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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Pilati, Eloisa

Linguística, gramática e aprendizagem ativa / Eloisa Pilati


Campinas, SP : Pontes Editores, 2017

Bibliografia.
I S B N 978-85-7113-839-1

1. Linguística - gramática 2. Formação de professores I . Título

índices para catálogo sistemático:

1. Linguística-gramática- 410
2. Formação de professores - 370.7
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

CAPÍTULO 1

POR QUE OS CONHECIMENTOS CIENTÍFICOS D E V E M


GUIAR A PRÁTICA DOCENTE? 23

CAPÍTULO 2

CONSTRUINDO A ABORDAGEM DO APRENDIZADO LINGUÍSTICO


ATIVO - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS 49

CAPÍTULO 3

PRINCÍPIOS DA METODOLOGIA DA APRENDIZAGEM


LINGUÍSTICA ATIVA 87

CAPÍTULO 4
OFICINAS 113

REFERÊNCIAS 141
INTRODUÇÃO

O real não está no início nem no fim,


ele se mostra pra gente é no meio da travessia...
Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas

Linguística, gramática e aprendizagem ativa reúne reflexões


desenvolvidas por mim no âmbito da disciplina Laboratório de Gra-
mática para o Ensino Fundamental e Médio, no Curso de Licenciatura
em Letras - Noturno, da Universidade de Brasília. Essa disciplina,
cuja proposta considero inovadora em relação aos currículos dos
cursos de Licenciatura em Letras no país, tem o objetivo de pre-
parar os futuros professores para a prática docente, em especial
para o ensino de gramática na Educação Básica.

Assim, a presente obra é fruto de um desafio que enfrentei


nos primeiros anos como docente dessa disciplina, pois, apesar
de ser graduada em Letras, ter experiência como professora de
língua portuguesa na Educação Básica, ter mestrado e doutora-
do em Teoria Linguística, me vi diante do desafio de estabelecer
uma relação entre as contribuições dos estudos linguísticos e a
prática docente, a fim de auxiliar meus alunos a se prepararem
para a vida profissional. Agora, após quase uma década dedicada
a aulas, pesquisas, apresentações de trabalhos e elaboração de
artigos sobre o tema, trago a público a sistematização de alguns
resultados a que cheguei.

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Devido à minha experiência prévia com o ensino de língua dinâmico. Em virtude da presença desses conceitos na definição
portuguesa, tinha consciência de que a disciplina de Laboratório de língua, poderíamos imaginar que as gramáticas tradicionais
de Gramática não poderia simplesmente repetir os padrões de aula abordariam os fenómenos gramaticais de forma bastante mo-
tradicionais do ensino de gramática: apresentação de conceitos derna, mas não é isso o que acontece: em nenhum momento, na
gramaticais, introduzidos por meio de algum pequeno texto ou referida obra, esse "sistema" é caracterizado como tal nem são
de frases descontextualizadas, seguida da listagem de regras e dadas outras explicações sobre a organização desse sistema, sobre
exceções e posterior realização de atividades de fixação. os princípios que a ele subjazem. Ou seja, após a apresentação
da definição acima, os fenómenos linguísticos são apresentados
Não é incorreto afirmar que grande parte das atividades
em listas de regras.
gramaticais realizadas durante a Educação Básica gera pouca re-
flexão e tem pouca utilidade na vida prática dos estudantes. Há A ausência de especificações acerca das características e
também uma enorme lacuna entre a compreensão atual que se propriedades do sistema linguístico nas gramáticas traz proble-
tem das línguas humanas, fruto das pesquisas desenvolvidas nos mas para a compreensão dos conceitos de língua e de sistema
centros de pesquisa e nas universidades, e os conceitos apresen- linguístico, pois não há como manipular um sistema sem entender
tados nos materiais didáticos usados nas escolas do país. Para sua organização e suas propriedades básicas.
citar um exemplo concreto, o conceito de "língua", que é crucial Considero que essa falta de clareza tem trazido inúmeros
para que se possa compreender o conceito de "gramática", ou problemas para a educação linguística. Um deles é que, quando
não é mencionado nos livros didáticos ou, quando o é, padece os conceitos de língua e de gramática tradicional (a gramáticas
de incompletude ou de incorreções. dos manuais) se confiindem, não dominar a gramática tradicional
Observemos, por exemplo, a definição de língua usada por passa a ser, de modo impróprio, equivalente a não dominar uma
Cunha e Cintra (1985: 1): * língua. Essa confusão não passa de uma falácia, pois crianças da
mais tenra idade dominam uma língua sem precisar ir à escola,
Língua é um sistema gramatical pertencente a um o que revela que o conhecimento linguístico independe dos co-
grupo de indivíduos. Expressão da consciência de nhecimentos formais sobre as línguas.
uma coletividade, a LÍNGUA é o meio por que ela
concebe o mundo que a cerca e sobre ele age. Uti- O ensino de gramática, da forma como vem sendo praticado,
lização social da faculdade da linguagem, criação não tem contribuído nem para a compreensão dos fenómenos
da sociedade, não pode ser imutável; ao contrário,
gramaticais nem para a formação de cidadãos confiantes em seu
tem de viver em perpétua evolução, paralela à do
saber gramatical tácito e em sua capacidade de expressão linguís-
organismo social que a criou.
tica. Por isso, é necessário criar alternativas às formas tradicionais
de levar a língua portuguesa às escolas brasileiras.
Vemos, em Cunha e Cintra (1985), a referência explícita ao
fato de que uma língua é um sistema gramatical que representa a Tendo como pano de fundo esses e outros problemas relati-
utilização social da faculdade da linguagem, tendo, portanto, caráter vos ao ensino de gramática, a demanda recorrente dos alunos da

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d i s c i p l i n a d e Laboratório de Gramática e r a p a r a q u e eu a p r e s e n - E m t e r m o s teóricos, o principal s u p o r t e d e s s e livro são os

t a s s e u m a a b o r d a g e m a l t e r n a t i v a , que e l e s p u d e s s e m c o l o c a r e m pressupostos advindos da T e o r i a Gerativa, formulada originalmente

prática. Os a l u n o s q u e r i a m , a l é m de c o m p r e e n d e r as críticas ao pelo linguista Noam C h o m s k y (1957). Para Chomsky, na mente/cére-

m o d e l o t r a d i c i o n a l de e n s i n o , d i s p o r d e c o n c e p ç õ e s e ideias q u e bro dos s e r e s humanos, há u m c o m p o n e n t e (um m ó d u l o ) dedicado

os a u x i l i a s s e m a m u d a r e f e t i v a m e n t e a prática d o c e n t e . à língua e ao s e u uso, a Faculdade da Linguagem. E s s a Faculdade é


inata, ou seja, faz parte d a dotação genética da espécie humana.
O objetivo desta obra, portanto, é duplo: por um lado,
Illa nos guia nos p r i m e i r o s anos de vida no processo de aquisição
p r e t e n d o m o s t r a r d e q u e f o r m a os c o n h e c i m e n t o s linguísticos
de língua m a t e r n a e nos leva a usar, c o m perfeição e de f o r m a
p o d e m ser usados como fundamentos teóricos norteadores da
natural, a língua a que s o m o s expostos e m nossa comunidade. E m
prática d o c e n t e e, por o u t r o , d e s e j o aliar t a i s c o n h e c i m e n t o s a
v i r t u d e d e s s a competência, crianças de todas as partes do m u n d o
u m a m e t o d o l o g i a q u e se p r e o c u p e e m p r o m o v e r o a p r e n d i z a d o
são c a p a z e s de adquirir u m a língua, c o m rapidez, seguindo etapas
ativo dos estudantes. O pressuposto da obra é que a união entre
mais ou m e n o s u n i f o r m e s e s e m necessidade d e ensino formal.
conhecimentos linguísticos e metodologia de ensino baseada na apren-
dizagem ativa seja c a p a z d e t o r n a r as aulas d e gramática m a i s A p r e n d e m o s u m a língua na infância e a u s a m o s c o m perfeição
e f i c a z e s , e que, a s s i m , tais aulas p o s s a m c o n t r i b u i r para a m a i o r t o d o s os dias, ao refletir, ao i m a g i n a r e ao n o s comunicar. E s s e
c o m p r e e n s ã o dos f e n ó m e n o s linguísticos, a l é m de f a v o r e c e r o uso é algo tão natural p a r a os s e r e s h u m a n o s q u e n ã o t e m o s c o n s -
a p r e n d i z a d o c o n s c i e n t e , crítico e m a i s e f e t i v o d a e s t r u t u r a e das ciência p l e n a de tudo q u e s a b e m o s . Por e s s e m o t i v o , u m a p a r t e
v i r t u a l i d a d e s do i d i o m a . i m p o r t a n t e d e s t e livro c o n s i s t e e m propor o f i c i n a s e a t i v i d a d e s
e m q u e t a l c o n h e c i m e n t o i n c o n s c i e n t e passe a s e r alvo de refle-
S e m fugir dos c o n t e ú d o s g r a m a t i c a i s o b r i g a t ó r i o s para os
xão crítica, a fim de criar c o n d i ç õ e s d e a p r o p r i a ç ã o p r o g r e s s i v a
a l u n o s d a Educação Básica, a a b o r d a g e m q u e p r o p o n h o n e s t a
da n o r m a p a d r ã o pelos e s t u d a n t e s b r a s i l e i r o s .
o b r a t e n t a articular três a s p e c t o s fijndamentais para o e n s i n o
de línguas: A o m e s m o t e m p o e m q u e p a r t o de f u n d a m e n t o s da l i n g u í s -
t i c a g e r a t i v i s t a , n ã o i g n o r o as c o n t r i b u i ç õ e s d a S o c i o l i n g u í s t i c a
i. os avanços alcançados pelas pesquisas linguísticas em relação V a r i a c i o n i s t a d e W e i n r e i c h , L a b o v e H e r z o g ( 2 0 0 6 [1968]). N u m
às propriedades das línguas humanas; país d e d i m e n s õ e s c o n t i n e n t a i s c o m o o B r a s i l , c o m todas as suas
p e c u l i a r i d a d e s históricas e sociais, é fijndamental q u e se d i s c u t a m
ii. os conhecimentos sobre as variedades linguísticas da língua
t e m a s r e l a c i o n a d o s à variação linguística.
portuguesa; e
A p e s a r de t e r e m a g e n d a s d e p e s q u i s a d i s t i n t a s , no c a m p o
iii. a metodologia da aprendizagem ativa, capaz de levar os alu-
científico, a T e o r i a G e r a t i v a e a S o c i o l i n g u í s t i c a i n v e s t i g a m d u a s
nos a usar a gramática com consciência e em benefício de sua
produção textual. facetas i n t e r - r e l a c i o n a d a s das línguas h u m a n a s : o c o n h e c i m e n t o
i n d i v i d u a l d a língua - a f i n a l , a experiência d e aquisição de u m a
língua é única para c a d a i n d i v í d u o - e o c o n h e c i m e n t o social d o s

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usos linguísticos - pois nosso meio social nos influencia de várias Em relação aos conteúdos pedagógicos obrigatórios pre-
formas, o que causa impacto, por exemplo, na variedade linguística sentes no currículo da Educação Básica brasileira, é importante
que iremos adquirir e no registro linguístico que iremos escolher registrar que este livro não os ignora e nem propõe a redução ou
a depender do contexto'. a extinção de tais conteúdos. A ideia é que o ensino de gramática
seja renovado por meio da utilização de uma metodologia capaz
Outro propósito deste livro é a discussão de métodos de
de dar sentido e utilidade aos conceitos e temas gramaticais.
ensino de língua portuguesa. Se desejamos contribuir para uma
mudança efetiva na educação linguística no Brasil, esse é um Antes de passar ao conteúdo do livro, apresento temas que
dos aspectos que deve ser levado em consideração. Uma nova NÃO serão discutidos:
metodologia deve necessariamente encontrar formas eficazes de
levar conhecimentos linguísticos relevantes para o contexto da a) Este livro não traz aulas prontas nem receitas de como o profes-
sor deve ensinar. Sabemos que a preparação de uma aula depende
Educação Básica ao promover o "conhecimento explícito".
de inúmeros fatores, tais como conhecimentos prévios dos alunos,
Inês Duarte (2008: 17) define o conhecimento explícito de faixa etária, série, currículo escolar, objetivos da aprendizagem
etc. Pretendo construir um ponto de partida, uma fundamentação
uma língua como um estágio em que o estudante "é capaz de
teórica e crítica que sirva para guiar opções pedagógicas.
caracterizar as propriedades do sistema linguístico, as regras de
combinação e os processos que atuam sobre as estruturas for- b) Este livro não discute outras abordagens linguísticas e suas
madas". Também faz parte do conhecimento linguístico explícito, aplicações em sala de aula. Acredito realmente que há aborda-
gens linguísticas complementares à que apresentarei aqui, as
segundo a autora, "a capacidade de seleção das unidades e estru-
quais também são fundamentais para a formação de cidadão
turas mais adequadas à expressão de determinados significados conscientes, críticos e autónomos, tais como a Sociolinguística e
de uso oral e escrito da língua". a Linguística Textual. Argumentarei que a compreensão dos fenó-
menos gramaticais é imprescindível para análises linguísticas de
Para desenvolver o conhecimento linguístico dos estudantes, qualquer natureza. Sem um conhecimento básico da organização
a metodologia que será apresentada leva em consideração princí- da sentença e sem a consciência das propriedades sintáticas da
pios do aprendizado ativo, em que o conceito de "aprender" está língua portuguesa, é muito mais difícil fazer análises no campo
diretamente relacionado ao conceito de "compreender". textual e discursivo.

As oficinas apresentadas têm o objetivo de servir como ponto c) Este livro não contempla teorias da aprendizagem em geral
de partida para que os estudantes da Educação Básica desen- nem autores como Skinner, Vygotsky e Piaget. Por se tratar de
uma obra que tem o objetivo de debater o aprendizado linguís-
volvam consciência dos fenómenos gramaticais e a usem como
tico, a teoria apresentada será a Teoria Gerativa, tal como foi
ferramenta para ampliar a capacidade de expressão na escrita, a proposta originalmente por Noam Chomsky (1957). Em linhas
proficiência na leitura e a habilidade de lidar com situaçóes de gerais, o que distingue tal hipótese teórica de outras teorias sobre
fala que requeiram planejamento mais complexo. o aprendizado é o fato de Chomsky considerar que as línguas
1 Usarei o termo "variedade" para me referir à representação da fala de uma comunidade
humanas fazem parte da dotação genética do indivíduo e, por
de modo global, levando em consideração suas particularidades, tanto categóricas quanto esse motivo, a capacidade de adquirir uma língua se diferencia
variáveis (cf. Coelho el. ai, 2012).

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UNGUBrUA, I.KAMAIKA I APHI N D l / A Í . I M A I I V A U N I lUl-. I IW\ t i h / \ M / M U / \ / \ r i U N U l / A l i l M rtl I V A

da capacidade de aprender e desenvolver outras habilidades, tais Cipíltilo 1 - Por que os conhecimentos científicos devem
como matemática, física, química e história. Hiiiai a prática docente? - Nesse capítulo, argumento a favor
(l.i .idoçiio de pressupostos científicos como norteadores da
d) Este livro não traz considerações sobre outros trabalhos a
pi.ili(.i docente. Defendo a ideia de que as fundamentações
respeito do tema linguística e educação. Tendo em vista que
aqui se fará o registro do desenvolvimento de uma metodologia I c o r i c i s são cruciais para que os professores tenham critérios
própria, o objetivo é apresentar tal metodologia e discutir os in.iis claros para guiar sua prática docente e para fundamentar
fundamentos teóricos que subjazem a ela. Mi.is decisões pedagógicas. Os argumentos são apresentados
por meio da análise de afirmações como: "Eu não sei português";
e) Este livro apresenta uma metodologia alternativa para as ati-
"(iramálica é um conjunto de regras" e "A prática leva à perfeição".
vidades propostas em sala de aula, mas não defende que essa
seja a única metodologia a ser utilizada. A ideia é fornecer um Isses são conceitos corriqueiros e, ao mesmo tempo, revelado-
embasamento teórico, além de métodos e técnicas que sejam ics da necessidade de divulgação e discussão apropriada dos
alternativas e inspirações para as práticas docentes. (diihecimentos linguísticos.

f) Este livro, apesar de reconhecer a complexidade da prática Capítulo 2 - Construindo a Abordagem da Aprendizagem
docente, não discute certos temas a ela relacionados, tais como: Linguística Ativa: pressupostos teóricos - Nesse capítulo, discuto
opções pedagógicas, opções curriculares, formação do professor
.ilguns fundamentos teóricos relevantes para a construção da
e formas de avaliação.
.ibordagem de ensino que proponho. Apresentarei respostas a
liès questões fijndamentais para o ensino de língua: O que é uma
A opção por não discutir os aspectos acima mencionados é
língua? Quais as propriedades das línguas humanas? Quais os
deliberada. Considero cada um deles importante para o sucesso
objetivos do ensino de gramática na Educação Básica?
da docência e da aprendizagem, mas nesta obra voltarei minha
atenção às contribuições que os pressupostos da Teoria Gerativa Capítulo 3 - Princípios da metodologia da Aprendizagem Lin-
podem dar à compreensão de assuntos que também são de suma guística Ativa - No terceiro capítulo, apresento as concepções
importância para o professor de português: O que é uma língua? metodológicas a serem adotadas para promover o desenvolvimen-
Quais as propriedades dos sistemas linguísticos? Quais os obje- to do conhecimento linguístico explícito. Parto de descobertas
tivos do ensino de línguas na Educação Básica? resultantes de pesquisas neurocientíficas sobre a aprendizagem
ativa. Além disso, argumento a favor da necessidade de aper-
Tais temas têm sido negligenciados na formação de profes-
feiçoamento do método de ensino de gramática e aponto uma
sores, apesar de sua importância para a compreensão do material
direção possível.
com que eles trabalham - a língua portuguesa.
Capítulo 4 - Oficinas com a Metodologia da Aprendizagem
Depois de esclarecidos os temas que não serão abordados
Linguística Ativa - Nesse capítulo, apresento atividades práticas
nesta obra, vejamos os temas a serem discutidos e a organização
elaboradas sobre as bases teórico-metodológicas dos capítulos
dos capítulos:
precedentes. O principal objetivo é mostrar exemplos concretos
de atividades que possam auxiliar o conhecimento linguístico
explícito, ao procurar estimular nos estudantes a adoção de uma
atitude mais reflexiva e consciente sobre o uso da língua. 1

Guimarães Rosa diz que o real "se mostra pra gente é no meio
da travessia". Espero que a leitura desta obra, como um momento
nessa longa travessia, sirva para fomentar discussões e pesquisas CAPÍTULO 1
sobre o processo de ensino-aprendizagem tanto da gramática
da língua portuguesa, quanto de outras línguas. Também espero POR Q U E OS CONHECIMENTOS CIENTÍFICOS
contribuir minimamente para a construção de uma perspectiva DEVEM GUIAR A PRÁTICA DOCENTE?
educacional em que a compreensão, a aprendizagem ativa e a
autonomia sejam valorizadas.
Neste capítulo, irei argumentar a favor da adoção de funda-
mentos científicos como norteadores da concepção de língua e da
Boa leitura! prática pedagógica de professores. Uma abordagem científica é
Eloisa Pila ti sempre uma abordagem crítica do senso comum. Daí a sua eficácia:
ela não confirma nem reproduz o senso comum; na realidade, ela
busca problematizá-lo sempre que esse se mostrar destituído de
razão e de sentido. Por esse motivo, as fijndamentações teóricas
são cruciais para que os professores tenham critérios mais claros
e objetivos ao tomar suas decisões pedagógicas.

Nossos julgamentos da realidade são muito influenciados


pelos conceitos e preconceitos que partilhamos em sociedade.
Em relação à língua e às práticas pedagógicas não é diferente.
Nossas ações estão sempre baseadas em conceitos que trazemos
conosco, de forma mais ou menos consciente. No caso das práti-
cas pedagógicas, por exemplo, se não partirmos de um conjunto
de fundamentos teóricos claros, o que denominarei neste livro
de abordagem, corremos o risco de agir guiados, somente, pelo
senso comum.

O termo abordagem é bastante conhecido na formação de


professores de língua estrangeira, mas não é muito usado na for-

23
U I M I l U l l I K n, (.l<AM/\ll( A I A I ' K I N I > l / A ( i l M A I I V A

m a ç ã o d e p r o f e s s o r e s d e língua m a t e r n a , p e l o m e n o s no B r a s i l . Ahonliigom: é um conjunto de assunções relacionadas à natureza


do ensino e do aprendizado de línguas. Uma abordagem é algo
I n i c i a r e i , p o r t a n t o , e s t e capítulo, e x p l i c a n d o e m que c o n s i s t e t a l
.ixiomático. Descreve a natureza do assunto a ser ensinado.
c o n c e i t o e, e m s e g u i d a , m o s t r a r e i c o m o m u i t a s v e z e s o s e n s o
c o m u m d e t e r m i n a a p e r c e p ç ã o trivial dos f a l a n t e s no q u e s e r e - Método: é um plano geral para a organização da apresentação
fere a o e n t e n d i m e n t o d e c o n c e i t o s c o m o l í n g u a e a p r e n d i z a g e m (lo material linguístico, que se baseia na abordagem escolhida.
de língua. A abordagem é axiomática, já o método é procedural. Dentro de
unia abordagem pode haver vários métodos.
E m relação à e d u c a ç ã o linguística, a e s c o l a t e m feito p o u c o
p r o g r e s s o na tarefa d e d e s c o n s t r u ç ã o d e c e r t a s crenças do s e n s o Técnica: é a parte implementacional da abordagem, a parte que
realmente irá ocorrer na sala de aula. É um truque, uma invenção,
c o m u m e isso, ao m e u ver, é u m a g r a n d e falha. N ã o e x i s t e o u t r a
uma estratégia para alcançar determinado objetivo. As técnicas
j u s t i f i c a v a para a e s c o l a e x i s t i r s e n ã o a de questionar, p r o b l e m a - precisam ser consistentes com o método e harmónicas com a
t i z a r e e l u c i d a r falsas crenças e q u e s t õ e s i n c o r r e t a s p r o v e n i e n t e s abordagem.
do s e n s o c o m u m .
R i c h a r d s e Roberts ( 1 9 8 6 ) a p o n t a m que o e s t u d o das aborda-
S e g u n d o o D i c i o n á r i o H o u a i s s eletrônico, o t e r m o " a b o r d a -
gens o u d o s m é t o d o s de e n s i n o g a n h o u u m p a p e l d e d e s t a q u e n a
g e m " significa uma "visão de um assunto; ponto de vista sobre
linguística a p l i c a d a a p a r t i r d e 1 9 4 0 , q u a n d o f o r a m feitas várias
u m a q u e s t ã o ; m a n e i r a o u m é t o d o de e n f o c a r o u i n t e r p r e t a r algo,
tentativas d e se c o n c e i t u a r a n a t u r e z a dos m é t o d o s e d e e x p l o r a r
na tradição d e e n s i n o d e l í n g u a s " . A a b o r d a g e m p o d e ser e n t e n -
mais s i s t e m a t i c a m e n t e a relação e n t r e t e o r i a e prática e m u m
d i d a , p o r t a n t o , c o m o u m guia para o n o s s o olhar, u m a f o r m a d e
mesmo método.
se p e r c e b e r ou i n t e r p r e t a r algo. U s a r e m o s o t e r m o a b o r d a g e m
aqui p a r a guiar a n o s s a f o r m a de c o m p r e e n d e r , a n a l i s a r e e n s i n a r A t u a l m e n t e , c o n s i d e r a - s e q u e a e r a dos m é t o d o s ú n i c o s já
línguas. está u l t r a p a s s a d a , ou seja, n ã o se a c r e d i t a m a i s q u e apenas u m a
única m e t o d o l o g i a seja s u f i c i e n t e para ensinar línguas, a d e p e n d e r
E p r e c i s o , e n t r e t a n t o , e s t a b e l e c e r u m a d i s t i n ç ã o e n t r e os
do c o n t e ú d o a ser a b o r d a d o . C o n c o r d o c o m o a r g u m e n t o de q u e
termos "abordagem", " m é t o d o " e "técnica". Abordagens englo-
não e x i s t e u m a única m e t o d o l o g i a de ensino p a r a t o d o s os t e m a s
b a m t e o r i a s sobre a n a t u r e z a das línguas e s o b r e o a p r e n d i z a d o
a s e r e m aprendidos e ensinados, mas, ao m e s m o t e m p o , considero
d e l í n g u a s . Já o m é t o d o é o nível e m q u e a t e o r i a é c o l o c a d a e m
i m p o r t a n t e m a n t e r o c o n c e i t o d e a b o r d a g e m c o m o algo claro na
prática e é o n d e são feitas as e s c o l h a s s o b r e as h a b i l i d a d e s e s p e -
m e n t e d e e d u c a d o r e s e p r o f e s s o r e s , para q u e e s s e s p o s s a m t e r
cíficas a s e r e m e n s i n a d a s , o c o n t e ú d o a ser e n s i n a d o e a o r d e m
critérios claros nas suas o p ç õ e s p e d a g ó g i c a s .
e m q u e e s s e c o n t e ú d o será a p r e s e n t a d o . A técnica, por sua v e z , é
o nível e m q u e são d e s c r i t o s os p r o c e d i m e n t o s a s e r e m a d o t a d o s A d o t a r e i a e x p r e s s ã o Abordagem do Aprendizado Linguístico
e m s a l a d e aula. Ativo p a r a d e n o m i n a r a a b o r d a g e m que c o n s t r u i r e m o s neste livro.
Antes de apresentar essa abordagem com mais detalhes, usarei
Para t o r n a r esses c o n c e i t o s m a i s claros, u s a r e m o s as d e f i n i -
três e x e m p l o s , p r e s e n t e s e m n o s s o dia a dia, p a r a i l u s t r a r p r e c o n -
ç õ e s d e R i c h a r d s e R o b e r t s ( 1 9 8 6 : 1) abaixo:
ceitos linguísticos, advindos do senso c o m u m , que influenciam Num certo sentido, gramática é algo estático - é um
conjunto de descrições a respeito de uma língua. É
nossas atitudes e crenças.
nesse sentido que a palavra é usada quando dize-
mos 'a gramática do Celso Cunha', 'a gramática do
PRECONCEITOS POR TRÁS DAS AFIRMAÇÕES: "MEUS ALUNOS NÃO Rocha Lima'. Cada uma dessas gramáticas tem suas
SABEM PORTUGUÊS" OU "EU NÃO SEI PORTUGUÊS" propriedades específicas. A de Rocha Lima é tida em
geral como a mais normativa das três. A de Celso
Os dois enunciados acima são comuns no dia a dia de brasilei- Cunha j á é não-normativa, mas compartilha com a
de Rocha Lima o caráter taxionômico, porque arrola
ros e brasileiras. Basta perguntar a qualquer falante do português
fatos e regras de estrutura linguística. Um exemplo
se ele "sabe" português. Na maioria dos casos, a resposta será: disso é o capítulo dessas gramáticas sobre conjun-
Não sei ou Não sei direito. ções e tipos de orações. São apresentadas uma lista
de c o n j u n ç õ e s coordenativas e subordinativas e
Há diversos motivos que levam os falantes de uma língua a
uma lista de orações coordenadas e subordinadas.
proferirem afirmações como essas. Há razões históricas e sociais De qualquer modo, gramática nesse sentido é um
que podem explicar esse sentimento por parte dos brasileiros e compêndio com descrições de uma língua.
que, embora sejam muito importantes, fogem ao escopo desta
Num outro sentido, gramática tem caráter dinâmico
obra'.
e corresponde a um construto mental, que cada
Afirmar que "alguém não sabe a língua que usa todos os dias" membro da espécie humana desenvolve, desde que
exposto a dados da língua e m questão, já que se
revela:
trata aqui de gramática de uma língua. [...J Quando
se começa a refletir sobre fatos de língua, fica claro
a) desconhecimento sobre o conceito de língua e também sobre
que os seres humanos nascem com uma estrutura
os conceitos de gramática mental, inatismo, aquisição linguística,
mental organizada de tal modo que torna a aquisi-
propriedades das línguas naturais; e
ção de língua algo inevitável, inexorável. Podemos
chamar essa estrutura mental inata de diferentes
b) desconhecimento sobre variação linguística.
nomes. Muitos usam as expressões gramática uni-
versal, faculdade de linguagem ou dispositivo de
Como o senso comum nos leva a pensar que saber gramática aquisição de língua.
está, diretamente, ligado ao domínio de conceitos apresentados
nos c o m p ê n d i o s gramaticais, acabamos acreditando que, se al- Conforme Lúcia Lobato nos explica, há dois entendimentos
g u é m não sabe as regras apresentadas nesses c o m p ê n d i o s , não possíveis para o conceito de gramática. O primeiro diz respeito a
sabe português. Vejamos como a pesquisadora Lúcia Lobato (2015: um tipo de conhecimento estático, remete às obras que trazem um
1 6 - 1 7 ) responde à pergunta O que é gramática? conjunto de descrições a respeito de uma língua. O segundo conceito,
diretamente relacionado aos pressupostos gerativistas, pontua
I indico as obras O português são rfois (2004), de Rosa Virgínia Mattos e Silva, O Português que a gramática é algo dinâmico, que corresponde a um construto
da gente (2006), de Rodolfo Uari e Renato Basso, e Línguas e sociedades partidas (2015),
de Dante L u c c h e s i , para aqueles que desejam mais leituras sobre o assunto.

