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Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)

O48f Oliveira, Mariangela Rios de; Lopes, Monclar Guimarães (orgs.).


Funcionalismo Linguístico: interfaces / Organizadores: Mariangela Rios de Oliveira e
Monclar Guimarães Lopes. –
1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2023; figs.; tabs.; quadros.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-804-6.

1. Gramática. 2. Linguística. 3. Semântica.


I. Título. II. Assunto. III. Organizadores.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:

1. Semântica. 401.43
2. Linguística. 410
3. Linguística Aplicada. 468
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(UnB – Brasília)
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(UFMG – Belo Horizonte)

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Impresso no Brasil - 2023


À Maria Helena de Moura Neves (in memorian), por sua
contribuição tão generosa à Linguística brasileira, que
sempre teve, no entrecruzamento da gramática e dos usos,
o ponto de partida fundamental para qualquer explicação
sobre a (lingua)gem.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO......................................................................................................... 9
Mariangela Rios de Oliveira / Monclar Guimarães Lopes

ENTREVISTA COM O PROFESSOR SEBASTIÃO JOSUÉ VOTRE........................17

A LINGUÍSTICA FUNCIONAL EM PERSPECTIVA................................................. 27


Maria Angélica Furtado da Cunha

GRAMATICALIZAÇÃO E CONSTRUCIONALIZAÇÃO NA PESQUISA


FUNCIONALISTA........................................................................................................ 51
Mariangela Rios de Oliveira

O PAPEL DA AUTOMATIZAÇÃO E DA INTERSUBJETIVAÇÃO NA ANÁLISE


DA MUDANÇA LINGUÍSTICA: NOVAS REFLEXÕES PARA A ABORDAGEM
DA CONSTRUCIONALIDADE................................................................................... 81
Monclar Guimarães Lopes /Ivo da Costa do Rosário

TRATAMENTO DA MUDANÇA LINGUÍSTICA NA ABORDAGEM DA LFCU........115


Karen Sampaio Braga Alonso /Maria Maura da Conceição Cezario

FUNÇÕES E CONSTRUÇÕES: PRAGMÁTICA, DISCURSO E ENCAPSULAMENTO


CONSTRUCIONAL....................................................................................................... 139
Roberto de Freitas Junior / João Paulo da Silva Nascimento

POLISSEMIA, METÁFORA E CONECTORES ADVERBIAIS................................. 165


Taísa Peres de Oliveira
A QUESTÃO DA EQUIVALÊNCIA DE SIGNIFICADO DE CONSTRUÇÕES E A
VARIAÇÃO LINGUÍSTICA......................................................................................... 193
Christina Abreu Gomes

POR UMA ANÁLISE COMPREENSIVA DO CRUZAMENTO VOCABULAR


EM PORTUGUÊS.......................................................................................................... 221
Carlos Alexandre Gonçalves

O HÁPAX LEGOMENON E O QUASI-HÁPAX NA MORFOLOGIA


HISTÓRICO-CONSTRUCIONAL: UMA ANÁLISE DE ESQUEMAS SUFIXAIS
IMPRODUTIVOS NO PORTUGUÊS ARCAICO........................................................ 257
Natival Almeida Simões Neto / Carmelúcia Santos Assis Félix

MORFOSSINTAXE NA SALA DE AULA SOB O VIÉS FUNCIONALISTA:


ELEMENTOS CIRCUNSTANCIAIS EM FOCO......................................................... 291
Edvaldo Balduino Bispo / Fernando da Silva Cordeiro

FUNCIONALISMO NORTE-AMERICANO E ENSINO DE GRAMÁTICA:


INTERFACES TEÓRICAS NO ESTUDO DAS CLASSES DE PALAVRAS.............327
Dennis Castanheira

SOBRE OS AUTORES.................................................................................................. 351


funcionalismo linguístico: interfaces

APRESENTAÇÃO

Mariangela Rios de Oliveira


(UFF/UFOP/CNPq/Faperj)

Monclar Guimarães Lopes


(UFF)

Esta coletânea reúne pesquisas de ponta apresentadas no XXV


Seminário Nacional e XII Seminário Internacional do Grupo de Estudos
Discurso & Gramática (D&G), realizado no Instituto de Letras da Uni-
versidade Federal Fluminense, em outubro de 2022, com apoio da Faperj
e do CNPq. O evento contemplou o tema Língua em uso: cognição social
e rede construcional, reunindo no campus do Gragoatá, em Niterói, uma
série de especialistas dedicados à investigação dos usos linguísticos e
suas interfaces, notadamente aquelas voltadas para o tratamento da cons-
trução gramatical, da variação linguística, da morfologia construcional
e do ensino de língua, entre outras.
O conjunto de textos aqui apresentados traduz o perfil do evento
e procura responder a questões de fundo tratadas durante o seminário e
que se situam no horizonte das pesquisas da área. Entre tais questões,
destacam-se: a) Qual o legado do Funcionalismo clássico de vertente
norte-americana, na linha de Givón, Thompson e Hopper, por exemplo,
às pesquisas da área no século XXI?; b) Como a abordagem construcional
da gramática, assumida em Traugott e Trousdale (2013) e Hilpert (2014),
entre outros, é incorporada aos estudos funcionalistas na atualidade?; c)

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funcionalismo linguístico: interfaces

Que contribuições e restrições devem ser consideradas nessa interface?;


d) Como a variação linguística, já contemplada nos estudos funcionalistas
clássicos, pode ser investigada na perspectiva da construção?; e) De que
forma a morfologia construcional concorre para a pesquisa funcionalista?;
f) Que contribuições os resultados da investigação dos usos linguísticos
podem trazer ao ensino de língua materna na Educação Básica do Brasil?;
g) Que perspectivas e desafios estão postos para aqueles comprometidos
com investigação da língua em uso neste século, notadamente em seu
viés pragmático e cognitivo?
Para contemplar essas e outras questões, apresentamos à comunida-
de acadêmica a coletânea Funcionalismo linguístico: interfaces. A obra
reúne 11 capítulos, distribuídos entre textos que tanto se voltam para
o legado dos estudos clássicos funcionalistas quanto para as interfaces
destes estudos em relação a outras áreas da pesquisa linguística. O obje-
tivo é oferecer ao leitor um amplo e atualizado quadro do estado da arte
do Funcionalismo que tem seu marco inicial na década de 80 do século
XX, na Costa Oeste dos Estados Unidos.
Os 11 capítulos referidos são antecedidos por uma entrevista com
Sebastião Josué Votre, titular de Linguística da UFRJ que traz os fun-
damentos funcionalistas norte-americanos para o Brasil, mais especifi-
camente para a Faculdade de Letras, no contexto do Programa de Pós-
-Graduação em Linguística. A partir daí, Sebastião Votre funda o D&G
nos anos 90 do século XX, grupo de pesquisa que passa a investigar os
mecanismos funcionais do português, notadamente em sua variedade
brasileira. Nessa entrevista, Votre faz um retrospecto de sua trajetória
acadêmica, que se confunde com a própria trajetória do Funcionalismo
no Brasil, avaliando e refletindo acerca dos 30 anos de investigação
linguística praticada pelo D&G.
No primeiro capítulo, intitulado A Linguística Funcional em
perspectiva, Maria Angélica Furtado da Cunha, pesquisadora do D&G-
-UFRN, faz uma retrospectiva da Linguística Funcional norte-americana.

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funcionalismo linguístico: interfaces

De início, parte tanto da motivação de seus estudos – tomar “a função


como elemento essencial à linguagem” (MARTELOTTA; KENEDY,
2015, p. 12) – quanto de suas diferenças para com a perspectiva formal
da linguística. Em sequência, trata, em linhas gerais, de sua versão mais
atualizada, a Linguística Funcional Centrada no Uso (ou LFCU), um
modelo de análise que propõe o diálogo entre a Linguística Funcional
norte-americana e a Linguística Cognitiva, em especial, a Gramática
de Construções Baseada no Uso. Segundo a autora, seu texto busca
focalizar a consolidação de algumas tendências presentes na literatura
especializada, bem como propor a reflexão de alguns pontos críticos da
teoria, que suscitam discussão.
No segundo capítulo, Gramaticalização e construcionalização na
pesquisa funcionalista, Mariangela Rios de Oliveira, líder do D&G-UFF,
discute o lugar da gramaticalização (GRAM) e o da construcionalização
(CONSTR) na pesquisa funcionalista. A autora, em conformidade com
Traugott (2021) e Heine, Narrog e Long (2016), considera que as duas
perspectivas podem ser tomadas complementarmente. Com o intuito de
abordar as semelhanças e diferenças entre GRAM e CONSTR, bem como
de propor uma ecologia entre esses dois fenômenos, o texto de Mariangela
busca contemplar uma série de objetivos, dentre os quais destacamos
dois: a) identificar os pontos convergentes e contrastivos entre GRAM e
CONSTR; b) demonstrar como GRAM e CONSTR podem fundamentar
a investigação linguística.
No terceiro capítulo, O papel da automatização e da intersub-
jetivação na análise da mudança linguística: novas reflexões para a
abordagem da construcionalidade, Monclar Guimarães Lopes e Ivo da
Costa do Rosário, pesquisadores do D&G-UFF, buscam apresentar novos
fatores de análise que ajudem na descrição do fenômeno a que os autores
têm chamado por construcionalidade (ROSÁRIO; LOPES, 2018, 2023).
Definida pelos autores como “a relação sincrônica entre duas ou mais
construções, de modo que uma construção pode ser apontada como base
para outra(s), a partir de seus diferentes níveis de gradiência e grama-

11
funcionalismo linguístico: interfaces

ticalidade” (ROSÁRIO; LOPES, 2023, p. 63), a construcionalidade se


apresenta como um modelo para descrição da mudança a partir de dados
sincrônicos. Neste texto, Monclar e Ivo apresentam um conjunto de fato-
res (não exaustivos) que podem auxiliar o pesquisador no tratamento do
fenômeno: os parâmetros de gramaticalização (LEHMANN, 2015), bem
como os processos cognitivos da automatização e o da intersubjetivação
na reconfiguração das relações sequenciais. Como ilustração, recorrem
a duas pesquisas empíricas desenvolvidas sob suas supervisões: a cons-
trução aditiva [SEM Vdicendi QUE] e os chunks aditivos de extensão além
de tudo, além do mais e além do que.
No quarto capítulo, Tratamento da mudança linguística na abor-
dagem da LFCU, Karen Sampaio Braga Alonso, líder do D&G-UFRJ, e
Maria Maura Cezario, coordenadora nacional do D&G, ao reconhecerem
que os mecanismos de mudança que ocorrem no passado são também
detectados em recorte sincrônico, defendem que as mesmas categorias
analíticas sejam empregadas nas pesquisas em mudança, sejam elas
diacrônicas ou sincrônicas. Para evidenciar essa dupla possibilidade de
aplicação, as autoras apresentam um conjunto de estudos desenvolvidos
pelos pesquisadores do D&G-UFRJ: a) a construcionalização de um
monte de, estudo realizado a partir de dados diacrônicos e sincrônicos;
b) a formação das construções [mó X], [corona X] e [vai que], pesquisas
desenvolvidas com base em dados exclusivamente sincrônicos, dada a
recência desses fenômenos no português brasileiro.
No quinto capítulo, Funções e construções: pragmática, discurso
e encapsulamento construcional, Roberto de Freitas Junior, pesquisa-
dor do D&G-UFRJ, e João Paulo da Silva Nascimento, doutorando em
linguística pela UFRJ, discutem o conceito de encapsulamento cons-
trucional a partir do diálogo de dois arcabouços teóricos: a Gramática
de Construções (GC) e a Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH,
2013; ORLANDI, 2009). Os autores, por meio dessa interface, buscam
respostas para “questões que dizem respeito ao armazenamento de base
e força pragmática, que ratificam e/ou retificam os parâmetros que regu-

12
funcionalismo linguístico: interfaces

lam as bases interacionais e ideológicas das sociedades”. Para ilustrar a


pertinência do conceito e da interface, descrevem os diferentes usos da(s)
forma(as) ‘veado ~ viado’ no português do Brasil (PB) atual.
No sexto capítulo, Polissemia, metáfora e conectores adverbiais,
Taísa Peres de Oliveira, pesquisadora do D&G-UFRN, explora a rede
construcional a partir de dois tipos de elos: os de polissemia e os meta-
fóricos. Para a autora, os primeiros dizem respeito às construções cujas
ligações se dão por uma mesma especificação sintática, mas diferentes
subespecificações semânticas; os últimos, às construções que ligam
extensões metafóricas a um esquema mais geral. Sua análise busca des-
crever não apenas a natureza do fenômeno, mas também as motivações
cognitivas que lhes são subjacentes. Como ilustração dessas relações,
Taísa explora diversas construções conectoras adverbiais complexas que
podem atuar em diferentes domínios semânticos, tais como: desde que,
exceto se, ainda que, mesmo se etc.
No sétimo capítulo, A questão da equivalência de significado das
construções e a variação linguística, Christina Abreu Gomes, professora
titular do Departamento de Linguística e Filologia da UFRJ, retoma a
antiga discussão travada entre William Labov (1972) e Beatriz Lavan-
dera (1978): construções sintáticas distintas, como as que formam a voz
ativa e a passiva, podem ser consideradas fenômenos variáveis? Com
base tanto nos pressupostos mais recentes da Sociolinguística Variacio-
nista quanto nos da Gramática de Construções, a autora defende que o
tratamento variável das construções sintáticas é perfeitamente possível.
Como ilustração, apresenta duas variáveis sintáticas do PB que apresen-
tam equivalência semântica e/ou funcional, a saber: a) a alternância de
dativo do PB; b) a alternância na realização de orações relativas do PB:
a cortadora, a copiadora e a preposicionada.
No oitavo capítulo, Por uma análise compreensiva do cruzamento
vocabular em português, Carlos Alexandre Gonçalves, professor titular
do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ, defende

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funcionalismo linguístico: interfaces

que a classificação do fenômeno do cruzamento vocabular (CV) como


um tipo de composição, observada em clássicos como Sandmann (1989)
e Basílio (2009), é equivocada. Segundo o autor, há pontos de conver-
gência e divergência entre a composição e o CV. A partir da descrição de
aspectos formais e funcionais, Carlos Alexandre apresenta uma tipologia
para a descrição do CV, e faz isso, segundo suas próprias palavras, “sem
se comprometer com qualquer teoria linguística”.
No nono capítulo, O hápax legomenon e o quasi-hápax na morfolo-
gia histórico-construcional: uma análise de esquemas sufixais improduti-
vos no português arcaico, Natival Almeida Simões Neto, pesquisador do
D&G-UFF, e Carmelúcia Santos Assis Félix, bolsista de iniciação cientí-
fica da UEFS, discutem a aplicação dos modelos construcionais de análise
morfológica para a descrição de construções improdutivas, conhecidas
como hápax legomena – apenas uma referência – e quasi-hápax – “ele-
mento pouco recorrente que se aplica a pouquíssimas unidades lexicais
na língua, tendo baixíssima frequência token” (GONÇALVES, 2021b,
p. 70). Os hápax legomena e quasi-hápax investigados pelos autores são
esquemas sufixais improdutivos do português arcaico, a saber: (a) X-edo;
(b) X-engo; (c) X-ento; (d) X-ez; (e) X-iça; (f) X-idão; (g) X-isco; (h)
X-ismo; (i) X-ista; (j) X-izar; (k) -ives; (k) X-udo; (l) X-ume. Os dados
da pesquisa são descritos a partir da interface de dois modelos de análise
morfológica: a Morfologia Construcional (BOOIJ, 2010; GONÇALVES,
2016b) e a Morfologia Relacional (JACKENDOFF; AUDRING, 2020;
GONÇALVES, 2021).
No décimo capítulo, Morfossintaxe na sala de aula sob o viés fun-
cionalista: elementos circunstanciais em foco, Edvaldo Balduino Bispo
e Fernando da Silva Cordeiro, líder e pesquisador do D&G-UFRN, res-
pectivamente, ao assumirem a perspectiva enunciativo-discursiva para
o ensino de língua portuguesa consubstanciada nos PCN e na BNCC,
defendem, em consonância com esses documentos, que o ensino de gra-
mática se dê “por meio de práticas de análise e reflexão da língua, sempre
diretamente relacionadas às atividades de leitura/escuta e produção de

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funcionalismo linguístico: interfaces

textos”. Segundo os autores, uma vez que o Funcionalismo linguístico


se “caracteriza por investigar a relação entre a estrutura gramatical das
línguas e os diferentes contextos interacionais em que ela é usada”, ele
pode contribuir significativamente para o ensino de língua portuguesa
nas escolas. Como ilustração desse potencial de aplicação, Edvaldo e
Fernando apresentam uma proposta de atividade para explorar as cate-
gorias advérbio/locução adverbial e adjunto adverbial na sala de aula.
Por fim, no capítulo onze, Funcionalismo norte-americano e ensino
de gramática: interfaces teóricas no estudo das classes de palavras, Den-
nis Castanheira, pesquisador do D&G-UFF, defende que “a articulação
teórica do Funcionalismo à Sociolinguística e à Linguística do Texto
possibilita uma perspectiva mais ampla e multifacetada das classes de
palavras na escola”. Como ilustração dessa aplicação, o autor apresenta
algumas propostas de trabalho docente, voltadas para o tratamento dos
pronomes pessoais com função de sujeito, dos pronomes demonstrativos,
das conjunções adversativas e dos advérbios de tempo e lugar.
Esperamos que o conjunto de textos aqui apresentados possa ofere-
cer aos pesquisadores e demais interessados da área um amplo e diver-
sificado panorama acerca dos rumos e das tendências de investigação
do Funcionalismo no século XXI, com destaque para suas interfaces no
vasto campo dos estudos linguísticos.

Boa leitura a todos!

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funcionalismo linguístico: interfaces

ENTREVISTA COM O
PROFESSOR SEBASTIÃO JOSUÉ VOTRE

Apresentação de nosso entrevistado:

Temos a satisfação de abrir esta coletânea com a entrevista de um


dos pioneiros da pesquisa da língua em uso no Brasil. Sebastião Votre é
um dos membros fundadores do PEUL (Programa de Estudos sobre o Uso
da Língua), de vertente sociolinguística, na UFRJ, no final da década de
1970. Em 1992, ele sai do PEUL e cria o Grupo de Estudos Discurso &
Gramática (D&G), também na UFRJ, no viés do Funcionalismo praticado
na Costa Oeste dos Estados Unidos, inspirado nos postulados de Talmy
Givón, Sandra Thompson e Wallace Chafe, entre outros.
Na liderança do D&G na UFRJ, Sebastião Votre torna-se referência
dos estudos acerca da mudança linguística e dos mecanismos funcionais
da língua praticados no Brasil, desenvolvidos no contexto do Programa
de Pós-Graduação em Linguística da UFRJ, com grande impacto e
repercussão nacional. Seus estágios de pós-doutoramento nos Estados
Unidos muito contribuíram para que as bases teórico-metodológicas do
Funcionalismo se propagassem no país. Sob a orientação de Sebastião
Votre, foram formados muitos mestres e doutores que levaram os fun-
damentos funcionalistas para diversas instituições de ensino superior.
No bojo desse processo, o D&G, na segunda metade da década de 1990,
expande-se em mais duas sedes: UFRN e UFF.
Sebastião Votre é professor titular de Linguística aposentado pela
UFRJ e professor associado de Língua Portuguesa aposentado pela UFF.

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funcionalismo linguístico: interfaces

Foi bolsista A1 do CNPQ, na área de Teoria e Análise Linguística, por


muitos anos, liderando projetos integrados de pesquisa em torno dos
usos linguísticos do português em perspectiva pancrônica. Sua ativi-
dade acadêmica também se expande em outras áreas, na demonstração
de seu amplo espectro de interesses. Assim, criou também grupos de
pesquisa sobre semiótica das atividades humanas, sobre imaginário e
representações sociais, implantou a análise do conteúdo e do discurso
das representações sociais na área sociocultural da Educação Física e do
desporto. Criou e coordenou ainda cursos de especialização em ensino
e produção textual no CEDERJ, destinados a docentes da rede pública
da Educação Básica do Rio de Janeiro.
Atualmente, Sebastião Votre continua com interesse voltado para as
Ciências Humanas, com foco na análise crítica do discurso, na complexi-
dade da gramática e na filosofia da linguagem. Trata-se, em verdade, de
um pesquisador inquieto e curioso sobre questões, conflitos e alternativas
para os seres humanos no século XXI.
Suas respostas às perguntas que formulamos, apresentadas a seguir,
dão a medida de quem foi e de quem é Votre, que se constitui, há mais de
30 anos, numa referência na área do Funcionalismo e num mestre para
todos os interessados na pesquisa dos usos linguísticos.

Entrevista:

1. Nos anos 80 do século XX, o senhor sai do país e, em estágio


de pós-doutoramento, inicia uma investigação mais profunda das
bases teóricas do Funcionalismo praticado na Costa-Oeste dos Es-
tados Unidos. O que o levou a investir no conhecimento e na apro-
priação dessa, na época, inovadora área da pesquisa linguística?

Votre: Eu vinha da Gramática dos casos profundos, de Fillmore,


que buscava universais semânticos. O doutorado na PUC-Rio, com Naro,

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funcionalismo linguístico: interfaces

abriu as portas da Sociolinguística e da Universidade da Pensilvânia, onde


trabalhei com Labov e continuei a investigar a estrutura da informação,
com Ellen Prince. Resultou daí a busca de fatores informacionais. Nunca
mais abandonei a busca dos universais semânticos.

2. Na década de 90 do século XX, na UFRJ, o que representa ter


fundado o Grupo de Estudos Discurso & Gramática (D&G) para
a pesquisa do português em uso no Brasil?

Votre: A criação do grupo foi um acontecimento coletivo, por


sugestão de Diane Vincent, da Universidade de Laval, sob impacto di-
reto das discussões sobre discurso e gramática, e da reação gerativista
a nossos postulados. Perambulávamos do discurso para a gramática,
e desta para o discurso. Lidávamos, portanto, com gramaticalização e
pós-gramaticalização, ou discursivização. Naquele momento, atacados
por Miriam Lemle, para quem fazíamos “funcionalismo público”, não
vislumbrávamos o impacto do acontecimento nos centros de pesquisa do
país. O que certamente ocorreu pela qualidade e seriedade dos membros
fundadores do D&G e de seus continuadores.

3. Ainda nessa década de 90, o senhor elabora dois livros, que


circularam na área sem, contudo, terem sido publicados: “Lin-
guística funcional: teoria e prática” (1992) e “Iconicidade” (1993),
além de apresentar, em 1994, a conferência “A base cognitiva da
gramática”, em seu concurso de titular de Linguística na UFRJ.
Como essas produções seminais concorreram para fomentar o
Funcionalismo no Brasil?

Votre: A ida para Laval, em 1992, foi sugestão de Naro e a convi-


te de Vincent. Os dois textos relatam e refletem o estágio de 1992, na
Universidade de Laval, sob orientação de Diane Vincent. Enquanto ela
seguia o grupo de Genebra, que postulava apagamento de sentido no

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funcionalismo linguístico: interfaces

movimento do discurso para a gramática, eu lia “Approaches to gram-


maticalization”, publicado em 1989, e defendia esvaimento do sentido
principal, mas defendia que continuava a haver sentido, embora pálido,
no que se gramaticalizava.
Por outro lado, “Linguística funcional teoria e prática” relatava,
resumia e comentava nossos estudos no Rio, sob forte influência de
Givón, com “From discourse to syntax”, e Haiman, com “Iconicity in
syntax”. As teses da iconicidade diagramática e gradiente nunca mais
me abandonaram, e continuam ativas nos estudos que hoje desenvolvo
sobre o discurso do acontecimento.
Já “A base cognitiva da gramática” sintetizava leituras que fiz no
hospital da Universidade de Montréal, sobre memória sintática e lexical,
e que depois abandonei, por falta de evidência para as hipóteses aven-
tadas. Na mesma época, fiquei impactado com as ideias de Jakobson,
sobre metáfora e metonímia, que depois passei a considerar fantasiosas.

4. Em 1996, o D&G publica “Gramaticalização no português do


Brasil: uma abordagem funcional”. No texto introdutório dessa
coletânea, assinado também por Mário Eduardo Martelotta e Ma-
ria Maura Cezario, destaca-se que se trata da publicação de “obra
pioneira na divulgação dos estudos sobre variação e mudança
semântica e morfossintática na fala e na escrita da comunidade lin-
guística brasileira” (MARTELOTTA; VOTRE; CEZARIO, 1996,
p. 9). O que essa obra representa para os estudos funcionalistas de
vertente norte-americana no Brasil?

Votre: Nosso foco, na época, depois do estágio no Canadá, ia além


da perspectiva de Meillet, de 1912, que se debruçava sobre os itens que
migram do léxico para a gramática. Centrados na trajetória de partícu-
las denotativas, das margens da gramática, procurávamos identificar os
contextos de cada partícula e de variabilidade e mudança nos seus usos.

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funcionalismo linguístico: interfaces

Em mais de um estudo, focalizamos variabilidade no uso, um reflexo


claro de nossa formação em Sociolinguística de orientação laboviana.
O principal mérito da obra é ter iniciado muitos estudos empíricos
sobre construções em processo de esvaziamento semântico e de liberação
de posições sintáticas. Nessa coletânea, os capítulos sobre construções
denotativas, resultados de gramaticalização, como aí, daí, né, abriu um
leque de estudos que se transformaram em dissertações de mestrado.

5. Como a pesquisa em gramaticalização concorreu e concorre para


o maior conhecimento da mudança linguística e dos mecanismos
funcionais do português em uso?

Votre: Gramaticalização e gramaticização procuram dar conta de


variabilidade e mudança no uso da língua. Entretanto, uma é descritiva,
enquanto gramaticização prepara a língua para o exercício fascista da
obrigação. Entretanto, pouco fizemos na área da gramaticização, salvo
em estudos sobre infinitivo flexionado, particípios duplos e construções
como meio, meia, menos, menas.
A pesquisa sobre gramaticalização contribui para a explicitação
semântica dos conteúdos de frases feitas, que se utilizam sem consciência
dos detalhes de sentido e significado dessas frases feitas, à imagem do
que ocorre com a fonossintaxe.

6. No século XXI, a pesquisa funcionalista passa a incorporar a


abordagem construcional da gramática, tendo na obra de Traugott
e Trousdale (2013) uma de suas referências básicas no que hoje
nomeados de Linguística Funcional Centrada no Uso. Como tal
incorporação pode contribuir para o desenvolvimento da investi-
gação dos usos e da mudança linguística?

21
funcionalismo linguístico: interfaces

Votre: A abordagem construcional pode contribuir com a incorpo-


ração de variantes contemporâneas do que chamávamos de parsers, e
mais recentemente de algoritmos, como o GPTX3 e 4, ao assumir que
as línguas são complexos de construções, apesar de as mesmas serem
entidades mal definidas, com zonas de sombra, em que tanto a forma
quanto a função servem a papéis indiciais, e não explícitos.
Do ponto de vista de aplicação dos estudos construcionistas, tenho
uma questão para os membros do grupo. Nos usos cultos, impera o fas-
cismo aludido por Barthes. A gramática obriga a fazer. Qual a urgência
de incorporar políticas públicas de emancipação das pessoas pertencentes
a grupos minoritários, se estudamos fenômenos erráticos, em que as
línguas avançam e recuam, ou variam sem mudar?

7. De outra parte, que ponderações ou ressalvas devem ser feitas


ao se assumir a construção gramatical nos estudos funcionalistas?

Votre: O risco de ceder aos encantos das propostas de caráter ge-


rativo, ou quase gerativo. O perigo de aceitar, sem discutir, o princípio
do emparelhamento entre forma e função, duas entidades de natureza
distinta, uma material, outra mental.
Os estudos da área médica sobre relação entre coração e cérebro
mostram que a variabilidade dos batimentos cardíacos interfere no fun-
cionamento da mente, e vice-versa. Mas mostram também que a forma é
determinante. Em uns poucos casos, é a mente quem coordena e determina
a variação dos batimentos. A simples expressão emparelhamento nada
diz sobre direcionalidade.

8. Dos anos 1980 até agora, transcorridos mais de 40 anos da


pesquisa em Linguística Funcional de vertente norte-americana
no Brasil, que perspectivas podem ser vislumbradas? Quais os
novos rumos?

22
funcionalismo linguístico: interfaces

Votre: Abordagem crítica dos ganhos teóricos da gramaticalização,


da gramaticização e do construcionalismo, discussão das relações entre
poder e valorização das variantes sem prestígio social. Discussão sobre
variabilidade lexical e sintática, sobre a aprendizagem de variantes pres-
tigiadas para cada tipo de profissão. Análise criteriosa das promessas e
limitações do construcionalismo, para evitar transformá-lo em aconteci-
mento. Os novos rumos estão mais presentes na próxima resposta.

9. Como o Funcionalismo se volta para a investigação da língua


em uso, de forma ampla e holística, que outras vertentes teóricas
da Linguística contemporânea permitem interfaces com a pesquisa
funcionalista?

Votre: Vou citar quatro. Criação de subgrupo para proposição e


análise crítica das propostas de planejamento linguístico referente a lin-
guagem neutra, contribuição com os algoritmos de processamento verbal
de corpus linguístico, avaliação do efeito das construções ideológicas
divulgadas nas narrativas de orientação fascista, análise do efeito dos
movimentos sociais nas línguas. Com o avanço da inteligência artificial
(IA), os novos chats oferecem ferramentas novas de interação das pes-
soas com as máquinas, de produção de textos, acadêmicos e literários,
e de produção de resumos. Entendo que quem estuda o uso da língua
tem uma ampla área de investigação nesses itens que acabo de nomear.
Avançamos tanto, no conhecimento das características composi-
cionais dos gêneros textuais, que estamos criando algoritmos de IA que
produzem textos coerentes, coesos e informativos, a partir das perguntas
que formulamos. Corremos o risco de sermos substituídos pelas máquinas,
e sermos desnecessários, como professores. Não vale a pena formular
uma linha de pesquisa sobre perspectivas, dos avanços da IA na tradu-
ção, na composição, na interpretação, no resumo e na investigação de
características construcionais de textos?

23
funcionalismo linguístico: interfaces

Votre: Sugiro que a nova linha de pesquisa arrole tópicos cons-


trucionais. Gostaria de formular uma questão, pensando em linha de
pesquisa. Ei-la:
Uma linha de pesquisa que permita avançarmos no conhecimento
das características composicionais dos gêneros textuais, já que estamos
criando algoritmos de IA que produzem textos coerentes, coesos e infor-
mativos. Não podemos correr o risco de sermos substituídos pelas má-
quinas, e sermos desnecessários, como professores. Vale a pena formular
uma linha de pesquisa sobre novas perspectivas, e novos avanços da IA na
tradução, na composição, na interpretação, no resumo e na investigação
de características construcionais de textos complexos que a IA ainda não
consegue resolver, e que avance nas características do diálogo tenso, da
polêmica, em que novas frentes surgirão para a pesquisa. Sugiro tam-
bém que se investiguem características semânticas dos cognatos e falsos
cognatos, para que os algoritmos se aperfeiçoem nessas traduções. Por
fim, que se invista no estudo das paráfrases, como primeira alternativa
de interpretação, em que o conteúdo é o princípio da busca.

Comentários do entrevistado

Parabéns pelo conteúdo abordado no roteiro. As perguntas cobrem


minha trajetória e me levam a repensar para responder a questões rela-
cionadas a inovação, resultados e, sobretudo, a ressalvas e restrições aos
movimentos cognitivista e construcional.
Por outro lado, me obrigam a rever, criticamente, o que tentei fa-
zer, fiz e estou fazendo. Nada foi iniciativa minha. Fui instado a fazer,
viajar, estudar, desde o momento em que fazia o mestrado na PUC-RS,
em 1972, sob a orientação de Agostinus Staub e estudava gramática
de casos profundos, sob influência explícita do Irmão Elvo Clemente.
Substantivos derivados de bases verbais, abordagem transformacional.
– Vá para a PUC-Rio, estudar com Naro, que é o grande professor de
gramática gerativa.

24
funcionalismo linguístico: interfaces

Vim e embarquei, com Naro e Guy, na seara sociolinguística. – Vá


estudar com Labov, conviva com ele e Gillian. E traga novos insights
para análise de comunidades minoritárias. Labov trabalhara com os
negros de Nova Iorque e de outras partes dos Estados Unidos. Fui, e me
envolvi com o status da informação, continuidade do tópico, que me
levou a Givón.
Percorrendo a geografia de minha memória, vejo que sempre agi a
pedido. E estou contente por ter atendido, ao menos em parte, às solici-
tações de colegas, mestrandos e doutorandos. Acho que fui uma espécie
de embaixador, que percorreu caminhos nunca dantes por mim trilhados,
ao modo dos enviados de Dom Eduardo, por volta de 1430, que viajaram
pelo reino, colhendo mezinhas que o rei reuniu, editou e publicou.
Gostaria de acrescentar uma pergunta: Como os estudos do discurso
do acontecimento, na linha de Alain Badiou, se relacionam com a traje-
tória de estudos da língua em situação real de comunicação? Os novos
modelos de análise podem ser considerados acontecimentos genuínos?
Ou são variantes do que reina nos diferentes grupos de pesquisa, do país
e além?
Estou pensando na polêmica sobre gramaticização das referências
pronominais relacionadas à diversidade de gênero. Numa língua em que
“homem” vale para ambos os sexos, mas lembra de pronto o varão, a
discussão é relevante. A entrada das instituições educacionais e jurídicas
no debate revela que o acontecimento é ideologizado. O grupo D&G
pretende tirar uma posição sobre isso?

25
funcionalismo linguístico: interfaces

A LINGUÍSTICA FUNCIONAL EM PERSPECTIVA

Maria Angélica Furtado da Cunha


(UFRN)

Introdução

Este texto tem como base a conferência de abertura proferida


no XXV Seminário Nacional e XII Seminário Internacional do
Grupo Discurso & Gramática (D&G), realizado na Universidade
Federal Fluminense, nos dias 18,19 e 20 de outubro de 2022. Nele,
faço algumas reflexões que são fruto das leituras acumuladas na
área durante todo o tempo em que venho aplicando pressupostos e
categorias analíticas da Linguística Funcional às pesquisas que tenho
desenvolvido. Essa edição do seminário anual do D&G se apresentou
como um momento propício para revisão, consolidação e desafios
do modelo teórico-metodológico que fundamenta os trabalhos pro-
duzidos pelos membros do grupo.
Antes de mais nada, falo brevemente sobre a minha própria
formação como pesquisadora funcionalista. Tive contato com a
abordagem funcionalista em 1984 (há longos 38 anos!), durante meu
doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a batuta
competente e entusiasmada dos professores Sebastião Votre e An-
thony Naro. Para aqueles que estão familiarizados com a Linguística
Funcional norte-americana, meu texto não apresenta propriamente

27
funcionalismo linguístico: interfaces

novidades; ao invés disso, focaliza a consolidação de algumas tendên-


cias presentes na literatura especializada e de alguns pontos críticos
que suscitam discussão.

Retrospectiva da Linguística Funcional

Começo, então, recapitulando a trajetória da Linguística Funcional


Clássica, representada, sobretudo, por Talmy Givón, Sandra Thompson,
Paul Hopper, Elizabeth Traugott, Joan Bybee e Bernd Heine, entre outros,
para chegar ao estado da arte atual. Mas, primeiramente, é preciso situar
a Linguística no contexto da Escola de Praga e no interesse pelo estudo
da “função como um elemento essencial à linguagem” (MARTELOTTA;
KENEDY, 2015, p. 12). Para os funcionalistas praguenses, a língua é um
sistema funcional na medida em que é utilizada para um determinado
fim, a comunicação entre as pessoas.
Dando um salto retroativo para os anos 1960, podemos dizer que aí
se estabelece, de forma mais velada ou mais acirrada, uma polarização
entre a linguística formal e a linguística funcional. A primeira é repre-
sentada pela Linguística Estrutural e a assim denominada mainstream
Gramática Gerativa, idealizada por Noam Chomsky (1952, 1957, 1959).
A segunda é constituída, principalmente, por pesquisadores da costa oeste
dos Estados Unidos, por Michael Halliday, no Reino Unido e, posterior-
mente, na Austrália, e por Simon Dik e seus seguidores, na Holanda. Em
consequência dessa oposição, é possível afirmar que, no século XX, os
estudos linguísticos concentram-se em dois grandes eixos: o formalista e
o funcionalista. O que distingue esses dois polos é, sobretudo, a concep-
ção de língua, os objetivos da investigação, assim como as premissas e
as hipóteses que os norteiam. Para os estudiosos que se alinham ao polo
formalista, o interesse central é a análise da forma linguística, enquanto a
função é deixada de lado; para os linguistas que se filiam ao polo funcio-
nalista, por sua vez, o foco está na investigação da função que as formas
da língua desempenham em situações de interação comunicativa. Vale

28
funcionalismo linguístico: interfaces

dizer que diversos autores fazem referência a essa tendência polarizada


dos estudos linguísticos, como Dirven e Fried (1987), Schiffrin (1994),
Kato (1998) e Martelotta e Kenedy (2015), entre outros.
Fazendo um retrospecto dos anos 1960-1970, constatamos que a
linguística formalista seguia orientação fortemente sincrônica, tanto em
suas abordagens quanto em seus pressupostos, o que significa relegar os
fatores históricos a segundo plano ou até mesmo excluí-los. A mudança
linguística, e aí se inclui a gramaticalização, era vista como conjuntos de
ajustes a regras, ajustes esses confinados a um estágio inicial e um está-
gio final, sem interesse pelo processo gradual que se desenvolveu entre
esses estágios. Nesse contexto, o processo de gramaticalização se coloca,
àquela época, como um desafio às abordagens linguísticas que postulam
categorias discretas inseridas/dispostas em sistemas rígidos e estáveis.
Na tentativa de derivar as mudanças linguísticas de leis gerais,
parece-me ser mais esclarecedor servir-nos de explicações funcionais,
sejam elas comunicativas e/ou cognitivas, ao invés de formais, e recorrer
a tendências naturais, ao invés da postulação de leis rígidas. Além disso,
sincronia e diacronia não devem, na prática, ser tão separadas como
admitia Saussure. As línguas têm um passado, e o estado sincrônico é
uma função desse desenvolvimento passado. Segue-se, daí, que, embora
a investigação histórica possa ser subsequente à análise sincrônica, visto
que envolve a comparação de estados sincrônicos sucessivos, uma teoria
linguística preocupada com a questão da mudança deve envolver a di-
mensão diacrônica. Sincronia e diacronia estão, portanto, entrelaçadas,
conforme se lê em Furtado da Cunha, Oliveira e Votre (1999).
Dada essa visão, muitos textos funcionalistas, sejam capítulos, livros
ou artigos, assumem abertamente uma posição contrária à Gramática Ge-
rativa. Um exemplo disso pode ser visto no capítulo introdutório do livro
On understanding grammar (GIVÓN, 2012 [1979]), obra seminal que cria
as raízes do funcionalismo norte-americano moderno. Nele, o linguista
critica duramente o paradigma da Gramática Gerativo-Transformacional,

29
funcionalismo linguístico: interfaces

classificado por ele como “um modelo formal dos dados” (2012, p. 18),
tanto em termos de teoria quanto de metodologia, e apresenta seu modelo
funcionalista de análise linguística, desenvolvido do capítulo 2 em diante.
Na mesma linha, no capítulo introdutório do livro An introduction
to functional grammar, Halliday (1985) argumenta que a oposição funda-
mental que separa as correntes teóricas é a divisão entre aquelas que são
primariamente sintagmáticas, fundamentadas na lógica e na filosofia – as
gramáticas formais, compreendendo o estruturalismo e o gerativismo – e
as que são primariamente paradigmáticas – as funcionalistas, respaldadas
na retórica e na etnografia. Passa, então, a discorrer sobre as falhas do
modelo chomskyano. É oportuno mencionar, entretanto, que se atribui a
Chomsky o começo da era moderna da linguística, tendo sido ele parte
central da Revolução Cognitiva dos anos 1960 (TOMASELLO, 1998).
No Brasil, essa polarização pode ser ilustrada pelo debate empre-
endido entre os funcionalistas Sebastião Votre e Anthony Naro, de um
lado, e o gerativista Milton do Nascimento, do outro. Em seu artigo, com
referência à hipótese de Votre e Naro (1989, p. 169-170) de que “do uso
da língua origina-se a forma da língua”, Nascimento (1990, p. 83) pro-
põe um “diálogo construtivo entre linguistas brasileiros que conduzem
suas pesquisas, utilizando-se de diferentes quadros teóricos”. Convida,
então, os leitores a “repensar a tese de que a ‘abordagem funcionalista’
se contrapõe à ‘abordagem formalista’” (p. 87). O linguista finaliza seu
artigo defendendo uma articulação dos “modelos de análise linguística
que privilegiam as funções com aqueles que privilegiam a forma da lin-
guagem”, levando em conta as especificidades de cada modelo (p. 97).
No final do século XX, o psicolinguista Michael Tomasello (1998)
organiza um livro em cuja introdução recapitula a situação da Linguística
nesse século e rejeita a posição chomskyana de autonomia da sintaxe.
Lista uma família de abordagens teóricas que compartilham essa rejei-
ção e recebem a denominação de Linguística Cognitiva ou Linguística
Funcional. A proposta de Tomasello é que essas duas abordagens se

30
funcionalismo linguístico: interfaces

unam em um paradigma científico coerente, visto que concordam que a


língua não é um “órgão mental” autônomo, como quer Chomsky, mas
sim um mosaico complexo de atividades cognitivas e sociais diretamente
integrado com o resto da psicologia humana. Surge, assim, a Linguís-
tica Cognitivo-Funcional, que, como o próprio nome diz, integra tanto
linguistas cognitivistas como funcionalistas.

Linguística Funcional Centrada no Uso

Toda essa contextualização histórica tem por objetivo situar a Lin-


guística Funcional Centrada no Uso (LFCU), tendência funcionalista
recente que nós, pesquisadores do D&G, aplicamos em nossas pesquisas.
A LFCU corresponde, em termos teóricos, metodológicos e epistemoló-
gicos, ao que Bybee (2010, 2015) denomina Usage-based Linguistics.
De acordo com essa autora, a teoria baseada no uso se desenvolveu dire-
tamente do funcionalismo norte-americano e, em certo sentido, é apenas
um novo nome para ele. Esse modelo de análise linguística se alimenta
dos postulados e das categorias analíticas tanto da Linguística Funcional
Clássica/norte-americana quanto da Gramática de Construções. Essas
duas correntes compartilham vários pressupostos teórico-metodológicos,
como a rejeição à autonomia da sintaxe, a incorporação da semântica e
da pragmática às análises, a não distinção estrita entre léxico e gramática,
a relação estreita entre a estrutura das línguas e o uso que os falantes
fazem delas nos contextos reais de comunicação, o entendimento de
que os dados para a análise linguística são enunciados que ocorrem no
discurso natural, por exemplo.
Grosso modo, os princípios gerais da Gramática de Construções
(GC) estabelecidos por Goldberg (2003) estão alinhados aos pressupostos
teóricos da LFCU, a saber: formas superficiais diferentes são tipicamente
associadas a funções semânticas ou discursivas levemente diferentes; as
construções são aprendidas com base no input e em mecanismos cogni-
tivos gerais e variam translinguisticamente; a variação translinguística

31
funcionalismo linguístico: interfaces

(e dialetal) pode ser explicada de vários modos, incluindo processos


cognitivos de domínio geral e construções específicas à língua (CROFT,
2001; HASPELMATH, 2008).
Com a incorporação de uma perspectiva construcional à LFCU,
a gramática passa a ser concebida como um conjunto de construções,
pareamentos de forma-função (GOLDBERG, 1995). As construções são
armazenadas na mente do falante com base em enunciados reais, por
meio do processo de categorização de instâncias que ocorrem frequen-
temente no uso interacional da língua. A concepção de que a gramática
é composta por construções (GOLDBERG, 2006) implica que a relação
entre forma e função é básica e inerente a qualquer descrição gramatical
(CROFT, 2005). Nessa linha, a língua é entendida como uma rede de
construções interconectadas em seus diferentes planos, por relações de
natureza diversa, cuja estrutura é motivada e regulada por fatores cog-
nitivos, sociocomunicativos e culturais.

Mudança linguística

Vejamos, agora, o tema da mudança linguística, a qual tem sido


tratada sob a ótica de variadas perspectivas teórico-metodológicas. Dos
estudos histórico-comparativistas do século XIX à abordagem mais
recente de viés construcionista, esse fenômeno tem sido examinado de
ângulos diversos, os quais variam desde os de visão mais atomista, que
consideram itens isolados, até os que defendem que a mudança se pro-
cessa envolvendo um conjunto de itens articulados e interdependentes
em alguma medida. As investigações também variam entre os que tra-
tam as mutações na língua como leis naturais e inexoráveis do próprio
sistema linguístico aos que creditam tais mutações, majoritariamente, a
pressões do uso.
Aqui, vou restringir-me ao tratamento da mudança linguística no
âmbito da Linguística Funcional norte-americana. O modelo clássico da
Linguística Funcional aborda o fenômeno de mudança linguística sob o

32
funcionalismo linguístico: interfaces

prisma da gramaticalização. O termo “gramaticalização” parece ter sido


usado pela primeira vez por Meillet (1912), para designar o desenvolvi-
mento de morfemas gramaticais com base em palavras de conteúdo, ou
itens lexicais. Sob rótulos variados, como sintaticização, gramatização,
gramaticização e gramaticalização, tem sido utilizado por linguistas de
diferentes épocas e origens para explicar mudanças linguísticas que se dão
com itens que passam do léxico para a gramática ou que se especializam
dentro da própria gramática.
Nos anos 1970, ressurge, na Linguística Funcional, o interesse pelo
paradigma da gramaticalização. No livro On understanding grammar,
Givón (1979a) emprega o termo “sintaticização” para argumentar a favor
de uma definição discursiva de sintaxe, definindo-a como uma entidade
dependente, funcionalmente motivada, em oposição à postura gerativis-
ta. Antes disso, seu artigo intitulado Historical syntax and synchronic
morphology: An archeologist’s field trip, de 1971, é apontado como res-
ponsável pela retomada dessa linha de investigação, iniciada por Meillet
no começo do século XX, e deixada de lado durante todo o período de
supremacia da abordagem gerativa. É de Givón (1971) o famoso slogan
“Today’s morphology is yesterday’s syntax” [A morfologia de hoje é a
sintaxe de ontem].
Embora os linguistas tenham sempre se questionado a respeito da
origem e do desenvolvimento das categorias gramaticais, a gramaticaliza-
ção, tal como concebida aqui, é um paradigma retomado e desenvolvido
no quadro da linguística funcional norte-americana.
Na acepção funcionalista, a gramática está num contínuo fazer-se,
o que encontra respaldo nas noções de gramática emergente (HOPPER,
1987), de sistema adaptativo (DU BOIS, 1985) e de sistema adaptativo
complexo (BYBEE, 2016 [2010]). A língua é tida como uma estrutura
maleável, plástica, uma vez que está sujeita às pressões do uso e se cons-
titui de um código não inteiramente arbitrário (VOTRE; NARO, 1989).
A codificação morfossintática é, em grande parte, resultado do uso da

33
funcionalismo linguístico: interfaces

língua. Assim, na trajetória dos processos de regularização linguística,


tudo começa sem muita regularidade, numa espécie de ensaio e erro, exa-
tamente por estar no seu começo. Mas o uso e a repetição exercem uma
pressão tal que o que no começo era casuístico se regulariza, fixando-se
e se convertendo em norma (GIVÓN, 1979b, 1995).
No período anterior à estabilização, verifica-se o nível de iconici-
dade máxima, isto é, da relação transparente entre expressão e conteúdo,
representando o máximo de economia comunicativa, o máximo de ren-
tabilidade sistemática. Essa estabilidade, entretanto, é efêmera. O que
se sistematiza pode, posteriormente, entrar em um processo de desgaste,
com opacidade das relações entre forma e conteúdo (GIVÓN, 1990).
Vejamos um exemplo:

(1) Eu vou bebe bebe bebe


Vou beber o que vier
Vou beber até cair
Por causa dessa mulher,
Eu vou bebe bebe bebe
Vou enfiar o pé na jaca
Hoje eu vou bater de frente
Com quem invento a cachaça.

(Deluccas & Lucian. Vou enfiar o pé na jaca. Disponível em: https://


www.letras.mus.br/deluccas-lucian/1420481/. Acesso em: 29 ago. 2022)

A expressão enfiar o pé na jaca não possuía, originalmente, a pala-


vra jaca na sua constituição: era formada com o substantivo masculino
jacá, uma espécie de cesto feito de bambu ou cipó. Os jacás eram usados
presos ao lombo de animais para o transporte de diversas mercadorias. Os
condutores desses animais paravam muitas vezes ao longo de suas viagens
para tomar umas bebidas. Quando bêbados, facilmente enfiavam o pé no
jacá ao tentar subir em suas montarias. A locução evoluiu ao longo do
tempo, tendo ocorrido a substituição da palavra jacá, com uso cada vez

34
funcionalismo linguístico: interfaces

menor, pela palavra jaca. Essa expressão ganhou especial destaque com a
novela “Pé na Jaca”, televisionada em 2006 e 2007”: “beber muito, além
do limite”. Por extensão, é usada também para indicar qualquer tipo de
excesso ou exagero, quer a nível alimentar, quer a nível comportamental.
O discurso é, portanto, o ponto de partida para a gramática e seu
ponto de chegada. Quando algum fenômeno discursivo, em decorrência
da frequência de uso, passa a ocorrer de forma previsível e convencional,
pode entrar na regularidade da gramática (GIVÓN, 1979b). No mesmo
sentido, quando determinado fenômeno que estava na gramática passa
a ter comportamentos não previsíveis e atípicos, em termos de regras
selecionais, podemos dizer que sai da gramática e retorna ao discurso.
É o que se vê em:

(2) pedindo a partitura de uma música… “você tem essa?” “não”… mas
tem… só de ruim ela num… que ela diz que num tem… que ela sabe
que eu vou tocar pelo ouvido … (FURTADO DA CUNHA, 1998, p. 94)

(3) … pela primeira vez eu tive medo de sair de casa… sabe? (FUR-
TADO DA CUNHA, 1998, p. 94)

Em (3), diferentemente de (2), sabe não funciona como um predi-


cador verbal, mas serve para veicular uma estratégia comunicativa, com
papel de marcador discursivo.
Com o avanço dessa linha de pesquisa, a gramaticalização não é mais
vista apenas como a reanálise de material léxico em material gramatical,
conforme postulada por Meillet (1912), mas também como a reanálise
de padrões discursivos em padrões gramaticais e de funções no nível do
discurso em funções semânticas, no nível da oração (GIVÓN, 1979b;
HOPPER, 1979). Os mecanismos de negação ilustram bem o processo
de transição de uma estrutura do nível pragmático para o nível sintático,
em que orações negativas relativamente livres se tornam mais fixas em
função de estratégias discursivas determinadas, como em:

35
funcionalismo linguístico: interfaces

(4) … e teve uma pessoa que chegou para mim e perguntou… “Gerson…
você aceita ficar no cargo e tudo?”… eu disse… “não… num aceito
não… (FURTADO DA CUNHA, 1998, p. 178)

(5) … ou então você dá o mesmo acorde e fica lá… passando por cima
das notas… isso aí é… como é o nome? sei não… (FURTADO DA
CUNHA, 1998, p. 377)

O fragmento em (4) ilustra o uso da negativa dupla, em que dois


morfemas negativos são usados simultaneamente, um deles antes (num,
forma falada não acentuada de não) e o outro (não) após o verbo. Essa
negativa funciona como uma recusa a um convite explícito. Em (5) te-
mos uma negativa final pós-verbal, que ocorre, preferencialmente, como
resposta a perguntas diretas (FURTADO DA CUNHA, 2000, 2007).
Como muitos outros termos na linguística, gramaticalização se re-
fere tanto a um paradigma explanatório como a um processo (HOPPER;
TRAUGOTT, 2003 [1993]). Como paradigma, a gramaticalização busca
determinar como as formas e as expressões gramaticais surgem, são
usadas e modelam a língua. Como processo, o termo gramaticalização
se refere ao fenômeno linguístico que o paradigma de gramaticalização
procura entrever, ou seja, os processos pelos quais os itens se tornam
mais gramaticais ao longo do tempo.
Em síntese, gramaticalização, segundo a ótica funcionalista, é um
fenômeno ao mesmo tempo sincrônico, vinculado à variação linguística,
e diacrônico, posto que essa variação pode resultar em mudança no plano
da forma e/ou no da função da língua. Essas alterações/mutações atingem
o plano da forma em razão da emergência de uma nova configuração
morfossintática; no plano da função, tais modificações se dão em termos
semânticos e discursivo-pragmáticos (TRAUGOTT; HEINE, 1991;
HOPPER; TRAUGOTT, 2003). É importante salientar que o estudo da
mudança linguística conduzido sob a perspectiva da gramaticalização leva
em conta a interação entre uso da língua e gramática, em consonância

36
funcionalismo linguístico: interfaces

com o postulado funcionalista central de que discurso e gramática se


influenciam mutuamente.
No Brasil, o paradigma de gramaticalização é aplicado tanto em
pesquisas funcionalistas quanto formalistas. A primeira publicação que
apresenta resultados dessas pesquisas é Gramaticalização no português
do Brasil: uma abordagem funcional, organizado por pesquisadores do
Grupo Discurso & Gramática (MARTELOTTA; VOTRE; CEZARIO,
1996).
O termo gramaticalização, portanto, é tomado em dois sentidos
relacionados: a gramaticalização stricto sensu diz respeito à mudança que
atinge as formas que migram do léxico para a gramática (FURTADO DA
CUNHA; SILVA, 2016 [2007], em seu trabalho sobre a gramaticalização
do verbo ir); a gramaticalização lato sensu busca explicar as mudanças
que se dão no interior da própria gramática, compreendendo aí os graus
de aderência/dependência de elementos gramaticais e os processos sin-
táticos e/ou discursivos de fixação da ordem vocabular (OLIVEIRA,
2000, na tese sobre a trajetória de gramaticalização do onde; FURTADO
DA CUNHA, 2000, 2007 em seu estudo sobre variação e mudança no
domínio funcional da negação).
Desde Meillet (1912), a definição tradicional de gramaticalização
faz referência ao processo de mudança pelo qual itens lexicais se tornam
gramaticais. Contudo, os casos de gramaticalização estudados, tanto
no inglês como no português, compreendem não apenas itens lexicais
isolados, mas cadeias morfossintáticas, como ocorre com a passagem
de be going to, em inglês, e ir + VINF, em português, a auxiliar de futuro
(BYBEE; PERKINS; PAGLIUCA, 1994; FURTADO DA CUNHA;
SILVA, 2016 [2007]), por exemplo.
Com o objetivo de associar a teoria da gramaticalização ao modelo
da Gramática de Construções, Noël (2007) questiona se a primeira
poderia simplesmente tornar-se um ramo da segunda, e conclui que
esses modelos devem ser mantidos separados porque nem todas as

37
funcionalismo linguístico: interfaces

construções se gramaticalizam. Noël acrescenta que apenas alguns


poucos pesquisadores que praticam linguística histórica se alinharam
à GC, numa disciplina que poderia ser nomeada Gramática de Cons-
truções Diacrônica (GCD).
A proposta da GCD alcança o interesse de alguns pesquisadores,
ecoando em trabalhos como os de Fried (2008), Bergs e Diewald (2008),
Traugott (2009), Noël e Colleman (2010), Gisborne (2011), Brems (2012)
e Patten (2012). Entretanto, nenhum desses trabalhos apresenta, de fato,
um modelo de tratamento abrangente para a mudança linguística, que
abarque o continuum gradiente entre léxico e gramática (TRAUGOTT;
TROUSDALE, 2021 [2013]). Mais recentemente, linguistas funcionalis-
tas e cognitivistas têm defendido que os princípios teóricos da gramati-
calização são inteiramente compatíveis com a Gramática de Construções
Diacrônica (BARŎDAL et al., 2022). Hoffmann e Trousdale (2022)
vão além, ao afirmar que a pesquisa sobre a mudança gramatical por
meio da gramaticalização constitui a base do trabalho desenvolvido sob
o arcabouço da GCD, que toma o conceito de construção como central,
a exemplo de Hilpert (2013), Barŏdal et al. (2015) e Coussé, Olofsson
e Andersson (2018). Constata-se, assim, uma retomada do interesse na
gramaticalização, muito embora esta não tenha sido descartada enquanto
paradigma, em especial por linguistas brasileiros, a exemplo de Longhin
(2021, 2020) e Tavares (2020, 2021), entre outros.
Focalizando o modelo construcionista, sabemos que, na formulação
de Goldberg, esse modelo não tem preocupações diacrônicas, isto é, não
se detém no tema da mudança linguística. De um viés sincrônico, con-
cebe a língua como sendo composta de pareamentos de forma-função
– ou construções – organizados em uma rede hierarquizada, cujos nós
se acham interconectados por links de herança diversos (GOLDBERG,
2006; LANGACKER, 2008). Sendo assim, postulam-se relações ta-
xonômicas entre uma construção e suas diferentes instanciações bem
como entre construções distintas. Esse postulado parte do princípio de
que existe uma construção mais central/básica, que funciona como uma

38
funcionalismo linguístico: interfaces

construção motivadora e, sancionadas por ela, outras podem ser criadas


a partir desses links de herança.
A publicação de Constructionalization and Constructional Changes,
por Traugott e Trousdale (2013), traz importantes contribuições para o
tratamento sistemático de processos de mudança linguística. Nesse livro,
os autores abordam três questões que representam um avanço em relação
a alguns dos pressupostos assumidos pela Gramática de Construções.
São elas:

a) a proposição de um modelo voltado exclusivamente para o tratamento


da mudança linguística fundamentado no pressuposto de que as cons-
truções que emergem na língua são organizadas em redes taxonômicas
hierarquicamente constituídas;

b) a proposição de um modelo que prevê dois tipos de mudança: mudança


construcional e construcionalização;

c) a proposição de um modelo que visa a explicar, de maneira sistemá-


tica, a mudança que ocorre no continuum entre o domínio do léxico e o
da gramática.

Os autores reconhecem dois tipos de mudança: (a) mudança cons-


trucional, que afeta propriedades semânticas, morfossintáticas e/ou
fonológicas de uma construção existente (lexical ou gramatical), mas
não resultam em uma nova construção, posto que a mudança se opera
especificamente no plano do conteúdo ou no da forma; (b) construciona-
lização, que é a criação de um novo pareamento forma-função – ou seja,
de uma nova construção –, instaurando-se um novo nó na rede. É essa
orientação que, em geral, a LFCU adota em suas pesquisas.
Vale acrescentar que alguns linguistas questionam a distinção entre
mudança construcional e construcionalização, proposta por Traugott e

39
funcionalismo linguístico: interfaces

Trousdale (2013). Assim é que Hilpert (2013) distingue mudança cons-


trucional de mudança linguística, a qual refere-se a uma transformação
ocorrida no sistema da língua como um todo, independentemente da
construção envolvida. Por sua vez, mudança construcional diz respeito
a casos específicos de alteração ocorridos em uma construção ou em um
grupo de construções, sendo tratada em termos de frequência, forma e
função. A frequência representa o meio pelo qual a mudança é flagrada
(identificação de tokens em um dado corpus); a forma vincula-se a altera-
ções na estrutura morfofonêmica e morfossintática; a função diz respeito
à extensão semântica (metáfora e metonímia) e analógica (expansão da
classe hospedeira).
Tomando a distinção entre mudança construcional e construcio-
nalização, tal como elaborada por Traugott e Trousdale (2021 [2013]),
pesquisadores do grupo Discurso & Gramática sediados na UFRN con-
sideram que nem sempre é possível identificar se a mudança operada
numa determinada construção resulta ou não em novo pareamento forma-
-função devido ao caráter específico de cada construção e, ainda, ao fato
de que qualquer diferença na forma reflete alteração em algum aspecto
do conteúdo (semântico e/ou pragmático), como prevê a Linguística
Funcional. Concluem, então, que a distinção entre os dois termos pode
não ser, do ponto de vista operacional, muito útil (BISPO; SILVA, 2016).
Para uma investigação de fatos da língua numa perspectiva funcional
centrada no uso, parece ser mais exequível trabalhar com o conceito de
mudança construcional na ótica de Hilpert (2013), que pode ser aplicado
indiferentemente a alterações de forma e/ou de significado, as quais po-
dem ou não redundar em criação de um novo pareamento forma-função.
Quanto à questão da variação linguística, embora a GC não aborde
diretamente esse fenômeno, este pode ser igualmente tratado em termos
de mudança construcional. Conforme dito acima, para Traugott e Trou-
sdale (2013) a mudança construcional afeta uma dimensão interna de
uma construção (em sua forma ou em seu conteúdo), não envolvendo a
criação de um novo nó na rede. Nesse caso, a mutação ocorrida pode levar

40
funcionalismo linguístico: interfaces

à convivência horizontal de “variantes” da mesma construção, tal como


se dá, no inglês, com be going to e gonna, por exemplo, e no português
com o auxiliar dever, que pode indicar modalização deôntica, como em
(6), ou epistêmica (7):

(6) … você é apenas vendedor aqui … você deveria tratar as pessoas


por igual … sem discriminação … como vendedor essa não foi uma
atitude sensata sua … (FURTADO DA CUNHA, 1998, p. 110)

(7) … eu acho que você já andou de avião e já deve ter visto essas coisa
… já/ já deve ter visto esse fenômeno … (FURTADO DA CUNHA,
1998, p. 96)

Enquanto em (6) o sentido de dever está ligado ao eixo da conduta


e aos valores de obrigação, em (7) dever se liga ao conhecimento, às
opiniões e crenças do falante em relação ao que é veiculado no discurso.
Em um texto de 2016, Fabiszak et al. discutem se, dado o pluralis-
mo teórico na linguística, em que muitos modelos diferentes coexistem,
é possível demonstrar qual deles explica melhor os fenômenos sob
investigação. Para esses linguistas, a teoria deve servir como base para
operacionalizar questões e hipóteses de pesquisa, ao passo que os méto-
dos devem não apenas fornecer resultados descritivos, mas, em última
instância, servir para testar propostas teóricas.
Não é o foco deste texto avaliar qual seria o melhor modelo para
responder as questões de pesquisa que levantamos e fornecer a descrição
mais adequada aos nossos objetivos. Contudo, aproveito a oportunidade
para retomar alguns pontos importantes que já foram contemplados em
outras edições do seminário do grupo Discurso & Gramática e foram
também aprofundados em duas mesas-redondas do evento de 2022.
Primeiramente, volto a atenção para a Linguística Funcional
Clássica e seus conceitos básicos. Tomemos o conceito de marcação,
o qual corresponde a um refinamento da noção saussureana de valor

41
funcionalismo linguístico: interfaces

linguístico nas distinções binárias entre um par contrastivo. Ao aplicar


esse princípio à análise de dados reais de língua, os pesquisadores do
D&G sentiram a necessidade de adotar parâmetros de gradualidade
na análise da marcação, advertindo sobre o risco de tomarmos as ca-
tegorias linguísticas em termos discretos (ou binários), dado o caráter
fluido e criativo da língua. Se consideramos, por exemplo, as diferentes
estruturas negativas (Neg+SV; Neg+SV+Neg; SV+Neg) nos diversos
contextos em que são utilizadas, a marcação deve ser relativizada
(FURTADO DA CUNHA, 2000, 2007), uma vez que o fenômeno não
se presta a uma análise dicotômica. Procedemos, então, a um ajuste
do conceito, enearizando-o, como se vê, também, em Oliveira (2001),
em seu artigo sobre as orações adjetivas.
Um outro ponto envolve a categoria plano discursivo, que se refere
à organização estrutural do texto e compreende as dimensões de figura e
fundo. Em termos de discurso, essa distinção equivale à oposição entre
central e periférico. O caráter aparentemente binário dessa categoria
analítica necessitou também ser tratado dentro de parâmetros escalares, a
fim de cobrir os níveis intermediários de saliência com que se distribuem
os feixes informativos nos variados tipos de estruturas textuais. Desse
modo, passamos a entender que essa escala pode oscilar entre -/+figura
ou -/+fundo, dependendo da ótica de análise e do ambiente discursivo-
-textual em foco, conforme apresenta Silva (2000), em sua dissertação
sobre as estratégias discursivas de superlativização, e Lemos (2020), em
dissertação sobre a composição de textos do gênero artigo de opinião.
Mais recentemente, a articulação da tradição funcionalista norte-
-americana à proposta construcionista suscita uma cuidadosa discussão
sobre questões relativas a especificidades e fronteiras teórico-metodo-
lógicas de cada um desses paradigmas. Essa reflexão se justifica pelo
intento de, por um lado, ratificar pontos de convergência e contribuições
significativas; por outro, identificar possíveis restrições de diálogo, com
vistas ao empreendimento de ajustes conceituais e analíticos bem como
à manutenção de um perfil identitário funcionalista.

42
funcionalismo linguístico: interfaces

O primeiro deles diz respeito à própria definição de construção.


Para autores como Langacker (1987, 2008) e Croft (2001, 2005), entre
outros, a construção é vista como uma “unidade simbólica convencio-
nal”. É uma unidade no sentido de que algum aspecto do signo (ou
construção) é tão idiossincrático ou tão frequente que ele é estocado
como um pareamento forma-função na mente do usuário. É simbólica
porque é um signo, ou seja, uma associação tipicamente arbitrária de
forma e função. É convencional, uma vez que é compartilhada por um
grupo de falantes. Pelo que se observa nessa definição, de um modo
geral, a ideia de construção vai de encontro a um dos pressupostos
básicos da Linguística Funcional, a saber, a relação iconicamente
motivada entre forma e função dos elementos linguísticos. Sendo as-
sim, como lidar com a tensão entre arbitrariedade e iconicidade? Em
outras palavras, como devemos nos posicionar frente a essa tensão?
Essa é uma questão que temos procurado resolver no D&G/UFRN,
conforme comunicação apresentada no seminário de 2016 e publicada
na Revista Linguística da UFRJ (FURTADO DA CUNHA; BISPO;
SILVA, 2016). Por um lado, acolhemos a ideia de que determinadas
estruturas mantêm uma correlação aproximada com o significado que
designam, por outro, podemos admitir que há casos nos quais essa
relação não é nítida, revelando-se aparentemente arbitrária e impos-
sibilitando o estabelecimento da conexão entre o plano da expressão
e o do conteúdo (GIVÓN, 1995). Mais coerente com a realidade da
língua, em sua formulação atual, a iconicidade deve ser tratada numa
perspectiva de continuum. Tal ajuste é mais adequado à concepção de
língua como uma estrutura fluida, resultante de um conjunto de fatores
que envolvem, ao mesmo tempo, motivação e arbitrariedade, padrões
regulares e idiossincrasias (GIVÓN, 1995, 2001; VOTRE; CEZARIO,
1996). Essa proposta “moderada” e escalar apresenta-se como mais
compatível com a ideia de construção na visão da LFCU.
Outros aspectos que atualmente estamos considerando dizem res-
peito a:

43
funcionalismo linguístico: interfaces

I. compatibilização dos conceitos de gramaticalização e construciona-


lização, vistos como processos de mudança linguística;

II. lugar que as estratégias discursivas ocupam na rede construcional.

Focalizando (ii), a pergunta que se coloca é: se tudo na língua é


construção (GOLDBERG, 2003, p. 223: “It’s constructions all the way
down”), como acomodar estratégias discursivas que não são exatamente
um pareamento forma-função? Dito de outro modo, se, como prevê a
Gramática de Construções, todo o conhecimento linguístico do falante
é capturado pela rede construcional (constructicon), como acomodar
estratégias discursivas que codificam diferentes fenômenos, a exemplo
de intensificação (8) e proporcionalidade (9), mas não são construções,
ou seja, não devem integrar a rede por não constituírem um pareamento
de forma-conteúdo?

(8) … ele fugiu com a moça… daí fugiram… começaram a correr e


o homem atrás deles… correram… correram… correram… enquanto
isso… o homem correndo… correndo atrás deles… (SILVA, 2014)

(9) Pesquisa de Orçamentos Familiares realizada pelo IBGE em 2017 e


2018, e divulgada em 2019, mostrou que famílias de baixa renda gastam
uma proporção maior de seus rendimentos com alimentos. Ou seja,
os alimentos são mais pesados no orçamento mensal de quem ganha
menos. (PEDRETTI, 2022)

Em (8), observa-se o aspecto iterativo (repetitivo) e/ou a intensidade


da ação descrita – correr – sinalizada pela repetição do verbo, dando a
ideia de algo contínuo e intenso (SILVA, 2014). Nesse caso, a expressão
do grau intensivo se distribui em um segmento textual, fenômeno que o
autor denomina “gradação discursiva”. Em (9), há um arranjo discursivo
que promove um contexto proporcional, em que se correlacionam o maior
peso dos alimentos no orçamento e ganhar menos. Assim, em um mo-
vimento divergente, os alimentos pesam mais para quem recebe menos.

44
funcionalismo linguístico: interfaces

Como se explicaria, à luz da Gramática de Construções, que prevê


que a língua é um conjunto de construções organizadas em rede, a exis-
tência de estratégias discursivas/arranjos discursivos que não são propria-
mente uma construção ou um esquema construcional, mas representam
um recurso linguístico à disposição dos falantes? Convido todos vocês
a discutirmos juntos essas questões.
Para encerrar esse texto, transcrevo as palavras de Khun (1994),
filósofo da ciência, que vão na mesma direção do questionamento de
Fabiszak et al. (2016):

A transição sucessiva de um paradigma a outro é o pa-


drão usual de desenvolvimento da ciência amadurecida.
Para ser aceita como paradigma, uma teoria deve parecer
melhor que suas competidoras, mas não precisa (e de fato
isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais
pode ser confrontada. Um dos focos estabelecidos para a
investigação científica dos fatos diz respeito ao trabalho
empírico empreendido para articular a teoria do paradig-
ma, resolvendo algumas de suas ambiguidades residuais
e permitindo a solução de problemas para os quais ela
anteriormente só tinha chamado a atenção.

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50
funcionalismo linguístico: interfaces

GRAMATICALIZAÇÃO E CONSTRUCIONALIZAÇÃO NA
PESQUISA FUNCIONALISTA

Mariangela Rios de Oliveira


(UFF/UFOP/CNPq/Faperj)

Introdução

O Funcionalismo linguístico, notadamente o originário da Costa


Oeste dos Estados Unidos, no qual se inscreve a pesquisa praticada no
âmbito do Grupo de Estudos Discurso & Gramática1 (D&G), tem como
um de seus principais focos de interesse o estudo da mudança linguística,
tanto em termos de gradualidade quanto de gradiência, conforme Bybee
(2010). Autores como Dwight Bolinger, Sandra Thompson, Talmy Givón,
Bernd Heine, Paul Hopper, Christian Lehmann e Elizabeth Traugott,
entre outros, a partir da década de 70 do século XX, orientam seu ponto
de atenção para mecanismos envolvidos na convencionalização de de-
terminadas formas de dizer, emanadas de contextos de uso específicos,
que resultam em itens da gramática.
Essa pauta de pesquisa consolida a gramaticalização (doravante
GRAM), seja como paradigma, seja como processo2, na agenda acadê-
mica dos funcionalistas, trazendo até hoje resultados substanciais para
a compreensão de como as línguas são usadas e de como mudam, con-
1 Informações do grupo disponíveis no site: https://discursoegramaticablog.wordpress.com/.
2 É consensual também a definição da GRAM como teoria, como se encontra em Martelotta,
Votre e Cezario (1996) e em Gonçalves, Lima-Hernandes e Casseb-Galvão (2007), entre outros.

