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1

VERA LÚCIA DOYLE DODEBEI

O SENTIDO E O SIGNIFICADO DE DOCUMENTO


PARA A MEMÓRIA SOCIAL

RIO DE JANEIRO
1997
2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

O SENTIDO E O SIGNIFICADO DE DOCUMENTO PARA A


MEMÓRIA SOCIAL

Vera Lucia Doyle Dodebei

Orientadora: Rosali Fernandez de Souza

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em


Comunicação da Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Doutor em Comunicação.

RIO DE JANEIRO
1997
3

VERA LUCIA DOYLE DODEBEI

O SENTIDO E O SIGNIFICADO DE DOCUMENTO PARA A


MEMÓRIA SOCIAL

Aprovada em ....../......./.......

Banca Examinadora:

Profª Drª ROSALI FERNANDEZ DE SOUZA

Profª Drª KÁTIA MARIA DE CARVALHO SILVA

Prof. Dr. ALDO DE ALBUQUERQUE BARRETO

Prof. Dr. MILTON JOSÉ PINTO

Profª Drª MARIA NELIDA GONZALEZ DE GOMEZ

RIO DE JANEIRO
1997
4

À Liana Ocampo,

que me desafiou, minha gratidão e amizade.


5

AGRADECIMENTOS

Meus sinceros agradecimentos a:

Minhas filhas Andréa e Lilian que foram geradas e cresceram ouvindo falar
em dissertação de mestrado e tese de doutorado;

Meus funcionários do Sistema de Bibliotecas, em especial Isabel Arino Grau


que revisou todo o trabalho, e todos os amigos da UNI-RIO;

Minha orientadora Rosali;

A FAPERJ pelo apoio indispensável.


6

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................... 7

1 CONSTRUÇÃO SOCIAL DA MEMÓRIA .................................... 31


1.1 Cultura e sociedade ........................................................................ 32
1.2 Memória: acerca do conceito .......................................................... 40
1.3 Objetos do cotidiano: potencialidade de representação da memória
social .............................................................................................. 45
1.3.1 A distinção ou classificação dos objetos: uma questão de
diferença . 48
1.3.2 O sentido ou a re-união: uma questão de semelhança .......................
53
1.3.3 Em busca do significado ................................................................. 57

2 REPRESENTAÇÃO DA MEMÓRIA SOCIAL .............................. 65


2.1 A questão da representação ............................................................. 67
2.2 Representação e conceito ................................................................ 69
2.3 Comunicação e representação ......................................................... 77
2.4 Pensamento e linguagem ................................................................. 83
2.5 Significação e linguagem natural ..................................................... 86
2.6 Imagem e representação .................................................................. 93

3 ORGANIZAÇÃO DA MEMÓRIA DOCUMENTÁRIA ................. 102


7

3.1 A materialidade e o registro. O relato, sua essência e seu


significado
de prova .......................................................................................... 105
3.2 A organização da memória documentária. Meios de manutenção de
estoques de informação para a preservação da memória social .........
110
3.3 A teoria geral da memória documentária .......................................... 119
3.4 A síntese do virtual e do material ..................................................... 122

4 INSTITUIÇÕES DE MEMÓRIA .................................................... 127


4.1 A formação das instituições de memória .......................................... 129
4.2 O uso dos acervos de memória ........................................................ 134
4.3 Institucionalização e virtualidade da memória social ........................
145

5 CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE DOCUMENTO .................. 158

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................... 166


8

RESUMO

O conceito tradicional de Documento é questionado,


principalmente no que se refere à preservação da Memória Social. Três
proposições são apresentadas: Unicidade ou igualdade dos objetos
potencialmente representativos da memória social; Virtualidade ou condição
móvel, de trânsito dos objetos entre as memórias social e cultural; e
Significação ou o processo de transformação dos objetos do cotidiano em
documentos. A metodologia utilizada toma por base os contornos da Ciência
da Informação, organizando as análises dos discursos teóricos nas etapas de
produção (cultura, sociedade, memória), seleção (representação e
comunicação), organização (teoria da memória documentária) e uso
(instituições de memória) dos documentos. Como conclusão é apresentado
um novo conceito de documento, construído a partir das categorias
aristotélicas e do pensamento estóico.
9

APRESENTAÇÃO

“O gosto da composição geometrizante, de que


podemos traçar uma história na literatura mundial a
partir de Mallarmé, tem como fundo a oposição ordem-
desordem, fundamental na ciência contemporânea. O
universo desfaz-se numa nuvem de calor,
irremediavelmente num abismo de entropia, mas no
interior desse processo irreversível podem aparecer
zonas de ordem, porções do existente que tendem para
uma forma, pontos privilegiados nos quais podemos
perceber um desenho, uma perspectiva.” 1

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. p. 84


10

Os motivos que levam uma pessoa a escrever são inúmeros. No caso de


um trabalho acadêmico, esses motivos se restringem a uma necessidade
inevitável da caminhada profissional. Escrever é preciso. Mas sobre o quê?
Aí está o desafio. Normalmente, uma tese de doutorado reflete a ansiedade do
pesquisador quanto às divergências teórico-metodológicas junto a seus pares.
E o único jeito de resolver o problema é desnudá-lo de tal sorte que não
restem mais dúvidas, ao menos naquele ângulo de abordagem.
Assim, no ano de 1986, fazíamos parte, eu e alguns professores do
Centro de Ciências Humanas da Universidade do Rio de Janeiro, de um
grupo de trabalho que tinha por objetivo conceber uma nova estrutura
departamental para aquele centro acadêmico, além de propor um programa de
pós-graduação que abrigasse professores, alunos e profissionais envolvidos
com o desenvolvimento da Arquivologia, da Biblioteconomia e da
Museologia.
Ao longo das discussões, verificou-se quão intensas eram as interfaces
entre as disciplinas oferecidas pelos cursos de graduação. Isto gerou um
primeiro grau de dificuldade na definição dos departamentos de ensino, que
independentes, prestariam serviços aos cursos. A reunião de matérias afins
em um departamento específico propiciaria, além da formação de um corpus
pensante e propulsor do desenvolvimento de cada face do conhecimento, a
revisão das grades curriculares, com o consequente aumento da oferta de
11

disciplinas eletivas e optativas necessárias à oxigenação dos cursos. A


proposta do grupo de trabalho indicou a criação de seis departamentos de
ensino, sendo dois voltados à fundamentação geral: Departamento de
Filosofia e Departamento de História. Um de caráter interdisciplinar:
Departamento de Documentação. E três profissionalizantes: Departamento de
Arquivologia, Departamento de Biblioteconomia e Departamento de
Museologia.

A questão da interdisciplinaridade que fundamentou a criação


do
Departamento de Documentação foi levantada a partir da idéia de
documento,
tomando-se o seu conceito clássico de suporte físico da informação,
sendo
esta seu conteúdo essencial. Assim, o objeto museológico ou museal, o dossiê
arquivístico e o livro, compreendidos como objetos isolados de estudo da
Museologia, da Arquivologia e da Biblioteconomia, passaram a ser
observados com um olhar que interrogava suas semelhanças e diferenças,
tanto no plano conceitual, nos processos de organização institucional como
na sua relação com a sociedade.
Nesse momento, talvez tivesse sido mais fácil admitir que estávamos
nos ocupando do objeto errado: se invertêssemos conteúdo e continente,
teríamos a informação como objeto de estudo. Isto certamente resolveria, em
parte, a questão interdisciplinar; por outro lado, ampliaríamos o universo da
observação, devendo-se incluir aí a Comunicação, a Genética, a Informática,
a Arqueologia, só para citar as mais evidentes. Outra alternativa seria
considerar o espaço institucional como o objeto principal de estudo, o que
nos levaria a identificar locus com objeto. E, ainda, reconhecer os conjuntos
documentais (arquivo, acervo ou coleção) como sendo o objeto disciplinar, o
12

que nos conduziria novamente ao documento. Permanecer no documento,


entretanto, seria regredir às discussões de décadas passadas, nas quais o
termo Documentação se identificou com o processo de ruptura no âmbito da
Biblioteconomia, a partir da criação do Instituto Internacional de
Documentação por Paul Otlet. A UNESCO2 e Lasso de Vega3 apresentam
trabalhos clássicos sobre esse processo de ruptura. Os dois trabalhos, no
entanto, pressupõem a criação de uma nova disciplina (designada
“Documentação”) a partir do isolamento da Bibliografia como uma disciplina
emergente do seio da Biblioteconomia. Assim, nas discussões sobre a gênese
e a evolução da Biblioteconomia, documento e documentação estariam,
definitivamente, ligados ao passado, uma vez que a Ciência da Informação,
pela sua própria denominação, optou pela "informação" como seu objeto
de estudo. Mostafa4, em sua tese de doutorado sobre a epistemologia da
Biblioteconomia, apresenta uma rica discussão sobre esse tema. E, ainda,
podem ser consultados Mendonça de Souza e Dodebei5 (voltaremos a essa
questão nos capítulos subsequentes).
A Arquivologia, por sua vez, sempre reivindicou a posse do termo
documento, como gênero maior dos suportes com os quais se ocupa. No caso
brasileiro, a pressão corporativista conquistou até mesmo o direito de exigir a
retirada do termo Documentação do título de Bacharel em Biblioteconomia e
Documentação. Quanto à Museologia, esta tem se apropriado, historicamente,
do conceito de documentação, apenas para as ações de controle
administrativo na gestão de museus, emprestando ao termo significado
similar ao que lhe confere a Arquivologia, embora Ulpiano6, recentemente,
tenha aproximado o conceito de museu ao conceito de centro de
documentação.
As evidências de busca de interação entre os três campos -
Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia - estão presentes na literatura
técnica dessas áreas. O fato de haver conflitos na conceituação é,
13

seguramente, um indicador das interfaces existentes entre as práticas


disciplinares.
Essas interfaces foram melhor se delineando a partir do esforço de
gestão do Departamento de Documentação. Gerenciar um departamento que
congrega matérias oriundas dos três campos do saber obrigou-nos a
considerar que o esforço de retomada na discussão conceitual era não só
importante, como imprescindível para o desenvolvimento teórico daquelas
disciplinas. Para um modelo que se estabelece em bases interdisciplinares,
verificamos que o núcleo de interseção mais forte, sem excluir outras
interfaces ou fronteiras, era, certamente, o objeto de estudo de cada uma das
disciplinas. Mas isto não seria suficiente para repensar o conceito de
documento, uma vez que nos veriamos no círculo vicioso do objeto-
documento/ documento-objeto, tal como afirma Morin7, um círculo infernal.
Parafraseando Morin a missão era cada vez mais difícil e a demissão era,
naquele momento, impossível. Na tentativa de escapar do
paradigma binário, o esforço se concentrou
na identificação de outro atributo comum, ou melhor, adjacente ao objeto
de
estudo, que permitisse acrescentar outro referencial ao binômio
objeto/documento.8 O comprometimento institucional foi o forte indicador de
que se, por um lado, não havia a intenção de anular as instituições Arquivo,
Biblioteca e Museu (situação em que resgataríamos a idéia de Informação
como objeto de estudo), por outro, a existência e a permanência de tais
instituições implicava na noção de preservação, o que nos levou ao sentido de
memória.
Na antecipação de alguns cortes transversais, e tentando questionar o
caráter interdisciplinar desses campos de ação, e ainda observá-los sob a ótica
da representação do conhecimento, podemos considerar, tal como em
Mendonça de Souza e Dodebei9, que o fracionamento sucessivo do saber
14

científico em vários domínios diferentes e estanques não poderia deixar de


gerar fraturas similares na área do armazenamento e recuperação, poder-se-ia
dizer, na área da representação da informação deste conhecimento, tanto no
plano conceitual (bibliotecas e museus especializados, por exemplo) como no
objeto de estudo, ou seja, no tipo de documento gerado. Da mesma forma,
encontramo-nos numa situação em que existem vários gêneros de instituições
(organismos profissionais), cada uma com suas teorias e metodologias
próprias de tratamento dos materiais: livros, periódicos (bibliotecas);
manuscritos, papéis administrativos (arquivos); discos, fitas fonográficas
(fonotecas); filmes, fotos, slides (filmotecas); videocassetes (videotecas);
objetos em geral - realia (museus); dados digitalizados (bancos de dados);
animais (zoológicos); plantas (fitotecas, arboretos, jardins botânicos).
A reunião de exemplos, no entanto, está longe de ser
exaustiva,
bastando lembrar que existem estudos e normas para coleções de
quaisquer
tipos de objetos, como pinturas (pinacotecas), rochas (litotecas) etc. Para
algumas destas divisões há formação específica, definida em cursos
(Biblioteconomia, Arquivologia, Museologia, Processamento de
Dados/Informática/Análise de Sistemas) que articulam conteúdos curriculares
de disciplinas julgadas necessárias à prática profissional. Outros permanecem
como extensões de cursos mais amplos (Artes Cênicas/Visuais, Belas Artes,
Biologia etc.), incorporando boa margem de autodidatismo.
Esse fracionamento acabou por gerar dúvidas e discussões,
particularmente por não atender mais à necessidade do homem que vivencia
uma realidade que é constantemente construída e portanto, perspectivada. A
partir da década de 50, iniciou-se uma busca de novos paradigmas capazes de
contornar ou neutralizar o saber ultra-especializado e destituído de conteúdo
humanístico, por assim dizer, uma posição anti-holista.
15

A solução para tais problemas seria a integração destes conhecimentos


compartimentados, vista como uma re-integração do conhecimento, ou seja, a
interdisciplinaridade. A interdisciplinaridade seria, portanto, um campo de
forças político-sociais no qual ocorreriam as trocas necessárias à produção do
conhecimento no mundo moderno. Não implicaria em abolir a
disciplinaridade. Existiriam caminhos de ida e volta em busca da interseção
de disciplinas, como também a possibilidade de que a integração de
disciplinas resultasse em uma outra disciplinarização.
Tal é o caso da Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia, que
possuem interfaces comuns, um núcleo comum e áreas de especificidades
próprias. O exemplo a seguir ilustra, embora esquematicamente, essas
propriedades interativas:
16

BIBLIOTECAS

ARQUIVOS MUSEUS

Representação e preservação da memória social pelo documento.

Práticas organizacionais semelhantes: objetos únicos, coleções


formadas com mais independência e ideologia.

Guarda, manutenção e disseminação de documentos textuais,


represen- tando diretamente a intelectualidade de seus autores.

Fontes primárias para os estudos históricos.

No que concerne ao núcleo comum, isto é, a representação da


informação/conhecimento10, esta é, sem dúvida, uma atividade comum ao
campo de preservação da memória social. Portanto, o tipo de abordagem
necessária ao estudo dessa representação é interdisciplinar, uma vez que a
importação de um conceito por uma disciplina produz a necessidade de se
refazer as relações com as quais esta anteriormente trabalhava. Valle11,
afirma que esse conceito funciona como um “operador”, porque permite
novas “operações” no interior do campo teórico que o recebeu.
17

Essas operações, que transitam com uma frequência bastante alta nos
campos teóricos e metodológicos da Arquivologia, Biblioteconomia e
Museologia vêm conduzindo estudos sobre a categoria maior que
comportaria essas três áreas do conhecimento. Várias tentativas já foram
feitas para considerar a Ciência da Informação como gênero que abrigaria tais
campos mas, como até o momento esta se desenvolveu mais fortemente sob a
égide da ciência e da tecnologia, a Museologia, por exemplo, vem tendo
dificuldade em aceitar essa classificação. Há um certo consenso entre os
museólogos de que a Museologia ultrapassa a questão da tranferência da
informação. Faz uso dela como uma de suas práticas, mas considera a
dinamização cultural como sua expressão maior. É nesse sentido que surge o
conceito de informação cultural, em contraposição à informação científica e
tecnológica.
O que seria a informação cultural? Que diferença haveria dessa última
para a informação científica e tecnológica? Dos inúmeros aspectos que
poderiam aqui ser discutidos, ficaremos com aquele que interessa a nosso
propósito, ou seja, a representação e a preservação da memória social pelo
documento. Nesse sentido, as discussões sobre o conceito de Documento
ultrapassam a origem criadora da Ciência da Informação, preocupada
tradicionalmente com os objetos textuais. Para Le Goff12, por exemplo, o
objeto de memória pertence à categoria de documento/monumento. Na sua
concepção, independente da revolução documental deste século, documento
não é qualquer coisa que fica por conta do passado, mas um produto da
sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham
poder. Nas palavras de Le Goff estes materiais da memória podem
apresentar-se sob duas formas principais: monumentos, herança do passado,
e os ‘documentos’, escolha do historiador. Ao contrário, Foucault13 declara
que o documento ... (livros, textos, narrações, registros, atas, edifícios,
18

instituições, regulamentos, técnicas, objetos, costumes etc.) não é o feliz


instrumento de uma história que seja, em sí própria e com pleno direito,
memória: a história é uma certa maneira de uma sociedade dar estatuto e
elaboração a uma massa documental, de que não se separa.
Embora essas discussões sejam valiosas no propósito de modificar o
sentido tradicional de documento para preservação da memória social, elas
ainda estão voltadas para justificar a qualidade das fontes documentais para a
História. Sem nos aprofundarmos no método e nas fontes informacionais
necessárias às práticas disciplinares, apesar de apresentarmos uma análise
sobre essa questão para enfatizar o conceito de prova, restringimo-nos neste
trabalho a discutir como é conceituado o Documento numa abordagem
interdisciplinar.
Analisar um objeto em campo interdisciplinar não é uma experiência
isolada, de vez que existem por parte de vários grupos profissionais e de
pesquisadores, linhas de pesquisa voltadas para os estudos da
interdisciplinaridade no campo da preservação da memória social. Tal é o
caso da formação profissional adotada na UNI-RIO, que considera duas
esferas de atuação. A primeira representa as instituições formalmente
constituídas, ou seja, arquivos, bibliotecas e museus, para as quais são
formados profissionais aptos a lidar com todo o processo de transferência da
informação, como também na socialização das manifestações culturais. A
segunda contempla as manifestações sociais de memória, que podem estar
sobrepostas às primeiras e, mais além, serem representadas pelas várias
combinações de evidências culturais dentro e fora da materialização
institucional, aspecto esse privilegiado pela concepção interdisciplinar da
pós-graduação no Mestrado em Memória Social e Documento.14
Essas evidências culturais, objeto de estudo de vários campos do saber,
tornam-se particulares ao âmbito da memória quando relacionadas a qualquer
19

tipo de intenção preservacionista. Assim, podemos situar dois conjuntos


de
discussões emergentes no campo da conceituação de Documento para
a
memória social, discussões essas que permitiram o estabelecimento da
problemática levantada neste trabalho.
O primeiro, usando o apoio teórico no campo da classificação, divide
o universo dos documentos representativos da memória social em tangíveis e
não tangíveis. Tal dicotomia visa, primordialmente, a explicar a existência do
documento fora da sua materialidade, entendendo-se por tangibilidade não só
a visibilidade mas, sobretudo, a ação de registro material. Ocampo15, em
defesa dessa corrente de pensamento, afirma que :
existem documentos registrados nos mais diferentes suportes (o que dá
origem ao conceito de bem cultural tangível), por outro lado existem também
documentos que não se encontram registrados em suportes materiais e que
nem por isso deixam de ser resultado de manifestações culturais
significativas, tais como mitos de criação, lendas, supertições, músicas (bens
culturais intangíveis).
Ocampo se baseia, também, nas teorias que apóiam a sociologia da
cultura, e sugere que o conceito de documento não implica necessariamente
em qualquer tipo de registro, pois o que importa é a dinâmica da ação
cultural. Ocampo conceitua Documento como tudo aquilo a que se atribui
determinados significados16. Por outro lado, ao concordar com Le Goff,
afirma que os conteúdos de memória se objetivam através dos documentos.
Poderiam os conteúdos de memória objetivarem-se através de todos os
momentos, ou seja, da dinâmica contínua dos mitos e lendas? Ou seriam
alguns momentos, tomados como espécime ou prova, que, na condição de
reprodutibilidade, se objetivariam em documentos? Estaria implícita aí a
questão da seleção ou da escolha? Poder-se-ia afirmar a existência de um
objeto de memória a partir da sua singularidade, já que a unicidade conduz ao
20

oposto, onde tudo e nada se interpõem, se equivalem? A esse respeito,


podemos refletir tal como em Marco17, no campo da teoria da classificação,
onde a percepção absoluta da diferença (que não pode ser processada) e a
absoluta percepção da unidade nos tornariam incapazes de atuar e existir num
mundo efetivamente diferenciado. E se documento é o conceito para todo o
objeto ao qual se atribui significados como afirma também Sheiner18,
concluiremos que os conceitos de objeto e documento se equivalem.
O segundo conjunto de discussões pode ser representado pelo relatório
de reformulação do Mestrado em Memória Social e Documento, fruto da
reflexão de um grupo de pesquisadores envolvidos com a questão da
convergência de temas que pudesse levar a uma identidade teórica para
aquele curso. Partindo do conceito amplo de memória social, o qual não
define, por si só, apenas um campo de atuação teórica, o grupo optou por
agregar a esse um outro conceito delimitador: o conceito de documento.
Embora nesse conjunto de discussões as questões da materialidade, da
visibilidade e da tangibilidade tenham sido consideradas na análise dos
atributos definidores do conceito de documento, elas foram vistas sob uma
perspectiva diversa daquela observada por Ocampo.
Ainda que a materialidade fosse considerada opcional ao conceito de
documento, o que se conforma à opinião de Ocampo, a visibilidade e a
tangibilidade foram, nessas refelexões, inerentes ao conceito de instituição da
memória como um fato social. A fim de evitar intepretações tangenciais na
organização do pensamento dos autores, transcrevemos o seguinte trecho do
relatório:

A memória de uma sociedade não é somente uma herança acabada,


marcas tangíveis e ilações que delas a ciência pode derivar acerca da sua
relação com o passado: é, em nosso entendimento, o próprio movimento de
constituição identitária que permeia, viabilizando e atribuindo significação,
as produções e as relações dos membros da sociedade entre si. ... esta tensão
21

entre a necessidade de enraizamento e o caráter dinâmico da memória social


parece ser o terreno mais propício para que situemos a acepção que
pretendemos atribuir ao conceito de documento. “Documento” que aparece,
agora, não apenas como dado material, como objeto a ser manipulado
segundo certas técnicas específicas, mas como operador que nos permite
acesso à problematização da memória social. 19
Fica evidenciado nesta nova concepção de documento para a memória
social apenas seu caráter abstrato, tal como um artifício delimitador de um
campo teórico, uma vez que, nessa última definição, seu conceito é igualado
ao de um operador que possibilita as ilações entre a memória social instituída
e a memória social emergente, esta última ainda não representada pela
materialidade das ações culturais.
Porém, tal tentativa de ampliar o conceito de documento para a
resolução dos problemas teóricos, metodológicos e operacionais diante das
abordagens interdisciplinares sobre a preservação da memória social não nos
parece ainda suficiente para explicitar seus atributos ou predicáveis
diferenciadores, por exemplo, daqueles inerentes ao conceito de “operador”.
Se, nesse momento, as discussões sobre o conceito de documento nos
indicam que o tema é não só atual como ainda polêmico, mais importante é
constatar que a discussão sobre seu conceito é, de fato, urgente.
Podemos, ainda, agregar às discussões anteriores algumas opiniões de
autores que abordam o tema da preservação da memória social e tocam,
muitas vezes, na questão da conceituação de documento, embora não
demonstrem explicitamente a intenção de reformular seu conceito. Jeudy20,
por exemplo, estabelece a diferença entre objeto testemunha e objeto
depósito, este último significando o grau zero da memória, ou o seu oposto, o
esquecimento, onde aquele só adquire significado pelo discurso. Afirma,
assim, que o objeto é o pretexto para o relato. Deixa transparecer, com essa
afirmação, que o objeto em si, na sua unidade, não é suficiente para transmitir
conteúdos de memória. Qual seria, portanto, a relação existente entre o
22

gênero de objeto, a ação que o produziu e a determinação de sua escolha para


representar uma unidade de memória?
Especificamente sobre a questão da materialidade, podemos
considerar
a opinião de Fonseca21, quando comenta as apresentações de Carlos Gomes,
na Itália do século XIX:
Vamos por um instante fixar na tela esta imagem de congraçamento no
ensaio de O Guarani, para conversar, em voz baixa, como se deve fazer na
sala escura do cinema, sobre a História e a Memória. As vozes de Maurel, de
Tamagno, que ainda são jovens e terão longas carreiras, e a de alguns
outros grandes artistas destes dias, não muitos, serão preservadas para a
posteridade. A maioria se perderá. Ainda faltam alguns anos para que surja
a invenção de Edison, que aqui será chamada de macchina parlante; não há
ainda disco, cilíndrico ou chato circular, nem o de amberol, nem o de
acetato; e não há o cinema - já inventaram o zoetrope, e um monte de
sonhadores trabalha em novas tecnologias, mas ainda é um pouco cedo -
nem há o videoteipe, nem o CD-ROM e a multimídia computadorizada. Este
mundo da música, do qual vemos um pequeno fotograma congelado na nossa
tela, não está sendo preservado, suas belas manifestações nos concertos, nos
espetáculos - e nas tertúlias lítero-musicais, vá lá - são evanescentes, como
os ectoplasmas dos fantasmas. Dele apenas permanecerão libretos,
partituras e as palavras, as palavras dos que viram e ouviram. Jamais terá
esse mundo sua emoção e seus prodígios virtuosísticos recuperados:
perderam-se para sempre as vozes, como se perderam os gestos dos
maestros, os sons específicos daqueles instrumentos musicais, os movimentos
dos bailarinos, o arrebatamento das platéias, os sonhos de todos.

A reprodutibilidade parece também ser necessária à permanência de


uma memória que é, nada menos, que um recorte momentâneo do social. E a
tecnologia, embora tenha contribuído para a fixação material de momentos
importantes da ação social, desde a pintura rupestre, os papiros e os
pergaminhos até a imprensa, o disco, o cinema e o ship eletrônico, atualmente
vem contribuindo para aumentar a complexidade no jogo do concreto e do
virtual. As mudanças comportamentais neste final de século nos deixam, às
vezes, sem fôlego para compreender de que maneira poderemos controlar,
23

acessar e preservar as ações sociais representativas das culturas existentes,


diante da dualidade do tradicional, materialmente palpável, e do
virtual,
concretamente imaterial.
A necessidade de estudos e projetos que investiguem o documento pelo
seu caráter de testemunho é imperativa, representando o seu significado
maior para a memória social como analisa Clavel-Lévèque apud 22, tal como
um composto de elementos que funcionem como um inconsciente cultural.
Nesta
abordagem, as evidências de insuficiência teórico-metodológica nas ordens
de leitura para a existência e convivência do objeto no campo cultural23
conduzem, portanto, à tarefa que retomo neste trabalho e que é, de fato,
complexa. Em todo caso, se os olhares singulares só enxergam problemas
singulares, o que não é, absolutamente, nosso caso, teremos que encontrar um
caminho que nos permita enfrentar o múltiplo, o variável, o circunstancial, na
tentativa de relacionar objeto-documento-memória. E ainda, enfrentar um
espaço-tempo, ou nas palavras de Maffesoli24, um tempo que se torna espaço.
A tese principal da qual me ocupo neste momento é a de que os
conceitos de Documento apresentados pelos vários campos do saber não são
adequados à representação e à preservação das ações culturais. O documento
não pode representar, ao mesmo tempo, tanto a memória instituída como a
memória emergente. Por outro lado, não pode ser objeto de estudo de apenas
um dos campos do saber que se ocupam da preservação da memória social,
como pretende a Arquivologia. E não pode se restringir meramente à
tranferência da informação na esfera da ciência e tecnologia.
O conceito de documento deve, sim, ser apreendido como um
“constructo” que reúna as seguintes proposições:
Primeira proposição: UNICIDADE - Os documentos que são os
objetos de estudo da memória social não são diferenciados em sua essência
24

ou seja, não se agrupam em categorias específicas, tal como os exemplos


tradicionais: o livro para bibliotecas, o objeto tridimensional para museus e
o manuscrito
para arquivos.
Segunda proposição: VIRTUALIDADE - A atribuição de predicáveis
ao
objeto submetido ao observador dentro das dimensões espaço-tempo
é
seletiva, o que proporcionará, arbitrariamente, uma classificação desse
objeto.
Terceira proposição: SIGNIFICAÇÃO - A transformação dos objetos
do
cotidiano em documentos é intencional, constituindo estes uma
categoria
temporária e circunstancial.
Assim, o conceito tradicional de documento - Todo o suporte material
da Informação - deve ser revisto, uma vez que não encontraremos seu
sentido e seu significado tomando, apenas, sua forma e seu potencial
informativo, sem considerar a interlocução e, mais especificamente, a
intenção de preservação no âmbito da memória social.
O compromisso de avançar teoricamente as questões da representação
do conhecimento, quer dizer, a redução quantitativa do conteúdo informativo
de um objeto de memória, visando à ampliação do acesso no universo de
informações disponíveis, não pode ser tarefa disciplinar. As técnicas de
Análise Documentária, por exemplo, vêm sendo discutidas por equipes
interdisciplinares, como o Grupo Temma, da USP25, onde a preocupação com
o resgate da informação extrapola a uma redução quantitativa de significados,
e busca alcançar, pelos fundamentos das teorias da linguagem, a redução
simbólica sem perda da qualidade da informação. Por outro lado, a inserção
25

do documento como um elemento diferenciador das abordagens possíveis da


memória social, nos conduzem a refletir sob que perspectivas, focos ou
caminhos metodológicos poderíamos conduzir esta pesquisa.
Poder-se-ia desenvolver a análise sobre o conceito do Documento para
a memória social a partir da trajetória do conceito sob o ponto de vista ou da
História, da Sociologia, da Arqueologia ou da Comunicação. Mais
especificamente, a questão poderia ser vista sob o ângulo de uma teoria
representada por um pensamento dominante, em certo período dessa
trajetória. Por exemplo, o conceito otletiano26 de documento e sua
importância para a gênese da Biblioteconomia e ciências correlatas. Outra
alternativa seria a de conduzir a questão sob a égide de uma teoria; por
exemplo, a teoria da classificação, uma vez que a formação de conceitos
implica, necessariamente, atribuição de predicáveis diferenciadores de outros
conjuntos conceituais. Assim, as oprtunidades para o estudo da análise e
síntese conceitual de um
dado objeto são inúmeras.
A proposta metodológica que se segue, e que deve ser compreendida
como uma dessas possibilidades, levou em consideração que a dinâmica da
Ciência da Informação é favorável ao caráter interdisciplinar do qual se
reveste a questão da preservação da memória social. Em primeiro lugar,
porque a Ciência da Informação considera todas as etapas do processo social,
isto é, a produção, a seleção, a organização e o uso das representações
informacionais. Em segundo lugar, porque ela trabalha a
interdisciplinaridade, no sentido de fazer uso dos conceitos disciplinares
como fontes operacionais teóricas para, circunstancialmente, construir um
objeto de estudo.
Desta forma, os capítulos seguintes foram organizados de acordo com
o mapeamento dos conceitos de documento (explícitos ou não) em suas
interfaces e fronteiras disciplinares, numa abordagem metodológica que
26

considera a ordem de especificidade decrescente e a complexidade crescente


da inserção dos focos de estudo na esfera social. Tal abordagem utilizou os
contornos da Ciência da Informação e, principalmente, os princípios
fundamentais das teorias voltadas para a organização do conhecimento, em
especial a teoria da classificação, a teoria analítica dos conceitos e a teoria do
assunto ou análise documentária.
As proposições apresentadas partem da suposição de que o foco de
estudo - Objeto ∩ Cultura ∩ Memória - é de natureza interdisciplinar.
Portanto, as metodologias ou conjuntos de procedimentos técnicos de
averiguação ou de controle possuídos por uma determinada disciplina não
foram suficientes para conduzir esta pesquisa, embora as visões singulares
apareçam no decorrer da exposição, ora como sinal de insuficiência teórico-
metodológica para o campo interdisciplinar, ora como a confirmação
de
contradições dentro do aspecto disciplinar.
Morin27 afirma que o estudo de questões não singulares, como é o
caso
da articulação das ciências humanas com as ciências da natureza, exposta
em
seu trabalho La méthode: la nature de la nature, não pode obedecer aos
princípios da ordem, excluindo a desordem; da clareza, excluindo a
obscuridade; da distinção, excluindo as aderências, participações e
comunicações; da disjunção, excluindo o sujeito, a antinonímia, a
complexidade, quer dizer, um princípio que ligue a ciência meramente à
simplificação lógica. Ao contrário, o objetivo é, a partir de um princípio de
complexidade, ligar o que está desunido. Se o paradigma cartesiano, que
dominou o Ocidente, não atende ao princípio da complexidade, característico
da atualidade, então a falta de paradigmas nos permite caminhar mais
livremente.
27

O problema, portanto, antecede a mera simplificação da conduta


metodológica aceita pelos campos disciplinares. O exame das técnicas, em
cada campo disciplinar observado, compreendeu os processos linguísticos e
operativos, assim como os conceitos e os instrumentos dos quais as
disciplinas se valem para a aquisição de seus resultados.
Tal como em Foucault28, a certeza dos problemas metodológicos é mais
fértil do que enfrentar um caminho definido. Para os seis problemas
apontados por Foucault, apresentamos os seguintes procedimentos
metodológicos para esta proposta de construção do conceito de documento a
partir da crítica ao discurso da preservação da memória social, como a seguir:

1 Constituição de um corpus coerente e homogêneo de documentos


(corpus aberto ou fechado, acabado ou indefinido)

O material de estudo foi a produção literária, expressão do pensamento


de autores ocupados com a questão da memória social. A sistematização dos
conceitos expressos na literatura, considerados como o reflexo das
singularidades cognoscitivas, parece ter sido a contribuição maior no corte
perspectivo da relação objeto, documento e memória.

2 Estabelecimento de um princípio de escolha (conforme se queira


tratar
exclusivamente a massa documental, ou se pratique uma amostragem segundo métodos de
levantamentos estatísticos, ou se tente determinar, antecipadamente, os elementos
mais
representativos)

A tentativa de observar um objeto num universo muito amplo


requer o uso de técnicas de seleção e categorização de núcleos informativos
que sejam representativos de partes ou aspectos desse universo. Tais técnicas,
já amplamente discutidas e testadas no conjunto disciplinar conhecido como
Organização do Conhecimento, fazem uso do processo de análise e síntese
próprio da organização de documentos em sistemas de informação.
28

3 Definição do nível de análise e dos elementos que lhe são


pertinentes (no material estudado pode-se salientar as indicações numéricas, as
referências, explícitas ou não, a acontecimentos a instituições, a práticas; as palavras
empregadas, com suas regras de uso e os campos semânticos por elas traçados, ou ainda, a
estrutura formal das proposições e os tipos de encadeamento que as unem)

O ponto de partida, ou a análise de conteúdo informativo, operou no


universo da análise do discurso teórico (plano das idéias), conforme o
29
pensamento de Bronckart apud e no universo da representação simbólica
(plano da linguagem).