26 27
mental que cada membro da espécie humana desenvolve, desde que Como dito anteriormente, o segundo fator que nos leva a
exposto a dados da língua. ííintepções equivocadas sobre nosso saber gramatical é a falta
ilc conhecimento sobre variação linguística. As gramáticas tradi-
Pelo fato de não haver muita clareza em relação a esses dois
(loMiiis. tais como a de Celso Cunha e Lindley Cintra, apresentam,
conceitos - gramática como compêndio versus gramática como
n n linhas gerais, as mesmas normas gramaticais do português de
construto mental, muitos consideram que saber português é so-
Portugal, uma variedade que, como se sabe atualmente, apresenta
mente saber as regras de uma variedade da língua que foi descrita
diversas diferenças em relação ao português do Brasil - mesmo se
em uma gramática normativa. Sendo assim, aqueles que pensam
compararmos com os registros linguísticos considerados padrão
que não sabem as normas dessa gramática também acreditam
no Brasil, como os presentes nos jornais, em textos literários e
que não sabem português.
cni artigos científicos.
E, no mínimo, lamentável imaginar que milhões de brasileiros
Pelo fato de não termos nascido em Portugal, não fomos ex-
que se comunicam em português diariamente, durante toda sua
postos aos dados da variedade linguística falada por lá. Por esse
vida, têm uma autoestima linguística tão baixa. Por acreditarem
motivo, algumas regras presentes nas gramáticas tradicionais,
que não dominam aspectos de uma variedade da língua, chegam
que refletem o conhecimento linguístico de falantes do portu-
à conclusão de que não sabem sua própria língua materna.
guês de Portugal, não fazem sentido para falantes do português
Como veremos com mais detalhes no Capítulo 2, todas as do Brasil. Hoje em dia, já encontramos gramáticas, como a de
pessoas que são expostas à língua portuguesa desde o nascimento Ataliba Castilho (2016), que descrevem as normas do português
ou desde a infância sabem português. Todos os brasileiros SABEM padrão do Brasil.
português. Desde o nascimento, nossa mente nos guia em nosso
Podemos nos perguntar, então, de que forma a compreensão
aprendizado linguístico. Crianças de 2 e 3 anos já usam a língua
sobre os dois conceitos de gramática descritos acima pode nos
portuguesa com desenvoltura, criam sentenças que nunca escuta-
auxiliar a reduzir as incompreensões, derivadas de concepções
ram antes, aprendem mais a cada dia, apesar de ainda não terem
equivocadas sobre o que seja saber português.
ido à escola. Se nosso conhecimento sobre o funcionamento da
língua portuguesa dependesse exclusivamente do que aprende- Como visto na citação do texto de Lúcia Lobato, os seres
mos na escola, só aprenderíamos a falar depois de ir à escola. humanos possuem "uma competência inata para adquirir uma
Sabemos, entretanto, que isso não é necessário. h'ngua". Isso significa que o aprendizado de uma língua se dá de
forma natural durante a infância. Logo, quando os alunos chegam à
Voltando às palavras de Lúcia Lobato, quando entendemos
escola, trazem consigo um conhecimento gramatical significativo.
que o conceito de "gramática corresponde a um construto mental,
que cada membro da espécie humana desenvolve, desde que ex- A escola, de fato, ensinará as crianças a escrever, a se ex-
posto a dados da língua em questão", vemos como é, no mínimo, pressarsão usando a modalidade escrita, mas os conhecimentos
impróprio afirmarmos que "não sabemos português". gramaticais ensinados na sala de aula ficam muito aquém do
conhecimento pleno de uma língua e daquilo que as crianças já

28 29
adquiriram quando começaram a falar. O professor, em sala de K.ii.i. Nao há uma preocupação em se ensinar que a ordem mais
aula, poderá promover o conhecimento linguístico explícito de lir(|iKMUe no português brasileiro é sujeito + verbo + objeto (tal
certos fenómenos linguísticos, tais como os de concordância, (DiiH) vimos nos exemplos acima). Também não há uma preocupa-
regência ou ordem, ou mostrar como tais fenómenos ocorrem (,.1(1 em se ensinar a uma criança que o artigo precede o substantivo
nas diferentes variedades da língua portuguesa. No entanto, ele (lodos os brasileiros reconhecem a ordem do sintagma \as ideias]
deve estar consciente de que, antes de a criança ir para a escola, (• i.iinais usariam algo como \*ideias as\). Também não precisamos
ela já domina, tacitamente, esses conceitos. II p.ii a a escola para aprender que, em certos contextos, o sujeito
(III oração pode ser nulo (por exemplo, [Nós precisamos] ou, simples-
Vejamos a seguir um exemplo que ilustra nosso conhecimen-
inciile, [(-) Precisamos]).
to tácito sobre a língua portuguesa. Nenhum brasileiro, mesmo
analfabeto, ao formular uma oração como (i), produziria uma Vamos avançar um pouco em outro plano da questão. Apren-
oração como (ii): demos, com os estudos sociolinguísticos, que uma língua é consti-
tuída por um conjunto de variedades e que não há língua que não
i. Precisamos divulgar mais as ideias linguísticas. apresente variação. A variação linguística pode ser verificada no
nível lexical, no nível fonológico e no nível sintático. As diferenças
ii. *Mais linguísticas as ideias divulgar precisamos.^
entre as variedades linguísticas são arbitrárias e, portanto, afir-
mações preconceituosas, tais como as de que há línguas mais ou
Pode parecer óbvio que nenhum falante do português ima-
menos evoluídas ou mais ou menos complexas não são critérios
gine a formulação de uma oração como (ii), pois ela claramente
válidos para se analisar as diferenças entre as línguas.
não faz sentido para nós que falamos o português. Mas, por que
motivo tal oração não faz sentido, se todas as palavras necessárias Um exemplo da arbitrariedade da variação linguística e da
para a boa formação da sentença estão ali presentes? A oração (ii) impropriedade de se considerar uma variedade linguística "me-
não faz sentido porque as palavras não estão organizadas dentro lhor" ou "pior" pode ser dado com casos de concordância nominal.
das possibilidades de ordem da gramática da língua portuguesa. No Brasil, há um grande preconceito com relação às pessoas que
A pergunta que se faz é: Como aprendemos nossa língua? Quem nos falam uma variedade linguística em que a marca de concordância
ensinou a ordem das palavras no português? nominal está presente apenas no elemento mais à esquerda, tal
como em [os menino], ]esses menino bonito], etc.
Sabemos que nenhuma mãe, pai ou responsável se preocupa
em ensinar às suas crianças as regras sintáticas essenciais da lín- No inglês, língua considerada acessível, moderna e de pres-
tígio, usam-se formas como: ]the boys], ]the beautiful boys], cuja
2 N a tradição dos estudos gerativistas, utilizamos o asterisco (•) para marcar uma dada o r a ç í o
como agramatical A classificaçáo de uma oração como agramatical ocorre quando ela n í o
tradução literal em português seria "o meninos" e "o bonito meni-
representa o sistema linguístico dos falantes de uma dada língua por qualquer motivo. O nos". Ou seja, no sistema linguístico do inglês, a marca de plural
conceito de agramatical idade nâo deve ser confundido com o conceito de "certo" ou "errado"
das gramáticas tradicionais. U m a construção como Os menino é considerada gramatical para se apresenta apenas em um dos elementos, tal como ocorre no
os linguistas, pois representa o sistema de concordância da variedade coloquial da língua.
Entretanto poderia ser considerada incorreta, de acordo c o m a perspectiva das gramáticas português não padrão. Contudo, o inglês é considerado uma lín-
tradicionais.

30 31
gua de prestígio, ao passo que o português coloquial ou popular Desde Saussure (1922), fundador da linguística moderna, os
é considerado uma variedade linguística sem prestígio. • |)«*s(|iiisadores concebem uma língua como sendo um "sistema de
mniios". Entretanto, devido ao caráter prescritivo das gramáticas
Com esses exemplos, pretendo mostrar que os sistemas lin-
li.itlicionais, não há destaque para a compreensão mais profunda
guísticos são sempre perfeitos. Os fatores que nos levam a consi-
do que seja esse sistema linguístico e de como ele se organiza.
derar uma língua mais bonita, ou mais fácil, ou mais correta do que
outra são puramente sociais ou ideológicos, nunca, linguísticos ou Voltemos à definição de língua empregada por Cunha e Cintra
científicos. Muitas vezes, por não partirmos de um entendimento (l'}8r): 1):
claro do que seja uma língua, quais as suas propriedades, como
Língua é um sistema gramatical pertencente a um
ela se organiza, ou como ela é aprendida, acabamos fazendo um
grupo de indivíduos. Expressão da consciência de
julgamento de suas variedades linguísticas seguindo convicções
uma coletividade, a LÍNGUA é o meio por que ela
superficiais, incorretas e que podem nos levar a pensamentos concebe o mundo que a cerca e sobre ele age. Uti-
preconceituosos. Mais adiante nos deteremos na conceituação lização social da faculdade da linguagem, criação
do termo "língua" e veremos como a adoção de uma conceituação da sociedade, não pode ser imutável, ao contrário,
tem de viver em perpétua evolução, paralela à do
correta para esse termo nos auxilia na desmistificação de vários
organismo social que a criou.
equívocos.

Em resumo, gostaria de ressaltar que todo indivíduo humano Atestamos, em Cunha e Cintra (1985), referência explícita ao
adquire uma língua por meio da interação entre os dados linguísti- fato de que uma língua é um sistema gramaticcfl, que representa a
cos do meio social em que está imerso e de um mecanismo mental utilização social da faculdade da linguagem, e que é fruto da criação
que o guia durante o processo de aquisição linguística, de forma da sociedade apresentando, portanto, caráter dinâmico.
inconsciente e natural, o qual foi denominado por Noam Chomsky
O conceito de língua apresentado pelos autores (e também
de Faculdade da Linguagem. O desconhecimento sobre essa compe-
pela maioria das gramáticas tradicionais e pelos materiais didá-
tência linguística inata, aliado ao desconhecimento sobre variação
tico-pedagógicos no Brasil) apresenta dois problemas fundamen-
linguística contribuem substancialmente para a criação de conceitos
tais: o primeiro consiste na simples menção ao termo "sistema
incorretos sobre o saber linguístico dos seres humanos, o que causa
linguístico", sem outros esclarecimentos sobre as propriedades
a baixa autoestima com relação à língua materna.
específicas desse sistema; o segundo consiste no fato de a língua
ser caracterizada apenas sob seu aspecto social, como uma "criação
PRECONCEITOS POR TRÁS DA CONCEPÇÃO DE GRAMÁTICA COMO
da sociedade", desconsiderando o ponto de vista inatista.
"CONJUNTO DE REGRAS"
Vejamos por que esses elementos presentes na definição de
Outra crença muito difijndida no senso comum, e totalmente Cunha e Cintra e a ausência de discussões mais profijndas sobre
inadequada diante do entendimento da linguística contemporâ- as especificidades dos sistemas linguísticos são problemáticos.
nea, é a de que gramática é apenas um conjunto de regras.

32 33
Como mencionado anteriormente, o primeiro problema do nômeno de concordância verbal é apresentado na gramática de
uso de definições incorretas ou incompletas acerca da definição Cunha e Cintra (1985) e no livro didático de Ernâni Terra e j o s é
do termo "língua" é que as especificidades desse tipo de sistema de Nicola (2004).
não são levadas em consideração. Estão ausentes elementos para Inicio a ilustração dessa questão com a gramática e depois
que se conheça a natureza desse sistema. Não é possível saber, por passo para o livro didático. A fim de não deixar a citação muito
exemplo, por que a língua nos caracteriza como seres humanos, longa e, consequentemente, cansativa, reproduzirei apenas os
qual a diferença entre o sistema de telecomunicações moderno conceitos e as principais regras apresentadas. E, para que se tenha
e o sistema linguístico humano, ou entre as línguas humanas e o uma noção de quantos subcasos do fenómeno de concordância
sistema de comunicação das abelhas. são apresentados, enumerarei cada caso ou regra mencionada.

Além disso, logo após as definições imprecisas, são listadas as


"regras da língua" em relação à concordância, regência, formação
Concordância Verbal para Cunha e Qntra (1985: 485-540)
da oração, pontuação, entre muitas outras. Há gramáticas que
trazem 20, 30 regras de concordância verbal. A regência verbal
A solidariedade entre o verbo e o sujeito, que ele faz viver no tempo, exterioriza-se
é, geralmente, ensinada por meio de uma lista interminável de
na concordância, isto é, na variabilidade do verbo para conformar-se ao número e
correlações e a formação da oração é analisada sob o critério à pessoa do sujeito.
do "sentido completo, sentido incompleto". A vírgula é, muitas
vezes, definida como pausa para respirar. Enfim, pelo fato de os
Regras Gerais
fenómenos linguísticos não serem vistos como partes de um sis-
tema, a saída para que se aprendam as regras da língua é a mera
COM UM SÓ SUJEITO
memorização, sem compreessão e sem aprendizado efetivo.

A segunda lacuna presente na definição de língua vista acima 1. O verbo concorda em número e pessoa com seu sujeito, venha ele claro ou
subentendido.
é a ênfase ao aspecto social, desconsiderando totalmente o caráter
inato das línguas. Segundo Cunha e Cintra, a língua é a expressão da
consciência de uma coletividade e é por meio dela que se concebe
o mundo e que se age sobre ele. Não há qualquer menção ao fato COM MAIS DE UM SUJEITO
de que as línguas humanas fazem parte da dotação genética dos
2. O verbo que tem mais de um sujeito (sujeito composto) vai para o plural
seres humanos. Uma consequência da concepção de língua como e, quanto à pessoa, irá:
algo externo aos indivíduos é a crença, presente no senso comum, 3. Para a 1^ pessoa do plural, se entre os sujeitos figurar um da 1* pessoa:
de que o professor irá "ensinar língua materna" aos seus alunos.
4. Para a 2^ pessoa do plural, se, não existindo sujeito da 1 a pessoa, houver
um da 23.
Para ilustrar a forma como gramáticas e materiais didáticos
apresentam os fenómenos linguísticos, examinemos como o fe- 5. Para a 3^ pessoa do plural, se os sujeitos forem da 3^ pessoa.

35
34
CASOS PARTICULARES:
w A concordância verbal é definida como a "solidariedade" entre
o verbo e o sujeito. Convenhamos que o termo "solidariedade"
6. O sujeito é uma e x p r e s s ã o partitiva não diz muito sobre um fenómeno de compartilhamento de pro-
7. O sujeito denota quantidade aproximada priedades gramaticais entre elementos da oração. Poderíamos
8. O sujeito é o pronome relativo que pensar que materiais didáticos apresentariam uma nova forma de
9. O sujeito é o pronome relativo quem
se compreender o fenómeno, com uma definição mais moderna
e uma metodologia mais interessante, no entanto, como visto,
10. O sujeito é um pronome demonstrativo ou indefinido plural, seguido
de de (ou dentre) nós (ou vós) não é isso que ocorre, e a lista de regras vista em Cunha e Cintra
permanece.
1 1 . 0 sujeito é um plural aparente
Vejamos, a seguir, como livros didáticos tratam a questão da
12. O sujeito é indeterminado
concordância verbal. Para tanto, apresentarei também um resumo
13. C o n c o r d â n c i a do verbo ser das "regras" presentes em um exemplo desse tipo de material,
14. C o n c o r d â n c i a com o sujeito mais p r ó x i m o com a ressalva de que selecionei uma única publicação, mas que
15. Infinitivos sujeitos o problema metodológico pode ser atestado em grande parte
dos materiais didáticos voltados ao ensino de língua portuguesa
16. Sujeitos resumidos por um pronome indefinido
no país.
17. Sujeitos representantes da mesma pessoa ou coisa
Observemos como Ernâni Terra ejosé deNicola (2004: 297-
18. Sujeitos ligados por ou e por nem 300) expõem a definição de concordância:
19. A l o c u ç ã o um e outro

20. Sujeitos ligados por com


Concordância é o mecanismo através do qual as palavras alteram suas terminações
2 1 . Sujeitos ligados por c o n j u n ç ã o comparativa para se adequarem harmonicamente umas às outras na frase.

Concordância verbal: o verbo altera as desinências número-pessoais para ajustar-se


em pessoa e número ao sujeito.
Como se percebe acima, o fenómeno da concordância é apre-
sentado como se tivesse 21 contextos diferentes de ocorrência.
Regra geral
Sabemos que a gramática de Cunha e Cintra não é uma gramática
1. 0 verbo e o sujeito devem concordar em número e pessoa.
pedagógica e que seu objetivo é descrever os fenómenos linguísti-
cos de uma dada variedade de língua. Além disso, é uma gramática
Sujeito Verbo
prescritiva e não é científica. Devido a isso, a obra também não
Eu cheguei
traz conceitos precisos sobre os fenómenos linguísticos.
Tu chegaste

36 37
A l é m da simplificação e x l i e m a na apresentação do f e n ó m e n o ,
Ele chegou
v e r i f i c a m o s t a m b é m u m a explicação t o t a l m e n t e e q u i v o c a d a p a r a
O aluno chegou
as " e x c e ç õ e s " à regra g e r a l : "A regra geral n ã o o f e r e c e m a i o r e s d i -
Os alunos chegaram
ficuldades. E n t r e t a n t o , há i n ú m e r o s casos e m q u e a c o n c o r d â n c i a
não é f e i t a d e acordo c o m a r e g r a geral; s o m a m - s e a eles alguns
A regra geral não oferece maiores dificuldades. Entretanto, há inúmeros casos em
que a concordância não é feita de acordo com a regra geral; somam-se a eles alguns
o u t r o s c a s o s para os quais a i n d a n ã o há u m a n o r m a c o n s o l i d a d a ,
outros casos para os quais ainda não há uma norma consolidada, pois, mesmo em pois, m e s m o e m b o n s a u t o r e s , e n c o n t r a m - s e c o n c o r d â n c i a s d i -
bons autores, encontram-se concordâncias divergentes para a mesma ocorrência. É
vergentes para a mesma ocorrência".
justamente a esses casos que dedicaremos agora nossa atenção.

Salta aos olhos o t e r r o r i s m o d e s n e c e s s á r i o feito pelos a u -


Alguns casos particulares:
tores ao t r a t a r casos q u e se i n c l u e m na r e g r a g e r a l , tais c o m o
2. N o m e s q u e s ó se u s a m no plural os d e s u j e i t o c o m p o s t o , p r o n o m e relativo c o m o s u j e i t o , s u j e i t o
3. O s u j e i t o é o p r o n o m e r e l a t i v o que indeterminado, orações com verbos impessoais, como "inúmeros
casos e m q u e a c o n c o r d â n c i a n ã o é feita de a c o r d o c o m a r e g r a
4. O s u j e i t o é mais de um o u mais de dois
g e r a l " . A f i r m a r que há " i n ú m e r a s " exceções à r e g r a geral e casos
5. V e r b o s dar, bater e soar i n d i c a n d o h o r a s
em que " m e s m o em bons autores, encontram-se concordâncias
6. V e r b o c o m índice d e i n d e t e r m i n a ç ã o do s u j e i t o
d i v e r g e n t e s para a m e s m a o c o r r ê n c i a " n ã o a j u d a os alunos na
7. S u j e i t o c o m p o s t o c o m p r e e n s ã o acerca do f e n ó m e n o da c o n c o r d â n c i a , n e m leva
8. S u j e i t o c o m p o s t o r e s u m i d o p o r p r o n o m e indefinido n i n g u é m a c o m p r e e n d e r s u a língua c o m o u m s i s t e m a organizado,
m u i t o p e l o contrário, s ó a t r a p a l h a .
9. S u j e i t o c o m p o s t o f o r m a d o p o r p e s s o a s d i f e r e n t e s

10. N ú c l e o s d o s u j e i t o l i g a d o s p o r ou Sob a ótica da linguística g e r a t i v i s t a , a c o n c o r d â n c i a v e r b a l é

1 1 . A e x p r e s s ã o haja vista
u m f e n ó m e n o sintático d e compartilhamento de propriedades entre
palavras ou expressões relacionadas (Corbett, 2006). No caso do
1 2 . 0 v e r b o ser
p o r t u g u ê s padrão, a concordância éuma manifestação de covariância
de propriedades (traços de pessoa, número) entre o verbo e o sujeito.
Por covariância, e n t e n d e - s e q u e as p r o p r i e d a d e s d e n ú m e r o e
E interessante notar que o f e n ó m e n o da concordância é p e s s o a do s u j e i t o se m a n i f e s t a m nas d e s i n ê n c i a s d a f o r m a v e r b a l ,
a p r e s e n t a d o por u m a definição inicial b a s t a n t e i m p r e c i s a : " m e c a - tal c o m o e m :
n i s m o s através do qual as palavras a l t e r a m suas t e r m i n a ç õ e s " . Já o
f e n ó m e n o de c o n c o r d â n c i a v e r b a l é d e f i n i d o de f o r m a s i m p l i s t a : Guimarães Rosa escreveu Grande Sertão Veredas.
" o v e r b o altera as d e s i n ê n c i a s n ú m e r o - p e s s o a i s para a j u s t a r - s e Ele escreveu Grande Sertão Veredas.
3^ pessoa do singular 3- pessoa do singular
ao s u j e i t o " .

38
Guimarães Rosa e Machado de Assis escreveram obras me- llá ainda vários outros problemas presentes em todos os
moráveis. materiais didáticos a que já tive acesso. Destaco a descontextu-
Grandes escritores escreveram obras memoráveis. alização da lógica gramatical como o mais grave deles. Na obra
Eles escreveram obras memoráveis.
aqui citada, por exemplo, o conceito de concordância é visto no
3a pessoa do plural 3^ pessoa do plural
sexto capítulo, dedicado à sintaxe. Ou seja, nesse caso específico,
são apresentados aos alunos os conceitos de termos essenciais
Analisando as orações acima sob o ponto de vista do com-
da oração, termos integrantes da oração, termos acessórios da
partilhamento de propriedades do sujeito para o verbo, vemos
oração, período composto e orações coordenadas, orações subor-
que o sujeito apresenta um só núcleo na 3" pessoa do singular
dinadas, e só depois disso tudo ele irá "estudar" a concordância.
e o verbo se flexiona na 3 ' pessoa do singular, como se observa
Pela própria ordenação do material, a impressão que qualquer
em a e ò. No entanto, se a oração apresenta dois núcleos, ou um
estudante terá é a de que os conhecimentos gramaticais são temas
núcleo no plural, as propriedades de pessoa e números desses
estanques e que ele jamais poderá ver o sistema linguístico em
sujeitos deverão ser compartilhadas com o verbo, tal como se
funcionamento na aula de gramática.
observa nas orações eme, de e, em que o verbo está flexionado
na 3- pessoa do plural. Em síntese, o estudo da língua descontextualizado da própria
lógica gramatical passa a ser nada mais que o estudo de um con-
Caso a oração a ser analisada fosse. Há livros de Machado de
Assis e Guimarães Rosa na minha casa, seria mais simples mostrar junto de regras desconexas. Essa forma de ensino torna inviável a

para os alunos que o verbo haver é um verbo que não seleciona compreensão da característica mais básica das línguas humanas:
um sujeito. Sendo assim, apresenta um padrão de concordância sua organização como um sistema.
neutro, que, em português, equivale ao uso de formas na 3^ pes- Encerro esta sessão citando um artigo que escrevi com mi-
soa do singular. nhas colegas da Universidade de Brasília, Helena Guerra Vicente,
Heloísa Lima Salles e Rozana Naves, que sintetiza o pensamento
Os verbos soar, bater e dar não são considerados verbos im-
pessoais. Sendo assim, concordarão com o argumento sintático desenvolvido até aqui:

que apresentam: Soaram duas horas.