51
funcionalismo linguístico: interfaces

forme destaca Givón (1979, 1995). No Brasil, Naro e Votre (1989), em


artigo seminal, assumem a motivação pragmático-discursiva da mudança
linguística, enfatizando a feição icônica da gramática. O referido artigo,
que se configura como reação à agenda de estudos formalistas, muito
vigente na época, abre um clássico debate entre pesquisadores, fomen-
tando profícua reflexão e discussão na área dos estudos linguísticos, em
torno da emergência da gramática.
No século XXI, a vertente funcionalista é impactada por uma nova
orientação de ordem teórico-metodológica, via incorporação da aborda-
gem construcional à investigação gramatical, como se encontra em Trau-
gott e Trousdale (2013) e Hilpert (2014). Tal guinada integra à pesquisa
da língua em uso a concepção construcional, de origem cognitivista, com
base em Goldberg (1995, 2006) e Croft (2001), entre outros. Assim, as
propriedades funcionais passam a ser pareadas às propriedades estruturais,
e a mudança linguística é compreendida como mudança construcional
ou construcionalização (doravante CONSTR). O Funcionalismo assim
reorientado, denominado Usage-based Lingustics na literatura interna-
cional, recebe no D&G o rótulo Linguística Funcional Centrada no Uso
(doravante LFCU), na conjugação das bases teóricas do Funcionalismo
clássico3 e do Cognitivismo.
Atualmente, portanto, a mudança linguística pode ser pesquisada no
Funcionalismo sob duas perspectivas: a GRAM e a CONSTR, conforme
exposto em Furtado da Cunha e Oliveira (2022) e em Oliveira e Sambrana
(2022). Tal condição se apresenta para além de mera alternativa, uma
vez que se trata de duas concepções oriundas de arcabouços teórico-
-metodológicos relativamente distintos. Esse é, pois, o cerne do presente
capítulo, que se volta para a comparabilidade dessas duas perspectivas
funcionalistas, em termos das concepções que as aproximam e das que
as distinguem. Para tanto, assume-se, de acordo com Traugott (2021) e

3 Como Rosário e Oliveira (2016), assim se rotula o Funcionalismo praticado nas décadas de
60, 70, 80 e 90 do século XX, mais voltado para a pesquisa da mudança de itens específicos,
no trajeto do léxico para a gramática ou do menos para o mais gramatical.

52
funcionalismo linguístico: interfaces

com Heine, Narrog e Long (2016), que GRAM e CONSTR podem ser
tomadas complementarmente, devido a pontos em comum no modo como
concebem a mudança linguística. Por outro lado, não se pode perder
de vista que há aspectos específicos em cada uma dessas perspectivas,
atinentes aos fundamentos teóricos em que são embasadas.
Este capítulo parte de cinco objetivos mais específicos. O intento é:
a) apresentar a perspectiva teórica da GRAM, no viés do Funcionalismo
clássico; b) destacar a perspectiva da CONSTR, tal como assumida na
LFCU; c) identificar os pontos convergentes e também contrastivos entre
GRAM e CONSTR; d) a título de ilustração, demonstrar como GRAM e
CONSTR podem fundamentar a investigação da emergência de intensi-
ficadores de grau no português; e) apontar tendências de pesquisa nessa
área de interseção.
As seções a seguir se ordenam e se organizam a partir dos cinco
objetivos referidos. Assim, a primeira é dedicada às bases teóricas da
GRAM, que continua sendo o viés mais tradicional e amplamente adota-
do na investigação da mudança linguística no Funcionalismo. A seguir,
são apresentados e comentados os pressupostos da LFCU, arcabouço
teórico-metodológico sob o qual se desenvolve a pesquisa da CONSTR.
A terceira seção destaca os pontos em comum entre GRAM e CONSTR,
enfatizando a complementaridade de ambas as perspectivas, e também
elenca seus aspectos mais específicos, no que têm de particular e carac-
terístico. A seção que se segue traz um estudo de caso, a trajetória da
mudança linguística que leva à convencionalização da construção inten-
sificadora de grau [[p(a)ra lá de] [Xadj]], em instanciações como “para
lá de bonito” ou “para lá de chique”, conforme se encontra em Paula
(2021) e Oliveira e Paula (2019, 2022); nesses estudos são destacados
vieses complementares e distintos na análise dessa trajetória em termos
da GRAM e da CONSTR. O artigo se encerra com uma reflexão acerca
desse olhar para as duas perspectivas, como resultado mais recente do
caminho construcional da LFCU, apontando contribuições e, de outra
parte, desafios a serem enfrentados.

53
funcionalismo linguístico: interfaces

Bases teóricas da GRAM

A GRAM tem recebido, na história dos estudos funcionalistas,


uma série de definições, tendo como base a concepção de que todas as
línguas mudam continuamente. De acordo com Martelotta, Votre e Ce-
zario (1996, p. 46), em obra pioneira no Brasil sobre o tema, a GRAM é
definida como “um processo unidirecional segundo o qual itens lexicais
e construções sintáticas, em determinados contextos, passam a assumir
funções gramaticais e, uma vez gramaticalizados, continuam a desen-
volver novas funções gramaticais”.
Destacam-se nessa definição alguns pressupostos fundamentais da
GRAM. Um deles é que se trata de um processo, de um contínuo envol-
vendo micropassos em ambientes contextuais específicos. Hopper (1991)
aponta cinco princípios caracterizadores dos estágios iniciais de GRAM,
em proposta clássica acerca dessa trajetória. Segundo o autor, ao se iniciar
a mudança linguística por GRAM, ocorrem: a) layering (estratificação),
que se refere à coexistência de formas que atuam na mesma área funcio-
nal, passando a competir pelo uso como variantes; b) divergência, que
remete à conservação da forma fonte que deu origem à GRAM, fazendo
com que ambas permaneçam na língua em áreas funcionais distintas; c)
especialização, atinente às restrições de uso sofridas pelo item que se
torna (mais) gramatical; d) persistência, relativa à manutenção de traços
funcionais da forma fonte na forma gramaticalizada; e) decategorização,
que diz respeito à perda, em graus distintos, de propriedades da forma
fonte na forma gramaticalizada.
Outro pressuposto da GRAM é que tal processo é linear, seguindo
uma só direção: do léxico para a gramática, como destacado original-
mente por Meillet (1912), ou do menos para o mais gramatical, com
base na versão posterior de Kurylowicz (1975 [1965]). De acordo com
Furtado da Cunha, Costa e Cezario (2015, p. 43), essas duas direções
permitem classificar a GRAM stricto sensu como as do primeiro grupo,
enquanto a GRAM lato sensu se volta para a análise das mudanças

54
funcionalismo linguístico: interfaces

linguísticas “que se dão no interior da própria gramática, compreen-


dendo aí os processos sintáticos e/ou discursivos de fixação da ordem
vocabular”.
Ao destacar a unidirecionalidade da GRAM, Martelotta (2011, p.
110-115) enfatiza as “motivações comunicativas” como as mais signifi-
cativas nesse processo. Para o autor, a mudança gramatical se deve: a) à
“necessidade de expressar domínios abstratos da cognição em termos de
domínios concretos”; b) à “negociação do sentido pelo falante e ouvinte
no ato da comunicação”; c) à “tendência dos ouvintes para selecionar
estruturas ótimas”; d) à “tendência dos falantes para usar expressões
novas e extravagantes”; e) aos princípios de iconicidade e de marcação,
bem como à frequência de uso.
Como se pode observar, no Funcionalismo clássico, fatores de
ordem cognitiva e pragmático-discursiva impactam inicialmente o
eixo funcional, podendo atingir o eixo formal. Para a GRAM, a uni-
direcionalidade, seja com processo diacrônico ou contínuo sincrôni-
co, é assentada no caminho da função para a forma, o que destaca a
relevância e a primazia do primeiro eixo, a partir dos mecanismos de
metaforização, como postulados por Lakoff e Johnson (1980). Nessa
linha, são propostas algumas trajetórias de derivação de sentido que
têm fundamentado a pesquisa em GRAM, como a de Heine, Claudi e
Hünnemeyer (1991): corpo > objeto > espaço > atividade > tempo
> qualidade, e a de Traugott e Heine (1991): espaço > (tempo) >
texto. Esses caminhos de metaforização têm correspondência com a
proposição do chamado ciclo funcional, como assumido por Givón
(1995), para a pesquisa da GRAM em perspectiva diacrônica: discurso
> sintaxe > morfologia > morfofonologia > zero.
De acordo com Heine e Kuteva (2002), como a mudança por GRAM
não é independente dos contextos de uso linguístico, é preciso considerar
a atuação destes ambientes discursivos mais amplos. Assim sendo, entre
as propostas de classificação de estágios contextuais que podem levar

55
funcionalismo linguístico: interfaces

à GRAM, uma das mais adotadas no D&G4 é a de Diewald e Smirnova


(2012), que propõem um cline contextual distribuído em quatro estágios.
O primeiro deles é o contexto atípico, em que se detectam polissemias,
como mecanismos de metaforização, que podem deflagrar a GRAM como
pré-condições da mudança. O segundo estágio contextual é o crítico, no
qual à opacidade semântica inicial se sobrepõe a opacidade sintática,
ou metonimização, que avança no caminho da GRAM. No terceiro
estágio, o isolado, se consolida a mudança gramatical, na fase em que
é convencionalizado um novo item da língua, distinto daquele que lhe
serviu de fonte. Por fim e como consequência, ocorre o quarto estágio,
a paradigmatização, fase em que o novo item gramatical se insere em
categoria específica da língua, distinta da sua fonte original. Segundo
Diewald e Smirnova (2012), ao ingressar no novo paradigma, o item
gramaticalizado partilha traços da categoria a que agora passa a pertencer
e, por outro lado, como membro específico, tem também propriedades
distintas, o que lhe permite competir pelo uso com os demais membros
do referido paradigma.
Uma outra característica da pesquisa em GRAM está na tendência
à investigação de trajetórias de itens específicos, como, por exemplo, a
de elementos que migram de advérbio a conector, de verbo pleno a verbo
auxiliar ou de adjetivo a prefixo (cf. MARTELOTTA, 2011). Na fase
inicial do Funcionalismo, com base na assunção de que o nível pragmático
está fora do nível gramatical, Martelotta, Votre e Cezario (1996), como
outros autores, postulam a discursivização, ou a desgramaticalização,
para a análise funcionalista de marcadores discursivos, modalizadores
e demais (re)organizadores da interação. Posteriormente, a pesquisa da
mudança operada nesses itens é realizada em termos da GRAM, a partir
da concepção mais expandida da gramática, que passa a abrigar todos
os modos de dizer que se regularizam nas práticas sociais, incluindo-se
aí aqueles relativos ao nível pragmático-discursivo da língua.
4 Essa classificação contextual é trabalhada em teses desenvolvidas no Programa de Pós-
-Graduação em Estudos de Linguagem da UFF, como as de Teixeira (2015), Sambrana (2021)
e Paula (2021), entre outras.

56
funcionalismo linguístico: interfaces

Bases teóricas da CONSTR

No século XXI, a abordagem construcional marca o tipo de Funcio-


nalismo praticado pela LFCU. Em Traugott e Trousdale (2013) e Hilpert
(2014), são apresentados os fundamentos que passam a caracterizar a
pesquisa dos usos linguísticos como CONSTR ou mudança construcional.
Trata-se, sem dúvida, de uma guinada que impacta o olhar funcionalista
sobre seus objetos de pesquisa e sobre seus procedimentos metodológicos.
Esse novo olhar é orientado pela concepção de que a língua é
uma entidade virtual, um tipo de “sistema”, à semelhança do modelo
saussureano, nomeada de constructicon, correspondente a uma rede de
construções. A construção, nessa concepção, de acordo com Traugott e
Trousdale (2013) e a partir de Goldberg (1995, 2006), é definida como
a criação de pareamento [formanova – significadonovo,], na fixação de uma
nova unidade simbólica que se convencionaliza com inédita sintaxe,
morfologia e significado (cf. CROFT, 2001), sendo o significado mais
lexical ou mais gramatical. E nesse ponto já se estabelece contraste entre
CONSTR e GRAM, uma vez que a segunda dá conta somente da mu-
dança que deriva em itens gramaticais ou mais gramaticais5, enquanto a
CONSTR, com base na assunção de que “tudo é construção na língua”,
se distribui num contínuo entre a lexical, que focaliza a formação de
pareamentos de conteúdo mais pleno, como o de nomes e verbos, e a
gramatical, voltada para investigação de pares de conteúdo procedural,
articuladores de relações lógicas, como os conectores, modalizadores e
marcadores do discurso. Neste capítulo, portanto, interessa a CONSTR
de tipo gramatical e sua comparabilidade com a GRAM.
Em Traugott (2021), a CONSTR é concebida como processo e resul-
tado, via estabelecimento progressivo de uma nova associação simbólica
de forma e significado, que foi replicada em uma rede de usuários da

5 No Funcionalismo clássico, a mudança linguística que motiva novos itens lexicais é nomeada de
“lexicalização”, com pontos comuns e outros distintivos em relação à GRAM, como assumem
Brinton e Traugott (2006).

57
funcionalismo linguístico: interfaces

língua. A CONSTR, portanto, é consequente de generalização compar-


tilhada sobre construtos, ou seja, sobre os tokens de uma construção. Tal
definição destaca a frequência de uso como fator impactante na confi-
guração da gramática, resgatando este pressuposto clássico da pesquisa
funcionalista, como enfatiza Bybee (2010, 2015). Assim, em Traugott
(2021), tanto o resultado quanto o processo de convencionalização são
considerados na CONSTR, compreendida esta como decorrente de dis-
seminação gradual de micropassos entre os usuários de uma comunidade
linguística.
Outro traço característico da CONSTR é que, na correlação entre a
perspectiva construcional e a funcionalista, equilibra-se a relevância entre
o eixo funcional e o formal. Assim, a primazia do significado, cara ao
Funcionalismo clássico, cede lugar ao tratamento mais integrador entre os
referidos eixos, em termos de sua correspondência e complementaridade.
O foco no pareamento das propriedades funcionais e formais acarreta
também a relevância dos mecanismos de metonimização, que passam a
ser investigados em termos de sua relação com os de metaforização, como
assumido por Traugott e Trousdale (2013). Nesse sentido, a LFCU lança
luz à analogização, um tipo de neoanálise que, como processo cognitivo
de domínio geral (BYBEE, 2010), enseja a produção e a regularização
de novos modos de dizer a partir de padrões ou esquemas já disponíveis
na língua.
Para Traugott (2021), o que ocorre o tempo todo na língua
são mudanças construcionais, concebidas como modulações de
usos contextuais, ou seja, como alterações, ao nível da função (via
metaforização) ou da forma (via metonimização), que conduzem a
neonálises distintas. Tais modulações levam em conta a dimensão dos
contextos de uso individuais, que concorrem para a inovação e a ex-
pansão das novas formas de dizer, e, em nível mais amplo, considera
a dimensão dos contextos de uso comunitário, que são responsáveis
pela generalização e provável CONSTR. Com base na concepção
de contínuo dos usos linguísticos e na assunção da CONSTR como

58
funcionalismo linguístico: interfaces

processo e resultado, é possível distribuir as referidas modulações


de usos contextuais em estágios distintos da mudança linguística,
estabelecendo-se o seguinte cline:
Figura 1 – Construcionalização em processo

Fonte: Autoral

Como se pode observar, a Figura 1 destaca o viés processual da


CONSTR, que é concebida como o momento específico na trajetória da
mudança linguística no qual se convencionaliza um novo pareamento
de função e forma na língua, em outros termos, uma nova construção
no constructicon. Tomada como processo, a CONSTR decorre de mu-
danças pré-construcionais e, uma vez fixada a inédita construção, outras
mudanças pós-construcionais podem ser desencadeadas.
De acordo com Traugott (2021), entre as modulações verificadas
em etapa pós-CONSTR, estão aquelas atinentes à mudança no grau dos
fatores de esquematicidade, produtividade e composicionalidade. Como
estabelecem Traugott e Trousdale (2013), a pesquisa da CONSTR leva
em conta três fatores, concebidos como gradientes. Um deles é a esque-
maticidade, que se refere ao nível de generalidade e virtualidade de uma
construção, à possibilidade de ser formada por slots, definidos como
subpartes abertas que podem ser preenchidas ou ocupadas por elementos
distintos num esquema. Outro fator é a produtividade, relativa à extensi-
bilidade e à frequência com que uma construção é instanciada; por esse
fator, redimensiona-se a distinção entre frequência type (da construção)
e token (do construto), tal como assumida por Bybee (2003). O terceiro
fator é a composicionalidade, correspondente ao grau de transparência
entre significado e forma, com base na assunção de que o significado de
uma construção é distinto da soma do significado das partes que a inte-

59
funcionalismo linguístico: interfaces

gram; a composicionalidade tem a ver com chunking, processo cognitivo


de domínio geral, nos termos de Bybee (2010), pelo qual os usuários
tendem a agrupar sequências de itens na formação de uma unidade mais
complexa, em termos semântico-sintáticos.
Além dos fatores referidos, Traugott e Trousdale (2013) apontam
três parâmetros gradientes para a pesquisa das dimensões construcionais,
distribuídos em tríade. Por tais dimensões, toda construção pode ser clas-
sificada com base em: a) tamanho (atômica, intermediária e complexa);
b) especificidade fonológica (substantiva, intermediária e esquemática);
c) conceptualização (conteudista, intermediária e procedural). Rosário e
Oliveira (2016, p. 240) ilustram essa taxonomia a partir de construções
do português.
Distintamente à GRAM, a CONSTRU, a partir da concepção de
língua como constructicon, considera relações verticais, horizontais e
transversais entre os pares de significado e forma. Em termos hierárqui-
cos, como postulam Traugott e Trousdale (2013), via CONSTR, podem
ser convencionalizados pareamentos mais esquemáticos, compostos por
slots e situados em nível de maior abstração e virtualidade, os chamados
esquemas; em posição mais abaixo, como subfamílias, situam-se os
subesquemas, que partilham propriedades semântico-sintáticas com o
esquema e, por outro lado, portam alguma especificidade; situadas no
nível mais baixo, se encontram as microconstruções, como types total-
mente especificados.

Relações entre GRAM e CONSTR

Apresentados, em termos gerais, os principais fundamentos da


GRAM, na perspectiva do Funcionalismo clássico, e os da CONSTR,
com base na LFCU, cumpre agora comparar ambos os vieses analíticos,
com foco em suas correspondências e distinções. Como Traugott (2021),
considera-se que há complementaridade entre GRAM e CONSTR e que
tal condição pode contribuir para o desenvolvimento da pesquisa dos

60
funcionalismo linguístico: interfaces

usos linguísticos, na investigação da variabilidade, da estabilidade e da


mudança destes usos. De outra parte, é preciso considerar propriedades
distintivas, como traços particulares derivados do contexto teórico a partir
do qual GRAM e CONSTR são assumidas.
Para Furtado da Cunha e Oliveira (2022), GRAM e CONSTR par-
tilham uma série de propriedades. Uma delas é o uso linguístico permitir
ser investigado como variação ou como mudança. No Funcionalismo
clássico, a variação é contemplada em Hopper (1991), por meio da propo-
sição de variantes como camadas em competição, resultado de crescente
ambiguidade semântica que pode levar à GRAM. Na CONSTR, Capelle
(2006) adota o termo aloconstruções6 para se referir a microconstruções
relacionadas horizontalmente no constructicon como pareamentos variá-
veis ou alternáveis que, embora apresentem traços funcionais específicos,
partilham da mesma “condição de verdade”.
Como mudança, tanto a GRAM como a CONSTR são compreendi-
das enquanto processo histórico, derivadas de neoanálises via pressões
contextuais. Nesse processo, não há separação rígida entre sincronia e
diacronia, priorizando-se a análise pancrônica. Assim, gradualidade e
gradiência, ao lado de estabilidade e variabilidade, marcam todas as eta-
pas históricas dos usos linguísticos, permitindo, como faz Bybee (2010),
comparar a língua às dunas de areia.
Outro ponto comum entre GRAM e CONSTR, conforme Furtado da
Cunha e Oliveira (2022), reside na não separação absoluta entre léxico
e gramática, na admissão do contínuo entre estes pontos. Na GRAM,
se parte do léxico para a gramática e do menos para o mais gramatical;
na CONSTR gramatical, elementos distintos são vinculados, em termos
semântico-sintáticos, e, como um chunk, assumem significado procedural.
O destaque para a frequência de uso e para a produtividade une
também as duas perspectivas, com base na concepção clássica funcio-
nalista de que “os usuários fazem melhor aquilo que fazem sempre”, ou
6 O autor cria esse termo com base em alomorfia e alofonia, clássicos nos estudos linguísticos.

61
funcionalismo linguístico: interfaces

seja, rotinas criam padrões e rituais no comportamento humano, no qual


se inclui o uso linguístico, como defende Bybee (2010, 2015). Assim,
considera-se que a frequência motiva bleaching, ou desbotamento semân-
tico, que pode ser etapa inicial da GRAM; na mesma linha, a frequência
concorre para chunking, com aumento de produtividade e diminuição de
composicionalidade, levando à CONSTR.
Furtado da Cunha e Oliveira (2022) apontam ainda como traço co-
mum da GRAM e da CONSTR a relevância de neoanálises contextuais
(ao nível do significado ou da forma) como motivadoras da mudança
linguística (por metaforização e metonimização) que podem convencio-
nalizar novos padrões de uso (via analogização e expansão host-class7),
prevendo-se ainda a possibilidade de obsolescência. Como, para ambas as
perspectivas, a mudança linguística se dá em micropassos decorrentes de
pressões contextuais, a partir de fatores de ordem pragmático-discursiva
e cognitiva, é preciso que sejam observados e controlados estes fatores
na atividade de descrição e análise da língua em uso.
A LFCU, na pesquisa da CONSTR, tem considerado propostas de
taxonomia contextual elaboradas para dar conta da GRAM, a partir de
ajustes específicos. A seguir, apresenta-se uma dessas propostas reela-
boradas, que compatibiliza o cline de mudança linguística da GRAM a
uma abordagem construcional:

7 De acordo com Himmelmann (2004), trata-se da ampliação de um padrão de uso pelo recru-
tamento de novos constituintes para preencher este padrão, tornando-o mais produtivo.

62
funcionalismo linguístico: interfaces

Quadro 1 – Tipos de contextos em construcionalização gramatical

Estágio Contexto Características Tipos de construção


Sem tipo particular de
I- Precondições da
construcionalização Contexto Implicaturas construção;
atípico conversacionais Composicional
gramatical
II- Desencadeamento Contexto Opacidade Expressões idiomáticas
da construcionaliza- crítico múltipla extragramaticais
ção gramatical
Expressões idiomáticas
Itens polissêmi-
III- Reorganização e Contexto formal ou lexicalmente
cos/heterossê-
diferenciação isolado abertas
micos

Oposições/
distinções
paradigmáticas Escolhas paradigmá-
IV- Integração para- Contexto com significa- ticas a partir de um
digmática paradigmático dos relacionais esquema construcional
reduzidos, isto abstrato
é, significados
gramaticais

Fonte: Rosa (2019, p. 72), adaptado de Diewald e Smirnova (2012)

Como se pode observar, Rosa (2019) mantém a escala de deri-


vação contextual de Diewald e Smirnova (2012). A autora associa as
características de cada estágio à abordagem construcional, num ajuste
metodológico que tem se mostrado eficiente para a descrição e a análise
da CONSTR de tipo gramatical8.
O cline ilustrado no Quadro 1 evidencia uma outra convergência
entre GRAM e CONSTR: a unidirecionalidade. O caminho unidire-
cional, contemplado na pesquisa em GRAM, tem abrigo também na
CONSTR, uma vez que a unidirecionalidade é uma das possibilidades
direcionais, notadamente em termos da formação de pareamentos pro-
8 Uma série de pesquisas desenvolvidas no contexto do D&G UFF, como as de Teixeira (2015),
Rosa (2019), Sambrana (2021) e Paula (2021), entre outras, têm adotado essa proposta meto-
dológica e obtido consistentes resultados.

63
funcionalismo linguístico: interfaces

cedurais. Assim, caracterizar a abordagem construcional praticada na


LFCU como direcional ou radial não exclui tratar a CONSTR como
processo de mudança unidirecional. As mudanças pós-construcionais
envolvendo aumento de esquematicidade e produtividade e, de outra
parte, diminuição de composicionalidade, vão ao encontro do caminho
unidirecional da CONSTR.
De acordo com Heine, Narrog e Long (2016, p. 151), parâmetros
clássicos funcionalistas, como extensão de contexto, dessemantização,
decategorização e erosão, são considerados na GRAM e na CONSTR.
Tais parâmetros podem ser interpretados tanto como etapas da trajetória
unidirecional de GRAM, quanto como mudanças construcionais, sejam
estas na fase pré-CONSTR (como dessemantização ou decategorização),
sejam na fase pós-CONSTR (como extensão de contexto ou erosão),
conforme a concepção processual da CONSTR assumida por Traugott
(2021).
Às correspondências aqui referidas, que permitem tratar GRAM e
CONSTR como complementares na pesquisa da mudança linguística, se
somam distinções que precisam ser consideradas. Por se tratar de con-
cepções situadas em áreas mais específicas da Linguística, são marcadas
por propriedades atinentes a tais áreas.
Como destacam Traugott (2021) e, no Brasil, Furtado da Cunha e
Oliveira (2022), um dos aspectos distintivos entre GRAM e CONSTR
está na questão da direcionalidade. A GRAM lida com trajetórias de
mudança do tipo concreto > abstrato, léxico > gramática, - gramatical >
+ gramatical, com atenção especial para neoanálises de tipo metafórico.
Já a CONSTR amplia o foco analítico para direcionalidade lexical ou
gramatical, contemplando metaforização e metonimização/analogização
como mecanismos em ação conjunta. Interessa também à CONSTR como
objetos de pesquisa os idiomatismos e as frases feitas, concebidos como
construções totalmente especificadas e dotadas de significado muito
convencionalizado, o que não está no foco maior da GRAM.

64
funcionalismo linguístico: interfaces

Mais um contraste entre GRAM e CONSTR reside no tipo de


evidência para atestar a mudança linguística. Enquanto a GRAM
busca essa evidência em termos tipológicos, investigando padrões
de uso translinguísticos como tendências verificáveis num conjunto
significativo de línguas, conforme assumem Heine e Kuteva (2006,
2007), a CONSTR busca evidências de modo mais estrito, a partir de
uma única língua ou de variedades de uma língua. Tal contraste tem a
ver com o tipo de problema geral maior que essas perspectivas procu-
ram responder: investigar a rota de convencionalização de categorias
gramaticais e sua evidência tipológica, como praticada pela GRAM,
ou analisar as construções e propor esquemas do constructicon, como
trabalha a CONSTR?
Outro ponto distintivo se situa no papel da categorização e da
ampliação ou redução de paradigmas linguísticos. Na GRAM, o pres-
suposto é que o novo item gramaticalizado assuma nova categoria
na gramática, ampliando, por consequência, determinado paradigma
a partir da nova função adquirida; portanto, a paradigmatização,
de acordo com Diewald e Smirnova (2012), é pressuposta nesta
perspectiva. Com relação à CONSTR, ainda que compreendida em
termos processuais, a categorização e a paradigmatização não têm
recebido maior atenção; embora seja considerada a alteração do
constructicon, mediante ampliação ou redução de esquemas, não
há maior discussão acerca da mudança categorial e do impacto na
configuração paradigmática da língua.
Diewald (2020), observando essa lacuna na pesquisa da construção
gramatical, defende que o paradigma seja incorporado mais efetivamente
à pesquisa em CONSTR. Para tanto, a autora propõe que seja concebido
como um tipo específico e complexo de construção, uma hiperconstrução,
a ser integrado, como um novo tipo de nó, no arcabouço teórico e descri-
tivo da gramática de construções. Para Diewald (2020), a hiperconstrução
constitui um conjunto complexo e holístico de membros interdependentes,
que, por sua vez, são microconstruções em si mesmas. Esses membros

65
funcionalismo linguístico: interfaces

devem partilhar determinados traços funcionais sem, contudo, necessi-


tarem apresentar correspondência estrutural.
Como traço distintivo final a ser destacado entre GRAM e CONS-
TR, cita-se o status diferenciado da mudança semântica em ambas as
abordagens. Na GRAM, destaca-se a pesquisa em metaforização e a
primazia de trajetórias unidirecionais, com a mudança semântica tendo
sua relevância embasada na consideração de que se trata de etapa básica
e inicial de todo processo de mudança linguística. No viés da CONSTR,
até mesmo por conta da definição construcional como o pareamento
convencionalizado entre significado x forma, o eixo semântico perde
primazia, em prol do tratamento mais holístico dos itens linguísticos.
Esse equilíbrio na consideração do significado e da forma concorre para
a feição mais formalista da CONSTR face à GRAM, traço que deve ser
considerado e monitorado na pesquisa em LFCU, uma vez que, embora
seja adotada a perspectiva construcional nesse viés teórico, trata-se ain-
da de uma vertente funcionalista, portanto, dados empíricos, contexto
interativos e pressões de ordem pragmático-discursiva devem continuar
a ser priorizados, como destacam Rosário e Oliveira (2022).

Estudo de caso: a trajetória de um intensificador de grau em por-


tuguês

Esta seção é dedicada à apresentação de resultados obtidos com


a pesquisa da construcionalização intensificadora de grau [[p(a)ra lá
de] [Xadj]] no português, com base em Paula (2021) e Oliveira e Paula
(2019, 2022), em instanciações como as seguintes, extraídas de Paula
(2019, p. 15):

(1) Em entrevista recente, Sharon Osbourne foi para lá de crítica com


estrelas da cultura pop, alfinetando Justin Bieber, o congressista An-
thony Weiner e o talk show The View. Mas ela não parou por aí. (CdP/
Web Dialetos, Brasil,).

66
funcionalismo linguístico: interfaces

(2) Saiba como ter uma gestação tranquila se você engravidou antes
da hora – Toda garota conhece os riscos e prejuízos que vai acabar
sofrendo se precisar assumir que está grávida antes da hora. E não
são poucos! Mas de uma coisa você pode estar certa: com o apoio
de quem ama e os cuidados essenciais, poderá garantir uma gestação
tranquila e um recomeço mais fácil depois que o bebê chegar. Para
ajudá-la nessa situação pra lá de delicada, a Atrê conversou com duas
especialistas, que estão acostumadas a atender jovens grávidas. […]
(CdP/Web Dialetos, Brasil)

Os fragmentos (1) e (2) destacam os construtos para lá de crítica e


pra lá de delicada com função intensificadora de grau. Ambos os dados
ilustram o tipo de contexto preferencial de instanciação de [[p(a)ra lá de]
[Xadj]]: sequências marcadas por maior informalidade e intersubjetividade,
nas quais o locutor convida o interlocutor a partilhar seu ponto de vista
ou opinião em relação ao que é comentado: o tom crítico da entrevista
de Sharon Osbourne, em (1), e os cuidados necessários durante a ges-
tação de adolescentes, em (2). Esses construtos concorrem ainda para a
expressão de certo ambiente de maior intimidade e proximidade entre
os interlocutores, no partilhamento de crenças e valores.
Em pesquisa empírica histórica, Paula (2021) levanta contextos de
uso de para/pera lá no Corpus do Português9 (CdP) do século XIV ao
século XXI, coletando um total de 710 dados em análise, envolvendo
arranjos mais ou menos vinculados entre para/pera lá. Na tabela seguinte,
apresenta-se esse levantamento por século:

9 Disponível no site https://www.corpusdoportugues.org/.

67
funcionalismo linguístico: interfaces

Tabela 1 – Levantamento geral de para/pera lá no CdP

SÉCULO OCORRÊNCIAS
XIV 7
XV 29
XVI 52
XVII 23
XVIII 10
XIX 27
XX 162
XXI 400
TOTAL 710

Fonte: Paula (2021, p. 73-74)

A autora destaca que os 400 dados referentes ao século XXI re-


sultam de seleção de 200 dados do português brasileiro (PB) e 200 do
português europeu (PE), do total de 3.200 fragmentos coletados nesta
sincronia. Assim, Paula (2021) considera que o aumento da frequência
de para lá de no século XXI ratifica ser a CONSTR intensificadora de
grau [[p(a)ra lá de] [Xadj]] um esquema recente na língua, uma vez que
tem seu registro inicial somente a partir do século XX.
Adotando a taxonomia contextual de Diewald e Smirnova (2012),
a autora estabelece o cline de crescente vinculação semântico-sintática
de para lá de na trajetória da língua, a partir dos 710 dados referidos
na Tabela 1. O contexto fonte10, considerado o ponto original de para
lá, é detectado no século XIV, como ilustrado a seguir (PAULA, 2021,
p. 78):

10 A trajetória de derivação das autoras já parte de contextos de mudança, os atípicos, com base
na ambiguidade semântica, mas Paula (2021) propõe o contexto fonte como origem, o ponto
inicial que deflagra a atipicidade contextual.

68
funcionalismo linguístico: interfaces

(3) E elle tornou a terra a dõ Pero ãçores e elle fezelhe menajen por
ella. E a reynna, cõ despeito por que stava presa, fallou cõ os que ha
guardavã e mãdou a Castella por algûûs e partiose do castelo. Mas os
homës boos da terra nõ lho teverõ por boo recado por que se viinha a
Castela sem prazer de seu marido e tornarõa pera la mui hõrradamëte.
E, proçedëdo pello tëpo en diãte, vio el rey que en në hûa guisa a reÿa
nõ queria seguir seu talãte; trouxea ataa Soyra e partiose della. (CdP:
Crônica Geral de Espanha, de 1344)

O fragmento (3) exemplifica o contexto original em que para/pera


lá é usado na língua: trata-se de uma adjunção basicamente locativa e
mais composicional. Em usos como o ilustrado em (3), para tem signi-
ficado de direcionalidade e lá aponta anaforicamente o sentido espacial
(Castela). Desse ambiente chega-se ao estágio seguinte, tomado como
atípico e subdividido em três graus, como exemplificado em (4), (5) e
(6) (cf. PAULA, 2021, p. 82-87):

(4) Considere Vossa Senhoria que Deus lhe não deu o juízo que tem
para estes empregos, senão para a consideração dos seus atributos, amor
e perfeições. Lembre-se Vossa Senhoria que o fim último para que foi
criado foi a glória e o seu louvor e honra, e estas profanas fadigas não
caminham para lá, pois se encaminham ordinariamente para a glória
própria, para o crédito da Pátria e outros fins caducos. (CdP: Cartas
Espirituais, de Antonio das Chagas, 1665)

(5) Ao cabo do outro dia houve longa e animada conversação entre o


cavaleiro e o filho da casa, Paio Guterres, moço de prol e grande escolar,
isto é, grande estudante a quem todos queriam muito por ali. E dessa
conversação veio a sair que a mulher do palheiro foi transportada para
uma casinha mui linda que ficava na encosta do outeiro, muito para lá
da igreja, ao pé dos sicômoros e quase à beira do regato. (CdP: Arco
de Sanct’Anna, de Almeida Garrett, Séc. XIX)

69
funcionalismo linguístico: interfaces

(6) A Exposição de Lisboa, cuja divulgação esteve presente em vários


pontos do distrito de Leiria, pretende atrair a comunidade internacional
para um projecto de reflexão comum sobre os oceanos, permitindo que
este grande acontecimento possa materializar-se na memória e na vida
da cidade, do país e da comunidade internacional, para lá de 1998. A
EXPO’ 98 será um momento privilegiado para a percepção clara dos
grandes problemas levantados pela gestão dos oceanos na alvorada do
século XXI, no qual se assistirá à ocupação tridimensional dos Oceanos,
como última fronteira do planeta. (CdP: Os Oceanos e a EXPO’98:
Dois patrimónios, Notícia, 16-01-1998)

Os três fragmentos apontam mudanças intracontextuais do estágio


atípico que cumprem trajetória de crescente abstratização de para lá. Em
(4), tem-se um exemplo de uso representativo dos séculos XVII e XVIII,
em que para lá funciona na indicação de espaço virtual (glória, louvor e
honra), não mais fazendo referência um lugar físico ou concreto; trata-
-se do grau 1 do contexto atípico. A partir do século XIX, Paula (2021)
levanta dados em que se complexiza esse arranjo, na medida em que se
detecta a codificação [[para lá] [de XSN]], atuante na indicação locativa
mais vaga, com afastamento em relação a X, tomado este como marco
a ser ultrapassado. Assim, o afastamento pode se dar em relação a um
local que se situa além ou adiante de outro, como em (5), no construto
para lá da igreja, ou ainda em relação a uma baliza temporal, como em
(6), com para lá de 1998. Paula (2021) classifica padrões de uso como
o ilustrado em (5) como grau 2 e em (6) como grau 3. Tal refinamento
intracontextual também é resultado obtido por Rosa (2019), que nomeia
de nanopassos as mudanças linguísticas detectadas no interior de cada
estágio contextual, confirmando a gradualidade do processo de mudança
gramatical.
Em (7), chega-se a uma etapa mais avançada na trajetória de para
lá de, como ilustra Paula (2021, p. 90):

70
funcionalismo linguístico: interfaces

(7) […] Sofia enganara todos, paria feito uma gata, não gemia nem
miava, com a exceção dos gêmeos mas, também, cuspir os dois custaria
até às pretas, estas sim, de ancas boas. Lembrou-se então do sogro lhe
propondo casamento: - Desencantando Sofia, tu ganhas uma fazenda
com pra lá de cem alqueires, além de gado leiteiro e oito escravos dos
bons, oferta de qualidade. Escolhi-te para genro por seres homem direito.
Toda Batéia confirma teu gosto de lida brava, teu tento em trabalhar.
Aceita. Minha filha sai ganhando, é menina sem encantos, com risco
de solteirice. (CdP: Onde Andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando
Abreu, Séc. XX)

No fragmento (7), segue-se a pra lá de o SN quantificador cem


alqueires, na formação de uma unidade mais vinculada semântico-
-sintaticamente, que envolve tanto metaforização quanto metonimização.
Em usos como esse, observa-se mismatch entre a expressão adverbial
circunstancial (de espaço ou tempo), que é mais objetiva, e a expressão
quantitativa, mais abstrata. De acordo com Paula (2021), inferências con-
textuais, intersubjetividade e pressões estruturais favorecem a articulação
de para lá de como quantificador de grau, nos termos de Silva (2014).
O estágio contextual posterior, que consolida a mudança linguística
com a convencionalização de um novo item na classe dos intensifica-
dores de grau, é exemplificado em (8), conforme se encontra em Paula
(2021, p. 93):

(8) Lançou o seu Tradecash, cartão de crédito com limites de R$ 50 para


quem não tem conta em banco e de R$ 200 para quem tem. Já fechou
até acordo com as Lojas Americanas, primeira a aceitar o Tradecash.
Luís Guilherme Prates, diretor da Fininvest, justifica: – O nível de
inadimplência na classe baixa é o menor. Porque o pobre depende do
crédito para comprar tudo. De eletrodoméstico a uma peça de roupa.
E sabe que precisa pagar em dia para ter crédito. O lucro é para lá de
bom. Porque o empréstimo é de pobre, mas a taxa de juros, de rico:
acima de 12% ao mês! Isso com uma inflação mensal que não chega a
1%. (CdP: Marceu Vieira, interino, Séc. XX)

71
funcionalismo linguístico: interfaces

O construto para lá de bom, em (8), instancia uma nova construção


intensificadora de grau na língua, codificada como [[p(a)ra lá de] [Xadj]]
e registrada a partir do século XX no PB, com 14 dados levantados. Tal
como (1) e (2), apresentados no início desta seção, em (8) a sequência é
marcada por certa informalidade e proximidade entre os interlocutores,
no intuito de que haja maior convencimento acerca do que é afirmado;
no caso de (8), é o lucro a ser obtido por parte de empresas financeiras
ao emprestarem dinheiro à classe mais pobre. Em termos metafóricos,
corrobora-se o mapeamento segundo o qual “localização é intensifica-
ção”, como assume Paula (2021). Nesse estágio contextual, nomeado
por Diewald e Smirnova (2012) de isolado, consolida-se a formação
de um chunk semântico-sintático, com novo significado e formato, que
passa, na sequência, a integrar a classe dos intensificadores de grau do
português, como mais um de seus membros.
No século XXI, passam a ser registradas instanciações da nova
construção intensificadora de grau também no PE, conforme demonstrado
na tabela a seguir:
Tabela 2 – Instanciações de [[para lá de] [Xadj]]gi no século XXI no PB e no PE

Fonte: Paula (2021, p. 108-109)

72
funcionalismo linguístico: interfaces

Conforme se observa na Tabela 2, os 181 dados registrados de


para lá de no século XXI, o que corresponde a cerca de 50% dos 400
dados gerais, de acordo com a Tabela 1, constituem instanciações de
[[para lá de] [Xadj]]gi, o que é indício do aumento de produtividade dessa
CONSTR na língua face às 14 ocorrências registradas no século XX.
Tal incremento de frequência type aponta que esse novo pareamento,
inicialmente convencionalizado no PB, passa a ser instanciado no PE a
partir do século XXI, ainda que esta variedade constitua praticamente
a metade das ocorrências daquela: são 68 registros no PE e 113 no PB.
A partir da detecção dos estágios contextuais que conduzem à
convencionalização do intensificador de grau [[p(a)ra lá de] [Xadj]] na
gramática do português, Paula (2021) postula a seguinte escala de deri-
vação semântico-sintática:
Figura 2 – Construcionalização de [[p(a)ra lá de] [Xadj]]gi

Fonte: Adaptado de Paula (2021, p. 97)

Como se pode observar pela Figura 2, cada etapa de mudança lin-


guística promove crescente vinculação entre para, lá e de, numa escala
que concorre para a diminuição de composionalidade desse arranjo,
com aumento de convencionalidade e abstração, nos termos de Traugott
e Trousdale (2013). Com base em Bybee (2010), constata-se que essa
trajetória evidencia a gradualidade da mudança ocorrida e, de outra parte,
motiva a gradiência constatada nos usos sincrônicos do português, uma
vez que convivem na sincronia atual da língua todos os cinco estágios
ilustrados na Figura 2.

73
funcionalismo linguístico: interfaces

Convencionalizada a construção [[p(a)ra lá de] [Xadj]]gi no século


XX, Paula (2021) detecta, no século XXI, a expansão host-class des-
se esquema, nos termos de Himmelmann (2004). Na perspectiva da
CONSTR, trata-se de mudança pós-construcional. A expansão se dá via
analogização, por intermédio do preenchimento do slot X por outros
constituintes fora da classe dos adjetivos, em formações como para lá
de Bagdá e para lá de Marrakech, por exemplo.
Esse incremento de produtividade type chega a pareamentos in-
dicadores de nova CONSTR, como os seguintes, levantados por Paula
(2021, p. 121) no século XXI:

(9) A ideia de passar por um segundo divórcio (ou separação) é aterra-


dora - envolve, para lá da tristeza e do desapontamento, a vergonha e a
dificuldade em assumir outro fracasso perante a família e os amigos. Se
a segunda ruptura envolver a mesma pessoa, estes sentimentos podem
ser exacerbados. Daí que tantos casais decidam recorrer à ajuda especia-
lizada antes de assumirem que voltaram a estar juntos. Esta ajuda pode
ir ao encontro das suas necessidades, permitindo-lhes explorar os erros
do passado em uma perspectiva de auto-responsabilização e optimismo.
(CdP/Web Dialetos, Brasil, http://www.apsicologa.com/2006/03/casar-
-duas-vezes-com-mesma-pessoa.html)

(10) Na passagem de mais um por estes lados muitas foram as mensagens


de apoio e de felicitações e também os presentes. Ofertas sentidas que
revelam amizade ou sentimentos mais profundos. Dentre elas constou
esta edição especial do concerto comemorativo dos 25 anos de Xutos &
Pontapés “on the road”, no Pavilhão Atlântico. Para lá de ser efectiva-
mente um repositório de 25 anos de carreira, tem, para mim, um sabor
especial por conter temas dos primórdios da sua carreira. Temas que
ouvi repetidas vezes durante os anos 80, ou no saudoso “Rock Rendez
Vous” ou em os espectáculos que religiosamente, eu e o “F” presenci-
ávamos onde quer que houvesse Xutos. (CdP/Web Dialetos, Portugal,
http://arlindopinto.com/planetadoscatos/tag/aniversario)

74
funcionalismo linguístico: interfaces

Como se pode observar, em (9) e (10), respectivamente, para lá da


tristeza e do desapontamento e para lá de ser efetivamente um repositó-
rio de 25 anos de carreira estão a serviço da conexão textual, e assim,
constituem construtos integrantes de outro paradigma, o dos conectores.
Instâncias de uso nesse padrão revelam que o slot X é ocupado por cons-
tituintes nominais ou verbais, com alguma persistência de propriedades
semânticas da [[p(a)ra lá de] [Xadj]]gi, relativas à intensificação, e de
propriedades sintáticas, atinentes ao esquema geral codificado. Assim,
é possível demonstrar o viés processual dessa trajetória de mudança, na
medida em que mudanças pós-CONSTR derivam em CONSTR.
Os resultados aqui apresentados podem ser interpretados à luz
da complementaridade entre GRAM e CONSTR, como se discute na
próxima seção deste capítulo. Parte-se do pressuposto, como defendem
Traugott (2021) e Heine, Narrog e Long (2016), que uma visão comple-
mentar, que considere ambas as perspectivas, pode enriquecer e ampliar a
análise dessa trajetória da mudança linguística e de muitas outras também.

Discussão final

Tomando como ponto de partida as bases teóricas da GRAM


e da CONSTR, na admissão da complementaridade entre ambas as
perspectivas, constata-se que a trajetória de mudança linguística que
convencionaliza [[p(a)ra lá de] [Xadj]]gi é passível de ser interpretada à
luz desses dois vieses funcionalistas. Assim, mudanças construcionais
podem ser consideradas para além dos limites da construção, com foco
nas propriedades e motivações dos contextos de uso.
Em termos da GRAM, os estágios contextuais detectados por Paula
(2021) e ratificados em Oliveira e Paula (2022) evidenciam o trajeto uni-
direcional clássico que leva itens da língua de categorias menos para mais
gramaticais; assim, para lá de vai de expressão voltada para a adjunção
circunstancial, assume papel de intensificador de grau e chega à conexão
textual, com significado progressivamente mais abstrato e intersubjetivo.

75
funcionalismo linguístico: interfaces

A gradualidade da mudança apresentada pelas autoras pode ser interpre-


tada à luz dos clássicos clines de gramaticalização referidos em seção
inicial deste capítulo, como o sintetizado por Traugott e Heine (1991)
em espaço > (tempo) > texto, bem como do ciclo funcional givoniano.
Nesse trajeto de mudança gramatical, de acordo com Hopper
(1991), atuam os cinco subprincípios postulados pelo autor para
GRAM: a) estratificação, uma vez que para lá de começa a competir
com outros membros da classe dos intensificadores de grau, com
muito, demais ou para além de, entre outros; b) divergência, com a
conservação da forma fonte de função adverbial para lá de ao lado
das mais inovadoras; c) especialização, relativa aos contextos de
uso mais específicos de para lá de como intensificador de grau e
como conector; d) persistência, devido à conservação de algumas
propriedades semânticas das categorias fontes de para, lá e de na
convencionalização dos novos pareamentos mais procedurais; e)
decategorização, atinente à perda de traços da classe dos adjuntos
circunstanciais em prol do ganho de traços da classe dos intensi-
ficadores de grau e dos conectores textuais.
Na perspectiva da CONSTR como processo, com base em Traugott
(2021), os estágios contextuais atípico e crítico aqui referidos são consi-
derados mudanças pré-construcionais que conduzem, no estágio isolado,
à convencionalização do intensificador de grau [[p(a)ra lá de] [Xadj]].
Esse pareamento, de acordo com Traugott e Trousdale (2013), é uma
construção: a) complexa, porque formada por mais de uma subparte; b)
parcialmente esquemática, uma vez que tem uma subparte aberta, o slot
X; c) representativa de um esquema em nível hierárquico mais alto no
constructicon do português, já que a subparte X, ao ser preenchida, forma
microconstruções como types específicos desse esquema d) procedural,
dado que veicula significado mais abstrato e gramatical; e) parcialmente
composicional, uma vez que se conservam alguns traços das categorias
fonte que a formam.

76
funcionalismo linguístico: interfaces

Na GRAM, os resultados da pesquisa tanto na formação do novo


membro do paradigma dos intensificadores de grau como do novo conec-
tor textual em português podem contribuir para investigações tipológicas
ou translinguísticas; interessa aí a detecção de padrões gramaticais co-
muns, como tendências de mudança gerais verificáveis em um conjunto
de línguas. Já os resultados da pesquisa em CONSTR concorrem para
um olhar mais formalista sobre a língua, com a proposição de esquemas,
subesquemas e microconstruções, conforme Traugott e Trousdale (2013),
na expansão do constructicon.
Nesse sentido, é possível assumir que há complementaridade da
GRAM e da CONSTR no âmbito da pesquisa funcionalista, sendo a
primeira de maior tradição e amplamente praticada na área, em termos
nacionais e internacionais. Como assumem Heine, Narrog e Long (2016),
pode haver espaço para cooperação em ambas as vertentes, como, por
exemplo, acerca das relações de herança construcional (GOLDBERG,
1995, 2006) e dos subprincípios de persistência, decategorização e di-
vergência do Funcionalismo clássico (HOPPER, 1991).
Por outro lado, por se tratar de duas vertentes distintas, cabe ao
investigador funcionalista definir, de acordo com vários fatores (objeto
de pesquisa, propósitos acadêmicos, pertinência teórica), uma dessas
vertentes. Um dos exemplos da distinção referida se encontra no olhar
sobre produtividade: enquanto, na GRAM, diferentes graus de produtivi-
dade se relacionam a diferentes constituintes gramaticais alvo (HEINE;
NARROG; LONG, 2016, p. 155), na CONSTR, diferenças em produti-
vidade indicam micropassos que apontam para a mesma construção alvo
(TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013).
Nesse sentido, postula-se que considerar a complementaridade aqui
assumida não significa adotá-la efetivamente no desenvolvimento de pes-
quisas funcionalistas específicas. O mais importante para os funcionalistas
é manter o foco analítico nos usos linguísticos, tendo-os como centralidade
das pesquisas desenvolvidas, tal como postulam Rosário e Oliveira (2021).

77
funcionalismo linguístico: interfaces

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O PAPEL DA AUTOMATIZAÇÃO E DA
INTERSUBJETIVAÇÃO NA ANÁLISE DA MUDANÇA
LINGUÍSTICA: NOVAS REFLEXÕES PARA A
ABORDAGEM DA CONSTRUCIONALIDADE

Monclar Guimarães Lopes


(UFF)

Ivo da Costa do Rosário


(UFF/CNPq/FAPERJ)

Introdução

Descrever a mudança linguística está longe de ser uma tarefa sim-


ples. Quanto mais precisamos recuar no tempo para a descrição de um
determinado fenômeno, mais escassos tendem a ser os dados. Muitas ve-
zes, inclusive, boa parte deles pode não estar (mais) disponível, sobretudo
quando as mudanças ocorreram majoritariamente na modalidade oral,
cujos registros só se tornaram extensivamente possíveis depois de 1877,
ano em que Thomas Edison desenvolveu o primeiro aparelho de gravação
de áudio. Em decorrência dessa dificuldade, tornou-se bastante famosa
a metáfora proposta por Labov (1994, p. 11) para definir o trabalho com
a linguística histórica: “a arte de fazer o melhor uso de maus dados”.
A despeito desse problema, felizmente, a linguística moderna dispõe
de meios para a “reconstrução” de dados históricos. Esse procedimen-
to tornou-se possível a partir das generalizações de diversos estudos

81
funcionalismo linguístico: interfaces

diacrônicos já empreendidos, os quais atestam a existência de muitas


regularidades na mudança linguística (cf. BYBEE, 2015; CROFT, 2001;
TRAUGOTT; DASHER, 2002; TRAUGOTT; TROUSDALE, 2010,
apenas para citar alguns). Como ilustração, podemos mencionar Bybee
(2015), quando a pesquisadora trata das chamadas rotas comuns de gra-
maticalização. Dentre os fenômenos elencados pela estudiosa, consta a
emergência da noção de futuridade, cujas fontes, nas mais diversas línguas
naturais, são verbos com ideia de volição, obrigação ou movimento para
frente. Em português, inglês e francês, por exemplo, a forma verbal básica
de movimento para frente – ir, go e aller – é recrutada como auxiliar de
futuro, como se pode notar nas frases a seguir: vou viajar; I’m going to
travel; je vais voyager. Nesses casos, a motivação para a mudança é de
ordem cognitiva: elementos de deslocamento espacial, de natureza mais
concreta, vão sendo reconceptualizados, via metaforização, para assumir
uma função mais abstrata, a de deslocamento no tempo.
Os estudos funcionalistas, bem como os estudos cognitivistas ba-
seados no uso, reconhecem que as línguas naturais mudam de maneira
análoga e isso se deve ao modo como a língua é usada. Mais particu-
larmente, tal fenômeno está associado aos processos mentais – também
chamados de processos cognitivos de domínio geral (cf. BYBEE, 2010)
– que estão em jogo quando os falantes e ouvintes se comunicam.
Vale ressaltar que a regularidade da mudança, desde o início dos
estudos funcionalistas, mostrou-se tão consistente que, depois de algum
tempo, na década de 1990, surgiu uma nova abordagem que tornou
possível a descrição da trajetória histórica de elementos linguísticos a
partir de dados exclusivamente sincrônicos, conhecida como gramati-
calização sincrônica, ou ainda, gramaticalidade (cf. PIETRANDREA,
2005; TRAUGOTT; HEINE, 1991). Trata-se de uma abordagem capaz
de oferecer tratamento histórico de fenômenos linguísticos cujos dados
são escassos, ou ainda, inacessíveis em decorrência da inexistência de
registros.

82
funcionalismo linguístico: interfaces

Foi nessa mesma toada que Rosário e Lopes (2019, 2023) cunharam
o termo construcionalidade. Para isso, empregaram o seguinte raciocí-
nio analógico: assim como as generalizações da gramaticalização – um
fenômeno essencialmente diacrônico – possibilitaram a postulação do
conceito de gramaticalidade, as generalizações da construcionalização
– um fenômeno também essencialmente diacrônico – podem dar origem
à construcionalidade, exatamente para o mesmo fim: possibilitar meios
para reconstruir a trajetória diacrônica das construções linguísticas a
partir das pistas disponíveis em sua gradiência sincrônica.
A proposta seminal da construcionalidade (ROSÁRIO; LOPES,
2019) foi revista recentemente (cf. ROSÁRIO; LOPES, 2023), em um
novo estudo que, além de propor uma revisão para o conceito, conta com
princípios e parâmetros aplicáveis à análise de construções complexas
procedurais nas línguas naturais, cujas propriedades linguísticas indicam-
-nas como sendo o resultado de construcionalização gramatical (cf.
TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013). Neste capítulo, por sua vez, nossa
proposta é a de mostrar como a atuação de dois processos cognitivos de
domínio geral, a automatização (cf. DIESSEL, 2019) e a intersubjeti-
vação (cf. TANTUCCI, 2021; TRAUGOTT; DASHER, 2002) também
podem ser empregados como fatores de análise para a investigação da
construcionalidade.
Para esse fim, estruturamos este capítulo em mais três seções: ini-
cialmente, em construcionalidade: conceito e fatores de análise, traçamos
um breve panorama de nossa proposta, com base em nosso texto mais
recente (ROSÁRIO; LOPES, 2023). Em sequência, em automatização,
intersubjetivação e reconfiguração das relações sequenciais, buscamos
mostrar como os dois processos cognitivos supracitados podem servir à
investigação da construcionalidade, a partir da noção de relações sequen-
ciais. Logo após, trazemos alguns exemplos de aplicação dessas catego-
rias, com base no estudo de Rosário e Santos (2022). Por fim, fechamos
o capítulo com as considerações finais e as referências bibliográficas.

83
funcionalismo linguístico: interfaces

Construcionalidade: conceito e fatores de análise

Definimos a construcionalidade como sendo “a relação sincrônica


entre duas ou mais construções, de modo que uma construção pode ser
apontada como base para outra(s), a partir de seus diferentes níveis de
gradiência e gramaticalidade” (ROSÁRIO; LOPES, 2023, p. 63). Essa
relação pode ser aferida por meio da análise de fatores variados. De
um lado, é possível recrutar aspectos de uma visão de gramática como
redução – como os parâmetros de gramaticalização (LEHMANN, 2015
[1982]) e os princípios de gramaticalização (HOPPER, 1991). Igualmente
é possível uma perspectiva de gramática como expansão, como a proposta
de Himmelmann (2004). A literatura moderna comprova que ambas as
visões, apesar de aparentemente antagônicas, são complementares (cf.
TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013), haja vista que redução e expansão
agem em diferentes aspectos e fases do processo de mudança linguística.
A redução tende a se manifestar mais fortemente em processos mais
avançados de mudança, no plano formal; já a expansão, em maior medida
(mas não somente), impacta o plano semântico-pragmático, em estágios
mais iniciais do processo de mudança.
Por uma questão de escopo, nesta seção, mostraremos somente a
aplicação dos parâmetros de gramaticalização propostos por Lehmann
(2015 [1982]) associados ao fenômeno da construcionalidade. Para
conhecer mais sobre a aplicação dos princípios de gramaticalização
(HOPPER, 1991) ou da perspectiva da expansão semântico-pragmática
(HIMMELMANN, 2004), indicamos a leitura do texto recente de Rosário
e Lopes (2023) acerca da construcionalidade.
Os parâmetros de gramaticalização propostos por Lehmann (2015
[1982]) são muito úteis à descrição da construcionalidade, no que tange
às construções procedurais complexas. Isso decorre do fato de que há
uma direcionalidade prevista para a emergência dessas construções, que
pode ser medida por meio de um conjunto de seis parâmetros, a saber:

84
funcionalismo linguístico: interfaces

Quadro 1 – Parâmetros de gramaticalização

Gramaticalização
Parâmetro Processo Gramaticalização forte
fraca
Muitos traços se- Poucos traços semânti-
Integridade mânticos, possivel- Atrição cos, itens possivelmente
Eixo paradigmático

mente polissilábicos monossegmentais


Participação
Paradigmati- Paradigma pequeno,
Paradigmaticidade “frouxa” do item no
zação fortemente integrado
campo semântico
Escolha livre de
Escolha sistematica-
Variabilidade elementos de acordo Obrigatorie-
mente restrita, com uso
paradigmática com as intenções dade
altamente obrigatório
comunicativas
Relação do item
Escopo com constituinte Item modifica palavra
Condensação
Eixo sintagmático

estrutural de complexidade ou raiz


arbitrária

Justaposição inde- Item é afixo ou até mes-


Fixação Coalescência
pendente do item mo um traço fonológico
Variabilidade
sintagmática Movimentação livre
Fixação Item ocupa posição fixa
do item

Fonte: Lehmann (2015 [1982], p. 174), adaptado pelos autores

Para o estudo da construção procedural complexa, consideramos os


aspectos da gramaticalização fraca como atributos da forma-fonte – mais
composicional, com seus elementos menos vinculados e pertencente a um
paradigma mais amplo – e os da gramaticalização forte como atributos
da construção procedural propriamente dita. Assim, como é possível
depreender das informações presentes no Quadro 1, “à medida que a
gramaticalização aumenta, os parâmetros de coesão também aumentam,
ao passo que os parâmetros de peso e variabilidade diminuem” (ROSÁ-
RIO; LOPES, 2023, p. 60).

85
funcionalismo linguístico: interfaces

Para uma apresentação mais didática, transcrevemos, a seguir,


uma breve explicação de cada um dos seis parâmetros, bem como dos
seis processos envolvidos na mudança (ROSÁRIO; LOPES, 2023, p.
60-61):

a) Integridade: refere-se ao tamanho substancial de um


signo, em termos de sua matriz semântica e fonológica.
O signo maior tem maior proeminência no contraste com
outros signos.

b) Paradigmaticidade: diz respeito ao grau de coesão de


um item com outros de um paradigma. Esse parâmetro é
medido por meio da verificação do tamanho e da homo-
geneidade do paradigma, isto é, pelas similaridades entre
os seus membros.

c) Variabilidade paradigmática: possibilidade de uso


de um elemento em lugar de outro, sem grande prejuízo
semântico.

d) Escopo estrutural: peso estrutural da construção que


um item ajuda a formar. À medida que a gramaticalização
avança, o escopo diminui.

e) Fixação: diz respeito ao grau de ligação de um item em


relação aos demais. Se a gramaticalização é fraca, esse
grau de conexidade é menor.

f) Variabilidade sintagmática: possibilidade de mobilida-


de de um item na construção em que ocorre.

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funcionalismo linguístico: interfaces

i) Atrição: diz respeito à perda de integridade de um sig-


no. A atrição pode se dar em termos fonológicos (erosão
fonética) ou pode ocorrer em termos semânticos (desse-
mantização ou bleaching).

ii) Paradigmatização: paradigmas altamente gramatica-


lizados tendem a ser menores que os menos gramatica-
lizados.

iii) Obrigatoriedade: redução na liberdade de escolha de


itens, tendo em vista uma maior restrição no paradigma.

iv) Condensação: perda progressiva de arbitrariedade no


escopo estrutural. Assim, o item passa de uma relação com
constituintes de complexidade arbitrária para uma relação
com palavras ou radicais.

v) Coalescência: grau maior de fusão entre as partes,


levando, em casos extremos, a aglutinações e ao zero.

vi) Fixação: à medida que um item fica mais fixo na


construção, mais gramaticalizado ele se torna.

Como ilustração da aplicação desses parâmetros no estudo da


construcionalidade, faremos uma breve exposição do trabalho sobre a
emergência do conector hipotático de adição [SEM Vdicendi QUE] – como
sem falar que, sem contar que etc. –, cuja forma-fonte é a oração modal
negativa composta pelos mesmos elementos (cf. LOPES; MOURA,
2022). Inicialmente, vejamos duas ocorrências dessas construções, sen-
do a primeira da forma-fonte – isto é, da construção hipotática modal
negativa – e a última da construção hipotática de adição:

(01) Felício alega que a denúncia do MP o acusa de modo genérico e


impreciso, sem explicar que atos o tucano teria praticado para frustrar a
licitude dos processos licitatórios da Prefeitura de Praia Grande. Fonte:

87
funcionalismo linguístico: interfaces

https://www.ovale.com.br/_conteudo/politica/2019/06/80148-tj-julga-
-dia-19-recurso-de-felicio-contra-acao-do-caso-praia-grande.html.

(02) Rio Grande do Sul e Minas Gerais, por exemplo, fazem uso da
lenha, mas têm fogões, lareiras e churrasqueiras de boa qualidade. Sem
contar que a lenha é comercializada nessas regiões. Fonte: https://
www.em.com.br/app/noticia/economia/2019/06/30/internas_econo-
mia,1065968/preco-do-gas-e-desemprego-elevam-uso-da-lenha-para-
-cozinhar-no-brasil.shtml.

Em (01), a sequência de elementos sem + explicar + que está menos


integrada e apresenta sentidos mais básicos e composicionais, na medida em
que: a) sem é um elemento conector de orações não finitas, responsável pela
veiculação do sentido de modo e negação; b) explicar é um verbo dicendi,
circunscrito a um contexto mais amplo de ato de fala, indicado na oração
matriz (Felício ALEGA, mas não EXPLICA…); c) que é uma conjunção
integrante introdutora de uma oração subordinada objetiva direta. Grosso
modo, a ocorrência (01) é uma materialização da construção hipotática
modal negativa, que pode ser assim representada: [[SEM][ORAÇÃO NÃO
FINITA]]. Nesse caso, há menor vinculação entre a preposição e o verbo
da oração, e o paradigma verbal é mais amplo: quaisquer verbos, além dos
dicendi, podem instanciar a construção modal negativa.
Em (02), por sua vez, a sequência sem + contar + que é reconcep-
tualizada para uma noção de adição, fato que pode ser aferido por meio
de um teste de substituição, em que a troca da construção por um outro
conector aditivo não altera suas condições de verdade. Veja: Rio Grande
do Sul e Minas Gerais, por exemplo, fazem uso da lenha, mas têm fogões,
lareiras e churrasqueiras de boa qualidade. ALÉM DISSO, a lenha é
comercializada nessas regiões. Nesse caso, a construção [sem contar
que] constitui um chunk, em que a alta vinculação dos elementos também
é consequência da perda de traços composicionais. Afinal, a noção de
adição que emerge de sem contar que não é o resultado da mera soma
das propriedades semânticas de suas partes componentes: sem, contar e

88
funcionalismo linguístico: interfaces

que. Trata-se, portanto, de um dado pertencente à construção hipotática


aditiva, que pode ser assim representada: [SEM Vdicendi QUE]. Nesse uso,
além da maior integração e da perda de traços originais de significado, há
restrição quanto aos elementos potenciais para ocupar o slot do verbo. A
noção de adição no português, nessa construção, não admite quaisquer
verbos, mas apenas alguns verbos dicendi, como falar, contar, dizer,
mencionar, entre outros1.
Lopes e Moura (2022), partindo do pressuposto de que a alta vin-
culação entre os elementos e a diminuição da composicionalidade são
decorrentes, em perspectiva histórica, da construcionalização gramatical
(cf. TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013), tomam a construção hipotática
modal negativa [[SEM] [ORAÇÃO NÃO FINITA] como forma-fonte
para a construção hipotática aditiva [SEM Vdicendi QUE] e empregam os
parâmetros de gramaticalização propostos por Lehmann (2015 [1982])
como método para medir seu grau de gramaticalidade (isto é, o intuito
é aferir qual construção tem mais traços procedurais). Abaixo, concluí-
mos esta seção com a transcrição das generalizações a que chegaram os
autores (LOPES; MOURA, 2022, p. 252-253) com base na análise de
248 ocorrências extraídas do Corpus do Português, investigadas sob a
ótica dos parâmetros de gramaticalização:

Com base nos parâmetros de gramaticalização, conclu-


ímos que há fortes indícios de que [SEM Vdicendi QUE]
seja uma recategorização de [[SEM][ORAÇÃO NÃO
FINITA]] porque:

a. Em relação ao parâmetro integridade, apresenta dimi-


nuição da integridade semântica, já que a noção de adição
não emerge da soma do significado de seus elementos
componentes. Isto é, é menos composicional e vinculada,
dois aspectos prototípicos da formação de construções
complexas de função procedural.
1 Para saber mais sobre a produtividade type dessa construção, com os diferentes verbos que
ocupam a posição do slot verbal, confira Lopes e Moura (2022).

89
funcionalismo linguístico: interfaces

b. Em relação ao parâmetro paradigmaticidade, a cons-


trução passa a integrar um paradigma de base semântica
comum mais restrito: o dos conectores aditivos. A classe
modal é mais variável, tanto no que diz respeito às possi-
bilidades de escolha do verbo interno à construção, quanto
às nuances de sentido articuladas à ideia de modo.

c. Em relação ao parâmetro variabilidade paradigmáti-


ca, a construção hipotática modal negativa é mais geral.
Licencia o uso de inúmeros tipos de verbo. Já a construção
hipotática aditiva tem restrições quanto aos verbos que
licencia: apenas alguns verbos dicendi.

d. Em relação ao parâmetro escopo estrutural, a prepo-


sição sem, elemento formal responsável pela relação hi-
potática, apresenta escopo estrutural reduzido em relação
à construção hipotática modal negativa. Nesta última, o
escopo sintático-semântico é toda a oração não finita. Na
primeira, o escopo semântico recai sobre o verbo dicendi,
com o qual compõe o sentido de adição.

e. Em relação ao parâmetro vinculação, na construção


hipotática aditiva, a preposição e o verbo estão mais vincu-
lados, em virtude de constituírem um chunk. A construção
hipotática modal negativa, por exemplo, permite termos
intervenientes entre preposição e verbo (a pandemia da
Covid-19 agravou os números da corrupção no país, sem
com isso explicar que ações de resposta esta instituição
estaria a desencadear…), ao passo que isso não ocorre
na construção hipotática aditiva.

f. Por fim, em relação ao parâmetro variabilidade sintag-


mática, a construção hipotática aditiva apresenta menos
mobilidade posicional em relação à construção hipotática
modal negativa. A última pode ser anteposta à oração
matriz, enquanto a primeira sempre a sucede.

90
funcionalismo linguístico: interfaces

Vale destacar que a pesquisa de Lopes e Moura (2022) é conduzida


no campo da abordagem construcional da gramática, tomando-se como
escopo teórico a Linguística Funcional Centrada no Uso, que atual-
mente mantém forte diálogo com a Gramática de Construções. Nessa
perspectiva teórica, normalmente propõe-se a substituição do modelo
da gramaticalização pelo da construcionalização2, considerando-se o
princípio fundamental de que a língua é um inventário de construções.
Contudo, defendemos que princípios clássicos da gramaticalização, como
os de Hopper (1991), Himmelmann (2004) e, especialmente, Lehmann
(2015 [1982]), não só são operacionalizáveis como altamente oportunos
nas pesquisas que visam a aferir a gradiência e os diferentes níveis de
gramaticalidade das construções.
É verdade que a contribuição desses autores clássicos não foi des-
cartada pelos teóricos mais contemporâneos da Linguística Funcional
e de suas interfaces. Contudo, o conceito de construcionalidade propõe
que os princípios desenvolvidos pelos autores citados sejam ainda mais
potencializados no trabalho com a mudança linguística a partir de um
ponto de vista sincrônico. Inclusive, defendemos que, para alguns objetos
de pesquisa, como no caso dos elementos de conexão, essa contribuição
se torna mais relevante e, até mesmo, necessária.

Automatização, intersubjetivação e reconfiguração das relações


sequenciais

Segundo Diessel (2019), a reconfiguração de uma sequência


linguística linear – como a que ocorre entre [[SEM][ORAÇÃO NÃO
FINITA] e [SEM Vdicendi QUE] – é motivada pela automatização e pela
frequência de uso:

2 Mais recentemente, a gramaticalização parece estar passando por um processo de “reabili-


tação” dentro dos estudos da Linguística Funcional Centrada no Uso. Na esteira de novas
reflexões de Traugott (2021) propostas para o tema, já há trabalhos no Brasil em que se toma
a gramaticalização e a construcionalização como perspectivas complementares para a análise
de fenômenos linguísticos, como a pesquisa de Oliveira e Sambrana (2022).

91
funcionalismo linguístico: interfaces

Uma vez que a automatização é um processo gradual


dirigido pela frequência de ocorrência, as relações sequen-
ciais variam em um contínuo. Quanto mais sequências
empregam os mesmos elementos em cadeia, mais frequen-
temente essas sequências de elementos são processadas
e mais fortes se tornam os elos entre seus elementos
(BYBEE, 2002; 2010, p. 33-37). O resultado cognitivo
desse desenvolvimento é a emergência gradual de uma
“unidade” ou “chunk”. Langacker (1987) usa a noção
de “unidade” como um termo técnico para sequências
automatizadas que os falantes ativam e executam como
um grupo integrado (DIESSEL, 2019, p. 63)3.