4 Especificação de um método de análise (tratamento quantitativo dos


dados, decomposição segundo um certo número de traços assinaláveis, cujas correlações
são estudadas, decifração interpretativa, análise das frequências e das distribuições)

O processo classificatório visou à comparação conceitual, isolando as


diferenças específicas dos atributos ou predicáveis do objeto em análise, e as
relações entre os atributos conceituais conduziram à categorização de
conceitos em escalas de complexidade e especificidade (tratamento
qualitativo).

5 Delimitação dos conjuntos e subconjuntos que articulam o material


estudado (regiões, períodos, processos unitários)

A análise qualitativa da inserção das atividades disciplinares em campo


teórico mais amplo obrigou, certamente, ao exame de suas gêneses em
cortes
que identificaram as continuidades e as rupturas conceituais.

6 Determinação das relações que permitem caracterizar um conjunto


(pode tratar-se de relações numéricas ou lógicas; de relações funcionais, causais,
analógicas; pode tratar-se da relação significante-significado)

A análise dos atributos informacionais do objeto baseou-se na


identifica
29

ção de atributos isolados e essenciais, na identificação das relações entre


atributos informacionais próprios do objeto e, ainda, nas condições
informacionais do sujeito e do espaço-tempo. Portanto, ao relacionar os
atributos, foi necessário inserí-los numa ordem maior de acontecimento, o
que implicou a leitura do objeto, considerando as necessidades de informação
para a formação da identidade, as condições de operacionalização espaciais
para a
manutenção da memória e as influências do pensamento da dimensão
temporal.
Em síntese, essa leitura do objeto supôs a relação:

OBJETO ⇒ SUJEITO/OBJETO ⇒ SUJEITO/ESPAÇO


⇓ ⇓ ⇓
Material Psicológico Social

Nos discursos teóricos, foram consideradas as ações sociais que


envolvem os objetos como sínteses de memória dentro dos universos
retórico e ideológico, como nomeia Eco30, ou uma tábua que, para
Foucault31, significa o lugar onde os objetos podem encontrar-se ou um
quadro que permite ao pensamento operar com os seres uma ordenação, uma
repartição em classes, um agrupamento nominal pelo qual são designadas
suas similitudes e suas diferenças. Tanto para Eco como para Foucault, esse
espaço homogênio onde se dão as trocas informacionais pode ser
denominado de cultura, de tal sorte que a casualidade e a fidelidade ocorrem
numa contínua dialética entre códigos de interpretação crítica.
A classificação simbolizada no quadro a seguir, absolutamente não
excluiu as interfaces de pensamento entre os discursos, isolando-os em
categorias estéreis e imutáveis. Pelo contrário, a correlação dos conceitos
gerais com os instrumentos teóricos e seus discursos mostrou-se como uma
30

tentativa de ordenação cognitiva, de construção de uma tela, onde se


entrecruzam os fios ideológicos, cujas interseções podem ser pinçadas para
a
construção de novos conceitos.

MAPA TEÓRICO - CONCEITUAL


Conceitos gerais Instrumentos teórico/ Discurso teórico
metodológicos (rupturas e
continuidades)
P
CULTURA Teorias da Cultura Bosi, Maffesoli, Muniz Sodré,
R
O Geertz, Cohen
D
MEMÓRIA Teorias da Memória Jeudy, LeGoff, Namer, Nora
U
Ç
à OBJETOS
O Teoria dos Objetos Moles, Baudrillard, Boudon

S Teorias Sociológicas Becker, Gomez


E
L
REPRESENTA Eco, Spirkin, Gorsky, Pinto,
E Teorias da Comunicação
ÇAO Virilio
Ç
Ã
O Teoria Analítica dos Dahlberg
Conceitos

O
R
G
A
N
DOCUMENTO Teoria da Memória Do- Otlet, La Fontaine, Malclés
I
cumentária
Z
A
Ç
Ã
O

Teorias Arquivísticas Burke, Miller, Posner


U INSTITUIÇÕES
Teorias Museológicas Chagas, Russio, Mensch
S DE MEMÓRIA
Teorias Biblioteconômi- Estivals, Foucault, Mostafa
O
31

cas

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DA APRESENTAÇÃO

1
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. SãoPaulo :
Companhia das Letras, 1990. 141 p. 84.
2
CIÊNCIA da Informação ou informática? Organização e tradução de Hagar Espanha
Gomes. Rio de Janeiro : Calunga, 1980. 112p. (publicado em UNESCO Bulletin for
Libraries, v.22, n.2, p. 58-63, mar./abr., 1968.)

Em fins do século XIX, Otlet e La Fontaine começaram a preparar a sua bibliografia


universal utilizando os catálogos de biblioteca do tipo tradicional e escolheram o
Sistema Decimal de Dewey como base de sua classificação. No entanto, não só se
preocuparam em fazer um trabalho completo, mas também em submeter os materiais
bibliográficos a uma análise de conteúdo mais profunda do que a até então feita
pelos bibliotecários e, para diferenciar sua atividade da Biblioteconomia, deram-lhe
o nome de Documentação. Desse modo começou, na Biblioteconomia, um cisma que
ainda não terminou. p. 91.
3
LASSO DE LA VEGA, Javier. Manual de documentación : las técnicas para la
investigación y redacción de los trabajos científicos y de ingeniería. Barcelona :
Labor, 1969. 829 p.

En el campo internacional, la palabra surge en virtud de propuesta presentada por


los fundadores del Instituto Internacional de Bibliografia, Paul Otlet y Henry
Lafontaine, en la X Conferencia Internacional, celebrada el año 1931, en la que se
acordó sustituir la palavra bibliografia por la de documentación. No se conservan
las actas de la sesión em que dicha propuesta fue presentada ni de la forma, por lo
tanto, en que se planteó y llevó a término la discussión. p. 109.

4
MOSTAFA, Solange Puntel. Epistemologia da biblioteconomia. São Paulo :
PUC, 1985. (Tese de Doutorado em Filosofia da Educação)

A Ciência da Informação pretendeu revitalizar o processo de comunicação formal e


para isso teve de penetrar também nos mecanismos da comunicação informal.
Contudo, toda essa revitalização do próprio objeto agora entendido mais em termos
de conteúdo do que de forma (veja-se, por exemplo, a alegria dos bibliotecários ao
reconhecerem que o objeto da biblioteconomia não é mais o livro mas a
informação), restringiu a informação em ciência e tecnologia na fase da criação.
p.58.

5
MENDONÇA DE SOUZA, Alfredo, DODEBEI, Vera Lucia. Três seminários em Ciência
da Informação. Rio de Janeiro: IBICT/CNPq/ECO/UFRJ, 1992. (Trabalho
apresentado à disciplina Linguagem e Ciência da Informação III: gerenciamento,
32

economia e marketing em Ciência da Informação, curso de doutorado em Ciência da


Informação)

Este trabalho, dividido em três partes, aborda na primeira a gênese e a evolução da


Biblioteconomia. Na segunda, enfoca os aspectos da evolução da formação
profissional, analisando os currículos das escolas de formação, no Brasil, desde 1911,
data da criação do primeiro curso na Biblioteca Nacional. A terceira parte apresenta
os modelos pelos quais a Biblioteconomia se valeu para explicar todas as suas
transformações. O texto conclui com a suposição de que a Ciência da Informação é
um grande “guarda-chuva” que abriga várias disciplinas, as quais têm na informação a
sua preocupação de estudo.
6
ULPIANO, T. Bezerra de. Museu Paulista : como explorar um museu histórico. São
Paulo : USP, 1992. 123 p. p. 51

7
MORIN, Edgar. La méthode : la nature de la nature. Paris : Éditons du Seuil, 1977. p. 17.
8
Paradoxalmente, ao incluirmos um novo conceito aos anteriores, reduzimos o grau de
generalização e limitamos o campo de estudo. Tal processo pode ser explicado pela
derivação conceitual na divisão (lógica formal), onde a noção de compreensão e
extensão opera inversamente ao número de atributos relacionados ao conceito.
9
MENDONÇA DE SOUZA, Alfredo, DODEBEI, Vera Lucia. op. cit. p. 34.
10
GOMEZ, Maria Nelida Gonzalez de. A representação do conhecimento e o
conhecimento da representação. Ciência da Informação, Brasília, v.22, n.3, p.217-
222, set./dez., 1994.

A autora usa a expressão conhecimento/informação para se referir às ações de


geração e comunicação dentro do processo social de transferência do conhecimento.
11
VALLE, Lilian do. A problemática de reformulação do mestrado. Rio de Janeiro :
UNI-RIO, 1994. (texto apresentado à reunião de reformulação do Mestrado em
Administração de Centros Culturais, CCH, junho, 1994)
12
Le GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: _____. Memória e história. SãoPaulo :
Unicamp, 1990. p.535-553.
13
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro : Forense Universitária,
986. p.25
14
PROPOSTA de Reformulação do Curso de Mestrado em Memória Social e Documento.
Rio de Janeiro : Uni-Rio/ Centro de Ciências Humanas/Curso de Mestrado, 1995.
123p.
15
OCAMPO, Liana T. R. Curso de Mestrado em Administração de Centros
Culturais: esquema conceitual. Apontamentos Memória & Cultura, Rio de
Janeiro, v. 2, n.1, p. 1-8, 1991. p. 2
33

16
ibid.
17
MARCO, Francisco Javier Garcia et. al. On some contributions of the cognitive
sciences and epistemology to a theory of classification. Knowledge Organization, v.
20, n.3, p.126-132, 1993. p. 129
18
SHEINER, Tereza Cristina. Objeto-documento. Objeto-argumento. Objeto-instrumento.
Raizes e Rumos, Rio de Janeiro, ano 2, n. 4, 1995.
19
PROPOSTA de Reformulação do Curso de Mestrado em Memória Social e Documento.
op. cit. p. 29
20
JEUDY, Henry-Pierre. Memórias do social. Rio de Janeiro : Forense Universitária,
1990. p. 66.

Partida, fragmentada, estilhaçada, a história se separa dos objetos, e se reproduz


numa multidão de relatos fragmentários em relação aos quais os objetos não são
mais que provas acessórias (...) O visitante das forjas nas quais trabalhou outrora
seu avô só se deixará seduzir por relatos que escutará, ou por seu próprio silêncio
que lhe permitirá imaginar tudo o que ele quizer. As forjas, como locais, seus objetos,
são pretextos para o relato.
21
FONSECA, Rubem. O selvagem da ópera. São Paulo : Companhia das Letras, 1994.
p.66-7
22
Le GOFF. op. cit. p. 547.
23
A esse respeito, o Curso de Mestrado em Memória Social e Documento, do Centro
de Ciências Humanas da Universidade do Rio de Janeiro (UNI-RIO) oferece uma
dinâmica de pesquisa que reúne três diferentes abordagens: a do objeto, no plano
ontológico; a da hermenêutica, gestão, informação e comunicação, no plano
epistemológico; e a relação entre os procedimentos que evidencia a
interdisciplinaridade, no plano metodológico.
24
MAFFESOLI, Michel. O poder dos espaços de celebração. Rev. Tempo Brasileiro, Rio
de Janeiro, n. 116, p.59-70, jan./mar. 1994. p. 61
25
ANÁLISE documentária: considerações teóricas e experimentações. São Paulo :
FEBAP, 1989. 191 p.
26
Cf. as citações e notas sobre Paul Otlet acerca do movimento da “Documentação”.
27
MORIN, Edgar. op. cit. p. 14
28
FOUCAULT, M. op. cit. p. 8
34

29
KOBASHI, Nair Yumiko. Análise documentária e tipologias discursivas. In: ANÁLISE
documentária : considerações teóricas e experimentações. São Paulo: FEBAP, 1989.
cap. 2.

A análise do discurso, segundo Bronckart, comporta três segmentos: o discurso na


situação, caraterizado pela produção do texto em relação direta com a ação
contextual, o qual podemos identificar com os documentos de Arquivo,
principalmente considerando a idade ou o valor primário do texto; o discurso teórico,
que resulta de um esforço de abstração e de uma independência da situação de
enunciação particular, tal como a literatura científica; e, a narração, que se diferencia
dos dois tipos de discursos anteriores pela existência da criação de uma origem, a
partir da qual os acontecimentos narrados se organizam nos sucessivos.
30
ECO, Umberto. A estrutura ausente. São Paulo : Perspectiva, 1991. p. 90
31
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas : uma arqueologia das ciências humanas. São
Paulo : Martins Fontes, 1990.
35

1 CONSTRUÇÃO SOCIAL DA MEMÓRIA

“Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei


descrever a cidade de Zaíra dos altos bastiões.
Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas
em forma de escada, da circunferência dos arcos dos
pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos
os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer
nada. A cidade não é feita disso, mas das relações
entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos
do passado: a distância do solo até um lampião e os
pés pendentes de um usurpador enforcado; o fio
esticado do lampião à balaustrada em frente e os
festões que empavesavam o percurso do cortejo
nupcial da rainha; a altura daquela balaustrada e o
salto do adúltero que foge de madrugada; a
inclinação de um canal que escoa a água das chuvas e
o passo majestoso de um gato que se introduz numa
janela ... A cidade não conta o seu passado, ela o
contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos
das ruas, nas grades das janelas, ... cada segmento
riscado por arranhões, serradelas, entalhes,
esfoladuras.”1
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. p.14
36

Neste capítulo, discutiremos o tecido social, compreendido como a teia


das relações sociais construída pelas ações do homem. Nesta ordem de leitura
dos acontecimentos sociais, há, seguramente, um vasto território de
indagações sobre o que seja cultura, sociedade, civilização. Os conflitos de
opiniões se acentuam quando tentamos discutir o que seja memória e como
esta emerge da constante dinâmica social. Ao dirigirmos um olhar conceitual
para as ações concretas desse tecido social, nos deparamos com os traços ou
vestígios que de uma certa forma transitam pelas dimensões temporais,
passando do passado ao presente, sempre tendo em vista o futuro. Tais
vestígios são, nesta abordagem, tratados genericamente por objetos, ou, mais
especificamente, por objetos potenciais de memória.
Assim, seguimos os contornos da Ciência da Informação, que utiliza,
na análise de seus processos, todo o ciclo de vida de seu objeto de estudo, ou
seja: a produção, a seleção, a organização e o uso (entendendo-se aqui a
operação assimilação/descarte). Rastrearemos, portanto, a probabilidade da
existência de objetos de memória na sua fase incipiente ou inicial, quer dizer,
nas etapas da formação, consolidação e emergência de memórias culturais.
Essas discussões nos encaminham a observar o sentido de memória presente,
ainda que potencialmente, nos objetos produzidos pela sociedade.

1.1 Cultura e sociedade


A reflexão sobre o conceito de cultura nos leva ao confronto das idéias
de cultura e sociedade. Em Mendonça de Souza e Dodebei2, conquanto não
possa existir sociedade sem cultura e, muito menos, cultura sem sociedade,
estes conceitos não se confundem, basta lembrar que tanto pode existir uma
cultura compartilhada por várias sociedades, como várias culturas
conviverem no âmbito de uma única sociedade. Tais constatações, no
entanto, em nada contribuem para a elucidação destes conceitos, que não são
37

pacíficos. Pelo contrário, são polissêmicos, trabalhados e retrabalhados ao


longo dos séculos, ao ponto de Muniz Sodré3, chegar a afirmar que cultura é
uma dessas palavras metafóricas (como, por exemplo, liberdade), que
deslizam de um contexto para outro com significações diversas. É justamente
esse “passe livre” conceitual que universaliza discursivamente o termo,
fazendo de sua significação social a classe de todos os significados.
Tampouco pode-se afirmar que o conceito de sociedade seja mais
facilmente apreensível. Como observa Chinoy4, não há, até agora, uma
definição de sociedade que seja única e aceita de modo geral, pois cada um
dos três usos mais comuns do termo refere-se a aspectos significativos da
vida social. De acordo com este autor, o primeiro, mais amplo, refere-se à
totalidade das relações sociais entre as criaturas humanas. O segundo propõe
que cada agregado de seres humanos, de ambos os sexos e de todas as idades,
unidos num grupo que se autoperpetua e possui suas próprias instituições e
cultura distintas, em maior ou menor grau, pode ser uma sociedade. Na
prática, os limites destas sociedades específicas geralmente baseiam-se em
fronteiras políticas, gerando problemas fundamentais quanto às relações entre
Estado e sociedade. Por último, sociedade tem sido definida como as
instituições e a cultura de um grupo de pessoas, mais ou menos distinto, e que
se autoperpetua. Estas concepções remetem-se a dois axiomas fundamentais:
o de que os homens, onde quer que estejam, vivem em grupos, e o de que o
seu comportamento é substancialmente afetado pelas normas e valores de que
compartilham.
Para Davis5, a sociedade é um modo de subsistência. O modo social é
uma relação entre organismos, de forma alguma essencial para todas as
espécies. Isto enfatiza que apenas algumas espécies encontram na sociedade
uma forma eficaz de sobrevivência e permanência temporal. Para instaurar-
se como sociedades, no entanto, necessitaram estabelecer relações entre seus
38

integrantes, relações essas que podem ser entendidas como informações


disponíveis e pré-existentes ao indivíduo em uma frase, as informações
contidas no código genético.
Habermas6, ao discutir a gênese da esfera pública burguesa, indica
também a informação ou os meios de comunicação como instrumentos de
transformação da esfera de poder entre Estado e sociedade, onde a
informação atua como propulsora da atividade econômica, chegando a se
comportar também como mercadoria. É nessa esfera privada da sociedade
7
que se tornou publicamente relevante que Harendt apud caracteriza a
formação do social - A sociedade é a forma de vida conjunta em que a
independência do ser humano em relação a seu semelhante ocorre em função
da própria sobrevivência e não, de outro modo, de um significado público
onde, em decorrência disso, as atividades que afinal servem para a
manutenção da vida não só aparecem publicamente, mas podem inclusive
determinar a fisionomia do espaço público.
Ora, se para que quaisquer organismos existam em sociedade é
fundamental a pré-existência da informação, é evidente que, para
sobreviverem em organizações mais complexas, necessitam de maior
quantidade de informação, estruturada de forma mais eficiente, em níveis
mais altos de energia. Assim, para algumas espécies, aqui incluído o homem,
as relações passam a ser mediadas, também, por códigos e mecanismos que
regulam a interação entre seus membros, pressupondo a existência de
estruturas semióticas que podem ser designadas por cultura.
Talvez por esta razão, cultura e sociedade tenham sido confundidas
tantas vezes, usando-se a primeira para explicar a segunda. Tentando
contornar todas estas ambiguidades, tem-se proposto que a sociedade seria o
maior grupo social a que um indivíduo pertença, dentro do qual compartilhe
dos elementos e condições básicas da vida em comum, compreendendo a
39

herança social de hábitos e sentimentos, histórias e costumes, técnica e


cultura, todos traços necessários à identidade coletiva. Permanece, no
entanto, a questão de se explicitar o que seja cultura, conceito muito mais
antigo que o de sociedade.
Alfredo Bosi8 discute o conceito a partir da etimologia do termo,
observando que o mesmo deriva de colo, cujo particípio passado é cultus, e o
particípio futuro é culturus. “Colo significou, na língua de Roma, eu moro, eu
ocupo a terra, e por extensão, eu trabalho, eu cultivo o campo... A ação
expressa nesse colo, no sistema verbal do presente, denota sempre alguma
coisa de incompleto e transitivo. É o movimento que passa ou passava de um
agente para um objeto. Colo é a matriz de colônia, enquanto espaço que se
está ocupando, terra ou povo que se pode sujeitar. Colonus é o que cultiva
uma propriedade rural em vez de seu dono, o seu feitor no sentido técnico e
legal da palavra ... O traço grosso da dominação é inerente às diversas formas
de colonizar, e quase sempre as sobredetermina. Tomar conta de, sentido
básico de colo, importa não só em cuidar, mas também em mandar”. Adiante,
constata Bosi, “se passo agora do presente, colo, com toda a sua garra de
atividade e poder imediato, para as formas nominais do verbo, cultus e
cultura, tenho que me deslocar do aqui e agora para os regimes mediatizados
do passado e do futuro. Para o passado, como adjetivo deverbal9, cultus
atribuía-se ao campo que já fora arroteado e plantado por gerações sucessivas
de lavradores. Cultus traz em si não só a ação reproposta de colo, o cultivar
através dos séculos, mas principalmente a qualidade resultante desse trabalho
e já incorporada à terra em que se lavrou. Cultus, por um lado, é sinal de que
a sociedade que produziu seu alimento já tem memória e, por outro, o culto
aos mortos, forma primeira de religião como lembrança, chamamento ou
esconjuro dos que já partiram. A terra onde repousam os antepassados é,
40

assim, considerada solo do qual brota, a cada ano, magicamente, o sustento


alimentício da comunidade”.
Outro sentido do conceito nos é apresentado por Muniz Sodré10,
que
também busca na etimologia um ponto de partida para sua apreensão. A
palavra cultura, para os romanos, que significava colere, cultivar, implicava a
noção de cultura animi (o ato de cultivar o espírito), uma auto-educação do
indivíduo.
Tem-se assim, já na antiguidade, o conceito de cultura com os dois
sentidos principais que mantém até hoje: o de culto, us, do cultivo, culto
coletivo, da tradição/informação compartilhada, da memória, e o de cultura
animi, do aprimoramento, elevação, refinamento individual.
Na modernidade, Geertz11 afirma que o homem é um animal amarrado
a teias de significados que ele próprio teceu. A cultura seria estas teias, tal
como um sistema entrelaçado de signos interpretáveis, um contexto no qual
esses signos podem ser descritos de forma inteligível, com densidade. Por
estas razões, Muniz Sodré considera que cultura é um termo metafórico, que
passa a demarcar fronteiras, a estabelecer categorias de comportamento,
justificar as mais diversas ações e atitudes, a instaurar o racismo e a se
substancializar, ocultando a arbitrariedade histórica de sua invenção.
Santos12, no entanto, observa que “podemos entender cultura como
uma dimensão do processo social e utilizá-la como um instrumento para
compreender as sociedades contemporâneas. O que não podemos fazer é
discutir sobre cultura ignorando as relações de poder dentro de uma
sociedade ou entre sociedades ... e que uma das características de muitas
sociedades contemporâneas, inclusive a nossa própria, é a da grande
diversificação interna.”
41

Tais diferenças são devidas a fatores econômicos, culturais (nos dois


sentidos), familiares, regionais, entre outros. Embora não muito nítidas na
vida cotidiana, tais diferenciações são a razão da existência do conceito de
subcultura que, por sua vez, dá origem ao conceito emergente de tribos
urbanas. Esta constatação fica explicitada no bojo das modernas formas de
organização social, com as fraturas que se expõem a partir das novas
necessidades do tecido social. Na busca de uma possível homogeneidade
cultural, no entanto, as sub-culturas dominantes buscam formas de
compartilhar os próprios traços culturais, ao mesmo tempo em que valorizam
características de outras subculturas, sempre em torno do discurso do Estado
como uma sociedade, uma cultura, uma economia. Como enfatiza Santos13,
“hoje em dia os centros de poder de uma sociedade se preocupam com a
cultura, procuram defini-la, entendê-la, controlá-la, agir sobre seu
desenvolvimento ... Da mesma forma, a cultura é uma empresa econômica, as
preocupações com a cultura são institucionalizadas, fazendo parte da própria
organização social, expressam seus conflitos e interesses, e nelas os
interesses dominantes da sociedade manifestam sua força”.
Nesse sentido surge a idéia de democratização da cultura, ou da busca
de formas mais eficazes de atuação sobre o Estado, originando, talvez, os
modernos movimentos associativos. Nessa linha de pensamento, Herbert de
Souza14, reconhece que a democracia é a “nova onda” reguladora das ações
dos movimentos sociais, diferenciada da visão clássica por seu caráter de
construção gradativa, do particular para o geral, isto é, a moldura final do
Estado democrático não pode ser pré-definida, dado que sua construção é até
caótica, uma vez que a teia das relações expande, retrai-se, interage em
fronteiras instáveis, nebulosas, e, ao mesmo tempo, transformadoras.
Pulverizam-se os movimentos, em número imensurável, às vezes
congregando pequeno número de pessoas, mas todos com a determinação
42

política de agir sobre o campo das relações sociais, com as consequentes


mudanças culturais.
Michel Maffesoli15, no entanto, prefere considerar a existência de
tribos urbanas e seus ideais de formação como uma contraposição ao grande
ideal democrático, característico da modernidade. A contemporaneidade é
representada, assim, por comunidades pré-modernas, organizadas em torno de
semelhanças culturais, gostos sexuais, afinidades religiosas. Em vez de se
unirem em torno de um grande ideal democrático, as pessoas agora ficam
juntas sem nenhuma finalidade, só pelo prazer, ligadas a valores muito
próximos do cotidiano.
Tem-se aqui, preliminarmente, uma problematização do conceito de
democracia, vista idealmente como uma questão de igualdade essencial de
todos os seres humanos, ou igualdade ontológica potencial de todos os
indivíduos da sociedade; como a autonomia do indivíduo ou do
reconhecimento do ego vital dos componentes da sociedade; e, a existência
das elites. Pode-se, assim, questionar o próprio conceito de elites e classes
sociais, onde as associações passam a surgir, a partir das necessidades
(culturais), de carências ou de explicitações temáticas, que vão da
importância de se construir determinadas redes-de-esgosto, ao papel social do
homossexuais, de impedir-se a derrubada de uma determinada árvore, à
reprodução em cativeiro dos mico-leões dourados. Mais do que hierarquia ou
igualdade verticalizada, a questão é de horinzontalidade, interconectando
classes sociais em uma subcultura ou tribo.
Cohen16, discutindo os modernos movimentos sociais, enfatiza ainda
que, além das diferenças com respeito aos movimentos sindicais, religiosos,
político-partidários e outros grupos de interesse, tais movimentos se
distinguem pela pulverização de carências. A classe social não é mais
determinante da identidade coletiva de novos movimentos sociais, uma vez
43

que as associações têm caráter horizontal, fundamentado no campo social da


chamada sociedade civil, muito mais no que na economia de mercado ou no
Estado, tendo como foco principal a “democratização” das estruturas de vida
cotidiana, as formas de comunicação e a identidade coletiva. Nesse cenário,
Durham17 constata que a igualdade da carência recobre a hetogeneidade das
positividades (dos bens, das capacidades, do trabalho, dos recursos culturais)
num movimento, face às mesmas carências, todos se tornam iguais, e agindo
em conjunto, esses iguais vivem a experiência da comunidade.
Qual seria, portanto, o sentido de memória na atualidade, face às idéias
de democratização da cultura e de horizontalidade das carências ou
necessidades do tecido social ? A valorização da língua, da dança, das
relações sexuais, da comida, da música, dos arquivos, da literatura, dos
monumentos de pedra e cal, dos registros arqueológicos seria significativa
para o compartilhamento do passado coletivo? E ainda, o distanciamento
físico das pessoas nas relações de trabalho, caracterizado hoje pela
comunicação virtual, a transitoriedade dos suportes de informação nas trocas
culturais, o comércio ambulante, enfim, o atributo da mobilidade constante
nas ações culturais e sua consequente instabilidade na fixação de bens
fisicamente palpáveis ou visíveis, podem modificar o sentido de identidade
coletiva e, portanto, de memória?
Ao tornarem-se relativos, desta forma, os conceitos de sociedade e
cultura, percebe-se claramente que as definições correntes de patrimônio
cultural - entendido como o conjunto de bens relevantes para uma
comunidade qualquer - perdem consistência. A cristalização, a preservação
e a manutenção dos bens culturais dependem não só da visibilidade, quer
dizer, da possibilidade de apreensão física do objeto seja no seu “original”
seja em qualquer outra forma de representação, como da escolha ou seleção
44

desses conjuntos de bens, tarefa dependente das estruturas de poder


vigentes18.
No entanto, como o homem habita o espaço cultural que ele próprio
cria e transforma continuamente, ele necessita utilizar o passado como marco
referencial e auto-identificador. O patrimônio cultural passa a ser entendido
como o conjunto de informações que caracterizam as ordens de significado
dentro de um grupo, povo ou nação, sendo coletivo, porque a cultura o é, tal
que Jeudy19 considera que a cultura não se encontra mais na cabeça das
pessoas, mas diante delas, composta de um número enorme de signos a
serem descobertos e interpretados, ou ainda, revividos como expressão de
uma tradição incontestável. Assim, não bastam determinações unilaterais de
escolha do que preservar, até porque a centralização da decisão, normalmente
representada pelo poder do Estado, certamente não vai representar a
heterogeneidade das culturas e subculturas vigentes. Afirma ainda Jeudy que
a idéia de patrimônio apresenta-se como uma evidência tal que se é
impossível ao indivíduo viver sem memória, para uma coletividade a
representação constante do seu passado é o necessário ponto de identificação
das suas ações no presente. Não nos cabe aqui discutir a capacidade ou a
competência dos poderes instituídos, mas tão somente recortar o caráter
referencial na determinação do universo de bens culturais a preservar.

1.2 Memória: acerca do conceito


O conceito de memória é crucial, como afirma Le Goff20 e, tal como o
conceito de cultura, seu estudo envolve vários campos do saber, uma vez que
a memória, como propriedade de conservar certas informações, nos remete a
um conjunto de ações psíquicas, com as quais atualizamos impressões
passadas. Assim, ao lado da memória individual objeto da psicologia,
psicofisiologia, psiquiatria, entre outros, a memória pode se apresentar, ainda
45

que de forma metafórica, como memória histórica e coletiva, portanto social.


