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O leção Lingua[gem] A NE Bye

Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa, Marcos Bagno 6 VÁ ; E q ç : — 4


Linguagem & comunicação social — visões da linguística moderna, Manvel Luiz Gonçalves Corrêa Bm ' E Pia ' A
:
Por uma linguística crítica, Kanavillil Rajagopalan a t 7 ER
Educação em lingua materna: a sociolinguística na sala de aula, Stella Maris Bortoni-Ricardo ; ; N Pes à ç Lá E E O N B IB [IE O o
Sistema, mudança e linguagem — um percurso pela história da tinguística moderna, Dante Lucchesi , i : e o k
“O português são dois” — novas fronteiras, velhos problemas, Rosa Virginia Mattos e Silva ja ga Wo ; ,
Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro, Rosa Virginia Mattos e Silva her CR a 2» )
A linguística que nos faz falhar — investigação crítica, Kanavillil Rajagopalan, Fábio L. da Silva-forgs.] Ed ( ê PN de ; E Il INI e
Do signo ao discurso — introdução à filosofia da linguagem, Inês Lacerda Araújo A AN as
Ensaios de filosofia da linguística, José Borges Neto
nNHo

Nós cheguemu na escola, e agora? - sociolinguística e educação, Stella Maris Bortoni-Ricardo


Dou-se lindos filhotes de poodle — variação linguística, mídia e preconceito, Mº Marta Pereira Scherre
A geopolítica do inglês, Yves Lacoste [org.), Kanavillil Rajagopalan
nov

Gêneros — teorias, métodos, debates, ). L. Meurer, Adair Bon , Désivéc Motta-Roth [orgs.]
O tempo nos verbos do português — uma introdução « sua interpretação semântica,
Maria Luiza Monteirg Sales Corôa E
Considerações sobre a fala e a escrita — fonologia em nova chave, Darcilia Simões
Princípios de linguística descritiva, M. A. Perini ;
8. Por uma linguistica aplicada indisciplinar, Luiz Paulo da Moita Lopes
Fundamentos empíricos para uma teoria da mucança linguística, U. Weinreich, W. Labov, M. 1. Herzog
Origens do português brasileiro, Anthony Julius Naro, M! Marta Pereira Scherve
introdução à gramaticalização — princípios teóricos & aplicação, Sebastião Carlos Leite Gonçalves,
Mº Célia Lima-Hernandes, Vânia Cristina Casselb-Galvão [otgs.]
O acento em português — abordagens fonológicas, Gabriel Antunes de Araújo org]
Sociolinguística quantitativa — instrumental de análise, Gregory R. Guy, Ana Maria Stahl Z les
Metáfora, Tony Berber Sardinha
Norma cuita brasileira — desatando alguns nós, Carlos Alberto
Padrões sociolinguísticos, William Labov
Gênese dos discursos, Dominique Mainguencau - ,
Cenas da enunciação, Dominique Maingueneau -
Estudos de gramática descritiva — as valências verbais, Mário A. P
Caminhos da linguística histórica — “Ouvir o inaudível”, Rosa Vi Mattos
e Silva
Limites do discurso — ensaios sobre discurso e sujeito, Sírio Possenti :
Questões parn unalistas do disctirso, io Possenti
Linguagem & diálogo — as ideias linguísticas do Circulo de Bakhtin, Carlos Alberto Faraco
Nomenclatura Gramutica! Brasileira — cinquentu anos depois, Wiques -
Língua na mídia, Sírio Possenti .
Mulcomportadas linguas, Sírio Possenti
Linguagem. Gênero. Sexualidade: clássicos traduzidos, Ana C ina Oslormi e Bealviz Fontana [orgs]
Em busca de Ferdinand de Saussure, Michel Arrivé
A noção de “fórmula” “em análise do discurso — quadro teórico e metodológico, Alice K g-Planque
Geolinguística — tradição e modernidade, Suzana Álice Marcelino Cardoso
Doze conceitos em análise do discurso, Dominique Mainguencau
O discurso pornográfico, Dominique Maingueneau
Falando ao pé da letra — a constituição da narrativo e do letramento, Roxane Rojo
Nova prugmática — fases e feições de um fazer, Kanavillil Rajagopal:
Linguagem — atividade constitutiva — teoria e poesiu, Carlos chi
Língua portuguesa — descrição e ensino, Maria Teresa G, Pereira, André €, Valente [orgs.]
Políticas da norma e conflitos linguísticos, Xoán Carlos Lagares, Marcos Bagno [org.] Rm XUNTA
é DE GALICIA
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1
Uireve
WRIGHT, S. (2004). Language Policy and Language Planning: from Nationalism to Globali-
zation. Hampshire-Nova York: Palgrave- “Macmillan.
sra
WIDDOWSON, H, G. (1994), The Ownership of English: TESOL Quarterly E
e “IMAGINÁRIO, CIÊNCIA:É HIPÓSTmm
28, nº 2:
ASE= a
a Marcos BAGNO
Universidade de Brasília
! Cost quaerenti explicare velim, nescio.
ques é, pois, o tempô? Se ninguém me pergunta, sel;
se me pedem que explique, não sei.
.
* Sto. Agostinho, Confissões, XI, 14
1. EXISTE UM CONCEITO CLARO DE LÍNGUA?
E | OBS ENVAN DO a epígrafe acima, e pára respoder a pergun-
: y ta do título, me parece que poderíamos muito
bem substituir a palavra tempo pela palavra língua. O que é uma língua?
Todo mundo paréce saber, mas duvido que haja alguém que consiga res-
ponder, sem hesitação, de modo definitivo e seguro. Mas não duvido haver
quem saiba reconhecer nessa mesma citação de Agostinho duas “línguas”
diferentes, que recebem os nomes de latim e português.
O conceito de língua não é o mais fácil de se definir. Numa obra cole-
Dali tiva! em que foram entrevistados dezoito linguistas brasileiros de reno-
. me, a primeira pergunta — “Que é língua?” — mereceu respostas tão dis-
S ' Antônio Carlos Xavier, Suzana Cortez (orgs.) (2003). Conversas com linguistas. São Pau-
lo: Parábola Editorial.
E