Cabe frisar que um outro resultado possível da automatização – para


além da formação de chunks – é a mudança de sentido, já que o aumento
de vinculação costuma acompanhar perda de traços composicionais.
Sobre esse aspecto, segundo Diessel (2019, p. 66),

as sequências lexicais que são altamente rotinizadas fre-


quentemente desenvolvem propriedades idiossincráticas
conhecidas como idiomatismos. Tradicionalmente, os
idiomatismos são vistos como uma pequena classe de
expressões irregulares que são armazenadas à maneira das
palavras no léxico mental, em que a grande maioria dos
sintagmas e sentenças são derivados por meio de regras
completamente produtivas. Essa visão de idiomatismos
armazenados e expressões derivadas não é consistente,
entretanto, com o amplo uso de sequências lexicais pré-
-fabricadas. De fato, se olharmos para as propriedades
semânticas e formais das prefabs lexicais, descobrire-
mos que muitas delas apresentam algumas propriedades
3 No original: Since automatization is a gradual process driven by frequency of occurrence,
sequential relations vary on a continuum. Other things being equal, the more often a string
of linguistic elements is processed, the stronger are the sequential links between them (Bybee
2002; 2010: 33-37). The cognitive result of this development is the gradual emergence of
a “unit” or “chunk”. Langacker (1987) uses the notion of “unit” as a technical termo for
automated sequences that speakers activate and execute as integrated wholes.

92
funcionalismo linguístico: interfaces

idiossincráticas que não são previsíveis de regras gerais,


o que sugere que a idiomaticidade é um contínuo que
compreende uma gama muito mais ampla de expressões
do que comumente assumimos (FILLMORE et al., 1988;
NUNBERG et al., 1994)4.

Quando Diessel (2019) afirma que as sequências lexicais altamente


rotinizadas desenvolvem propriedades idiossincráticas, podemos associar
essas propriedades à perda de traços composicionais, que também afetam
as construções procedurais, tais como observamos quando comparamos
a construção hipotática modal negativa [[SEM][ORAÇÃO NÃO FINI-
TA]] e a construção hipotática aditiva [SEM Vdicendi QUE]. Na primeira,
os elementos estão menos vinculados – não constituem um chunk – e é
possível depreender uma maior contribuição do sentido das subpartes
para o sentido global da construção. Já na última, além de os elementos
constituírem um chunk, não é possível perceber, exclusivamente a partir
da semântica dos componentes, de onde advém o sentido aditivo.
Embora possa parecer, em um primeiro momento, que o sentido
menos composicional resultante da automatização seja aleatório, os
fatos linguísticos evidenciam que há, ao contrário, motivação para os
novos sentidos, oriundos da atuação de processos de (inter)subjetiva-
ção5 (TRAUGOTT; DASHER, 2002). Isso se dá dessa maneira porque
4 No original: Lexical sequences that are highly routinized often develop idiosyncratic properties
that are not predictable from their components. Lexical prefabs with idiosyncratic properties
are known as idioms. Traditionally, idioms are thought to form a small class of irregular ex-
pressions thar are stored alongside words in the mental lexicon, whereas the vast majority or
phrases and sentences are derived by means of fully productive rules. This view of stored idioms
and derived expressions is not consistent, however, with the widespread use of prefabricated
lexical sequences. In fact, if we look at the semantic and formal properties of lexical prefabs,
we find that many of them have some idiosyncratic properties that are not predictable from
general rules, suggesting that idiomaticity is a continuum that concerns a much wider range
of expressions than commonly assumed (FILLMORE et al. 1988; NUNBERG et al. 1994).
5 Para Traugott e Dasher (2002), a subjetivação envolve diretamente o ouvinte, que, por meio da
análise do material linguístico disponível no contexto, é levado a inferir as intencionalidades
do falante a partir das informações disponíveis tanto no código linguístico propriamente dito
quanto em outras semioses (incluídos aí os gestos, a prosódia etc.). Além da subjetivação, há
também a intersubjetivação, que compreende, ao mesmo tempo, os esforços do falante e ou-
vinte: o ouvinte em inferir as intenções do falante a partir do contexto comunicativo e o falante

93
funcionalismo linguístico: interfaces

os falantes não baseiam a sua compreensão exclusivamente no material


linguístico disponível, mas recorrem às crenças que constroem sobre as
intenções e estados mentais de seus interlocutores:

Se assumirmos que “gramática” é “sistema linguístico”


e “código”, o elo entre “gramática” e “uso” é a díade
Falante/Escritor – Ouvinte/Leitor, que negocia os signi-
ficados de maneiras interativas, respondendo ao contexto
e criando contexto […] Embora esse par possa parecer si-
métrico, na verdade não é: Falantes/Escritores têm estados
mentais e produzem significados que podem ou não ser
compreendidos pelos Ouvintes/Leitores da mesma manei-
ra pretendida. […] Como discutiremos a seguir, o papel
central do Falante/Escritor exige uma visão orientada para
a produção e mudanças de linguagem e explica por que
o principal tipo de mudança semântica é a subjetivação
(TRAUGOTT; DASHER, 2002, p. 6-7)6.

De acordo com Tantucci (2021), os atos comunicativos envol-


vem não somente a capacidade de codificar e decodificar a língua,
mas também pressupõem uma teoria da mente (ou ToM), que prevê
a habilidade de criar e entender (bem como referir-se a) intenções,
conhecimentos e valores sociomorais compartilhados que emergem
de situações interativas diádicas, em que os interlocutores atuam em
atos de intencionalidade conjunta. Sob o olhar dos estudos da mudança
linguística, fazendo-se as adaptações necessárias, podemos agregar
as novas associações de sentido às situações em que um ouvinte lida
em envidar esforços para codificar a sua mensagem de modo a ser aceita por seu ouvinte. Em
ambos os casos, os dois precisam levar em consideração as intenções e o sistema de crenças
de seu interlocutor para a obtenção de seus objetivos comunicativos.
6 No original: If we assume that “grammar” is “linguistic system” and “code”, the link between
“grammar” and “use” is the SP/W -AD/R dyad, who negotiate meaning in interactive ways,
both responding to context and creating context […] Although this dyad may appear symmet-
ric, in fact it is not: SP/Ws have mental states and produce meanings that may or may not be
understood by AD/Rs in the way intended. […] As we will discuss below, SP/W’s central role
calls for a production-oriented view of language change, and accounts for why the major type
of semantic change is subjectification.

94
funcionalismo linguístico: interfaces

com o emprego inesperado de uma construção linguística em um novo


contexto de uso, em decorrência de um mismatch entre a ocorrência e
o esquema que originalmente lhe sanciona (cf. TRAUGOTT; TROU-
SDALE, 2013). Nessa circunstância, ele é levado a atribuir-lhe um
novo sentido (cf. princípio de cooperação, GRICE, 1975) e, nesse
processo, opera a inferência sugerida (TRAUGOTT; DASHER, 2002).
Caso a atribuição desse novo sentido a uma determinada construção
continue sendo replicada em uma comunidade linguística de falantes,
ela resultará em construcionalização, isto é, a convencionalização de
um novo pareamento de forma-sentido.
A literatura tem evidenciado que os contextos iniciais da mudan-
ça linguística – conhecidos como contextos atípicos (cf. DIEWALD,
2002) – podem ser percebidos não somente no levantamento diacrônico
mas também no sincrônico. Isso decorre do fato de que, dificilmente, os
novos usos linguísticos acarretam a obsolescência dos usos pretéritos,
de modo que seja muito mais comum a convivência de usos novos e
antigos de uma determinada construção do que a completa substituição
de um uso pelo outro.

Nossa teoria do significado abrange a hipótese de que


as famílias de significados relacionados, ou polissemias,
podem e devem, de fato, ser identificadas. A mudança
semântica não pode ser estudada sem recorrer a uma teoria
da polissemia por causa da natureza da mudança. Toda
mudança, em qualquer nível de uma gramática, envolve
não “A>B”, ou seja, a simples substituição de um item
por outro, mas sim “A>A~B” e, às vezes, “>B” sozinho.
Os significados mais antigos podem ficar restritos ao
registro e, portanto, recessivos, e podem desaparecer
completamente, como ought no sentido de “have/owe”.
No inglês medieval, ought to era a forma do pretérito de
“ter/possuir”, além de o modal de obrigação. Ambos os
sentidos “ter/possuir” foram derivados, mas o significado
original da posse foi perdido. No entanto, apesar do que

95
funcionalismo linguístico: interfaces

muitas vezes se pensa, a perda de um significado anterior


é relativamente rara. O que é típico é o acréscimo de mais
e mais significados ao longo do tempo (TRAUGOTT;
DASHER, 2002, p. 11-12, grifos nossos)7.

É exatamente pela convivência comum entre os usos originais e os


novos das construções linguísticas – observáveis na gradiência sincrônica
– que se torna possível o estudo da mudança a partir de dados sincrônicos,
como já ocorre, há mais de vinte anos, nos estudos da gramaticalidade e,
agora, na investigação da construcionalidade. No estudo da construciona-
lidade, para determinar qual é a forma-fonte e a forma nova, um critério
que se mostra muito relevante é o da composicionalidade sintática e/ou
semântica. Uma vez que os novos usos surgem de processos cognitivos
gerais, como a automatização e a intersubjetivação, parte-se do pressu-
posto de que os usos originais (ou fonte) são mais composicionais. Isso
significa que os elementos componentes da construção-fonte são sinta-
ticamente mais autônomos – menos vinculados – e o sentido global da
construção tem uma relação relativamente próxima com o sentido dos
elementos que a compõem.
Esse fenômeno gradual de maior fusão de elementos contíguos ao
longo do tempo é um processo cognitivo de domínio geral denominado
chunking (cf. BYBEE, 2010). Ao longo desse processo, ocorrem perda
de composicionalidade e neoanálises, o que colabora para a emergên-
cia de novos usos no sistema linguístico. Frisamos que esse fenômeno
é observável na sincronia, haja vista o amplo conjunto de pesquisas
já realizadas em que essa tendência se revela comum (cf. ALONSO;
7 No original: Our theory of meaning embraces the hypothesis that families of related meanings,
or polysemies, can, and indeed must, be identified. Semantic change cannot be studied without
drawing on a theory of polysemy because of the nature of change. Every change, at any level in
grammar, involves not “A>B”, i.e. the simple replacement of one item by another, but rather
“A>A~B” and them sometimes “>B” alone. Older meanings may become restricted in register,
and therefore recessive, and may disappear completely, as did ought in the sense of “have/
owe”. In ME ought (to) was the past tense form of both “have/owe” and of the obligation
modal. Both the “have/owe” and the modal senses were derived, but the original meaning of
possession was lost. However, despite what is often thought, the loss of an earlier meaning is
relatively rare. What is typical is the accretion of more and more meanings over time.

96
funcionalismo linguístico: interfaces

FUMAUX, 20198; CAMPOS; CEZARIO; ALONSO, 20179). Afinal, a


trajetória da mudança, em que se parte de entidades mais concretas para
entidades mais abstratas, é uma realidade da cognição humana.
Como ilustração, vamos recorrer mais uma vez à comparação entre a
construção hipotática modal negativa [[SEM][ORAÇÃO NÃO FINITA]]
e a construção hipotática aditiva [SEM Vdicendi QUE]. Conforme dissemos
anteriormente, a hipótese de Lopes e Moura (2022), com base nas pro-
priedades das duas construções, é que [[SEM][ORAÇÃO NÃO FINITA]]
seja o contexto típico da construção [SEM Vdicendi QUE]. Tal ponto de
vista se baseia no fato de que esses elementos são mais autônomos e
também mais composicionais – como já discutimos na seção anterior.
Na análise das 248 ocorrências de dados do uso da sequência sem +
verbo dicendi + que, Lopes e Moura (2022) observaram que a construção
hipotática modal negativa ocorre, invariavelmente, em um contexto de
ato de fala. Na oração matriz, há sempre a presença de um verbo dicendi
(ou de uma expressão dicendi, como declaração, alegação etc.), que
atribui uma determinada fala a um outro sujeito (que não seja o próprio
enunciador). É o que podemos observar nas ocorrências (03) e (04):

(03) “Quando cheguei ao Bayern, um sonho se fez realidade. A des-


pedida não será fácil, mas nunca devemos esquecer o que alcançamos
juntos”, escreveu o francês. O jogador ainda falou sobre o futuro, mas
sem revelar que camisa vestiria a partir da próxima temporada. Fonte:
https://jovempan.uol.com.br/esportes/futebol/futebol-internacional/
bayern-anuncia-fim-de-contrato-com-ribery-para-o-final-desta-tem-
porada.html.

8 Nessa pesquisa, as autoras descrevem emergência a trajetória de mudança de um monte de,


que parte de um sintagma nominal de função referencial (e.g.: um monte de Lisboa) para um
quantificador (e.g.: um monte de gente na rua).
9 Nessa pesquisa, as autoras descrevem a construcionalização de Xmente como um esquema
construcional de modo do português, cuja origem era um sintagma nominal complexo formado
por um adjetivo e o substantivo mente (tranquila mente, calma mente). Com o tempo, houve
a justaposição dos elementos e a perda de referencialidade do substantivo mente, que passou
a ser interpretado como um sufixo.

97
funcionalismo linguístico: interfaces

(04) De seguida, o alegado autor do crime telefonou a dois amigos,


com quem antes ambos tinham estado, foi ter com eles à Avenida dos
Aliados e disse-lhes que o Miguel o tentara esfaquear, sem referir que
o atingira e abandonara à sua sorte. Fonte: https://ovilaverdense.pt/
adiado-julgamento-de-jovem-dos-arcos-acusado-de-matar-namorado/.

Em (03), os verbos dicendi da oração matriz e da oração subordi-


nada adverbial modal estão associados a um mesmo agente: o jogador.
O mesmo fenômeno ocorre em (04), em que disse e referir são ações
atribuídas ao “alegado autor do crime”. Nos dois dados, portanto, o ele-
mento sem apresenta seu sentido básico, na medida em que é empregado
com a função que lhe é comum: a de excluir um elemento/ação por meio
de sua negação: disse sem revelar (disse, mas não revelou), disse sem
referir (disse, mas não se referiu a).
Já no contexto da construção hipotática aditiva, não mais encontra-
mos um contexto explícito de ato de fala, em que é possível reconhecer,
por meio do uso de verbos dicendi, a atribuição de uma determinada
proposição a um outro sujeito (além do próprio enunciador). Como
ilustração, vejamos as ocorrências (05) e (06):

(05) Acho legal essa troca de apresentadores porque faz com que a
galera possa conhecer um outro lado dos artistas. E ter duas mulheres
no comando faz com que as espectadoras de TV se orgulhem. Essa
representatividade é muito boa, sem contar que a música tem várias
caras e estilos – analisa a cantora, de 31 anos. Fonte: https://extra.globo.
com/tv-e-lazer/maiara-apresenta-sotocatop-ao-lado-da-irma-recebe-
-namorado-fernando-no-programa-23773187.html.

(06) A expectativa do Planalto é de que os trabalhos na comissão espe-


cial da Reforma da Previdência terminem ainda nesta semana, para que
no dia 2 de julho o assunto possa ser votado no plenário. Mas, a situação
não é tão simples. Há mais de 70 parlamentares inscritos para debater na
sessão de terça, sem falar que será necessária muita articulação política
– o que, vamos combinar, não é o forte do governo Bolsonaro, a ponto

98
funcionalismo linguístico: interfaces

de o próprio presidente reconhecer na sexta que teve problemas nesse


quesito. Fonte: https://www.nsctotal.com.br/colunistas/carolina-bahia/
governo-bolsonaro-enfrenta-corrida-contra-o-tempo-pela-reforma-da.

Tanto em (05) quanto em (06), as informações que antecedem a


construção hipotática aditiva pertencem ao próprio enunciador do texto,
bem como as informações que lhe sucedem. Esse fato linguístico bloqueia
a possibilidade de interpretação do constructo como uma instanciação da
construção hipotática modal negativa. Enquanto em (03) e (04) um sujeito
X afirmou Y, sem, no momento de seu ato de fala, mencionar Z, em (05)
e (06), as informações que antecedem e sucedem sem + verbo dicendi +
que são concomitantes. Em síntese, dado o contexto pragmático, o sujeito
diz X e também diz Y, de onde decorre, inevitavelmente, o sentido de
adição. Nesses casos, portanto, opera o mecanismo da intersubjetivação,
pois, no lugar de pautar-se exclusivamente nos significados cotextuais,
manifestados na superfície linguística, o ouvinte/leitor recorre às inten-
ções e às crenças que tem sobre o falante/escritor para atribuir um novo
sentido a uma determinada construção.
Segundo Traugott e Dasher (2002), a (inter)subjetivação se deve,
sobretudo, ao mecanismo da inferência sugerida, que seria a motivação
inicial para a atribuição de um novo sentido a uma determinada constru-
ção em contextos atípicos. A replicação desses novos contextos de uso,
bem como dessa nova interpretação, pode acarretar mudança, isto é, a
formação de um novo pareamento de forma-sentido. Sobre esse processo
de mudança, que envolve a (inter)subjetivação, Tantucci (2021) propõe
um modelo bipartido de análise, em que é possível observar a atuação
de uma intersubjetivação ad hoc – à qual o autor chama de intersubje-
tividade imediata – e de uma intersubjetivação compartilhada por uma
comunidade de falantes – à qual chama de intersubjetividade estendida.
Abaixo, a figura 1 ilustra como se dão esses dois processos:

99
funcionalismo linguístico: interfaces

Figura 1 – Tipos de intersubjetividade

Fonte: Tantucci (2021), adaptado

Segundo Tantucci (2021), o que diferencia a intersubjetividade


imediata (I-I) da intersubjetividade estendida (I-E) é que, na primeira, “a
consciência intersubjetiva não excede o aqui-e-agora da conversa. Envol-
ve apenas o falante e o destinatário no nível intersubjetivo imediato. A
I-I é, portanto, limitada às duas personas reais engajadas na conversa10”
(TANTUCCI, 2021, p. 29). A intersubjetividade estendida (I-E), por sua
vez, envolve uma terceira pessoa, mais especificamente, uma coletividade
capaz de interpretar aquele novo uso, mesmo que não faça parte daquela
situação de comunicação. Fazendo-se as devidas adaptações para o estudo
da mudança linguística, podemos dizer que a I-I estaria associada aos
contextos atípicos, motivadores da mudança, em que falante e ouvinte
constroem novos significados a partir da negociação interativa, e a I-E aos
contextos isolados, que atestam sua convencionalização (cf. DIEWALD,
2002), isto é, indicam quando uma nova construção é conhecida e exten-
sivamente empregada por uma comunidade de falantes.
Isso significa que, para entender o impacto dos processos de au-
tomatização e intersubjetivação na formação de uma nova construção
10 No original: The intersubjective awareness overly conveyed does not exceed the here-and-
now of the conversation, viz. it only involves the speaker and the addressee at the immediate
intersubjective level. Immediate intersubjectivity (I-I) is thus limited to the two actual personas
engaging in the conversation and their respective inferred feelings and attitudes.

100
funcionalismo linguístico: interfaces

linguística, é imprescindível um estudo da produtividade construcional,


pois ele torna possível entender a adesão de uma sequência de palavras
a um ou mais esquemas, como é possível observar no Quadro 2, extraído
de Lopes e Moura (2022, p. 246):
Tabela 2 – Distribuição das ocorrências por padrão construcional

Ocorrências da construção Ocorrências da construção


Sequência de palavras hipotática modal [[SEM] hipotática aditiva [SEM
[ORAÇÃO NÃO FINITA]] Vdicendi QUE]

sem contar que 0 30

sem falar que 0 30

sem mencionar que 08 22

sem dizer que 17 13

sem revelar que 30 0

sem negar que 29 01

sem referir que 17 01

sem especificar que 29 01

sem explicar que 20 0

Total 150 98

Total geral 248

Fonte: Lopes e Moura (2022, p. 246), adaptado

Conforme é possível verificar, a partir dos dados analisados, as


duas construções são bastante produtivas na língua portuguesa. Embora
a produtividade type seja superior na construção hipotática modal – que
recruta mais verbos que a construção hipotática aditiva –, há elevada
frequência token nos três primeiros types desta última. Isso nos leva a

101
funcionalismo linguístico: interfaces

considerar, no que diz respeito às relações sequenciais que mobilizam os


elementos sem + verbo dicendi + que, que os falantes de português têm
recrutado mais as sequências sem + falar + que, sem + contar + que e
sem + mencionar + que para veicular adição do que modo.

Exemplo da aplicação

Nesta seção, vamos ilustrar a aplicação do conceito de constru-


cionalidade a outro fenômeno do português. Trata-se de uma pesquisa
atualmente em desenvolvimento, mas que já conta resultados bastante
promissores. A análise dos dados apresenta evidências robustas da convi-
vência, na sincronia atual, de usos mais antigos com usos mais recentes,
sendo estes derivados daqueles.
Vamos tratar dos chunks aditivos de extensão, nos termos de Rosário
e Santos (2022). Os chunks eleitos para a discussão são os seguintes:
além de tudo, além do mais e além do que. Esses elementos gramaticais
funcionam como conectores ou operadores11 em diferentes níveis de
integração sintático-semântica.
Comumente a gramática do português costuma apresentar a con-
junção e como o conector por excelência no domínio da adição. De fato,
a frequência de uso e a prototipicidade desse conector são inequívocas,
considerando seu uso muito geral na língua, em diferentes registros e
modalidades.
Por outro lado, pesquisas recentes têm demonstrado que a rede
da conexão aditiva é muito mais ampla do que indicam as gramáticas
normativas. Em Rosário (2020, p. 111), o pesquisador sistematiza essa
ampla rede por meio do esquema a seguir:

11 Neste trabalho, não estabelecemos distinção entre os conceitos de conector e operador.

102
funcionalismo linguístico: interfaces

Esquema 1 – Rede construcional dos conectivos do domínio da adição

Fonte: Rosário (2020, p. 111)

Essa ampla rede demonstra que a adição pode estar vinculada a di-
ferentes estratégias morfossintáticas: à justaposição, ao uso de conectores
simples e complexos ou, ainda, à correlação. Além disso, a adição pode
estar também associada a outros domínios, como o da comparação (como
atestam os conectores assim como ou tanto…como) e ao da disjunção
(como indicam os correlatores nem…nem).
A complexidade da rede da adição não se esgota nesse Esquema 1.
As pesquisas baseadas no uso apontam, por exemplo, que esses conectores
também são adjungidos a outros elementos gramaticais, com o propósito
de cumprir outras funções na língua. É o que acontece com os chamados
chunks aditivos de extensão além de tudo, além do mais e além do que.
Vejamos alguns dados de língua em uso:

(07) O interesse de Vaccareza em blindar Cabral é tão grande que


nem esperou o fim da sessão da CPMI para informar o amigo dos
acontecimentos. Além de tudo, Vaccareza é ignorante, pois em uma
mensagem de duas linhas comete erros juvenis de português. Fonte:
https://albertomurray.wordpress.com/2012/05/18/candido-vacarezza-
-tem-que-ir-para-o-conselho-de-etica/.

103
funcionalismo linguístico: interfaces

(08) Muitas pessoas acham que gatos não conseguem ser treinados
para fazer truques tal como os cachorros. Mas isso é um erro, sabia?
Os felinos também podem encantar tutores e visitas com diversas arti-
manhas. Além do mais, isso ainda ajuda a distrair o gato, que muitas
vezes está deprimido ou estressado por estar com excesso de energia
acumulada. Essa é uma ótima oportunidade para brincar com seu ami-
guinho e ter um dia mais tranquilo e feliz com ele. Fonte: https://twitter.
com/havenfilter/status/1305548473354330112.

(09) Outra crítica ao contratualismo é que essa concepção não com-


promete as pessoas em fazer (ou deixar de fazer) qualquer coisa em
benefício das gerações futuras; afinal, elas não estão em reciprocidade
com a atual geração. Singer afirma que a concepção contratualista para
a moral não é fundamentada em argumentos convincentes que justifi-
quem as suas consequências, além do que as pessoas não aceitam todas
as suas implicações lógicas. Fonte: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0104-65782011000100013.

Em (07), o conector é formado pela fusão de além de + tudo. A


função da subparte tudo é encapsular as informações anteriormente
destacadas. À primeira vista, além de e tudo estão justapostos com certa
autonomia, sendo cabível uma leitura relativamente composicional; con-
tudo, isso não é totalmente verdadeiro, visto que além de tudo cumpre
um papel anafórico, retomando informações já expressas, para, a partir
daí, estabelecer um certo contraste, que surge da diferença entre as in-
formações mencionadas.
Em (08), temos o uso de além do mais funcionando como um ope-
rador cuja função é a de estabelecer uma sensível quebra de expectativa.
Após fornecer algumas informações ao ouvinte/leitor, há algo a “mais”,
em geral, uma informação mais derradeira ou impactante, com forte
apelo intersubjetivo.
Por fim, em (09), temos o uso de um operador bastante idiossincrá-
tico, que é o além do que. Nesse uso, também destinado a marcar adição
ou acréscimo, a função do que é totalmente opaca, já não sendo possível

104
funcionalismo linguístico: interfaces

reconhecer nele seu valor gramatical original, seja o de pronome relativo,


seja o de complementizador. O conector além do que, sem dúvida, tem
menor analisabilidade e um baixo nível de composicionalidade semântica.
Esses três conectores cumprem uma função retroativo-propulsora
(cf. TAVARES, 2003). Todos eles veiculam a noção de adição, mas são
marcados por especificidades formais e funcionais. Em primeiro lugar,
à luz das reflexões traçadas por Rosário e Santos (2022), é possível
postular uma escala gradiente de autonomia sintático-semântica entre
esses três usos:
Esquema 2 – Continuum de autonomia sintático-semântica

Fonte: Rosário e Santos (2002, p. 105), adaptado

Podemos estabelecer uma clara relação de construcionalidade entre


esses três usos, tendo o conector além de como um ponto de origem
comum. Por meio do Esquema 2, é possível defender que esses três
conectores convivem em um mesmo recorte sincrônico temporal, mas
refletem diferentes níveis de gramaticalidade.
O conector além de tudo goza de maior transparência e permite a
depreensão sintático-semântica de suas subpartes, que ainda estão par-
cialmente preservadas. Em outras palavras, é possível fazer uma leitura
quase literal de além de tudo, com exceção do fato de que esse operador
cumpre um papel contrastivo no discurso, o que decorre de seu papel
construcional. Assim, é possível falar que esse conector está em um
estágio inicial de chunking.
A partir de além do mais, já há um nível mais crescente de fusão
entre as subpartes do conector. A palavra “mais” é um advérbio em língua
portuguesa, responsável por graduar ou intensificar adjetivos, verbos ou
outros advérbios. Na microconstrução além do mais, esse último elemento

105
funcionalismo linguístico: interfaces

recategoriza-se, perdendo parte de suas propriedades originais. Afinal,


a subparte “mais” já não escopa adjetivos, verbos ou advérbios quando
usada no operador além do mais.
Por fim, com além do que, temos um nível mais alto de fusão,
considerando grande perda de composicionalidade. O elemento
“que” já não liga uma oração à outra, como é comum nos casos de
subordinação. Ao contrário, esse elemento junta-se a “além de/o”,
em um processo muito semelhante ao da formação de conjunções
no português, como já aconteceu com ainda que, visto que, dado
que, uma vez que etc. É possível que além do que seja um elemento
procedural da rede [X que]conect, ainda que marginal.
A análise atenta desses usos permite a conclusão de que todos
derivam de além de, conector aditivo cuja função precípua é indicar ul-
trapassamento. Os usos elencados em (07), (08) e (09) estabelecem uma
relação de construcionalidade com esse elemento-fonte do qual todos os
outros emergem. Isso se dá para que sejam atendidas as necessidades
comunicativas dos falantes, por meio de processos intersubjetivos.
As relações de construcionalidade também podem ser aferidas a
partir de outro ponto de vista. Vejamos os dados a seguir:

(10) E você mal está respirando quando se dá conta que terminou o


livro e que precisa desesperadamente ler a continuação! Vou parar por
aqui, acho que isso é tudo o que precisa dizer pra despertar o interesse
de a leitura. Se bem que, se você leu o primeiro livro de a série, você
estará louco pra ler esse livro. E tenha certeza que o livro vai além de
tudo o que você pode imaginar. Tem a dose certa de romance, ação,
suspense, passado, novidades e sarcasmo. Torcendo para que o filme
(Irmãs de Sangue) inspirado em o primeiro livro, dê super certo, porque
a série fica muito melhor a cada livro e eu necessito ver o Adrian em
as telas de os cinemas. Fonte: http://nomeumundo.com/2013/08/08/
resenha-aura-negra/.

106
funcionalismo linguístico: interfaces

(11) Deste modo, ainda que o molde integralista perrepista não fosse
uma reprodução do integralismo dos anos 1930, a presença do “Chefe
Nacional” dos integralistas na presidência nacional do PRP consistia
um princípio legitimador da condição integralista do partido, além do
mais forte laço histórico existente entre os integralistas das décadas
de 1940, 50 e 60 e o auge dos camisas-verdes em 1930. Fonte: http://
www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300671149_ARQUI-
VO_Odilon-ANPUH.pdf.

(12) Pública e descaradamente. Mais: ignorava completamente a si-


tuação financeira do país, entregou-se nas mãos de um empedrenido
fanático de Milton Friedman e quis ir AINDA MAIS além do que
os agiotas da troika exigiam. Fonte: https://apodrecetuga.blogspot.
com/2013/03/o-misterio-publico.html.

A comparação estabelecida entre os dados (07), (08) e (09), de um


lado, e (10), (11) e (12), de outro, permite uma aplicação ainda mais
robusta do conceito de construcionalidade. Nesses três últimos dados,
atestam-se usos composicionais de além de tudo, além do mais e além do
que, podendo-se verificar o estatuto adverbial de além, utilizado em uma
sintaxe mais regular e canônica. Nesses dados (10), (11) e (12), além de
está integrado na estrutura do período, em posição medial, cumprindo o
papel de adjunto ou complemento de natureza adverbial. Após a prepo-
sição de, em (10), o elemento tudo indica um pronome indefinido; em
(11), o elemento mais indica um advérbio que escopa o adjetivo forte; em
(12), o que funciona como pronome relativo, apontando uma estrutura
de relativização. Como se vê, todas as subpartes de além de tudo, além
do mais e além do que estão bem preservadas em seus valores formais
e funcionais.
Em (07), (08) e (09), por outro lado, além de tudo, além do mais
e além do que estão ora em posição inicial absoluta no período ora em
posição inicial na oração, o que colabora para a fixação de seu estatuto
de conector oracional em português, sem dúvida com um maior nível
de gramaticalidade. A maior vinculação entre os elementos, derivada de

107
funcionalismo linguístico: interfaces

perda de composicionalidade, associada a alta frequência de uso, fez com


que surgissem essas microconstruções conectoras de natureza procedural,
reforçando o que Rosário e Lopes (2023, p. 60) atestam: “à medida que a
gramaticalização aumenta, os parâmetros de coesão também aumentam,
ao passo que os parâmetros de peso e variabilidade diminuem”.
Retornando aos parâmetros de gramaticalização de Lehmann (2015
[1982]), comprovamos que os usos conectores de além de tudo, além do
mais e além do que são caracterizados por:

a. Diminuição de integridade semântica. A noção de


adição não emerge das subpartes tudo, mais e que, mas da
microconstrução como um todo, comprovando o princípio
construcional básico de que o significado da construção
não resulta da mera soma das suas partes; a propósito,
nesses chunks de extensão, há um tipo especial de adição,
que pode ser denominada “adição argumentativa”, haja
vista sua especialização em termos de uso.

b. Integração do paradigma da adição. Os elementos que


compõem os conectores além de tudo, além do mais e além
do que passam a cumprir um papel delimitado dentro um
domínio, que é o da adição, de modo mais coeso;

c. Restrição na variabilidade paradigmática. As subpar-


tes dos conectores aqui citados não permitem variação
no uso. Os elementos tudo, mais e que estão fixos nas
microconstruções, sem possibilidade de alteração por
outros análogos;

d. Redução de escopo estrutural. Os usos mais compo-


sicionais de além de tudo, além do mais e além do que
admitem uma relação mais ampla com o texto; na função
conectora, ao contrário, esses elementos ocupam lugares
mais marcados;

108
funcionalismo linguístico: interfaces

e. Maior fixação e menor variabilidade sintagmática.


Os conectores além de tudo, além do mais e além do que
ocorrem em uma posição fixa, sem variação no eixo ho-
rizontal; destinam-se a marcar a conexão, que é a posição
inicial absoluta do período ou a posição intersentencial.

Com base nas reflexões aqui traçadas, defendemos a importância do


estatuto da construcionalidade para o estudo da mudança linguística, em
recorte sincrônico. A convivência e a alta frequência do conector aditivo
além de com as subpartes tudo, mais e que desencadeou, em contextos
bastante específicos, o surgimento de novos conectores na língua portu-
guesa, cada um com suas especificidades.
Os trabalhos de Diessel (2019) dão ainda mais robustez a essa de-
fesa, considerando que, no plano das relações sequenciais, os mesmos
elementos em cadeia, gradualmente, por meio de frequência crescente,
vão fortalecendo seus elos, fazendo com que haja perda de composicio-
nalidade e ganho nos níveis de fusão.
A rotinização leva a uma maior integração, podendo chegar ao nível
da idiomaticidade. Nesse processo, não há apenas uma mudança no eixo
formal, mas também funcional, já que novos sentidos consequentemente
vão emergindo. Neste trabalho, destacamos o valor de adição ou de ultra-
passamento, de feição mais argumentativa, com suas diferentes nuances
de sentido, como indicado na análise de além de tudo, além do mais e além
do que. Paralelamente à questão das relações sequenciais ilustradas por
Diessel (2019), também consideramos o papel da intersubjetividade. À
medida que há um mismatch entre a constituição composicional de além
de tudo, além do mais e além do que e seu novo papel no domínio da
adição, ocorre o desencadeamento de processos de inferências sugeridas.
Isso pode ser explicado a partir da própria base semântica do advérbio
além. Ir além de X significa ultrapassar X. Se há ultrapassamento, con-
sequentemente somamos ou acrescentamos algo. Logo, ultrapassamento
e adição são noções fortemente entrelaçadas.

109
funcionalismo linguístico: interfaces

Em síntese, é possível realizar um estudo das relações entre dife-


rentes etapas do processo de mudança de uma determinada construção
a partir do paradigma da construcionalidade. Nesse paradigma, por sua
vez, propomos que se adote um conjunto de princípios e parâmetros já
bastante consolidados na Linguística Funcional e na Gramática de Cons-
truções. Nesse conjunto, destacamos a questão da composicionalidade,
dos princípios de gramaticalização, a automatização, a intersubjetividade
e outros, como procuramos ilustrar neste capítulo. Com base na gradiência
sincrônica dos usos linguísticos, essa é uma metodologia capaz de nos
ajudar na reconstrução da trajetória diacrônica das construções.

Considerações finais

Como foi informado no início deste capítulo, a descrição da mudança


linguística é um grande desafio. Os dados, aliados a um bom arcabouço
teórico-metodológico, são os pontos mais fundamentais de qualquer
investigação dessa natureza. Para o estudo da mudança diacrônica, os
dados históricos, coletados ao longo dos séculos, constituem o material
fundamental, o ponto de partida para uma análise mais robusta. Contudo,
nem sempre esses dados estão disponíveis ao analista.
Por questões diversas, também nem sempre é possível lançar mão
de dados históricos (ainda que existam). Esses pontos, por outro lado,
não impedem que seja realizada uma pesquisa de mudança linguística
com base sólida e consistente. O conjunto substancial de estudos já rea-
lizados no campo das investigações funcionalistas é capaz de municiar
os pesquisadores de ferramentas capazes de observar a diacronia pela
ótica da sincronia. Daí o conceito de construcionalidade.
Os diferentes níveis de gradiência e de gramaticalidade dos variados
usos linguísticos convivendo em uma mesma sincronia são a chave mestra
para essa questão. Usos mais antigos tendem a ser mais concretos, mais
composicionais, mais variáveis, ao passo que usos mais recentes estão
propensos a um maior nível de abstração, com mais fusão e menos varia-

110
funcionalismo linguístico: interfaces

bilidade. Essas generalizações estão amplamente atestadas em inúmeros


trabalhos já empreendidos, de modo que é ponto pacífico a defesa de que
há regularidade na mudança linguística (cf. BYBEE, 2015; CROFT, 2001;
TRAUGOTT; DASHER, 2002; TRAUGOTT; TROUSDALE, 2010).
Neste capítulo, a comparação entre a construção hipotática negativa
[[SEM][ORAÇÃO NÃO FINITA]] e a construção hipotática aditiva
[SEM Vdicendi QUE] permitiu a conclusão de que este uso é derivado da-
quele. No campo dos chunks aditivos de extensão, também foi possível
notar que além de tudo, além do mais e além do que derivam de usos
mais composicionais integrados pelo conector além de, que, com o tem-
po, foram automatizados (cf. DIESSEL, 2019) em situações marcadas
pela ação da intersubjetividade (cf. TANTUCCI, 2021; TRAUGOTT;
DASHER, 2002), especialmente na ótica da intersubjetividade estendida.
Para operacionalizar o estudo das diferenças entre forma-fonte e
forma-nova, recrutamos os chamados parâmetros de gramaticalização
de Lehmann (2015 [1982]), ainda muito adotados em diversas pesquisas
funcionalistas em todo o mundo. Por meio da aplicação desses parâme-
tros, é possível atestar distintos níveis de gramaticalidade entre usos
análogos na língua. Essas ferramentas, por sua vez, mostram-se úteis
quando adotadas em uma abordagem construcional da gramática, como
vêm defendendo Rosário e Lopes (2019, 2023).
A pesquisa baseada na construcionalidade tem rendido bons frutos
ao longo dos últimos anos, como demonstra o trabalho de Pires (2022) e
outras pesquisas em andamento. É importante que esse conceito continue
sendo aprofundado, detalhado e, mais do que isso, confrontado com a
pesquisa histórica, baseada em dados diacrônicos. São esses os movimen-
tos que poderão dar maior sustentação teórica à proposta aqui lançada.

111
funcionalismo linguístico: interfaces

Referências

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113
funcionalismo linguístico: interfaces

TRATAMENTO DA MUDANÇA LINGUÍSTICA NA


ABORDAGEM DA LFCU

Karen Sampaio Braga Alonso


(UFRJ/CNPq)

Maria Maura da Conceição Cezario


(UFRJ/CNPq/FAPERJ)

Introdução

As línguas estão em constante mudança e estudá-las em sua dina-


micidade nos coloca questões bastante desafiadoras. Não é de hoje que
cientistas se questionam acerca da natureza da mudança linguística e
investem em diferentes formas de descortiná-la. Sob esse viés, assumindo
uma abordagem empírica e não catastrófica da mudança, o Funciona-
lismo linguístico propõe uma visão em que padrões de mutabilidade
desenvolvem-se continuamente ao longo do tempo, de forma que se
entremeiam com próprio corpo da gramática. Entende-se, pois, que a
gramática conforma-se constantemente aos novos usos e convenções
que os falantes promovem no ato da comunicação.
Desde os estudos na área da gramaticalização, emoldurados pela
premissa da unidirecionalidade da mudança, até os paradigmas mais
recentes que congregam estudos diacrônicos de base construcionista,
o tema da mudança linguística encontra, na agenda funcionalista, um
frutífero campo de debate. Nesse repertório, uma das principais contri-

115
funcionalismo linguístico: interfaces

buições do chamado Funcionalismo Norte-Americano, por exemplo, foi


a de demonstrar que é possível estudar as línguas sem fazer uma rígida
distinção entre sincronia e diacronia.
Assumindo que as línguas são sistemas adaptativos complexos e
que, assim sendo, estão constantemente sujeitas a intervenções locais, a
divisão do tempo em diferentes sincronias é encarada como um recurso
metodológico para tentarmos dar conta dos micropassos da mudança
ao compararmos diferentes momentos do processo. Compreendemos,
assim, que os mecanismos de mudança que ocorrem no passado (tais
como a passagem de nome para pronome, de advérbio para conjunção,
de advérbio de modo para modalizador etc.) são também detectados em
recorte sincrônico.
Nesse aspecto, fazemos coro à premissa uniformitarista que diz que
“os mesmos mecanismos que operam para produzir as mudanças em
larga escala do passado podem ser observados em ação nas mudanças
que presentemente ocorrem à nossa volta” (LABOV, 2008, p. 192).
Ainda, concordamos que é possível capturar a emergência e a
convencionalização de novas construções em uma dada comunidade
linguística observando mudanças em um curto período de tempo, bem
como analisando-as ao longo dos séculos. Nesse sentido, o presente
capítulo pretende tratar: (i) da construcionalização de um monte de SN
(a exemplo de um monte de gente, um monte de criança), que foi sendo
gestada ao longo de séculos até a sua convencionalização no PB e (ii) de
fenômenos de mudança recém-cunhados no português brasileiro (PB), a
exemplo de [mó X] (mó saudade, mó esperando), as construções lexicais
provindas de [corona X] e o uso de [vai que].

A natureza da mudança

Neste capítulo, assumimos o modelo construcionista da gramática


enquadrado sob os princípios gerais da Linguística Funcional Centrada

116
funcionalismo linguístico: interfaces

no Uso. Na gramática de construções, defende-se que: (i) não há uma


distinção rígida entre léxico e gramática; (ii) as unidades gramaticais
(construções) compõem um inventário organizado tal como uma rede;
(iii) os elementos e as estruturas linguísticas são concebidos de forma
holística como pareamentos de forma e sentido, dando-se maior ênfase
para a estrutura de superfície; e (iv) há variabilidade entre as línguas e
generalização translinguística, que derivam de processos cognitivos de
domínio geral e das funções que as construções devem desempenhar
(HOFFMANN, 2022).
Ainda, assumimos a máxima goldbergiana de que a rede de constru-
ções captura a totalidade do nosso conhecimento de língua (GOLDBERG,
2006, p. 18). Essa máxima vai ao encontro (a) do entendimento de que a
construção gramatical (o “nó” na rede construcional) cobre propriedades
de diferentes naturezas, tais como propriedades pragmáticas, semânti-
cas, sintáticas, fonológicas etc. (CROFT, 2001) e (b) do entendimento
de que links construcionais são fundamentais para a formação do nosso
conhecimento sobre língua.
No que tange mais especificamente os links construcionais, Diessel
(2019) organiza-os a partir de relações das seguintes naturezas: (i) taxo-
nômicas, que recobrem relações entre construções mais especificadas
e mais esquemáticas na rede; (ii) sequenciais, relativas a relações entre
unidades que ocorrem frequentemente juntas numa dada ordem, a ponto
de que a ocorrência de uma preveja a ocorrência posterior da outra; (iii)
simbólicas, entre forma e sentido; (iv) de preenchimento de slot, que dá
conta de relações entre construções e lexemas que preenchem um slot na
construção; e (v) entre construções, as quais podem compartilhar grau
maior ou menor de semelhança semântica e/ou formal.
Os Modelos Baseados no Uso, mais particularmente a Linguística
Funcional Centrada no Uso, concebe que a criação e modificação de
construções gramaticais são motivadas pelo uso da língua mediado por
processos cognitivos de domínio geral, tais como categorização, analogia

117
funcionalismo linguístico: interfaces

e chunking (BYBEE, 2016 [2010]). Através da nossa capacidade de cate-


gorizar e de fazer analogia, conseguimos ampliar o uso de itens lexicais
num determinado slot e ampliar a produtividade e a esquematicidade
de uma construção. Um exemplo típico é a formação dos advérbios em
-mente: no latim clássico, apenas adjetivos que se combinavam seman-
ticamente com o substantivo mente ocorriam no sintagma nominal [ADJ
+ mente] ou [mente + ADJ]. Com o uso, em linhas gerais, a primeira
ordem se destacou pelo aumento de sua frequência, aumento de tipos de
adjetivos com os quais ­mente poderia se combinar, seguido por chunking.
No caso, ADJ e mente se integraram de modo que mente passou a ser
um morfema preso formador de advérbio e, no slot do adjetivo, houve
aumento de classe hospedeira, passando a aceitar qualquer adjetivo,
mesmo que sem qualquer ligação semântica com a forma livre mente
(CAMPOS; CEZARIO; ALONSO, 2017).
A frequência de uso tem papel fundamental tanto no estabelecimento
de construções mais ou menos esquemáticas como na variação e mudança
linguística. Hilpert (2021) enumera dez ideias fundamentais nas aborda-
gens construcionistas baseadas no uso, sendo uma delas a premissa de
que “cada evento de uso produz uma mudança na rede de construções”1
(HILPERT, 2021, p. 13) e cita Bybee (2016 [2010], p. 14), segundo a
qual “central para a posição baseada no uso é a hipótese de que instâncias
de uso impactam a representação cognitiva da linguagem”2.
Sendo assim, cada uso de uma construção traz algum tipo de al-
teração na articulação ou no sentido decorrente de alguma neoanálise
por parte do ouvinte. Algumas alterações não são repetidas; já outras
são repetidas e espalhadas em outros ambientes. Observamos que numa
sincronia ocorrem variações e mudanças o tempo todo, devido à natu-
reza emergente da gramática de construções. E é devido a esse fato que
podemos verificar estágios diferentes de mudança numa dada sincronia e

1 “Every single usage event produces a change in the network of constructions.”


2 “Central to the usage-based position is the hypothesis that instances of use impact the cognitive
representation of language.”

118
funcionalismo linguístico: interfaces

obter mais evidências dos micropassos de mudança observando diferentes


sincronias de uma mesma língua.
Objetivando o tratamento da mudança linguística sob o viés de um
modelo construcionista, poderemos considerar que o surgimento de uma
nova construção é uma mudança no sistema linguístico (TRAUGOTT;
TROUSDALE, 2021 [2013]). De acordo com os autores,

A contrucionalização é a criação de (combinações de) sig-


nos com formanova-significadonovo. A construcionalização
gera um novo nó que tem uma nova sintaxe ou morfologia
e um novo significado codificado na rede linguística de
uma população de falantes. É acompanhada por mudanças
no grau de esquematicidade, produtividade e composicio-
nalidade (TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013, p. 22)3.

As mudanças construcionais, segundo os autores, podem ser con-


sideradas apenas quando um aspecto da forma ou do sentido muda. Nas
palavras deles, “Uma mudança construcional é uma mudança que afeta
uma dimensão interna de uma construção. Não envolve criação de uma
nova rede”4 (TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013, p. 26).
De fato, no ato da comunicação, falantes impõem alterações cons-
tantes na língua. Reduções no plano fonético ou atribuições de novas
funções a construções existentes, por exemplo, são exemplos desse fluxo
contínuo na direção da mudança. Algumas alterações afetam mais cru-
cialmente o sistema linguístico, quando promovem o estabelecimento de
uma nova construção, no entendimento de uma nova relação simbólica
3 “Constructionalization is the creation of form new-meaningnew (combinations of) signs. It
forms new type nodes, which have new syntax or morphology and new coded meaning, in
the linguistic network of a population of speakers. It is accompanied by changes in degree of
schematicity, productivity, and compositionality. The constructionalization of schemas always
results from a succession of micro-steps and is therefore gradual. New micro-constructions
may likewise be created gradually, but they may also be instantaneous. Gradually created
micro-constructions tend to be procedural, and instantaneously created micro-constructions
tend to be contentful.”
4 “A constructional change is a change affecting one internal dimension of a construction. It
does not involve the creation of a new node.”

119
funcionalismo linguístico: interfaces

entre o plano da forma e o plano do sentido, a qual é convencionalizada


em uma dada comunidade de falantes.
Traugott (2021, p. 09) chama atenção para os seguintes fatores
motivadores da mudança na língua:

i. falantes usam a língua ativamente e negociam significa-


do baseado na experiência (e não em capacidades inatas);

ii. falantes adquirem conhecimento de língua (ao longo


de toda vida);

iii. percepção e produção apresentam assimetria;

iv. componentes de uma construção podem ser incompati-


bilizados, no sentido de que o que alguém fala ou escreve
não é necessariamente compreendido da forma exata como
o emissor quis dizer (Tradução nossa).

Como se pode observar, tanto o processo de compreensão e produ-


ção linguística quanto as negociações inerentes à relação dialógica do
ato de comunicação movem a mudança de uma dada língua. Atenta-se,
agora, para o fato de que a construcionalização é compreendida como
um processo cujo foco recai sobre a convencionalização das formas
linguísticas em uma dada comunidade. Nesse sentido, cabe ressaltar
a diferença entre inovação e mudança, na qual as inovações levam à
mudança linguística, mas a mudança linguística só se dá quando essas
inovações passam a ser replicadas por diferentes falantes, a ponto de se
convencionalizarem (TROUSDALE, 2021). Aqui, o foco recai sobre as
mudanças que afetam o uso linguístico, as quais vão ser capturadas na
análise de corpora diacrônicos e sincrônicos.
Revisitando livro de 2013 e refletindo sobre críticas sofridas a res-
peito dos conceitos de construcionalização e mudanças construcionais,
Traugott (2021) e Trousdale (2021) estabeleceram um novo entendimento

120
funcionalismo linguístico: interfaces

sobre a construcionalização, a saber: “estabelecimento de um novo link


simbólico entre forma e sentido que foi replicado por uma rede de usuários
de uma língua e que envolve uma adição ao constructicon”5 (TROUS-
DALE, 2021, slide 31). Ainda, nas palavras de Trousdale (2021, slide
31), “estabelecimento difere de ponto porque o resultado é interpretado
como o resultado (mesmo que de curta duração) de mudanças envolvendo
o espalhamento gradual entre membros de uma comunidade, e não de
inovações”6 (tradução nossa, grifos nossos).
Como se vê, os autores procuraram resolver uma questão-chave
na crítica à diferenciação entre construcionalização e mudanças cons-
trucionais, a qual dizia que não estava claro se a construcionalização se
referia ao processo de mudança (gradual) ou ao resultado desse processo
(abrupto) (FLACH, 2020).
Neste capítulo, abordaremos, conforme exposto anteriormente,
alguns fenômenos estudados numa perspectiva funcionalista que já incor-
pora a visão construcionista. Sendo assim, esperamos demonstrar que a
construcionalização pode ser analisada a partir do estudo de construções
convencionalizadas em um curto espaço de tempo bem como da análise
daquelas que levaram séculos para que se convencionalizassem.

A construcionalização de um monte de SN

O domínio da quantificação pode ser expresso de diferentes formas,


como por meio de numerais (um, dois, três etc.) ou pronomes indefinidos
(muito, pouco etc.), por exemplo. Também, muito comumente, falan-
tes do português fazem uso de construções binominais, tais como uma
chuva de críticas, um caminhão de problemas, um monte de crianças,

5 “establishment of a new conventionalised symbolic link between form and meaning which has
been replicated across a network of language users, and which involves an addition to the
construction.”
6 “‘Establishment’ differs from ‘point’ (Flach 2020) because the outcome is interpreted as
the result (however short-lived) of changes involving gradual spread across members of a
community, not innovations.”

121
funcionalismo linguístico: interfaces

entre outras (cf. ALONSO, 2010; ALONSO; LEITE DE OLIVEIRA;


FUMAUX, 2019). Nesta seção, pretendemos focalizar o processo de
convencionalização da construção um monte de SN, ao longo da história
do português, demonstrando como diferentes contextos de uso foram
oferecendo as condições para que a interpretação quantificadora da forma
um monte de SN tenha se estabelecido no PB (FUMAUX; ALONSO;
CEZARIO, 2017).
Para a realização da apreciação dos dados, foi utilizado o corpus do
português, aba histórico, composto de 45 milhões de palavras, do século
XIII ao século XX. A análise aqui exposta objetiva ilustrar, com base
em dados de corpus, o processo de estabelecimento de um monte de SN
como uma construção quantificadora do PB.

(1) E o termho d’Elvyra he muy avondado e ha hy hu~u~ monte a que


chama~ Xalayr. E tanto quer dizer Xalayr como monte de geada, por
que em todo ho a~no nu~ca se parte della a neve, ca tanto que se hu~a
neve parte logo a outra vem. (século XIV)

No exemplo (1), captura-se um uso de monte de geada em que a


nomeação do monte toma como ponto de referência o fenômeno natu-
ral da geada, cujo resultado é a matéria neve que cobre parte do monte
todo o ano. Esse uso é importante para refletirmos sobre o processo de
construcionalização de um monte de SN, porque usos desse tipo – que
implicam uma relação parte-todo – parecem funcionar como porta de
entrada para futuras inferências de valor quantitativo, de base metonímica
e não-metonímica.

(2) Entom cortarom os portugueeses as pontas dos çapatos, que husavom


em aquell tempo muito compridas, e deitadas todas em huu logar, era
sabor de veer tall monte de pontas. (século XV)

122
funcionalismo linguístico: interfaces

Em (2), verifica-se um uso em que há um aglomerado de pontas de


sapato contiguamente dispostos em tempo e espaço. Esse é um caso que
ilustra o licenciamento de um monte de SN (no caso, pontas) para referir
a uma certa quantidade de coisas construídas de forma indefinida, mas
que, pelo contexto, se assume como uma quantidade grande, já que era
algo comum de se ver nos sapatos (que já são usados em pares). A infe-
rência de grande quantidade sugerida neste exemplo mais tarde vai ser
observada como uma associação convencional à construção um monte de
SN com função quantificadora. Esse dado mostra que o ajuntamento de
unidades é interpretado como um aglomerado, numa relação em que as
partes formam um todo, sejam elas contáveis ou não. Quando contáveis,
essa relação partitiva reforça a inferência quantificadora da construção,
uma vez que as unidades da parte (pontas) tomadas individualmente são
preservadas em relação ao todo – o que não se vê em (1).

(3) Emtam emmadeyram aquella coua por çyma como sobrado com rama E
em cima desta rama deytam hûu grande monte de terra tam alta como hûa
casa / E alli fica elrey com seus criados e molher e nom ha hy memoria mais
deles. (século XVI)

Em (3), novamente há uma contiguidade espaço-temporal associada


a um referente não contável (terra) que está sendo amontoado em cima da
rama. Há aí, novamente, uma inferência de quantidade grande de terra,
uma vez que é preciso muita terra para que se chegue à altura compará-
vel à de uma casa. A quantidade é reforçada pelo adjetivo grande, que
modifica monte. Inferências recorrentes em relação à quantidade vão se
acumulando ao longo do tempo, culminando para a construção quanti-
ficadora um monte de SN que temos hoje no português, a qual repele a
interpretação de pequena quantidade de algo.
Nesse exemplo, diferentemente do anterior, além de aglomerado, há
um referido amontoamento de terra disposto verticalmente. Assumindo
que, cognitivamente, o crescimento vertical de baixo para cima associa-

123
funcionalismo linguístico: interfaces

-se à noção de aumento, entendemos que este é outro dado importante,


em termos do processo de mudança, para o estabelecimento de uma
construção quantificadora de grande quantidade no avançar do tempo.
Ainda, neste caso, a relação parte-todo é um pouco diferente dos ante-
riores, já que um monte de terra é interpretado como um grande volume
indivisível de terra.

(4) E destas aues dam de comer aos escrauos em Arguym e assy a


qualquer outra gente que quiserem escolher as aues mais saborosas
dellas que as comem tres nem 4 homens nom ousam de entrar porque
as aues pelejam rijamente tem seus nidos como a pedres perto hûu do
outro e antre elles hûu camjnho que os velhos passam e a cada njnho
hûu monte de peixe. (século XVI)

Aqui apresenta-se o uso de um monte de SN (peixe) com referente


contável e animado, diversificando os tipos de referentes que podem
ser instanciados pela construção um monte de SN para enunciar que
estão amontoados e aglomerados. No exemplo, a quantidade de peixes
é indefinida, podendo ser grande ou pequena, mas sugere-se que há uma
quantidade destacável de peixes agrupada em cada ninho. O recrutamen-
to de um monte de SN parece ocorrer quando se tem o ajuntamento de
elementos que formam um todo e, que, sendo assim, se destacam no am-
biente e ganham proeminência no direcionamento da atenção do falante.

(5) té que na entrada da nau foram os mouros dar com ele, onde aca-
bou sobre o corpo de seu senhor como leal criado e especial cavaleiro,
porque, primeiro que o matassem, fez um monte de corpos mortos,
debaixo dos quais ficou enterrado o de seu senhor e ele sobre eles.
(século XVI 1ª metade)

Em (5), o dado um monte de corpos mortos é usado para descrever a


cena de uma quantidade de corpos dispostos verticalmente (empilhados).
Tal uso associa-se ao esquema da verticalidade e à ideia de aglomeração

124
funcionalismo linguístico: interfaces

de referentes contáveis, reforçando que o falante recruta a construção


um monte de SN para falar de uma quantidade considerável de referentes
dispostos contiguamente em termos de tempo e de espaço. A noção de
quantidade grande ou quantidade entendida como significativa vai sen-
do, com o passar do tempo, convencionalmente associada à forma um
monte de SN. Assim, assume-se que inferências sugeridas por contextos
de uso podem passar a fazer parte da semântica da construção, com o
decorrer do tempo.

(6) O mesmo veio, que é rico no princípio, se faz muitas vêzes bem pobre
na sua continuaçao e seguimento; e, pelo contrário, um veio muito pobre
no seu princípio aumenta depois em riqueza; outras vêzes, até se acha
um monte de ouro, como insulado por toda a parte, sem continuaçao
nem seguimento, como se vê muitas vêzes nas minas de Cuiabá. Esta
riqueza tao casual, tao variável e tao caprichosa, assim como faz que
seja sempre vária e inconstante a riqueza do mineiro do ouro, assim
também faz que a riqueza da naçao mineira do ouro seja sempre vária
e inconstante. (século XVIII)

Esse exemplo retrata uma quantidade indefinida e aglomerada de


ouro, não necessariamente grande em termos objetivos, mas relevante
dado ao valor da matéria (ouro). Tem-se aqui um outro tipo de enunciado
no qual observamos o recrutamento de um monte de SN, qual seja, aquele
associado à alta valoração do referente (contável ou não) independente-
mente da quantidade aferível objetivamente. Quando um referente de alto
valor em uma dada sociedade é instanciado pela construção um monte de
SN, a sua quantidade pode ser interpretada como destacável, por menor
que essa seja, em termos objetivos. Assim, embora possamos dizer que
um monte de SN tende a ser preferivelmente usado quando a quantidade
é tomada como objetivamente grande, pode-se ampliar seus contextos
de uso acomodando a ideia de quantidade grande com a de quantidade
significativa (mesmo pouco ouro já é uma quantidade considerável da
matéria).

125
funcionalismo linguístico: interfaces

(7) A MULHER POLÍTICA Uma “crise” ministerial sob o Príncipe


Regente. Carta à Princesa Senhora: Tomara eu poder comunicar a Vossa
Alteza Real V. A. R. as notícias públicas, porém um monte de patranhas
e de cousas incertas é quanto sei. (século XIX)

Esse é um emprego mais próximo aos usos quantitativos que vão


se estabelecer na língua a partir do século XX. Nesse caso, trata-se do
recrutamento de um monte de SN como estratégia quantificadora de
grande quantidade, que até então recebia leitura partitiva, podendo ser
combinada com referentes contáveis ou não. Nesse exemplo, o SN tem
referência abstrata e a contiguidade espaço-tempo não está claramente
posta como nos exemplos anteriores. É um dado importante, já que con-
tiguidade espaço-tempo é um fator que não será restritivo na construção
quantificadora convencionalizada no século XX, a qual licenciará também
nomes abstratos.

(8) O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou


escapar-se um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar.
Sentei-me; prefiro sempre o contato da seda à vizinhança da casimira
ou do pano. (século XIX)

Há em (8) um uso de um monte de SN cuja interpretação é próxima


àquela que vimos em períodos anteriores, em que há um amontoamento
de determinado referente; no caso, sedas que estão encostadas em um
canto, com contiguidade espaço-temporal. Nesse dado, a interpretação
de grande quantidade está prevista, posto que as sedas ocupavam um
espaço destacável, considerável no banco do carro.

(9) Viveu ali um rei mouro, que deixou numa um monte de oiro, e noutra
um tesouro de diamantes, que chegava pra comprar toda a Cristandade.
– Ena, pai! E porque é que ainda ninguém roubou tamanha riqueza. –
Porque na terceira gruta fechou a alma do dianho uma camada de peste,
capaz de matar inteira a população da Terra! (século XIX)

126
funcionalismo linguístico: interfaces

Neste exemplo, o uso de um monte de oiro ocorre em um contexto


em que a quantidade de ouro reportada é grande. Novamente, tem-se um
sentido de amontoado de ouro (não contável), mas agora claramente as-
sociado com uma quantidade entendida como grande, enorme. Esse dado
se relaciona a um uso posterior e inovador da construção quantificadora
que é o seu recrutamento com função hiperbólica: por exemplo, quando
alguém diz que tem um monte de problemas mas tem, de fato, dois ou três.

(10) E os outros pares iam marcando os números. E Cacilda e Eduardo


– que caiporismo! – tinham os cartões descobertos, tinham o monte de
grãos de milho intacto, sobre a toalha da mesa. E a boa senhora Manue-
la Martins, cochilando, embrulhada no seu bonito xaile de ramagens,
presidia àquele divertimento inocente. (século XIX)

Esse dado retrata um ajuntamento de grãos de milho no mesmo


espaço e tempo. Nesse caso, destaca-se o fato de que o monte de grãos
de milho é formado por uma quantidade grande de unidades (grãos) em
relação às expectativas, no contexto retratado, do quanto de milho que os
pares (jogadores) deveriam ter fora da cartela. O exemplo descreve uma
cena em que a quantidade de grãos de milho é objetivamente pequena,
mas ganha proeminência, dado que cada milho perdido do seu monte
equivale a um ponto preenchido na cartela. Ter milho ainda em mãos
significa ter a cartela mais vazia e isso é ruim para o jogador. Esses casos
de um monte de SN contribuem para a forma como hoje fazemos uso
dessa construção. Todos os contextos aqui retratados ainda são observá-
veis na língua, embora o mais consolidado seja aquele em que a referida
construção se associa a uma quantidade indeterminada e grande de algo.

(11) Eu não fui machista, fui grosso e me penitencio. – Pelo menos eu


fiquei sabendo o que você pensa das mulheres que não conseguiram se
arrumar. Você não deve ser o único que pensa assim, a diferença é que
tem um monte de cara que esconde o jogo. – Escuta meu bem. – Meu
nome é Ucha – ela corrigiu. (século XX)

127
funcionalismo linguístico: interfaces

Esse é um exemplo já do século XX, quando a construção já está


convencionalizada na língua portuguesa. Nesse caso, o referente cara está
sendo quantificado de forma indefinida e não se encontra em contexto de
contiguidade espaço-temporal. Esse dado trata de uma grande quantida-
de do referente cara que preserva a forma da construção partitiva, mas
dispensa a contiguidade espaço-temporal tipicamente a ela associada, de
maneira que a interpretação um conjunto de caras se torna mais opaca
em prol de uma interpretação mais associada a muitos caras.
Os dados apresentados de um monte de SN procuraram demonstrar
como, ao longo do tempo, diferentes usos da construção partitiva foram
licenciando a interpretação quantificadora e essa nova associação forma-
-sentido foi-se convencionalizando. Consequentemente, a construção
quantificadora estabelecida no século XX é um novo link simbólico de
forma e sentido que foi replicada dentro de uma comunidade de falantes.
Nesse sentido, um monte de SN é fruto de um processo de construcio-
nalização no português.

Análise de mudança na sincronia atual: alguns exemplos

No Modelo da Gramaticalização (HEINE; CLAUDI; HÜNNE-


MEYER, 1991; HOPPER; TRAUGOTT, 2003 [1993]), há inúmeros
trabalhos que comprovam que, numa perspectiva sincrônica, é possível
verificar que houve mudanças linguísticas e essa comprovação muitas das
vezes foi feita através da análise das camadas (HOPPER; TRAUGOTT,
2003 [1993]) existentes numa mesma sincronia e através da verificação
de fenômenos translinguísticos. São exemplos muito conhecidos a pas-
sagem de verbos plenos para auxiliares, a passagem de advérbios para
conectivos, a passagem de verbos que indicam movimento ou volição para
marcadores de tempo futuro, dentre outros. Também numa perspectiva
construcional temos já um número razoável de pesquisas que demonstram
que, em amostras de uma sincronia, é possível traçar mudanças cons-
trucionais e construcionalizações ocorridas. Vejamos alguns casos de

128
funcionalismo linguístico: interfaces

mudanças construcionais e construcionalizações detectados no português


atual: a construcionalização de [mó X] (mó saudade, mó esperando), as
construções lexicais provindas de [corona X] e o uso de [vai que].
Freitas Junior, Barbosa e Silva (2022), embora tracem o histórico
dos usos de [maior X] na história da língua portuguesa, aprofundam a
análise sobre mudanças construcionais e construcionalizações surgidas
desses usos no português usado no Twitter. A amostra reunida é infor-
mal, e, assim, mais próxima do português do Brasil falado atualmente.
Os autores apresentam a hipótese de que usos da construção [mor X],
vindo de [maior X] levaram a um novo pareamento no português atual,
a construção [Mó X], por eles denominada Construção de Informalidade
e Intensificação, como em (12) e (13). Após haver mudanças na forma e
na função no português contemporâneo, surge um novo link simbólico
entre forma e função, o que caracteriza construcionalização. Os autores
mostram as mudanças nos dois planos partindo dos usos na amostra
escolhida. Na rede taxonômica dessa construção semiesquemática, há
quatro microconstruções independentes, a saber: [MóXSN] [MóXSADJ],
[MóXSADV] e [MóXSV] (mó saudade, mó legal, mó mal e mó esperando,
respectivamente).

(12) ******30 de jan de 2009 aauhahu.. engraçado é q o cursinho tava


mó esperando festivo o resultado pro meio-dia. a lista vazou no orkut,
agora quebrou eles.. (2009)

(13) ****** 30 de dez de 2015 Mo legal quando a pessoa te chama pra


sair e 2 min depois diz que vai sozinho kkkkkkkk (2015)

Além de explicitar as mudanças construcionais que levaram à for-


mação das quatro microconstruções, os autores postulam que há fortes
evidências de que alguns constructos da microconstrução [MóXSN] estão
se tornando mais independentes, muito frequentes, com forma fixa e com
função própria. Algumas dessas novas possíveis construções (pareamen-
tos simbólicos) são [mó saudade] e [mó preguiça]. Pode-se observar que

129
funcionalismo linguístico: interfaces

cada nó na rede pode também ser formado por uma rede de construções. O
surgimento de uma nova construção leva ao rearranjo da rede linguística
da língua, com links diversos com outras construções na rede.
Gonçalves (2020), ao investigar novas criações de construções
lexicais provindas do composto com valor técnico coronavírus, realiza
uma análise construcionista, em que evidencia que essas formações (nos
termos de Traugott e Trousdale, construcionalizações lexicais) se dão a
partir de mecanismos morfológicos existentes na língua. Há criatividade
e subjetividade nos usos, a partir da avaliação do momento político e
social em que as formas surgiram: o governo do então Presidente Jair
Bolsonaro e a crise social e sanitária do ano de 2020. O autor realizou a
pesquisa a partir de 94 construções diferentes (types), retiradas de diversas
redes sociais, sendo alguns dos exemplos as formações coronagado e
coronabozo. O autor objetiva

mostrar que forma linguística que nomeia o vírus vem


sendo intencionalmente manipulada pelos falantes, so-
bretudo brasileiros, com o intuito de mostrar não apenas
os graves efeitos do contágio no planeta (cf. coronafome,
coronamorte), mas, sobretudo, de expressar ponto de
vista (viewpoint) através da criação de novas palavras no
domínio político (p. 90).

O uso frequente do termo coronavírus (etimologicamente uma


palavra composta, significando “vírus em forma de coroa”), dado aos
efeitos terríveis do próprio vírus e do isolamento, levou à diminuição da
forma, como consequência de uma metonímia, em que a parte corona
vale pelo todo. O significado de corona passa a ser a própria doença. Mais
importante do que o fato de o termo corona figurar sozinho é, segundo
o autor, a formação do esquema composto pelo termo corona e um slot
vazio à direita, instanciando termos como coronacontrole, coranasurto,
dentre outros, todos altamente composicionais. Talvez em decorrência
de inúmeras falas do então presidente demonstrando crítica às ações de

130
funcionalismo linguístico: interfaces

controle do vírus, novas mudanças construcionais ocorreram formando


outras construções como coronagado, coronabozo, coronabosta. Assim,
segundo Gonçalves (2020, p. 102), corona “passou por um processo de
ressemantização porque agora também se insere numa construção pre-
dominantemente avaliativa, remetendo a um cenário político vinculado
à figura do presidente da república e/ou a seus adeptos mais radicais”.
Vemos que, num curto período de tempo, houve a criação de inú-
meras palavras (construcionalizações lexicais) na língua, a partir de um
esquema de formação de palavra já existente, a composição. Os usos
frequentes de termos em contextos altamente subjetivos levaram à for-
mação de um novo esquema, o [corona X], bem produtivo nos anos da
pandemia, mas agora ao que nos parece com produtividade já em baixa,
mudança provocada pelos novos tempos em que já temos a vacina e um
novo cenário político e sanitário no país.
Um outro exemplo que fornecemos aqui para ilustrar casos de
mudanças construcionais e construcionalizações flagradas na sincronia
do português contemporâneo é o caso do uso de construções oracionais
iniciadas por [vai que], como nos exemplos (14) e (15):

(14) Mas, depois de ouvir alguns amigos, achou que não era para tan-
to. Mais seguro na profissão, atualmente, ele faz do bom humor sua
estratégia e brinca com a possibilidade de se aventurar na vida real.
“Por que não? Vai que alguém quer companhia para assistir a um filme
ou a uma peça bacana e comer em um restaurante maneiro, acho que
não teria qualquer problema”, brincou. (Corpus do Português, 2021,
grifos nossos)

(15) Mas apesar de todas as indicações, meu conselho é: seja curiosa!


Viu uma loja ou marca que nunca ouviu falar? Entre, pegue em a mão,
teste em a pele, seja cara de pau mesmo. Vai que encontra seu novo
queridinho! (Corpus do Português, 2021, grifos nossos)

131
funcionalismo linguístico: interfaces

Ely e Cezario (2023a, 2023b), ao analisarem orações iniciadas por


vai que no Corpus do Português demonstram que, embora seja encon-
trada em textos de séculos passados, é no português contemporâneo
que a construção se torna produtiva. Seu uso mais frequente tem valor
epistêmico, indicando dúvida, possibilidade. Segundo as autoras, com
base na literatura funcionalista acerca de fenômenos translinguísticos,
o uso epistêmico deve ter sido articulado a partir de usos deônticos
(BYBEE; FLEISCHMAN, 1995; BYBEE; PERKINS; PAGLIUCA,
1994; GIVÓN, 2002; SWEETSER, 1990), em contextos em que há
sugestão ou ordem. As autoras encontram, embora com baixa frequ-
ência, contextos fontes com valor deôntico, em que a forma vai está
numa oração indicando ordem ou conselho e a forma que inicia uma
oração explicativa, como nos exemplos (16) e (17) a seguir. Mudanças
construcionais diversas, incluindo a mudança semântico-pragmática
modalidade deônticas > modalidade epistêmica e a reanálise sintática,
levaram à criação da construção [[vai que] + oração]. A construcio-
nalização de vai que significa um novo pareamento de construções
epistêmicas do paradigma em que há outras construções como pode
ser que, será que, e se etc.