Ainda em Le Goff21, Leroi-Gourhan considera a memória em sentido lato e
distingue três tipos: memória específica, memória étnica e memória artificial.
A primeira define a fixação dos comportamentos das espécies animais; a
segunda assegura a reprodução dos comportamentos nas sociedades humanas
e a última assegura a reprodução de atos mecânicos encadeados.
Especificamente, nosso interesse está voltado à memória social,
representada pelo conjunto de ações temporais, da oralidade à escrita, da pré-
história aos dias atuais. A restrição a tão vasta história está, seguramente, no
"olhar" presente voltado às reminiscências desse passado, com o objetivo de
assegurar ou proporcionar uma satisfação no viver atual, onde os atos
individuais ou coletivos se ligam a elos de situações passadas,
proporcionando um certo sentido, quer de continuidade, quer de ruptura. A
esse respeito, o modelo atual de sociedade complexa, diversificada e
hetereogênea (sociedade urbana plural), discutido por Velho22, contempla as
relações entre memória e projeto e sua importância para a constituição de
identidades. Considera Velho que é a memória que permite uma visão
retrospectiva mais ou menos organizada de uma trajetória e o projeto é o que
proporciona a antecipação no futuro dessa trajetória, na medida em que
busca, através do estabelecimento de objetivos e fins, a organização dos
meios através dos quais esses poderão ser atingidos. Assim, projeto e
memória associam-se e articulam-se ao dar significado à vida e às ações dos
indivíduos, quer dizer, à própria identidade. São visões retrospectivas e
prospectivas que situam o indivíduo, suas motivações e o significado de suas
ações, dentro de uma conjuntura de vida, na sucessão das etapas de sua
trajetória.23
Considera ainda Velho que, em se tratando de sociedades complexas,
há a possibilidade de diversas leituras do processo de interação do indivíduo
46

com a sociedade, uma vez que a multiplicidade de motivações e a própria


fragmentação sociocultural, ao mesmo tempo que produzem uma necessidade
de projetos, trazem a possibilidade de contradição e conflito. Assim, a idéia
de projeto se insere num campo dinâmico, onde o projeto é permanentemente
reelaborado, reorganizando a memória e dando novos sentidos e significados
à identidade. Nas palavras de Velho, a idéia, já do senso comum, de que a
memória é seletiva, em parte se explica, por essa dinâmica dos projetos e da
construção de identidade, que leva as referências do passado a um processo
de permanente de(des) e (re)construção.24
Jeudy25, a respeito das construções da memória social, aponta para
o
perigo da perda dos traços culturais ainda atuais, vivos, que comprovam um
passado que não estaria verdadeiramente morto. Assim, as representações das
diferentes culturas apresentam-se como objetos a serem percebidos, lidos e
estudados. Para a imaginação histórica há a necessidade de se dar sentido ao
material do passado, ao material morto ou, como diz Jeudy, às ruínas. Tais
ruínas estão sempre presentes nas construções da memória, de tal sorte que
não representam a degradação ou perda de uma possível identificação
cultural. Ao contrário, elas são fundadoras do imaginário histórico. Deste
modo interroga Jeudy: O que seria de uma memória sem o esquecimento? O
que seria de um monumento sem ruína? E o que seria de um trabalho de luto
sem o sonho?
O discurso de Jeudy, em sua obra Memórias do Social, destaca
fundamentalmente o sentido fragmentado dos patrimônios culturais e o papel
das instituições de memória na preservação dessas culturas. Para ele, a
memória está sempre em gestação e deve ser conquistada, uma vez que foi
ordenada pela distribuição e pela função dos monumentos históricos. A
questão fundamental, no entanto, é a atribuição dessa memória. A designação
47

de atributos é tão individual, ao ponto de se poder afirmar, como em suas


palavras ... uma memória não se amolda necessariamente a uma ordem
cronológica, que ela pode ser irruptiva, projetiva, confusa, contraditória. As
funções culturais das memórias ditas coletivas não correspondem senão a
uma maneira possível, dentre outras, de estabelecer uma ordem dinâmica
dos traços mnésicos.26
Considera ainda Jeudy que a memória é um fator de ligação psíquica
coletiva numa ordem de sucessão que visa a neutralizar os efeitos da irrupção
de um trauma; somente quando a memória se torna objeto de uma gestão
cultural é que pode produzir a aparência de ordem. Tal gestão implica
forçosamente na relação objeto, imagem e relato, sendo estes os meios
essenciais de investimento e tratamento da memória. Ainda assim, considera
Jeudy que a memória possui também algo de acidental, de circunstancial, já
que ela não é apenas um meio de consagrar a continuidade, a duração, ou
ainda, de criar vínculos. A objetividade da memória, ainda que representada
pela interseção do objeto com a imagem e com o relato, não garante a
reconstrução das culturas, apenas permite a geração de uma nova imagem
cultural, passível de assimilação ou de esquecimento.
Apesar de Jeudy tocar na questão da objetividade da memória, embora
não tenha usado em nenhum momento essa expressão, a idéia mesmo da
relação necessária entre objeto, imagem e relato nos conduz ao discurso de
Nora27, que, ao fazer um paralelo entre memória e história, parte da suposição
de que essa relação triádica não conduz ao conceito de memória, mas ao
conceito de história. Afirma Nora que fala-se tanto de memória porque ela
não existe... Há locais de memória porque não há mais meios de memória.
Para Nora, se habitássemos ainda nossa memória, não teríamos necessidade
de lhe consagrar lugares e, por conseguinte, não haveria lugares porque não
haveria memória transportada pela história. Assim, a memória é considerada
48

como global, atual, permanente, realizável a partir da necessidade individual


de a transformar em história. Tal como Jeudy, que usa a expressão ruínas,
Nora reconhece que os lugares de memória são lugares de “restos”. Em suas
palavras: museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários,
tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações são os
marcos testemunhas de uma outra era, das ilusões da eternidade.”
Nesse sentido, talvez o homem necessite de pontos de referência do
passado para compreender sua própria existência ou, ao menos, para viver o
presente. Tal como em Chauí28 sobre Espinosa, a História, entendida como
Lógica, está do lado da eternidade e não do lado do tempo: a História não é
o conhecimento da sucessão dos acontecimentos, mas da necessidade interna
de sua produção. Vale ressaltar que, para Espinosa, a eternidade vincula-se à
idéia de infinito, isto é, da inteligibilidade do Real e não do sentido de fim.
Do mesmo modo, Heidegger ao discutir os vários sentidos da expressão
“história”, apresenta pelo menos quatro significados: passado , proveniência,
devir e cultura. Assim, para Heidegger29 história é o acontecer específico da
presença existente que se dá no tempo. É esse acontecer que vale, como
História, em sentido forte, tanto o ‘passado’ como também o ‘legado’, que
ainda influi na convivência. Nessa abordagem arriscamo-nos a afirmar que
uma coisa não pode ser passado se ainda é presença. Tal como os objetos
expostos em um museu, que ao mesmo tempo tentam evocar o passado e
ainda existem no presente.
A necessidade de memória não passa apenas pela identificação do ser
como vivente, mas revela-se como uma transcendência à vida terrena. Uma
vontade supraobjetiva de ligação a elos do passado que subsistirão no futuro,
garantindo, assim, a eternidade. A história nada mais é também, do que uma
revelação dessa necessidade de compreensão, assimilação e reprodução de
um passado trazido ao presente pela interferência do indivíduo que insiste na
49

sua contribuição para o momento atual. Mais uma interpretação, mais uma
maneira de rever os fatos, mais um modo de reconstruir uma ação.
Se tomarmos o conceito de memória como a faculadade de reter fatos,
então bastariam os arquivos e as bibliotecas que têm por missão a
salvaguarda da memória. Não é o caso dos museus, propriamente, pois a estes
cabe a função da recontextualização dos objetos recolhidos, doados ou
comprados para sua existência. Assim, os museus fazem muito mais história
que memória, se considerarmos a memória como a virtualidade do social.
Portanto, ainda tem sentido uma discussão sobre a neutralidade do
objeto de memória, uma vez que todos os objetos que retemos ou re-
descobrimos são passíveis da representação de culturas.
1.3 Objetos do cotidiano: potencialidade de representação da memória
social
Se o patrimônio cultural é representado pelo conjunto de bens
relevantes, determinados por uma escolha, seja essa representativa das
diversas culturas ou apenas de uma cultura dominante, o fato é que tais bens,
antes de alcançarem este predicado, foram objetos ou resultado de ações,
produzidos por uma população em decorrência de seu estágio de interação
social. Vale ressaltar aqui que o sentido de interação social pode ser
explicitado tal como em Duran30, onde o pano de fundo das ações sociais é
composto pelo fato social - no sentido da coletividade da ação, pelo fato
individual - como a face subjetiva da questão, e pelo fato cultural - produto
individual porém coletivizado e emblemático, detectável através da
significação compartilhada.
De acordo com Duran, embora se possa estudar isoladamente cada uma
dessas faces, o significado mais preciso de uma ação social só pode ser
obtido pela interação dos três aspectos: o social, o psicológico e o cultural. A
visibilidade dessa interação, a partir do recorte de uma ação social, pode ser
50

obtida pelas marcas e vestígios produzidos por uma sociedade e que,


normalmente, são representados por objetos, em sentido lato, ou seja: os
suportes materiais visíveis ou duráveis, resultado de uma ação social
qualquer.
Embora o conceito de objeto seja bastante amplo, digamos extenso,
uma vez que as definições representam um grande número de idéias ou
predicados, é mais fácil a percepção de suas aplicações do que a abstração de
sua essência geral. Tal elenco de atributos pode ser sintetizado a partir da
reunião de acepções em vários campos do saber, como por exemplo: tudo que
física ou moralmente se apresenta e se oferece aos nossos sentidos ou à
nossa alma; tudo que a nossa vista possa enxergar, tudo que é exterior ao
espírito; aquilo que é pensado, por oposição ao sujeito ou ser pensante; o
que é conhecido, pensado ou representado, em oposição ao ato de conhecer,
pensar ou representar; o que se apresenta à percepção com um caráter fixo
e estável; o que é lançado contra, coisa existente fora de nós, coisa disposta
diante, com uma característica material: tudo que se oferece à vista e afeta
os sentidos (filosofia); coisa, peça, artigo de venda; tudo que é manipulável e
manufaturável (indústria e comércio); assunto, matéria, objeto de um estudo,
ciência ou arte; agente, motivo, causa; o ponto de convergência de uma
atividade, mira, desígnio, intenção; fim a que se mira ou se tem em vista;
fonte de luz ou corpo iluminado cuja imagem se pode formar num sistema
óptico (óptica); aquilo sobre o que incide um direito, obrigação, faculdade,
norma de procedimento, proibição” (direito)31.
[H1] Comentário: Página: 6
Para Moles32, o conceito de objeto pode ser representado pela noção Ref. MOLES, Abraham A.
Objeto e Comunicação
de resistência (ao indivíduo) e por sua característica material. Em alemão,
Gegenstand exprime a mesma idéia: o que é colocado contra e cuja
materialidade se opõe ao pensamento ou à razão. Portanto, é propriamente no
campo da filosofia que encontramos as explicações mais abrangentes.
51

[H2] Comentário: Página: 7


O significado de objeto para Abbagnamo33 corresponde ao significado Ref. ABBAGNAMO, Nicola
Dicionário de Filosofia
da "coisa". Objeto é o fim a que se tende, a coisa que se deseja, a qualidade
ou a realidade percebida, a imagem fantástica, o significado expresso ou o
conceito pensado. Ao lado deste significado muito geral e fundamental, para
o qual o termo é insubstituível, se encontra algumas vezes na linguagem
filosófica e na linguagem comum um significado mais restrito ou específico,
para o qual o objeto somente é tal se munido de uma validade particular, por
exemplo: se é "real" ou "externo" ou “independente”. No entanto, este
segundo significado não elimina, apenas pressupõe o primeiro.
A partir da análise das várias acepções apresentadas vemos que nas
acepções em filosofia as coisas interiores são distintas das exteriores, como
no caso da visão : "tudo que a nossa vista possa enxergar; tudo que é exterior
ao espírito". No entanto, o conceito de visão, neste caso, é encarado apenas
materialmente, o que impede a distinção entre visão de imaginação, sendo o
segundo conceito uma representação de visão interna, interior, "coisa do
espírito". A esse respeito comenta Abbagnamo34, que a questão do caráter
"real"ou "irreal" do objeto em geral, ou de uma classe específica de objetos
(por exemplo, objetos físicos ou coisas) não tem influído sobre este. Assim,
segundo aquele autor, para Berkley o objeto do conhecimento podia ser
considerado uma idéia; para Schopenhauer uma representação; para Kant um
fenômeno, de vez que historicamente o conceito era o de limite da ação. Kant
não só apresenta o conceito de objeto como o conceito mais alto em filosofia,
mas também classifica os objetos gerais em fenômenos ou nôumenos,
considerando o nôumeno como o objeto de uma intuição não sensível, que
admitida em linha hipotética poderia ser própria de um intelecto divino. Em
contrapartida, Kant considera a existência do objeto da razão prática, que é a
representação livre de um efeito possível do objeto.
52

O objeto pode ainda ser considerado como um dado, para os


empiristas, ou como um problema, podendo ser uma ou outra coisa somente
se for considerado como término ou o limite da atividade cognoscitiva.
Husserl apud34, por sua vez, generaliza ainda mais o conceito, distinguindo o
35
objeto do objeto percebido. Meinong apud , que nomeia de "Teoria dos
objetos" a ciência que considera os objetos enquanto objetos, isto é,
prescindindo de suas especificações (realidade ou irrealidade) divide os
objetos em duas classes: objeto da representação ou objetos e objeto do juízo
ou objetivos.
No domínio da lógica matemática, Frege apud34 defende uma noção
substancialmente idêntica do objeto, identificando objeto com o significado,
de sorte que o significado de uma palavra é o objeto que é indicado por ela.
Frege pretende com isso dizer que o objeto é o término ou o limite da
operação linguística, isto é, do uso do sinal.
Assim, objeto é sempre o término; ou do significado (na linguagem),
ou de uma operação de investigação (caso se considere a pesquisa científica),
sendo portanto, o término ou o limite de uma determinada operação. Nesse
sentido, o conceito geral de objeto não irá nunca coincidir inteiramente com
nenhuma de suas especificações, ou modos de ser particulares. Entrelaçando-
se as acepções ou atributos listados no início deste capítulo, encontramos
atributos de objetos gerais e de objetos particulares, tais como peça, artigo de
venda. As explicações, no campo da filosofia, são extremamente úteis, de vez
que nos possibilitam entender as várias acepções listadas em um dicionário
comum, cuja finalidade é retratar o sentido da linguagem usual, como
também encontrar outros atributos que de mais perto falam ao interesse do
estudo do objeto cultural, ou seja, aqueles objetos retirados do tecido social
que vão representar ações passadas e que são, na verdade, produtos dessas
53

ações, confirmando o caráter de limite ou término de uma ação ou fenômeno,


tal como o conceito genérico de objeto.

1.3.1 A distinção ou classificação dos objetos: uma questão de diferença


Conhecer um objeto novo, seja ele concreto ou abstrato, real ou
imaginário, sem qualquer referência anterior, nos leva tradicionalmente a um
processo de análise e síntese, isto é, tomar o todo e dividi-lo em partes ou
aspectos representativos de sua imagem. Esse processo é denominado de
classificação. O simples fato de nomear um objeto já o diferencia de outro e,
ao mesmo tempo, o coloca em relação a outros grupos semelhantes. A
semelhança verifica-se nos atributos comuns, que, colocados em uma cadeia
de derivações conceituais, especificam ou generalizam uma idéia. Platão,
usando o processo indutivo de análise, considerava que a partir de uma
particularidade podia-se chegar ao geral, uma vez que todos os atributos do
particular se encontram no geral. Desse modo, uma mesa redonda é um tipo
de mesa, que é um tipo ou espécie de mobiliário e, assim, sucessivamente. A
questão, porém, nesse processo de indução, é a da decisão de quais
qualidades ou atributos farão a cadeia de gêneros e espécies. Nesse ponto,
cabe observar, que a atribuição é inerente ao sujeito e, portanto, suscetível de
valores individuais, os quais, certamente, são singulares à relação, podendo-
se afirmar que existem tantas classificações quanto objetos e pessoas
envolvidas. A possibilidade de diversas leituras/interpretações para um
mesmo objeto inviabiliza, portanto, a determinação geral da sua espécie, de
tal sorte que um mesmo objeto pode pertencer a vários grupos ou classes
distintas, em função dos atributos a ele associados.
Nesse sentido, Baudrillard36 formula as seguintes questões ao apresentar
o seu sistema de objetos: pode-se classificar a imensa vegetação dos objetos
como uma flora ou uma fauna, com suas espécies tropicais, glaciais, suas
54

mutações bruscas, suas espécies em vias de desaparição? Pode-se esperar


classificar um mundo de objetos que se modifica diante de nossos olhos e
chegar a um sistema descritivo? Que critérios? Tamanho, grau de
funcionalidade, o gestual que a ele se liga, sua forma, sua duração, o
momento do dia que emergem, a matéria que transformam, o grau de
exclusividade ou de socialização no uso.
Pierre Boudon37, por sua vez, acompanha o pensamento de Baudrillard
ao afirmar que os objetos que nos envolvem são numerosos e variados como
as espécies naturais que povoam o mundo e que, de um modo sumário e a fim
de fixar as idéias, pode-se dizer que vão da caixa de fósforos até uma peça
metálica, da caneta ou do papel até à máquina de escrever e ao automóvel, à
casa, ao arranha-céu, ao conjunto urbano talvez, passando pelos diversos
objetos que povoam as butiques, lojas, cafés e drogarias, as galerias de arte,
os museus, supermercados: objetos culinários e de vestuário, móveis e
objetos técnicos, de exposição, presentes e acessórios. Assim, Boudon38
formula também a seguinte questão: como estabelecer uma classificação das
diversas espécies e dos diversos gêneros de objetos instituídos por uma
sociedade?
Para Boudon, poucos estudos sistemáticos foram empreendidos e, além
39
da obra de Baudrillard, já citada, apenas um trabalho de Simondon apud
intitulado Du mode d'existence des objets techniques trata a questão de
maneira diferente da usualmente aceita ou seja, os objetos são considerados
antes como formas de agregados ou resíduos de uma sociedade do que como
peças relevantes de um sistema geral dos objetos. Assim, colocar o problema
de uma classificação de objetos será talvez trazer alguns esclarecimentos
sobre a concepção de um método geral, que poderia desembocar numa teoria
não fossem os problemas ou impasses, tais como tomar certos pontos de
partida mal ajustados e sem suficientes justificativas. Na verdade, o problema
55

principal é o da determinação dos critérios, ou seja, a determinação da


diferença específica, que é o que distingue conceitos.
A questão da diferença é estudada na teoria da classificação a partir
das categorias aristotélicas que, reformuladas por Porfírio, representam:
gênero, espécie, diferença, propriedade e acidente. Com relação às
categorias, Piedade40 resume o pensamento aristotélico ao afirmar que a idéia
que temos das coisas não é simples, mas um composto de vários aspectos,
que temos que conhecer para tornar posssível uma descrição. Aristóteles deu
o nome de categorias ou predicáveis às classes gerais em que, segundo ele,
podemos situar, ordenadamente, as idéias que temos das coisas e que
constituem os 10 gêneros supremos, as 10 essências mais gerais. Assim, se
considerarmos as perguntas que podem ser feitas às coisas: o que é isso? que
tamanho tem? que tipo de coisa é?, as respostas especificarão: substância,
qualidade, quantidade, relação, duração, lugar, ação, paixão ou sofrimento,
maneira de ser e posição.
Tais categorias representam o modo de ser das coisas, de maneira
que fixadas pela linguagem, formam proposições através da combinação de
substantivos e verbos. A substância é a categoria básica identificada com o
sujeito, o substantivo. As demais são consideradas predicados do sujeito tal
como a organização das categorias gramaticais (adjetivos, verbos e
advérbios). Aristóteles reduz posteriormente, as dez categorias a três,
indicando-as como fundamentais ao discurso: substância (o ser que existe),
modo (ou acidente é o que existe na substância) e relação (correspondência
entre dois seres).
41
Porfírio (séc. IV) apud , na sua obra Isagoge ou Introdução às
categorias, aplicando o princípio da oposição de Platão e Aristóteles,
apresentou uma classificação dicotômica constando de cinco predicáveis ou
categoremas representados na famosa classificação “Árvore de Porfírio" ou
56

"Arvore de Remée" (divulgada no século XVI pelo filósofo francês Pierre de


la Remée):

SUBSTÂNCIA

Corpórea Incorpórea

animada inanimada

sensível insensível

racional irracional

 Platão, Sócrates, Aristóteles etc.

As espécies são, portanto, obtidas pela diferença específica, ou seja, as


qualidades ou atributos que, somados aos próprios do gênero, as distinguem.
Diremos, então, que a cada derivação conceitual as espécies daí decorrentes
adquirem pelo menos um atributo a mais que seu gênero próximo, tornando-
se mais intensas ou compreensíveis na medida em que aumenta o grau de
diferença.
As classificações baseadas no princípio da diferença específica e
hierarquizadas em gêneros e espécies, apesar de eficientes para a
compreensão do mundo dos objetos, atendem apenas a uma parte do
problema, uma vez que exigem uma análise da essência do ser bastante
perpectivada. A esse respeito, Deleuze42 comenta que as categorias em
Aristóteles, diferentemente dos estóicos, se dizem em função do Ser e a
diferença se passa no ser entre a substância como sentido primeiro, sendo as
57

outras categorias relacionadas como acidente. Para os estóicos, ao contrário,


os estados de coisas, quantidades e qualidades, são a própria substância. Eles
fazem parte da substância e podem ser apenas divididos em existências e
insistências.
Ainda em Deleuze43, os estóicos distinguem duas espécies de coisas: os
corpos, com suas tensões, suas qualidades físicas, suas relações, suas ações e
paixões e os estados de coisas (grifo do autor) correspondentes. No entanto,
esses estados de coisas, ações e paixões, são determinados pelas misturas
entre os corpos. No limite, há uma unidade, onde coisas e estados de coisas se
interagem a ponto de não haverem coisas ou estado de coisas mas,
simplesmente, acontecimentos. Esses acontecimentos, por constituirem-se de
coisas e estados de coisas, não existem, mas antes, subsistem ou insistem.
Tais acontecimentos não são, portanto, substantivos ou adjetivos, são verbos.
Não são agentes ou pacientes, mas resultado de paixões e ações. Não são
presentes vivos, mas infinitivos. Deleuze44 exemplifica o pensamento estóico
quando cita: ... o tempo deve ser apreendido duas vezes, de duas maneiras
complementares, exclusivas uma da outra: inteiro como presente vivo nos
corpos que agem e padecem, mas inteiro também como instância
infinitamente divisível em passado-futuro, nos efeitos incorporais (estados de
coisas, observação nossa) que resultam dos corpos, de suas ações e de suas
paixões. Só o presente existe no tempo e reúne, absorve o passado e o futuro,
mas só o passado e o futuro insistem no tempo e dividem ao infinito cada
presente. Não três dimensões sucessivas, mas duas leituras simultâneas do
tempo.
Assim, as perguntas formuladas por Baudrillard e Boudon basearam-se
tanto no pensamento aristotélico, onde o mundo é coordenado por causa e
efeito, sujeito e predicado, o tempo é linear e o espaço imutável, como nas
ponderações de Deleuze. A insistência, para Deleuze, significa, neste caso, a
58

fusão da causa e seus efeitos. Se os efeitos das causas são incorporais, não se
pode, portanto, separar causa de efeito. Os efeitos não são qualidades e
propriedades físicas, são atributos lógicos e dialéticos. E, tal como atributo
lógico e dialético, a significação é muito mais um produto de uma relação
circunstancial, um acontecimento.
Nesse sentido, a existência de tantas classificações ou de leituras
possíveis para cada um desses objetos, nos permite afirmar que a
possibilidade de diversas interpretações para um mesmo objeto inviabiliza a
determinação geral da sua espécie, de tal sorte que um mesmo objeto pode
pertencer a vários grupos ou classes distintas, em função dos atributos ou
acontecimentos a ele associados.

1.3.2 O sentido ou a re-união: uma questão de semelhança


Baudrillard45 abandona o caminho da classificação geral, pura e sem
interfaces com outras variáveis. Sua proposta de entendimento do mundo dos
objetos baseia-se na análise dos processos pelos quais as pessoas entram em
relação com os objetos e na sistemática das condutas e das relações humanas
que disto resulta. O que acontece com o objeto no domínio tecnológico é
essencial, o que lhe acontece no domínio psicológico ou sociológico das
necessidades e das práticas não é essencial. A essência do objeto, para
Baudrillard, só pode ser representada por sua estrutura tecnológica objetiva,
isto é, partes da estrutura com funções próprias que se interligam no todo, tal
como um compromisso de pleno funcionamento e, acima de tudo,
independente do todo objeto.
Ainda assim, todos esses aspectos não dão conta do sistema cotidiano
dos objetos, uma vez que existe uma realidade psicológica e sociológica
vivida dos objetos. Essa realidade vivida pode ser representada pelas várias
significações do objeto, desde aquelas internas de sua estrutura tecnológica -
59

da ordem do concreto - até as mais complexas captadas do sistema cultural -


da ordem do abstrato. O abstrato, ou potencial deve ser o estado permanente
do objeto dentro da sociedade, onde este se expõe às diversas análises
possíveis. Nas palavras de Baudrillard:

Aquilo que é essencial e estrutural e, portanto, concretamente objetivo


em um moedor de café, é o motor elétrico, é a energia distribuída pela
central, são as leis de produção e de transformação da energia - o que é
menos objetivo, uma vez que ligado à necessidade desta ou daquela pessoa, é
a sua função precisa de moer café - o que já não é de modo algum objetivo,
portanto, inessencial, que ele seja verde ou retangular, rosa ou trapezoidal.46

Para Baudrillard, a descrição do Sistema dos Objetos47 não se dá sem


uma crítica à ideologia prática do sistema. No plano tecnológico não há
contradição. Há sentido. No plano da cultura há o senso e o contrasenso. E é
essa contraposição ou paradoxo que permite a criação de uma linguagem do
objeto, não buscando a coerência abstrata, mas as contradições vividas dentro
do próprio sistema.
São portanto enfocados, na obra de Baudrillard, quatro sistemas ou
quatro perspectivas de observação do objeto: 1- Sistema funcional, ou o
discurso objetivo; 2- Sistema não-funcional ou o discurso subjetivo; 3-
Sistema meta e disfuncional: gadgets e robôs; e, 4 - Sistema sócio-ideológico
dos objetos e do consumo.
O primeiro é considerado o mundo das formas, as formas e suas
funções, seu valor ou uso. Essas relações são claras, objetivas, pois o que
importa é o grau de funcionalidade, de comunicação entre os objetos, como
uma casa, sua mobília, seus objetos funcionais e/ou decorativos. Além dos
objetos em si, existe a interface do ambiente, da cor, da textura, do calor, do
frio, dos materiais, encerrando um discurso ambiental, funcional, que não
qualifica aquilo que se adapta a um fim, mas aquilo que se adapta a uma
ordem ou a um sistema. A coerência do sistema funcional dos objetos advém
60

do fato de que estes, em seus mais diversos aspectos - forma, cor etc., não
têm valor próprio, mas uma função universal de signos.
Na segunda perspectiva, os objetos são os mesmos. Dizer que uma
cama, um vaso, uma cadeira não se encontram mais na ordem da
funcionalidade, mas na ordem da subjetividade, porquanto são únicos,
exóticos, barrocos, antigos, folclóricos é negar a análise por processos de
relação ou aprisionar qualquer das dimensões da observação. A ordem da
subjetividade apresenta faces voltadas para o testemunho, lembrança,
nostalgia, evasão, tal como uma sobrevivência da tradição e do símbolo. O
objeto antigo não tem resultado prático, apenas significa. E significa o tempo.
Os objetos, portanto, que pertencem a esse grupo são considerados objetos de
memória. Existiu outrora a função, a ambiência, particularmente, deve
recuperar toda a sua existência, o que o deixa fora das relações pessoais,
individuais, para tornarem-se objetos coletivos, paradoxalmente à sua
unicidade ou exclusividade.
De fato, adquirir e manter um objeto dessa ordem é garantir um contato
com o coletivo, com o tempo, ou melhor, com todos os tempos, e apoderar-se
de todas as ambiências é aprisionar o todo em si, sem compartilhar.
Baudrillard48 considera para tal grupo de objetos os valores da ambiência ou
a historicidade, o valor simbólico ou mito de origem, a autenticidade.
... ele não é verdadeiro nem é falso, é perfeito - não é nem interior,
nem exterior, é um "álibi" - não é nem sincrônico nem diacrônico (não se
insere nem em uma estrutura ambiente, nem em uma temporal), é anacrônico
- não é em relação àquele que o possui, nem o atributo de um verbo ser, nem
o objeto de um verbo ter, mas concerne, na verdade, à categoria gramatical
do objeto interno, que declina quase tautologicamente a substância do verbo.

Pode-se, assim, aproximar Baudrillard a Deleuze, ou melhor, ao


pensamento estóico. Com relação às possíveis leituras na única dimensão
temporal possível - o presente - tais objetos são, em suma, lidos como
61

símbolos de antiga posição social, de tradição de sucessão. O prestígio social


passa a ser constatado, no presente, por meio do passado de outros. A
obsessão da posse representa a tentativa de apropriação de significados
importantes para as culturas existentes no presente. Tais significados podem
variar da emoção positiva da lembrança, como é o caso de um objeto familiar,
passando à escolha estética, tal como umo uma peça escolhida num
antiquário ao acaso sentimental, até à premeditação da aquisição por inserção
ou manutenção de status social.
A terceira perspectiva coloca em foco o campo da significação
ideológica dos objetos, os quais não possuem determinações objetivas e são
tomados pelo imaginário. É o caso da transcendência funcional do
automatismo de uma máquina ou da observação de um objeto inútil,
desviante da própria técnica, de um funcionalismo vazio e que pode ser
identificado com os ‘gadgets’.
O último sistema enfoca os objetos industriais na oposição
modelo/série. O exemplo, ou o conjunto de objetos pertencentes a essa face
pode ser representado pelo vestuário - estilista/pret-à-porter, com nítida
conotação para as diferenças entre as classes sociais. A noção de modelo
tende a se confundir com tipo, mas, ao mesmo tempo, no nível da função
pura, como não há variáveis combinatórias, deixa de haver modelos. É o caso
da obra de arte, que não depende do modelo e da série: desempenha ou
não tal função (estética), é falsa, verdadeira, etc.
As "categorias" apresentadas por Baudrillard deixam transparecer,
assim, não só uma sensação de virtualidade, sugerindo a possibilidade de um
cruzamento das dimensões objeto-sujeito-tempo/espaço, como a certeza de
que o objeto escolhido como um espécime ou prova possui a carcaterística de
signo.
62

1.3.3 Em busca do significado


No discurso de Moles49, os objetos são representados como uma
manifestação cultural, produto do Homo Faber, especificamente como
produto de uma civilização industrial. Considera Moles que a cultura é o
ambiente artificial do homem, donde distinguem-se o mundo dos signos, o
mundo das situações e o mundo dos objetos, classificando as causas da
proliferação (ou insistência) dos objetos em:

a) tendência à aquisitividade;
b) desenvolvimento do objeto de série; e,
c) consumo extensivo.

Para Moles, o estudo do objeto como produto, em oposição ao objeto


natural, por exemplo: pedra, árvore , distingue os objetos, das coisas. Daí
dizer que a pedra só se tornará objeto quando for promovida a peso de
papel.50 Assim, o sentido é ainda mais restrito quando Moles51 afirma que o
objeto é um elemento do mundo exterior fabricado pelo homem e que este
pode segurar ou manipular e ainda que um objeto tem um caráter se não
passivo, pelo menos submisso à vontade do homem.
Interessante é observar a análise intrínseca do objeto feita por Moles, e
que pode ser tomada como a etapa primeira de uma análise referencial dos
objetos. Tal análise considera duas dimensões à descrição de um sistema ou
organismo unitário: a complexidade estrutural (ce) e a complexidade
funcional (cf). Por complexidade funcional entende Moles aquelas ligadas às
necessidades dos indivíduos componentes de um mercado, correspondendo a
uma dimensão estatística dos usos, melhor explicando, à reunião de ações,
condicionadas pelos reflexos nervosos do indivíduo. Já a análise estrutural
estaria ligada ao conjunto de peças elementares reunidas pelo construtor. Por
63

exemplo, em uma máquina de escrever, ce = feita de parafusos, teclas etc. cf


= feita para escrever.
Se adotássemos aqui a Teoria da Análise de Assuntos de
Ranganathan52, que considera a existência de 5 categorias fundamentais
(Personalidade, Matéria, Energia, Espaço e Tempo), diríamos que o objeto
pode ser lido por seus componentes materiais (matéria), por seus
componentes energéticos ou funcionais (energia) e pelos componentes
circunstanciais (espaço e tempo), sendo que o nível de maior concretude -
personalidade - é representado pela abstração de seu conceito. Nesse caso, a
soma de todos os atributos verdadeiros a ele atribuídos.
Com relação a essas leituras, vale acrescentar ainda o enfoque dado
pela Teoria Analítica dos Conceitos de Dahlberg53, que considera a existência
de objetos individuais e objetos gerais. Trabalhando com suporte de
pensamento estrutural, Dahlberg, de certo modo, corrobora a idéia discutida
anteriormante sobre a mobilidade das representações culturais através de
objetos do cotidiano que podem representar um gênero ou classe de objetos -
objetos gerais, ou uma especificidade - objetos individuais, esses últimos
tendo como atributos essenciais as dimensões de tempo e espaço. Assim, o
conceito de um objeto indefinido, uma mesa, por exemplo, é atemporal e
não espacial, em
contraposição ao conceito de um objeto definido - esta mesa.
O mundo dos objetos, ainda em Moles54, pode também ser
observado
sob a ótica da Teoria da Informação, considerando uma dupla articulação na
qual a função, no sentido clássico, corresponde ao sentido denotativo e
objetivável em outra linguagem, e o sistema estético ou conotativo
corresponde ao campo emocional ou sensorial de flutuação que, sem
64

modificar a função do objeto, acrescenta-lhe caracteres ornamentais,


emocionais, ostentatórios.
Tal análise propõe ao objeto dois níveis funcionais: o primeiro é o
nível objetivo ou função principal - o quê e para quê serve. O segundo é o
nível relacional ou estético, ou ainda dispersional ou conotativo, isto é, a
significação, o que variará de acordo com o observador, transformando-se em
símbolo. Diz ainda Moles que a simbolização tem prioridade sobre a
significação funcional imediata e que as relações do objeto com o indivíduo
passam então por cinco fases:
a) desejar o objeto, distinguindo-se na intensidade temporal:
- o desejo (longo prazo)
- a necessidade (flutuação)
- a impulsividade (pulsão passageira)
b) prezar o objeto
c) habituar-se ao objeto
d) manter o objeto
e) substituir o objeto
Tal visão classificatória considera, no entanto, as relações estéticas do
homem com o objeto e, ainda especificamente, do consumidor de objetos.
Para tornarmos essa relação mais generalizada precisaríamos incluir uma fase
anterior, a produção do objeto, ficando então a classificação
ordenada
segundo a complexidade crescente: produção - aquisição - manutenção
-
descarte/reutilização.
Moles conclui sobre a possibilidade de uma Sociologia Geral
dos
65

Objetos55 ou Ciência dos objetos em Grupo, na qual a noção de


pirâmide
social dos objetos leva à distinção de classes desses objetos, tais como:
objetos de arte, objetos utilitários, objetos técnicos, objetos inúteis.
A contribuição para nossa segunda proposição, a da virtualidade, é
discutida por Moles como a mobilidade social relativa à evolução desta ou
daquela categoria de objetos, que passam de uma classe a outra em função de
certo número de categorias - ex: decoração, funcionalidade. A trajetória, ao
longo do tempo, ou seja, no ciclo de vida do objeto é um fenômeno de
promoção social no qual o homem é o ponto de referência principal.
A Sociologia dos objetos só terá sentido profundo, diz Moles, na
medida que tomar o homem consumidor como fator integrante, não podendo
bastar-se a si próprio. O problema da adaptação do objeto ao homem e o
conceito de distância funcional entre a posição de um objeto situado num
espaço de representação ou semântica- funcional (segundo Moles - Espaço
das Necessidades) e o Homem, é o instrumento teórico que permite essa
abordagem.
Sem dúvida, a preservação de objetos que são a representação dos
modos de viver de uma população, de uma cultura - fragmentos, evidências
ou provas - permite reavaliar nossas ações no presente, uma vez que é a partir
desse confronto memória/projeto que a(s) identidade(s) se estabelecem. Esse
é o sentido de memória essencial à identidade do ser no mundo, sendo clara a
constatação da mobilidade e flutuação do conceito de bem cultural, o que
reforça também a nossa terceira proposição, a significação. Passamos, assim,
do estágio da produção de objetos potencialmente representativos da
memória social para a fase das ações de representação dessa memória, o que
nos coloca mais próximos do mundo da significação.

NOTAS E REFERÊNCIAS DO CAPÍTULO 1


66

1
CALVINO, Italo. As cidades e a memória. In: ______. As cidades invisíveis. Trad. de
Diogo Mainard. São Paulo : Companhia da Letras, 1990. 150 p. p. 14-15.
2
MENDONÇA DE SOUZA, Alfredo, DODEBEI, Vera Lucia Doyle L. de M. Herança,
sociedade e cultura: patrimônio cultural. Rio de Janeiro : IBICT/CNPq/ECO/UFRJ,
1993. (Seminário apresentado à disciplina Informação e Sociedade, no programa de
Pós graduação - Doutorado em Comunicação)
3
MUNIZ SODRÉ, E. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de
Janeiro: CODECRI, 1983. 215 p. p. 8
4
CHINOY, E. Sociedade. In: DICIONÁRIO DE CIÊNCIAS SOCIAIS. Rio de Janeiro :
FGV, 1986. v. 2, p. 11-40.
5
DAVIS, K. Human society. New York : MacMillan, 1949. p. 27
6
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro : Tempo
Brasileiro, 1984.
7
HABERMAS. op. cit. p. 23
8
BOSI, A. A dialética da colonização. São Paulo : Cia. das letras, 1992. p.47
9
df.= Substantivo que é derivado regressivo de verbo. Pós-verbal. ex: compra (de
comprar).
10
MUNIZ SODRÉ., E. op. cit. p. 14.
11
GEERTZ, C.A. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro : Zahar, 1978. p. 47
12
SANTOS, J.L. O que é cultura? São Paulo : Brasiliense, 1986. p. 8
13
SANTOS, J.L. op. cit. p. 11.
14
SOUZA, Herbert de. Entrevista ao Programa Cara-a-Cara, Rede Bandeirantes, domingo,
23 de maio de 1993.
15
MAFFESOLI, Michel. A tensão permanente das tribos. O Globo, Rio de janeiro, 28 de
maio de 1995. Caderno Livros, p. 5.
16
COHEN, J.L. Strategy or identity : new theoretical paradigms in contemporary social
moviments. Social Research, v. 52, n. 4, 1993, p. 663-716.
17
DURHAM, E.R. A construção da cidadania. Novos Estudos CEBRAP, n. 10, p. 24-29,
out. 1984
67

18
CHAUÍ, M. Política cultural, cultura política e patrimônio histórico. (fotocópia, s.n.t.)
A esse respeito Marilena Chauí discorre sobre o papel do Estado no que toca à
memória e à preservação.