paratadas entre si'quanto “atividade, trabalho”, “meio de comunicação”, que “o ponto-de vista cria o objeto”. E tinha razão: a língua, seja ela o que
“multissistema governado por um dispositivo sociocognitivo”, “complexa for, não se deixa apreender por inteiro — é preciso escolher um ponto
realidade semiótica”, “condensação de todas as experiências históricas de desde o qual a gente a observe para.daí tirar algumas conclusões, todas
mote
uma dada comunidade”, produto de um trabalho social e histórico” “c sempre enganosas e instáveis.
pacidade biológica, inata à espécie humana”, “domínio público de cons-
" Não há remédio: para se falar de uma língua, é preciso construí-la,
trução simbólica e interativa do mundo” “fenômeno social por excelência,
fabricá-la, forjá-la, dar um nome a ela, afribuir-lhe propriedades, caracte-
vinculado a um território e a uma população” entre outras. Ou seja, a lín-
gua, tal como o mito de Ulisses no poema de Fernando Pessoa, “é o nada rísticas, personalidade; índole. E esse é um trabalho empreendido não so-
que é tudo”, mente pelo linguista, em suas pretensões de objetividade científica”, mas
, -
também (e talvez sobretudo) pelos falantes comuns, em suas práticas de
Na clássica separação entre natura e cultura, onde se situa a língua?
higiene verbal (Cameron 1995), de mitificação e mistificação coletiva dos
Há razões para se acreditar que a linguagem humana é um dado biológico,
bens simbólicos, de construção do imaginário social acerca da própria
é uma das faculdades do nosso cérebro e, portanto, pertenceria ao reino
cultura a que pertencem e dos mitos de origem que lhes dão raízes histó-
da natureza. Mas tambémé incontestável que as línguas são o elemento
ricas e memória comum.
mais importante de uma cultura, de uma sociedade. Seu vínculo estreito
com a identidade individual, comunitária e nacional converte a língua ou
as línguas (devidamente hipostasiadas, como-veremos abaixo) em pode-
2. A LÍNGUA COMO HIPÓSTASE
rosos fatores de tensão política, de sofrimento psicológico, de manipula-
ção ideológica e toda sorte de dinâmica sociocultural, As línguas sempre Por isso é possível, no discurso geral sobre a língua, falar dela como
têm sido bandeiras debaixo das quais grupos específicos se reúnem para sujeito, como se fosse uma entidade dotada de vontade e poder de ação,
defender ou reivindicar seus direitos e, do mesmo modo, bandeiras que por exemplo, quando se diz: “O português possui mais tempos verbais
os Estados constituídos desfraldam para exercer suas políticas de con-
do que as outras línguas românicas”, ou “o inglês rejeita construções com
trole social, seja pela repressão de outras línguas, seja pela promoção da
dupla negativa”, ou “o cabo-verdiano eliminou a categoria gramatical de
língua eleita como oficial, ou ambas as coisas.