(16) O amigo carrapato: gruda, e se você não tomar cuidado, chupa


até o seu sangue. O amigo geladeira: quando ele propõe alguma coisa,
alguém logo sussurra: [não vá] [que é fria!] O amigo político: não passa
da promessa. (Corpus do Português, 2021, grifos nossos)

(17) há uns três, quatro dias, e ele me falou: “vai, [vai] [que você será
muito feliz no Palmeiras]. Eu já não tinha dúvidas” (Corpus do Portu-
guês, 2021, grifos nossos)

Usos frequentes de [[vai que] + oração] com as formas verbais


cola, rola e dá criam novos nós na rede construcional do português. Um
esquema como [vai que V], muito provavelmente criado no português
contemporâneo, pode ser visto como um esquema formador de constru-

132
funcionalismo linguístico: interfaces

ções lexicais, como nos exemplos retirados de Ely e Cezario (2023), sem
sujeito antes das formas verbais:

(18) Gatinha! Olha mais uma aqui… flabv… pegava fácil. Olha a outra
falando abobrinha e xingando o DJ de a boate. Xi, reclamando que não
pegou ninguém ainda. Pelo menos também tá bêbada, hehe. Acho que
vou dar meu celular pra ela. Vai que cola. Ô, loco! O chat de o facebook,
lotado. Essa galera não tem vida social, não? (Corpus do Português,
2021, grifos nossos)

(19) Porem, apesar de achar a idéia ótima, concordo com você que pro-
vavelmente é inviável. Mas, to dando meu apoio pra eles assim mesmo.
Vai que rola rsrs. Exato, embora seja óbvia a vantagem de poder trocar
partes, é igualmente óbvio que isso pode fazer os celulares dobrarem
de tamanho. (Corpus do Português, 2021, grifos nossos)

(20) O segundo critério é ainda mais preocupante, apesar de ser o carro


chefe de quem hoje comanda a CBF: o populismo. A direção da entidade
optou por o caminho mais fácil e simplesmente jogou para a galera. O
terceiro critério é o famoso “vai que dá, né?”. (Corpus do Português,
2021, grifos nossos)

Embora esses usos sejam ainda composicionais, podem ser consi-


derados formas lexicais independentes (chunks) a ponto de se tornarem
nomes próprios: Vai que cola, título de um filme e de um programa
televisivo, e Vai que rola, nome de um drink e de uma música. O uso
frequente dessas microconstruções leva ao aumento da esquematicidade
da construção e hoje podemos encontrar dados que talvez também estejam
se tornando um chunk como Vai que, ainda não tão fixos como os exem-
plares da construção, quais sejam vai que cola, vai que dá e vai que rola.
A análise de mudanças construcionais e construcionalizações num
dado estágio de uma língua pode ser particularmente importante no es-
tudo de línguas que não têm escrita ou que a história da escrita é curta.
Durante a fase dos estudos guiados pelo Modelo da Gramaticalização,

133
funcionalismo linguístico: interfaces

um número muito grande de pesquisas foi feito em estados sincrônicos


de línguas ágrafas ou sem uma história longa de sistema de escrita. Heine
et al. (1991, p. 1-5), por exemplo, verificaram, pela análise de diversos
contextos de uso da língua Ewe, falada no Leste de Gana, que o verbo
ná “dar” e a preposição ná “para” têm relação histórica, sendo o primei-
ro fonte do segundo. O verbo, em determinados contextos, passou por
mudanças semânticas e formais dando origem à preposição. Através de
inferências sugeridas pelo contexto, os interlocutores fizeram uma neo-
análise a partir da ideia de transferência contida no conceito do verbo
“dar” para transferência codificada por preposição. Claro que os autores
já encontraram a mudança realizada ao observar o estado sincrônico
da língua, mas, pelas técnicas de análise presentes no modelo teórico-
-metodológico da literatura funcionalista, é possível descrever as fases
de mudanças de um dado fenômeno, mesmo quando não há registros
antigos da língua:

Estamos lidando aqui com um exemplo de gramaticaliza-


ção, em que um item lexical, o verbo “dar” assume signi-
ficado gramatical, qual seja o significado de expressão de
noção preposicional “para” em certos contextos – um pro-
cesso que ocorreu em várias línguas do mundo (HEINE;
CLAUDI; HUNNEMEYER, 1991, p. 2, tradução nossa)7.

Cezario (2020) analisou diversos contextos da língua wa’ikhana


(língua da família Tukano, falada no noroeste brasileiro), numa perspec-
tiva construcionista, e observou que o verbo duhku “ficar de pé”, quando
usado em uma serialização, atua como marcador de aspecto progressivo.
Desse modo, temos uma construção [V1 + duhku + morfologia verbal],
em que o V1 atua como verbo pleno e duhku indica que o evento de V1
foi durativo. Além disso, foi encontrada uma construcionalização lexical
com a serialização dos verbos yau “falar” e duhku “ficar em pé” como
7 “We are dealing here with an instance of grammaticalization, whereby a lexical item, the verb
‘give’ assumes a grammatical meaning, that of expressing a prepositional notion, ‘for’ or ‘to’
in certain contexts, a process that has occured in a number of languages worldwide.”

134
funcionalismo linguístico: interfaces

marcador de aspecto. A serialização yauduhku, que provavelmente veio


de “falar por um tempo” (uma vez que duhku nessa posição tem função
durativa), configura-se como processo de lexicalização, formando uma
palavra com significado de “conversar”. Os indícios não são apenas os
contextos em que ela se encontra, mas as mudanças formais tanto no
contorno tonal da palavra quanto em erosões fonéticas da palavra para
yauhku.
Os fenômenos linguísticos tratados nessa seção ilustram como pode-
mos flagrar e analisar mudanças linguísticas e construcionalizações num
curto período de tempo ou mesmo no estágio sincrônico de uma língua.

Considerações finais

Os estudos funcionalistas construcionistas, tomando como base o


modelo de análise diacrônica Construcionalização e Mudanças Constru-
cionais, podem fornecer análises muito profícuas tanto para os estudiosos
que procuram comparar diferentes estágios de uma língua como para
quem busca verificar estágios de mudança, observando as diferentes
camadas de usos num determinado estágio de uma língua ou em línguas
faladas sem escrita ou com história recente de registro escrito.
Aqui discutimos como é possível analisar a emergência e a conven-
cionalização de novas construções, considerando mudanças em um curto
período de tempo, bem como analisando-as ao longo dos séculos. Dessa
forma, o presente capítulo tratou da construcionalização de um monte
de SN (a exemplo de um monte de gente, um monte de criança), que foi
sendo implementada ao longo de séculos até a sua convencionalização
no PB; e tratou de fenômenos de mudança flagrados no português bra-
sileiro contemporâneo (PB), como [mó X] (mó saudade, mó esperando),
construções lexicais provindas de [corona X] e usos de [vai que].

135
funcionalismo linguístico: interfaces

Referências

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funcionalismo linguístico: interfaces

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P75JOdcJ2fc. Acesso em: 01 fev. 2023.

137
funcionalismo linguístico: interfaces

FUNÇÕES E CONSTRUÇÕES: PRAGMÁTICA, DISCURSO


E ENCAPSULAMENTO CONSTRUCIONAL

Roberto de Freitas Junior


(UFRJ/UERJ)

João Paulo da Silva Nascimento


(UFRJ/UERJ)

Introdução

Para a discussão sobre o conceito de “encapsulamento construcio-


nal” a que se dedica o presente texto, abordaremos diferentes usos da(s)
forma(s) ‘veado ~ viado’ no português do Brasil (PB) atual. A observa-
ção sobre os sentidos e formas dos referidos itens parte de postagens e
memes diversos encontrados em buscas rápidas do google.com.br e de
redes sociais, como o Twitter, o Facebook e o Instagram.
A presente discussão consiste no questionamento sobre os limites
do armazenamento de informações de sentido das construções. Apoiados
na hipótese de que a base fundamental do conhecimento linguístico é a
construção, um pareamento de forma e sentido (CROFT, 2001; GOLD-
BERG, 1995, 2006; TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013), questionamos
se não é possível fazer uma articulação da Gramática de Construções
(GC) com aspectos amplamente discutidos no âmbito, por exemplo, dos
estudos da Análise Crítica do Discurso, a ACD, (FAIRCLOUGH, 2001;
ORLANDI, 2009). Tratamos, assim, de questões que dizem respeito ao

139
funcionalismo linguístico: interfaces

armazenamento de informações de base e força pragmática, que ratifi-


cam e/ou retificam os parâmetros que regulam as bases interacionais e
ideológicas das sociedades. A base epistemológica de nossa discussão é,
portanto, bipartida em duas grandes correntes de pensamento dos estudos
linguísticos contemporâneos.
A primeira corrente, de orientação discursivo-ideológica, consiste
na premissa de que a língua reflete as estruturas sociais em todos os ní-
veis, incluindo-se aquelas que marcam preconceitos e injustiças em uma
ampla grade de forças em competição por poder. A segunda é o modelo
funcional-cognitivista da Gramática de Construções, em particular, o
modelo baseado no uso, que assume, aos limites da redundância constru-
cional, a importância da experiência com o uso da língua na formação,
reformulação e mudança da arquitetura da gramática.
Nesse sentido, se a construção é a unidade fundamental do conhe-
cimento linguístico, por que não imaginar que as informações linguís-
ticas sobre as estruturas sociais, que marcam forças em competição por
poder, estariam entrincheiradas1 nas relações formais e funcionais dos
pareamentos de determinada gramática?
A articulação, portanto, que propomos desenvolver consiste, em
outras palavras, em uma investigação aprofundada sobre os limites do
armazenamento das informações de sentido, em particular, de ordem
pragmática. Para além das características funcionais que, em geral,
dedicam-se a estudar os interessados em GC, será que informações lin-
guísticas de ordem ideológica e que refletem as estruturas sociais não
poderiam também constituírem-se como parte do conhecimento constru-
cional encapsulado no polo de sentido, evidenciando a articulação entre
discurso e gramática?
Obviamente, essa discussão retoma várias questões relativas ao
modelo gramatical aqui adotado, dos quais destacamos quatro:
1 Para o termo ‘entrenched’, além do vocábulo ‘entrincheiradas’, podemos usar também as
traduções ‘vinculadas’ ou ‘pareadas’.

140
funcionalismo linguístico: interfaces

a) a premissa de que o conhecimento (incluindo-se o linguístico) é


organizado em forma de rede associativa de formas e/ou funções
(GOLDBERG, 2006);

b) o papel da memória rica como processo cognitivo de domínio geral


(BYBEE, 2010);

c) a assunção de que aspectos pragmáticos – como a informatividade,


o registro, as implicaturas e também informações ideológicas – são
componentes do polo de sentido das construções (TRAUGOTT;
TROUSDALE, 2013); e

d) o fato de que a língua está em constante mudança, o que significa


dizer que ela está a todo tempo sendo representada de modo heterogêneo
e homogêneo, se pensarmos na representação no nível do indivíduo –
e suas experiências linguísticas e sociais particulares – e no nível da
comunidade – espaço em que identificamos os aspectos linguísticos
mais convencionalizados de modo aparentemente mais estável (HÖ-
DER, 2018).

Em suma, nossa escolha pela análise acerca dos diferentes usos da(s)
forma(s) ‘veado ~ viado’ no PB não é aleatória. Assumimos aqui que,
na atual sincronia do PB, olhando tanto para a representação cognitiva
da gramática no âmbito individual, quanto no da comunidade linguística
maior, é possível identificarmos usos de forte base pragmática associados
a ideologias que refletem os preconceitos, as lutas e as relações de poder
(NEVES JR., 2022; PINHEIRO, 2020). Nesse sentido, discutimos como
o funcionamento associativo da mente – refletido na arquitetura grama-
tical – e nossa capacidade refinada de armazenamento de informações
– refletida na memória rica – espelham como os conhecimentos, os sen-
tidos e as ideologias estão cognitivamente interligados e profundamente
entrincheirados na gramática.

141
funcionalismo linguístico: interfaces

Pressupostos teóricos

Nesta seção, procedemos à apresentação e ao debate dos pressu-


postos teóricos em que nos baseamos para compor a discussão acerca do
encapsulamento construcional de ‘veado ~ viado’ no PB. Como dissemos
brevemente na introdução, apostamos em uma abordagem centrada na
conjugação de dois modelos teóricos pertinentes nos estudos linguísticos:
a Gramática de Construção Baseada no Uso (GCBU) e a ACD.
Apesar de esses dois campos nem sempre serem entrosados em pes-
quisas, a nosso ver, a investigação sobre aspectos pragmático-discursivos
de construções linguísticas pode demonstrar, também, fatores de ordem
ideológica relacionados à seleção de exemplares pelos falantes em dife-
rentes contextos de uso, como demonstram as análises de Pinheiro (2020)
e Neves Jr. (2022). Nesse sentido, coerentes com a perspectiva baseada
no uso, defendemos a seguinte esquematização:

CONSTRUÇÃO (CxN) > PRAGMÁTICA > IDEOLOGIA > MEMÓRIA > REDE ASSOCIATIVA

Essa proposta de interpretação, que articula conceitos fundamentais


da GCBU e da ACD, será explicitada nesta seção, em busca da especi-
ficação do encapsulamento construcional, sobretudo no que se refere a
sua circunscrição no domínio discursivo.
Como sabemos, a GCBU se caracteriza como uma teoria de lingua-
gem pautada no princípio básico de que a competência gramatical, isto é,
nosso conhecimento mais ou menos estável de construções (pares con-
vencionais de forma-sentido), emerge da interação a partir do constante
recrutamento de processos cognitivos gerais que operam ao longo de
nossa experiência sociocultural com a linguagem em diferentes contextos
e eventos de uso (BYBEE, 2010; KEMMER; BARLOW, 2000). Dessa
maneira, os princípios básicos dessa teoria apresentam um programa
cognitivo-funcional, que pode ser assim sumarizado:

142
funcionalismo linguístico: interfaces

1. O conhecimento linguístico (a gramática) equivale à estocagem


mental de um inventário hierárquica e horizontalmente estruturado de
construções linguísticas, que se definem por pareamentos convencio-
nais de forma e significado (CROFT, 2001; CROFT; CRUSE, 2004;
GOLDBERG, 1995, 2006);

II. A emergência desse conhecimento pode ser explicada por habilidades


cognitivas de domínio geral, ou seja, não necessariamente linguísticas
(BYBEE, 2010);

III. A gramática é um componente moldado pela experiência de uso e,


assim sendo, encontra-se em constante reconfiguração devido a pres-
sões estruturais, cognitivas e pragmático-discursivas (BYBEE, 2010;
TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013).

Em vista disso, de acordo com essa proposta teórica, a gramática,


entendida como constructicon, é o inventário de construções linguísticas
de que os falantes dispõem em seu armazenamento cognitivo. Como
tal, mostra-se um sistema permanentemente mutável e sensível ao uso.
Assumir essa postura implica considerar que a representação mental do
conhecimento linguístico se arquiteta em uma rede complexa em que
cada construção se interconecta com outras de modo a construir relações
formais e semânticas, sintáticas e lexicais (DIESSEL, 2019), bem como
que a pragmática e as funções discursivas arroladas às construções têm
papel fundamental na definição da gramática, como apontam Traugott
e Trousdale (2013).
Na literatura construcionista, notamos a defesa teórica consistente
pela definição de “construção” como uma unidade simbólica de forma e
sentido, segundo a qual podemos analisar estruturas de diferentes tipos,
tamanhos e níveis de complexidade. Na proposta de Croft (2001, p. 18),
percebemos um esforço para incluir propriedades funcionais de natureza
semântica, pragmática e discursiva no polo do significado das construções
linguísticas, conforme o esquema a seguir:

143
funcionalismo linguístico: interfaces

Figura 1 – A construção

Vemos, com isso, que os sentidos das construções excedem aquilo


que é materializado puramente pelo aspecto linguístico, na medida em
que, ao abarcar os componentes pragmático-discursivos, levam em
consideração também informações que somente podem ser acessadas
se considerarmos o contexto e os usos de fato. Entretanto, na própria
linguística teórica, a definição de “função” não é encerrada, já que se
caracteriza como metonímia de diferentes acepções que vão depender do
enquadramento sobre o qual se esteja analisando, como debatem Dillinger
(1991) e Garvin (1978).
Por isso, ao entendermos que às propriedades pragmáticas que
compõem o polo de sentido das construções se juntam as questões dis-
cursivas, visualizamos um terreno fértil para a expansão dessa frente de
trabalho no âmbito da GCBU, por meio das contribuições significativas
que outras correntes de pensamento sobre a língua em uso, como a ACD,
fornecem à análise linguístico-discursiva. Ainda, essa defesa epistêmico-
-metodológica fortalece a noção do que estamos aqui chamando de
“encapsulamento construcional”: uma capacidade expansiva, baseada
na noção de memória enriquecida, que denota o grau de refinamento do
conceito de “construção” e que endossa a nossa capacidade, enquanto
falantes, de armazenarmos um número significativo de informações rela-
cionadas aos pares de forma-sentido integrantes de nossa rede associativa.
Por essa razão, optamos por trazer à baila contributos da ACD para
a análise do encapsulamento construcional das formas ‘veado ~ viado’

144
funcionalismo linguístico: interfaces

que apresentaremos na próxima seção, posto que essa corrente entende


a interação verbal como locus da materialização, da prática e dos va-
lores sociais estabelecidos. Assim, comportamentos e ideologias que
perpassam o pensamento social vigente são entendidos como formados
e reformados pela e na linguagem.
Dessa forma, é possível, por exemplo, observarmos tanto questões
culturais e ideológicas presentes nos discursos e materializados em textos,
quanto características e valores de um indivíduo, uma comunidade de
prática e uma sociedade. Isso porque, para a ACD, em uma comunidade
de prática, os sujeitos se constituem à medida que interagem com seus
pares, ou seja, à medida que usam a língua em diferentes contextos e
para diferentes fins. Assim, a consciência e o conhecimento de mundo
resultam de um processo de negociação de sentidos, valores e ideolo-
gias espelhadas na língua e nas múltiplas situações sociocomunicativas
(ORLANDI, 2009).
Nessa perspectiva, segundo Bakhtin (1997), as interações acontecem
em um contexto social e histórico mais amplo, no interior e nos limites
de uma determinada formação, sofrendo as interferências, os controles
e as seleções impostas pela sociedade. Dessa forma, é na linguagem que
as ideologias são produtivas e históricas, podendo ser ratificadas ad ae-
ternum, ou mesmo reconstruídas, a partir de limites novos, emergentes,
conscientemente, ou não, nos grupos sociais. Assim como a GCBU, a
ACD, de modo geral, faz referência a conceitos atinentes, relativos ao
estudo da língua em uso, isto é, à língua além do nível da sentença, como
significado na interação verbal em contextos situacionais e culturais
específicos.
Há de ser feita aqui uma diferença entre o que podemos chamar
de análise NO discurso e análise DO discurso. Embora sejam áreas que
possam se comunicar de diferentes formas, os estudos linguísticos de
abordagem “no discurso” (como o Funcionalismo, a Linguística do Tex-
to, a Sociolinguística etc.) não necessariamente focalizam inicialmente

145
funcionalismo linguístico: interfaces

aspectos culturais, históricos e ideológicos presentes no uso das línguas.


Diferentemente das abordagens de análise “do discurso”, preocupadas
de modo mais direto com a relação ideologia/práticas sociais/linguagem,
as abordagens “no discurso” debruçam-se, ao menos como objetivo pri-
mário, na descrição e no entendimento da aquisição, da arquitetura e do
uso da linguagem como instrumento comunicativo da espécie humana.
Assim, a ACD salienta o uso da língua como prática social e de
performances situadas de atores sociais que cumprem papéis previstos
nas relações sociais e identitárias e que revelam ainda relações de po-
der, desigualdade social e de lutas sociais. O uso da língua é visto nessa
perspectiva como uma questão de “práticas/ações”, e não apenas como
uma organização estrutural, um sistema. Este é o modelo, particularmen-
te desenvolvido por Norman Fairclough (2001), para o que ele chama
de Análise Crítica do Discurso e que pode ser resumida pela seguinte
representação:
Figura 2 – Concepção tridimensional do discurso

Fonte: Fairclough (2001, p. 101)

Entendemos que o esquema de Fairclough para ilustrar o domínio


de uma análise do discurso crítica associa-se, de modo muito direto, ao
polo do sentido exposto anteriormente no esquema de Croft (2001). Po-
demos, dessa forma, desenvolver uma prática observacional crítica sobre
os valores e práticas de dada sociedade através da ACD, que, por sua
vez, poderá apresentar viés mais ou menos crítico para a observação da

146
funcionalismo linguístico: interfaces

interface língua/discurso/práticas sociais, na medida em que averiguamos


as nuances pragmáticas e ideológicas de usos de uma construção. Por
isso, nessa interface, defendemos que o estudo da língua não se separe
do estudo do discurso.
O estudo da língua, na perspectiva dos modelos baseados no uso
(MBU), se refere a padrões de uso da língua em geral: tudo aquilo que
pertence, ou não, a certa comunidade de fala/discursiva. Focaliza, por-
tanto, como a língua reflete práticas e posicionamentos em grupos e é
convencionalmente utilizada, bem como aspectos de ordem pragmática
são reunidos e armazenados cognitivamente.
O estudo do discurso seria uma maneira particular de investigarmos
a forma como indivíduos se posicionam e interpretam o mundo. O dis-
curso é visto como prática comunicativa global que descreve significados
sociais, representações e hábitos que estão para além do texto em si e que
são partilhados pelo senso comum de determinada comunidade discursiva.
Os indivíduos desta comunidade possuem ideias e pensamentos/atitudes
semelhantes, fato que pode marcar fatores identitários por um lado, mas
alavancar questões de preconceitos, por outro.
Por fim, as práticas sociais mediam as estruturas sociais abstratas,
que marcam as crenças de dada sociedade, e os eventos sociais, de ordem
mais concreta. Revelam, assim, o conjunto de crenças daquela socieda-
de: as relações harmônicas e as hegemônicas existentes e reveladas nos
discursos, que, por sua vez, são materializados em textos (orais, escritos
e sinalizados) identificados nas múltiplas ocorrências de eventos sociais
e, conforme defendemos, também em ocorrências de construções espe-
cíficas.
Vale ressaltar, ademais, que diversos estudos no âmbito da Linguís-
tica Cognitiva, uma das “origens” epistemológicas do modelo teórico
da GCBU, já vêm demonstrando a possibilidade e a produtividade de
análises centradas no limiar entre pressupostos cognitivistas e discursivos,
como se verifica em Gonçalves (2014), Silva (2015) e Bernardo e Velozo

147
funcionalismo linguístico: interfaces

(2019). Neste estudo, a partir do cline Construção (CxN) > Pragmática


> Ideologia > Memória > Rede associativa, o qual define o encapsula-
mento construcional, demonstramos a pertinência e a consistência de
uma análise não só construcional, como também discursiva das formas
‘veado ~ viado’, a qual apresentamos a seguir.

Encapsulamento construcional e associações radiais de bases prag-


mático-discursiva e ideológicas

A discussão sobre encapsulamento construcional à qual nos dedica-


mos neste texto aponta para a possibilidade de que informações de base
ideológica estejam incorporadas à pragmática das construções lexicais
que compõem o continuum2 ‘veado ~ viado’ no PB.
Defendemos que tal tese é não apenas plausível, mas que também
evidencia a realidade comunicativa, quando manipulamos linguisti-
camente os itens analisados – via, por exemplo, testes de comutação
simples – e/ou quando fazemos análise dos itens lexicais e seus usos in
loco, ou seja, em seus contextos de uso e as relações sociais, linguísticas
e interacionais em jogo.
A palavra ‘veado’ faz referência ao animal mamífero e herbívoro
que tão bem conhecemos. No reino animal, o veado é presa de outros
animais carnívoros e é também conhecido por ser relativamente dócil e
inofensivo. No campo da ficção, o personagem Bambi, do filme de mesmo
nome, não é diferente. No enredo, o animal é retratado sob o rótulo de
dócil e sujeito às dificuldades advindas de sua orfandade.
Uma associação cultural facilmente identificável na fala de brasilei-
ros ocorre entre a suposta fragilidade deste animal e o universo feminino.
De fato, a associação entre o ideal de feminino e o conceito de fragilidade
permeia o discurso machista, default e facilmente identificado em dife-
2 Usamos o termo ‘continuum’ para fazer referência à gama de possibilidades de usos de uma
categoria maior, aqui referida como ‘veado’. No continuum encontram-se desde o termo
base cujo referente no mundo extralinguístico é o animal até expressões idiomáticas de carga
identitária como veremos ao longo do capítulo.

148
funcionalismo linguístico: interfaces

rentes situações discursivas em PB. Daí decorre a associação ‘veado’ >


fragilidade > feminino e de onde também decorre a associação entre o
termo ‘veado’ para a identificação de pessoas homoafetivas, ou que, de
alguma forma, se afastem do ideal masculino que em nada se aproximaria,
segundo tal construção cultural, à fragilidade aqui referida.
Um ponto crítico aqui se coloca. As associações citadas, entre ‘ve-
ado’ > fragilidade > feminino > homoafetividade, poderiam ser tratadas,
segundo estudos mais tradicionais sobre pragmática, como questões de
implicatura conversacional ou aspectos diversos que, de alguma forma,
poderiam transparecer que tais usos estariam à margem daquilo que se
entende por gramática, cognitivamente falando. Tal interpretação seria,
na verdade, bem possível e provavelmente está na base, entretanto, do que
aqui defendemos: a hipótese de que para além de questões contextuais,
certas informações de base ideológica convencionalizam-se como parte
do conhecimento construcional, via frequência e espraiamento de uso,
em suas comunidades linguísticas.
Neste sentido, segundo a lógica da Semântica de Frames, para a qual
o frame pode ser definido como sistema de conceitos relacionados cuja
interpretação depende de toda a estrutura na qual se encaixam (FILL-
MORE, 1982, p. 111), acessamos dois princípios caros à GC: a) o de
que o conhecimento gramatical está organizado em uma rede associativa
construcional e b) o de que o papel da frequência de uso e da memória rica
explicam a possibilidade de armazenamento do conhecimento redundante
a respeito desses itens e que, em última instância, levam à associação
‘veado ~ viado’ > fragilidade > feminino > homoafetividade.
A convencionalização e o forte entrincheiramento do item lexical
‘veado ~ viado’ ao sentido de homoafetividade é facilmente verificável
na fala ordinária em todo Brasil e em buscas simples de textos informais
na internet. Tal convencionalização reflete o caráter ideológico, de base
heteronormativo e machista, que permeia estruturalmente as falas e as
práticas discursivas no Brasil. Assim, assumimos aqui que o termo em

149
funcionalismo linguístico: interfaces

foco é uma construção no PB, seguindo a definição de Goldberg (1995)


e de tantos outros autores construcionistas, mas também que, muito além
de apenas apresentar sentido semântico-referencial associado à homoafe-
tividade, apresenta em si toda a carga pejorativa e preconceituosa refletida
nas práticas sociais brasileiras, como vemos nos trechos retirados de
matérias, posts e memes de internet selecionados para nossa discussão.
Ao passo que tal convencionalização é identificada em diferentes
práticas discursivas em todo o território brasileiro, potencialmente, ocorre
também desbotamento semântico e pragmático de determinados itens em
decorrência da frequência de uso das mudanças sociais que impactam
a gramática. Tal como defendem os diversos MBU, defendemos que o
mesmo termo (‘veado ~ viado’), aqui referido como construção encap-
suladora de carga ideológica de base machista-heteronormativa, pode
apresentar-se em outros contextos de uso com menor atribuição de carga
ideológica pejorativa ou mesmo nula.
O que retratamos em nossa discussão, portanto, reflete várias outras
discussões relevantes para os estudos funcionalistas de base construcio-
nista, como a questão não apenas da representação gramatical, como
também da mudança linguística em si, do papel do processo cognitivo de
domínio geral da memória enriquecida, entre outros. No caso específico
dos usos em questão, associamos à discussão teórica as contribuições da
ACD para a compreensão sobre a forma como as ideologias impactam, via
experiência com o uso da língua, no limite refinado de armazenamento,
a representação cognitiva da gramática.
Na sequência, apresentamos a coletânea de dados retirados de bus-
cas na internet e que mostram como atualmente encontramos no PB um
conjunto de itens que formam o que chamamos de continuum ‘veado
~ viado’ e que evidenciam não apenas a questão do encapsulamento
construcional de base pragmático-ideológica, como também mostram
que, a depender do grupo de falantes em jogo, podem emergir outras
construções lexicais, de mesma forma (‘veado ~ viado’), mas de menor

150
funcionalismo linguístico: interfaces

carga ideológica de pejoratividade, revelando novos armazenamentos,


novas convencionalizações e novas construções.
Defendemos que tratamos de construções diversas identificadas no
PB, não apenas porque apresentam características diferenciadas acerca da
carga ideológica pejorativa aqui referenciada, mas também por apresen-
tarem distribuição sintática e características fonológicas e morfológicas
específicas. Apoiamo-nos, portanto, em Traugott e Trousdale (2013) e
em seu modelo de construcionalização, para a explicação de reorganiza-
ções do constructicon: a mudança linguística consiste em alterações no
comportamento formal e funcional dos pareamentos, o que defendemos
ocorrer nos usos de ‘veado ~ viado’ verificados a partir de nossa análise.
As convencionalizações associadas a cada uso do continuum ‘veado
~ viado’ apresentam, no plano funcional pragmático, diferentes graus de
carga ideológica pejorativa associados a diferentes funções comunicativas
e diferentes propriedades formais. Nesse sentido, cada instanciação aqui
apresentada refere-se a uma construção lexical específica, associada a
outras, em uma mesma rede construcional de base lexical, ainda relativa
aos pareamentos ligados às semânticas de fragilidade e do feminino,
referidas no início de nossa discussão.
O primeiro uso que ilustra nossa discussão encontra-se a seguir
e mostra como, a despeito do próprio contexto de uso, de conteúdo
violento e preconceituoso, o item ‘viado’ em si carrega sozinho forte
carga ideológica pejorativa. Para sustentação de nossa argumentação,
combinamos duas formas de análise do item em questão. Combinamos,
seguindo a tradição funcionalista de análise de dados, a metodologia de
observação do uso em situação real de comunicação com a aplicação de
um teste linguístico de comutação simples.
O post em questão foi veiculado no dia anterior ao da posse de um
ex-presidente da república, que era aberta e assumidamente homofó-
bico. No contexto, um de seus eleitores traz à tona, de forma jocosa, a
associação da eleição do referido chefe do executivo e a possibilidade de

151
funcionalismo linguístico: interfaces

extermínio do grupo social ali referido: a comunidade LGBTQIAP+, mais


especificamente, homens gays. O ponto que particularmente queremos
chamar atenção é o fato de que se a mesma frase, violenta e preconcei-
tuosa, tivesse sido promovida via uso do item lexical ‘gay’, de mesma
base semântica, estaria perdida a carga pragmática de pejoratividade aqui
denunciada no item ‘viado’. Em outras palavras, pelo contexto de uso e
pelo texto de comutação, é possível argumentar que, para além do sentido
referencial associado à homoafetividade, está encapsulada na palavra a
informação de carga ideológica pejorativa, existente em práticas sociais
no Brasil, acerca da população em questão.
A Figura 3 ilustra a discussão em questão:
Figura 3 – Carga ideológica pejorativa forte

Fonte: https://observatoriog.bol.uol.com.br/noticias/professora-de-pilates-causa-
apos-tweets-homofobicos

Embora o dado seja de língua escrita, é possível argumentar a favor


de uma prosódia própria associada ao uso e que identifica, no âmbito da
forma, sua emancipação como construção gramatical no PB.
O segundo uso com o termo ‘viado’ que abordamos aqui apresenta
ainda forte sentido pejorativo incorporado à palavra, porém, a carga ide-

152
funcionalismo linguístico: interfaces

ológica indicadora do machismo estrutural encontra-se mitigada, aspecto


decorrente não apenas pelo contexto de uso em si.
O uso da palavra ‘viadinho’ sugere a computação de duas cons-
truções de papel pragmático semelhantes, reforçando o sentido final
veiculado. A construção [viado], de carga ideológica pejorativa média,
funda-se com a construção morfológica [___ inho], que possui papel de
relativizador de carga pejorativa, como podemos observar no teste de
comutação apresentado.
O dado ocorre em uma conversa de grupo de aplicativo de mensa-
gens, onde surge o termo ‘viadinho’, o qual espelha ao mesmo tempo,
por parte do locutor, certa intenção de ofensa, porém flexibilizada, pro-
vavelmente, pela relação pessoal e também hierárquica existente entre
o locutor e o referente em questão.
A computação, no sintagma ‘Mensagem do viadinho’, por ‘Mensa-
gem do viado’, por ‘Mensagem do gay’ ou ‘Mensagem da bicha’ – todos
termos semanticamente compatíveis com o sentido do SN original – mos-
tra como a palavra viado, assim como todas as outras, nesse contexto
apresenta menor carga pejorativa ideológica, embora marque, claramente,
forte expressão de preconceito e machismo estrutural. O mesmo ocorre
com a construção morfológica [___ inho]: a computação, no sintagma
‘Mensagem do viadinho’, por ‘Mensagem do gayzinho’ ou ‘Mensagem
do babaquinha’ reforçam seu papel de flexibilização da carga pejorativa
do SN preenchedor do slot em questão. Observemos:

153
funcionalismo linguístico: interfaces

Figura 4 – Carga ideológica pejorativa média

Fonte: https://twitter.com/gabrieelbiondo/status/1280897924889747456

No plano da forma, argumentamos também que a força prosódica


associada ao uso, no âmbito do uso oral obviamente, seria específico e
diferenciado do uso anterior analisado.
O terceiro uso aqui destacado revela um processo de mudança
recente e bem recorrente no PB sincrônico: o uso do termo viado com
desbotamento semântico-pragmático. Tal uso indica a desassociação di-
reta do termo com a carga ideológica machista identificada nos exemplos
anteriores e está associado à função de vocativo, além de apresentar, no
nível da oralidade, características prosódicas próprias. O conjunto de
informações linguísticas de base formal e funcional dos usos indica a
emergência de um pareamento próprio no constructicon do PB.
No exemplo aqui destacado, observa-se o uso do termo ‘viado’
na flexão de feminino, o que reforça a hipótese de se tratar de um termo
com maior grau de desbotamento semântico-pragmático em relação ao

154
funcionalismo linguístico: interfaces

termo ‘viado’ que espelha a relação ‘veado’ > fragilidade > feminino >
homoafetividade já apontada:
Figura 5 – Carga ideológica pejorativa baixa

Fonte: https://twitter.com/23041999c/status/1643428375149551623?s=12&t=X4dp9J
pV1gFJKkoIkJaqgQ

Adotando princípios da ACD, não podemos descartar a hipótese


de que, mesmo com alto grau de desbotamento semântico-pragmático,
o termo ainda carregue a base preconceituosa e machista de seu uso ori-
ginal. Não apenas concordamos com a questão como acreditamos que
princípios cognitivistas básicos, e caros à GC, como a própria concepção
de organização em rede associativa do conhecimento linguístico e o papel
da memória rica, explicam o armazenamento redundante das informações
linguísticas em diferentes pareamentos organizados em rede.
O quarto uso identificado em nossas buscas também revela eman-
cipação da construção lexical ‘viado’, identificando maior grau de idio-
maticidade associado à forte carga ideológica identitária.
O termo ‘viado’ passa, ao mesmo passo em que ocorriam os usos
anteriores apontados, a ser usado por membros da comunidade LGB-

155
funcionalismo linguístico: interfaces

TQIAP+ como vocativo, o que acreditamos, obviamente, estar associado


ao uso do termo ‘viada’ do exemplo anterior. O fato, entretanto, de ser
um termo que emerge como vocativo no cerne da comunidade atingida
pelas forças preconceituosas do machismo estrutural faz com que ele
ganhe forte carga idiomática de base identitária e, de certo modo, de luta
no cenário das relações de poder.
Usos como as expressões ‘Arrasou, viado’ ou ‘Viaaaado’ são decor-
rentes do vocativo base aqui referido. Por serem, todos eles, associados
a funções comunicativas mais ou menos específicas e por apresentarem
características formais próprias, defendemos que sejam expressões idio-
máticas específicas, emancipadas no constructicon e ao mesmo tempo
associadas entre si, particularmente, pelo viés pragmático, pelo atributo
de carga ideológica identitária.
Nesse contexto o desbotamento semântico-pragmático que retra-
tamos no uso vocativo anterior, acerca da relação ‘veado’ > fragilidade
> feminino > homoafetividade, fica ainda mais evidente, em função
da emergência do uso com a função pragmática de base identitária. Os
exemplos abaixo ilustram a discussão:
Figura 6 – Carga ideológica identitária forte

Fonte: https://br.pinterest.com/pin/717479784373746083/ e https://www.facebook.


com/arrasouviadocamisetas/

156
funcionalismo linguístico: interfaces

Os dados aqui apresentados neste capítulo foram retirados e são


facilmente encontrados em buscas rápidas do site de buscas google.com.
br e de redes sociais, como o Twitter, o Facebook e o Instagram. São
dados sincrônicos e evidenciam de modo muito particular a noção de
gramática como rede associativa de pareamentos, defendida pela GC,
assim como permitem a discussão sobre aspectos ideológicos relacio-
nados ao uso da língua.
Em particular, os dados permitem a discussão e a investigação mais
aprofundada sobre a relação entre a representação cognitiva da gramática
e os aspectos ideológicos estruturantes e estruturados nas comunidades
de prática.
Nesse sentido, a investigação sobre a forma como as construções
lexicais que compõem o continuum ‘veado ~ viado’ no PB lança luz sobre
essa discussão, evidenciando ainda aspectos referentes ao dinamismo
da mudança linguística, via construcionalização, ao papel da memória
rica como processo cognitivo associado ao armazenamento associativo
e redundante das informações, ao efeito de sentido das construções e ao
armazenamento refinado de informações linguísticas de base também
ideológica entre outros.
Inicialmente, vimos como a relação entre as noções de fragilidade
> feminino > veado (animal) impactam o uso do termo ‘viado’ em PB,
termo que carrega também um conjunto de informações de base prag-
mática e ideológica, caracterizando o termo como uma forma referencial
pejorativa e preconceituosa direcionada a homens gays. No universo
social em que o machismo estrutural regula em boa dose os conflitos
sociais e de poder, a associação do feminino ao homoafetivo privilegia
aqueles identificados como homens cis héteros.
A língua reflete tais relações sociais de diferentes formas e na palavra
‘viado’, particularmente em sua conotação de atributo pejorativo de alto
grau, que ela evidencia as nuances da estrutura social refletidas na língua.

157
funcionalismo linguístico: interfaces

Os diferentes graus de atributo de pejoratividade identificados em


usos diversos e coocorrentes no PB revelam como efeitos relativos à
frequência de uso em interação com fatores sociais – como idade, escola-
ridade, região etc. – podem levar a efeitos de desbotamentos semânticos
e pragmáticos do item, que passa a ser usado de forma diferenciada, tanto
funcionalmente como em termos de forma, evidenciando a emergência
de novas construções lexicais, novos pareamentos no PB sincrônico. A
coocorrência de formas evidencia ainda o dinamismo da estrutura gra-
matical, que, por processos constantes e diversos de construcionalização,
passa a se configurar em uma rede diversificada de usos do termo ‘viado’,
manifestado em um contínuo de possibilidades de usos e de expressões
mais idiomáticas e que carregam, em diferentes graus, cargas ideológicas,
estabelecidas e novas relativas à pejoratividade do termo.
O grau máximo de desbotamento semântico-pragmático referente
à relação fragilidade > feminino > veado (animal) > homoafetividade
encontra-se, como visto, em usos identificados no seio do grupo social
aqui referido: o de homens gays. O uso do termo ‘viado’ de função vo-
cativa e de expressões idiomáticas diversas evidencia na contemporanei-
dade do PB forte marca identitária e um pouco mais distante do sentido
pejorativo, em diferentes graus, identificados também sincronicamente
nesta língua.
O posicionamento identitário associado aos referidos usos também
reflete o conceito de encapsulamento construcional, a que se dedicou ex-
plorar o presente capítulo. Segundo princípios relevantes da GCBU, ques-
tões como o papel da memória rica e da possibilidade de armazenamento
de múltiplas construções redundantes e em associação por características
formais e funcionais definem a possibilidade de argumentação a favor do
refinamento do armazenamento das informações linguísticas no âmbito
da construção, seja no que tange a características formais ou funcionais.
Nesse sentido, a incorporação de informações de base ideológica é
absolutamente possível para o modelo gramatical em voga, o que tam-

158
funcionalismo linguístico: interfaces

bém ratifica princípios dos estudos da linguagem, de base discursiva-


-ideológica, como a ACD, acerca da relação estruturante e estruturada
entre língua e sociedade. A discussão aqui apresentada mostra, então, a
importância de abordagens de análise linguística baseadas ‘no discurso’,
como fazem pesquisadores do campo da linguística funcional-cognitiva,
com abordagens de análise linguística ‘do discurso’. Em um ciclo vir-
tuoso, esse conjunto de olhares contribui para a compreensão holística
do papel do uso e da experiência com a língua (incluindo-se o que há de
histórico e ideológico no social) para a compreensão sobre o desenvol-
vimento e armazenamento rico e complexo da representação gramatical.
Defendemos que a visão de arquitetura gramatical emergente do uso, de
base associativa e redundante, abarca tais discussões, apresentando-se
como um modelo mais completo sobre a natureza global do conhecimento
linguístico.
Apresentamos na sequência uma representação que resume os pontos
teóricos aqui desenvolvidos. O esquema se destaca, em primeiro lugar, por
se tratar de uma tentativa de representação do conhecimento gramatical,
com foco nas relações em rede de um conjunto de construções lexicais
coocorrentes em uma mesma sincronia e que compartilham, em maior
ou menor grau, de características formais e/ou funcionais.
Em segundo lugar, o esquema se destaca por enfatizar as caracte-
rísticas informacionais de base ideológica das construções do continuum
‘veado ~ viado’, organizadas em círculos numéricos distintos nos quais se
destacam tais informações, da mesma forma que se organizam refletindo
a herança semântico-pragmática de sentidos ideológicos compartilhada
pelos itens em rede.
Numerados de 1 a 5, os círculos representam, respectivamente, os
usos destacados ao longo da presente discussão. Chamamos atenção
para o círculo 5, que abarca não apenas o item ‘viado’ de papel sintático
vocativo e valor identitário, mas também expressões idiomáticas, recen-
temente emergentes no PB:

159
funcionalismo linguístico: interfaces

Figura 7 – Rede Construcional do continuum ‘veado ~ viado’

Fonte: Autoral
Considerações finais

O objeto principal de nossa discussão consistiu no aprofundamento


sobre as questões relativas ao grau de refinamento e à natureza das in-
formações potencialmente armazenadas no chamado ‘polo de sentido’
da construção (CROFT, 2001; GOLDBERG, 1995, 2006; TRAUGOTT;
TROUSDALE, 2013). Nesse sentido, apoiamo-nos na hipótese de que
informações referentes a aspectos ideológicos, estruturantes e estrutura-
dos no âmbito das sociedades, poderiam configurar como parte integrante

160
funcionalismo linguístico: interfaces

do sentido das construções, revelando alto grau de refinamento de ar-


mazenamento de informações associadas, principalmente, à pragmática.
Aportes teóricos relativos à Análise do Discurso, como a ACD, pas-
sam, desta forma, a dialogar com o modelo da GC. Se este preocupa-se
por um lado em mapear as informações formais e funcionais constituintes
do elemento gramatical fundamental, a construção, aqueles voltam-se
para estudos da linguagem focalizadores, entre tantos aspectos, de marcas
linguísticas diversas que espelham as relações sociais, suas (as)simetrias,
traços culturais, relações de poder etc.
O rótulo ‘encapsulamento construcional’ é apresentado aqui, portan-
to, na tentativa de que evidencie justamente a possibilidade de ampla gama
de informações de base semântica, pragmática e discursivo-ideológica
candidatas à composição da totalidade da base de sentido dos pareamen-
tos. Para tal feito, adotam-se conceitos como o do processo cognitivo
de domínio geral da memória rica, a hipótese de organização gramatical
baseada em rede associativa de traços formais e/ou funcionais compar-
tilhados e de que a língua é constantemente emergente do uso adotado.
Ademais de fomentar a discussão sobre o grau de armazenamento
das informações de sentido em uma construção, incluindo-se as de base
ideológica, o capítulo visa a proporcionar reflexões sobre a aquisição da
linguagem e a mudança linguística, já que trata de discussões de fenôme-
nos recentemente percebidos no PB e que evidenciam a associação entre
o dinamismo da gramática e o processo contínuo da aquisição.

Referências

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163
funcionalismo linguístico: interfaces

POLISSEMIA, METÁFORA E CONECTORES ADVERBIAIS

Taísa Peres de Oliveira


(UFMS)

Introdução

No quadro dos Modelos Baseados no Uso, a gramática é concebida


como um sistema de representação conceitual organizado em esquemas
agrupados e interligados por meio de elos múltiplos, também chamada
rede construcional (BYBEE, 2010; CROFT, 2001; GOLDBERG, 2006,
2019; LANGACKER, 2008; TRAUGOTT; TROUSDALE, 2021 [2013]).
Partindo desse referencial, neste capítulo, pretendo explorar a rede cons-
trucional a partir de dois tipos de elos, nem sempre muito discutidos:
os elos de polissemia que, grosso modo, ligam construções com mesma
especificação sintática, mas diferentes subespecificações semânticas; e os
elos metafóricos, que ligam extensões metafóricas de uma construção a
um esquema mais geral. Ainda, pretendo também explorar as motivações
cognitivas que organizam e motivam esses elos na organização da rede
construcional dos conectores adverbiais. Assumo, para essa tarefa, um
recorte bem delimitado: considero aqui apenas as construções conectoras
adverbiais complexas que podem atuar em diferentes domínios semân-
ticos, tais como se vê nos exemplos abaixo:

165
funcionalismo linguístico: interfaces

(01) Desde que assumi o governo pensei que seria necessário realizar
reformas estruturais na economia italiana. (19Or:Br:Intrv:ISP) TEMPO

(02) Essas conseqüências são previstas desde que eles façam eviden-
temente um um um exame pré-nupcial ou pré-natal (19Or:Br:LF:Recf)
CONDIÇÃO

Nas ocorrências, o mesmo conector adverbial pode indicar especifi-


cações semânticas distintas: tempo e condição. Do mesmo modo, muitos
outros conectores podem atuar em diferentes zonas da adverbialidade,
como atestam trabalhos diversos como, por exemplo, Hirata-Vale (2005),
Neves (2012), Oliveira (2014, 2020), Oliveira e Clemente (no prelo).
Exemplos como “desde que” evidenciam a natureza multidimensional
do significado e mostram como esses significados estão integrados a
uma mesma dimensão funcional e cognitivo-perceptiva que pode ser
capturada em termos de um mapeamento semântico.
Conectores adverbiais emergem, via de regra, por meio do processo
da construcionalização gramatical (CEZARIO et al., 2015; GONÇAL-
VES; OLIVEIRA, 2020; OLIVEIRA, 2018, 2019; OLIVEIRA; CLE-
MENTE, no prelo; TRAUGOTT, TROUSDALE, 2021 [2013]), em que
formas de conteúdo, quando usadas em determinados contextos, sofrem
pequenas mudanças que levam à emergência de funções procedurais.
Processos inferenciais, metáfora, metonímia e subjetivização concorrem
para que essas mudanças aconteçam e novos conectores se formem, como
atestam diversos trabalhos sobre emergência de conectores adverbiais em
português (CEZARIO et al., 2015; GONÇALVES; OLIVEIRA, 2020;
LONGHIN-THOMAZI, 2003; OLIVEIRA, 2008, 2018, 2019, 2014;
OLIVEIRA; CLEMENTE, no prelo; PAIVA, 2001).
No contexto do estudo da emergência de conectores adverbiais,
uma questão para a qual tenho chamado atenção em minhas análises
é que, muitas vezes, nem sempre a especialização dos conectores em
determinado domínio semântico será o resultado final do processo de

166
funcionalismo linguístico: interfaces

mudança, como argumentei em Oliveira (2014, 2019). Como apontei


nessas análises, a mudança principal é aquela em que a forma fonte sofre
mudanças e passa a assumir a função de ligar orações, integrando essa
nova construção à rede dos conectores adverbiais. A partir daí, muitos
conectores adverbiais se estabilizam com múltiplas significações, o que
se nota especialmente nos conectores adverbiais assentados sobre a base
da causalidade. Diante desse contexto, meu objetivo aqui é explorar o
imbricado domínio semântico em que se encontram os conectores ‘dado
que’, ‘uma vez que’ e ‘desde que’ que, no, português podem atuar na
especificação da causalidade, da temporalidade, da condicionalidade
e da concessividade. A análise aqui vai na mesma direção de Oliveira
(2014), defendendo que nem sempre os conectores se especializam e
que esse “emaranhado” de significações é motivado por determinações
cognitivo-perceptivas, razão pela qual essas relações são organizadas em
termos dos elos de polissemia. Isso reflete a própria visão da aborda-
gem construcional, de que um conjunto de construções não consiste em
estruturas independentes, mas formam uma rede altamente estruturada
de informações que exibem estruturas prototípicas a partir das quais se
formam redes de associações.
Para cumprir esta análise, este capítulo está organizado em três
partes: na primeira seção, apresento as bases teóricas da análise; na
segunda seção, retomo a zona da causalidade indicada pelos conectores
adverbiais; na seção seguinte, apresento um modelo de análise que ma-
peia o significado dos conectores em questão na rede construcional e,
por fim, apresento as considerações finais e implicações dessa análise.

Os Modelos Baseados no Uso

O rótulo Modelos Baseados no Uso (MBU) abriga um conjunto


de teorias que, em essência, assumem como postulado principal o en-
tendimento de que a estrutura linguística é moldada pela experiência
do usuário da língua, refletindo habilidades cognitivas que atuam em

167
funcionalismo linguístico: interfaces

outros sistemas do conhecimento humano. Embora se apresentem como


suportes epistemológicos distintos, indo em busca de metas e respostas
diferentes, as diferentes teorias assumem alguns princípios mais básicos
que perpassam qualquer trabalho de natureza assumidamente baseada no
uso, aqui resumidos segundo Balow e Kemmer (2000):

a. Importância da frequência de uso: a rotinização de uma unidade lin-


guística afeta seu processamento; portanto, frequência de uso deve ser
considerada como resultado e também força de moldagem do sistema;

b. Compreensão e produção integradas: eventos de uso estruturam


o funcionamento do sistema linguístico, não havendo distinção entre
estrutura e processamento mental;

c. Foco na experiência durante a aquisição da linguagem: a aquisição


da linguagem ocorre a partir da abstração de padrões e regularidades no
evento de uso, não havendo necessidade para postular estruturas inatas;

d. Emergência das representações linguísticas: unidades linguísticas


não são “estocadas”, estruturas fixas e prontas, ao contrário, são sem-
pre emergentes a partir de rotinas cognitivas de padrões mentalmente
acionados pelo evento de uso da língua;

e. Importância de dados de uso: teorias linguísticas devem se pautar no


que as pessoas efetivamente produzem e entendem, e não em intuições;

f. Uso, variação sincrônica e mudança diacrônica: quanto mais inte-


ragem, mais os usuários tendem à padronização da variação; o uso é
locus de mudança, e o usuário, fonte de micromudanças diacrônicas
em seu próprio sistema e no de outros; em cada estágio da mudança, as
mesmas motivações operam, afetando atos de percepção e de produção;

g. Sistema linguístico e processos cognitivos gerais: o sistema linguís-


tico é organizado por habilidades cognitivas gerais, porque a estrutura
linguística é parte de estruturas conceituais mais amplas;

168
funcionalismo linguístico: interfaces

h. Papel do contexto no acionamento do sistema linguístico: o signifi-


cado não está na estrutura em si; contextos de uso influenciam todos os
aspectos da língua e revelam a complexa interação com representações
cognitivas abstraídas da experiência.

Subordinados a esses princípios, os MBU assumem a construção


como unidade básica de análise, concebida como o pareamento con-
vencional entre forma e significado, tal como representada na Figura 1.
A construção consiste numa estrutura linguística em que, no plano da
forma, estão representadas as propriedades fonológicas, morfológicas e
sintáticas; e, no plano do significado, estão representados todos os as-
pectos convencionalizados da função de uma construção, incluindo seus
traços semânticos e, também, propriedades da situação, do discurso e do
contexto pragmático da interação verbal. Desse modo, qualquer unidade
da língua é analisada como construção, desde as unidades substantivas
e especificadas (como substantivos, verbos etc.), até padrões e regula-
ridades mais abstratos (padrões de ordenação de constituintes, padrões
de formação de palavras etc.).
Figura 1 – A construção

Fonte: Adaptado de Croft (2001, p. 18)

A gramática é concebida como a representação cognitiva de uma


rede de construções organizada hierarquicamente em diferentes níveis
de abstração e generalização. Na rede, cada construção consiste em um

169
funcionalismo linguístico: interfaces

nó que se liga a outros nós por meio de elos diversos, de tal modo que
a língua pode ser pensada como uma grande rede na qual não existem
construções isoladas, estocadas, mas interligadas direta ou indiretamente,
como se representa na Figura 2, de Langacker:
Figura 2 – Rede conceitual

Fonte: Adaptado de Langacker (2008, p. 226)

Na rede, as relações entre construções são modeladas por meio de


elos taxonômicos que possibilitam compreender, em termos do grau de
abstração e generalização, em que ponto da rede cada construção ou nó
está; e elos de especificação, que associam diferentes especificações
semânticas do sentido de uma construção a um esquema maior. Cabe
esclarecer que o processo de generalização se dá numa ordem top-down,
assumindo que a rede estoca os detalhes relevantes a partir da experiência
dos usuários da língua, organizados em termos de princípios de catego-
rização (LANGACKER, 2008). Aqui, assumo a noção de rede tal como
proposta em Goldberg (2006), que postula um sistema conceitual em que
construções se ligam por elos de herança, de natureza taxonômica e elos
relacionais, que capturam especificações de sentido.
Ao ligar verticalmente construções com diferentes níveis de abstra-
ção, os elos de herança consistem numa característica fundamental das
redes taxonômicas, em especial na Gramática de Construções. Elos de
herança permitem que generalizações mais abstratas sejam capturadas

170
funcionalismo linguístico: interfaces

por esquemas analisados em níveis hierarquicamente superiores e que


são herdadas por outras construções em níveis mais baixos da rede. Ao
mesmo tempo, as sub-regularidades são capturadas pela postulação de
subesquemas em vários pontos intermediários dessa hierarquia taxonô-
mica. Considerando a rede dos conectores complexos, por exemplo, o
grau mais alto de abstração é analisado no nível do esquema [X CONJ],
especificado por microconstruções como [exceto se], [ainda que], [desde
que]. Especificações intermediárias são capturadas por subesquemas
como [ADV SE], [ADV QUE] e [PREP QUE], que capturam proprieda-
des de forma e significado do esquema em uma construção parcialmente
especificada, como ilustrado pela Figura 3:
Figura 3 – Rede de conectores

Fonte: Autoral

A rede taxonômica captura o processo de generalização, que se dá


numa ordem top-down, assumindo que a rede estoca os detalhes rele-
vantes a partir da experiência dos usuários da língua, organizados em
termos de princípios de categorização (LANGACKER, 2008). As redes
são, assim, o resultado da categorização em que tanto as generalizações
quanto as instâncias mais específicas são armazenadas. É por meio dos
elos que as construções, ou nós, vão se associando em famílias e agrupa-
mentos com diferentes graus de acessibilidade e fixação. Exemplares de
diferentes categorias conceituais podem participar de uma mesma rede

171
funcionalismo linguístico: interfaces

por meio do compartilhamento de propriedades e traços de forma ou de


significado e, assim, se ligam uns aos outros, numa rede ampla, em que
nenhum nó está isolado.
Construções se ligam também por meio dos elos relacionais, que
subespecificam tipos de relações entre construções, e podem ser de
polissemia, metáfora, instância e subparte. Elos de subparte especifi-
cam construções como parte de uma construção maior. Por exemplo, a
construção de movimento causado é parte do esquema de movimento
intransitivo. Os elos de instância ligam uma construção particular como
um caso diferenciado dentro de um esquema. Um exemplo é a condi-
cional “se não me engano”, tipo particular do esquema da construção
condicional. Aqui, interessam, mais especificamente, os elos de metáfora
e os de polissemia.
Elos de extensão metafórica ligam construções que resultam de
projeções metafóricas à construção básica como, por exemplo, no par
de exemplos em (03)-(04). Autores como Traugott e Trousdale (2021),
argumentam que, nesses casos, tem-se a noção semântica de “estado”
sendo interpretada a partir da noção “espaço”, que é mais básico e mais
concreto. Como resultado, as construções resultativas, como em (04),
consistem em extensões metafóricas das construções com movimento
causado, como (03):

(03) Ela levou ele à escola. (Sentido literal)

(04) Ela levou ele à loucura. (Sentido metafórico)

Os elos de polissemia associam subtipos de construções que apre-


sentam as mesmas especificações sintáticas e especificações semânticas
distintas, porém relacionadas. Assim, elos de polissemia ligam o sentido
prototípico de um esquema a suas extensões codificadas em subesquemas
em níveis hierarquicamente inferiores na rede. Por exemplo, Furtado da
Cunha (2017), analisa as construções de movimento causado, cujo sentido

172
funcionalismo linguístico: interfaces

prototípico é descrito em ‘X causa Y mover-se para Z’, que apresenta


extensões dependendo da natureza do movimento, envolvendo classes
de verbos similares que indicam se o movimento é real ou pretendido,
permitido ou proibido:

(05) … foram dormir tarde né … que a luz do quarto tava acesa e [a mulher]
mandou a menina pro quarto dela e ela foi dormir né … (FURTADO DA
CUNHA, 2017, p. 121)

(06) … o pessoal fala “pega o papel branco” e tal… “prende ele na pranche-
ta…” FURTADO DA CUNHA, 2017, p. 121)

Segundo autora, a construção em (06), com o verbo ‘prender’ cor-


responde ao sentido de ‘X impede Y de mover-se para Z’, implicando a
imposição de uma barreira para o tema, que é obrigado a permanecer em
um lugar. Esse sentido está vinculado à semântica das construções com
movimento causado, cujo sentido prototípico é ‘X causa Y mover-se para
Z’, exemplificado em (05). A construção em (06) herda o esquema de
construção sintática do protótipo (exemplificado em (05)), mas atualiza
extensões desse sentido ao sancionar classes verbais específicas.
O modelo de organização da gramática em redes tem se mostrado
uma ferramenta bastante produtiva para explicar a organização cognitiva
de categorias e construções, permitindo que tanto generalizações mais
amplas quanto padrões mais limitados sejam totalmente e igualmente
analisados. É exatamente nesse contexto que desenvolvo a análise aqui
apresentada: considerando que conectores adverbiais apresentam valo-
res múltiplos, cognitivamente integrados, é meu objetivo aqui discutir
como tratar essa questão a partir do modelo de redes da abordagem
construcional.

173
funcionalismo linguístico: interfaces

Conectores adverbiais na zona causalidade

O rótulo conector adverbial abriga um conjunto de construções,


no geral complexas, que compartilham a função principal de indicar
uma especificação semântica entre duas orações, geralmente finitas, e
assumem, como propriedades morfossintáticas, a posição fixa à margem
da oração e a invariabilidade de forma.
Como demonstram trabalhos diversos, a classe dos conectores adver-
biais é bem maior e mais variada do que supunha o pensamento tradicional
(CEZARIO et al., 2015; GONÇALVES; OLIVEIRA, 2020; LONGHIN-
-THOMAZI, 2003; OLIVEIRA, 2008, 2018, 2019, 2014; OLIVEIRA;
CLEMENTE, no prelo; PAIVA, 2001). Levando em conta a instabilidade
própria da gramática e, em última instância, das categorias, muitas constru-
ções, em contextos específicos, atuam como conectores adverbiais. Numa
abordagem construcional, como a que assumo aqui, essas construções são
consideradas a partir de uma generalização hierarquizada, que começa pelas
instâncias de uso, a partir das quais falantes abstraem propriedades de forma
e significado (tomado em sentido mais amplo), agrupadas em esquemas
cada vez mais gerais. Exemplifico um recorte dessa rede no Quadro 1:
Quadro 1 – Esquemas construcionais conectores adverbiais

dado que, visto que, posto que, supondo que,


[V QUE]
considerando que
contanto que, ainda que, logo que, antes que,
[ADV QUE]
depois que, sempre que
[PREP QUE] desde que, sem que, para que
[ADV SE] somente se, exceto se, só se, mesmo se
[PREP (DET) N PREP QUE] em caso de, no caso de, por causa de
[PREP DET N SE] no caso se
[X CONJ]
na condição de que, na eventualidade de que, no
[PREP DET N PREP QUE]
momento em que, na hora em que
[PREP NEG COP QUE] a não ser que
[PREP ADV QUE] a menos que

Fonte: Autoral

174
funcionalismo linguístico: interfaces

O quadro deixa evidente uma consequência natural do uso linguís-


tico: o encaminhamento de novas funções para serem acomodadas pelo
sistema da língua, revelando uma tendência da analogização, processo
por meio do qual novas construções emergem na língua a partir de (sub)
esquemas já existentes. Revela, em última instância, a tendência de cons-
trucionalização gramatical (gramaticalização1), processo por meio do qual
fontes lexicais servem como input para construções com funções proce-
durais. Nessa tendência natural das línguas, a da renovação e inovação,
alguns conectores adverbiais adquirem estabilidade sem, no entanto, se
especializarem com um sentido como etapa final desse processo, como
tenho discutido em alguns trabalhos mais recentes, tais como Oliveira
(2014, 2019) e em Oliveira e Hirata-Vale (2017). É exatamente sobre
essa não especialização de sentidos que quero chamar atenção aqui.
Especificamente, como já anunciado na introdução deste capítulo, meu
foco de interesse se volta para a chamada zona da causalidade que se
associa aos valores de tempo, causa, condição e concessão.
Muitos são os autores que se debruçam sobre a mescla conceptual
que marca as noções de causalidade, temporalidade, condicionalidade e
concessividade (CAVAGUTI; HIRATA-VALE, 2014; FONTES, 2016;
NEVES, 2012; OLIVEIRA, 2014, 2020; OLIVEIRA; HIRATA-VALE,
2017; OLIVEIRA; CLEMENTE, no prelo). Neves (2012) e Fontes (2016)
analisam conectores que atualizam significações assentadas sobre a zona
da condicionalidade e da concessividade, como mostram os exemplos
da mescla concessivo-condicional em (07) e (08). Nesses casos, há duas
pressuposições implicadas: por um lado, tem-se a expressão de um valor
hipotético, com a indicação de uma condição eventual para a realização de
um estado de coisas, mas, também, a negação do evento condicionante:

1 No Funcionalismo clássico, o termo gramaticalização indica o fenômeno por meio do qual


itens lexicais adquirem funções gramaticais (HOPPER; TRAUGOTT, 1993). Na Gramática
de Construções Diacrônica, o fenômeno da gramaticalização foi reinterpretado pelo conceito
construcionalização gramatical, processo por meio do qual formas com função procedural
emergem.

175
funcionalismo linguístico: interfaces

(07) Para o PAN tampouco será uma vitória, porque ainda que obtenha
uma votação nacional de mais de 30%, perderá no Distrito Federal.
(FONTES, 2016, p. 132)

(08) Mesmo se eu morrer na China, quero ser enterrado em Pedreiras


(NEVES, 2018, p. 935)

Outra mescla bastante discutida é a temporal-condicional (HIRATA-


-VALE, 2005; NEVES 2012; SOUSA, 2003). Em orações desse tipo, a
factualidade típica da significação de tempo é projetada para o domínio
da não factualidade por meio do uso de tempos do modo irrealis, como
ilustrado em (09):

(09) Não devemos, contudo, ter receio de inovar quando os nossos


interesses e valores assim indicarem. (HIRATA-VALE, 2005, p. 123)

O que essas análises demonstram é que há uma interseccionalidade


em que se circunscrevem os significados de causa, tempo, condição e
concessão. O fator essencial que leva a esse emaranhado de significa-
ções é a noção de sequencialidade que, nessas construções, é projetada
para o campo das ideias. Conectores adverbiais constroem um espaço
alternativo, um fundo, a partir do qual uma outra informação será enun-
ciada/acrescentada/considerada e, assim, conceitualizam um espaço
cognitivo em que se movimenta de um ponto inicial (enunciado marcado
pelo conector adverbial) para um ponto final (enunciado núcleo). Esse
“movimento” é explicado por Gonçalves e Oliveira (2020, p. 115, 116),
que afirmam que

Em complexos oracionais, há uma tendência de interpre-


tar sua estrutura como icônica à ordem dos eventos ou
das etapas da organização cognitiva que eles codificam
(HAIMAN, 1980). Nesse sentido, a ordem dos segmentos
envolvidos reflete cognitivamente uma sequência narra-
tiva, e, por isso, a sequencialidade está fortemente ligada

176
funcionalismo linguístico: interfaces

aos significados que orações adverbiais expressam. Assim


como na conceitualização de trajetória no espaço, orações
adverbiais sempre indicam um ponto A a partir do qual
se infere ou conclui um ponto B e, desse modo, a noção
de movimento no espaço está metaforicamente presente
nesse tipo oracional. A sequencialidade é, portanto, um
fator essencial na interpretação desses complexos ora-
cionais: essas orações podem ser caracterizadas como a
conceitualização de “situar coisas uma depois da outra”,
já que o que é contingente para a validação/especificação
de algo deve vir antes da situação resultante.

Nas orações adverbiais, essa trajetória conceptual é reinterpretada


como causa, tempo, condição, concessão a partir de uma combinação
multifatorial, que envolve, além do conector, as especificações modo-
-temporais que figuram nessas orações. Tem-se, então, a sequencialidade,
como base para os significados de causa e tempo, mais básicos, e de con-
dição e concessão, mais abstratos. Em outras palavras, esses significados
estão apoiados sobre um mesmo esquema cognitivo-perceptivo, a base
espacial-temporal. Partindo desse referencial, o que quero discutir aqui
é como capturar essa multiplicidade de significações na rede constru-
cional dos conectores sem perder de vista as determinações cognitivo-
-perceptivas que fundamentam essa multiplicidade de significações.

Universo de análise

Os dados que compõem o corpus deste estudo foram coletados no


banco de dados Corpus do Português (DAVIES; FEREIRA, 2006)2, na
modalidade Genre/Historical (Gênero/Histórica), constituída por mais
de 45 milhões de palavras em quase 57.000 textos, que contemplam as
variedades do português brasileiro e europeu, nos registros oral e escrito,
num período que vai dos séculos do XIV ao XX. Os textos que compõem
o corpus estão divididos entre os tipos acadêmico, notícia, ficção e oral.
2 Disponível em: https://www.corpusdoportugues.org.

177
funcionalismo linguístico: interfaces

Para esta análise, consideramos os dados a partir de uma perspectiva


sincrônica, que conforma dados do português dos séculos XIX e XX,
nas duas variedades e em todos os tipos de gênero. A coleta foi feita pela
entrada dos conectores ‘desde que’, ‘dado que’ e ‘uma vez que’, usando a
ferramenta de busca automática do corpus. A partir daí, selecionaram-se
apenas as ocorrências em que os conectores atuavam sobre um complexo
oracional formado por uma oração adverbial desenvolvida e uma oração
principal também desenvolvida. A totalidade dos dados selecionados para
análise é apresentada no quadro abaixo:
Quadro 2 – Total de conectores adverbiais

Causal Temporal Condicional Concessivo Total


Desde que 577 921 645 ____ 2143
Dado que 134 ____ 37 4 175
Uma vez que 374 61 202 ____ 637

Fonte: Autoral

Mapeamento dos conectores adverbiais: polissemia e metáfora

Partindo dos pressupostos teóricos e procedimentos descritos nas


seções anteriores, a tarefa de análise que trago aqui toma como objeto a
rede construcional dos conectores adverbiais em português num recorte
bem específico: apenas as construções conectoras [desde que], [dado
que] e [uma vez que]. Esse recorte se justifica por duas razões comple-
mentares: primeiro, porque esses conectores resultam de processos de
mudança recentes, segundo, porque esses conectores atuam, no mínimo,
na indicação de dois significados distintos.
Começo minha análise pela construção [desde que], que, conforme
demonstrado no Quadro 2, pode acionar os significados de tempo, causa
e condição, como mostram as seguintes ocorrências:

178
funcionalismo linguístico: interfaces

(10) tempo
Na verdade, desde que assumi o governo pensei que seria necessário
realizar reformas estruturais na economia italiana. (19Or:Br:Intrv:ISP)

(11) tempo-causa
Desde que ficamos sozinhos, ele corre perigo (19:Fic:Br:Garcia:Silencio)

(12) condição
Desde que respeitem o limite autorizado pela Justiça, acho que não há
nenhum problema (19N:Br:Cur)

O significado da construção [desde que] conserva da preposição


‘desde’ a indicação de ponto inicial a partir do qual um movimento se
projeta, implicando, assim, uma sequencialidade. Como resultado de
processos de construcionalização gramatical (ver OLIVEIRA, 2014),
essa sequencialidade opera entre duas orações finitas, instaurando alguma
especificação semântica entre as duas. Em (10), o conector ‘desde que’
atua em uma oração que circunscreve a especificação temporal para a
realização do evento descrito na oração principal, instaura-se aí o sentido
temporal. Em (11), a significação marcada pelo conector é ambígua, já que
possibilita a interpretação temporal, “a partir do momento que ficamos
sozinhos”, mas também a leitura causal, “porque ficamos sozinhos”. Em
(12), o conector indica um espaço mental alternativo, marcando o ponto
inicial no discurso a partir do qual a consequência descrita na proposição
núcleo se valida, tem-se aí o sentido condicional. O que de fato difere
as construções em (10)-(11) é o uso das formas verbais que figuram na
oração adverbial. Em (10) e (11), tempos do indicativo acionam um sig-
nificado factual: nessas construções, a sequencialidade que envolve as
orações projeta significações como tempo e causa. Em (12), a semântica
do subjuntivo projeta a construção para o domínio irrealis, o que aciona
a causalidade hipotética, ou seja, o significado condicional.
A construção [dado que] tem forte base causal devido à telicidade
marcada na base do conector, circunscrevendo um ponto bem delimitado.