O Estado não pode colocar-se como centro de onde se define e se irradia a memória
pois, ao fazê-lo, destrói a dinâmica e a diferenciação interna da memória social e
política: não pode ser produtor da memória nem o definidor do que pode e deve ser
preservado.
19
JEUDY, Henry Pierre. Memórias do social. Rio de Janeiro : Forense Universitária,
1990. p. 2.

20
Le GOFF, Jacques. Memória. In: _____. Memória e história. São Paulo :
Unicamp, 1990. p.423- 483.
21
Le GOFF, op. cit. p. 425
22
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose : antropologia das sociedades complexas. Rio
de Janeiro : Zahar, 1994. 137p.
23
VELHO, Gilberto. Memória, identidade e projeto. In: Projeto e metamorfose :
antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro : Zahar, 1994. p.101
24
ibid. p. 104
25
JEUDY, Henry Pierre. Memórias do social. Rio de Janeiro : Forense Universitária,
1990. p. 2.
26
ibid. p. 15
27
NORA, Pierre. Entre memória e história : a problemática dos lugares. Projeto História,
Revista do programa de estudos pós-graduados em História e do Departemaneto de
História. São Paulo, n. 10 , p. 1-78, dez., 1993.
28
CHAUÍ, Marilena de Souza. Espinoza : vida e obra In: SPINOZA, Benedictus de. São
Paulo : Abril Cultural, 1979. (Os pensadores) p.xviii.
29
HEIDEGGER, Martin. Temporalidade e historicidade. In: ______. Ser e tempo.
Petrópolis : Vozes, 1993. Parte II, p. 184.
30
DURAN, Alvaro Pacheco. Interação social : o social, o cultural e o psicológico. Temas
em Psicologia, n. 3, p. 1-8, 1993.
31
As definições foram retiradas de dicionários gerais, a título, apenas, de ilustração.
32
MOLES, Abraham A. Teoria dos objetos. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1981.
68

33
ABBAGNAMO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo : Mestre Jou, 1960. 976 p.

34
ibid. p. 693
35
ABBAGNAMO. op. cit p. 695.
36
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1989.
37
BOUDON, Pierre. Sobre um estatuto do objeto : diferençar o objeto do objeto. In:
SEMIOLOGIA dos objetos : seleção de ensaios da Revista Communications.
Petrópolis : Vozes, 1972.

38
ibid.
39
BOUDON. op. cit.
40
PIEDADE, Maria Antonieta Requião. Introdução à teoria da classificação. Rio de
Janeiro : Interciência, 1983. p.20
41
ibid. p. 61.
42
DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo : Perspectiva, 1974.
43
ibid. p. 5
44
ibid. p. 8
45
BAUDRILLARD, J. op. cit. p. 12.
46
ibid. p. 14.
47
O termo sistema é usado por Baudrillard com o mesmo sentido dado por Barthes
(Sistème de la mode) como um conjunto de unidades, de funções e de forças.
48
BAUDRILLARD, J. op. cit. p. 30
49
MOLES, A. op. cit.
50
JOLIVET, Régis. Curso de filosofia. Rio da Janeiro : Agir, 1965. p.37

Acerca do conceito de Divisão no capítulo da Lógica Formal, Jolivet divide o Todo


em três modalidades: físico, lógico e moral. O todo físico pode ser quantitativo,
essencial, potencial e acidental, esse último representado pela interferência do homem
na natureza, cujos exemplos citados dizem respeito aos objetos, tal como a concepção
de Moles: uma mesa, uma cadeira etc.
69

51
MOLES, A. op.cit. p. 202
52
RANGANATHAN, S. R. Colon classification. London : Asia Publishing House, 1960.
Parte 1, p. 25.
53
DAHLBERG, Ingetraut. Fundamentos teórico-conceituais da classificação. Revista de
Biblioteconomia, Brasília, v. 6, n. 1, p. 9-12, jan./jun. 1978.

De acordo com a Teoria Analítica dos Conceitos de Dahlberg, a soma total dos
atributos de um objeto gera o seu conceito, podendo advir daí conceitos gerais e
conceitos particulares. Os particulares possuem todos os atributos dos conceitos
gerais, mas estes não podem igualar-se aos derivados no plano da compreensão
conceitual.
54
MOLES, A. op.cit. p. 215.
55
ibid. p.220.

O termo Sociologia dos Objetos é perfeitamente adequado, do ponto de vista


etimológico. Socius vem de sequor (seguir, acompanhar) e nada indica
implicitamente que um socius deva, necessariamente, constitui-se em seres humanos.
2 REPRESENTAÇÃO DA MEMÓRIA SOCIAL

“ Os olhos não vêem coisas mas figuras de coisas


que significam outras coisas: o torquês indica a
casa do tira-dentes; o jarro, a taberna; as
alabardas, o corpo de guarda; a balança, a quitanda.
... Na porta dos templos, veêm-se as estátuas dos
deuses, cada qual representado com seus atributos: a
cornucópia, a ampulheta, a medusa, pelos quais os
fiéis podem reconhecê-los e dirigir-lhes a oração
adequada. ...O olhar percorre as ruas como se fossem
páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve
pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto
você acredita estar visitando Tamara, não faz nada
além de registrar nomes com os quais ela define a si
própria e todas as suas partes.”1

CALVINO Italo, As cidades invisíveis, p. 17


71

Se entendermos por memória a manutenção de qualquer recorte de


ações culturais vividas por uma sociedade, somos levados a considerar o
caráter de imobilização ou o congelamento das ações selecionadas, a fim de
que possamos preservar aquele momento social. Na verdade, a escolha e o
isolamento de determinada ação, considerada em todas as formas de
apreensão - sons, imagens e texturas - não impede sua permanência ou
continuidade naquela sociedade. Representa, sim, a sua duplicação,
configurando dois aspectos, o móvel e o imóvel. Essas duas leituras, para
uma mesma ação cultural implicam, portanto, na noção de representação em
seu sentido modelar e no seu duplo: re-presentação.
A memória social é assim retida, por meio das representações que
processamos, quer na esfera pessoal - memória individual - quer na esfera
coletiva - memória pública. Desse modo, ao falarmos em memória, falamos
em representação. Tal representação pode ser compreendida também de duas
formas: a representação obtida por meio da reprodução, como é o caso da
duplicação de textos, sons e imagens; e a representação obtida por isolamento
de um objeto, por exemplo, um espécime único. No último caso, mesmo que
possa parecer, a princípio, que o espécime único perdeu sua mobilidade
dentro do tecido social, a propriedade de unicidade o transforma em sígno de
sua existência móvel, invertendo-se, assim, apenas o locus da representação.
Os espaços de representação da memória, esses sim, são sempre
móveis, uma vez que a dinâmica do processo social absorve e transforma,
continuamente, não só as ações como as reproduções. E é essa propriedade
que garante a geração do conhecimento e, consequentemente, o
desenvolvimento da sociedade. Assim, neste capítulo, discutiremos a questão
da seleção vista especificamente sob os conceitos emitidos pelos discursos
das representações das memórias sociais.
72

2.1 A questão da representação


Jardim2, discorrendo sobre o mundo como representação em sua
dissertação de mestrado, apresenta uma síntese da idéia de representação
social onde o conceito durkheimiano de representações coletivas é discutido
nos campos da história da cultura, antropologia, sociologia e psicologia
social. Para Jardim, representações sociais são ...as concepções, imagens e
visões de mundo que os atores produzem e consomem no âmbito de práticas
sociais diversas em um tempo e espaços determinados.
Para Becker apud 3, as possibilidades teóricas e metodológicas de
operarmos as representações sociais implicam nos seguintes aspectos:

• qualquer representação da realidade social é necessariamente parcial,


menor do que aquilo que se poderia vivenciar e achar disponível no
real;
• representações só têm existência completa quando alguém as está
usando, lendo ou assistindo, ou escutando e, assim, completando a
comunicação através da interpretação dos resultados e da construção
para si próprio da realidade que o produtor pretendeu mostrar;
• a mesma realidade pode ser descrita de um enorme número de
maneiras, visto que descrições podem ser respostas para qualquer
uma dentre uma multidão de questões.

Encontramos nos indicadores de Becker um conjunto de valores que


passam pela virtualidade e pela significação. Dessa forma, podemos ampliar
as discussões sobre representação social abordando outras fronteiras do
conceito, tais como a comunicação, o pensamento, a linguagem e a imagem, a
transferência da informação, sem contudo perder o foco de atenção, qual seja,
a memória social.
73

Para Gomez4, a representação do conhecimento não consiste em


uma
dimensão necessária da relação gnosiológica do homem com o mundo,
mas
num constructo sócio-cultural constituído nas relações de uns homens com
outros homens. E que o conhecimento, considerado como relação do
pensamento com o real, sofre três mudanças de locus no quadro da cultura
ocidental.
O primeiro, de ordem ontológica, exclui a representação do ato do
conhecer. Para Platão as idéias relacionam-se entre elas e com suas cópias
(objetos da experiência sensível) por participação, configurando uma relação
interior e não representacional. Aristóteles, embora tendo redefinido a relação
de pensamento com o real, ao criar o espaço do julgamento, permanece ainda
na ordem do ser, uma vez que as relações entre proposição e expressão
enunciativa implicam meramente em união ou síntese (ver algo como algo),
excluindo a idéia de representação.
O segundo, nomeado por Gomez o momento gnosiológico, pode ser
representado pela ruptura da unidade cristã, espiritual e onto-teológica, onde
as formas de participação e união com o real são substituídas por uma
experiência de contingência. A unidade orgânica do homem com o mundo, a
intuição, a presença das coisas elas mesmas, o saber da testemunha, irão
sendo substituídos pela unidade da consciência, a representação e a
construção experimental e documentária da ‘prova’.5 Ainda em Gomez,
para Heidegger, o signo como instrumento da representação é a grande
descoberta moderna. Locke enfatiza a afirmação, considerando o signo em
sua função cognitiva, inaugurando, assim, uma abordagem epistemológica da
semântica, diferente, portanto, da abordagem lógico-gramatical da Idade
Média, e finalmente, para Kant a representação é uma atividade onde são
74

retomadas e sintetizadas as multiplicidades do que se apresenta, e o


conhecimento é uma
síntese de representações.
O terceiro momento é representado pelas epistemologias sem sujeito,
onde o sujeito perde a força explicativa não só na esfera do conhecimento
mas também como agente de ações e transformações sociais. O signo deixa
de ser instrumento para se transformar em locus e o conhecimento deixa de
ser público para se transformar em conhecimento objetivado. Nas palavras de
Gomez, os vários códigos das interpretações representacionais,
assemelhados em sua base semiótica, serão agora pluralidades simultâneas
e da mesma ordem: agregados de camadas de signos referenciando-se umas
às outras, sem exemplares nem níveis privilegiados.6
Do ponto de vista do nosso objeto de estudo, a representação do
conhecimento se situa, ainda hoje, entre os dois últimos momentos discutidos
por Gomez. Se por um lado a memória é constituída de uma seleção de ações
sociais, que se apresentam como signos móveis, por outro essas ações são
preservadas por meio de representações que, ao transitarem pelos diversos
locus, adquirem novas propriedades, seja na redução semiótica (perda do
sentido de produção original), seja na incorporação de novos atributos
informacionais próprios de sua condição essencial de mobilidade. Assim, a
questão da representação da informação e, em particular, da memória social
ainda é melhor observada sob a ótica das teorias da formação de conceitos e
das teorias da comunicação, considerando esse conjunto como um abrigo às
teorias da informação, da linguagem e da imagem.

2.2 Representação e conceito


De acordo com Abbagnamo7, pode-se distinguir duas naturezas para o
conceito. A primeira, de acordo com a filosofia grega, indica que o conceito é
75

a essência, substância das coisas e, ainda, todo o processo que torne possível
a
descrição, a classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis. A
segunda
considera que o conceito é um sinal, ou procedimento semântico.
• 1ª → CONCEITO = ESSÊNCIA

Abbagnamo traça um quadro de relações onde, tanto para Hegel como


para Aristóteles, o conceito é a essência necessária da realidade, o que faz
que ela não possa ser diferente do que é. Já Aristóteles reforça a idéia de
conceito de Platão quando diz que o conceito (logos) é o que circunscreve ou
define a substância ou a essência necessária de uma coisa, classificando-o
em: conceitos comuns, próprios e materiais. E Kant, em sua obra Crítica da
Razão Pura, ao afirmar que, se os conceitos se referem às coisas só mediante
a sensação, os conceitos puros ou categorias devem constituir as próprias
coisas enquanto percebidas, isto é, aparentes na experiência.
Prosseguindo em sua análise, Abbagnamo indica que para os
fenomenologistas o conceito é uma formação psíquica, cuja representação
varia de momento a momento, de indivíduo a indivíduo, porém conservando
a mesma essência. Logo, reduz-se a essência à razão.

• 2ª→ CONCEITO = SIGNO

Na segunda acepção, Abbagnamo considera que o conceito é um signo


do objeto e se acha em relação (significação) com ele. Por essa interpretação,
apresentada pela primeira vez pelos estóicos, a doutrina do conceito torna-se
uma teoria dos signos, a qual constitui o modelo da lógica terminística
medieval e o antecedente da moderna semiótica. Por signo deve entender-se
76

uma proposição que, sendo antecedente em uma conexão verdadeira, é


descobridora da consequente. Pela lógica terminística a função do termo,
tanto o universal como o particular, é definida mediante a noção de
suposição, pela qual os termos estão no lugar da coisa suposta. Assim,
exemplifica que na proposição “o homem corre” o termo Homem está para
Sócrates, Platão etc.8 Dewey, por sua vez, chama aos conceitos termos ou
significados e Quine indicou exatamente o ponto crítico da transformação da
noção de conceito quando disse: o significado é o que a essência se torna
quando se divorciou do objeto de referência e se casou com a palavra.9 Para
Carnap o conceito implica em propriedade, atributo e função, e indica mais
conotação do que denotação. Abbagnamo lista, assim, as funções do
conceito:

a) final → de exprimir ou revelar a substância das coisas.

b) instrumental, que se classifica ainda em:


b1 ) referencial → descrever os objetos da experiência para
permitir seu reconhecimento.
b2 ) econômica → classificar os fatos nos conceitos.
b3) organizacional → estabelecer relações lógicas para os
dados da experiência.
b4) previsiva → antecipar ou projetar a solução de um
problema formulado.

A representação do conhecimento defendida por Dalhberg10 e nomeada


de Teoria Analítica do Conceito (orientada para referente) permite
compreender o conceito como um portador de elementos/características,
obtidas pela predicação de seu referente. Para fins de comunicação, é
77

necessário, no entanto, sintetizar os elementos do conceito em uma


expressão, ou combinação de palavras, a fim de que se possa manipulá-lo ou,
até mesmo, designá-lo por um código ou sinal.
A seguir, os gráficos apresentam os modelos de construção do
conceito e o chamado triângulo conceitual, o qual esquematiza a
representação formal da unidade do conhecimento.
Modelo de construção do conceito

Universo de ítens: idéias, objetos,


fatos, leis, propriedades, ações etc.

Item de referência

Atributos verdadeiros do ítem

Síntese dos atributos na forma


verbal: termo ou nome

Usos da forma verbal no universo do


discurso

Triângulo conceitual

REFERENTE
78

PREDICAÇÃO
DENOTAÇÃO

CARACTERÍSTICAS FORMA VERBAL


B C
DESIGNAÇÃO

Dahlberg, apresenta, assim, um modelo conceitual para a organização


do conhecimento e estudos terminológicos, visando à comunicação entre
indivíduos, tendo como intermediário a informação registrada. Dahlberg
considera esse campo de estudos interdisciplinar e sugere que a filosofia
contribui fundamentalmente para o desenvolvimento teórico do modelo,
indicando sete aspectos dos estudos filosóficos que são ferramentas
intelectuais úteis ao desenvolvimento de uma teoria conceitual: lógica; teoria
da ciência; epistemologia; ontologia; fenomenologia; aletiologia; e,
metafísica.
Com base na lógica aristotélica, o conceito, isto é, sinal e conteúdo, é
retomado por Dahlberg para representar a unidade de conhecimento padrão
em um sistema de transferência de conhecimento. A geração de um conceito
é obtida pelo processo de predicação de um objeto, denominado “referente”,
cuja fundamentação teórica é confirmada pelo pensamento de Kant e Frege.
Assim, qualquer predicação sobre um referente fornece uma característica do
conceito daquele objeto. A soma total das predicações possíveis comporá a
soma total das características do conceito, determinando, assim, seu
conteúdo.
Com base na teoria da ciência, as características do conceito são
entendidas como elementos de conhecimento e a soma total das predicações
pode ser sintetizada na unidade de conhecimento correspondente. Os
79

conceitos são, desta forma, entendidos como unidades de conhecimento. Do


ponto de vista epistemológico, o conceito pode ser analisado segundo as
ações mentais, ou seja, a habilidade da mente em comparar algo novo com
conhecimento adquirido. Esse tipo de conhecimento subjetivo necessita
tornar-se acessível e verificável, explícito, objetivo. As possíveis
comparações podem ser classificadas em três grupos:

1. Relações formais
⇒ identidade
⇒ inclusão
⇒ interseção
⇒ exclusão

1. Relações de categorias formais


⇒ objeto
⇒ propriedade
⇒ atividade
⇒ dimensão

1. Relações materiais (conteúdo)


⇒ gênero/espécie
⇒ partição
⇒ oposição
⇒ função

A contribuição ontológica ao modelo conceitual de Dahlberg é


representada pelas dez categorias aristotélicas ou as classes gerais pelas quais
pode-se olhar o ser. Dahlberg faz uma releitura dessas categorias,
80

reagrupando-as no que denomina “super categorias”, que correspodem às


categorias necessárias ao estabelecimento da estrutura sintática para a
formação de frases:

princípios
ENTIDADES objetos imateriais
objetos materiais

quantidades
PROPRIEDADES qualidades
relações

operações
ATIVIDADES processos
estados

tempo
DIMENSÕES espaço
posição

A fenomenologia aplicada aos problemas da organização do


conhecimento pode contribuir na identificação e acessibilidade dos conceitos,
já que cada entidade com a qual estamos interessados em conhecer e
descrever em concordância com os princípios da “extensão”e “intensão”, está
de certo modo oculta e precisa de explicitação. Por outro lado, o campo da
filosofia dedicado ao estudo da “verdade”- a Aletiologia - pode oferecer
81

bases científicas para a identificação de conceitos “verdadeiros”. Dahlberg


cita um
11
grupo de conceitos verdadeiros, identificados por Diemer apud , como a
seguir:

◊ verdade substantiva
◊ verdade atributiva

◊ verdade formal
◊ verdade teórica

◊ verdade material e semântica

◊ verdade existencial
◊ verdade ontológica
◊ verdade histórica

Além desses, Diemer aponta alguns critérios de verdade nos quais


pode-se reconhecer algumas categorias kantianas:

◊ evidência

◊ problemática (aberta, possível)


◊ assertiva (demonstração empírica)
◊ afirmativa (absoluta, não refutável)

◊ certeza

◊ verificabilidade
82

A metafísica, por sua vez, certamente contribui para os estudos da


organização do conhecimento, de vez que o conhecimento não é separado do
homem, seu produtor; portanto, a reunião, o arranjo e a disposição de uma
estrutura de conhecimento deve levar em consideração os diferentes valores e
crenças individuais. Por fim, o segundo fator abordado por Dahlberg como de
influência na concepção e desenvolvimento de sistemas de organização do
conhecimento é a linguagem. A linguística oferece as bases necessárias à
“designação” de conceitos, sendo os seguintes critérios aqueles considerados
de mais significação: conformidade com o referente; representação das
características; mínima extensão; capacidade de derivação verbal;
internacionalidade.

2.3 Comunicação e representação


12
Embora Martinet apud considere que a característica principal das
línguas naturais é a dupla articulação13 e não a função de comunicação, esta
última é, sem dúvida, fundamental ao processo de transferência de
informação para o qual Eco14 apresenta o seu "modelo comunicacional". Eco
discute os fenômenos da comunicação vistos na elaboração de mensagens,
com base em códigos convencionados como sistemas de signos, cuja teoria
geral da pesquisa é denominada por Semiologia.
Por Semiótica(s) entende Eco serem os sistemas isolados de signos tais
como os códigos naturais, a paralinguística, os códigos musicais, as
linguagens formalizadas, as línguas escritas, as línguas naturais, as
comunicações visuais, a semântica, as estruturas do enredo, os códigos
culturais, os códigos e mensagens estéticas, as comunicações de massa, os
códigos retóricos e os códigos ideológicos.
O discurso de Eco é delineado por duas propostas. A primeira diz
respeito à descrição das semióticas isoladas como sistemas "fechados",
83

rigorosamente estruturados, vistos em corte sincrônico; e a segunda


representa a proposta do modelo comunicacional de um processo "aberto",
onde a mensagem varia conforme os códigos. Estes são postos em pauta
conforme as ideologias e circunstâncias, e todo sistema de signos se
reestrutura continuamente com base na experiência de decodificação que o
processo institui como semiose ilimitada (semiosi in progress).
O objeto de estudo de Umberto Eco é o mundo como fato de cultura,
uma mensagem a desvendar. Assim, considera que todos os fenômenos de
cultura podem ser vistos como fatos de comunicação, para os quais as
mensagens isoladas se organizam e se tornam compreensíveis em referência
a códigos. A representação do conhecimento é portanto considerada como
um processo que tem por base o modelo da comunicação, embora reconheça
ser esse um ponto de vista da análise do mesmo objeto, tal qual Copérnico
que retoma a astronomia clássica de Ptolomeu, considerando a Terra em
relação ao Sol e não o Sol em relação à Terra.
O modelo comunicacional de Eco parte da estrutura simplificada
dos
instrumentos fornecidos pela teoria matemática da informação, que se insere
no universo dos sinais, até chegar às formas complexas do universo dos
sentidos. A escolha de tal simplificação, ou busca de uma "estrutura"
mínima comum, se justifica pelo fato de que também outras disciplinas
procuram, nos mais variados níveis, reduzir os fenômenos que estudam a
fatos comunicacionais. Como exemplos: a percepção (Psicologia); a
transmissão em código dos caracteres hereditários (Genética); a passagem
de sinais das terminações nervosas (Neurofisiologia), entre outras.
O processo comunicativo implica, em sua essência, na informação e, em
sua forma, na codificação/decodificação. Para tanto, Eco15 conceitua
informação e código:
84

A informação não é tanto o que é dito, mas o que pode ser dito; a
informação é a medida de uma possibilidade de escolha na seleção de uma
mensagem; a informação representa a liberdade de escolha que se tem ao
construir uma mensagem, e deve, portanto, ser considerada como uma
propriedade estatística da nascente das mensagens; a informação na fonte,
como liberdade de escolha, é extraordinária, mas a possibilidade de
transmitir essa informação possível, individuando-se uma mensagem
completa, torna-se bastante complexa.

O código representa um sistema de probabilidades sobreposto à


eqüiprobabilidade do sistema inicial, permitindo dominá-lo
comunicacionalmente. (...) o código é um sistema que estabelece 1) um
repertório de símbolos que se distinguem por oposição recíproca; 2) as
regras de combinação desses símbolos; 3) e, eventualmente, a
correspondência termo a termo entre cada símbolo e um dado significado.

Tentar discutir os conceitos de informação e códigos expressos


acima exigiria a análise de outros textos. Assim, vale a pena conferir
algumas afirmações de autores diversos em formação e época que, de certa
maneira, confirmam a idéia da primeira afirmativa de Eco - A informação não
16
é tanto o que é dito, mas o que pode ser dito. Em Novaes , para
Aristóteles o que existe em potência só passa ao ato pela ação de algo que
já é ato, em outras palavras, cita Epicuro que diz nada se aprende nem se
compreende a partir do nada. Jankélévitch, citado também por Novaes17,
sintetiza de forma precisa o problema dessa passagem de potência a ato:
como tornar-se o que se é, uma vez que já se o era? É que, na realidade,
era-se sem ser. ... Ele (o homem) será, pois, intensamente, o que era um
pouco, seria em ato o que era em potência. Ainda em Novaes18, Paul Valéry
afirma que, se lidamos apenas com a noção de realidade dada, ficamos diante
de um problema insolúvel, uma vez que: Os dados jamais serão inteiramente
dados e pode-se sempre dizer que há dados ocultos ... A tarefa da
inteligência é tornar relativo aquilo que o sentido e o corpo apresentam
como absoluto. Ela deve pois, descobrir ou imaginar as operações
85

(mudanças de pontos de vista) que tornam as coisas/fenômenos partes de


alguma relação que deve anular-se.
A realidade é, portanto, aquilo que é dado pela nossa ação, ou o que é
pressentido como estando em nossa potência realizar, como afirma Novaes:
Ora, o que Valéry expõe nos Cahiers, o que Nietzsche deixa nos textos
póstumos, e Starobinski analisa em Rousseau e Montaigne, é o que se pode
chamar de dialética da máscara ou da aparência ... Na relação com a
aparência, não há apenas o engodo, a máscara, o vazio ou a ausência que a
realidade vai revelar posteriormente. O que há é uma resposta à
interrogação da própria aparência, e, portanto, sempre um começo, e
sempre uma experiência do pensamento.19
Portanto, o sentido da comunicação, pode ser visto como uma
proposta
de meio pelo qual comportamentos são alterados, tendo a informação o papel
de intensificar a passagem da potência ao ato, sem, no entanto se esgotar em
si própria, uma vez que ela se torna potência novamente ao passar a
pertencer ao universo de "realidade" do receptor. Tal é o conceito de
informação para Barreto20, onde informação representa estruturas
simbolicamente significantes que permitem um ato de interpretação
semântica. Tais estruturas não são pré-formatadas, mas são construídas pelo
sujeito que percebe o meio.
Quanto aos códigos, esses exercem uma função ordenadora,
pois
limitam-se às possibilidades de combinação entre os elementos, diminuindo
a informação da fonte e aumentando a possibilidade da transmissão da
mensagem, o que indica a relatividade do processo comunicacional, pois,
como afirma Eco noções como a de informação (oposta à mensagem), de
desordem (oposta à ordem), de eqüiprobabilidade (oposta a sistema de
86

probabilidades) são todas noções relativas. A fonte é entrópica no que


concerne ao código que lhe limita os elementos pertinentes aos fins da
comunicação, mas o código possui uma entropia relativa no que respeita às
inúmeras mensagens que pode gerar.21
Essa relatividade do processo comunicacional pode melhor ser
entendida se considerarmos o aspecto circunstancial do universo
semiológico. Ainda em Eco22, a circunstância introduz-se no universo
semiológico, que é um universo de convenções culturais, com o peso de uma
realidade ineliminável; ancora a abstrata vitalidade dos sistemas de código
e mensagens no contexto da vida cotidiana; alimenta a gélida auto-
suficiência das relações de sentido com os influxos da história, da sociedade
e da natureza. A circunstância portanto, muda não só a escolha do código
como a função da mensagem.
Farradane23 observa que o ser humano não consegue ainda
transferir
informação sem um meio, o qual pode ser representado pela linguagem.
Assim, a linguagem entendida como um código gráfico, pictórico, simbólico
ou sensorial é ainda a forma necessária de representação do pensamento.
Assim, ao tratar a representação da informação, o modelo que
Eco denominou de "Processo de decodificação poética"24 prevê um processo
de decodificação que pode ir do máximo da casualidade a um máximo de
fidelidade. Casualidade quando o significante é reportado a códigos
arbitrários como por exemplo "agua" como composto químico. Por outro
lado, a fidelidade só é possível numa contínua dialética entre códigos do
destinatário e códigos de emissão, numa espécie de aproximação-afastamento
contínuo. Ao ser interpretada, a mensagem oferece-se à comunidade dos
fruidores como uma nova forma significante, suscetível, por sua vez de ser
também interpretada e passa a constituir códigos de interpretação crítica.
87

Eco acrescenta dois universos ao modelo comunicacional: o universo


retórico e uma "entidade" aquém do universo semiológico a que denomina
"ideologia". A par de considerar uma curiosa contradição da retórica como
oscilação entre redundância e informação, Eco distingue três sentidos da
palavra "Retórica":

a) A Retórica como estudo das condições gerais do discurso suasório


(dialética entre códigos e mensagens);
b) A Retórica como técnica gerativa, isto é, como posse de
mecanismos argumentativos que permitem gerar argumentações
suasórias basea das numa dialética moderada entre informação e
redundância; e,
c) A Retórica como depósito de técnicas argumentativas já provadas e
assimiladas pelo corpo social.

A última acepção é a que mais se adapta à idéia de Retórica do


Modelo
de Eco, uma vez que este considera como retórico um raciocínio
que
empregue frases feitas e opiniões estabelecidas, apelos à emoção já
desgastados e consumidos e no entanto ainda eficazes para ouvintes mais
despreparados.
Quanto à ideologia, esta seria o universo do saber do destinatário e
do grupo a que pertence, os seus sistemas de expectativas psicológicas, suas
atitudes mentais, a experiência por ele adquirida, os seus princípios morais
(sua ‘cultura’, no sentido antropológico do termo, se da cultura assim
entendida não fizessem parte também os sistemas retóricos).
88

O processo de comunicação se dá, portanto, quando o indivíduo reduz o


que pensa e quer a um sistema de convenções comunicativas, ou seja quando
o que pensa e quer é socializado. O sistema de saber, por sua vez, tem que se
transformar em um sistema de signos, onde a ideologia socializada se torna
código. Nasce assim uma estreita relação entre o mundo dos códigos e o
mundo do saber preexistente, onde esse saber torna-se visível, controlável,
comerciável, quando se faz código, convenção comunicativa.
Para Eco, portanto, a Semiologia mostra-nos no universo dos signos,
sistematizado em códigos e léxicos, o universo das ideologias, que se
refletem nos modos pré-constituídos da linguagem. A Semiologia, como
ciência da relação entre códigos e mensagens, tranforma-se
concomitantemente na atividade de identificação contínua das ideologias que
se ocultam sob as retóricas. Os códigos são sistemas de expectativas do
universo dos signos. As ideologias são sistemas de expectativas no universo
do saber, o que significa que ideologia não pode ser equiparada a
significado, quando muito ela pode ser considerada a conotação final (no
sentido do interpretante) da totalidade das conotações do signo ou do
contexto dos signos.
O universo de signos organizado em códigos e léxicos é, no
entanto,
constantemente alterado em um movimento contínuo, no qual a informação
redimensiona códigos e ideologias e se retraduz em outros novos.
Esse processo aplicado à leitura documental nos conduz a vários
universos retóricos e ideológicos, uma vez que podemos trabalhar com
diversos códigos do ponto de vista de dimensões temporais e espaciais.
Eco
exemplifica essa questão ao comentar:
89

...o leitor sensível que queira colher a obra de arte em todo o seu
viço, não deve apenas lê-la à luz dos seus próprios códigos ... mas
reencontrá-la nas condições de novidade em que nascera: a reconstruir
em nós a situação de virgindade em que se encontrava quem dela se
aproximou pela primeira vez.25

Eco considera, ainda, dois caminhos para o desenvolvimento da


Semiologia: o primeiro que leva a uma teoria dos universais da comunicação,
já que pelo modo como se articulam os significantes há leis que
correspondem a mecanismos constantes da mente humana o que levaria a
uma constância da comunicação; o segundo, transforma a Semiologia em
técnica de descrição das situações comunicativas, tanto no tempo como no
espaço. No que diz respeito ao "interpretante", para a comunicação, essa
variável necessária transforma o sistema comunicacional em sistema aberto,
dependente de seus diversos códigos com ênfase nos códigos retóricos e
ideológicos, os quais se por um lado enriquecem o processo comunicacional,
por outro restringem o resultado final, ou seja, a transmissão eficaz da
mensagem.
A verticalização da análise da linguagem como código necessário à
transmissão da mensagem nos conduz à discussão das relações entre
pensamento e linguagem.

2.4 Pensamento e linguagem


Segundo Spirkin26, a escrita constitui a forma visual de fixar a
linguagem, surgindo quando a sociedade já havia alcançado um nível elevado
de desenvolvimento. Portanto, um produto normal da ampliação dos meios de
intercomunicação das pessoas, estimuladas pelas necessidades práticas da
vida social. A escrita é, assim, resultado da atividade criadora e consciente
dos seres humanos. Como linguagem articulada, adquire um caráter até certo
ponto independente e constitui uma forma de atividade extremamente
90

abstrata. A escritura pictográfica evoluiu gradativamente no sentido da


significação. Da representação completa do objeto, o homem passou à
representação esquemática. Por sua vez, a escrita ideográfica ou hieroglífica
constituiu um sistema de signos e regras acerca de seu emprego que serviu
para comunicar um pensamento qualquer.
Do ponto de vista do desenvolvimento do pensamento, o
aparecimento
do alfabeto significou que o homem chegou a ter a idéia de que a
palavra
consta de elementos particulares. O sistema alfabético, portanto, surgiu
no
estágio em que a linguagem fonética e o pensamento abstrato
haviam
alcançado seu pleno desenvolvimento. A escrita fonética, através da
linguagem, se converteu em realidade material do pensamento. Então, ao
proporcionar ao pensamento um caráter de certo modo independente (da
realidade física dos objetos), a linguagem foi uma das forças que
contribuíram para criar não somente uma cultura espiritual, como para
desenvolver a cultura material.
O pensamento humano, que opera com conteúdos dependentes da
palavra, implica sempre numa influência recíproca entre o sujeito pensante e
o conteúdo que a palavra encerra. Assim, a linguagem é vista como o
instrumento do pensar, sua realidade imediata, tanto para o ouvinte quanto
para o falante. Merleau Ponty27, por sua vez, amplia esse conceito e afirma
que a palavra não é a tradução de um sentido mudo, mas criação de sentido.
A linguagem não ‘veste’ idéias: ela encarna significações, estabelece a
mediação entre o eu e o outro e sedimenta os significados que constituem a
cultura.
91

O pensamento, ainda em Spirkin, nasce junto com a linguagem


e
constitui a atividade cognoscitiva do sujeito feita imediatamente por meio da
palavra. A linguagem cumpre, então, dois papéis: um como fator de
comunicação (objeto - relação do sujeito com o objeto - relação existente
entre sujeitos), outro como organizador do pensamento. Gorsky28 confirma o
discurso de Spirkin, dizendo que a linguagem está vinculada ao pensamento
direta e indissoluvelmente e é essa conexão essencial que determina o papel
que a linguagem desempenha na esfera do conhecimento. Richaudeau29
adiciona ênfase à tese, considerando que a riqueza do aparelho linguístico
permitiu a transcendência da sua função inicial e a linguagem se transformou
em suporte do conhecimento, da imaginação, do sonho, dos prazeres. A
linguagem não exprime somente o pensamento humano pré-existente, mas
se
constitui no próprio pensamento.30
Ainda em Gorsky, a linguagem não só constitui uma condição
necessária para a formação de nossos pensamentos, como também permite
consolidar os êxitos da atividade cognoscitiva do indivíduo, fixar a
experiência adquirida por uma geração e transmitida às gerações futuras.
Portanto, o papel da linguagem para o conhecimento se revela a partir da
transmissão dos conhecimentos adquiridos, na passagem do nível sensorial
para o racional e no processo de formação de conceitos, tanto do discurso da
ontogênese, como da filogênese.
O pensamento pode então ser igualado à concepção, dentro da
escala
associativa sensação →percepção →concepção, no sentido de criação e,
portanto, com independência do real objetivo. O pensamento não se dissocia
do real, mesmo considerando os conceitos de juízos e raciocínios. A reflexão
92

sobre a realidade natural existe, dado que tanto o conteúdo como a forma de
cada conceito, de cada juízo e de cada raciocínio particulares são um reflexo
do mundo material.
Gorsky trata, ainda, do problema correspondente ao sentido da
palavra,
da correlação que existe entre o sentido e o significado e ainda entre sentido e
conhecimento. Usa, para tal, o raciocínio aristotélico de propriedades ou
características e diferença na identificação de grupos ou classes de conceitos
e seus possíveis relacionamentos. A aproximação de um objeto sob o aspecto
da sensação, percepção ou representação nos conduz ao objeto único e não à
sua classe. As sensações e percepções não precisam ser fixadas
materialmente, mas as concepções sim. A suposição de que existam estrelas e
o sol é da ordem da percepção. A relação, ou seja, as estrelas são sóis, é da
ordem da concepção. Para tanto, há a necessidade de atribuição do signo, no
caso a palavra, para expressar ou fixar o pensamento (ou concepção). Logo, o
processo de pensar se caracteriza pela capacidade de formar conceitos, de
generalizar. E, nesse sentido, o processo de pensamento é, por sua vez,
um
processo no qual se opera com palavras.
Ainda assim, embora possamos afirmar que o signo representa o
pensamento, o fato mesmo da representação conduz à idéia de redução
semiótica, tal que as representações variam não só pela forma de
apresentação como pelo modo de interpretação. Do mesmo modo que posso
representar uma relação por meio de uma abstração pictórica, como por
exemplo: a rosa é maior que o livro - e desenhar uma rosa grande e um livro
pequeno, a interpretação vai variar conforme o universo retórico presente à
comparação. O desenho poderia ser interpretado como: gosto de rosas
93

grandes e de livros pequenos, etc. A complexidade do tema nos leva, assim a


recorrer às discussões sobre a linguagem e outros sistemas de signos.

