo, torna-se importante tecer algumas considerações
sobre as teorias de aquisição e desenvolvimento da linguagem oral.

2. TEORIAS DE AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM

Correa (1999) realizou um estudo retrospectivo, abordando os


avanços em aquisição de linguagem nos últimos 30 anos no Brasil e no
mundo. A autora pontua que, “a despeito de muitos dos percursos para o
estudo da aquisição da linguagem não terem sido produtivos e do caráter
insatisfatório[...] o resultado da pesquisa em aquisição da linguagem nos
últimos 30 anos tem um saldo positivo” (CORREA, 1999, p.372). A autora
complementa que “no que se refere ao estudo da aquisição da linguagem
conduzido no Brasil, verifica-se a ampliação do interesse nessa área e uma
maior diversificação de abordagens do que nos anos 70.”

A aquisição da linguagem apresenta-se como uma


questão fundamental na Teoria Linguística e no
estudo da cognição humana. O estudo da aquisição da
linguagem visa a explicar de que modo o ser humano

44. Bernadete Lema Mazzafera . Adriana Regina de Jesus Santos


parte de um estado no qual não possui qualquer forma
de expressão verbal e, naturalmente, ou seja, sem a
necessidade de aprendizagem formal, incorpora a
língua de sua comunidade nos primeiros anos de vida,
adquirindo um modo de expressão e de interação social
dela dependente. (CORREA, 1999, p.335)

Alguns teóricos possuem relevância nos estudos de aquisição de


linguagem, dentre eles, serão destacados neste estudo Chomsky; Piaget;
Vygotsky e Lemos, a partir de uma releitura de seus trabalhos.

Aimard (1998) coloca que Chomsky é o inventor da gramática


gerativa e transformacional. Para o autor, Chomsky “se esforça por
elaborar um modelo, uma gramática que dê conta dos mecanismos
subjacentes à criatividade de um sujeito falante. A unidade de linguagem
analisada é a frase” (AIMARD, 1998, p.32). A gramática gerativa é a que
gera regras. Pode-se compreender, nessa perspectiva, que a análise de
enunciados da língua poderia ser representada por um conjunto de regras.
Segundo Aimard (1998), três seriam os elementos essenciais nas teorias de
Chomsky: competência/desempenho; inatismo e criatividade.

A competência diz respeito ao sistema de regras que cada um de


nós possui, organizadas e utilizadas de uma forma particular, um “saber
linguístico” que subentende os comportamentos verbais - o desempenho.
A competência pode “ser compreendida também como a possibilidade
ilimitada que todos possuem de construir e compreender um infinito
número de frases” (AIMARD, 1998, p.33).Desta forma, todos teriam um
conhecimento próprio da língua na qual se somam estruturas elementares
e regras combinatórias. Às estruturas observáveis, Chomsky opõe as
estruturas profundas que teriam pontos em comum em todas as línguas,
as quais denomina universais linguísticos. (AIMARD, 1998, p.33).

A aptidão para adquirir as estruturas da língua foi descrita


por Chomsky como dispositivo inato da linguagem (LAD= Language

Reflexões sobre aquisição e interferências no


desenvolvimento da linguagem oral da criança .45
acquisition device), e estaria inscrita no potencial genético humano. Existe
algo “inato e específico que faz com que o homem fale” (AIMARD, 1998,
p.34), mas é evidente que fatores culturais também interferem na aquisição
da linguagem. Para Chomsky, o mundo “que nos rodeia só iniciaria e
alimentaria programas pré-estabelecidos” (AIMARD, 1998, p.34). No
que diz respeito à criatividade, o autor sintetiza que “cada um constrói e
reconstrói sua língua a partir de modelos que recebe, porém o faz à sua
maneira” (AIMARD, 1998, p.35).

Scarpa (2001) acrescenta que Noam Chomsky desenvolveu seus


estudos na década de 1950 em reação ao behaviorismo, quadro científico
dominante da época nas teorias de aprendizagem. Skinner, psicólogo de
trabalho mais influente no behaviorismo, propõe enquadrar a linguagem
nos mecanismos de estímulo – resposta - reforço, que explicam o
condicionamento e são base para a estrutura do comportamento.

A autora complementa que Chomsky rejeita a projeção das


evidências Skinnerianas, resultantes de experimentos laboratoriais com
animais, para a linguagem humana. Ele argumenta que esses mecanismos
não explicam a complexidade e a sofisticação do conhecimento linguístico.
Para Chomsky, umas das questões que derruba a teoria de aprendizagem
behaviorista é o fato de que, num período relativamente curto de tempo
(18 a 24 meses), uma criança, diante de uma linguagem truncada e pobre
de estímulos, domina um conjunto complexo de regras que constituem a
gramática internalizada do falante. (SCARPA, 2001, p. 207).

A partir dos anos 1960, as colocações inatistas de Chomsky


deflagraram muitos estudos, que se concentraram na aquisição da
gramática da criança em torno dos dois anos de vida. “Tais trabalhos
foram criticados e contra-evidenciados por duas vertentes teóricas [...], são
elas o cognitivismo construtivista e o interacionismo social” (SCARPA,
2001, p. 210)

46. Bernadete Lema Mazzafera . Adriana Regina de Jesus Santos


A abordagem com base nos estudos de Jean Piaget é chamada de
cognitivismo construtivista ou epigenético, que são “denominações que
evocam a proposta de explicação da origem e do desenvolvimento das
estruturas do conhecimento (cognitivistas) pela interação entre ambiente
e organismo” (SCARPA, 2001, p. 210).

Para Piaget o aparecimento da linguagem se dá na superação do


estágio sensório-motor, em torno dos 18 meses. Nesse estágio, para o
autor acontece o desenvolvimento da função simbólica (AIMARD, 1998).
Em sua perspectiva, a linguagem é uma manifestação da função simbólica,
a capacidade cognitiva mais especificamente humana. O conceito central
é o de representação, a capacidade de representar uma imagem, um
gesto, um objeto etc (AIMARD, 1998, p.39). Dessa forma, a criança vem
desenvolvendo a capacidade de imitação e interiorizando esses modelos e
passa a representá-los. “A aptidão para representar mentalmente, essencial
para Piaget, é contemporânea da aquisição das palavras ” (AIMARD,
1998, p.41). Para Piaget, a função simbólica permite que a criança adquira
a linguagem e é na evolução das condutas sensório-motoras que se deve
verificar as fontes da linguagem. (AIMARD, 1998, p.41).

Piaget buscou uma explicação para a fala egocêntrica no sistema


cognitivo em desenvolvimento da criança. Para ele, a inteligência da
criança é fruto do ambiente tanto quanto de certas estruturas mentais que
interagem entre si. Para tanto, compreendemos que a criança, ao se deparar
com uma nova situação, procura associá-la a conhecimentos anteriores
(assimilação). No entanto,muitas vezes nessa assimilação são necessárias
certas modificações (acomodação) para uma verdadeira compreensão da
informação encontrada (GOMES; GHEDIN, 2011).

Piaget conclui que, no desenvolvimento dessas estruturas, a


criança passa por estágios numa sequência fixa (a velocidade varia de
acordo com cada criança). Os estágios principais são: sensório-motor (do
nascimento aos 18 meses), o pré-operacional (dos 18 meses aos 7 anos),

Reflexões sobre aquisição e interferências no


desenvolvimento da linguagem oral da criança .47
operações concretas (7 a 11 anos) e operações formais (11anos em diante).
Nos seus estudos, ele não buscou uma teoria da linguagem, mas por meio
de suas investigações se contrapõe às ideias de Vygotsky, ao abordar que a
linguagem acompanha o pensamento e não o direciona. (ELLIOT, 1981,
p. 46-49)

Ele afirmou que para a criança possuir uma compreensão sobre


o mundo, não basta obter informações: ela deve agir sobre ele. Destarte,
compreende-se que para conhecer um objeto é necessário agir sobre ele.
Conhecer, portanto, é modificar, transformar o objeto, compreender o
processo dessa transformação e, consequentemente, compreender o
modo como o objeto é construído. Isso porque uma ação interiorizada
provoca desequilíbrios fundamentais que são a essência da apropriação
do conhecimento. “Poucos acreditam que as crianças esperem
passivamente para que o desenvolvimento de qualquer espécie lhes seja
transmitido”(ELLIOT, 1981, p. 49). No entanto, acredita-se que o papel da
interação social foi subestimado por Piaget. “A inteligência da criança pré-
verbal não é posta em dúvida, mas a conclusão de que a inteligência não
pode ter origem social, simplesmente porque a criança não sabe falar, vem
sendo questionada” (ELLIOT, 1981, p. 49). Além disso, Piaget “afirma
que o desenvolvimento da linguagem é limitado pelo desenvolvimento
cognitivo” (ELLIOT, 1981, p. 50) ele “nega que a linguagem seja uma
fonte suficiente para a cognição, nega também que o desenvolvimento
cognitivo seja suficiente para o desenvolvimento da linguagem”(ELLIOT,
1981, p. 50). “ Para Piaget a criança aprende as palavras por imitação,
quando se torna capaz de pensamento representativo” (AIMARD, 1998,
p.41).

Tendo como base a abordagem genética do desenvolvimento


da linguagem, “Vygotsky observa que o pensamento na criança pequena
inicialmente evolui sem a linguagem; igualmente, os primeiros balbucios
da criança se constituem numa forma de comunicação sem pensamento”
(JOBIM E SOUZA,1994, p.128). Como desde muito cedo a criança tenta

48. Bernadete Lema Mazzafera . Adriana Regina de Jesus Santos


atrair a atenção do adulto por meio dos sons que produz, o autor ressalta
que a função social da fala existe. Dessa forma, conclui que “a criança nos
primeiros meses de vida, possui um pensamento pré-linguístico e uma
linguagem pré-intelectual.” (JOBIM E SOUZA,1994, p.128).

Segundo Vygotsky, o desenvolvimento da linguagem está


diretamente relacionado as relações entre os indivíduos. O autor destaca que
“o aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento
mental e põe em movimento vários processos de desenvolvimento que,
de outra forma, seriam impossíveis de acontecer” (VYGOSTSKY,1984,
p.101). Sua teoria se encontra organizada em quatro partes. Na primeira,
considera que as características do indivíduo não são inatas, ou seja, não
estão prontas com ele, mas são resultados das relações/interações homem
e sociedade. Isso porque, ao transformar o meio na busca de atender
suas necessidades básicas, o indivíduo também transforma a si mesmo.
Assim, sua questão central é a aquisição de conhecimentos mediante suas
próprias interações.Entende, pois, que a criança nasce apenas com as
funções psicológicas elementares e, a partir do aprendizado da cultura,
essas funções se transformam em funções psicológicas superiores, sendo
estas o controle consciente do comportamento, a ação intencional e a
liberdade do indivíduo em relação às características do momento e do
espaço presente.

A linguagem libera a criança das impressões imediatas


sobre o objeto, oferece-lhe a possibilidade de
representar para si mesma algum objeto que não tenha
visto e pensar nele a medida que se desenvolve. Com
a ajuda da linguagem, a criança obtém a possibilidade
de se libertar do poder das impressões imediatas,
extrapolando seus limites. (VYGOTSKY, 1998, p. 122).

Faz-se necessário ressaltar que a linguagem nos leva a definir o


primeiro modelo de desenvolvimento: “a aprendizagem aparece como

Reflexões sobre aquisição e interferências no


desenvolvimento da linguagem oral da criança .49
um meio de reforçar esse processo natural, pondo à sua disposição os
instrumentos criados pela cultura que ampliam as possibilidades naturais
do indivíduo e reestruturam suas funções mentais”(IVIC, 2010, p.18).
Dessa forma, as relações sociais, o meio físico e as experiências são
importantíssimas para o processo de desenvolvimento real da criança.
Nessa perspectiva, a aprendizagem é fruto do processo de internalização
dos conhecimentos adquiridos, estando relacionados desde o momento
do nascimento.Assim, “em termos filogenéticos ou ontogenéticos, a ação
precede a linguagem. Antes da linguagem falada, o gesto prepara a palavra,
a emoção precede a comunicação, a comunicação não-verbal dá origem
à comunicação verbal [...](GESCHWIND, 1985 apud FONSECA, 2016,
p. 447)”. E mais: “a linguagem edifica-se a partir da ação, da motricidade,
para posteriormente se libertar do contexto da ação [...]”(FONSECA,
2016, p. 448).

Cláudia Lemos, pesquisadora brasileira, denomina sua postura de


interacionista. Scarpa (2001) nos coloca que a autora se inspira nas ideias
de Saussure e Lacan (psicanalista) e estuda as relações do sujeito com a
língua, questionando as noções de desenvolvimento e conhecimento
linguístico. “Posiciona-se contra a noção de conhecimento própria do
“sujeito psicológico”, que está presente nas noções de desenvolvimento
[...] e contra a noção de representação mental, que é fonte [...] do
conhecimento linguístico” (SCARPA, 200, p.219). A autora recusa a
concepção consagrada pela expressão “desenvolvimento linguístico”.
Entende nenhuma das explicações é suficiente para que se fale num dado
momento de “conhecimento pleno da língua” ou estágio estável. Ao invés
dos termos em desenvolvimento ou construção, ela compreende que a estrutura
é “a mesma que move o adulto”.

[...]o que identifica as mudanças no processo de


aquisição são as diferentes posições da criança nesta
estrutura, ou melhor, as diferentes relações do sujeito
com a língua, em que o pólo dominante da estrutura

50. Bernadete Lema Mazzafera . Adriana Regina de Jesus Santos


pode ser o outro, a língua ou o próprio sujeito.
(SCARPA, 2001, p.220)

3. DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM ORAL: INTERFERÊNCIAS

Apesar de ser possível destacar alguns estágios de desenvolvimento


linguístico, a partir das teorias de aquisição, percebe-se que os estágios são
dinâmicos e as diferenças de desenvolvimento entre as crianças apresentam
uma enorme gama de possibilidades de interpretação.

Teoricamente, por volta de três anos, uma criança deveria ser


capaz de utilizar um vocabulário que possibilitasse sua comunicação
efetiva socialmente, fazendo-se compreender por todas as pessoas,
inclusive por aquelas que não fazem parte de seu universo familiar
(BEFI; CARVALLO,1998). Vale ressaltar, qualquer pessoa que trabalhe
com crianças pequenas sabe que o desempenho linguístico depende das
circunstâncias nas quais a linguagem foi evocada (LAW, 2001).

Em algumas circunstâncias, torna-se evidente que existem


distúrbios de linguagem que interferem no processo comunicativo da
criança, impedindo muitas vezes seu pleno desenvolvimento. E, como são
muitos são os aspectos que influenciam no desenvolvimento da linguagem,
sabemos que podemos ter no máximo a possibilidade de determinar
fatores predominantes e fatores desencadeantes (SPINELLI, 1986).

Mazzafera e Sordi (2002) desenvolveram um projeto de cunho


preventivo, destinado a avaliar, acompanhar e propiciar atendimento às
crianças com queixas relativas à comunicação. De 1997 a 2001, foram
avaliadas 279 crianças, das quais 165 apresentaram atrasos nos processos
de aquisição e desenvolvimento da linguagem. Dentre os fatores causais
que puderam ser destacados naquela ocasião, podem ser citados aspectos

Reflexões sobre aquisição e interferências no


desenvolvimento da linguagem oral da criança .51
biológicos, psicológicos e sociais. (Com predomínio para os fatores
considerados socioambientais).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir destas breves considerações, pôde-se verificar que os


estudos em aquisição e desenvolvimento da linguagem têm apresentado
enorme avanço nas últimas décadas. Sabe-se que muitos são os fatores que
interferem no processo de desenvolvimento da linguagem e que ainda não
foi possível precisar o valor de cada interferência neste processo. Scarpa
(2000, p.229) alerta, no que diz respeito à aquisição da linguagem, que
“o desafio continua a ser a relação entre o inato e o adquirido, entre o
biológico e o sócio histórico, entre o linguístico e o extralinguístico, entre
o sujeito aprendiz e o objeto a ser aprendido”.

A linguagem pode ser considerada como uma das primeiras


formas de socialização da criança, por meio da qual se adquire valores,
regras e conhecimentos advindos da cultura (BORGES; SALOMÃO,
2003).A linguagem possui, além de uma função comunicativa, a função
de contribuir e permitir o crescimento e desenvolvimento do ser humano
(ANDRADE; MAZZAFERA; JUSTE, 2004). Por isso, a importância da
aquisição e desenvolvimento de qualquer forma de linguagem.

Por meio da linguagem oral, escrita ou não verbal, expressamos


nossos desejos e estabelecemos a comunicação com nossos semelhantes,
fundamentamos nossa racionalidade, criatividade e consciência, tornamo-
nos parte da sociedade. (MAZZAFERA; ANDRADE, 2002).

52. Bernadete Lema Mazzafera . Adriana Regina de Jesus Santos


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Reflexões sobre aquisição e interferências no


desenvolvimento da linguagem oral da criança .55
03.
VAZAMENTOS FONOLÓGICOS NA
ESCRITA ESCOLAR: A LATERAL L NO
CONTEXTO DO ENSINO PRIVADO

André Pedro da Silva (UFRPE)

andre.pedro@ufrpe.br

Yasmin Maria Macedo Torres Galindo (UFRPE)

yasmin.m.galindo@gmail.com

1. INTRODUÇÃO

Os sujeitos, quando imersos no letramento, já nos primeiros


anos, passam por um processo de quebra na familiaridade da língua.
Estão entrado em contato com uma outra modalidade até então apenas
testada, começam a imergir no campo da norma e os contatos tornam-
se simbióticos e de embate à medida que avançam no conhecimento da
escrita. A fala, já sob seu domínio, vaza para a escrita, o que nos permite
investigar os processos fonéticos e fonológicos emergentes desse embate.

A criança passa por muitas aprendizagens. É possível, por


exemplo, apontar que o indivíduo em fase de aquisição da ortografia
busca organizar suas próprias regras em um plano interiorizado, a partir
das impressões que capta do meio (MORAIS, 1998). A escrita inicial
tem como ponto de partida, abundantemente, a fala, uma vez que esta

Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a


lateral L no contexto do ensino privado .57
representa uma instância mutável e de caráter individual, intrinsecamente
marcada por vivências. Assim, a criança, nosso sujeito investigado, tende
a espalhar as marcas da oralidade, que captou em seu convívio, na escrita,
fazendo uma correlação entre estes dois modelos.

Partindo desse pressuposto, o do vazamento, cabe pontuar


a figuração da língua falada na análise do desenvolvimento da criança
enquanto sujeito. Porém, devemos ter e mente, enquanto pesquisadores
da uma individualidade latente, que nem sempre foi assim. Dessa forma,
faz-se necessário um primeiro panorama histórico:no século XX, com o
desenvolvimento da linguística moderna, a fala ocupa o lugar de objeto de
análise e a escrita é marginalizada enquanto fonte de coleta de dados para
análise, por ser julgada como um construto que simplesmente reproduzia
a fala. Nos dias atuais, no entanto, sabemos, por meio de estudos
sociolinguísticos desenvolvidos a partir da década de setenta, que a escrita
e a fala possuem relações bastante complexas e que dizem muito mais do
que uma mera reprodução da norma culta na língua. A escrita é um campo
vasto a ser analisado.

As postulações de Luria (1986) já ressaltam que a palavra é a “célula


da linguagem”, ou seja, é a base de compreensão para que os indivíduos
estabeleçam interações entre si e consigo. Tudo passa pela palavra para
obter existência. Baseados nesse conceito, aludimosa Vygotsky (2009), o
qual afirma que a palavra se desenvolve a partir da interação do sujeito
com o mundo, ou seja, a partir das funções psíquicas superiores, tais como
a memória, a percepção e o pensamento. De forma análoga, a palavra, no
domínio da linguagem escrita, também não acontece de forma simples.
Não basta apenas a aquisição mecânica dos signos visuais, que aqui
chamamos de letras. Há a necessidade da apropriação da subjetividade do
domínio desse código, para que haja a correspondência eficiente entre
grafema e fonema.Dentro dessa perspectiva, Martins (2011, p.146) diz que
“o domínio da linguagem escrita representa para a criança o domínio de
um sistema simbólico altamente complexo e dependente, em alto grau,

58. André Pedro da Silva . Yasmin Maria Macedo Torres Galindo


do desenvolvimento das funções psíquicas superiores do comportamento
infantil”. Destarte, a escrita acompanha o desenvolvimento cognitivo
da linguagem de cada indivíduo ao longo da vida. Assim, toda escolha
na escrita conta a história de uma exclusão, e essa escolha diz muito da
capacidade linguística de seu emissor.

Baseamo-nos, ainda, nos paradigmas instaurados por William


Labov, na Teoria da Variação Linguística. A partir desse esteio, ressaltamos
o caráter heterogêneo da língua e da sociedade. A língua, comoconstrução
social, tende a se adaptar aos tempos e aos indivíduos. Assinalamos que,
neste estudo, interessam-nos, particularmente, as considerações acerca
da fala.Assumimos que língua se caracteriza como mutante frente às
diversas intervenções internas, como, por exemplo, a dimensão cognitiva
(psicológica), bem como os fatores exteriores às personas de um
determinado grupo (fatores sociais).  

A pesquisa aqui apresentada baseia-se, sobretudo, no método


quantitativo-comparativo, ou seja, foram analisados dados estatísticos para
que nossa hipótese norteadora fosse provada com totalidade. Buscamos
descrever estatisticamente a manifestação das variáveis presentes no
fenômeno de semivocalização da lateral líquida /l/, com a finalidade de
analisar, apreender e sistematizar essa variante nos diversos contextosnos
quais ela pode se manifestar. No nosso caso, consideramos o contexto
do ensino fundamental particular. Além disso, procuramos discutir quais
fatores influem sobre seu aparecimento ou desaparecimento. Nessa
perspectiva, foram analisados um total de 52 treinos ortográficos de frases
e 52 de palavras. Para tanto, o colégio usado como campo de pesquisa,
localizado no bairro do Ibura, Jaboatão dos Guararapes-PE1, foi escolhido

1  O bairro do Ibura é uma grande periferia constituída de diversas unidades residenciais. Sendo um
bairro periférico, é formado, sobretudo, por indivíduos pertencentes às classes C e D. Cumpre notar que
há também alguns lugares de maior precariedade que constituem a classe E. Esse não é caso da unidade
residencial 6, onde fica localizado o colégio campo da pesquisa. Essa escola adota um método de ensino
majoritariamente tradicionalista. Os indivíduos analisados estão na faixa etária entre 07 e 11 anos, não
apresentando discrepâncias entre o ano escolar e a faixa etária correspondente.

Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a


lateral L no contexto do ensino privado .59
previamente para a coleta de dados, oferecendo o total de 26 sujeitos
femininos e 26 sujeitos masculinos, divididos igualmente para as séries do
2° ao 5° ano do Ensino Fundamental I.

Consideramos dois níveis de coleta dos treinos ortográficos,


frases e palavras, para poder observar o momento de atenção e suas
variações possíveis dentro do contexto de sala de aula. Assim, no treino
de palavras, feito por intermédio de um ditado de vinte palavras, a ideia
era a de que o aluno se preocupasse apenas com as palavra em si, todas
com a manifestação da lateral em posição de coda. Em momento de
espontaneidade, presente na produção do treino de frases, o informante se
preocupa com todas as palavras, uma vez que estas estão contextualizadas.
Dessa forma, foi possível estabelecer comparações entre estilos: menos
monitorado (treino de frases) e mais monitorado (treino de palavras).

É importante ressaltar que toda a pesquisa tem respaldo do


Comitê de Ética e segue todas as suas prerrogativas. Sendo assim,
por envolver seres humanos, submetemo-la ao Comitê de Ética da
Fundação Joaquim Nabuco, do qual recebemos autorização, por meio do
Parecer Consubstanciado CAAE: 67297517.0.0000.5619, versão 2. Isso
implica a utilização das produções que foram devidamente autorizadas
pelos responsáveis legais dos alunos pesquisados, por se tratarem de
menores de idade, no seu anonimato e no da escola.

Antes de investigar o evento fonético em si, traçaremos um


percurso por dentro da construção no indivíduo, à luz do panorama
socioconstrutivista, e, posteriormente, mergulharemos no fenômeno em
si.

60. André Pedro da Silva . Yasmin Maria Macedo Torres Galindo


2. PANORAMA SOCIOCONSTRUTIVISTA

A fim de construirmos uma visão para além da Hard-Science


Linguistic, é necessário que investiguemos a construção do sujeito
em meio a um contexto determinado.A partir de uma perspectiva
socioconstrutivista da linguagem, podemos nos apoiar no ponto de vista
explanado por Vygotsky em seus estudos sobre a linguagem, para validar
o caráter estritamente ligado a meios culturais da aquisição da língua de
um determinado grupo. Cumpre notar que essa perspectiva não exclui
os processos psicológicos naturais a todo e qualquer ser humano em
desenvolvimento. Assim,

Vygotsky concebe o homem e seu desenvolvimento


numa perspectiva sociocultural. Contudo, referindo-se
aos estudos experimentais da formação dos conceitos,
o autor afirmou que “[...] a tarefa cultural, por si só,
não explica o mecanismo de desenvolvimento em
si, [...]” (Vygotsky, 1998, p.73). Por meio desta
afirmativa explicitou a necessidade de compreender o
desenvolvimento de um indivíduo de maneira global.
Noutras palavras, salientou o quão importante é
verificar todas as funções implicadas nesse processo,
as quais continuamente são construídas, reconstruídas
e incorporadas a uma já existente ou nova estrutura,
porque durante a formação dos conceitos este
indivíduo aprende “[...] a direcionar os próprios
processos mentais com a ajuda de palavras e signos [...]
(MIRANDA, J.; SENRA, L., 2012, p. 6).

Observada notadamente nas pesquisas de campo que abordam


a aquisição da linguagem e o letramento, inclusive numa pesquisa2

2  O processo de Harmonização Vocálica Nominal na escrita de alunos do Ensino Fundamental de escola pública
na cidade de Jaboatão dos Guararapes-PE, pesquisa realizada sob o intermédio do programa de Bolsas de
Incentivo Acadêmico (BIA), custeado pela FACEPE, realizada nos anos de 2014-2015.

Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a


lateral L no contexto do ensino privado .61
dessa temática, realizada por nós, a teoria de Vygotsky faz-se presente
junto à sociolinguística de Labov, já que um indivíduo “X”, ainda que
dotado de suas totais capacidades psíquicas e cognitivas, tem na cultura em
que é imerso o potencializador das descobertas da linguagem.

Esse ambiente propício ao treino da língua com finalidade de


aperfeiçoamento é encontrado nas séries iniciais do ensinofundamental. A
criança participante de um ambiente escolar sadio passará pelos testes de
linguagem e aperfeiçoará tanto a escrita como a fala, aproximando-se cada
vez mais da norma padrão vigente na sociedade.

Língua também é cultura, sendo assim, aperfeiçoar-se tal qual


a norma vigente, nesse caso, do Português Brasileiro (doravante PB), é
adentrarna comunidade e tornar-se parte dela. No percurso que a criança
faz até o aperfeiçoamento de seu uso linguístico, ela flerta com diversas
variantes linguísticas, conceituadas por Tarallo (1986, p. 8) como sendo
“diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto e
com o mesmo valor de verdade”. Segundo Tasca (2002),

[...] a variação, embora aparentemente caótica e


aleatória, constitui um objeto de estudo científico, uma
vez que heterogeneidade das línguas é imanente às
mesmas, podendo ser prevista e sistematizada. Uma das
metas dos estudos da variação é descrever e explicar os
usos alternantes, indicando seu caráter ou de mudança
ou de progresso (p.17).

A variação é nosso objeto de observação e figura para Tasca (2002)


como sinalizadora do progresso do desenvolvimento interno da língua.
Nisso vemos claramente o intrínseco relacionamento da sociolinguística
com a psicologia do desenvolvimento.

Nas séries iniciais, o indivíduo começa a testar a língua com


a finalidade de acomodá-la em sua mente, ou seja, uma criança testa

62. André Pedro da Silva . Yasmin Maria Macedo Torres Galindo


as diversas variantes que lhe são possíveis, cabendo ao professor e/ou
instrutor de aprendizagem corrigi-la. A tendência de testagem nas séries
iniciais é associar a fala à escrita. Logo, crianças menores que adquiriram
a escrita recentemente tendem a harmonizá-la com a fala, sendo esta a
guia das escolhas variacionais dos indivíduos em processo de letramento.
Novamente, fazendo um pouso na psicologia do desenvolvimento, Santos
afirma que:

[...] o processo de aquisição da fala, nas crianças, é


um processo de aprendizagem das regras de um jogo
de linguagem. Nesse caso, o jogo é o próprio ato de
pronunciar as palavras. Ele observa que existem formas
corretas e erradas de pronunciar as palavras e que estas
formas são estabelecidas pela cultura. Quando começa
a falar, a criança geralmente pronuncia as palavras de
um modo errado, do ponto de vista cultural. Por isso é
preciso ensinar a criança a pronunciar as formas corretas
das palavras. Portanto, desde o início do processo de
aquisição da fala a criança encontra-se mergulhada em
um jogo de linguagem – neste caso, o ato de falar – e na
cultura(SANTOS, 2008apud WITTGENSTEIN, 1978,
p.165).

Usando como base o pensamento de Wittgenstein acerca da


aquisição dos mecanismos da fala, podemos concluir que a aquisição da
escrita não se faz de forma muito diferente. O espelhamento fala-escrita é
natural, como vai nos apontar Mollica (1998), ao dizer que:

As crianças são praticamente categóricas até dois anos


mais ou menos. Os processos variáveis e cancelamento
ou inserção de segmentos em estruturas silábicas quase
não apresentam alternância nos primeiros estágios,
porque os nativos em qualquer língua realizam padrões
silábicos simples do tipo V e CV no início da aquisição
linguística, [...]. Em geral o processo de auto-correção
se responsabiliza pela solução da maioria dos vestígios

Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a


lateral L no contexto do ensino privado .63
de oralidade que venham a permanecer na escrita,
quanto maior o grau de experiência com a modalidade
escrita é mais elevado o nível de escolarização. Mas cada
regra variável tem peculiaridades quanto à sua gênese
na língua falada, fato que deve ser levado em conta
de forma particularizada em trabalho que considere a
relação fala e escrita sob um enfoque aplicado (p.20).

Logo, a criança testa as diversas possibilidades de transcrever o


que fala e ouve, e esse jogo da linguagem falada com a linguagem escrita
resultará nas diversas formas de escrever uma mesma palavra, numa
tentativa de decodificação desse som.

Sendo assim, as variantes, segundo Labov, existirão em dois


contextos: na co-ocorrência, quando duas formas são usadas ao mesmo
tempo, observada, sobretudo, em momentos do letramento mais iniciais,
quando as crianças testam as diversas formas de escrever a mesma
palavra;e na concorrência, quando ocorrem tanto a forma variável quanto
a padrão, ambas com o valor de verdade, mais comum quando o processo
de letramento ou obteve êxito, no caso do uso da norma padrão, ou
fracasso, no caso da insistência na variável.

Tendo esclarecidos os diversos processos pelos quais a criança


passa ao longo da jornada de adquirir a língua falada e a escrita, o presente
trabalho preocupar-se-á com o estudo das expressões variacionais
encontradas no fenômeno de semivocalização da lateral /l/, transformando-a
em /w/, natural na língua falada. A transformação escrita será expressa
pela substituição da consoante líquida l pela vogal alta u.

3. PANORAMA FONÉTICO: A SEMIVOCALIZAÇÃO DA LATERAL /L/

A semivocalização da lateral em coda silábica passa longe de ser


uma manifestação variável recente. Esse fenômeno figura desde o latim e

64. André Pedro da Silva . Yasmin Maria Macedo Torres Galindo


supõe-se que a passagem do l para o u exista desde a passagem do latim
clássico para o vulgar. A busca pela imitação do sermo urbanus pelo sermo
vulgaris resulta pela primeira vez nessa semivocalização da lateral. Teyssier
aponta para o ressurgimento desse movimento na língua quando o PB
já é semi-constituído. Dessa maneira, a semivocalização passa a ser uma
sinalização do distanciamento do PB do Português de Portugal (PP), que
preserva a pronúncia velar da lateral.

A líquida /l/ é observada nas posições de onset (inicial e medial) e


coda (medial e final), a qual, em geral, é produzida como o glide [w]. E é a
líquida /l/, na posição de coda, que nos interessa, neste estudo, justamente
por ser produzida como glide /w/ de sonoridade igualitária. A vogal alta
/u/ tende a associar à vogal u os méritos da consoante líquida l, como, por
exemplo: ca[l].da ~ ca[w].da; ca.na[l] ~ ca.na[w].

Esta consoante líquida obtém esse nome justamente pelo seu


caráter mutável, sendo a única, segundo Dickey (1997), a possuir todos os
pontos de articulação do aparelho fonador em diversas línguas do mundo.
A líquida /l/, além de vocalizada, como em cana[w], pode ser velarizada,
como em cana[ł], ou apagada, como em cana[Ø], como ressaltam De Pinho
e Margotti (2010) ao analisarem as ocorrências da /l/ em coda silábica nas
capitais brasileiras. Dessa forma, há, em todo o Brasil, a manifestação da
variante e do apagamento. Assinalamos, porém,que a velarização do /l/ em
coda final como em cana[ł] vai se restringir ao sudeste e, principalmente,
ao sul. Crê-se, haja vista estudos anteriores, que as vogais anteriores à
lateral é que ditarão o comportamento dessa lateral no contexto escrito.
Acredita-se nisso porque, segundo Silva e Sedrins (s.d.), em um estudo
sobre o comportamento variacionista do segmento lateral na escrita das
séries iniciais de crianças de Serra Talhada-PE:

[...] entre os fatores linguísticos, o fator mais significativo


que condiciona a vocalização da lateral é a variável tipo
de vogal precedente, conforme evidenciado em Tasca

Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a


lateral L no contexto do ensino privado .65
(2002), onde tal variável mostrou-se bem relevante. A
tendência revelada pelos dados da pesquisa evidencia
que os alunos tendem a preservar o segmento e a
vocalizá-lo diante das vogais baixas: baixa [a], da média
baixa [E], e da vogal alta [i] confirmando a influência
da qualidade dessas vogais na vocalização da lateral na
coda. Já em relação à vogal média alta [o], a pesquisa
mostrou que o segmento é favorável ao apagamento
(SILVA, J.;SEDRINS, A., s.d., p. 1).

Nosso estudo, guiado à luz da literatura aqui explicitada, parte para


a investigação da vocalização da lateral /l/, em posição de coda, na escrita
de crianças participantes da rede do ensino particular, diferentemente da
pesquisa citada anteriormente realizada por Silva e Sedrins.

A seguir, apresentaremos os resultados quantitativos de nossa


pesquisa. Os dados obtidos serão expostos, comparados e analisados
de modo a comprovar nossas hipóteses apresentadas no panorama
introdutório.

4. RESULTADOS E ANÁLISES

Apresentar-se-ão aqui a catalogação dos resultados, bem como


a análise desta pesquisa, a qual se dividiu em dois grupos: Fatores
Fonológicos e Fatores Sociais, pois admitimos previamente que ambos se
completam na aquisição da linguagem. Como bem pontua Tasca (2002), “a
variação, embora aparentemente caótica e aleatória, constitui um objeto de
estudo científico, uma vez que a heterogeneidade das línguas é imanente
as mesmas, podendo ser prevista e sistematizada”. É justamente essa
sistematização das congruências e pontos críticos que nos propomos aqui.

66. André Pedro da Silva . Yasmin Maria Macedo Torres Galindo


4.1. FATORES FONOLÓGICOS

Antes de direcionar nosso foco para a posição do /l/ em final


de sílaba, posição de coda, é necessário observarmos a manifestação do
surgimento da líquida lateral no falar infantil.

Em geral, as consoantes laterais surgem primeiro e são, grosso


modo, consoantes articuladas que, ao serem produzidas, emitem o ar pelas
laterais da língua ao invés de pelo centro da língua que é o movimento de
escape de ar mais comum. São líquidas laterais o /l/ e o /ʎ/. Segundo
Wiethan, Melo e Mota (2011), ao tratarem das consoantes líquidas, o /l/
ainda vai apresentar sobre o /ʎ/ maior facilidade de produção, sendo a
primeira das laterais líquidas a ser internalizada, entre os 2:8 e 3:0 anos de
idade.

Na esteira dos estudos dos desvios fonológicos possíveis das


consoantes líquidas, Wiethan, Melo e Mota (2011) perceberam, após
o levantamento dos seus dados, que o fonema /l/ apresentará maior
índice de produções corretas, sendo pouco ou nunca acometido pelo que
chamaremos de estratégias de reparo. E, ao analisarmos treinos ortográficos
que tratem da posição do /l/ em coda final e medial, o parâmetro mudará,
dependendo de fatores linguísticos presentes na sílaba analisada, o /l/
pode ser vocalizado ou até mesmo, apagado. Desse modo, deparar-nos-
emos com o que se chamará de estratégia de reparo vocalizada. Observemos a
manifestação do fenômeno desemivocalização em escrita, quando levamos
em conta o contexto, as palavras ou frases, a escolaridade e, sobretudo, a
posição do /l/ na sílaba:

Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a


lateral L no contexto do ensino privado .67
Gráfico 1 - Variante[w] na posição silábica (coda final ou coda medial) considerando o contexto (palavra
ou frase. Fonte: Elaborado pelos pesquisadores, 2017.

Tasca (2002) pontua que a realização dessa semivocalização nos


estudos, sobretudo os realizados no Sul, foi vista durante muito tempo
como inexistente. Apenas o l velar /ł/ e o dental /l/ eram entendidos
como possíveis. Isso desponta para a visão da diferença dos falares das
regiões. Como sabido, as vogais no território nordestino são pronunciadas
mais abertamente. O gráfico anterior afirma essa existência da variante [w]
abundantemente e se alinha com o pensamento de Câmara Jr:

[...] além do movimento da ponta da língua junto com


os dentes, há um levantamento do dorso posterior
da língua para junto do véu palatino, dando o que
provavelmente os gramáticos latinos chamavam o l
pinguis ou “gordo”. Daí decorre uma mutação, que
em linguística diacrônica chama-se “vocalização” da
consoante: cessa a elevação da ponta da língua junto
aos dentes, a elevação posterior do dorso da língua
não chega a interromper a corrente de ar e há um
concomitante leve arredondamento dos lábios. O
resultado é um /u/ assilábico, mal torna-se homônimo
de mau, vil de viu e assim por diante(CÂMARA JR,
1973, p. 51).

68. André Pedro da Silva . Yasmin Maria Macedo Torres Galindo


Outro ponto a ser observado no gráfico é a predominância da
semivocalização quando se trata de coda medial, pois a pronúncia da
lateral fica acentuadamente vocalizada quando, após seu aparecimento,
existe outra consoante, como bem exemplificamos com as ocorrências
retiradas dos treinos de todas as séries analisadas:

(1) Aluno 6, 2° ano, 6 anos: ta[w]co

(2) Aluno 10, 3° ano, 7 anos: ca[w]deirão

(3) Aluno 14, 4° ano, 8 anos: pa[w]co

(4) Aluno 3, 5° ano, 11 anos: sa[w]chixa

Ao deparar-se com as palavras usadas nos treinos de coleta


de dados como soldado [sow’dadu] (coda medial) e jornal [joh’naw]
(coda final), haverá por parte da criança em teste a tentativa de reparar
vocalicamente a dúvida do uso da consoante l. Trata-se, então, do /l/
entendido como glide /w/. Observemos a análise das sílabas que
apresentam esse fenômeno:

• em soldado: /sol/ • em jornal: /nal/

ANC ANC

Em “soldado”, após o núcleo /o/ (vogal média baixa), há a


expectativa do predomínio do apagamento do /l/ em posição de coda
na transcrição ortográfica da palavra, resultando em “sodado” (Aluno 5, 2°
ano, 6 anos) que pode também ser entendido como apagamento de coda,
já que se forma, assim, um som homorgânico. Tal apagamento também
foi observado por Silva e Sedrins (s.d., p. 6), quando afirmam que “Já
em relação à vogal média alta [o], a pesquisa mostrou que o segmento é
favorável ao apagamento”. Crê-se, com isso, que a proximidade sonora da
vogal média alta /o/ com a vogal alta /u/ seja o maior fator causador desse

Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a


lateral L no contexto do ensino privado .69
apagamento, já que a estratégia de reparo vocalizada é a transformação
ortográfica do /l/ em /u/, ambos elementos labiais.