pes
à gênero”, ou “o-francês abandonou o sistema de declinações do latim” etc.

na
Essa dupla personalidade da “língua” Re dela um amálgama no qual

iEd Ta
é praticamente impossível separar.o que éé propriamente linguístico, o * Chega a'ser comovente a declaração de John Lyons (1968: 2), em seu conhecidíssimo
que pertênce à estrutura ou ao sistema linguístico (seé que isso existe), e manual de introdução à linguística: “A principal dificuldade que enfrenta a pessoa recéêm-che-

tiVISI
gada aos estudos linguísticosé «à de estar preparada para olhar para a língua objetivamente”
o queé construto cultural, social, político, ideológico. — como se fosse possivel alguma objetividade qualquer em qualquer prática humana. À anti-
quíssima dicotomia objetivo /subjetivo, que remonta à ultrapassada metafísica platônica, merece

o ERG
A consequência disso é que mesmo a ciência linguística se deixa en- toda sorte de desconfiança: toda apreensão da realidade por parte de nossos sentidos e denosso
redar nessa trama muito pinos e não pode responder de maneira intelecto é inevitavelmente subjetiva, pois parte sempre de dentro de nós. Isso também invali-
da a dicotomia fato/valor, pois é impossível apreender um “fato objetivo” sem imediatamente
simplesà pergunta: o queé uma língua?
envolvê-lo numa fede de “valores subjetivos”. Ficatia também invalidada, assim, a tradicional
distinção que se faz, na sociologia da linguagem, entre norma objetiva e norma subjetiva — obje-
A resposta é que não existe um conceito claro e seguro de língua. Já
tiva para quem, cara-pálida? E também, é claro, a distinção entre descrição e prescrição, tão cara
o fundador da linguística moderna, o suíço-Ferdinand de Saussure, dizia à linguística moderna, devidamente criticada por Cameron (1995: 5-8).
Quem possui, rejeita, elimina ou abandona o que quer que seja são os fa- novamente, o poeta português, a lírigua-hipóstase é “o nada que é tudo”,
lantes, os seres humanos que falam as línguas para com elas construir sua pois, embora. não tendo “existência concreta e objetiva”, suscita conse-
interação social e sua identidade particular. quências sociais muito claras e palpáveis.
- Essa língua construída, língua-sujeito, língua com alma, desejo e po- Quando se diz, por exemplo, ao menos na cultura brasileira, que “o
der de decisão, seria aquilo que na filosofia se chama de hipóstáse. A pa- francêsé muito elegante e sofisticado”, que “o alemãoé grosseiro e rude”,
lavra grega hypóstasis foi traduzida em latim:por substantia. A teologia que “o inglêsé prático e moderno”, que “o italianoé exagerado”, que “o espa-
cristã se apoderou deste termo para com ele definir a dupla natureza de nhol é cafona”, ou que o próprio português “é uma das línguas mais difíceis
Cristo, sua dupla substância: humana e divina ao mesmo tempo. Mas na do mundo”, é evidente que não existe nada de científico nem de empirica-
reflexão filosófica moderna e contemporânea, segundo o dicionário Hou- mente comprovável nessas opiniões. Trata-se exclusivamente de um ima-
aiss, uma hipóstaseé um “equívoco cognitivo que se caracteriza pela atri- ginário linguístico, composto de estereótipos que se acumularam durante
buição de existência contreta e objetiva (existência substancial) a uma séculos, transmitidos de uma geração à outra, sem crítica nem contestação.