2.5 Significação e linguagem natural


Em Semiótica e filosofia da linguagem31, Eco procura identificar na
história da filosofia a discussão sobre a língua e outros sistemas de signos.
Mediante essa releitura, afirma que cada grande filósofo do passado
eleborou, de alguma forma, uma semiótica. Dos estóicos a Cassirer, dos
medievais a Vico, de Santo Agostinho a Wittgenstein, todos abordaram os
sistemas de signos. Mas é com Aristóteles que a idéia de ser é percebida
como expressão de vários modos, ou que o ser é o que a linguagem expressa
de muitas maneiras.

Usando a figura que viria a ser mais tarde conhecida como o triângulo
semântico de Ogden e Richard, Eco relê semioticamente alguns filósofos:

Z Y

onde:
Y = uma expressão
Z = uma coisa ou estados de coisas
X = o significado
94

Para Platão o Z era uma experiência do mundo, mas efêmera e


enganosa, dotada de "realidade" apenas enquanto imitação de uma realidade
situada no mundo das idéias; para Aristóteles era uma subtância primeira, em
toda a sua concretude; para os estóicos era um corpo. Para Platão o X era
um conceito; para Aristóteles, uma disposição da mente; para os estóicos uma
criação do espírito humano. Embora a definição dessas entidades mudasse
segundo o contexto filosófico, a diferença entre significado e referência foi
de algum modo enunciada.
Para Ogden e Richard o Y é o símbolo, o Z o referente, o X a referência.
No que concerne à semiologia só interessa o lado esquerdo do triâgulo pois
o problema do referente não tem pertinência, uma vez que existem símbolos
que possuem uma referência e não têm referente (como o unicórnio, que se
refere a um animal fantástico, mas inexistente). Há ainda símbolos
diferentes, com significado diferente que dizem respeito ao mesmo referente
(Vênus, como estrela-da-manhã e estrela-da-tarde, ou ainda as expressões
"meu padrasto" e "o pai de meu meio-irmão").
Já Peirce, ao entender o signo como alguma coisa que está para alguém
em lugar de outra, sob algum aspecto ou capacidade, trata essas relações
numa estrutura triádica, que lembra o triângulo richardsiano onde, alterando
as conceituações saussurianas de significante e significado, introduz a idéia
do Interpretante. Onde o Y é o símbolo ou "representâmen", o Z o objeto que
representa e o X interpretante. (tese essa mais próxima de Aristóteles e
dos
estoicos).
A idéia do interpretante, como diz Eco, pode ser identificada com o
significado, mas a hipótese mais fecunda é a que vê o Interpretante como
uma outra representação relativa ao mesmo objeto, numa cadeia de semiose
ilimitada, uma vez que para estabelecermos o que seja o interpretante de um
95

signo é necessário designá-lo mediante outro signo, o qual tem por sua vez
outro interpretante, designável por outro signo, e assim por diante.

(INTERPRETANTES)
(REPRESENTACÃO ) R ⇒ I ⇒ II ⇒ III ⇒ n

O (OBJETO)

Esse círculo vicioso se dá em relação aos diversos contextos ou


culturas a que o significante se direciona, como por exemplo o significado
do significante vaca para o hindu ou os significantes beleza, unicórnio e
Deus. Esta relação cultural provoca na mente do indivíduo o interpretante,
existindo, portanto, diferentes interpretantes a partir do contato com um
código ou cultura. Assim, com base num dado código, um significante denota
um significado num certo grau de extensão e, ainda conota um significado em
relação ao próprio código. A relação de conotação se estabelece quando
um par formado pelo significante e pelo significado denotado,
conjuntamente, se torna o significante de um significado adjunto. O termo
cão, por exemplo, denota certo tipo de animal, mas para o italiano também
conota "mau tenor".
A relação entre símbolo e referência é estudada em profundidade, uma
vez que é dessa relação que ocorrem os fenômenos de significação. A
relação entre símbolo e significado pode mudar, crescer, deformar-se; o
símbolo permanece constante e o significado torna-se mais rico ou mais
pobre. A esse processo dinâmico e contínuo Eco denomina sentido.
Para Pinto32, todas as teorias que separam radicalmente a expressão
linguística daquilo que ela significa podem ser consideradas em filosofia da
linguagem como “realismo”. O “realismo” seria a forma de se compreender a
96

análise do fenômeno do signo e do significado, quer na lógica ou matemática,


quer na linguística. No entanto, a lógica e a matemática são linguagens
artificiais, podendo ter a estrutura que desejarem, o que não acontece com a
linguística, uma vez que as línguas naturais são objetos empíricos e não uma
criação da mente.
Pinto critica essas teorias e as classifica, tomando o cuidado de
ressalvar que a classificação não é rígida, de vez que muitos autores tiveram
mais de uma posição no decorrer de suas produções teóricas. A primeira,
denominada de realismo didático, primitivo ou ingênuo (Frege, no início de
sua obra e Russel, no limiar do século) considera apenas os objetos concretos
existentes no mundo empírico, sem levar em conta os conceitos de:
sentimentos, emoções, paixões, qualidades, situações, fatos e estados de
coisas. A crítica feita por Pinto diz respeito à aceitação, por parte do realismo
didático, de que a relação de designação entre a expressão linguística e o
objeto referido tem pertinência para a Semântica. Essa idéia é contestada
pois, ao se nomear algo, a expressão empregada vem apenas a resumir outra
expressão já verbalizada que descreve e identifica o objeto nomeado,
assumindo o significado desta. Para Pinto, o ato de designar não cria
significado, nem transforma objetos extralinguísticos em significado (o
significado de “cão”não morde).
A segunda teoria, denominada realismo triádico ou simbólico, é
uma
concepção menos ingênua em que o significado não é identificado com o
objeto referido, mas sim com a conexão que o intérprete estabelece entre
expressão e o objeto extralinguístico do mundo. A expressão passa a ser vista
como representante do objeto, ocupando o lugar deste por delegação do
usuário da linguagem, num processo de simbolização. Tal processo de
simbolização, afirma Pinto, não é pertinente linguisticamente, pois apenas
97

pressupõe o significado, não o determina. Estão presentes, ainda,


nesta
concepção da teoria triádica:

• Psicologismo (Ogden & Richard, Bloomfild, Wittgenstein), que define o


significado a partir de uma teoria psicológica em voga. A cada expressão
corresponde um pensamento, de modo que o processo da comunicação
equivaleria a uma passagem de pensamentos da mente do falante para a do
ouvinte. No entanto, a comunicação seria viável.
Pinto critica essa idéia ao afirmar que mesmo que se admita a
existência de alguma associação mental ligada às expressões, elas terão um
caráter de individualidade, serão próprias de cada indivíduo, e portanto
incomunicáveis. Nem mesmo existe a garantia que para uma mesma pessoa, o
proferimento da mesma expressão evoque sempre a mesma idéia ou
pensamento. Uma boa prova disso são as expressões tautológicas “guerra é
guerra” ou “uma rosa é uma rosa”, em que evidentemente as duas aparições
da mesma expressão não evocam a mesma idéia ou pensamento, embora se
possa dizer que têm o mesmo significado
Por outro lado, definir idéia ou pensamento por “imagem
mental”
também é, para Pinto, insuficiente pois, de fato, as imagens mentais evocadas
em diferentes pessoas pela mesma palavra são diferentes. Um bom exemplo é
o teste psicotécnico da “árvore”. A comunicação, neste caso, continua
impossível.

• Logicismo. Os filósofos ligados à lógica e à matemática separam de modo


radical a Semântica (o significado) da Pragmática (o uso individual da
linguagem) e, portanto, entendem o significado como uma noção a ser
98

definida interpessoalmente. Embora essa perspectiva se aproxime de


uma
Semântica para as línguas naturais, o significado permanece uma
entidade
isolada, independente do sinal que o veicula.
Os conceitos básicos trabalhados por lógicos e matemáticos são os de
denotação e conotação, introduzidos na lógica moderna por Stuart Mill em
1943. A idéia de denotação é associada à de “extensão”, uma vez que esta
representa a relação que se dá entre uma expressão linguística e o objeto ou
classe de objetos a que se refere ou pode ser aplicada pelo usuário. Por
conotação, associada à idéia de “intensão” ou “compreensão”, entende-se a
relação que se dá entre a expressão e as características do objeto.
Para Jolivet33, a “idéia” ou conceito é a simples representação
intelectual de um objeto, diferindo essencialmente da “imagem”, que é a
representação determinada do objeto sensível. A compreensão é, portanto, o
conteúdo de uma idéia, o conjunto de elementos de que uma idéia se compõe.
A idéia de Homem implica os elementos: ser, vivente, sensível, racional. A
extensão é o conjunto de sujeitos a que a idéia convém. A idéia de Homem
convém aos: canadenses, aos franceses, aos negros, a Pedro. Portanto, a
relação entre compreensão e extensão se dá numa tensão da razão inversa.
Embora a maioria dos autores trabalhe com os conceitos clássicos de
conotação e denotação apresentados na lógica-matemática, alguns filósofos
da
linguagem, segundo Pinto, invertem as definições dos dois termos, como
Bunge que adota a expressão “extensão” para designar a relação com a
realidade empírica, “referência” (hipotética, potencial) para o conceito
clássico de denotação e “designação” para a relação da expressão com o
conceito da qual é símbolo.
99

A todas essas questões sobre a significação e as linguagens naturais,


podemos acrescentar ainda o papel desempenhado pelas novas tecnologias da
informação na reestruturação dessas e, talvez, na criação de outras formas
comunicacionais que vêm se desenvolvendo nos ambientes virtuais de trocas
de mensagens. É o caso, por exemplo, da chamada comunicação virtual ou
conversa eletrônica. Embora o ambiente em que se operam as trocas
informacionais não tenha mudado conceitualmente, ou seja, existe um
emissor, um canal e um receptor, a conversa em máquina transita num meio
cultural novo. Esse meio, ou universo, denominado espaço cibernético,
proporciona a interação de vários interlocutores em tempo real numa troca
contínua de mensagens que precisam ser decifradas. A estrutura dos dados
disponibilizados requer um suporte intelectual de máquina que está ainda em
desevolvimento. É a chamada inteligência artificial, cujos estudos ainda são
de ordem experimental, trabalhando com a linguagem e a lógica, tentando
reproduzir, como em Shoan34, o estado mental das crenças, decisões,
capacidades e obrigações.
Vê-se, assim, que as questões de denotação e conotação se
complexificam. Se por um lado, as mensagens passam a adquirir um maior
número de possíveis significados, por outro, essa mesma dificuldade vai,
certamente, favorecer o aparecimento de uma nova linguagem, que ainda
pode ser chamada de natural. Em artigo publicado no caderno Idéias,
Bentes35, comentando o romance Cyber Barroco de Guilherme Kujawsky
afirma que ao invés de destruir a escrita, a informática está criando uma nova
língua, que o teórico francês Pierre Levy chama de ideografia dinâmica, uma
escrita informática, que ainda não existe, mas poderia aparecer como uma
língua lúdica, de ensino e formação.
Essa mistura de signos pictóricos e fonéticos nos conduz a refletir,
embora rapidamente, sobre a relação entre imagem e representação.
100

2.6 Imagem e representação


No campo da filosofia, tal como as discussões sobre as relações
entre
pensamento e linguagem, encontramos em Sartre36 uma gloriosa
genealogia
dos encontros e desencontros do pensamento e da imagem. Para o autor, toda
teoria da imaginação deve satisfazer a duas exigências. Deve dar conta da
discriminação espontânea que o espírito opera entre suas imagens e suas
concepções, e deve explicar o papel que desempenha a imagem nas operações
do pensamento. Assim, exemplifica Sartre que a folha de papel na qual está
escrevendo e a folha de papel em imaginação são uma única e mesma folha
em dois planos diferentes de existência. Dois planos diferentes de existência
em relação ao sujeito. Partindo das observações de Hume apud 37, imagem e
percepção são idênticas, diferem apenas em intensidade, Sartre considera
que, embora sem ter respondido totalmente às questões anteriores
38
formuladas, Husserl apud é o que mais se aproxima de uma teoria da
imaginação, ao oferecer o conceito de intencionalidade, ou seja, a imagem
também é imagem de alguma coisa. Achamo-nos pois, diante de uma relação
intencional, de uma certa consciência a um certo objeto. Para Husserl, a
imagem, tornando-se estrutura intencional, passa do estado de conteúdo
inerte de consciência ao de consciência una e sintética em relação ao objeto
transcendente. Assim, a idéia, tal como em Jolivet, fica no plano do conteúdo
e a imagem na virtualidade transcendental, de vez que a intenção é condição
de sua existência.
Do ponto de vista da forma imagética e de como, na atualidade,
vamos
101

substituindo os símbolos da linguagem escrita pelos símbolos visuais,


Virilio39
tenta definir a lógica da imagem quando afirma que a era da lógica formal é a
da pintura, da gravura e da arquitetura, que se conclui no século XVIII. A era
da lógica dialética é a da fotografia, da cinematografia, ou do fotograma, no
século XIX. A era da lógica paradoxal é a que se inicia com a videografia, a
holografia e a infografia (digitação computadorizada), como se, neste final do
século XX, a própria conclusão da modernidade fosse marcada pela
conclusão de uma lógica da representação pública. Tal representação pública
é explicitada pelo sentido de uma mutação das representações em que o
espaço público da cidade cede subitamente à “imagem pública”, imagem
paradoxal de uma presença em tempo real que suplanta, desta forma, o
espaço real tanto do sujeito quanto do objeto.
Virilio discute, assim, a linguagem, a memória e as representações
através dos exemplos na tecnologia da fotografia e, consequentemente do
cinema, uma vez que o filme é composto por fotogramas dispostos ao olhar
do espectador por sequências de velocidade, que dão o tom das intenções do
diretor. Suaves, se sentimentais, muito rápidas se subliminares. A imagem é,
assim, a grande representação contemporânea, a ponto de Virilio40 afirmar
que No ocidente, a morte de Deus e a morte da arte são indissociáveis e o
Grau Zero da Representação (grifo do autor) faz nada mais do que cumprir
a profecia feita há mil anos por Nicéforo, patriarca de Constantinopla,
durante a disputa iconoclasta: ‘Se suprimirmos a imagem, desaparece não
somente o Cristo, mas o universo inteiro’
Assim, as imagens mentais não existem a partir do que é apresentado,
mas a partir das lembranças ou da re-presentação. Alfred Hitchcock, depois
de Dreyer e de muitos outros, utiliza um sistema de codificação semelhante,
lembrando que os espectadores não produzem suas imagens mentais a partir
102

do que lhes é dado imediatamente a ver mas a partir de suas lembranças,


como em sua infância, preenchendo por si próprios as lacunas de suas
cabeças com as imagens que criam a posteriori41. Além disso, do lado do
tomador de imagens, do operador de câmara, a seletividade é condição
primordial da formação da imagem, uma vez que, segundo Jacques Tourneur
apud 42, em Hollywood aprendi rapidamente que a câmara jamais vê tudo; eu
vejo tudo, mas a câmara só vê porções.
Além da seletividade, o outro aspecto de fundamental importância na
questão da representação em Virilio, e aquele que é a síntese de sua tese, é a
velocidade. Ao exemplificar o seu pensamento, sempre com a fotografia,
afirma que, ao lado das dimensões espaço e tempo, existe hoje uma outra
dimensão que é a luz. Não a luz no sentido puro da claridade, da visão, do
entendimento, mas a luz em sua versão de trajeto. Para Virilio o que nos
move hoje no sentido das representações sociais, não é mais o espaço e o
tempo , mas o movimento, o trajeto, invertendo assim o conceito de
velocidade da luz para a luz da velocidade. É o tempo real que importa.
Superação intempestiva da objetividade, depois do ser do sujeito e do ser do
objeto, o intervalo do tipo luz traz à luz o ‘ser trajeto’. Este último definindo
a aparência ou, mais exatamente, a trans-aparência do que é, e a questão
filosófica não seria mais: a qual distância de espaço e de tempo se encontra
a realidade observada?, mas, desta vez: a que potência, ou seja, a que
velocidade se encontra o objeto percebido? Não é mais uma questão de
localização absoluta, mas de percepção relativa, a qual Virilio nomeia de
energia cinemática da relatividade.
43
O objeto passa então a ser, a ponto de Paul Klee apud afirmar que
agora os objetos nos observam embora Heidegger44, citando o pintor no
capítulo Ser e tempo de sua obra, nos coloque de volta ao caminho da
103

tentativa de compreensão dessa relação intrincada do ser-objeto, num espaço-


tempo.
Se consideramos o ocaso do sujeito como em Vatimo45, e a morte do
espaço-tempo, como em Virilio, resta-nos o objeto potencial que sai da esfera
do falso-verdadeiro, do tempo extensivo para a dimensão intensiva do tempo
real, da “telepresença”, a-espacial, onde a presença real, normalmente
associada ao tempo presente passa a se constituir no passado. Desta forma,
podemos continuar a afirmar que os espaços é que são móveis e as
representações se adequam à essa mobilidade em função do ângulo pelo
qual
são observadas.
Assim, as discussões sobre a Representação, suas ferramentas teóricas
e seu objetivo nos indicam que o ponto de interseção em todas as abordagens
apresentadas é a questão do interpretante, o que vem a reforçar nossa terceira
proposição - Significação. Para a Comunicação, essa variável necessária
transforma o sistema comunicacional em sistema aberto, dependente de seus
diversos códigos, com ênfase nos retóricos e ideológicos, os quais, se por um
lado enriquecem o processo comunicacional, por outro, restringem o
resultado final, ou seja, a transmissão da mensagem. O modelo conceitual de
Dahlberg discute essa mesma questão do "interpretante", quando aponta
as influências da metafísica na organização do conhecimento a qual não pode
estar dissociada do universo de valores e crenças individuais. Tal universo
é, assim, o mesmo universo "ideológico" formulado por Eco no seu modelo.
Se, ao mesmo tempo em que o universo ideológico apresenta a possibilidade
de uma cadeia de "sentidos" inesgotável, o processo de comunicação só se
dará quando o indivíduo reduzir (nas palavras de Eco) o que pensa a um
sistema de convenções comunicativas. Ainda assim, essa redução implica em
104

várias interpretações, o que acarreta a diminuição da carga de identidade da


mensagem.
Para a Ciência da Informação, ocupada com a reunião, organização e
disseminação da informação, é impossível trabalhar com um sistema
"aberto", de vez que é necessário buscar uma estrutura mínima de
comunicação. Essa estrutura mínima é viável do ponto de vista semiológico,
a partir do desenvolvimento de uma teoria dos universais da comunicação, já
mencionada por Eco como uma das linhas de atuação da Semiologia. Trata-
se, no caso da Ciência da Informação e primordialmente das técnicas de
recuperação da informação, de encontar essa estrutura para a unidade do
conhecimento, passível de ser comunicada, com o menor grau de erro de
interpretação, o que torna o processo restrito, específico para o fim de
transferência intencional de informação, não podendo ser este processo
confundido com o de caráter comunicacional lato sensu.
Dahlberg propõe essa estrutura ao afirmar que, para fins de
comunicação
stricto sensu é necessário sintetizar as características conceituais, obtidas
pela predicação do referente, em uma expressão ou combinação de palavras.
Tal síntese, na verdade, representa reduzir a um ou mais códigos a
potencialidade da informação na fonte ou seja, a capacidade informativa ou
interpretativa de uma "unidade de conhecimento". O modelo conceitual
apresentado, ainda que usando a esquematizacão do Triângulo Semântico, é
uma forma reduzida, sintética e intencional de extrair da unidade de
conhecimento "potencial" um esqueleto de informação mínima necessária à
transferência daquele conhecimento. Até o momento, esse modelo vem
contribuindo com a melhoria dos sistemas de comunicação em Ciência da
Informação, a partir do instante em que os especialistas em terminologia e
vocabulários controlados passam do campo do assunto, em linguagem
105

natural, para o campo do conceito, em linguagem documental. Nesse


sentido, a Ciência da Informação apresenta uma complexidade maior, pois
lida com os problemas decorrentes das línguas naturais, entre eles a questão
de designação e significado, como bem analisa Pinto, e com as dificuldades
de construção de linguagens artificiais, o que implica na construção de um
código intermediário entre o emissor (representado pelo documento, que já é
um código) e o usuário, com todo o seu aparato "cultural". Adicionalmente, a
representação do conhecimento na Ciência da Informação utiliza os dois
significados de conceito apresentados por Abbagnamo, unindo a essência do
objeto ao seu signo, sendo a semiologia e a lógica os fundamentos teóricos
básicos dos processos de transferência da informação.
Se a representação das ações sociais já significa, de certo modo, o
primeiro estágio do processo seletivo para a formação das memórias, resta-
nos averiguar em que condições essas memórias emergenciais podem se
transformar em documentos do social. Entramos, assim, no terreno da síntese,
ainda que no nível organizacional, o que é objeto do próximo capítulo.
106

NOTAS E REFERÊNCIAS DO CAPÍTULO 2

1
CALVINO, Italo. As cidades e os símbolos. In: ____. As cidades invisíveis. Trad. Diogo
Mainardi. 2. imp. São Paulo : Compahia das Letras, 1990. p. 17-18.
2
JARDIM, José Maria. Cartografia de uma ordem imaginária : uma análise do sistema
nacional de arquivos. Rio de Janeiro, 1994. (Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em Ciência da Informação da Escola de Comunicação da Universidade
Federal do rio de Janeiro)
3
JARDIM, op. cit. p. 98
4
GOMEZ, Maria Nelida Gonzalez. A representação do conhecimento e o conhecimento
da representação : algumas questões epistemológicas.Ciência da Informação,
Brasília, v.22, n.3 p. 217-22, set./dez. 1994.
5
ibid.
6
ibid.
7
ABBAGNAMO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo : Mestre Jou, 1970.
8
ibid. p. 153.
9
ibid. p. 154.
10
DAHLBERG, Ingetraut. Knowledge organization and terminology : philosophical and
linguistic bases. International Classification, v.19, n.2 , p. 65-71, 1992.
11
ibid. p. 67
12
NOCETTI, Milton A., FIGUEIREDO, Regina Célia. Línguas naturais e linguagens
documentárias : traços inerentes e ocorrências de interação. R. Bibliotecon., Brasília,
v.6, n.1, p.23-27, jan./jun. 1978.
107

13
ECO, Umberto. A estrutura ausente : introducão à pesquisa semiológica. São Paulo :
Perspectiva, 1991. p. 32.

Várias correntes da Linguística contemporânea reconhecem uma dupla


articulação da língua. Na língua, articulam-se entre si unidades de primeira
articulação, unidades essas dotadas de significado (a linguística européia chama-as
monemas e a linguística norte-americana, morfemas) e identificáveis, embora nem
sempre, com a palavra. Tais unidades combinam-se entre si e formam unidades mais
vastas chamadas sintagmas. Mas as unidades de primeira articulação, que podem
ser numerosíssimas no interior de uma língua, como o demonstram os dicionários,
constroem-se combinando entre si unidades de segunda articulação , os fonemas,
dotados de valor diferencial uns em relação aos outros, mas desprovidos de
significado.
14
ECO, Umberto. A estrutura ausente. op. cit p. 90, 91
15
ibid. p. 16
16
NOVAES, Adauto. Cenários. In: Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
17
ibid. p.
18
ibid. p.
19
ibid. p.
20
BARRETO, Aldo Albuquerque.
21
ECO, Umberto. op. cit. p. 32
22
ibid. p. 45
23
FARRADANE, J. Knowledge, information, and information science. Journal of
Information Science, n. 2, p.75 -80, 1980.
24
ECO, op. cit. cap. 5
25
Ibid. p. 88
26
SPIRKIN, A.G. Origen del lengaje y su papel en la formacion del pensamiento. In: LES
THEORIES de l’action. Paris : Hachette, 1972.
27
MERLAU PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo : Perspectiva, 1992. p22
28
GORSKY, D.P. Lengaje y conocimiento. In: PENSAMIENTO y lengaje. Mexico :
Crijalbo, 1966. p. 68-105.
108

29
RICHAUDEAU, F. Langage et action. In: LES THÉORIES de l’action. Paris : Hachette,
1972.
30
Alguns linguistas e psicólogos contestam essa tese, principalmente os discíplos de
Piaget, que deduziram de seus trabalhos experimentais a pré-existência do
pensamento sobre a linguagem. Cf. Richaudeau, op. cit. p. 208. No entanto, vale a
pena investigar se os experimentos piagetianos são da ordem da ontogênese apenas,
ou se extedem também à filogênese.
31
ECO, Umberto. Semiótica e filosofia da linguagem. São Paulo: Ática ,1991.
32
PINTO, Milton J. As marcas linguísticas da enunciação: esboço de uma gramática
enunciatica do português. Rio de Janeiro : UFRJ, 1988.
33
JOLIVET, Régis. Curso de filosofia. Rio de Janeiro : Agir, 1965.
34
SHOHAM, Y. Agent-oriented programming. Artificial Intelligence, v. 60, n. 1, mar.
1993.
35
BENTES, Ivana. Uma rede eletrônica planetária. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
Caderno Idéias, 2 de julho, 1994.
36
SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. 8. ed. Rio de Janeiro : Bertand, 1989.
37
ibid. p.70
38
ibid. p. 109
39
VIRILIO, Paul. A máquina de visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. p. 9
40
ibid. p.35
41
ibid. p.17
42
VIRILIO. op. cit. p. 30
43
ibid. p. 86.
44
HEIDEGGER, Martin. O fim da filosofia ou a questão do pensamento. São Paulo : Duas
Cidades, 1972. p. 40
45
VATIMO, Gianni. As aventuras da diferença : o que significa pensar depois de
Heidegger e Nietzsche. Lisboa : Edições 70, 1980. p. 49 - 67.
3 ORGANIZAÇÃO DA MEMÓRIA DOCUMENTÁRIA

“... Quem somos nós, quem é cada um de nós senão


uma combinatória de experiências, de informações, de
leituras, de imaginações? Cada vida é uma
enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de
objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode
ser continuamente remexido e reordenado de todas as
maneiras possíveis.”

CALVINO,Italo. Seis propostas para o próximo milênio, p.138


De que valeria todo o conhecimento produzido se não pudéssemos ter
acesso a ele, de todas as formas e em todos os momentos? Do ponto de vista
da organização do conhecimento para a classificação e recuperação de
informações bibliográficas, Dewey1 baseou-se nos questionamentos do ser
humano quanto à sua existência e convivência social, para conceber uma
classificação acerca de todo o conhecimento humano. Dewey escolheu os
assuntos imaginando que era um ser pré-histórico ou primitivo. Fêz a si
próprio perguntas cujas respostas passaram a representar os assuntos ou
classes principais de sua classificação. A primeira - Quem sou eu? - gerou o
agrupamento de temas em torno da Filosofia e da Psicologia; a segunda -
Quem me fez? criou a classe Religião; a terceira - Quem é o homem da
caverna ao lado? criou a classe de Ciências Sociais; a quarta - Como eu
posso me comunicar com aquele homem? criou a classe de Filologia; a quinta
- Como eu posso compreender a natureza e o mundo que me cerca? criou a
classe da Ciência; a sexta - Como eu posso usar o conhecimento que tenho
sobre a natureza? criou a classe das Ciências aplicadas e Artes práticas; a
sétima - Como posso aproveitar meu tempo de lazer? criou a classe de Belas
Artes e Recreação; a oitava - Como posso deixar para meus descendentes o
registro dos feitos humanos? - criou a classe de Literatura; a nona - Como
posso deixar para o fututo um registro das ações do homem? - criou a classe
de História, Geografia e Biografia. A décima classe Dewey reservou para as
obras de Referência ou seja, obras que tratam de vários assuntos ou que são
indicadoras de localização de assuntos específicos. Portanto, Dewey utilizou
como modelo para sua abstração o ciclo de vida do homem na sociedade.
Neste capítulo, ressaltando do universo do conhecimento a organização
da memória social, tomamos como modelo de observação o ciclo de
produção de conhecimento adotado pela Ciência da Informação. Como disse
Samuel Johnson2, o conhecimento é de dois tipos: conhecemos um assunto
111

por nós mesmos ou sabemos onde podemos encontrar a informação sobre ele.
No último caso, o conhecimento torna-se público, formando estoques de
informação que precisam estar organizados para a socialização do seu uso. Se
nos capítulos anteriores nosso objeto de análise foram as ações causadoras da
transformação dos objetos do cotidiano social em documentos representativos
da memória social, neste momento nosso olhar se volta à organização da
memória documentária. Essa memória, seletiva como as demais, não reúne
mais objetos e sim representações materiais do conhecimento produzido pela
sociedade. A materialidade, seja qual for o suporte, é a garantia da efetivação
da transferência da informação.
Mesmo que as preocupações atuais estejam voltadas para a seleção
de informações dentro das grandes redes interligadas pelo teleprocessamento,
essa necessidade de acesso diz respeito mais às fontes de informação e menos
à informação primária propriamente dita. Para exemplificar, podemos citar a
preocupação de uma instituição americana que ao projetar um banco de
objetos museológicos (museu virtual) disponibilizado pela Internet, visava
apenas a motivar o público a visitar os museus. Lá, em cada museu, a
materialidade está presente com toda a sua força modificadora de
comportamento e, portanto, transformadora do conhecimento.
Embora tenhamos falado em representação como um estágio da seleção
social dos objetos produzidos pelo homem, a formação de conjuntos de
registros para espelhar a síntese de aspectos de determinada cultura ou
culturas, em uma leitura mais concreta, é representada pela intencionalidade
na localização de vestígios, artefatos, textos, objetos, monumentos, com o
intuito de interpretar os fatos históricos e sociais. A reunião desses registros
proporciona uma fonte inesgotável de informação potencial, à espera de
interlocutores, que agregarão a esses a sua tábua cultural, ou seja, sua
experiência de vida, unida à sua capacidade de associação. O resultado desse
112

processo se dá, prioritariamente, sob a forma de relatos, que, por assim dizer,
se transformam em outros registros, numa cadeia inesgotável de
fontes/interpretações.
Tal como em Dewey, a importância do relato é analisada em vários
campos do saber que ainda admitem, como nas estruturas político-sociais em
vigor, a informação registrada como suficiente para a aceitação pública das
ações sociais. O registro, em qualquer suporte material, permite a crítica e
torna-se o processo informacional necessário à formação dos estoques de
informação. A organização propriamente dita desses registros diz respeito aos
processos de análise e síntese do conteúdo informativo do objeto, bem como
à transformação desse objeto em uma ou mais unidades de conhecimento
manipuláveis e compreensíveis por parte do usuário, para que haja a
possibilidade, de fato, da transferência da informação e da consequente
geração de novos conhecimentos. Todo o processo discutido tem como
direção, contudo, a conceituação de documento para a memória social.