Porém, no caso da nossa pesquisa, comparando o aparecimento


da semivogal com o zero fonético, a primeira se mostra muito mais
presente, como em “soudado” (Aluno 10, 3° ano, 7 anos) e essa escolha
acontece mais uma vez pela enunciação da vogal na região que é aberta. O
apagamento do /l/ fica muito mais evidente quando tratamos da palavra
“multidão”, exatamente pelo contexto precedente tratar-se de uma vogal
alta, como afirmam Silva e Sedrins:

(5) Aluno 6, 2° ano, 6 anos: mu[ø]tidão

(6) Aluno 10, 3° ano, 7 anos: mu[ø]tidão

(7) Aluno 14, 4° ano, 8 anos: mu[ø]tidão

(8) Aluno 3, 5° ano, 11 anos: mu[ø]tidão

A seguir, veremos o gráfico geral do apagamento. Salientamos


que o maior número de apagamento veio de sílabas formadas pela vogal
alta u, como dito anteriormente nos exemplos. No gráfico, observaremos
como se comporta o zero fonológico levando em consideração variantes
como o tipo de treino e o tipo de coda.

Gráfico 2 - Manifestação do zero fonológico – Apagamento da lateral quanto aos tipos de treinos
ortográficos. Fonte: Elaborado pelos pesquisadores, 2017.

70. André Pedro da Silva . Yasmin Maria Macedo Torres Galindo


O gráfico acima demonstra a diferença estatística da manifestação
da variação dentro dos contextos palavra e frase. Dessa diferença, com
a menor manifestação do apagamento quando no contexto espontâneo
(frase), pode-se teorizar que as crianças usam mais de seus conhecimentos
internalizados quando se encontram à vontade.Por exemplo, não há a
repetição do vocábulo visando a corrigi-lo. O mecanismo da hipercorreção,
como se nota, não é usado. Já em nível de palavras, há a repetição em
busca do aprimoramento e, nessa tentativa de perfeição, pode-se perder
ou ganhar fonemas. Nesse caso, notamos a perda.

Ainda embasados na questão do apagamento, passemos agora à


observação da manifestação da variante zero levando em consideração sua
posição na palavra, se em coda medial ou final.

Gráfico 3 - Manifestação do zero fonológico – Apagamento da lateral quanto ao tipo de coda. Fonte:
Elaborado pelos pesquisadores, 2017.

Em palavras como “jornal”, o /l/ aparece em posição de coda


final e é abraçado pela nossa hipótese da estratégia vocalizada. Ou seja,
o/l/, uma vez que foneticamente transcrito, transforma-se em glide que
ortograficamente transformar-se-á em vogal alta u, resultando na variável
“jornau” (Aluno 9, 2° ano, 6 anos). A manifestação escrita da vogal alta u e
seu potencialmente inexistente apagamento, diante de um núcleo silábico
que contenha uma vogal baixa, dar-se-á, supõe-se, pela oposição sonora de
a – u e pela inexistência de uma consoante após seu aparecimento, como
no exemplo acima mencionado.
Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a
lateral L no contexto do ensino privado .71
Hora (2006), em pesquisa semelhante a esta aqui apresentada,
chegou à conclusão de que o fator contexto fonológico precedente seria mais
atuante na manifestação da variação do que os fatores sociais. Em suas
palavras:

Embora o apagamento da lateral em posição final


possa atingir qualquer uma das vogais que preenchem o
contexto fonológico precedente, ele será estigmatizado
entre as pessoas escolarizadas, exceto se essa vogal for
[u]. Em interior de palavra, o apagamento só ocorre
se o contexto fonológico precedente for uma vogal
posterior, incluindo a vogal [o]. O mesmo não acontece
com as demais vogais, que resultarão em itens mal-
formados (HORA, 2006, p.12).

A tendência do /l/ pós-vocálico em regiões do nordeste (cf.


HORA, 2006; SILVA; SEDRINS, s.d.) é ser vocalizado, uma vez que as
crianças em fase de aprendizagem e letramento, principalmente em séries
iniciais, tendem a adequar a escrita à sonoridade, fazendo uso da estratégia
de reparo vocalizado. A criança ainda não tem cristalizada cognitivamente
a noção linguística de que o /l/ pode representar não somente um fonema
alveolar, mas também um fonema vocal, já que /l/ em posições pós-
vocálicas, de coda medial e final, em regiões do nordeste é pronunciado
tal qual um u. Porém, essa regra não valerá para todo o território nacional,
sobretudo na região sul do Brasil, em que se detecta outra manifestação do
/l/, fato este que foi sabiamente observado por Câmara Jr.:

[...] o contraste entre /l/ e /w/ depois de vogal não


deve ir ao ponto de se articular o /l/ depois de vogal
exatamente como o /l/ antes de vogal.Salvo no extremo
sul do país, esta pronúncia indiferenciada soa anômala,
e dá a impressão de haver um ligeiro /i/ depois do
/l/ de maneira que uma palavra como cal quase se
confunde com cale ou mel com mele(CÂMARA JR.,
1973, p. 31, grifos do autor).

72. André Pedro da Silva . Yasmin Maria Macedo Torres Galindo


Outro fenômeno encontrado na análise dos dados pesquisados
foi o aparecimento da vogal /o/, majoritariamente em posição de coda, no
final de palavras, sobretudo nas séries iniciais. Acentuamos que esta tende
a desaparecer rapidamente com o avanço do letramento e da internalização
da Língua Portuguesa. Esse fenômeno se mostrou bem específico do nosso
estudo e, após a análise das suas manifestações, chegamos à conclusão de
que acontece uma alofonia3. Observemos o gráfico 4:

Gráfico 4 - Surgimento da variável /o/. Fonte: Elaborado pelos pesquisadores, 2017.

Assim, a noção de que o que deve ser transcrito é a semivogal


/w/ acaba levando as crianças a optarem pelo fonema /o/, o qual pode
também possuir a manifestação /w/, como em ovo [‘ovw]. Logo, a criança
transforma o /l/ em /w/ e opta por transcrevê-lo com o fonema /o/,
representado pela vogal “o”, como em “varao” ~ varal e “paoco” ~ palco.

Passemos agora aos Fatores Sociais.

3  Fenômeno pelo qual diferentes variantes, ou alofones, apresentam equivalência funcional, podendo
ocorrer em distribuição complementar ou variação livre. No português, um exemplo de alofonia seria a
palatalização ou africação das oclusivas dentais /t/ e /d/ antes da vogal [i] (SILVA, 2011, p. 53).

Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a


lateral L no contexto do ensino privado .73
4.2. FATORES SOCIAIS

Além dos fatores linguísticos referentes à posição do /l/ da sílaba


fonética, são os fatores culturais notadamente influentes a esta variação, tal
qual discorrida anteriormente e apoiada em questões socioconstrutivistas
(cf. MIRANDA; SENRA, 2012; SANTOS, 2008).Os fatores culturais
manifestar-se-ão quando levados em conta fatores de contexto de
aplicação do teste e de nível de alfabetização.

4.2.1. Variável Escolaridade

Sabemos que a construção cognitiva da escrita visa a esse gradual


afastamento da fala, já discutido no presente artigo. Os resultados obtidos
resultam num entendimento de que, embora profundamente ligadas, a
fala e a escrita muitas vezes não são correspondentes entre letra-som. A
grafia corresponde a um sistema análogo, mas não gêmeo da oralidade. A
criança, então, com a ajuda da escola, passa a compreender as duas formas
de manifestação da língua, não como unas, mas como dependentes. Sobre
esse amadurecimento gradual, Pedrosa e Nascimento (2014) afirmarem
que:

[...] o processo de escrita apresenta um grau considerável


de dificuldade para a criança no início de sua aquisição.
Isso porque o nosso sistema de escrita apresenta dois
tipos de organização. O primeiro deles é baseado na
proposta alfabética, em que há uma correlação entre
a fala e a escrita e o segundo, que diz respeito a uma
sistematização ortográfica, que busca anular a variação
linguística e propõe uma normatização sem tomar
por base a oralidade. Dessa forma, a criança precisa
sistematizar dois tipos de conhecimentos: um em que

74. André Pedro da Silva . Yasmin Maria Macedo Torres Galindo


pode fazer uso de conhecimentos prévios advindos da
oralidade; outro do qual só terá conhecimento a partir
da alfabetização (p. 3).

O fator escolaridade também está ligado à cultura. O tipo


de escolaridade do informante fala não somente dele, mas também do
grupo social ao qual pertence. Este trabalho se propõe, prioritariamente,
a comprovar que cada vez que uma criança ascende uma série do ensino
básico, sua escrita se afasta mais da fala, ou seja, nas séries iniciais, os
dados de escrita estão mais próximos da fala e, na medida em que se dá
o letramento, com o aumento da escolarização, tende a se afastar desta
(cf. MORAIS, 2003, 2007; MARCUSCHI, 2005; FARACO, 2012). Nessa
perspectiva, observemos o gráfico a seguir:

Gráfico 5 - Variável Escolaridade. Fonte: Elaborado pelos pesquisadores, 2017.

Idade e nível de escolarização, principalmente no eixo


social escolhido para a coleta, qual seja, o ensino particular, estão
mais interligados. As crianças do ensino fundamental I (2° a 5° ano)
demonstram uma homogeneidade quanto à idade dos informantes. Todos
seguem uma faixa etária parecida, sem grandes discrepâncias por grupo. E
o desaparecimento do uso da variável segue o fluxo esperado sem maiores
problemas de aquisição da língua padrão.

Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a


lateral L no contexto do ensino privado .75
4.2.2. Contexto de Aplicação

A escolha pela aplicação dupla dos testes que geraram os


resultados da pesquisa não foi feita de forma arbitrária.O modo como se
deu a coleta de dados teve como finalidade observar o comportamento
das crianças frente às escolhas possíveis.

O pesquisador teve como ferramenta o uso de dois tipos de


ditado: um que contava com uma atividade voltada para a completude
de frases, contendo imagens, visando à criação de um ambiente mais
espontâneo e livre para as escolhas, permitindo uma abordagem mais
lúdica; e outro que denotava mais seriedade, logo, menos espontâneo,visto
que as crianças careciam de um maior isolamento das interações com os
outros,no qual foi cobrado silêncio e concentração, alémde não contar
com o uso de figuras ou com a postura lúdica do pesquisador. Nesse
caso, utilizamos o ditado de palavras, método já largamente usado pelos
professores no processo de letramento das séries iniciais, inclusive usado
na escola pesquisada.

As palavras usadas em ambos os treinos foram as mesmas, todas


com a possibilidade da manifestação da semivocalização do /l/, divididas
em dois grupos: o primeiro com o /l/ em posição de coda medial(caldeirão,
soldado, multidão, palco, filme, culto, salsicha, fralda, talco, algodão); e o segundo
com a manifestação da posição de coda final(jornal, cristal, temporal, varal,
legal, hospital, cereal, farol, curral, anzol). Observemos a eficácia dos dois tipos
de contexto no uso da variante:

76. André Pedro da Silva . Yasmin Maria Macedo Torres Galindo


Gráfico 7 - Contexto de Aplicação – Tipo de Ditado. Fonte: Elaborado pelos pesquisadores, 2017.

Sabendo sobre os contextos abordados pelo pesquisador na


execução do trabalho, notamos que o ambiente menos monitorado, o
ditado de frases, abriu mais espaço, embora com diferença de, mais ou
menos, 5%, para o uso da variante. Sendo assim, as crianças, em sua
maioria, cometeram mais variação (apagamento ou semivocalização)
e, consequentemente, menos escolhas de acordo com a norma padrão.
Vale frisar novamente que já havia o costume do uso de ditado como
estratégia de fixação da aprendizagem linguística. Logo, acreditamos que
esse costume com o método tenha sido o responsável pela maior escolha
pela norma padrão na modalidade de contexto mais monitorada.

Após a discussão e análise dos resultados, este estudo buscou


provar todas as hipóteses aqui levantadas, afim de validar os pressupostos
teóricos debatidos à luz da literatura utilizada. Buscamos, sobretudo, a
regularidade (reliabity) e a intersubjetividade (intersubjectivity), características
de trabalhos que lidamcom o mesmo campo de coleta (cf. BAILEY;
TILLERY, 2004 apud LEAL, 2015).

Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a


lateral L no contexto do ensino privado .77
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao término desta análise, concluímos, com êxito, o que diz


respeito à nossa hipótese fundamentadora. Comprovamos, assim, que, em
séries iniciais, os dados de escrita estão mais próximos da fala e na medida
em que se dá o letramento, com o aumento da escolarização, tende a se
afastar desta (cf. MORAIS, 2003, 2007; MASSINICAGLIARI; CAGLIARI,
2008; MARCUSCHI, 2005; FARACO, 2012; ZILLES; FARACO, 2015).
Essa conclusão se mostra geral no âmbito variacionista. Ademais, foram
também discutidos, teorizados e provados os pontos seguintes:

• embora a líquida lateral seja um dos primeiros fonemas in-


ternalizados na infância no âmbito da fala, a questão da
escrita do segmento esbarra no nível de maturidade linguís-
tica: os sons produzidos pelo /l/ tendem a variar nas séries
iniciais, criando assim a forma [w]e só com o aprimoramen-
to da escolaridade, essa escrita tende a harmonizar-se com
a norma culta;

• como já constatado em pesquisas anteriores realizadas por


nosso grupo de estudos (REFALES), o contexto mais mo-
nitorado obteve maior êxito no uso da norma padrão, mas,
em contra partida, em pontos críticos, como o do apaga-
mento do /l/, obteve mais uso da variante zero, como em
mutitão ~ multidão e anso ~ anzol. Quantitativamente, fo-
ram observados 68 casos no 2° ano no ditado de palavras
(contexto mais monitorado) contra 54 casos de apagamen-
to no mesmo ano no ditado de frases (contexto menos mo-
nitorado). Acusamos o uso da hipercorreção resultante de
um contexto onde se tem mais cobrança do acerto;

78. André Pedro da Silva . Yasmin Maria Macedo Torres Galindo


• apontamos aqui o aparecimento quase inédito da variante
/o/ nas séries iniciais, intimamente relacionado com a li-
gação do som da líquida lateral em posição de coda medial
e final com a grafia do /u/, o que gera ambiente propício
para a alofonia, como nas manifestações observadas emva-
rao~ varale em paoco ~ palco;

• por fim, no contexto fonológico, provamos que a manifes-


tação da semivocalizaçãose mostra mais abundante quando
se trata de coda medial, pois, de tal maneira, a consoante se-
guinte força essa semivocalização, como em tauco ~ ta[w]
co(talco), no 2° ano; caudeirão ~ ca[w]deirão (caldeirão),
no 3° ano; pauco~ pa[w]cu(palco),no 4° ano eaugodam~
a[w]godão(algodão), no 5° ano.

Chamamos a atenção também para a importância da incorporação


desse material ao corpus da literatura que postula sobre as variações
fonológicas, primeiramente, pela inovação no trato de determinadas
variantes e a ligação delas ao aparecimento da semivocalização da líquida
lateral /l/.E, em segunda instância, a importância deste estudo, somado aos
já existentes, pois o cânone bibliográfico variacionista tende a se repetir e a
se limitar aos mesmos autores. É tamanha a importância de novas visões, de
novos autores sobre as manifestações linguísticas, especialmente quando
se trata de estudos linguísticos realizados no nordeste brasileiro. Isso
porque os falares daqui, em comparação aos do Sul, principalmente em
relação ao nível fonológico, costumam ser demasiadamente diferenciados
uns dos outros. Portanto, faz-se mais do que necessário esse debruçar-se
sobre as manifestações variacionistas nordestinas.

Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a


lateral L no contexto do ensino privado .79
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Vazamentos fonológicos na escrita escolar: a


lateral L no contexto do ensino privado .83
04.
A TRANSITIVIDADE EM LIVROS
DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS

Roberta Rocha Ribeiro (UFG)

letras.roberta@gmail.com

1. INTRODUÇÃO

A escola possui como uma de suas funções, nas aulas de


Língua Portuguesa (LP), ensinar a língua padrão, mas de modo que o
aluno possa ter acesso a variados textos, como jornalísticos, científicos,
técnicos e literários (POSSENTI, 1996). Entretanto, como ensinar a
norma padrão da língua a um falante nativo desta mesma língua? Para
responder essa pergunta, não existe uma solução definitiva, capaz de sanar
todas as dificuldades enfrentadas pelo professor de LP. Apesar disso,
entendemos que o uso linguístico não deve ser descartado em sala de aula.
É improvável, para não dizer impossível, o falante nativo “esquecer” a sua
variedade linguística, que pode ser diferente do considerado padrão.

Assim, as relações entre distintas modalidades da língua são


ferramentas do docente; é por meio delas que o aluno verá as variedades
da língua reconhecidas como possibilidades de uso. O discente, por sua
vez, aprenderá que a língua(gem) está ligada à adequação, pois momentos
distintos da vida exigem modalidades distintas e, por causa disso, nenhuma

A transitividade em livros didáticos de português .85


delas é melhor ou pior que a outra. Nessa perspectiva, as teorias linguísticas,
como a funcionalista, podem apresentar caminhos de discussão e serem
aliadas consistentes na prática de ensino, pois colaboram nas reflexões de
leitura, estrutura gramatical, texto, discurso. E isso culmina na formação
de cidadãos críticos de sua realidade.

Diante disso, este texto, que é uma revisão, ou melhor, uma


“releitura sintética” de Ribeiro (2006), tem como proposta sugerir uma
abordagem funcionalista a respeito da transitividade. Esse recorte foi
escolhido porque a transitividade, como diz Neves (1991), é um fenômeno
responsável pela organização frasal. Em uma observação preliminar, no
ensino, nota-se que esse fenômeno é apresentado sem a devida importância,
sem contemplar, por exemplo, sua funcionalidade. Os dados de análise
provêm de livros didáticos (LD) de níveis fundamental e médio.
A escolha em analisar os LD se deu devido a
um fato que Ilari (1997), Neves (2002) e Rauber (2005) ressaltam: os livros
didáticos são a principal, para não dizer a única, bibliografia utilizada por
muitos professores ao elaborarem suas aulas. Nessa linha, observa-se o
papel importante que os LD exercem no ensino brasileiro. Essa postura
do professor, em não procurar outras referências, demonstra um outro
problema da educação do Brasil: em muitos contextos, o professor ainda
não é, também, um pesquisador1.

Assim, para atingir o que se pretende, este trabalho se encontra


dividido em três seções, mais as considerações finais. Na primeira seção,
será apresentado o arcabouço funcionalista adotado. Em seguida, serão
explicitadas as visões de quatro LD utilizados em escolas de Goiânia-
GO nos anos 2000, com o intuito de mostrar como esses livros
didáticos retratam a transitividade. A última seção contém uma sugestão
funcionalista para o tratamento da transitividade nas aulas de Português
– tendo sido utilizado como texto de análise o conto O torcedor, de

1  Sobre professor pesquisador, recomendamos a leitura de Bortoni-Ricardo (2008).

86. Roberta Rocha Ribeiro


Carlos Drummond de Andrade – a partir da noção de planos discursivos e da
concepção escalar de transitividade de Hopper e Thompson (1980). E, nas
considerações finais, haverá comentários à maneira de remate.

2. PRESSUPOSTOS FUNCIONALISTAS E TRANSITIVIDADE

Este trabalho objetiva mostrar como a transitividade é vista pelos


livros didáticos e sugerir uma orientação funcionalista ao tratamento do
fenômeno. Mas, para tanto, é importante realizar uma explanação sobre os
pressupostos teóricos funcionalistas os quais sustentam o presente estudo.

Um estudo cujo arcabouço teórico seja a teoria funcionalista


tem como pressuposto a interação social, o uso da língua em
situação “real”. Ou seja, tal teoria está voltada para a competência
comunicativa dos falantes. Segundo Dik (1997), a concepção
de competência comunicativa constitui-se na língua(gem) como
instrumento de interação social, possibilitando as relações
comunicativas entre humanos 2.

A teoria funcionalista se ocupa, em sua essência analítica,


da função. Neves (1997) cita concepções de função de diferentes
estudiosos, porém adotamos aqui o que Casseb-Galvão (2005)
afirma, ao tratar a fluidez dos sistemas linguísticos.

Função diz respeito ao papel da linguagem na vida


dos indivíduos (há uma idéia de universalidade e
variabilidade), e a concepção de língua envolvida é a
de instrumento de interação social, que não existe por
si mesma, mas em virtude do uso para fim de interação

2  Neves (1994, p. 109) ressalta que, ao tratar de competência comunicativa, faz-se uma “verificação do
modo como os usuários da língua se comunicam eficientemente”.

A transitividade em livros didáticos de português .87


entre os seres humanos. E, assim: as estruturas
lingüísticas expressam funções e cada função é um
diferente modo de significação. (CASSEB-GALVÃO,
2005, p. 2).

A autora considera a língua(gem) dinâmica, de modo que sua


estrutura e função convivem em situação de instabilidade. É justamente
esse espectro que caracteriza a lingua(gem) como funcional, isto é, ela se
constitui a partir de necessidades da comunidade de fala. Essa concepção
de função é distinta das funções de Roman Jakobson (1969), linguista
participante do Círculo Linguístico de Praga. Esse autor propôs seis
funções da linguagem, as quais são muito utilizadas pelos livros didáticos
como uma importante, ou praticamente única, orientação teórica a
respeito de funções da linguagem: referencial, emotiva, conativa, fática,
metalinguística e poética. Cada função de Jakobson está relacionada a um
aspecto do ato de comunicação verbal.

Terra; Nicola; Cavallete (2002), autores do livro didático


Português para o ensino médio, abordam as funções da linguagem sob
a ótica jakobsoniana, explicitando o modelo de que um remetente envia uma
mensagem ao destinatário por meio de um código e de um contato inseridos em
um contexto.

contexto

mensagem

remetente destinatário

contato

código

(JAKOBSON, 1969, apud TERRA; NICOLA; CAVALLETE, 2002, p. 55).

88. Roberta Rocha Ribeiro


O predomínio de um dos componentes desse modelo determina
uma função. O contexto corresponde à função referencial; o remetente,
à emotiva; o destinatário, à função conativa; o contato, à função fática;
o código, à metalinguística e a mensagem, à função poética. O fato de
os livros didáticos apresentarem as funções da linguagem somente a
partir do modelo acima ocasiona, segundo Rauber (2005), uma restrição
conteudística, pois não há consideração acerca da interação verbal, na qual
falante e destinatário se comunicam de forma cooperativa. Isso reflete
no processo textual do aluno que, ao pensar no professor como único
interlocutor, possui dificuldades ao realizar referências, antecipando
informações. “Desse modo, o aluno não expõe necessariamente aquilo que
gostaria naquela situação comunicativa, mas aquilo que ele acredita que o
professor deseja ler em seu texto” (RAUBER, 2005, p. 53). Com isso, o
modelo de interação verbal de Dik (1997) e as metafunções de Halliday
(1973) podem ser importantes arcabouços teóricos para o trabalho com
o ensino de Língua Portuguesa, especialmente, para a exposição de
conteúdos conforme fazem os livros didáticos.

Dik (1997) reconhece a capacidade linguística de produzir e


interpretar expressões linguísticas que o usuário de língua natural tem.
Assim, respaldado na teoria funcionalista de estudo da língua(gem), a qual
considera espectros semânticos, sintáticos, morfológicos, fonológicos e
pragmáticos, o autor propõe um modelo de interação verbal:

A transitividade em livros didáticos de português .89


informação pragmática informação pragmática
do falante do falante

formas do falante Construtos do destinatário


antecipa
INTENÇÃO INTERPRETAÇÃO
reconstrói

expressão linguística

No modelo acima, a linguagem é vista no processo de interação


social, em que falante e ouvinte possuem informações pragmáticas as quais
são essenciais para construir a intenção do falante e a interpretação do
ouvinte no ato de fala. Esse processo não é estático, podendo haver, por
exemplo, antecipações e/ou reconstruções; ele é mediado pela expressão
linguística.

A concepção de interação verbal demonstrada no modelo em


tela pode contribuir para o ensino de Língua Portuguesa por favorecer a
observação do sistema linguístico a partir do uso. Se o aluno perceber que
ele é um ser humano que interage com o outro, expressando informações
e se posicionando do modo que desejar no discurso, a transitividade
(e a referência de pessoa) serão, para esse aluno, questões bem menos
problemáticas no momento de produção e compreensão textual. Por
exemplo: ele pode entender melhor porque certos verbos ditos transitivos
diretos aparecem como diretos no discurso cotidiano.

As metafunções de Halliday (1973) também contribuem no


escopo funcional em pauta. Ao analisar a linguagem considerando a
ideia de função, Halliday (1973) afirma que toda língua se organiza por
meio de dois aspectos: o ideacional (ou reflexivo) e o interpessoal (ou

90. Roberta Rocha Ribeiro


ativo), ressaltando, ainda, a existência de um outro, o textual. Esses três
significados configuram as chamadas metafunções, consolidadas no uso
linguístico. Ou seja, a língua está a serviço do processo de interação
humana.

A metafunção ideacional expressa o conteúdo a ser dito


em um ato de fala. O falante e o ouvinte, em situação cooperativa de
comunicação, expõem na própria língua as suas experiências acerca do que
estão dizendo. É esta metafunção que permite os interlocutores falarem
sobre o intrínseco e/ou extrínseco à sua consciência como indivíduo. A
outra metafunção, a interpessoal, demonstra o papel social da linguagem;
ela é um meio do falante participar do ato de fala. Nessa função, os
interlocutores se posicionam em relação ao que estão dizendo, pois
apresentam julgamentos, preferências, pensamentos, opiniões, sugestões
etc. E a terceira metafunção, a textual, é instrumental para as duas funções
anteriores. Ela materializa a ideacional e a interpessoal, possibilitando o
discurso. Nessa perspectiva, o texto é unidade operacional, em que a função
textual está ligada “à organização interna da frase, ao seu significado como
mensagem, tanto em si mesma como na sua relação com o contexto”
(NEVES, 1994, p. 111).

Entretanto, é preciso destacar que, para Halliday (1973), essas


três metafunções acontecem simultaneamente, sendo possível reconhecê-
las no momento de interação verbal. Rauber (2005, p. 51) utiliza um
exemplo em que mostra essa simultaneidade das funções: “Talvez você
defenda sua tese em fevereiro”. Aqui há um texto (função textual) que
expressa uma informação (função ideacional) e uma opinião, explicitada
pelo “talvez” (função interpessoal).

Assim, como a língua se organiza por meio das metafunções


ideacional e interpessoal, a frase – um constituinte da língua – também
tem um mecanismo responsável por organizá-la: a transitividade, “sistema
que dá conta basicamente da seleção de processos e relações e de seus

A transitividade em livros didáticos de português .91


participantes, e, assim, da seleção de funções sintáticas na estrutura da
frase” (NEVES, 1991, p. 59). Como a transitividade seleciona o que é
expresso em um ato de fala, nota-se, então, que ela “executa” a metafunção
ideacional, a qual é de natureza semelhante.

Com isso, percebe-se que a transitividade organiza a frase e,


consequentemente, é um mecanismo fundamental na construção do
texto, do discurso. As informações pragmáticas do falante e do ouvinte
– representadas no modelo de Dik (1997) – demonstram esse papel da
transitividade, porque é a partir das informações pragmáticas que os
falantes realizam suas escolhas em cada situação de interação.

Hopper e Thompson (1980) tratam a transitividade de maneira


escalar, a partir de dez parâmetros sintático-semânticos, de abragência
frasal, que são usados a fim de “medir” o grau de transitividade, resumidos
no quadro a seguir:

Parâmetros Transitividade alta Transitividade baixa

1. Participantes dois ou mais Um

2. Cinese ação não-ação

3. Aspecto do verbo perfectivo não-perfectivo

4. Punctualidade do verbo punctual não-punctual


5. Intencionalidade do
intencional não-intencional
sujeito
6. Polaridade da oração afirmativa Negativa

7. Modalidade da oração modo realis modo irrealis

8. Agentividade do sujeito agentivo não-agentivo

9. Afetamento do objeto afetado não-afetado

10. Individuação do objeto individuado não-individuado

92. Roberta Rocha Ribeiro


Dentre os dez parâmetros, vale destacar três que remetem mais
diretamente ao verbo: a cinese, o aspecto e a punctualidade. Segundo
Pezatti (2004), a cinese avalia se o verbo indica, ou não, ação, mudança
de lugar ou condição; o aspecto avalia o viés télico do verbo, observando
se a transferência da ação foi completa ou parcial. Já a punctualidade
“diz respeito ao inesperado de uma ação ou à ausência de uma clara fase
transicional entre início e completude” (PEZATTI, 2004, p. 192).

O interessante dessa abordagem é que a transitividade não está


restrita ao verbo, como a gramática tradicional concebe; ela está estendida
à frase e reconhece a natureza sintático-semântica do fenômeno – como
a polaridade e a modalidade da oração demonstram. Nessa perspectiva,
é notória a contribuição teórica que Hopper e Thompson (1980) podem
oferecer ao ensino de Língua Portuguesa, porque mostram nuances da
funcionalidade da transitividade.

O caráter escalar aponta que “o maior ou menor grau de


transitividade de uma sentença reflete a maneira como o falante estrutura
o seu discurso para atingir seus propósitos comunicativos” (CUNHA;
COSTA; CEZARIO, 2003, p. 38). Esse modo de cada falante organizar
o texto é de natureza pragmática, como o modelo de Dik (1997) sugere;
a estrutura textual se molda a partir de elementos centrais e periféricos:
os planos discursivos. Eles se dividem em figura e fundo. O plano de figura
corresponde aos elementos centrais, isto é, às informações principais,
mais pontuais do texto. Já o plano de fundo corresponde às informações
periféricas, extras do texto, como descrições, localizações, comentários.
Então,

O grau de transitividade de uma oração reflete


sua função discursiva característica, de modo que
orações com alta transitividade assinalam porções
centrais do texto, correspondentes à figura, enquanto
orações com baixa transitividade marcam as porções

A transitividade em livros didáticos de português .93


periféricas, correspondentes ao fundo. Há, portanto,
uma correlação forte entre a marcação gramatical dos
parâmetros da transitividade e a distinção entre figura
e fundo (CUNHA; COSTA; CEZARIO, 2003, p. 39).

Portanto, os planos discursivos revelam a disposição da


transitividade e como isso se reflete no texto. É importante destacar que
a transitividade envolve outros fatores em sua análise, como tema, sujeito,
agente, predicação. Contudo, neste estudo, desejamos propor ao ensino
de LP uma abordagem preliminar adequada (calcada nos pressupostos
funcionalistas) da transitividade, privilegiando o fundamento básico de
que o fenômeno está vinculado à organização da frase. Mas, antes de
propor essa sugestão, é essencial fazer um reconhecimento do tratamento
atribuído à transitividade nos LD de níveis fundamental e médio.

3. UMA APRECIAÇÃO DOS LIVROS DIDÁTICOS

No que concerne às concepções de interação social, uso


linguístico e competência comunicativa constam, dentre outros, os
estudos de Halliday (1973), sobre as metafunções da linguagem, e de
Dik (1997), com o modelo de interação verbal. Neves (2003) acredita
que a teoria funcionalista contribui no ensino de LP como uma opção
de fundamentação teórica para o professor e para os livros didáticos.
Vejamos:

Nessa linha, propõe-se como objeto de investigação


escolar a língua em uso, sob a consideração de que é
em interação que se usa a linguagem, que se produzem
textos. Assim, o foco é a construção do sentido do
texto, isto é, o cumprimento das funções da linguagem,
especialmente entendido que elas se organizam regidas
pela função textual. (NEVES, 2003, p. 18).

94. Roberta Rocha Ribeiro


Os livros didáticos, nesse processo, exercem um papel especial,
pois:

É sabido que o professor secundário atua numa


dependência muito grande em relação ao livro didático;
por isso o livro didático é um meio potencial de
renovação do ensino e um espelho bastante fiel da
prática corrente. (ILARI, 1997, p. 105).

Essa dependência que o professor sente em relação aos livros


didáticos a que Ilari (1997) se refere, demonstra uma realidade do ensino
brasileiro: muitos professores não buscam outras referências no momento
em que preparam suas aulas. Esse comportamento passivo por parte
do professor, mesmo não sendo o ideal, mostra a necessidade de os
livros didáticos possuírem uma sedimentação teórica adequada, a fim de
contribuir no ensino de Português. Rauber (2005) comprova esse dado,
em sua pesquisa, ao entrevistar professores da rede pública de ensino de
Barra do Garças-MT, sobre a escolha do LD Português Maia (2000). Os
professores, ao lerem a apresentação do livro, acreditavam, até então, que
a obra atendia aos princípios de metodologia interdisciplinar 3 do ensino
de LP:

• compreender os significados em lugar de adquirir co-


nhecimentos factuais;
• ser capaz de continuar aprendendo;
• preparar-se para o trabalho e o exercício da cidadania;
• ter autonomia intelectual e pensamento crítico;
• ter flexibilidade para adaptar-se a novas condições de
ocupação;
• compreender os fundamentos científico-tecnológicos

3  “Compreendemos por metodologia interdisciplinar a superação das barreiras entre os conteúdos de


gramática, leitura, literatura e produção de texto, em prol de uma perspectiva da linguagem” (RAUBER,
2005, p. 18).

A transitividade em livros didáticos de português .95


dos processos produtivos;
• inferir a teoria a partir da prática. (MAIA, 2000, p. 3).

As entrevistas feitas por Rauber (2005) demonstram a mencionada


dependência que os docentes têm em relação ao LD, no momento de
elaboração das aulas de Língua Portuguesa. Mesmo percebendo, após
quatro anos de uso, que esse LD não atendia às expectativas de sua prática
de ensino, os professores cogitaram o uso de outro livro didático no lugar
do Maia, ao invés de recorrerem às teorias linguísticas que poderiam
contribuir para o ensino.

Esta seção explicitará as visões de transitividade contidas


em quatro livros didáticos, tanto de nível médio quanto de nível
fundamental, muito utilizados em escolas de Goiânia-GO nos anos
2000. As observações feitas sobre esses livros didáticos serão pautadas
nos pressupostos funcionalistas expostos em Halliday (1973), Dik (1997),
Hopper e Thompson (1980), Neves (1991, 1994, 1997, 2002, 2003).

De acordo com Neves (2002), os livros didáticos têm sido


vistos como os principais responsáveis pelos problemas que o ensino de
gramática enfrenta. Todavia, a autora, como Ilari (1997), destaca a posição
passiva do professor: “faz parte do despreparo do professor esperar do
livro didático que em parte ele o substitua” (NEVES, 2002, p. 233). A
autora elenca problemas que podem ser identificados em LD:

Confusão de critérios, inadequação de nível, “invenção”


de regras, sobrecarga de teorização, preocupação
excessiva com definições (além da impropriedade das
definições), artificialidade de exemplos, falsidade de
noções, gratuidade ou obviedade de informações,
gratuidade de ilustrações, mau aproveitamento do texto.
(NEVES, 2002, p. 233).

96. Roberta Rocha Ribeiro


Entre os itens citados, um que chama a atenção é “inadequação
de nível”, pois, como será mostrado adiante, tanto os livros de nível
médio quanto os de nível fundamental abordam os mesmos conteúdos
de modo igual. Assim, o aluno, durante o ensino fundamental e médio,
estuda praticamente o mesmo conteúdo gramatical. Mas os problemas
encontrados nos livros didáticos escolhidos para esta apreciação não se
resumem somente na “inadequação de nível.”

No decorrer da análise, serão identificados outros itens destacados


por Neves (2002). Para começar, segue um quadro com os nomes dos
livros didáticos analisados e suas definições sobre transitividade:

Livros didáticos Conceitos de transitividade


“Transitividade verbal é a necessidade
que alguns verbos apresentam de terem
outras palavras como complemento. A
esses verbos que exigem complemento
Português: linguagens, 6ª série
chamamos de transitivos e aos que não
exigem complemento chamamos de in-
transitivos” (CEREJA e MAGALHÃES,
1998, p. 167).

“O verbo que não exige um elemento so-


bre o qual recaia a ação classifica-se como
intransitivo. Classifica-se como transitivo
Aprender e praticar gramática o verbo que exige um elemento (alguém
ou alguma coisa) sobre o qual recaia a
ação verbal. Esse elemento denomina-se
objeto” (FERREIRA, 2003, p. 353).

“Verbo intransitivo é o verbo de sentido


completo; não pede complemento [...]
Português Maia Verbo transitivo é o verbo de sentido
incompleto. Pede complemento” (MAIA,
2000, p. 304).

A transitividade em livros didáticos de português .97


“Verbos [que concentram] a informação
central comunicada pelo predicado, são
denominados verbos significativos [...] Os
verbos significativos podem ser de signi-
ficação absoluta (quando são capazes de,
sozinhos, constituir o predicado) ou de
significação relativa (quando não são ca-
Português para o ensino médio: língua,
pazes de, sozinhos, constituir o predicado,
literatura e produção de textos
exigindo um complemento). Os verbos
de significação absoluta são denominados
intransitivos e os de significação relativa,
de transitivos. Os verbos transitivos vão
exigir, portanto, termos que completem
sua significação relativa.” (TERRA; NI-
COLA; CAVALLETE, 2002, p. 195).

Cereja e Magalhães (1998), em Português: linguagens, 6ª série,


começam sua abordagem com a seção “Construindo o conceito”, na qual
uma anedota de Ziraldo foi escolhida como texto de análise. Os autores
realizam, a partir dessa anedota, questionamentos embasados nas funções
de Jakobson (1969). Na seção subsequente, retiram duas orações do
texto, a fim de diferenciar verbo de ligação de verbo significativo. E, logo
depois, retiram outras duas orações do mesmo texto para distinguir verbo
transitivo de intransitivo:

O enfermeiro passou.

O lelé escrevia uma carta. (CEREJA e MAGALHÃES, 1998, p.


166)

Os autores comentam essas duas sentenças afirmando que


o verbo escrevia é transitivo e, portanto, precisa de um complemento
“uma carta”, enquanto que o verbo passou, por não necessitar de um
complemento, é considerado intransitivo.

98. Roberta Rocha Ribeiro


Esse LD indica, em um quadro, que o contexto é quem determina
a transitividade de um verbo. Entretanto, ao mesmo tempo em que
sinaliza a funcionalidade do fenômeno – mostrando as relações de pessoa
no texto, por meio de Jakobson – não continua esse raciocínio, isolando
orações e as classificando somente. Tal postura caracteriza o que Neves
(2002, p. 233) chama de “confusão de critérios e preocupação excessiva
com definições (além da impropriedade das definições)”.

Ferreira (2003) explora a transitividade sob a mesma perspectiva:


o binômio transitivo/intransitivo:

O menino chorou.

O menino agrediu.

O menino agrediu o colega. (FERREIRA, 2003, p. 353).

O autor diz que o verbo chorar não é transitivo porque tal ação se
encontra completa. Já agredir possui o sentido incompleto da ação, logo,
o complemento é imprescindível, isto é, o verbo é transitivo, de modo a
comportar um objeto, “o colega”.

Nota-se que os exemplos são artificiais (NEVES, 2002). Todavia,


aqui, a artificialidade não acontece somente no âmbito do isolamento de
frases; há uma disposição dicotômica da explicação do conceito nas frases,
a fim de colocar para o aluno uma definição imutável de um fenômeno
que está ligado à instabilidade da língua, isto é, ligado às necessidades
comunicativas do falante.

Ferreira (2003) expõe, como Cereja e Magalhães (1998), um


quadro que sinaliza, timidamente, a necessidade de se observar o uso na
língua. Contudo, o isolamento de sentenças não sedimenta a observação.

A transitividade em livros didáticos de português .99


Português Maia, de Maia (2000), talvez seja a abordagem mais
objetiva e categórica (em se tratando de metalinguagem) entre os LD
analisados: “Verbo intransitivo é o verbo de sentido completo; não pede
complemento [...] Verbo transitivo é o verbo de sentido incompleto. Pede
complemento” (MAIA, 2000, p. 304). Aqui não há uma preocupação
em fundamentar a definição em nenhuma teoria linguística; o livro se
comporta como um “sintetizador” do que é propagado na gramática
normativa, se ocupando apenas em definir a transitividade. Isso se
configura como “preocupação excessiva com definições” (NEVES, 2002,
p. 233). Os exemplos de Português Maia também seguem a mesma linha:

Natividade chegou.

Não tenho. (MAIA, 2000, p. 304).