realidade fictícia, abstrata ou meramente restrita ao caráter incorpóreo No entanto, são crenças que têm sérias consequências culturais e políticas,
do pensamento humano”. na medida em que sustentam preconceitos (negativos e positivos) muito
atuais dirigidos aos falantes dessas línguas e às suas culturas.
Não há dúvidas de que a língua existe, tem uma existência “concreta
e objetiva” é algo que pode ser apreendido por nossos sentidos (ao menos
pela audição). Mas fica muito difícil, talvez impossível, não converter ime-
3. HIPÓSTASE PERFEITA: A NORMA-PADRÃO
diatamente esse conjunto de sons, de palavras e significados numa coisa
mais além do que ele é: num objeto, num construto cultural que logo é en- O processo mais conhecido pelo qual uma língua se transforma numa
volvido numa rede de representações sociais, crenças, superstições, num hipóstase é o que se chama em sociologia da linguagem de padronização
imaginário coletivo. O equívoco cognitivo está em acreditar que esse ob- ou normatização, tema de diversos capítulos deste livro, especialmente o
jeto cultural, fruto de um trabalho de hipostasiação, é que é “a língua”. No de Milroy. A criação de uma norma, de um parâmetro, de um modelo de
entanto, como nos lembra o teorema de Thomas, “se os homens definem língua ideal tem sido sempre um processo de “objetificação” da língua. Em
as situações como reais, elas são reais em suas consequências”, istoé, por seu estado “natural” (passe o adjetivo), uma língua é sempre heterogênea,
mais que alguns linguistas se empenhem em provar que “a língua” não é mutante, cambiante, variável, maleável e flexível. O processo de padroni-
essa hipóstase sociocultural (embora também não consigam dizer o que zação agarra a língua e a retira de sua vida íntima, privada, comunitária,
“a língua” realmente é...), tal crença, profundamente enraizada na cultura e a transforma numa instituição, num monumento cultural, em veículo de
ocidental (pelo menos), tem sérias, amplas, largas e fundas consequên- uma política nacional e, em várias ocasiões ao longo da história, de uma
cias sociais, políticas, pedagógicas, institucionais, culturais etc. Evocando, política imperial, colonial.
A língua normatizada deixa de ser uma língua materna e, apoiada na
“O teorema traz o nome de William Isaac Thomas (1863-1947), sociólogo americano, lei e servindo de código para escrever a lei, se converte numa língua pater-
que o formulou no livro The Child in America: Behavior Problems and Programs, escrito por W. 1.
Thomase D.S. Thomas. New York: Knopf, 1928, p. 571-572 na, num padrão linguístico, na língua da pátria, na língua do patrão (do co-
"Para as concepções de “lingua” em culturas não ocidentais, ver Milroy, nestelivro. lonizador, por exemplo). Seus limites são fixados, sua essência é codificada
v
em livros chamados pra dticas que tentam descrevê-la para melhor pres- no século II a.C. preocupados com o que lhes parecia a “corrupção” e
crevê-la, já que agoraé uma lei; seu repertório lexicalé compilado como a “ruína” da língua dos grandes autores do passado glorioso da litera-
um tesouro nos dicionários”. Uma vez “objetificada”, essa língua pátria terá tura grega (especialmente Homero), inventaram a disciplina chamada