3.1 A materialidade e o registro. O relato, sua essência e seu significado


de prova

Dentre os vários campos de estudo que têm no relato a sua fonte de


validação encontram-se o Direito, a História e a Arqueologia. Todos eles têm
em comum a noção de igualdade entre o conceito de documento e o conceito
da prova ou da evidência dos fatos. No Direito, as provas podem ser obtidas
por quatro espécies de informação: a nota judicial, que é representada pelo
senso comum da comunidade na qual o fato se deu, ou seja, o conjunto de
valores, crenças, enfim a cultura local; a prova real, representada por objetos
físicos tangíveis colocados à disposição do júri e do juiz para exame; a
prova testemunhal, que implica na presença física da testemunha relatando os
fatos e; a prova documental, representada por objetos, ainda que fisicamente
113

tangíveis, acrescidos de informações registradas, significando um relato


descritivo de uma ação concreta, ou de uma vontade ou desejo (por exemplo,
um testamento). Assim, para o Direito, o conceito de documento pode ser
representado pela interseção do conjunto dos atributos de objeto (prova real)
com o conjunto dos atributos do relato (prova testemunhal). Nesse caso, está
explicitamente evidenciada a necessidade do registro da informação em
qualquer meio físico, passível de reprodução. Do ponto de vista das
tecnologias de registro, o conceito da prova documental evolui, passando a
incorporar a esta outros suportes materiais, como: filmes, fitas etc.
No que se refere à História, esta toma emprestado ao Direito o conceito
de prova para qualificar suas fontes de pesquisa. Embora existam discussões
acerca da amplitude conceitual de documento, o fato é que na História, assim
como no Direito, o relato é fundamental como garantia de um potencial
documento. A esse respeito Marrou3 concorda que constitui um documento
toda fonte de informação de que o espírito do historiador sabe extrair
alguma coisa para o conhecimento do passado humano, considerado sob o
ângulo da questão que lhe foi proposta. É perfeitamente óbvio que é
impossível dizer onde começa e termina o documento; pouco a pouco, a
noção se alarga e acaba por abranger textos, monumentos, observações de
todo gênero. Mas, prossegue o autor4, resistamos à moda, tão difundida, do
paradoxo: qualquer coisa pode tornar-se um documento para qualquer
questão... Isto é verdadeiro, desde que se insista no coeficiente potencial.
(grifo nosso). Febvre5, citado por Marrou, polemiza a propósito do valor
restritivo que nota na fórmula atribuída a Fustel de Coulanges: A história faz-
se com textos. A existência de várias outras fontes de documentação é
incontestável e esse fato é aceito por Marrou, embora ele afirme que, se uma
pintura de Henrique VIII, por exemplo, é muito mais rica em detalhes,
nuances e sentimentos do que um texto descritivo sobre a fisionomia do
114

retratado, ainda assim é necessário que, por meio de textos, haja a


certificação de que aquele retrato é mesmo de Henrique VIII. A esse respeito
podemos exemplificar com a grande polêmica que causou a Exposição
“Rembrandt/Not Rembrandt”, inaugurada em outubro de 1995 no
Metropolitan Museum de Nova Iorque e que teve por objetivo não apenas
exibir as majestosas obras do pintor holandês, mas também compará-las com
quadros supostamente pintados por alunos e assistentes. Sob o título “Falso X
Verdadeiro”, André Barcinski6 argumenta que Rembrandt Van Rijn (1606-
1669) é um artista tão amado quanto desconhecido. Os estudiosos da pintura
vêm vasculhando há séculos sua vida e obra, tentando separar os fatos da
ficção. Não é uma tarefa fácil. Rembrandt só deixou sete cartas e o material
documental sobre sua obra é escasso.
Quanto à Arqueologia, a esta cabe a descoberta dos vestígios
materiais
da presença do homem, isto é, dos artefatos e dos objetos com os quais o
homem se relacionou ou usou, e ainda a análise, a interpretação e a
divulgação desses achados. Na verdade, a Arqueologia faz a seleção
necessária do universo de objetos que servirão de reconstrução do passado,
permitindo, assim, o estudo da história da cultura dos povos. O conceito de
documento para o arqueólogo implica também na noção de registro, uma vez
que seu trabalho e a razão de sua atividade não se restringem apenas ao
objeto mas, sobretudo, à interpretação dele.
Pacheco7 discute, com muita propriedade, a questão da contextualidade
nas análises arqueológicas ao afirmar que, tendo como seu objeto de estudo a
cultura material, os arqueólogos há muito descobriram que estudar qualquer
tipo de artefato fora de seu contexto cultural é um esforço praticamente
infrutífero. Citando Hodder, aponta que as relações culturais não são
causadas por nada além delas mesmas. Elas apenas são, e a tarefa dos
115

arqueólogos é a de interpretar este componente irredutível da cultura de


forma que a sociedade por trás da evidência material possa ser lida. Assim,
considera os artefatos em três dimensões: espaço, tempo e forma. A análise
espacial tenta dar conta da dimensão do sítio, das rotas de migração dos
grupos e do possível contato entre grupos. A análise temporal é quase
totalmente baseada na disposição das camadas estratigráficas. Através delas
tenta-se inferir quanto tempo o grupo permaneceu naquele determinado lugar
e se sofreu diferentes estágios de desenvolvimento. A análise morfológica
lida com os artefatos propriamente ditos, suas características tipológicas,
funcionais e tecnológicas. Assim, o contexto é percebido no intercruzamento
destas três dimensões e é apenas através dele que o traço cultural pode ser
interpretado. Além disso, completa Pacheco8, o estudo dessas dimensões não
é feito apenas de presenças, mas principalmente pelas ausências, uma vez que
a Arqueologia lida muito mais com a falta, tendo o arqueólogo que
desenvolver mecanismos especiais para entender o silêncio. Esse silêncio que
não é particular à Arqueologia, mas a todas as ciências, não representa a
morte, pelo contrário, ele “significa”, embora só quando relativizado.
A Arqueologia nos fornece, portanto, o apoio necessário a duas
questões fundamentais. A primeira no que diz respeito à seleção dos objetos
que, potencialmente, possam vir a se transformar em documentos. A
segunda, é a confirmação de que o significado é contextual e, portanto, o
artefato visto em dimensões isoladas não é ainda um documento.
Os documentos, em geral, pertencem a categorias de valor, ou inerentes
à sua criação ou atribuídas posteriormente, em função de um julgamento
próprio de cada disciplina. Sem entrar no mérito da veracidade ou da
falsidade, que já é uma interpretação em função de outras provas correlatas, é
importante destacar a questão da originalidade. Quer dizer, tal documento é
original e não é uma cópia. No caso dos documentos textuais, até há bem
116

pouco tempo atrás essa era uma questão pacífica, uma vez que ou se produzia
um manuscrito ou se obtinha um original datilográfico, onde se podia
identicar nitidamente a diferença da cópia carbonada. Mesmo com o advento
das máquinas copiadoras por processos eletrostáticos, a cópia sempre era
reconhecida como tal. Até hoje, apesar da editoração eletrônica produzir
vários originais de um mesmo texto, tal como uma edição gráfica,
juridicamente esta tem de ser reconhecida em cartório. Na verdade, embora
os cartórios estejam informatizados, ainda resta a assinatura em tinta, o que
garante a originalidade
do documento.
Os outros valores documentais dizem respeito às fontes e, assim, para a
História, existem as fontes primárias e as fontes secundárias e terciárias. As
primárias referem-se ao primeiro documento que registrou uma ação social,
com pouco ou nenhum conteúdo interpretativo. São essas as mais importantes
para o historiador, uma vez que a isenção crítica lhe permite extrair do
documento o fato com a maior proximidade possível da época em que este
ocorreu e, mais importante, com um desvanecimento ou efervescência
potencialíssimos. Normalmente, as fontes primárias são representadas por
manuscritos na forma de cartas, certidões, registros contábeis, populacionais
ou de qualquer outro tipo. Marrou9 afirma que as poucas fontes primárias que
possuímos estão representadas pelos documentos arqueológicos, as inscrições
e os papiros descobertos ao sabor das escavações, em virtude, portanto, de
uma “seleção” ao acaso. As fontes secundárias ou terciárias são, então,
representadas pela narrativa ou por fontes literárias. No caso da Arqueologia,
portanto, todas as fontes são consideradas primárias.
Como complementação à discussão do valor documental e do relato
como prova, vale lembrar que a Biblioteconomia e a Arquivologia entendem
documento primário, secundário e terciário de forma bem diferente. Para os
117

Arquivos, que não fazem distinção das fontes do ponto de vista


metodológico, os documentos são de valor primário quando representam uma
ação ainda em curso, o que os coloca na esfera dos arquivos correntes (files,
para os americanos). Após esta etapa, caso tenham sido avaliados como
importantes para o estudo e pesquisa, aí sim se transformam em fontes
permanentes, incorporando um valor secundário à ação corrente, passando a
constituir as fontes de prova documental. Assim, para a Arquivologia, o
conceito de documento se restringe à representação das fontes permanentes
ou arquivos
propriamente ditos.
A Biblioteconomia conceitua documento primário, secundário e
terciário utilizando atributos mais próximos daqueles empregados pela
História, embora com o sentido de redução semiótica. A avaliação
bibliográfica se pauta pelo grau de representação da informação. Assim,
primário é o texto completo do autor, o livro, o artigo de periódico, a tese, a
patente. Secundário e terciário são as representações reduzidas, ou
referências ao texto completo, e são
chamadas de bibliografias ou bibliografias de bibliografias.
O conceito de valor documental, embora inerente ao documento e não
ao objeto, varia segundo as perspectivas ou olhares de seus interlocutores,
podendo um mesmo objeto ser representativo para a coleção bibliográfica e
não o ser para a acumulação arquivística. Da mesma forma que um Museu
paulista, ao expor uma cópia eletrostática da Lei Áurea, por motivo de
preservação do original, retoma a questão da fonte primária na História e na
Arqueologia.

3.2 A organização da memória documentária. Meios de manutenção de


estoques de informação para a preservação da memória social
118

Independentemente da questão do valor, que é um atributo móvel e,


portanto, não permanente, em um dado instante é necessário dar uma ordem a
esses objetos que já se constituem em documentos, uma vez que estes foram
selecionados para pertencer a um conjunto (coleção, no caso de bibliotecas e
museus e acervos orgânicos, no caso de arquivos). Tais conjuntos vão se
constituir em memória se deles pudermos obter os cruzamentos
representacionais necessários à recuperação, ou seja a possibilidade de
localização e acesso à fonte primária. Caso contrário, esses conjuntos
permanecerão no plano da virtualidade, ainda que já se constituam em objetos
que já sofreram uma primeira interlocução, quando de sua seleção.
As coleções podem ser analisadas, dentre variados prismas, pela sua
forma estrutural. Assim, a estrutura da memória documentária é constituída
de uma matriz complexa que pode melhor ser exemplificada sob a concepção
sistêmica. Os dados de entrada são as representações das demandas de
informação pelo público ou usuários e pelas representações informacionais
do acervo ou coleção. O sistema processa essas representações, comparando-
as e devolvendo-as sob a forma de representações direcionadas a cada
demanda. A retroalimentação é garantida pelas novas produções intelectuais
que serão selecionadas para o ingresso no sistema de informação. Esse
processo, denominado de Recuperação da Informação, pode ser considerado
como um filtro, pelo qual só transitam as informações demandadas, embora
nem sempre essas se configurem como as necessárias.
A estrutura da memória documentária, ao garantir a localização da
informação, já permite o acesso, no sentido da fonte documental para a
História, ao documento original. Isto é, embora o paradoxo da Ciência da
Informação se inicie nesta fase - reduzir simbólica e semanticamente a
informação para se ter acesso a um maior número de fontes diversificadas - ,
119

a Ciência da Informação permite ao usuário chegar ao original, em toda a sua


plenitude. Embora as tecnologias da informação venham se desenvolvendo
no sentido da virtualidade de acervos e coleções, os originais continuam a ser
os objetos, armazenados em instituições de memória que se interligam às
grandes redes de teleprocessamento para fins de divulgação.
O que muda, no tocante ao convívio com as estruturas de
memórias
documentárias, não é o desenho do sistema, as operações lógicas ou intuitivas
de navegação pelos filtros de informação mas, como pondera Virílio10, a
questão diz respeito à velocidade pela qual as informações entram e saem do
sistema. O valor dos documentos passa a ser atribuído, concretamente, pelo
usuário, em detrimento do organizador dos filtros informacionais.
Toda essa experiência da Ciência da Informação faz com que ela se
mantenha na vanguarda das estratégias relativas ao processo de transferência
da informação e, como responsável pelo acesso à fontes primárias, as
discussões sobre o conceito de documento, no seu âmbito, não podem ser
omitidas.
O marco inicial dos questionamentos acerca do conceito de
documento como fonte de pesquisa e disseminação da informação, bem como
de suas relações com as disciplinas envolvidas em seu estudo, se dá no final
do século XIX com Paul Otlet e Henry de la Fontaine. Eles usam a palavra
Documentação como o símbolo conceitual da ciência e das técnicas gerais do
documento, emprestando ao vocábulo um sentido mais amplo que o de livro,
afirmando que aquele compreende não só os textos manuscritos ou
impressos, qualquer que seja sua forma, mas todos os sinais visuais, auditivos
e sensoriais suscetíveis de transmitir uma informação.
Tal ampliação do conceito de documento nos parece, certamente, ter
uma relação direta com o desenvolvimento das tecnologias de fixação
120

material de qualquer tipo de informação, embora Otlet se referisse aos


documentos de Arquivo, Museu e outras instituições que preservassem
informações úteis aos desenvolvimento do conhecimento humano, em todas
as suas perspectivas. Vale ressaltar que o trabalho de Otlet teve como prática
operacional o desenvolvimento científico e tecnológico, não só pelo processo
de industrialização acelerado do início do século, como pelo reflexo dessa
situação na produção de conhecimentos. Assim é que, se na antiguidade o
grande avanço na comunicação entre as pessoas foi ocasionado pela
descoberta da escrita, fixada nos papiros, por exemplo, sem falar em outros
registros, marcas e evidências da existência do homem, hoje constatamos que
os meios ótico e magnético têm cumprido relevante papel na troca de
informações, com a consequente preservação de uma dada cultura. Portanto,
quando Otlet fala em ampliar o sentido de livro, na verdade está mesmo
ampliando o conceito de documento. Na tentativa de rever a trajetória da
idéia de documento, embora considerando uma “navegação” rumo ao
passado, os recortes no discurso teórico terão como pontes ao presente a
abordagem comparativa entre o universo informacional de duas épocas, de
Paul Otlet e da Documentação e o momento atual da Ciberação11.
Vicentini12, conselheiro da FID ( Fédération International
de
Documentation), expôs uma síntese da evolução do conceito de
Documentação ao analisar a trajetória da Biblioteconomia à Informática em
artigo que se tornou clássico não só pela riqueza de conceitos discutidos,
como pela excelência e exaustividade das 374 referências bibliográficas
citadas. A palavra Documentação, embora criada por Otlet, nasce do já
conhecido termo Documento (do latim: documentum = docere = ensinar). No
entanto, qualquer que seja a definição de documento, é consenso na literatura
que o seu conceito é a síntese das idéias de informação e suporte material. De
121

toda a genealogia construída por Vicentini, vale destacar os discursos de


Malclés e de Otlet.
Malclés apud 13 classifica os documentos em quatro grupos principais:

a) Documentos gráficos, incluídos aí os manuscritos (objeto de estudo


da paleografia) e os impressos (objeto de estudo da bibliografia);
b) Documentos iconográficos, constituídos por retratos, desenhos,
gravações, fotografias, ilustração, mapas, quadros etc;
c) Documentos plásticos, tais como selos, moedas, medalhas etc; e,
d) Documentos fônicos, como discos, fitas etc.

A partir desta classificação, Malclés constrói uma hierarquia


documental que chamou de Documentografia ou seja, o gênero comum do
qual derivam todas as espécies de documentos, tal como no gráfico abaixo:

DOCUMENTOGRAFIA

Documentografia Geral Documentografia Especial

Iconográficos Plásticos Fônicos Gráficos

Apesar de organizar os conceitos de forma hierárquica, usando como


diferença específica o atributo texto, Malclés constrói uma “ciência geral do
documento” na qual estão subordinadas a Paleografia e a Bibliografia (caso
dos documentos gráficos, Documentografia Especial), deixando em aberto a
122

Documentografia geral. Otlet, por sua vez, identifica a Documentação à


Bibliologia, fazendo desta uma disciplina geral, de conteúdo vastíssimo, pois
segundo sua concepção, a mesma abrangeria o conjunto sitematizado dos
conhecimentos relativos à produção, conservação, circulação e utilização dos
“escritos” e “documentos” de todas as espécies. Ainda assim fica clara a
identidade dos dois discursos, uma vez que ambos fazem a distinção entre
texto e não texto. Porém, Otlet avança ainda mais na idéia de documento já
que considera as relações existentes entre o documento e a sociedade,
dividindo a Documentação ou Bibliologia em:
a) Bibliologia lógica, que trata das relações do livro com a exposição
da ciência;
b) Bibliografia psicológica, que se refere às relações do livro com o
autor;
c) Bibliologia tecnológica, que estuda as relações do livro com os
meios materiais de sua fabricação e difusão; e,
d) Bibliologia sociológica, que compreende as relações do livro com a
comunidade em cujo ambiente nasce e para a qual está destinado.

Parece-nos que essa última relação é a mais geral, conquanto absorve


em sua definição todas as três anteriores. Vicentini discorre, ainda, sobre
outras tantas definições, que vão dos conceitos de documento mais simples
aos mais complexos, ora tendendo a considerar a documentação como
técnica, ora como ciência. Conclui que, de toda a discussão, os autores são
unânimes em afirmar que a Documentação se preocupa “também” com o
material não livro, destacando ele próprio a corrente de pensamento com
ênfase no conteúdo informativo, em detrimento ao suporte material.
A palavra Documentação é assim criada e o seu conceito passa a
fomentar discussões acerca da posição das demais disciplinas face à nova
123

disciplina emergente. No caso da Biblioteconomia, surgem três correntes


de
pensamento:

a) Infraposição ⇒ a Documentação é uma especialidade da


Biblioteconomia;
b) Superposição ⇒ a Documentação é mais ampla do que a
Biblioteconomia, já que trata das propriedades da informação,
independente de seu suporte material; e,
c) Justaposição ⇒ Documentação e Biblioteconomia são
consideradas disciplinas independentes, cada qual com seus objetos
e métodos distintos.

Segundo Vicentini, a controvérsia entre os autores chegou a tal ponto


que Rost apud 14 compilou uma bibliografia sobre o assunto e a International
Federation of Library Association, em 1966, dedicou sua reunião anual ao
tema, tendo concluído com a proposta da criação de um novo nome que
contemplasse as atividades desenvolvidas pelas duas disciplinas, sendo este o
marco do aparecimento da Ciência da Informação. Sem pretender um
aprofundamento nessa discussão, vale observar que um dos poucos aspectos
relativos à Ciência da Informação para o qual existe algum consenso, é que
ela deita raízes na Biblioteconomia/Documentação e na Informática. O
quanto herdou de cada uma, e o quanto deve a outros domínios do
conhecimento, como a linguística, a comunicação, a psicologia e a teoria
geral dos sistemas,
já não são questões pacíficas.15
124

Rayward16, em artigo recentemente publicado no JASIS, afirma que


Paul Otlet é uma importante e negligenciada parte da história da Ciência da
Informação, uma vez que, junto com os colegas belgas, criou um complexo
de organizações, em tudo semelhantes aos atuais sistemas de
hipertexto/hipermidia. No seu Traité de Documentation (1934), um dos
primeiros tratados sistemáticos do que hoje pode-se chamar de Ciência da
Informação, Otlet especula sobre telecomunicações, conversão texto-voz e
sobre o que era necessário para as estações de trabalho
computadorizadas,
embora, é claro, ele não tivesse usado essa teminologia.
Uma das grandes contribuições de Otlet, além de ampliar o conceito
tradicional de documento, foi a de estender essa ampliação ao conceito de
bibliografia, hoje nomeada de base de dados, quando em meio ótico ou
magnético. O desenvolvimento de um sistema que permitisse uma racional
organização do conhecimento foi a meta de Otlet, que iniciava o convívio
com a explosão documental, ou, como chamou posteriormente Bradford, o
Caos Documentário.17 O sistema idealizado partia de um princípio que Otlet
chamou de “princípio monográfico”. A idéia era a de registrar partes do
conteúdo de uma obra isoladamente em fichas, o que permitiria uma
organização temática mais verticalizada. Essa técnica pode ser comparada
hoje à construção dos hipertextos, onde o usuário não percorre o “texto” de
forma linear, mas “navega”, a partir da construção de estratégias de busca
singulares das cadeias de informação, pelas partes, ou nós de classes de
informação. Assim, o usuário pode se movimentar da referência bibliográfica
ao texto completo, à imagem, ao som, a outras referências, a outras imagens;
parafraseando Umberto Eco, numa navegação in progress.
Além disso, no que diz respeito à representação da informação para a
recuperação posterior por múltiplos usuários, ou à forma de descrever a
125

informação de modo a manter uma síntese do pensamento do autor, Otlet


sugeria que o “princípio monográfico” deveria ser aplicado aos resumos
(abstracts) que acompanhavam as referências bibliográficas, e que serviam
como um refinamento à pesquisa de fontes. A idéia era destacar o que o livro
amalgamava, para reduzir tudo que fosse complexo a unidades passíveis de
serem descritas em folhas ou fichas separadas. O sentido, portanto, era o de
recuperar apenas o que fosse de novo no conhecimento já disseminado.
Assim, Otlet sugeria a desconstrução do texto para sua reconstrução, a
partir das
seguintes constatações:

a) os livros apresentam apenas parte do conhecimento científico


(completitude)
b) apresentam conhecimentos falsos e verdadeiros (erro)
c) apresentam a mesma coisa mais de uma vez (repetição)
d) dividem a mesma informação por vários setores ou capítulos
(dispersão)
e) não apresentam a informação por graus de importância (valor)

Sem dúvida, embora na tentativa da imparcialidade, só se pode


desconstruir e refazer um texto em função de determinações arbitrárias, uma
vez que toda e qualquer classificação só opera no sentido da arbitrariedade. O
sonho de Otlet em relação à construção do “Livro Universal”, organizado por
áreas particulares do conhecimento, nunca foi concretizado, certamente pelo
envolvimento do valor atribuído às escolhas, do tipo: o que é falso?, o que é
verdadeiro?, o que está disperso?. Tais julgamentos só podem ser efetuados
pelo interlocutor, assim mesmo num dado instante, pois num tempo
126

diferente, para a mesma pergunta formulada, as respostas podem ser outras. A


virtualidade é, neste caso, indiscutível. 18
Embora o objetivo de Otlet não tenha sido alcançado nesse sentido, as
suas idéias foram extremamente úteis no que se refere à análise e síntese dos
conteúdos informativos. O princípio da indexação da informação e da
construção de resumos para facilitar a recuperação da informação contou com
as regras de Análise Documentária criadas para a organização do “Biblion”
ou Livro Universal, ou seja, a literatura deve ser analisada, isolando-se quatro
categorias gerais: fatos - interpretação dos fatos - estatísticas - fontes.
Além disso, outra contribuição importante ao acesso às fontes
bibliográficas foi o desenvolvimento das normas técnicas para a descrição da
forma e do conteúdo bibliográfico. Inegavelmente, Otlet e sua equipe nos
legaram as bases do que chamamos hoje de redes de informação, que
funcionam interligando as representações do conhecimento em todos os
campos do saber, para todos os tipos de objetos e relatos, ainda necessitando
urgentemente de normalização. Essa normalização diz respeito aos formatos
de apresentação da informação, aos protocolos de acesso às bases de dados,
enfim, a uma nova linguagem que de documentária passa a cibernética, que,
em alguns casos, se aproxima da linguagem pictórica, dos hieróglifos.

3.3 A teoria geral da memória documentária


Segundo Wanderley19, toda coleção documentária pode ser
representada por um quadro de entrada dupla chamado usualmente Matriz
Documentária, em que se atribui cada linha a um documento e cada coluna a
uma das múltiplas características a partir das quais os documentos serão
ulteriormente procurados. Com base nessa representação simbólica seria
possível edificar a teoria geral da organização das memórias documentárias
127

ou o conjunto de elementos que permitem o acesso aos documentos de uma


coleção a partir de
suas características, e a sistemática dos processos de seleção.
O primeiro aspecto sob o qual pode ser encarada, o concreto, torna tal
representação uma imagem geométrica da estrutura material da memória; o
outro, o abstrato, prende-se ao conteúdo ideológico da coleção, isto é, à
organização de dados e das noções das características dos documentos nela
contidos. Salvo raríssimas exceções, as coleções documentárias ultrapassam,
quer horizontal, quer verticalmente, a possibilidade de utilização de
semelhante matriz materializada de modo direto no papel, num espaço e em
duas dimensões.
Cada célula de memória é igualada ao elemento seletivo obtido pela
escolha do cruzamento de atributos ideológicos com a sequência material da
disposição dos documentos. Tal cruzamento é, no entanto, limitado à escolha
de atributos feita pelo analista da informação e, ainda, à dificuldade imposta
pela própria natureza da linguagem natural, na qual se apresentam tanto os
documentos como os pedidos de busca informacional na coleção. Tanto pelo
aspecto quantitativo, isto é, número de atributos escolhidos, como pelo
qualitativo - possibilidades de interpretações semânticas - , a memória
documentária ainda se caracteriza como memória virtual de acesso ao
documento primário. Ela não oferece a garantia do acesso, apenas a
possibilidade.
Como uma das questões mais importantes na intermediação de
documentos e usuários é o meio de comunicação que o sistema de
recuperação utiliza, o papel das linguagens documentárias continua a ser
fundamental na estruturação das estratégias de localização e filtragem da
informação.
128

Formalmente, as Linguagens Documentárias são aquelas que,


lógicamente construídas, servem de interface entre os documentos
armezenados em uma base de dados (bibliotecas, centros de documentação,
centros de informação) e as necessidades de informação do público (usuários)
que pesquisa essas bases de dados. Público e documentos formam, assim, os
componentes de entrada do sistema de recuperação da informação. Tanto
documentos quanto perguntas são apresentados em linguagem natural e,
"naturalmente", os problemas de polissemia e dispersão terminológica vão
interferir no resultado final da busca, ou seja, o processo pelo qual se
recupera de um universo de informações aquelas que são relevantes
para uma
determinada necessidade de informação.
Embora existam correntes de pensamento que consideram a linguagem
natural o meio atual de pesquisar nas grandes redes de oferta de informação,
a linguagem formal, estruturada com a economia simbólica de um
determinado campo de assunto, é ainda a mais útil para recuperar conjuntos
de documentos ou unidades de conhecimentos dispersos por vários “canais”,
ou seções das redes de informação.
As Linguagens Documentárias, a par de guardarem uma relação
estreita com a linguagem natural, de vez que possuem um vocabulário ou
léxico e uma estrutura ou sintaxe, representam o conteúdo informativo de um
documento operando por análise e síntese. Quer dizer, a linguagem natural é
traduzida para uma linguagem sintética - palavras-chave, descritores - a qual,
retida na memória do catálogo tradicional ou da máquina, significa economia
verbal, economia de símbolos, economia de espaço. Mas, certamente,
significa também economia de significado.
A idéia de significado, fundamental aos estudos terminológicos para
sistemas de recuperação da informação, nos conduz, entre outras, à seguinte
129

pergunta: em que situação podemos afirmar que a redução de palavras reduz


o conhecimento? Já vimos anteriormente que, de acordo com as teorias da
comunicação e da linguística, a palavra é em si redutora do pensamento.
Existe um nível de redução implícito no nascimento de um conceito
comunicado. Mas, até agora, estamos falando de redução qualitativa, ou seja,
um texto científico já é redutor do pensamento potencial de seu autor. O
paradoxo da representação do conhecimento na Ciência da Informação está
diretamente ligado às formas do saber. Como conhecer tudo, senão pela
síntese, pela representação? Como aceitar a redução semiótica como o único
caminho do conhecer?
Talvez na condução do problema deva ser levado em conta o aspecto
quantitativo. Nesse sentido, a Ciência da Informação trabalha com esses
excedentes de informação, uma vez que proporciona, através da síntese, o
acesso a um maior número de fontes sobre dado assunto. A questão nos
parece então que, nesse momento, é importante investigar a correlação da
perda qualitativa e do ganho quantitativo das leituras representadas em
linguagem artificial.
Nesse caso, talvez a reformatação da informação não implique, no
geral, em redução significativa da linguagem natural. Por outro lado, vale
pesquisar o desenvolvimento da capacidade de síntese da linguagem natural,
uma vez que observamos que a linguagem fonética, por exemplo, representou
uma sintetização em relação as linguagens pictórica e ideográfica, não
apresentando redução de sentido, pelo contrário, aumentando o caráter de
significação, dada a sua capacidade de abstração.
A técnica de buscar uma síntese reveladora é a questão que nos
persegue, seja com a ajuda da velocidade de leitura da máquina (leitura do
texto completo- linguagem natural), seja com a atribuição de signos
reduzidos, porém alimentadores do conhecimento.
130

Na verdade, toda e qualquer representação do conhecimento em


Ciência da Informação talvez deva ser vista como Merleau Ponty20 afirmou
para a pintura: A pintura não é mais vista como representação do real, mas
como forma de sua revelação e expressão. Ou, ainda, essa representação
possa tomar os contornos da comunicação poética, uma vez que, sem
dúvida, um
poema apresenta uma enorme economia de símbolos linguísticos, mas
por outro lado possui um enorme potencial de comunicação.
A memória documentária, constituída de objetos já selecionados e
portanto documentos, operando com economia de símbolos e redução de
significados nos aspectos ideológicos como é demonstrado na estrutura da
sua matriz operacional, é o modelo de processamento da informação, ainda
que virtual, que nos permite chegar ao documento primário, este sim, de
ordem concreta.

3.4 A síntese do virtual e do material


A materialidade da informação é condição necessária à sua
possibilidade de troca. Tanto na geração e na seleção como na organização da
informação, a condição material faz-se presente. Tal que a necessidade da
veracidade da fonte ainda necessita da prova e esta é obtida por certificação
do relato registrado. No discurso de Marrou duas questões contribuem para
nossas segunda e terceira proposições. Uma das questões refere-se à condição
de potencialidade de uma evidência transformar-se em documento, o que nos
leva a caminhar na direção da virtualidade. A outra questão é abordada por
Marrou21 quando ele afirma que um potencial documento é um documento na
medida em que o historiador pode e sabe compreender (grifo do autor) nele
alguma coisa (...) desde esse primeiro contato com o seu objeto material, o
documento, a elaboração do conhecimento histórico mostra-nos em ação a
131

operação lógica fundamental que toda a sequência da nossa análise não


deixará de colocar em cada nível sucessivo do trabalho do historiador: a
compreensão, ‘das Verstehen’. A compreensão ou interpretação diz respeito,
ainda, à interação do eu (pesquisador) com o outro (pesquisado). Essa relação
do conhecimento do outro na experiência presente é o que proporciona o
conhecimento. Ainda em Marrou22, Só compreendemos o outro por sua
semelhança com o nosso eu, com a nossa experiência adquirida, com o nosso
próprio clima ou universo mental. Só somos capazes de compreender aquilo
que, numa medida bastante ampla, já é nosso, fraternal; se o outro fosse
completamente dessemelhante, cem por cento estranho, não se vê como a sua
compreensão seria possível. E conclui que, nessa dialética do Eu com o
Outro, é necessário que o eu sobrepuje nitidamente o outro, uma vez que para
um mesmo objeto material podem haver vários interlocutores.
Tal como explicitado por Umberto Eco e Michel Foucault, há várias
leituras possíveis para um mesmo objeto, dependendo da interação existente
entre o objeto e o sujeito, das condições pessoais na teia dos processos
sociais, ou da tábua de sustentação das interpretações, contribuindo, assim,
para a nossa terceira proposição, a da significação.
Essa interação do Eu com o Outro se dá em diversos planos ou
circunstâncias. De acordo com o estágio de vida do documento, pode-se
afirmar que existe um diálogo entre os autores dos objetos representativos da
memória social e o agente que os selecionou como prova de eventos e ações
culturais. Existe um diálogo entre o objeto selecionado e o técnico que o
inseriu na memória documentária. Existe um diálogo entre documento e o
público ou usuário. Essa última relação, observada na ótica das instituições
de memória, é o objeto do próximo capítulo.
132

NOTAS E REFERÊNCIAS DO CAPÍTULO 3

1
DEWEY, Melvil. Dewey decimal classification and relative index. 18. ed. New York :
Forest Press, 1971.
2
VICKERY, B. C. Knowledge representation: a brief review. Journal of Documentation,
42, n. 3, p. 145-159, Sept. 1982.
133

3
MARROU, Henry-Irénée. A história faz-se com documentos. In: ____. Sobre o
conhecimento histórico. Rio de Janeiro : Zahar, 1978. p. 55-77.
4
ibid. p. 62.
5
ibid. p. 65
6
BARCINSKY, André. Falso x Verdadeiro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Caderno B,
12 de outubro, 1995.
7
PACHECO, Leila Maria Serafim. Informação e contexto: uma análise arqueológica. Rio
de Janeiro, 1992. (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciência da
Informação, CNPq /IBICT- UFRJ/ECO).
8
ibid. p. 83.
9
MARROU. op. cit. p. 57
10
VIRÍLIO, Paul. A máquina de visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
11
M. M. Fl. Information processing. In: ENCYCLOPAEDIA Britannica, 1971, v. 12, p.
244A - 244 B.

Ao tentar fazer uma comparação entre os dois momentos, sugeri o uso do termo
ciberação tendo em vista que o prefixo do vocábulo cibernética, criado por Norbert
Wiener ao lançar o livro de mesmo nome em 1948, é hoje amplamente usado para
compor outros vocábulos tais como: ciberespaço, ciberotecário, ciberconferência etc.
Na verdade, podemos, ainda, encontrar uma garantia literária no verbete da Britânica,
que diz:

Automation and cybernation are two of the many terms that have been coined and are
being used in descriptions of human progress in mechanizing and controlling nearly
every kind of activity. Cybernation is the better term for present purposes, since it
implies primary stress upon information processing as an ingredient of adaptative
control systems.
12
VICENTINI, Abner Lellis Corrêa. Da biblioteconomia à informática: evolução do
conceito de documentação. Revista do Serviço Público. [s.n.t.] p. 251-294.
13
ibid. p. 273
14
ibid. p. 181
15
MENDONÇA DE SOUZA, A., DODEBEI, V.L.D.L. de M. Três seminários em ciência
da informação (trabalho apresentado à disciplina Linguagem e Ciência da
Informação III: Gerenciamento, Economia e Marketing em Ciência da Informação,
IBICT/CNPq/ ECO/UFRJ, 1992).
134

Este trabalho analisa, em profundidade, as questões sobre o conceito, a evolução, a


interdisciplinaridade, os modelos e a formação profissional em Ciência da
Informação.
16
RAYWARD, W. Boyd. Visions of Xanadu: Paul Otlet (1868-1944) and hypertext.
Journal of the American Society for Information Science, v.45, n. 4, p. 235-250, 1994.
17
BRADFORD, S.C. The documentary chaos. In: ____. Documentation. London : Crosby
Lockwood & Son, 1953. cap. IX.
18
JUNG, C.G. Prefácio. In: I CHING: o livro das mutações. São Paulo : Pensamento,
1956. 415 p. p. 16.

Para exemplificar a idéia da virtualidade nos vários domínios do conhecimento,


podemos citar Jung que, ao prefaciar a primeira edição da tradução inglesa do I
CHING, comenta: “A questão que interessa parece ser a configuração formada por
eventos casuais no momento da observação e de modo nenhum as hipotéticas razões
que aparentemente justificam a coincidência (...) Além disso, a repetição da
experiência é impossível pelo simples motivo de que a situação original não pode ser
reconstituída (...) Seria para nós (ocidentais) uma afirmação banal e quase sem
sentido (...) dizer que tudo que acontece num determinado momento tem
inevitavelmente a qualidade peculiar àquele momento.