O autor diz que o verbo, na primeira oração (Natividade chegou.),


não requer nenhum tipo de complemento para totalizar o sentido. A
segunda (Não tenho.) traz o verbo desprovido de sentido completo, “pois
quem não tem, não tem alguma coisa” (MAIA, 2000, p. 304). Nesse exemplo,
evidencia-se a necessidade que o verbo tem de um complemento: “Não
tenho vícios” (MAIA, 2000, p. 304).

As orações, além de estarem excluídas de uma situação real de uso,


de um texto, são expostas, como diz Neves (2002), de maneira artificial,
com o intuito de ensinar regras de classificação. Essa superficialidade dos
exemplos não conduz o aluno a refletir sobre a língua e, consequentemente,
não auxilia no desenvolvimento da competência comunicativa. Por isso,
reconhecer as metafunções de Halliday (1973), o modelo de interação
verbal de Dik (1997) e a perspectiva escalar de transitividade de Hopper
e Thompson (1980) são fundamentais no embasamento teórico das aulas
de LP.

Terra; Nicola; Cavallete (2002) tratam a transitividade, em


Português para o ensino médio: língua, literatura e produção de textos,

100. Roberta Rocha Ribeiro


com uma nomenclatura aparentemente linguística (verbo significativo).
Aparentemente linguística porque, ao subdividi-lo, revelam a fórmula
classificatória das gramáticas normativas. Os autores lidam com a
concepção de verbos significativos que subdividem-se em verbos de
significação absoluta e de significação relativa.

Em seguida, correspondem, respectivamente, os verbos de


significação absoluta aos intransitivos e os verbos de significação relativa
aos transitivos. Novamente, a falta de uma fundamentação teórica
adequada prejudica o tratamento da transitividade.

Os exemplos de Português para o ensino médio: língua,


literatura e produção de textos são frases retiradas do texto O fantasma
da sede (National Geographic Brasil, n. 12, abr. 2001). Contudo, tal LD,
ao contemplar o caráter classificatório, não enfoca a transitividade
considerando sua natureza sintático-semântica.

A população mundial continua a crescer.

O ciclo hidrológico gera um fluxo constante de água.

Cada pessoa necessita de pelo menos meio metro cúbico de


água limpa por dia. (TERRA; NICOLA; CAVALLETE, 2002, p. 196)

Segundo Nicola, Terra e Cavallete (2002), a forma continua


a crescer constitui o predicado de modo absoluto, ou seja, não pede
complemento. Contudo, gera e necessita, por serem verbos de significação
relativa, precisam de um complemento para totalizar o sentido.

Os livros acima compartilham de uma mesma concepção: a


transitividade é uma propriedade do verbo, tendo como parâmetro
para a definição de “transitivo” e “intransitivo” a existência ou não de
um objeto. Os exemplos utilizados são frases isoladas, isto é, fora de
um texto, de uma situação real de uso. O que muda, nesses livros, é a

A transitividade em livros didáticos de português .101


roupagem de apresentação da temática. Terra; Nicola; Cavallete (2002),
por exemplo, usam “verbos significativos” para iniciar a exposição sobre
transitividade. Ferreira (2003) e Cereja e Magalhães (1998) também usam
essa nomenclatura.

É importante ressaltar que a transitividade nos livros didáticos


é concebida como um mecanismo sintático, mas a explicação do que seja
transitivo ou intransitivo é pautada na semântica. Esse modo de abordar o
assunto demonstra que falta uma separação metodológica mais adequada
entre sintaxe e semântica. Além disso, a simples classificação de verbos em
conceitos/frases isoladas não faz o aluno refletir no papel da transitividade,
que é o de cuidar da “organização semântica no nível frasal” (NEVES,
1991, p. 59).

Ilari (1997) reconhece que, se forem comparados os LD de vinte


anos atrás com os atuais, há uma diferença de abordagem; muitos recursos
da Linguística podem ser encontrados em materiais didáticos.

Mas é fácil perceber que essas diferenças são na maioria


das vezes o resultado de uma concessão à moda, o que
é prontamente confirmado pelo fato de que o objetivo
principal continua sendo o ensino da nomenclatura
gramatical. (ILARI, 1997, p. 105-106).

Outro problema a ser considerado é a questão da impropriedade


das definições. Com o estudo de Hopper e Thompson (1980) é possível
notar a impropriedade das definições propostas pelos livros didáticos
acerca da transitividade. Os autores analisam o fenômeno não somente
a partir do verbo, pois consideram a transitividade em nível escalar
– abrangência frasal – e tal escalaridade é “medida” a partir de dez
parâmetros sintático-semânticos. O texto, nessa perspectiva, é unidade de
análise, propiciando, ao aluno, a chance de entender como a transitividade
organiza todo o texto.

102. Roberta Rocha Ribeiro


Após essa apresentação dos livros didáticos e de seus problemas,
é notória a ausência de uma fundamentação teórica pautada no uso para
o tratamento da transitividade. Neves (1991, 2002), Ilari (1997), Hopper e
Thompson (1980), Dik (1997) e Halliday (1973) comprovam tal afirmação.
Assim, essa ausência de arcabouço teórico prejudica o desenvolvimento
satisfatório da competência comunicativa do aluno. Na próxima seção,
será esboçada uma proposta de abordagem da transitividade calcada em
uma concepção funcionalista da língua(gem).

4. O TRATAMENTO INICIAL DA TRANSITIVIDADE SOB A ÓTICA


FUNCIONALISTA: UMA SUGESTÃO AO DOCENTE DE LÍNGUA PORTUGUESA

Os livros didáticos apresentam a transitividade como propriedade


ligada somente ao verbo e trazem uma definição confusa dessa dimensão
gramatical. Essa forma de abordar o assunto, conceituando os verbos em
“transitivo” e “intransitivo” de modo dicotômico, não contempla – como
o funcionalismo reconhece – a ideia da transitividade como mecanismo
de abrangência frasal, que se atualiza no texto. Isso traz consequências
não satisfatórias ao ensino de Língua Portuguesa, pois, se o aluno não
percebe como a frase se organiza e qual a sua função no texto, como ele
melhorará sua prática textual e sua leitura? Não são esses, juntamente com
o desenvolvimento da competência comunicativa, os principais objetivos
do ensino de LP?

Nesse sentido, uma sugestão é que os livros didáticos poderiam


iniciar a análise do fenômeno com os planos discursivos, visto que estes
demonstram, de forma geral, como a transitividade organiza a frase e qual
o(s) efeito(s) disso no texto, no discurso. É pertinente dizer aqui que o
funcionalismo considera no tratamento da transitividade outros elementos,
como sujeito, agente, predicação, tema. Entretanto, como o objetivo
desta pesquisa é apontar caminhos iniciais para um estudo funcional da

A transitividade em livros didáticos de português .103


transitividade, os planos discursivos se revelam uma opção interessante ao
tratamento desse fenômeno.

Assim, com o intuito de apresentar uma sugestão para as aulas


de LP 4, foi escolhido um conto de Carlos Drummond de Andrade. A
partir do conto, serão observados os planos discursivos, com o objetivo
de analisar o comportamento da transitividade. Mas, para tanto, faz-
se necessário explicitar como os parâmetros propostos por Hopper e
Thompson (1980) estão relacionados às porções centrais e periféricas do
texto.

Cunha; Costa; Cezario (2003), com o exemplo a seguir, discutem


alguns parâmetros de Hopper e Thompson (1980) por meio dos planos
de figura e de fundo:

10) ...aí quando vinha ali no rio Tietê... num sei se você conhece...
já ouviu falar... lá de São Paulo... quando vinha lá do rio Tietê... tava
chovendo muito... a pista escorregadia... né? aí o carro perdeu o controle...
o motorista perdeu o controle... né?... aí quando ele viu que o carro ia cair
dentro do rio... aí ele... colocou o carro num... pra cima de outro carro...
que tava um casal de namorado assim... namorando... (Corpus D&G/Natal
apud CUNHA; COSTA; CEZARIO, 2003, p. 39).

Figura Fundo
...aí quando vinha ali no rio Tietê... num
sei se você conhece... já ouviu falar... lá de
São Paulo... quando vinha lá do rio Tietê...
tava chovendo muito... a pista escorrega-
dia... né?
aí o carro perdeu o controle... o motorista
perdeu o controle... né?...

4  É importante lembrar que este trabalho sugere uma abordagem do tratamento da transitividade na
sala de aula de LP, visto que, operacionalmente, há poucas possibilidades de acesso aos autores dos livros
didáticos.

104. Roberta Rocha Ribeiro


aí quando ele viu que o carro ia cair
dentro do rio...
aí ele... colocou o carro num... pra cima
de outro carro...
que tava um casal de namorado assim...
namorando...
(CUNHA; COSTA; CEZARIO, 2003, p. 40).

A divisão entre figura e fundo destaca uma oposição de grau de


transitividade (transitividade alta e transitividade baixa) entre os planos.
A cinese, o aspecto e a punctualidade explicam tal oposição: o plano
da figura é organizado a partir de verbos como “perder” e “colocar”,
que são punctuais e perfectivos. Já no plano de fundo são encontrados
“comentários descritivos e avaliativos do narrador” (CUNHA; COSTA;
CEZARIO, 2003, p. 40). Portanto, é perceptível a tendência da figura estar
em um grau mais alto de transitividade e o fundo estar em um grau mais
baixo.

Rauber (2005) propõe um ensino de Língua Portuguesa


interdisciplinar, que viabilize o diálogo entre Linguística e Literatura, ou
seja, sem a divisão “em gavetas” entre gramática, interpretação de texto,
redação e literatura. O objetivo da interdisciplinaridade é articular as áreas
referentes à Língua Portuguesa, para que o aluno desenvolva melhor
sua capacidade comunicativa, sua leitura, seu processo textual. Nessa
perspectiva, é pertinente utilizar um texto literário de um grande nome da
literatura nacional para tratar de um recorte linguístico:

O TORCEDOR

No jogo de decisão do campeonato, Eváglio torceu pelo Atlético


Mineiro, não porque fosse atleticano ou mineiro, mas porque receava
o carnaval nas ruas se o Flamengo vencesse. Visitava um amigo em
bairro distante, nenhum dos dois tem carro, e ele previa que a volta seria
problema.

A transitividade em livros didáticos de português .105


O Flamengo triunfou, e Eváglio deixou de ser atleticano para
detestar todos os clubes de futebol, que perturbam a vida urbana com
suas vitórias. Saindo em busca de táxi inexistente, acabou se metendo
num ônibus em que não cabia mais ninguém, e havia duas bandeiras
rubro-negras para cada passageiro. E não eram bandeiras pequenas nem
torcedores exaustos: estes parecia terem guardado a capacidade de grito
para depois da vitória.

Eváglio sentiu-se dentro do Maracanã, até mesmo dentro da bola


chutada por 44 pés. A bola era ele, embora ninguém reparasse naquela
esfera humana que ansiava por tornar a ser gente a caminho de casa.

Lembrando-se de que torcera pelo vencido, teve medo, para não


dizer terror. Se lessem em seu íntimo o segredo, estava perdido. Mas todos
cantavam, sambavam com alegria tão pura que ele próprio começou a
sentir um pouco de flamengo dentro de si. Era o canto? Eram braços e
pernas falando além da boca? A emanação de entusiasmo o contagiava
e transformava. Marcou com a cabeça o acompanhamento da música.
Abriu os lábios, simulando cantar. Cantou. Ao dar fé de si, disputava à
morena frenética a posse de uma bandeira. Queria enrolar-se no pano para
exteriorizar o ser partidário que pulava em suas entranhas. A moça, em
vez de ceder o troféu, abraçou-se com Eváglio e beijou-o na boca. Estava
batizado, crismado e ungido: uma vez flamengo, sempre flamengo.

O pessoal desceu na Gávea, empurrando Eváglio para descer


também e continuar a festa, mas Eváglio mora em Ipanema, e já com
o pé no estribo se lembrou. Loucura continuar flamengo a noite inteira
à base de chope, caipirinha, batucada e o mais. Segurou firme na porta,
gritou: “Eu volto, gente! Vou só trocar de roupa” e, não se sabe como,
chegou intacto ao lar, já sem compromisso clubista.(ANDRADE, 1996,
p. 22-23).

106. Roberta Rocha Ribeiro


Carlos Drummond de Andrade se consagrou como poeta, com
seu fazer poético de “aguda percepção de um intervalo entre as convenções
e a realidade: aquele hiato entre o parecer e o ser dos homens e dos fatos
que acaba virando matéria privilegiada do humor, traço constante na poesia
de Drummond” (BOSI, 2000, p. 441). Todavia, a prosa do autor também
carrega esse “traço constante”; o cotidiano representado em seus contos
também possui força poética. E em O torcedor isso não é diferente.

O conto acima, que contém um elemento nacional marcante,


o futebol, e é ambientado no Rio de Janeiro, retrata um personagem
aparentemente incomum, o Eváglio. Aparentemente incomum porque
ele é um brasileiro avesso às comemorações relacionadas ao futebol. Mas
Eváglio se mostra um “brasileiro típico”, pois não resistiu à alegria da
torcida flamenguista – mesmo, ao retornar a sua casa, “sem compromisso
clubista”. Neste momento, será apresentada, no quadro abaixo, uma
tentativa de desmembramento dos planos discursivos de O torcedor:

Figura Fundo

No jogo de decisão do campeonato,

não porque fosse atleticano ou mineiro,


Eváglio torceu pelo Atlético Mineiro, mas porque receava o carnaval nas ruas se o
Flamengo vencesse.

Visitava um amigo em bairro distante,


nenhum dos dois tem carro, e ele previa que
a volta seria problema.
O Flamengo triunfou, e Eváglio deixou
e havia duas bandeiras rubro-negras para
de ser atleticano para detestar todos
cada passageiro. E não eram bandeiras
os clubes de futebol, que perturbam a
pequenas nem torcedores exaustos: estes
vida urbana com suas vitórias. Saindo
parecia terem guardado a capacidade de
em busca de táxi inexistente, acabou se
grito para depois da vitória.
metendo num ônibus em que não cabia
mais ninguém,

A transitividade em livros didáticos de português .107


Eváglio sentiu-se dentro do Maracanã, até
mesmo dentro da bola chutada por 44 pés.
A bola era ele, embora ninguém reparasse
naquela esfera humana que ansiava por
tornar a ser gente a caminho de casa.
Lembrando-se de que torcera pelo para não dizer terror. Se lessem em seu
vencido, teve medo, íntimo o segredo, estava perdido.
Mas todos cantavam, sambavam
Era o canto? Eram braços e pernas falando
com alegria tão pura que ele próprio
além da boca? A emanação de entusiasmo o
começou a sentir um pouco de
contagiava e transformava.
flamengo dentro de si.

Marcou com a cabeça o


acompanhamento da música. Abriu os
lábios, simulando cantar. Cantou.

Queria enrolar-se no pano para exteriorizar


Ao dar fé de si, disputava à morena
o ser partidário que pulava em suas
frenética a posse de uma bandeira.
entranhas.
A moça, em vez de ceder o troféu,
abraçou-se com Eváglio e beijou-o
na boca. Estava batizado, crismado
e ungido: uma vez flamengo, sempre
flamengo.
mas Eváglio mora em Ipanema, e já com o
O pessoal desceu na Gávea,
pé no estribo se lembrou. Loucura continuar
empurrando Eváglio para descer
flamengo a noite inteira à base de chope,
também e continuar a festa,
caipirinha, batucada e o mais.

Segurou firme na porta, gritou: “Eu


volto, gente! Vou só trocar de roupa”
e, não se sabe como, chegou intacto ao
lar, já sem compromisso clubista.

No texto em questão, há o que Cunha; Costa; Cezario (2003)


atestaram no fragmento extraído do corpus D&G/Natal: uma oposição
entre figura e fundo devido ao grau de transitividade. O plano de figura,

108. Roberta Rocha Ribeiro


com verbos como torceu, triunfou, cantavam, sambavam, desceu, segurou, chegou
possui uma transitividade alta, pois esses verbos são de ação, discerníveis.
Em relação à polaridade da oração, por exemplo, a figura também atinge
transitividade alta, com orações como “O Flamengo triunfou”, “Segurou
firme na porta”. A modalidade da oração também é um parâmetro que
analisa o grau de transitividade. Um exemplo de modo realis é “chegou
intacto ao lar”.

O plano de fundo apresenta informações, descrições, comentários,


localizações que subsidiam a figura. “No jogo de decisão do campeonato,”
é uma localização do momento exposto no texto. Os verbos sentiu-se, era,
ansiava, por exemplo, são de transitividade baixa, visto que não são de ação.
A modalidade da oração, em “Se lessem em seu íntimo o segredo, estava
perdido”, é irrealis. Em “E não eram bandeiras pequenas nem torcedores
exaustos”, a polaridade da oração se configura como negativa.

A apreciação dos planos de figura e de fundo oferece ao aluno


a oportunidade de observar a organização frasal e textual de forma
panorâmica.

A constatação da funcionalidade e da importância do


que é periférico e do que é central, além da discussão
sobre como, pelo acréscimo de informes subsidiários,
consegue-se fundamentar, detalhar ou pormenorizar
um acontecimento, um procedimento, uma descrição
ou mesmo uma opinião, pode constituir interessantes
e eficazes estratégias para a já referida tarefa de análise
e reflexão sobre a língua. (OLIVEIRA; COELHO, 2003,
p. 102-103).

O reconhecimento dos planos suscitam inúmeros pensamentos


acerca da língua(gem). Podem ser exemplos disso questões relacionadas
à escolha lexical e o(s) efeito(s) de sentido que ela causa no discurso: por
que foram escolhidos os léxicos “Flamengo”, “Maracanã”, “Gávea”? Qual

A transitividade em livros didáticos de português .109


o efeito de sentido que eles causam? Como dá para saber que o conto é
ambientado no Rio de Janeiro, sendo que em nenhum momento o nome
“Rio de Janeiro” é explicitado no conto? Com isso, vê-se que os planos
discursivos fornecem subsídios para o aluno apreender não somente a
organização estrutural, mas os espectros semânticos, pragmáticos e
discursivos articulados no texto – a unidade constitutiva básica de análise.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a verificação do fenômeno transitividade sob a ótica


funcionalista da linguagem, nos livros didáticos de níveis fundamental e
médio, é possível constatar que falta uma fundamentação teórica adequada
no tratamento da transitividade. Neste trabalho, a transitividade é concebida
como um mecanismo sintático-semântico responsável pela organização
textual-discursiva. Essa noção sustentou a análise do fenômeno em livros
didáticos, na tentativa de mostrar a gama de possibilidades que a língua
oferece na construção de um texto, de um discurso. Acredita-se que
tal concepção colaborará, de modo pertinente, no desenvolvimento da
competência comunicativa do aluno. Espera-se, portanto, que este estudo
contribua para uma reflexão acerca do ensino de LP.

Propiciar ao ensino de Língua Portuguesa (ou melhor, aos


professores de LP) o acesso aos estudos de Dik (1997), Halliday (1973),
Hopper e Thompson (1980), Neves (1991, 1994, 1997, 2002, 2003) é
fundamental para uma melhoria do ensino. Mas não basta que o professor
de LP conheça essas teorias se não conseguir aplicá-las em sala de aula. Em
outras palavras, é necessário que o professor exerça a função de mediador
entre o conhecimento linguístico e o aluno.

Com relação ao livro didático, vale destacar que ele foi


considerado, por muito tempo, como “o vilão da história” (NEVES, 2002,

110. Roberta Rocha Ribeiro


p. 232). Porém, não pode ser responsabilizado, sozinho, pelos problemas
enfrentados pelo ensino de LP. A autora ressalta, ainda, a responsabilidade
do professor. Em suas palavras,

Muitos professores criticam o livro didático que têm


exatamente porque ele não serve como ‘professor’, isto
é, não pode simplesmente ser entregue aos seus alunos
para que, durante uma parte da aula, eles estejam com
ele, e disso obtenham um bom aprendizado, uma boa
compreensão dos fatos (NEVES, 2002, p. 233).


Outro aspecto a ser mencionado é o lugar da Linguística
nos cursos de Letras. Neves (1991) questiona essa assertiva. Como o
professor pode ser inseguro em relação às teorias linguísticas, sendo que,
na graduação em Letras, ele estuda Linguística? Essa é uma pergunta
de resposta complexa. Porém, como a própria autora reconhece, uma
resposta é plausível: a academia deve dialogar mais com os professores
de LP, em especial com os da rede pública. Orientá-los sobre as novas
pesquisas linguísticas e suas possíveis aplicações em sala de aula seria uma
postura adequada ao papel da universidade. Essa base institucional produz
conhecimento para contribuir socialmente.

A transitividade em livros didáticos de português .111


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Monografia (Bacharelado em Língua Portuguesa e Linguística) – Faculdade
de Letras, Universidade Federal de Goiás.

TERRA, Ernani; NICOLA, José de; CAVALLETE, Floriana Toscano.


A oração e seus termos. In: ______. Português para o ensino médio:
língua, literatura e produção de textos. São Paulo: Scipione, 2002, p. 192-
204.

114. Roberta Rocha Ribeiro


A transitividade em livros didáticos de português .115
05.
O USO DOS PRONOMES PESSOAIS
NA VARIEDADE ANGOLANA DO
PORTUGUÊS

Domingos Pedro Arsénio (Universidade de Évora, Portugal)

domingos.arsenio@ubi.pt

Paulo Osório (Universidade da Beira Interior, Portugal)

pjtrso@ubi.pt

Ana Rita Carrilho (Universidade da Beira Interior, Portugal)

arsac@ubi.pt

1. INTRODUÇÃO

Esta pesquisa faz uma abordagem sobre o uso dos pronomes


pessoais retos e oblíquos, nomeadamente através de um estudo de caso
com alunos da 9ª Classe do Complexo Escolar Samora Moisés Machel do
Município do Cazengo, Província do Cuanza Norte, Portugal.

O contacto entre o kimbundu e a língua portuguesa surge desde


o processo de colonização que Angola sofreu durante os quinhentos
anos de domínio português, apesar de ter havido inúmeras restrições
que favoreciam o português como língua de maior prestígio. Assim, são
bastante notáveis as interferências linguísticas que advêm deste contacto

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .117
entre os falantes desta região. Neste sentido, a referida investigação
apresenta uma descrição da problemática que se verifica no âmbito da
colocação dos pronomes.

Deste modo, compreende-se a afirmação de que ‘‘a realização


da língua portuguesa, em Angola, dá-se numa situação de plurilinguismo
(nível nacional) e pluri ou bilinguismo (nível individual)’’, como refere
Mingas (2000, p. 11). Neste contexto, a autora (2000, p. 11) aconselha
‘‘que todo o trabalho de investigação relativo a esta problemática deve ser
orientado a partir e em função desta realidade linguística’’. Foi,deste modo,
que direcionámos este estudo, de maneira a entendermos melhor as razões
que levam os alunos à não obedecer às normas no uso dos pronomes
no português europeu. Para tal, com base na pesquisa, constatou-se que
os alunos da 9ª Classe do Complexo Escolar têm dificuldades em usar
corretamente os pronomes pessoais retos e oblíquos, apresentando um
entendimento limitado e desfocado sobre o rigor das regras no uso correto
da língua. Diante desta realidade, colocou-se a seguinte questão: em que
medida a interferência da língua kimbundu e a falta de domínio das regras
do português europeu determinam os desvios no uso dos pronomes
pessoais retos e oblíquos?

Para responder à questão colocada, delineou-se a seguinte


hipótese de estudo: quanto maior for a influência do kimbundu e o
desconhecimento das regras impostas pelo português europeu padrão no
uso dos pronomes pessoais retos e oblíquos, maior será a probabilidade
do seu uso incorreto.

Esta questão justifica-se pelo facto de a língua ser um


instrumento de comunicação que desempenha um papel muito importante
na comunidade, apesar de apresentar uma certa heterogeneidade. Eliseu
(2008, p. 13) afirma que ‘‘tal como todas as outras línguas naturais, o
português não é uma entidade homogénea’’. Assim, o autor salienta o
facto de que ‘‘os parâmetros gramaticais de variação estão associados à

118. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


distribuição geográfica, social ou temporal da língua’’, exemplificando,
deste modo, com a diferença existente entre ‘‘o português atual do
português do século XVII e o português europeu do brasileiro’’ (2008,
p. 13). A situação referida pelo autor, julgamos estar associada ao estudo
em descrição, uma vez que faz uma abordagem sobre a diferença existente
na colocação dos pronomes clíticos entre o português falado em Angola
do português europeu. Assim, Nique (1977, p. 22) afirma que ‘‘aprender a
falar consiste na criança em interiorizar as regras do mecanismo da língua
que a rodeia’’.

2. ESTUDO DE CASO

2.1. INSTRUMENTO DE RECOLHA DE DADOS: O QUESTIONÁRIO


SOCIOLINGUÍSTICO1

O questionário sociolinguístico aplicado no âmbito do presente


estudo teve como objetivo recolher dados pertinentes para a investigação,
nomeadamente informações que permitam responder às questões
inicialmente colocadas, encontrando-se dividido em quatro partes,
com questões abertas e fechadas. As perguntas de respostas abertas
possibilitam ao inquirido entregar suas próprias palavras. Nas questões
de respostas fechadas, é solicitado ao inquirido que selecione de entre as
opções apresentadas a que considera ser a mais adequada/correta.

Na primeira parte são pedidos dados preliminares como a idade


e o género dos alunos, são solicitadas informações relativas às línguas
angolanas que conhece, qual a língua usada em situações de comunicação
informal e familiar e como é que se deu a aprendizagem da língua. No
que diz respeito à língua portuguesa, foi solicitado aos inquiridos que

1  O questionário é disponibilizado na parte final do texto.

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .119
indicassem se falavam português e se consideravam ser fácil comunicar
nessa língua com os membros das suas famílias. A última questão desta
primeira secção do questionário tinha como formulação “Gostas da língua
que falas?” etinha como objetivo averiguar a existência de uma ligação
afetiva a essa mesma língua.

No início da segunda parte, encontra-se a questão número 7, que


apresenta 27 alíneas, divididas em blocos de 2, 3 e 4 frases apresentadas
como opção. Em cada bloco, apenas uma obedece à norma padrão do
português, devendo o aluno assinalar a opção correta. No que se refere
ao conteúdo destes blocos, o primeiro relaciona-se com o emprego dos
pronomes retos ‘‘eu-tu’’ e dos oblíquos tónicos ‘‘mim-ti” precedidos
da preposição ‘‘entre’’. O segundo bloco de frases refere-se ao uso do
clítico ‘‘te’’ em frases afirmativas iniciadas pelo pronome relativo ‘‘que’’.
O terceiro conjunto de frases é dedicado à colocação do clítico ‘‘se’’
em locuções verbais; o quarto respeita ao uso do clítico ‘‘se’’ em frases
negativas; o quinto bloco de frases dedica-se ao clítico ‘‘lhe’’ em orações
subordinadas; o sexto bloco apresenta duas frases dedicadas ao uso de
pronomes retos e tónicos antecedidos pela preposição ‘‘entre’’; o sétimo
conjunto de frases refere-se à colocação do clítico ‘‘me’’ em frases nas
quais estejam presentes advérbios ou pronomes interrogativos; o oitavo
bloco de frases dedica-se ao emprego dos pronomes retos ‘‘eu- tu’’ e do
oblíquo tónico ‘‘mim’’ quando precedido pela preposição “para’’; e, por
último, o nono bloco dedica-se ao emprego dos pronomes reto ‘‘eu’’ e
oblíquo tónico ‘‘mim’’, quando sujeito de verbo no infinitivo, precedidos
pela preposição ‘‘para’’.

A terceira parte do questionário apresenta 10 frases simples e


complexas, nas quais as palavras se encontram antecedidas e precedidas de
espaços. No final de cada frase, é indicado, entre parênteses, o pronome
que deverá ser utilizado para completar as frases, sendo solicitado que o
coloquem na posição que consideram adequada.

120. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


Na última parte do questionário sociolinguístico, apresentam-
se 8 frases, seguidas da formulação que permite a substituição dos
complementos pelos pronomes clíticos: o, a,os, as, me, te, lhe, nos,
vos, lhes, se. Nesta seção era, igualmente, solicitado aos inquiridos que
completassem os espaços com os pronomes que consideravam adequados.

2.2. BREVE CARACTERIZAÇÃO DO COMPLEXO ESCOLAR

A instituição é pública e encontra-se situadana parte sul da cidade


de N’dalatando, nas imediações dos bairros Sambizanga, Kilamba-Kiaxi
e pelo Complexo Escolar Comandante Benedito, em frente à Escola de
Ciências Exatas Missão Laico-francesa; constituída por vinte e seis salas
de aulas, um anfiteatro, uma área administrativa com o gabinete do diretor,
gabinetes dos subdiretores, uma secretaria. Tem o nome de Samora Moisés
Machel, em homenagem ao presidente de Moçambique. Em termos de
funcionamento, o referido Complexo congrega uma população académica
de 2.903 pessoas. Entretanto, 2.724 são alunos, subdivididos em três
turnos, entre os quais dois para o ensino regular que comporta 1.862
alunos e um para o ensino de adulto com 862. A área administrativa tem
179 funcionários, assim distribuídos: 1 diretor, 1 subdiretor pedagógico,
1 subdiretor administrativo, 1 chefe de secretaria, 9 coordenadores
de turno, 11 auxiliares de limpeza e 147 professores, distribuídos pelas
diversas disciplinas. O edifício tem dois blocos de um piso cada. Em toda
a província, esta instituição constitui uma mais-valia, pois é a maior das
instituições escolares existentes e que tem absorvido o maior número de
alunos da 5ª, 6ª, 7ª, 8ª e 9ª Classes, respetivamente.

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .121
2. 3. AMOSTRA

Para a realização da pesquisa, tivemos como amostra todos os
alunos da 9ª Classe das mais variadas turmas organizadas de A a N do
Complexo Escolar Samora Moisés Machel do Município de Cazengo, o
que nos possibilitou fazer um estudo pormenorizado para a obtenção de
mais elementos para sustentação do tema. O referido Complexo Escolar
tem um total de treze (13) turmas da 9ª Classe, com cinquenta (50)
alunos cada, uma situação que tem provocado aos professores inúmeros
constrangimentos no exercício da profissão.

A escolha dos alunos da 9ª Classe justifica-se não só por se


apresentar como o alvo da pesquisa, mas por se tratar dos alunos que se
encontram em fase final do ciclo de ensino, isto é, a fase transitória do
primeiro para o segundo ciclo do ensino secundário, constituindo a franja
que representa o produto final dos professores daquele ciclo de ensino.

Como sabemos, para atingir níveis adequados do ensino de


uma língua não materna, carece-se de um estudo linguístico prévio e
procedimentos metodológicos sérios que facilitem ao professor conhecer
o grupo com que vai trabalhar durante o ano, no sentido de atualizar os
critérios necessários que se devem ter em conta para melhorar os níveis
de aprendizagem dos alunos. Entretanto, as dificuldades económicas que
assolam o país têm afetado o sistema de educação e este, por sua vez, tem
criado influências negativas no processo de ensino-aprendizagem. Isso
pode ser verificado no excessivo número de alunos nas salas de aulas,
falta de material didático e tantos outros elementos que não beneficiam
em nada o país que se deseja construir com base no seu capital humano.
Assim, a falta de preparação dos professores encontra respaldo nesta
situação, dando-se o mesmo problema em todos os níveis de ensino.

Dentro da população acima referida, selecionámos duas turmas,


C e D, 90 alunos da 9ª Classe, distribuídos de 14 a 25 anos, onde se

122. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


verificam 52 masculinos e 38 femininos, que corresponde a 100% deste
subgrupo populacional que, com base nas informações disponíveis, pode
ser considerada representativa de toda a população a estudar do referido
Complexo Escolar do Município de Cazengo.

Nesta pesquisa, utiliza-se a amostragem por tipicidade ou


intencional, por constituir um tipo de amostragem não probabilística
(Lakatos e Marconi, 1996).

2.4. DISCUSSÃO DE DADOS



Os dados recolhidos através do questionário anteriormente
referido foram tratados rigorosamente com o auxílio de um programa
informático ligado à estatística, denominado StatisticalPackege for the
Social Sciences (SPSS), de modo a facilitar a apresentação dos dados em
tabelas. Este recurso poderá levar-nos à elaboração de uma descrição
mais pormenorizada dos factos, permitindo compreender melhor os
dados processados. Para isso, foi necessário apresentá-los em categorias
discriminadas em género e idade e a totalidade dos indivíduos que
responderam ou não ao questionário.

Assim, em cada uma das tabelas, a primeira linha apresenta a


parte dos alunos que não respondeu à questão e a segunda e a terceira
linhas apresentam os dados dos alunos que responderam à questão de
forma adequada ou inadequada, dependendo do tipo de questão e da
atitude voluntária do indivíduo inquirido. Finalmente, a quarta linha
apresenta a totalidade dos alunos inquiridos, tendo fixada a faixa etária, o
género e a quantidade de elementos que representam a amostragem, numa
descrição de leitura vertical. Desse modo, podemos dizer antecipadamente
que, de acordo com os resultados ora recolhidos, a maior parte dos alunos
desconhece as regras do português padrão, embora seja possível encontrar

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .123
em algumas tabelas uma diferença mínima de ocorrências assertivas nas
respostas que nos foram fornecidas pelos alunos.

Casos

Válido Ausência Total

N % N % N %

Línguas angolanas que fala


90 100,0 0 0,0 90 100,0
ou entende:

Línguas Gênero
angolanas que
falam ou entente: Idade M % F % Total %
15 5 5,6 2 2,2 7 7,8
16 0 0,0 4 4,4 4 4,4
17 5 5,6 4 4,4 9 10,0
18 4 4,4 4 4,4 8 8,9
19 2 2,2 2 2,2 4 4,4
Não respondeu
20 1 1,1 1 1,1 2 2,2
21 4 4,4 1 1,1 5 5,6
22 1 1,1 1 1,1 2 2,2
23 0 0,0 1 1,1 1 1,1
24 1 1,1 0 0,0 1 1,1
Total 23 25,6 20 22,2 43 47,8
14 0 0,0 1 1,1 1 1,1
15 6 6,7 3 3,3 9 10,0
16 2 2,2 1 1,1 3 3,3
17 3 3,3 4 4,4 7 7,8
18 2 2,2 1 1,1 3 3,3
kimbundu
19 4 4,4 2 2,2 6 6,7
20 4 4,4 1 1,1 5 5,6
21 1 1,1 0 0,0 1 1,1
22 1 1,1 2 2,2 3 3,3
23 3 3,3 2 2,2 5 5,6

124. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho



24 1 1,11 0 0,0 1 1,1
kimbundu
25 1 1,11 1 1,1 2 2,2
Total 28 31,1 18 20,0 46 51,1
kikongo 14 1 1,1 1 1,1
Total 1 1,1 1,1 1,1
14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
15 11 12,2 5 5,6 16 17,8
16 2 2,2 5 5,6 7 7,8
17 8 8,9 8 8,9 16 17,8
18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
19 6 6,7 4 4,4 10 11,1
Total
20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
21 5 5,6 1 1,1 6 6,7
22 2 2,2 3 3,3 5 5,6
23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
24 2 2,2 0 0,0 2 2,2
25 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total Geral 52 57,8 38 42,2 90 100

Tabela 1 - Resposta dos inquiridos sobre as línguas angolanas que falam ou entendem. Sumário de
processamento de caso

Relativamente à primeira questão colocada sobre as Línguas


angolanas que fala ou entende, cujos dados são apresentados na tabela 1,
constatou-se que, dos 90 alunos selecionados, 46, que equivalem a 51%,
falam kimbundu, entre os quais 28 do género masculino e 18 do género
feminino. Registou-se que 1 aluno, que equivale a 1%, fala kikongo, e que
43 alunos, que equivalem a 48%,dos quais 23 do género masculino e 20 do
género feminino, não responderam. Nas restantes línguas registou-se 0%
de ocorrências, pelo facto de não ter havido nenhum aluno que se tenha
identificado como falante da língua. Deste modo, o kimbundudestaca-se,
uma vez que quase todo o território da província fala kimbundu, apesar de
haver entre os dez municípios dois dos quais falam uma variante derivada
do contacto entre o kimbundu e o kikongo (dihungo).

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .125
Esta variante linguística não é estudada, por isso não nos é possível
fazer qualquer descrição se existe ou não uma influência notável na língua
portuguesa, como podemos ver nas proporcionadas pelo kimbundu que
tem um elevado número dos seus vocábulos em dicionários da língua
portuguesa. O kikongo é uma língua que partilha quase o mesmo espaço
geográfico com o kimbundu pela proximidade entre as duas províncias,
mas as evidências são marcadas pelo facto de a maior parte dos alunos
serem falantes do kimbundu, beneficiando, deste modo, a presunção de
que parte das influências é oriunda do contacto entre o kimbundu e o
português. Os alunos que não responderam despertam um certo ceticismo,
pois não nos facilita a análise pelo simples facto de não corrermos o risco
de cometer algum tipo de incorreção sobre a situação, mas o certo é que
a maior parte dos alunos desta faixa etária já não têm o kimbundu como
língua materna, mesmo que ainda seja falada pelos seus progenitores.
Todavia, pode dar-se o caso de os alunos que não responderam à questão
não se reverem nela. Uma situação quase natural, já que, até ao momento,
ainda constitui uma grande celeuma falar kimbundu em estabelecimentos
administrativos, comerciais e em instituições escolares, de acordo com os
valores culturais que ela encerra.

Casos

Válido Ausência Total

N % N % N %

Fala Português? 90 100,0 0 0,0 90 100,0

Gênero
Fala Português? Idade M % F % Total %
Não respondeu 15 0% 0% 1 1 1 1
Total % 0% 1 1 1 1
Sim 14 1 1,1 1 1,1 2 2,2

126. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


15 11 12,2 4 4,4 9 16,7
16 2 2,2 5 5,6 7 7,8
17 8 8,9 8 8,9 16 17,8
18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
19 6 6,7 4 4,4 10 11,1
Sim 20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
21 5 5,6 1 1,1 6 6,7
22 2 2,2 3 3,3 5 5,6
23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
24 2 2,22 0 0,0 2 2,2
25 1 1,11 1 1,1 2 2,2
Total 52 57,8 37 41,1 89 99
14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
15 11 12,2 5 5,6 16 17,8
16 2 2,2 5 5,6 7 7,8
17 8 8,9 8 8,9 16 17,8
18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
19 6 6,7 4 4,4 10 11,1
20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
21 5 5,6 1 1,1 6 6,7
22 2 2,2 3 3,3 5 5,6
23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
24 2 2,2 0 0,0 2 2,2
25 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total Geral 52 57,8 38 42,2 90 100

Tabela 2 - Resposta dos inquiridos sobre se falam português. Sumário de processamento de caso

Na segunda questão, colocaram-se duas alternativas marcadas


pelo Sim ou Não e perguntou-se aos alunos se falam português. As
respostas obtidas são apresentadas na tabela 2, através das quais podemos
perceber que, dos 90 alunos inquiridos, 89, que correspondem a 99%, dos
quais 52 do género masculino e 37 do género feminino responderam Sim,
neste contexto, o Não correspondeu a 0%. E de acordo com a estatística
1 aluna, que equivale a 1%, não respondeu à questão. A resposta dos

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .127
alunos expõe o facto de todos falarem o português sem distinção, o que,
numa análise, e tendo em conta a tabela anterior, permite verificar que há
presença de bilinguismo entre os alunos do Complexo Escolar Samora
Moisés. O português, por ser a língua mais utilizada na comunicação em
todos os níveis, de acordo com o seu estatuto, tem a probabilidade de
receber maior influência das outras línguas, porque o seu uso é imperativo,
obedecendo às regras ou não. Neste caso, o grau percentual dos alunos
que falam português vai ao encontro das nossas expectativas.

Casos

Válido Ausência Total

N % N % N %

Com que língua se


90 100,0 0 0,0 90 100,0
comunica em casa?

Gênero
Com que língua
se comunica em
casa? Idade M % F % Total %
Não respondeu 15 0 0 1 1 1
Total 0 0 1 1 1
14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
15 11 12,2 4 4,4 15 16,7
16 2 2,2 5 5,6 7 7,8
17 8 8,9 8 8,9 16 17,8
18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
19 6 6,7 4 4,4 10 11,1
Português
20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
21 5 5,6 1 1,1 6 6,7
22 2 2,2 3 3,3 5 5,6
23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
24 2 2,2 0 0,0 2 2,2
25 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total 52 57,8 37 41,1 89 99

128. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
15 11 12,2 5 5,6 16 17,8
16 2 2,2 5 5,6 7 7,8
17 8 8,9 8 8,9 16 17,8
18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
19 6 6,7 4 4,4 10 11,1
Total
20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
21 5 5,6 1 1,1 6 6,7
22 2 2,2 3 3,3 5 5,6
23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
24 2 2,2 0 0,0 2 2,2
25 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total Geral 52 57,8 38 42,2 90 100

Tabela 3 - Resposta dos inquiridos sobre a língua que usa em casa. Sumário de processamento de caso.