Cabe ressaltar que as gramáticas tradicionais, devido
Ainda no que tange aos fenómenos relacionados à concor- ao seu caráter prescritivo, não se detêm na análise
dância verbal, mesmo nos casos em que há dupla possibilidade de das possibilidades expressivas da língua e muito
menos na interpretação semântica das diferentes
concordância, a regra geral é uma das possibilidades prescritas, o
formas linguísdcas - o que remete a aspectos dis-
que reforça, mais uma vez, a importância pedagógica de se levar cursivos e pragmáticos, incluindo-se o uso estético
as regularidades linguísticas para a sala de aula e não se trabalhar e literário da língua. Como consequência, o ensino
com ênfase nas exceções. de gramática, por ter sido bastante influenciado pela
tradição gramatical, acabou por adotar essa postura
prescritiva ao extremo.

40 41
'" " • A primeira consequência dessa atitude é o fato de Analisemos, primeiramente, um trecho dos PCNs em que o
as aulas de gramática serem aulas de "como se deve conceito de língua é apresentado, mas não as propriedades do
usar a língua", quando deveriam versar sobre o sistema linguístico:
entendimento de como a língua funciona e sobre a
análise das possibilidades que a língua pode oferecer,
Dessa perspectiva, a língua é um sistema de signos
mesmo dentro da variedade definida como padrão.
histórico e social que possibilita ao homem significar
o mundo e a realidade. Assim, aprendê-la é aprender
A segunda consequência é o tratamento dos estu-
não só as palavras, mas também os seus significados
dantes como aprendizes da língua e não como os
culturais e, com eles, os modos pelos quais as pes-
próprios usuários. Há uma troca de valores: em vez
soas do seu meio social entendem e interpretam a
de serem ensinados a desenvolver ainda mais suas
realidade e a si mesmas.
habilidades linguísticas, os estudantes acabam sendo
A linguagem verbal possibilita ao homem representar
colocados numa posição de aprendizado passivo,
a realidade física e social e, desde o momento em que
como se desconhecessem completamente a língua
é aprendida, conserva um vínculo muito estreito com
que usam no seu dia a dia. Não estamos defendendo
o pensamento. Possibilita não só a representação
aqui que os estudantes já conheçam todas as varie-
e a regulação do pensamento e da ação, próprios
dades e possibilidades linguísticas, mas que aquilo
e alheios, mas, também, comunicar ideias, pensa-
que eles sabem significa muito mais do que aquilo
í mentos e intenções de diversas naturezas e, desse
que eles não sabem. (PILATI et al., 2011: 403)
modo, influenciar o outro e estabelecer relações
interpessoais anteriormente inexistentes.
REaEXÕES SOBRE O CONCEITO DE UNGUA EM DOCUMENTOS ORCIAIS
Essas diferentes dimensões da linguagem não se
excluem: não é possível dizer algo a alguém sem ter
Documentos oficiais tais como os Parâmetros Curriculares o que dizer. E ter o que dizer, por sua vez, só é pos-
Nacionais (PCNs)\e 1997 a 2000, e a Base Nacional Comum sível a partir das representações construídas sobre
o mundo. Também a comunicação com as pessoas
Curricular (BNCC), de 2017, também contribuem para a conser-
permite a construção de novos modos de compre-
vação dessa lacuna na compreensão de língua como "sistema ender o mundo, de novas representações sobre ele.
linguístico". Um dos fatos que me leva a essa afirmação é a falta A linguagem, por realizar-se na interação verbal dos
de precisão na definição dos conceitos de língua e linguagem. interlocutores, não pode ser compreendida sem que
se considere o seu vínculo com a situação concreta
De modo mais específico, percebe-se nesses documentos: de produção. É no interior do funcionamento da lin-
o uso do conceito de língua como sinónimo de linguagem e o guagem que é possível compreender o modo desse
emprego do conceito de linguagem como equivalente a todos os funcionamento. Produzindo linguagem, aprende-se
linguagem. (PCNs, 2000: 22)
sistemas de comunicação criados pelos seres humanos.

Como se pode verificar no trecho acima, a língua internalizada


3 F a ç o referência aos P C N s para contribuir com as reflexões sobre o processo histórico de
configuração de uma certa abordagem dos aspectos linguisticos na educação em língua
de cada indivíduo é um sistema, mas não há informações sobre
portuguesa. E s s a abordagem restringiu muito o alcance do estudo da gramática nas escolas
como se dá o fijncionamento desse sistema. Qualquer pessoa
brasileiras.

42 43
que leia o trecho acima aprende que as línguas humanas são um significaçúo c integradora da organização do mundo e
da própria interioridade. (...) (PCNs Bases Legais 2000:
sistema de signos histórico e social e que aprender uma língua
19, grifos nossos)
é aprender não só as palavras, mas também os seus significados
culturais, o que possibilita tanto a representação e a regulação
O texto da Base Nacional Comum Curricular (2017) tam-
do pensamento e da ação, quanto possibilita comunicar ideias,
bém não trata especificamente do sistema linguístico. Língua é
pensamentos e intenções de diversas naturezas; além disso, a
considerada na B N C C (2017: 64) como "meio de construção de
língua não pode ser compreendida sem que se considere o seu
iilcntidades de seus usuários e da comunidade a que pertencem" e
vínculo com a situação concreta de produção.
como "fenómeno cultural, histórico, social, variável, heterogéneo
Vejamos agora a definição de linguagem dos PCNs. Encon- c sensível aos contextos de uso".
traremos, nesse caso, mais um problema de conceituação. Dessa
J á a definição de linguagem apresentada na BNCC é a se-
vez relacionado a especificidades das línguas humanas. Como
guinte:
poderemos atestar, os PCNs não estabelecem distinções entre as
línguas humanas e os demais sistemas de comunicação: Se a linguagem é comunicação, pressupõe interação
entre as pessoas que participam do ato comunica-
A linguagem é considerada aqui como capacidade tivo com e pela linguagem. Cada ato de linguagem
humana de articular significados coletivos em siste- não é uma criação em si, mas está inscrito em
mas arbitrários de representação, que são comparti- um sistema semiótico de sentidos múltiplos e, ao
lhados e que variam de acordo com as necessidades mesmo tempo, em um processo discursivo. Como
e experiências da vida em sociedade. A principal resultado dessas relações, assume-se que é pela e
razão de qualquer ato de linguagem é a produção com a linguagem que o homem se constitui sujeito
de sentido. social ("ser" mediado socialmente pela linguagem)
e por ela e com ela interage consigo mesmo e com
Podemos, assim, falar em linguagens que se inter- os outros ("ser-saber-fazer" pela/com a linguagem).
relacionam nas práticas sociais e na história, fazendo Nesse "ser-saber-fazer" estão imbricados valores
com que a circulação de sentidos produza formas sensitivos, cognitivos, pragmáticos, culturais, morais
sensoriais e cognitivas diferenciadas, isso envolve e éticos constitutivos do sujeito e da sociedade. Ao
a apropriação demonstrada pelo uso e pela com- se abordar a linguagem no sistema semiótico, que
preensão de sistemas simbólicos sustentados sobre estuda a significação dos textos que se manifestam
diferentes suportes e de seus instrumentos como em qualquer forma de expressão, pode-se falar de
instrumentos de organização cognitiva da realidade formas de linguagem: verbal (fala e escrita), não ver-
e de sua comunicação. Envolve ainda o reconhecimento bal (visual, gestual, corporal, musical) e multimodal
de que as linguagens verbais, icônicas, corporais, sono- (integração de formas verbais e não verbais).
ras e formais, dentre outras, se estruturam de forma Os conhecimentos humanos são sempre construídos
semelhante sobre um conjunto de elementos (léxico) e de por formas de linguagem, sendo fruto de ações in-
relações (regras) que são significativas: a prioridade para tersubjetivas, geradas em atividades coletivas, pelas
a Língua portuguesa, como língua materna geradora de quais as ações dos sujeitos são reguladas por outros

44 45
s u j e i t o s . A escolcirizaçrio cl.is liii)íii.ij;c'iis c o m b a s e m o r f o l ó g i c o s d e lormaçtio d e p a l a v r a s , não são e n c o n t r a d o s e m
n e s s e p r e s s u p o s t o s i g n i f i c a c o n s c i c n t i z a r os s u j e i t o s niMihum outro sistema.
do seu "ser-pensar-fazer" e gerar u m "fazer-saber". O
f a z e r b a s e a d o n a reflexão é u m a transformação q u e A lacuna formada no m o m e n t o e m que se desconsideram as
modifica o sujeito, que passa do fazer imediato para e s p e c i f i c i d a d e s d o s s i s t e m a s linguísticos l e v a à não c o m p r e e n s ã o
u m fazer informado, persuasivo e interpretativo. do f u n c i o n a m e n t o d a gramática. O s fenómenos g r a m a t i c a i s , q u e
A o r e c o n h e c e r as e s t r u t u r a s p r o f u n d a s d a s l i n g u a -
poderiam ser investigados, sistematizados e compreendidos,
g e n s ( a s f o r m a s e o s v a l o r e s implícitos), e l e poderá
p e r d e m s u a e s p e c i f i c i d a d e e, m u i t a s v e z e s , p a s s a m a s e r v i s t o s
compreender m e l h o r a s e s t r u t u r a s de superfície
que se manifestam e m textos, tornando-se capaz, c o m o regras a s e r e m m e m o r i z a d a s . Além d i s s o , mantêm-se os
s e q u i s e r , d e manipulá-las, aceitá-las, contestá-las e preconceitos linguísticos a d v i n d o s d o s e n s o c o m u m , p o i s não
transformá-las. [...|
há d e f i n i ç õ e s c l a r a s c a p a z e s d e c o n t r a d i z ê - l o s o u d e e x p l i c a r a s
A o l o n g o d o E n s i n o F u n d a m e n t a l , os c o m p o n e n t e s
questões d e m o d o mais compreensível, e perdem-se conceitos e
d a área d e L i n g u a g e n s o r g a n i z a m as a p r e n d i z a g e n s
r e l a t i v a s à expansão d a s p o s s i b i l i d a d e s das práticas c r i t é r i o s r e l e v a n t e s p a r a a a n á l i s e linguística e p a r a a p r o d u ç ã o

d e l i n g u a g e m , c o m v i s t a s à ampliação de c a p a c i d a d e s textual.
e x p r e s s i v a s , à compreensão d e c o m o s e e s t r u t u r a m
as manifestações artísticas, c o r p o r a i s e linguísticas e P R E C O N C E I T O S P O R TRÁS D A I D E I A : " E S C R E V A M U I T O E T O R N E S E
a o r e c o n h e c i m e n t o d e q u e a s práticas de l i n g u a g e m UM ÓTIMO R E D A T O R "
são p r o d u t o s c u l t u r a i s q u e o r g a n i z a m e e s t r u t u r a m
as relações h u m a n a s . ( B N C C , 2 0 1 7 : 5 8 - 5 9 )
D e a c o r d o c o m o s e n s o c o m u m , " a prática l e v a à p e r f e i ç ã o " , o u
s e j a , a r e p e t i ç ã o d e a l g o é u m d o s f a t o r e s d e t e r m i n a n t e s d a excelên-
A p a r t i r d a l e i t u r a d o s e x c e r t o s a c i m a é possível v e r i f i c a r q u e ,
cia. Q u e m parte desse pressuposto acaba acreditando q u e d e v e m o s
d e a c o r d o c o m o s d o c u m e n t o s o f i c i a i s , o s c o n c e i t o s d e língua e
escrever m u i t o e fazer r e p e t i d a m e n t e m u i t a s atividades gramaticais
l i n g u a g e n s c o m p a r t i l h a m e l e m e n t o s s e m e l h a n t e s , m a s não são
p a r a a p r e n d e r a n o s e x p r e s s a r n u m a d a d a v a r i e d a d e linguística.
apresentados os elementos que os diferenciam. Mais u m a v e z se
p e r d e a e s p e c i f i c i d a d e d o q u e s e j a o s i s t e m a linguístico, o q u e Q u a n t a s v e z e s não v e m o s listas e n o r m e s d e exercícios p a r a

c o n t r i b u i p a r a a i n c o m p r e e n s ã o g e r a l s o b r e o q u e s e j a u m a língua. serem feitos como atividades de fixação, tanto nas aulas de


gramática c o m o n a s a u l a s d e produção d e t e x t o . Atualmente,
S o b u m a ótica m a i s s u p e r f i c i a l , p o d e r í a m o s a r g u m e n t a r q u e ,
está d e m o n s t r a d o q u e a r e p e t i ç ã o d e a t i v i d a d e s , s e m r e f l e x ã o , é
r e a l m e n t e , há s i m i l a r i d a d e s e n t r e a s línguas h u m a n a s e o s d e m a i s
q u a s e i n ó c u a p a r a o a p r e n d i z a d o d e v a r i e d a d e s linguísticas e d a
s i s t e m a s c r i a d o s p e l o h o m e m . O p r o b l e m a é q u e u m a análise f e i t a
modalidade escrita.
n e s s e nível d e s c o n s i d e r a a s e s p e c i f i c i d a d e s e i m p e d e q u e s e u s
sistemas sejam c o m p r e e n d i d o s , pois os e l e m e n t o s que o r g a n i z a m Por acreditar que a aprendizagem é simplesmente m e m o r i z a -

o f u n c i o n a m e n t o d a s línguas, t a i s c o m o o s p a d r õ e s d e ordem, ç ã o , c o l o c a m o s n o s s o s a l u n o s p a r a d e c o r a r r e g r a s , c a n t a r músicas,

d e concordância, d e regência, os padrões fonéticos e os padrões entre outras coisas, c o m o se a simples memorização levasse ao

46 47
aprendizado. Obviamente, a aprendizagem depende, em alguma
medida, de memorização e de exercícios e atividades, mas, se tais
práticas estiverem desvinculadas de reflexão e compreensão por
parte do aluno, isso não promoverá a aprendizagem.

Se somente atividades como leitura e memorização nos


levassem a aprender a língua, não teríamos, por exemplo, tantos CAPÍTULO 2
universitários, pessoas que passaram tantos anos estudando lín-
gua portuguesa, tão inseguros em relação à sua expressão escrita. CONSTRUINDO A ABORDAGEM DO APRENDIZADO
Para evitar que concepções incorretas, tais como as mencionadas LINGUÍSTICO ATIVO - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
acima, influenciem nossa prática docente, apresentarei a seguir
os pressupostos teóricos que julgo serem fundamentais para a
abordagem a ser desenvolvida neste livro. Como visto no Capítulo 1 , uma abordagem é um conjunto
sistemático de práticas de ensino, baseadas numa teoria particular
CONSIDERAÇÕES FINAIS sobre o próprio conceito de língua e sobre o ensino de línguas.
Uma abordagem está sempre relacionada a princípios gerais sobre
No presente capítulo, argumentei a favor da adoção de o conceito de língua. Tendo em mente o objetivo de organizar o
pressupostos científicos como forma de desconstrução de ideias arcabouço teórico da Abordagem da Aprendizagem Linguística Ativa,
equivocadas presentes no senso comum. Argumentei que o desco- apresentarei a seguir respostas para as seguintes questões:
nhecimento acerca da hipótese do inatismo linguístico e das pro-
priedades do sistema das línguas naturais tem trazido problemas a. O que é língua?
para o processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa.
b. Quais as propriedades básicas das línguas humanas?
Na tentativa de apresentar algumas propriedades dos siste-
mas linguísticos, o próximo capítulo sistematiza respostas para c. Quais os objetivos do ensino de língua portuguesa na Educação
as seguintes questões: Básica?

O QUE É LÍNGUA?
a. O que é língua?
b. Quais as propriedades básicas das línguas humanas?
c. Quais os objetivos do ensino de língua portuguesa na Educação Nesta seção, apresento, de forma mais sistemática, os concei-
Básica? tos de língua e de gramática sob o enfoque da Teoria Gerativa. Para
os gerativistas, as línguas fazem parte da dotação genética dos
As respostas a essas perguntas construirão as bases para a seres humanos. Todos os seres humanos já nascem predispostos
Abordagem do Aprendizado Linguístico Ativo. a aprender uma língua, salvo casos em que se manifeste alguma

49
48
p a t o l o g i a . E s s a " p r e d i s p o s i ç ã o " ou "(lotação j',('iu'tica" faz c o m parLicularcs; os estados propriamente ditos são as lín-
guas inWrnas, "línguas" resumidamente. (CHOMSKY,
q u e crianças, na m a i s t e n r a idade, já t e n h a m disi^ositivos m e n t a i s
2006: 77, tradução minha)
p r e p a r a d o s para a p r e n d e r q u a l q u e r língua d e f o r m a n a t u r a l .

N ã o é recente nas pesquisas linguísticas o pressuposto segun- P o d e m o s explicar, m a i s d e t a l h a d a m e n t e , a citação a c i m a d a


do o q u a l as línguas s ã o f a c u l d a d e s m e n t a i s d o s s e r e s h u m a n o s . sey.uinte f o r m a : e n t r e os c o m p o n e n t e s da m e n t e h u m a n a , há u m
F e r d i n a n d Saussure, t i d o c o m o o pai d a linguística m o d e r n a , já " ó r g ã o " o u u m " m ó d u l o " específico para a l i n g u a g e m : a Facul-
c o n s i d e r a v a que as l í n g u a s e r a m d o t a ç õ e s h u m a n a s . P o r é m , s u a (l.ule d a L i n g u a g e m . Os m e c a n i s m o s q u e c o m p õ e m a F a c u l d a d e
atenção estava m a i s v o l t a d a ao fato d e as l í n g u a s s e r e m " o b j e - (l.i L i n g u a g e m são g e n e t i c a m e n t e d e t e r m i n a d o s e f a z e m p a r t e ,
t o s s o c i a i s " , dos quais os f a l a n t e s i n d i v i d u a i s t i n h a m apenas u m portanto, da dotação biológica dos seres h u m a n o s . Por p o s s u í r e m
d o m í n i o parcial, o q u e f i c o u c o n h e c i d o n o s e s t u d o s linguísticos essa F a c u l d a d e d a L i n g u a g e m , os seres h u m a n o s são d o t a d o s d e
como a dicotomia entre "língua" e "fala". uma Gramática U n i v e r s a l , q u e é o estado inicial d e sua língua,
íisse e s t a d o inicial irá se modificar, d e v i d o ao e f e i t o d e f l a g r a d o r
Na década de 50, o linguista Noam C h o m s k y passou a investi-
e m o d e l a d o r da experiência, b e m c o m o d e v i d o aos p r o c e s s o s de
gar, de m a n e i r a mais sistemática, as p r o p r i e d a d e s desses s i s t e m a s
a m a d u r e c i m e n t o i n t e r n a m e n t e d e t e r m i n a d o s , e irá se e s t a b i l i z a r
linguísticos, d a n d o atenção e s p e c i a l ao e s t u d o do c o n h e c i m e n t o
num determinado momento.
linguístico i n t e r n a l i z a d o d e cada falante, c o m o i n t u i t o d e d e s -
c r e v e r e e x p l i c a r a c a p a c i d a d e específica d a espécie para d o m i n a r S e g u n d o C h o m s k y ( 2 0 1 1 : 269), o c r e s c i m e n t o e o d e s e n v o l v i -
q u a l q u e r língua, a Faculdade da Linguagem. m e n t o linguístico no indivíduo e n v o l v e m , pelo rhenos, três fatores:

Nas palavras de N o a m C h o m s k y ,
(1) os dados externos;

O cérebro incorpora "órgãos especializados", com-


(2) um dom genético que converte os dados da experiência e
putacionalmente especializados para solucionar
orienta o curso geral de desenvolvimento; e
tipos específicos de problemas, com grande faci-
lidade. O crescimento e desenvolvimento desses
(3) princípios de âmbito mais geral, incluindo as leis da natureza.
órgãos especializados - o que é às vezes chamado
Por possuir uma Faculdade da Linguagem, uma habilidade lin-
de aprendizagem - é o resultado de processos
guística inata, cada falante é capaz de internalizar um processo
internamente dirigidos e efeitos ambientais que
gerador que produz uma infinita variedade de expressões hie-
desencadeiam e modelam o desenvolvimento. O
rarquicamente estruturadas, as quais são interpretadas em duas
órgão da linguagem é um desses componentes do
interfaces: a do sistema sensório-motor (SM) e a do sistema
cérebro humano.
conceptual-intencional (Cl; sistemas de pensamento e plane-
Na terminologia convencional, adaptada do uso mais jamento de ação). Cada expressão linguística é um objeto que
primitivo, o órgão da linguagem é a faculdade da consiste em duas coleções de informações: fonética e semântica.
linguagem (FL); a teoria do estado inicial da FL, uma Por causa da interpretação nessas duas interfaces, as línguas
expressão dos genes, é a Gramática Universal (GU); humanas possuem som e significado.
as teorias de estados atingidos são as gramáticas

50
A Faculdade da Linguagem contem " u m sistema recursivo A l i m d e detalhar u m p o u c o mais c o m o os gerativistas e n -

d e geração d e u m a v a r i e d a d e infinita d e e n u n c i a d o s d o t a d o s do i f i i d e m os s i s t e m a s linguísticos, v e j a m o s as explicações de Lúcia


s i g n i f i c a d o " , daí o t e r m o "Gramática G e r a t i v a " ' . O u , c o m o v i s t o Lobato ( 2 0 1 5 : 38-39):
a c i m a , esse s i s t e m a c o n s i s t e também n u m " p r o c e s s o g e r a d o r q u e
p r o d u z u m a infinita v a r i e d a d e de expressões h i e r a r q u i c a m e n t e Nas línguas, diferentes sistemas coexistem (fonoló-
gico, morfológico, lexical, sintático), estabelecendo
estruturadas".
diferentes níveis de estrutura para os enunciados,
e em cada nível as unidades são analisáveis em
Para e x p l i c a r as semelhanças e as diferenças q u e as línguas
unidades menores, havendo unidades e níveis sem
h u m a n a s a p r e s e n t a m , C h o m s k y d e f e n d e q u e as línguas h u m a n a s
interpretação semântica, e que têm o objetivo de
o b e d e c e m a princípios e parâmetros. O s princípios, p r e s e n t e s n o I levar à construção das formas, e outras unidades e
e s t a d o inicial d a F a c u l d a d e d a L i n g u a g e m , o u seja, n a Gramática níveis com interpretação semântica.
U n i v e r s a l , são os e l e m e n t o s c o m p a r t i l h a d o s p o r todas as línguas e
No funcionamento desses sistemas, cada língua faz
são inatos. Os parâmetros, por s u a v e z , são a d q u i r i d o s via seleção,
uso de meios finitos, mas os processos combinató-
p o r m e i o do contato d o s seres h u m a n o s c o m os d a d o s prove- rios permitem o uso ilimitado desses recursos. Por
n i e n t e s d a língua d e s u a c o m u n i d a d e , e são, p o r t a n t o , variáveis. exemplo, com as palavras (que são limitadas num
dado momento para um dado falante) e com as
E m r e s u m o , u m a língua é o resultado d a união d e fatores ge- construções da sintaxe (que são em número limitado
néticos, u m a predisposição característica d a espécie, e d e fatores na língua), os falantes fazem combinações que são
d o m e i o a m b i e n t e , o u s e j a , os dados a q u e a criança é e x p o s t a potencialmente ilimitadas em extensão, porque as
d u r a n t e a infância. combinações têm a propriedade da recursividade.

O e s q u e m a a b a i x o s i s t e m a t i z a os c o n c e i t o s v i s t o s até o Assim é que, dado um substantivo, como livro, po-


momento: demos fazer incidir sobre ele um atributo, como em
livro azul, e sobre o sintagma resultante podemos
fazer incidir outro atributo, como em livro azul do
Gramática U n i v e r s a l ( e s t a d o inicial d a F a c u l d a d e d a L i n g u a g e m ) Henrique, e esse novo sintagma poderá ainda receber
-I- outro atributo, como em livro azul do Henrique que ele
ganhou de presente, e assim por diante.
D a d o s (linguísticos) do a m b i e n t e
N o intuito de argumentar a favor d a F a c u l d a d e d a L i n g u a g e m ,
Língua (gramática p a r t i c u l a r ) apresento a seguir u m e x e m p l o de c o m o é c o m p l e x a a natureza dos

A o usar o termo " r e c u r s i v o " , C h o m s k y se refere à propriedade das línguas h u m a n a s de dados a que a criança t e m acesso durante o processo de aquisição
formar u m número ilimitado de e x p r e s s õ e s , pelo uso reiterado das regras de c o m b i n a ç ã o do
n ú m e r o finito de elementos que as constituem U m e x e m p l o de r c c u r s i v i d a d e pode ser visto
linguística é c o m p l e x a .
no seguinte encadeamento de sentenças: Luca fez um gol. Alexandre disse que Luca fez um
gol. Bruna não sabe se é verdade que Alexandre disse que Luca fez um gol. Belinha disse que S u p o n h a m o s , por e x e m p l o , q u e u m a criança esteja apren-
Bruna não sabe se é verdade que Alexandre disse que Luca fez um gol l-m síntese, podemos
formar sentenças maiores infinitamente, apenas acrescentando novos termos d e n d o c o m o funciona a negação e m português e t e n h a contato

52 53
com os dados a seguir. Suponhamos lainluMu que a Faculdade liegra II: Para uma oração com negação, coloque o termo não depois
do primeiro consliluinle. .. . . i .
da Linguagem não exista e que a criança tenha de "aprender" as
regras da hngua usando habilidades mentais gerais, tais como a
Vamos considerar, então, que a criança tenha entendido o que
analogia:
sM) os constituintes de uma sentença e se depare com a Situação 3.
Situação 1
a. O amigo deu o brinquedo. Situação 3
b. O amigo não deu o brinquedo. O amigo do João que está dodói quer dar o brinquedo.