19
WANDERLEY, Manoel Adolfo. Organização da memória documentária: a matriz
documentária. Rio de Janeiro : Uni-Rio/CCH, 1980. (notas de aula)
20
MERLEAU PONTY. op. cit. p.18
21
MARROU. op. cit. p. 67
22
ibid. p. 71
4 INSTITUIÇÕES DE MEMÓRIA

“ ...o gosto tresloucado pela coleção, o elenco, o


assemblage, o amontoamento de coisas diferentes é
devido à necessidade de decompor e reavaliar os
detritos de um mundo precedente, talvez harmônico,
mas já agora obsoleto, para ser vivido ... o
problema não será tanto o de conservar
cientificamente o passado quanto o de elaborar
hipóteses sobre o aproveitamento da desordem,
entrando na lógica da conflitualidade. Nascerá, como
já está nascendo, uma cultura da readaptação
contínua, nutrida de utopia...”1

ECO,Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana, p.97,99


136

Neste capítulo, a análise se compromete com a questão da transmissão


da informação fixada em objetos, os quais foram intencionalmente
selecionados como espécimes de um evento, de um acontecimento, de uma
cultura. Os objetos analisados não parecem formar uma categoria especial,
dado que não existe apenas um locus ou um olhar singular que se
responsabilize pela preservação da memória social. Esses objetos, no
momento em que estão institucionalizados (ou seja, pertencem a uma
instituição cujo objetivo é o da preservação de memória), deixam de exercer
suas funções primárias na sociedade para tornarem-se prova de eventos
passados. A esse respeito, Castro2 afirma que, no caso dos museus, a
temporalidade museológica adicionada ao objeto o atinge como um raio,
provoca a perda do sentido de tempo atual. A obra, ao passar a pertencer à
instituição museal, além de ser submetida à dimensão regressiva e de ser
extraída de sua cotidianidade, é revestida de significados, de uma peça de
arte a um objeto de museu.
Para alguns teóricos, essa mudança de estado se dá como uma
passagem de vida para a morte, considerando a vida como o atributo
motivador da criação do objeto, e a morte como a perda dessa propriedade.
Para outros, a tentativa de reversão da morte desses objetos, como é o caso do
"Arquivo Morto"3 ou da associação entre Museu e Morte como discute
Jeudy4, é o que vem impulsionando as novas concepções teóricas na
Museologia e Arquivologia. Para a Biblioteconomia, o livro já nasce com a
idéia de memória, não da ordem institucional, mas intelectual, uma vez que
os livros são a síntese do objeto e do relato. Além disso, os livros não são
feitos para bibliotecas, mas são feitos para serem lidos, tais como os demais
objetos.
As instituições dedicadas à preservação e à disseminação das memórias
trabalham com traços e vestígios sociais, quer sejam produtos da literatura, da
137

administração política e social, ou da produção de bens artísticos e culturais.


A classificação desses traços e vestígios varia em função de abordagens
teóricas disciplinares utilizadas no campo do conhecimento ao qual estão
"provisoriamente" ligados, notando-se uma forte tendência de valorização
das características físicas dos objetos como indicador ou critério definidor da
seleção institucional.
As contradições entre a prática documental nas instituições de
preservação da memória social, os conceitos emergentes de documento e os
posicionamentos teóricos (profissional e institucional) representados por
tentativas de teorizações isoladas nos campos da Arquivologia,
Biblioteconomia e Museologia, embora visando prioritariamente a soluções
práticas no acesso à memória social, vêm convivendo com uma permanente
busca de adaptação ao quadro ideológico e tecnológico deste final de século.
Assim, torna-se necessário refletir sobre as preocupações emergentes
no que se refere à inserção da Arquivologia, da Biblioteconomia e da
Museologia num ambiente teórico mais amplo que considera os conceitos de
memória social, memória cultural e documento.
A análise preliminar das práticas disciplinares e as inquietações
presentes nos discursos parecem fazer referência a fundamentos teóricos que
permitem ora justificar a existência da atividade, ora apoiar os procedimentos
metodológicos dos quais fazem uso. Tal conjunto de especulações pode ser
observado transversalmente, isolando-se como pontos de referência a história
das instituições de memória e os fundamentos teórico-metodológicos de
apoio às práticas institucionais.

4.1 A formação das instituições de memória


138

A história das bibliotecas confunde-se com a história dos arquivos e,


em parte, com a dos museus, uma vez que, na antiguidade, não havia
clara
distinção entre os locais que armazenavam os registros culturais e,
portanto,
não há como afirmar a precedência de uns sobre os outros. Arquivos,
Bibliotecas e Museus se confundem ao longo dos tempos, tal como descrito
por Marion Bradley, em seu romance As brumas de Avalon5 , onde as
construções ou sítios se interpõem ao longo dos tempos. Na mesma canoa, no
mesmo lago, a travessia leva à mística Avalon ou ao católico Monastério de
Glastonbury. Depende da vontade do visitante. O local é o mesmo, a imagem
é diferente. Assim, podemos encontrar a Bíblia mais antiga exposta em um
museu, como um pergaminho sobre registros familiares em uma biblioteca.
De acordo com Wilson Martins6, a biblioteca é anterior ao livro e até
aos pergaminhos. Sabe-se, por exemplo, que no 3º milênio a.C., em Nipur,
Babilônia, foram achadas construções com várias salas contendo tablitas de
argila, sugerindo a organização de registros do conhecimento. Da mesma
forma Assurbanípal (668-627 a.C.) armazenou, em Nínive, cerca de 25.000
destas tablitas, representando obras religiosas e de “magia”, históricas e de
astrologia, catálogos de plantas e de animais, mapas e registros de várias
espécies; hoje, estão recolhidas ao Museu Britânico.
A idéia da coleção de livros, tal como hoje conhecemos, tem sua
origem no mundo clássico. A primeira biblioteca institucional aparece em
Atenas, no séc. IV a.C., junto às grandes escolas de filosofia. Os estóicos, por
não terem propriedades, não constituiram bibliotecas, mas as escolas de
Platão e dos epicuristas possuiam bibliotecas que influenciaram os povos por
vários séculos. No entanto, a mais famosa coleção pertencia à Escola
139

Peripatética, fundada e organizada sistematicamente por Aristóteles, com o


objetivo de facilitar a pesquisa científica. Na conquista de Atenas pelos
romanos, a biblioteca de Aristóteles foi transferida para Roma, para deleite de
Cícero.
A biblioteca de Aristóteles serviu de modelo para a famosa Biblioteca
de
Alexandria. Suas coleções eram formadas pela literatura grega, com o
cuidado
de preservar as melhores cópias, organizadas por assunto. Situada no
Templo
das Musas , o Museion, nela trabalharam famosos escritores e professores
gregos, inclusive Calímaco, Eratóstenes, Aristófanes e Aristarco. Na Ásia
Menor, a Biblioteca de Pégamo foi erigida durante o reinado de Átalo (197
a.C.) com o objetivo de competir com a de Alexandria. Nessa época, tendo
em vista a proibição da exportação do papiro, foi desenvolvido em Pérgamo
um outro material, o pergaminho (charta pergamena), cujo objetivo era
garantir a cópia das obras. Com a conquista romana, seus 200.000 volumes
foram doados a Cleópatra por Marco Antônio, a fim de enriquecer ainda mais
a Biblioteca de Alexandria.
Os romanos foram os responsáveis pela democratização do uso das
bibliotecas, como Martins7 explica: com os romanos o livro passa da
categoria sagrada para a categoria profana, deixa de ser intocável para ser
condutor, e, posto ao alcance de todos, é o veículo por excelência das idéias,
dos projetos e dos empreendimentos. O conteúdo intelectual do livro fará
dele, portanto, o objeto de estudo de várias disciplinas, entre elas a
Biblioteconomia.
140

Assim como as bibliotecas e os museus, os arquivos existiram entre os


povos orientais e entre os gregos e romanos desde o surgimento da escrita.
Hititas, assírios, medas, persas, babilônios e egípcios também conviveram
com arquivos, embora não se deva relacionar a existência de registros com as
características arquivísticas que hoje atribuímos a esses papéis e às
instituições. Não existem evidências da existência institucional de arquivos
entre os gregos até que Efialtes8 inicia a reunião de leis originais, embora só
após 100 anos o Registro Público Ateniense tenha sido constituído no
Metroon. Foram depositados nesse templo sagrado leis, decretos,
relatórios das sessões realizadas no senado, decisões judiciais, registros de
transações financeiras e cópias das decisões tomadas pelos altos magistrados
do Estado.
Quanto aos romanos, desses temos maior conhecimento das
práticas
arquivísticas do que dos gregos. Por volta do século V a.C. Valerius
Publicola9
organizou um grande arquivo no templo de Saturno. Ali foram guardados as
leis e os decretos nacionais, os atos do senado, os censos, relatórios oficiais
das províncias e registros financeiros. Os documentos internacionais eram
mantidos no Capitólio. Durante o império romano foi criado o Tabularium
Caesaris, ou o arquivo do imperador, onde foram guardados não só os
documentos da casa imperial como outros registros oficiais. Além deste,
vários arquivos foram criados por todo o império e nestes encontrava-se toda
sorte de registro relativos às pessoas em geral: nascimentos, adoções,
registros de propriedade etc.
No final da república, os arquivos se encontravam desorganizados e
desprotegidos, passando a ser prioridade dos imperadores a sua restauração.
141

Temos como exemplo a elaboração do código justiniano, o qual descrevia as


tarefas dos arquivistas e a metodologia de arranjo dos registros, na sua
maioria disposta por ordem cronológica e codificada por números. Os
arquivos passam, assim, a ser consultados por pesquisadores, garantindo a
sua utilidade pública.
César, o imperador, parece ter sido o responsável pelo
desenvolvimento e manutenção da cultura das coleções. Não só em relação
aos livros da Biblioteca de Alexandria mas também em relação aos objetos de
rara e sofisticada fabricação, os quais foram motivo de interesse de
preservação para a civilização greco-romana. Xenophanes preservava fósseis
de diferentes localidades para fins de estudo, o que deu origem às teorias
geológicas. Aristóteles recebeu diversos espécimes de propriedade de
cientistas, como
Plínio, com os quais desenvolveu a sua “história natural”.
Além dos objetivos de cunho científico, os objetos reunidos em
coleções tinham também o poder de assegurar as conquistas territoriais como
símbolo da anulação das culturas locais e, paradoxalmente, como lembrança
daquelas
culturas.
A palavra grega Museion, que dá origem ao termo Museu, representa o
templo das musas, filhas de Zeus e que, segundo a mitologia, eram
responsáveis pelo desenvolvimento e memória das artes, da música, da
literatura. E foi com Ptolomeu que nasce em Alexandria um centro de ensino
denominado museu. Tal instituição, sem par na modernidade, nada mais era
do que a Biblioteca de Alexandria.
Pelos muitos anos que se seguiram à desintegração do império romano,
a posse de objetos valiosos retirados de igrejas, templos e residências dos
142

nobres tinha o poder de troca. A acumulação de tais objetos garantia a


subsistência das pessoas em qualquer local que fixassem residência. As peças
eram mantidas em locais seguros, a fim de evitar saques. Os objetos eram
escondidos e expostos em ocasiões especiais, acompanhados de cerimonial
que induzia à adoração à riqueza e, ao mesmo tempo, despertava o desejo de
posse.
A idéia de museu esteve, assim, associada à idéia de posse, de poder
das classes dominantes. Num enfoque contrário, pode-se também atribuir a
exposição da riqueza representada por objetos valiosos à memória das
desigualdades sociais. Por exemplo, a existência e manutenção do Museu de
São Petersburgo, antiga Leningrado, durante todo o período do regime
comunista no leste europeu, devia-se ao fato de manter vivos os símbolos da
desigualdade social, tal como o Museu do Holocausto representa para o povo
judaico a lembrança de uma indesejável discriminação racial e religiosa.
Tem-se, assim, como uma das hipóteses da criação e manutenção de
museus a existência de dois eixos que até os dias atuais se mantém
inalterados: de um lado, a manutenção de coleções que representam o estudo
das culturas, como provas, objetos raros que podem suscitar teorias
científicas e, de outro, a exposição de bens “valiosos” para serem admirados
por não poderem pertencer a todas as camadas socias. Numa visão
despretensiosa, os dois eixos
contribuem para a democratização do saber.
Nossos museus, ainda hoje, apresentam essas características. Admirar a
coroa de bilhantes de Pedro II, ou seus trajes bordados em fios de ouro, leva o
espectador ao desejo de obter o luxo possível e, em contrapartida, de odiar
aquele que teve a chance de demonstrar tanto poder. O brilho conquista. Ele
143

representa a vida, o sol, o calor, a alegria. O fosco representa a morte, o


sofrimento, o desespero.
Os museus abordam essa dicotomia de vida e morte, em vários graus de
relação. Por um lado, representam memórias do social, culturas passadas a
serem observadas, criticadas. Por outro, mantém vivas as possibilidades das
diferenças sociais.

Por mais que os conceitos das instituições de memória evoluam no


sentido de serem menos guardiãs da riqueza e mais disseminadoras das
culturas diversificadas, arquivos, bibliotecas e museus como instituições
foram criados com propósitos semelhantes, em prédios comuns, armazenando
coleções de objetos retirados do tecido social, todos eles transformados em
símbolos de culturas e, portanto, como provas reais destas.

4.2 O uso dos acervos de memória


A organização dos objetos institucionalizados, assim como as ações
praticadas para levá-los a interagir com o público, nos leva ao confronto dos
procedimentos realizados pela Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia.
As discussões teórico-metodológicas em cada uma dessas disciplinas
tem como objetivo primordial a manutenção da diferença, ou seja, a
propriedade de ser singular a cada uma delas. Essa busca de singularidade é
representada pela necessidade de formar um conceito exclusivo do que seja
uma biblioteca, um arquivo ou um museu. A exclusividade contemplaria de
um lado, a definição precisa do objeto de estudo de cada disciplina e, de
outro, as funções sociais de cada uma dessas instituições.
O conceito geral de Museu, ou ao menos o conceito vulgar, popular,
ainda está associado à idéia de coisa velha, arcaica, ultrapassada. Em recente
matéria publicada no caderno B do Jornal do Brasil10, o show de rock do
grupo Yes no Metropolitan é criticado com a seguinte manchete: Museu do
144

rock paleolítico: Yes mostra em show no Metropolitan que o grupo parou no


11
tempo, que seu rock não progrediu... Chagas , em trabalho intitulado Museu:

coisa velha, coisa antiga, apresenta pesquisa efetuada com a participação de


seus alunos de graduação na disciplina "Introdução à Teoria Museológica" ,
na qual parte-se da hipótese de que por mais que os museus (do Rio de
Janeiro) apresentem um discurso oficial de "dinamismo" e "ativismo
reformador", o público potencial, em sua grande maioria, continua
associando museu a elementos do passado, a conteúdos sacralizados, às
chamadas belas-artes. A pesquisa considerou a opinião de 341 pessoas
(transeuntes) e definições para o termo museu em dicionários da língua
portuguesa. Conclui-se que os museus brasileiros continuam, em sua grande
maioria, com um comportamento característico do século XIX, no sentido
conservacionista, em que, nas palavras de Chagas, a elite dominante valoriza
o velho, o antigo e o passado não com o sentido de provocar a reflexão
crítica e dinâmica sobre o presente, não como base para a compreensão e
transformação da sociedade,
mas como elemento decorativo, morto, improdutivo e incapaz.
Vemos nesse exemplo a dicotomia entre o discurso e a prática
museológica. A esse respeito, Santos12 considera que os projetos de ação
cultural desenvolvidos nos museus hoje, embora não dissociados totalmente
da prática museológica do passado, já apresentam sinais de dinamização13,
onde o conceito de patrimônio é revisto e ampliado, englobando o meio
ambiente, o saber e o artefato, contribuindo para o surgimento de novas
categorias de museus e para a construção de pressupostos museológicos até
então desconhecidos. Tais pressupostos estariam ligados a uma ação cultural
comprometida com o desenvolvimento social, com a preservação da
identidade cultural, com a dinâmica do processo histórico, a chamada "Nova
Museologia" que segundo Lacouture14 é um movimento que nasce na França
145

na década de 70, resultado de experiências de museólogos franceses


conscientes da necessidade de renovar ou inclusive superar a instituição
museu, produto do século passado. Tal mudança se dá mais fortemente no
que diz respeito ao espaço museológico, onde a ênfase no termo “Ecomuseu”,
criado por Hughes de Varine Bohan, em 1971, abre o museu tradicional,
ampliando o edifício para território, a coleção para patrimônio regional e o
público para a comunidade regional participativa.
Mas, não basta a criação de novas categorias de museus, que reflitam o
discurso inovador. Transformar o discurso das categorias clássicas é um
desafio maior. Sobre os museus de História, Lemos15 afirma que são museus
do silêncio, espaço sem história, onde reina o empirismo acompanhado do
culto à cronologia, à factualidade e à linearidade como parâmetros suficientes
para o discurso histórico. Seus acervos são constituídos de objetos pessoais
(armas, moedas, diplomas etc.) pertencentes a figuras de destaque da elite
social e política, em tempos diversos, constituindo a zona de silêncio sobre a
natureza social do museu.
Em Lemos16, ainda, o acervo dos museus de História é composto de
documentos, entendidos como "provas" de que se nutre o poder das elites
sociais. Portanto, é necessário fazer com que essas peças signifiquem e, para
tal, precisam de interlocutores que as interpretem. Esses interlocutores,
inseridos na atividade denominada pesquisa museológica, manipulam as
provas ou registros culturais, utilizando os conjuntos teóricos
selecionados do
conhecimento acumulado socialmente.
Na busca de tais teorias, encontramos em Chagas17 a discussão sobre o
objeto de pesquisa no caso dos museus. Ao aceitar a definição de Russio18
para a Museologia como sendo a disciplina que trata de investigar a relação
entre o homem/sujeito e o objeto/bem cultural num espaço/cenário
146

denominado museu e mesmo fora dele, Chagas apresenta o conceito do


ternário matricial - homem-objeto-espaço - como elemento definidor da
instituição museal e do campo de estudo da museologia. Nesse sentido, e no
caso da pesquisa museológica, a orientação para somente um dos ângulos do
ternário matricial não contemplará a museologia e os museus em toda sua
complexidade.
A complexidade é entendida aqui como um sistema de relações e inter-
relações onde o objeto é historicamente construído, e o sujeito,
historicamente determinado. Por outro lado, complexo também é o fato de
que não se pode obter uma visão fragmentada de uma relação, tal que o
objeto em questão é o reflexo de uma realidade relativizada, não só pelos
cruzamentos do próprio ternário, mas como afirma Chagas19, porque tudo
está em metamorfose com rítmos diferentes de tempo.
Diante do ternário apresentado por Chagas, torna-se evidente que a
museologia opera em campo interdisciplinar, extrapolando a técnica
disciplinar, tal com afirma Santos20: Os caminhos que nos levam a repensar a
nossa prática museológica ... não foram indicados somente pela ciência
museológica. A interação com outras áreas do conhecimento, notadamente a
antropologia, a sociologia, a análise histórica de contexto, o fazer artístico e
a educação foram e continuam sendo elementos embasadores importantes
para o desenvolvimento e aprimoramento do nosso objeto de estudo ...
A proposta de Chagas parece perfeitamente sintonizada aos conceitos
mais emergentes de museu, tal que a idéia de relação objeto-sujeito-espaço é
amplamente discutida na recente produção científica, como em Castro21 ao
afirmar que no âmago relacional entre sujeito e objeto é que se busca a
luminosidade da comunicação para revelar a sagração e a clareza da
informação e para romper a obliteração que paira sobre museu, e bloqueia o
147

‘fato museológico’ de se fazer processo plenamente, situando a proposta no


plano exato da significação.
Já o conceito tradicional de arquivo reúne os seguintes atributos: corpo
organizado de registros produzidos ou recebidos por entidades públicas,
semipúblicas ou privadas a partir das transações de seus negócios,
preservados por essas, seus sucessores ou repositórios autorizados.
Independentemente da questão de garantias patrimoniais, a função dos
arquivos na sociedade contemporânea vem sendo motivo de reflexão. A
Associação dos Arquivistas Franceses22 conduziu uma pesquisa na qual
objetivava determinar a imagem (image de marque) que os arquivistas
franceses pretendem de sua profissão no final do século XX. As respostas
valorizaram as tarefas consideradas prioritárias da Arquivologia:
conservação e exploração do patrimônio arquivístico na perspectiva de
pesquisa histórica (inventário, erudição, animação das sociedades cultas);
coleta de arquivos contemporâneos (pré-arquivamento, relações com os
administradores e os diversos organismos produtores de arquivos);
documentação e difusão orientadas para a administração e/ou o grande
público; animação cultural (exposições, serviços educativos).
Apesar das duas primeiras tarefas terem sido consideradas prioritárias,
a pesquisa conclui que seria um "suicídio" profissional fechar-se em uma
atividade puramente instrumental, onde o objetivo final é manter os Arquivos
integrados à vida pública. A partir das tarefas enumeradas pode-se traçar um
roteiro da evolução da Arquivologia.
Para Posner23, as idéias originadas durante a Revolução Francesa
constituem as principais correntes que orientam o desenvolvimento
arquivístico
dos séculos XIX e XX:
148

a) o estabelecimento de uma administração de arquivos públicos de


âmbito nacional;
b) o reconhecimento pelo Estado de sua responsabilidade em relação ao
cuidado devido à herança documental do passado; e,
c) o princípio da acessibilidade dos arquivos públicos.

Vogel24, por sua vez, ao discutir os objetivos do arquivo e o papel do


arquivista na sociedade contemporânea, argumenta que originalmente a idéia
de arquivamento se pautava por uma necessidade prática ligada à política e à
administração, tal que os antigos gregos e romanos já dominavam o princípio
da conservação dos registros a fim de garantir direitos. Assim, a função
central dos arquivos era a da oferta da prova. A partir do século XIX, os
arquivos acrescentam às suas funções administrativa e legal aquela de se
constituirem em um reservatório de fontes para a historiografia; para tanto,
além de manterem as transferências dos registros oficiais, passam a
selecionar, organizar e colocar à disposição do público os documentos
conservados em razão de seus valores probatórios jurídicos, administrativos,
históricos e sociais, qualquer que seja o interesse informativo imediato, de
modo a constituirem a memória de todos os domínios da vida política, social
e cultural para o Estado e para a sociedade.
Tal ampliação nas atividades arquivísticas passa a gerar dificuldades e
conflitos quanto às formas da organização da massa documental. Em primeiro
lugar porque, geralmente, o público usuário de documentação arquivística é o
seu próprio produtor. Assim, com a ampliação do universo usuário, antes
restrito ao Estado e a certas elites culturais, as necessidades particularizadas
de informação não encontram respostas adequadas, ou seja, a recuperação da
informação é ineficaz. Em segundo lugar porque, para atender a um público
149

maior, quer dizer a todo e qualquer cidadão, os arquivos passam a questionar


a
sua tradicional classificação de registros.
Com a imprensa e os subsequentes meios físicos de registro da
informação, ficou a questão crucial: do universo de conhecimentos
produzidos pelo homem, qual parcela deve ser mantida pelos Arquivos? A
única certeza consensual entre as instituições é que os registros instituídos
como valor de prova administrativa e legal, tal como no passado, já nascem
como documentos arquivísticos. Daí não ser necessária a busca de registros,
uma vez que esses são naturalmente transferidos aos órgãos de arquivo. Essa
certeza é o que, provavelmente, fez com que os arquivistas reivindicassem o
termo documento como representante de seu objeto disciplinar.
Por outro lado, a arquivologia lida com os mesmos problemas de todas
as instituições que acumulam papéis, ou seja, o equilíbrio entre a preservação
quantitativa e a seleção qualitativa. Assim, vemos surgir as discussões sobre
seleção, arranjo e comunicação da informação, principalmente apresentadas
pelos usuários dos arquivos, uma vez que o arquivista, por tradição do
recolhimento obrigatório e por servir prioritariamente ao Estado, optou
sempre por soluções pragmáticas e parciais.
Burke25, a esse respeito, relata que, durante as primeiras décadas do
século XIX, o erudito penetra nos arquivos públicos da maioria dos países e
começa a tomar o lugar dos primitivos funcionários treinados em trabalhos de
redação e registro oficial, o que transforma os arquivos em instituições
preponderantemente científicas, perdendo de certo modo seu caráter de
repartição do governo. A interferência do pesquisador na constituição dos
arquivos é sensível, até porque o uso que esses pesquisadores faziam dos
documentos justificava a técnica de organização dos conjuntos documentais
150

muitas vezes influenciada pela biblioteconomia, uma vez que os manuscritos,


fonte primária do historiador, se encontravam mais sob a guarda da
bibliotecas do que dos arquivos.
Nasce então o princípio norteador da Arquivologia Respect pour les
Fonds, derivado da concepção de que os arquivos correspondiam a uma
unidade extinta ou existente e deveriam ser preservados na ordem e com as
marcas que haviam recebido no curso da atividade oficial da respectiva
Repartição. A reação a essa "teoria" é desencadeada por varios autores, entre
eles Bar, Weibull, Schultze, citados por Posner23 e, mais recentemente por
Burke26, Miller27 e Vianna28, nos quais encontramos a consciência de que as
chamadas "teorias arquivísticas" carecem de fundamentação, uma vez que
foram construídas sobre a base de observações particularizadas.
Para Burke, conquanto o pensamento de arquivistas possa apresentar
uma linguagem científica , esta é conceitualmente criticável, já que à teoria
são designados atributos mais próximos do significado de crenças, políticas
ou procedimentos propostos ou sugeridos como base a uma ação; o que, de
resto, pode-se supor ser um plano ou processo, pois uma teoria implica o
estabelecimento de leis, aplicáveis a todas as situações, independentemente
de tempo e espaço. Assim, Burke julga as chamadas "teorias arquivísticas" ou
"leis da Arquivologia" (respeito aos fundos e ordem original), afirmando, em
primeiro lugar, a instabilidade de ambas: tendo sido compiladas a partir de
estudos empíricos, são limitadas a certos tipos de documentos, em certas
instituições. Em segundo lugar, porque são derivadas da experiência
européia, segundo a cultura e as necessidades de organização e recuperação
da informação vigentes em uma determinada época, para um certo segmento
social.
151

Em Burke, ainda, Posner foi o que mais se aproximou de uma


formulação teórica para a Arquivologia, tendo, no entanto, permanecido
apenas no plano diagnóstico, com a apresentação da história das atividades
arquivísticas, enfocando a origem, causas, tendências, desenvolvimento de
técnicas e a elaboração de sistemas. Os demais indícios de possíveis
posicionamentos teóricos na literatura arquivística americana, como os
trabalhos de Schellemberg, Holmes, Norton, Kahn e Solon Buck, na verdade
não passam de discursos sobre os aspectos práticos de suas tarefas,
apresentando soluções para alguns problemas que poderiam vir a ser úteis em
outras situações.
Na mesma linha de pensamento, Miller observa que as atuais práticas
arquivísticas ainda derivam da metodologia histórica no século XIX, ou seja,
a História voltada a formalizar as instituições políticas e econômicas e a
estudar a vida das personalidades, em detrimento à História Social,
direcionada à estrutura social e ao cotidiano das pessoas comuns. Assim, a
metodologia arquivística deveria evoluir no que diz respeito às técnicas de
processamento, passando a valorizar-se mais o acesso por assuntos (subject-
oriented) e menos à organização (creator-oriented).
Tal perfil pode ser identificado ao princípio da "Ordem original"
e,
nesse caso, encontramos posições tradicionais como em Vianna, embora o
seu discurso se localize no plano do acesso a arquivos privados, sendo esses
mais representativos da história oficial do que da história social. Ainda assim,
Vianna contesta a interpretação usual dada à observação da ordem original,
uma vez que o arranjo físico encontrado no presente não garante a
representatividade fiel do sentido de memória das ações do passado.
152

A fragilidade do princípio do respect pour les fonds diante das novas


tecnologias de organização da informação leva a Arquivologia a voltar-se
para a sua singularidade possível, ou seja, a organicidade de seus
repositórios. O valor do conjunto arquivístico é o que o distingue de outros
objetos.

Esse valor, entendido como resultado de uma relação entre antecedente


e subsequente é o que configura, até o momento, o caráter individual do
documento de arquivo. A peça única não é objeto da Arquivologia , o
conjunto orgânico é o seu motivo de existência. Assim, a cronologia, o tempo
linear é o que garante a potencialidade da significação da ação cultural,
quando observada na ótica das ações administrativas. A disponibilidade dos
acervos arquivísticos ao público, com essa característica de linearidade,
paradoxalmente, vai garantir ao usuário/pesquisador elaborar os recortes
singulares para a defesa de seus projetos experimentais, gerando os
significados individuais ou as interpretações dos conjuntos factuais, que
promovem um novo conhecimento.
Embora a Arquivologia questione a função dos arquivos na sociedade
contemporânea e a Museologia discuta o seu objeto de estudo, ambas têm
claro o sentido de memória social como responsabilidade na sua ação prática.
A Biblioteconomia, por sua vez, ao tentar escapar da marca conservacionista,
passa a reconhecer a informação nas suas propriedades, comportamento e,
principalmente nos seus processos, como seu objeto de estudo. No entanto, o
suporte material principal da informação bibliográfica, ou seja, o tipo de
informação da qual a Biblioteconomia se ocupa, ainda é o livro, considerando
nesse gênero a monografia, obra de apenas um autor, as coletâneas isoladas,
ou periódicos científicos que dão conta, com mais rapidez, de partes ou
aspectos do estado da arte de seus campos específicos. Na verdade, não é o
composto material, em sua forma física que determina o conteúdo, seja
153

papel, meio ótico, ou magnético, mas a própria essência ou conteúdo


informativo para o conceito livro em sentido amplo.
Estivals29, quando comenta a origem da produção intelectual, diz que o
livro é um bem diferente dos demais e compõe-se de dois elementos:
significante material e linguístico e significante intelectual. Tratando-se de
um produto que emana inteligência diretamente comunicável por via da
linguagem escrita, ele é observado, algumas vezes, pelo seu significante
(bibliofilia) o que o aproxima do objeto museológico em seu conceito
clássico, mas, na sua maioria é procurado e adquirido pelo seu conteúdo
intelectual. Zoltowsky30, ao concordar com Estivals, expõe a idéia da
importância do relato para a preservação da memória social, colocando o
livro em situação privilegiada, uma vez que o texto escrito é transmissor de
uma intelectualidade, ou seja, de um significante intelectual.
Foucault31, por sua vez, discute a unidade material do livro, entendida
como a individualização do livro que ocupa um espaço determinado, que tem
um valor econômico e que marca os limites de seu começo e seu fim,
questionando a validade destes critérios para os vários gêneros literários, tais
como uma antologia de poemas ou uma coletânea de fragmentos póstumos.
Em outros termos, Foucault interroga se a unidade material do "volume" não
seria uma unidade fraca, acessória, em relação à unidade discursiva a que ela
dá apoio.
A unidade discursiva, para Foucault, está além do título, das linhas e
do
ponto final, uma vez que o discurso está preso ao sistema de remissões a
outros textos, sendo apenas um nó na rede de relações intelectuais
transformadoras do conhecimento. Foucault32 afirma ainda que por mais que
o livro se apresente como um objeto que se tem na mão, por mais que ele se
reduza ao pequeno paralelepípedo que o encerra: sua unidade é variável e
154

relativa" . Assim, a busca de uma unidade discursiva não pode ser encontrada
, mas somente pode ser construída por uma operação interpretativa.
A Biblioteconomia parece ter visualizado essa questão da unidade
discursiva quando transfere para a informação as suas preocupações
objetivas. No entanto, essa transferência se dá no plano da ciência e da
tecnologia, entendido esse campo como aquele de maior produção
(publicação) científica e de maior interesse econômico. Os estudos
bibliométricos, que buscam a gênese de um determinado núcleo de
conhecimento, assim como as técnicas de transmissão da informação, não
escapam à interferência dos discursos, uma vez que retomam o círculo
vicioso, produção/produtividade, ou seja, os autores mais citados são os mais
produtivos, sendo portanto novamente mais citados e, portanto, os mais
utilizados.
Mostafa33, em seu trabalho, Epistemologia da Biblioteconomia,
conquanto coloque essa problemática na reflexão sobre a cientificidade da
Biblioteconomia, conclui afirmando que os estudos centrados meramente no
processo de transferência da informação, tal como vêm sendo conduzidos
pelos grandes sistemas de informação, não autorizam a inserção da
Biblioteconomia no campo da socialização do saber, uma vez que esses
sistemas contemplam apenas uma parte da produção de conhecimentos, ou
dos estoques de informação34.

A contraparte, ou tentativa de ruptura dessa valorização "cientificista",


vem sendo evidenciada pelas novas posturas das bibliotecas especializadas,
por exemplo, as quais, a par de estarem na sua maioria tecnologicamente
preparadas para proporcionar o acesso à informação técnico-científica em
todos os níveis e distâncias, dentro do modelo idealizado pela Ciência da
Informação, voltam-se à prática social da democratização do saber, abrindo
155

suas portas ao público em geral, retomando, em parte, a sua condição de


locus de memória, de espaço social, onde as trocas culturais se dão no plano
real da convivência e não apenas no espaço virtual.