Na tabela 3, são apresentados os dados recolhidos relativamente


à questão Com que línguas se comunicam em casa?, através dos quais, podemos
perceber que a maior parte dos alunos fala o português nas suas residências,
pois, dos 90 alunos inquiridos, 89, que corresponde a 99%, dos quais 52
do género masculino e 37 do género feminino, comunicam em língua
portuguesa e apenas 1 aluno do género feminino, que corresponde a
1%, não respondeu à questão. Contudo, a língua queé mais utilizada na
comunicação entre os variados povos da cidade de capital da província
do Cuanza Norte é, naturalmente, o português, mas uma língua falada
com uma fusão entre o próprio português e a língua materna da maior
parte das famílias, tendo em atenção os baixos níveis de escolaridade que
caraterizam os povos daquela região de Angola.

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .129
Casos

Válido Ausência Total

N % N % N %

Conforme a sua escolha,


com quem, onde e como 90 100,0 0 0,0 90 100,0
aprendeu a falar a língua?

Conforme a sua Gênero


escolha, com
quem, onde e
como aprendeu a
falar a língua? Idade M % F % Total %
15 0 0,0 1 1,1 1 1,1
19 1 1,1 0 0,0 1 1,1
Não respondeu 21 1 1,1 0 0,0 1 1,1
22 0 0,0 1 1,1 1 1,1
24 1 1,1 0 0,0 1 1,1
Total 3 2 5 5,6
14 1 1,1 1 1,1 2 2,2

15 11 12,2 4 4,4 15 16,7


16 2 2,2 5 5,6 7 7,8
17 8 8,9 8 8,9 16 17,8
18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
Com os pais
19 5 5,6 4 4,4 9 10,0
Idade
20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
21 4 4,4 1 1,1 5 5,6
22 2 2,2 2 2,2 4 4,4
23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
24 1 1,1 0 0,0 1 1,1
25 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total 49 54,4 36 40,0 85 94,4
14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total 15 11 12,2 5 5,6 16 17,8
16 2 2,2 5 5,6 7 7,8

130. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


17 8 8,9 8 8,9 16 17,8
18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
19 6 6,7 4 4,4 10 11,1
20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
Total 21 5 5,6 1 1,1 6 6,7
22 2 2,2 3 3,3 5 5,6
23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
24 2 2,2 0 0,0 2 2,2
25 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total Geral 52 57,8 38 42,2 90 100

Tabela 4 - Resposta dos inquiridos sobre com quem e como aprendeu a língua. Sumário de processamento
de caso

Na questão seguinte da tabela 4 pretendia-se aferirCom quem, onde


e como aprendeu a falar a língua, verificou-se que, dos 90 alunos inquiridos,
85, que corresponde a 94,4%, dos quais 49 do género masculino e 36
do género feminino, aprenderam a falar a língua com os pais e 5 alunos,
que corresponde 5,6%, dos quais 3 do género masculino e 2 do género
feminino não responderam. Apesar de tudo, nenhum dos inquiridos
indicou ter aprendido a língua em alguma instituição escolar o que justifica,
sobretudo, os equívocos na utilização das regras gramaticais.

Esta questão vem auxiliar-nos na concretização da ideia de que os


falantes do português no interior de Angola falam a língua sem o domínio
das suas normativas, um facto confirmado nas respostas recolhidas que
aferem terem apreendido a língua no seio familiar, uma vez que as famílias
da região são caraterizadas por um baixo nível de escolaridade. Assim, é
imperioso que haja uma política linguística séria para facilitar a correção
de vários projetos fracassados ligados ao ensino da língua portuguesa em
zonas em que o convívio entre o português e a língua local é muito mais
acentuado.

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .131
Casos

Válido Ausência Total

N % N % N %

Tem sido fácil falar o


português com a sua 90 100,0 0 0,0% 90 100,0
família?

Tem sido fácil Gênero


falar o português
com a sua
família? Idade M % F % Total %
Não respondeu 15 1 1,1 1 1,1
Total 1 1,1 1 1,1
Sim 14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
15 11 12,2 4 4,4 15 16,7
16 1 1,1 5 5,6 5 6,7
17 8 8,9 8 8,9 16 17,8
18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
19 6 6,7 3 3,3 9 10,0
20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
21 4 4,4 1 1,1 5 5,6
22 2 2,2 3 3,3 5 5,6
23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
24 1 1,1 0 0,0 1 1,1
25 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total 49 54,4 36 40,0 85 94,4
Não 16 1 1,1 0 0,0 1 1,1
19 0 0,0 1 1,1 1 1,1
21 1 1,1 0 0,0 1 1,1
24 1 1,1 0 1,1 1 1,1
Total 3 3,3 1 1,1 4 4,4
Total 14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
15 11 12,2 5 5,6 16 17,8
16 2 2,2 5 5,6 7 7,8
17 8 8,9 8 8,9 16 17,8

132. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
19 6 6,7 4 4,4 10 11,1
20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
21 5 5,6 1 1,1 6 6,7
Total
22 2 2,2 3 3,3 5 5,6
23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
24 2 2,2 0 0,0 2 2,2
25 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total Geral 52 57,8 38 42,2 90 100

Tabela 5 - Resposta dos inquiridos sobre se tem sido fácil falar em português com a família. Sumário de
processamento de caso

Na tabela 5, são apresentados os dados referentes à questão


Temsido fácil falar o português com a sua família. De acordo com as respostas
dos 90 alunos, 85, correspondentes a 94,4%, dos quais 49 masculinos
e 36 femininosresponderam Sim, e 4 alunos, correspondentes a 4,4%,
3 masculinos e 1 feminino responderam Não. Enquanto 1 aluno, que
corresponde a 1,1%, do género feminino, não respondeu à questão. Neste
caso, podemos dizer que o facto de os alunos inquiridos não encontrarem
dificuldades em comunicar com a família já é um bom sinal. Mas que
português é falado? Será que obedece à norma europeia ou apenas é
uma língua falada com o objetivo de comunicar? Estas e outras questões,
muitas vezes, não encontram respostas nos alunos, pelo nível acentuado
de insipiência das normativas da língua. Apesar de o objetivo primordial da
língua ser a comunicação, regista-se, em vários contextos comunicacionais,
a situação de amálgama na língua em quase todas as comunidades da
província, sendo assim, pelos motivos já referidos de falta de instrução
escolar das famílias. Os 4 alunos que responderam não, embora seja um
número ínfimo para poder contrariar o posicionamento da maioria,
justificam-se em conformidade com o elevado índice de analfabetismo
da maior parte das famílias que têm filhos a frequentar aquela instituição
escolar estatal.

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .133
Casos

Válido Ausência Total

N % N % N %

Assinale com um x a
90 100,0 0 0,0 90 100,0
alternativa correta.

Assinale com um Gênero


x a alternativa
correta. Idade M % F % Total %
Não assinalou 15 0 0,0 1 1,1 1 1,1
16 2 2,2 4 4,4 6 6,7
17 2 2,2 2 2,2 4 4,4
21 2 2,2 0 0,0 2 2,2
22 1 1,1 2 2,2 3 3,3
23 0 0,0 1 1,1 1 1,1
Total 7 7,8 10 11,1 17 18,9
Correta 15 1 1,1 0 0,0 1 1,1
17 1 1,1 0 0,0 1 1,1
Total 2 2,2 0 0,0 2 2,2
Incorreta 14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
15 10 11,1 4 4,4 14 15,6
16 0 0,0 1 1,1 1 1,1
17 5 5,6 6 6,7 11 12,2
18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
19 6 6,7 4 4,4 10 11,1
20 5 5,6 2 2,2 5 7,8
21 3 3,3 1 1,1 4 4,4
22 1 1,1 1 1,1 2 2,2
23 3 3,3 2 2,2 5 5,6
24 2 2,2 0 0,0 2 2,2
25 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total 43 47,8 28 31,1 71 78,9
Total 14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
15 11 12,2 5 5,6 16 17,8
16 2 2,2 5 5,6 7 7,8

134. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


17 8 8,9 8 8,9 16 17,8
18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
19 6 6,7 4 4,4 10 11,1
20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
Total 21 5 5,6 1 1,1 6 6,7
22 2 2,2 3 3,3 5 5,6
23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
24 2 2,2 0 0,0 2 2,2
25 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total Geral 52 57,8 38 42,2 90 100

Tabela 6 - Observação do teste sobre a sinalização da alternativa correta, em frases com pronomes retos
e tónicos antecedidos pela preposição ‘‘entre’’. Sumário de processamento de caso

Na tabela 6 são apresentados os resultados obtidos quando foi


solicitado aos alunos que assinalassem com um X a alternativa correta
nas seguintes frases, a) Tudo estava bem entre tu e eu e b) Tudo estava bem entre
ti e mim,com objetivo de verificar se eles detinham qualquer domínio do
uso de pronomes pessoais retos e os oblíquos do tipo tónico. Assim,
de acordo com as respostas obtidas, observamos que, dos 90 alunos
que constitui a amostra, apenas 2 alunos, que correspondem a 2,2%,
assinalaram corretamente, dos quais 2 masculinos, enquanto 71 alunos,
que correspondem a 78,9%, assinalaram incorretamente, entre os quais
43 do género masculino e 28 do género feminino, não tendo respondido
à questão um total de 17 alunos, correspondentes a 18,9%, entre os quais
10 masculinos e 7 femininos. Uma situação que, certamente, encontra
influência na linguagem coloquial. Assim sendo, consideramos os
resultados muito negativos do ponto de vista da análise, contudo fornecem
elementos de força para o problema ora levantado. Aqui, importa realçar
que, durante o ano letivo, o aluno aprende e pratica usos linguísticos
padronizados (Mira Mateus e Cardeira, 2007, p. 27). Outra questão que
estaria na base é o facto de os alunos desconhecerem as regras do uso dos

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .135
pronomes quer dos retos quer dos oblíquos nas suas mais variadas formas
de uso, pois constitui norma os pronomes retos da primeira e segunda
pessoas do singular não necessitarem de uma preposição para o seu uso e
normalmente é na ‘‘linguagem coloquial que predomina a construção com
as formas retas’’ (Cunha e Cintra, 2014, p. 381).

Aforma em que o pronome é utilizado, como referimos,


encontra respaldo no linguajar comum e também justificado pela falta de
conhecimento mais aprofundado sobre o uso dos pronomes retos a par
dos oblíquos. Assim, Cunha e Cintra afirmam que a preposição ‘‘entre’’ na
‘‘tradição gramatical aconselha o emprego das formas oblíquas tónicas”
(2014, p. 381). Concretamente, podemos dizer que constitui desvio
da norma o uso da forma entre ‘‘eu’’ e ‘‘tu’’, tendo em atenção o grau
percentual da tabela 6 que demonstra o nível de dificuldades que os alunos
têm no uso destes elementos frásicos. Com base neste facto, a escola
teria de desempenhar o seu verdadeiro papel de auxiliar os alunos em
ultrapassar as dificuldades que têm vindo a trazer das classes anteriores,
mas todas as medidas que são tomadas são eivadas pelas dificuldades
que o sistema de educação vive e que nem sempre conseguem colocar à
disposição dos alunos instrumentos capazes para a potenciação de saberes
fora de aulas, porque não se concebe o facto de uma instituição escolar
com mais de vinte salas de aulas não ter sequer uma biblioteca para servir
pelo menos o corpo docente. A carência de materiais e as dificuldades que
os professores passam não facilitam, certamente, a aquisição de materiais
didáticos para o suporte da sua profissão.

Contudo, é necessário que haja políticas que estejam viradas


para o desenvolvimento do setor da educação em todos os domínios para
fazer com que tenhamos no futuro alunos capazes de, pelo menos, poder
identificar as incorreções que acontecem diariamente no exercício da
língua.

136. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


Casos

Válido Ausência Total

N % N % N %

Assinale com um x a
90 100,0% 0 0,0% 90 100,0%
alternativa correta.

Gênero
Assinale com um
x a alternativa
correta Idade M % F % Total %
Não assinalou 15 1 1,1 0 0,0 1 1,1
25 0 0,0 1 1,1 1 1,1
Total 1 1,1 1, 1,1 2 2
Correta 15 4 4,4 2 2,2 6 6,7
16 2 2,2 2 2,2 4 4,4
17 3 3,3 2 2,2 5 5,6
18 4 4,4 1 1,1 5 5,6
19 0 0,0 1 1,1 1 1,1
20 1 1,1 1 1,1 2 2,2
21 0 0,0 1 1,1 1 1,1
23 0 0,0 1 1,1 1 1,1
Total 14 15,6 11 12,2 25 28
Incorreta 14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
15 6 6,7 3 3,3 9 10,0
16 0 0,0 3 3,3 3 3,3
17 5 5,6 6 6,7 11 12,2
18 2 2,2 4 4,4 6 6,7
19 6 6,7 3 3,3 9 10,0
20 4 4,4 1 1,1 5 5,6
21 5 5,6 0 0,0 5 5,6
22 2 2,2 2 2,2 4 4,4
23 3 3,3 2 2,2 5 5,6
24 2 2,2 0 0,0 2 2,2
25 1 1,1 0 0,0 1 1,1
Total 37 41,1 25 27,8 62 69
Total 14 1 1,1 1 1,1 2 2,2

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .137
15 11 12,2 5 5,6 16 17,8
16 2 2,2 5 5,6 7 7,8
17 8 8,9 8 8,9 16 17,8
18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
19 6 6,7 4 4,4 10 11,1
Total 20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
21 5 5,6 1 1,1 6 6,7
22 2 2,2 3 3,3 5 5,6
23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
24 2 2,2 0 0,0 2 2,2
25 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total Geral 52 57,8 38 42,2 90 100

Tabela 7 - Observação do teste sobre a sinalização da alternativa correta, nas orações com pronomes ou
advérbios interrogativos. Sumário de processamento de caso

Podemos notar que se num caso o grau percentual tende a


diminuir para a positiva, noutros casos tende a aumentar pela negativa, em
números muito superiores. Então, esta desproporcionalidade constitui, em
certa medida, o nosso ponto de destaque.

A tabela 7 diz respeito aos resultados obtidos no bloco de


frasest) Quando disseste-me que estavas em casa? u) Quando me disseste que estavas
em casa? v) Quando disseste que me estavas em casa? Dos 90 alunos que foram
submetidos a responder o questionário, 25 alunos, que correspondem
a 28%, assinalaram corretamente, entre os quais 14 masculinos e 11
femininos, enquanto 62 alunos, que correspondem a 70%, assinalaram
incorretamente, entre os quais 37 masculinos e 25 femininos. Entretanto,
2 alunos, correspondente a 2%, distribuídos entre 1 masculino e
1 feminino, não responderam. Uma vez que a diferença do valor
percentual é significativo, podemos considerar que este facto se deve,
naturalmente, à falta de conhecimento dos instrumentos normativos,
apesar de haver outros elementos norteados pelas influências advindas
das línguas que coabitam com o português naquele espaço do território

138. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


do Cuanza Norte, pois, não se regista, igualmente, uma certa visibilidade
no uso da próclise em orações interrogativas e exclamativas. Tudo isto
é influenciado pelo desconhecimento destas regras, resultante do facto
de a aprendizagem da língua não ter encontrado na escola uma medida
à altura que introduzisse ao aluno ferramentas necessárias. Tal como
afirma Raposo, ‘‘a colocação proclítica dos pronomes átonos encontra-se
regularmente nas orações interrogativas introduzidas pelos pronomes e
advérbios interrogativos’’(Raposo, 2013, p. 2270) e estes elementos são,
como é óbvio, o ‘‘que, quem, onde, quanto, como, quando, porque e nas
orações introduzidas por que, quem, como, quanto’’. Para a resolução do
problema, a escola deve atender às normativas do português padrão, pois
notabiliza-se um certo grau de dificuldade, pelo facto de,muitas vezes, estes
instrumentos não serem de fácil acesso para a maioria das instituições que
se encontram limitadas na capacidade de análise e pela falta de recursos
didáticos.

Casos

Válido Ausência Total

N % N % N %

Coloque o pronome entre


90 100,0 0 0,0 90 100,0
parênteses na posição adequada

Coloque o Gênero
pronome entre
parênteses
na posição
adequada. Idade M % F % Total %
15 2 2,2 0 0,0 2 2,2
16 1 1,1 1 1,1 2 2,2
17 2 2,2 1 1,1 3 3,3
Não respondeu
18 1 1,1 0 0,0 1 1,1
22 1 1,1 0 0,0 1 1,1
23 1 1,1 0 0,0 1 1,1

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .139
Não respondeu 25 1 1,1 0 0,0 1 1,1
Total 9 10,0 2 2,2 11 12,0
14 0 0,0 1 1,1 1 1,1
15 4 4,4 3 3,3 7 7,8
16 1 1,1 3 3,3 4 4,4
17 1 1,1 6 6,7 7 7,8
18 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Adequada 19 1 1,1 1 1,1 2 2,2
20 1 1,1 0 0,0 1 1,1
21 0 0,0 1 1,1 1 1,1
22 0 0,0 1 1,1 1 1,1
23 1 1,1 1 1,1 2 2,2
24 1 1,1 0 0,0 1 1,1
Total 11 12,2 18 20,0 29 32,0
14 1 1,1 0 0,0 1 1,1
15 5 5,6 2 2,2 7 7,8
16 0 0,0 1 1,1 1 1,1
17 5 5,6 1 1,1 6 6,7
18 4 4,4 4 4,4 8 8,9
19 5 5,6 3 3,3 8 8,9
Inadequada
20 4 4,4 2 2,2 6 6,7
21 5 5,6 0 0,0 5 5,6
22 1 1,1 2 2,2 3 3,3
23 1 1,1 2 2,2 3 3,3
24 1 1,1 0 0,0 1 1,1
25 0 0,0 1 1,1 1 1,1
Total 32 35,6 18 20,0 50 56,0
14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
15 11 12,2 5 5,6 16 17,8
16 2 2,2 5 5,6 7 7,8
17 8 8,9 8 8,9 16 17,8
Total 18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
19 6 6,7 4 4,4 10 11,1
20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
21 5 5,6 1 1,1 6 6,7
22 2 2,2 3 3,3 5 5,6

140. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
Total 24 2 2,2 0 0,0 2 2,2
25 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total Geral 52 57,8 38 42,2 90 100

Tabela 8 - Observação do teste sobre a colocação adequada do clítico ‘‘me’’ na frase afirmativa. Sumário
de processamento de caso

Para identificar o facto levantado de que os alunos, muitas vezes,


usam os pronomes de forma desadequada, usando a próclise em frases
em que a colocação obedecia à ênclise, e vice-versa, solicitou-se, na
terceira parte do questionário, o seguinte: Coloque o pronome entre parênteses
na posição adequada. Na tabela 8 são apresentados os dados recolhidos no
enunciado, ___Começas_____a____complicar____. (me). Dos 90 alunos que
constituem a amostra selecionada, 29 alunos, que correspondem a 32%,
colocaram na posição adequada, dos quais 11 do género masculino e 18
do género feminino, enquanto 50 alunos, que correspondem a 56%, não
colocaram na posição adequada, entre os quais 32 do género masculino e
18 do género feminino. E consequentemente, 11 alunos, correspondentes
a 12%, entre os quais 9 masculinos e 2 femininos, não responderam à
questão. Do ponto de vista da análise, estes dados satisfazem os objetivos
da pesquisa, pois demonstram que os alunos confirmam a evidência
que identifica o pretexto apresentado, conforme se pode observar nos
resultados que refletem a tabela em descrição. O baixo índice percentual
é uma amostra de que há registros que determinam o incumprimento dos
requisitos necessários para o uso da próclise ou da ênclise respetivamente.
Deste modo, e para a situação que estamos a referir, a anteposição dos
pronomes átonos sem a obediência das regras relaciona-se com dois fatores
importantes da transformação linguística, pois, Cunha e Cintra(2014,
pp. 226-227) afirmam que ‘‘a colocação dos pronomes átonos no uso
coloquial do Brasil tende à próclise. Parece suceder o mesmo no português

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .141
falado em África’’. Esta afirmação é bastante concreta, embora se trate
de um desvio aos aspetos aflorados pela norma que estabelece, portanto,
as circunstâncias em que é usada a próclise, tanto que os alunos, nestas
circunstâncias, trocaram a ênclise pela próclise. Neste sentido, Raposo
(2013, p. 2280) traz à tona uma abordagem muito importante para dirimir
a problemática que poderia estar na base da relatividade na colocação dos
pronomes clíticos em orações infinitas preposicionadas, quando afirma
que ‘‘a variação entre a ênclise e a próclise em infinitas preposicionadas é
independente da distinção entre orações infinitas completivas e infinitas
adverbias e quase abrange a generalidade das preposições’’. Assim, o autor
salienta que ‘‘ficam fora do padrão de variação as preposições ‘‘a’’ e ‘‘com’’,
que se associam sempre à ênclise’’.

Casos

Válido Ausência Total

N % N % N %

Preencha os espaços vazios,


utilizando os seguintes 90 100,0 0 0,0 90 100,0
pronomes clíticos

Preencha os Gênero
espaços vazios,
utilizando
os seguintes
pronomes
clíticos. Idade M % F % Total %
16 1 1,1 1 1,1 2 2,2
17 1 1,1 0 0,0 1 1,1
18 1 1,1 0 0,0 1 1,1
Não preencheu
20 0 0,0 1 1,1 1 1,1
21 2 2,2 0 0,0 2 2,2
22 1 1,1 1 1,1 2 2,2

142. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


23 1 1,1 0 0,0 1 1,1
Não preencheu 24 1 1,1 0 0,0 1 1,1
25 1 1,1 0 0,0 1 1,1
Total 9 10 3 3,3 12 13,3
16 0 0.0 1 1,1 1 1,1
Adequado
19 1 1,1 0 0,0 1 1,1
Total 1 1,1 1 2 2,2
14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
15 11 12,2 5 5,6 16 17,8
16 1 1,1 3 3,3 4 4,4
17 7 7,8 8 8,9 15 16,7
18 5 5,6 5 5,6 10 11,1
19 5 5,6 4 4,4 9 10,0
Inadequado
20 5 5,6 1 1,1 6 6,7
21 3 3,3 1 1,1 4 4,4
22 1 1,1 3 3,3 4 4,4
23 2 2,2 3 3,3 5 5,6
24 1 1,1 0 0,0 1 1,1
25 0 0,0 1 1,1 1 1,1
Total 42 46,7 34 38,9 76 85,6
14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
15 11 12,2 5 5,6 16 17,8
16 2 2,2 5 5,6 7 7,8
17 8 8,9 8 8,9 16 17,8
18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
19 6 6,7 4 4,4 10 11,1
Total
20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
21 5 5,6 1 1,1 6 6,7
22 2 2,2 3 3,3 5 5,6
23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
24 2 2,2 0 0,0 2 2,2
25 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total Geral 52 57,8 38 42,2 90 100

Tabela 9 - Observação do teste sobre a pronominalização da frase ‘‘Certificamos do facto’’. Sumário de


processamento de caso

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .143
Na tabela 9, apresentam-se os dados respeitantes à primeira
alínea na sequência f1) Certificamos do fato. Certificamo___do fato. Para a
sua resolução adequada, os alunos viam-se na obrigação de conhecer
o que a norma dita para o processo da pronominalização, utilizando o
pronome clítico ‘‘o’’ na forma mais canónica do pronome do latim ‘‘lo’’.
A ausência destes pressupostos fez com que,dos 90 alunos participantes
do inquérito, apenas 2 alunos, que correspondem a 2,2%, preenchessem
adequadamente, em que 1 é masculino e 1 feminino, enquanto 76 alunos,
que equivale 85,6%, não preencheram adequadamente, dos quais 42
masculinos e 34 femininos. Nesta alínea, 12 alunos, correspondentes a
13,3%, não responderam à questão, distribuídos entre 9 masculinos e 3
femininos. Estes dados da tabela demonstram que os alunos registram um
nível acentuado de dificuldade, apesar de a pronominalização na língua
portuguesa ser encarada como um processo bastante complexo, como
afirmam Martins e Carrilho: ‘‘a complexidade do sistema de colocação
dos pronomes clíticos está também na base da aquisição tardia destes
aspetos da sintaxe pelas crianças portuguesa’’(2016, p. 401), um caso
mais complexo para os falantes não nativos da língua. Como referimos,
o kimbundu não apresenta esta caraterística pronominal e os falantes da
língua encontram um certo constrangimento no uso destas formas, que
de certa maneira, se julga desafiante para quem não encontra na escola
ferramentas necessárias que o ajudem a evitar tais dificuldades. Estas
dificuldades são originadas pela falta de conhecimento das regras e dos
pronomes e motivadas, principalmente, pelas insuficiências do sistema
de ensino que limita os alunos num ensino sem recursos que facilitem a
autoaprendizagem.

Neste contexto, podemos afirmar que o kimbundu tem uma


estrutura fixa dos seus elementos e a oscilação dos pronomes pode
traduzir-se numa enorme dificuldade para os alunos que têm o português
como língua não materna. O desconhecimento em si do uso dos pronomes
fez com que muitos alunos recorressem aos clíticos ‘‘te, lhe, se, vos, nos’’
para responder à questão, ferindo, deste modo, a obediência às regras.

144. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


Casos

Válido Ausência Total

N % N % N %

Preencha os espaços
vazios, utilizando os 90 100,0 0 0,0 90 100,0
seguintes pronomes clíticos

Preencha os Gênero
espaços vazios,
utilizando
os seguintes
pronomes
clíticos. Idade M % F % Total %
15 1 1,1 0 0,0 1 1,1
17 1 1,1 0 0,0 1 1,1
18 1 1,1 0 0,0 1 1,1
Não preencheu 21 2 2,2 0 0,0 2 2,2
22 1 1,1 0 0,0 1 1,1
24 1 1,1 0 0,0 1 1,1
25 1 1,1 0 0,0 1 1,1
Total 8 8,9 0 0,0 8 8,9
15 0 0,0 1 1,1 1 1,1
Adequado
17 2 2,2 1 1,1 3 3,3
Total 2 2,2 2 2,2 4 4,4
14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
15 10 11,1 4 4,4 14 15,6
16 2 2,2 5 5,6 7 7,8
17 5 5,6 7 7,8 12 13,3
18 5 5,6 5 5,6 10 11,1
Inadequado 19 6 6,7 4 4,4 10 11,1
20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
21 3 3,3 1 1,1 4 4,4
22 1 1,1 3 3,3 4 4,4
23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
24 1 1,1 0 0,0 1 1,1

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .145
Inadequado 25 0 0,0 1 1,1 1 1,1
Total 42 46,7 36 40,0 78 86,7
14 1 1,1 1 1,1 2 2,2
15 11 12,2 5 5,6 16 17,8
16 2 2,2 5 5,6 7 7,8
17 8 8,9 8 8,9 16 17,8
18 6 6,7 5 5,6 11 12,2
19 6 6,7 4 4,4 10 11,1
Total
20 5 5,6 2 2,2 7 7,8
21 5 5,6 1 1,1 6 6,7
22 2 2,2 3 3,3 5 5,6
23 3 3,3 3 3,3 6 6,7
24 2 2,2 0 0,0 2 2,2
25 1 1,1 1 1,1 2 2,2
Total Geral 52 57,8 38 42,2 90 100

Tabela 10 - Observação do teste sobre a pronominalização da frase ‘‘Advertiram os senhores das


consequências’’. Sumário de processamento de caso

Para finalizar com a questão Preencha os espaços vazios, utilizando


os seguintes pronomes clíticos: o, a, os, as, me, te, lhe, nos, vos, lhes, se, apresenta-
se na tabela 10 os dados respeitantes à sequência h) Advertiram os senhores
das consequências. Advertiram_____das consequências. Observamos que,
dos 90 alunos que representam a amostra, 4 alunos, que equivalem a
4,4%, responderam adequadamente, sendo 2 masculinos e 2 femininos,
enquanto 78 alunos, que correspondem a 86,7%, não responderam
adequadamente, os quais são 42 do género masculino e 36 do género
feminino. Em contrapartida, houve 8 alunos, correspondentes a 8,9%,
que não responderam à questão. Concluímos que, seguindo a norma,
muitos alunos desconhecem que, quando estamos diante deste caso, em
que há registo de verbos terminados em ditongo nasal de forma genérica
(-am, -em, -ão e -õe), acrescenta-se “-n” antes da forma do pronome (-no,
-na, -nos, -nas). A análise desta situação não se vai distinguir dos outros
casos que a antecederam, porque se nota em todas as questões situações

146. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


do âmbito normativo. A resposta facilitou-nos observar que os alunos
utilizaram frequentemente outros pronomes que não se encaixavam
com o elemento solicitado. Assim, ficou também clarificado que o maior
nível de dificuldade dos alunos se relaciona com as situações atinentes
ao desconhecimento dos pronomes ‘‘o, a, os, as’’, determinados pela
terminação do verbo para dar origem as formas ‘‘lo, la, los, las’’ e para
os ditongos nasais como foi referido, para as formas ‘‘no, na, nos, nas’’,
respetivamente.

Podemos, então, ressaltar que os casos de desvio na colocação dos


pronomes são frequentes em contextos frásicos, isto é, por desobediência
aos princípios que norteiam o seu uso, tendo em atenção as inúmeras
situações de âmbito estrutural.

De acordo com a situação que julgamos complexa, corroboramos


Eliseu (2008, p. 128), segundo o qual ‘‘o padrão de colocação dos clíticos em
Português Europeu é bastante complexo, já que os clíticos podem ocorrer
em várias posições, em consequência das propriedades das estruturas em
que estão inseridas’’. Apesar de haver outros elementos que poderiam ser
incluídos para o reforço desta reflexão, o autor afirma que ‘‘outro aspeto
da colocação dos clíticos é o fenómeno chamado Subida do Clítico. Numa
frase simples, o clítico aparece na ênclise ao verbo nos tempos simples e
em ênclise ao auxiliar dos compostos’’ (Eliseu, 2008, p. 128). No entanto,
‘‘em construções complexas, em que ocorre mais do que um verbo e/
ou mais do que um auxiliar, o clítico pode abandonar a sua posição junto
do verbo de que depende semanticamente, para se juntar a um verbo que
ocupa uma posição estrutural superior (ou seja o clítico sobe para um
hospedeiro mais alto)’’ (p. 130),considerando também ‘‘o clítico dativo
‘‘lhe’’, semanticamente dependente do verbo dizer em todas as frases, mas
surge associado a outros verbos, por exemplo, Devo dizer-lhe e Quero
dizer-lhe’’ (Eliseu, 2008, p. 130). Estes aspetos, tal como é comprovado
pela sequência das respostas do questionário, não são conhecidos nem
dominados aprofundadamente pelos alunos da 9ª Classe.

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .147
3. CONCLUSÃO

A análise dos resultados obtidos por meio do questionário


aplicado permitiuconstatar, de forma detalhada, os problemas linguísticos
que os alunos têm no uso de pronomes retos e oblíquos na oralidade e
na escrita. De acordo com estes resultados, a hipótese levantada
neste estudo foi confirmada, na medida em que foram identificados os
desvios existentes no uso dos pronomes retos e oblíquos. Denotou-
se que as falhas dos alunos do referido Complexo Escolar residem na
influência da língua materna, na falta de domínio das regras do português
padrão, motivadas, principalmente, pelas insuficiências que o sistema de
educação apresenta, pela inexistência de materiais de suporte didático e
pelo desconhecimento dos elementos constituintes da frase, justificadas,
igualmente, pelo facto de os alunos não poderem identificar os pronomes
pessoais e estabelecerem a diferença entre os retos e os oblíquos.

A colocação dos pronomes no português europeu apresenta um


sistema complexo que, em certa medida, cria constrangimento aos alunos
que têm o português não concretamente como uma língua segunda, mas
por terem uma proveniência de famílias de baixo nível de escolaridade
que usam um português mesclado com kimbundu. Este facto também
foi justificado pelo conflito que os alunos demonstraram na inversão da
próclise pela ênclise e na ênclise pela próclise, e vice-versa, colocadas nas
mais variadas frases e que são retratadas na descrição dos resultados de
algumas tabelas, isto é, em situações aludidas com bastante frequência.
Notou-se, igualmente, o uso de pronomes retos de primeira e de segunda
pessoas antecedidos pela proposição ‘‘entre’’.

Assim, conscientes das implicações negativas que a falta


de acompanhamento que esta situação pode acarretar, toda a análise
empreendida tem como objetivo persuadir os responsáveis educativos
na tomada de decisões que possam responder às exigências que, nestas

148. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


circunstâncias, impõem o processo de ensino e de aprendizagem de uma
língua, para evitar que os alunos desconheçam as regras do português
padrão, criando bases seguras para o fortalecimento das instituições da
região.Deste modo, importa um corpo docente especializado, capaz de
buscar os meios necessários para colmatar as dificuldades linguísticas que
os alunos da 9ª Classe carregam das suas comunidades.

Finalmente, como os alunos aprendem a falar o português


com os pais, cabe à escola o dever de exercer o seu verdadeiro papel,
colmatando as dificuldades advenientes destes, visto que a maioria das
famílias não é alfabetizada e também desprovida de recursos didáticos que
serviriam para orientar os seus filhos, bem como dotá-los de informações
inerentes aos bons usos linguísticos, de maneira a não esperar somente
pela escola.

REFERÊNCIAS

CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova Gramática do Português


Contemporâneo. Lisboa: João Sá da Costa, 2014.

ELISEU, A. Sintaxe do Português. Lisboa: Caminho, 2008.

LAKATOS, E.; MARCONI, M. A. Fundamentos de Metodologia


Científica. 3ª ed.. São Paulo. Atlas, 1996.

MARTINS, A. M.; CARRILHO, E. Manual de Linguística Portuguesa.


Berlim: De Gruyter, 2016.

MINGAS, A.Interferência do Kimbundu no Português falado em


Lwanda. Porto: Campo das Letras, 2000.

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .149
NIQUE, CH.Iniciação Metódica à Gramática Generativa. Lisboa:
Dom Quixote, 1977.

RAPOSO, E. et al.Gramática do Português, Vols. 1 e 2. Lisboa: F. C.


Gulbenkian, 2013.

ANEXOS

Questionário

PARTE I

Data ___/___/___ Nível de escolaridade ______


Idade: ___
Género: Masculino___ Feminino____

Por favor,assinale com “X” as questões que se seguem:

1. Línguas angolanas que fala ou entende:


a) Kimbundu c) Kikongo d) Umbundu e) Kwanhama
f) Tchokwé

2. Fala Português?
Sim Não

3. Com que língua se comunica em casa?


a) Português b) Kimbundu c) Kikongo d) Umbundu
e) Kwanhama f) Tchokwé

4. Conforme a sua escolha, com quem, onde e como aprendeu a


falar a língua?

150. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


_________________________________________________
_________________________________________________
_________________________________________________
_________________________________________________
__________________________
5. Tem sido fácil falar o Português com a sua família?
Sim Não

6. Gostas da língua que fala?


Sim Não

PARTE II

7. Assinale com um X a alternativa correta:


a) Tudo estava bem entre tu e eu
b) Tudo estava bem entre ti e mim
c) Tudo estava bem entre eu e tu
d) Tudo estava bem entre mim e ti

e) Que vais te arrepender


f) Que te vais arrepender
g) Que vais arrepender-te

h) Ele pode se aborrecer


i) Ele pode aborrecer-se
j) Ele se pode aborrecer

k) Não encontrou-se nenhum ouro nessa mina


l) Não se encontrou nenhum ouro nessa mina
m) Não encontrou nenhum se ouro nessa mina

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .151
n) A administração da empresa não pagou nenhum do ferro que
foi entregue-lhe
o) administração da empresa não pagou nenhum do ferro que
foi-lhe entregue
p) A administração da empresa não pagou nenhum do ferro que
lhe foi entregue
q) administração da empresa não pagou nenhum do ferro que foi-
lhe entregue

r) Que diferença há entre eu e um fidalgo qualquer?


s) Que diferença há entre mim e um fidalgo qualquer?

t) Quando disseste-me que estavas em casa?


u) Quando me disseste que estavas em casa?
v) Quando disseste que me estavas em casa?

w) Este trabalho foi reservado para eu


x) Este trabalho foi reservado para mim
y) Este trabalho foi reservado para tu
z) Este trabalho é para eu fazer
aa) Este trabalho é para mim fazer

PARTE III

8. Coloque o pronome entre parênteses na posição adequada.

___Começas_____ a____ complicar____. (me)


___Gostava____ de____ ausentar____ por___ dois___ dias. (me)
____Não____ esqueço_____ por______ nada_____ meu amigo. (te)
____Sem____ ver_____ não_____ sinto_____ bem. (te)
____Ninguém____avisou____ do seu____ problema. (nos)
Diz_____para____ ir_____ construir ____Hospital no Bege e uma

152. Domingos Pedro Arsénio . Paulo Osório . Ana Rita Carrilho


escola no Quingonde. (lhe)
____Vejo_____ os______ miúdos_____ a_____esconderem______ da
polícia. (se)
Por mais___ que___ fala___ a verdade___ o aluno será reprovado. (se)
Prefiro___ que____desdenhem_____, que____torturem_____, a
que______deixemsó.(me)
____Tudo____ estava____ bem____ entre___e____ (mim e ti)

PARTE IV

9. Preencha os espaços vazios, utilizando os seguintes pronomes


clíticos: o, a, os, as, me, te, lhe, nos, vos, lhes, se.

a) Achei as chaves ao passar pela rua.


Achei____ ao passar pela rua.
b) Encontrei as meninas ao passar pela estrada.
Encontrei____ ao passar pela estrada.
c) Vi os meninos preocupados.
Vi_____ preocupados.
d) Não disseram a verdade
Não_____ disseram a verdade.
e) Vi o rapaz que saiu cedo.
Vi______
f) Certificamos do fato
Certificamo___ do fato
Certificamos___ do fato
g) Avisei o fato ao chefe.
Avisei_____ o fato.

h) Advertiram os senhores das consequências.


Advertiram_____ das consequências.

O uso dos pronomes pessoais na variedade


angolana do português .153
06.
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA:
A FORMAÇÃO DO LEITOR FRENTE ÀS
PROPOSTAS DE LEITURA DA BNCC
PARA O ENSINO FUNDAMENTAL

Eduardo Dias da Silva (UnB)

edu_france2004@yahoo.fr

Renato de Oliveira Dering (UFG)

professordering@gmail.com

1. INTRODUÇÃO

A educação no Brasil, no que se refere ao Ensino de Língua


Portuguesa (ELP), foi prioritariamente pautada pelo ensino da gramática
normativa com foco na escrita. Assim, as regras gramaticais e uma
“escrita certa”, de acordo com a norma-padrão, modelaram uma proposta
educacional para o “Português da escola”, visão que ganhou força durante
o século XX, principalmente com os modelos seletivos para ingresso no
Ensino Superior. O peso de avaliação das provas de Português (aqui como
sinônimo de Gramática Normativa) e Redação, tanto nos vestibulares
tradicionais quanto no atual Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM),

Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às


propostas de leitura da BNCC para o ensino fundamental .155
autenticaram e reproduziram a importância dessas duas frentes da Língua
Portuguesa para a sociedade.

Contudo, no tocante a isso, a compreensão leitora, pautada na


formação do leitor, foi omitida ou mesmo suprimida. O ensino de leitura
foi (e ainda é), muitas vezes, visto como algo inerente ao sujeito e/ou como
obrigação da disciplina de Língua Portuguesa. Essa visão reducionista
provocou fortes impasses educacionais, pois, por um determinado período,
esse componente foi visto pelo viés de decodificação, o que causou graves
retrocessos. Foi apenas por meio da perspectiva do Letramento que esse
panorama começou a passar por mudanças e a formação leitora ampliou
seus estudos no Brasil.

Com foco nas habilidades leitoras, o presente estudo tem como


objetivo refletir como as posições da BNCC contribuem (ou não) para
a formação do leitor no Ensino Fundamental. A pesquisa toma como
suporte metodológico a revisão bibliográfica, trazendo contribuições ao
manter uma intersecção da base teórica com a Base Nacional Comum
Curricular,perpassando, ainda, os estudos do letramento, visto que são
basilares na formatação do texto da BNCC.