Caso a criança aplicasse a regra II, teríamos a oração:


Analisando sentenças como as da Situação 1 acima, a criança *0 amigo do João não que está dodói quer dar o brinquedo.
poderia inferir que, para fazer uma negação em português, seria
necessário que se colocasse o vocábulo não depois da primeira Sabemos que crianças não cometem esses enganos quando
palavra da oração, tal como ocorre em (b). Estamos pressupondo estão no processo de aquisição de sua língua. E sabemos tam-
que a criança vá fazer uma analogia, mas que domine o conceito de bém que não é necessário estudar formalmente português nem
"palavra". Hipoteticamente, a regra que a criança formularia seria: mesmo ser alfabetizado para não se construir uma oração como
a reproduzida acima.
Regra I: Para fazer uma negação, coloque a palavra não depois da
primeira palavra de uma sequência de palavras. Se as crianças não usam a analogia como forma de aprender o
funcionamento sintático de suas línguas, o que as guia no processo
No entanto, o que pensaria a criança ao se deparar com uma natural de aquisição? Se ninguém ensina às crianças conceitos
oração como O amigo do João deu o brinquedo e, a partir dela, queira como palavras, constituintes, relativização e negação, como elas
fazer uma sentença negativa? desenvolvem tal conhecimento e já os usam com perfeição desde
a mais tenra idade?
Situação 2
O amigo do João deu o brinquedo. A resposta para essas questões decorre de que o conhecimen-
to gramatical de uma língua, apesar de ser algo extremamente

No caso do contexto na Situação 2, a criança teria de, no mí- complexo, se desenvolve nas crianças no mundo inteiro porque

nimo, identificar o conceito de "constituinte" para acertar como elas possuem um aparato mental inato, denominado Faculdade da

se faz a negação em português, pois, caso recorresse à Regra 1, Linguagem, que irá guiar a aquisição linguística de forma rápida,

a oração produzida seria: *0 amigo não do João deu o brinquedo. perfeita e natural.
Sabemos que as crianças, ao aprenderem português, jamais co- Em suma, o que se pretende evidenciar com os exemplos
metem esse tipo de engano. acima é que as crianças, sem terem passado por qualquer ensino
formal, parecem manejar conceitos gramaticais como sujeito, es-
Diante da Situação 2, a criança formula a seguinte regra:

54 55
trutura de constituintes, negação, entre muitos outros. Por sermos A palavra ,ço//õ.s criada pela criança revela vários aspectos do
dotados de conhecimentos linguísticos inatos, somos guiados por seu conhecimento linguístico:
nossa Faculdade da Linguagem para "filtrar" os dados externos
e "construir" nossa língua. Por sermos dotados de conhecimen- a) conhecimento do uso afetivo do diminutivo;

tos linguísticos inatos, somos guiados por nossa Faculdade da


b) conhecimento do radical da palavra golfinhos /golf-/;
Linguagem para "filtrar" os dados externos e "construir" nossa
língua, o que nos leva a retomar as palavras de Chomsky: Por pos- c) conhecimento da flexão de plural no português;
suir uma Faculdade da Linguagem, uma habilidade linguística inata,
d) evidência da criatividade linguística da criança, que, usando
cada falante é capaz de internalizar um processo gerador que produz
sua gramáuca inata, inventa uma palavra que nunca ouviu ante-
uma infmita variedade de expressões. riormente.
Vejamos, a seguir, uma breve exposição de dados reais de
fala em que o complexo conhecimento linguístico das crianças é Outro exemplo bastante comum, e que denota o amplo conhe-
evidenciado: cimento linguístico que as crianças detêm sobre sua língua, é a forma
como elas aprendem a flexionar verbos e a usar certas generalizações
A. CONHECIMENTO MORFOLÓGICO linguísticas. Em português, verbos regulares terminados em -er, ao
serem flexionados na primeira pessoa do pretérito perfeito, apre-
Vários estudos linguísticos nos mostram que a formação de sentam a flexão -/, que exprime tempo, modo, número e pessoa, tal
palavras no diminutivo pode indicar grau, pequena dimensão, mas como em comi, bebi e vendi. A aiança entende esse funcionamento
também pode ser usada para indicar alguma avaliação do falante da língua e o aplica ao verho fazer, que é conjugado como/oz/.
em relação a um dado objeto, ou simplesmente como uma forma
de demonstrar afetividade. Comer-> comi
Beber-> Bebi
Sabendo inconscientemente da forma e dos usos do diminu- Fazer -> Fazi
tivo, uma criança de 5 anos cria a palavra "golfo" para se referir
a "golfinhos". As generalizações, no caso da aquisição das formas flexio-
nadas, revelam como a mente das crianças seleciona muito bem
Esses golfos não aparecem. que tipo de informações devem ser usadas. Ao colocar a flexão
no verbo fazer, formando fazi, a criança usa com perfeição os
Essa oração foi proferida quando essa criança estava em um conhecimentos que possui sobre os morfemas do verbo fazer,
passeio de barco, há horas e os seus pais haviam lhe prometido sobre o local e a função das desinências modo-temporais e
que, durante o passeio, ela iria avistar "golfinhos". Como eles número-pessoais do português, além de utilizar com perfeição
não apareciam e a criança já estava brava, ela não se refere aos os conceitos de temporalidade na língua.
mamíferos como golfmhos, e, sim, como golfos.

56
B. CONHECIMENTO SINTÁTICO E FONOI.ÓCICO iodos esses exemplos ilustram o saber inconsciente das
crianças e mostram que nosso cérebro, desde a infância, nos guia
O conhecimento sintático das crianças se evidencia de inú a reconhecer e a utilizar valores e saberes linguísticos. Outro as-
meras formas. Citarei apenas dois exemplos, mas qualquer pessoa pecto do conhecimento linguístico inato que se revela nos dados
que conviva com crianças a partir de dois anos tem certamente acima é que seres humanos são capazes de produzir e interpretar
vários casos semelhantes para contar. sentenças nunca antes vistas. Fazemos isso porque nossa Facul-
dade da Linguagem nos permite reconhecer, compreender e criar
I. O caso do "Vi adulto" sentenças bem formadas na nossa língua.
Brasília tem muitos viadutos.
PROPRIEDADES BÁSICAS DAS LÍNGUAS HUMANAS
A criança ouve a palavra "viaduto". Como não sabe que essa
é uma palavra do português, estabelece relação entre o vocábulo Nesta seção, mostraremos, com mais detalhes, o funciona-
"viaduto" com a expressão "ver adulto" e cria uma oração como: mento do sistema linguístico sob a ótica gerativista. Como mencio-
nado na seção anterior, o sistema gerativo produz uma variedade
Nessa cidade só tem vi adulto, não tem vi a criança.
infinita de expressões hierarquicamente estruturadas e recursivas.
Esses conhecimentos serão fundamentais para que possamos
I I . O caso do "Seu patia"
entender com mais profijndidade o que é a gramática de uma
A criança, neste caso, ouviu a mãe dizendo que daria "homeo-
língua e por que uma língua não é uma lista de regras aleatórias.
patia" para o filho. A criança faz uma análise sintática imediata
Veremos também alguns conceitos fundamentais para nos auxiliar
do sintagma nominal, seguindo seus conhecimentos sobre a
na compreensão do funcionamento das línguas humanas.
organização do português: artigo, pronome possessivo e depois
substantivo ("o meu remédio, o meu patia, o seu patia"). Em suma, Conforme já dito, uma língua é fruto do saber inconsciente
a criança reconhece a estrutura do sintagma e gera outro sintag- do falante, que consiste de princípios invariantes e de valores
ma, em seguida. estabelecidos por parâmetros de variação adquiridos por meio
da exposição aos dados linguísticos de uma dada comunidade.
Mãe, me dá o "seu patia". Precisamos, então, reconhecer quais são as propriedades básicas
compartilhadas pelas línguas humanas. O conhecimento sobre
C. CONHECIMENTO SEMÂNTICO tais propriedades é muito importante para o professor de língua
portuguesa, pois é a partir do entendimento do conceito de gra-
Pai, você que trabalha na Receita Federal, me ensina afazer bolo.
mática como sistema regido por princípios específicos que podem
ser preparadas aulas que possibilitem ao aluno compreender o
O conceito de receita utilizado pela criança é o de "forma
que é o sistema linguístico gerativo.
de se preparar um tipo de comida", e não como o conjunto de
tributos arrecadados pelo Estado.

58 59
ELEMENTOS BÁSICOS DA F O R M A Ç Ã O DA O R A Ç Ã O III Seleção do siijcilo (qiiaiuli) houver)

Sintagma Verbal
A t é o p r e s e n t e m o m e n t o , a r g u m e n t e i d e várias f o r m a s a
favor d e u m c o n h e c i m e n t o l i n g u í s t i c o i n a t o , c a p a z de nos g u i a r
João verbo
d e s d e a i n f a n d a na a q u i s i ç ã o de u m a l í n g u a . Para os pesquisadores
g e r a t i v i s t a s , há as s e g u i n t e s etapas na f o r m a ç ã o de u m a o r a ç ã o , viu a Maria
c o n t e n d o u m p r e d i c a d o verbal:^

IV - Seleção dos adjuntos (quando houver)


a. seleção do verbo;
SV
b. seleção dos complementos verbais (quando houver);
c. seleção do sujeito (quando houver);
Sintagma Adverbial Sintagma Verbal
d. seleção dos adjuntos (quando houver).
Ontem ^..-^"^^^
João verbo
U s a r e m o s as f a m o s a s r e p r e s e n t a ç õ e s a r b ó r e a s g e r a t i v i s t a s
p a r a d e m o n s t r a r c o m o s e d á a p r o j e ç ã o d o s e l e m e n t o s q u e for- a Maria
m a m a o r a ç ã o " O n t e m J o ã o v i u a Maria"^:
U m a p ergu nta que c o n s t a n t e m e n t e o u ç o d o s m e u s alunos -
futuros professores - e m r e l a ç ã o à r e p r e s e n t a ç ã o a r b ó r e a é s o b r e
I - Seleção do verbo
a n e c e s s i d a d e o u a efi cáci a d e levar tais r e p r e s e n t a ç õ e s para a
Verbo
sala d e aula na E d u c a ç ã o B á s i c a . C o n s i d e r o n ã o ser i m p o r t a n t e
levar e s s e t i p o de m o d e l o d e análise p a r a os a l u n o s nesse nível
de e n s i n o , pois a p r e o c u p a ç ã o c o m a c o r r e t a r e p r e s e n t a ç ã o da
Viu á r v o r e p o d e t i r a r o foco dos p r i n c i p a i s a s p e c t o s a s e r e m e s t u -
d a d o s q u a n d o se a p r e s e n t a m t e m a s r e l a c i o n a d o s à f o r m a ç ã o
II - Seleção dos complementos verbais
d a o r a ç ã o , quais s e j a m : a i m p o r t â n c i a do v e r b o c o m o e l e m e n t o
Verbo f o r m a d o r do predicado v e r b a l e a i m p o r t â n c i a de se p e r c e b e r
que é a p a r t i r do v e r b o q u e se f o r m a m as o r a ç õ e s , por m e i o das
viu a Maria
seleções gramaticais.

E s s a s estru tu ras e m q u e o v e r b o s e i e c i o n a os a r g u m e n t o s , o u
2 Considerando que a presente obra pretende fazer uma "transposição didàtica" entre o conhe-
s e j a , e m que o v e r b o é o p r e d i c a d o r na o r a ç ã o , s ã o d e n o m i n a d a s
cimento científico e o conhecimento linguistico necessário para que os usuários da língua
compreendam processos sintéticos básicos, optei por nâo trazer discussões teóricas acerca pelas g r a m á t i c a s t r a d i c i o n a i s d e o r a ç õ e s c o m p r e d i c a d o v e r b a l .
dos fenómenos analisados.
3 Para uma avaliação critica do método tradicional de ensino dos termos da oração e uma A s s e l e ç õ e s gramati cai s d o s v e r b o s o c o r r e m e m d o i s níveis: a) no
proposta centrada no "predicador", recomendo a leitura do capítulo Termos da oração, de
M a ria Eugênia Duarte (2007).

60 61
nível semântico e b) no nível Cíitegoriiil. Assim, um verbo seleciona Ic) cheguei a /ÍIÍI(ÍÍ. . .
Icl) 'De chegou.
o número de argumentos (ou complementos) que irá entrar na
oração, bem como estipula a forma desses complementos (se é um
A pergunta que devemos nos fazer é: c o m o todos nós que
substantivo ou uma expressão formada por artigo + substantivo,
falamos português sabemos que as orações em (Ia) e (Ib) são
se é u m a expressão iniciada por uma preposição ou se não vai
gramaticais e que as orações em (Ic) e (Id) são agramaticais? Sa-
haver argumentos) e o significado desses argumentos.
bemos que nenhum falante de português, independentemente de
Vejamos, a seguir, c o m o são formadas as orações sob a ótica escolaridade ou de idade, irá produzir orações como (Ic) e (Id).
do verbo como predicador na oração e c o m o podemos usar nos-
O verbo chegar, nas orações em (Ia) e (Ib), significa "atingir o
so conhecimento linguístico para formar orações. O objetivo da
termo de uma trajetória, de um percurso de ida e/ou de vinda" e
reflexão que iniciaremos a partir de agora será o de trazer à tona
tais sentenças são boas porque obedecem ao número de argumen-
nosso conhecimento linguístico e sistematizá-lo a fim de melhor
tos do verbo, que é monoargumental, sendo preenchido por um
compreendê-lo"*.
substantivo (As cartas) ou por u m pronome (Eu). Vemos também
Pensemos em orações formadas com os seguintes verbos: que os termos adjuntos "de manhã" e "ontem" contribuem para o
significado da oração, mas que não são selecionados pelo verbo.
Chegar Amar Gostar
As orações em (Ic) e (Id), por sua v e z , não são boas porque

infinitas orações podem ser formadas a partir desses ver- não o b e d e c e m ao número de argumentos do verbo chegar, que,

bos. Todas as sentenças que falantes do português imaginarem na acepção mencionada, só seleciona um argumento. Portanto,
Eu cheguei a maçã é uma oração agramatical. j á em (Id), o argu-
obedecerão a certos parâmetros, a depender do verbo escolhido.
mento selecionado não apresenta nem o tipo semântico nem o
Vejamos exemplos de orações formadas com cada um dos
tipo sintático requisitado pelo verbo.
verbos citados anteriormente para que possamos compreender
o processo de formação de orações: O mesmo tipo de raciocínio pode ser feito para orações com
outros tipos de verbo, tal como o verbo amar no Caso II:
Caso 1 - verbo chegar
Exemplos de orações gramaticais: Caso II - verbo amar
la) Eu cheguei atrasado ontem. Exemplos de orações gramaticais:
Ib) As cartas chegaram de manhã. lia) Eu amo minha família.
lib) Os adolescentes amam histórias de terror

Exemplos de orações agramaticais:


Exemplos de orações agramaticais:
lie) 'As cartas amam chocolate.
lid) M menina ama bonecas ao João.
4 Para o aprofundamento de questSes relativas á formação da sentença, recomendo a leitura
da obra de Kato e Nascimento (Orgs.) A construção da sentença. A gramática do Português
falado no Brasil Volume 2. SSo Paulo: Contexto, 2015.

62 63
Caso III - verbo gostar l<iiiii.i(,á(> 1 - ScU'(,iH) (lo verbo

Exemplos de orações gramaticais:


2 - Scicção dos argumentos: dependendo do tipo do verbo
Ília) Eu gosto da minha família.
Número de argumentos
111b) Os adolescentes gostam de chocolate.
- Tipo sintático
Exemplos de orações agramaticais:
lllc) *Eu gosto minha família. - Tipo semântico

llld) *Chocolate gosta adolescente.


3 - Seieção do sujeito

Nos exemplos presentes nos contextos I , II e III acima, po- 4 - Inserção de termos adjuntos

demos perceber que, quando usamos os verbos da nossa língua,


sabemos quantos argumentos esse verbo vai selecionar: se um
Considerando que são inatos os conhecimentos acerca da
argumento, para o verbo chegar, ou dois argumentos, para os ver-
formação de orações, podemos concluir que sabemos, inconscien-
bos amar ou gostar (ou até mesmo três argumentos, para o verbo
temente, que verbos selecionam argumentos e vamos aprendendo,
colocar). Sabemos, ainda, de que tipo semântico esses argumentos
cada vez mais, quais tipos de verbos selecionam quais argumentos,
devem ser: animados, inanimados, humanos, não humanos.
assim como vamos ampliando nosso repertório lexical.
Ao mesmo tempo, sabemos que uma oração como *Chocolate
O estudo da formação de orações deve ocorrer nas aulas
gosta adolescente não é gramatical na nossa língua por apresentar
de gramática não como algo que se refere ao que os alunos não
problemas sintáticos (o verbo "gostar" seleciona argumentos in-
sabem, mas sim como algo que trata de um tema que os alunos já
troduzidos pela preposição "de") e também devido a problemas
sabem. Toda aula deve trazer à tona o conhecimento que os alunos
de natureza semântica, relacionados com nosso conhecimento de
já dominam com perfeição, pois eles usam esse conhecimento ao
mundo. O verbo gostar, por ter sua referência relacionada a uma
formar orações em sua língua, ainda que não tenham consciência
experiência psicológica, seleciona como um de seus argumentos
do quanto sabem. Cientes do conhecimento linguístico inato,
elementos animados.
podemos partir do conhecimento linguístico que os alunos já
Outro conhecimento inato que temos sobre nossa língua e possuem para depois apresentar a eles alguns possíveis verbos
que se revela na formação de qualquer oração é o conhecimento ou usos dos verbos que eles ainda não conheçam ou que sejam
sobre o tipo categorial que os argumentos verbais apresentarão. específicos de uma certa variedade da língua.
No caso dos verbos amor e chegar, os argumentos serão sintagmas
O aluno sabe formar orações, mas não tem plena consciência
nominais; no caso do complemento do verbo gostar, os argumentos
dos mecanismos que usa para tal fim. Trazer à tona e sistematizar
serão sintagmas preposicionados.
tais conhecimentos deveria ser um dos objetivos principais de
A tabela abaixo sistematiza, portanto, o que o nosso conhe- uma aula de gramática. Seguindo essa premissa, devemos mos-
cimento linguístico revela sobre a formação de orações: trar para os alunos o quanto eles sabem e estimulá-los a tomar

64 65
.1. lYonominiiiizíiçãc): j i . rli.i-r i . ;
consciência de todos os conhecimentos que possuem em relação
Noam Chomsky fundou os estudos gerativistas.
à formação de orações.
íilc fundou os
i;ie os fundou. (variedade padrão do português)
LÍNGUA ORGANIZADA EM CONSTITUINTES COM ESTRUTURA Ele fundou eles. (variedade coloquial do português)
HIERÁRQUICA

Como podemos ver pelos exemplos acima, um constituinte


Outra propriedade fundamental das línguas é sua organização
pode ser substituído por um pronome (Chomsky = ele e Os estudos
em constituintes, com estrutura hierárquica. Veremos como a
gerativistas = eles ou os), a depender da variedade do português
linguística moderna entende cada um desses conceitos de forma
(|ue se considere. Ao mesmo tempo, um pronome não pode
separada: primeiro, veremos o que são os constituintes e, depois,
substituir somente parte de um constituinte, como mostram os
o que significa quando dizemos que eles se organizam de forma
exemplos abaixo:
hierárquica em uma oração.

Um constituinte pode ser compreendido como uma palavra Noam Chomsky fundou os estudos gerativistas.
*EIe Chomsky fundou eles gerativistas
ou um grupo de palavras que funcionam como uma única unidade
dentro da oração. Muitas vezes podemos ser levados a pensar que
Outros contextos em que podemos ver "a olho nu" como
uma oração é somente um conjunto de palavras colocadas numa
funcionam as estruturas de constituintes das orações são os de
dada ordem. No entanto, quando nos aprofundamos no estudo
pergunta Qu-, tais como as apresentadas abaixo. Podemos notar
das propriedades das orações, vemos que há mais organização
que cada pergunta e cada resposta correspondem a uma parte da
na oração do que podemos imaginar.
estrutura de constituintes em que a sentença se estrutura:
Analisemos a oração abaixo para entendermos como os
constituintes se comportam dentro de uma oração: {{Noam Chomskyl {fundou {os estudos gerativistasjjl.

Noam Chomsky fundou os estudos gerativistas. b. Perguntas QU-


- O que Noam Chomsky fundou?
Os estudos gerativistas.
Intuitivamente, sabemos que essa oração pode ser dividida
em três partes: Noam Chomsky + fundou + os estudos gerativistas. - Quem fundou os estudos gerativistas?
E podemos comprovar a existência dessas partes, as quais deno- Noam Chomsky.
minamos constituintes. Isso é possível a partir de alguns testes
- O que aconteceu?
que nos revelam que as orações são, de fato, organizadas em
Noam Chomsky fundou os estudos gerativistas.
constituintes.

Vejamos alguns desses testes usados para evidenciar as es-


truturas de constituintes das línguas:

66 67
A s o r a ç õ e s c l i v a d a s do t i p o "ser/é/lbi... q u e " t a m b é m nos Uísj p o d e m o d i f i c a r p o t e n c i a l m e n t e os d o i s c o n s t i t u i n t e s q u e o
r e v e l a m q u e n o s s a g r a m á t i c a m e n t a l o r g a n i z a a o ração e m c o n s p i c c e d e m e, por esse m o t i v o , as o r a ç õ e s p o d e m a p r e s e n t a r m a i s
tituintes: , <le u m s e n t i d o . V e j a m o s a sistematização d e s s a s possibilidades, a
seguir, às quais c h a m a r e m o s de C o n t e x t o A e C o n t e x t o B:
c. Orações clivadas:
- Foi Noam Chomsky que fundou os estudos gerativistas.

C o n t e x t o A : modificação do constituinte mais próximo


A s o r a ç õ e s d e topi c a l i z a ç ã o, c o m o a a p r e s e n t a d a a b a i x o ,
t a m b é m p e r m i t e m i d e n t i f i c a r os c o n s t i t u i n t e s d a oração. a. João viu ja menina] [com o binóculo].

d. Topicalização:
- Os estudos gerativistas, Noam Chomsky fundou.
b. Alugo apartamento [com banheiro] [perto da UnB].

T o d o s os f a l a n t e s d e p o r t u g u ê s , i n d e p e n d e n t e m e n t e d e
e s c o l a r i d a d e , s a b e m das p o s s i b i l i d a d e s e i m p o s s i b i l i d a d e s c o m b i -
natórias d e sua língua. Isso porque, c o m o já v i m o s a n t e r i o r m e n t e , C.José entrou [na sala] [de muletas].

s o m o s d o t a d o s de u m a c o m p e t ê n c i a linguística inata.

V e j a m o s , agora, a q u e s t ã o da h i e r a r q u i a dos c o n s t i t u i n t e s -
m a i s u m a das p r o p r i e d a d e s das línguas h u m a n a s . A m e l h o r f o r m a D e acordo c o m o q u e m o s t r a m as setas, os c o n s t i t u i n t e s [com
de v e r m o s c o m o a h i e r a r q u i a dos c o n s t i t u i n t e s sintáticos f u n c i o n a o binóculo], [perto da UnB] e [de muletas] m o d i f i c a m , r e s p e c t i v a m e n -
é e s t u d a r a a m b i g u i d a d e q u e t a l h i e r a r q u i a p o d e criar, d e v i d o às te, os c o n s t i t u i n t e s f o r m a d o s por [a menina], [com banheiro], [na
p o s s i b i l i d a d e s de ligação d e u m c o n s t i t u i n t e a u m o u m a i s c o n s - sala]. C o n s i d e r a n d o e s s a p r i m e i r a p o s s i b i l i d a d e d e o r g a n i z a ç ã o
tituintes que o precedem. São exemplos de orações ambíguas: hierárquica, os s e n t i d o s das o r a ç õ e s s e r i a m , r e s p e c t i v a m e n t e :

a. João viu a menina com o binóculo. a. João viu |a menina] (com o binóculo|. = João viu a menina que
segurava o binóculo.
h. Alugo apartamento com banheiro perto da UnB.
b. Alugo apartamento [com banheiro] [perto da UnB]. = Aparta-
C.José entrou na sala de muletas. mento com banheiro perto da UnB é alugado. (Essa situação é
impossível de acordo com o nosso conhecimento de mundo, mas
é a leitura que dá uma interpretação engraçada para a sentença.)
Nas três sentenças a p r e s e n t a d a s , a a m b i g u i d a d e se dá d e v i -
do à d u p l a p o s s i b i l i d a d e d e o r g a n i z a ç ã o d a s entença. O ú l t i m o C.José entrou [na sala] [de muletas]. = A sala em quejoão entrou
c o n s t i t u i n t e da oração - /com o binóculol, [perto da UnBj. {de mule- é uma sala de muletas.

68 69
No e n t a n t o , caso a o r d e n a ç ã o liierárc|uica seja o u t r a , nov.is .ii(|uitetura por trás da o r g a n i z a ç ã o das o r a ç õ e s . E n t r e os e l e m e n -
interpretações serão p o s s í v e i s . Vejamos: tos q u e f a z e m parte d e s s a a r q u i t e t u r a estão os c o n s t i t u i n t e s d e
uma o r a ç ã o e a h i e r a r q u i a e s t a b e l e c i d a e n t r e t a i s c o n s t i t u i n t e s .

Contexto B: modificação do verbo da oração É i n t e r e s s a n t e t a m b é m o b s e r v a r a relação d i r e t a que e x i s t e


(MUre c o m b i n a ç õ e s d e c o n s t i t u i n t e s e m u d a n ç a s de s e n t i d o .
a. [João Iviíi [a meninal] [com o binóculol].
C o n f o r m e v i s t o a c i m a , as p o s s i b i l i d a d e s d e relações e n t r e os
c o n s t i t u i n t e s são d e t e r m i n a n t e s p a r a a interpretação semântica
(la sentença. O fato de os s e r e s h u m a n o s p o s s u í r e m t o d o e s s e
c o n h e c i m e n t o s e m t e r c o n s c i ê n c i a do q u a n t o s a b e m e de c o m o
b. [Alugo [apartamento [com banheiro] ] [perto da UnBJj. u s a m t a i s c o n h e c i m e n t o s s ó p o d e s e r e x p l i c a d o por esse s a b e r
g r a m a t i c a l inato d e n o m i n a d o F a c u l d a d e da L i n g u a g e m .