4.3 Institucionalização e virtualidade da memória social


Embora os discursos teóricos apontem para uma mudança conceitual
das instituições de memória, a prática institucional tem demonstrado que o
conceito de permanência de seus documentos varia muito mais em função das
ideologias norteadoras da formação e desenvolvimento das coleções do que
do uso ou do público a que se destinam. As primeiras discussões sobre essa
mudança de estado dos objetos de memória ou documentos centrava-se na
polêmica conteúdo/continente, meramente uma questão de escala de valores
binários, onde o suporte entra em confronto com a mensagem. Durante um
longo período, as instituições de memória exerceram o papel de
conservadoras ou guardiãs do conhecimento representado por determinadas
culturas ou ideologias e o importante era a "proximidade" do objeto em si,
isto é, sua forma em presença. Como exemplar único ou exótico, o objeto
musealizado ou uma edição príncipe, por exemplo, possuiam a função básica
de saciar a curiosidade de seus observadores. Tal como observa Castro35,
assiste-se por longo período à imersão da linguagem museológica ancorada
única e exclusivamente no objeto. Fosse ilustrando, cenarizando ou
pontificando, o objeto museológico é transfigurado em processo social, como
se pudesse dar conta de todas as etapas que se lhe formam. Não há quem
não lembre, em visita obrigatória nas férias, da extraordinária reverência
provocada pela “coroa de D. Pedro II”, na sala especialmente montada no
Museu imperial de Petrópolis. O 2º Reinado, este conturbado período de
nossa história, afunilava-se naquele pedestal girando. A imaginação e a
156

emoção girando junto, para que nada fosse indagado, questionado. Só


admirado. Inequecível também era a visita, geralmente com a escola, ao
Museu Nacional, da Quinta da Boa Vista, quando a atração máxima eram as
múmias em seu insondável mistério de conservação. A ciência, o
conhecimento arqueológico, concentravam-se naquele corpo enfaixado por
panos, desafiando a curiosidade dos visitantes”.
No entanto, cabem aqui as seguintes considerações: em primeiro lugar,
o que está exposto no Museu Imperial não é o objeto “Coroa” mas o
documento “Coroa de D. Pedro II” e, na qualidade de documento, este já
sofreu uma primeira interlocução da ordem institucional, quando da seleção
do objeto como síntese do Império; em segundo lugar, Castro propõe que a
exposição da “coroa” não questiona nada, só gera admiração. Mas não há
admiração sem comparação e, neste caso, o documento exposto passa a ser
uma representação do poder, da riqueza, da injustiça, da qualidade mineral do
solo brasileiro, da arte da lapidação, do estilo de ourivesaria, do tamanho da
cabeça do imperador etc., dependendo da interlocução que tiver com o
público. Sem dúvida que, além do potencial de informação existente nos
objetos, o culto ao original, ou o contato próximo com objeto real, é o que
proporciona a existência das instituições. E, nesse sentido, concordo com
Castro36 quando diz que no jogo do sagrado, a imagem não substitui o
objeto, não desvenda o artifício de querer ir além da legitimação.
No oposto, o culto ao conteúdo/informação passa a transformar
as
instituições no sentido de alterarem o foco de atenção do objeto original para
a sua dupla representação, ou seja, um recorte do conteúdo informacional
dos objetos, o que ele diz, ou pode dizer, o que ele transforma ou como induz
a um novo conhecimento, impondo assim, um acento ideológico ainda mais
157

forte, de vez que o objeto deixa de pertencer à categoria de primário (tal


como na Arqueologia ou na História).
Quanto à questão da singularidade ou unicidade, o que diferencia, por
exemplo, o arquivo de outras instituições de memória não é a constituição
física de seus objetos, nem a forma de organização de seus acervos, mas tão
somente o atributo de organicidade de suas coleções, atributo esse imposto
por uma seleção determinada, arbitrária, no sentido de “olhar” o objeto
comparando-o com os seus antecedentes e seus subsequentes, considerando
as dimensões temporais e espaciais, de modo a poder extrair o máximo de
garantias quanto ao desenrolar das ações sociais. Um exemplo, dentre vários,
pode ser dado em relação à exposição do original ou até mesmo da cópia da
“Lei Áurea” em um museu histórico. Na verdade, o objeto nasceu de uma
ação jurídico-administrativa, com todas as características de documento
arquivístico, uma vez que a abolição da escravatura não se deu isoladamente
a outros atos anteriores. O objeto é o mesmo na sua origem, porém ele pode
dialogar com vários interloctores diferentes, oferecendo interpretações as
mais diversas, desde a análise do papel e da tinta utilizada, feita por um
químico, passando pelo estilo de redação da Princesa Isabel, discutido por um
linguista, ou pela veracidade da assinatura, até a simbolização do documento
exposto no museu.
Da mesma forma, uma faca, uma lâmina ou um martelo, considerados a
priori objetos musealizáveis, fazem parte do arquivo judicial quanto são
imputados a esses objetos valores de prova criminal. E, para não esquecer do
livro, o exemplo do filme Um Sonho de Liberdade (no qual o presidiário
cavou nas páginas da Bíblia um buraco e ali alojou um pequeno instrumento
para escavações arqueológicas, usando o livro durante o dia como auxílio à
meditação e à noite como invólucro do instrumento com o qual cavou um
158

túnel, durante vinte anos), podemos afirmar que para o mesmo objeto e até
para o mesmo interlocutor, havia dois discursos, duas mensagens, portanto,
no mínimo, dois significados.
Esta, talvez, seja a resposta para o lento desenvolvimento da
metodologia arquivística, uma vez que o mesmo conjunto de documentos
deve servir a propósitos diversos, como são os interesses do Estado,
conflitando com os direitos de acesso à informação pelo cidadão, aliados aos
interesses particulares dos pesquisadores.
Adicionalmente, a maioria dos discursos recentes analisados no campo
dos museus e da museologia reflete as nossas primeira e segunda
proposições. No caso da unicidade, em nenhum momento os objetos do
cotidiano são previamente classificados como musealizáveis, em detrimento
de outros não museais em potência. Assim é que Mensch37 indica uma
abordagem específica do homem frente à realidade cuja expressão é o fato
de que ele seleciona alguns objetos originais da realidade, insere-os numa
nova realidade para que sejam preservados, a despeito do caráter mutável
inerente a todo objeto e da sua inevitável decadência, e faz uso deles de uma
nova maneira, de acordo com suas necessidades”. Quanto à virtualidade , é
ainda Castro38 quem afirma que “para sobreviver em uma ordem libertária de
testemunho, de vivência, o objeto permanece investido da missão de não
desaparecer, reconduzido ele próprio a se transmutar em relato, história. Ao
objeto funcional é acrescida a instância de documento (grifo nosso),
categoria de signo na extensão do presente, do passado, do futuro”.
A atribuição de signo ao objeto, transformando-o em documento,
considerando um estado constante de mobilidade, pode favorecer a formação
de instituições virtuais: o museu virtual, o arquivo virtual, a biblioteca
virtual. No entanto, se o continente - a forma - nesta perspectiva, não
159

distingue mais a prática preservacionista, e se para toda e qualquer instituição


de memória o conteúdo - a informação - passa a ser considerado como o
objeto de troca cultural, continua em pauta desvendar uma solução para as
questões práticas da divisão da tarefa de preservar. Os questionamentos
sobre as razões e os porquês da própria preservação têm mostrado
posicionamentos extremados, tais como o de tudo guardar, gerando o oposto,
nada guardar, ou seja, o "esquecimento" , nesse caso, garantindo-se a
manutenção da vida original dos objetos e decretando-se a morte das
instituições.
A morte institucional pode ser entendida em sentido estrito (como, por
exemplo, a existência de eco-museus em detrimento ao "prédio-museu"), ou
em sentido ampliado, entendendo-se por instituição todos os espaços, tal
como afirma Maffesoli39, espaços de celebração, que incluem não só as
construções ditas de memória mas, os espaços cotidianos, o bar da esquina, a
praça pública, podendo-se acrescentar o shopping, a loja do posto de auto-
serviço, onde a socialidade se manifesta, as trocas culturais se dão e as
identidades de fixam. Neste último caso, o conceito de instituição passa a
se identificar com o conceito de "espaço".
Não está em questão julgar a existência de Museus, Arquivos e
Bibliotecas, como um dos locus onde as manifestações sociais se
materializam, ou qualquer outra instituição que retenha objetos de
memória40. Tais instituições já existem, mantêm um público usuário
constante e vêm se transformando conforme o plano de idéias de seus
mantenedores. Embora Namer41, a esse respeito, faça severas críticas à
existência das instituições ditas de preservação da memória, tais como
bibliotecas arquivos e museus, uma vez que, para ele, essas instituções nada
mais são do que guardiãs e disseminadoras do saber seletivo, essa
160

seletividade existe em função de ideologias alimentadas pelo poder da


dominação, seja no plano cultural seja no plano econômico.
A bem dizer, é inegável que as estruturas de tais instituições
corroboravam essa tese, a ponto de se poder afirmar que os arquivos, as
bibliotecas e os museus mais tradicionais privilegiavam apenas a memória do
prestígio, do luxo, da raridade, da curiosidade que caracteriza a vontade do
colecionador (mecenas), o qual, na maioria das vezes, legava os bens às
instituições em prol de um ressarcimento ao ato brutal de usurpação ou
violação de objetos “retirados” do tecido social. Exemplos podem ser citados
em relação, principalmente, às coleções sacras e monárquicas. Contudo,
Namer42 insiste que essas instituições, mormente bibliotecas e museus,
embora preservando a memória seletiva, são responsáveis pelo acesso à
virtualidade da memória social. La memoire virtuelle du savoir e de la
culture, de l’áffectivité, du monde passé ne pourra s’áctualiser que pour une
partie de la societé actuelle: la bibliothèque est en cela une memoire
sélective (...) Comme la bibliothèque de conservation, le musée est une
mémoire sélective du monde, il n’est pas comme pour les livres d’abord une
mémoire-message du sens à comprendre, mais d’abord une mémoire-
message (adressée au dieu) d’une pratique sociale d’évaluation du sacré.
A virtualidade a que se refere Namer diz respeito, exatamente, à
condição potencial da transmissão da informação (memória - mensagem),
objeto de nossa segunda proposição. Nas palavras de Namer43, C’est dans ce
contexte que la bibliothèque organise une rencontre possible permanente
entre la totalization des mémoires collectives en une mémoire sociale
virtuelle enfermée dans les livres et l’obligation ou besoin social d’actualiser
cette mémoire qui pousse les lecteurs à venir demander des livres. Assim, a
memória é uma prática cognitiva, uma vez que é através da atualização de
161

uma memória para recuperar um conhecimento ou um raciocínio antigo que


nasce uma nova reflexão.

Em reforço, ainda, à mobilidade do documento, no plano do objeto


social - documento de memória, o discurso de Namer44 intensifica a nossa
terceira proposição - significação , uma vez que atribui ao processo de
seleção a transformação do objeto em documento, nomeando
contundentemente o curador dos museus como responsável por essa
atribuição. “Le collectionneur, le propriétaire ou gardien des objets donne
par la sélection, le classement et la hiérarchie des objets, sa propre vision du
monde, son propre système de valeur à la collection. La valeur des objets est
congéniale au collectionneur, ils s’honorent et se légitiment réciproquement.
No caso da História, os objetos expostos em um museu seriam todos
considerados documentos secundários e terciários, em que pese a sua
originalidade intrínseca. Mas, como o relato é complemento inegável, ao
menos à veracidade do objeto, isso já acrescentaria uma parcela de
julgamento de valor, o que “desvirginiza” o objeto retirado de suas funções
primárias. Em contrapartida, como no caso da poesia, a forma estética
permite uma síntese na transmissão da mensagem, que não é viável no caso
da Biblioteca. Assim, os museus são muito mais atrativos, uma vez que
proporcionam uma economia de leitura. O objeto museal, independentemente
do relato que o acompanha, atinge a emoção do visitante, que pode
interpretá-lo a partir de seu quadro de referência anterior. Por isso mesmo,
podemos ver a mesma pintura, a mesma escultura, o mesmo utensílio
indígena tantas vezes quantas forem as nossas dimensões espaciais e
temporais. E em todas elas o resultado será um pouco diferente, mas sempre
em direção ao aprefeiçoamento cognitivo. Como diz Namer, os museus, ao
apresentarem ângulos sempre diferentes para a organização de seus objetos,
nos proporcionam, tal como em um processo analítico, dialético, a renovação
162

do prazer da memória-conhecimento. Nessa abordagem, a solução para a


intensificação do acesso à memória social seria a criação de um maior
número de instituições, onde cada qual, embora operando na seletividade,
pudesse apresentar melhores oportunidades de identificação cultural e de
harmonia social. Tal como no paradoxo da redução semiótica para a Ciência
da Informação, pode-se afirmar que a seletividade na apropriação da memória
social é o que garante a ampliação do acesso a essa mesma memória.
A distinção entre memória social e memória cultural fica, assim,
determinada. Memória social é a memória virtual, potencial. Memória
cultural é aquela que, imbuída de valores de determinada (s) cultura (s),
opera no campo da seleção. Portanto, memória cultural é sempre resultado de
uma interferência seletiva da memória social, podendo ser, neste caso
igualada à memória institucional. Desta forma, os objetos, em sentido amplo,
operam no campo da memória social, os documentos, na memória cultural.
Arquivos, bibliotecas e museus trabalham com os mesmos objetos da
memória social e, de certo modo, fazem uso dos mesmos princípios da
interação semiótica e da economia de símbolos na transmissaão da
mensagem. São instituições complementares, são aspectos das culturas,
recortes do social.

NOTAS E REFERÊNCIAS DO CAPÍTULO 4


1
ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1984.
p.97, 99.
2
CASTRO, Ana Lúcia Siaines de. O Museu: do sagrado ao segredo; uma abordagem
sobre informação museológica e comunicação. Rio de Janeiro : UFRJ-
ECO/CNPq/IBICT, 1995. (Dissertação apresentada para obtenção do grau de Mestre
em Ciência da Informação). p.71
163

3
A expressão ARQUIVO MORTO era identificada ao acúmulo de documentos que,
por não demandarem uso frequente, são separados físicamente dos registros que
representam ações administrativas recentes e, portanto, com alto potencial de
consulta. A chamada "Teoria das Três Idades", apresentada por Jean-Jacques Valette
em trabalho distribuído pela UNESCO sob o título - " Le role des archives dans l'
administration et dans la politique de planification dans les pays em voie de
developpement", traduzido e editado pelo Ministério da Justiça/ Arquivo Nacional
em 1973, modifica o conceito de Arquivo Morto ao classificar os documentos
segundo os estágios de sua utilização, distinguindo: a) os arquivos de movimento,
ou correntes, processos em curso ou consultados frequentemente pelos Serviços, que
são conservados ora nos próprios escritótrios ou repartições que os constituem, ora
em dependências próximas de fácil acesso; b) os arquivos de segunda idade,
processos que perderam sua atualidade, mas cujos serviços podem ainda ser
solicitados, seja para tratar de assuntos idênticos, seja para retomar um problema
novamente focalizado. Não precisam ser conservados nas proximidades dos
escritórios e são considerados pré-arquivamento; e, c) os arquivos de terceira
idade, processos que perderam todo valor de natureza administrativa e que se
conservam em razão do seu valor histórico e documentário e que constituem os
meios de conhecer o passado do país e sua evolução. Esses são os arquivos
propriamente ditos, objeto de representação da memória.
4
JEUDY, Henri-Pierre. Memórias do social. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1990.
p.141, 142

As analogias entre o museu e a morte, a conservação e o trabalho de luto tornaram-se


então evidências que acabam por ocultar a complexidade do trabalho da memória?
(...) O trabalho da memória não é mortífero, ele pode permitir a ab-reação produzindo
momentos em que a carga emocional se libera da própria obsessão da conservação.
Em vez de ser assediado pelas lembranças, e petrificados por signos preservados, a
memória se abre à temporalidade presente para romper os riscos de sua mórbida
permanência.
5
BRADLEY, Marion Eleanor Zimmer. The mists of Avalon. London, Sphere Books, 1984.
1009 p.
6
MARTINS, Wilson. A palavra escrita. São Paulo: Anhembi, 1957. p. 72 - 94.
7
ibid. p. 80.
8
LELLO Universal. Porto : Lello & Irmão. vol. 2 p. 884.

Efialtes foi um estadista e orador ateniense, 460 a.C. , amigo de Péricles, que fez
votar importantes reformas democráticas e foi assassinado por instigação dos
aristocratas.
9
LAROUSSE du xx siècle. Paris : Maison Larousse, 1933. v. 6, p. 898.
164

Valerio Publícola (Publius) foi um dos fundadores da república romana, colega de


Brutus; recebeu por homenagem o nome Publícola por ter sido grande amigo do
povo.
10
SOUZA, Tarik de. Museu do rock paleolítico. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Caderno
B, 16 de setembro, 1994.
11
CHAGAS, Mario de Souza. Museu : coisa velha, coisa antiga. Rio de Janeiro: UNI-
RIO, 1987.
12
SANTOS, Maria Célia T. Moura. Repensando a ação cultural e educativa dos museus.
Salvador : Centro Editorial e Didático da UFBA, 1990. 91 p.
13
SANTOS, M.C.T.M., op. cit. p. 10.

O conceito de "Museu Dinâmico" surge nos Estados Unidos, no período após guerra,
quando a instituição se insere na produção capitalista, mantendo um estreito
relacionamento com a indústria cultural, oferecendo atividades diversas, com o
objetivo de atrair o público, como concertos, serviços educacionais, conferências etc.
14
LACOUTURE, Felipe. La nueva museologia en la comunicacion para el desarrollo
cultural. Medellin - Rionegro, 25 de março de 1985. 14 f.
15
LEMOS, Renato Luís do Couto Neto e. Museus do silêncio : o espaço sem história.
Apontamentos Memória & Cultura, Rio de Janeiro, v.2, n.1, p. 52-61, abril, 1991.
16
ibid. p. 59.

A construção de um conhecimento crítico deve ser, portanto, um caminho de


reinserção do museu de História no processo social que lhe confere significado.
Acervo, instituição, teorias museológicas, explicações históricas, explícitas ou não,
tudo que pertence ao universo simbólico sintetizado pelo museu torna-se objeto de
conhecimentoe, em particular, do conhecimento histórico, que o situa nas
coordenadas espaço-tempo (...) Para a História como campo de conhecimento, o
museu de História é um "locus”muito particular. Não porque entre suas paredes
habitem, necessariamente, registros sui generis. O museu de História é uma entidade
singular em virtude da sua função de instituição administradora de registros de
memória coletica, bem como pela natureza heterogênea e combinada desses
registros.
17
CHAGAS, Mario de Souza. O objeto de pesquisa no caso dos museus. Apontamentos
Memória & Cultura, Rio de Janeiro, v.2, n.1, p. 37-51, abril, 1991.
18
RUSSIO, Waldisa. Cultura, patrimônio e preservação. In: ARANTES, Antônio Augusto
(org.) Produzindo o passado : estratégias de construção do patrimônio cultural. São
Paulo : Brasiliense, 1984. p. 60
165

19
CHAGAS, op. cit. p. 40
20
SANTOS, op. cit. p. 9
21
CASTRO, op. cit. p. 104
22
TAILLEMITE, p. 198.
23
POSNER, Ernst. Alguns aspectos do desenvolvimento arquivístico a partir da revolução
francesa. Rio de Janeiro : Arquivo Nacional, 1959. 22p.
24
VOGEL, Bernhard. Archives, musees de papier ou centre d’information? Revue
Archivistique. Conseil International des Archives. 1992. p. 2.
25
BURKE, Frank G. The future course of archival theory in the United States. The
American Archivist, v. 44, n.1, p. 40-46, 1981.

26
ibid. p.43

A literatura arquivística é rica em relatos de experiências, o que vem a demonstrar o


empirismo vigente no tratamento documental, tanto no que se refere ao suporte
físico, como à essência informativa dos acervos, de tal forma que os arquivistas,
normalmente com grandes problemas a resolver em curto espaço de tempo,
procuram o método do ensaio e erro para suas instituições, mas não têm condições
de formular sequer hipóteses para o teste de generalizações.

27
MILLER, Frederic M. Social history and archival practice. The American Archivist, v.
44, n.2, p. 113-124, 1981.
28
VIANNA, Aurélio, LISSOVISKY, Maurício, S. Á., Paulo Sérgio Moraes de. A vontade
de guardar : lógica de acumulação em arquivos privados. Arq. & Adm. Rio de
Janeiro, v.10-12, n. 2, jul./dez. 1968.
29
ESTIVALS, Robert. Criação, consumo e produção intelectuais. In: FONSECA,
EdsonNery da (org.) Bibliometria : teoria e prática. São Paulo : Cultrix, 1986. p.
35-68. p. 47.

Assim, o estudo econômico do livro é também o estudo das flutuações do


pensamento coletivo impresso, produzido e consumido.
30
ZOLTOWSKY, Victor. Os ciclos da criação intelectual e artística. In: FONSECA,
Edson Nery da (org.) Bibliometria : teoria e prática. São Paulo : Cultrix, 1986. p.
71-111. p. 81.
166

(...) sem desprezar os objetos em que o espírito humano deixou suas marcas, nem a
tradição oral, parece entretanto que o texto escrito leva, em relação aos movimentos
desse espírito, a vantagem de ser testemunho mais fácil de captar e de descartar de
maneira adequada.
31
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro : Forense Universitária,
1986. p. 25.
32
ibid. p. 26.
33
MOSTAFA, op.cit. p. 35.
34
GOMEZ, Maria Nelida Gonzalez de. O papel do conhecimento e da informação nas
formações políticas ocidentais. Ciência da Informação. Rio de Janeiro, v.16 , n.2,
jul./dez. 1987. p. 165

Os sistemas de informação permeiam, assim, os diferentes segmentos da produção


industrial, desde os sistemas de informações administrativas e gerenciais, os
sistemas de informação científico tecnológico (ICT) e os sistemas de informações
econômicas e sociais (IES) até a mediação semiótica entre programadores e
máquina.
35
CASTRO. op. cit. p.58.
36
ibid. p. 64
37
MENSCH, Peter van. O objeto de estudo da museologia. Rio de Janeiro: UNI-
RIO/UGF, 1994. p.12
38
CASTRO, op. cit. p. 50
39
MAFFESOSOLI, M. O poder dos espaços de celebração. Rev. Tempo Brasileiro, Rio de
Janeiro, n.116, p. 59-70, jan./mar. 1994. p. 60 - 66.

(...) não é mais a história e o desenvolvimento que a episteme esconde que estão em
cena, ou seja, não é mais um mundo por vir, puro, "numênico", que ocupa o
imaginário coletivo, mas, ao contrário, o mundo fenomênico e seus compostos
sensíveis e concretos, como por exemplo, na tradição japonesa, a importância do
lugar (...) na constituição da sociedade. É o olhar, o dizer dos outros que me constitui
e delimita, o território onde já nos reconhecemos, onde nascemos, sempre e de novo
juntos (...) o bar da esquina, o jardim do bairro, é dentro desses laboratórios que se
elabora a alquimia da socialidade (...) mistura de afetos e de emoções comuns (...)
indícios certos de uma ordem simbólica (cristalização de espaço tempo) constituído
ou em gestação, ou seja uma paisagem.
167

O autor classifica os "Espaços de Celebração" em duas categorias: 1- Espaços de


Celebração Emblemáticos - Museus, Bibliotecas, Centros Culturais; e 2- Espaços
de Celebração cotidianos - ruas, praças etc.
40
A ampliação do conceito de Biblioteca, Arquivo e Museu vem se dando, na
atualidade, com a emergência de "locus" nomeados Centros Culturais, Espaços
Culturais, Casa da Leitura, Casa da Invenção, Casa da Ciência, Museu Vivo, entre
outros.
41
NAMER, Gérard. Les instituitions de memoire culturelle In: ____. Memoire et societé.
Paris, Méridien, 1987. (Collection Societés), 242 p.
42
ibid. p. 169, 178.
43
ibid. p. 160
44
ibid. p. 178
5 CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE DOCUMENTO

“ Como se diz, as descobertas, de Galileu a


Newton, sugeriam a imagem de um universo em que tudo
poderia ser descrito, ilustrado e reproduzido em
termos de experiências e de exemplos concretos, fé
compartilhada em um mundo funcionando com
regularidade sob nossos olhos, espécie de incumbação
do ver e do saber que iria se generalizando. Da
mesma forma, a fotografia, complementando os votos
de Descartes, tinha sido para muitos uma arte em que
o ‘espírito’, dominando a mecânica, interpretava os
resultados, na boa tradição da razão instrumental.
Mas, ao contrário, uma vez que os progressos
técnicos dessa mesma fotografia nos forneciam provas
todos os dias, por que não chegar gradualmente à
conclusão de que cada objeto é para nós nada mais do
que a soma das qualidades que lhe atribuímos, o
conjunto das informações que obtemos em um momento
ou outro, este mundo objetivo só existiria tal como
o re-presentamos e como uma construção mais ou menos
persistente de nosso espírito. Einstein levaria ao
extremo este reciocínio ao demonstrar que o espaço e
o tempo são formas de intuição que não podem mais
ser separadas de nossa consciência assim como a
forma, cor, dimensão.”

VIRILIO,Paul. A máquina de visão. p. 42


169

No primeiro capítulo abordamos as condições de produção da memória


social, explorando os conceitos de cultura, sociedade, memória e das ações
decorrentes, discutindo, assim, o universo das ações consubstanciadas em
objetos da memória social. Sem dúvida, a cada passo dado no espaço das
indagações e no tempo dos discursos selecionados, fomos caminhando no
sentido de aumentar a complexidade da idéia de representação.

O segundo capítulo discutiu a questão da representação nos seus


aspectos conceituais e comunicacionais, tentando-se observar os processos
pelos quais os objetos, produtos das ações sociais, podem vir a se tornar
representações objetivas das memórias.
No terceiro capítulo, seguindo a cadeia de complexidade das
representações sociais, discutiu-se o processo de transferência do objeto do
cotidiano para o universo selecionado da memória social, onde os conceitos
de documento são introduzidos.
No quarto capítulo tentamos aproximar os conceitos de objeto,
memória e instituição, intensificando a cadeia de complexidade da
representação da memória social em direção ao acesso compartilhado, meta
principal da existência das instituições de preservação dessa memória. Tal
análise se comprometeu com a questão da transmissão da informação fixada
em objetos, os quais foram intencionalmente selecionados como espécimes
de um evento, um acontecimento, uma cultura.

Em toda a trajetória foi possível observar que, independentemente do


recorte operacional, os conceitos de unicidade, virtualidade e significação
aparecem numa dialética que buscou a interface dos discursos, não só como
suporte às afirmativas mas, sobretudo, como teste a elas. De tal sorte que as
perguntas objetivavam uma resposta às questões formuladas no campo das
170

várias teorias isoladas para representarem o ciclo de vida, de permanência


ou
de insistência do objeto que possa vir a ser representativo da memória social.
Se aceitamos que arquivos, bibliotecas e museus trabalham com os
mesmos objetos do universo social e que são instituições culturais que
permitem o acesso à essa memória, podemos afirmar que o agente de
transformação permanente dos objetos produzidos pela sociedade é o homem,
que determina a mobiblidade das representações sociais pela interferência
direta no processo de escolha de tais objetos.
Portanto, tal como colocado no capítulo introdutório, a leitura dos
objetos de memória implica na relação objeto ∩ sujeito ∩ espaço/tempo,
que indica, claramente, a situação de trânsito dos objetos entre o universo
social e o universo cultural.
Se a priori, tinhamos a indicação de que as instituições de memória
possuíam interfaces onde o núcleo comum podia ser representado pelo
documento, agora podemos acrescentar um pano de fundo aquele esquema
gráfico, representando a distinção entre o universo social, que contém objetos
e o universo cultural, que mantém documentos.

UNIVERSO SOCIAL

UNIVERSO
CULTURAL
O (Instituições
de memória)

D
171

Assim, os objetos, que podem ser naturais ou produzidos pelo homem,


pertencem ao universo social que se apresenta como uma dimensão virtual
para a memória. A interferência do homem como agente de transformação do
objeto em documento é representada pelo universo cultural, onde as
instituições de memória se inserem. A leitura do desenho nos indica, ainda, a
mobilidade dos documentos ou unidades de memória, nas dimensões pelas
quais transitam.
Para a explicitação do conceito de documento podemos considerar, tal
como nas teorias da classificação, que a categoria é a maior classe de
fenômenos e que, dentre todos os estudos classificatórios, o de Aristóteles foi
o que contribuiu significativamente ao entendimento dos predicáveis de
objetos. Podemos, portanto, construir o conceito de documento a partir das
sínteses produzidas pelas discussões anteriores onde, nos recortes
operacionais e linguísticos, foram consideradas não só as categorias
aristotélicas como a interpretação do mundo feita pelos estóicos, tão bem
discutida por Deleuze e, ainda, os discursos sobre a natureza do conceito.
Assim, podemos considerar que para as análises dos discursos disciplinares e
transdisciplinares foram utilizadas as principais categorias relativas ao
processo de transferência da informação, onde a cadeia de representações da
memória social pode ser identificada, tal como na configuração de nosso
mapa teórico-conceitual, pela seqüência lógica das ações próprias da Ciência
da Informação:

PRODUÇÃO → SELEÇÃO → ORGANIZAÇÃO → USO


172

Amalgamando as idéias de Aristóteles com o mundo estóico, temos


que: a reunião de predicáveis necessários ao objeto em questão, documento,
pode ser obtida a partir do uso das seguintes categorias:

I- SUBSTÂNCIA ou o ser que existe

A substância é o objeto em si, elemento constituinte da produção


social. Seus atributos ou predicáveis se constituem da forma, isto é, o tipo de
matéria constitutiva, tal como textura, cor, dimensões, peso, e do conteúdo,
compreendendo as impressões intelectuais registradas naquela Forma. Essas
impressões intelectuais são representadas por toda e qualquer criação
cultural, o que vem a se constituir na produção do conhecimento. Assim,
todos os objetos do cotidiano produzidos pelo Homem, em sua essência,
pertencem a esta categoria. Os objetos naturais, encontrados na natureza, tal
como uma pedra ou uma flor, possuem apenas a Forma (natural) dentro desta
categoria de Substância ou Existência.

Deste modo, não cabe nessa concepção a distinção ou classificação dos


objetos em forma e conteúdo como duas categorias distintas e indicadoras da
institucionalização da memória social. Forma e conteúdo são indissociáveis e
a materialidade é condição essencial da existência desses objetos. Não cabe,
também, dizer que os objetos pertencem a classes pré-determinadas de
memórias institucionais. O abstrato ou potencial deve ser o estado
permanente do objeto na sociedade, onde este se expõe à possibilidade de
diversas análises.
A substância, característica comum a todos os objetos que poderão vir
a representar a memória social, nos conduz ao conceito de Unicidade, objeto
de nossa primeira proposição, ou seja:
173

Os documentos que são os objetos de estudo da Memória Social não são


diferenciados em sua essência ou seja, não se agrupam em categorias
específicas, tal como os exemplos tradicionais: o livro para Bibliotecas, o objeto

tridimensional para Museus e o manuscrito para Arquivos.


II - MODO, ACIDENTE ou o que existe na substância, seus modos de ser,
ou a primeira leitura de insistência

O modo de ser ou acidente está diretamente ligado a dois


atributos:
TEMPO E ESPAÇO. Essas características relativas conduzem aos conceitos de

mobilidade e seletividade no campo social. O caráter de mobilidade do objeto


no tecido social vem a garantir o seu trânsito livre pelas instituições e pela
sociedade, seja na dinâmica dos projetos, seja na representação das memórias.
Nesta categoria, embora a substância não seja alterada, o seu modo de ser
pode se transformar por várias causas: deterioração, corrosão, erosão, no caso
de processos naturais, e transformação, no caso da interferência do Homem.
Assim, tanto um tronco de árvore pode se transformar numa cadeira,
posteriormente numa tábua ou num pedaço de carvão, ou um bloco de
mármore se constituir na Pieta ou Vênus de Milo, ou ainda, um relógio se
transformar em tampo de mesa, um livro servir de suporte para regular a
altura do monitor de vídeo, uma chapinha de cerveja funcionar como calço da
mesa do bar, ou um pergaminho antigo servir de quadro decorativo.
A categoria modo de ser nos conduz, portanto, à nossa segunda tese,
Virtualidade, em que:
174

A atribuição de predicáveis ao objeto submetido ao observador dentro das

dimensões espaço-tempo é seletiva, o que proporcionará, arbitrariamente, uma


classificação desse objeto.

III - RELAÇÃO, o que liga um ser ao outro, ou a segunda leitura de


insistência.

A relação se constitui na categoria mais complexa, dado que


implica
diretamente na intenção intelectual de reduzir dois ou mais atributos
para
formar um terceiro. Porém, em função das categorias anteriores, que não se
anulam em virtude da complexidade crescente desta, não se pode afirmar que
a relação é definitiva. Portanto, o produto da relação entre objetos é o que
significa. E essa significação é circunstancial em favor da virtualidade e da
essência, sempre presentes ao objeto em questão. Os atributos de prova,
testemunho, são, portanto, circunstanciais, embora sejam as características
mais fortes do objeto transformado em signo de memória e, por fim,
documento.
A atribuição do significado de memória é o que vai constituir a classe
de Documento, ainda que provisório. Assim, é lícito afirmar que:

A transformação dos objetos do cotidiano em documentos é intencional,


constituindo estes uma categoria temporária e circunstancial.

Se a soma total dos atributos verdadeiros de um objeto gera o seu


conceito, temos que:
175

Documento é uma representação, um signo, isto é, uma abstração


temporária e circunstancial do objeto natural ou acidental, constituído de essência

(forma ou forma/conteúdo intelectual), selecionado do universo social para


testemunhar uma ação cultural.

Podemos afirmar, assim, que não existe memória sem documentos,


uma vez que estes só se revelam a partir de escolhas circunstanciais da
sociedade que cria objetos. Tanto para a História quanto para a Arqueologia e
para a Ciência da Informação não basta apenas a existência de uma ação do
Homem para configurar a memória social mas, sobretudo, é necessário haver
uma seleção, essa ação que pinça do tecido social um nó, arbitrariamente
escolhido, para representar um aspecto do conhecimento. Quanto à
organização desses nós, já configurados como documentos, os discursos
teóricos nos apontam para a mobilidade destes dentro da memória
documentária, não importando qual o seu suporte material ou quem os
presenteou com o atributo de documento mas, tão somente, como podem se
relacionar uns com os outros, e assim gerar novos conhecimentos
representados por novos objetos e, conseqüentemente, talvez, novos
documentos. São as insistências no tempo. Assim, são configuradas as
memórias temáticas, tal como imaginado por Otlet e modelo atual dos
hipertextos. A horizontalidade, o cotidiano dos espaços de memória, a
predisposição para o relacionamento constante confirmam que a unicidade, a
virtualidade ou mobilidade e a significação são inerentes ao conceito de
documento.
176

A conseqüência do conceito de Documento explicitado por este


trabalho poderá permitir não só uma revisão das atribuições das instituições
que buscam a preservação da memória social, como também proporcionar
uma orientação ao desenvolvimento teórico-metodológico das disciplinas que
vêem a Memória como seu objeto de estudo.
Discutir o conceito de documento significa, antes de mais nada,
compreender que a interferência da lógica e da dialética são essenciais ao
resultado significativo. Dizer que tudo é documento é abdicar de sua
compreensão. Dizer que documento não existe é anular a possibiblidade de
memória.

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ABSTRACT
185

This work aims at questioning the traditional concept of Document mainly in


those aspects related to Social Memory preservation. Three proposals are
presented: Unicity or equality of objects that are potentially representative of
social memory; Virtuality or mobile condition, the object transit between
social memory and cultural memory; and Meaning or the transformation
process of daily life objects into documents. The methodology used is based
on the guidelines of the Information Science, by organizing the analyses of
theoretical discourses during the following phases of the documents:
production (culture, society and memory), selection (representation and
communication), organization (theory of documentary memory) and use
(memory institutions). As a conclusion, a new concept of Document is
presented, built upon the Aristotelian categories and the stoical thought.

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