2. LEIS, LEITURA E ESCRITA: PRIMEIRAS REFLEXÕES

O ensino de Língua Portuguesa sempre foi palco de


problematizações acerca da formação leitora. Tais discussões repercutiram
na elaboração dos documentos oficiais que nortearam/norteiam a
educação no Brasil. “A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é
um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico
e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver [...]”. (BRASIL, 2018, p. 07) e, por assim ser, esse documento
educacional, que substituiu os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),

156. Eduardo Dias da Silva . Renato de Oliveira Dering


entra com um poder impositivo, principalmente no que tange às questões
de leitura e escrita.

Acerca dessa formação leitora, a BNCC traz essas duas práticas


por meio de eixos norteadores, que, na posição do documento, visam
ao melhor desenvolvimento de práticas de linguagem e aquisição de
conhecimento. Contudo, é preciso refletir acerca dessa imposição da
BNCC frente aos currículos escolares. Ressaltamos que esse documento
normativo se aplica exclusivamente à educação escolar.

A Base Nacional Comum Curricular – BNCC


(BRASIL, 2018) figura, nesse contexto, como uma
normativa que regulamenta a educação básica no Brasil.
Substituindo os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN’s), a BNCC aponta, já em seu texto inicial, um
caráter impositivo, bem como alega ser fundamentada
em todos os preceitos legais anteriores. Contudo,
atentando-se às diversidades socioculturais brasileiras
e as realidades geográficas, torna-se necessário abrir o
leque de discussão sobre sua funcionalidade enquanto
norma (GANDRA; DERING, 2019, p. 94-95).

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é, então, um


documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e
progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica,
de modo que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e
desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional
de Educação (PNE).

Contudo, é preciso pensar, como propõe Gandra e Dering (2019)


e Silva, Sampaio e Duffé (2019), acerca da diversidade e pluralidade social
e cultural do Brasil e sua relação com os eixos de aprendizagem propostos
pela BNCC. Cabe-nos refletir sobre o processo educativo,partindo de
uma perspectiva histórico-cultural, dialógica e crítica, em que ensinar

Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às


propostas de leitura da BNCC para o ensino fundamental .157
e aprender correspondam às diversas práticas sociais específicas que
geram a interlocução entre alunos e professores, cujo objetivo principal
é apropriação pelos alunos das manifestações culturais que emergem da
historicidade humana.

No caso da disciplina de Língua Portuguesa, esses saberes dizem


respeito às práticas de linguagem necessárias à participação crítica na
sociedade, de acordo com Bonini (2013) e Silva (2016), pois:

[...] desde cedo, a criança manifesta curiosidade com


relação à cultura escrita: ao ouvir e acompanhar a
leitura de textos, ao observar os muitos textos que
circulam no contexto familiar, comunitário e escolar,
ela vai construindo sua concepção de língua escrita,
reconhecendo diferentes usos sociais da escrita, dos
gêneros, suportes e portadores (BRASIL, 2018, p. 42).

Esse diálogo entre leitura, escrita e práticas socioculturais


promovem, nos sujeitos, a efetivação dessas práticas, bem como
potencializam sua criticidade. “É importante salientar que uma educação
que leve o sujeito a pensar e conhecer-se é resguardado por lei e parâmetro
de discussão pelos teóricos e críticos da educação” (GANDRA; DERING,
2019, p. 100). Tal apontamento dos autores e da BNCC é pautado
principalmente no artigo 20 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
no Brasil, a qual pontua que “A educação escolar deverá vincular-se ao
mundo do trabalho e à prática social” (BRASIL, 1996). Contudo, é preciso
um maior debruçar sobre a relação entre imposição do que se ensinar para
a promoção das práticas sociais.

Um dos problemas que a imposição da BNCC pode provocar


está situado na modulada formação dos sujeitos para as práticas de leitura
e escrita, o que poderia remontar a educação baseada no Ensino da
Gramática Normativa como fundamental para as práticas de Letramento,
excluindo-se, de fato, a autonomia e posição do sujeito frente ao mundo.

158. Eduardo Dias da Silva . Renato de Oliveira Dering


Assim, ainda que a BNCC trabalhe por eixos, que delineiam o que se deve
aprender, sabe-se que as formas e os tempos de aprendizagem não são
iguais. Logo, sua imposição não apenas indica, como também limita uma
formação plena.

Outro ponto problemático que essa imposição pode acarretar é


consolidação do ensino bancário, já discutido por Freire (1979) durante a
segunda metade do século XX e fator de reflexão nas aulas de didáticas
e metodologias nas faculdades e universidades brasileiras. A Ensino de
Língua Portuguesa, nessa consoante, é um dos componentes curriculares
que mais sofre, visto que ainda há, no Brasil, uma predileção para a “fala
e escrita corretas”, como se elas não se vinculassem a toda trajetória e
formação dos sujeitos.

3. PRÁTICAS DE LINGUAGENS: DA BNCC À LEITURA

O Ensino Fundamental, com nove anos de duração, é a etapa


mais longa da Educação Básica, atendendo estudantes com faixa etária
entre 6 e 14 anos. Há, portanto, crianças e adolescentes que, ao longo
desse período, passam por uma série de mudanças relacionadas a aspectos
físicos, cognitivos, afetivos, sociais, emocionais, entre outros. Essas
mudanças impõem desafios à elaboração de currículos para essa etapa de
escolarização, de modo a superar as rupturas que ocorrem na passagem
não somente entre as etapas da Educação Básica, mas também entre as
duas fases do Ensino Fundamental, Anos Iniciais e Anos Finais, como
esclarecidos pela BNCC (2018).

No que diz respeito às pontuações da BNCC, ela divide as


aprendizagens essenciais em habilidades e competências. Vejamos:

Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às


propostas de leitura da BNCC para o ensino fundamental .159
[...] competência é definida como a mobilização
de conhecimentos (conceitos e procedimentos),
habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais),
atitudes e valores para resolver demandas complexas
da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do
mundo do trabalho. [...]As habilidades expressam as
aprendizagens essenciais que devem ser asseguradas aos
alunos nos diferentes contextos escolares. (BRASIL,
2018, p. 8-29, grifo nosso)

Por assim ser, a ideia principal é que os alunos desenvolvam,


mobilizem-se e atuem em prol de um problema por meio de práticas de
linguagens (artísticas, corporais e linguísticas) nas diferentes esferas de
atividade humana. Vale lembrar que, segundo a BNCC (2018, p. 68), “As
práticas de linguagem contemporâneas não só envolvem novos gêneros e
textos cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos, como também
novas formas de produzir, de configurar, de disponibilizar, de replicar e
de interagir”.

Partindo desse pressuposto, é importante salientar que ensinar e


aprender línguas, no caso especifico desta pesquisa, a Língua Portuguesa,
parte do paradigma que a língua é decorrente de práticas socioculturais.
O Ensino de Língua Portuguesa na escola mais ainda, visto que “a cidade
é o lugar por excelência dos contatos entre línguas”(CALVET, 2002, p.
54). Logo, também o contato constante entre sujeitos e suas formas de se
apresentar nu mundo. Desse modo, é preciso entender que a linguagem é
complexa e suas formas de proposição também, organizando-se conforme
os sujeitos a utilizam (VYGOTSKY, 2009). Nessa perspectiva, os processos
de aprender e ensinar línguas, como qualquer outro conhecimento
humano, são essencialmente situados e mediados pela linguagem. Isso
quer dizer que ensinar é um processo essencialmente de mediação com
o outro, professores e/ou alunos com diferentes experiências, no qual o
conhecimento não é transmitido, mas socialmente construído através da
linguagem.

160. Eduardo Dias da Silva . Renato de Oliveira Dering


Aprender uma língua, portanto, é aprender a usar essa língua e
pode ter diferentes propósitos, dependendo do contexto social dos alunos.
ConformepontuaSilva (2015, p. 232): “O aluno já chega à escola com um
conhecimento de mundo bem amplo, competindo à escola sistematizar
esses dados com propostas pedagógicas que atendam às necessidades
específicas em relação à apropriação da leitura”.

Dessa forma, faz-se necessário entender, como assinala a BNCC,


que:

As atividades humanas realizam-se nas práticas sociais,


mediadas por diferentes linguagens: verbal (oral ou
visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual,
sonora e, contemporaneamente, digital. Por meio
dessas práticas, as pessoas interagem consigo mesmas
e com os outros, constituindo-se como sujeitos sociais.
Nessas interações, estão imbricados conhecimentos,
atitudes e valores culturais, morais e éticos (BRASIL,
2018, p. 63).

No percurso acerca das atividades humanas, a Língua Portuguesa,


na BNCC, entra junto à área de Linguagens, composta também pelos
seguintes componentes curriculares: Arte e Educação Física; e no Ensino
Fundamental – Anos Finais, agrega-se, também, a Língua Inglesa. A
finalidade é possibilitar aos alunos participar de práticas de linguagem
diversificadas, que lhes permitam ampliar suas capacidades expressivas
em manifestações artísticas, corporais e linguísticas, como também seus
conhecimentos sobre essas linguagens, em continuidade às experiências
vivenciadas na Educação Infantil.

A leitura, dentro da área de Linguagens, é fator de atenção, uma


vez que, como pontuam as competências específicas de Linguagens para o
Ensino Fundamental, a construção da linguagem como uma “construção
humana, histórica, social e cultural” é necessária para a valorização e

Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às


propostas de leitura da BNCC para o ensino fundamental .161
compreensão do sujeito, bem como para a exploração das diversas práticas
sociais e o desenvolvimento do senso crítico, argumentativo e estético
(BRASIL, 2018, p. 65).É necessário, portanto, compreender o processo de
“ler para entender o mundo, tendo a leitura como instrumento de acesso a
ele e o ambiente escolar, como um dos espaços para desenvolver o gosto
pela leitura, são elementos chaves no desenvolvimento de práticas de
leitura” (SILVA; DERING; TINOCO, 2019, p. 365).

Na verdade, a leitura é um dos processos inerentes ao sujeito,


antes mesmo de sua escolarização.Contudo, o que ocorre na esfera escolar,
é o “tolher” ao invés de “colher” do sujeito suas formas de apresentação/
representação para um modelo homogeneizado e único. Verifica-se que
a proposta de habilidades e competências, dentro do proposto, visa a
combater críticas já postuladas por Antunes (2003, p. 27-28), ao dizer que
a leitura nas escolas é:

• [...] centrada nas habilidades mecânicas de decodifica-


ção da escrita;
• [...] sem interesse, sem função, pois aparece desvincu-
lada dos diferentes usos sociais que se faz da leitura
atualmente;
• [...] puramente escolar, sem gosto, sem prazer, converti-
da em momentos de treino;
• uma atividade de leitura cuja interpretação se limita a
recuperar os elementos literais e explícitos presentes na
superfície do texto;
• uma atividade incapaz de suscitar no aluno a compreen-
são das múltiplas funções sociais da leitura.

Finaliza a autora ao apontar que a escola se trata de um lugar que


não tem tempo para a leitura. Todavia, isso é o oposto que deveria ocorrer,
visto que a escola é“um espaço privilegiado para o desenvolvimento do
gosto pela leitura, assim como um importante setor para intercâmbio
da cultura literária” (ZILBERMAN, 2006, p. 16). Logo, nesse paradoxo,

162. Eduardo Dias da Silva . Renato de Oliveira Dering


“outro ponto crucial a ser compreendido nesse contexto de leitura é a
compreensão de que não se nasce leitor, mas que se torna leitor a partir
das experiências que se vivencia enquanto tal” (SILVA, 2015, p. 236).

A imposição da BNCC acerca do que o aluno deve aprender


em uma escala seriada sem a percepção dos contextos implica também
“desperceber” os sujeitos do processo de aprendizagem. As habilidades
e competências são evolutivas nos documentos educacionais. Sobre esse
aspecto, vejamos:

Em teoria, essas competências destacadas deverão ser


distribuídas no currículo e nas práticas escolares ao longo
do processo de Educação Básica (Educação Infantil,
Ensino Fundamental e Ensino Médio). Entretanto, a
obrigatoriedade de objetivos em contextos não apenas
diversificados social e culturalmente, mas também com
necessidades distintas, dificulta a aceitação do próprio
documento. Isto é, em tese, busca-se a igualdade
educacional; em teoria, há díspares formações dentro
de uma só formação (GANDRA; DERING, 2019, p.
100).

O que se nota é uma enorme lacuna para se falar em Ensino de


Língua Portuguesa, visto, inclusive, a variedade linguística do país. Labov
(1978, p.173apud CALVET, 2002, p. 88) já apontava que:

[...] o principal responsável pelo fracasso do aprendizado


da leitura é exatamente o conflito cultural. O ambiente
e os valores escolares claramente não têm influência
alguma sobre meninos solidamente enraizados na
cultura das ruas. Por sua vez, os que não aprendem são
em grande parte meninos que não entram nessa cultura,
ou porque a rejeitam ou porque são por ela rejeitados.

Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às


propostas de leitura da BNCC para o ensino fundamental .163
O avanço teórico da BNCC é a tentativa de inserir o contexto do
aluno dentro de suas práticas. Assim, propõe o documento que habilidades
relacionadas à leitura devem pertencer a gêneros textuais que estão no
campo da atividade de seus aprendizes e não descontextualizadas ou de
forma genérica (BRASIL, 2018). Entretanto, ainda há um grande caminho
entre o documento e as ações pedagógicas para efetivar a potencialização
da leitura em sala de aula.

4. A ORGANIZAÇÃO DA BNCC: EIXO LEITURA (E O LETRAMENTO?)

A leitura, ao longo dos anos, sofreu graves desfalques nos


currículos escolares. Apesar de ser um importante instrumento para o
desenvolvimento das aprendizagens, em sala de aula, ficou condicionada
ao ensino de Língua Portuguesa, que, por sua vez, não deu conta dessa
árdua tarefa. O tempo destinado às aulas de Português ficaram presos,
prioritariamente, ao ensino de gramática e à produção textual. Isso ocorre,
pois, para a sociedade, a “escrita correta” se tornou um prestígio para
ascensão social. Os vestibulares em todo o país e o Exame Nacional do
Ensino Médio (Enem) não apenas autenticaram tal visão, como também
fundaram o estigma de que mais importante que a oralidade e leitura, é a
escrita dentro de padrões.

A mudança na organização da Base Nacional Comum Curricular


para o Ensino Fundamental tenta, a seu modo, propor quatro eixos de
integração para a Língua Portuguesa, visando mudanças nesse paradigma
já imposto:

[...] os eixos de integração considerados na BNCC de


Língua Portuguesa são aqueles já consagrados nos
documentos curriculares da Área, correspondentes
às práticas de linguagem: oralidade, leitura/escuta,

164. Eduardo Dias da Silva . Renato de Oliveira Dering


produção (escrita e multissemiótica) e análise
linguística/semiótica (que envolve conhecimentos
linguísticos – sobre o sistema de escrita, o sistema da
língua e a norma-padrão –, textuais, discursivos e sobre
os modos de organização e os elementos de outras
semioses) (BRASIL, 2018, p. 71).

A leitura, diferente dos demais documentos, ganha notoriedade


ao ser um dos eixos integradores. Acerca do proposto, pontua a BNCC
que:

O Eixo Leitura compreende as práticas de linguagem


que decorrem da interação ativa do leitor/
ouvinte/espectador com os textos escritos, orais
e multissemióticos e de sua interpretação, sendo
exemplos as leituras para: fruição estética de textos e
obras literárias; pesquisa e embasamento de trabalhos
escolares e acadêmicos; realização de procedimentos;
conhecimento, discussão e debate sobre temas sociais
relevantes; sustentar a reivindicação de algo no contexto
de atuação da vida pública; ter mais conhecimento que
permita o desenvolvimento de projetos pessoais, dentre
outras possibilidades (BRASIL, 2018, p. 71).

É importante salientar também que, na BNCC, leitura não se


trata apenas de decodificação do texto escrito:

Leitura no contexto da BNCC é tomada


em um sentido mais amplo, dizendo
respeito não somente ao texto escrito, mas
também a imagens estáticas (foto, pintura,
desenho, esquema, gráfico, diagrama) ou em
movimento (filmes, vídeos etc.) e ao som
(música), que acompanha e cossignifica em
muitos gêneros digitais. O tratamento das
práticas leitoras compreende dimensões
inter-relacionadas às práticas de uso e

Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às


propostas de leitura da BNCC para o ensino fundamental .165
reflexão, tais como as apresentadas a seguir
(BRASIL, 2018, p. 72).

Essa proposta de leitura é, sem dúvida, um avanço do


documento, pois permite potencializar os diversos gêneros textuais
presentes na sociedade, bem como permitir que os sujeitos, em processo
de aprendizagem, dialoguem com eles.Esse processo de leitura se
intersecciona com os princípios do Letramento, já pontuados pela BNCC.

Desse modo, o Eixo Leitura tenta trazer para o centro as práticas


de linguagem do aprendiz. Assim:

É preciso que [o aluno] seja capaz de, estando


no mundo, saber-se nele. Saber que, se a forma
pela qual está no mundo condiciona a sua
consciência deste estar, é capaz, sem dúvida, de
ter consciência desta consciência condicionada.
Quer dizer, é capaz de intencionar sua
consciência para a própria forma de estar
sendo, que condiciona sua consciência de estar
(FREIRE, 1984, p.07, acréscimo nosso).

Portanto, faz-se necessário compreender que “[...] a leitura –


produto social – é produzida em condições de contextos determinados,
ou seja, em momento sócio-histórico que precisa ser levado em conta”
(TINOCO, 2015, p. 307). Isso significa considerar práticas de letramento.
A perspectiva do letramento proposta pela BNCC, por assim ser, trata-
se de uma proposta de propor conexões entre escolarização e tudo que
a envolve com os aspectos sociais da leitura e da escrita dos sujeitos
(SOARES, 2011).

166. Eduardo Dias da Silva . Renato de Oliveira Dering


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As lacunas levantadas neste estudo mostram que, por mais que se


fale em Letramento, as práticas são poucas. Houve um avanço, mas ainda
o lugar de privilégio é reservado àa cultura canônica escolar, frente aos
saberes dos alunos. Outro ponto que sustenta o primeiro, é que os exames
de seleção para o ensino superior subsidiam que o molde dos currículos
no formato da importância da “escrita correta” ou “redação do Enem/
vestibular”.

Claro que não é só no ambiente escolarde educação básica que


se constrói e se consolidam valores. Há, ainda, a família, os meios de
comunicação, as igrejas, a comunidade e outros espaços de convivência
social. Mas não há como negar a importância do ambiente escolar
na formação dos alunos como cidadãos críticos. Na medida em que a
aquisição de conhecimento e de leituras contribuem para as pessoas
ampliarem sua visão de mundo e entenderem os mecanismos de
funcionamento da sociedade, elas se tornam mais aptas a construir com
autonomia sua própria vida e interferir na realidade que as cerca, como
bem exemplificado por Silva e Souza-Dias(2017).

Desse modo, por mais que se fale em Letramento nos documentos


oficiais, o conhecimento advindo do sujeito é, ainda, secundário, pois há
uma manutenção do que é mais importante para a sequência nos estudos
(seja para o Ensino Médio ou Ensino Superior). É importante ter em mente
que “os debates e políticas de desenvolvimento do letramento, mormente
no âmbito educacional, devem levar em conta as condições sociais,
culturais e econômicas que prevalecem em uma sociedade específica, em
uma época particular” (TERRA, 2013, p. 32) e não apenas uma finalidade
única como aprovação em exames de seleção. Esse fator, sem dúvida, põe
em xeque a eficácia do eixo leitura e as proposições de Letramento.

Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às


propostas de leitura da BNCC para o ensino fundamental .167
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BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, MEC, 2018.


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Brasil. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, MEC,


1996. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/
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português como segunda língua para estudantes surdos: uma proposta.
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Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às


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ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Editora


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170. Eduardo Dias da Silva . Renato de Oliveira Dering


Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às
propostas de leitura da BNCC para o ensino fundamental .171
07.
O ENSINO DA LÍNGUA
PORTUGUESA EM SEQUÊNCIAS
DIDÁTICAS NAS ESCOLAS ESTADUAIS
DO NORTE DE MATO GROSSO:
PERCEPÇÕES DOS CAMINHOS DA
FORMAÇÃO CONTINUADA PELA
VOZ DOS PROFESSORES DO ENSINO
FUNDAMENTAL

Jislaine da Luz (SEDUC/CEFAPRO – MT)

jislaine.luz.2015@gmail.com

Maríndia Becker (SEDUC – MT)

marindiabecker2013@gmail.com

Marta Tibola (SEDUC/CEFAPRO – MT)

marta.tibola@educacao.mt.gov.br

1. INTRODUÇÃO

Interessa-nos, neste estudo, refletir sobre o ensino e a


aprendizagem, mediante a imersão nos estudos dos gêneros textuais/
discursivos que são produzidos nas interações sociais, desde as mais

O ensino da língua portuguesa em sequências didáticas nas escolas estaduais do norte de Mato
Grosso: percepções dos caminhos da formação continuada pela voz dos professores do ensino fundamental .173
primárias até as mais formais, em todas as esferas de atuação do ser
humano. É importante perceber as nuances que emolduram o fazer
pedagógico do professor de Língua Portuguesa.Para tanto, abordaremos
de forma mais específica as visões do professor de Língua Portuguesa
acerca dos métodos de ensino mais adequados ao amplo espectro da
Língua Portuguesa brasileira.

Apresentamos o primeiro ponto, que abrange a conceituação


da formação continuada e, após, as metodologias de ensino da língua,
considerando as questões que perpassam pelos gêneros textuais/
discursivos, bem como também as concepções de sequências didáticas,
doravante SD, evidenciadas nas práticas dos professores em momentos
de formação continuada. O grupo de professores dos quais os relatos
formam o objeto desta análise atuam em escolas estaduais de ensino
fundamental no Norte de Mato Grosso.

O diagnóstico para o trabalho de formação continuada partindo


da ideia de fortalecimento da prática pedagógica em Língua Portuguesa
considerando as SD está atrelado ao fortalecimento das aprendizagens
em diferentes perspectivas. Apesar disso, ainda prioriza as questões de
procedimentos de leitura, tendo em vista que as escolas se baseiam nos
índices das avaliações externas nacionais e estaduais como os dados
fornecidos pela Prova Brasil, geradora do Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (IDEB), para estabelecerem suas demandas formativas.

A metodologia de SD vem sendo amadurecida pela formação


continuada no norte de Mato Grosso desde 2009 no apoio à compreensão
das formas de tratamento e análise crítica dos textos, tendo em vista a
necessidade das escolas em responder às expectativas dos professores e
estudante, no que se refere à qualidade do ensino e aprendizagem em
Língua Portuguesa, em ininterrupto diálogo interdisciplinar com enfoque
heterodiscursivo (BAKHTIN, 1992).

174. Jislaine da Luz . Maríndia Becker . Marta Tibola


A seguir, apresentaremos alguns dados importantes para a
compreensão dos indicadores nacionais e estaduais para o contexto
apresentado, bem como a análise de seus contrapontos e reflexos na prática
pedagógica dos professores, à luz das teorias que embasam as metodologias
de ensino das linguagens. Por fim, evidenciaremos o que dizem as vozes
dos professores acerca de suas percepções desde a formação continuada
até a análise dos resultados de suas sequências didáticas.

2. AVALIAÇÃO EXTERNA E INDICADORES ESTADUAIS DE DESEMPENHO


PARA O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA EM MATO GROSSO: E NO MEIO
DO CAMINHO TINHA UMA PEDRA...

Este importante momento histórico merece um cuidado


redobrado em relação ao que dizer sobre teorias que articulam o ensino
das linguagens às políticas públicas, sendo que a prática pedagógica e a
qualidade de ensino sofrem a pressão direta para obtenção de resultados.
Essa realidade complexa é a que envolve o cotidiano das escolas e abrange
as demandas formativas dos professores, não só os de Língua Portuguesa.

A princípio, destacamos o índice estadual como um indicador


complementar à avaliação nacional“Prova Brasil”, realizada a cada dois
anos pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Em 2017,
o Estado de Mato Grosso implementou uma avaliação semelhante à
dinâmica adotada pela Prova Brasil, na qual descritores são avaliados no
sistema da Teoria de Resposta ao Item (TRI), para uma análise progressiva
de desempenho em Língua Portuguesa.

Resultante dessa avaliação realizada com estudante do 9º do Ensino


Fundamental e 3º Ano do Ensino Médio, os indicadores para o norte de
Mato Grosso dizem o seguinte: i) para o 9º ano do Ensino Fundamental,

O ensino da língua portuguesa em sequências didáticas nas escolas estaduais do norte de Mato
Grosso: percepções dos caminhos da formação continuada pela voz dos professores do ensino fundamental .175
57% dos estudantes possuíam dificuldades referentes ao eixo da leitura, no
que tange ao eixo III – Relação entre textos; e ii) para o 3º ano do Ensino
Médio, 67% dos estudante também apresentaram dificuldades referentes
ao eixo da leitura, no que tange ao eixo III – Relação entre textos.

Em comparação aos indicadores nacionais do Sistema de


Avaliação da Educação Básica (SAEB), analisando de forma específica
cada uma das 22 escolas estaduais da região, nos deparamos com uma
leitura semelhante de dados referente ao eixo III “relação entre textos”,
sendo que para o Ensino Médio a situação se agrava. Interessam-nos,
particularmente, os dados do Ensino Fundamental, tendo em vista que
este artigo busca relacionar todos os pontos que se ligam à formação
continuada de professores no norte do estado e as práticas de ensino para
o ensino fundamental nas escolas estaduais dessa região.

Do total de escolas da região que realizaram a avaliação, nove


atendem somente ao Ensino Fundamental, quatro somente ao Ensino
Médio, e outras nove atendem ambas as etapas. Em todas elas o problema
do trabalho com os textos parece ser um dado de significativa preocupação,
pois se fizermos o caminho de retorno dessa aprendizagem, essa situação
é pertinente desde os anos iniciais e se agrava ao longo da vida escolar dos
educandos.

A concepção da avaliação entrecruza a avaliação formativa


reguladora, ampliada como instrumento que fornece informações para
um avanço ou possível retomada da ação pedagógica do professor,
coadunando com Silva, Hoffmann e Estaban (2003, p.13):

Nessa medida a avaliação é espaço de mediação/


aproximação/ diálogo entre formas de ensino dos
professores e percursos de aprendizagens dos alunos.
Aqui, a avaliação possui tarefa de se centrar na “forma
como o aluno aprende, sem descuidar da qualidade
do que se aprende” (Álvarez Méndez, 2002, p. 19)

176. Jislaine da Luz . Maríndia Becker . Marta Tibola


para orientar o docente a ajustar seu fazer didático de
maneira que produza desafios que se transformem em
aprendizagens para os aprendentes.

Importa enfatizar que a tomada de indicadores no contexto


escolar não pode ser desencadeador de verdades absolutas, primeiro por ser
um resultado de amostragens, depois por compor um dado complementar
às avaliações internas e formativas das instituições, sendo que é necessário
deixar claro que essa etapa de análise de índices corrobora o escopo de
indagações sobre sua real função para a melhoria da qualidade do ensino
refletido na prática pedagógica.

3. CONCEPÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA O TRABALHO COM


GÊNEROS DISCURSIVOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA: O CAMINHO DAS
PEDRAS OU AS PEDRAS DO CAMINHO?

A fim de articular a formação continuada com a valorização da


escola como lócus de formação, Nóvoa (1999, 2001, 2002) e Imbernón
(2006) tem atribuído aos estudos e às socializações vivenciadas no espaço
escolar uma especial importância para a formação do educador em
trabalho, valorizando a construção de uma epistemologia fundamentada a
partir da prática e reflexão constante. Assim, para iniciarmos uma reflexão
proveitosa acerca do trabalho com o problema dos textos, é preciso que
abordemos a visão de Bakhtin sobre o ensino na perspectiva dos gêneros
discursivos, para que haja uma ressignificação desse aspecto e de todos os
fenômenos decorrentes de um trabalho pedagógico fragilizado, retomado
em metodologia por Dolz e Schneuwly, como afirma Wachowicz:

Dolz e Schneuwly (2004) fazem uma sugestão de


procedimento metodológico para o trabalho com
gênero: A sequência didática. A ideia é bastante

O ensino da língua portuguesa em sequências didáticas nas escolas estaduais do norte de Mato
Grosso: percepções dos caminhos da formação continuada pela voz dos professores do ensino fundamental .177
simples; num encadeamento de módulos de atividades,
os alunos elaboram uma primeira versão de um gênero
– oral ou escrito -, depois desenvolvem práticas de
leitura, discussão e apreensão de unidades estruturais
e linguísticas, e depois desenvolvem novamente uma
segunda versão do gênero em questão. O objetivo é
proporcionar, através de projetos de atividades que
envolvam a turma toda, o contato e o desenvolvimento
de um gênero específico. (WACHOWICZ, 2012, p. 155)

Nessa estrutura se insere a abordagem Vygotskiana referente


àsquestões de como o conhecimento se desenvolve a partir da zona de
desenvolvimento proximal (ZDP). Admitimos que os conhecimentos
mobilizados abrangem além de gênero discursivo/textual e sequência
didática e permeiam os conceitos de letramentos sociais de Street (2014)
e da teoria da ação letrada em Bazerman (2015), em uma relação dialógica
com as questões do ensino sociointeracionista postuladas por Vygostsky.

É fundamental para a compreensão do trabalho pedagógico do


professor na abordagem dos gêneros discursivo a clareza na concepção de
Bakhtin do ensino da língua viva e em constante movimento, antes tratada
de maneira fixa e isolada, como verdadeiro código secreto. De acordo
com Weisz e Sanchez (2002), no processo de ensino-aprendizagem com
gêneros, o aluno é levado a aprender não só o código, a sistematização da
escrita, mas principalmente o que ela significa em sua vida. Mesmo que a
criança ainda não esteja totalmente imersa na cultura escrita, “aprende-
se, pelo uso, as funções sociais da escrita, as características discursivas
de textos escritos, os gêneros utilizados para escrever e muitos outros
conteúdos.” (p. 34).

A partir dos anos 90, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)


fizeram com que várias secretarias de educação tivessem uma atenção maior
com um ensino de qualidade, buscando construir processos de formação
continuada de professores baseados em diagnósticos quantitativos e
qualitativos de desempenho das aprendizagens. Por conseguinte, o Estado

178. Jislaine da Luz . Maríndia Becker . Marta Tibola


de Mato Grosso, nessa perspectiva, deu continuidade à elaboração das
Orientações Curriculares para a Educação Básica do Estado de Mato
Grosso, no período de 2008 a 2010, como um documento que foi
impulsionador do uso das SD como recurso metodológico possível para
uma colaboração importante na melhoria do desempenho dos estudante
nos procedimentos de leitura e escrita de diversos gêneros textuais.

Na concepção da organização escolar por meio dos Ciclos de


formação Humana, como ocorre na organização da educação Básica de
Mato Grosso, as linguagens aparecem em uma abordagem Bakhtiniana,
em concordância com os documentos oficiais brasileiros que orientam o
sistema educacional em nosso país, os quais atestam que “a linguagem é
um fenômeno sócio-histórico que se manifesta através da interação dos
indivíduos por meio de enunciados específicos, essencialmente dialógicos,
que ocorrem dentro de esferas sociais específicas” (BAKHTIN,
1992,p.112).

A apropriação da concepção Bakthiniana para o ensino na área de


Linguagens pelos documentos referenciais para o ensino que provêm dos
parâmetros Curriculares nacionais (PCN) e que atualmente constam no
texto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e também integram o
Documento Referencial Curricular para a Educação Básica no estado de
Mato Grosso (DRC MT) é assim ponderada por Bezerra (2017):

O uso generalizado de aportes teóricos bakhtinianosnos


estudos brasileiros de gêneros, com ou sem impacto
considerável nas análises empreendidas, parece
confirmar a tese de Marcuschi (2008: 152): “Como
Bakhtin é um autor que apenas fornece subsídios
teóricos de ordem macroanalítica e categorias mais
amplas, pode ser assimilado por todos de forma
bastante proveitosa”. Particulamente, segundo
Marcuschi, Bakhtin representaria uma espécie de bom
senso teórico em relação à concepção de linguagem, o
que o leva a ser quase sempre acionado ao se delinear

O ensino da língua portuguesa em sequências didáticas nas escolas estaduais do norte de Mato
Grosso: percepções dos caminhos da formação continuada pela voz dos professores do ensino fundamental .179
um aparato teórico-metodológico [..]. (BEZERRA,
2017, p. 100).

Dessa forma, a necessidade da constante reflexão do trabalho


com o gênero, referente ao seu tratamento metodológico em sala, não
só envolve as disciplinas que contemplam a área de Linguagens, como
também as demais áreas do conhecimento que “buscam igualmente
capacitar o ser humano para o uso dialógico das diferentes manifestações
da Linguagem, como forma de construir o sujeito, a realidade e as próprias
linguagens” (MATO GROSSO, 2000, p. 112), sendo necessária a escolha
de metodologias que levem a vivência e reflexão coletiva sobre as ações
desenvolvidas e seu significado nas práticas sociais.

Segundo Schneuwly e Dolz (2004, p. 74), “é através dos gêneros


que as práticas de linguagem se materializam nas práticas dos aprendizes”.
É necessário, portanto, pensar em estratégias metodológicas dinâmicas e
interativas, considerando a proposta de ensino-aprendizagem diferenciada,
as quais demonstrem a importância da contextualização sócio-histórica-
cultural das propostas, bem como a abordagem interdisciplinar.

Assim, é fundante que a formação dos professores da área de


Linguagens busque a ação dos professores como agente de letramento,
conforme Kleiman (2001), construindo propostas de intervenção
conscientes e convergindo para um diagnóstico das aprendizagens dos
estudante, melhorando, assim, a qualidade das duas pontas do processo:
o ensino e a aprendizagem, em um movimento dialógico com os
diversos conhecimentos acerca das linguagens que estão dentro e fora do
âmbitoescolar.

4. CAMINHO METODOLÓGICO: encadeamento da prática e pesquisa


formativa

180. Jislaine da Luz . Maríndia Becker . Marta Tibola


Focalizando a mudança de atitude do professor que atua nas
escolas do Estado no que se refere à condução do seu fazer pedagógico e
levando-o a (re) pensar a seleção e elaboração das suas atividades didáticas,
seguiremos, em linhas gerais, os princípios e instrumentos de uma formação
reflexiva e participativa (KLEIMAN,2001). As ações formativas a partir
da prática diária e do contexto real dos sujeitos envolvidos possibilitam
construir um trabalho na perspectiva do professor pesquisador. Nas
palavras deBortoni-Ricardo (2008),

O professor pesquisador não se vê apenas como usuário


de conhecimento produzido por outros pesquisadores,
mas se propõe também a produzir conhecimentos sobre
seus problemas profissionais, de forma a melhorar sua
prática. O que distingue um professor pesquisador dos
demais professores é seu compromisso de refletir sobre
sua prática, buscando reforçar e desenvolver aspectos
positivos e superar as próprias deficiências (BORTONI
RICARDO, 2008, p.46).

Uma proposta de formação que tem por objetivo a formação


continuada de sujeitos não poderá deixar de estabelecer uma avaliação em
espiral, através da qual se avalia e reavalia o processo de modo constante.

A formação continuada interativo-reflexiva, segundo


Romanovski(2010, p. 135), é a que acontece “através da pesquisa-ação,
reflexão na ação e da ação”, promove e fortalece ações que levam a
atitudes investigativas, criativas, de maneira contínua, tanto individual
como coletivamente. Essa formação não se fecha em si mesma, já que
acontece concomitantemente às ações e às necessidades encontradas no
desenvolvimento dos trabalhos educativos.

Os relatórios demonstraram que a formação continuada se


torna significativa para os participantes, na medida em que os mesmos se
transformam em agentes diretos na construção do conhecimento de sua

O ensino da língua portuguesa em sequências didáticas nas escolas estaduais do norte de Mato
Grosso: percepções dos caminhos da formação continuada pela voz dos professores do ensino fundamental .181
autonomia relacionada ao conhecimento teórico-metodológico acerca do
ensino da língua materna, estruturado a partir das sequências didáticas,
conforme podemos perceber em alguns excertos retirados dos relatórios
dos cursistas (C1, C2, C3, ...):

[...] Faço uma avaliação positiva do trabalho, pois me surpreendi com


meus alunos uns positivamente e outros... bom nem tudo é 100% sempre,
participaram interagiram e produziram (C1).

[...] particularmente aprendi muito com esse curso, pois antes tinha
dificuldades em trabalhar com sequência didática em minha disciplina, mas
obtive uma compreensão melhor de como aplicá-la em sala, apesar de os
resultados não serem 100% satisfatório, porém agora tenho um embasamento
para aperfeiçoar as próximas SD que pretendo trabalhar com meus alunos,
posso dizer que a experiência foi significativa (C2).

[...] Estas atividades foram importantes para os alunos, pois proporcionaram


aos mesmos um olhar diferente sobre as formas de aprendizado que
compartilham na escola mostrando que podem aprender através de um filme,
de uma roda de conversa reflexiva ou através de um desenho. Durante o
desenvolvimento das aulas foi possível perceber a participação e destaque de
estudante que participaram e expressaram suas opiniões nos questionamentos
realizados (C3).

[...] Este trabalho faz um apontamento, abre um espaço para que os alunos,
sejam ouvidos, expressem, discutam e troquem experiências sobre tais
questões (C4).

[...] Também foi evidenciado a importância e a necessidade da mudança na


prática docente, no que se refere à forma de trabalhar com os conhecimentos e
conteúdos em atividades interdisciplinares e diferenciadas, pois ainda é preciso
avançar em relação à organização dos conteúdos, tempo e no fazer de cada
professor (C5)

182. Jislaine da Luz . Maríndia Becker . Marta Tibola


[...] a atividade oportunizou que os alunos desenvolvessem leitura, pesquisa,
ressignificação e escrita própria, mediante o desafio de montar um fanzine,
demonstrando a pertinência e viabilidade em sala de aula. Todos os trabalhos
apresentados pelos alunos manifestaram, em algum momento, a produção de
texto novo (autoral) a partir das leituras orientadas (C6).

[...] foi maravilhoso todo o processo de resgate e ressignificação da prática em


sala de aula, utilizando a metodologia da Sequência Didática (C7).

Celis (1998) afirma que a mudança é algo que deve ser


compreendido como inerente ao fazer pedagógico, assim como as
dificuldades na organização do olhar que abrange o ensinar e o aprender.
Contudo, “as práticas pedagógicas continuam apegadas às formas
tradicionais de ensinar e aprender” (CELIS, 1998, p. 31), por isso a
formação continuada de caráter reflexivo pretende que as práticas dos
educadores se pautem nos princípios da diferença, da legitimidade e
autonomia, o que consiste em um exercício de escuta significativa.

As inferências realizadas na formação continuada, segundo os


professores, favoreceram nos redimensionamentos das SD para que as
mesmas atingissem os objetivos propostos. Outro aspecto relevante é
que houve realmente uma sequência lógica na relação entre as atividades
e retomadas para a obtenção de um ensino mais significativo para os
estudantes. Esse fato faz com que ocorra o agir reflexivo para um novo
agir com responsabilidade e intencionalidade, percebido nos excertos, de
forma a ampliar as possibilidades na qual se atua.

A formação continuada para professores de Língua Portuguesa


no contexto analisado para este artigo, proposta e sistematizada diante do
diagnóstico,considerou não só a necessidade de mudança de postura dos
professores de Língua Portuguesa, mas também incentivou a publicação

O ensino da língua portuguesa em sequências didáticas nas escolas estaduais do norte de Mato
Grosso: percepções dos caminhos da formação continuada pela voz dos professores do ensino fundamental .183
das propostas em eventos acadêmicos nos quais os professores se
colocaram como produtores de conhecimento e pesquisadores de sua
própria prática. Há, porém, pairando nos textos não escritos, os discursos
das necessidades formativas, pois, conforme ponderaAuthier-Revuz
(1982, p. 141), “por trás de uma aparente linearidade, da emissão ilusória
de uma só voz, outras vozes falam”.