179
funcionalismo linguístico: interfaces

Como resultado de processos de mudança, essa noção de ponto marcado


serve como indicador de um tópico dado, introduzindo uma oração como
fundo a partir do qual uma figura se projeta. Novamente, tem-se a noção
abstratizada de movimento sequencial e [dado que se construcionaliza
com a função procedural de especificar uma relação entre duas orações
(OLIVEIRA, 2019). A partir daí, o conector pode atuar nas relações de
causa, condição e concessão.
Associada a tempos do modo indicativo, essa construção liga ora-
ções numa relação de causalidade factual, a chamada causa prototípica,
como em (13). Por outro lado, essa factualidade se revolve, mais uma
vez, com o uso de tempos do subjuntivo, especificamente o imperfeito
do subjuntivo. Ao conceber o evento como contrafactual, estabelecendo
sua não realidade, a construção favorece, então, a leitura condicional,
indicando uma causa não factual com recuo temporal (no passado), como
se vê em (14). A leitura condicional ocorre sobreposta ao significado
concessivo em (15), em que claramente se nota a mescla da causalidade
hipotética, garantida pelo uso do imperfeito do subjuntivo, com valor de
contraexpectativa, acionado pela contrariedade dos eventos descritos e
base para o significado de concessão:

(13) causa
o Benfica até merecia o golo, dado que, nos primeiros minutos foi uma
equipa muito rápida e ofensiva (19N:Pt:Jornal)

(14) condição
dado que aparecessem, os jagunços viriam ao encontro de ainda não
satisfeito anelo. (18:Cunha:Sertões)

(15) concessão
dado que quisesse casar, e queria, nunca estivera mais longe do casa-
mento (18:Machado:Nãocasa)

180
funcionalismo linguístico: interfaces

A construção conectora [uma vez que] pode ligar eventos na zona da


causalidade, temporalidade e condicionalidade. Nessas construções, mais
uma vez, a especificação modo-temporal aciona diferentes significados
assentados sobre a sequencialidade típica do esquema espacial-temporal.
Em [uma vez que], a base do conector indica um ponto no passado, que
serve de apoio para a projeção de outro evento. Essa sequencialidade
é interpretada como relação temporal em (16), em que esse “ponto no
passado” é reforçado pela indicação de passado também nas marcas
verbais da oração que o conector introduz. Em (17), a significação de
causa é acionada pelo traço aspectual de cursividade marcado na forma
verbal da oração introduzida por ‘uma vez que’. Por fim, essa factualidade
característica das relações de tempo e de causa são resolvidas pelo uso
do imperfeito do subjuntivo, que marca o evento como contrafactual e,
daí, a leitura de condicionalidade:

(16) tempo
Uma vez que o tomaram à sua conta, era pagarem-lhe a pensão inteira
e deixarem-se (18:Azevedo:Coruja)

(17) causa
as vagas nunca vão dar conta da demanda, uma vez que as faculdades
seguem despejando milhares de profissionais no mercado todos os
anos. (19Or:Br:Intrv:Web)

(18) condição
É que o Conselheiro, uma vez que a filha não estivesse resolvida a
acompanhá-lo, voltaria à vida inconstante (18:Azevedo:Homem)

Resumindo as análises acima, o que essas ocorrências mostram é


que os falantes abstraem sobre dois padrões de significado: [desde que],
[dado que] e [uma vez que] possuem função procedural, assumindo
função de ligar dois segmentos oracionais. Ainda, essa junção oracional
especifica uma sequencialidade muito bem determinada, que é base para
as subespecificações semânticas que o conector pode indicar. Assim, em

181
funcionalismo linguístico: interfaces

termos de pareamento de forma e sentido, todas essas construções podem


ser descritas do seguinte modo:

[X QUE] ↔ [ESPECIFICAR SEQUENCIALIDADE A, B]

As construções se ligam ao esquema conjuncional [X QUE], que


abstratiza sobre um amplo conjunto de subesquemas, como demonstrado
no Quadro 2 apresentado anteriormente. Assim, em termos de categoriza-
ção, essas construções se ligam ao esquema mais geral por meio dos elos
de herança. As sub-regularidades observadas, ou seja, as bases lexicais
diversas a partir das quais essas construções se formam, são capturadas
por meio de diferentes subesquemas, a saber [PREP que], [ADV que]
e [V que]. Como resultado, em termos de hierarquia de generalização
e abstração, esses conectores podem ser assim representados conforme
a Figura 4:
Figura 4 – Rede parcial dos conectores complexos

Fonte: Autoral

Mas, o que quero chamar atenção é para as especificações de sen-


tido, que, como defendo aqui, podem ser conceitualizadas por meio de
elos de polissemia e de elos metafóricos. Considerando que todos esses
conectores juntam orações num complexo oracional que indica uma se-
quencialidade determinada, minha proposta é que esses conectores sejam

182
funcionalismo linguístico: interfaces

analisados como membros de uma mesma rede, e não como membros


de redes distintas com elos multidimensionais entre outras redes. A se-
quencialidade específica presente como base de todos esses conectores
pode ser analisada como um significado mais geral, subespecificado por
meio de elos de metáfora e polissemia.
Começo pelos elos metafóricos porque são, de certa forma, mais
evidentes no caso de conectores adverbiais. Metáfora, como processo
cognitivo básico, atua tanto na mudança por meio do qual conectores
emergem, como também na especificação dos sentidos desses conectores.
Ao fazer um recorte sincrônico, como é o que apresento aqui, vê-se clara-
mente que esses significados não se resolvem no desenvolver diacrônico
dos conectores e seguem emaranhados mesmo num recorte sincrônico.
O Quadro 2 revela como os conectores são relativamente produtivos em
pelo menos dois domínios semânticos distintos, três no caso de [desde
que] e [uma vez que]. Esse fato não é surpresa, já que outros conectores
da língua, com estatuto gramatical ainda mais consolidado, também po-
dem atuar em diferentes domínios, como mostram Hirata-Vale (2005),
Neves (2012) e Oliveira e Hirata-Vale (2017). Ainda, há conectores que
marcam sobreposições, especificando dois sentidos ao mesmo tempo,
como mostram Neves (2012) e Fontes (2016). Nesse sentido, não parece
muito produtivo a proposição de diversas redes, mesmo que interligadas
para capturar essas construções, que podem ser organizadas conceitual-
mente por meio de elos de metáfora.
Desse modo, como resultado dos processos de mudança, a gramá-
tica do português encaminha os conectores adverbiais com um sentido
mais básico e geral: juntar orações numa sequencialidade particular.
Esse sentido básico pode ser conceitualizado como um protótipo que é
subespecificado por meio de elos metafóricos, que capturam e organi-
zam os sentidos de causa, tempo, condição e concessão, como resultado
de extensões metafóricas do sentido mais geral descrito aqui. Assim,
elos metafóricos – aqui representados por linhas pontilhadas – ligam os
subesquemas [PREP que], [ADV que] e [V que] aos diferentes sentidos

183
funcionalismo linguístico: interfaces

das microconstruções [desde que], [uma vez que] e [dado que]. Aqui
ilustramos a organização da rede dos conectores em elos metafóricos na
Figura 53, a partir dos diferentes sentidos do subesquema [PREP que],
que assume as subespecificações semânticas de tempo (TEMP), tempo-
-causa (TEMP-CAUS) e condição (COND), e do subesquema [V que],
que especifica os sentidos de causa (Caus), condição (Cond) e concessão
(Conc):
Figura 5 – Elos metafóricos na rede construcional dos conectores adverbiais

Fonte: Autoral

Como mostra a Figura 5, os subesquemas [PREP que] e [V que],


assim como o [ADV que], podem se ligar a um conjunto de significações
distintas, porém relacionadas, por meio de extensões metafóricas. O signi-
ficado do subesquema captura o significado mais básico [ESPECIFICAR
SEQUENCIALIDADE A, B] e generaliza sobre as microconstruções
que se associam à traços contextuais distintos. O fato é que o padrão
estrutural e o significado geral de especificar uma sequencialidade entre
dois segmentos se mantém, por isso considerar como um subesquema
associado por elos metafóricos às microconstruções, em que os diferentes
sentidos se especificam, e não como subesquemas totalmente distintos.
Essa análise é diferente da encontrada em Cezario et al. (2015), Oliveira
(2019) e Oliveira e Clemente (no prelo), que representam essas especi-
ficações de sentido já no nível do subesquema.

3 O recorte apresentado na Figura 5 decorre de questão de espaço. O subesquema [ADV que]


é conceitualmente organizado pelo mesmo processo.

184
funcionalismo linguístico: interfaces

Como consequência, a rede também está organizada em termos de


elos de polissemia. Como se viu pela descrição dos conectores [desde
que], [dado que] e [uma vez que], as distinções de significado se fazem
por especificações aspectuais, modais e temporais codificadas no verbo
da oração que esses conectores introduzem. Enquanto as construções
conectoras de tempo e de causa operam com formas verbais factuais, as
construções condicionais e concessivas são acionadas por formas verbais
contrafactuais. Nesse sentido, postular a polissemia construcional parece
mais produtivo, já que dispensa a proposição de diferentes esquemas e
subesquemas e uma superespecificação em termos de distinções aspec-
tuais e modais da oração que os conectores introduzem. Ou seja, em
vez de postular diferentes construções capturadas em diferentes redes,
proponho, na verdade, uma rede em que os diferentes tipos de constru-
ção conectora sejam agrupados indiferentemente dos itens específicos
que os instanciam. Há um sentido prototípico que é base para todas as
subespecificações que essa construção pode instanciar, por isso a opção
aqui de considerá-la como polissêmica, como representado na Figura 64:
Figura 6 – Elos polissêmicos na rede construcional dos conectores adverbiais

Fonte: Autoral

Na figura, os subesquemas [ADV que] e [V que] se ligam por


elos polissêmicos – representados por linhas tracejadas – às diferentes
microconstruções sancionadas por [uma vez que] e [dado que]. Todas
instanciam um mesmo padrão sintático e um significado geral que está
4 Aqui, mais uma vez, apresento um recorte decorrente da questão de espaço. O subesquema
[PREP que] é conceitualmente organizado pelo mesmo processo.

185
funcionalismo linguístico: interfaces

subespecificado no nível da microconstrução, mas que está contido nesse


significado mais básico. As instanciações dessas microconstruções en-
volvem algum tipo de mudança contextual e uma variedade de cenários
possíveis que são conceitualizados e capturados por meio da especificação
do significado mais básico.
Essa proposta se assenta no princípio construcionalista básico de
que um conjunto de construções não consiste em estruturas independen-
tes que exibem padrões organizacionais irregulares, mas, ao contrário,
consiste numa rede altamente estruturada de informações associadas. A
proposta tem, também, determinações cognitivas-perceptivas. A proposta
que apresento se assenta fundamentalmente sobre a Hipótese do Mapa
Semântico da Conectividade, de Croft (2001, p. 96), segundo o qual
“qualquer categoria específica e construção específica da língua devem
ser mapeadas em uma REGIÃO CONECTADA (grifo do autor) em um
espaço conceitual”5. A imbrincada relação entre os significados de causa,
tempo, condição e concessão é exatamente resultado de como indivíduos
percebem a relação entre eventos no mundo biossocial e concreto e por
isso tais significados fazem parte de um mesmo domínio conceitual. Esses
conceitos se assentam sobre dois esquemas imagéticos: o de espaço, que
define, entre outros, noções como frente-trás e centro-periferia, e o de
escala, que define a noção de trajetória. Ambos, como se viu na descrição
dos conectores e em tantos outros trabalhos, servem como fundação para
a noção de sequencialidade, que, por sua vez, é base para os múltiplos
significados adverbiais descritos neste capítulo. Uma vez que constituem
significados integrados (conectados) no mundo biossocial, é também de se
esperar que a língua conceitualize esses significados de modo integrado,
como é o que proponho aqui.
A proposta desenvolvida neste capítulo cumpre, assim, a adequa-
ção cognitiva e de língua emergente do uso. A rede deve conceitualizar
os mapas de conectividade semântica como modelos de relações entre
5 “[…] any relevant language-specific and construction-specific category should map onto a
CONNECTED REGION in conceptual space.”

186
funcionalismo linguístico: interfaces

construções. Isso porque essas construções estão ligadas a esquemas


maiores e aos contextos construcionais nos quais as mudanças linguísticas
ocorrem. Assim, é fundamental que a rede construcional especifique os
graus de conectividade e proximidade entre os nós da rede, por meio de
extensões de protótipos, conceitualizados por elos de metáfora e polisse-
mia. Ainda, é relevante no sentido de que representa o conhecimento dos
falantes sobre sua língua, que claramente inclui o conhecimento sobre
uma zona conceitual organizada em termos de estruturas funcionais e de
suas relações umas com as outras, como propõe Croft (2001).
Ao considerar a proximidade semântica das construções, que se
fundam sobre um mesmo esquema conceitual, a rede captura essas cons-
truções em termos de interseções entre clusters semânticos. As diferenças
que se notam entre as construções não são suficientes para a proposição de
diferentes redes com elos multidimensionais para capturar esses clusters.
Por esse caminho, evita-se, ainda, detalhamentos redundantes, como no
caso aqui, a conceitualização da função procedural de ligar orações e
um excesso de formalizações e conceitualizações que se sobreponham.
Evita-se, por exemplo, que todos os conectores sejam conceitualizados
do mesmo modo em diferentes redes, a de tempo, de condição, de causa
e de concessão. Uma rede organizada por elos metafóricos e de polis-
semia parece, assim, uma solução mais produtiva e eficiente, mantendo
o equilíbrio entre simplificação, economia e elaboração. Por fim, fica
evidente um dos mais fundamentais princípios cognitivos: categorias são
fluidas, em todos os sentidos.

Lembrando-se a fluidez de fronteiras que há na linguagem,


é possível, na sequência, evocar mesclas dessas relações,
complicando mais ainda – mas tornando mais real – o
esquema perceptivo da linguagem ativada. Vejam-se
algumas mesclas, por exemplo, no uso de locuções con-
juntivas adverbiais que são ao mesmo tempo condicionais
e causais, ou condicionais e concessivas, numa invasão
de áreas que bem ilustra a capacidade que a língua tem de

187
funcionalismo linguístico: interfaces

marcar relações múltiplas, bem como a inconveniência de


se suporem compartimentações rígidas da gramática na
correspondência com os esquemas cognitivo-perceptivos
(NEVES, 2012, p. 74).

As vantagens dessa proposta evidenciam, portanto, como a


gramática é, na verdade, um sistema dinâmico de categorias emer-
gentes e restrições flexíveis motivadas e organizadas por processos
cognitivos gerais. Reflete, por fim, como a estrutura linguística deve
ser considerada em termos de signos complexos que associam um
padrão estrutural específico a um significado particular, conectados
entre si por vários tipos de elos, de tal modo que a gramática e, em
última instância a língua, pode ser vista como uma rede dinâmica
de signos interconectados.

Considerações finais

Assentada sobre os Modelos Baseados no Uso, em especial sobre a


noção de rede conceitual, neste capítulo, proponho uma sistematização
na rede construcional que dê conta dos conectores adverbiais [dado que],
[desde que] e [uma vez que] que, conforme demonstrei, podem atuar na
indicação dos significados de tempo, causa, condição e concessão. Dife-
rentemente do que se vê nos trabalhos sobre construções conectoras, que,
no geral, apresentam redes específicas para cada um dos tipos semânticos
de conectores adverbiais, ou, ainda, apresentam redes multidimensio-
nais, aqui considero a sistematização desses usos por meio dos elos de
polissemia e metáfora conceitualizados numa mesma rede conceitual.
O ponto de partida para essa proposição é o fato de que esses conec-
tores na verdade se construcionalizam com um sentido mais abstrato, o
de ligar orações em uma sequencialidade determinada. As significações
específicas de tempo, causa, condição e concessão seriam extensões desse

188
funcionalismo linguístico: interfaces

significado mais geral, subespecificadas por meio dos elos de metáfora e


polissemia. Essa decisão se orienta, principalmente, por determinações
cognitivo-perceptivas e se sustenta pela Hipótese do Mapa Semântico
da Conectividade, de Croft (2001). Significados de uma mesma base
conceitual são mais bem representados pelo mapeamento de clusters
semânticos, que devem ser representados de forma integrada na rede, já
que são assim associados no sistema conceitual dos falantes. Conside-
rando que o Constructicon é o locus que virtualmente armazena redes e
seus agrupamentos hierarquizados de construções, da mais geral à mais
específica, a rede deve representar também as continuidades e proximi-
dades em todos os seus níveis, reconhecendo que o falante conhece e
opera com essas continuidades e proximidades. Essa proposta de análise
possibilita explicar a multifuncionalidade dos itens da língua e ainda
assim manter o equilíbrio entre elaboração e simplificação.
Diante de tantas imbricações, um tratamento funcional e cognitiva-
mente motivado da língua, como é o que desenvolvi neste capítulo, deve
sempre partir do entendimento de que o falante tem conhecimento sobre
como operacionalizar com essa multiplicidade de sentidos e processos
e faz escolhas a partir deles para o acionamento do sistema linguístico.
Ao assumir que os diferentes conectores adverbiais não consistem em
pareamentos distintos, mas são acionados por meio de elos de metáfora
e de polissemia, invoco também o entendimento de que a língua con-
vencionaliza relações e mesclas conceituais. A convencionalização desse
agrupamento semântico é motivada, então, pelo modo como indivíduos
percebem e conceitualizam os eventos. Por fim, as reflexões que aqui
proponho invocam o princípio cognitivista mais básico de que categorias
linguísticas estão organizadas em termos de esquemas prototípicos, que
se ligam a subesquemas, nesta análise especificados por meio de elos
relacionais.

189
funcionalismo linguístico: interfaces

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191
funcionalismo linguístico: interfaces

A QUESTÃO DA EQUIVALÊNCIA DE SIGNIFICADO DE


CONSTRUÇÕES E A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA

Christina Abreu Gomes


(UFRJ/CNPq)

Introdução

Construções, definidas como pares de forma e significado


(GOLDBERG, 1995), podem apresentar variação, de acordo com
Hilpert (2014, p. 79-207), da seguinte maneira: a) mesmo significado
expresso por diferentes formas, uma variação no polo formal da
construção que corresponde ao significado de variação postulado
na Sociolinguística, como as diferentes maneiras de se pronunciar
a palavra secretária, no inglês: secretary – [sɛ.kɻɪ.tə. ɻɪ] ou [sɛ.
kɻɪ.tɻɪ]; b) uma mesma forma que pode apresentar um espectro de
diferentes significados, como a construção genitiva do inglês do tipo
N’s N, que pode indicar posse (John’s book), contiguidade espacial
(John’s neighbors), contiguidade temporal (yesterday’s sad event),
contiguidade causal (inflation’s consequences); e c) um padrão
formal abstrato que pode ser realizado de diferentes formas, como
o SN (bagagem, um velho amigo, o azul com duas listras, todos os
meus queridos filhos, minha neta Isabella, que gosta de fazer trilhas).
Neste capítulo, será abordada a questão da variação do tipo a) da
lista de Hilpert (op. cit.), mesmo significado expresso por diferentes

193
funcionalismo linguístico: interfaces

formas no nível sintático, conforme tem sido mostrado nos estudos


sociolinguísticos com base em dados de produção há mais de 60 anos.
Tratar da variação linguística além da variabilidade da forma sonora
de itens lexicais significa adotar a hipótese de que há semelhança semânti-
ca em níveis mais abstratos da estrutura linguística. No entanto, a hipótese
de equivalência semântica entre formas linguísticas, especialmente no
nível sintático, não é um consenso na Linguística. A hipótese alternativa é
a de que, de acordo com o Princípio da não sinonímia de Bolinger (1968
apud GOLDBERG, 1995), se duas construções são sintaticamente dife-
rentes, então elas devem ser semântica ou pragmaticamente distintas. A
questão da equivalência de significado entre variantes no nível sintático
será abordada, neste capítulo, com base em estudos sobre dois padrões
sintáticos do português brasileiro (PB), que receberam tratamento de
variável linguística: alternância de dativo (Pede seu pai a mesada/Pede
a mesada pro seu pai) e realização de orações relativas (O filme que eu
falei dele é bom/O filme que eu falei é bom/O filme de que falei é bom).
O capítulo se estrutura da seguinte maneira: na próxima seção, será
abordada a questão da equivalência semântica de construções sintáticas
em diferentes abordagens teóricas, tomando como ponto de partida o
conceito proposto na Sociolinguística Variacionista; a seção seguinte
apresenta e discute evidências de equivalência semântica com base na
análise de dados de produção de variantes de dativo por falantes adultos
do PB (GOMES, 1996, 2003), coletados de amostras de fala espontânea,
e em estudo sobre o processamento de orações relativas por crianças
adquirindo o PB (ABREU, 2013, 2019) seguida das considerações finais.

A questão da equivalência semântica de construções sintáticas em


diferentes abordagens teóricas

Weinreich, Labov e Herzog (1968), doravante WLH (1968), propu-


seram a hipótese de heterogeneidade sistemática como parte do conheci-
mento linguístico dos falantes, juntamente com o estabelecimento de um

194
funcionalismo linguístico: interfaces

conjunto de questões programáticas para explicar a mudança linguística.


Essa hipótese de gramática difere da proposição estruturalista de homo-
geneidade e da proposição gerativista de invariabilidade do sistema. A
heterogeneidade da gramática reside na possibilidade de haver mais de
uma forma para expressar o mesmo conteúdo, de maneira que todas as
formas alternantes integram o conhecimento linguístico do falante. A
alternância entre formas foi capturada no conceito de variação linguísti-
ca, definida como a possibilidade de duas formas ou mais alternarem no
mesmo contexto estrutural para expressar o mesmo significado. Portanto,
a equivalência semântica entre formas linguísticas é um critério funda-
mental na identificação de variantes de uma mesma variável linguística,
inicialmente referida como equivalência de mesmo significado referencial
(LABOV, 1972, p. 271). No entanto, esse requisito foi objeto de debate
a partir do momento em que os estudos sociolinguísticos se voltaram
para a observação da variação e da mudança além do nível fonológico,
em especial quando passaram a focalizar variáveis sintáticas. Lavande-
ra (1978), Kay e McDaniel (1979) e Romaine (1981) questionaram o
requisito de equivalência de significado referencial no caso de formas
alternantes no nível sintático. A crítica de Lavandera (1978) não exclui
a possibilidade de variação inerente. O questionamento se refere ao esta-
belecimento de equivalência semântica referencial entre as variantes no
que diz respeito a formas alternantes além do nível fonológico. Lavandera
propôs então a substituição de significado referencial por equivalência
funcional entre as variantes para dar conta da variação sintática. Já para
Kay e McDaniel (1979) e Romaine (1981, 1985), a crítica ao requisito de
equivalência semântica referencial e à proposição de variáveis sintáticas
se deveu à incompatibilidade entre e a hipótese gerativista de gramática
homogênea e invariável e a proposição de um sistema inerentemente
heterogêneo, como em WLH (1968), e o caráter probabilístico da noção
de “regra” variável, conforme referida à época. Para Romaine (1981,
p. 35)1, se há a possibilidade de variação em níveis mais altos, menos
1 “If, however, variation is assumed to exist at higher, non-superficial levels of grammar, the
Labov’s (1969) are incompatible views with generative grammar” (ROMAINE, 1981, p. 35).

195
funcionalismo linguístico: interfaces

superficiais, da gramática, a proposta de Labov é incompatível com a


hipótese de gramática da teoria gerativa. No entanto, ao longo de mais
de 60 anos, estudos sociolinguísticos, com base em dados de diferentes
línguas e utilizando referenciais teóricos formalistas ou funcionalistas,
têm mostrado a pertinência da aplicabilidade do conceito de variação à
sintaxe para explicar o funcionamento das línguas, principalmente no
que diz respeito a mudanças sintáticas. E, assim, diferentes processos
de mudança em progresso e de variação estável têm sido detectados,
envolvendo a competição entre diferentes construções que se mostram
semanticamente equivalentes em contextos de diferentes naturezas.
Muito embora a hipótese da invariabilidade da gramática prevaleça
na Teoria Gerativa, a questão da equivalência semântica entre construções
sintáticas não constitui problema para alguns gerativistas interessados em
explicar a mudança linguística. Há, na verdade, um conjunto de estudos
que conjugam a teoria formal e a noção de variação no sentido laboviano
para explicar a mudança sintática. No Brasil, cite-se a Sociolinguística
Paramétrica, proposta por Tarallo (1983), que observou e analisou re-
sultados de pesquisas variacionistas, com base em WLH (1968), à luz
das hipóteses da Teoria de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY, 1981),
inaugurando uma linha de pesquisa, em universidades brasileiras, vol-
tada para o estudo de mudanças sintáticas do português brasileiro em
comparação com o português europeu e outras variedades do português
(DUARTE; REIS, 2022). Para Kroch (2005, p. 2), mudança linguística
está relacionada a duas ou mais formas que competem no uso, depois que
uma nova forma é introduzida, e que têm uma determinada distribuição
probabilística, que caracteriza o ambiente linguístico primário a que
as crianças estão expostas, com consequências para a aquisição. Nessa
perspectiva, a maneira como a variação é acomodada na modelagem do
conhecimento linguístico do falante, no entanto, é distinta da proposta
de WLH. Na abordagem teórica de Kroch, embora a implementação de
uma mudança linguística envolva a alternância entre uma forma antiga
e uma forma nova por um período considerável, a variação não se refere

196
funcionalismo linguístico: interfaces

à alternância de realizações de formas de uma mesma gramática, mas


à competição entre diferentes gramáticas, cada uma contendo uma das
variantes. A hipótese de alternância de gramáticas caracteriza os estudos
históricos de base gerativa (LIGHTFOOT, 2003; PINTZUK, 2003) e tem
sido desenvolvida mais recentemente por Yang (2000). Segundo Yang
(op. cit.), o comportamento variável do indivíduo pode ser modelado
como uma distribuição estatística de múltiplas gramáticas ideais que se
caracterizam por serem invariantes e homogêneas. O importante aqui é
que, mesmo na abordagem de gramáticas alternantes, há formas dife-
rentes que são equivalentes para expressar uma determinada estrutura
linguística.
Em estudos sobre mudança linguística de base funcionalista, a
questão da variação linguística, e consequentemente, da equivalência
semântica entre variantes, também se coloca. Segundo Mithun (2003, p.
553), poucos funcionalistas manteriam que existe uma correspondência
de “um para um” entre forma linguística e função. Ainda, para a autora,
sistemas sincrônicos devem ser entendidos como “produtos históricos de
sequências de eventos diacrônicos individuais”, um conceito em sintonia
com a proposição de WLH (1968). Também para Hoffman e Trousdale
(2011, p. 1), as línguas humanas se caracterizam por uma sincronia ine-
rentemente variável e dinâmica, portanto, sujeita à mudança ao longo do
tempo, de maneira que, dado o papel central da variação e da mudança
nas línguas humanas, toda e qualquer teoria cognitiva explanatoriamente
adequada tem por objetivo dar conta desses dois fenômenos.
Em que pese a posição assumida em Mithun (op. cit.), há restri-
ções quanto à possibilidade de equivalência de significado entre formas
alternantes nos estudos funcionalistas/cognitivistas, em especial os
desenvolvidos com base em Goldberg (1995). Rosa e Oliveira (2020)
defendem, a partir de pesquisa sobre construções formadas por elementos
indutor-refreadores e afixoides de origem locativa, nos termos de Rosa
(2019), codificada como [IndutR AfixLoc]RA (p. ex., alto lá, calma aí,
calma lá, espera aí, espera lá etc.), que há uma competição interna no

197
funcionalismo linguístico: interfaces

esquema entre os construtos no uso linguístico, porém a sinonímia (ou


equivalência de significado) se dá apenas em níveis abstratos. Isto é, há
sinonímia virtual e sinonímia aparente, nos termos das autoras, em níveis
hierárquicos construcionais, mas, no uso efetivo, o significado de cada um
dos construtos é contextualmente dependente em função de propriedades
extra e intralinguísticas específicas, não havendo, portanto, equivalência
de significado neste caso. Para as autoras (ROSA; OLIVEIRA, op. cit.,
p. 47), sinonímia virtual é definida como a possibilidade de microcons-
truções parcialmente esquemáticas instanciarem microconstruções pre-
enchidas de significado compatível. Já a sinonímia aparente é decorrente
do pertencimento da microconstrução a um mesmo paradigma de outras,
no caso do estudo apresentado a dos marcadores discursivos refreador-
-argumentativos. As autoras apresentam a análise dos dados do estudo de
Rosa (2019) sobre a competição entre os elementos que integram níveis
mais baixos da hierarquia construcional de marcadores discursivos, con-
siderando três instâncias: a) competição em nível microconstrucional de
subnível II; b) competição em nível microconstrucional em subnível I; c)
competição no nível do construto (p. 35). No nível microconstrucional
de subnível II, o significado das microconstruções [calma aí]RA/[calma
lá]RA; [espera aí]RA /[espera lá]RA; [segura aí]RA /[segura lá]RA; [aguenta
aí]RA /[aguenta lá]RA [alto lá]RA e [para aí]RA representa “a definição da
subfunção refreador-argumentativa (que nomeia a subclasse MD RA):
contenção da proposição do interlocutor no discurso, sinalizando a
alegação do locutor” (ROSA; OLIVEIRA, op. cit., p. 37). As autoras
chamam a atenção para o fato de que essa sinonímia é virtual, potencial,
já que se dá no plano abstrato, e que a sinonímia perfeita só pode ser
verificada no nível do construto, isto é, no nível do uso da língua (ROSA;
OLIVEIRA, op. cit., p. 39). No nível microconstrucional de subnível I,
o mesmo conteúdo verificado no subnível II é atribuído aos elementos
(ROSA; OLIVEIRA, op. cit., p. 37). Segundo as autoras, embora as mi-
croconstruções de subnível I instanciem “os construtos em uso efetivo na
língua com sua mesma estrutura formal, ainda representam uma abstração

198
funcionalismo linguístico: interfaces

[…]”, de maneira que o significado mais pormenorizado só pode ser afe-


rido no nível do construto, do uso efetivo (ROSA; OLIVEIRA, op. cit.,
p. 37). Já no nível do construto, ou uso efetivo, a análise de instâncias
específicas leva à conclusão de que o sentido de cada um dos construtos
corresponde de fato ao significado de refreamento argumentativo, porém
há particularidades pragmático-cognitivas que apontam para a ausência
de sinonímia perfeita já que não há equivalência integral de todas as
propriedades de conteúdo – semântico, pragmático e discursivo – nesse
nível (ROSA; OLIVEIRA, op. cit., p. 47).
Paiva e Oliveira (2020) também discutem o espaço da variação, e,
portanto, a questão da equivalência semântica entre formas alternantes,
no âmbito da Gramática de Construção, com base em estudo diacrônico
sobre os sintagmas preposicionados por causa de e por conta de, san-
cionados pela construção causal mais abstrata [por SN de]. De acordo
com os autores, a construção por causa de foi detectada já no português
arcaico, enquanto por conta de foi verificada somente a partir do período
clássico. Em relação ao período clássico e o período moderno (séculos
XIX-XXI), por causa de prevalece, é mais frequente, em relação a por
conta de (PAIVA; OLIVEIRA, op. cit., p. 892). A verificação das pro-
priedades de cada uma das construções (ou microconstruções) é feita
somente com os dados coletados em textos do período moderno (séculos
XIX-XXI) em virtude da maior quantidade obtida para este período.
Foram observadas as seguintes propriedades compartilhadas pelas duas
construções: a) ambas as construções predominam na codificação de nexo
causal no domínio referencial, introduzindo, portanto, causas reais, sendo
pouco usados no domínio epistêmico; b) no nível sintático-semântico,
são mais frequentemente usadas em proposições que codificam eventos
materiais e de predicação relacional; c) no nível discursivo-pragmático,
mais frequentemente, os segmentos que ambas introduzem acrescentam
uma informação não mencionada no discurso precedente; e, finalmente,
d) ocorrem majoritariamente após o termo que apresenta o efeito (ordem

199
funcionalismo linguístico: interfaces

efeito-causa)2, entre outras propriedades. Por outro lado, uma vez que, de
acordo com os autores, as relações causais ultrapassam o nível referencial
para constituírem uma estratégia retórica, uma forma de expressar as
intenções argumentativas do falante, então, o nexo causal pode ser usado
para sinalizar o ponto de vista do falante ou até mesmo para persuadir
o interlocutor a ratificar esse ponto de vista (PAIVA; OLIVEIRA, op.
cit., p. 486). Ainda, os autores realizaram uma análise com base no valor
pragmático dos segmentos de causa e efeito ligados por por conta de e
por causa de. Os resultados obtidos mostram que, por esse critério, as
duas construções se afastam, de maneira que há poucos contextos em
que ambos alternam (somente em causa negativa – efeito positivo, causa
negativa – efeito negativo, causa neutra – efeito neutro), enquanto, nos
demais contextos, ocorre exclusivamente por causa de. A distribuição
das ocorrências por contexto pragmático-discursivo mapeado levou os
autores a concluir que por causa de tende a ser usado em eventos com
causa negativa e efeito negativo, o que sugere uma estratégia associada
a eventos concebidos de uma maneira negativa. Assim, concluem que
as duas construções se caracterizam por terem papéis argumentativos
diferentes, embora compartilhem um conjunto de propriedades formais
e semânticas que evidenciam equivalência de significado nesses dois
planos.
De acordo com o Quadro 1 (Anexo A), em Paiva e Oliveira (op.
cit., p. 892), a distribuição das ocorrências de por causa de SN e por
conta de SN foi computada em função do conjunto de dados das três
sincronias (português arcaico, português clássico e português moderno).
No entanto, o Quadro 1 permite observar a distribuição por sincronia
entre as duas construções, de maneira que por causa de SN em relação a
por conta de SN apresenta os seguintes percentuais por cada sincronia,
respectivamente – 100%, 87%, 85%. Já o Quadro 4 (Anexo C) mostra
que há contextos pragmático-discursivos exclusivos de por causa de,
2 Ver no Anexo B, Quadro 2, como em Paiva e Oliveira (2020, p. 893), os percentuais de distri-
buição de por causa de e por conta de em função das propriedades observadas e mencionadas
neste parágrafo.

200
funcionalismo linguístico: interfaces

nenhum exclusivo de por conta de, ao mesmo tempo em que ambas as


construções podem ocorrer nos três contextos mencionados no parágrafo
anterior. Muito embora o uso de por conta de seja mais restrito que o de
por causa de, foi possível verificar que ambas as construções alternam
nos mesmos contextos pragmático-discursivos, isto é, não estão em
distribuição complementar quanto a essa propriedade.
Considerando as análises de Rosa e Oliveira (2020) e Paiva e Oli-
veira (2020), de fato é possível afirmar que as formas em alternância não
são equivalentes no plano discursivo-pragmático? A depender do exposto
no Quadro 1 de Paiva e Oliveira (op. cit.), a resposta à pergunta seria
negativa, já que há alternância entre as formas até mesmo considerando
propriedades pragmático-discursivas, isto é, propriedades verificadas no
uso efetivo das construções. Em relação ao estudo de Rosa e Oliveira
(op. cit.), uma análise da distribuição das ocorrências, considerando os
diferentes contextos de uso, poderia resolver essa questão para ser pos-
sível avaliar se a equivalência estabelecida, na análise apresentada, para
o nível abstrato, consideradas sinonímia virtual, se desfaz por completo
no nível do uso, de maneira que há uma distribuição complementar entre
as formas nesse nível de análise.
Nos estudos sociolinguísticos, características específicas das situ-
ações comunicativas, como a variação estilística, características sociais
dos falantes, status informacional das variantes (informação nova, dada
etc.), entre outros, são aspectos considerados na análise da distribuição
das variantes, de maneira que é possível detectar se as formas alternantes
estão em distribuição complementar, e, portanto, não são equivalentes em
determinado(s) contextos(s) pragmático-discursivos. Assim, a definição
do envelope da variação, que envolve identificar as variantes em função
de condicionamentos de diferentes naturezas (linguísticos, sociais, cog-
nitivos), permite aferir se as formas alternam no mesmo contexto para
expressar mesmo significado em diferentes níveis de análise. É possível
que a alternância não ocorra em todos os contextos estabelecidos ou iden-
tificados na pesquisa, e há diversas razões para que esta situação ocorra.

201
funcionalismo linguístico: interfaces

De acordo com Tagliamonte (2006, p. 88), cabe ao analista verificar as


diferentes situações no conjunto de dados coletados3.
A hipótese de que a variabilidade observada na fala, considerando
aquelas que podem alternar no mesmo contexto, integra o conhecimento
linguístico do falante é formulada também no âmbito dos Modelos Ba-
seados no Uso ou Modelos de Exemplares. De acordo com o modelo, a
faculdade da linguagem apresenta propriedades probabilísticas, presentes
na produção, na representação, no processamento, na mudança linguística
e na aquisição (BYBEE, 2001, 2010; BOD; RENS; JANNEDY, 2003;
PIERREHUMBERT, 2003). Nesse modelo, a variação é central à gramá-
tica, não periférica, e tem caráter representacional (PIERREHUMBERT,
1994). Essa postulação se sustenta em um dos mecanismos cognitivos
de domínio geral mencionados em Bybee (2010, p. 7): armazenamento
de memória enriquecida (rich memory storage). De acordo com a auto-
ra, memória enriquecida diz respeito ao armazenamento de detalhes da
experiência do falante com a língua, incluindo não só o detalhe fonético
de itens lexicais e sentenças, mas também seus contextos de uso, sig-
nificados e inferências associadas aos enunciados. Em suma, o Modelo
de Exemplares fornece uma modelagem que também pode acomodar a
variação linguística conforme definida na Sociolinguística.
O Modelo de Exemplares tem sido usado para acomodar a varia-
bilidade na fonologia (BYBEE, 2001, 2010; JOHNSON, 2006; PIER-
REHUMBERT, 1994, 2001, 2003), na morfologia (BYBEE, 2010;
HAY; BAAYEN, 2005) e na sintaxe (BYBEE, 2013; TOMASELLO,
2003). Bybee (2013) propõe um modelo de representação em exemplares
para construções. Segundo a autora, os exemplares: a) são categorias
formadas por ocorrências da experiência do falante com a língua, que
são julgadas ou entendidas como sendo equivalentes e que contêm
informação do contexto de uso; b) estão organizados em um mapa cog-
nitivo baseado em similaridade sonora, semântica e sonora e semântica
3 A variable must be investigated in tremendous detail in order to determine which contexts
permit variation and which do not (TAGLIAMONTE, op. cit., p. 90).

202
funcionalismo linguístico: interfaces

simultaneamente – Modelo de Redes; c) e podem ser de qualquer tipo


(fonético, sintático, semântico). Especificamente, as representações de
construções em exemplares incluem uma lista de palavras experenciadas
em um determinado slot de uma construção ou incluem um conjunto de
propriedades semânticas que restringem o slot. Os exemplares de uma
palavra, sentença e construção estão ligados em rede. As conexões são
multidimensionais, isto é, são estabelecidas em diferentes domínios, já
que chunks4 e construções estão conectadas à nuvem de exemplares de
cada item lexical. Slots correspondem a nuvens de exemplares.
Na seção a seguir, a questão da equivalência de significado de cons-
truções será retomada tendo como base dados coletados de uso espontâneo
de variantes da alternância de dativo de Gomes (1996, 2003) e de resul-
tados de Abreu (2013, 2019) sobre produção controlada e compreensão
de orações relativas por crianças adquirindo o português brasileiro.

A equivalência semântica em variáveis sintáticas do PB

Nessa seção serão apresentadas e discutidas evidências de dados do


PB coletados de produção espontânea e dados referentes a processamento
de diferentes formas sintáticas, obtidos através de metodologia experi-
mental, respectivamente sobre as variantes da alternância de dativo e as
variantes de orações relativas. O objetivo é mostrar que o pressuposto da
não sinonímia ou a hipótese oposta, a de que há equivalência semântica
entre as formas, pode ser verificada empiricamente.

A alternância de dativo no PB

A abordagem da alternância de dativo no inglês é usada para susten-


tar a hipótese da não sinonímia como um pressuposto para toda relação
entre formas diferentes (GOLDBERG, 1992). No entanto, não há unani-

4 Chunks são sequências de unidades usadas frequentemente juntas, isto é, sequências formulaicas
ou pré-fabricadas, armazenadas como uma unidade, como dar um tempo, eu acho etc.

203
funcionalismo linguístico: interfaces

midade quanto aos valores semânticos da construção preposicionada (com


a preposição to – Mary gave the book to John) e a construção de objeto
duplo, com o argumento recipiente adjacente ao verbo e sem preposição
(Mary gave John the book) nos diferentes estudos sobre essas construções
do inglês. Para Pinker (1989), Goldberg (1992) e Beck e Johnson (2004),
por exemplo, as duas construções têm significados próprios: a construção
com a preposição to expressa movimento causado – um agente causa um
tema se mover ao longo de um caminho ou objetivo. Já a construção de
objeto duplo expressa posse causada – fazer um recipiente/destinatário
possuir uma entidade, como em The noise gave Terry a headache, de
maneira que esse significado não é expresso por uma construção pre-
posicionada, sendo esta considerada agramatical em inglês: *The noise
gave a headache to Terry. A abordagem dos diferentes significados para
as variantes é a adotada majoritariamente, com algumas revisões. Por
exemplo, Hovav e Levin (2008) defendem que essa diferença depende do
verbo. Para os autores, os verbos throw (lançar) e send (enviar) podem
expressar tanto o significado de movimento causado quanto o de posse
causada através das duas construções (preposicionada e objeto duplo).
Para outros autores (BRESNAN, 1982; LARSON, 1988), as duas varian-
tes ou estruturas podem ser associadas ao mesmo significado. Bresnan
et al. (2007) apresentam evidência empírica de que a agramaticalidade
atribuída à construção preposicionada que expressa posse causada, men-
cionada anteriormente, não resiste a evidências empíricas encontradas
na internet, como em (1) a seguir, ou o contrário, evidências de que o
significado de movimento causado pode ser expresso por uma construção
de objeto duplo, como em (2) (BRESNAN et al., 2007, p. 72-73):

(1) She found it hard to look at the Sage’s form for long. The spells
that protected her identity also gave a headache to anyone trying to
determine even her size, the constant bulging and rippling of her form
gaze Sarah vertigo. (http://lair.echidnoyle.org/rpg/log/27.html)

204
funcionalismo linguístico: interfaces

(2) Nothing like heart burn food. “I have the tums.” Nick joked. He
pulled himself a steaming piece of the pie. “Thanks for being here.”
(http://www.realityfanfiction.addr.com/storm3.html)

Para os autores, os dois exemplos anteriores, assim como outros


apresentados no referido artigo, constituem dados valiosos, autên-
ticas possibilidades estruturais, pois, de um lado, “soam bem”, e,
de outro, podem ser explicados com base em princípios estruturais.
Para os autores, o sintagma mais longo é colocado no fim, pelo
princípio de peso final (principle of end weight). Adicionalmente,
os autores mencionam que, no inglês da Austrália, há evidências, a
partir do estudo de Collins (1995) com dados de produção, de que as
duas construções alternam no mesmo contexto, sendo condicionadas
por diferentes graus de acessibilidade no discurso, definitividade,
pronominalidade e extensão das palavras. Assim, construções de
objeto duplo são mais esperadas, mas não exclusivas, nas situações
em que o recipiente tem mais proeminência (informação dada) que a
entidade transferida (informação nova), ao passo que se dá o inverso
na construção preposicionada (BRESNAN et al., op. cit., p. 74-76).
A alternância de dativo no PB tem uma configuração estrutural
diferente da observada no inglês. Foi tratada como uma variável
linguística em que se observam diferentes ordens para os dois argu-
mentos internos, adjacente ou não ao verbo, assim como também foi
verificada a possibilidade de ausência da preposição que introduz
o complemento recipiente nas duas posições em relação ao verbo,
conforme em (3) a seguir (GOMES, 1996, 2003). Assim, dados
coletados das Amostras Censo 1980, Censo 2000, NURC 1970, da
comunidade de fala do Rio de Janeiro, mostraram que as seguintes
configurações sintáticas são possíveis quando o recipiente não é
pronome clítico, porém com diferenças significativas na frequência
de ocorrência de cada tipo:

205
funcionalismo linguístico: interfaces

(3) a) V SN SP
b) V SP SN
c) V SN2 (recipiente) SN1 (entidade)
d) V SN1 (entidade) SN2 (recipiente)

As ocorrências apresentadas de (4) a (7), coletadas nas amostras


mencionadas anteriormente, exemplificam, respectivamente, as confi-
gurações em (3) a-d:

(4) o cara vem do Brasil, um nordestino, pra dar um presente pro Papa

(5) ai dei a ele o jogo / Aí Jesus Cristo deu pra ele uma inteligência

(6) Pede seu pai a mesada / pedi ele dois voto

(7) E pede um comprovante ao presidente do morro, né? Pede Ø o seu


Aurino, pede um comprovante Ø ele

De acordo com Gomes (1996, 2003), as construções com o reci-


piente expresso por SP são as mais frequentes na língua, configurações
3a e 3b, respectivamente com frequência de ocorrência de 44% e 42%
do total de dados levantados na Amostra Censo 1980, e 46% e 50% na
Amostra Censo 2000. Já configurações em que o recipiente é expresso
sem preposição, somente o SN, configurações 3c e 3d, ocorrem res-
pectivamente com frequência de ocorrência de 13% e 1%, na Amostra
Censo 1980, e 8% e 2%, na Amostra Censo 2000. Um estudo diacrônico
desenvolvido por Gomes et al. (2003) detectou a configuração 3c no
português arcaico em dados levantados em textos dos séculos XIV e XV,
registrando poucas ocorrências5. Somente foi observada a distribuição

5 “Item mandamos e outorgamos que os mancebos que morarem nas lauoiras e nas casas dos
homens de Terena paguem eles de suas soldadas ateens entruido de uenda de seus vinhos. E
se os maus quiserem teenr emtruido, paguen-nos d’alhur onde quer” (Vasconcelos, 1970, p.
37). “E o caualleyro […] preguntou todollos rreys e todollos primçepes e a todollos homens
de todallas terras como poderia leixar aquell castello a sey salvo, pois que lho elrrey queria
tomar […]” (Vasconcelos, op. cit., p. 42).

206
funcionalismo linguístico: interfaces

das configurações 3a e 3b, dada a escassez de dados sem preposição.


Foram consideradas as variáveis independentes o tamanho em número
de sílabas e a complexidade estrutural dos argumentos internos, assim
como o status informacional do SP e tipo de transferência (material ou
não). Assim, em Gomes (1996, 2003) e em Gomes et al. (2003), em todos
os contextos estruturais analisados e discursivos (status informacional
dos argumentos internos), foi observado que há alternância nas quatro
configurações elencadas em (3), não havendo uso exclusivo de nenhuma
das configurações sintáticas em nenhum dos contextos observados. Dessa
forma, foi possível verificar empiricamente em que medida as diferentes
construções podem ser consideradas semanticamente equivalentes.

Realização de orações relativas do PB

Os primeiros estudos com dados de uso do PB deram um tratamento


de variável linguística à realização de orações relativas (MOLLICA,
1977; TARALLO, 1983). Tarallo (1983) identificou três variantes de
relativas cujo elemento relativizado tem função preposicionada, conforme
nos exemplos em (8):

(8) a) Cortadora: O livro que o aluno precisa foi emprestado


b) Copiadora: O livro que o aluno precisa dele foi emprestado
c) Preposicionada: O livro de que o aluno precisa foi emprestado

Mollica (op. cit.) e Tarallo (op. cit.) mostraram que a variante


preposicionada é rara na fala. Tarallo (op. cit.) detectou um processo de
mudança no português brasileiro na direção da variante cortadora. Já o
trabalho de Abreu (2013) traz contribuição para a discussão em torno da
equivalência semântica a partir de dados de produção controlada e o de
Abreu (2019) sobre compreensão de orações relativas, ambos com dados
de crianças adquirindo o PB) na comunidade de fala do Rio de Janeiro.

207
funcionalismo linguístico: interfaces

Os dados de produção eliciada foram obtidos em experimento


adaptado de Diessel e Tomasello (2005) para incluir a variação lin-
guística que caracteriza o PB em comparação com o inglês e o alemão,
estudados pelos autores. O experimento consistiu na repetição de uma
relativa apresentativa, como em: “Esse é o sorvete de que gosto”/ “Esse
é o sorvete que gosto” / “Esse é o sorvete que gosto dele” para avaliar
o conhecimento linguístico das crianças, uma vez que a repetição não é
um ato mecânico e depende do conhecimento internalizado. 47 crianças
de dois grupos etários (grupo I: 4;0-5;0 anos; grupo II: 6;0-7;0 anos)
participaram do experimento. Do total de 78 estímulos, divididos em 3
listas, 18 correspondem a relativas com termo relativizado preposicio-
nado em orações simples – objeto indireto ou oblíquo (OI), genitivo (G)
e adjunto adverbial (AA). A performance das crianças foi codificada
como acerto (repetição como o estímulo ou com modificações que não
alteram a variante produzida), acerto sociolinguístico (substituição por
outra variante diferente do estímulo) e erro (criação de outra estrutura
sintática, ininteligível, oração truncada).
Os resultados mostraram que as crianças apresentaram melhor de-
sempenho na repetição dos estímulos com a variante cortadora. Foram
obtidos índices de acerto maiores que de erros (índices de acerto – Grupo
I: OI=87%, G=56%, AA=61%; Grupo II: OI=96%, G=81%, AA=73%),
o que reflete a direcionalidade da mudança observada por Tarallo (op.
cit.). Porém, são os resultados obtidos para os estímulos com a variante
preposicionada que trazem contribuição relevante para a discussão sobre
a equivalência de significado entre formas sintáticas diferentes, no caso,
as variantes de relativa. Conforme o esperado, os índices de acerto na
repetição de estímulos com a variante preposicionada foram muito bai-
xos em ambas as faixas etárias (índices de acerto – Grupo I: OI=15%,
G=10%, AA=13%; Grupo II: OI=23%, G=2%, AA=14%). Porém os
índices de erro também foram baixos para as relativas com termo rela-
tivizado na função de objeto preposicionado e adjunto adverbial, já que
a maioria das repetições foi do tipo acerto sociolinguístico conforme os

208
funcionalismo linguístico: interfaces

percentuais obtidos (Grupo I: OI=58%, AA=60%; Grupo II: OI=77%,


AA=67%). Embora tenha havido maiores índices de erro nos estímulos
com termo preposicionado na função genitiva (índice de erro – Grupo
I: G=84%; Grupo II: G=65%), também houve substituição do estímulo
ouvido por uma das outras duas variantes – cortadora ou copiadora. Em
todos os casos de substituição do estímulo com a variante preposiciona-
da, predominaram as substituições com a variante cortadora. A situação
descrita mostra que, para dar conta da tarefa do experimento – repetir
um estímulo com a variante preposicionada de uma oração relativa –,
as crianças, nos dois grupos etários observados, produziram uma forma
entendida/processada como equivalente quanto ao significado, embora
com forma diferente – as variantes cortadora e copiadora, considerando
que a variante preposicionada não está disponível no ambiente linguístico
dessas crianças com uma frequência suficiente para que seja adquirida
naturalmente, sem a mediação da escola.
Os resultados de Abreu (2019) ampliam o entendimento do tipo
de relação que as crianças estabelecem entre as variantes detectadas
por Tarallo (op. cit.). Os dados relativos à compreensão foram obtidos
através de experimento adaptado da metodologia de Arnon (2010) para
incluir as variantes de relativas. O experimento consistiu na verificação
da compreensão de estímulos constituídos de uma pergunta contendo
uma variante de relativa. Na pergunta, há uma relativa que especifica
um acessório de uma entidade. O estímulo oral é pareado com uma tela
com desenhos de três cenas: duas cenas correspondem a dois eventos
com as mesmas entidades usando o mesmo acessório, mas com seus
papéis invertidos, e uma terceira figura com apenas uma das entida-
des, usando o mesmo acessório. A tarefa consistiu na indicação da cor
deste acessório pertencente a uma determinada entidade, conforme
nos exemplos a seguir: “Qual a cor da blusa do menino para quem a
professora entrega o livro?” (variante padrão)/“Qual a cor da blusa
do menino que a professora entrega o livro?” (variante cortadora). O
terceiro desenho corresponde a uma cena distratora, com apenas uma

209
funcionalismo linguístico: interfaces

das entidades, cuja pergunta focaliza o mesmo acessório que não é


especificado por uma oração relativa (Qual a cor da camisa do menino
com um sorvete na mão?)6. Nesse experimento, foi avaliada somente
a compreensão da variante cortadora e da preposicionada. O experi-
mento foi aplicado a 72 crianças com idades entre 3;0 e 6;117. As 72
crianças estão distribuídas em três grupos etários: Grupo I=3;0-3;11;
Grupo II=4;0-4;11; Grupo III=5;0-6;11. A performance das crianças
foi codificada como acerto, se a resposta da cor do acessório corres-
pondia à especificação da entidade através da relativa do estímulo, e
erro, quando não correspondia.
Os resultados mostraram que a compreensão da variante prepo-
sicionada e da variante cortadora está relacionada com a experiência
com a língua, já que as crianças do Grupo I e do Grupo II tiveram
dificuldade semelhante, uma vez que os erros suplantaram os acertos
para as ambas as variantes. Os percentuais de acerto foram os seguintes:
Grupo I – cortadora = 42%; preposicionada = 39%; Grupo II – corta-
dora = 38%; preposicionada = 47%)8, ao passo que, no Grupo III, os
acertos suplantaram os erros para ambas as variantes. Os percentuais
de acerto foram os seguintes: Grupo III – cortadora = 67%; preposi-
cionada = 58%)9.
O estudo mostrou que crianças entre 5;0 e 6;11 tiveram índice alto
de acerto em tarefa de compreensão nos estímulos com relativas prepo-
sicionadas, um resultado inesperado se forem considerados o estágio do
PB em relação à presença de relativas preposicionadas na língua falada e
os resultados observados para o desempenho na tarefa de repetição dessa
variante no estudo de Abreu (2013). A observação de dados de produção
6 Ver, em Abreu (2019), os estímulos linguísticos e as figuras relacionadas usadas no experi-
mento.
7 As idades estão indicadas através de convenção utilizada internacionalmente nos estudos de
aquisição linguística: a idade em anos antes do ponto e vírgula, seguida dos meses. Assim,
6;11 significa 6 anos e 11 meses.
8 Esses resultados se baseiam no Gráfico 3 da tese de Abreu (2019, p. 104). Na tese, os resultados
estão apresentados em função dos índices de erro das respostas das crianças.
9 Os dados foram submetidos à regressão logística de modelo misto e foi verificado efeito da
idade (p-valor=3.474e-08) e da variante (p-valor=6.535e-08).

210
funcionalismo linguístico: interfaces

mostra que essa variante é praticamente inexistente na fala. De acordo


com levantamento realizado por Abreu (2013), na Amostra Censo 2000,
com falantes da cidade do Rio de Janeiro, de um total de 1.882 orações
relativas registradas em entrevistas de 31 falantes da amostra, somente
119 correspondem a orações com termo relativizado na função de objeto
preposicionado (indireto e oblíquo), o que perfaz 6,3% do total de relati-
vas do corpus levantado10. Desse total, somente 7 foram produzidas com a
variante preposicionada, o que corresponde a 6% do total de orações com
esse local de extração, sendo, portanto, a maioria, 109 ocorrências, produ-
zida com a variante cortadora. Se considerados os 1882 dados de orações
relativas de todos os tipos, as ocorrências de relativas preposicionadas
de termo relativizado na função de objeto indireto ou objeto oblíquo são
de baixa frequência na variedade em questão, tanto em termos absolutos,
quanto em termos relativos (o conjunto de ocorrências do tipo estrutural
específico de objeto preposicionado). Assim, o desempenho observado
na compreensão de uma construção que não faz parte do conhecimento
internalizado de crianças se deve ao mapeamento entre esta variante e
as demais, que estão sendo adquiridas no processo natural de exposição
ao ambiente linguístico, em especial a variante cortadora.
De acordo com Diessel e Tomasello (2005) e Diessel e Hilpert
(2016), as relativas mais fáceis para aquisição são as com maior fre-
quência de ocorrência na língua. O processo gradual de aquisição vai
também envolver o mapeamento com estruturas mais simples da língua.
Assim, crianças adquirindo o inglês apresentaram acurácia mais alta na
repetição de relativas de sujeito, que são mais frequentes e mais seme-
lhantes às sentenças simples em função da ordem SVO, típica do inglês
(DIESSEL; TOMASELLO, 2005). Já no estudo de Chen e Shirai (2014),
com dados de produção espontânea de crianças adquirindo o mandarim,
no estágio em que produzem relativas complexas, os autores observam
que há a mesma distribuição de apresentativas, de relativas de sujeito e
de objeto direto, refletindo a frequência observada de ocorrência destas
10 Ver Tabela 10 de Abreu (2013, p. 85).

211
funcionalismo linguístico: interfaces

sentenças na fala direcionada à criança da amostra analisada. Portanto,


os estágios desenvolvimentais podem ser diferentes entre crianças ad-
quirindo línguas diferentes.
Em suma, o bom desempenho na compreensão de relativas pre-
posicionadas, no experimento de Abreu (2019), pode ser atribuído ao
mapeamento, pelas crianças, entre o exemplar praticamente inexistente
(variante preposicionada) e o exemplar equivalente do ponto de vista
semântico e que faz parte de seu repertório, a variante cortadora. Segundo
Ambridge (2020), é suficiente que apenas um exemplar relevante para
que sejam estabelecidas conexões através de analogias (AMBRIDGE,
2020). Nesse caso, o mapeamento tem relação com a similaridade de
significado das duas construções.

Considerações Finais

Neste capítulo, foi discutida a questão da equivalência semântica


entre formas ou variantes sintáticas. Do exposto nas seções anteriores,
observa-se que, tanto na produção quanto no processamento, os falantes
(adultos e crianças) fazem uso de diferentes formas para expressar o
mesmo significado. Do ponto de vista da modelagem do conhecimento
linguístico, de acordo com o Modelo de Exemplares, essas diferentes
formas estão agrupadas em função de propriedades compartilhadas,
incluído a similaridade de significado. A hipótese é que a organização
cognitiva dessas formas é estabelecida em termos de representação em
exemplares – as diferentes formas efetivamente experenciadas pelos
falantes na produção e percepção de sua língua, e através de representa-
ções em redes de conexão, como na proposta de Bybee (2013), conforme
exposto na seção anterior.
Cabe também mencionar a questão do grau de similaridade entre as
formas diferentes equivalentes semanticamente em determinado contexto,
se a semelhança é total (sinonímia perfeita) ou se os significados são
muito próximos a ponto de poderem ser utilizadas alternativamente, em

212
funcionalismo linguístico: interfaces

especial para as alternâncias no nível sintático. A ampliação do requisito


de similaridade de significado referencial para o de equivalência funcional
é indicativa de que a relação de semelhança não é necessariamente perfeita
(TAGLIAMONTE, 2006, p. 75-76). De acordo com Sankoff e Thibault
(1981, p. 207), em relação a alternância no nível sintático, a variação
pode começar para duas formas semanticamente distintas quando passam
a ser usadas com a mesma função discursiva. A comparabilidade entre
as formas a partir de um critério semântico será estabelecida através de
mecanismos cognitivos como a analogia e reforçada por instâncias de uso.
Um outro aspecto importante é o fato de a semelhança semântica en-
tre formas poder ser verificada empiricamente. Conforme foi mencionado
anteriormente, pode haver contextos em que não há alternância entre as
formas, isto é, pode ser que não sejam intercambiáveis para expressar o
mesmo significado ou, se podem ser usadas no mesmo contexto, podem
expressar significados diferentes. A especialização de uma forma pode
estar relacionada com o estágio do processo de mudança. Os estudos
sociolinguísticos têm mostrado que o contexto de alternância tanto pode
ser estrutural quanto social e discursivo-pragmático, de maneira que não
há restrição de nível linguístico e de tipo de contexto para que as formas
sejam consideradas intercambiáveis.

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217
funcionalismo linguístico: interfaces

ANEXO A

Tableau 1 – Fréquence de por causa de et por conta de par période

Période Période
CONSTRUCTION Période TOTAL
Ancienne Classique
Moderne

POR CAUSA DE SN 12 = 12,5% 26 = 27,1% 58 = 60,4% 96

____
POR CAUSA DE SV 6 = 85,7% 1 = 14,3% 7 7

____
POR CONTA DE SN 4 = 28,6% 10 = 71,4% 14

Fonte: Paiva e Oliveira (2020, p. 892)

ANEXO B
Tableau 2 – Propriétés de por causa de et por conta de en Portugais moderne/
contemporain

PROPRIETE POR CAUSA DE POR CONTA DE

Domaine du lien causal Domaine référentiel: 89,8% Domaine référentiel: 80%


Processus matériel: 35,6% Processus matériel: 30%
Type d’événemment
Processus rélationel: 25,4% Processus rélationelle: 40%
Position de la cause par
Postposée: 62,7% Postposée: 70%
rapport à l’effet
Information non mention-
née: Information non mentionnée
Statut informationnel du 64,9% neuve: 57,1%
segment causale Information mentionnée: Information mentionnée: 14,3%
35,1% Information inferrable: 28,6%
Information inferrable: 0%

____
POR CONTA DE SN 4 = 28,6% 10 = 71,4% 14

Fonte: Paiva e Oliveira (2020, p. 893)

218
funcionalismo linguístico: interfaces

ANEXO C
Tableau 4 – Valeur pragmatique des segments cause et effet liés par por
causa de et por conta de

VALEUR PRAGMATIQUE POR CAUSA DE POR CONTA DE


____
Cause positive - effet positif 1 = 1,7%
____
Cause positive - effet négatif 2 = 3,4%
____
Cause positive - effet neutre 1 = 1,7%
Cause négative - effet positif 1 = 1,7% 2 = 20%
Cause négative - effet négatif 30 = 50,9% 1= 10%
____
Cause négative - effet neutre 1 = 1,7%
Cause neutre - effet neutre 14 = 23,7% 7 = 70%
____
Cause neutre - effet positif 9 = 15,2%
____ ____
Cause neutre - effet négatif
TOTAL 59 10

Fonte: Paiva e Oliveira (2020, p. 898)

219
funcionalismo linguístico: interfaces

POR UMA ANÁLISE COMPREENSIVA DO


CRUZAMENTO VOCABULAR EM PORTUGUÊS

Carlos Alexandre Gonçalves


(UFRJ/CNPq)

Palavras iniciais

Neste capítulo, analisamos o fenômeno do cruzamento vocabular


(CV) em português, com o propósito de chegar a uma visão mais ampla
e mais precisa sobre esse processo de formação de palavras tão discutido
nos últimos anos, a partir de perspectivas teóricas bastante diversifica-
das: (a) a Linguística Cognitiva (ANDRADE; RONDININI, 2016), (b)
a Teoria da Otimalidade (MARANGONI, 2021), (c) o Processamento
Linguístico (MINUSSI; VILLALVA, 2020), (d) a Sociolinguística (BRA-
GA; PACHECO; ROCHA, 2022) e (e) a Linguística Textual (VIVAS;
MORAIS, 2021), para citar apenas algumas.
Com o objetivo de propor uma visão mais geral e abrangente sobre
o fenômeno, isenta de orientações teóricas, comparamos o CV com a
composição, procurando comprovar que, apesar de envolverem duas
bases, são mecanismos formalmente distintos. Desse modo, refutamos
a hipótese de clássicos como Sandmann (1989) e Basilio (2005), para
quem o CV é um tipo de composição. Por fim, analisamos os splinters1,
mostrando que formações com essas unidades provêm de cruzamentos,
1 Por ora, podemos definir como porções não morfêmicas utilizadas na criação de séries de
palavras, como o ‑lé, de picolé: ‘sacolé’, ‘sucolé’, ‘whiskylé’ e ‘peitolé’, entre tantas outras.

221
funcionalismo linguístico: interfaces

mas passam a ser concatenativas, em virtude de, como os afixos, ocupa-


rem lugar predeterminado na estrutura da palavra e criarem formações
padronizadas e em série.
O texto se divide em três principais partes: em primeiro lugar,
exemplificamos o fenômeno e testamos várias definições encontradas
na literatura. Na sequência, mostramos os pontos de convergência e
divergência entre a composição e o CV. O objetivo maior desta parte
do trabalho é reivindicar um lugar para o CV na formação de palavras e
mostrar que de modo algum é assistemático ou irregular.
Por fim, apresentamos uma tipologia para o fenômeno, abordando
tanto os aspectos formais quanto os funcionais, isso sem nos comprometer
com nenhuma teoria linguística. Desse modo, a abordagem é fundamen-
talmente descritiva e praticamente ateórica: pretendemos argumentar que
o CV não faz parte da morfologia extragramatical, como querem alguns
teóricos (cf., p. ex., PLAG, 1999; MATTIELO, 2013), pelo simples fato
de responder pela criação de novas unidades morfológicas, modernamente
denominadas de splinters.
Neste capítulo, iremos nos concentrar nos dados do português
brasileiro, valendo-nos de exemplos encontrados em diversos trabalhos
sobre o assunto: Sandmann (1985, 1989), Gonçalves (2003, 2019, 2022),
Basilio (2005, 2010), Andrade (2009, 2013), Gonçalves, Andrade e
Almeida (2010) e Simões Neto (2016), para citar apenas alguns, além
dos já mencionados. Para mostrar a vitalidade do processo, ampliamos
o corpus, ilustrando o texto com formações da esfera política envolven-
do os quatro anos do então presidente Jair Messias Bolsonaro (2018-
2022). Desse modo, a coleta recorreu a fontes informais, a exemplo do
site Desciclopédia2, e às redes sociais, como o Twitter, o Facebook, o
Instagram e o WhatsApp. Muitos dados foram rastreados com o auxílio

2 Escrita com a colaboração de seus leitores, a Desciclopédia é “um site de humor debochado e
seu conteúdo não deve ser levado a sério. Todas as nossas regras e políticas convergem para
um só princípio: ser engraçado e não apenas idiota” Disponível em: https://desciclopedia.org/
wiki/P%C3%A1gina_principal. Acesso em: 15 jan. 2023.

222
funcionalismo linguístico: interfaces

da ferramenta eletrônica Google. Com esse site de busca, chegamos a


vários blogs e páginas criados com a intenção de demonstrar apreço,
desapreço, crítica ou ironia sobre os principais fatos envolvendo a tão
polêmica gestão Bolsonaro.

O fenômeno

Observando o fenômeno, Rio-Torto (1998) mostra que o CV é


bastante produtivo e disponível no português brasileiro, mas não en-
contra correspondência de disponibilidade e produtividade na variedade
europeia. Essa constatação é reiterada em Almeida (2005) e em Villalva
e Gonçalves (2016), segundo os quais o CV é mais usual no Brasil que
em Portugal. Estudos recentes, no entanto, como o de Villalva e Minussi
(2022), acenam para o crescente uso na variedade europeia. Nossa análise,
neste texto, será centrada nos dados do português do Brasil, sobretudo
nos criados em referência ao governo precedente.
Comecemos primeiramente exemplificando o CV para, logo após,
testarmos algumas definições – tanto de teóricos da morfologia quanto
de morfólogos do português. Com isso, pretendemos mostrar os acertos
e os desacertos de cada uma, a fim de conhecermos melhor o processo e,
ao mesmo tempo, apresentar exemplos mais recentes, surgidos durante a
presidência de Jair Bolsonaro (2018-2022). Eis uma primeira amostra de
cruzamentos, com dados abonados pelos nossos principais dicionaristas
(cf. FERREIRA, 2019; HOUAISS, 2021; MICHAELIS, 2023):

(01)
portunhol (português + espanhol) –“mistura de português e espanhol”
sacolé (saco + picolé) – “picolé em formato de saco”
chafé (chá + café) – “café muito fraco, que se parece com chá”
apertamento (apartamento + aperto) – “apartamento muito pequeno,
apertado”
aborrescente (adolescente + aborrece) – “adolescente que aborrece”

223
funcionalismo linguístico: interfaces

Nesse primeiro apanhado de exemplos, já observamos palavras bem


diferentes tanto do ponto de vista estrutural quanto funcional. Em alguns
casos, há rotulação (‘sacolé’); em outros, expressão de ponto de vista
(‘aborrescente’). Há exemplos que envolvem clara sobreposição das bases
(‘apertamento’), mas há outros com redução das duas palavras-matrizes
(‘portunhol’) ou de apenas de uma (‘chafé’).
O comportamento diferenciado dos dados talvez justifique a enorme
variação terminológica encontrada na literatura sobre o fenômeno em
português. Algumas retomam o termo inglês correspondente (blend) ou
sua tradução (mescla, mistura). Como o trabalho mais antigo sobre o
português de que temos notícia é o de Sandmann, no seu clássico livro
de 1985, optamos pelo rótulo CV. Observe-se, em (02), a enorme diver-
sidade terminológica:

(02)
(a) Cruzamento vocabular (HENRIQUES, 2007; SANDMANN, 1990;
SILVEIRA, 2002);
(b) Palavra-valise (ALVES, 1990);
(c) Mistura (SÂNDALO, 2001);
(d) Portmanteau (ARAÚJO, 2000);
(e) Amálgama (AZEREDO, 2000; MONTEIRO, 1989);
(e) Composição de partes de palavras (STEINBERG, 2003);
(f) Mescla vocabular (ÁLVARO, 2003);
(g) Fusão vocabular – FUVES (BASÍLIO, 2005);
(h) Blend lexical (ALMEIDA, 2005).

A diversidade estrutural dos dados cria um enorme embaraço para


definir o fenômeno. Vejamos, na sequência, algumas definições e os
problemas de cada uma. Comecemos com a de Laubstein (1999, p. 1),
para quem o CV provém da “junção de dois vocábulos, sendo que o
segundo é utilizado para completar parte do primeiro”.
Laubstein (1999) chama atenção para a ordem das palavras,
afirmando que a primeira completa a segunda, mas qual a primeira

224
funcionalismo linguístico: interfaces

e qual a segunda? O que determina a ordem das palavras no interior


do cruzamento? Além disso, a definição dá a entender que a segunda
é sempre completa, sendo a primeira encurtada, o que acolhe, por
exemplo, ‘sapatênis’ (“calçado com propriedades de tênis e sapato,
simultaneamente”), mas deixa de lado ‘brasiguaio’ (“brasileiro ou
paraguaio/uruguaio que vive na fronteira entre os dois países”), duas
formas igualmente dicionarizadas e amplamente usuais no português
do Brasil.
Tentemos uma segunda definição, encontrada num clássico
da morfologia do inglês, Marchand (1960, p. 367), para quem “os
blends são construídos por meio de palavras reduzidas”. A definição
de Marchand resolve parte do problema da de Laubstein, mas deixa
de acolher casos em que não há redução de uma palavra ou das duas,
como ocorre nos diversos dados em que as palavras de base aparecem
emaranhadas, sendo simplesmente impossível dividi-las em partes
discretas mínimas. Por exemplo, em ‘crionça’ (“criança muito rebel-
de”), ‘onça’ não completa ‘criança’, mas compartilha com essa palavra
uma porção fonológica para além de uma sílaba. O mesmo raciocínio
é válido para a recém-criada ‘Bolsonero’, em que ‘Nero’ não completa
‘Bolsonaro’, sendo praticamente idêntica ao pé nuclear (-naro) desse
sobrenome. Como mostra a capa da conhecida revista brasileira IstoÉ
(Figura 1), Bolsonaro é comparado ao imperador Nero, muito lem-
brado na História por sua tirania, extravagância, mas, sobretudo, pela
crença generalizada de que, enquanto Roma ardia em chamas, estaria
compondo com a sua lira. Tal foi o comportamento do ex-presidente
durante o auge da pandemia de covid-19: o Brasil estava registrando
óbitos e mais óbitos, enquanto o presidente andava de jet ski ou era
flagrado em diversas “motociatas”.