A t é agora v i m o s a l g u m a s p r o p r i e d a d e s das línguas h u m a n a s :


c o n h e c i m e n t o s inatos p a r a a formação de o r a ç õ e s e língua c o m o

c. [José [entrou [na sala] [de muletas]]. uma estrutura organizada em constituintes ordenados hierarqui-
c a m e n t e . Nas seções s e g u i n t e s , v e r e m o s m a i s d o i s c o n c e i t o s r e l e -
vantes para a c o m p r e e n s ã o dos sistemas linguísticos: a criatividade
e a variação linguística. Por fim, r e f l e t i r e m o s s o b r e as diferenças
e n t r e a fala e a e s c r i t a e d i s c u t i r e m o s os o b j e t i v o s do e n s i n o d e
Considerando essa segunda possibilidade de organização língua na E d u c a ç ã o Básica s e g u n d o as d i r e t r i z e s oficiais.
hierárquica, os s e n t i d o s d a s o r a ç õ e s s e r i a m , r e s p e c t i v a m e n t e :

CRIATIVIDADE COMO PROPRIEDADE DA FACULDADE DA LINGUAGEM


a. João viu a menina com o binóculo = Foi com o binóculo que
João viu a menina.
A c r i a t i v i d a d e , tal c o m o c o n c e b i d a n a T e o r i a G e r a t i v a , sig-

b. Alugo, perto da UnB, apartamento com banheiro = Pretendo n i f i c a q u e os seres h u m a n o s são c a p a z e s d e u s a r a língua d e
alugar apartamento com banheiro e que seja próximo à UnB. m o d o c r i a t i v o , no s e n t i d o d e que, u s a n d o a e s t r u t u r a da língua,
e l e m e n t o s finitos serão c a p a z e s de p r o d u z i r s e n t e n ç a s novas infi-
C.José entrou na sala de muletas = João entrou na sala usando
n i t a m e n t e , i n d e p e n d e n t e m e n t e de e s t í m u l o p r é v i o . A p r o f e s s o r a
muletas.
Lúcia L o b a t o ( 2 0 1 5 : 3 3 - 3 5 ) lista as s e g u i n t e s p r o p r i e d a d e s c o m o
r e l a c i o n a d a s à c r i a t i v i d a d e linguística:
E m r e s u m o , o q u e a análise das interpretações p o s s í v e i s n o s
C o n t e x t o s A e B e v i d e n c i a é que, apesar de, s u p e r f i c i a l m e n t e , u m a
o r a ç ã o p a r e c e r u m g r u p o de palavras e m o r d e m linear, há u m a

70
(i) Âmbito ilimitado de temas: os falantes não estão limitados a As propriedades mencionadas por Lúcia Lobato nos mos-
falar sobre certos assuntos e são livres para expressar na língua tram vários aspectos das línguas humanas. É relevante notar, por
qualquer tipo de tema. exemplo, que conceber a língua como um sistema criativo nos
leva a evitar crenças de que as línguas humanas são aprendidas
(ii) Âmbito ilimitado de situações: os falantes não estão limitados
a se comunicar na língua em certas situações, e sabem adequar por repetição, ou que os seres humanos dependerão, exclusiva-
o uso da língua a novas situações de discurso. mente, dos dados externos para desenvolverem suas habilidades
linguísticas.
(iii) Independência da referência em relação ao contexto prag-
mático: os falantes não estão limitados a falar do que existe ou Na verdade, o que ocorre é que, apesar de os dados externos
ocorre no momento presente, e são livres para falar do presente, com que se tem contato durante a infância serem desordenados
passado ou futuro, de objetos e eventos concretos ou abstratos, e extremamente complexos, conseguimos adquirir uma língua
e mesmo fictícios.
com perfeição em um curto período de tempo.
(iv) Independência em relação a estímulos: os falantes não estão
limitados a usar a língua sob o efeito de estímulos externos ou UNGUA COMO FENÓMENO INSERIDO NA SOCIEDADE
estados emocionais internos e são livres para expressar mensa-
gens independentes desse tipo de controle. Desde o início desta obra, estamos argumentando sobre o
fato de o conhecimento linguístico ser fruto de uma capacidade
(v) Âmbito ilimitado de combinações: a língua permite ao falante
fazer um número potencialmente infinito de combinações de humana geneticamente determinada - a Faculdade da Linguagem.
palavras para formar mensagens, daí ser potencialmente infinito Afirmamos também que uma língua é o resultado da interação
o número de mensagens, e não haver, para nenhuma língua, a entre esse saber inato e os dados do ambiente. Considerando esse
maior frase.
entendimento sobre o que é o processo de aquisição linguística,
podemos entender que a variação é algo inerente ao processo
(vi) Paridade de pensamentos: a percepção da mensagem pelo
ouvinte cria na sua mente pensamentos similares aos do falante. de aquisição.

Se cada ser humano tem experiências individuais durante


(vii) Liberdade de escolha de função social: o falante pode usar a
língua somente com função cognitiva (quando usa a língua como a aquisição de línguas, os dados a que as crianças são expostas
suporte de seu pensamento e sem função social), mas pode tam- jamais serão exatamente iguais. A Faculdade da Linguagem é a
bém usar a língua para diferentes funções sociais - função comu- mesma para todos os seres humanos, mas a experiência é individu-
nicativa (para transmitir informação, seja de maneira altruísta ou
al. Sendo assim, os dados aos quais a criança tem acesso durante
não), função lúdica (para brincar), função emotiva (para transmitir
emoções), função conativa (para influenciar o comportamento do o processo de aquisição podem até ser bastante parecidos, mas
destinatário), função poética (para criar efeito artístico), função nunca serão idênticos. Sob esse ponto de vista, a variação é algo
fática (para manter o contato social, sem objetivo primordial de inerente às línguas humanas.
transmitir informação) e função metalinguística (para falar da
própria língua).

72 73
Há também aspectos sociais que inlluenciam a variação, tais Analisemos, a seguir, as|)ectos da concordância nominal. A
como: concordância nominal é um dos contextos em que o uso ou o
não uso de certas marcas é muito estigmatizado na sociedade
a. Fatores diatópicos brasileira. Vejamos as diferenças entre as sentenças abaixo^:
Fatores de variação que ocorrem devido a questões geográficas.
Contexto I - Português padrão
b. Fatores diafásicos a. As professoras estudiosas
Fatores de variação que ocorrem devido às modalidades de ex- b. ??As professora estudiosa
pressão linguística, tais como a língua faiada e a língua escrita.

c. Fatores diastráticos Dados como (Ib) são bastante estigmatizados em nossa so-
Fatores de variação que ocorrem devido a diferenças sociais. ciedade. Isso porque, de acordo com o que preconizam as gramá-
ticas, todos os elementos ligados ao núcleo do sintagma devem
Scherre (2012) discute questões relacionadas ao preconceito apresentar as mesmas marcas de concordância, tal como em (la).
linguístico e mostra que esse tipo de preconceito não tem a ver, Expressões como (Ib) são, portanto, consideradas inadequadas
diretamente, com as noções de certo e errado das gramáticas do ponto de vista da concordância.
normativas, mas com preconceitos relacionados a classes sociais.
Usando dados da expressão variável do imperativo (fale/digaA^á Contexto II - Português coloquial
a. As professora estudiosa
versus fala/dizA^ai) como argumentos que evidenciam o precon-
b. As menina bonita
ceito linguístico no Brasil, a autora mostra que, se o preconceito c. *A professora estudiosas
estivesse somente ligado aos preceitos normativos da gramática d. "A meninas bonita
tradicional, deveria haver igual julgamento preconceituoso dos
falantes em relação aos usos do imperativo. No português coloquial, são perfeitamente possíveis sintag-
ma nominais como (lia, b), em que somente o determinante da
As gramáticas tradicionais preconizam que, se o sujeito da
oração - ou seja, o artigo - apresenta a marca de plural.
oração for o pronome "você", as formas do imperativo devem ser:
fale-diga-vá. Contudo, o uso das formas fala-diz-vai (tal como em O que queremos salientar, em relação aos exemplos pre-
Fala você em vez de Fale você, Diz você em vez de Diga você...) ocorre sentes no contexto I I , é que (lia) e (ilb) representam um as-
de maneira ampla no português do Brasil, sem sofrer correção e pecto do sistema linguístico do português coloquial, mas (11c)
sem ser objeto de discriminação na sociedade. Devido ao fato de e (lld), por outro lado, são construções agramaticais dentro
esse uso do imperativo não ser característico de uma dada par- dessa variedade.
cela da população, considerada de baixa renda e, às vezes, com
Nos dados em análise, vemos que é possível marcar con-
menos acesso à escolarização, ninguém considera essa variação
cordância plural de todo o constituinte colocando a marca de
linguística "feia", "deselegante" ou "inadequada".
A comparação entre o português e o inglês foi inspirada em Scherre (2012).

74 75
plural apenas no artigo. No entanto, caso se coloque a marca c\v ver eiurc si sem a necessidade de anulá-las. O aluno,
plural somente no adjetivo à esquerda, tal como em *A professora ao comprceiuicr a linguagem como interação social,
estudiosas, ou apenas no segundo elemento, como em *A meninas amplia o reconhecimento do outro e de si próprio,
aproximando-se cada vez mais do entendimento mú-
bonita, tais expressões serão agramaticais dentro desse sistema.
tuo. |...| O exame da complexidade das manifestações
evoca a superação preconceituosa das identidades e
Contexto III - Língua inglesa
provoca o respeito mútuo como meio de entender o
a. The beautifui girls
presente e construir o devir. (PCNs, 2000: 9)
As bonitas garotas
'As garotas bonitas'
No ensino-aprendizagem de diferentes padrões de
fala e escrita, o que se almeja não é levar os alunos
b. *Thes beautifuis teachers
a falar certo, mas permitir-Ihes a escolha da forma
c. *Thes beautifui teacher
de fala a utilizar, considerando as características
e condições do contexto de produção, ou seja, é
Por fim, no contexto III, vemos o sistema do inglês, que difere saber adequar os recursos expressivos, a variedade
de língua e o estilo às diferentes situações comu-
tanto do sistema apresentado em I como do sistema apresentado
nicativas: saber coordenar satisfatoriamente o que
em II. No inglês, como podemos observar em (Illa), a marca de fala ou escreve e como fazê-lo; saber que modo de
concordância está no substantivo, mas não no artigo e nem no expressão é pertinente em função de sua intenção
adjetivo. Ou seja, o sistema linguístico da língua inglesa possui enunciativa dado o contexto e os interlocutores a
suas próprias normas, as quais são diferentes das de outros sis- quem o texto se dirige. A questão não é de erro, mas
de adequação às circunstâncias de uso, de utilização
temas. Não é razoável, portanto, que sistemas linguísticos sejam
adequada da linguagem. (PCNs, 2000: 30)
julgados como mais ou menos elegantes, mais ou menos belos,
mais ou menos evoluídos uma vez que são apenas sistemas lin- Demonstrar atitude respeitosa diante de variedades
guísticos diferentes. linguísticas, rejeitando preconceitos linguísticos.
(BNCC, 2017:66)
Para finalizar, vale ressaltar que promover a visão não pre-
conceituosa da variação linguística é um dos objetivos do ensino DIFERENÇAS ENTRE A LÍNGUA FALADA E A LÍNGUA ESCRITA
de língua portuguesa, tal como proposto pelos PCNs (2000) e
pela BNCC (2017): A hipótese do inatismo nos sugere que os conhecimentos
linguísticos dos seres humanos vão se desenvolvendo natural-
A variante padrão pode ser comparada com as outras mente no decorrer dos anos. Esse processo é natural para a fala
variantes em seus aspectos fonológicos, sintéticos, ou para a aquisição de uma língua de sinais, mas não o é para a
semânticos. O mesmo pode ocorrer entre a língua
escrita, por exemplo.
estrangeira moderna e a língua materna, a TV e o
cinema, os efeitos produzidos na Arte e a introdução A ideia de que as crianças adquirem uma língua sozinhas,
da Informática. Todas as manifestações podem convi-
pela exposição aos dados, pode nos levar a fazer inferências in-

76
77
corretas em relação à escrita. A capacidade de usar uma língua, Antes de encerramos esta seção, apresento os argumentos
seja oralmente ou por meio de sinais, é uma habilidade inata. A usados por Lúcia Lobato (2015: 25) para defender o ensino de
escrita, por sua vez, é algo formalmente ensinado e não é inato. !• gramática na Educação Básica, a partir de uma metodologia em
importante frisar essa diferença entre a fala e a escrita porque, se que os conhecimentos gramaticais advindos da Faculdade da

a escrita não é algo inato, é algo que deve e pode ser aprendido. Linguagem sejam usados como apoio para o ensino da escrita:

Caso a hipótese do inatismo seja mal compreendida, pode-se A primeira razão é o fato de ao texto e às atividades
chegar a interpretações incorretas como esta: se a criança adquire discursivas em geral subjazer a mesma gramática
uma língua somente pela exposição aos dados, ela pode aprender abstrata que subjaz às palavras, aos sintagmas, às
orações e às frases. Não pode ser diferente, pois, se
a escrever somente por meio da exposição a textos escritos. Essa
assim o fosse, a mente humana estaria operando de
é uma inferência, no mínimo, exagerada. modo antieconômico, com princípios de tipo dife-
rente para domínios diferentes do mesmo objeto. O
Por serem fruto de uma capacidade inata, as línguas humanas
natural é considerar que, para o mesmo objeto, são
são adquiridas de forma natural e resultam na habilidade de se
usados os mesmos princípios abstratos. No texto,
comunicar pela fala. A escrita, apesar de ser uma forma de ex- são usados princípios que extrapolam o limite da
pressão que usa muitos recursos semelhantes aos da fala, é uma sentença, mas, certamente, não são de natureza
habilidade que requer ensino, desenvolvimento de habilidades diferente dos princípios do limite da sentença. A
diferença, a meu ver, está nas unidades com que a
específicas e aprendizado de certas técnicas.
gramática opera num e noutro domínio, e não na
Considerar que a fala é adquirida e a escrita é aprendida faz natureza dos princípios.
toda a diferença no processo de ensino-aprendizagem. Essa distin-
Em segundo lugar, considero que não se deve aban-
ção precisa ser reiterada porque há outra crença muito difundida
donar totalmente o material gramatical porque a
em nossa sociedade: a de que aprenderemos a escrever simples- explicitação dos mecanismos de que as línguas fazem
mente escrevendo e lendo muito. E isso não é necessariamente uso e de seu efeito semântico ajuda o aluno a ganhar
verdade. tempo no seu processo de domínio das técnicas do
texto e das atividades discursivas em geral. A escrita,
É inegável que a leitura tem um papel fundamental para a por exemplo, tem características muito peculiares, e
ampliação do vocabulário, o desenvolvimento do conhecimento aceita estruturas complexas muito mais facilmente
do que a fala, por estar livre das limitações de me-
de mundo, a aquisição de novos itens lexicais e de novas formas
mória que caracterizam o discurso oral. Não vejo
de expressão - o que se reflete, diretamente, na capacidade de como seria possível ter um ensino produtivo sem
argumentação e no repertório geral do aluno. Também sabemos explicitação de mecanismos estruturais.
que o hábito de escrever pode nos ajudar a testar formas de ex-
pressar nossas ideias, na desenvoltura com as palavras e nas mais
diversas situações de interação.

78 79
OBJETIVOS DO ENSINO DE UNCUA PORTUGUESA NA EDUCAÇÃO BÁSICA • reconhecer c valorizar a linguagem de seu grupo social como
instrumento adequado c eficiente na comunicação cotidiana,
na elaboração artística e mesmo nas interações com pessoas
C h e g a m o s à p e r g u n t a final que u m a a b o r d a g e m deve respon de outros grupos sociais que se expressem por meio de outras
der: q u a l o o b j e t i v o do e n s i n o de gramática na E d u c a ç ã o B á s i c a ? variedades;

Vejamos, a seguir, alguns dos o b j e t i v o s do ensino de língua


• usar os conhecimentos adquiridos por meio da prática de
portuguesa no Ensino Fundamental, segundo os PCNs (1998:32-33): análise linguística para expandir sua capacidade de monitoração
das possibilidades de uso da linguagem, ampliando a capacidade
• utilizar a linguagem na escuta e produção de textos orais e de análise crítica.
na leitura e produção de textos escritos de modo a atender a
múltiplas demandas sociais, responder a diferentes propósitos
comunicativos e expressivos, e considerar as diferentes condições S e g u n d o a B N C C ( 2 0 1 7 : 6 4 ) , são c o m p e t ê n c i a s específicas
de produção do discurso; do c o m p o n e n t e de língua p o r t u g u e s a r e c o m e n d a d a s para o final
do E n s i n o F u n d a m e n t a l :
• utilizar a linguagem para estruturar a experiência e explicar
a realidade, operando sobre as representações construídas em
1. Reconhecer a língua como meio de construção de identidades
várias áreas do conhecimento:
de seus usuários e da comunidade a que pertencem.
- sabendo como proceder para ter acesso, compreender e fazer
uso de informações contidas nos textos, reconstruindo o modo
2. Compreender a língua como fenómeno cultural, histórico,
pelo qual se organizam em sistemas coerentes;
social, variável, heterogéneo e sensível aos contextos de uso.
- sendo capaz de operar sobre o conteúdo representacional dos
textos, identificando aspectos relevantes, organizando notas,
3. Demonstrar atitude respeitosa diante de variedades linguísti-
elaborando roteiros, resumos, índices, esquemas e t c ;
cas, rejeitando preconceitos linguísticos.
- aumentando e aprofundando seus esquemas cognitivos pela
ampliação do léxico e de suas respectivas redes semânticas;
4. Valorizar a escrita como um bem cultural da humanidade.
• analisar criticamente os diferentes discursos, inclusive o pró-
prio, desenvolvendo a capacidade de avaliação dos textos: 5. Empregar nas interações sociais, a variedade e o estilo de
- contrapondo sua interpretação da realidade a diferentes opiniões; " linguagem adequado à situação comunicativa, ao interlocutor e
- inferindo as possíveis intenções do autor marcadas no texto; ao género textual.
- identificando referências intertextuais presentes no texto;
- percebendo os processos de convencimento utilizados para 6. Analisar argumentos e opiniões manifestados em interações
atuar sobre o interlocutor/leitor; sociais e nos meios de comunicação, posicionando-se criticamen-
- identificando e repensando juízos de valor tanto socioideológi- te em relação a conteúdos discriminatórios que ferem direitos
cos (preconceituosos ou não) quanto histórico-culturais (inclusive humanos e ambientais.
estéticos) associados à linguagem e à língua;
- reafirmando sua identidade pessoal e social; 7. Reconhecer o texto como lugar de manifestação de valores e
ideologias.
• conhecer e valorizar as diferentes variedades do Português,
procurando combater o preconceito linguístico;

81
8. Selecionar textos c livros para Icitiirii integral, de acordo com Assim, nao se justifica tratar o ensino gramatical
objetivos e interesses pessoais (estudo, formação pessoal, entre- dcsíirticuiado das práticas de linguagem. É o caso,
tenimento, pesquisa, trabalho e t c ) . por exemplo, da gramática que, ensinada de forma
descontextualizada, tornou-se emblemática de um
9. Ler textos que circulam no contexto escolar e no meio social conteúdo estritamente escolar, do tipo que só serve
com compreensão, autonomia, fluência e criticidade. para ir bem na prova e passar de ano, uma prática
pedagógica que vai da metalíngua para a língua por
10. Valorizar a literatura e outras manifestações culturais como meio de exemplificação, exercícios de reconheci-
formas de compreensão do mundo e de si mesmo. mento e memorização de terminologia. Em função
disso, discute-se se há ou não necessidade de ensinar
gramática. Mas essa é uma falsa questão: a questão
Como se pode perceber, peia leitura dos objetivos educa-
verdadeira é o que, para que e como ensiná-la.
cionais dos PCNs e da BNCC, as habilidades requeridas ao final
da Educação Básica são atividades complexas, em que, além das Deve-se ter claro, na seleção dos conteúdos de análise
atividades de leitura e produção de textos, o aluno deve estar linguística, que a referência não pode ser a gramática
atento a questões linguísticas, sociais e discursivas. tradicional. A preocupação não é reconstruir com os
alunos o quadro descritivo constante dos manuais de
Os conhecimentos linguísticos são a ferramenta fundamental gramática escolar (por exemplo, o estudo ordenado
a ser utilizada para que os demais objetivos do ensino de língua das classes de palavras com suas múltiplas subdi-
visões, a construção de paradigmas morfológicos,
portuguesa sejam alcançados. A análise e a reflexão linguística
como as conjugações verbais estudadas de um fô-
são atividades fundamentais para que os estudantes possam
lego em todas as suas formas temporais e modais,
"expandir sua capacidade de monitoração das possibilidades de ou de pontos de gramática, como todas as regras
uso da linguagem, ampliando a capacidade de análise crítica" ou de concordância, com suas exceções reconhecidas).
para "analisar argumentos e opiniões manifestados em interações
O que deve ser ensinado não responde às imposições
sociais e nos meios de comunicação, posicionando-se criticamen-
de organização clássica de conteúdos na gramática
te em relação a conteúdos discriminatórios que ferem direitos
escolar, mas aos aspectos que precisam ser tema-
humanos e ambientais". tizados em função das necessidades apresentadas
pelos alunos nas atividades de produção, leitura e
Ainda nos Parâmetros Curriculares Nacionais, recolhemos escuta de textos.
alguns dos objetivos gerais do ensino de língua portuguesa para
o Ensino Fundamental, no que se refere à gramática: O modo de ensinar, por sua vez, não reproduz a clássica
metodologia de defmição, classificação e exercitação,
mas corresponde a uma prática que parte da reflexão
Na perspectiva de uma didática voltada para a pro-
produzida pelos alunos mediante a utilização de uma
dução e interpretação de textos, a atividade meta-
terminologia simples e se aproxima, progressivamente,
linguística deve ser instrumento de apoio para a
pela mediação do professor, do conhecimento gramatical
discussão dos aspectos da língua que o professor se-
produzido. Isso implica, muitas vezes, chegar a resul-
leciona e ordena no curso do ensino-aprendizagem.

82
83
Sistematizamos al.aixo alguns conceitos relevantes apresen-
taclos clifcrcnlcs íl;K|iicles obtidos pela gramática
tradicional, cuja descrição, em muitos aspectos, tados neste capítulo.
não corresponde aos usos atuais da linguagem, o
que coloca a necessidade de busca de apoio em ou
tros materiais e fontes. (PCNs, EF, 1998: 28) [Grifos
DURANTE A
nossos] D E P O I S DA
ANTES DA ESCOLARIZAÇÃO ESCOLARIZAÇÃO
ESCOLARIZAÇÃO

A reflexão trazida pelos PCNs é extremamente pertinente. As


Faculdade da linguagem Conhecimentos aprendi-
F a c u l d a d e da l i n g u a g e m
aulas de gramática têm de ir além da mera classificação e memo- (CU) + conhecimentos dos, com consciência, re-
(CU) + dados do meio social
rização de conceitos. A crítica que se faz aos documentos é que = fala
aprendidos = escrita flexão crítica, autonomia.
padrão
as diretrizes da mudança são apresentadas, mas não as formas
concretas de se operar essas mudanças. Todavia, a direção a ser Conhecimento sobre:
Conhecimento conscien- - a natureza das línguas
seguida está presente; temos de modificar o modo de ensinar. humanas;
Conhecimento inconsciente te de características da
variedade padrão, c o - - características da lín-
Em resumo, a compreensão de professores e alunos acerca de a s p e c t o s das l í n g u a s ,
gua portuguesa;
nhecimentos sobre va-
como: fonologia, morfolo-
das características de seu sistema mental e a apropriação pro- riação linguística, sobre - possibilidades de ex-
gia, sintaxe...
gressiva e consciente do funcionamento desse sistema é de suma géneros e tipos textuais, pressão.
organização das ideias,
importância para que os objetivos listados acima sejam atingidos. estratégias de argumen- Leitura crítica
Reflexão critica
Além disso, o conhecimento acerca do funcionamento da mente tação, texto e discurso...
Escrita consciente
humana em relação a uma de suas propriedades mais fantásti-
cas, a Faculdade da Linguagem, a qual nos distingue como seres
humanos, é algo de suma importância tanto para a educação em
língua portuguesa quanto como conhecimento científico relevante
capaz de dirimir preconceitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, vimos alguns conceitos importantes sobre


as línguas humanas, tais como: inatismo linguístico, Faculdade
da Linguagem, Gramática Universal, criatividade, entre outros.
Tais conceitos servirão como base para a elaboração de nossa
Metodologia do Aprendizado Linguístico Ativo.

84
CAPÍTULO 3

PRINCÍPIOS D A M E T O D O L O G I A DA
APRENDIZAGEM LINGUÍSTICA ATIVA

Se adotamos o conceito de gramática como algo dinâ-


mico, interno ao indivíduo e dotado de propriedades que
explicam a característica criativa das línguas naturais,
vemos que o aluno, de qualquer série, já chega em sala
de aula com uma gramática adquirida, e com proprie-
dades tais que lhe permitem o uso criativo da língua. A
escola não vai, portanto, ensinar gramática ao aluno,
pois o aluno já chega com uma gramática adquirida. O
que, exatamente, vai ser ensinado ao aluno? O que pode
o aluno ainda adquirir? Enfim, em sentido mais amplo,
como pode essa nova percepção do que seja gramática
levar à renovação do ensino de língua?

Lúcia Maria Pinheiro Lobato, Unguística e Ensino de Línguas

Neste capítulo pretendo mostrar como conhecimentos atuais


sobre a aprendizagem, advindos de pesquisas neurocientíFicas,
podem nos ser úteis para promover a tomada de consciência de
nosso conhecimento linguístico.