O texto inserido em uma metodologia de SD, conforme


evidenciam as falas, cumpre seu papel social, partindo desde as ideias mais
simples ou mais complexas, na medida em que os professores assumem
uma relação horizontal com os estudante (CELIS, 1998), considerando
também estratégias que possibilitam compreender os significados do
texto, em que os estudante se apropriam dessas estratégias e as selecionam
conforme a adequação à situação comunicativa na qual tomarem parte.

A língua, sendo o principal objeto de atuação desse grupo de


professore da disciplina de Língua Portuguesa, é imprescindível que
constitua “o instrumento de mediação de toda estratégia de ensino e o
material de trabalho, necessário e inesgotável para o ensino de textualidade”
(DOLZ; SCHNEWLY, 2004, p. 51 apud WACHOWICZ, 2012, p. 152)

A reflexão metacognitiva assume valor crucial para os docentes de


Língua Portuguesa e também se configuracomo importante colaboração
para que as propostas pedagógicas no ensino das linguagens, na retomada
de conceitos relacionados ao ensinar e ao aprender da língua materna e
dos mecanismos envolvidos nesse movimento contínuo e complexo.

Essa rede de estudos das correntes teóricas oriundas da formação


continuada dos professores de língua materna, no caso a Língua Portuguesa,
as quais se ramificam da psicologia cognitiva, da semiótica, da teoria do
discurso e da teoria crítica do ensino, assim como da sociolinguística, da
linguística do texto e da psicolinguística colaboraram profundamente para
a ressignificação do espaço de trabalho do professor atuante no ensino

184. Jislaine da Luz . Maríndia Becker . Marta Tibola


das linguagens sobre a aprendizagem da leitura e a produção de texto e,
portanto, uma transformação de seu ensino.

Neste sentido, faz-se necessário ressaltar a importância do


envolvimento de instituições formadoras iniciais e continuadas, em âmbitos
além da escola, pois fazem uma ponte entre as práticas pedagógicas dos
professores e a postura pesquisadora crítica-reflexiva do educador, que
colabora para a constante reflexão teórico-metodológica acerca do ensino
das linguagens, dando sentido à ação educativa em diferentes aspectos,
vislumbrando com esses resultados, atitudes no processo de ensino-
aprendizagem cada vez maisinovadores.

A potencialização dos relatórios das práticas como fomento à


análise reflexiva da própria ação educativa no ensino de Língua Portuguesa
no norte do estado de Mato Grosso traz a seara do professor pesquisador,
capaz de contribuir com a melhoria de sua própria prática e com a análise
da prática de seus pares.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O DESCANSAR DE UMA CAMINHADA PARA


DAR O PRÓXIMO PASSO

A preocupação constante no contexto escolar acerca da qualidade


do ensino da Língua Portuguesa é favorecida quando se torna objeto de
estudo dos professores atuantes na disciplina. No norte do estado de Mato
Grosso, assim como em outros contextos brasileiros, o desafio é refletir a
partir da heterogeneidade linguística.

A formação continuada é um construto importante no exercício


de mudança de prática, tendo em vista a dinamicidade própria da língua
em uso e o texto com função social, inesgotável à medida que recebemos
em nossas salas de aula estudante com suas diferentes experiências

O ensino da língua portuguesa em sequências didáticas nas escolas estaduais do norte de Mato
Grosso: percepções dos caminhos da formação continuada pela voz dos professores do ensino fundamental .185
sociolinguísticas reais.

Com isso, a investigação da formação continuada no ensino


da Língua Portuguesa e seus impactos na ação pedagógica do professor
é fundamental, pois evidencia a articulação entre a teoria e a prática,
buscando as percepções que vão desde a sala de aula e as etapas que
envolvem o ensino até a importância da inferência dos estudante em
situações externas ao texto em si, conforme lhes forem exigidos. Cumpre
notar que essa situação também abrange a análise linguística em uma
perspectiva crítica e não apenas prescritiva dos gêneros textuais.

A metodologia baseada nas SD articula o jogo dialógico


entre a construção dos sentidos do texto, podendo ser explorado em
todos os anos da educação básica, adequando-se ao nível de idade e
compreensão dos estudante em questão, trazendo-lhes a oportunidade de
realmenteparticiparem e investigarem as possibilidades de sua autoria, ou
da análise crítica do texto do outro, ou mesmo a relação entre textos de um
mesmo autor. Pode inclusive transgredir o traço comum da textualidade,
adentrando às questões de estilo dos textos com os quais se confrontamem
diversas esferas de sua comunicação, não sendo um reflexo do talento ou
de intuição pessoal, mas resultante de um processo de trabalho, de fato,
linguístico.

Nesta oportunidade de análise, não apenas debatemos sobre


a língua, o ensino ou a condição do aprendente, mas avançamos na
percepção do momento em que nos deparamos com as formas de aprender
do professor no processo de formação continuada. Assim, coadunamos
com a ideia de Mizukami (2002), quando afirma que o aprendizado dos
docentes vai além das palavras, em que muitas das concepções continuam
externas ao pesquisador, tendo em vista a dificuldade de partilhar com
pares não pertencentes à sua comunidade.

Portanto, este artigo apresenta prolegômenos acerca das

186. Jislaine da Luz . Maríndia Becker . Marta Tibola


percepções reais e resultados das práticas de ensino em Língua Portuguesa
no norte do estado de Mato Grosso, não esgotando em si a possibilidade de
ampliação de estudo, valorizando as outras vozes, muitas vezes ocultas aos
olhos das instituições formadoras, mas que permeiam o fazer pedagógico
dos docentes de língua materna entrelaçadas aos desafios educacionais em
cada contexto.

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O ensino da língua portuguesa em sequências didáticas nas escolas estaduais do norte de Mato
Grosso: percepções dos caminhos da formação continuada pela voz dos professores do ensino fundamental .189
08.
APLICAÇÃO DO ENSINO
HÍBRIDO NA DISCIPLINA DE LÍNGUA
PORTUGUESA: ESTUDO DE CASO NO
ENSINO MÉDIO

Maria Izabel Oliveira da Silva (UNIFESP)

izabeloliver.sil@gmail.com

Lucila Pesce (UNIFESP)

lucilapesce@gmail.com

1. INTRODUÇÃO

O Ensino Médio compreende a etapa final da educação básica,


momento em que os estudantes se preparam para a continuidade dos
estudos no ensino superior e/ou para ingressarem no mercado de trabalho.
Observa-se, no entanto, um cenário alarmante, principalmente ao analisar
os dados do Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico (IDEB) de
2017 (MEC, 2018), o qual aponta que sete em cada dez alunos estão nos
níveis considerados insuficientes de aprendizagem na disciplina de língua
portuguesa. Isso significa 71% dos estudantes matriculados no ensino
médio da rede pública. A taxa de evasão revelada pelo Censo Escolar
entre 2014 e 2015 também é preocupante: 12,7% dos alunos matriculados

Aplicação do ensino híbrido na disciplina de língua


portuguesa: estudo de caso no ensino médio .191
na primeira série, seguida por 12,1% dos matriculados na segunda série,
e 6,7% da terceira série (Ibid, 2018). Diante disso, faz-se urgente pensar
práticas pedagógicas que possam assegurar o direito de aprendizagem
dos estudantes, como também propiciar um ambiente estimulante e
significativo para o desenvolvimento de suas habilidades e competências.

Os jovens que hoje estudamno ensino médio nasceram na era


digital e, por meio dela, acessam os mais diversos conteúdos em diferentes
linguagens e formatos, podem se comunicar com pessoas de qualquer
parte do mundo, ampliando as possibilidades de aprendizagem além da
escola. Isso não significa que a escola tenha perdido sua importância. Pelo
contrário, hoje se faz uma instituição essencial para promover a reflexão
crítica e o enfretamento dos fenômenos sociais contemporâneos.

Para compreender relação dos jovens brasileiros de 9 a 17 anos de


idade com as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC),
apresentamos dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil, realizada pelo
Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da
Informação (CETIC.br). Os dados de 2016 apontam que cerca de 82% das
crianças e adolescentes nessa faixa etária eram usuários de Internet, tendo
o smartphone como principal meio de acesso. Além disso, 91% os jovens
de 15 a 17 anos acessarama internet, em grande parte, utilizado a rede wi-fi
de suas residências. Enquanto o uso dos smartphones conectados à internet
tem aumentado exponencialmente entre os jovens, o inverso ocorre
em grande parte das escolas públicas e a mesma pesquisa apontou uma
queda gradativa das escolas que possuem dispositivos digitais conectados
à internet disponíveis aos seus alunos (CETIC.br, 2018). Somado a isso,
as práticas pedagógicas dessas escolas públicas se ancoram em modelos
que já não atendem às demandas dos atuais alunos, ou seja, em práticas
tradicionais de ensino, centradas no professor e no conteúdo, tornando,
em muitos casos, o ambiente pouco estimulante e pouco desafiador para
o estudante.

192. Maria Izabel Oliveira da Silva . Lucila Pesce


Questionamos se e como as TDIC poderiam contribuir para o
processo de ensino e aprendizagem da língua portuguesa, considerando
a realidade da escola pública.Nossa busca por métodos de ensino que
pudessem dinamizar as aulas presenciais, integrar as TDIC e garantir
o direito do aluno de aprender nos conduziu ao ensino híbrido: uma
abordagem pedagógica ancorada em metodologias ativas em que são
oferecidas aos estudantes as melhores práticas do ensino presencial
aliadas ao ensino on-line (BERGMANN e SAMS, 2017). Dessa forma, os
modelos híbridos de ensino tornam o professor um orientador, enquanto
o estudante protagoniza o próprio processo de aprendizagem.

Assim, organizamos sequências didáticas durante o ano letivo de


2018, introduzindo o smartphone dos estudantes como principal aparato
tecnológico para acesso às atividades on-line tanto nas aulas presenciais
quanto nos tempos e espaçosalém da escola. Apresentaremos a
metodologia aplicada nas aulas de língua portuguesa para estudantes do 2º
ano do ensino médio, seguido dos resultados e, por fim, as considerações
finais.

2. ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E OS MULTILETRAMENTOS

As Orientações Curriculares para o Ensino Médio (MEC,


2018) estabelecem que o ensino da língua portuguesa deva levar o
estudante à construção gradativa de saberes sobre os textos que circulam
socialmente, recorrendo a diferentes universos semióticos, devendo
propiciar o refinamento de habilidades de leitura e de escrita, de fala e
de escuta, por meio de letramentos múltiplos como ferramentas de
empoderamento e inclusão social. Dessa forma, criar condições para
que os alunos construam sua autonomia nas sociedades contemporâneas
– tecnologicamente complexas e globalizadas, a partir dos múltiplos
letramentos, que, envolvendoenorme variação de mídias, constroem-se

Aplicação do ensino híbrido na disciplina de língua


portuguesa: estudo de caso no ensino médio .193
de forma multissemiótica e híbrida – por exemplo, nos hipertextos na
imprensa ou na internet, por vídeos e filmes, entre outros.

Corroborando essas diretrizes, Rojo e Barbosa (2015, p. 135)


destacam o importante papel da escola com vistas a preparar a população
para uma sociedade cada vez mais digital:

As demandas sociais devem ser refletidas e refratadas


criticamente nos/pelos currículos escolares. [...] para
que a escola possa qualificar a participação dos alunos
nas práticas da web, na perspectiva da responsabilização,
deve propiciar experiências significativas com
produções que circulam em ambientes digitais: refletir
sobre participações, avaliar a sustentação de opiniões, a
pertinência e adequação de comentários, a imagem que
se passa, a confiabilidade das fontes, apurar os critérios
de curadoria e de seleção de textos/produções, refinar
os processos de produção de textos multissemióticos.

Da mesma forma, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)


destaca a importância dos jovens, ao explorarem as possibilidades
expressivas das diversas linguagens para que efetivem reflexões que
envolvam o exercício de análise de elementos discursivos, composicionais
e formais de enunciados nas diferentes semioses, considerando que, por
efeito das TDIC, os textos e discursos atuais se organizam de maneira
híbrida e multissemiótica, incorporando diferentes sistemas de signos em
sua constituição (BNCC, 2018). Assim, o documento sugere que também
sejam priorizadas as propostas de trabalho que possibilitem aos estudantes
o acesso a saberes sobre o mundo digital, às práticas da cultura digital,
e às novas práticas sociais de linguagem como os multiletramentos e os
novos letramentos, devido ao seu grande impacto em vários campos de
atuação social, por ser determinante para uma aprendizagem significativa
e autônoma pelos estudantes.

Os desafios da escola, principalmente no tocante ao ensino


de língua portuguesa são muitos. Um deles diz respeito à demanda por

194. Maria Izabel Oliveira da Silva . Lucila Pesce


integrar as TDIC aos processos formativos, de forma a oportunizar a
aprendizagem, valendo-se dos multiletramentos para além dos gêneros
escolares (anotações, resumos, resenhas, ensaios, dissertações, descrições,
narrações e relatos, exercícios, instruções, questionários, dentre outros)
e alguns poucos de outras esferas (literária, jornalística, publicitária). Por
essa razão,ampliar e democratizar as práticas e os eventos de letramentos
que têm lugar na escola como o universo de textos que nela circula (ROJO,
2010).

A revisão de literatura realizada para a pesquisa ora relatada


revela o desenvolvimento de pesquisas de professores da rede pública
que aplicaram métodos de ensino inovadores integrando as TDICem
suas práticas, mas de forma pontual, sem que tal abordagem faça parte
dos respectivos projetos pedagógicos da escola. A revisão de literatura
também aponta poucos estudos desenvolvidos para o ensino de língua
portuguesa. A maior concentração incide sobre as áreas da matemática e
ciências da natureza. Reiterando o já dito, embora sejam previstasnas
políticas públicas as práticas demultiletramentos, estas não se concretizam
nos projetos políticos pedagógicos das escolas.

Os apontamentos da revisão de literatura indicam que a carência


de infraestrutura, a fragilidade nas ações de formação de professores, as
diferentes realidades dos estudantes das escolas públicas e das desafiadoras
condições do trabalho docente são fatores, muitas vezes, que dificultam
sobremaneira a aplicação de métodos de ensino inovadores.

3. ENSINO HÍBRIDO

Segundo os pesquisadores do Clayton Christensen Institute


(2016, p. 3), o ensino híbrido propõe uma nova abordagem pedagógica,
que une as vantagens da educação on-line combinadas com todos os
benefícios da sala de aula tradicional. O conceito de hibridismo sempre

Aplicação do ensino híbrido na disciplina de língua


portuguesa: estudo de caso no ensino médio .195
esteve presente na educação, mas recebeu novos contornos a partir das
TDIC, conforme elucida Moran (2015, p. 22):

Híbrido significa misturado, mesclado, blended. A


educação sempre foi misturada, híbrida, sempre
combinou vários espaços, tempos, atividades,
metodologias, públicos. Esse processo, agora, com a
mobilidade e a conectividade, é muito mais perceptível,
amplo e profundo: é um ecossistema mais aberto e
criativo. Podemos ensinar e aprender de inúmeras
formas, em todos os momentos, em múltiplos espaços.

O ensino híbrido é um programa de educação formal no qual


um aluno aprende, pelo menos em parte, por meio do ensino on-line,
com algum elemento de controle do estudante sobre o tempo, o lugar, o
modo e/ou ritmo do estudo e, pelo menos em parte, em uma localidade
física supervisionada, fora de sua residência (CHRISTENSEN et al.,
2016). Essa mescla entre sala de aula e ambientes virtuais é fundamental
para abrir a escola para o mundo e para trazer o mundo para dentro
da escola (MORAN, 2015).A aposta é que no ensino híbrido haja uma
ressignificação dos papéis dos alunos e dos professores, em sala de aula,
visto que o professor assume uma posição de facilitador ou mediador,
no processo de aprendizagem, tendo seu foco no aluno e não mais no
conteúdo. Já o aluno ativo estuda os conteúdos em diversos espaços além
da escola, sendo estimulado e desafiado a aprendizagens mais ativas e
colaborativas, no ambiente escolar (SILVA et al., 2018).

Essa abordagem permite que o aluno se torne o responsável pela


sua aprendizagem, assumindo uma postura mais participativa, resolvendo
problemas, desenvolvendo projetos e, com isso, criando oportunidades
para a construção de seu conhecimento(Valente apudBacichet al., 2015,
p. 15). Além disso, grande parte da atual geração de estudantes tem as
tecnologias digitais presentes em seu cotidiano, seja por meio de celulares,
tablets, computadores portáteis ou desktops, em seus mais variados

196. Maria Izabel Oliveira da Silva . Lucila Pesce


contextos. Assim, estudar por meio de ambientes virtuais pode se tornar
uma tarefa mais flexível, livre e significativa (SILVA et al., 2018).

A personalização do aprendizado também é um ganho para


professores e estudantes, visto que por meio de avaliações ou plataformas
adaptativasé possível identificar as reais necessidades de cada aluno em
particular e adaptar os conteúdos conforme as habilidades individuais dos
educandos, além de organizar a sala de aula por afinidades, de acordo com
os objetivos determinados e os resultados a serem alcançados (BACICH
et al., 2015).

O ensino híbrido se organiza em alguns modelos que integram


a sala de aula tradicional e outros mais disruptivos, nos quais ela não
está presente. Os modelos sala de aula invertida, rotação por estação e
laboratório rotacional compreendem as aulas presenciais com atividades
on-line. Já os modelos “rotação individual”, “flex”, “a la carte” e “virtual
enriquecido” têm ênfase na aprendizagem on-line e não são constituídos
por salas de aula tradicionais (SILVA et al., 2018).

4. METODOLOGIA

A pesquisa ora relatada se ergue em meio à abordagem qualitativa


(BOGDAN e BIKLEN, 1994). No tocante à tipologia, trata-se de um
estudo de caso (ANDRE, 2013) aplicado junto a quatro turmas do 2º ano
do ensino médio de uma escola pública da cidade de São Paulo, sendo
três do período vespertino e uma do período noturno. As turmas do
vespertino tinham em média 20 estudantes entre 15 e 16 anos, enquanto
a do noturno, 38 alunos na faixa etária de 15 a 20 anos. Aplicamos um
questionário impresso no início do primeiro bimestre de 2018 para 80
dos 93 alunos matriculados nas quatro turmas do 2º ano do ensino médio,
com o objetivo de compreender o perfil de cada turma no tocante ao uso

Aplicação do ensino híbrido na disciplina de língua


portuguesa: estudo de caso no ensino médio .197
das TDIC, bem como verificar por meio de quais dispositivos acessavam
a internet. Também foi averiguado o interesse dos estudantes em realizar
algumas atividades de língua portuguesa mediadas por plataformas on-line.

A aplicação do modelo híbrido sala de aula invertida ocorreu


em meados do 1º bimestre e, na ocasião, foi estabelecida uma rotina
para a realização das atividades on-line, semanal ou quinzenalmente,
enviadas sempre às quartas-feiras, com o prazo até às 23h59min do
domingo seguinte para a sua realização. Utilizamos o Google Formulários
para envio dos conteúdos a serem estudados, seguidos de questões de
múltipla escolha. Inicialmente não foram atribuídas notas; no entanto, os
estudantes foram incentivados a realizar as atividades on-line como revisão
e preparação para a Avaliação de Aprendizagem em Processo (AAP),
organizada pela Secretaria Estadual da Educação do Estado de São Paulo
(SEE – SP), cuja nota era contabilizada na média final de cada bimestre.

Embora o Google Formulários não seja uma plataforma


educacional, optamos por essa ferramenta devido ao seu uso fácil e
intuitivo; pela correção automática das questões de múltipla escolha;
extração de relatórios e gráficos facilitando a análise de proficiência, como
também a facilidadeapresentada pelos estudantes ao realizar as tarefas on-
line por meio do acesso a umlinkenviado no grupo de WhatsAppda turma,
dispensando a necessidade de uma conta de e-mail. Todas as atividades
on-line foram compostas por vídeos curtos de no máximo seis minutos,
pequenos textos e imagens seguidas de questões dissertativas e de múltipla
escolha para aferir a compreensão dos estudantes.

Os alunos que não dispunham de dispositivos móveis e/ou acesso


à internet realizaram as atividades em sala de aula, utilizando a redewi-
fie dispositivos móveis disponibilizados pela professora-pesquisadora ou
pelos colegas da mesma turma.

198. Maria Izabel Oliveira da Silva . Lucila Pesce


Nos bimestres seguintes, o formulário on-line foi utilizado tanto
para revisão da AAP, comopara introduzir os conteúdos a serem estudados
em sala de aula. Desse modo, tornou-se a principal ferramenta digital para
a aplicação da sala de aula invertida.

O Google Sala de Aula foi aplicado somente no segundo


bimestre,também no modelohíbrido sala de aula invertida. Criamos apenas
duas salas de aulas virtuais para duas turmas do período vespertino, as quais
foram selecionadas para participar de um projeto de literatura africana
organizado por dois professores mestrandos da Universidade Federal de
São Paulo. As turmas virtuais foram criadas em meados do mês de março,
durante as aulas de língua portuguesa, a partir do cadastro individual dos
estudantes por meio de uma conta de e-mail na empresa Google.

Já o modelo híbrido rotação por estações foi aplicado


primeiramente no terceiro bimestre e versou sobre o discurso de ódio na
internet e os limites da liberdade de expressão. As estações de trabalho
foram organizadas na própria sala de aula. Como essas salas não possuíam
acesso à internet, os vídeos sobre a temática foram baixados previamente
pela professora-pesquisadora, que os disponibilizou em tablets, notebook e
smartphone pertencentes a ela mesma. A segunda aplicação da rotação por
estações ocorreu em meados do quarto bimestre, no mês de novembro,
quando se celebra o Dia da Consciência Negra na cidade de São Paulo.
Nosso objetivo foi utilizar essa temática para apresentarmos a estrutura
textual do artigo científico, bem como estimular o pensamento crítico-
reflexivo e o trabalho colaborativo.

Nas duas aplicações do modelo rotação por estações, cada


estação de trabalho oportunizou atividades diferenciadas, ora individuais,
ora coletivas; uma para análise de gráficos e infográficos; outra para
leitura e seleção de argumentos em um artigo de opinião. A estação de
pesquisa contava com dispositivos digitais e um roteador particular da
professora,que tornou acessível a internet aos estudantes. Por fim, uma

Aplicação do ensino híbrido na disciplina de língua


portuguesa: estudo de caso no ensino médio .199
das estações propunha elaborar intervenções sociais a partir do trabalho
colaborativo.

O Kahoot é uma plataforma gratuita baseada em jogos que podem


ser criados e disponibilizados por pessoas de todo o mundo e jogados
individualmente, em duplas ou em times. Este software possibilita a criação
de questionários on-line que podem ser respondidos pelos estudantes
utilizando os próprios smartphones, tablets ou computadores (SILVA, PESCE
e NETTO, 2018). Utilizamos essa ferramenta nosegundo semestre com
intuito de promover uma aprendizagem baseada na gamificaçãointegrando
o smartphone dos estudantes às aulas de literatura. A primeira aplicação
se deu no mês de agosto, após o retorno das férias.Os estudantes foram
organizados em times compostos por,em média,três integrantes.Aplicamos
um quiz em três rodadas e o time com maior pontuação nas três rodadas
ganhou uma caixa de bombom como forma de premiação.

Já a segunda aplicação se deu nos mesmos moldes da primeirae


ocorreu no mês de novembro, com o objetivo de aferir os conhecimentos
dos estudantes sobre os conceitos principais da escola literária Realismo e
suas principais obras literárias, estudadas ao longo do segundo semestre.

Ao término do quarto bimestre, aplicamos um último


questionário com perguntas abertas e fechadas e realizamos entrevistas
semiestruturadas aos estudantes para analisarmos a sua percepção sobre
ao uso do próprio smartphone e da internet bem como a aplicação do ensino
híbrido para o ensino de língua portuguesa.

5. RESULTADOS

As respostas ao questionário preliminar identificaram o smartphone


como principal meio de acesso à Internet, assim como a rede wi-fi das suas

200. Maria Izabel Oliveira da Silva . Lucila Pesce


residências dos estudantes configurou o principal meio de conexão. Todos
os estudantes, sem exceção, manifestaram o interesse em utilizar o próprio
smartphone para realizar as atividades de língua portuguesa. Esses dados
foram de suma importância paraa pesquisa aqui relatada, considerando
que a escola em questão possuía apenas quatro computadores com acesso
à Internet e de uso exclusivo da gestão escolar. Isso significa que,para
implantar o método de ensino híbrido,seria necessário utilizar os recursos
dos próprios estudantes.

As atividades on-line postadas no Google Formulários confirmaram


as respostas obtidas por meio do questionário preliminar em relação ao
interesse dos estudantes em utilizar as tecnologias digitais para a realização
de atividades escolares. De forma gradual, ao longo do ano letivo, os 80
estudantes que responderam ao questionário, realizaram as atividades
de língua portuguesa utilizando a plataforma Google Formulários. Às
primeiras atividades on-line não foram atribuídas notas, pois tínhamos por
objetivo modificar o método de ensino de língua portuguesa e promover
uma postura mais engajada dos estudantes tanto nas atividades propostas
em sala de aula, quando nas on-line.

Estabelecida uma rotina ora semanal, ora quinzenal de envio


e realização das atividades on-line, passamos a pontuar estas tarefas na
média final da disciplina de língua portuguesa a partir do 3º bimestre,
após a adesão de quase a totalidade dos estudantes. Assim, as duas últimas
atividades on-line tiveram os maiores índices de participação dos alunos
e a nossa hipótese é de que havíamos construído uma nova percepção
de uso dos dispositivos móveis como ferramenta aliada à aprendizagem.
Selecionamos uma amostragem das seis primeiras atividades on-line, sendo
as duas últimas com atribuição de notas na disciplina de língua portuguesa.

Aplicação do ensino híbrido na disciplina de língua


portuguesa: estudo de caso no ensino médio .201
Resultados de Participação

  X1 X2 X3 X4 Total de Alunos

Mar Atividade on-line 1 1 3 8 13 26

Abr Atividade on-line 2 14 9 9 17 49

Abr Atividade on-line 3 15 16 14 18 63

Mai Atividade on-line 4 16 16 17 23 72

Mai Atividade on-line 5 16 16 16 23 71

Jun Atividade on-line 6 16 16 17 29 78

Jun Atividade on-line 7 16 15 16 31 78

Ago Atividade on-line 8 16 15 17 31 79

Ago Atividade on-line 9 16 16 17 31 80

Fonte: Elaborado pela professora-pesquisadora (primeira autora do capítulo)

As entrevistas semiestruturadasmostraram que a maioria dos


estudantes considerou positivo aprender o conteúdo por meio do Google
Formulários antes da aula presencial, sob a alegação de se esforçarem para
compreender a temática abordada para, na sequência, realizar as atividades
propostas. Dessa forma, os estudantes se sentiam mais confiantes para,
durante as aulas presenciais,compartilhar seu conhecimento, auxiliando
outros colegas.

Os estudantes também apontaram os vídeos e as atividades on-


line como facilitadores da compreensão dos conteúdos e não encontraram
dificuldades no manuseio de tal ferramenta, reforçando a importância dos
multiletramentos (ROJO, 2010; ROJO e BARBOSA, 2015).

Em menção ao que mais haviam gostado nas atividades da


disciplina de língua portuguesa durante o 3º bimestre, os estudantes

202. Maria Izabel Oliveira da Silva . Lucila Pesce


indicaram as atividades on-line devido à flexibilidade de tempo e espaço
para a sua realização. Manifestaram interesse para que outras disciplinas
também adotassem metodologias semelhantes. As principais dificuldades
apontadas foram em relação à conectividade nem sempre disponível fora
da escola.

Em relação àaplicação da sala de aula invertida com do Google


Sala de Aula, identificamos pouca adesão dos estudantes. Isso porque os
encontros com os professores orientadores do projeto não se concretizaram
conforme combinado previamente, ou devido à indisponibilidade de
agenda dos próprios professores, ou devido a eventos e demandas da
própria escola. Diante dessas circunstâncias, levantamos a hipótese de
que a descontinuidade do projeto pode ter sido um fator determinante
para a falta de interesse dos estudantes em acessar a plataforma e realizar
as atividades on-line, visto que tal projeto não agregaria nota na média
final da disciplina. Ademais, não faria sentido, para muitos, estudar
antecipadamente para uma aula.

A aplicação da plataforma Kahootse mostrou de grande adesão no


tocante à participação dos estudantes no campeonato de literatura, dado
o clima de competição e preparo antecipado para responder osquizzes.
Os resultados obtidos por meio do relatório extraído da plataforma nos
indicaram em quais aspectos conceituais os estudantes encontraram
dificuldades e, assim, pudemos retomá-los na aula seguinte ao campeonato,
propondo atividades de revisão de conteúdo.

As experiências com o modelo híbrido rotação por estações se


mostraram muito positivas do ponto de vista da autonomia dos estudantes
em seu processo de aprendizagem. Eles se auxiliavam mutuamente nas
estações de trabalho e recorriam à professora somente para esclarecimentos
das dúvidas que não tinham conseguido resolver entre eles, criando um
ambiente mais colaborativo à aprendizagem.Outro aspecto relevante
foi a própria reorganização da sala de aula, descaracterizada do modelo

Aplicação do ensino híbrido na disciplina de língua


portuguesa: estudo de caso no ensino médio .203
tradicional de enfileiramento, para uma perspectiva mais dinâmica,
propondo maior engajamento dos estudantes.O clima de satisfação
em estar naquele ambiente de aprendizado foi visível e as narrativas
apresentadas durante as entrevistas confirmam nossa hipótese.

De maneira geral, os estudantes manifestaram satisfação em


aprender por meio desse modelo híbrido de ensino, destacando como
pontos fortes a dinâmica da aula, a colaboração entre os pares, a maior
autonomia. Como ponto negativo, foram unânimes quanto ao tempo
estipulado por estação, pois o consideraram insuficiente para a realização
de algumas tarefas.

Alguns pontuaram como ponto negativo e outros como sugestão


o fato de apenas uma disciplina aplicar esse método de ensino, solicitando
que outras áreas do conhecimento também aderissem a tal abordagem
pedagógica.

Aplicamos um questionário final, ao término do quarto bimestre


e tabulamos as respostas separadamente por turma, para melhor analisar
as similaridades e diferenças entre elas, levando em conta que são jovens
da mesma série, mas sendo uma turma composta por alguns jovens acima
de 16 anos, trabalhadores ou gestantes/mães lotados em um período
distinto. A seguir, apresentamos as tabelas.

1. Costuma utilizar a internet para realizar atividades escolares?


Justifique a sua resposta.

Turmas X1 X2 X3 X4 Total

Nunca - - - - -

Ocasionalmente 4 - 6 14 24

Frequentemente 9 14 11 17 51

204. Maria Izabel Oliveira da Silva . Lucila Pesce


Total 13 14 17 31 75

Fonte: Elaborado pela professora-pesquisadora (primeira autora do capítulo)

Os estudantes que responderam ocasionalmente justificaram


em suas respostas que utilizam a Internet para as atividades escolares que
demandavam pesquisas específicas solicitadas pelos professores. Na falta
de recursos da escola recorrem à rede.Três destacaram maior afinidade
com material impresso. As demais justificativas foram dos estudantes do
período noturno, sendo duas referentes à falta de Internet na residência.
Segundo eles, utilizam somente quando não conseguem compreender
a explicação do professor em sala de aula, por auxiliar mais que os
livros didáticos, para realizar as atividades on-line de língua portuguesa
e,finalmente, alguns alunos alegaram falta de tempo devido à sua carga
horária de trabalho ou por cuidarem de irmãos mais novos ou filho (s)
durante o dia.

2. Como você se sente em realizar atividades escolares de língua


portuguesa por meio de aplicativos educacionais? Justifique a sua
resposta.

Turmas X1 X2 X3 X4 Total

Muito satisfeito 9 8 8 24 49

Satisfeito 4 4 8 7 23

Pouco Satisfeito - 2 - - 2

Insatisfeito - - - - 0

Muito insatisfeito - - - - 0

Indiferente - - 1 - 1

Aplicação do ensino híbrido na disciplina de língua


portuguesa: estudo de caso no ensino médio .205
Total 13 14 17 31 75

Fonte: Elaborado pela professora-pesquisadora (primeira autora do capítulo)

Dos 75 estudantes que responderam ao questionário, 49 (65%)


afirmram se sentir muito satisfeitos em realizar as atividades on-line de
língua portuguesa, enquanto 23 (31%) disseram se sentir satisfeitos.
Isso revela que 96% dos alunos implicados nesta pesquisa consideraram
positiva a aplicação de atividades de português mediadas pelas TDIC e
as justificativas de ambas as respostas se pautaram, principalmente, na
quebra da rotina da escola, por sair da cultura de cópia de conteúdos no
caderno e consideraram uma forma mais prática e eficiente de aprender.

Dois estudantes responderam se sentir pouco satisfeitos.Um


justificou o esquecimento e o outro que a atividade é boa, mas deixa a
desejar e não detalhou. Por fim, uma estudante respondeu se sentir
indiferente e justificou do seguinte modo: “nunca estudei assim, mas acho
bom porque pode incentivar outros alunos”.

3. A realização das atividades on-line contribuiu para a sua


aprendizagem? Justifique a sua resposta.

Turmas X1 X2 X3 X4 Total

Sim 13 13 16 28 70

Não - - - - 0

Parcialmente - 1 1 3 5

Total 13 14 17 31 75

Fonte: Elaborado pela professora-pesquisadora (primeira autora do capítulo)

206. Maria Izabel Oliveira da Silva . Lucila Pesce


Quanto à percepção dos estudantes referente à contribuição das
atividades on-line na aprendizagem de língua portuguesa, 70 estudantes
(93%) responderam afirmativamente. A principal justificativa foi a
facilidade e praticidade das atividades em ambiente virtual para se aprender
os conteúdos, seguida de maior atenção e mais interesse em realizá-las.

Quanto aos cinco estudantes que responderam parcialmente


(7%), um justificou que as atividades on-line realizadas em casa não
contribuíram muito para a sua aprendizagem porque exigia apenas
responder questões, já os quizzes em sala ajudaram mais. Outro estudante
apontou sua preferência por materiais impressos, como cadernos e livros.
A perda de atenção e a morosidade para realizar as tarefas on-line foram
outros aspectos levantados por um estudante. Os outros dois justificaram
a falta de tempo para fazer e, quando faziam, era de forma rápida e não
prestavam muita atenção.

4. Como você avalia a experiência de aprender os conteúdos da


disciplina de língua portuguesa por meio de dispositivos móveis
conectados à internet sem a presença física da professora e antes
da aula presencial?

Turmas X1 X2 X3 X4 Total

Ótima 4 6 9 15 34

Boa 7 5 8 15 35

Ruim 2 2 - 1 5

Péssima - - - - 0

Indiferente - 1     1

Total 13 14 17 31 75

Fonte: Elaborado pela professora-pesquisadora (primeira autora do capítulo)

Aplicação do ensino híbrido na disciplina de língua


portuguesa: estudo de caso no ensino médio .207
Em relação à percepção dos estudantes quanto ao modelo sala
de aula invertida, observamos que também houve uma considerável e
positiva adaptação, visto que 69 deles (92%) avaliaram a experiência como
ótima ou boa. A contribuição positiva da sala de aula invertida mais citada
foi a promoção da autonomia para estudarem antecipadamente à aula,
se esforçarem para compreender o conteúdo, em uma atitude de maior
autonomia para com a professora.

Ressaltamos que mesmo considerando os pontos positivos acima,


alguns estudantes destacaram que as aulas presenciais eram fundamentais,
ou seja, um método de ensino on-line não substitui o presencial. Dos
cinco (7%) estudantes que avaliaram como ruim, quatro alegaram a
ausência do professor para ajudar e tirar dúvidas durante a realização das
tarefas e outro estudante apontou que a ausência da professora gera uma
grande tentação de pegar a resposta pronta no Google.

5. Você gostou da dinâmica de aula invertida tendo seu celular/


computador como principal recurso para acesso às atividades?
Justifique a sua resposta.

Os 75 estudantes afirmaram ter gostado de usar seus dispositivos


móveis/computadores como principal meio para realizar as atividades
on-line que antecederam as aulas, pois consideram que estes contribuem
para sua aprendizagem. Reafirmaram que essa dinâmica contribui para o
melhor aproveitamento da aula presencial e apontaram como um método
diferenciado do modelo tradicional muito criticado por eles. A questão do
tempo e da flexibilidade foi reafirmada e alguns estudantes sugeriram a
adoção deste método em outras disciplinas.

208. Maria Izabel Oliveira da Silva . Lucila Pesce


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta pesquisa foi investigar em que medida


a implantação do ensino híbrido favorece o processo de ensino-
aprendizagem de língua portuguesa no ensino médio, partindo da
percepção dos estudantes da 2º série de uma escola pública estadual paulista
e da observação participante da professora-pesquisadora, que definiu com
indicadores a realização das atividades propostas em sala de aula e também
nos ambientes virtuais, o engajamento dos estudantes durante as aulas de
língua portuguesa e, por fim, o desempenho nas atividades avaliativas da
disciplina em questão.

Para tanto, aplicamos os modelos híbridos sala de aula invertida


e rotação por estações e quizzes on-line utilizando as plataformas Google
Pesquisa, Google Formulários, Google Sala de Aula, Google Acadêmico,Youtube
e o software Kahoot, além da rede social WhatsApp. A adesão dos alunos a
essa metodologia ocorreu de forma gradual durante o ano letivo de 2018.
A análise das entrevistas e do questionário por eles respondidosindica que,
do ponto de vista dos estudantes, a adoção do ensino híbrido contribuiu
para a aprendizagem conceitual da língua portuguesa, visto que esta
metodologia propiciou maior autonomia, engajamento e interesse para
aprender utilizando algo que, segundo eles, faz parte de suas vidas e que
gostam de manusear, ressignificando o uso do telefone celular no espaço
escolar.

No tocante à satisfação em aprender a língua portuguesa por meio


de aplicativos educacionais, os educandos se sentiram satisfeitos ou muito
satisfeitos, por considerarem um meio mais interessante, dinâmico, dentro
da sua realidade, que exige mais pesquisa e preparo para a aula presencial.
Durante as aplicações do modelo rotação por estações percebemos maior
engajamento e diálogo entre os estudantes, pois buscavam realizar as
atividades propostas nas estações de trabalho, recorrendo, primeiramente,

Aplicação do ensino híbrido na disciplina de língua


portuguesa: estudo de caso no ensino médio .209
aos colegas do grupo e, somente quando não resolvido, recorriam à
professora.

Por meio do modelo sala de aula invertida, grande parte


dos estudantes chegava às aulas presenciais já sabendo o assunto que
estudaríamos. Aos poucos foram se tornando maisparticipativos e
colaborativos. Utilizamos a Avaliação de Aprendizagem em Processo
(AAP) como uma das formas para aferirmos a aprendizagem de língua
portuguesa e notamos um melhor aproveitamento dessa avaliação,ao
longo do ano letivo. As produções de redações também apresentaram
significativa melhora, nos seguintes aspectos: estrutura textual,
apresentação e fundamentação de argumentos, organização das propostas
de intervenção.

Esta experiência se iniciou com apenas uma professora de


língua portuguesa e se estendeu para mais cinco professores que aderiram
o ensino híbrido ao longo de 2018. Como precursoras da implantação
da metodologia nessa unidade escolar, identificamos como limites da
pesquisa a dificuldade em organizar aulas no modelo rotação por estação,
bem como jogos on-line com turmas numerosas, como foi o caso da nossa
única turma do período noturno composta por 35 estudantes.

Ainda em relação aos limites da pesquisa, por se tratar de um


estudo de caso, não podemos generalizar a acuidade do método ora
analisado a qualquer escola e a todos os públicos.

Os estudantes do período vespertino não exerciam atividade


remunerada e tinham maior disponibilidade de tempo extraclasse para
realizar as atividades on-line e melhor se prepararem para as aulas presenciais.
Já os estudantes do período noturno, uma parte já se caracterizava como
estudante trabalhador, outros estudavam no contra turno escolar em
instituições preparatórias para o programa jovens aprendiz, enquanto
os demais assumiam responsabilidades domésticas seja como filhos, seja

210. Maria Izabel Oliveira da Silva . Lucila Pesce


como progenitores. As diversas realidades do estudante da escola pública
também interferem na adesão maior ou menor do ensino híbrido.