225
funcionalismo linguístico: interfaces

Figura 1 – Bolsonero

Fonte: Google Images

De acordo com Algeo (1977, p. 10), “Um blend é uma palavra


construída pela união de duas ou mais formas, mas com perda segmental
de pelo menos uma”. A definição fornecida por Algeo dá a entender que
sempre haverá perda segmental no fenômeno, o que é verdadeiro para
muitos casos, mas não para todos. Tal é a situação, por exemplo, das
recentes criações ‘Paizuelo’3 e ‘Mijair’4:

3 Alusão ao episódio em que o ex-ministro da saúde, depois de reiteradas cobranças pela vacina,
disse que ela chegaria na hora H e no dia D. A imagem o compara a um “pai de santo” fazendo
uma espécie de profecia com os búzios.
4 A formação remete ao episódio da crise hídrica, no qual Bolsonaro falou que a população
deveria defecar dia sim, dia não. A imagem mostra que o então presidente simplesmente ignora
a realidade do país e joga sobre ele suas excrescências.

226
funcionalismo linguístico: interfaces

Figura 2 – ‘Paizuello’ e ‘Mijair’

Fonte: Google Images

Outras formações mais antigas são maiores que a palavra de base mais
longa. Tal é a situação dos seguintes exemplos, alguns bem conhecidos:

(03)
crentino (crente + cretino) = “evangélico dissimulado, sonso”
(classe) mérdia (média + merda) = “classe média falida”
pedragogia (pedra + pedagogia) = “pedagogia antiga, da idade da pedra”
paitrocínio (pai + patrocínio) = “patrocínio pelo pai”
showfer (show + chofer) = “motorista (chofer) muito bom, um show”
uisquerda (uísque + esquerda) = “esquerda-caviar; esquerda rica”

São muito comuns casos em que as duas bases são inteiramente


preservadas, por compartilharem grande quantidade de massa fônica:

(04) patriotário (patriota+ otário) = “patriota imbecil; bolsominion”


gadoente (gado + doente) = “gado (seguidores de Bolsonaro)
dementado”
politicanalha (política + canalha) = “política corrupta”
fakeada (facada + fake) = “facada falsa”

Por fim, caso levemos em conta a presença de correspondência não


idêntica, mas parcial, entre pelo menos um segmento das bases, como
sugere, por exemplo, Piñeros (2000), o número de dados sem perda
segmental aumenta consideravelmente:

227
funcionalismo linguístico: interfaces

(05)
Micheque (Michelle (Bolsonaro)) + cheque = “cheque de Michelle”
Pilantropia (filantropia + pilantra) = “filantropia corrupta”
Prostiputa (prostituta + puta) = “muito prostituta”
Damales (Damares (Alves)) + males = “Damares muito do mal”

Por exemplo, a formação ‘Micheque’, que passou a ser usada em


larga escala em relação à ex-primeira-dama, pode ser considerada uma
criação sem perda fônica, caso correlacionemos os segmentos /k/ e /l/.
De acordo com Piñeros (2000), esse recurso é muito usado em espanhol
e, como podemos perceber na representação a seguir, otimiza maxima-
mente o grau de semelhança entre as bases através da correspondência
de segmentos semelhantes5:

(06)

A imagem a seguir sintetiza bem o evento em que Fabrício Queiroz


(quem assina o “documento” jocoso) fez depósitos, oriundos das supostas
“rachadinhas”, no valor de R$ 89.000,00, na conta da então primeira-
-dama, para quem o cheque, nessa versão satirizada, seria nominal:

5 Linhas sólidas representam elementos idênticos e linhas pontilhadas, segmentos correspon-


dentes. As demais convenções serão explicadas mais adiante.

228
funcionalismo linguístico: interfaces

Figura 3 – Micheque Bolsonaro

Fonte: Google Images

Testemos, a seguir, a conceituação que Cannon (1986, p 738) pro-


põe para o cruzamento: “recurso entendido como fusão ou superposição
deliberada de duas palavras em apenas uma […]. É um mecanismo rela-
tivamente moderno e isolado nos estudos de lexicologia ou de formação
de palavras”6. No nosso entendimento, a definição de Cannon esbarra em
dois grandes problemas: o primeiro é deixar de lado casos sem qualquer
fusão ou sobreposição de bases, como se vê em (07), a seguir; o segundo
é afirmar que o fenômeno é relativamente moderno e isolado.

(07)
toboágua (tobogã + água) = “tobogã em que se cai numa piscina”
futevôlei (futebol + vôlei) = “esporte com rede, mas jogado como futebol”
showmício (show + comício) = “comício feito com apresentações musicais”
forrogode (forró + pagode) = “gênero musical que mistura forró e pagode”
lambaeróbica (lambada + aeróbica) = “ginástica feita com a dança lambada”
macuncrente (macumbeiro + crente) = “crente que frequenta umbanda”
psicogélico (psicólogo + evangélico) = “psicólogo evangélico”
vagaranha (vagabunda + piranha) = “muito vulgar; rameira demais”
6 Tradução livre de “resource understood as the deliberate fusion or superposition of two words
into one […]. It is a relatively modern and isolated mechanism in studies of lexicology or word
formation”.

229
funcionalismo linguístico: interfaces

Contrariando a ideia de que o fenômeno é moderno, Danks (2003)


mostra que, por muitos séculos, escritores foram conscientemente criando
cunhagens estilísticas em seus textos, dando a eles um toque de origi-
nalidade e elegância. Cruzamentos foram usados por Edmund Spenser,
escritor inglês do século XVI, que criou, por exemplo, foolosophy, de
fool, ‘imbecil’, + philosophy, ‘filosofia’ = “filosofia tola”, e William
Shakespeare, dramaturgo inglês dos séculos XVI e XVII, que inventou,
entre outras, rebuse, de rebuke, ‘repreensão’ + abuse, ‘abuso’= “abuso
de autoridade”. No entanto, um dos primeiros escritores a teorizar sobre
essas formações foi Lewis Carroll, que fez isso através do famoso per-
sonagem Humpty Dumpty7:

“Isto explica direitinho”, disse Alice. “E lubriciosos?”


“Bem, ‘lubriciosos’ significa lúbricos, que é o mesmo que
escorregadios, e operosos, ágeis. Entende: é uma palavra-
-valise… há dois sentidos embalados numa palavra só”8
(CARROL, 1876, p. 69).

No prefácio do seu clássico The Hunting of the Snark, Carrol


(1876) nos ensina como misturar palavras, criando compostos. Destaca,
no entanto, que o CV provém de um “dom mais raro”9, uma “mente
perfeitamente equilibrada”:

Por exemplo, pegue as palavras “fumegante” e “furioso”.


Pense que dirá ambas as palavras, mas deixá-lo-á inquieto
o que dirá primeiro. Agora abra a boca e fale. Se os teus
pensamentos inclinam um pouco para “fumegante”, dirá
7 No livro Through the Looking-Glass and What Alice Found There (Alice através do espelho
e o que ela encontrou por lá), Humpty Dumpty é uma espécie de ovo com características
antropomórficas que constantemente combina palavras.
8 Tradução extraída de Simões Neto (2016, p. 48).
9 Tradução livre de “For instance, take the two words ‘fuming’ and ‘furious’. Make up your
mind that you will say both words, but leave it unsettled which you will say first. Now open
your mouth and speak. If your thoughts incline ever so little towards ‘fuming’, you will
say ‘fuming-furious’; if they turn, by even a hair’s breadth, towards ‘furious’, you will say
‘furious-fuming’; but if you have the rarest of gifts, a perfectly balanced mind, you will say
‘frumious’.”

230
funcionalismo linguístico: interfaces

“fumegante-furioso”; se eles se voltarem, até por um


cabelo, para “furioso”, dirá “furioso-fumegante”; mas
se tiver o mais raro dos dons, uma mente perfeitamente
equilibrada, dirá “fumerigoso” (CARROL, 1876, p. 4).

Voltemos à definição de Cannon. O último ponto digno de nota nessa


concepção de CV é o fato de ela afirmar ser esse processo de formação
de palavras um fenômeno isolado. Ao contrário da autora, acreditamos
que o CV possa até ser universal, uma vez que certamente resulta de
uma mesclagem conceptual10, habilidade inerente à cognição humana
(FAUCONNIER; TURNER, 2002). Há, na literatura, descrições sobre
esse recurso em várias línguas tipologicamente diferentes:

(08)
Francês (CLAS, 1980):
franglais << français, ‘francês’ + anglais, ‘inglês’ = mistura de francês
com inglês

Espanhol (PIÑEROS, 2000):


moskeperro << mosquetero, ‘mosqueteiro’ + perro, ‘cachorro’ =
“cachorro-
mosqueteiro”

Alemão (BRDAR-SZABÓ; BRDAR, 2008):


WAPathie << WAP ‘sigla de wireless’ + Apathie, ‘apatia’ = “banda
larga lenta”

Húngaro (BRDAR-SZABÓ; BRDAR, 2008):


adventúra << adventure ‘aventura’ + túra, ‘turismo’ = “turismo com
aventura”

Inglês (cf. KEMMER, 2000):


flunami << tsunami, ‘tsunami’ + flu, ‘gripe’ = “gripe assoladora”
10 O processo de Mesclagem Conceptual é construído a partir da integração de espaços mentais
cujos conteúdos relacionam uma rede de conceitos advindos de esquemas conceptuais como
os Frames e os Modelos Cognitivos Idealizados.

231
funcionalismo linguístico: interfaces

Hebraico (BAT-EL, 2006):


kloran << klan, ‘KKK’ + Koran, ‘livro sagrado’ = “bíblia usada pela
Ku Klux Klan”

Indonésio (DARDJOWIDJOJO, 1979):


polair << polisi, ‘polícia’ + air, ‘água’ = “bombeiro”

Alemão (RONNEBERGER-SIBOLD, 2006; RONNEBERGER-


-SIBOLD, 2012)
kamelefant << kamel, ‘camelo’ + elefant, ‘elefante’ = “elefante com
função de camelo”

Malaio (DOBROVOLSKY, 2001)


menlu << men, ‘ministro’ + lu, ‘externo’ = “ministro das relações
exteriores”

Italiano (THORNTON, 1993)


anttivista << anti, ‘anti’ + attivista, ‘ativista’ = “contrário aos militantes
ativistas”

Galego (MARTÍNEZ, 2014)


cuinalefacció << cuina, ‘cozinha’ + calefacció, ‘calefação’) = calefação
para cozinhas

Vamos, agora, testar uma definição de um morfólogo do português.


Escolhemos Sandmann, por ser o primeiro autor de que se tem notícia a
descrever o fenômeno. Para ele, “o cruzamento é um tipo de composição
em que duas palavras se fundem para formar uma terceira” (SAND-
MANN, 1985, p. 236). Entendemos que a definição de Sandmann (1985)
esbarra em três questões importantes, uma delas já apontada: (a) nem to-
dos os casos de cruzamento resultam em fusão, mecanismo aqui entendido
como interposição, entranhamento, sobreposição, como exemplificamos
nos dados em (07); (b) a existência de (poucos) cruzamentos envolvendo
três formas de base, como as novíssimas ‘evangeguistão’ e ‘Carluxona-
ro’, mas outras, mais antigas e menos avaliativas, como ‘cantrizlarina’

232
funcionalismo linguístico: interfaces

(‘cantora’ + ‘atriz’ + ‘bailarina’), (suco de) ‘maracajuva’ (‘maracujá’ +


‘caju’ + ‘uva’) e ‘maravibótimo’ (‘maravilhoso’ + ‘bom’ + ótimo’); e,
sobretudo, (c) a alegação de que o CV é um tipo de composição.
A formação ‘evangeguistão’ demonstra posicionamento crítico do
conceptualizador em relação à crescente participação de evangélicos
neopentecostais em cargos públicos de grande relevância nacional, o
que poderia fazer com que o Brasil se tornasse um país parecido com as
ditaduras islâmicas, que, totalmente fundamentalistas, misturam religião
com política. Grande parte dessas formações termina em ‑istão, raiz an-
tiga do indo-europeu que significa “terra de”: ‘Paquistão’, ‘Turquistão’,
Afeganistão’, “Uzbequistão’ etc. Como se observa nos comentários a
seguir, a palavra ‘jegue’ aparece no interior do cruzamento para ironizar,
por exemplo, a bancada da Bíblia, falas preconceituosas de deputados e
senadores neopentecostais e expressões como “terrivelmente evangélico”,
esta última amplamente usada pelo então presidente na indicação de um
dos ministros do STF. Comprovemos esse uso com três diferentes posta-
gens: a primeira é um comentário no YouTube sobre o vídeo do filósofo
Paulo Ghiraldelli, intitulado “Os evangélicos emburrecem o Brasil11:
Figura 4 – Tweet de evangeguistão

(09)

Fonte:

No tweet a seguir, o internauta, além de usar ‘evangeguistão’,


também faz uma derivação com o sufixo ‑ismo para reforçar o caráter
ideológico/doutrinário dessa possível união12:
11 Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCBMKrkHv07GoYb5ITLt0sYQ/
community?lb=Ugkxoc1GHNV5SnMhxy-VXDVGzjkeweuY6n5h. Acesso: 15 fev. 2023.
12 Disponível em: https://jornalggn.com.br/noticia/e-preciso-disputar-territorios-ocupados-por-
-igrejas-e-dialogar-com-evangelicos-diz-esther-solano. Acesso em: 15 fev. 2023.

233
funcionalismo linguístico: interfaces

Figura 5 – Tweet de evangeguistão e evangeguismo

Fonte:

Por fim, a Figura 6 diz tudo: o fundamentalismo religioso pode


acabar rompendo o dique, estado laico, que protege a democracia:
Figura 6 – Imagem da relação estado-religião com o possível evangeguistão

Fonte: Google Images

Como se pode observar, cruzamentos são notavelmente diversos


em termos de sua estrutura formal e variam muito de língua para língua
(BELIAEVA, 2019). De acordo com Fandrych (2008), o termo blen-
ding (aqui empregado em referência ao processo) é metafórico, já que
vem a ser utilizado em referência à mistura de palavras preexistentes e
as formas resultantes refletem, iconicamente, as palavras-matrizes por

234
funcionalismo linguístico: interfaces

meio de diferentes estratégias. Da mesma maneira, Bauer afirma que,


sob a rubrica blending, “há um conjunto de formações cuja taxonomia é
difícil de discernir. Algumas palavras que funcionam como cruzamentos
mantêm uma das duas bases intactas e outras não”13 (BAUER, 2005, p.
236). Esses depoimentos mostram a dificuldade de definir o fenômeno,
apesar de sua vitalidade ter crescido muito no século XXI, como observa
Mattielo (2013).
Pelo que se expôs até aqui, podemos considerar que cruzamentos
vocabulares:

a. caracterizam-se maciçamente pela combinação de duas palavras que


se encurtam/misturam/fundem para formar uma terceira;

b. apresentam função de rotulação (nomeação), mas – principalmente


– manifestam o ponto de vista do conceptualizador a respeito de algo
ou alguém (função atitudinal ou expressiva de avaliação);

c. apesar de efêmeros e altamente dependentes de co(n)texto, não são


criações modernas, pois aparecem, por exemplo, em textos literários
antigos;

d. assemelham-se a compostos, que também envolvem a combinação


de duas formas de base, mas, no nosso entendimento, resultam de um
processo não concatenativo de formação de palavras, uma vez que
não respeitam a sucessão linear estrita das bases, mesmo nos casos em
que apenas uma delas é reduzida (‘toboágua’).

Desse modo, não interpretamos o cruzamento como um tipo


especial de composição como fazem, por exemplo, Sandmann (1990)
e Basilio (2005). Então, para justificar essa proposta de análise, vamos
destacar os pontos de divergência entre os dois processos.

13 Tradução livre de “There are a number of formations whose taxonomy is difficult to discern.
Some words that function as crossovers keep one of the two bases intact and others do not”.

235
funcionalismo linguístico: interfaces

Cruzamento e composição como processos distintos

Um argumento forte o bastante em favor de ser o cruzamento dife-


rente da composição é o fato de formar verbos (‘abreijei’, ‘chorrindo’),
o que nunca ocorre com a composição, ainda que um verbo participe da
construção, à semelhança de uma relação Verbo-Objeto (‘saca-rolhas’,
‘louva-a-Deus’), ou, ainda, mesmo que dois verbos se combinem, a
exemplo de ‘bate-entope’, ‘senta-levanta’ e ‘deita-e-rola’, entre outros.
Por fim, não deixam de ser relevantes os casos em que uma forma verbal
duplica e cria um nome (‘puxa-puxa’, ‘esconde-esconde’).
A especificidade de a composição formar apenas nome já vem sendo
mostrada, aqui no Brasil, desde o trabalho de Lee (1995) e é reforçada,
por exemplo, em Gonçalves e Almeida (2014), que, com base em Booij
(2005), propõem o seguinte esquema para a composição14:

(11) [[X]x[Y]y]N

Esse, por si só, constitui argumento forte na defesa do CV como


processo diferente da composição. Na relação a seguir, em (12), apare-
cem vários verbos como produtos de cruzamentos; em todos os casos,
temos como resultado um verbo de natureza copulativa, pois a relação
entre as bases é sempre de coordenação. Por exemplo, ‘chorrir’ pode ser
interpretado como “chorar e rir ao mesmo tempo”:

14 No esquema em (11), as variáveis X e Y representam sequências fonológicas e os subscritos


x e y, categorias lexicais. O esquema dos compostos expressa a generalização de que a com-
posição, independentemente da posição da cabeça lexical, sempre forma nomes em português
(daí o subscrito N).

236
funcionalismo linguístico: interfaces

(12)
ouver << ouvir + ver = “ver e ouvir ao mesmo tempo”
roubartilhar << roubar + compartilhar = “compartilhar de outrem”
empresdar << emprestar + dar = “dar com a desculpa de empréstimo
de outrem”
enloquepirar << enlouquecer + pirar = “pirar de vez”
curtilhar << curtir + compartilhar = “curtir e compartilhar”
omentir << omitir + mentir = “mentir através da omissão”
estremexer >> estremecer + mexer = “mexer estremecendo”

A composição apresenta inúmeros padrões estruturais, como é o caso


dos seguintes, entre vários outros, caso admitamos que idiomatismos são
compostos, a exemplo de (13, o):
(13)
a. subst.+ prep. + subst.: dente de leite; corpo a corpo;
b. num.+ subst.: mil-folhas; três Marias;
c. prep. + adj./subst.: abaixo-assinado; além-mar;
d. subst. + adj.: cofre-forte, dedo-duro, sangue-frio;
e, adj. + subst.: alto-relevo, boa-fé, puro-sangue;
f. adv. + subst./adj.: bem-vindo, não fumante;
g. adv. + verbo: malquerer; bem-estar;
h. verbo + subst.: guarda-chuva, paraquedas;
i. verbo + adj.: come-quieto, come-calado;
j. verbo + prep. + subst.: faz de conta, louva-a-deus; lava a jato;
k. adv. + pron. + verbo: não-me-toques, não-me-deixes;
l. subst. + pron. +verbo: Deus nos acuda
m. verbo + conj. verbo: vai e vem, leva e traz;
n. verbo + verbo: corre-corre-agarra-agarra
o. subst. + verbo + prep. +art. + subst.: maria vai com as outras
p. (…)

237
funcionalismo linguístico: interfaces

Rio-Torto (2014) faz um exaustivo levantamento dos padrões de


combinação de palavras nos cruzamentos e aponta que muitos têm corres-
pondência com compostos. No entanto, a variedade apresentada em (13)
contrasta com a pouca diversidade de combinações nos cruzamentos15:

(14)
S-S: Dhammernaro, BolsoHitler, Bolsolixo, bolsomerda
A-S: chatonaro, bestanaro, bostanaro
S-A: bolsocaro, bolsoimundo, bolsoignaro
A-A: analfaburro, horrorível, Macuncrente
V-S: sofressor, roubanaro
S-V: cartomente, bolsodar

Outro argumento de natureza morfossintática pode ser trazido à


tona para reforçar a ideia de que cruzamento e composição constituem
processos distintos: a posição da cabeça lexical. Como observado em
Silveira (2002), primeira dissertação sobre o CV em português de que
se tem notícia, na composição de base livre, como ‘tubarão-martelo’, a
cabeça lexical se posiciona sempre à direita (exceto nos casos oriundos
de neoclássicos com forma livre correspondente, a exemplo de ‑fobia,
-mania, ‑terapia etc.). Nos cruzamentos, há grande oscilação quanto
à posição da cabeça. De fato, nos compostos com dois substantivos,
o padrão geral é Determinado-Determinante (DM-DT), com cabeça à
esquerda, ainda que o segundo substantivo possa não ser interpretado
metafórica ou metonimicamente, a exemplo de ‘sofá-cama’ e ‘meia-
-calça’; nos cruzamentos, o lugar do núcleo varia bastante, conforme
o levantamento que fizemos para este texto. Nos dados a seguir, 1
representa o determinado (DM) e 2, o determinante (DT). O padrão 1
1 diz respeito aos casos de coordenação. Como os casos com estrutura
15 Há outras combinações minoritárias, como as feitas com elementos funcionais, a exemplo
de ‘maisculino’ (RIO-TORTO, 2014, p. 24) e ‘antivista’, achada por nós em referência aos
terroristas que invadiram e depredaram Brasília no dia 08/01/23. No entanto, a autora destaca,
como nós, que “os padrões estruturais de fusão não são menos variados que os que caracterizam
a composição em português, sendo maioritariamente comuns a ambos os processos”. Para
deixar bem claro, nos exemplos em (15) S abrevia Substantivo, V, Verbo e A, Adjetivo.

238
funcionalismo linguístico: interfaces

VV (‘curtilhar’) e AA (‘maravilinda’) são sempre coordenativos, não


constam do quadro a seguir:
Quadro 1 – Padrões estruturais de cruzamento

Fonte: elaboração própria

No Gráfico 1, a seguir, há uma distribuição quase equilibrada entre


os padrões DM-DT e DT-DM, o que não acontece na composição com
base livre. Reiteramos, respaldados em Gonçalves (2019), que raríssimos
são os casos de composição vocabular DT-DM, restritos, quase exclu-
sivamente à composição neoclássica, marcada, por exemplo, por vogal
entre os constituintes:

239
funcionalismo linguístico: interfaces

Gráfico 1 – Padrões de cruzamento

Fonte: elaboração própria

Ainda sob um olhar morfossintático, os compostos caracterizam-se


pela peculiaridade de admitir processos morfológicos em seu primeiro
componente, como se verifica em ‘peixes-espada’ (flexão de número),
‘filha da p.’ (flexão de gênero) e ‘priminha-irmã’ (variação de grau).
Cruzamentos, por sua vez, só podem variar na margem direita: ‘forro-
godeiro’ (acréscimo de ­‑eiro a ‘forrogode’), ‘optatórias’ (variação de
número de (disciplina) ‘optatória’) e ‘brasiguaia’ (variação de gênero de
‘brasiguaio’). Dito de outra maneira, cruzamentos são mais integrados
que compostos, constituindo unidades bem mais atômicas. Passemos,
na sequência, aos argumentos que consideramos mais decisivos para a
separação composto/cruzamento.
A lista de argumentos de que nos valemos para afirmar que o cru-
zamento constitui fenômeno distinto da composição pode ser aumentada
significativamente se considerarmos que o CV:

a. Opera com bases que são palavras nem sempre completas, isto é,
cruzamentos geralmente envolvem pedaços (porções não morfêmicas)
de pelo menos uma forma de base. Essa é uma diferença morfológica
bem consistente entre os processos;

240
funcionalismo linguístico: interfaces

b. É marcado pela perda de segmentos fônicos não motivada por pro-


cessos fonológicos regulares, como nos compostos aglutinativos (se é
que existem), que podem sofrer crase (‘aguardente’), elisão (‘planalto’)
ou haplologia (‘tragicômico’), ou seja, a composição pode se submeter
a processos de sândi externo, o que não vem ao caso nos CVs;

c. Não necessariamente se caracteriza pelo encadeamento, sendo, por


isso mesmo, um processo não concatenativo de formação de palavras.
Nos compostos, uma palavra se inicia exatamente no ponto em que a
outra termina (‘beija-flor’). Ainda que haja sândi, é possível identificar
a fronteira das palavras e a existência de unidades morfêmicas;

d. Realiza-se sob uma única palavra prosódica, enquanto compostos


regulares via de regra constituem uma palavra morfológica vinculada
a duas prosódicas. Estamos querendo dizer, com isso, que, nos CVs,
há total isomorfismo entre palavra morfológica e palavra fonológica,
o que raramente ocorre nos compostos de base livre, como se vê na
formalização a seguir, em que s representa sílaba; Σ, pé métrico; e
PrWd, palavra prosódica:
Figura 7 – Relação de PrWd em compostos e cruzamentos

Fonte: elaboração própria

241
funcionalismo linguístico: interfaces

Na Figura 7, observa-se que, no composto V-N ‘mela-cueca’16,


cada base projeta sua própria palavra prosódica, o que leva à criação de
uma palavra prosódica complexa (PrWd*). No composto, a abertura da
vogal média da primeira PrWd sinaliza a presença de acento, criando
um domínio fonológico próprio. No cruzamento, por sua vez, há uma
só PrWd, o que pode ser comprovado pela pronúncia de uma média na
segunda sílaba, o que sinaliza que tal vogal não sofre a neutralização das
postônicas, não se realizando como alta, ainda que exista na língua uma
palavra com os mesmos segmentos: ‘bolso’, forma que sofre a neutrali-
zação das postônicas e a vogal final se realiza [u].
Estabelecidas as devidas fronteiras, passemos, na sequência, à
tipologia dos cruzamentos.

Tipos de cruzamento

Beliaeva (2019) mostra que mesclas são notavelmente diversas em


termos de sua estrutura formal, divergindo muito de uma língua para
outra. Embora o fenômeno pareça familiar em várias línguas, tendendo
mesmo à universalidade, seus modos de manifestação nem sempre são
os mesmos. Passemos, então, à descrição dos tipos de CV existentes
em português, atentando para as funções que apresentam. Pretendemos
reiterar que, sob a rubrica “Cruzamento Vocabular”, aparecem dois
diferentes tipos de processos:

a. o entranhamento lexical (ou impregnação vocabular) – que corres-


ponde ao que Piñeros (2000) denomina de “portmanteau”; e

16 De acordo com o Dicionário Informal, mela-cueca é a “denominação para um


certo tipo de música (forró, por exemplo) em que os membros de um par dan-
çam muito colados, o que ocasiona a excitação do homem, levando à lubrifica-
ção de seu pênis. Disponível em: https://www.dicionarioinformal.com.br/mela-
-cueca/#:~:text=2.,Mela%2Dcueca&text=Denomina%C3%A7%C3%A3o%20para%20um%20
certo%20tipo,%C3%A0%20lubrifica%C3%A7%C3%A3o%20de%20seu%20p%C3%AAnis.
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242
funcionalismo linguístico: interfaces

b. a combinação truncada (ou encadeamento de partes) – que corres-


ponde ao que Piñeros (op. cit.) denomina de “telescope”.

Os entranhamentos nunca preservam a sucessão linear estrita, uma


vez que as bases são literalmente fundidas; a interposição de palavras
provoca ruptura na ordem linear estrita por meio de um overlapping, que
leva a uma correspondência de um-para-muitos entre formas de base e
forma cruzada. Como resultado, uma das bases é realizada simultanea-
mente com uma parte da outra, a exemplo de ‘familícia’, alusão ao núcleo
familiar dos Bolsonaro, comprovadamente envolvido em práticas ilícitas,
como as chamadas “rachadinhas”:
Figura 8 – Familícia

Fonte: Google Images

Na representação a seguir, muitos são os segmentos que as duas


bases têm em comum. Observe-se que a palavra ‘milícia’ está literalmente
dentro do cruzamento, enquanto ‘família’ contribui com a sílaba inicial,
tendo a ordem de seus segmentos rompida pela presença da sílaba <ci>,
exclusiva de ‘milícia’:

243
funcionalismo linguístico: interfaces

Figura 9 – Familícia

Fonte: elaboração própria

O entranhamento lexical tem como característica básica o fato de


uma das palavras de origem predicar a outra, como no exemplo da Fi-
gura 9, em que o clã Bolsonaro é predicado por ‘milícia’, ainda que as
bases sejam da mesma classe. Em geral, as unidades lexicais formadas
por esse processo têm valor depreciativo, irônico, a exemplo de ‘Bolso-
Hitler’, em que se verifica uma modificação feita no nome próprio do
ex-presidente a partir de uma suposta filiação ao nazismo. Fica nítida,
nessa nova nomeação, a atitude subjetiva do falante, que forma um tipo
depreciativo de CV, ao mesclar dois antropônimos, sendo o segundo,
que predica o primeiro, uma figura histórica rechaçada no Brasil e no
mundo por sua crueldade e perseguição às minorias. Segundo Sandmann
(1990, p. 59), o “traço que caracteriza muitos cruzamentos vocabulares é
a sua especificidade semântica, isto é, eles vêm muitas vezes carregados
de emocionalidade, sendo que esta é depreciativa, às mais das vezes, e
com pitadas de ironia”.
O entranhamento lexical faz amplo uso da ambimorfemia 17
(PIÑEROS, 2000) e alguns autores ainda admitem a correspondência
de segmentos não idênticos (‘burrocracia’, ‘pilantropria’), como vimos
anteriormente. Ainda que não consideremos a ambimorfemia, as mar-
gens das formas de base são maximamente aproveitadas na forma final,
o que leva a um menor número de deleções e, consequentemente, ao

17 A ambimorfemia é o “compartilhamento de unidades fonológicas (sons, sílabas, sequências)


comuns a mais de um morfema em decorrência da interposição das palavras matrizes” (GON-
ÇALVES, 2006, p. 23).

244
funcionalismo linguístico: interfaces

melhor rastreamento das formas de base e à leitura mais viável do CV,


ainda que essas formas sejam dependentes de contexto para sua efetiva
interpretação. Cruzamentos desse tipo geralmente aparecem em gêneros
multimodais, nos quais a imagem leva à leitura correta dos cruzamentos
efetuados.
Tal é o caso de ‘mitoquina’. Isolada, tal forma parece não fazer
sentido, sendo necessário um contexto, cotexto ou uma imagem. Satis-
feitas essas condições, imediatamente se reconhece a natureza lexical que
caracteriza a formação pelo fato de seus inputs serem oriundos do voca-
bulário cotidiano: ‘mito’ faz referência ao ex-presidente da república que
insistiu no uso da cloroquina como tratamento precoce para a covid-19.
Essa forma, portanto, é avaliativa, visto que foi criada com o intuito de
ironizar a postura do presidente, totalmente na contramão da ciência:

Figura 10 – Mitoquina

Fonte: Google Images

O segundo subprocesso de CV é a combinação truncada, que, em


geral, não faz uso da ambimorfemia, uma vez que são raros os casos em
que há semelhança fônica entre as formas de base. Quando as palavras

245
funcionalismo linguístico: interfaces

não são do mesmo tamanho, a maior sofre encurtamento e a menor se


concatena a ela (‘bolsokid’, ‘bostanaro’). Quando as duas apresentam
equivalente número de segmentos, há redução em ambas (‘cloroctina’,
‘coronga’). De um modo geral, o significado do produto corresponde a
uma combinação quase sempre transparente dos significados de ambas
as palavras. Desse modo, na combinação truncada os produtos são bem
mais transparentes, mas alguns igualmente carecem de contexto para
interpretação. Tal é o caso das duas citadas: ‘cloroctina’ funde ‘cloroqui-
na’ com ‘ivermectina’ e faz alusão irônica aos remédios, sem nenhuma
evidência científica, indicados pelo ex-governo para o combate ao vírus
da covid-19. ‘Coronga’, por sua vez, resulta da fusão de ‘corona(vírus)’
com ‘mocoronga’, num claro deboche dos negacionistas sobre a exis-
tência do vírus:
Figura 11 – Cloroctina e coronga

Fonte: Google Images

Além de exercer, nos termos de Basilio (1987), função sobretudo


discursiva, esse subprocesso de CV desempenha ainda função de rotu-
lação, ao criar unidades lexicais, renovando o inventário lexical com
neologismos institucionalizados, que, muitas vezes, passam a ser registra-
dos nos dicionários, como é o caso de ‘futevôlei’, ‘sacolé’ e ‘portunhol’.
Dessa maneira, as palavras mescladas cumprem o papel de denominar
e/ou caracterizar seres, ações ou estados – função básica do léxico –,
permitindo categorizações cada vez mais particulares.

246
funcionalismo linguístico: interfaces

Os dois tipos de CV, além de formalmente distintos, desempenham


papéis discursivos bastante diferentes, conforme demonstram Gonçalves
e Almeida (2007, p. 13),

os entranhamentos lexicais são predicativos. Neles, a pre-


dicação atua de duas maneiras: (a) acentua propriedades
inerentes ou possíveis do determinado ou, em vez disso,
(b) atribui propriedades implausíveis a ele, através de
extensões metafóricas ou metonímicas. Ao contrário do
entranhamento, as combinações truncadas e as reanálises
têm em comum, em relação ao referente que designam,
um caráter mais descritivo e menos avaliativo.

Criações seriais?

Uma questão morfológica interessante no CV é o fato de poder criar


séries de palavras e, com isso, promover elementos recorrentes à condi-
ção de formativos de devido direito. Quando isso acontece, rompe-se a
fronteira entre o não concatenativo e o concatenativo, aparecendo novas
unidades de formação, chamadas splinters. Sem dúvida alguma, esse é
um argumento forte o bastante para abordar esse processo no âmbito da
formação de palavras, já que pode projetar sequências fônicas à condição
de elementos morfológicos. Em inglês, splinter originalmente significa
“lasca”, “fragmento”, “pedaço”. Na literatura morfológica, por sua vez,
remete a partes de palavras que, retendo o significado da forma original,
recorrem numa borda específica de novas formações lexicais.
Desse modo, formações com splinters diferenciam-se de cruza-
mentos e estão a meio do caminho entre a composição e a afixação
(KASTOVSKY, 2009). Estamos afirmando, com isso, que nem todos
os casos de cruzamentos podem ser interpretados como constituídos
de splinters. CVs são fusões vocabulares isoladas, como as já referidas
‘familícia’, ‘Damales’, ‘Micheque’ e ‘bolsonavírus’, cujos constituintes
(se é que assim podemos nos referenciar à estrutura morfológica dessas

247
funcionalismo linguístico: interfaces

palavras) de modo algum recorrem. Formações com splinters, como as


em (15) e (16), a seguir, apresentam um elemento recorrente à esquerda,
“o que, de certo modo, lhes dá o direito de reivindicar (a) a existência de
concatenação e (b) um estatuto morfológico próprio”18 (BAUER, 2005,
p. 157). Contrastem-se os dados em (15), que podem ser considerados
casos de entranhamento, em função da ambimorfemia, como em (16),
mais tipicamente categorizáveis como combinação truncada:

(15)
Bolsonazi (https://pt-br.facebook.com/bolsonarofascista)
Bolsoneca (https://twitter.com/hashtag/bolsoneca)
Bolsonicho (sundial.thiagorsantana.com)
Bolsonojo (https://twitter.com/hashtag/bolsonojo)
Bolsonagem (https://www.facebook.comCommunity › Bolsonagem)
Bolsonegador (https://twitter.com/hashtag/bolsonega)
Bolsonada (https://twitter.com/bolsonada)
Bolsonabo (https://www.youtube.com/watch?v=GbhfuVKsNRU)

(16)
Bolsoanta (https://www.youtube.com/watch?v=Ba7KKmW-RaI)
Bolsoasno (https://www.dicionarioinformal.com.br/bolsoasno/)
Bolsobesta (https://twitter.com/hashtag/bolsobesta)
Bolsobosta (https://pt-br.facebook.com › › BolsoBosta)
Bolsoburro (https://twitter.com/hashtag/bolsoburro)
Bolsodemo (geradormemes.com/meme/pcokqg)
Bolsofake (https://pt-br.facebook.com/Bolsofake/)
Bolsofilho (https://twitter.com/hashtag/bolsofilho)

Caso analisemos bolso- como splinter, deixa de ser necessário


diferenciar os dois tipos de cruzamento. Além disso, temos aqui um
splinter pelo fato de as formações em (17), a seguir, infringirem uma das
principais características do CV defendidas neste texto – sua realização
numa única palavra prosódica:
18 Tradução livre de “which, in a way, gives them the right to claim (a) the existence of conca-
tenation and (b) a morphological status of their own”.

248
funcionalismo linguístico: interfaces

(17)
Bolsoditador (https://twitter.com/hashtag/bolsoditador)
Bolsoestuprador (https://twitter.com/hashtag/BolsoEstupro?src=hash)
Bolsotraficante (https://mobile.twitter.com/maluaires/with_replies)
Bolsoladrão (https://twitter.com/hashtag/bolsoladrão)
Bolsolunático (https://twitter.com/cynaramenezes/status/3)
Bolsominion (https://www.dicionarioinformal.com.br/bolsominion/)

Como se vê, as formações em (17) são grandes demais para se re-


alizar sob um único acento e isso criaria mais um conflito para a já tão
complicada definição de CV. Com a recorrência da forma, temos um novo
elemento morfológico que, como os prefixos, apresenta fixidez posicional
(sempre recorre à esquerda), mas, como os radicais, tem conteúdo mais
lexical (referencia um sobrenome).

Palavras finais

Pelo que se expôs ao longo deste texto, podemos afirmar que o CV

a. é um processo heterogêneo (realiza-se de variadas maneiras – p. ex.,


portmanteau vs. Telescope) (PIÑEROS, 2000);

b. não é tão novo como parece (é encontrado em textos literários anti-


gos) (LEHRER, 2007);

c. de maneira alguma é isolado (aparece em línguas diversas não dire-


tamente aparentadas) (DANKS, 2003);

d. pode ser um fenômeno universal, pois reflete uma das principais


características da cognição humana: a mesclagem conceptual (LAN-
GACKER, 1987);

e. de modo algum é irregular (sua regularidade, em português, diz


respeito a fatores fonológicos, como a semelhança fônica e o tamanho
das matrizes lexicais);

249
funcionalismo linguístico: interfaces

f. difere da composição (é um processo não concatenativo);

g. não é extragramatical (deve fazer parte da gramática justamente


porque pode criar unidades de análise morfológica a que damos o nome
de splinters) (ŠTEKAUER, 1991);

h. é efêmero, muitas vezes dependente de contexto para sua interpretação


e reflete usos criativos da linguagem;

i. é um típico processo de interface morfologia-fonologia.

Esperamos que este texto tenha cumprido seu principal objetivo:


fornecer ao leitor uma visão mais compreensiva sobre o cruzamento
vocabular, uma vez que o fenômeno saiu da marginalidade em que se
encontrava até a década de 90 do século passado (cf. GONÇALVES,
2003) para constituir objeto de investigação de linguistas de diferentes
linhas teóricas. Ficamos na expectativa de ter comprovado que o CV é
diferente de outros processos de formação de palavras, como a compo-
sição e as construções com splinters.

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255
funcionalismo linguístico: interfaces

O HÁPAX LEGOMENON E O QUASI-HÁPAX NA


MORFOLOGIA HISTÓRICO-CONSTRUCIONAL: UMA
ANÁLISE DE ESQUEMAS SUFIXAIS IMPRODUTIVOS NO
PORTUGUÊS ARCAICO1

Natival Almeida Simões Neto


(PPGEL-UEFS/D&G-UFF)

Carmelúcia Santos Assis Félix


(UEFS-PROBIC)

Introdução

No âmbito da Linguística Histórica, os debates sobre periodização


da língua portuguesa, diferenciação entre português europeu (PE) e por-
tuguês brasileiro (PB) e caracterização das línguas românicas ocidentais
e orientais exploraram significativamente fenômenos ligados aos níveis
fonético-fonológico, morfossintático e sintático, ao passo que aqueles
ligados à morfologia derivacional receberam pouca atenção. Entre os
autores que valorizaram fenômenos morfológico-derivacionais nas re-
feridas discussões, estão:

1 Dedicamos este capítulo aos professores Juliana Soledade (UFBA) e Carlos Alexandre Gon-
çalves (UFRJ), por terem nos inspirado, respectivamente, nos estudos sobre a morfologia do
português arcaico e sobre a (im)produtividade morfológica na língua portuguesa.

257
funcionalismo linguístico: interfaces

a. Rio Torto (2012), que apontou aspectos da sufixação nominal que


caracterizam o português médio, como, por exemplo, a prevalência de
-mento sobre -çom/-ção no contexto das nominalizações, comportamen-
to diferente do que se vê no português contemporâneo;

b. Lopes (2018), que tratou de aspectos de prefixação que caracteri-


zam a história do português e do castelhano, o que inclui a perda dos
sentidos perfectivo e intensificador nas formações com per- a partir
do século XVI;

c. Villalva e Gonçalves (2016), que discutiram características mor-


fológicas do PE e do PB e mencionaram que processos morfológicos
não concatenativos, tais como o cruzamento vocabular (portunhol) e o
truncamento (cerveja → cerva), são mais disponíveis no PB que no PE; e

d. Simões Neto e Viaro (2021), que analisaram a categoria semântica


vegetal nas formações XS-eir- do português (cajueiro, mangueira) e nas
construções aparentadas em várias línguas românicas e atestaram que
essa construção se mostra produtiva nas línguas românicas ocidentais
e improdutiva nas orientais.

Neste capítulo, são trazidos resultados de um plano de iniciação cien-


tífica executado pela estudante de graduação em Letras Vernáculas Car-
melúcia Félix, entre os anos de 2021 e 2022, na Universidade Estadual de
Feira de Santana, sob a orientação do professor Natival Almeida Simões
Neto. Nesse plano, foram investigados os padrões sufixais improdutivos
no português arcaico, numa abordagem descritiva em que não se adotou
um modelo teórico específico. No trabalho aqui apresentado, os resulta-
dos são interpretados com base na morfologia histórico-construcional2
(LOPES, 2021; SIMÕES NETO, 2017; SOLEDADE, 2019). Pretende-se,
por meio deste estudo, ter uma visão parcial do constructicon – repertó-
rio de construções – do português arcaico, analisando a disponibilidade
2 Ainda que os estudos de Morfologia Construcional em perspectiva histórica aconteçam desde
2013 no Brasil, o nome Morfologia histórico-construcional apareceu, pela primeira vez, em
Lopes (2021).

258
funcionalismo linguístico: interfaces

para a criação de formas inéditas no período. Os dados analisados são


oriundos da tese de Soledade (2004) e de levantamento inédito feito por
Félix em textos e dicionários disponíveis no website do CIPM – Corpus
Informatizado do Português Medieval, da Universidade Nova de Lisboa.
No que se refere a sua estrutura, o capítulo apresenta as seguintes
seções: (a) “Modelos construcionais de análise morfológica”, em que se
faz a introdução dos fundamentos teórico-metodológicos da Morfologia
Construcional e da Morfologia Relacional; (b) “A morfologia derivacio-
nal do português arcaico e o conceito de produtividade na morfologia
histórica”, em que se apresentam alguns trabalhos que descrevem pro-
cessos lexicogênicos no período arcaico, bem como a discussão de como
o conceito de produtividade se aplica ao estudo de tais fenômenos; (c)
“Sufixos improdutivos, sufixoides e a questão do (quasi-)hápax”, em
que são feitas discussões acerca da improdutividade morfológica com
base nos sufixos do português; (d) Análise dos dados; (e) Considerações
finais e (f) Referências.

Modelos construcionais de análise morfológica

A Gramática de Construções (GC) é um modelo teórico que nasceu


no âmbito da Linguística Cognitiva (LC), de maneira pluricêntrica, ainda
nos anos 1980, tendo como seus primeiros proponentes estudiosos Char-
les Fillmore, Paul Kay, Mary Catherine O’Connor, Ronald Langacker e
George Lakoff. Inicialmente, a GC visava à análise de construções idio-
máticas e irregulares, que eram excluídas da análise sintática dominante
à época. Nos anos 1990, sobretudo com o trabalho de Goldberg (1995),
a GC passa a considerar também construções regulares; a intenção, ago-
ra, é analisar todas as construções de uma língua. Na GC, “construções
são pareamentos armazenados de forma e função, incluindo morfemas,
palavras, expressões idiomáticas, padrões linguísticos gerais, parcial ou
completamente preenchidos lexicalmente” (GOLDBERG, 2012, p. 191).
A partir das leituras de Croft (2001) e Pinheiro (2016) acerca dos polos

259
funcionalismo linguístico: interfaces

que constituem as construções, pode-se afirmar que o polo formal de uma


construção engloba aspectos fonológicos, morfológicos, morfossintáticos,
sintáticos e prosódicos, ao passo que o polo funcional engloba aspectos
semânticos, pragmáticos, discursivos e estilísticos.
Em relação à morfologia, entre as abordagens construcionistas,
têm se destacado os modelos conhecidos como Morfologia Constru-
cional (BOOIJ, 2010; GONÇALVES, 2016b) e Morfologia Relacional
(GONÇALVES, 2021a; JACKENDOFF; AUDRING, 2020), que,
embora aparentados, como sugerem os seus proponentes, apresentaram
diferenças teórico-metodológicas. A Morfologia Construcional (MC) é
uma proposição de Geert Booij (Universidade de Leiden, Holanda), que
começou a ser desenvolvida em 2005 e se difundiu internacionalmente
a partir de 2010, com a publicação do livro Construction Morphology
(BOOIJ, 2010). A Morfologia Relacional (MR), por sua vez, surgiu como
um desdobramento da MC, sendo uma proposição de Ray Jackendoff
(Universidade Tufts, Estados Unidos da América) e Jenny Audring
(Universidade de Leiden, Holanda).
Sobre a MC, o primeiro ponto que merece destaque é que se trata
de um modelo de análise morfológica baseado em palavras, logo, é a
palavra a construção mínima da língua. Booij (2010) discorda veemente
de propostas construcionistas que colocam o morfema como a menor
construção como faz, por exemplo, Goldberg (2006). Sobre uma lista
de construções apresentada por Goldberg (2006), Booij (2010) comenta:

[…] a categoria ‘morfema’ não deveria aparecer nessa


lista, porque morfemas não são signos linguísticos, i.e.,
pareamentos independentes de forma e significado. O
signo linguístico mínimo é a palavra, e a ocorrência da
categoria ‘morfema’ nessa lista é para ser vista como
um remanescente inapropriado da morfologia baseada
em morfemas. Ao invés disso, morfemas presos formam
parte dos esquemas morfológicos, e sua contribuição
de significado só é acessada através do significado da

260
funcionalismo linguístico: interfaces

construção morfológica da qual eles formam uma parte


(BOOIJ, 2010, p. 15, tradução nossa)3.

Para Booij (2010), morfemas só têm significado autônomo quando


realizados como palavras da língua, por isso não devem ser tratados como
construções. Essa visão, no entanto, não é consensual. Lopes (2021), por
exemplo, questiona tal postura, sugerindo que a exclusão da categoria
“morfema” pode acarretar uma descrição pouco objetiva do componente
morfológico da língua:

Outro aspecto sob ponderação crítica: a exclusão do


morfema como unidade passível de análise construcio-
nal. Booij (2010a) entende o léxico como uma rede de
relações hierarquicamente dispostas, rede essa que traz
em si palavras, unidades multilexicais e esquemas mor-
fológicos (RODRIGUES, 2015). Sua perspectiva (2005a,
2005b, 2010a, 2012b) se caracteriza como um modelo de
análise morfológica pautado na palavra, vendo nesta (e
não no morfema) o signo mínimo (RODRIGUES, 2015)
– destoando, portanto, do pensamento de Goldberg (1995)
quanto a essa questão (cf. GOLDBERG, 2006, p. 5, em
que elenca morfemas no conjunto de tipos de constru-
ções). No entanto, ousamos questionar: pautar-se em uma
consideração das unidades de análise morfológica apenas
a partir da palavra corresponde de fato à postura mais
adequada para a descrição objetiva do léxico da língua?
De fato, os morfemas (os afixos, por exemplo) seriam
desprovidos de significado ou de relevância aquando
separados dos esquemas construcionais nos quais atuam?
(LOPES, 2021, p. 246-247).

3 “[…] the category ‘morpheme’ should not appear on this list because morphemes are not
linguistic signs, i.e. independent pairings of form and meaning. The minimal linguistic is the
word, and the occurrence of the category ‘morpheme’ in this list is to be seen as an infelicitous
remnant of morpheme-based morphology. Instead, bound morphemes form part of morpho-
logical schemas, and their meaning contribution is only accessible through the meaning of
the morphological construction of which they form a part.” (BOOIJ, 2010, p. 15).

261
funcionalismo linguístico: interfaces

Decidir se o morfema é uma construção não é uma tarefa tão fácil


quanto possa parecer. De um lado, há uma vasta tradição nos estudos
linguísticos que aponta o morfema como o signo mínimo ou uma unidade
da primeira articulação da linguagem, pois associa uma forma fonológi-
ca a um significado, sendo, portanto, uma construção. De outro lado, é
razoável questionar se o morfema pode ter uma existência construcional
fora do esquema morfológico que integra. O /s/ é um fonema na língua
portuguesa que funciona como um morfema -s, estabelecendo oposições
entre categorias morfológicas4. O valor desse morfema só pode ser esta-
belecido na sua compatibilização com outras construções, tais como as
palavras. É essa vinculação que viabiliza esquemas morfológicos, como
(a) e (b), a seguir.

a. <N-s ↔ plural de N>


b. <V-s ↔ segunda pessoa do singular de V>

Para os dois bons argumentos apresentados, há outros bons contra-


-argumentos, o que dificulta chegar a uma resposta firme acerca dessa
questão. Dessa maneira, apesar de ter apontado a existência da questão
teórico-metodológica, neste capítulo, não nos comprometemos com uma
das visões. No entanto, é notório que, para o fenômeno aqui analisado, a
visão de Booij (2010) se mostra adequada, visto que não há necessidade
de refletir sobre o estatuto construcional do morfema.
Outro ponto importante que caracteriza a MC é ser um modelo
baseado em esquemas. Esse conceito é explicado por Booij (2010) da
seguinte maneira:

Esquemas morfológicos têm as seguintes funções: eles ex-


pressam propriedades previsíveis de palavras complexas,
indicam como elas devem ser cunhadas (JACKENDOFF,
1975) e dão estrutura ao léxico, uma vez que palavras
complexas não formam uma lista desestruturada, mas são
4 Booij (2022) faz análise similar para o inglês.

262
funcionalismo linguístico: interfaces

agrupadas em subconjuntos. Essa concepção de gramática


evita a bastante conhecida falácia regra versus lista, a
injustificada suposição de que construtos linguísticos são
gerados por regra ou listados, e que ser listado exclui um
construto linguístico de ser ligado a uma regra ao mesmo
tempo (BOOIJ, 2010, p. 4, tradução nossa)5.

Essa passagem do texto de Booij (2010) destaca uma importante


distinção entre o seu modelo e o modelo gerativista aronoffiano6, com
o qual mantém uma relação edipiana, por assim dizer. Essa diferença
reside na questão do armazenamento: no modelo de Aronoff (1976),
apenas as palavras primitivas, as irregularidades (lexicalizações) e as
regras morfológicas estavam armazenadas no léxico. Ou seja, mesmo
que palavras como carteiro, pedreiro e leiteiro tenham servido para o
falante depreender a regra morfológica “[X]S → [[X]S eiro]S”, em nome da
economia linguística, defende-se que essas palavras não sejam listadas no
léxico, sendo geradas/processadas online. Assim, toda vez que o falante
necessitar de palavras como carteiro, pedreiro e leiteiro, ele ativará a
regra morfológica que diz que o sufixo -eiro se aplica a um substantivo
para formar outro substantivo.
Booij (2017), apoiado em Jackendoff (1997) e Hudson (2007),
entende que pensar dessa forma desconsidera a vastidão da memória
humana. No seu enfoque, considerando o exemplo aqui dado, as palavras
complexas carteiro, pedreiro e leiteiro, que teriam sido aprendidas pelo
falante e serviriam de base para a formulação do esquema construcional

5 “Morphological schemas have the following functions: they express predictable properties
of existing complex words, they indicate how new ones can be coined (Jackendoff 1975), and
they give structure to the lexicon since complex words do not form an unstructured list but
are grouped into subsets. This conception of the gramar avoids the well-known rule versus list
fallacy (Langacker 1987), the unwarranted assumption that linguistic constructs are either
generated by rule or listed, and that being listed excludes a linguistic construct from being
linked to a rule at the same time” (BOOIJ, 2010, p. 4, grifo nosso).
6 Refere-se ao modelo proposto por Mark Aronoff, em 1976. Trata-se de um modelo gerativista
baseado em regras. Geert Booij fez a sua tese de doutorado e alguns trabalhos posteriores
usando esse modelo. A MC mantém algumas formulações dessa proposta gerativista, mas se
desvencilha de outras questões, como as apontadas neste texto.

263
funcionalismo linguístico: interfaces

“<[XSi-eiro]Sj ↔ [AGENTE PROFISSIONAL envolvido em SEMSi]


Sj
>7”, seriam armazenadas no léxico. Explica o autor:

Não há pressão psicológica para apagar uma informação


previsível uma vez adquirida, considerada a vastidão da
memória humana. Em termos de processamento, é tam-
bém vantajoso que não se necessite computar propriedade
de palavras complexas memorizadas depois de usá-las,
pois elas podem ser diretamente recuperadas do léxico
mental que irá acelerar o processamento (BOOIJ, 2017,
p. 22, tradução nossa)8.

A visão trazida por Booij (2017) é compartilhada também por Rodri-


gues (2016), que discute questões ligadas à memória e ao processamento,
destacando o papel da frequência de uso na estocagem de palavras no
componente morfolexical. A autora, baseando-se em autores como Ray
Jackendoff, Franz Rainer, Joan Bybee e Ingo Plag, sugere que palavras
complexas plenamente especificadas, quando de muito uso, sejam fixadas
no léxico mental dos falantes. Rodrigues (2016) comenta que

[…] a memória tem um papel determinante, na medida


em que as formas mais usadas são aquelas que têm uma
inscrição mais sólida na memória (PLAG, 1999, p. 51-52;
PLAG, 2003, p.65-66; RAINER, 1988). Portanto, mesmo
lexemas construídos através de padrões produtivos podem
estar armazenados na memória, se forem de uso frequen-
te. O interessante é que para interpretarmos um lexema
novo, não precisamos de o ter armazenado na memória.
7 Neste esquema, o (S) significa substantivo, o (i) e o (j) são índices para delimitar os itens
envolvidos no esquema, e SEM é significado. Logo, o esquema aponta que um substantivo (i)
anexado ao sufixo -eiro forma um substantivo (j), e o significado do substantivo (j) é agente
profissional envolvido em algo indicado pelo significado do substantivo (i).
8 “There is no psychological pressure to delete predictable information, once acquired, given
the vastness of human memory. In terms of processing, it is also advantageous that one does
not need to compute properties of memorized complex words before using them, as they can
be retrieved directly from the mental lexicon which will speed up processing” (BOOIJ, 2017,
p. 22).

264
funcionalismo linguístico: interfaces

Isso prova que a construção de padrões morfológicos é


determinante na relação do falante com a morfologia da
sua língua (RODRIGUES, 2016, p. 82).

Ainda em relação à MC, por último, vale ressaltar como Booij


(2010, 2017, 2022) descreve as funções dos esquemas. O autor chama a
atenção para o fato de que os esquemas morfológicos não servem somente
para gerar novas palavras, mas também para nortear a interpretação que
os falantes fazem das palavras complexas. Para entender essa questão,
sejam tomados como exemplos os padrões [XA-iça]S9 e [XA-eza]S, que
têm como instanciações substantivos abstratos que designam qualidades.
Simões Neto (2021) estudou esses padrões e mostrou que, nos dados
que analisou do português arcaico, foram encontradas apenas as formas
justiça (do adjetivo justo) e lediça (do adjetivo ledo), com o padrão [XA-
-iça]S. Essas duas realizações, mesmo sendo heranças da língua latina,
são transparentes tanto morfológica quanto semanticamente, visto que
as bases estão disponíveis no português10. É possível depreender um es-
quema, mas esse não foi usado para formar novas palavras no português,
servindo apenas para interpretar formas relacionadas. Tal comportamento
se diferencia do que aconteceu com [XA-eza]S, visto em 46 realizações,
dentre as quais agudeza, aspereza, avareza, braveza, crueza, fraqueza,
graveza, nobreza, profundeza, pureza, tristeza e vileza. Do conjunto de
formas [XA-eza]S analisadas por Simões Neto (2021), apenas cinco eram
heranças do latim ou de línguas românicas, o que mostra que esse padrão
foi usado para a cunhagem de novos itens léxicos no português.
A compreensão de que há duas funções dos esquemas morfológicos
é basilar não só para a MC, mas também para a MR (JACKENDOFF;
AUDRING, 2020), que defende a existência de dois tipos de esquemas:
os esquemas construcionais, os mesmos vistos na MC, e os esquemas
9 O (A) nos esquemas [XA-iça]S e [XA-eza]S é de adjetivo. Nesses padrões, a base é um adjetivo
(A), e o produto é um substantivo (S).
10 Diferentemente, as formas preguiça e cobiça que, historicamente, são formadas com o mesmo
sufixo, não são transparentes, porque as bases dessas palavras não se mantiveram na língua
portuguesa.

265
funcionalismo linguístico: interfaces

relacionais, aqueles que atuam, sobretudo, na integração de padrões


improdutivos e realizações idiossincráticas. A MR é um modelo teórico
proposto por Ray Jackendoff e Jenny Audring que tem sido apresentado
pelos autores como um modelo aparentado da MC. Em uma leitura sobre
o modelo, Gonçalves (2021a) aponta que

O objetivo básico da Morfologia Relacional (MR) é “a


integração harmoniosa da morfologia com o resto da lin-
guagem e com o resto da mente (JACKENDOFF & AU-
DRING, 2020, p. 480). Por isso mesmo, a MR leva muito
a sério o termo conhecimento da linguagem, focalizando a
questão do que um falante armazena na memória de longo
prazo e, principalmente, de que maneira (GONÇALVES,
2021a, p. 296, grifos do autor).

Quanto ao viés cognitivo da MR, mencionado por Gonçalves


(2021a), Santos (2022) destaca a articulação da MR com a chamada
Arquitetura Paralela, defendida por Ray Jackendoff. Segundo a autora:

A MR é baseada na Arquitetura Paralela (JACKENDOFF,


1997, 2002), que, além de considerar a linguagem como
um fenômeno mental, compreende que a estrutura linguís-
tica é determinada por três sistemas formais independen-
tes (fonologia, sintaxe e semântica) e pelas relações de
correspondência ou interface entre eles (JACKENDOFF;
AUDRING, 2019). A Arquitetura Paralela instancia os
princípios da sintaxe frasal e da morfologia como esque-
mas (JACKENDOFF; AUDRING, 2020a, p. 233). A MR
concebe que esquemas, ou seja, “padrões abstratos que
expressam generalizações sobre conjuntos de expressões
linguísticas listadas” (BOOIJ, 2009, p. 235, tradução
livre), possam ser utilizados não apenas com função
gerativa, criando, nesse caso, novas estruturas na língua,
mas também com função relacional, motivando itens le-
xicais armazenados, ao mesmo tempo em que expressam

266
funcionalismo linguístico: interfaces

generalizações restritas dentro do léxico (JACKENDOFF;


AUDRING, 2020a, p. 4). A motivação é aqui entendida
como a capacidade de uma construção herdar, de uma
construção mais geral, propriedades de sua estrutura. O
uso relacional de esquemas constitui, na verdade, a “noção
absolutamente central” da teoria, aplicando-se tanto à mor-
fologia quanto à sintaxe (JACKENDOFF; AUDRING,
2020, p. 54), tendo em vista que todo esquema pode ser
usado relacionalmente (SANTOS, 2022, p. 325-326).

Um dos pontos de diferença entre a MR e a MC se dá pela visão


da MR de que as dimensões fonológicas, sintáticas e semânticas, unifi-
cadas nos esquemas construcionais, sejam autônomas. Isso faz com que
a MR seja uma melhor alternativa teórica para lidar com fenômenos
morfológicos que não tenham repercussão semântica. A respeito disso,
diz Gonçalves (2021a) que a MR

[…] também admite a possibilidade de esquemas/


construções que não envolvam semântica, como, por
exemplo, padrões fonotáticos, elementos morfológicos
sem sentido, como marcadores de palavras, vogais te-
máticas e elementos relacionais que funcionam como
“cola” morfológica, a exemplo das vogais e consoantes
de ligação. Consequentemente, a MR interpreta “as cons-
truções que relacionam forma e função como apenas um
subconjunto do conhecimento total da linguagem de um
falante” (JACKENDOFF & AUDRING, 2020, p. 480)
[…] (GONÇALVES, 2021a, p. 298).

Outro aspecto vantajoso da MR está na capacidade de ela tratar,


com mais praticidade, a alomorfia de radical que aparece em algumas
estruturas complexas, como magro/macérrimo, árvore/arborização, ilha/
insular, água/aquífero. O modelo apresenta soluções econômicas para
enfrentar determinadas questões de ordem diacrônica, que, muitas vezes,
são colocadas de lado em modelos desenvolvidos no bojo da sincronia.

267
funcionalismo linguístico: interfaces

Em sua leitura sobre a proposta codesenvolvida por Jenny Audring, Fally


(2020) explica que:

Audring parte da ideia de que uma teoria morfológica


deveria explicar todas as palavras, mesmo aquelas que
do ponto de vista sincrônico já não podem ser produzidas
espontaneamente, ou seja, as palavras que nas teorias
morfológicas são caracterizadas como lexicalizadas.
Ademais, ilustra os problemas que estas palavras levantam
para a análise, detalhando quatro tipos de improdutividade
morfológica na formação de palavras no senso largo. O
primeiro tipo consiste em casos onde partes das palavras
não existem em isolamento, como é o caso de cran- na
palavra cranberry (‘oxicoco’). Noutro tipo, palavras ou
partes de palavras têm um significado imprevisível, como
por exemplo a palavra inglês honey no composto honey-
moon (‘lua de mel’). Além disto, existem também padrões
flexionais e derivativos com alomorfia onde aparecem
formas imprevisíveis, embora tenham um significado
relacionado como na formação do comparativo do inglês
good (‘bom’) que resulta better (‘melhor’). O último tipo
discutido pela conferencista são os padrões improdutivos
strictu sensu, quer dizer, certos procedimentos já não
disponíveis para a formação de novas palavras, como a
formação de adjetivos em inglês a partir do sufixo -en
em wooden (‘de madeira’) (FALLY, 2020, p. 2, grifos
da autora).

Em suma, esse último aspecto aponta também como vantagem


da MR a possibilidade de abordar a chamada morfologia improdutiva.
As generalizações capturadas pela MC se revelam especialmente em
esquemas produtivos, capazes de gerar novos construtos na língua. O
que é improdutivo acaba sendo omitido. Nesse sentido, a MR fornece
a ferramenta teórico-metodológica para abordar fenômenos morfológi-
cos improdutivos, não recorrentes e/ou idiossincráticos, mostrando que

268
funcionalismo linguístico: interfaces

muitos desses casos podem ser relacionados com outros mais regulares.
Assim, considerando que o fenômeno a ser debatido neste capítulo gira
em torno do debate da improdutividade, tanto a MR quanto a MC se
fazem necessárias para a análise empreendida.
A morfologia derivacional do português arcaico e o conceito de
produtividade na morfologia histórica.
Neste trabalho, entende-se o português arcaico nos termos de Mat-
tos e Silva (2008). Trata-se, então, do período da língua portuguesa que
vai do final do século XII, data do documento mais antigo escrito em
português (Notícia dos Fiadores, 1175), até meados da primeira metade
do século XVI, quando começam as primeiras reflexões metalinguísticas
acerca da língua, através da elaboração de gramáticas, tais como as de
Fernão de Oliveira e de João de Barros, datadas de 1536 e 1540, respec-
tivamente. Nessa visão, o português arcaico se divide em duas fases: a
primeira abrange o romance chamado galego-português nos séculos XII,
XIII e XIV, ao passo que a segunda fase já aponta uma diferenciação do
português em relação ao galego e cobre os séculos XV e XVI.
Sobre a morfologia do português arcaico, em especial a morfo-
logia derivacional, as estudiosas Rosa Virgínia Mattos e Silva e Ca-
rolina Michaelis de Vasconcelos, em obras bastante distanciadas no
arco temporal, destacam a ausência de estudos histórico-descritivos
dos processos de formação de palavras no português. Vasconcelos
(1911-1912, p. 45) afirma que “[a] história da sufixação, prefixação
e composição portuguesa está por escrever”, de modo semelhante,
Mattos e Silva (1993, p. 20) declara que “[…] um estudo sistemático
dos processos derivacionais no período arcaico espera um autor”.
Trabalhos como os de Soledade (2001, 2004), Santos (2009) e Lopes
(2013, 2018) buscam preencher as lacunas apontadas por Vasconcelos
(1911-1912) e Mattos e Silva (1993), fornecendo um estudo sistemático
da sufixação, composição e prefixação no período arcaico da língua
portuguesa, respectivamente.

269
funcionalismo linguístico: interfaces

O trabalho de Soledade (2001, 2004) apresenta um panorama da


sufixação nominal no período arcaico, a partir de um corpus de 2837
palavras formadas por cerca de 50 sufixos diferentes, dentre os quais
estavam -eiro, -ario, -dor, -çom, -mento, -ento, -oso, -udo, -ez, -eza,
-idom, -ar, -al, -edo, -ado, -ada. No quadro analisado por Soledade (2001,
2004), observa-se a presença significativa de sufixos de origem latina, em
comparação a uma baixa ou nula ocorrência de sufixos de origem grega,
tais como -ista e -ismo. Santos (2009), por sua vez, faz uma apresentação
igualmente panorâmica da composição sintagmática, com compostos do
tipo adjetivo-nome (maas molheres, estrema hunçom), nome-adjetivo
(omees bõos, notario pubrico), nome-nome (guarda porteiro, ifant-
-abade), verbo-nome (fura buchos, guarda-poo) e nome-preposição-
-nome (filhos d’algo, crerigo de missa). Esses padrões compositivos se
distanciam do padrão comumente encontrado no latim clássico, embora
sejam vistos recorrentemente em outras línguas românicas, o que indica
provavelmente uma origem vulgar. Por último, Lopes (2013, 2018),
voltando-se para a prefixação, identifica a preponderância de prefixos
de origem greco-latina, certamente transferidos por meio do latim que
já tinha assimilado itens léxicos de origem grega. O autor também ob-
serva a variação entre prefixos, em pares como alomeam ~ enlumẽada,
descanbho ~ escambho, predictos ~ sobredictos e soterar ~ enterrar.
Nos trabalhos de morfologia histórica, um termo que aparece fre-
quentemente é produtividade. Entretanto, a compreensão que se faz desse
termo costuma variar bastante, como relata Viaro (2010). Nos estudos
morfológicos de uma maneira geral, o uso de produtividade é bastante
vasto, porém nem sempre se encontra uma definição conceitual precisa.
Apenas para se ter uma ideia da diversidade de usos, contrastem-se os
usos feitos por Soledade (2004) e por Viaro (2010), ambos estudiosos
da morfologia histórica da língua portuguesa. Soledade (2004), em sua
tese sobre a sufixação nominal no português arcaico, usa os conceitos
de produtividade e vitalidade, como propostos por Lüdi (1983), ao pas-
so que Viaro (2010) contrapõe produtividade e prolificidade, tomando

270
funcionalismo linguístico: interfaces

como norte o trabalho de Aronoff (1976) para conceituar a produtividade.


Seguem as palavras dos autores:

Segundo Lüdi, o termo produtividade pode ser empregado


para designar um afixo que se aplica a muitos itens lexicais
de uma língua, ao passo que vitalidade pode ser usado
para designar afixos que possuem força para criar unida-
des lexicais inéditas. Assim, seria interessante observar
os sufixos produtivos, i.e., que permaneceram em lexias
da língua portuguesa no período arcaico, mas que já não
tinham vitalidade, bem como observar aqueles sufixos
que se mantiveram vivos, produzindo novas palavras, de
acordo com as observações feitas anteriormente de que
é no período arcaico do português que ocorre o maior
número de formações lexicais através de sufixos (SOLE-
DADE, 2004, p. 51).

O número que reflete quantidade de itens criados em cada


sincronia, somado aos sobreviventes da sincronia anterior
(ou seja, todos os itens, menos os que se tornaram arcaís-
mos) não é, de fato, o mesmo que a capacidade gerativa de
cada sincronia, embora ambas recebam, por vezes, o nome
de produtividade. Essa quantidade deveria, portanto, ter
um nome distinto, para evitar-se ambiguidade terminoló-
gica […]. Se pensarmos que produtividade é a capacidade
de ainda se gerarem novos elementos e prolificidade, a
quantidade de elementos já gerados, observaremos que
a primeira aponta para o futuro do léxico, enquanto a
segunda, para o passado (VIARO, 2010, p. 175-176).

Como se pode ver nos excertos, para Soledade (2004), a produti-


vidade está relacionada à quantidade de itens atestados no corpus, ou
seja, à frequência, ao passo que a vitalidade diz respeito ao potencial
de serem criadas formas inéditas. Viaro (2010), por seu turno, entende
de maneira sistematicamente contrária: a prolificidade diz respeito ao

271
funcionalismo linguístico: interfaces

número de formas atestadas na língua, enquanto a produtividade seria


a capacidade gerativa. Nas abordagens construcionais, o conceito de
produtividade também não é um ponto pacífico, mas os aspectos trazi-
dos nas definições de Soledade (2004) e de Viaro (2010), frequência e
geratividade, têm importância, como se pode ver em trabalhos de Bybee
(2016) e Traugott e Trousdale (2021):

Uma vez que construções são firmemente baseadas em


generalizações sobre enunciados reais, seu pareamento
com um modelo que assume exemplares como repre-
sentações é bastante direto […]. Casos particulares de
construções afetam as representações cognitivas; assim,
a frequência de ocorrências (tokens) de certos itens em
construções […] e a classe de tipos (types) […] determi-
nam a representação da sua produtividade (BYBEE, 2016,
p. 29, grifos da autora).

[e]m nossa perspectiva, a produtividade de uma cons-


trução é gradiente. Pertence a esquemas (parciais) e diz
respeito a (i) sua extensibilidade (BARÐDAL, 2008), o
grau em que eles sancionam outras construções menos
esquemáticas, e (ii) o grau em que eles são restringidos
(BOAS, 2008) (TRAUGOTT; TROUSDALE, 2021, p.
50).

Para Bybee (2016), a produtividade está associada à frequência.