Como visto no capítulo anterior, temos um amplo conheci-


mento linguístico inato. Se partimos dessa hipótese, não iremos
olhar nossos alunos como tabulas rasas e não iremos "ensinar

87
português" para eles. Considerando tal premissa, iremos torná-los mento r uR-inori/ação de nomenclatura. Em função
disso, tem-si' discutido se há ou não necessidade de
mais conscientes de seu saber linguístico, das características das
ensinar gramática. Mas essa é uma falsa questão: a
variedades da língua e poderemos auxiliá-los no desenvolvimento questão verdadeira é para que e como ensiná-la.
de suas habilidades de expressão oral e escrita.
Se o objetivo principal do trabalho de análise e
REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DAS AULAS DE GRAMÁTICA NA EDUCAÇÃO reflexão sobre a língua é imprimir maior qualidade
BÁSICA ao uso da linguagem, as situações didáticas devem,
principalmente nos primeiros ciclos, centrar-se na
atividade epilinguísdca, na reflexão sobre a língua
No trecho apresentado como epígrafe no início deste capítu- em situações de produção e interpretação, como
lo, Lúcia Lobato (2015) nos propõe um importante questionamen- caminho para tomar consciência e aprimorar o con-
to: "Se adotamos o conceito de gramática como algo dinâmico, trole sobre a própria produção linguística.
interno ao indivíduo e dotado de propriedades que explicam a
característica criativa das línguas naturais, vemos que o aluno, Como os PCNs afirmam, é necessária uma reformulação
de qualquer série, já chega em sala de aula com uma gramática no ensino de gramática. E essa reformulação tem de levar em
adquirida e com propriedades tais que lhe permitem o uso criativo consideração a reflexão sobre a língua: "centrar-se na atividade
da língua". Considerando esse saber, a autora nos questiona: "O epilinguística, na reflexão sobre a língua em situações de pro-
que, exatamente, vai ser ensinado ao aluno? O que pode o aluno dução e interpretação, como caminho para tomar consciência e
ainda adquirir? Enfim, em sentido mais amplo, como pode essa aprimorar o controle sobre a própria produção linguística"'.
percepção do que seja gramática levar à renovação do ensino de
' Guerra Vicente e Pilati (2011) defendem a ideia de que uma
língua?".
abordagem gerativista pode dar contribuições para as aulas de
Sobre o lugar da gramática na Educação Básica, os PCNs gramática. As autoras argumentam que:
(1997: 31) consideram o seguinte:

O ensino de Língua portuguesa, pelo que se pode


observar em suas práticas habituais, tende a tratar 1 C a r l o s Franchi ( 1 9 9 1 : 3 6 - 3 7 ) apresenta a seguinte definição para o conceito de atividade
epilinguística:
essa fala da, e sobre a linguagem como se fosse um " C h a m a m o s de atividade epilinguística a essa prática que opera sobre a própria linguagem,
conteúdo em si, não como um meio para melhorar compara as expressões, transforma-as, experimenta novos modos de construção canónicos

a qualidade da produção linguística. É o caso, por ou nao, brinca com a linguagem, investe as formas linguísticas de novas significações. N â o
se pode ainda falar de "gramática" no sentido de um sistema de noções descritivas, nem de
exemplo, da gramática que, ensinada de forma uma metalinguagem representativa como uma nomenclatura gramatical. N â o se dSo nomes
descontextualizada, tornou-se emblemática de um aos bois nem aos boiadeiros. O professor, sim, deve ter sempre em mente a sistematb,ação
que lhe permite orientar e multiplicar essas atividades. [ . . ] Por um lado, ela se liga à atividade
conteúdo estritamente escolar, do tipo que só serve linguística, á produção c à compreensão do texto, na medida em que cria as condições para
para ir bem na prova e passar de ano — uma prática o desenvolvimento sintático dos alunos: nem sempre se trata de "aprender" novas formas
de construção e transformação das expressões; muitas vezes se trata de tornar operacional e
pedagógica que vai da metalingua para a língua por ativo um sistema a que o aluno j á teve acesso fora da escola, c m suas atividades linguísticas
meio de exemplificação, exercícios de reconheci- comuns Mas por outro lado, essa atividade é que abre as portas para um trabalho inteligente
de sistematização gramatical"

88 89
' a gramática seja abordada cm sala de aula a partii As práticas docentes devem ir além da mera e abstrata meta-
do conhecimento linguístico prévio que o estudan- linguagem e precisam evidenciar como conhecimentos gramaticais
te traz para a escola. Afastando-nos da ideia de podem ser usados na produção, na leitura, na interpretação e na
um ensino que privilegia a mera rotulação de ele
produção de textos. Este capítulo é destinado justamente a propor
mentos (contextualizados ou não) de uma oração,
aproximamo-nos do raciocínio de que "saber", ao uma metodologia que nos direcione na promoção dessa tomada de
invés de corresponder a "ser capaz de se lembrar e consciência do sistema linguístico, sem desvincular essa tomada
repetir informações", deve significar "ser capaz de de consciência dos contextos de leitura, produção de textos e das
descobrir e usar informações" (BRANSFORD et al.,
situações de uso. Para argumentar a favor da necessidade de per-
2007: 5). A descoberta, nesse caso, nada mais é que
o resultado de se trazer à consciência informações cepção do sistema linguístico como um dos elementos cruciais nas
que o estudante já possui sobre a sua própria língua, aulas de língua portuguesa, vou recorrer ao pensamento de Magda
encorajando-o a verbalizar esse conhecimento - Soares presente no texto Alfabetização e letramento: as múltiplas
portanto, apropriando-se dele - , a ponto de saber facetas (2004). Nesse artigo, a autora explica a importância de se
manejá-lo e, ainda, tomá-lo como ponto de partida
reconhecer tanto a especificidade quanto a indissociabilidade dos con-
para o aprendizado de estruturas próprias da língua
escrita, além da metalinguagem que o estudo da ceitos de "alfabetização" e "letramento". A analogia que pretendo
gramática envolve - essas, sim, aprendidas na escola. estabelecer com o que propõe Magda Soares será entre o "estudo
(VICENTE ePILATI, 2011:8) da gramática" e "estudo da leitura e produção de textos", tomados
como estudos específicos e também indissociáveis.
Para as autoras, o ponto de partida nas aulas de gramática
A autora argumenta que, nas últimas três décadas, houve
deve ser a reflexão sobre os conhecimentos que o aluno já tem
mudanças nos paradigmas teóricos no campo da alfabetização.
sobre a sua língua. Sendo assim, o professor deve partir das intui-
ções e dos conhecimentos de seus alunos sobre o funcionamento Em síntese, saiu-se de um paradigma behaviorista, dominante nos

de sua língua para trazer à consciência deles informações que já anos de 1960 e 1970, em direção a um paradigma sociocultural,

possuem sobre a sua língua. a partir dos anos 80. A criança deixou de ser considerada depen-
dente de estímulos externos para aprender o sistema da escrita
Considerando a natureza das línguas humanas, tal como - concepção presente nos métodos de alfabetização até então
defendido nos capítulos anteriores, a tomada de consciência em uso, hoje designados "tradicionais" - e passou a sujeito ativo.
do sistema linguístico só acontecerá plenamente quando o es-
Ao mesmo tempo em que houve essa mudança nos paradig-
tudante puder ver o fijncionamento desse sistema. Para que o
mas, o processo de alfabetização passou a ser encarado como algo
aluno compreenda os processos que fazem o sistema linguístico
funcionar, ele deve passar por experiências que o levem a enxer- de menor importância, frente às questões de letramento. Sem

gar o funcionamento do sistema linguístico, a compreender seu negar a incontestável contribuição da mudança de paradigmas

funcionamento e a manipulá-lo de forma concreta. na alfabetização. Soares afirma que tal transformação conduziu
a alguns equívocos e a falsas inferências:

90 91
Em primeiro lugar, clirigindo-sc o foco para o prorcs convívio com lipos e géneros variados de textos
so de construção do sistema de escrita pela criança, e de portadores de textos, a compreensão das
passou-se a subestimar a natureza do objeto de funções da escrita. (SOARES. 2004: 14)
conhecimento em construção, que é, fundamen
talmente, um objeto linguístico constituído, quer E m resumo, para a autora tanto a alfabetização, que privilegia
se considere o sistema alfabético quer o sistema
os aspectos linguísticos, quanto o letramento, que leva em consi-
ortográfico, de relações convencionais e frequen-
deração os aspectos mais sociais da língua, são fundamentais para
temente arbitrárias entre fonemas e grafemas. Em
outras palavras, privilegiando a faceta psicológica da o desenvolvimento dos alunos. São processos de natureza funda-
alfabetização, obscureceu-se sua faceta linguística - mentalmente diferente, envolvendo conhecimentos, habilidades e
fonética e fonológica. Em segundo lugar, derivou-se competências específicos, que implicam formas de aprendizagem
da concepção construtivista da alfabetização uma
diferenciadas e procedimentos diferenciados de ensino.
falsa inferência, a de que seria incompatível com o
paradigma conceituai psicogenético a proposta de Fazendo agora um paralelo entre o ensino de gramática e
métodos de alfabetização.
o de leitura e produção de textos, podemos afirmar que o mes-

Dissociar alfabetização e letramento é um equí- mo tipo de "movimento" ocorreu nessa outra área do saber. No
voco porque, no quadro das atuais concepções ensino tradicional, inicialmente a aula de língua portuguesa era
psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas de confiandida com aula de gramática. Ou seja, antes dos PCNs, por
leitura e escrita, a entrada da criança (e também exemplo, havia muito e s p a ç o para a gramática e pouco espaço
do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre
para a produção e interpretação de textos. Depois disso, devido
simultaneamente por esses dois processos: pela
aquisição do sistema convencional de escrita - a às críticas feitas à forma tradicional de se ensinar gramática e,
alfabetização - e pelo desenvolvimento. Não são com a emergência das teorias sociointeracionistas, a leitura e
processos independentes, mas interdependentes, produção de géneros textuais passaram a ser elementos centrais
e indissociáveis: a alfabetização desenvolve-se
das aulas de língua portuguesa e as reflexões gramaticais foram
no contexto de e por meio de práticas sociais de
leitura e de escrita, isto é, através de atividades para um segundo plano.
de letramento, e este, por sua vez, só se pode
Desconsiderar as reflexões gramaticais inviabiliza um aspecto
desenvolver no contexto da e por meio da apren-
dizagem das relações fonema-grafema, isto é, em crucial para o desenvolvimento da análise da produção textual,
dependência da alfabetização. A concepção "tra- que é a reflexão gramatical. É por meio do manejo das estruturas
dicional" de alfabetização, traduzida nos métodos gramaticais da língua que o produtor de textos irá expressar suas
analíticos ou sintéticos, tornava os dois processos
ideias, organizar argumentações, escolher formas de expressar
independentes, a alfabetização - a aquisição do
sistema convencional de escrita, o aprender a ler pensamentos. Quando dispensamos as aulas de gramática, por
como decodificação e a escrever como codificação exemplo, perdemos a oportunidade de apresentar a nossos alu-
- precedendo o letramento - o desenvolvimento nos a ferramenta crucial para a leitura e p r o d u ç ã o autónomas e
de habilidades textuais de leitura e de escrita, o
críticas - a reflexão gramatical.

93
Também elevemos estar conscientes da necessidade de mo No método voltado para o ensino, de acordo com Cagliari:
dificar a forma de se compreender o conceito de gramática e d.i
A situação iniciai do aprendiz é interpretada como
metodologia que se tem usado tradicionalmente, para que as
um começo absoluto de tudo, o marco zero de uma
aulas de gramática levem nossos alunos a compreender o funcio caminhada, uma página em branco onde se vai come-
namento do sistema linguístico. çar a escrever sua vida escolar. No começo do ano,
o professor programa o que vai ensinar sem sequer
Antes de passar para discussões propriamente metodoló- conhecer seus alunos, porque o que vai ensinar é um
gicas, gostaria de trazer à reflexão um aspecto que considero começo absoluto que não precisa de pré-requisito,
de suma importância para a prática docente: a diferença entre o é um ponto de partida considerado ideal para todos
ensinar e o aprender. os alunos, independente da maneira de ser ou de
saber de cada um. (2009: 44)

O MÉTODO DO ENSINO VERSUS O MÉTODO DO APRENDIZADO


Outra observação relevante do autor refere-se ao conceito
Nesta seção farei uma caracterização sobre métodos que de "aprender" sob a ótica da metodologia do ensino:
se baseiam no "ensino" ou no "aprendizado", de acordo com
Dentro dessa concepção de ensino, aprender é
Cagliari (2009). Em seguida, discuto de que forma tais definições
dominar. Dominado ou aprendido algo, passa-se ao
se aplicam às aulas tradicionais de gramática. conteúdo seguinte. Para isso decorar é fundamental,
I sobretudo decorar de modo a repetir um modelo .
Cagliari (2009: 41) afirma que:
^ dado e que será cobrado como expectativa de res-
posta. (CAGLIARI, 2009: 46)
A educação não pode viver só do ensino, caso em
que o professor vem para a sala de aula e despeja
em seus alunos um longo discurso a respeito de um O autor ainda afirma que:
determinado ponto, como também não pode viver
só da aprendizagem deixando os alunos descobrirem I Nem sempre reproduzir um modelo garante a apren-
tudo por si mesmo e livres para fazerem o que bem dizagem, embora garanta, sim, uma réplica de algo
entenderem. Deve haver equilíbrio entre os dois que o aprendiz pode fazer sem saber exatamente o
tipos de atividade: o professor deve ensinar, caso que está acontecendo. (CAGLIARI, 2009: 46)
contrário, as escolas não precisariam existir, pois
cada um aprenderia por iniciativa própria. Por outro
Cagliari também faz importantes ressalvas em relação ao
lado, o professor não pode ser o dono da educação,
aquele que tem tudo sob seu comando. É preciso que papel da memória no aprendizado. O autor afirma que a "me-
haja também uma grande participação do aprendiz, morização é fundamental no processo de aprendizagem, mas
porque, afinai de contas, é ele quem precisa aprender não pode ser um truque" em que o memorizado revela apenas
e mostrar o que aprendeu, sobretudo, saber que
um modelo aprendido. Ainda, segundo o autor, "no processo de
aprendeu.
aprendizagem, a memorização faz parte do processo de refiexão,

94 9r)
trazendo para a prática do aprendiz todos aqueles conhecimentos de ensino vale a rei)cliç;i(), o que conta na avaliação são os erros
necessários para que ele tome as decisões corretas" (Cagliari, dos alunos, e não os acertos. Vejamos a explicação de Cagliari:
2009: 47).
Como o acerto é previsível dentro da perspectiva do
O autor usa exemplos para casos de repetição e da "memória já dominado, são os erros que irão mostrar que o
como truque" para contextos de alfabetização, mas é fácil imaginar aluno precisa parar e recuperar o que não dominou.
O problema desse método de ensino é a ênfase no
como isso acontece nas aulas de gramática. Numa aula tradicio-
erro do aluno, não no que ele aprende. Isso é tão
nal, é respeitada a seguinte sequência didática: apresentação da ridículo, sobretudo para as crianças na alfabetização,
definição do conteúdo, depois aplicação do conceito aprendido que elas não conseguem entender como a escola
em frases ou em certos contextos gramaticais e realização de pode ser tão injusta. O aluno escreve uma estória
de dez linhas e, só porque cometeu dez errinhos,
atividades em frases descontextualizadas.
ganha nota cinco. E as outras coisas que ele escreveu
Considero que a fala de Cagliari reproduzida acima sintetiza certo, as outras trezentos e oitenta letras que foram
escritas corretamente e o resto que fez, e fez bem,
um importante ponto de vista, o que nos leva a tentar melhorar
^ não conta? (CAGLIARI, 2009: 50)
a metodologia nas aulas de gramática e de língua portuguesa em
geral. Por vários motivos, damos muita importância a "ensinar"
O autor conclui sua argumentação afirmando que esse
nossos alunos. Nas aulas de gramática, é raro haver debates,
método de ensino pode ser considerado um bom método de
promoção de atividades criativas ou simulações do uso efetivo
"adestramento". Vale ressaltar que Cagliari afirma que pode ter
da língua em situações variadas do dia a dia.
"carregado um pouco na tinta" em relação à forma como apre-
Outra variação da metodologia do ensino presente nas aulas senta o método baseado no ensino. Pode até ser verdade, mas
de gramática é a classificação dos elementos gramaticais vistos em apresentaremos excertos do seu texto por considerarmos que eles
tirinhas. Ora, se um dos principais objetivos do estudo da língua ilustram bem certos estereótipos de aula. E conforme Cagliari, a
portuguesa na escola é que os estudantes saiam da Educação escola pode não ser tão rígida assim, mas com certeza não está
Básica sabendo escrever um texto com ideias ordenadas, com co- tão longe dessa realidade.
esão e coerência, por que nas aulas de gramática o conhecimento
Vejamos agora a caracterização do método do "aprender",
gramatical é analisado em tirinhas? Por que o aluno é visto apenas
segundo Cagliari. O autor inicia sua apresentação fazendo duas
como um receptor, classificador e nomeador de conceitos, se o
observações importantes sobre o método do aprender. Esse mé-
objetivo da educação é que ele use tais conceitos com o objetivo
todo parte do pressuposto de que o aprendiz, como ser racional,
de escrever um texto? Enfim, por que os conhecimentos gramati-
possui conhecimentos prévios. O aluno não é visto como uma
cais não são usados para desenvolver os conhecimentos do aluno
tabula rasa, como um ser que não sabe nada, muito pelo contrá-
num campo que ele ainda não domina, que é o da escrita?
rio: o aluno é considerado alguém que j á sabe muito (no caso
Para finalizar, a última característica desse método que privi- específico da gramática, podemos incluir nesses conhecimentos
legia o ensino é a avaliação focada nos erros. Como nesse método

96
a competência linguística, advinda da I-aculdade da Linguagem). o .\i)rc'n(li/. chegar a essa autonomia, melhor será
para cie: aprenderá melhor, mais rapidamente, mais
Outro ponto importante desse método é a ênfase dada à capaci-
dados. (CACLIARl, 2009: 57)
dade de reflexão crítica, que é algo oposto ao condicionamento.

Observemos como o autor explana a expressão "entendi- Em relação ao papel do professor na avaliação, Cagliari argu-
mento de algo": menta que o professor deve assumir um papel de mediador e ajudar
os alunos a construir seus conhecimentos e a compreender onde
Entender é ter um conjunto de informações que estão errando e por quê. Deve-se levar em conta o processo de
expliquem a natureza, a função e os usos do conhe-
aprendizagem e a história de cada um dentro desse processo, para
cimento. Isso não se adquire linear nem automati-
camente, pelo simples fato de ter ouvido alguém que se possa comparar os pontos de partida e de chegada do aluno.
falar dessas coisas, mesmo que as palavras sejam
Como nosso objetivo é apresentar uma metodologia para o
familiares e o texto claro e correto. Cada um reage de
maneira individual à construção do conhecimento, ensino de língua portuguesa e como a obra de Cagliari trata da
cada um tem um caminho próprio, cada um atribui alfabetização, nas seções seguintes, iremos nos aprofundar mais
valores próprios, muito individuais, aos elementos nas questões relativas aos conhecimentos gramaticais.
do conhecimento que constrói no processo de apren-
dizagem. Tudo isso precisa ser levado em conta, Antes de passarmos à metodologia propriamente dita, é
porque faz parte intrínseca da natureza humana e, necessário fazer uma ressalva sobre os métodos do ensino e do
portanto, de cada indivíduo (CAGLIARI, 2009: 55) aprendizado. O ponto que gostaria de defender é que não existe
uma única forma de fazer aprender, nem uma única técnica que
Sobre o conceito de aprendizagem, Cagliari afirma: seja efetiva em todas as situações. O professor, consciente das
necessidades de seus alunos, deve ser capaz de avaliar as variáveis
A concepção de aprendizagem do método 2 [mé- da situação de ensino e decidir qual método será mais efetivo
todo do aprendizado baseia-se nas decisões que
para qual conteúdo, ou para qual turma. O importante é que o
o aprendiz toma, levando em conta as explicações
adequadas que recebeu. Isso faz com que ele se professor tenha condições de pensar aulas mais efetivas e criativas
aventure no mundo do saber e procure a maneira e que tenha um repertório de ações metodológicas mais vasto.
correta de dar o passo seguinte, como consequên- Como métodos que se baseiam no ensino são os mais comuns
cia de tudo o que aprendeu até o momento. Aqui
na educação brasileira, parece mais interessante investigar com
está o grande segredo da aprendizagem: o aprendiz
não só aprende o ponto, mas aprende a aprender. mais profundidade uma metodologia do aprendizado
A verdadeira aprendizagem proporciona ao aluno
generalizar o processo de tal maneira que a inter- PRINCÍPIOS DA APRENDIZAGEM LINGUÍSTICA ATIVA
mediação do professor vai, aos poucos, cedendo
lugar a sua própria independência e competência
Considerando o que vimos nas seções acima sobre os dois
para buscar as explicações adequadas por si mesmo
e a construir seu próprio saber. Quanto mais cedo métodos - o método do ensino e o método do aprendizado - , e

98 99
usando como ponto do partida seu conhecimento linguístico táci-
feitas as devidas ressalvas sobre o fato de que o professor deve
to. Para tanto, é importante que nessas aulas os alunos realizem
ter critérios para decidir os métodos e as técnicas a partir da ne-
tarefas ou enfrentem situações que mobilizem os conhecimentos
cessidade de seus alunos, vejamos de que forma podemos ampliar
adquiridos, sejam capazes de usar diferentes técnicas e métodos,
nossa forma de pensar o que é o processo de ensino-aprendizagem
saibam usar o vocabulário adequado na situação adequada, sai-
para que possamos renovar o ensino de língua portuguesa. M
bam redigir dentro das normas e construir textos coerentes. A
Para ilustrar de que forma as questões metodológicas podem 1 pergunta que fica é: como promover a aprendizagem ativa nas
ser desenvolvidas em sala de aula, proponho uma adaptação das ' aulas de gramática?
diretrizes apresentadas na obra de Bransford et al. (2000), para o
Nas seções a seguir, farei uma apresentação dos princípios
ensino de língua portuguesa^
da aprendizagem segundo Bransford et al. (2007) e, ao mesmo
Segundo essa obra, para que ocorra a aprendizagem efeti- tempo, vou propor formas de aplicar tais princípios ao ensino de
va, é necessário que os estudantes tenham a oportunidade de
gramática.
entender o sentido dos assuntos estudados. Os autores citam
j Os três princípios que guiarão a metodologia são os seguintes:
o Prémio Nobel Herbert Simon, que afirmou que o significado
de "saber" alterou-se: "em vez de ser capaz de lembrar e repetir
I) Levar em consideração o conhecimento prévio do aluno;
informações, a pessoa deve ser capaz de encontrá-las e usá-las"
(Bransford et a/. 2007: 21). II) Desenvolver o conhecimento profundo dos fenómenos estu-
dados;
No entanto, sabemos que, apesar dos avanços na educação,
ainda há entre nós a concepção segundo a qual o ato de aprender III) Promover a aprendizagem ativa por meio do desenvolvimento
está mais ligado à memória do que ao entendimento. No caso de habilidades metacognitivas.
específico do conhecimento gramatical, como muitos professo-
res não partem do princípio inatista e seguem as descrições das Princípio I: Levar em consideração o conhecimento
gramáticas tradicionais, o comum é usar a definição de gramática prévio do aluno
"como um conjunto de regras". Quando se parte desse pressu- Em relação ao primeiro princípio, é interessante verificar
posto, as aulas consistem basicamente na apresentação de regras que, na obra Bransford et al. (2007, encontram-se validados os
e em atividades de memorização. princípios da teoria gerativista em relação à dotação genética
para a aquisição de uma língua, como se vê no trecho a seguir:
Para podermos renovar o ensino de língua portuguesa e de
gramática, temos de dar mais ênfase ao estudo de métodos de Mesmo os recém-nascidos são aprendizes ativos,
ensino. Devemos dar sentido às aprendizagens de nossos alunos, que trazem certo ponto de vista para o a m b i c i i l c
de aprendizagem. O mundo em que entrani ii.i<t r
2 A obra Como as pessoas aprendem: cérebro, mente, experiência e escola (2000), organizada
uma confusão de ecos e burburinhos em ([tu- ( . u l . i
por Bransford eí al. é o resultado do trabalho de dois C o m i t é s americanos, a ComissSo de
E d u c a ç ã o e Ciências Sociais e do Comportamento e do Conselho Nacional de Pesquisa dos estímulo é igualmente saliente. Em vez disso, n t r
Estados Unidos. Aqui no Brasil, a obra foi traduzida e publicada pela editora Senac, em 2007.

101
100
rcbro de um reccm-nasciclo dá prioridade a certos ainda mais seus conhrciinentos. Para mensurar esses conheci-
tipos de informações: a língua, os conceitos básicos mentos, sugiro que so liiçam testes diagnósticos, para que sejam
referentes aos números; as propriedades físicas e o avaliados conhecimentos prévios dos alunos. Como veremos a
movimento de objetos animados e inanimados. No seguir, saber de onde se está partindo também será importante
sentido mais geral, a visão contemporânea a respei- para que os próprios alunos possam avaliar seu progresso, ve-
to da aprendizagem é que as pessoas elaboram o rificar pontos em que não está havendo compreensão e tentar
novo conceito e o entendimento com base no que solucionar suas dúvidas.
já sabem e naquilo em que acreditam. (BRANSFORD
etal., 2007: 27)
Considerando esse primeiro princípio e os comentários em
a) e b) acima, é importante mostrar aos alunos o funcionamento
Os recém-nascidos já possuem conhecimentos sobre várias da língua humana sob diferentes perspectivas para que eles pos-
áreas, tais como conhecimentos sobre adição e subtração, co- sam compreender o próprio objeto de estudo e os objetivos das
nhecimentos básicos sobre física e sobre o funcionamento das
aulas de português.
línguas humanas.
I; Em se tratando dos conhecimentos gramaticais, por exemplo,
Em relação ao conhecimento linguístico, portanto, "levar se o aluno concebe a gramática como um conjunto de regras a
em consideração os conhecimentos prévios dos alunos" é uma serem memorizadas, poderá tentar utilizar apenas a memorização
afirmação que deve ser interpretada em dois sentidos: para compreender os novos conhecimentos linguísticos, em vez
da compreensão dos fenómenos, e isso poderá prejudicá-lo em
a) Em se tratando de conhecimento linguístico inato, o conheci-
momentos de reflexão linguística e na própria transferência do
mento prévio dos alunos é um conhecimento muito complexo e
profundo, pois, ao chegarem à Educação Básica, todos os alunos conhecimento.
já dominam sua língua com perfeição, portanto, já possuem um Para que os alunos possam realmente compreender o funcio-
conhecimento linguístico vasto. No entanto, os alunos não têm
namento das gramáticas das línguas, todos os aspectos linguísticos
consciência desse conhecimento linguístico e não têm critérios
objetivos para analisar o conhecimento que possuem nem para vistos nos Capítulos 1 e 2 podem ser transmitidos para os alunos,
avaliarem produções escritas. Considerando que o conhecimento sob a forma de diferentes atividades, para que eles desenvolvam
linguístico dos alunos é vasto, mas é inconsciente, é importante paulatinamente sua consciência linguística.
promover o conhecimento linguístico explícito. Como os conceitos
de língua, gramática e variação linguística são muitas vezes ig-
norados ou interpretados pelas vias do senso comum, tal como Princípio II: Desenvolver o conhecimento profundo
discutido no primeiro capítulo, o aluno pode ainda nutrir falsas dos fenómenos estudados
crenças sobre seu próprio conhecimento linguístico;
Em relação ao desenvolvimento de um conhecimento profun-
b) Quanto ao conhecimento linguístico pedagógico, o conheci- do sobre qualquer assunto, o que as pesquisas neurocientíficas
mento sobre aspectos da gramática que o aluno já aprendeu em têm descoberto é que não são capacidades gerais, tais como a
outras séries, é necessário que o professor saiba quais conceitos memória ou a inteligência, que diferenciam especialistas num
seus alunos já dominam para que possa auxiliá-los a desenvolver

102 103
assunto dos principiantes. Nas palavras dos autores, "conheci- identificar a arquilelura invisível por trás do seu sistema. Sendo
mento utilizável não é o mesmo que uma simples lista de fatos assim, devemos ensinar nossos alunos a enxergar a língua de forma
desconexos" (Bransford et al., 2007: 26). semelhante à dos linguistas. A ideia básica é propiciar contextos
de aprendizagem para que os estudantes possam organizar seus
As pessoas competentes num dado saber, "os especialistas",
conhecimentos linguísticos de forma coerente.
são aquelas que desenvolveram sensibilidade para compreender
os padrões de informações significativas, não acessíveis aos prin- Efetivamente como podemos levar os alunos a aprender de

cipiantes, por exemplo. "Os conhecimentos de especialistas não modo ativo e a compreender os processos linguísticos envolvidos?
são simplesmente uma lista de fatos e fórmulas relevantes para o Para desenvolver uma competência numa área de investigação,
seu campo de atuação; seu conhecimento se organiza na verdade os estudantes precisam:
em torno de conceitos essenciais que orientam seu raciocínio"
a) possuir uma base sólida de conhecimento factual;
(Bransford et al., 2007: 57).