Outro aspecto importante a considerar são as circunstâncias


atuais do docente da escola pública, com acúmulo de cargos ou submetidos
ao trabalho em duas ou mais escolas para completar sua jornada.Os
professores são constantemente cobrados por resultados, mas a eles
falta infraestrutura mínima para pensar em inovação em suas práticas
pedagógicas. Portanto, esta pesquisa se apresenta dentro de um contexto
desafiador que foi enfrentado por uma professora-pesquisadora em
formação acadêmica, tendo apenas uma jornada de trabalho em apenas
uma escola, fatores foram relevantes para que tal aplicação fosse concluída
com êxito.

REFERÊNCIAS

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Revista da FAEEBA-Educação e Contemporaneidade, v. 22, n. 40,
2013. Disponível em <http://www.revistas.uneb.br/index.php/faeeba/
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personalização e tecnologia na educação. Penso Editora, 2015.
Disponível em <http://pan.nied.unicamp.br/ojs/index.php/tsc/article/
view/152>. Acesso em 03/03/2019.

BERGMANN, J.; SAMS, A. Sala de Aula Invertida, uma Metodologia


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BNCC, Base Nacional Comum Curricular. Disponível em < http://


basenacionalcomum.mec.gov.br/> acesso em 10/03/2018.

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portuguesa no ensino médio de escola pública. Tecnologias, Sociedade
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ROJO, Roxane. Alfabetização e letramentos múltiplos: como


alfabetizar letrando. Coleção explorando o ensino: Língua Portuguesa:
ensino fundamental. Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Básica, Brasília: vol, v. 19, p. 15-36, 2010.

ROJO, R.; BARBOSA, J. Hipermodernidade, multiletramentos e


gêneros discursivos. 1.ed. São Paulo: Parábola, 2015.

212. Maria Izabel Oliveira da Silva . Lucila Pesce


Aplicação do ensino híbrido na disciplina de língua
portuguesa: estudo de caso no ensino médio .213
09.
LINGUÍSTICA APLICADA E ENSINO
DE LÍNGUA PORTUGUESA:
UMA VISÃO METODOLÓGICA PARA
O APRENDIZADO DA LEITURA E DA
ESCRITA

Rayla Estefane da Silva Carvalho

rayllacarvalho15@gmail.com

1. INTRODUÇÃO

O que não é novidade no ensino de Língua Portuguesa são os


resultados não satisfatórios diante das práticas que são utilizadas nas
escolas, pois não é de hoje a notoriedade de falhas nesse processo. O que
pode ser observado é que alunos e professores têm dificuldades em relação
ao ensino, já que, por parte do discente, ele não consegue compreender
o que é explicado pelo professor por conta da metodologia utilizada, ao
passo que o docente se depara com várias dificuldades por parte daqueles
e, muitas vezes, não consegue reorganizar e adaptar sua metodologia às
necessidades do seu público.

Linguística aplicada e ensino de língua portuguesa: uma visão


metodológica para o aprendizado da leitura e da escrita .215
Para falar do papel da Linguística Aplicada (LA) no ensino de
Língua Portuguesa,faremos um breve histórico de seu surgimento no
Brasil, evidenciando que, atualmente, ela é uma área independente e visa
a pesquisar, dentre outras coisas, os problemas do ensino de línguas, para
intervir de alguma forma nas dificuldades encontradas.A partir de estudos
nesta área,apresentaremos, sucintamente, sua manifestação no Brasil e
sua importância neste ponto específico, que é a LA no ensino de Língua
Portuguesa.

O objetivo deste artigo, de forma geral, é discutir sobre as


dificuldades enfrentadas no ensino, destacando as metodologias,com vistas
a realçar o trabalho da Linguística em si e também as contribuições da LA
e seu uso para as novas/possíveis metodologias de ensino do português.

Fundamentamos o estudo emMoita Lopes (2013), entre outros,


para tratarmos do percurso histórico da LA no Brasil. Com base em
Cagliari(2009),veremos alguns pontos da Linguística e o seu enfoque em
relação ao ensino, abordando a escrita e a leitura. Kleiman(2009), por
usa vez, abordará, a partirdos aspectos cognitivos da Leitura,quais são os
objetivos e expectativas sobre esta competência. Por fim,Antunes(2003),
ao falar da aula de Português e suas propostas, repensa e propõe o ensino
da língua portuguesa através de metodologias contribuintes aos atos de
leitura e escrita, para que ambos se tornem úteis na sua execução.

2. LINGUÍSTICA APLICADA NO BRASIL

Como é sabido, a Linguística Aplicada é um campo de estudo


interdisciplinar e transdisciplinar. Ela faz investigações e, a partir delas,
busca soluções de problemas referentes à Linguagem, mas não apenas
isso.Segundo Moita Lopes(2013), a LAteve seu surgimento no Brasil no

216. Rayla Estefane da Silva Carvalho


ano de 1964, com a realização do congresso da Associação Internacional
de Linguística Aplicada (AILA). O mesmo autor também ressalta que a
professora e pesquisadora Maria Antonieta Alba Celani teve importante
atuação neste campo de investigação quanto a sua introdução no Brasil.

Com a fundação da Associação de Linguística Aplicada do Brasil


(ALAB), em 1990, em Recife – PE, foi-sedando início a um processo de
independência da LA, que, através dos Programas de Pós-Graduação na
área,começou a se firmar cada vez mais, o que demonstra que ela não
adota apenas a Linguística, mas segue também para outras áreas, como a
psicologia, a sociologia e antropologia.

Paschoal e Celani (2013, p. 19)abordam sobre a LA e sua a


aquisição de autonomia quanto área de pesquisa, afirmandoque:

A partir de uma interpretação multidisciplinar para


a solução de problemas relacionados à linguagem,
de uma redefiniçao sempre nova para cada novo
conjunto de problemas, a LA adquire uma autonomia
organizacional que lhe justifica o uso do nome como
área de direito próprio.

Apesar de entender que essa área se aplica direcionada para a


Linguística, Paschoal e Celani (2013, p. 21) também constatam que:

Em uma representação gráfica da relação da LA


com outras disciplinas com as quais ela se relaciona,
a LA não apareceria na ponta de uma seta partindo
da Linguística. Estaria provavelmente no centro do
gráfico, com setas subdirecionadas dela partindo para
um número aberto de disciplinas relacionadas com a
linguagem, entre as quais estaria a Linguística, em pé
de igualdade, conforme a situação com a Psicologia, a
Antropologia, a Sociologia, a Pedagogia ou a tradução.

Linguística aplicada e ensino de língua portuguesa: uma visão


metodológica para o aprendizado da leitura e da escrita .217
Fica visível, então, o quanto esse campo de estudo vem se
voltando não só para problemas linguísticos, mas também para outras
disciplinas que se relacionam com a linguagem. Rajapagolan(2003,
p.106,107), a esse respeito, afirma que “[...] é lícito dizer que a linguística
aplicada nasceu no berço esplêndido do mundo acadêmico, como uma
subárea de investigação dedicada a eventuais aplicações de uma disciplina
mãe já consagrada – a linguística geral ou teórica”.

À luz das breves explanações feitas até aqui, o que se configura


é que, a partir de tais informações sobre a LA, podemos definir sua
importância enquanto área da investigação, sobretudo no âmbito de
problemas relacionados ao ensino de Língua Portuguesa, visandoà busca
dacompreensão de onde estão os empecilhos e de que forma atuar para a
resolução destes.

3. LINGUÍSTICA E LINGUÍSTICA APLICADA EO ENSINO DE LÍNGUA


PORTUGUESA

A princípio, com base em Fiorin (2003), é necessário destacar o


papel da Linguística para as abordagens que serão feitas posteriormente.
Fiorin(2003, p. 16)afirma que:

O lingüista procura descobrir como a linguagem


funciona por meio do estudo de línguas específicas,
considerando a língua um objeto de estudo que deve
ser examinado empiricamente, dentro de seus próprios
termos, como a Física, a Biologia etc. A metodologia de
análise Linguística focaliza, principalmente, a fala das
comunidades e, em segunda instância, a escrita.

Algumas ponderações a seguir serão feitas sobre aLinguística e o


ensino de língua portuguesa, ainda a partir de Cagliari (2009)e, também,

218. Rayla Estefane da Silva Carvalho


de Kleiman (2009), a qual abordará os aspectos cognitivos da leitura. Esses
autores nos auxiliam a compreender o papel da linguística na sala de aula
e como ela se aplica nas competências de leitura e escrita.

Conforme Cagliari (2009, p. 34):

[...] a linguística, entretanto, teve um desenvolvimento


extraordinário nas últimas décadas, que não foi
acompanhado pela grande maioria dos professores
de língua portuguesa de nossas escolas de formação,
vivendo à sombra dos grandes mestres do passado.

Com isso, surge a questão de um ensino sem formação continuada


por parte dos professores, pois alguns deles não buscam outras formações
posteriores às suas graduações, e não acompanham a evolução da
linguística e sua relação com o ensino de língua portuguesa.

Cagliari (2009) aponta que ainda há professores que atribuem os


fracassos no ensino de língua à intromissão da linguística nas salas de aula,
mas o que se sabe é que a Linguística tem como objetivo o estudo da
linguagem, porém, não é, per se, um método de ensino. A esse respeito, o
referido autor assevera que a Linguística:

[...] representa, sem dúvida, um enorme avanço nos


estudos da linguagem, mas que não foi feita para
ensinar português nas escolas, assim como também a
informática é uma teoria que se refere a uma função
comunicativa da linguagem, mas não é um método do
ensino de Português.(CAGLIARI, 2009, p. 36).

O autor ressalta a importância do conhecimento de tais teoriaspara


o conhecimento de um professor competente, mas afirma que uma teoria
não é uma metodologia de ensino, além de destacar como deve ser feito o
uso da linguística no que diz respeito ao ensino de português. Segundo ele:

Linguística aplicada e ensino de língua portuguesa: uma visão


metodológica para o aprendizado da leitura e da escrita .219
O uso da linguística no ensino de português tem que ser
planejado em conjunto por linguistas e professores de
português, com a colaboração de pedagogos, psicólogos
e etc. O linguista vai dar o conteúdo e as técnicas de
investigação, o professor e os demais colaboradores do
processo escolar vão dosar o ensino, programá-lo na
sequência conveniente e buscar as motivações para o
aluno estudar português. (CAGLIARI, 2009, p. 36).

Conforme o que foi visto, o autor mostra que, para usar a


linguística no ensino de português, é feito todo um processo, que, antes, é
planejado, em conjunto, por linguistas, professores de português (os quais
acompanham de perto a experiência de ensino na sala de aula) e outros
colaboradores, a fim de que cada um faça sua parte e alcance o principal
objetivo que é o aprendizado do aluno.

Na mesma perspectiva sobre a importância da linguística como


base para o ensino de português, Kleiman (2009) destaca, ao tratar dos
aspectos cognitivos da leitura, que, para compreender um texto, o leitor
deve dispor de um conhecimento prévio e, entre eles, está o conhecimento
linguístico, o qual é:

[...] aquele conhecimento implícito, não verbalizado,


nem verbalizável na grande maioria das vezes, que faz
com que falemos português como falantes nativos.
Este conhecimento abrange desde o conhecimento
sobre como pronunciar português, passando pelo
conhecimento de vocabulário e regras de língua,
chegando até o conhecimento sobre o uso da língua.
(KLEIMAN, 2009, p. 13).

Ao utilizar exemplos sobre a importância do conhecimento


linguístico, enfatizando que tal é imprescindível à leitura, Kleiman(2009)
observou que, sem o conhecimento linguístico prévio, a leitura pode ficar

220. Rayla Estefane da Silva Carvalho


comprometida e, reflexamente, há um bloqueio na compreensão pelo
leitor. Segundo ela,

[...]não é apenas a falta de conceituação que pode


provocar incompreensão na língua materna; às vezes,
não conhecer o nome de objetos concretos, ou de
conceitos simples pode também trazer problemas
de ordem linguística à compreensão de um texto.
(KLEIMAN, 2009, p. 14).

Diante das afirmações a respeito desse conhecimento linguístico,


vemos que, ao se fazer uma análise detalhada sobre o assunto, fica nítido o
quanto o conhecimento linguístico prévio define o sucesso de uma leitura
por parte do leitor, pois esse conhecimento é o ponto de partida que
conduz a todo o restante. Consoante Kleiman (2009, p. 14-15),

O conhecimento linguístico desempenha um papel


central no processamento do texto. Entende-se por
processamento aquela atividade pela qual as palavras,
unidades discretas, distintas, são agrupadas em unidades
ou fatias maiores, também significativas, chamadas
constituintes da frase.

Baseados em Cagliari (2009) e Kleiman(2009), é possível


depreender que a linguística tem um protagonismo no ensino de Língua
Portuguesa, auxiliando os professores e demais colaboradores do
processo de ensino-aprendizagem a identificar eventuais falhas nesse
processo e buscar uma intervenção adequada, que venha a contribuir com
o aprendizado dos alunos. Além disso, como foi mostrado neste trabalho,
as questões linguísticas têm sua importância no processo de leitura, pois,
por meio da ativação do conhecimento prévio,é possível uma melhor
compreensão de um determinado texto.

Linguística aplicada e ensino de língua portuguesa: uma visão


metodológica para o aprendizado da leitura e da escrita .221
Sabe-se que muitas são as dificuldades encontradas em relação
à leiturae à escrita, já que, nas salas de aula, o modo como essas duas
habilidades são abordadas interfere no aprendizado dos alunos. Então,
para entender melhor como elas funcionam, serão apresentadas as formas
como cada uma delas é aplicada em sala de aula, de modo a implicar um
aprendizado ineficaz delas.

O ato de escrever, mesmo que comum nas escolas, torna-se, de


certa forma, algo automático e sem sentido quando o intuito é a produção
de um texto útil e proveitoso para os respectivos leitores deste. Cagliari
(2009, p. 87), ao discorrer sobre a leitura e escrita na sala de aula,afirma que
“antes de ensinar a escrever, é preciso saber o que os alunos esperam da
escrita, qual julgam ser a sua utilidade, a partir daí programar as atividades
adequadamente”.

Infelizmente, não é isso que aconteceno dia a dia das salas de


aulas e os alunos são estimulados a escrever textos ou redações acerca
de temas absurdos e sem uma contextualização prévia, além de que, na
maioria dos casos, eles não escrevem o que gostariam e nem muito menos
da forma que gostariam.

O autor enfatiza que“amaneira como a escola trata o escrever leva


facilmente muitos alunos a detestar a escrita e em consequência a leitura, o
que é realmente um irreparável desastre educacional”(CAGLIARI, 2009,
p. 87, grifos em original) e acrescenta que“ninguém escreve ou lê sem motivo,
sem motivação”(CAGLIARI, 2009, p. 87, grifos do original). Constatamos, a
partir disso, que a escrita, além da importância de como é produzida, anda
diretamente em parceria com a leitura, e que as duas ainda encontram
dificuldades em seu desenvolvimentono âmbito educacional. Tanto se faz
importante essa relação, escrita e leitura, que Cagliari (2009, p. 88) ressalta
que“a escrita, seja ela qual for, tem como objetivo primeiro permitir a
leitura. A leitura é uma interpretação da escrita que consiste em traduzir

222. Rayla Estefane da Silva Carvalho


os símbolos escritos em fala”. Ele destaca, ainda, o objetivo do ato de
escrever, ao propor que“a escrita deve ter como objetivo essencial o fato
de alguém ler o que está escrito”(CAGLIARI, 2009, p. 89).

Em se tratando da leitura, é notório que muitos alunos têm certa


dificuldadede executar essa competência com exatidão, pois ela vai além
de saber reconhecer os símbolos escritos, mas, mais que isso, necessita de
uma compreensão maior que habilita o leitor a conseguir interpretar um
texto. Nessa direção, Cagliari (2009, p. 89) destaca que:

Ler é um ato linguístico diferente da produção


espontânea de fala sobre um assunto qualquer. Ler
é condicionado pela escrita, mesmo que a restrição
seja somente semântica. É exprimir um pensamento
estruturado por outra pessoa, não pelo leitor falante.

Ainda acerca dos empecilhos em torno da leitura, Cagliari (2009,


p. 130) enfatizaque “a grande maioria dos problemas que os alunos
encontram ao longo dos anos de estudo, chegando até a pós-graduação,
é decorrente de problemas de leitura”. Infelizmente, essas questões
implicam, de um modo geral, no aprendizado do aluno seja em qual
disciplina for, uma vez que, na visão do autor,o fato de não saber ler e
interpretar não ohabilitará a compreender e responder até mesmo uma
questão de matemática. O problema não é saber ou não as operações,mas
compreender a proposta para a execução dos cálculos e, para isso não teve
um treinamento adequado para leitura de números, relações quantitativas e
problemas matemáticos.Diante desta problemática,o autorpontua que isso
deve ser repensado por professores de ambas as áreas e até das demais.

O professor de língua portuguesa não ensina isso


porque diz que é obrigação do professor de matemática
e o professor de matemática ou não desconfia do
problema, ou quando muito, acha que ler e compreender

Linguística aplicada e ensino de língua portuguesa: uma visão


metodológica para o aprendizado da leitura e da escrita .223
um texto é um problema que o professor de língua
portuguesa deve resolver na educação das crianças.
(CAGLIARI, 2009, p.131).

Visto isso, podemos dizer que ainda está implícito em cada


professor (e também nos pais, também importantes) o dever de incentivar
e cultuar a leitura em todas as áreas de ensino. Outra assertiva do mesmo
autor diz respeito ao ensino em geral:

Não falo de ensino programado, que reduz tudo a um


condicionamento pelo texto, mas penso que a escola
precisa ensinar aos alunos a ler e a entender não só as
palavras, as histórias das antologias, mas também os
textos específicos de cada matéria, as provas de cada
área, as instruções de como fazer algo etc. (CAGLIARI,
2009, p.131).

Kleiman (2009), ao abordar a leitura, analisa esse processo e


tudo o que está envolvido no seu desempenho. A autora define o que se
entende sobre essa habilidade, como essa se desenvolve e qual o objetivo
dela ao ser realizada.

A compreensão de um texto é um processo que se


caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o
leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento
adquirido ao longo de sua vida. É mediante a
interação de diversos níveis de conhecimento, como o
conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de
mundo, que o leitor consegue construir o sentido do
texto. (KLEIMAN, 2009, p. 13).

Logo, entendemos que, a partir do conhecimento prévio do


leitor,maiores serão as possibilidades de uma melhor interpretação, visto
que ele conseguirá não apenas decodificar o texto,mas construir o sentido
dele.Kleiman (2009, p.13), além disso, afirma que “pode-se dizer com

224. Rayla Estefane da Silva Carvalho


segurança que sem o engajamento do conhecimento prévio do leitor não
haverá compreensão.”.

Correlacionando essas duas habilidades, que andam juntas, faz-


se necessário repensar as formas de como trabalhá-las para um melhor
desempenho por parte do aluno em todas as áreas de ensino, já que:

Exige-se muito mais do aluno com relação à escrita


do que com relação à leitura. Isso se deve ao fato de a
escola saber avaliar mais facilmente os acertos e erros
de escrita e não saber muito bem o que o aluno faz
quando lê, sobretudo quando ele lê em silêncio. [...] O
privilégio da escrita sobre a leitura na escola se deve a
essa maior facilidade de avaliação escolar. (CAGLIARI,
2009, p. 147).

Então, fica claro que há, de fato, muitos empecilhos em relação


à escrita e à leitura, mas o que há, também, é a falta de interesse e mais
dedicação no trabalho com elas, tendo em vista que realmente não é fácil
todo esse processo de ensino-aprendizagem, mas é possível se trabalhado
corretamente e arduamente para um resultado mais satisfatório.

Com base no que já foi visto até este ponto, fica claro que
não são de hoje as dificuldades encontradas na escola, tanto para os
professores como para os alunos, em relação à leitura e à escrita no
ensino de língua portuguesa. Nos dias atuais, esses problemas ainda
persistem e comprometem o ensino-aprendizagem, sobretudo pela
falta de intervenções que venham a resolver ou amenizar tais questões.
Também podemexistir causas externas ao âmbito escolar, sofridas pelos
alunos, e que podeminfluenciar de forma decisiva nessas dificuldades de
aprendizagem.

Antunes (2003)trata dessas questões por meio dos estudos de


outros linguistas e, também, pela sua experiência tanto como linguista

Linguística aplicada e ensino de língua portuguesa: uma visão


metodológica para o aprendizado da leitura e da escrita .225
como educadora e intelectual comprometida com a educação. Ela também
mostra sua preocupação com a ligação da função política, no que diz
respeito à educação e ao dever com a escola, como exposto a seguir:

Muitas e urgentes são as razões sociais que justificam


o empenho da escola por um ensino de língua
cada vez mais útil e contextualmente significativo.
Sabemos quantoa incompetência atribuída à escola
está ligada a conflitos com a linguagem (cf. Soares,
1987), a percepções distorcidas e míticas acerca do
que seja o fenômeno linguístico (cf. Bagno, 1999,
2000). [...] Sabemos que a educação escolar é um
processo social, com nítida e incontestável função
política, com desdobramentos sérios e decisivos para
o desenvolvimento global das pessoas e da sociedade.
(ANTUNES, 2003, p. 36-37)

A autora discorre sobre o ensino e a responsabilidade de todos


os indivíduos envolvidos no processo de educação, assim como fala sobre
conflitos na linguagem e a distorção acerca de fenômeno linguístico. Não
põe a visão de responsável por tal processo somente na escola, masmostra
que ele é um processo social, associado diretamenteà política, e que
necessita da colaboração de todos para um desenvolvimento global da
sociedade em si.

Antunes (2003) também dialoga sobre a intolerância diante do


descaso com a escola, acentuando lacunas no processo de alfabetização
e apontando que não se formam pessoas que saibam ler, escrever ou
capazes de se expressar por meio da escrita.

Visto tudo isso, a autora pondera :“É, pois, um ato de cidadania,


de civilidade da maior pertinência, que aceitemos, ativamente e com
determinação, o desafio de rever e de reorientar a nossa prática de ensino
de língua”(ANTUNES, 2003, p. 37). Esse pensamento idealizado, após
estudos acerca das dificuldades,contribui com todo esse processo de

226. Rayla Estefane da Silva Carvalho


renovação das práticas pedagógicas ao ensino de Língua Portuguesa,
pois, mesmo com todas essas renovações e com as tecnologias, ainda
há professores que continuam presos ao tradicionalismo, continuam a
ministrar aulas na monotonia, esquecendo-se de se atualizar e fazer uma
diferença visível no modo de ensino.

Considerando que o aluno passa boa parte do seu dia na escola,


fica clara a necessidade de esse ambiente ser um lugar acolhedor, de que a
sala de aula seja um convite para um aprendizado cheio de prazer, fazendo,
assim,a diferença na vida escolar desse aluno. Para que isso aconteça, o
professor deve buscarmetodologias que despertem esse momento de
aprendizado, tornando-o menos cansativo e mais estimulante no interesse
em aprender.

Como o ensino de português é cheio de regras e prescrições,


pode haver certo desinteresse por parte dos alunos e uma possível falta de
estímulo em relação à aprendizagem. Logo,é papel do professor o uso de
materiais didáticos que abordemos conteúdos programáticos com base em
estratégias didático-pedagógicas que sejammais atrativas aos estudantes.

Nesse sentido, a Linguística Aplicada tem contribuído bastante


para a prática em sala de aula, tornando o ensino de língua materna
mais dinâmico para os alunos. Essa área aproxima a teoria da produção
acadêmica à prática real na sala de aula, já que, em decorrência disso, há
um interesse maior no estudo de problemas com o uso de linguagem, e
os processos de ensino-aprendizagem então procurando trazer, em forma
de novas metodologias, a intervenção necessária para a transformação da
educação no ensino de língua portuguesa.

Linguística aplicada e ensino de língua portuguesa: uma visão


metodológica para o aprendizado da leitura e da escrita .227
4. REPENSANDO METODOLOGIAS NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Pensando em uma nova metodologia de ensino, destacam-se


aqui, as proposições de Antunes (2003), a qual aponta como são as formas
de ensino nas escolas e detecta uma série de empecilhos que dificultam
o aprendizado dos alunos em relação à escrita,à leitura e a vários outros
pontos. A partir daí, ela vê a necessidade de repensar sobre as práticas
de ensino em razão de cada competência. Assim, apresentaremos
algumas práticas voltadas para o ensino de escrita e leitura propostas pela
pesquisadora.

No trabalho com a escrita,Antunes (2003) pontua que há várias


falhas na forma de tal prática, as quais deixam o aluno se tornar um autor
de escrita mecânica, que não sabe o que de fato e para quem escreve,
pois é uma produção feita no improviso, sem qualquer contextualização e
expressividade. Segundo a autora, no ensino de escrita pautado em alguns
dos vários pontos descritos por ela mesma, na sala de aula,constata-se:

Um processo de aquisição da escrita que ignora a


interferência decisiva do sujeito aprendiz, na construção
e na testagem de suas hipóteses de representação
gráfica da língua;A prática de uma escrita mecânica
e periférica, centrada inicialmente nas habilidades
motoras de produzir sinais gráficos e, mais adiante, na
memorização pura e simples de regras ortográficas:
para muita gente, não saber escrever ainda equivale a
escrever com erros de ortografia. (ANTUNES, 2003,
p.25-26).

A autora destaca, a partir desses pontos em relação à execução


dessa competência na sala de aula, que, através da forma como é aplicada
a prática da escrita, surge o insucesso do aluno. Se escrever se faz como

228. Rayla Estefane da Silva Carvalho


atogenérico,dificilmente vai contribuir para que o discente avance
e se desenvolva nessa competência. Além desses pontos anteriores
identificados por Antunes,esclarece que:

A prática de uma escrita artificial e inexpressiva,


realizada em “exercícios” de criar lista de palavras
soltas ou, ainda de formar frases. Tais palavras e
frases isoladas, desvinculadas de qualquer contexto
comunicativo, são vazias do sentido e das intenções
com que as pessoas dizem as coisas que tem a dizer.
[...]A prática de uma escrita sem função, destituída de
qualquer valor interacional, sem autoria e sem recepção
(apenas para “exercitar”), uma vez que, por ela, não se
estabelece a relação pretendida entre a linguagem e o
mundo, entre o autor e o leitor do texto. (ANTUNES,
2003, p. 26).

Consoante Antunes (2003, p.27),“a prática de uma escrita que se


limita à oportunidade de exercitar aspectos não relevantes da língua, nessa
altura do processo de apreensão da escrita[...]”.TRECHO QUEBRADO

Ao se tratar da competência leitora, já foram dadas


algumascontribuições por Kleiman(2009). É evidente a dificuldade do ato
de leitura tanto quanto o da escrita, pois é a partir de uma boa leitura que
será possível a escrita de um bom texto, de modo a desenvolvê-lo com
coesão e coerência.

Antunes (2003), ao prosseguir com suas constatações sobre as


falhasno trabalhodessas competências, expõe como é praticado o ensino
do ato de ler, nas salas de aula. Ao se referir às atividades executadas no
ensino da leitura, ela observa que:

Uma atividade de leitura centrada nas habilidades


mecânicas de decodificações da escrita, sem dirigir,

Linguística aplicada e ensino de língua portuguesa: uma visão


metodológica para o aprendizado da leitura e da escrita .229
contudo a aquisição de tais habilidades para a
dimensão da interação verbal – quase sempre, nessas
circunstâncias, não há leitura, porque não há “encontro”
com ninguém do outro lado do texto. (ANTUNES,
2003, p. 27).

Ao se realizar uma leitura do ponto de vista“genérico”,o leitor não


conseguirá estabelecer uma conexão com o autor e com o texto em si, não
compreenderá o que ele quis dizer em si. Antunes (2003, p. 27) também
faz menção a uma prática de “uma atividade de leitura sem interesse, sem
função, pois aparece inteiramente desvinculada dos diferentes usos sociais
que se faz da leitura atualmente”.

Ainda sobre como são realizadasessas atividades, de como se lê


nas salas de aula durante o dia a dia, a autora destaca que se trata de:

Uma atividade de leitura puramente escolar, sem


gosto, sem prazer, convertida em momentos de
treino, de avaliação ou em oportunidade para futuras
“cobranças”; [...]. uma atividade cuja interpretação
se limita a recuperar os elementos literais e explícitos
presentes na superfície do texto.[...](ANTUNES, 2003,
p. 28).

Diante desses pontos, Antunes (2003) finalizacom uma visão de


como é uma escola que se comporta dessa maneira, e como ela leva em
consideração o porquê de não haver tempo para a leitura. Segundo ela,

A prática, enfim, “sem tempopara a leitura”, porque,


como declararam os alunos, “tinha que aprender as
narrativas, a língua portuguesa e as palavras que a gente fala
errado” ou, ainda, porque “atrapalha o professor em suas
explicações” (cf. Silva, 1986: 27). (ANTUNES, 2003, p.
28, grifos no original).

230. Rayla Estefane da Silva Carvalho


Partindo dessas afirmações sobre a problematização do ensino de
escrita e leitura, Antunes(2003)sugere uma série de novas metodologias e
como usá-laspara um maior desempenho dessas competências por parte
dos alunos, orientadas pelo professor.Sobre o ato de escrever, ela frisa
que “a escrita compreende etapas distintas e integradas de realização
(planejamento, operação e revisão), as quais, por sua vez, implicam da
parte de quem escreve uma série de decisões”(ANTUNES, 2003, p. 54).

A autora ressalta que, através de implicações pedagógicas, é criada


a intervenção para o trabalho coma escrita. Ao enumerar as características
de tal intervenção, ela aponta que deve haver:

Uma escrita da autoria também dos alunos – A produção


de textos escritos na escola deve incluir também os
alunos como seus autores. Que eles possam “sentir-
se sujeitos” de um certo dizer que circula na escola e
superar, assim a única condição de leitores desse dizer.
[...] (ANTUNES, 2003, p. 61, grifos no original)

Antunes (2003) pontua muitas outrascaracterísticase conceitua


cada uma delas,a forma como devem se desenvolver e porque devem
ser usadas de tais maneiras. São elas (apenas pontuadas), além de uma
escrita da autoria também dos alunos, já destacada anteriormente: uma
escrita de texto; uma escrita de textos socialmente relevantes; uma escrita
funcionalmente diversificada; uma escrita de texto que tem leitores;
uma escrita contextualmente adequada; uma escrita metodologicamente
ajustada; uma escrita orientada para a coerência global e uma escrita
adequada também em sua forma de se apresentar. Assim, ficaexplícito
que:

A atividade da escrita é, então, uma atividade interativa


de expressão, (ex-, “para fora”), de manifestação verbal
das ideias, informações, interações, crenças ou dos
sentimentos que queremos partilhar com alguém, para,

Linguística aplicada e ensino de língua portuguesa: uma visão


metodológica para o aprendizado da leitura e da escrita .231
de algum modo, interagir com ele [...]. (ANTUNES,
2003, p.45).

A autora se mostra inteirada acerca do real objetivo da escrita,


identifica falhas e propõe intervenções. O papel que ela desenvolve é
importante para as práticas na sala de aula, posto que, ao saber o que é
imprescindível durante o ato de escrever, ela auxilia nesse entendimento
e, consequentemente, contribui para o avanço no ensino adequado dessa
competência, contando com a colaboração dos professores. Para ela,

Para o desenvolvimento da competência de escrever, o professor


poderia providenciar oportunidades para os alunos produzirem:
listas [...]; pequenas informações aos pais e a outras
pessoas da comunidade escolar; programações de
atividades curriculares e extracurriculares; convites;
avisos; [...]. (ANTUNES, 2003, p. 113, grifos no
original)

Antunes (2003) também aponta as falhas referentes à leitura, já


mencionadas no corpo do texto anteriormente, e que, por ser algo que
perde sua importância de maneira elevada, devido à prática quase que
inteiramente voltada para o ensino de gramática, tem se tornado cada vez
maior o número de alunos com um mau desempenho na hora de ler.

A leitura, quando centrada apenas na visão escolar, deixa muito


a desejar, uma vez que, ao chegar a sua casa, o aluno, que não tem um
acompanhamento externo à escola,vai vê-la como algo estreitamente
voltado apenas para a sala de aula, não se interessando, assim, por leituras
avulsas e perdendo a chancede fazer leituras prazerosas.

Visto um dos conceitos do que é a leitura,Antunes (2003)


apresenta, a partir das implicações pedagógicas, características para
intervenção no modo de ensinar a leitura. Vejamos:

232. Rayla Estefane da Silva Carvalho


Uma leitura de textos autênticos – Nada poderá justificar
uma leitura que não seja a leitura de textos autênticos, de
textos em que há claramente uma função comunicativa,
um objetivo interativo qualquer. Textos que têm
autor(es), que têm data de publicação, que apareçam em
algum suporte de comunicação social (jornal, revista,
livro, panfleto, outdoor, cartaz, etc.). Textos reais,
enfim. [...] (ANTUNES, 2003, p.79, grifos no original).

Antunes (2003) também aponta mais características


posteriormente, conceitua cada uma delas e aponta como devem ser
abordadas. São elas aqui (também apenas pontuadas), além de uma leitura
de textos autênticos, uma leitura interativa; uma leitura em duas vias; uma
leitura motivada; uma leitura do todo; uma leitura crítica; uma leitura de
reconstrução do texto; uma leitura diversificada; uma leitura também
por pura curtição; uma leitura apoiada no texto; uma leitura não só das
palavras expressas no texto. Conforme a autora,

A leitura poderia abranger todos esses textos produzidos


pelos alunos, além de: histórias, com ou sem gravuras
em quadrinhos; fábulas; contos; crônicas; editoriais;
comentários ou artigos de opinião; notícias de jornal;
poemas; avisos; folhetos; cartazes; adivinhas; anedotas;
provérbios populares; [...]. (ANTUNES, 2003, p. 117).

Fica, pois, explícito o modo como se deve trabalhar com a escrita


e com a leitura, pois elas são importantes para um bom desenvolvimento
do aluno não só na disciplina de Língua Portuguesa, mas também nas
demais disciplinas.

Destacamos que, por meio dessas implicações, é


necessárioatentarpara a melhoria da atuação nessas competências, de
forma a contribuir para uma formação mais completa aos alunos, já que
leitura e escrita andam em parceria. Como frisa Antunes (2003, p. 67), “a

Linguística aplicada e ensino de língua portuguesa: uma visão


metodológica para o aprendizado da leitura e da escrita .233
atividade da leitura completa a atividade da produção escrita”, de modo
que elas são indissociáveis e estão imbricadas”.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do que foi aqui apresentado, faz-se importante um olhar


de renovação para as práticas metodológicas em relação ao ensino de
escrita e leitura, pois se trata de uma busca mais pura para execução dessas
competências e com uma finalidade mais útil, por parte dos professores,
e mais um conjunto de colaboradores que venham a utilizar essas práticas
sugeridas a partir de pressupostos teóricos.

Nesse contexto, a Linguística Aplicada entra em cena, como a


protagonista dessa proposta, já que ela estuda as implicações nas formas
de ensino e propõeintervenções para a aplicação na prática, a fim de uma
melhoria nos resultados de ensino-aprendizagem.

A LA demonstra que está cada dia mais firmada e com propósitos


que fazem a teoria se aproximar da prática, procurando metodologias que
sejam possíveis de aplicar, dado que apenas teorizarnão alcança objetivos
concretos.

Ao expor as implicações e, por meio delas, sugerir respostas às


falhas identificadas, à luz de teóricos que dialogam com essa questão,
este trabalho teve como principal intuito fazer uma contribuição para um
melhor conhecimento do tema, seus desdobramentos e também quais
providências, por meio desses estudiosos, podem ser tomadas diante
desses problemas que circundam o âmbito escolar.

234. Rayla Estefane da Silva Carvalho


REFERÊNCIAS

ANTUNES, I. Aula de português: encontro e interação. São Paulo:


Parábola, 2003.

CAGLIARI, L. C. Alfabetização & Linguística. São Paulo: Scipione,


2009.

FIORIN, José Luiz. Introdução à Linguística. São Paulo: Contexto,


2003.

KLEIMAN, A. Texto e leitor: Aspectos cognitivos da Leitura. 12ª ed.


Campinas , SP: Pontes 2009.

MOITA LOPES, L. P. (Org.). Linguística aplicada na modernidade


recente: festschrift para Antonieta Celani. – 1. ed. – São Paulo: Parábola,
2013.

PASCHOAL, M. S. Z.; CELANI, M. A. A. (Orgs.). Lingüística Aplicada:


da aplicação da Lingüística Transdisciplinar. São Paulo: EDUC, 1992.

RAJAGOPALAN, K. Por uma linguística crítica: linguagem, identidade


e a questão ética. – São Paulo: Parábola, 2003.

Linguística aplicada e ensino de língua portuguesa: uma visão


metodológica para o aprendizado da leitura e da escrita .235
10.
O LETRAMENTO CIENTÍFICO
DE ALUNOS SURDOS NO ENSINO DE
QUÍMICA

Vinícius da Silva Carvalho (UFJF)

vinicius.scq@gmail.com

1. INTRODUÇÃO

Questionamentos referentes à educação de surdos no ensino


de química culminaram no desenvolvimento do estudo de mestrado
“Investigando os processos de emersão e modificação de sinais, durante
a apropriação da sinalização científica por surdos ao abordar os saberes
químicos matéria e energia”, de minha autoria. Esse interesse parte da
trajetória e vivência com a comunidade surda que contempla o interesse,
o caminho percorrido e os diálogos estabelecidos por meio de leituras
com os pares da área. Nesse estudo, indago sobre o processo de criação
e modificação de um sinal em Libras, para os termos da área científica,
especificamente a ciência química, por grupos de surdos do município de
Juiz de Fora - MG.

O interesse por estudar os sinais ou signos em Língua Brasileira


de Sinais (Libras), da área de química, começou quando fui convidado
para participar em 2012, na função de professor, do Projeto de Extensão
Inclusivo ao Surdo no Ensino de Química (PEISEQ) do Centro de Ciências

O letramento científico de alunos surdos no ensino de química .237


da UFJF, cujo nome era “O ensino de química para alunos surdos: construindo
novas possibilidades”. O objetivo desse projeto seria ensinar química aos
alunos surdos da educação pública básica, da cidade de Juiz de Fora, e
compreender um pouco mais sobre a sua realidade escolar, promovendo
intervenções que os auxiliassem na compreensão de conceitos ensinados
no ensino regular.

Durante esse período, foi possível observar a importância da


comunicação em Libras no processo escolar do aluno surdo e como o
sinal apropriado ou específico para os termos químicos empregados nesse
ambiente escolar auxiliava no sucesso para compreensão dos conceitos e
fluidez da aula. Essa não era apenas uma inquietação do professor, mas
também dos intérpretes e alunos que faziam parte desse projeto.

Nesse sentido, caminhar pelas propostas de um projeto voltado


para a educação de surdos, fez-me refletir sobre as terminologias próprias
da área de ciências da natureza, principalmente quando o assunto se refere
ao ensino de química.

2. O LETRAMENTO CIENTÍFICO E A LINGUAGEM QUÍMICA

A ciência é colocada a serviço da humanidade e apresentada como


uma produção cultural, com características particulares, com motivos para
incorporá-la ao currículo escolar. Artigos da literatura inglesa empregam o
termo literacy, que pode ser traduzido para o português como alfabetização
ou como letramento, ou ainda como literacia, conforme utilizada na
literatura portuguesa.

Ao discutir sobre alfabetização científica, Chassot (2003) considera


ser esse o meio pelo qual homens e mulheres buscam conhecimentos
para entender a linguagem em que está escrito o mundo natural. O autor

238. Vinícius da Silva Carvalho


considera a alfabetização como o domínio de conhecimentos científicos e
tecnológicos necessários para o cidadão se desenvolver no cotidiano.

Para o termo letramento apenas quando o seu significado se


referir ao uso social do conhecimento científico, na acepção adotada
por Soares (1999). Para tanto, entende-se como Botelho (2002) que
o estudante não deve apenas ler e escrever sobre ciências, mas sim ser
letrado cientificamente, implicando no uso desse conhecimento, ou dessas
palavras, nas práticas de diálogo.

Por isso, o letramento científico nas escolas se torna um desafio


para os professores e alunos, visto que os documentos que norteavam o
documento escolar se baseavam em sistemas de ensino pouco voltados
para a comunicação e o entendimento científico social. Ou seja, os
documentos exigiam dos alunos teorias e contas, que não se conectavam
com as situações do cotidiano.

Esse letramento se torna um desafio ainda maior quando voltamos


nosso olhar para o público surdo, usuários da Língua Brasileira de Sinais,
inseridos na escolaregular e superficialmente inclusiva. Souza e Silveira
(2011) já apontavam situações inconstantes para terminologias próprias da
área da ciências voltada para alunos surdos no Brasil. É nesse contexto que
o letramento científico apresentado neste capítulo vai dialogar.