Traugott e Trousdale (2021) elegem a extensibilidade como o principal
aspecto para conceituar a produtividade. Os autores usam a ideia de exten-
sibilidade para falar da capacidade de uma construção mais esquemática
de instanciar construções menos esquemáticas. Em se tratando de mor-
fologia, um esquema morfológico que produz novas palavras complexas
é produtivo, pois uma palavra é uma construção menos esquemática que
um esquema morfológico. Nesse sentido, a geratividade está embutida
na ideia de extensibilidade. Esse é o ponto de vista assumido por Booij

272
funcionalismo linguístico: interfaces

(2010) e Jackendoff e Audring (2020), nos modelos da MC e da MR,


respectivamente, mas outros dois aspectos podem ser colocados na conta
do fator produtividade/extensibilidade.
O primeiro aspecto é o seguinte: se um esquema morfológico con-
segue estender a sua rede construcional por meio da criação de novos
subesquemas, ele é produtivo, ou seja, a criação de novos types numa rede
construcional só é possível se a construção morfológica for produtiva.
Por exemplo, Simões Neto (2016) mostrou que, no uso das construções
X-eir- no português arcaico, o significado de agente vegetal, visto em
laranjeira, limoeiro, macieira e avelaneira, é uma inovação, não tendo
sido observado no padrão original X-ari, em língua latina. Ou seja, X-eir-
é produtiva no PA, pois estendeu a sua rede construcional. Inversamente, a
construção X-ári-, cognata de X-eir-, se mostrou improdutiva no período,
pois não estendeu a sua rede, visto que todos os types dessa construção
estavam no esquema original do latim, como mostraram Simões Neto e
Soledade (2015).
O segundo aspecto que se pode considerar nessa discussão é a
extensão de características tanto formais quanto funcionais numa cons-
trução. Se uma construção expande a classe hospedeira do slot de uma
construção morfológica semiespecificada, como X-eir- e X-ári-, ela é
produtiva. Essa expansão pode ser também semântica, se o significado
for redimensionado de alguma maneira, como, por exemplo, na história
da construção X-fobia, analisada por Simões Neto, Santos e Salvador
(2022). Os autores mostraram que, originalmente, o slot X era preenchido
por um radical erudito, mas, nas formações mais recentes, esse preen-
chimento tem sido feito, preferencialmente, com elementos vernáculos,
incluindo radicais, substantivos simples, compostos e próprios, adjetivos,
sintagmas nominais, siglas e splinters11. Do ponto de vista semântico,
o medo da construção original grega foi reconceptualizado como medo
11 Splinter é um pedaço de palavra de caráter não morfêmico que passa a ser recorrente em várias
estruturas, podendo ser esquematizado em muitos casos. Gonçalves (2016a) dá o exemplo de
piri-, um pedaço da palavra piriguete que passa a ser aplicado recorrentemente, figurando em
formações como pirigótica, piricrente e piriprima.

273
funcionalismo linguístico: interfaces

patológico, o que permitiu a criação de várias formas X-fobia no âmbito


das psicopatologias no século XIX. Mais tarde, a aversão patológica se
reconceptualizou em ódio e preconceito, significado bastante frequente
nas formações atuais.
Diante do exposto nesta seção, cabe a pergunta: qual conceito de
produtividade está sendo usado para se falar em sufixos improdutivos?
A verdadeira resposta é que não há um conceito específico, porque todas
as definições aqui apresentadas se mostram importantes. Por isso, é ne-
cessário que o rótulo de improdutividade sempre venha acompanhado do
conceito norteador: improdutivo em relação à frequência, à geratividade
ou à extensibilidade. A análise empreendida neste trabalho se compromete
com tal medida. Outro tópico digno de observação em relação à análise
dos dados é que ela se refere tão somente ao PA. Ou seja, mesmo que o
esquema tenha sido produtivo na língua latina, ou que tenha se tornado
produtivo em um período posterior ao PA, a análise deste capítulo diz
respeito ao seu comportamento improdutivo nos primeiros séculos da
língua portuguesa.

Sufixos improdutivos, sufixoides e a questão do (quasi-)hápax

Tradicionalmente, há uma tendência de os estudos de morfologia


derivacional se voltarem a padrões produtivos de formação de palavras.
Nesse contexto, produtivos são os processos que têm potencial de gerar
unidades lexicais inéditas na língua, sem que os falantes tenham dificul-
dade de reconhecer os mecanismos constitutivos. Essa tendência faz com
que os processos improdutivos fiquem à margem das investigações e a
discussão sobre a improdutividade apareça de forma superficial, quando
isso acontece.
A literatura sobre elementos improdutivos nas línguas não é vas-
ta. Para a compreensão dos sufixos improdutivos, são trazidos aqui os
comentários de Rocha (1998), dentro de uma perspectiva gerativista, e
Gonçalves (2016a, 2021b), em uma perspectiva relacional. No seu tra-

274
funcionalismo linguístico: interfaces

tamento da improdutividade sufixal, Rocha (1998) propõe o conceito de


sufixoide, que diz respeito a “sequências12 fônicas não-recorrentes, que
se colocam à direita de bases livres, conferindo ao produto um sentido
exclusivo, específico” (ROCHA, 1998, p. 123). Exemplos dados pelo
autor são casebre e carniça. Nessas palavras, as bases respectivas casa e
carne podem ser depreendidas, ou seja, as formações são transparentes do
ponto de vista formal. Do ponto de vista semântico, admite-se que -ebre e
-iça contribuam com o significado de “pequeno” e “podre, deteriorado”,
respectivamente, nas formas derivadas. Ainda assim, conforme Rocha
(1998), as formas -ebre e -iça não apresentam as propriedades de um
sufixo, pois não possuem recursividade ou recorrência, característica que
o autor considera fundamental para que uma sequência seja considerada
um sufixo derivacional. Outros exemplos de palavras formadas com
sufixoides no português seriam:

bicho/bichano, urina/urinol, pé/pedestre, curso/cursilho,


serra/serrote, papel/papelote, andar/andarilho, sertão/
sertanejo, mar/marujo, mar/marisco, mão/manopla,
canto/cantilena, cantar/cantarolar, chorar/choramingar,
horta/hortaliça, cabeça/cabeçalho, pele/pelanca, cavalo/
cavalete, carta/cartilha, carta/cartaz, carta/cartão, pal-
ma/palmatória, mulher/mulherengo, coro/coreto, mama/
mamilo, ferro/ferrolho, pátria/patriota e longe/longínquo
(ROCHA, 1998, p. 124, grifos do autor).

Em relação a esses exemplos de Rocha (1998), cabe mencionar


que alguns dados são diacronismos de origem latina, como longínquo
(< latim longinqŭus, -a, -um “afastado, distante, remoto”) e pedestre (<
latim pedester, -tris, -tre “que vai a pé”), e empréstimos de línguas mo-
dernas como o espanhol, casos de manopla, cursilho e cartilha. Ainda
que essas formas herdadas/adotadas sejam transparentes na língua por-
tuguesa, uma vez que as bases das formações são usadas como palavras,

12 Ortografia atualizada.

275
funcionalismo linguístico: interfaces

não se deve desconsiderar o fator histórico, porque ele esclarece, em


muitos casos, o porquê de os formativos à direita não estarem disponí-
veis no português. Nesses casos, as formas complexas foram herdadas
já prontas; o falante do português não as criou a partir de esquemas
morfológicos. Outro aspecto digno de nota no exemplário de Rocha
(1998) é a questionabilidade de alguns dados em relação à presença de
sufixoides, pois há mais de um exemplo de formas com -ote e -ilho/-ilha
na própria citação do autor. A esses exemplos podem ser somados vários
outros da língua, como cabeçote, meninote, molecote, facote, negrote,
azedote, baixote, fornilho, vidrilho, pecadilho, coquilho. Outro dado
questionável é o de -engo, que é encontrado também em monstrengo e
verdoengo. Há formas exemplificadas por Rocha (1998) que parecem
ter sido acometidas por uma lexicalização semântica, conceito que o
autor usa no seu próprio livro e que diz respeito aos contextos em que
a forma derivada apresenta um significado imprevisto pela regra (ou
esquema, em termos construcionais). O fenômeno da lexicalização é de
outra ordem e não deveria tornar questionável o estatuto do formativo,
mas é o que Rocha faz em carta/cartão e coro/coreto. Considerando
que -ão e -eto são recorrentes em outras formações do português, não
deveriam ser tratados como sufixoides.
Gonçalves (2016a, 2019, 2021b), baseando-se em Bauer (2001)
e Szymanek (2005), opera com os conceitos de hápax legomenon e
quasi-hápax. Em relação a hápax legomenon, o autor explica que se
trata de uma expressão de origem grega para indicar “palavras das quais
se conhece uma única referência” (GONÇALVES, 2016a, p. 34). Esse
termo é bastante usual nos estudos filológicos e linguístico-históricos
para tratar de um dado que se documenta apenas uma vez e/ou em um
único documento. Levando essa premissa à morfologia do português,
Gonçalves (2021b) trata do fenômeno que chama hápax sufixal, ou seja,
um sufixo que só aparece em uma formação da língua. Exemplo dado
pelo autor é o -ixa de lagartixa13:
13 A palavra lagartixa tem origem provável no espanhol lagartija. Nessa língua, o -ijo/-ija é o

276
funcionalismo linguístico: interfaces

Nessa forma linguística, aparece a sequência -ixa na posi-


ção de sufixo, mas nenhuma outra palavra da língua tem
essa terminação, muito menos ocorrendo em formações
em série. Ao que tudo indica, somente tal palavra finaliza
nessa terminação que se assemelha a um sufixo. De fato,
‘lagartixa’ é um réptil, semelhante a um lagarto, mas é
um espécime diferente, que compartilha com o lagarto
muitas propriedades, muito embora seja um animal dife-
rente. O “sufixo” ‑ixa, além de exclusivo dessa palavra,
particulariza muito o significado de ‘lagarto’, alargando-
-o maximamente […] (GONÇALVES, 2021, p. 63-64,
grifos do autor).

Gonçalves (2021b) menciona que casos como o de lagartixa são


muito comuns na língua, ainda que pouco comentados. Outros exemplos
do autor para o fenômeno de hápax sufixal em palavras do português são:

maré | felizardo | casebre | colorau |


nevasca | pelanca | boliche | carnaval |
mamilo | rapariga | marujo | moçoila |
jazigo | carniça | choramingar | riacho |
bocarra | copázio | pedregulho | corpanzil |
(GONÇALVES, 2021b, p. 65, adaptado).

Alguns exemplos mencionados por Gonçalves (2021b) coincidem


com os mencionados por Rocha (1998). Algumas questões de ordem
histórica apontadas para a análise de Rocha (1998) valem também para
os dados de Gonçalves (2021b), mas o principal ponto que diferencia
as duas abordagens é que Gonçalves (2021b) não coloca em dúvida o
estatuto morfológico dos formativos à margem direita das bases somente
pelo fato de não terem recorrência ou recursividade. Dessa forma, Gon-
desenvolvimento popular da forma latina -iculus, -a, -um. Em português, o correspondente a
-iculus, -a, -um é -icho/-icha (rabicho, barbicha), que Gonçalves (2021b) trata como outro
sufixo, como se pode ver na abordagem do quasi-hápax sufixal. A análise de Gonçalves (2021b)
de -ixa e -icha como sufixos diferentes se justifica pela abordagem estritamente sincrônica e
que dispensa fatos de ordem diacrônica.

277
funcionalismo linguístico: interfaces

çalves (2021b) não fala de sufixoides ou pseudossufixos, mas de sufixos


improdutivos, que, nesses casos, aparecem somente em uma formação.
Desdobra-se do conceito de hápax sufixal a noção de quasi-hápax,
que se refere a um “elemento pouco recorrente que se aplica a pouquís-
simas unidades lexicais na língua, tendo baixíssima frequência de token”
(GONÇALVES, 2021b, p. 70, grifo do autor). O quasi-hápax sufixal,
portanto, é um sufixo improdutivo que aparece em mais de uma forma-
ção, mas não apresenta uma recorrência significativa, isto é, tem baixa
frequência de realização. Exemplos dados por Gonçalves (2021b) são:

-aréu: fogaréu | povaréu | mundaréu


-ejo: sertanejo | vilarejo | lugarejo
-ê: miserê | fumacê | lamacê
-icho/a: barbicha | rabicho | pinguicho
-ázio: copázio | balázio | folhetázio
-acho: riacho | penacho | fogacho
-uço: dentuço | pinguço
-onho: risonho | tristonho | enfadonho | medonho
-ucho/a: gorducho | fofucho | pequerrucho | papelucho
(GONÇALVES, 2021b, p. 71, grifos do autor, adaptado).

Neste capítulo, a análise se alinhará com as classificações de Gon-


çalves (2021b), e as formações encontradas no PA serão interpretadas
qualitativa e quantitativamente. Os rótulos hápax e quasi-hápax, vale
lembrar, são estatutos dos padrões no período arcaico, podendo haver
diferenças com o que se verifica no português contemporâneo.

Análise dos dados

Nesta seção, apresenta-se a análise da produtividade de 13 esquemas


morfológicos sufixais usados no português arcaico. São eles: (a) X-edo;
(b) X-engo; (c) X-ento; (d) X-ez; (e) X-iça; (f) X-idão; (g) X-isco; (h)
X-ismo; (i) X-ista; (j) X-izar; (k) -ives; (l) X-udo; (m) X-ume.

278
funcionalismo linguístico: interfaces

O sufixo -edo tem origem no latim -etum. No PA, Soledade (2004)


encontrou, com esse sufixo, apenas a palavra arvoredos, um desenvolvi-
mento da forma latina arboretum, que tinha o mesmo significado coletivo.
Com base nessa única realização, é possível dizer que o padrão X-edo
era improdutivo a partir dos três pontos de vista aqui considerados. Só
há um type dessa construção, logo a frequência de tipo é baixa. A única
forma atestada é uma herança do latim, ou seja, não se identifica gera-
tividade no português. Não houve extensão da construção, uma vez que
só há a forma herdada do latim. Numa consulta ao Dicionário Houaiss
Eletrônico de Língua Portuguesa, de Houaiss e Villar (2009), verificou-
-se que as formas figueiredo e rochedo foram criadas no PA, o que pode
sugerir que a construção era produtiva no PA, sob o viés da geratividade,
mas continua sendo improdutiva, sob o viés da extensibilidade, pois o
mesmo esquema de “coletivo”, visto no latim, instanciaria essas duas
criações do português.
O sufixo -engo tem origem em antigas línguas germânicas e era
usado como formador de adjetivos. No português, são exemplos do seu
uso adjetivos como molengo, mulherengo, monstrengo e verdoengo. À
exceção de verdoengo, datado do século XV e com significado “de co-
loração esverdeada”, todos os outros adjetivos foram atestados, pela pri-
meira vez, em períodos posteriores ao PA e apresentam cariz pejorativo.
No levantamento de Félix (2021-2022), encontrou-se apenas o adjetivo
avoengo, com a ideia de “relativo aos avós, antepassados”. Conforme
o dicionário Michaelis: Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa
(MICHAELIS, 2015), disponível na internet, avoengo é uma criação do
português a partir da base avô. Considerando essa informação, é possível
dizer que o padrão X-engo era improdutivo, no PA, sob o ponto de vista
da frequência e da extensibilidade. Do ponto de vista da geratividade,
é possível considerá-lo produtivo, pois o falante do PA compatibilizou
substantivos da língua com o esquema para produzir formas inéditas.
Em relação a -ento, Simões Neto (2020a) observou que, no latim
clássico, o sufixo originário -entus aparece, sozinho, apenas na palavra

279
funcionalismo linguístico: interfaces

cruentus (cruento, cheio de sangue). A maioria das formas atestadas em


latim eram formadas com -(i/o/u)lentus, uma combinação de -entus com
outros sufixos. Tal combinação está presente em aquilentus (aquoso),
corpulentus (corpulento), purulentus (purulento), suculentus (suculento),
somnolentus (sonolento) e truculentus (truculento). No PA, Soledade
(2004) encontrou apenas três realizações com o esquema X-ento: aua-
rento, bolorento, fedorento, todas criações do período. Assim, pode-se
dizer que, (a) do ponto de vista da frequência, X-ento é improdutivo no
PA, dada a baixa quantidade de types, (b) do ponto de vista da gerativi-
dade, X-ento é produtivo, pois o falante conseguiu compatibilizar novas
palavras com o esquema, gerando novos construtos, e, (c) do ponto de
vista da extensibilidade, X-ento é improdutivo, pois não houve extensões
das propriedades vistas na construção latina.
O sufixo -ez é o desenvolvimento popular do sufixo latino -ities.
Esse sufixo foi estudado por Simões Neto (2021) a partir dos dados de
Soledade (2004). Esse formativo foi visto em três formações: grããdez,
meninez e sandez, todas criações do PA e com significados relacionados
à construção original latina “qualidade abstrata relacionada a X”, em que
X é a base da formação. Com base nesses dados, pode-se dizer que X-ez
era uma construção produtiva apenas do ponto de vista da geratividade,
uma vez que o falante foi capaz de compatibilizar novas palavras com o
esquema X-ez, mas a frequência é baixa, e não há fator de extensibilidade.
O esquema X-iça é um padrão sufixal que se origina no latim X-
-itia no PA. Simões Neto (2021) observou que, nos dados de Soledade
(2004), X-iça só foi verificado nas realizações justiça (< justitia) e lediça
(< laetitia), ambas herdadas do latim, com os significados originais de
“qualidade abstrata relacionada a X”. Diante disso, pode-se dizer que
X-iça é um padrão improdutivo nos três aspectos aqui considerados,
pois tem baixa frequência, não é usado para gerar formas novas no PA e
não apresenta qualquer fator de extensão em relação à construção latina
original.

280
funcionalismo linguístico: interfaces

O padrão X-idão, originado no latim X-itudo “qualidade abstrata


relacionada a X”, foi identificado em 11 dados de Soledade (2004), sendo
cinco criações do PA (liuridom; mansidoen ~ mansidõe; podridom; sobegi-
doen; vermelhidoen) e seis heranças da língua latina (certidoen ~ certydão;
firmidõoes; ingratidões; multidão; servidõoe; similidom). Com base nisso,
assume-se que o padrão X-idão era produtivo no PA, na medida em que foi
possível criar formas inéditas pela compatibilização entre itens lexicais do
português e o referido esquema. Entretanto, do ponto de vista da frequência
e da extensibilidade, o esquema deve ser considerado improdutivo.
O sufixo -isco, de origem incerta (não se sabe se gótica ou grega),
foi visto em duas formas do lexema adjetival mourisco: mourisco e mou-
riscas, com base no levantamento de Félix (2021-2022). Trata-se de uma
criação do PA. O sufixo -isco atua na formação de adjetivos relacionais.
Nesse caso, mourisco/mourisca significa “relacionado aos mouros”. O
esquema X-isco era produtivo quanto à geratividade, mas improdutivo
em relação à extensibilidade e à frequência.
Os sufixos -ismo, -ista e -izar têm suas respectivas origens nos for-
mativos gregos -ισμός (-ismós), -ιστής (-istés) e -ίζω (-izo), tendo sido
latinizados como -ismus, -i, -ista, -ae, e -izare. Embora sejam bastante
frequentes em formações do português contemporâneo, esses sufixos nem
sempre dispuseram de significativa produtividade na história da língua.
No PA, a única forma com -ismo encontrada por Soledade (2004) foi
bautismo (< lat. baptismus < gr. baptismós). Com o sufixo -ista, foram
encontradas, no levantamento de Félix (2021-2022), as formas batista
(< lat. ecl. baptista < gr. baptistés), exorcista (< lat. ecl. exorcista < gr.
eksorkistés), euangelista (< lat. ecl. evangelista < gr. euaggelistés) e
salmista (< lat. ecl. psalmista). Por último, com -izar, Xavier, Vicente e
Crispim (1999-2003) registram as seguintes formas: autorizar, baptizar,
canonizar, escandalizar e thesaurizar. Dessas, apenas thesaurizar não
tem origem greco-latina, sendo, segundo os autores, uma criação do PA,
sinônima de entesourar: “acumular riqueza, formar tesouro”. Diante
disso, pode-se dizer que X-ista e X-ismo são improdutivas sob os três

281
funcionalismo linguístico: interfaces

aspectos considerados neste trabalho, mas X-izar se diferencia pelo fato,


de, já no PA, ter se visto a possibilidade de o falante compatibilizar novas
palavras com o esquema. Logo, X-izar, mesmo que com apenas um dado
não herdado do latim, tinha potencial gerativo. Na trajetória da língua
portuguesa, a revolução científica do século XIX, com certeza, foi um
fator importante para a mudança de estatuto de produtividades das três
construções, a partir de todos os fatores considerados.
Com o formativo -ives, a única forma atestada no levantamento de
Félix (2021-2022) foi ourives. Trata-se de um dos desenvolvimentos
do latim aurĭfex, -ĭcis, um composto morfológico (RIBEIRO; RIO-
-TORTO, 2016). Esse composto se desenvolveu, no português, na forma
culta aurífice e na forma vulgar ourives. A forma culta ainda mantém
as características de uma composição morfológica, mas a forma vulgar
não. O lexema ouro já estava no PA, o que torna ourives, ‘quem trabalha
com ouro’, um item lexical transparente morfológica e semanticamente.
O elemento -ives, que se depreende de ourives, pode ser considerado um
sufixoide, nos termos de Rocha (1998). Em linhas gerais, o padrão X-ives
é improdutivo, com base nos três fatores tratados neste texto.
O padrão X-udo foi analisado anteriormente por Simões Neto
(2020b), que se baseou nos dados de Soledade (2004). Esse padrão se
originou no latim X-utus, tendo exemplos como artūtus (atarracado),
astūtus (astuto), cīnctūtus (em forma de cinto) e cornūtus (que tem
chifres). No PA, as formas encontradas por Soledade (2004) foram:
barvudo, beyçudo, cabelludo, cornudo, sanhudo~sannudo~sannuhudo
e sesudo. Dessas, apenas cornudo não é criação do português, mas todas
apresentam um significado de posse/provimento, que se verifica já na
construção original latina. Dessa maneira, pode-se dizer que X-udo era
um padrão produtivo apenas do ponto de vista da geratividade, sendo
considerado improdutivo quanto à frequência e à extensibilidade.
Por último, X-ume, originado do latim X-umen, foi visto apenas
em queixume, com base nos dados de Soledade (2004). Trata-se de uma

282
funcionalismo linguístico: interfaces

forma criada no PA. Era um padrão improdutivo em relação à frequên-


cia e à extensibilidade, mas produtivo quanto à geratividade. A forma
chorume, conforme Houaiss e Villar (2009), só entrou no português no
final do século XVI, ou seja, depois do PA.
Diante dos dados apresentados e da análise empreendida, pode-se
dizer que as instanciações de X-edo, X-engo, X-isco, X-ismo, X-ives e
X-ume são casos de hápax legomenon. X-ento, X-ez, X-iça, X-idão, X-
-ista, X-izar e X-udo são casos de quasi-hápax. A seguir, no Quadro 1,
apresenta-se uma síntese do comportamento dos esquemas analisados,
considerando os três fatores de extensibilidade (frequência, geratividade
e extensibilidade).
Quadro 1 – Síntese dos fatores de produtividade dos esquemas sufixais do português
arcaico

Fatores de produtividade
Padrões analisados
Frequência Geratividade Extensibilidade
X-edo - - -
X-engo - + -
X-ento - + -
X-ez - + -
X-iça - - -
X-idão - + -
X-isco - + -
X-ismo - - -
X-ista - - -
X-izar - + -
X-ives - - -
X-udo - + -
X-ume - + -

Fonte: elaborado pelos autores

283
funcionalismo linguístico: interfaces

Considerações finais

Neste capítulo, apresentou-se uma discussão sobre a improdutivi-


dade em 13 esquemas morfológicos de sufixação no português arcaico.
Os dados foram retirados dos trabalhos feitos por Soledade (2004),
Félix (2021-2022) e Xavier, Vicente e Crispim (1999-2003). Ao longo
do texto, mostrou-se que o termo produtividade é bastante polissêmico
nos estudos linguísticos. Diante disso, foram estabelecidos três fatores
de produtividade: (a) a frequência type, isto é, a quantidade de palavras
diferentes formadas com o sufixo; (b) a geratividade, ou o potencial de
serem formadas palavras inéditas no período arcaico; e (c) a extensibili-
dade, ou seja, a capacidade de se haver extensão de propriedades formais
ou funcionais.
Nesses termos, analisou-se que todos os esquemas foram impro-
dutivos em relação à frequência e à extensibilidade, mas alguns foram
considerados produtivos por terem instanciado novas palavras no PA.
Foram os casos de X-engo (avoengo), X-ento (auarento, bolorento, fedo-
rento), X-ez (grããdez, meninez e sandez), X-idão (liuridom; podridom;
vermelhidoen), X-isco (mourisco), X-izar (thesaurizar), X-udo (barvudo,
beyçudo, cabelludo, sanhudo) e X-ume (queixume).
Como dito na seção anterior, as instanciações de X-edo, X-engo,
X-isco, X-ismo, X-ives e X-ume são exemplos de hápax legomenon,
uma vez que são esquemas que apresentam apenas uma realização, já
X-ento, X-ez, X-iça, X-idão, X-ista, X-izar e X-udo são quasi-hápax.
Vale ressaltar, mais uma vez, que essa classificação se baseia nos dados
analisados do PA. Quanto à elaboração de esquemas, aqueles que foram
considerados gerativos podem ter dado origem a esquemas construcio-
nais. Assim, pode-se dizer que havia, no PA, os seguintes esquemas
construcionais:

284
funcionalismo linguístico: interfaces

a. <[XN-engo]A ↔ [relacionado a SEMN]>

b. <[XN/A-ento]A ↔ [que possui muito ou que é muito SEMN/A]>

c. <[XN/A-ez]N ↔ [qualidade abstrata relacionada a SEMN/A]>

d. <[XA-idão]N> ↔ [qualidade abstrata relacionada a SEMA]>

e. <[XN-isco]A ↔ [relacionado a SEMN]>

f. <[XN-izar]V ↔ [prover de SEMN]>

g. <[XN-udo]A ↔ [que possui muito SEMN]>

h. [XN-ume]N ↔ [SEMN recorrente]>

Os demais padrões, X-iça, X-ives, X-ista e X-ismo, podem ser re-


presentados por esquemas relacionais. No caso de X-iça, as realizações
justiça e lediça podem ser relacionadas às bases adjetivas justo e ledo.
A forma ourives, única realização de X-ives, se relaciona com a base
ouro. As realizações de X-ista e X-ismo podem ser abordadas através de
um esquema paradigmático (BOOIJ, 2010), em que o padrão X-ista está
associado ao X-ismo, visto que o significado de bautismo está associado
ao de batista, e vice-versa.

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289
funcionalismo linguístico: interfaces

MORFOSSINTAXE NA SALA DE AULA SOB O VIÉS


FUNCIONALISTA: ELEMENTOS CIRCUNSTANCIAIS EM
FOCO1

Edvaldo Balduino Bispo


(UFRN/CNPq)

Fernando da Silva Cordeiro


(UFERSA)

Situando a discussão sobre ensino de gramática

Nas últimas três décadas, o ensino de língua portuguesa (LP) tem


experimentado transformações significativas no que diz respeito, prin-
cipalmente, a suas finalidades e ao que se constitui como seu real objeto
de aprendizagem. Historicamente, sublinha-se o protagonismo da gramá-
tica em detrimento do trabalho com a leitura e a escrita, baseando-se na
concepção de que saber gramática significa ter domínio de uma língua.
Faraco (1984) posiciona-se de forma contundente contra o ensino
do que ele chamou de teoria gramatical, uma vez que o que se verifica
é o contato com uma metalinguagem, buscando um domínio ilusório
da língua. Segundo ele, a teoria gramatical não deveria ser objeto de
ensino de português por dois motivos: i) é possível dominar a língua
1 Este capítulo resulta de pesquisas sobre o ensino de gramática na Educação Básica pública
potiguar com apoio financeiro da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ (Processo nº 202.326/2021) e do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Processo nº 305720/2022-8).

291
funcionalismo linguístico: interfaces

sem conhecê-la; e ii) a teoria gramatical que circula nas salas de aula
(notadamente oriunda da Gramática Tradicional) é incompleta e confusa.
Por sua vez, Antunes (2003), ao traçar um panorama da aula de
língua portuguesa e tratar especificamente do trabalho em torno da
gramática, constata que esse trabalho é comumente perpassado por
uma gramática descontextualizada, fragmentada, baseada em questões
irrelevantes e voltada para a classificação e a nomenclatura de unidades
linguísticas. A autora atribui esse tratamento da gramática a uma visão de
língua uniforme e inalterável, bem como a uma tendência essencialmente
prescritiva. Acrescentamos à composição desse cenário o isolamento da
gramática em relação a outras competências do ensino de língua portugue-
sa (leitura, escrita e oralidade); o privilégio de atividades mecanizadas,
com o objetivo de identificar, definir, classificar e substituir elementos
linguísticos, sem a devida reflexão sobre as motivações subjacentes; além
da ausência de uma fundamentação clara para o trabalho com gramática.
Essas considerações fazem-nos perceber que o ensino de gramática
ou o trabalho com tópicos gramaticais na sala de aula de língua portu-
guesa tem sido alvo de amplo debate. Há muito, advoga-se, no campo do
ensino de língua, que a atividade de produção e compreensão de textos
e o desenvolvimento da competência comunicativa sejam os elementos
centrais da aula de língua portuguesa.
A centralidade do texto no ensino de LP é uma premissa que foi
incorporada às orientações curriculares oficiais de nosso país há bastante
tempo, desde os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL,
1998). Esse documento traz, de forma muito clara, a ideia de que “a
linguagem se realiza na interação” (BRASIL, 1998, p. 25) e que a uni-
dade básica de estudo da língua é o texto, e sua função comunicativa é
a razão do ato linguístico. Uma vez que o texto é compreendido como
lugar da interlocução entre sujeitos e produto da atividade discursiva,
a compreensão e a produção de textos constituem os reais objetos de
ensino de língua.

292
funcionalismo linguístico: interfaces

Essa visada textual-discursiva dos parâmetros curriculares acentuou


o debate sobre a presença do ensino de gramática nas aulas de língua
portuguesa. Questiona-se não só o seu espaço, mas também a importância
e a relevância de ensinar gramática na Educação Básica, tendo em vista
as finalidades dessa etapa de ensino, as razões pelas quais se ensinar
(ou não) e mesmo a metodologia empregada no trabalho com tópicos
gramaticais. Afinal, deve-se ensinar gramática na escola ou não?
Autores como Neves (2011) defendem abertamente a permanên-
cia do trabalho com gramática na sala de aula, com a devida crítica,
porém, em relação à configuração metodológica dessa abordagem. A
pesquisadora entende que é papel da escola levar o aluno a reconhecer
aquilo que é socialmente considerado “bom uso” linguístico, cabendo a
ela manter continuamente a reflexão sobre a língua materna, a partir das
relações entre o uso da linguagem, as atividades de análise linguística e
a explicitação da gramática. Entretanto, a autora argumenta que o estu-
do da gramática não pode se limitar a seu aspecto normativo e de mera
classificação metalinguística das entidades. Neves salienta, entre suas
recomendações, que pelo uso da língua é que se chega à explicitação do
próprio funcionamento da linguagem.
Os documentos curriculares nacionais levam-nos a perceber que
ensinar gramática ou não é uma falsa questão. O problema não está na
necessidade de ensinar gramática, mas para que e como ensiná-la. Os
próprios PCN ressaltam a necessidade da reflexão sobre a língua como
um elemento essencial para o desenvolvimento das competências de
leitura e de escrita. Dito de outro modo, o estudo da gramática é uma
estratégia para compreensão/produção de textos. A reflexão sobre a lín-
gua deve ser pautada pela formulação e verificação de hipóteses sobre o
funcionamento da língua(gem).
Os PCN apontam que o caminho para a prática da reflexão sobre a
língua é explorá-la em seus contextos de uso, a fim de tomar consciência
e aprimorar o controle sobre a própria produção linguística. Também não

293
funcionalismo linguístico: interfaces

se exclui a possibilidade de trabalhar a metalinguagem, isto é, a sistema-


tização de conceitos e definições sobre a própria língua, desde que essa
análise seja desenvolvida por meio da observação das regularidades no
funcionamento da língua. Essas orientações guardam estreita compati-
bilidade com a perspectiva funcionalista de análise de fatos linguísticos.
O tratamento dos tópicos gramaticais que considera a atividade de
produção verbal, as regularidades observadas no uso da língua e os efeitos
de sentido decorrentes das escolhas dos falantes na interação fez emergir,
inclusive, outro conceito: o de práticas de análise linguística. Segundo
Bezerra e Reinaldo (2020), esse conceito se refere à didatização da des-
crição e da análise de aspectos da língua e retoma trabalhos basilares,
como os de Geraldi (2006 [1984], 2013 [1991]), Franchi (1987), Neves
(1990), Possenti (1996), Travaglia (1996) e Britto (1997).
Polato e Menegassi (2021) mostram que diferentes vertentes teóricas
dos estudos da linguagem favoreceram a redefinição dos objetivos do
ensino de gramática ao longo dos anos, com destaque ao Funcionalis-
mo, à Sociolinguística e ao campo da Linguística Aplicada. Bezerra e
Reinaldo (2020) atribuem à Franchi (1987) as origens da perspectiva de
ensino de gramática que hoje temos. Partindo do pressuposto de que a
linguagem se constitui na interação e de que a atividade linguística reside
na negociação de sentidos, o autor defende que há três tipos de ações que
se materializam no modo como os sujeitos usam a língua(gem): as ações
com a linguagem; as ações sobre a linguagem; as ações da linguagem.
Essas ações ensejam o desenvolvimento de três tipos de atividades com
os fenômenos linguísticos em sala de aula, quais sejam:

i) as atividades linguísticas, que consistem nas atividades de produção


verbal, isto é, de uso concreto da língua em situações de comunicação
reais ou, nos próprios termos de Franchi (1987, p. 39): “o exercício
pleno, circunstanciado, intencionado e com intenções significativas da
própria linguagem”;

294
funcionalismo linguístico: interfaces

ii) as atividades epilinguísticas, que são reflexões sobre o próprio uso


linguístico, com o objetivo de pensar nas alternativas disponíveis e
possíveis efeitos de sentido das diversas possibilidades existentes; e

iii) as atividades metalinguísticas, que nada mais são do que pensar


sobre a natureza da linguagem, descrevendo-a a partir de um quadro
nocional, relacionado a teorias linguísticas e métodos de análise da
língua (FRANCHI, 1987; BEZERRA; REINALDO, 2020).

De certo, encontramos muito da proposta seminal de Franchi (1987)


em proposições advindas de outros lugares teóricos. A Sociolinguística,
como citado por Polato e Menegassi (2021), também há muito vem
tentando trazer os avanços realizados na descrição e na análise do portu-
guês para a sala de aula. Trabalhos como os de Bortoni-Ricardo (2005),
Bortoni-Ricardo et al. (2014), Bagno (2004, 2007) e Vieira (2018), só para
citar alguns, dedicaram-se a traçar orientações e propostas metodológicas,
embasadas em premissas e achados sociolinguísticos sobre o português
brasileiro, que pudessem ser aplicadas em sala de aula.
Em nome de uma compreensão funcional e discursiva da gramática,
podemos citar também as orientações de Antunes (2003) para o trabalho
com uma “gramática contextualizada” em sala de aula como uma con-
tribuição expressiva dos estudos linguísticos para as práticas de análise
linguística. Conforme a autora, o professor deve promover um trabalho
com gramática relevante – que considere noções e regras úteis e aplicá-
veis aos usos sociais da língua; funcional – que tenha como referência
o funcionamento efetivo da língua; e contextualizado – que esteja natu-
ralmente incluído na interação verbal, uma vez que “ela [a gramática] é
uma condição indispensável para a produção e a interpretação de textos
coerentes, relevantes e adequados socialmente” (ANTUNES, 2003, p. 97).
A Linguística Funcional também tem contribuído com o cenário de
proposições teórico-metodológicas acerca do ensino de gramática, como
bem apontaram Polato e Menegassi (2021). Conforme os autores, “os

295
funcionalismo linguístico: interfaces

preceitos funcionalistas são bem recebidos por se encaixarem à concepção


de linguagem como forma de interação, visto considerarem a própria
língua em função, tanto do ponto de vista cognitivo como do ponto de
vista social” (POLATO; MENEGASSI, 2021, p. 62). A esse respeito,
Bispo, Cordeiro e Lucena (2022) fizeram um apanhado de como e quanto
o Funcionalismo linguístico, em especial sua vertente norte-americana,
tem possibilitado professores e pesquisadores pensarem a respeito de um
ensino reflexivo e produtivo de gramática.
Circunscrito nesse cenário, este capítulo se coloca no esforço de
contribuir para o debate sobre práticas de análise linguística na escola
e de correlacionar premissas funcionalistas ao tratamento de tópicos
gramaticais em sala de aula. Alinhamo-nos aos vários autores que de-
fendem o espaço da reflexão sobre o funcionamento da língua(gem),
assumindo o olhar teórico da Linguística Funcional como propulsora
da reconfiguração metodológica das práticas de análise linguística. O
objetivo geral é discutir a abordagem de conteúdos gramaticais na aula
de língua portuguesa com base em pressupostos teórico-metodológicos
da Linguística Funcional norte-americana (LF, daqui em diante). Para
tanto, delineamos proposta de tratamento de um tópico de morfossintaxe
em turma do Ensino Fundamental. Em termos específicos, objetivamos:
i) analisar como esse tópico está consubstanciado na Base Nacional
Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2018), em termos de campos de
atuação, eixos e habilidades; ii) examinar a abordagem desse tópico em
livros didáticos adotados na rede pública potiguar; ii) explicitar sugestões
de tratamento do fenômeno linguístico escolhido sob a perspectiva da
LF em consonância com as orientações curriculares oficiais (BRASIL,
1998, 2018).
Organizamos o capítulo em cinco seções. Nesta introdução, situ-
amos as práticas de análise linguística no ensino de língua portuguesa,
pontuando alguns aspectos relevantes para o debate e expondo nossos
objetivos. Na próxima seção, caracterizamos o arcabouço teórico da
LF e a convergência desse viés teórico com as orientações curriculares

296
funcionalismo linguístico: interfaces

nacionais. Na terceira seção, examinamos como os elementos de natu-


reza adverbial são tratados na BNCC e em livros didáticos de Língua
Portuguesa. A penúltima seção delineia uma proposta metodológica de
trabalho com esses elementos na sala de aula, a título de ilustração. Por
último, explicitamos nossas conclusões.

Funcionalismo linguístico e ensino de língua portuguesa

O Funcionalismo linguístico caracteriza-se por investigar a rela-


ção entre a estrutura gramatical das línguas e os diferentes contextos
interacionais em que ela é usada. Assume o pressuposto básico de que
os recursos linguísticos (fonético-fonológicos e morfossintáticos) são
mobilizados para atender a necessidades comunicativas (semânticas e
pragmáticas) e cognitivas (a conceitualização, o modo como se dá essa
conceitualização, a extensão de significado etc.). Desse modo, a relação
forma-função é o fio condutor que norteia os trabalhos desenvolvidos
sob essa perspectiva teórica.
O termo Linguística Funcional compreende um espectro variado de
vertentes de estudos linguísticos que têm em comum, entre outros, o fato
de procurar descrever e explicar a estrutura linguística com base em mo-
tivações/aspectos estruturais (relativos à forma linguística) e funcionais
(relacionados ao uso da língua). Entre essas vertentes, destacamos a Gra-
mática Discursivo-Funcional (GDF), a Linguística Sistêmico-Funcional
(LSF) e a Linguística Funcional norte-americana (LF). Nosso foco recai
sobre o Funcionalismo norte-americano.
Embora a LF não tenha uma agenda voltada especificamente ao en-
sino de língua, alguns pesquisadores brasileiros, notadamente ligados ao
grupo Discurso & Gramática (D&G), têm investido nessa seara. Segundo
defendem Bispo, Cordeiro e Lucena (2022), as incursões na interface
Funcionalismo linguístico e ensino de língua podem ser agrupadas em
três fases. A primeira delas refere-se à identificação de aproximações, em
termos de postulados, objetivos e procedimentos de investigação, de que

297
funcionalismo linguístico: interfaces

são exemplo Oliveira e Cezario (2007), Oliveira e Wilson (2008). A se-


gunda corresponde à indicação de desdobramentos teórico-metodológicos
para a sala de aula, mas sem intervenção direta, ilustrada por Bispo (2007,
2009), Silva (2008), Furtado da Cunha e Bispo (2012). A terceira fase
é a de elaboração e aplicação de propostas intervencionistas, conforme
exemplificam Amurim (2018), Bispo e Amurim (2019) e Silva (2020).
Bispo, Cordeiro e Lucena (2022), com base em Furtado da Cunha
e Tavares (2007), Oliveira e Cezario (2007), Furtado da Cunha, Bispo
e Silva (2014), entre outros, destacam como aproximações entre os
pressupostos básicos funcionalistas e os objetivos do ensino de língua
portuguesa no contexto brasileiro os seguintes aspectos:

i) o entendimento da língua como uma atividade social, estreitamente


ligada ao ato comunicativo e por ele contingenciada;

ii) o estudo da materialidade linguística pautado no uso efetivo da


língua, levando em consideração o papel relevante do contexto e de
outros elementos constituintes da situação comunicativa na organização
dos textos;

iii) a relação estabelecida entre categorias analíticas do Funcionalismo,


como iconicidade, marcação, plano discursivo e gramaticalização, e
objetos do ensino de língua portuguesa;

iv) a necessidade de respeito à pluralidade linguística que caracteriza


nossas comunidades de fala.

Conforme observam Bispo e Silva (2020), Bispo e Furtado da Cunha


(2022), os documentos oficiais de orientação curricular (BRASIL, 1998,
2006, 2018) destacam que os conteúdos gramaticais devem ser estudados
considerando a importância que têm para a produção e a recepção de
textos em sua multiplicidade. Nessa direção, tais conteúdos são redimen-
sionados em termos de relevância, com foco em um trabalho calcado em
práticas de análise linguística nas quais se promova uma reflexão sobre

298
funcionalismo linguístico: interfaces

os efeitos semântico-pragmáticos e textual-discursivos dos mecanismos


linguísticos recrutados para a construção de textos autênticos. O texto
assume, nessa perspectiva, a centralidade para o ensino de LP e é tomado
como unidade de trabalho (BRASIL, 2018). Tais premissas se coadunam
com a visão funcionalista de tratamento de fenômenos gramaticais.
O trabalho com fenômenos gramaticais em sala de aula de Língua
Portuguesa numa abordagem funcionalista implica tomar o texto como
ponto de partida e de chegada. É por meio de textos autênticos, produ-
zidos nas mais diferentes práticas sociais situadas, que mobilizamos os
distintos recursos linguísticos para a produção de sentidos e para o alcance
de propósitos comunicativos. É nessa perspectiva que explicitamos, na
quarta seção, proposta de tratamento de um tópico da morfossintaxe do
português em associação à prática de leitura/escuta e produção de texto.

Advérbio/locução adverbial e adjunto adverbial na BNCC e no livro


didático

Ocupamo-nos, nesta seção, do tratamento de um objeto de conheci-


mento do âmbito da morfossintaxe: advérbio/locução adverbial, adjunto
adverbial. Apresentamos, inicialmente, o que está consubstanciado na
BNCC (BRASIL, 2018) relativamente a esse objeto em termos de ha-
bilidades a serem desenvolvidas pelos alunos. Em seguida, discutimos
como esse conteúdo é abordado em livros didáticos de Língua Portuguesa
da rede pública potiguar.
Na BNCC, o fenômeno linguístico que focalizamos está contempla-
do no eixo da leitura e no da análise linguística/semiótica. No primeiro
caso, associado ao objeto de conhecimento “reconstrução das condições
de produção e circulação e adequação do texto à construção composicio-
nal e ao estilo de gênero” (BRASIL, 2018, p. 146), mais particularmente
gêneros normativos (lei, código, estatuto etc.), e à habilidade de análise
dos efeitos de sentido causados pelo uso de palavras e expressões que indi-

299
funcionalismo linguístico: interfaces

cam circunstâncias, como advérbios e locuções adverbiais – EF69LP202.


No eixo da análise linguística/semiótica, relaciona-se à morfossintaxe e
à modalização, para as quais são previstas as habilidades de “identificar,
em textos lidos ou de produção própria, advérbios e locuções adverbiais
que ampliam o sentido do verbo núcleo da oração” (p. 173) – EF07LP09;
de “interpretar, em textos lidos ou de produção própria, efeitos de sentido
de modificadores do verbo (adjuntos adverbiais – advérbios e expressões
adverbiais), usando-os para enriquecer seus próprios textos” (p. 189) –
EF08LP10; e de “analisar a modalização realizada em textos noticiosos
e argumentativos”, operada “por classes e estruturas gramaticais como
adjetivos, locuções adjetivas, advérbios, locuções adverbiais, orações
adjetivas e/ou adverbiais […], de maneira a perceber a apreciação ideo-
lógica sobre os fatos noticiados ou as posições implícitas ou assumidas”
(p. 181) – EF89LP16.
Relativamente à abordagem do advérbio/locução adverbial e do
adjunto adverbial nos livros didáticos do Ensino Fundamental (EF), cabe
registrar que consideramos as duas coleções adotadas pela maioria das
escolas potiguares no PNLD 20203. São elas: Se liga na língua – leitura,
produção de texto e linguagem (ORMUNDO; SINISCALCHI, 2018)
e Tecendo linguagens – Língua Portuguesa (OLIVEIRA; ARAÚJO,
2018a, 2018b).
A coleção Se liga na língua, da Editora Moderna, propõe o estudo
da classe dos advérbios e da função sintática de adjunto adverbial durante
o 7º ano do EF. A obra é composta de oito capítulos, cada um deles com
foco em um gênero textual. No manual do professor, a obra explicita os
objetivos de aprendizagem contemplados em cada capítulo. Assim, os
advérbios são trabalhados no quinto capítulo da obra, que tem como foco

2 Trata-se do modo de codificação, na BNCC, das habilidades a serem desenvolvidas pelos alu-
nos: as letras iniciais designam a etapa da Educação Básica, no caso, Ensino Fundamental; os
dois dígitos intermediários referem-se às séries/anos (6º ao 9º ano); LP codifica o componente
curricular Língua Portuguesa; já os dígitos finais dizem respeito à sequência do conjunto total
de habilidades (habilidade 20).
3 A escolha dessas obras deve-se às pesquisas referidas na nota 1.

300
funcionalismo linguístico: interfaces

principal o texto teatral. Os objetivos apresentados para o capítulo incluem


dois direcionados ao tratamento dos advérbios, quais sejam: i) entender
a função dos advérbios (e da locução adverbial) como modificadores
de termos e enunciados; e ii) conhecer a classificação dos advérbios (e
locuções adverbiais) com base na semântica. Adjuntos adverbiais são
apresentados aos alunos no sexto capítulo do mesmo volume, cujo foco
recai sobre os gêneros palestra e seminário. O único objetivo relacionado
a essa função sintática é: identificar o adjunto adverbial nas orações.
Percebemos que os objetivos são focados na identificação de advér-
bios (e adjuntos adverbiais) nas orações e sua consequente classificação,
baseada nas circunstâncias que expressam, o que se aproxima da abor-
dagem tradicionalmente realizada desses conteúdos. Um dos objetivos
reconhece que os advérbios podem modificar termos da oração, como
verbos e adjetivos, mas também enunciados, o que aponta para o mecanis-
mo da modalização, assim como prevê a habilidade EF89LP16 da BNCC.
Analisando cuidadosamente os capítulos nos quais esses conteúdos
são trabalhados, vimos que os tópicos relativos ao eixo de análise lin-
guística/semiótica são tratados na seção “Mais da língua”. É importante
pontuar que essa seção se relaciona muito pouco com o que até então
vinha sendo desenvolvido ao longo do capítulo. No capítulo cinco, por
exemplo, que propõe o estudo do texto teatral, precedem a seção leitu-
ras de textos teatrais, atividades de interpretação e produção textual e
atividades que exploram as relações intertextuais presentes nos textos
lidos previamente. Dessa forma, é perceptível que o trabalho com tópicos
gramaticais ainda ocorre de maneira isolada de outras competências/
habilidades, como a leitura e a produção textual.
Ao tratar dos advérbios, a obra deixa claro que os assuntos trabalha-
dos são a função, a classificação e a variação4 dessa classe de palavras.
Um texto auxiliar, que margeia a seção e faz parte do manual do profes-
sor, expõe que os principais objetivos são ajudar os alunos a perceber
4 O termo “variação”, conforme se verifica na obra, não está se referindo ao conceito de “variação
linguística”, mas à diversidade de palavras que pertencem à classe dos advérbios.

301
funcionalismo linguístico: interfaces

o valor semântico dos advérbios e a maneira como eles acrescentam


informações ao conteúdo expresso por palavras de outras classes gra-
maticais, como verbos e adjetivos. O texto ainda destaca a modalização,
definida como “a apreciação ideológica sobre o conteúdo expresso ou
as posições implícitas ou assumidas em textos diversos” (ORMUNDO;
SINISCALCHI, 2018, p. 166).
O ponto de partida para o estudo dos advérbios é a fala de um dos
personagens da peça “O Dragão Verde”, de Maria Clara Machado, leitura
que inicia o capítulo. O Rei, ao falar sobre a sua coroa, diz: “Me pesa
demais”. Um parágrafo introdutório curto provoca o aluno a perceber
a função do advérbio “demais” na sentença, acompanhando o verbo e
acrescentando-lhe ideia de intensificação. Em seguida, a partir de uma
tirinha do personagem Snoopy, algumas questões direcionam a atenção
do aluno para o uso de advérbios e para o seu papel de veicular circuns-
tâncias de eventos expressos por verbos nas orações.
Um breve texto explicativo define a classe gramatical dos advér-
bios, pontuando que essas palavras servem para acrescentar informações
a processos verbais, a adjetivos, a outros advérbios e até a enunciados
inteiros. O livro apresenta, então, alguns exemplos de orações contendo
advérbios e mostra como essas palavras se relacionam com outras pre-
sentes na sentença e, ainda, como elas podem modificar toda a oração,
expressando a opinião diante do fato relatado, como no caso do advérbio
“infelizmente” na oração “Infelizmente, a vaga de estágio já foi preen-
chida”, exemplo que o livro oferece.
A fim de discutir a classificação dos advérbios, a obra fornece um
quadro contendo, de um lado, as circunstâncias comumente expressas
por advérbios – tempo, lugar, modo, intensidade, afirmação, negação e
dúvida – e, do outro lado, advérbios e locuções adverbiais que as ilustram.
A atividade que sucede a seção traz fragmentos textuais para explo-
rar o uso de advérbios. As questões sugerem reescrita de trechos, com
a substituição de itens lexicais dessa categoria, a fim de demonstrar sua

302
funcionalismo linguístico: interfaces

variabilidade. Outras questões evidenciam o recurso da modalização,


mostrando que o uso do advérbio pode expressar o grau de certeza que
o falante tem sobre aquilo que está dizendo. Nesse ponto, o livro explora
as diversas possibilidades de colocação do advérbio na sentença, com o
intuito de fazer perceber os efeitos de sentido decorrentes de seu deslo-
camento. Alguns outros detalhes sobre a categoria gramatical em foco
são contemplados de forma bem pontual, como sua invariabilidade (no
sentido de que não são flexionáveis), a formação de advérbios a partir
de adjetivos (com o uso do sufixo -mente), e o caso dos adjetivos que
podem funcionar como advérbios a depender do contexto.
O tratamento da função sintática de adjunto adverbial é ainda mais
resumido, tendo lugar no sexto capítulo do mesmo volume. A seção
“Mais da língua” dedica-se ao estudo do predicado verbal, a partir do qual
são apresentadas as funções de objeto direto, objeto indireto e adjunto
adverbial. A estratégia é parecida com o que vimos na seção dedicada
aos advérbios: dá-se uma oração como exemplo, destaca-se o elemento
da sentença que atua como adjunto adverbial e então define-se a função,
explicitando como características principais o fato de serem termos
acessórios, que acrescentam circunstâncias ao evento expresso no pre-
dicado, sem, no entanto, “completar o sentido” do verbo (ORMUNDO;
SINISCALCHI, 2018, p. 203). Segue-se à ligeira explicação um quadro
semelhante ao exposto no capítulo anterior da obra, contendo valores
semânticos possíveis dos adjuntos adverbiais e orações que exemplificam
a presença desses elementos e seus respectivos sentidos. É importante
pontuar que os adjuntos adverbiais são retomados no volume seguinte
(8º ano do EF), porém a título de revisão, ou seja, sem necessariamente
ampliar o que já fora estudado a respeito dessa função sintática.
A coleção Tecendo linguagens, da IBEP também trata dos advérbios
e do adjunto adverbial no 7º e 8º anos, assim como ocorre na coleção
Se liga na língua. A coleção tem uma composição diferente da anterior:
as unidades são desenvolvidas em torno de temas e não priorizam um
gênero textual específico. Ao longo das unidades, os volumes da obra

303
funcionalismo linguístico: interfaces

trazem textos de vários gêneros para leitura e sugerem a produção de


textos também diversos. Entre os mais diferentes tipos de textos e ativi-
dades, a seção “Reflexão sobre a língua” promove o estudo de tópicos
gramaticais. Nessa coleção, não identificamos os objetivos específicos
para o trabalho com elementos circunstanciais.
No volume referente ao 7º ano, o foco é a classe gramatical dos
advérbios. Não percebemos muitas diferenças no que diz respeito ao
modo como esses tópicos são introduzidos e explicados entre as duas
coleções analisadas. O livro traz um fragmento textual de uma das
leituras da unidade com os advérbios presentes destacados em negrito.
A partir disso, os alunos são levados a identificar sentidos relaciona-
dos a cada um deles, para que percebam as circunstâncias expressas
no contexto: tempo, lugar, modo, intensidade etc. Por exemplo, no
período “Eu vestia roupas ordinárias, usava tamancos, enlameava-me
no quintal, engenhando bonecos de barro, falava pouco”, que compõe
o referido fragmento, a obra espera que os alunos identifiquem que a
locução adverbial “no quintal” indica lugar, ao passo que o advérbio
“pouco” indica intensidade. Essa exploração inicial questiona ainda se o
sentido do excerto seria afetado com a ausência dos termos destacados.
Evidencia-se, assim, o papel dos advérbios e das locuções adverbiais
para as sentenças.
Um pequeno box apresenta a definição tradicional de advérbio e
de locução adverbial, seguida de uma questão que solicita identificar
palavras dessa classe em algumas frases, bem como as palavras às quais
se referem os advérbios identificados. A classificação semântica dos
advérbios (pelas circunstâncias que expressam) é comentada rapidamente
em um outro box e, imediatamente, solicita-se que o aluno classifique
advérbios destacados em algumas frases.
Com frequência, frases soltas, fragmentos textuais e mesmo textos
inteiros são utilizados como pretexto para a análise de tópicos gramati-
cais, como se pode ver em uma atividade presente na seção “Aplicando

304
funcionalismo linguístico: interfaces

conhecimentos”. A atividade traz uma tirinha do Armandinho, cujas


temáticas giram em torno de questões sociais contemporâneas, e, após
três questões de compreensão textual, solicita que o aluno retire advérbios
ou locuções adverbiais do primeiro quadrinho e pergunta qual o sentido
do advérbio “mais” presente no último. É premente notar que, na obra
Tecendo linguagens, o recurso da modalização, relacionado ao uso de
advérbios e locuções adverbiais, não é abordado ou sequer citado na
apresentação e explicação da categoria nem nas atividades propostas.
Os advérbios são retomados no volume correspondente ao 8º ano,
quando o adjunto adverbial é apresentado aos alunos. Assim como ocorre
no volume anterior, o livro utiliza a mesma estratégia: traz o trecho de um
texto, destaca palavras ou sintagmas, solicita que os alunos identifiquem
seu sentido e apontem com quais itens lexicais ou outros sintagmas se
relacionam. Um box informativo retoma o conceito de advérbio e locução
adverbial e outro explica o conceito de adjunto adverbial. As orientações
que compõem o manual do professor pedem que este aproveite o mo-
mento para distinguir o advérbio (palavra, classe gramatical) do adjunto
adverbial (função que a palavra exerce na oração).
Também como visto anteriormente, uma série de questões finaliza
a seção. Não se veem novidades em relação ao outro volume da mesma
coleção. A aplicação de conhecimentos dá-se por meio de questões que
visam à identificação dos elementos da sentença que exercem a função
de adjunto adverbial, à classificação conforme o valor semântico dos
adjuntos adverbiais e à identificação das relações entre elementos pre-
sentes na sentença (como verbos, adjetivos e outros advérbios). De modo
geral, a coleção Tecendo linguagens não avança muito em relação ao
que comumente é visto sobre essa categoria gramatical e não explora,
por exemplo, a formação de palavras dessa classe, possibilidades de
colocação do advérbio na sentença, possíveis efeitos de sentido desse
deslocamento e a variabilidade dessas palavras, assim como ocorre na
coleção Se liga na língua.

305
funcionalismo linguístico: interfaces

Em ambos os casos, o tratamento dado aos tópicos gramaticais


aqui discutidos parece alinhado a uma perspectiva tradicional de ensino
de gramática, que isola o conteúdo gramatical de outras competências,
como a leitura e a escrita. Tanto na coleção Se liga na língua quanto
na coleção Tecendo linguagens, os advérbios e o adjunto adverbial são
tratados sem que se considere seu papel na construção textual. Mesmo na
coleção Se liga na língua, cujos capítulos se estruturam a partir de um ou
mais gêneros textuais, a seção dedicada a trabalhar questões gramaticais
não se relaciona com outras atividades do capítulo e não explora o papel
dos fenômenos linguísticos em foco para a produção de textos desses
gêneros. A coleção Tecendo linguagens é ainda mais limitada, conside-
rando que as seções destinadas à reflexão sobre a língua/gramática são
bem resumidas, com explicações um tanto pontuais.
Deve-se reconhecer o esforço das coleções em promover uma abor-
dagem pautada pelo sentido das expressões em estudo, levando o aluno a
identificar valores semânticos expressos pelos advérbios nas sentenças em
que se encontram. O mecanismo enunciativo da modalização é explorado
parcialmente apenas na coleção Se liga na língua e sequer é mencionado
na Tecendo linguagens. Desse modo, percebemos que as habilidades da
BNCC que preveem o trabalho com advérbios e adjuntos adverbiais são
contempladas apenas parcialmente nas coleções didáticas analisadas.
Feita a análise sobre a abordagem do advérbio e do adjunto ad-
verbial na BNCC e nos livros didáticos, passamos à exposição de uma
proposta de abordagem desses conteúdos, seguindo a orientação teórico-
-metodológica aqui defendida.

Advérbio/locução adverbial e adjunto adverbial na sala de aula:


apontando caminhos

Explicitamos, nesta seção, proposta de trabalho com o tópico aqui


focalizado à luz da perspectiva funcional de análise de fenômenos linguís-
ticos e em consonância com as orientações curriculares oficiais (BRASIL,

306
funcionalismo linguístico: interfaces

1998, 2018). Tomamos uma série específica do EF como referência, o 8º


ano, uma vez que, para essa etapa, está previsto o estudo do fenômeno
linguístico em tela (BRASIL, 2018, p. 146-147, 181, 189). Também em
conformidade com as bases teóricas e diretrizes curriculares que sustentam
nossa proposta, elegemos o texto como ponto de partida e de chegada. O
desenvolvimento do que sugerimos pode dar-se por meio de diferentes for-
mas de organização pedagógica, a exemplo da sequência didática (DOLZ;
NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004; LINO DE ARAÚJO, 2013) e de
projetos de letramento (OLIVEIRA; TINOCO; SANTOS, 2014).
O material empírico de referência é a reportagem “Uso do celular
nas férias aumenta para socializar e ter diversão, dizem crianças”, de
Marcella Franco, publicada na versão online da Folha de São Paulo,
em 20/01/2023.

Uso do celular nas férias aumenta para socializar e ter diversão,


dizem crianças

“Desligue e Abra”, do escritor Ilan Brenman, sugere deixar o aparelho


de lado e investir em brincadeiras
Marcella Franco
Publicado em 20 jan. 2023

Um videozinho engraçado aqui, uma thread polêmica ali, um post


de terror, uma partidinha… e, quando a gente vê, aquilo que era para ser
uma checadinha rápida no celular, acabou se transformando em horas
gastas olhando para a tela do celular. Vai dizer se essa descrição não se
parece com as férias de alguém que você conhece.
“Eu tenho usado mais o celular durante as férias porque eu tenho
mais tempo livre. Jogos eu não jogo muito no celular, eu jogo mais no
computador. Mas eu vejo muito filme, série, e assisto vídeo no celular. Eu
vejo uns filmes de cachorrinho fofinho, sabe esses filmes? E eu também
vejo séries de super-heróis”, conta Isaac R. A. S., de 10 anos.

307
funcionalismo linguístico: interfaces

No município em que ele mora, diz Isaac, não há muitas coisas legais
para se fazer na rua. A casa onde ele vive com os pais fica em Francisco
Morato, a cerca de 30 quilômetros do centro de São Paulo.
“Aqui não tem muito lugar pra ir, não tem livraria, parque. Sou
filho único e nas casas do lado não tem crianças da minha idade, então
eu tenho que usar muito a imaginação aqui em casa pra brincar”, explica.
Ele diz que é “bem criativo” e até inventa seus próprios jogos, além
de gostar muito de ler. Mas, mesmo assim, a tentação do eletrônico tem
sido grande nas férias da escola. Isaac não tem um aparelho próprio, e
pega emprestado o da sua mãe, Luciana.
[…]
Recentemente, ele leu “Desligue e Abra” (editora Moderna), do
escritor Ilan Brenman. O autor conta que teve a ideia de fazer este livro
enquanto caminhava despretensiosamente, e imaginou como seria a vida
se ele fosse, em vez de humano, um livro.
Ilan foi ainda mais longe na viagem: se ele se transformasse nesse
tal livro, o que ele diria? “Eu ia querer dizer para as crianças que eu sou
melhor que o celular, e que eu posso provar isso”, fantasia ele.
[…]
“Desligue e Abra” segue a ideia original de Ilan, e “fala” com o
leitor como se o livro estivesse realmente ali trocando uma ideia. Nisso
surgem propostas de brincadeiras que vão desde cantar com voz fininha
e depois bem grave, até arremessar o exemplar para o alto, sem dó.
“Por mais que ele tenha ficado um pouquinho arrebentado depois
que eu li, eu amei esse livro. Ficou assim porque ele pedia pra jogar ele
pro alto e bater palma três vezes, e eu tentei umas 24 vezes e ele caiu no
chão. Coitado dele. Mas vou informar aqui rapidinho que o livro passa
bem, ele está na estante”, brinca Isaac.

308
funcionalismo linguístico: interfaces

Sofia C. tem 13 anos e também acha que, nas férias, vem usando
mais o celular. “Tô usando bem mais do que quando estava indo pro
colégio. Uso Tik Tok, Instagram e eu também edito imagens”, conta.
[…]
“Minha família até pede pra eu ficar sem celular, mas, infelizmen-
te, às vezes eu não consigo sair dele, pois ou estou assistindo vídeos
engraçados no Tik Tok, tipo meme, ou estou entediado, ou ainda estou
jogando Fifa 23 mobile”, diz Théo C., de 13 anos.
“A criança não vai pôr limites, quem põe limite é a família. É ela
quem tem que saber que o celular está dando problemas na coluna das
crianças, nos olhos, problemas cognitivos e de ansiedade”, defende Ilan
Brenman.
Nas primeiras páginas de “Desligue e Abra”, o livro deixa claro
que “sabe” o quanto é difícil deixar o celular de lado, que é preciso se
esforçar para resistir à vontade de ficar com ele.
[…]
E, antes que alguém pense que Ilan estaria sugerindo que todo mundo
viva sem celular, ele explica que não é exatamente isso. “Eu também
uso o meu celular, óbvio, mas a questão é que temos que ter bom senso
e parcimônia”, fala.
[…]
Para Ilan, essa parte é realmente importante: ainda que o celular
ocupe uma parte do dia a dia das crianças, ninguém esqueça como é
que se brinca. “Na história do Peter Pan, ele esquece como era ser
criança. E é triste pensar que as crianças de hoje, quando crescerem,
podem não ter mais lembranças de que brincavam quando pequenas”,
imagina o escritor.
“Se você não fabricar lembranças, se ficar só nas telas, pode ter
consequências desastrosas. Eu acho que no futuro o celular vai vir com

309
funcionalismo linguístico: interfaces

aviso iguais ao das embalagens de cigarros. Dizendo algo como ‘O uso


excessivo pode te tornar uma estátua’”, brinca.
(Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folhinha/2023/01/uso-do-celular-nas-
ferias-aumenta-para-socializar-e-ter-diversao-dizem-criancas.shtml. Acesso em: 18
mar. 2023)

Registramos que a escolha por um texto noticioso, particularmente


a reportagem, se deve ao fato de ele estar previsto para estudo nos anos
finais do EF (BRASIL, 2018, p. 141), além de provocar o interesse
das pessoas em geral. Em termos das práticas de linguagem, situa-se
no campo jornalístico-midiático e compreende os eixos da leitura e da
produção de textos. Outra motivação diz respeito à temática abordada
(o aumento no uso do celular por jovens, ainda que com ênfase em um
período específico: o das férias escolares). Trata-se de assunto atual, de
interesse de ampla coletividade e que afeta a vida de muitas pessoas.
Nesse ponto, vale mencionar, está em sintonia com um dos objetivos
relacionados ao campo jornalístico-midiático, qual seja, “…propiciar
experiências que permitam desenvolver nos adolescentes e jovens a
sensibilidade para que se interessem pelos fatos que acontecem na sua
comunidade, na sua cidade e no mundo e afetam as vidas das pessoas…”
(BRASIL, 2018, p. 141).
Revozeando Bispo e Furtado da Cunha (2022), o trabalho com
textos autênticos no viés sociointeracionista, em que se baseia a
proposta da BNCC, implica levar em conta uma miríade de fatores
que contingenciam a produção e a recepção de textos em suas mais
diversas manifestações. Entre esses fatores, os autores elencam: i)
gênero em que se configura o texto, abarcando conteúdo temático,
propósito comunicativo, estrutura composicional, estilo e suporte; ii)
interlocutores: quem produziu, a quem o texto se dirige, contemplando,
acrescentamos, as relações sociais de toda sorte entre os parceiros da
interação; iii) contexto espaço-temporal: lugar da produção e da cir-
culação do texto; momento sócio-histórico de sua produção/recepção;

310
funcionalismo linguístico: interfaces

iv) linguagem utilizada: verbal, não verbal, verbo-visual, auditiva etc.;


v) intertextualidade: diálogo com outro(s) texto(s).
Esses aspectos devem ser considerados pelo docente ao explorar
qualquer texto em sala de aula. Levando em conta os propósitos deste
capítulo e o espaço de que dispomos, não nos ateremos ao escrutínio de
todos os itens enumerados no parágrafo precedente. Nossa discussão se
volta à abordagem de elementos circunstanciadores (advérbio/locução
adverbial, adjunto adverbial) no âmbito da morfossintaxe, com foco no
uso em textos autênticos e no papel semântico-pragmático que desem-
penham. Dessa forma, é essencial discutir o conteúdo temático e o(s)
propósito(s) comunicativo(s) do texto de referência.
É oportuno ressaltar que o trabalho com fatos gramaticais não deve
ter um fim em si mesmo, tampouco ser realizado de forma isolada. Deve
fazer parte de um conjunto maior de atividades que visam ao desenvol-
vimento da competência comunicativa do aluno, de modo que ele tenha
autonomia para (inter)agir, com proficiência, nas mais diversas situações
comunicativas de que venha participar, adequando seu comportamento
linguístico a cada uma delas. Assim, a proposta aqui apresentada implica,
por exemplo, que o professor esteja trabalhando determinada temática
com a turma, ou que esteja explorando o estudo de textos noticiosos e
informativos, dentre os quais, mas não necessariamente, a reportagem.
Feitas essas considerações, vejamos algumas possibilidades.
Segundo referido previamente e tomando por base a reportagem
transcrita, recomendamos ao professor analisar, entre outros, aspectos
atinentes ao conteúdo proposicional do texto (a temática tratada, a pers-
pectiva sob a qual ela é apresentada); ao objetivo comunicativo maior
(discutir uma questão de relevância social, apresentando suas causas e
possíveis encaminhamentos); ao contexto de produção e de recepção
(quem produziu, a quem se destina, quando foi produzido, onde foi
publicado, que condições sociais podem ter motivado a produção etc.);
à estrutura composicional (configuração formal, título, organização em

311
funcionalismo linguístico: interfaces

parágrafos, distribuição do conteúdo, trechos em destaque, citações etc.);


ao estilo (registro empregado, nível de formalidade), à relação com outros
textos (do mesmo gênero ou não).
Ao explorar a temática do texto, o professor pode abordar a mobili-
zação de recursos linguísticos para a expressão do conteúdo tratado, para
o recorte feito e para a perspectiva sob a qual o tema foi abordado. Nessa
direção, destacamos que, já no título, ocorrem expressões de natureza
circunstancial que concorrem para delimitar o assunto discutido (aumento
do uso do celular por crianças e jovens), circunscrevendo-o em termos
de tempo (nas férias) e de finalidade (para socializar e ter diversão).
O professor pode examinar com os alunos a presença desses elementos
no título da reportagem com vistas a identificar as circunstâncias por
eles veiculadas, sua contribuição para o conteúdo do texto e para seus
propósitos comunicativos. Para tanto, pode cotejar o título original com
a versão sem as expressões “nas férias” e “para socializar e ter diversão”,
indagando aos alunos a diferença semântica produzida. Esse cotejo pode
proporcionar aos alunos perceber o papel semântico-pragmático dessas
expressões: indicar o quando se dá o aumento do uso de celular pelas
crianças e com que finalidade esse aumento ocorre.
É oportuno ao professor comentar que as circunstâncias apresentadas
no título da reportagem são atribuídas a quem protagoniza o aumento do
uso do celular (as crianças): trata-se de uma estratégia da repórter como
forma de comprovar a questão (problemática) tratada e o que a motiva.
Nessa direção, são explicitados depoimentos de uma criança (Isaac) e de
dois adolescentes (Sofia e Théo), nos quais se registram o aumento do
uso do celular durante as férias e a razão desse aumento. Desse modo,
o professor pode destacar a mobilização de elementos circunstanciais
presentes nas falas desses jovens, orientando os alunos a identificá-los, a
observar o valor semântico que veiculam e a importância para o conteúdo
do texto. Com isso, é possível que os alunos apontem, entre outros, os
seguintes: mais (intensificação), durante as férias (tempo) e porque eu
tenho mais tempo livre (motivo, explicação), na fala do Isaac; bem mais

312
funcionalismo linguístico: interfaces

(intensificação) e quando estava indo pro colégio (tempo), no depoimento


da Sofia; às vezes (tempo/frequência) e pois ou estou assistindo vídeos
engraçados no Tik Tok, tipo meme, ou estou entediado, ou ainda estou
jogando Fifa 23 mobile (motivo, explicação), nas palavras do Théo5. O
uso de tais elementos, à semelhança dos que foram destacados no título,
concorre para a circunscrição temporal e para a explicação da situação
discutida no texto.
Vários outros elementos de natureza adverbial presentes no texto
podem ser explorados. Vejamos o caso de “no município em que ele
mora”, “na rua”, “em Francisco Morato, a cerca de 30 quilômetros
do centro de São Paulo” (3º parágrafo) e “aqui”, “nas casas do lado” e
“aqui em casa” (4º parágrafo). Essas expressões de valor locativo foram
utilizadas para situar, no espaço (macro e micro), o ambiente em que
o garoto Isaac vive e, mais que isso, contribuir para sua caracterização
como um lugar com poucas opções de lazer para as crianças. Essa ca-
racterização tem relevância crucial para o assunto tratado no texto, na
medida em que concorre para explicitar a razão pela qual se intensifica o
uso do celular no período de férias escolares, conforme explica o próprio
Isaac. Esses aspectos devem ser trabalhados pelo professor, de modo que
os alunos percebam que os elementos de valor circunstancial, além de
outros, claro, têm uma razão de ser, cumprem uma função nos trechos e
nos textos em que aparecem.
Uma vez que são muitos os elementos adverbiais presentes no texto
e vários os fatores a serem observados em seus usos, cabe registrar que
o professor não deve explorar todos num mesmo momento. Assim, pode
organizar um conjunto diverso de atividades, contemplando, de forma
gradual, aspectos atinentes ao objeto de conhecimento aqui focalizado.
É importante que o docente explore as diferentes circunstâncias
expressas pelos elementos adverbiais presentes no texto. Ao lado de
tempo, lugar, finalidade, intensidade, motivo/explicação, há também
5 Assumimos com Neves (2000), Bechara (2009) e Castilho (2010) que os elementos introdutores
das chamadas orações explicativas são de natureza adverbial.