Ainda de acordo com Bransford et al. (2007: 57): b) entender os fatos e as ideias dentro do arcabouço conceituai
e organizar o conhecimento a fim de facilitar sua recuperação
e aplicação;
A capacidade de planejar uma tarefa, de perceber
padrões, de gerar argumentos e explicações razoá-
c) usar a metacognição, ou seja, os estudantes devem ser orienta-
veis, de fazer analogias com outros problemas está
dos para a ter o controle de sua própria aprendizagem por meio
mais intimamente entrelaçada com o conhecimento
da definição dos objetivos da aprendizagem e do monitoramento
do que se acreditava antes. Mas o conhecimento
do seu progresso em alcançá-los.
de um grande conjunto de fatos desconexos não é
suficiente. Para desenvolver competências numa área
de investigação, os estudantes precisam ter oportu- Para que os alunos possam "entender os fatos e as ideias no
nidades de aprender e compreender A compreensão contexto do arcabouço conceituai e organizar o conhecimento a
profunda do assunto transforma a informação factual
fim de facilitar sua recuperação e aplicação", devemos elaborar
em conhecimento utilizável.
atividades que levem os alunos a:

Considerando o conhecimento gramatical e o saber incons-


a. Aprender a identificar padrões;
ciente de nossos alunos, como podemos levá-los à compreensão
profunda de seus conhecimentos gramaticais? A sugestão é que b. Desenvolver uma compreensão profunda do assunto;
os alunos aprendam a pensar sobre o assunto a ser aprendido tal
c. Aprender quando, onde e por que usar tal conhecimento,
como especialistas fazem. Isso pode parecer algo muito difícil e
levando em conta as condições.
complicado para qualquer aprendiz, mas não é.

Em relação à gramática de qualquer língua, os especialistas Como visto no Capítulo 2, os especialistas da linguagem,
que estudam línguas sempre tentam identificar os seus padrões. os linguistas, partem do pressuposto de que as línguas humanas

105
104
possuem uma série de propriedades comuns, por serem o resiil refere à ordem das |)alavras, às etapas de formação de orações, aos
tado de uma habilidade linguística inata, típica da espécie. Além critérios para a seleção de argumentos (relacionados à regência
do próprio conceito de gramática que se distancia do "conjunto verbal) e à concordância verbal. O domínio das estruturas básicas
de regras", ao analisarem as estruturas sintáticas de diferentes que compõem o sistema gramatical da língua portuguesa também
línguas, os linguistas observam, dentre outros fatores, os seguin- auxilia os estudantes a se sensibilizarem para questões relativas a
tes elementos: escolhas lexicais, questões de propriedade vocabular e questões
de variação linguística.
1. Ordem de palavras: ordem básica da língua e alterações
possíveis na ordenação dos elementos sintáticos. composição
b. Desenvolver uma compreensão profunda do assunto
sintagmática da língua;
Por meio do emprego de conceitos adequados acerca dos
2. Seleção de argumentos: número de argumentos, tipo semântico fenómenos linguísticos e com o uso de uma metodologia que
e tipo sintático dos argumentos;
valorize a reflexão, os alunos poderão entender o que está em

3. Presença de elementos adjuntos na oração; jogo na formação de uma oração e no uso dos recursos gramaticais
para a organização e expressão do pensamento.
4. Concordância entre os termos da oração;
Em relação à compreensão profunda do assunto, é importante
5. Efeitos de senddo decorrentes das diferentes combinações frisar que, dentro da metodologia proposta, os fatos linguísticos
possíveis. são apresentados para os alunos num nível crescente de comple-
xidade. A ideia básica é a de que tratar vários temas de forma
Em outras palavras, em relação ao ensino de gramática, con- superficial parece ser uma maneira inadequada de ajudar os estu-
sidero ser de fundamental importância que o estudante compre- dantes a desenvolver competências que garantam o aprendizado.
enda o funcionamento da gramática da sua língua, compreenda No ensino de gramática, é comum atestarmos a apresentação
minimamente os padrões básicos do sistema linguístico que
de um conjunto de fatos de forma superficial. Basta nos lembrar-
e l e j a domina inconscientemente para que possa usar de forma
mos do conjunto de regras apresentado nos capítulos anteriores,
consciente os padrões linguísticos da sua língua nas atividades
quando tratamos do tema concordância verbal.
de leitura e produção de textos.
Sendo assim, apesar de o conhecimento gramatical ser uma
Dentro da metodologia que estamos propondo nesta obra, área em que vários pontos podem ser observados e analisados,
damos a seguinte interpretação para os conceitos supracitados:
devemos optar por selecionar elementos mais gerais do ftincioií.i
mento gramatical, para que o aprendizado dos temas estudados
a. Aprender a identificar padrões seja efetivo.
No caso do conhecimento sintático, os alunos aprenderão
a manipular os padrões básicos da língua portuguesa no que se

106 10/
Também elevemos fornecer muitos exemplos em que o mes
f
I Os alunos devem ler contalo, nas aulas de gramática, com as
mo conceito esteja presente para que o aluno possa ter uma base
diferentes formas de expressão da modalidade escrita da língua
sólida de conhecimento contextualizado.
(os diferentes géneros), não apenas como espectadores, mas
como protagonistas do processo de criação linguística e produ-
c. Aprender quando, onde e por que usar um conhecimento, ção textual, para que possam testar seus conhecimentos, analisar
levando em conta as condições existentes
formas gramaticais, reconhecer novas formas e desenvolver suas
Por meio da compreensão do funcionamento da formação de habilidades linguísticas.
sentenças em sua língua e dos processos gramaticais essenciais, Para que os alunos tenham contato com a diversidade das es-
os alunos poderão usar seus conhecimentos gramaticais para a truturas gramaticais, proponho que as reflexões gramaticais sejam
elaboração de texto, leitura crítica, revisão e análise de textos. levadas para a sala de aula em níveis de complexidade crescente.
Uma vez compreendida a importância da seleção argumentai, Nos primeiros níveis de contato com as estruturas gramaticais, é
por exemplo, o aluno poderá avaliar os efeitos de sentido das interessante utilizar materiais concretos para que os alunos pos-
diferentes opções tomadas pelos usuários da língua. sam manipular os conceitos básicos, entender o funcionamento
Ao perceber a ordem básica da gramática do português, o da língua portuguesa, ter contato com as propriedades linguísticas
estudante poderá avaliar os resultados semânticos decorrentes relevantes etc.
das diferentes mudanças nessa ordem. Ao visualizar a estrutura O material concreto promove a compreensão dos fenómenos
sintagmática, compreenderão os contextos do uso da vírgula. Além gramaticais e a aprendizagem ativa, despertando a consciência
disso, os estudantes também terão maior consciência e controle acerca da estrutura sintática da língua e dos fenómenos gramati-
de suas próprias produções escritas, pois terão as ferramentas cais. Além disso, auxilia na identificação dos aspectos em que há
para analisar seus textos. dificuldade de compreensão.
Entre os recursos didáticos disponíveis para promover a cons-
Princípio III: Promover a aprendizagem ativa por meio do ! ciência linguística acerca dos conceitos básicos da organização
desenvolvimento de habilidades metacognitivas gramatical, sugiro a utilização dos seguintes:
Para que ocorra a aprendizagem ativa, o aluno deve estar
- Materiais recicláveis (caixas de leite, bandejas de isopor, caixas
envolvido no processo educativo e deve ser levado a compreender
de papelão etc): A ideia é que os estudantes utilizem o material
o assunto estudado. Para que haja compreensão, é importante reciclável para representar as estruturas sintagmáticas, as seleções
aprender a identificar quando aprendem algo e quando precisam argumentais e as relações entre os elementos da oração, a fim
de mais alguma informação. Esse aprendizado ativo requer que, de testar conceitos e avaliar, de forma consciente, os efeitos de
nas práticas de sala de aula, haja momentos para a criação do sen- sentido decorrentes da seleção desses elementos.
tido, para a autoavaliação e para a reflexão sobre o que fijnciona - Tabelas sintéticas: recurso usado para promover o reconhe-
e o que precisa ser melhorado no processo de aprendizagem. cimento das estruturas gramaticais, a observação das escolhas

108 109
da compreensiio do luncionamcnto de nossa língua para promo-
lexicais, o processo dc sclcção .irgiimcntal c os tipos de argu-
mentos selecionados. ver a consciência e pretende levar os estudantes a desenvolver a
autonomia e o senso crítico em relação à compreensão da língua
- Práticas de produção de texto: em todas as oficinas, os alunos
e à produção textual.
são incentivados a organizarem suas reflexões e a exporem-nas
em pequenos textos escritos. Essa prática tem o objetivo de aliar No próximo capítulo, apresento atividades práticas elabora-
à consciência sintática o desenvolvimento de aspectos da escrita, das sobre as bases previamente discutidas.
tais como a expressão e a organização do pensamento, a precisão
vocabular, o repertório lexical e as inúmeras possibilidades de
expressão linguística.

- Práticas de análise textual: a análise textual tem o objetivo de


discutir aspectos linguísticos e extralinguísticos envolvidos no
processo da escrita, para que os alunos se tornem cada vez mais
conscientes dos elementos implicados na organização textual.

- Práticas de revisão textual: a revisão de textos desempenha um


importante papel para o aprendizado ativo, porque é uma prática
que ensina os alunos a usarem os conhecimentos aprendidos nas
circunstâncias adequadas. A partir disso, os alunos aprendem
quando, onde e por que usar tal conhecimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos capítulos anteriores, apresentei os fundamentos teóricos


para a construção da Abordagem do Aprendizado Linguístico Ativo,
que são basicamente os fundamentos básicos da hipótese inatista
sob a perspectiva da Teoria Gerativa. Usando tal teoria, respondi
às seguintes questões: O que é uma língua? Como se adquire
uma língua? Quais os objetivos do ensino de Língua portuguesa
na Educação Básica?

Apresentei também as concepções metodológicas a serem


adotadas para promover a compreensão dos fenómenos gramati-
cais. Parti das descobertas advindas das pesquisas da neurociência
sobre a aprendizagem e mostrei como tais princípios podem ser
adaptados ao ensino de gramática. A proposta do método parte

111
110
CAPÍTULO 4

OFICINAS

Trabalhar com os educandos a rigorosidade metódica com


que devem se "aproximar" dos objetos cognoscíveis. E esta
rigorosidade metódica não tem nada que ver com o discurso
"bancário" meramente transferido do perfil do abjeto ou do
conteúdo. É exatamente neste sentido que ensinar não se esgota
no "tratamento" do objeto ou do conteúdo, superficialmente
feito, mas se alonga à produção das condições em que aprender
criticamente é possível.
E essas condições implicam ou exigem a presença de educadores
e de educandos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamen-
te curiosos, humildes e persistentes."
Paulo Freire. Pedagogia da Autonomia

Neste capítulo apresento atividades práticas elaboradas a


partir do modelo de abordagem desenvolvido nos capítulos ante-
riores. As oficinas envolvem alguns temas gramaticais básicos, que
poderão ser levados para a sala de aula da forma que o professor
considerar mais adequada.

Como veremos a seguir, os temas das oficinas não esl.io


fora dos conteúdos pedagógicos do currículo da Educação H.i
sica. As inovações propostas consistem precisamente na foiími
como esses conceitos são apresentados, ou seja, relacion.nn s«-
a uma mudança na metodologia e nos pressupostos t c o i M o s

11 (
que embasam essa metodologia: conhecimentos gramaticais b) entender os latos v .is ideias no contexto do arcabouço concei-
vistos como uma competência inata dos seres humanos e da tuai e organizar o conhecimento a fim de facilitar sua recuperação
gramática vista como um sistema estruturado, ordenado c e aplicação;
hierárquico.
c) usar a metacognição: ensinar os estudantes a controlar sua pró-
Toda aula deve trazer à tona o conhecimento dos alunos, pois pria aprendizagem por meio da definição dos objetivos da apren-
dizagem e do monitoramento do seu progresso em alcançá-lo.
eles usam esse conhecimento, ainda que não tenham consciência
do quanto sabem.
Como visto acima, é muito importante para a aprendizagem
Conforme visto no capítulo anterior, seguiremos nessas prá- que os elementos em (a), (b) e (c) sejam contemplados nas aulas
ticas os três princípios da aprendizagem. Por isso, iremos: de gramática. Conceber a gramática como um sistema, que apre-
senta uma "organização invisível", pode ser uma tarefa bastante
I) Levar em consideração o conhecimento prévio do aluno;
abstrata para alunos da Educação Básica. A solução encontrada
II) Desenvolver o conhecimento profundo dos fenómenos estu- para tornar esse sistema abstrato em algo mais concreto e, ainda
dados; assim, fazer com que os princípios acima fossem contemplados foi
a transformação do conteúdo gramatical em jogos pedagógicos.
11!) Promover a aprendizagem ativa por meio do desenvolvimento
Com o uso de material reciclado, durante as várias ofertas da
de habilidades metacognitivas.
disciplina de Laboratório de Gramática na Universidade de Bra-
sília, os estudantes foram estimulados a transformar as análises
A adoção desses três princípios é importante para que este-
sintáticas, sempre abstratas, em brinquedos concretos e lúdicos'.
jamos atentos aos aspectos essenciais do ato da aprendizagem:
o conhecimento prévio, a compreensão dos fenómenos dentro Mesmo para meus alunos da graduação, as aulas com "sucata"
de um contexto conceituai e a apreensão desses conceitos por eram prazerosas, divertidas, criativas e lúdicas. Como partimos
parte do estudante. A medida em que levamos tais princípios do pressuposto de que a gramática é um sistema estruturado,
para nossas práticas diárias, nos distanciamos do ato de "ensi- podemos partir para a representação concreta do funcionamento
nar" e nos aproximamos das práticas do "fazer-aprender". Com desse sistema e transformar conceitos abstratos em representa-
isso, podemos propiciar a nossos alunos um tipo de saber mais ções palpáveis, coloridas e cheias de sentido.
consolidado e mais duradouro.
É importante estabelecer uma relação direta entre as estru-
Para chegarmos à compreensão profunda do tema a ser es- turas sintáticas e as orações que elas representam. Para isso, é
tudado, também é preciso: recomendável que, a estrutura sintática sob análise, represente
sentenças retiradas de um texto ou poema previamente sele-
a) possuir uma base sólida de conhecimento factual; cionado pelo professor, para tanto, unimos textos às estrului.is

1 A apresentação detalhada de outras atividades gramaticais, com base na inclíKlolnc.i.i .i<|iii


desenvolvida, será o lenia principal do meu próximo livro, em preparai;ai)

114
I r.
linguísticas em análise. Os alunos também podem ser motivados .1 Considerando os princípios acima e as reflexões feitas sobre
alterar as ordens dos constituintes e avaliar os efeitos semânticos o ensino de gramática, elaborei uma tabela, que será apresentada
e sintéticos decorrentes das mudanças feitas. a seguir, e que julgo ser útil como norteadora das atividades a
serem desenvolvidas por professores de Língua portuguesa.
Quando os alunos representam as estruturas linguísticas em
materiais concretos e têm a oportunidade de apresentar suas A ideia dessa tabela é que ela seja um modelo a ser adaptado,
criações aos colegas, cria-se uma oportunidade diferente para pois contempla os princípios acima mencionados e os estrutura
a observação crítica do nível de compreensão a que chegaram e organiza nas diferentes etapas de uma aula. A organização das
e para que eles mesmos vejam onde estão as incompreensões e etapas da aula nessa forma esquemática também tem o objetivo
percebam a importância do manejo dos materiais concretos para de mostrar para professores que pretendem renovar suas práticas
a construção de relações sintáticas abstratas. pedagógicas um modelo concreto de aula concebida sob a meto-
dologia da Abordagem da Aprendizagem Ativa.
A imagem abaixo ilustra uma "maquete" que pode ser feita
para representar a estrutura sintática da oração: Como muitas vezes professores principiantes não sabem
como planejar suas aulas ou atividades dentro da metodologia
da aprendizagem ativa, sugiro que sejam seguidas as etapas que
proponho no quadro a seguir. À medida que o professor for se
sentindo mais confiante em relação à sua prática docente, ele pode
S V O Adj.Adv. (e deve) ir experimentando novas abordagens e novas formas de
se trabalhar com materiais linguísticos.
Outra prática de análise linguística pouco usada na Educação
Básica, mas que se enquadra de forma perfeita nos pressupostos O professor também pode se inspirar nas oficinas a seguir
teórico-metodológicos deste livro é a da revisão de textos. A e concebê-las como atividades complementares ao material di-
revisão de textos pode ser feita por crianças em todas as etapas dático já disponível na escola. Uma pergunta frequente de meus
da Educação Básica, desde que a atividade seja adaptada ao nível alunos, principalmente daqueles que já atuavam como professo-
das crianças. Todos os temas gramaticais podem ser abordados res, relacionava-se ao uso do livro didático. Como já discutido
nas práticas de revisão textual. A revisão textual também expande nos capítulos precedentes, os livros didáticos e as gramáticas
o conhecimento das variáveis presentes na manifestação de um apresentam vários problemas teóricos e metodológicos, mas, com
dado fenómeno linguístico. E também promove, por meio desta base na abordagem que estamos desenvolvendo, acredito que
prática, a observação de fenómenos sintéticos dentro de um seja possível complementar tais lacunas e promover a consciência
contexto real de expressão escrita^. linguística do aluno.

A fim de mostrar como a sequência didática abaixo apresen-


Sugiro a lekura do seguinte artigo, para os interessados numa o r i e n t a ç ã o mais e s p e c í f i c a
sobre a revisão de textos: P I L A T I , Eloisa; S A N D O V A L , Alzira; Z A N D O M É N I C O , Stefania. tada se correlaciona aos princípios da aprendizagem vistos acima,
" R e v i s ã o de textos nas aulas de gramática: uma prática eficiente". Interdisciplinar - Revista
de Estudos em Língua e Literatura. Sao Cr ist óvão: U F S , v. 25, mai./ago , 2016.
comentaremos cada uma das seis etapas nela contidas.

116 11
Sl-QULNCIA DII)Án(V\l)AAI'Ri;NI)IZA(;i:M I.IN(,IIÍSIl(J\AriVA 4. Organização das ideias NcsI.i rl.ip.i, devem ser sistematizadas as descobertas dos alunos.
0 piolessor lambem pode mostrar uma sistematização, em casos
dc estudos dc estruturas linguísticas mais complexas, a fim de
Ativjdade Explicação dos objotivos da atividadc
ajudar os alunos a ganhar tempo no aprendizado.
Para que os conhecimentos linguísticos adquiridos sejam utili-
No primeiro momento da aula, c importante que se investiguem zados de forma consciente, os alunos devem ser incentivados a
1. Avaliação do conheci- 5. Apresentação das ideias
os conhecimentos prévios dos alunos acerca do fenómeno a
produzir textos e a expressar suas ideias nas formas oral e escrita
mento prévio dos alunos ser estudado.
e também por meio do uso de materiais concretos.
Essa investigação é de suma importância, pois serve para:
Para desenvolver o conhecimento factual dos alunos, é recomen-
6. Aplicação dos conheci- dável que 0 professor apresente para eles textos cm que o fenó-
- identificar os conhecimentos prévios dos alunos;
mentos em textos meno estudado ocorra. Dessa forma, o aluno poderá entender
como determinado fenómeno ocorre em situações reais de uso
- verificar se há compreensões prévias inadequadas;
e poderá desenvolver seu conhecimento linguístico explícito
em situações complexas, parecidas com as que enfrentará em
- observar o ponto dc partida sobre o tema a ser apresentado
situações reais de leitura, análise ou produção dc textos.
para que se possa medir o nível de aprendizado dos alunos ao
final da atividade e para que os próprios alunos possam avaliar
A revisão textual pode ser usada como forma de aplicação dos
0 ponto de onde partiram e aonde chegarão ao final da aula.
conhecimentos aprendidos. 0 professor pode apresentar textos
que contenham erros específicos, de acordo com a temática da
Essa avaliação pode ser feita oralmente, por meio de anotações
aula, a fim de que os alunos percebam a aplicação dos temas
na lousa, ou por meio da aplicação de algum teste diagnóstico.
estudados.

0 momento da "experiência linguística" está diretamente rela-


2. Experiência linguística cionado ao conhecimento factual. 0 professor deve sciecionar
SOBRE A METAGONIÇÃO: Devemos incentivar os estudantes a usar a metacogniçao em todos
conjuntos de dados relevantes, orações ou textos, em que os
aspectos linguísticos a serem estudados estejam presentes e os momentos da aula, ou seja, ensinar os estudantes a aprender o controle da sua própria
possam ser objeto dc análise pelos alunos. aprendizagem por meio da definição dos objetivos da aprendizagem e do monitoramento
do seu progresso em alcançá-lo.
Os alunos devem ser incentivados a refletir sobre os fenómenos
3. Reflexões linguísticas linguísticos e a expor suas intuições sobre os aspectos linguís-
ticos relacionados ao tema que está sendo investigado. Além
disso 0 professor deve:

- levar seus alunos a entender os fatos e as ideias no contexto


do arcabouço conceituai e organizar o conhecimento a fim de
facilitar sua recuperação e aplicação.

- apresentar uma quantidade suficiente de casos de estudo


aprofundado para que os alunos compreendam efetivamente os
conceitos e desenvolvam amplo conhecimento factual;

- substituir a cobertura superficial de todos os tópicos por uma


cobertura detalhada de uma quantidade menor de tópicos, para
que se compreendam os principais conceitos.

119
118
OHCINA 1 2.1 Reconhecinicnlo das classes de palavras independentemente
ATIVANDO CONHECIMENTOS LINGUÍSTICOS do conteúdo semântico (vocábulos desconhecidos em estnitura
sintática adequada)
Essa primeira oficina tem o objetivo de evidenciar o conheci-
mento linguístico tácito dos estudantes. São atividades de simples • Os coisitos coisitizaram os coisinhões.
• Como eu estava cansado, seflei os olhos três ou quatro vezes.
execução, mas que têm grande importância para que os alunos
• Senti que não poderia falar dolmamente.
compreendam o conhecimento gramatical que possuem. • Fiquei tão mupestre com essa ideia, que ainda agora me treme a
pena na mão.
A depender do nível dos alunos, o professor poderá apresen-
• Desejo sair daqui o mais bodro que puder...
tar os temas separadamente, em diferentes aulas, ou na mesma
aula. A atividade consiste na apresentação de orações que, num 2.2 Reconhecimento dos elementos sintáticos do português
primeiro momento, são estranhas aos falantes da língua portu- Eu dezipei o zíper do meu casaco, (formação de palavras)
guesa. Assim, a tarefa dos alunos é descobrir e explicar o que
causou o estranhamento. 2.3 Ordem canónica do português
Um comida fiz ontem eu deliciosa, (vocábulos conhecidos em estru-
Lembremos que, em geral, nossos alunos pensam que não
tura sintática fora de ordem)
"sabem nada de gramática". Por isso, atividades como essas po-
dem propiciar aos alunos a tomada de consciência de seu conhe- 2.4 Conhecimentos sobre concordância
cimento e de sua capacidade de reflexão linguística. A peixe comeu o maçã. (uso de um padrão de concordância inexis-
tente no português)
Essa é uma atividade que pode ser feita individualmente ou
em grupo. 2.5 Conhecimentos sobre seleção vocabular (regência)
A peixe comeu em maçã. (emprego de argumentos verbais - sujeito
e objeto - que são inadequados para o verbo da oração)
1. Avaliação do conhecimento prévio dos alunos
O professor deve questionar seus alunos acerca de seu conhe-
Após a apresentação das estruturas selecionadas, deve-se
cimento gramatical. Como eles se sentem em relação à gramática
questionar aos alunos:
do português? Eles consideram que sabem gramática ou não
sabem? No que consiste o conhecimento gramatical do falante? Por que as orações acima parecem estranhas? Identifique os
elementos que causam o estranhamento e tente explicar o porquê
2. Experiências de descoberta e reflexão linguística desse estranhamento.

São apresentadas as seguintes construções linguísticas:

120 121
Do priiiuMro, cu fazia e mexia, e pensar não pensa-
3. Organização das ideias encontradas
va. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de
Nesse momento, o professor e os alunos devem sistematizar dificel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp'ro,
as conclusões obtidas. não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem,
e sem pequenos dessossegos, estou de range rede.
E me inventei neste gosto, de especular ideia. O
4. Apresentação das ideias diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio.
Os alunos devem ser estimulados a apresentar as conclusões Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e
pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se
a que chegaram ou as sistematizações que Fizeram sobre seu
caindo por ele, retombando; o senhor consome essa
saber linguístico por meio de uma exposição ordenada, seja ela água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma?
oral ou escrita. Viver é negócio muito perigoso... (ROSA, Guimarães.
Grande Sertão Veredas, 1994: 5 e 7)
Os alunos podem também representar aspectos analisados
nos diferentes contextos estudados por meio do uso do material
concreto, a "sucata", feita com material reciclável. Essa atividade
é importante para que eles tenham a oportunidade de organizar
o conhecimento obtido e de externalizar sua opinião sobre o
funcionamento sistema gramatical do português.

Nessas atividades de externalização do conhecimento, tanto


professores quanto alunos poderão verificar seu conhecimento
linguístico sobre vários aspectos gramaticais. A externalização do
conhecimento também favorece que compreensões equivocadas
sejam esclarecidas.