3. A EDUCAÇÃO DE SURDOS NO BRASIL

A educação no contexto da inclusão de surdos no Brasil está


calcada nos princípios socioantropológicos, filosóficos, legais e políticos,
vinculando-se aos preceitos dos direitos humanos. Compreende-se,
portanto, que a educação inclusiva é uma associação de ações dos processos
culturais, sociais, políticos e pedagógicos, visando a romper com o modelo

O letramento científico de alunos surdos no ensino de química .239


tradicional de educação, fundamentado nas estruturas de apartação. Trata-
se, então, de uma revolução no sistema educacional, garantindo a inclusão
por meio de mudanças pedagógicas e de uma gestão educacional que
garante o direito de todos a ter acesso à educação. Dessa forma, grupos
excluídos do processo de ensino encontram nessa nova perspectiva legal
o respeito ao exercício à cidadania, no que tange ao direito à educação.

A escola, o professor e os responsáveis legais estão atentos aos


documentos oficiais a respeito da política inclusiva. O ambiente escolar
precisa se adaptar para oferecer um ensino acessível às pessoas com
deficiência, como determinam as leis e os decretos. Considerando que
as pessoas apresentam necessidades diferentes e diversas, convido-vos a
refletir sobre o termo “pessoas com deficiência”. Esse termo, subjugado
por uma sociedade, coloca essas pessoas na manipulação de uma sociedade
deficiente, em que há ausência de acessibilidade, tornando-nos excludentes
e à margem dos direitos constitucionais.

Nessa militância, devemos exigir que o ensino inclusivo seja


ofertado por um ambiente onde todas as necessidades dos alunos são
satisfeitas, em que não haja diferença social, racial, cultural, linguagem e de
barreiras físicas previstos no capítulo III da constituição, nos artigos 206
e 208. Nesses artigos, a ordem incentiva à abertura de ambientes onde as
diferenças se tornam iguais e, nesse cenário, deparamo-nos com os surdos,
incluídos em escolas regulares.

Vieira (2011) expõe, ao problematizar a questão bilíngue na


escola inclusiva a surdos, uma realidade complexa e multifacetada. Afirma
que um dos principais desafios é o uso de uma língua com estruturas
gramaticais diferentes da LP (adestrada para a maioria da população).
Expõe que a Libras ainda não é valorizada como tal, e que apresenta
ainda muitos questionamentos sobre seu status de língua, a despeito de sua
regulamentação pela lei 10.436/02, como diz no artigo I:

240. Vinícius da Silva Carvalho


É reconhecida como meio legal de comunicação e
expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros
recursos de expressão a ela associados. Parágrafo único.
Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a
forma de comunicação e expressão em que o sistema
linguístico de natureza visual-motora, com estrutura
gramatical própria, constitui um sistema linguístico de
transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades
de pessoas surdas do Brasil.

O reconhecimento dessa língua abre, para o povo surdo,


precedentes de inclusão e oportunidades, antes inimagináveis. Nesse
contexto, as discussões sobre o processo de ensino de alunos surdos,
pautado no bilinguismo, são ampliadas na comunidade ouvinte.

Compreendo, dentre muitas definições existentes, a proposta


por Titone (1972), que define o bilinguismo como a capacidade que o
indivíduo tem de falar uma segunda língua (L2), obedecendo às estruturas
dessa língua e não parafraseando a primeira língua (L1).

Essa definição coloca a educação inclusiva aos surdos de acordo


com a proposta bilíngue expressada na Declaração de Salamanca, que
influenciou historicamente o Brasil quanto aos olhares para a inclusão na
educação para surdos, que reconhece a LS como a L1, para os surdos, e
como a L2, aquela que é oficial do país, no caso do Brasil, a LP. Dessa
forma, o processo irá garantir ao indivíduo surdo o desenvolvimento
da língua de sinais brasileira e, a partir dela, a construção de conceitos
primordiais para a compreensão do mundo.

É notório e regulamentado pelo decreto 5626/05, regido pela Lei


10.436/02, que a Libras, na educação das pessoas surdas, é característica
essencial para condições de acessibilidade ao ensino. O documento,
motivado pela perspectiva da inclusão, especifica a necessidade de se
implantar a educação bilíngue voltada para a atenção do público surdo,

O letramento científico de alunos surdos no ensino de química .241


na qual se faz presente a Libras e a LP. Com a execução do decreto, vem
ocorrendo uma ampliação das discussões pelas quais muitas providências
e questionamentos acerca das interpretações dos documentos oficiais têm
sido encaminhados para:

Criação de cursos para formar intérpretes de Língua


de Sinais e a garantia da presença do intérprete em
instituições de ensino e atendimento à população de
surdos, porém outras ainda são de difícil concretização
ou até mesmo mal interpretadas, como a que institui o
ensino da Libras em todos os cursos de licenciatura. As
universidades começam a atender a essa exigência legal,
embora na maioria delas não exista uma disciplina que
aborde a educação especial e o histórico da educação das
pessoas com necessidades educativas especiais. Desse
modo, o ensino da Libras é artificialmente incluído no
currículo e muitas vezes não faz sentido para os alunos;
além disso, a carga horária dispensada para a disciplina,
cerca de 40 a 60 horas/aula, é insuficiente para o ensino
de qualquer idioma. (VIEIRA, 2011, p.22)

Nessa perspectiva, abordar sobre uma educação bilíngue, para


a Unesco (1954), trata do “direito que têm as crianças que utilizam uma
língua diferente da língua oficial de serem educadas na sua língua”. Isso
requer um diálogo que se estabelece entre o bilinguismo e a viabilização
de escolas que contemplem essa necessidade para surdos e ouvintes. Para
o artigo 22 do decreto 5626/05,

As instituições federais de ensino responsáveis pela


educação básica devem garantir a inclusão de alunos
surdos ou com deficiência auditiva, por meio da
organização de: I - escolas e classes de educação
bilíngue, abertas a alunos surdos e ouvintes, com
professores bilíngues, na educação infantil e nos anos
iniciais do ensino fundamental.

242. Vinícius da Silva Carvalho


Entretanto, o ensino nas escolas bilíngues com o uso da Língua
de Sinais para a educação de surdos ainda vem sendo acompanhado
de propostas baseadas em repetições de programas oralista, pautados
na geração da Comunicação Total (BOTELHO, 2002). Esperamos, como
membro da comunidade surda, que a educação bilíngue ocorra nos
processos escolares, respeitando a identidade e a cultura surda.

A realidade educacional hoje da educação de surdos no campo


da ciência é critico. Existem muitos projetos que não se solidificam em
realidade nas escolas, tal como a criação de material didático adequado
para que o ensino de química contemple um cenário bilíngue para surdos.
Porém, é possível encontrar apontamentos baseados no bilinguismo
diglóssico para o ensino da LP para o surdo. Ou seja, aprende-se a LP
na modalidade escrita, desempenhando o papel de segunda língua e,
com isso, utiliza-se a Libras em todas as situações como primeira língua.
(FERNANDES e MOREIRA, 2009).

Desse modo, a conquista no direito ao uso da Libras pelo sujeito


surdo e os avanços da disseminação da Libras na sociedade por meio de
políticas de inclusão social ainda não garantem o acesso aos programas
de implementação do ensino bilíngue (VIEIRA, 2011). Ainda é preciso
aceitar tudo o que vem junto com a língua, ou seja, a cultura, a identidade,
a visão de mundo, a constituição de sujeito, e a formação diglóssico.

Nesse caso, espera-se que o surdo, durante seu aprendizado


escolar nas escolas inclusivas ou bilíngues, atinja um domínio proficiente
nas duas línguas. A proficiência nas duas línguas auxiliará o aluno surdo
a compreender outras disciplinas, tais como a Química, tão pouco
comentada em pesquisas na área de inclusão de surdos e que se apresenta
como conhecimento indispensável para formação cultural do sujeito
dentro e fora do ambiente escolar.

O letramento científico de alunos surdos no ensino de química .243


No presente momento, é possível dizer que a educação de surdos
passa por barreiras linguísticas quando se trata de assuntos relacionados
à ciência, devido à ausência de sinais específicos para os termos próprios.
A fim de superar esse obstáculo, que coloca o sujeito surdo à mercê das
tomadas de decisões na sociedade, devemos entender a Libras como uma
língua e os processos descritos na literatura que regem a formação de um
sinal.

4. A ESTRUTURA DA LIBRAS E OS PROCESSOS DE FORMAÇÃO E


MODIFICAÇÃO DO SINAL – A QUÍMICA EM FOCO

A Libras é uma língua composta de características gramaticais


próprias que, ao serem combinadas, traçam um rigor que permite
diferenciá-la da linguagem oral. Durante os eventos de comunicação, é
possível identificar os participantes desse processo de interação utilizando
o espaço e o tempo, bem como objetos e outros elementos.

De acordo com a literatura, a sessão anterior apresenta autores


que apontam o bilinguismo como um caminho para o processo de ensino
do aluno surdo. Para além desse caminho, encontramos autores como
Campello (2007) e Vygotsky (2008), traçando como uma provável vertente
como meio exploratório para diversos tipos de aprendizado os preceitos
baseados na experiência visual, tais como imagens, signo, significado e
semiótica visual.

Com a finalidade de buscar subsídios que adentram respostas


para compreender as experiências imagéticas realizadas por sujeitos
surdos, encontramos, na literatura, pesquisadores que discutem a mediação
semiótica na apropriação dos significados culturais que podem emergir a
partir do contato com objetos percebidos em um determinado contexto.

244. Vinícius da Silva Carvalho


Assim, para Ribeiro e Sousa (2012), Pierce “oferece ferramentas
de análise que auxiliam a compreensão do processo tradutório entre
sistemas linguísticos verbais e não verbais, aspecto pertinente para o
estudo da Libras, uma vez esta consiste em uma língua de modalidade
visuoespacial” (p. 3). Nos estudos de Pierce, signo é aquilo que, em algum
aspecto ou modo, representa algo para alguém e que é criado na mente do
sujeito, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido como
exemplifica a imagem a seguir.

Figura 1: Exemplo de signo do termo béquer, uma vidraria química, para surdos. Fonte: Carvalho(2017).

Para Ferdinand Saussure, signo linguístico é a união do conceito


(significado), podendo ser expresso de várias formas,neste caso, a
imagem de um instrumento de laboratório, com a imagem observada
por meio de um sinal visuoespacial da LS, (significante). Para o autor, a
interpretação do conceito está baseada em nossas experiências culturais
de formação pessoal, ou seja, a imagem que construímos em nossa mente
para determinado fenômeno, como delineou Pierce em seus estudos
semióticos. Assim, para o autor, o significado será algo concreto à imagem
que associamos em nossa mente. Desse modo, ao falarmos a palavra ou
realizarmos o sinal em LS para o termo béquer, instrumento utilizado para

O letramento científico de alunos surdos no ensino de química .245


fazer reações entre soluções, o mesmo sujeito possivelmente deverá gerar
como significado uma imagem do objeto a ser utilizado em determinado
experimento.

Para esse movimento, o interpretante do objeto lança suas


impressões a partir de suas experiências e cultura, dando forma ao
significante a partir dessas impressões e sentimentos. De um modo geral,
a construção do significante por meio da Libras poderá ser explorada
para compor a estrutura do sinal em cinco parâmetros dessa língua. São
considerados parâmetros da Libras: configuração de mão, movimento,
localização das mãos ou ponto de articulação, orientação da palma da mão
e expressões não manuais. (KLIMA e BELLUGI, 1979). Conforme Brito
(1995),

A configuração das mãos (CM) são as diversas formas


que uma ou as duas mãos tomam na realização do
sinal. Movimento (M): é um parâmetro tão complexo
que pode envolver uma grande quantidade de formas
e direções, desde os movimentos internos da mão,
os movimentos do pulso, movimentos direcionais no
espaço e até conjuntos de movimentos no mesmo sinal;
Ponto de Articulação (PA): é o espaço em frente ao
corpo ou uma região do próprio corpo, onde os sinais
são articulados. Os sinais articulados no espaço são de
dois tipos: os que se articulam no espaço neutro diante
do corpo e os que se aproximam de uma determinada
região do corpo, como, por exemplo, a cabeça, a cintura
e os ombros.

E segundo Quadros e Karnopp (2004), ainda temos:

Orientação da Mão (OM): Por definição, orientação é a


direção para a qual a palma da mão aponta na produção
do sinal, podendo ser para cima, para baixo, para o
corpo, para frente, para a direita ou para a esquerda.

246. Vinícius da Silva Carvalho


Expressões não manuais (ENM): as expressões não
manuais (movimentos da face, dos olhos, da cabeça,
boca ou do tronco).
O conjunto desses parâmetros compõe as estruturas da formação
ou modificação de um sinal na Libras. Não diferente da língua oral, nem
sempre o sinal é criado de forma inédita: o surdo pode aproveitar o léxico
de sinais já existentes por meio da combinação dos morfemas. Como
explica Felipe (2006),

Os processos de formação de palavras [composição,


aglutinação, justaposição e derivação], as línguas são
sempre apresentadas em relação aos seus morfemas
lexicais (raízes/radicais) que se prendem a morfemas
gramaticais formantes (desinências e vogais temáticas)
e/ou a derivacionais (afixos e clíticos). (p.201)

A autora esclarece que esses fenômenos são chamados de
processos de derivação e composição. Mesmo não sendo o foco de análise
desta pesquisa, buscaremos nesta sessão tratar de três processos através
dos quais a Libras amplia o seu léxico, criando novos conceitos, sendo eles
os processos de derivação, a composição e a fusão de sinais descritos por
Xavier e Neves (2016).

Processos de derivação: O sinal derivado se origina de


parâmetros de outro sinal já existente. Processos de composição: O
sinal composto fará uso de no mínimo dois sinais, para construir um novo
significado. A partir de então, esse novo significado dará origem a novo e
único significante.

Processos de fusão: Para os processos de fusão de sinais, os


autores esclarecem que, para formação desse processo, o sinal recebe
partes de parâmetros, podendo ser movimento, orientação da mão,
configuração de mão de outros sinais já existentes para construir um novo
significante.

O letramento científico de alunos surdos no ensino de química .247


Desse modo, estudos de Quadros e Karnopp em 2004, a
partir dos estudos de Supalla e Newport (1978) para a Língua de Sinais
Americana (ASL), detalham que o processo de derivação do sinal consiste
na alteração da forma de um sinal já existente para designar um novo
conceito, diferente do expresso pelo sinal original. Esse caso difere
dos anteriores, porque, com esse processo, cria-se um novo sinal. O
segundo processo consiste na criação de novos sinais a partir da junção
ou composição de dois outros sinais já existentes na língua. O terceiro,
conhecido como fusão de sinais, consiste da junção de partes de sinais
existentes para a formação de um novo.

Ressaltamos que ainda existem outras formas de um sinal emergir


por meio de novos significados, tais como os processos de modificação de
um sinal como a incorporação de numeral estar inserida na configuração
de mão dominante para formação do sinal, além de poder encontrar,
na literatura, as formas plurais dos pronomes pessoais, de negação,
intensificação, sinais locativos, verbos direcionais e de localização de sinais.
(MOREIRA, 2007; DEDINO, 2012; RODERO-TAKAHIRA,2016)

Entretanto, existem ainda restrições fonológicas para produção


de sinais que envolvem as duas mãos, ou seja, condições que restringem,
naturalmente pela percepção visual e pela capacidade da produção
manual, o surgimento de sinais de alta complexidade como a condição de
simetria e de dominância (BATTISON, 1978). Essa condição de simetria
estabelece que, caso as mãos se movam na produção de um sinal, a CM
deve ser a mesma na mão direita e na esquerda, podendo o movimento
ser simultâneo ou alternado. Já a restrição, denominada condição de
dominância, estabelece que, deverá existir a mão passiva, que serve de
apoio ao movimento, e a mão ativa que realiza o movimento, caso elas se
diferenciam pela CM.

De acordo com esses requisitos linguísticos, a adição da mão


passiva na articulação dos sinais serve para aumentar a gama de informação

248. Vinícius da Silva Carvalho


redundante apresentada para o interlocutor, como por exemplo, destacar
no termo átomo, pela teoria de Rutherford- Bohr, a existência do núcleo
com a mão passiva, que o mesmo não apresenta movimento, e os elétrons
em volta do núcleo com a mão ativa, ambas em CM diferentes. Essas
percepções colaboraram para que a formação de sinais tivesse uma maior
previsibilidade e um rigor atrelado ao sistema próprio da língua de sinais.
(BATTISON, 1978).

Desse modo, processos que se designam a modificação do sinal


durante os processos de construção de um sinalário podem ocorrer
por alterações lexicais, estando diretamente relacionadas ao processo
de dinamização da cultura (BATTISON, 1978; MCCLEARY, 2008).
Transpondo esse fato para a realidade científica, é possível compreender
que à medida que avança o estudo sobre o conhecimento científico e
tecnológico haverá o processo natural de criação e recriação da língua,
natural, acompanhando as ideias e a recriação de significados.

O sinalário construído para os conceitos de química podem e


devem sofrer mudanças, acompanhando modificações temporais com
a evolução da ciência. Entretanto, essa modificação natural precisa ser
coerente. Para isso, é necessário que haja diálogo entre o conhecimento
conceitual, gramatical e a experiência visual (LAGUNA E SPERB, 2010).
Tríade essencial presente na figura 2, a partir dessas experiências, para
compreender a importância do docente em química nesse processo.

Conceito

Gramática Experiência visual

Figura 2: Participação docente em química para formação coerente de sinais descrita por Laguna e Sperb
(2010). Fonte: Elaborado pelo autor a partir das experiências de Sperb e Laguna (2010).

O letramento científico de alunos surdos no ensino de química .249


A partir desses conhecimentos, voltaremos nosso olhar ao
que chamamos de sinais do campo científico, que representem termos
específicos da área de ciências, contemplando, dentre elas, o campo da
ciência Química. Compreendemos, a partir dessa triangulação, que a
formação de sinais do campo científico deverá ter a presença e participação
do docente em química, sendo este, preferencialmente, com domínio em
Libras ou com auxilio de um intérprete educacional. Esse fato é de extrema
relevância para o aprimoramento dessa ciência na Língua de Sinais (LS),
pois somente a característica desse profissional poderá contemplar a
parte do processo que diz respeito aos aspectos inerentes a conceitos e
adequação da experiência visual.

Com base no processo de triangulação, exposto aqui para


compreendermos a importância e compromisso dos educadores em
química para com a comunidade surda, consideramos importantes os
conhecimentos científicos. Considerando que para essa área ocorre
extrema necessidade de atenção devido à linguagem particular, carregada
de termos, que a linguagem científica apresenta, resolvemos procurar na
literatura dados de grande destaque para processos de criação de sinais
científicos.

Entretanto, deparamos com um grande déficit de sinais dessa


área e ausência da participação de docentes químicos, gerando, para o
estudante surdo, uma barreira de comunicação que o impede de socializar
assuntos do campo científico e tecnológico. Sendo assim, consideramos
importante que a linguagem científica seja inserida na língua de sinais e
utilizada pela comunidade surda.

250. Vinícius da Silva Carvalho


5. A EMERSÃO DO SINAL E O LETRAMENTO CIENTÍFICO: CRIANDO
POSSIBILIDADES COM ALUNOS SURDOS

Como docente em química para alunos surdos, observei a


emersão de sinais científicos durante as aulas. Grande parte desses sinais
era perdida ao longo do curso, seja por esquecimento por parte dos
estudantes, pelo fato de o sinal conter possíveis ferimentos linguísticos que
naturalmente não se processavam na comunicação ou pelo sinal deixar de
ser significativo. Todos esses possíveis casos recorrentes nos impediam de
seguir nossas aulas de química em uma comunicação científica, deixando
clara a existência de uma barreira comunicativa.

5.1. CASOS DE EMERSÃO DE SINAL CIENTÍFICO

Esses sinais, oriundos de termos representativos da ciência


química, foram chamados de sinais científicos (SC) por grupos de surdos
da cidade de Juiz de Fora- MG. Para o capítulo deste livro, escolhemos
um episódio que trata do termo científico Energia, incluindo as diferentes
fontes, energia elétrica e energia eólica.

O público de surdos desse estudo utilizava o termo energia para


todo o tipo de fonte energética. Para esses alunos, a energia elétrica era a
mesma coisa que energia eólica ou energia nuclear; para outros, a existência
de uma energia que não fosse a elétrica causou surpresas.

Essa situação gerava graves problemas no entendimento do


conceito energia em adolescentes de 16 a 21 anos. Dessa forma, foi
necessário trabalhar o conceito de energia e dos tipos de fontes de energia
utilizando recursos adequados ao público surdo e que possibilitavam
detalhes para a emersão dos sinais científicos. Dentre os recursos

O letramento científico de alunos surdos no ensino de química .251


disponíveis, optamos por utilizar os recursos visuais, tais como imagens e
vídeos e, para compreensão de leitura, textos.

Dos sinais científicos desse conteúdo, destacamos o de energia,


energia elétrica e energia eólica, como mostram as imagens abaixo:

Figura 2: Sinal de energia – Movimento boca e mão com braço fixo. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=tYHdjuq7NW0&feature=youtu.be. Acesso em: 10 abr. 2019.

Figura 3: Sinal de energia elétrica - movimento da mão em direção a corrente. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=hlxa83q-0mo. Acesso em: 10 abr. 2019.

252. Vinícius da Silva Carvalho


Figura 4: Sinal de energia eólica - Movimento ativo da mão direita em circular na mão passiva esquerda.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xYaBTdoREcE&feature=youtu.be. Acesso em: 11
abr. 2019.

Os sinais de energia eólica e elétrica foram estimulados por


meio de imagens. A imagem da energia eólica trazia um moinho de
vento conectado a um conversor para transformar a energia proveniente
dos ventos em energia elétrica. Na imagem da energia elétrica havia
uma representação na movimentação de energia em um fio de cobre
detalhando o ponto de saída da energia para outro ponto. Discutimos
materiais condutores de eletricidade e as fontes da energia elétrica pelas
hidrelétricas.

Nesse momento, os estudantes haviam criado um padrão para


o sinal de energia, pois o mesmo aparecia em todos os tipos de energia
discutidos ao longo da aula. Todos os sinais foram negociados ao longo
das aulas e a cada inserção de novas informações. Em certos momentos,
sinais como o de energia foram constatados praticamente no final do
conteúdo, pois os estudantes sentiram a necessidade de falar energia de
forma conceitual desassociada da energia elétrica, visto que, anteriormente,
energia e energia elétrica, representavam um único sinal.

O letramento científico de alunos surdos no ensino de química .253


No próximo tópico, retomaremos as falas dos estudantes para os
termos próprios da química que foram convertidos para sinais da Libras.
Essas falas demonstram que a emersão dos sinais se faz necessária para
ampliar o léxico gramatical e a experiência dos alunos surdos na sociedade.

5.2. CASOS DE LETRAMENTO CIENTÍFICO

Durante as aulas, considero as motivações metodológicas o


instrumento poderoso no processo de formação e modificação de sinais
em Libras para termos químicos. Dentre as estratégias de comunicação,
utilizei nas aulas o Role Playing Game, jogos de cartas, jogos de Imagem e
Ação e dinâmicas com fotografia.

Sendo assim, as falas aqui foram protagonizadas por estudantes


surdos, protegidos pelo comitê de ética e por isso utilizaremos a
nomenclatura Aluno A, B ... para garantir a segurança do estudante. As
falas expressam momentos em que os alunos posicionam o sinal científico
para explicar as diferenças, apontar características de energia, contemplar
as habilidades exigidas para estudantes dessa etapa de escolarização.

Aluno C: Fala sobre a energia eólica.

Existe energia ventos? Energia eólica tem vento e pega energia


mecânica dele e muda para elétrica. E muda com um equipamento.

Interlíngua Libras/Português.

Nessa fala, conseguimos perceber que o estudante compreende


a existência de uma energia diferente da elétrica e se surpreende quando
faz uma pergunta e responde logo em sequência, afirmando a própria
pregunta. Na parte sublinhada no fragmento do texto, foi realizada uma
datilologia pelo surdo, visto que os estudantes entenderam com as novas

254. Vinícius da Silva Carvalho


discussõessobre mecânica nesse contexto divergem das que eles conheciam
como profissão mecânica. Nesse sinal, observamos casos de derivação,
pois a parte representada pela hélice representa o sinal de moinho, e de
fusão, pois se funde parte do sinal de energia elétrica com o de moinho.

Aluna E: Fala sobre energia elétrica e energia.

Energia elétrica tem dois pontos A e B tem diferença de


potencial elétrico passa corrente. E energia? Sinal Precisa! Energia e
Energia elétrica diferente!

Interlíngua Libras/Português.

Nas falas da aluna A,notamos que se associa a energia elétrica


como a necessidade da transferência de energia entre dois corpos, a partir
da diferença de potencial elétrico, termo para o qual não foi possível
criar um sinal devido à complexidade de informações, já que os químicos
poderiam não dar conta de explicar. Para essa temática, uma sugestão seria
trabalhar com os professores de física. Porém, é possível observar o ponto
de partida para o surgimento do sinal de energia. Esse surgimento se deu
a partir dos outros sinais de energia, sendo um sinal derivado de outros e,
por isso, não se adequando a qualquer forma ou necessidade conceitual.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendo que este capítulo é uma forma de representatividade, do


letramento científico e da língua brasileira de sinais para o aprimoramento
do léxico linguístico dos alunos surdos. Dessa forma, apresento algumas
considerações relevantes dessa experiência.

Foi possível reconhecer,na apropriação dos sinais pelos


estudantes, as possíveis modificações para que os SC fossem incorporados
durante os eventos de comunicação. Podemos constatar que ocorreu SC

O letramento científico de alunos surdos no ensino de química .255


de derivação e fusão (Xavier e Neves, 2016), a divergência do processo
de criação e uso do sinal, ressaltando as situações que afetam a condição
de simetria e dominância (BATTISON, 1978), que afetam diretamente a
execução do sinal.

Na postura de educadores da área da ciência, nada adianta crer,


somente, na estratégia de ensino da pedagogia visual se subestimamos o
processo linguístico do aluno surdo, ou seja, a ausência de sinais para termos
específicos de química em Libras. Penso que o docente, ao subestimar esse
fato, poderá estar suscetível a oferecer um ensino de química defasado,
ausente de possibilidades para que o surdo discuta ativamente os aspectos
sociais para questões científicas.

Nesse aspecto, importa o desenvolvimento do letramento


científico em Libras, na educação de surdos, como o meio necessário para
que os sujeitos se interajam, criem relações químicas e aprimorem essa
ciência a partir das suas características.

Com isso, concluímos que, para uma educação do campo


científico em sala de aula atingir a questão do bilinguismo, conforme
enfatizam Quadros (1996), Botelho (2002) e Rodrigues e Silvério (2013)
e as questões que culminam com a Libras como L1 e o Português como
L2, para o letramento do aluno surdo, ainda estão no caminho para a
possibilidade de um letramento científico, que depende diretamente de
signos linguísticos para termos da área científica, consolidados pela forma
como grupos diversos de surdos se apropriam.

Por todo esse caminho, aguardo como professor, e espero que


as políticas públicas voltadas para a educação inclusiva abram espaço para
a discussão de sinais científicos. Espero, ainda, que assim como o meu
trabalho vem contribuir para o ensino de alunos surdos, outros tantos
importantes se empenhem da mesma forma.

256. Vinícius da Silva Carvalho


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SOUZA, S.F.; SILVEIRA, H.E. Terminologias Químicas em Libras:


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258. Vinícius da Silva Carvalho


SUPALLA, T. Arqueologia das Línguas de Sinais: Integrando
Lingüística Histórica com Pesquisa de Campo em Línguas de
Sinais Recentes. In: QUADROS, Ronice e VASCONCELLOS, Maria
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TITONE, R. Bilinguismo precoce e educazione bilíngue. Roma,


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O letramento científico de alunos surdos no ensino de química .259


PosFÁCIO
No âmago de uma sociedade globalizada, onde o contato com
diferentes culturas e línguas cada vez mais se intensifica através dos meios
de comunicação e das novas tecnologias, o (re)pensar criticamente acerca
do ensino e da formação dos professores de Língua Portuguesa (LP) sob
diferentes lentes e quadros epistemológicos nos possibilita encontrar
mecanismos para a tentativa de (re)montarmos este complexo mosaico.

É a isto que se propõe a fazer o Prof. Dr. Juscelino Francisco do


Nascimento, jovem pesquisador da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e,
a meu ver, forte candidato à liderança nos estudos advindos da Linguística
Aplicada e Sociolinguística (Educacional) da Região Nordeste do Brasil.

Neste livro que o leitor tem nas mãos neste momento, os capítulos
buscam discutir o ensino de LP não apenas a partir de uma lente, mas a partir de
diferentes enfoques, abordagens e perspectivas teóricas contemporâneas, nos
possibilitando, assim, o indagar científico-prático de forma interdisciplinar.

A partir desta perspectiva, a presente coletânea apresenta estudos


realizados por estudiosos da língua(gem) de diferentes partes do Brasil e
do exterior (Angola e Portugal), com os quais o organizador tem e mantém
laços acadêmico-científicos. Pensar criticamente o ensino de língua nos
anos iniciais e finais do processo de escolarização e o processo de formação
de professores, com vistas à reflexão sobre as diversas materialidades do
processo nesse contexto e com foco na (trans)formação cidadã, crítica e
emancipatória é urgente na sociedade educacional brasileira.

Ao reconhecer o ensino, a formação e os (multi)letramentos


como mecanismos para o engajamento social e discursivo do cidadão no
mundo atual, densamente multisemiotizado e marcado pela pluralidade
cultural e identitária, a LP revela-se, ao lado de muitos outros, um elemento
central na formação para a cidadania crítica também no que diz respeito
ao primeiros anos de escolarização.

.261
Nessa perspectiva, são muitos e variados os fatores que merecem
atenção, visando a um ensino de mais efetivo, crítico e compatível com
as características da sociedade contemporânea, no que diz respeito ao
modo como hoje ocorrem as relações humanas por meio da linguagem,
em suas múltiplas formas ou semioses. Nesse contexto, orientando-se
principalmente por uma visão enunciativa de linguagem sociointeracional
de aprendizagem, a principal contribuição deste livro é discutir estudos
voltados a mapeamentos da área, parametrizações, material didático,
interação em sala de aula a partir de práticas e/ou eventos de letramentos,
no que diz respeito à Língua Portuguesa nos anos iniciais e finais do Ensino
Fundamental, no Ensino Médio e na formação de professores, na medida
em que, entre tantos outros, esses temas revelam-se centrais para ações
positivas rumo a um processo educativo mais informado, significativo e
emancipatório.

Parabenizo o organizador e os colegas que aceitaram este desafio


de (re)pensar criticamente o ensino e a formação de professores de forma
interdisciplinar.

Prof. Dr. Kleber Aparecido da Silva

Universidade de Brasília

262.
Referências

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática


educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1970.

.263
Organizador

Juscelino Francisco do Nascimento

Doutor em Linguística (2019) pela Universidade de Brasília (UnB), Mestre


em Letras - Área de Concentração em Estudos de Linguagem (2014)
pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), Graduado em Letras/Inglês
(2010) pela UFPI e em Letras/Português-Espanhol (2013) pelo Instituto
Superior de Educação Alvorada Plus. Atualmente, é Professor Formador
do Centro de Educação Aberta e a Distância (CEAD/UFPI), onde é
Coordenador de Estágios do Curso de Letras/Inglês; Professor Adjunto
da UFPI, Câmpus Senador Helvídio Nunes de Barros, em Picos, onde é
Coordenador do Curso de Letras/Português; Líder do Grupo de Pesquisa
Língua(gens), Ensino, Variação e Letramentos (Level), cadastrado e
certificado pelo CNPq; e, ainda, professor colaborador do Programa de
Pós-graduação em Formação de Professores, da Universidade Estadual da
Paraíba (UEPB).

E-mail: juscelino@ufpi.edu.br

264.
SOBRE OS AUTORES

Adriana Regina de Jesus Santos

Pós-Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF),


Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP). Docente no Curso de Pedagogia e no Programa de Mestrado
e Doutorado em Educação da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Líder do Grupo de pesquisa Currículo, Formação e Trabalho Docente
(CNPq).

E-mail: adrianatecnologia@yhaoo.com.br

Ana Rita Carrilho

Doutora em Letras (Linguística) pela Universidade da Beira Interior


(Covilhã, Portugal) e docente do Departamento de Letras desta mesma
universidade. É membro integrado do centro de investigação LabCom.
IFP (UBI, Portugal), desenvolvendo investigação na área da Linguística
Aplicada ao ensino do Português Língua Não Materna, Pragmática e
Didática da Língua.

E-mail: arsac@ubi.pt

.265
André Pedro da Silva

Doutor em Linguística e Mestre em Língua Portuguesa pela Universidade


Federal da Paraíba (UFPB), Graduado em Letras pela Universidade
Estadual da Paraíba (UEPB). Atualmente, é Professor Adjunto da
Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), em Recife, onde
é Diretor Substituto do Departamento de Letras/Português-Espanhol.
Atua, ainda, na graduação do Curso de Letras, nas modalidades presencial
e Educação a Distância (EaD). Além disso, está como professor convidado
no Programa de Pós-Graduação Profissional em Letras (ProfLetras) na
Universidade de Pernambuco (UPE), Campus Mata Norte. É Líder do
Projeto de Pesquisa Relação entre Fala e Escrita (REFALES) e integra
o Laboratório de Edição e Documentação Linguística de Pernambuco
(LeDoc); além de ter feito parte da Diretoria do Grupo de Estudos
Linguísticos e Literários do Nordeste (GELNE), biênios 2014-2016 e
2016-2018.

E-mail: pedroufpb@gmail.com

Bernadete Lema Mazzafera

Doutora em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em


Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/
SP). Docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Metodologias
para o Ensino de Linguagens e suas Tecnologias da Universidade Norte
do Paraná, em Londrina – PR.

E-mail: bernalema@gmail.com

266.
Domingos Pedro Arsénio

Doutorando em Linguística pela Universidade de Évora, Portugal. Mestre


em Estudos Lusófonos pela Faculdade de Artes e Letras da Universidade
da Beira Interior (UBI), Licenciado em Ensino da Linguística Portuguesa
pela Escola Superior Pedagógica do Kwanza-Norte/Angola (ESPKN).
Atualmente, é Professor, com a categoria de Assistente, do Departamento
de Ensino e Investigação de Línguas da ESPKN.

E-mail: domingosarsenio@hotmail.com

Eduardo Dias da Silva

Doutorando em Literatura e Mestre em Linguística Aplicada pela


Universidade de Brasília (UnB). Professor de Educação Básica e Pedagogo
na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) e
pesquisador nos grupos CNPq FORPROLL e GIEL.

E-mail: edu_france2004@yahoo.fr

Jislaine da Luz

Professora formadora da área de Linguagens, códigos e tecnologias pelo


Centro de Formação dos Profissionais da Educação Básica (CEFAPRO)
de Matupá – MT, graduada em Letras pela Universidade do Estado de
Mato Grosso (UNEMAT). Atualmente, é mestranda pelo Programa de
Pós-Graduação em Letras da UNEMAT, Câmpus Universitário de Sinop,
e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Linguística Aplicada e
Sociolinguística (GEPLIAS), vinculado à UNEMAT.

E-mail: jislaineluz@hotmail.com

.267
Lucila Pesce

Doutora e mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica


(PUC) de São Paulo, Graduada em Letras Português/Inglês pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente, é Professora
Associada do Departamento de Educação da Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp), Câmpus Guarulhos; e credenciada no Programa de
Pós-Graduação em Educação da mesma instituição. É vice-coordenadora
do GT 16 (Educação e Comunicação) da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd).

E-mail: lucilapesce@gmail.com

Maríndia Becker

Professora Formadora de Língua Portuguesa do Polo do Cefapro de


Matupá/Seduc-MT em 2017-2018. Atualmente, é assessora pedagógica do
município de Matupá – MT. Graduada e Mestra em Letras pela Universidade
do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) Câmpus Universitário de Sinop.

E-mail: marindiabecker2013@gmail.com

Marta Tibola

Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso


(UFMT) e especialista em Gestão Escolar pela Universidade das Faculdades
de Alta Floresta (Uniflor), Câmpus de Guarantã do Norte. Atualmente, é
diretora do Centro de Formação dos Profissionais da Educação Básica
(CEFAPRO) de Matupá – MT.

E-mail: marta.tibola@educacao.mt.gov.br

268.
Maria Adaiane da Silva Sousa

Graduada em Letras/Português pela Universidade Federal do Piauí (UFPI),


Campus Senador Helvídio Nunes de Barros, em Picos. Pós-Graduanda em
Docência no Ensino Superior (FAFIBE). Durante a graduação, exerceu
atividades de monitoria, foi bolsista do Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação à Docência (PIBID) e residente do Programa Residência
Pedagógica, ambos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES)

E-mail: adaianesousa@hotmail.com

Maria Izabel Oliveira da Silva

Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),


Graduada em Letras Português/Inglês pelo Centro Universitário Assunção
(UNIFAI). Atualmente, é Professora no Ensino Fundamental II pela
Prefeitura de São Paulo, e Ensino Médio pela Secretaria da Educação do
Estado de São Paulo.

E-mail: izabeloliver.sil@gmail.com

Paulo Osório

Licenciado em Humanidades (Português, Latim e Grego) pela Faculdade


de Letras da Universidade Católica Portuguesa, Mestre em Linguística
Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e
Doutor em Letras – Linguística Portuguesa pela Universidade da Beira
Interior, na qual foi aprovado em Provas de Agregação em Letras
– Linguística Portuguesa. Atualmente, é Professor Associado com

.269
Agregação na Universidade da Beira Interior, investigador do LabCom.
IFP (Universidade da Beira Interior) e colaborador do Centro de Línguas,
Literaturas e Culturas da Universidade de Aveiro.

E-mail: pjtrso@ubi.pt

Rayla Estefane da Silva Carvalho

Graduada em Letras/Português pela Universidade Federal do Piauí


(UFPI), Câmpus Senador Helvídio Nunes de Barros, em Picos. Professora
da Secretaria de Estado da Educação (SEDUC) do Piauí.

E-mail: rayllacarvalho15@gmail.com

Renato de Oliveira Dering

Doutorando em Letras e Linguística pela Universidade Federal de


Goiás (UFG), Mestre em Letras – Área de Concentração em Estudos
Literários pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), Graduado em
Letras/Português pela UFG. É líder-pesquisador do grupo Formação
de Professores em Línguas e Literaturas (FORPROLL), cadastrado no
CNPq, pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
(UFVJM). Atualmente, é Professor Assistente do Centro Universitário de
Goiás – Uni-ANHANGUERA, onde é Coordenador do Laboratório de
Práticas Pedagógicas (LPP) do Curso de Pedagogia.

E-mail: professordering@gmail.com

Roberta Rocha Ribeiro

Doutora em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB), Mestra


em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás (UFG),

270.
Licenciada em Língua Portuguesa e Literaturas Correspondentes pela
Pontifícia Universidade Católica de Goiás e Bacharel em Letras – Língua
Portuguesa e Linguística pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
Atualmente, é Professora Adjunta da Licenciatura em Educação do
Campo da Universidade Federal de Goiás/Regional Goiás e vice-líder do
Grupo de Pesquisa (Socio)Linguística, Letramentos Múltiplos e Educação
(SOLEDUC) – certificado pelo CNPq.

E-mail: letras.roberta@gmail.com

Vinícius da Silva Carvalho

Mestre e Doutorando em Química – Área de Concentração em


Educação em Química pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),
Especialista em Libras e Educação para Surdos pela Universidade Norte
do Paraná (UNOPAR) e Graduado em Licenciatura em Química pela
UFJF. Atualmente, é Analista de Instrumentos de Avaliação na Fundação
Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd) da UFJF.

E-mail: vinicius.scq@gmail.com

Yasmin Maria Macedo Torres Galindo

Graduada em Letras/Português e Espanhol pela Universidade Federal


Rural de Pernambuco (UFRPE), Campus Recife. Integrante do Projeto
de Pesquisa Relação entre Fala e Escrita (REFALES), onde se dedica a
estudar as variantes da língua escrita em seus diversos contextos, também
na UFRPE. Atualmente, atua como revisora, pesquisadora e, também,
escritora.

E-mail: yasmin.m.galindo@gmail.com

.271

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