313
funcionalismo linguístico: interfaces

outros valores semânticos: modo (com voz fininha, sem dó, no 8º pará-
grafo), direção (para o alto, no 8º parágrafo), reforço/confirmação (re-
almente, no 8º e no penúltimo parágrafos) e avaliação (infelizmente, no
11º parágrafo). Destacamos que alguns desses valores merecem análise
específica, uma vez que, por exemplo, não são contemplados em livros
didáticos nem nos compêndios gramaticais mais tradicionais, além de
alguns elementos que os codificam não representarem necessariamente
adjuntos adverbiais. Mais adiante, faremos considerações a respeito.
Cabe lembrar que o encaminhamento aqui proposto é o de sempre
analisar com os alunos a funcionalidade dos fatos linguísticos estudados.
Assim, também vale para os elementos referidos no parágrafo anterior
discutir o papel que cumprem no texto: explicitar, por exemplo, que
com voz fininha, sem dó e para o alto estão relacionados às formas de
interação com a obra Desligue e Abra sugeridas ao leitor. Também é
oportuno dizer que a concepção desse livro tem relação direta com o
tema discutido na reportagem.
Ainda na esteira da diversidade de elementos adverbiais presentes no
texto e de circunstâncias a eles relacionadas, propomos que o professor
também discuta com a turma o emprego de um mesmo elemento com
valores semânticos distintos. Nesse sentido, sugerimos que os alunos
sejam instados a cotejar os usos de aqui no quarto parágrafo (Aqui não
tem muito lugar pra ir) e no primeiro (Um videozinho engraçado aqui).
De igual modo, é oportuno instigar a turma a confrontar a ocorrência
de bem no quinto parágrafo (bem criativo) e no nono parágrafo (o livro
passa bem). A ideia é que seja oportunizada uma discussão, em grupos,
de modo que os alunos consigam perceber que, no primeiro uso, aqui
remete a um lugar concreto (o município de Francisco Morato, em São
Paulo). Na outra situação, contudo, não há referência a um espaço físico.
Esse termo é empregado, em conjunto com o ali, para a organização
sequencial (temporal) de atividades feitas ao celular, as quais tomam
muito tempo do usuário: assistir a um vídeo engraçado; depois, a “uma
thread polêmica”; em seguida, a “um post de terror” etc. No que diz

314
funcionalismo linguístico: interfaces

respeito a bem, no quinto parágrafo, ele tem valor intensivo, indicando


o quão criativo o garoto Isaac alega ser, segundo a reportagem. No nono
parágrafo, esse mesmo item expressa circunstância de modo, denotando
como está o exemplar do livro Desligue e Abra, lido por Isaac (o livro
passa bem).
Após explorar o uso de vários elementos de natureza adverbial, seus
valores semânticos e sua funcionalidade no texto, julgamos pertinente
ao professor apresentar aos alunos a denominação que esses elementos
recebem na estrutura sintática. É momento de usar a metalinguagem
técnica e caracterizar o adjunto adverbial. Trata-se do momento de sis-
tematização do que foi estudado e de trabalhar a categoria sob o rótulo
que ela tem nos estudos de descrição e de análise linguística. Nessa
direção, cabe assinalar que, na abordagem aqui proposta, o adjunto ad-
verbial não representa termo acessório, no sentido de ser dispensável.
Conforme discutimos anteriormente, esse elemento desempenha papel
relevante para o conteúdo temático da reportagem analisada e para seu
propósito comunicativo. Assumimos que o procedimento aqui sugerido
pode oportunizar uma aprendizagem (mais) significativa para os alunos,
uma vez que a ideia é observar a categoria gramatical em funcionamento
em textos autênticos para entender sua razão de ser. Registramos que os
procedimentos aqui sugeridos estão em consonância com as práticas de
análise e reflexão da língua consubstanciadas em documentos oficiais de
orientação curricular (BRASIL, 1998, 2018) ao prever o desenvolvimento
de atividades epilinguísticas antes do trabalho com a metalinguagem.
Em continuidade às funções que os elementos circunstanciadores
podem cumprir no texto, propomos ao professor trabalhar com a turma
o papel coesivo de tais elementos, conforme já sinalizado em momento
anterior relativamente ao uso de aqui e ali no primeiro parágrafo da repor-
tagem. Retomamos o emprego de aqui e acrescentamos o do item assim.
No quarto parágrafo do texto, que constitui parte do depoimento
do jovem Isaac, há duas ocorrências de aqui, ambas com valor locativo.

315
funcionalismo linguístico: interfaces

Recomendamos que o docente indague aos alunos a que esse termo se


refere nas duas situações e os oriente a observar o parágrafo anterior a
fim de que os alunos percebam que, na primeira delas, o garoto emprega
o item para referir-se ao município de Francisco Morato, onde reside. É
conveniente ao professor discutir com a turma que esse emprego serve de
articulação entre parágrafos ao proporcionar a retomada de um referente
apresentado no parágrafo precedente. Da mesma forma, espera-se que os
alunos consigam reconhecer que, na segunda ocorrência, aqui remete à
casa em que Isaac vive. É importante destacar que a diferença dos dois
usos é marcada, no segundo caso, pela presença da expressão em casa, a
qual especifica o espaço físico imediato a que o garoto se refere. É opor-
tuno ao professor trabalhar com os alunos a variabilidade de referentes
do termo aqui, dado seu caráter dêitico: seu emprego está diretamente
relacionado à localização espaço-temporal do falante.
Em relação ao item assim, registram-se duas ocorrências: no quinto e
no nono parágrafos. No primeiro caso, é usado em associação com mesmo
(mesmo assim). Nessa situação, esse elemento retoma as informações
do período imediatamente anterior (Isaac é ‘bem criativo’, inventa os
próprios jogos e gosta muito de ler) de modo resumido, encapsulando-
-as. É adequado o professor chamar a atenção da turma para o uso de
mesmo, instigando-a a apreender o funcionamento desse item, para que
se verifique o contraponto feito, por meio desse elemento, entre as ideias
retomadas por assim e o conteúdo seguinte: o de que a “tentação” para
usar o celular é muito grande no período das férias escolares. Desse modo,
espera-se que os alunos percebam que o mesmo assim tem importância
capital para a estratégia argumentativa construída pelo jovem Isaac, a de
concessão: sua criatividade e gosto pela leitura são aspectos que concor-
rem para mantê-lo ocupado, entretanto não impedem a tentação de usar
o celular. Esse entendimento é relevante para a temática focalizada no
texto e para a explicação circunstanciada do aumento do uso do celular
por crianças e adolescentes. Quanto à ocorrência no nono parágrafo,
assim também tem valor anafórico, mas, nesse caso, retoma apenas um

316
funcionalismo linguístico: interfaces

elemento do período anterior: um pouquinho arrebentado. Trata-se de


como ficou o livro após a leitura por parte de Isaac, que seguiu as orien-
tações constantes da obra, particularmente a de arremessar o livro para
o alto e bater palmas três vezes.
A sugestão que aqui apresentamos quanto aos itens aqui e assim,
além de outros analisados anteriormente, objetiva, entre outras coisas,
explorar com os alunos a multiplicidade de funções que elementos de na-
tureza adverbial podem desempenhar no funcionamento textual. No caso
particular do papel coesivo desses elementos, destacamos a relevância
que tem tanto para a leitura (compreensão), no sentido de acompanhar
a progressão e o encadeamento das ideias, quanto para a produção de
textos, em termos da organização e da concatenação dessas ideias.
Analisados o valor semântico veiculado pelo adjunto adverbial,
sua contribuição para o conteúdo do texto, para seu(s) propósito(s)
comunicativo(s) e para sua organização, o professor pode explorar
aspectos formais atinentes a esse termo. Destacamos a configuração
morfossintática que assume (se advérbio, locução adverbial ou oração)
e a relação que mantém com outros elementos do período (se vinculado
a verbo, a adjetivo, a advérbio ou a um enunciado).
Nessa direção, por exemplo, o professor pode instigar os alunos
a observarem diferentes elementos de valor circunstancial presentes
no texto, de modo que identifiquem se são representados por uma só
palavra (bem, muito, aqui, por exemplo), por mais de uma palavra, mas
sem a presença de verbo (em Francisco Morato, nas férias da escola,
sem dó etc.), por um conjunto de palavras, incluindo verbo (para so-
cializar e ter diversão, ‘quando estava indo pro colégio’). Com esse
procedimento, o docente deve enfatizar a diversidade de formas de
expressão de circunstâncias distintas, bem como de formas diferentes
para uma mesma circunstância, como a de lugar, a qual é codificada,
no texto, pelas três formas referidas. Vejamos o caso dos elementos
locativos utilizados, no terceiro e quarto parágrafos, para remeter à

317
funcionalismo linguístico: interfaces

cidade onde o garoto Isaac mora: no município em que ele mora (con-
junto de palavras, incluindo verbo), em Francisco Morato (mais de
uma palavra, mas sem verbo) e aqui (uma só palavra). Seguindo essa
identificação, o professor discute com os alunos a natureza categorial
das formas de representação dessas relações circunstanciais (advérbio,
locução adverbial e oração). Nesse momento, é oportuno ao professor
retomar, caso os alunos tenham estudado em séries anteriores, a cate-
goria do advérbio, seus valores semânticos e expressões formadas por
preposição + Sintagma Nominal com valor circunstancial (as chama-
das locuções adverbiais). Também sugerimos que seja solicitado aos
alunos identificar mais elementos circunstanciais presentes no texto,
observando o modo de codificação.
No que diz respeito ao segundo fator de ordem morfossintá-
tica que mencionamos, cabe ao professor analisar com os alunos
a que elementos do texto os termos de ordem circunstancial estão
vinculados/relacionados. A ideia é que o professor oriente a turma
a observar os usos desses termos e a perceber sobre que conteúdo
recai a circunstância/conteúdo expressa/o. Assim, por exemplo, no
caso de “eu tenho usado mais o celular” (2º parágrafo), o intensifi-
cador mais incide sobre o conteúdo do verbo usar; em “Ele diz que é
‘bem criativo’” (5º parágrafo), a intensificação de bem recai sobre a
semântica do adjetivo criativo; no trecho “Ilan foi ainda mais longe
na viagem” (7º parágrafo), o advérbio mais intensifica o conteúdo
do advérbio longe; já em “[…] mas, infelizmente, às vezes eu não
consigo sair dele […]” (11º parágrafo), o conteúdo de infelizmente
incide sobre a oração “às vezes eu não consigo sair dele”. Com esse
procedimento, o docente oportuniza aos alunos conhecer diferen-
tes possibilidades de escopo dos elementos de natureza adverbial,
expandindo a abordagem da perspectiva adotada por compêndios
gramaticais mais conservadores e por livros didáticos ao considerar
o adjunto de sentença (MARTELOTTA, 2012; CASTILHO, 2010)6.
6 Destacamos que alguns termos técnicos aqui mencionados, a exemplo de intensificador e

318
funcionalismo linguístico: interfaces

Semelhantemente ao que propusemos para as formas de codificação


do adjunto adverbial, recomendamos que o professor peça aos alunos
para verificar, em alguns dos vários elementos adverbiais presentes
no texto de referência, sobre que conteúdo eles incidem. Em ocasiões
como essa, é sempre pertinente correlacionar a mobilização desses
mecanismos linguísticos ao conteúdo do texto e aos fins comunica-
tivos implicados.
Também destacamos o emprego de elementos de natureza
adverbial com funcionamento mais discursivo-pragmático. Infeliz-
mente, no 11º parágrafo, conforme mencionamos, tem por escopo
uma oração (“às vezes eu não consigo sair dele”). No parágrafo em
que esse item ocorre, o adolescente Théo, um dos entrevistados na
reportagem, trata da dificuldade que tem de evitar o uso do celular
e, mais particularmente, do insucesso em deixar de usá-lo em alguns
momentos, avaliando essa situação como negativa por meio do uso
de “infelizmente”. Assim, não há a expressão de uma circunstância
propriamente dita, como se dá com a maioria dos adjuntos adver-
biais constantes do texto, mas a apreciação/o julgamento de um
conteúdo proposicional (não conseguir abster-se de usar o celular).
Infelizmente, nesse caso, funciona como um modalizador (MARTE-
LOTTA, 2012) de caráter apreciativo. Lembramos que a análise da
modalização em textos noticiosos por meio de elementos de natureza
adverbial constitui uma das habilidades previstas na BNCC referente
à morfossintaxe (cf. EF89LP16 na seção anterior).
Ao explorar com a turma o uso modal de infelizmente, o docente
contempla a gradiência que há entre membros de uma mesma categoria
(BISPO; LOPES, 2022; GIVÓN, 1995). Nessa direção, pode chamar a
atenção dos alunos para outros advérbios em -mente, os quais, via de
regra, são associados à circunstância de modo. Os discentes devem ser

evento, são dirigidos ao profissional docente, podendo ou não ser utilizados para os alunos,
conforme o nível de compreensão da turma. Sugerimos o uso da metalinguagem corriqueira
e conhecida dos alunos, como é o caso da categoria gramatical advérbio.

319
funcionalismo linguístico: interfaces

orientados a observar, por exemplo, o comportamento de recentemente e


despretensiosamente (6º parágrafo) e realmente (14º parágrafo) e tentar
identificar os valores semânticos a eles associados. Com o auxílio do
professor, a ideia é que a turma consiga perceber as noções de tempo,
modo e confirmação/modalização7 veiculados por tais elementos.
Ainda na esteira da gradiência categorial, propomos que o profes-
sor explore o uso de rapidinho (9º parágrafo) com a turma. Esse termo,
de base adjetiva, apresenta comportamento adverbial no trecho em que
ocorre, veiculando semântica de modo: expressa como o garoto Isaac
informa o estado do livro Desligue e Abra. Entendemos oportuno ao
docente trabalhar com os alunos os seguintes aspectos: i) o elemento do
qual rapidinho provém; ii) o que o termo base designa e com que função
semântica é empregado; iii) o cotejo entre o uso adjetivo e o adverbial,
com destaque ao papel semântico e/ou pragmático desempenhado em
texto autêntico; iv) a identificação de outros adjetivos que podem atuar
como advérbios; vi) a intensificação aplicada ao conteúdo de rápido por
meio do sufixo -inho. Reforça-se, dessa forma, a não discretude entre
categorias gramaticais (no caso, adjetivo-advérbio), flagrada em usos
efetivos, segundo defende o Funcionalismo linguístico.
Por assumirmos que o trabalho com aspectos gramaticais em sala de
aula deve estar associado às práticas de leitura/escuta e produção textos,
destacamos que tanto o início quanto a culminância desse trabalho de-
vem contemplar as atividades de produção e recepção de texto(s). Assim
sendo, por exemplo, o professor pode finalizar o estudo dos elementos
circunstanciadores com a produção textual do gênero contemplado no
planejamento e diretamente relacionado ao texto de referência para esse
estudo.
Conforme aqui expusemos, são múltiplos os aspectos envolvidos
nos usos de elementos de natureza circunstancial, particularmente os que
funcionam como adjunto adverbial. A proposta apresentada contempla
7 Temos aqui, segundo Castilho (2010) e Neves (2018), advérbio modalizador. Neves (2018)
considera um caso de modalização epistêmica.

320
funcionalismo linguístico: interfaces

alguns deles, os quais julgamos pertinentes para o estudo desse termo


em sala de aula do EF. Esclarecemos que a análise e a discussão desses
aspectos devem ocorrer de forma gradativa, de sorte que podem ser
realizadas em mais de um momento. Cabe ao professor definir o tempo
para esse trabalho bem como fazer os devidos ajustes do que aqui su-
gerimos, tendo em vista o planejamento do componente curricular e a
realidade da turma.
Destacamos que o tratamento que propomos para o adjunto adver-
bial em sala de aula contribui positivamente para os estudos de análise
sintática e pode proporcionar uma aprendizagem (mais) significativa.
Primeiro, por levar em conta a prática interacional e, em consequência,
todos os fatores que a contingenciam como centrais para qualquer pro-
dução linguística. Nessa direção, tomamos como ponto de partida (e de
chegada) um texto autêntico produzido em situação comunicativa real
para o exame de diferentes elementos de natureza circunstancial. Regis-
tramos ainda o fato de a temática do texto selecionado guardar estreita
relação com a realidade social vivida pelos alunos. Segundo, por per-
mitir uma compreensão mais ampla e consistente do funcionamento da
língua a serviço da construção de sentidos, pelo menos em três direções:
i) identificando as diversas circunstâncias veiculadas por elementos de
natureza adverbial; ii) analisando a contribuição dessas circunstâncias
para o sentido local ou global do texto, com vistas ao alcance de deter-
minados objetivos comunicativos (os adjuntos adverbiais nas férias e
para socializar e ter diversão, no título, por exemplo, circunscrevem
a temática discutida e sua motivação); iii) percebendo a fluidez entre
categorias (uso adverbial do adjetivo, caso de rapidinho) e gradiência
entre elementos de uma mesma categoria (uso de bem com valor de
modo e como intensificador; múltiplos valores semânticos veiculados
por elementos adverbiais em -mente, conforme ilustram recentemente,
despretensiosamente e infelizmente). Terceiro, por proporcionar uma
visão integrada dos níveis da língua (morfológico, sintático, semântico
e pragmático) para o estudo do adjunto adverbial, correlacionando seu

321
funcionalismo linguístico: interfaces

uso à construção de sentidos e aos propósitos comunicativos implicados


nos textos em que esse termo ocorre.

Conclusões
O tratamento de tópicos gramaticais realizado no espaço escolar
ainda requer bastante atenção, dada a complexidade envolvida. Os docu-
mentos de orientação curricular nas duas últimas décadas têm proposto
que o estudo da gramática se dê por meio de práticas de análise e refle-
xão da língua, as quais estão diretamente relacionadas às atividades de
leitura/escuta e produção de textos. Essa proposição tem causado, desde
o início, uma confusão entre docentes, provocando questionamentos
acerca da necessidade ou não das chamadas aulas de gramática, entre
outros, e dúvidas quanto à abordagem a ser feita aos tópicos gramaticais
em turmas da Educação Básica.
Nesse contexto, discutimos o tratamento de tópico da morfossintaxe
do português em turma do EF, a saber, elementos de natureza adverbial.
Para tanto, analisamos o que a BNCC propõe quanto a tais elementos e
como ele é abordado em livros didáticos adotados em escolas da rede
pública potiguar. Em seguida, apresentamos proposta de tratamento do
tópico focalizado sob a perspectiva da Linguística Funcional em asso-
ciação às orientações curriculares nacionais.
Baseados na premissa de que o trabalho com fenômenos grama-
ticais no espaço escolar deve considerar seu funcionamento em textos
autênticos, nossa proposta prioriza aspectos semânticos e pragmáticos de
elementos adverbiais. Nessa direção, sugerimos que o docente explore os
usos desses elementos, buscando identificar, primeiramente, a sua fun-
cionalidade para o conteúdo temático e para os fins comunicativos do(s)
texto(s) em que ocorrem. Também recomendamos ao professor explorar
a interface sintaxe-morfologia por meio da observação das formas de
representação do adjunto adverbial, além do papel textual-discursivo de
alguns elementos adverbiais presentes no texto de referência.

322
funcionalismo linguístico: interfaces

Reiteramos que os encaminhamentos propostos quanto à abordagem


dos circunstanciadores em sala de aula implicam, naturalmente, ajustes
por parte do professor. Tais ajustes devem atender ao plano de curso,
ao momento em que o conteúdo gramatical referido vai ser estudado, à
realidade da série/ano e da(s) turma(s) em que o trabalho será conduzido,
além de outros fatores envolvidos no multifacetado processo de ensino-
-aprendizagem de língua.
Por fim, registramos nosso entendimento de que a principal contri-
buição do que propusemos reside nos pressupostos teórico-metodológicos
em que nos fundamentamos. Assumimos uma estreita relação entre os
usos linguísticos e os propósitos comunicativos a que servem, contem-
plando, desse modo, a língua em funcionamento. Essa perspectiva guarda
consonância com as diretrizes oficiais para o ensino de Língua Portuguesa
no Brasil. O tratamento aqui sugerido para o adjunto adverbial pode ser
tomado como um caminho para a abordagem prática de outros tópicos
gramaticais em turmas da Educação Básica.

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326
funcionalismo linguístico: interfaces

FUNCIONALISMO NORTE-AMERICANO E ENSINO DE


GRAMÁTICA: INTERFACES TEÓRICAS NO ESTUDO DAS
CLASSES DE PALAVRAS

Dennis Castanheira
(UFF)

Introdução

De acordo com Castanheira (2022a, 2022b), o ensino na perspec-


tiva do Funcionalismo norte-americano ainda não é uma abordagem
muito contemplada nos estudos pedagógicos. O autor aponta que, em
comparação a outras perspectivas, dentre as quais a Sociolinguística Va-
riacionista, a Linguística de Texto e a Análise do Discurso, os trabalhos
funcionalistas dedicados ao ensino de línguas no âmbito da gramática e
da produção de sentidos são menos frequentes.
Em breve revisão da literatura recente, contudo, é possível obser-
var que há um crescimento exponencial de tais iniciativas, presentes,
por exemplo, em Oliveira (2021), Bispo, Cordeiro e Lucena (2022) e
Castanheira (2022a), o que indica que há um caminho sendo trilhado de
maneira progressiva por tais pesquisadores. Sob um viés do ensino de
gramática ligado às pressões discursivas, tais pesquisas abarcam, sobre-
tudo, a apresentação de reflexões teóricas mais amplas de aplicação do
Funcionalismo na escola.

327
funcionalismo linguístico: interfaces

No entanto, como aplicar tais reflexões a fenômenos específicos,


como, por exemplo, às classes de palavras? Neste capítulo, defendemos
que a articulação teórica do Funcionalismo à Sociolinguística e à Lin-
guística de Texto possibilita uma perspectiva mais ampla e multifacetada
no tratamento das classes de palavras na escola. Para isso, estabelecemos
como recorte as seguintes categorias: pronomes pessoais com função de
sujeito, pronomes demonstrativos, conjunções adversativas e advérbios
de tempo e lugar.
De acordo com Pinilla (2007), o estudo das classes de palavras não
é novo, sendo alvo de reflexões desde a antiguidade. Segundo a autora, a
divisão das classes é passível de questionamentos, já que sua organiza-
ção em dez categorias é questionável, tendo em vista a heterogeneidade
desses grupos, o que se evidencia desde o precursor trabalho de Câmara
Jr. (1970) sobre o tema.
Outro ponto é a mistura de critérios presente em sua definição e
divisão. Conforme Pinilla (2007), muitas vezes, livros didáticos e gra-
máticas contemplam ou privilegiam um critério no tratamento do tema, o
que dificulta o estabelecimento de divisões mais claras para os discentes.
Para a autora, os aspectos semânticos costumam se sobressair em relação
aos sintáticos e morfológicos, deixando de lado algumas caracterizações
importantes das classes gramaticais.
Isso se evidencia pela investigação de Castanheira e Caseira (2020a),
em que os autores analisaram nove livros didáticos de Ensino Médio
aprovados pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático de
2015 em relação à classe das conjunções. Os autores constataram que
nem sempre essa associação é feita e, quando ocorre, geralmente é as-
sistemática, com pontos de incongruência. Além disso, alertaram que tal
discussão precisa ser atrelada às nuances textuais e às práticas de leitura
e produção textual.
A articulação de tais critérios com o aspecto textual já fora
defendida por Moraes Pinto e Alonso (2012). As autoras apontam

328
funcionalismo linguístico: interfaces

que é preciso relacionar os fatores linguísticos ao papel cognitivo e


textual das classes de palavras, e, para evidenciar essa necessidade,
apresentam a insuficiência descritiva que a gramática tradicional
faz dos advérbios classificados como de modo. Para isso, segundo
Moraes Pinto e Alonso (2012), deve-se contemplar a complexidade
textual desses elementos por meio de gêneros que possibilitem seu
tratamento pragmático.
Ainda no âmbito das classes de palavras, Castanheira (2023) aponta
para a articulação variação-discurso no tratamento dos pronomes pessoais
com função de sujeito, em prol de uma interface sociofuncionalista. Para
o autor, tal ligação é de grande importância para que seja considerada
a realidade sociolinguística do Português do Brasil (PB) e para que di-
ferentes aspectos discursivos sejam contemplados de maneira integrada
aos fenômenos variáveis.
Tais associações são ainda mais proeminentes diante das postulações
das diretrizes oficiais para o ensino no Brasil, sobretudo dos Parâmetros
Curriculares Nacionais e da Base Nacional Comum Curricular, que de-
fendem o ensino baseado no uso, no texto, na pragmática, na interação,
na conexão com a realidade social e discursiva da língua e dos seus
falantes. Nesse âmbito, é fulcral a discussão de um ensino alinhado ao
uso, à variação e ao texto.
Para que isso seja feito, além desta seção, este capítulo contém, tam-
bém, uma seção seguinte, em que serão contemplados aspectos teóricos
desses diálogos, uma seção com as opções metodológicas e a defesa dessa
articulação aplicada às classes de palavras e, por fim, as considerações
finais e as referências bibliográficas. Com isso, pretendemos refletir
sobre os pontos abordados e sobre a temática desta coletânea, em prol
de interfaces funcionalistas.

329
funcionalismo linguístico: interfaces

Funcionalismo norte-americano e ensino de gramática: possíveis


interfaces teóricas

O Funcionalismo norte-americano é uma abordagem teórica que


surgiu no século XX e foi desenvolvido nos Estados Unidos por meio
das investigações e dos postulados de autores como Paul Hopper, Talmy
Givón e Sandra Thompson. Nessa abordagem, a língua é entendida como
um instrumento comunicativo que está ligado às intencionalidades discur-
sivas. Seu estudo envolve a observação e o mapeamento das regularidades
de uso dos elementos linguísticos em situações reais de comunicação.
Além disso, de acordo com Oliveira (2022, p. 58), no Funcionalis-
mo norte-americano, “a gramática, definida como o conjunto dos usos
convencionais, das formas de dizer que uma comunidade fixa pela e para
a interação cotidiana, é consequente do uso, quer dizer, a gramática é
motivada pela situação comunicativa”. Sob esse olhar, a gramática está
ligada ao discurso de maneira simbiótica, já que é moldada pelas pressões
do discurso, pelas nuances pragmáticas.
O Funcionalismo norte-americano, então, é uma corrente linguística
eminentemente contextual, visto que os usos gramaticais são analisados
por meio de interações reais, de textos orais e escritos de diferentes
categorias (relatos, entrevistas, cartas, reportagens, diários, artigos de
opinião, editoriais, notícias etc.) que são considerados em suas comple-
xidades, como fatores de análise ou como contextos de uso. A análise
funcionalista vai, então, além do nível da frase ou da discussão sentencial,
tendo em vista que tem o uso como aspecto central e, portanto, considera
textos reais.
Adotar uma perspectiva funcionalista no ensino é, como apontam
Castanheira e Caseira (2020b), uma das tendências atuais dos estudos
dessa vertente teórica. É necessário ressaltar, ainda, como afirma Cas-
tanheira (2022a), que essa é uma tarefa necessária, já que possibilita
muitos caminhos de abordagem em sala de aula. Para que isso seja feito,

330
funcionalismo linguístico: interfaces

porém, é preciso que haja alguns parâmetros de trabalho, visto que tal
incursão deve ser bem fundamentada e organizada, sem perder a essência
da concepção funcionalista da linguagem.
Como afirma Castanheira (2022a, p. 214),

adotar uma abordagem funcional no ensino é necessaria-


mente considerar um olhar mais acurado e sistemático
para a presença da gramática no texto, já que apenas de
maneira contextualizada será possível estudar a língua
atrelada aos propósitos comunicativos e às questões
interacionais. Investigar a morfologia ou a sintaxe sob
uma perspectiva funcional envolve, então, considerar os
aspectos discursivos para que o mapeamento estrutural
seja ligado à pragmática.

Nesse sentido, o ensino de gramática sob um enfoque funcionalista


norte-americano não pode envolver apenas a discussão dos elementos
linguísticos em si, mas também o seu papel no discurso, a sua motivação
pragmática, a sua inserção contextual, o papel de cada interlocutor etc.
Para isso, não basta dizer qual a classificação sintática ou morfológica
de um item ou oração, mas também qual é a sua função na interação, o
que muitas vezes não é uma tarefa simples.
Isso se evidencia pelas reflexões de Bispo, Cordeiro e Lucena
(2022), que retomam os pressupostos basilares do Funcionalismo norte-
-americano e demonstram sua importância para o ensino de gramática por
meio de uma detalhada perspectiva revisional de suas bases, e também
de trabalhos já desenvolvidos nesse âmbito, dentre os quais Oliveira e
Cezario (2007) e Oliveira e Wilson (2015).
Destacamos, ainda, que, em prol de um ensino em perspectiva
funcionalista, é válido, também, considerar possíveis interfaces teóricas
que possam contribuir para uma descrição mais acurada e um ensino
mais reflexivo dos elementos gramaticais devidamente mapeados do

331
funcionalismo linguístico: interfaces

ponto de vista social e discursivo-pragmático. Nesse âmbito, destacam-


-se dois importantes diálogos: com a Sociolinguística Laboviana e com
a Linguística de Texto.
O “casamento” teórico e metodológico entre a Sociolinguística
Variacionista e o Funcionalismo norte-americano não é novo e vem
sendo feito há algumas décadas em diferentes centros de pesquisa do
Brasil, tendo sido iniciado na Universidade Federal do Rio de Janeiro
no século XX. Por meio de diversas Dissertações de Mestrado e Teses
de Doutorado, tais investigações foram se ampliando e se multiplicando
a partir dos achados de pesquisadores diversos da instituição, dentre os
quais se destacaram Anthony Julius Naro, Maria Cecilia Mollica, Maria
da Conceição de Paiva, Maria Luiza Braga, Sebastião Josué Votre e Vera
Paredes da Silva.
Como defendem Tavares (2013) e Castanheira (2018a), o Socio-
funcionalismo é uma abordagem que envolve a associação das bases
fundamentais dessas teorias tendo em vista suas muitas semelhanças.
Destacam-se, nesse âmbito, a análise da língua em uso, o estudo da
mudança linguística como processo gradual e contínuo, a defesa do
princípio do uniformitarismo, a discussão de diferentes níveis linguís-
ticos e o mapeamento da relação entre língua e sociedade. Conforme
Castanheira (2020, p. 61), nessa interface, as pesquisas “incorporam […]
aspectos discursivos em busca de uma visão mais ampla e integrada dos
fenômenos linguísticos. Ou seja, a variação é analisada, também, a partir
de motivações contextuais e da absorção dos pressupostos teóricos do
Funcionalismo norte-americano”.
Por outro lado, de acordo com Görski e Tavares (2013), o Socio-
funcionalismo articula os pressupostos básicos das duas teorias em prol
de um diálogo que considera, também, suas diferenças por meio de uma
terceira via de abordagem. Isso se deve, dentre outros fatores, à visão
biunívoca entre forma e função na perspectiva mais radical do princípio
funcionalista da iconicidade. No entanto, as autoras defendem que essa

332
funcionalismo linguístico: interfaces

reação é afrouxada por Givón (1995), por exemplo, o que possibilita


tal aliança diante de mais de uma mesma forma para a mesma função.
O Sociofuncionalismo considera tais complexidades associativas e
fundamenta diversos trabalhos desenvolvidos no Brasil sobre diferentes
temas, dentre os quais podemos citar: gramaticalização de conectivos; or-
denação de orações; ordenação de palavras (SV/VS e de outros elementos
sintáticos); estratégias de relativização; variação e mudança no quadro
pronominal; usos de complexos verbo-nominais (cf. CASTANHEIRA,
2018b, 2023; CASTANHEIRA; ILOGTI DE SÁ, 2022; LOPES, 2015;
TAVARES, 2013; TAVARES; GÖRSKI, 2015).
Indo além da descrição e da análise linguística, considerar uma
perspectiva sociofuncionalista no ensino de gramática é de suma impor-
tância, já que engloba um olhar mais amplo sobre os fatos gramaticais.
Muitos usos são motivados não apenas por fatores sociais, mas também
por questões discursivas que podem ser mapeadas pelos pressupostos
teóricos funcionalistas (iconicidade, marcação, transitividade, planos
discursivos, dentre outros).
Isso possibilita que o professor possa explicar casos de variação e
mudança na língua de maneira mais detalhada, rompendo uma visão nor-
mativa e reducionista da gramática ainda adotada muitas vezes na escola.
Tal iniciativa não significa excluir a metalinguagem ou a identificação e
a classificação das categorias propostas pela gramática tradicional, mas
congregá-las a outros olhares, a uma abordagem descritivista e analítica,
que pode ser muito bem fundamentada pelo Sociofuncionalismo.
Também sob um enfoque de interface, destacamos a ligação do
Funcionalismo norte-americano à Linguística de Texto, que tem sido
muito menos explorada nos estudos linguísticos do que a sociofuncio-
nalista. O diálogo Funcionalismo-Texto envolve, segundo Castanheira
(2022b), a articulação dos pressupostos das duas abordagens, já que são
notórias suas grandes aproximações, não havendo, portanto, perspectivas
excludentes, mas perfeitamente congregáveis.

333
funcionalismo linguístico: interfaces

Para Castanheira (2022b), há alguns pontos (não)focalizados em


cada abordagem: (i) o Funcionalismo norte-americano tende a trabalhar
os gêneros textuais como fator analítico ou uma questão contextual e a
Linguística de Texto tende a explorá-los de maneira mais expressiva;
(ii) o Funcionalismo norte-americano estuda a mudança linguística, e a
Linguística de Texto não; (iii) o Funcionalismo norte-americano tende a
observar as propriedades discursivas a partir de um fenômeno morfológi-
co ou sintático e a Linguística de Texto tem como objetivo o mapeamento
dos sentidos do texto; (iv) o Funcionalismo norte-americano tende a
congregar mais uma metodologia mista (qualitativa e quantitativa), e a
Linguística de Texto tende a um olhar qualitativo; (v) o Funcionalismo
norte-americano tende a ser menos usado em trabalhos sobre ensino do
que a Linguística de Texto.
A partir das elucidações de Castanheira (2022b), é possível perceber,
ainda, que existem temas que demonstram claramente a viabilidade dessa
interface. Por exemplo, no estudo da referenciação e da sequenciação,
podem ser considerados pressupostos básicos do Funcionalismo norte-
-americano: iconicidade, marcação, gramaticalização, (inter)subjetivida-
de etc. Esses podem ser articulados ao papel coesivo e/ou anafórico de
conjunções, advérbios, sintagmas nominais e pronomes em prol de uma
descrição multifacetada de tais fenômenos.
Castanheira (2022b) ainda esclarece que tal diálogo é relevante
para os trabalhos sobre ensino de línguas, visto que permitem um olhar
pedagógico mais amplo para a língua e também estão de acordo com as
documentações oficiais para a educação brasileira. Atualmente há uma
grande preocupação em “trabalhar a gramática no texto” e essa aliança
teórica é uma clara maneira de fazer isso de forma bem fundamentada,
sistemática e organizada.
Essa interface com o ensino pode auxiliar, ainda, na integração das
práticas de leitura, análise linguística/semiótica e produção textual, dado
que o aporte da Linguística de Texto sobre a construção das pistas textuais

334
funcionalismo linguístico: interfaces

na ancoragem dos sentidos do texto é uma importante ferramenta para o


trabalho com os efeitos de sentido dos elementos gramaticais, bem como
do seu papel na tessitura textual.
Isso pode ser evidenciado pelas reflexões das autoras funcionalistas
Cunha e Tavares (2016, p. 51),

é com base em textos de diferentes tipos que se pode


incentivar os alunos a pesquisarem regularidades de
funcionamento da língua, sem recorrer necessariamente
a conceitos e categorias tradicionais, mas incentivando-os
a perquirir e sugerir “regras” de uso com base em suas
observações. Atividades como tal podem levar os alunos
a refletirem mais atentamente sobre questões gramaticais
e até mesmo a elaborarem micro-gramáticas incluindo al-
guns tópicos por eles pesquisados, ao invés de meramente
receberem informações prontas a respeito do que pode e
do que não pode na língua.

Integrar essas práticas, então, é um desafio cada vez mais neces-


sário de ser enfrentado, posto que a possibilidade de observar os fatos
linguísticos em sua amplitude é emergencial. Essa articulação fomenta o
mapeamento morfológico, sintático, semântico, pragmático e textual de
maneira conjunta e amplia, portanto, suas possibilidades de exploração
por meio de estratégias didáticas.
Diante das elucidações exploradas, é possível afirmar, como aponta
Castanheira (2022b, p. 196), que

a interface aqui defendida possibilita ganhos analíticos


ao unir pressupostos teóricos de duas abordagens e gerar
um olhar mais amplo dos fenômenos linguísticos que
costumam ser descritos a partir de tais vieses de maneira
separada. Tal ligação também é relevante para o ensino,
já que em sala de aula devem ser aliadas múltiplas pers-
pectivas para construção de estratégias mais plurais e […]

335
funcionalismo linguístico: interfaces

[atualmente] é defendida uma abordagem baseada no uso


no ensino de gramática, o que contribui para uma prática
pedagógica reflexiva e aliada aos efeitos de sentido.

Aliar o Funcionalismo norte-americano e a Linguística de Texto,


então, envolve um rico caminho a ser explorado em pesquisas revisio-
nais bibliográficas, empíricas e de intervenção pedagógica que tenham
como foco uma visão ampla dos fenômenos linguísticos por meio de
uma perspectiva interacional e sociocognitiva. As duas teorias não se
excluem, havendo, na verdade, uma complementação que pode trazer
inúmeros ganhos para a descrição e o ensino da língua portuguesa e de
línguas estrangeiras.
Por fim, destacamos que a congregação do Funcionalismo norte-
-americano à Sociolinguística e à Linguística de Texto pode ser ancorada,
também, na ideia de um “polo” ou “onda” funcional, defendida, dentre
outros autores, por Dik (1987) e Schiffrin (1994). Nessa visão, há dois
grandes polos na Linguística: o formal e o funcional. No funcional, há
algumas características proeminentes: foco na língua em uso, na prag-
mática, na sociocognição, na aquisição da linguagem contextualmente
situada, na língua como instrumento de interação social e na comunicação.
Defendemos que o Sociofuncionalismo e a interface do Funcio-
nalismo norte-americano com a Linguística do Texto são teoricamente
coerentes, também, por tais perspectivas se inserirem, em diferentes me-
didas, no polo ou onda funcional. O trabalho com a variação linguística e
com o texto não está necessariamente seccionado do olhar funcionalista,
já que envolve a discussão dos padrões reais de uso a partir de seus con-
textos, sejam esses sociais ou pragmáticos. Ou seja, as três teorias estão
no polo da interação, do discurso, do uso e, portanto, são passíveis de
associações e diálogos.

336
funcionalismo linguístico: interfaces

Propostas de interface

Para que possamos discutir as interfaces do Funcionalismo norte-


-americano com a Sociolinguística e com a Linguística de Texto no
ensino, metodologicamente, optamos por uma abordagem qualitativa
bibliográfica para que possamos retomar os estudos já desenvolvidos
sobre os temas explorados e também por uma perspectiva de pesquisa-
-ação, tendo em vista que visamos a propor caminhos de tratamento e
de aplicação do tema na sala de aula.
Destacamos, ainda, que nosso recorte mais amplo, as classes de
palavras, foi selecionado, pois é de grande relevância para o ensino de
gramática, visto que está presente em várias etapas do Ensino Fundamen-
tal e do Ensino Médio e, mesmo assim, é objeto de grande dificuldade
por parte de discentes e docentes, seja pela sua dificuldade de definição,
exemplificação, abordagem ou categorização.
Constatamos, contudo, que tal temática é bastante ampla e que não é
possível tratá-la em sua amplitude e complexidade em uma só publicação,
o que nos levou a selecionar alguns grupos específicos passíveis de serem
explorados em prol de um olhar teoricamente integrado e multifacetado:
os pronomes pessoais com função de sujeito, os pronomes demonstrati-
vos, as conjunções e os advérbios de tempo e lugar.

A. Pronomes pessoais com função de sujeito

A primeira discussão aqui estabelecida envolve os pronomes pes-


soais com papel sintático de sujeito. De acordo com Duarte (2018), são
notórios os descompassos entre os padrões reais de uso desse grupo e os
postulados dos compêndios normativos, conforme evidencia o Quadro
1, proposto pela autora:

337
funcionalismo linguístico: interfaces

Quadro 1 – Pronomes pessoais com função de sujeito

Fonte: Duarte (2018)

Ao observá-lo, fica evidente que há diferenças substanciais entre


a maneira que os usuários da língua utilizam tais pronomes e como a
tradição os trata. Isso se evidencia por meio de alguns pontos, que são
destacados e comentados pela autora:

(a) o desaparecimento do pronome vós; (b) a entrada do


pronome você, que hoje convive em algumas regiões com
o pronome tu, e é usado no plural para substituir vós no
plural – vocês –; (c) a entrada do pronome a gente, que
começou timidamente uma competição com o pronome
nós e hoje vence bravamente essa batalha. Nossas gramá-
ticas tradicionais e aquelas mais recentes que procuram
simplificá-las continuam com o mesmo paradigma, que
mantém tu e vós para a 2ª pessoa do singular e plural,
chamam você de “forma de tratamento” e ignoram o novo
pronome a gente (DUARTE, 2018, p. 2).

Tais constatações refletem a realidade sociolinguística do Português


do Brasil e podem ser mapeadas e explicadas sob diferentes enfoques.
Neste capítulo, destacamos o olhar sociofuncionalista, que ajuda na

338
funcionalismo linguístico: interfaces

sistematização por meio de discussões históricas e atuais, como evi-


denciam diferentes estudos, dentre os quais se destacam Lopes (2015)
e Castanheira (2023).
Inicialmente, é necessário pontuar que, segundo Lopes (2015),
os pronomes “você” e “a gente” são provenientes de processos de
gramaticalização que explicam algumas das suas características. O
“a gente”, por exemplo, mantém o traço de 3ª pessoa do singular do
“gente”, mas tem sentido de 1ª pessoa do plural, e o “você” perdeu
traços de cortesia pela alta frequência de uso e se generalizou como
pronome de segunda pessoa.
Isso fica evidente pela variação na marcação de segunda pessoa
do singular e de primeira pessoa do plural, evidenciada pelos pronomes
“tu” e “você” (e também com “ocê” e “cê”) e “nós” e “a gente”. É ne-
cessário dizer, porém, conforme Lopes (2015), Scherre et al. (2015) e
Vianna e Lopes (2015), que há diferenças entre seus usos motivadas por
aspectos sociais, discursivos e formais, o que aponta para sua descrição
mais detalhada.
O ensino de pronomes pessoais com papel sintático de sujeito está
ligado, então, à variação, à mudança linguística e à reorganização do
quadro pronominal do Português do Brasil. Por isso, deve ser tratado em
consonância a outros tópicos relacionados, dentre os quais a expressão
morfossintática do sujeito e a concordância verbal. Isso indica que lidar
com o tema não é uma tarefa apenas das aulas sobre pronomes ou classes
gramaticais, mas de uma perspectiva mais ampla e perene, como defende
Castanheira (2023).
A fim de que isso seja feito, algumas ideias são:

i) o uso de textos orais reais e atuais para que os alunos reconheçam os


padrões variáveis e algumas das suas motivações contextuais no papel
de sujeito;

339
funcionalismo linguístico: interfaces

ii) o uso de textos escritos antigos reais para que os discentes conheçam
usos pretéritos das formas que originam os atuais pronomes pessoais
com função de sujeito “você” e “a gente”;

iii) o uso de textos orais e/ou escritos reais e atuais para que seja sis-
tematizado o atual quadro pronominal do Português do Brasil com os
alunos, em comparação à abordagem da tradição gramatical.

Por meio dessas estratégias, será possível demonstrar que a compe-


tição de formas e a mudança linguística estão presentes na nossa língua
e que a realidade (socio)linguística é muito mais complexa e rica do que
muitas vezes possa ser pensada. Com isso, será possível abordar tais te-
mas de maneira interligada e perene, o que certamente contribuirá para
a defesa de uma pedagogia da variação.

B. Pronomes demonstrativos

É possível discutir a necessidade de interfaces teóricas, ainda, por


meio dos pronomes demonstrativos. Essa categoria já foi muito discutida
nos estudos históricos funcionalistas por meio da mudança linguística
via processo de gramaticalização e, por isso, é escopo dessa abordagem,
seja por meio da sua trajetória diacrônica, seja por seus usos atuais (cf.
LOPES, 2015, por exemplo).
Por outro lado, a Linguística de Texto, ao longo das últimas dé-
cadas, tem explorado muito esses elementos por meio dos estudos de
referenciação. De forma geral, tais trabalhos indicam que esses elementos
têm papel fundamental na tessitura dos textos por meio de sua função
referencial, já que há diferentes efeitos de sentido envolvidos nos seus
usos (cf. CASTANHEIRA, 2022b; CASTANHEIRA; LEBLER, 2022;
PAULIUKONIS; CAVALCANTE, 2018).
Para a Linguística de Texto, a referenciação é um complexo pro-
cesso sociocognitivo e interacional de ativação e reativação de objetos

340
funcionalismo linguístico: interfaces

de discurso em que os conhecimentos linguísticos, enciclopédicos e


interacionais estão diretamente relacionados à interpretação textual. Os
elementos linguísticos são entendidos, nessa visão, como pistas textuais
que atuam como âncoras para o mapeamento da leitura.
Congregar as perspectivas do Funcionalismo norte-americano e da
Linguística de Texto é importante na discussão dos pronomes demonstra-
tivos, porque possibilita a discussão das suas características proeminentes
como elementos icônicos, (não)marcados e (inter)subjetivos formados
via gramaticalização, mas também seu papel textual na construção dos
sentidos.
Outro ponto importante é o seu papel fórico, já que esses elementos
podem ter função retrospectiva, prospectiva ou bifórica e que essa ca-
racterização é essencial para a progressão textual. Também é de grande
relevância ressaltar que alguns desses elementos – como o “isso” – podem
ter também papel resumitivo de encapsulamento de informações, o que
é essencial para a tessitura do texto.
No ensino de gramática, então, é importante que os pronomes de-
monstrativos não sejam discutidos apenas a partir da identificação dos
seus referentes no texto por meio de atividades de “puxar setinhas”, mas
também que seja observado o papel desses recursos no contexto de uso.
Para que isso seja feito, algumas estratégias são:

i) o uso de textos orais e/ou escritos reais para que sejam observados
padrões fóricos dos pronomes demonstrativos indo além da classifica-
ção “anáfora x catáfora” por meio da observação de sua complexidade
textual e das suas motivações discursivas;

ii) o uso de textos orais e/ou escritos reais para que seja discutida a
marcação de subjetividade desses elementos, mesmo em contextos
tidos como neutros para que as intencionalidades pragmáticas sejam
mapeadas;

341
funcionalismo linguístico: interfaces

iii) o uso de textos escritos reais para que as funções coesiva e subjetiva
dos pronomes demonstrativos sejam discutidas em prol de produção
textual pautada na leitura e na gramática, inclusive da redação modelo
ENEM.

Diante disso, será possível unir as duas teorias em prol de uma


base sólida e bem fundamentada para um tema recorrente na escola e de
grande relevância para os usuários da língua portuguesa.

C. Conjunções adversativas

Outro grupo passível de interessantes reflexões para o ensino é


o das conjunções. Esses elementos podem ser divididos em diferentes
grupos e têm processos históricos de formação no português já estudados
por diferentes autores funcionalistas, dentre os quais se destaca Barreto
(1999). Em relação às conjunções adversativas, é possível afirmar que
seus padrões de uso já foram mapeados por vários pesquisadores do Fun-
cionalismo que constataram sua multifuncionalidade e a sua polissemia
(cf. CASTANHEIRA; CEZARIO; BRITO, 2021; LONGHIN, 2003;
RODRIGUES, 2018).
De forma geral, podemos dizer que o estudo funcionalista das
conjunções adversativas possibilita discutir a sua frequência de uso,
a sua trajetória diacrônica e os seus aspectos sintáticos, semânticos
e pragmáticos. Contudo, o aporte da Linguística de Texto contribui
para um exame mais detalhado dos efeitos de sentido desses ele-
mentos, bem como do seu papel de articulação textual e de coesão
na sequenciação e na tessitura textual, como demonstra a pesquisa
de Santos (2003).
No âmbito pedagógico, essa associação é evidenciada pela inte-
gração entre leitura, gramática e produção textual. Atualmente, há uma
grande preocupação em ensinar a gramática por meio do texto e discutir
sua reverberação na construção de produções textuais orais e escritas de

342
funcionalismo linguístico: interfaces

vários gêneros textuais. Defendemos que as conjunções adversativas são


perfeitamente congregáveis com tal visão.
Comumente, seu ensino é centrado, de maneira ampla, na memori-
zação de listas de conectivos coordenativos e subordinativos agrupados
por meio de valores semânticos estanques que pouco refletem os usos de
tais elementos. Os alunos, muitas vezes, têm o papel de ler tais listagens
para que nas avaliações identifiquem, sublinhem/circulem/destaquem e
classifiquem as conjunções de acordo com os sentidos expressos.
É válido ressaltar, contudo, que nem sempre tais identificações
estão ligadas a textos reais ou a contextos efetivos de uso. Com isso,
os discentes encaram as aulas de língua portuguesa sobre conjunções
como pouco atrativas, já que não conseguem entender sua importância
em outras situações linguísticas e também em sua vida cotidiana, mesmo
esses elementos sendo muito usados em diversos textos.
A associação do Funcionalismo norte-americano com a Linguística
de Texto possibilita um caminho de interface sólido do ponto de vista
teórico e do ponto de vista pedagógico, já que amplia escopos e estabe-
lece novos parâmetros de discussão pela integração de bases e ideias.
Assim, são caminhos possíveis de trabalho nessa interface:

i) o uso de textos reais orais e/ou escritos com conjunções adversativas


para que sejam identificadas por meio de suas características morfo-
lógicas, sintáticas e semânticas, sendo a classificação da tradição uma
base e não uma regra;

ii) o uso de textos reais orais e/ou escritos para que os efeitos de sentido
sejam sistematizados por meio do caráter polissêmico das conjunções;

iii) o uso de textos reais escritos para que o papel semântico, discur-
sivo, coesivo e sequencial das conjunções seja observado e mapeado
em prol do ensino de produção textual, como, por exemplo, a redação
de vestibular.

343
funcionalismo linguístico: interfaces

Com isso, será possível debater as conjunções adversativas manten-


do parte das práticas já efetuadas, mas expandindo para outros olhares.
Isso é importante para que haja uma visão mais ampla e para que a leitura
seja associada à gramática e à produção de textos orais e escritos.

D. Advérbios de tempo e lugar

Como aponta Martelotta (2012), a classe dos advérbios é bastante


complexa e heterogênea e, por isso, deve ser tratada de maneira deta-
lhada e cuidadosa. Seus usos morfossintáticos, semânticos, cognitivos e
discursivos englobam uma multiplicidade que evidencia um tratamento
diferente para cada subgrupo dessa classe, tendência presente em muitas
pesquisas funcionalistas sobre o tema, como a coletânea organizada por
Oliveira e Cezario (2012).
Nos trabalhos do Funcionalismo norte-americano sobre os ad-
verbiais, algumas questões são evidentes: o mapeamento sintático da
ordenação devido à sua mobilidade posicional, a discussão das pressões
discursivas que motivam tais ordens por meio das suas funcionalidades
e o debate da influência dos valores semânticos e das categorias textuais
(sobretudo o gênero) para seus padrões de uso. Tais pontos demonstram
que essas investigações são complexas e revelam, de várias maneiras,
como esses elementos são usados pelos participantes da interação.
De forma geral, é possível dizer que os adverbiais podem ser
agrupados de diferentes maneiras e que há classificações de diferentes
autores, que utilizam critérios diferentes para tais categorizações. Nes-
te capítulo, destacamos os temporais e locativos, que são comumente
designados ao grupo dos circunstanciadores. Sua união se deve a terem
diversas características em comum no âmbito formal e funcional, o que
possibilita reflexões mais amplas e generalizantes.
Paiva (2008) e Ilogti de Sá (2015) demonstram, por meio de seus
trabalhos, que as locuções adverbiais de tempo, por exemplo, têm seu

344
funcionalismo linguístico: interfaces

posicionamento morfossintático motivado pela funcionalidade do ad-


verbial (introdução ou mudança de assunto, contraste, anáfora etc.).
Nesses trabalhos fica evidente que o papel discursivo desses elementos
é essencial para que seja discutido seu uso.
Uma importante contribuição para tal debate pode ser dada pela
Linguística de Texto, já que, nos estudos de referenciação e sequenciação,
há muitas reflexões a serem aplicadas aos circunstanciadores. Tendo em
vista as afinidades teóricas já elucidadas neste capítulo, tal associação
é possível e pode contribuir de maneira significativa para o estudo das
classes de palavras.
No estudo dos adverbiais temporais e locativos, as discussões sobre
o papel anafórico da dêixis temporal e espacial é de grande valia, já que
tais papéis podem se sobrepor e ter diferentes funções na construção
dos sentidos do texto. Para além da mera identificação do referente ou
da contextualização da situação, é preciso observar que seus usos são
icônicos e passíveis de sistematização pragmática (cf. CASTANHEIRA,
2022b; SANTOS, 2015; SANTOS; MORAIS, 2017).
Isso também se evidencia pelo papel de sequenciação desses ele-
mentos na tessitura textual, dado que sua função coesiva faz com que
a progressão textual seja mais efetiva em textos de gêneros, suportes e
domínios variados (cf. CAVALCANTE, 2011; PAULIUKONIS; CA-
VALCANTE, 2018).
No ensino de gramática, essa interseção pode ser feita de diferentes
maneiras, dentre as quais:

i) o uso de textos orais e/ou escritos reais para que os alunos reconhe-
çam a mobilidade posicional dos advérbios de tempo e lugar e as suas
motivações discursivas ligadas à referenciação;

ii) o uso de textos orais e/ou escritos reais para que discentes reconhe-
çam o papel coesivo de sequenciação dos advérbios com circunstância
de tempo e lugar;

345
funcionalismo linguístico: interfaces

iii) o uso de textos escritos reais para que os alunos observem e consi-
gam usar os advérbios de tempo e lugar na tessitura de textos formais
por meio de seu papel referencial e sequencial, inclusive em redações
modelo ENEM.

Diante disso, será possível unir Funcionalismo norte-americano e


Linguística de Texto no mapeamento dos sentidos e da construção dos
textos na escola a fim de haja um olhar mais amplo sobre a categoria dos
advérbios de tempo e lugar.

Considerações finais

Diante da discussão estabelecida neste capítulo, defendemos que o


Funcionalismo é uma abordagem teórica passível de ser articulada em
interface a outras perspectivas, como, por exemplo, a Sociolinguística e
a Linguística de Texto. Isso se evidencia pelas pesquisas já desenvolvi-
das e pelas discussões propostas por diferentes autores, dentre os quais
Tavares (2013), Lopes (2015), Tavares e Görski (2015), Castanheira
(2018), Castanheira e Caseira (2020b), Castanheira (2022b) e Castanheira
e Lebler (2022).
Além disso, como demonstramos, tal casamento pode ser aplicado,
inclusive, ao ensino de gramática, tendo em vista que é necessário estabe-
lecer pontes teóricas em prol de um olhar mais complexo e multifacetado
para os fenômenos linguísticos na escola. A associação do Funcionalis-
mo à Sociolinguística e à Linguística de Texto pode ser uma aliada em
prol de um viés amplo que contemple a gramática no texto por meio das
práticas de leitura, análise linguística/semiótica e produção textual, já
que podem ser mapeadas motivações sociais e interacionais para os fatos
linguísticos, bem como podem ser observados seus papéis nos textos.
É importante dizer, ainda, que o estudo sob um viés aplicado às
classes de palavras é essencial, já que auxilia a contemplar a realidade
sociolinguística do Português do Brasil e o papel dos elementos na

346
funcionalismo linguístico: interfaces

tessitura textual, havendo, portanto, uma maior congruência entre os


padrões reais de uso e o ensino de língua. Essa iniciativa faz com que
o ensino vá além das preconizações das gramáticas normativas e tenha
outras perspectivas, como já apontam as documentações oficiais desde
os Parâmetros Curriculares Nacionais na década de 1990.
Trabalhar pronomes, conjunções e advérbios dessa forma pode
possibilitar muitas reflexões necessárias que farão com que os alunos
conheçam melhor sua língua materna e também a utilizem de maneira
mais consciente, sobretudo na construção de textos reais em diferentes
gêneros e suportes textuais e diversos domínios discursivos. Assim, a
morfossintaxe é associada às pressões discursivas, à coesão, à coerência,
à referenciação, à articulação textual e à variação linguística.
Em futuros trabalhos sobre a ligação do Funcionalismo ao ensino,
devem ser consideradas, então, se possível, suas interfaces teóricas para
que haja uma abordagem ainda mais ampla dos temas e para que tal dis-
cussão avance em análises de materiais didáticos, propostas de ensino e
intervenções didáticas. Tal iniciativa pode auxiliar na formação continuada
de professores e também de alunos do ensino básico, constituindo, portanto,
um passo importante em prol de um ensino mais reflexivo e produtivo.

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350
funcionalismo linguístico: interfaces

SOBRE OS AUTORES

Carlos Alexandre Gonçalves


Professor titular do Departamento de Linguística e Filologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desde 2016, instituição na qual desenvolve
três projetos de pesquisa na área de morfologia. Bolsista de produtividade em
pesquisa do CNPq desde 2000 e atualmente enquadrado no nível 1C. Líder do
NEMP (Núcleo e Estudos Morfológicos do Português, desde 2003). Professor
universitário desde 1994, já escreveu ou organizou mais de quinze livros,
destacando Morfologia (Parábola, 2019), Atuais tendências em formação de
palavras (Contexto, 2016), Morfologia Relacional (Pontes, 2021).

Carmelúcia Santos Assis Félix


Graduada em Administração pela Universidade Estadual de Feira de Santana.
Atualmente, é graduanda em Letras Vernáculas nessa mesma instituição. Foi
bolsista PROBIC/UEFS, entre 2021 e 2022, desenvolvendo o projeto “Sufi-
xos improdutivos no português arcaico: um estudo histórico e descritivo de
hápax e quasi-hápax sufixais”, sob a orientação do Prof. Dr. Natival Almeida
Simões Neto.

Christina Abreu Gomes


Professora titular do Departamento de Linguística e Filologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Possui doutorado em Linguística pela UFRJ
e pós-doutorado na University of York. É bolsista de produtividade do CNPq.
Orienta alunos de mestrado e doutorado do Programa de Pós-Graduação em
Linguística da UFRJ. Sua atuação profissional tem focalizado temas desen-
volvidos na Sociolinguística relativos à variação e mudança linguística, à
aquisição e à percepção da variação socialmente indexada.

351
funcionalismo linguístico: interfaces

Dennis Castanheira
Graduado em Licenciatura em Letras (Português e Literaturas), com dignidade
acadêmica Magna Cum Laude, Mestre em Linguística e Doutor em Língua
Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É Professor Adjunto
de Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da
Universidade Federal Fluminense, onde lidera projetos de pesquisa e extensão
e atua na Graduação e na Pós-Graduação Lato Sensu de Língua Portuguesa
e de Língua Portuguesa para Estrangeiros. Pesquisador do Grupo de Estudos
Discurso & Gramática (UFF) e Vice-líder do Grupo de Pesquisa em Linguís-
tica de Texto (UFRJ). Lidera a iniciativa didático-científica Educação ao rés
do chão, em parceria com Aline Menezes, do Colégio Pedro II. Publica suas
investigações em revistas científicas e em livros técnicos. É membro do corpo
editorial e parecerista de periódicos especializados do Brasil e do exterior.
Atuou no ensino básico nos níveis fundamental e médio. Áreas de atuação/
interesse: Funcionalismo norte-americano; Linguística de Texto; Sociofun-
cionalismo; Ensino de língua portuguesa.

Edvaldo Balduino Bispo


Professor Associado do Departamento de Letras da UFRN e docente perma-
nente do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL),
do qual foi coordenador nos biênios 2015-2017 e 2017-2019. Coordenou o
GT Descrição do Português da ANPOLL, biênio 2016-2018. É Editor-chefe
da Revista do GELNE e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
Líder do grupo Discurso & Gramática (D&G)/UFRN. Seus temas de interes-
se voltam-se à morfossintaxe do português e ao ensino de língua portuguesa
sob a perspectiva da Linguística Funcional de vertente norte-americana e da
Linguística Funcional Centrada no Uso. É coorganizador dos seguintes livros:
Orações relativas no português brasileiro: diferentes perspectivas (EDUFF,
2014), Variação e mudança em perspectiva construcional (EDUFRN, 2018)
e Pesquisas funcionalistas: da versão clássica à perspectiva centrada no uso
(EDUFRN, 2021).

352
funcionalismo linguístico: interfaces

Fernando da Silva Cordeiro


Doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN). Professor de Linguística e Língua Portuguesa da Universidade
Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA). Líder do Grupo de Estudos Língua
em Uso (UFERSA) e membro do Grupo de Estudos Discurso & Gramática
(UFRN). Atuou no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência
(PIBID) e no Programa Residência Pedagógica, ambos da CAPES. Tem expe-
riência em pesquisas que tratam da morfossintaxe do Português Brasileiro em
perspectiva funcionalista e do ensino de língua portuguesa na Educação Básica.

Ivo da Costa do Rosário


Graduado em Letras (Português, Inglês e respectivas literaturas) pela UERJ
e graduado em Pedagogia pela UNIRIO. É mestre e doutor em Letras Verná-
culas pela UFRJ e é mestre e doutor em Letras pela UFF. Tem pós-doutorado
em Estudos de Linguagem pela UFRN. Atualmente é professor associado de
Língua Portuguesa e coordenador do Programa de Pós-graduação em Estu-
dos de Linguagem da UFF. É líder do CCO (Grupo de Pesquisa Conectivos
e Conexão de Orações - cco.sites.uff.br) e membro do grupo D & G (Grupo
de Estudos Discurso e Gramática - deg.uff.br), ambos sediados na UFF. É
membro do GT Descrição do Português da ANPOLL. É Jovem Cientista do
Nosso Estado, pela FAPERJ. É membro da comissão científica da área de
Sintaxe da ABRALIN. É bolsista de produtividade em pesquisa pelo CNPq.
É perito judicial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Es-
tado de São Paulo. Atua principalmente nas seguintes áreas: funcionalismo,
construcionalização, mudanças construcionais, morfossintaxe, conexão de
orações e conectivos.

João Paulo da Silva Nascimento


Graduado em Licenciatura em Letras: Português-Literaturas pela UFRJ, é
doutorando em Linguística (PPGLIN-UFRJ) e em Letras - Estudos de Língua
(PPGL-UERJ), Mestre em Estudos Linguísticos pelo PPLIN-UERJ, especia-
lista em Linguística Aplicada e Ensino de Línguas (UFMS/2021); Linguagens,

353
funcionalismo linguístico: interfaces

suas Tecnologias e o Mundo do Trabalho (UFPI/2022); Língua Brasileira


de Sinais (FSV/2021) e Psicopedagogia com Ênfase em Educação Especial
(FIMG/2021). Atualmente, é professor de Língua Portuguesa da Secretaria
Municipal de Educação da Prefeitura de Teresópolis.

Karen Sampaio Alonso


É Professora Associada 40h DE do Departamento de Linguística e Filologia
da UFRJ. Coordena o Grupo Discurso & gramática-UFRJ e é bolsista de Pro-
dutividade em Pesquisa do CNPq (PQ-2). Possui graduação em Português/
Literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002), Mestrado em
Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2005), Doutorado
em Linguística pela UFRJ (2010) e pós-doutorado (Visiting scholar) na área
de Linguística na Universidade da Califórnia (Berkeley). É docente do Progra-
ma de Pós-graduação em Linguística da UFRJ, do Mestrado Profissional em
Letras da UFRJ (PROFLETRAS) e do Programa de Pós-graduação em Letras
Neolatinas da UFRJ. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em
Teoria e Análise Linguística, atuando principalmente nos seguintes temas:
gramática de construções; mudança linguística; Linguística Baseada no Uso.

Maria Angélica Furtado da Cunha


Professora emérita pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Profes-
sora titular de Linguística da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Professora visitante da Universidade Federal Fluminense. Doutorado em Lin-
guística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestrado em Linguística
pela Universidade de Brasília. Realizou dois estágios de pós-doutoramento na
University of California, Santa Barbara, e um na Universidade Federal Flumi-
nense. Membro do grupo de estudos Discurso & Gramática. Coorganizadora
de livros e autora de vários capítulos e artigos sobre transitividade, estrutura
argumental, gramática de construções e ensino de gramática sob o enfoque da
Linguística Funcional. Pesquisadora do CNPq.

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funcionalismo linguístico: interfaces

Maria Maura Cezario


Possui Graduação em Bacharelado e Licenciatura em Português-Literatura pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1989), Mestrado em Linguística pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994), Doutorado em Linguística pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001), Pós-doutorado na Universidade
de Edimburgo, UK (2014) e na UFRN (2019-2020). É Professora Titular da
Universidade Federal do Rio de Janeiro desde 1996. Atua na Graduação em
Letras e na Pós-graduação em Linguística (Capes 6). Tem experiência na área
de Linguística, com ênfase em Teoria e Análise Linguística, atuando princi-
palmente nos seguintes temas: construções oracionais adverbiais, ordenação
de adverbiais temporais, mudanças construcionais, formação de construções
sob a ótica da Linguística Funcional Centrada no Uso. Seus projetos já foram
contemplados com auxílio do Edital Universal (duas vezes) e e o do Edital
Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ - 2008). Coordena o Grupo de
Estudos Discurso e Gramática e é bolsista de Produtividade 1D do CNPq.

Mariangela Rios de Oliveira


Mestre e doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro, com pós-doutorado na Universidade Aberta – Lisboa. Professora
Titular do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade
Federal Fluminense, docente permanente do Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagem/UFF e professora visitante da Universidade Federal de
Ouro Preto. Pesquisadora nível 1B do Conselho Nacional de Desenvolvimen-
to Científico e Tecnológico (CNPq) e Cientista do Nosso Estado da Faperj.
Líder do Grupo de Estudos Discurso & Gramática – UFF e sócia honorária
da Associação Brasileira de Linguística (Abralin), que presidiu no biênio
2015-2017 e da qual foi conselheira de 2018 a 2021. Membro do Grupo de
Trabalho “Descrição do português” da ANPOLL. É autora e coautora de uma
série de publicações, entre artigos científicos, capítulos de livros e organização
de coletâneas, voltadas para a análise da morfossintaxe do português em pers-
pectiva funcional, algumas na interface com o ensino de língua na Educação
Básica do Brasil.

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funcionalismo linguístico: interfaces

Monclar Guimarães Lopes


Professor adjunto do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas e do Pro-
grama de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal
Fluminense. Doutor em Estudos Linguísticos e mestre em Língua Portuguesa
pela Universidade Federal Fluminense. É especialista em Língua Portuguesa
e Literatura Brasileira e graduado em Letras-Inglês pela Ferlagos. É vice-líder
do Grupo de Estudos Discurso & Gramática – UFF e membro pesquisador
do Grupo de Pesquisa Conectivos e Conexão de Orações (CCO) – ambos
sediados na UFF, além de membro do Grupo de Trabalho Descrição do Por-
tuguês da ANPOLL. É autor de artigos publicados em revistas especializadas
e em anais de congressos e de materiais para EAD. Tem experiência na área
de Letras, atuando nos seguintes temas: Linguística Funcional Centrada no
Uso, referenciação e ensino de Língua Portuguesa.

Natival Almeida Simões Neto


Professor Assistente-A de Linguística e Língua Portuguesa da Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS), onde atua na graduação em Letras e no
Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos (PPGEL-UEFS). Doutor
e Mestre na área de Linguística Histórica pelo Programa de Pós-graduação em
Língua e Cultura, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduou-se em
Letras Vernáculas (Licenciatura) nessa mesma universidade. Realizou estágio
pós-doutoral no Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tem se dedicado a pesquisas nas
áreas de morfologia, semântica e antroponímia da língua portuguesa. Integra
o PROHPOR - Programa Para a História da Língua Portuguesa (UFBA) e o
D&G - Discurso e Gramática (UFF). Atuou como coorganizador de várias
coletâneas, destacando-se “Morfologia Construcional: avanços em língua
portuguesa” (EDUFBA, 2022) e “Nomes próprios: abordagens linguísticas”
(EDUFBA, 2021). É autor de artigos publicados em livros e periódicos na-
cionais e internacionais.

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funcionalismo linguístico: interfaces

Roberto de Freitas Junior


Graduado em Português/Inglês pela UFRJ, com especialização em Língua
Inglesa pela PUC-Rio, mestrado e doutorado em Linguística pela UFRJ e
pós-doutorado pela Universidade de Birmingham. Atua como Professor Ad-
junto de Estudos Linguísticos do Dpto de Letras-Libras/UFRJ e é professor
permanente do Programa de Pós-graduação em Linguística da UFRJ, professor
colaborador do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da UERJ/
FPP, coordenador do Núcleo de Estudos Sobre InterlínguaS (NEIS/UFRJ) e
professor pesquisador do grupo Discurso & Gramática (D&G/UFRJ).

Taísa Peres de Oliveira


Bacharel em Linguística e Língua Portuguesa pela UFG, mestre em Estudos
Linguísticos pela UNESP-SJRP e doutora em Linguística e Língua Portugue-
sa pela UNESP-Araraquara. Atualmente, é Professora Associada na área de
Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul e docente do Programa de Pós-Graduação em Letras – Câmpus de Três
Lagoas. É coordenadora do Grupo de Estudos Sociofuncionalistas e membro
do Grupo Discurso & Gramática - UFRN. É coordenadora do GT – Descrição
do Português da ANPOLL. Desenvolve pesquisa na área do Funcionalismo,
em especial nas perspectivas dos Modelos Baseados no Uso e abordagem
construcional. É membro do corpo editorial dos periódicos Guavira, Letras e
Entremeios. Traduziu, em coautoria, a obra Construcionalização e Mudanças
Construcionais [original de Elizabeth Traugott e Graeme Trousdale], publicada
pela Editora Vozes.

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