5. Aplicação dos conhecimentos em textos


Por fim, para que os estudantes possam perceber a utilidade
da tarefa feita, podem ser apresentados parágrafos de textos, com
alterações nas desinências flexionais ou na ordem dos vocábulos.

Um exemplo disso é o texto a seguir de Guimarães Rosa, em


Grande Sertão Veredas (1994). Os alunos podem ser convidados a
analisar o texto abaixo, destacando os aspertos linguísticos usados
por Rosa para representar a fala de seu personagem sertanejo:

1
122
onciNA 2 No meio do caminho
IDENTIFICANDO ESTRUTURAS DE CONSTITUINTES
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
Esta segunda atividade tem o objetivo de conscientizar os tinha uma pedra
alunos acerca de uma importante propriedade das línguas hu- no meio do caminho tinha uma pedra.
manas, que é a organização em constituintes. Nesta oficina, os Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
estudantes poderão usar seus conhecimentos linguísticos para
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
manipular as estruturas sintáticas, analisar as diversas combina-
tinha uma pedra
ções possíveis, fazer substituições, pronominalizações e, com tinha uma pedra no meio do caminho
isso, desenvolver conscientemente as habilidades relacionadas no meio do caminho tinha uma pedra.

às diversas operações sintáticas. C a r l o s D r u m m o n d de A n d r a d e

A atividade consiste no reconhecimento dos constituintes 2. Experiências de descoberta e de reflexão linguística


oracionais no desenvolvimento de diversas atividades sintáticas
Vemos que, no poema acima, o poeta usa as diferentes or-
em que os constituintes presentes na oração são manipulados.
denações possíveis no português para causar os efeitos estéticos
Essa atividade também propicia aos alunos a tomada de consciên-
e semânticos que deseja. Observemos novamente alguns versos
cia acerca de seus conhecimentos linguísticos e das possibilidades
do poema:
da sua língua. A atividade pode ser feita individualmente ou em
grupo. Os constituintes podem ser representados em materiais No meio do caminho tinha uma pedra
recicláveis, tal como mencionado no Capítulo 3, para que os alu- tinha uma pedra no meio do caminho
nos possam compreender e manipular as estruturas sintáticas. tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

1. Avaliação do conhecimento prévio dos alunos A esse grupo de palavras que está sempre junto damos o
a. C o m o as o r a ç õ e s s e o r g a n i z a m ?
nome de constituinte. Um constituinte pode ser compreendido
b. C o m o e l a s s e d i v i d e m ?
como uma palavra ou um grupo de palavras que funcionam como
c. Por q u e u m a o r a ç ã o c o m o a a p r e s e n t a d a a b a i x o n ã o é u s a d a
no p o r t u g u ê s ? uma única unidade dentro da sentença. Muitas vezes, podemos
ser levados a pensar que uma oração é somente um conjunto de
*Uma tinha pedra no caminho meio do palavras apresentadas numa dada ordem. No entanto, quando nos
a. Q u a l s e r i a a m e l h o r o r d e m p a r a t a l o r a ç ã o ? aprofundamos no estudo das propriedades das orações, vemos
b. Q u e t i p o de m o d i f i c a ç ã o v o c ê f e z na o r a ç ã o a c i m a p a r a t o r n á -
que há mais estrutura na oração do que podemos imaginar.
la a c e i t á v e l ?
c. L e i a o p o e m a a b a i x o , d e C a r l o s D r u m m o n d d e A n d r a d e :

125
124
Analisemos agora os versos abaixo: - Quando ou mo esquecerei desse acontecimento? , , ^ ,•
- Nunca.

Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas


tão fatigadas. c) Clivagem

- É desse acontecimento que nunca me esquecerei / na vida de minhas


Quantos constituintes podemos identificar nos versos acima? retinas tão fatigadas.
- Sou eu que nunca me esquecerei / desse acontecimento.
(Eu) I Nunca / me esquecerei / desse acontecimento / na vida / de minhas
retinas tão fatigadas./
d) Topicalização:

Apliquemos os testes abaixo para entender a organização da - Na vida de minhas retinas tão fatigadas / nunca / me esquecerei I
oração em constituintes: desse acontecimento.

a. P r o n o m i n a l i z a ç ã o 3. O r g a n i z a ç ã o das ideias encontradas

Os alunos devem ser encorajados a organizar sua compre-


(Eu) /Nunca / me esquecerei / desse acontecimento / na vida de
ensão acerca do funcionamento das estruturas de constituintes.
minhas retinas tão fatigadas.
(Eu) /Nunca / me esquecerei / disso / na vida de minhas retinas O que são constituintes? C o m o identificá-los?
tão fatigadas.
Disso = desse acontecimento
4. Apresentação das ideias

(Eu) /Nunca / me esquecerei / desse acontecimento / na vida de Uma sugestão para que os alunos compreendam a organi-
minhas retinas tão fatiffaHa^ zação sintática dos constituintes nas sentenças é o trabalho com
(Eu) /Nunca / me esquecerei / desse acontecimento / ]L
materiais recicláveis.
Lá = na vida de minhas retinas tão fatigadas.
A tarefa consiste em usar tais materiais para representar con-
b. Perguntas QU- cretamente as estruturas de constituintes e também de brincar com
essas estruturas em diferentes ordenações para que eles possam
- Do que nunca me esquecerei?
perceber os efeitos de sentidos gerados por uma ou outra ordrni.
- Desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas.

- Quem nunca se esquecerá? 5. A p l i c a ç ã o dos c o n h e c i m e n t o s e m textos


-Eu.
Chamadas de j o r n a i s sempre operam com a manipiil.u,.i<>
- O que aconteceu? consciente da ordem dos constituintes, dependendo d.i iiicir,.ii'.iiii
-Eu/Nunca/me esquecerei/desse acontecimento/na vida de minhas que desejam transmitir para o leitor.
retinas tão fatigadas.

126 L'/
Para que estudantes vejam na prática a importância de se tci OIICINA 3
consciência sobre a estrutura de constituintes, eles podem brincar INVHS nCANDO ESTRUTURAS AMBÍGUAS
de editores de jornal. Seria interessante mostrar a mesma cen.i
para todos e pedir que eles criem uma chamada de capa de jornal, Esta terceira atividade tem o objetivo de auxiliar os alunos na
sob o ponto de vista dos envolvidos na cena, tomando partidos tomada de consciência acerca de outra propriedade das línguas
diferentes e dando ênfase a diferentes pontos de vista. humanas, que é a hierarquia existente entre os constituintes de
uma dada sentença. Nesta oficina, os estudantes poderão usar
seus conhecimentos linguísticos para avaliar os efeitos de sentido
decorrentes das diferentes possibilidades de combinação entre
os constituintes.

A atividade consiste no reconhecimento dos diferentes senti-


dos derivados das possibilidades de combinação dos constituintes
oracionais. Essa atividade é bastante lúdica e desafiadora para os
alunos. Propicia aos alunos a tomada de consciência acerca de
seus conhecimentos linguísticos, além de mostrar os diferentes
efeitos de sentido que podem surgir, dependendo das escolhas
feitas na ordem dos constituintes da sentença. A atividade pode
ser feita individualmente ou em grupo.

1. Avaliação do conhecimento prévio dos alunos


Os alunos são capazes de identificar o duplo sentido, ou seja,
a ambiguidade, no cartaz abaixo que foi pregado nos corredores
da Universidade de Brasília?

I- - —'-^
Alugo apartamento com banheiro
perto da UnB ^

2. Experiências de descoberta e reflexão linguística


a. Quais as possibilidades de leitura da oração acima?

128 129
b. Explique, com palavras ou com desenhos, .is silua^ões possíveis. OFICINA 4 uv: nb ( t h ' ' •
FORMANDO ORAÇÕES
c. Qual é o termo responsável pela ambiguidade na oração acima?
A quarta oficina tem o objetivo de levar os alunos a compre-
d. Para cada interpretação possível, explique a que termo da
oração a expressão "perto da UnB" se liga.
ender o processo de formação de orações. Esta atividade se baseia
nos pressupostos gerativistas segundo os quais, no processo de
e. Caso haja mudança na ordem dos termos, a ambiguidade pode formação de orações, é necessário que haja termos predicadores,
ser resolvida?
que são os termos que selecionarão os argumentos da oração
(sujeitos e complementos, no caso dos predicados verbais).
f. Apresente as diferentes ordens possíveis.
Nesta oficina, os estudantes usarão suas intuições linguísticas
3. Organização das ideias encontradas acerca da seleção argumentai e da formação de orações.
O s alunos devem perceber, ou ser levados a perceber, que a
Essa atividade é muito útil para o reconhecimento dos padrões
ordem dos sintagmas pode influenciar a interpretação das sentenças. da língua portuguesa, o desenvolvimento de conhecimentos acerca da
As perguntas acima podem ajudar os alunos na solução das formação da oração e o refinamento de conhecimentos relativos aos
ambiguidades presentes. termos que desempenham papéis de complementos e de adjuntos.

Inicialmente os alunos são levados a refletir sobre as carac-


4. Apresentação das ideias terísticas morfossintáticas de verbos cujo significado eles não
Os alunos podem ser motivados a redigir um parágrafo ex- compreendem. O objetivo dessa reflexão é mostrar aos alunos
plicando os diferentes sentidos decorrentes de uma das orações que, independentemente de sabermos o significado da palavra, é
ambíguas estudadas. possível que reconheçamos a classe verbal a que ela pertence. As
formas verbais do português apresentam flexões de tempo, modo,

5. Aplicação dos conhecimentos em textos número e pessoa e essas informações são vistas e compreendidas
por todos os falantes do português. No segundo momento, os alu-
a. Analise as orações abaixo e explique as interpretações possíveis. nos devem ler o poema apresentado, fazer uma breve análise sobre
Identifique os elementos que tornam as construções ambíguas e o conteúdo do poema e depois analisar os verbos presentes nele,
reescreva as orações de forma a sanar a ambiguidade.
a fim de compreender como os verbos escolhidos contribuem para
João viu a menina com o binóculo. a organização estética do poema. Após essa etapa, os alunos são
José entrou na sala de muletas. convidados a analisar as formas verbais mais de perto, sob aspectos
sintáticos e semânticos. Depois da reflexão linguística, os alunos
b. Pesquise em jornais ou revistas orações ambíguas e explique
são incentivados a produzir um poema, ao estilo de Drummond,
o que causou as ambiguidades encontradas.
usando conjuntos de verbos que ajudem na expressividade do texto.

130 131
1. A v a l i a ç ã o do c o n h e c i m e n t o prévio dos a l u n o s 3. O r g a n i z a ç ã o das ideias e n c o n t r a d a s

Crie uma frase para cada um dos verbos a seguir, depois


a. A n a l i s e m o s as o r a ç õ e s a b a i x o :
identifique o número de argumentos que os verbos selecionaram
A s m e n i n a s presepeparam as formigas. ., ^
nessas o r a ç õ e s e o tipo d e s s e s argumentos (se nominais, prepo-
S e m p r e presepepei f o r m i g a s d u r a n t e m i n h a infância
sicionais ou oracionais).
b. O q u e s i g n i f i c a presepepar?

c. A q u e c l a s s e d e p a l a v r a s a p a l a v r a presepepar pertence? Justi- casar


fique s u a r e p o s t a .
suportar

d. Faça u m a n o v a o r a ç ã o c o m presepepar'. odiar

2. Experiências de d e s c o b e r t a e reflexão l i n g u í s t i c a substituir

salvar
Poema da necessidade
crer
É preciso casar João, ter
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir n ó s todos.
4. A p r e s e n t a ç ã o das ideias
É p r e c i s o s a l v a r o país,
é preciso crer e m Deus, De acordo com o D i c i o n á r i o Houaiss eletrônico, a definição

é p r e c i s o p a g a r a s dívidas, de verbo é: "classe de palavras que, do ponto de vista semântico,


é preciso c o m p r a r u m rádio, c o n t é m as n o ç õ e s de ação, processo ou estado, e, do ponto de
é preciso e s q u e c e r fulana.
vista sintático, exerce a função de núcleo do predicado das sen-
É preciso estudar volapuque,
tenças".
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é p r e c i s o c o l h e r as flores d e q u e r e z a m v e l h o s a u - a. V o c ê c o n c o r d a c o m a d e f i n i ç ã o a p r e s e n t a d a a c i m a ?
tores.
É p r e c i s o v i v e r c o m os h o m e n s , b. S o b o p o n t o d e v i s t a s i n t á t i c o e m o r f o l ó g i c o , o q u e p o d e m o s
é preciso não assassiná-los, dizer sobre o comportamento dos verbos na o r a ç ã o ?
é p r e c i s o t e r m ã o s pálidas
e a n u n c i a r o fim d o m u n d o . c. S o b o p o n t o d e v i s t a sintático, e x p l i q u e o q u e s i g n i f i c a d i z e r q u e
os v e r b o s e x e r c e m a função d e n ú c l e o d o p r e d i c a d o d a s s e n t e n ç a s .
Carlos D r u m m o n d de Andrade

3 Alguns aspectos que caracterizam presepepar como verbo sSo: suas características morfo-
lógicas, tais como, as desinências de infinitivo -ar, e suas características sintálicas, o verbo
seleciona dois argumentos - as meninas e as formigas - , e o tipo sintático dos argumentos
selecionados - dois elementos nominais.

132 133
5. Aplicação dos conhecimentos cm textos OnCINA 5
COMPREENDENDO A ESTRUTURA DA ORAÇÃO E O USO DA VÍRGULA
Como visto acima, os verbos compõem uma classe de palavras
que apresentam propriedades sintáticas, semânticas e morfológi-
A quinta oficina também pretende levar os alunos a percebe-
cas próprias. Tais propriedades foram manejadas esteticamente
rem aspectos relevantes do sistema linguístico, a olharem a língua
por Drummond.
fazendo um "raio-x" de sua estrutura sintática. Esta atividade
Considerando todas essas reflexões, elabore um poema, ao também se baseia nos pressupostos gerativistas de formação de
estilo de Drummond, trabalhando com os elementos estéticos orações.
que o caracterizam.
Como se perceberá a seguir, na seção 2 desta atividade, há
tabelas sintáticas. Essas tabelas têm o objetivo de desenvolver
a consciência sintática dos alunos por meio da representação
concreta e visual de estruturas básicas da sintaxe do portu-
guês. De uma forma simplificada, são apresentados diversos
conceitos sintáticos, tais como: tipos de predicados (verbais
e nominais), número de argumentos selecionados pelo verbo,
ordem direta do português, diferenças entre complementos
verbais e adjuntos.

Nos capítulos anteriores, critiquei o que defini como a "falha


na ordenação da apresentação dos conceitos gramaticais por parte
dos materiais didáticos", em que "os elementos que interagem
na sintaxe da oração são apresentados de forma estanque e
descontextualizada". Uma das formas de resolver o problema da
descontextualização é reapresentar as tabelas sintáticas nas aulas
de gramática. Caso as tabelas sejam feitas com material reciclado
e fiquem bonitas, podem ser usadas como decoração da sala de
aula. Dessa forma, a cada nova aula de gramática, pode-se mos-
trar a relação entre os temas sintáticos a serem estudados com o
sistema da língua representado na tabela.

134 135
1. Avaliação d o c o n h e c i m e n t o prévio dos a l u n o s a. liXHMIM.O: Anii Julia fçz um discurso de dez minutos na tribuna
Questionamentos iniciais que podem ser feitos: da Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP), em Curitiba.
- O que é uma língua?
- O que é uma gramática? b. A secundarista de 16 anos, que estuda no colégio Senador
- De que forma a compreensão da gramática como um sistema Manoel Alencar Guimarães, discursou em nome dos alunos das
mental inato, como uma competência do falante, pode nos au- mais de 1000 escolas ocupadas no país em diversos estados.
xiliar na produção textual?
c. Estas são as palavras da estudante:

2. Experiências de descoberta e d e reflexão linguística d. A reforma na educação precisa de debate prévio.


Ordem básica do Português e tipos de verbo:
e. A população depende do sistema público de saúde e educação.

s V 0 Adj. Adverbial O r d e m básica do Português e tipos de verbo:"


chover

chegar
s v 0 Adj. Adverbial

viajar
Ana Julia fez um d i s c u r s o de na tribuna da Assem-

comer dez minutos bleia Legislativa do


Paraná (ALEP), em Curi-
fazer tiba.

gostar em nome dos alunos


A secundarista de discursou
16 anos das mais de 1000 es-
dar
colas ocupadas no país
em diversos estados.

A reforma na precisa de debate prévio.


S Verbo de Ligação PS Adj. Adverbial
educação
inteligente
A população depende do s i s t e m a p ú -

lindas blico de saúde e


educação.
felizes

conscientes

Identifique os elementos básicos que c o m p õ e m as orações 4 A s tabelas acima têm o objctivo de desenvolver a consciência sintática dos alunos por meio da
represenlaiííto concreta c visual de estruturas básicas da sintaxe do português. De uma forma
abaixo e preencha as tabelas q u e se seguem c o m os termos que
simplificada c estruturada, as tabelas pretendem representar os conceitos sintáticos ocorrendo
c o m p õ e m a oração: em conjunto, tais como: tipos de predicados (verbais e nominais), número de argumentos
selecionados pelo predicador, ordem direta do Português, diferenças entre complementos
verbais c adjuntos Hssas tabelas podem ser adaptadas e usadas em várias situações para que
os alunos desenvolvam sua capacidade de visualizar a estrutura da gramática do Português.

136 137
III) Para separar termos que exercem a mesma função sintática: enumerações,
S i VL PS 1 Aclj. Adverbial
orações coordenadas. Exemplos:
Estas ; são as palavras da
estudante. a. Há temas que estão em debate no país, entre eles, citamos o combate à corrupção,
o combate ao crime, a atuação na tutela coletiva, e a defesa do interesse público.

b. Precisamos discutir a educação, mas precisamos ter argumentos sólidos.


Uso da vírgula e estrutura da oração

A g o r a q u e v o c ê já c o n s e g u e v i s u a l i z a r os e l e m e n t o s q u e for-
m a m a sentença, v e j a m o s a relação e n t r e a s i n t a x e dos t e r m o s d a
oração e s u a relação c o m o uso d a vírgula. A p e s a r de as gramáticas 3. A p r e s e n t a ç ã o das i d e i a s

t r a d i c i o n a i s n ã o a f i r m a r e m , os p r i n c í p i o s q u e o r i e n t a m o uso da Para que os a l u n o s p o s s a m u t i l i z a r os c o n c e i t o s a p r e s e n t a -


vírgula s ã o e s s e n c i a l m e n t e sintáticos. V e j a m o s a b a i x o os c a s o s dos e m d i f e r e n t e s c o n t e x t o s d e uso, r e c o m e n d a - s e q u e haja u m
m a i s r e c o r r e n t e s do uso d a vírgula: m o m e n t o na aula para o t r a b a l h o c o m o m a t e r i a l c o n c r e t o .

O p r o f e s s o r pode s e l e c i o n a r o r a ç õ e s d e a l g u m t e x t o e p e d i r
q u e os a l u n o s r e p r e s e n t e m os c o n t e x t o s d e uso d a vírgula nas
Há 3 usos mais recorrentes:
o r a ç õ e s s e l e c i o n a d a s . Os a l u n o s d e v e m d i v i d i r as o r a ç õ e s e m
I) Para indicar a "ruptura" da ordem direta nas orações (S-V-0, S-VL-PS): termos
c o n s t i t u i n t e s , os quais d e v e m ser m a n i p u l a d o s , o u seja, m o d i f i -
intervenientes (com mais de três palavras), termos topicalizados ou retirada do
verbo. Exemplos: c a d o s d e d i f e r e n t e s f o r m a s p a r a que t e n h a m a o p o r t u n i d a d e d e
aplicar os d i f e r e n t e s c o n t e x t o s no uso d a vírgula.
Ana Julia fez um discurso de dez minutos na tribuna da Assembleia Legislativa do
Paraná (ALEP).
Oração na ordem direta, no português - SVO + Adjunto Adverbial
4. A p l i c a ç ã o d o s c o n h e c i m e n t o s e m t e x t o s
Não há "ruptura", portanto não há necessidade de se usar vírgula.
a. Em Curitiba, no Paraná, Ana Julia fez um discurso de dez minutos. a. Atividade de produção textual individual
b. Ana Julia, em Curitiba, no Paraná, fez um discurso de dez minutos.
O p r o f e s s o r p o d e s u g e r i r q u e os e s t u d a n t e s r e d i j a m u m pa-
c. Um discurso, Ana Julia fez na tribuna da Assembleia Legislativa do Paraná.
d. Ana Julia discursou no Paraná e, no início dessa semana, discursará em Brasília. rágrafo s o b r e o t e m a A educação é investimento, não, gasto.

II) Para separar termos explicativos (que podem apresentar várias naturezas sintá-
O professor os orientará a pensar na ideia que irão apresentar.
ticas, podem ser orações adjetivas explicativas ou apostos). Exemplos:
Eles deverão fazer períodos curtos, escolhendo conscientemente
todos os termos das orações que usarão, a ordem das palavras,
a. A população, que depende do sistema público de saúde e educação, será a mais
além de ficarem atentos ao uso da vírgula de acordo com os
prejudicada com o congelamento dos gastos.
critérios comentados anteriormente.
b. A secundarista de 16 anos, que estuda no colégio Senador Manoel Alencar Gui-
marães, discursou em nome dos alunos.

C.José, o líder do movimento, será o primeiro a falar.

138
b. Atividade de prodiiçrio textual cm grupo OnCINAG
ESCOLHAS LEXICAIS E EFEITOS DE SENTIDO
O professor também pode produzir um texto juntamente com
seus alunos. Os alunos vão dando as ideias e criando as orações
Esta oficina tem o objetivo de promover o conhecimento
e o professor vai escrevendo-as no quadro, dando sugestões,
linguístico dos estudantes no que se refere às diferentes possi-
modificando orações e mostrando aos alunos como usar a vírgula
bilidades de formação de enunciados e aos diferentes efeitos de
adequadamente.
sentido decorrentes das escolhas feitas.

Por meio da comparação e análise de enunciados que tratam


c. Atividade de revisão de textos
do mesmo tema, o estudante é convidado a refletir acerca da im-
O professor também pode retirar as vírgulas do texto abaixo, portância da escolha dos itens lexicais para a produção de sentido
pedir para os alunos revisarem-no e colocar as vírgulas onde for e a desenvolver sua capacidade de seleção das unidades e estru-
necessário, de acordo com os três critérios vistos acima. turas mais adequadas à expressão de determinados significados.

Atualmente sabe-se que os recém-nascidos são aprendizes 1 . Avaliação do conhecimento prévio dos alunos
ativos e que trazem certo ponto de vista para o ambiente em Leia as manchetes dos textos abaixo e tente identificar os
que vivem. Isso significa dizer que ao contrário do que se possa efeitos de sentido de cada uma das sentenças apresentadas^:
imaginar o mundo dos bebés não é uma confusão de ecos bur-
burinhos ruídos e sons. Muito pelo contrário pesquisas revelam
a. Número de pessoas empregadas tem maior queda desde 2012,
que o cérebro de um recém-nascido sabe quais informações prio-
nota IBGE.
rizar, sejam informações linguísticas sejam conceitos referentes
a nijmeros propriedades fisicas movimento de objetos animados b. Número de pessoas desempregadas tem maior aumento desde
e inanimados. 2012, atesta IBGE.

2. Experiências de descoberta e reflexão linguística


O que muda no sentido das orações acima em cada uma de
suas versões? Explique.

3. Organização das ideias encontradas


Sintetize as respostas apresentadas acima.

5 Fonte das ora(;òcs: hltps://www.facebook.com/canetadesmanipuladora Acesso em 10 de


março de 2017.

140 141
4. Apresentação das ideias
Elabore um parágrafo que discuta como o uso das formas lin-
guísticas pode ser usado para sugerir interpretações da realidade.

5. Aplicação dos conhecimentos em textos REFERÊNCIAS


Considerando as duas versões da manchete abaixo, explique
como as formas linguísticas podem ser usadas para apresentar ANDRADE, Carlos Drummond de. 2012. Sentimento do mundo. São Paulo:
visões distintas da realidade^ Companhia das Letras.
BRANSFORD etal. (orgs.). 2007. Como as pessoas aprendem: cérebro, mente.
experiência e escola. São Paulo: Editora Senac.
T V Cultura decide retirar canção "Roda Viva, de Chico Buarque,
BRASIL. S e c r e t a r i a de Educação F u n d a m e n t a l . 1998. Parâmetros
da abertura do programa de entrevistas.
curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental:
língua portuguesa - Secretaria de Educação Fundamental. Brasília:
TV Cultura, a pedido do compositor, retira canção "Roda Viva, de
MEC/SEF
Chico Buarque, da abertura do programa de entrevistas. BRASIL. Ministério da Educação. 2000. Parâmetros Curriculares Nacionais
(Ensino Médio). Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília:
MEC.
BRASIL. Ministério da Educação. 2007. Parâmetros Curriculares Nacionais:
Língua Portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília.
BRASIL. Ministério da Educação. 2017. Base Nacional Comum Curricular.
Secretaria de Educação Básica. Brasília.
CAGLIARI, Luiz Carlos. 2009. Alfabetizando sem o Ba - Be - Bi - Bo - Bu.
São Paulo: Scipione.
CASTILHO, Ataliba T de. 2010. Nova Gramática do Português Brasileiro.
São Paulo: Contexto.
CHOMSKY, Noam. 1957. Syntatic Structures. La Haya Mouton.
CHOMSKY, Noam. 1975. Aspects of the theory of syntax. Cambridge
Massachusetts: MIT Press.
CHOMSKY, Noam. 1986. Knowledge ofLanguage: Its Nature. Origin, and
Use. New York: Praeger Publishers.
C H O M S K Y , Noam. 2 0 0 6 . Sobre Natureza e Linguagem. Adriana
Belletti e Luigi Rizzi (Orgs.). Rio de Janeiro: Ed. PUC - Rio-São
Paulo: Loyola.
CHOMSKY, Noam. 2009. Linguagem e mente. Trad. de Roberto Leal
Ferreira. 3. Ed. São Paulo: Editora Unesp.
CHOMSKY, Noam. 2011. Language and Other Cognitive Systems. What
Is Special About Language? Language Learning and Development, 7:4,
263-278.
6 Fonte das orações: https://www.facebook.com/canetadesmanipuladora. A c e s s o em 10 de
março de 2017.

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