na escola seu principal veículo de propagação, veículo e transmissão. gramática, um aparato teórico criado não somente para analisar a lín-
gua como também, e talvez principalmente, para reconhecer o “bom”, o
Nessé processo de hipostasiação, a língua passa a ser identificada
“belo” e o paes e separá-lo do “ruim”, do “feio”, do “grosseiro”. As
com esse modela, com essa norma-padrão, e deixa de ser um artifício so-
opções dos graníáticos alexandrinos são bem conhecidas na história da
ciocultural para se tornar “a Língua”, com artigo definido e inicial maiús-
linguística: total desprezo pela língua falada e, no mesmo gesto, uma
cula, uma entidade dotada de vontade e consciência, envolta numa cosmo- .
“supervalorização da escrita literária antiga; valoração negativa da mu-
gonia que se perde no tempo, como se “a Língua” existisse assim, perfeita
t
dança linguística, considerada sinal evidente da “decadência” da língua
em seus contornos, desde o início do mundo. Se, para a linguística contem”
do passado de ouro.
porânea, a língua é uma faculdade cognitiva, interna, portanto, à própria
biologia de cada ser humano, tal concepção de língua é soberanamente Não podemos criticar os gramáticos alexandrinos por incoerência.
desprezada pelos não linguistas, ou seja, pela retumbante maioria dos fa- Sua ideologia é clarae eles a assumem sem rodeios: são funcionáriosde
lantes comuns, que só concebem “a Língua” como uma instituição, análoga uma instituição oficial, são empregados da monarquia ptolomaica, que-
à religlão e-às leis, portanto, como algo externo ao indivíduo, algo'que não- rem criar explicitamente uma língua grega modelar, exemplar, que possa
lhe pertence e que ele precisa adquirir, aprender, conhecer, respeitar, ve- servir de instrumento eficaz de comunicação por todo o gigantesco im-
nerar, transmitir e defender para se tornar membro digno da comunidade, pério conquistado por Alexandre Magno'e seu exército. Elegem a língua
para se sentir incluído numa cultura, para se tornar cidadão. A concepção literária do passado como modelo, são impelidos por seus preconceitos
“leiga” da língua é, portanto, muito mais filogenética do que ontogenética. sociais, pela misoginia e pelo etnocentrismo xenófobo que sempre carac-
terizaram a cultura grega, para a qual tudo o que não era grego era “bár-
baro” (e não é por outro motivo que misoginia é xenofobia são palavras de
4. DOS ALEXANDRINOS A SAUSSURE: ALGUMA DIFERENÇA?
origem grega). Seu trabalho hipostasiante correspondeu perfeitamente a
Na história ocidental, a primeira língua que passou por semelhante seus objetivos.
processo fai o grego. Os célebres filólogos da Biblioteca de Alexandria, Mas a incoerência da linguística moderna, que se diz científica, como
não criticá-la? O estruturalismo, escola de pensamento linguístico que
Não por acaso, 0 Lermo tesetro ( variante divergente de tesouro) é empregado na lexi- dominou e domina ainda uma parte significativa da produção científica,
culogia para designar Lipos específicos de dicionários,
Nessa mesma concepçãoão de língua Mangue) como algo eexterno
se caracteriza precisamente por tentar abstrair um sistema a partir dos
ao indivi Usos concretos, reais, variáveis, mutantes. Sabemos que da dicotomia /an-
gue/parole, língua/fala, Saussure vai escolhera “língua” como objeto de
I
O gue c ne do estrutu estudo. Essa “língua” saussuriana, no entanto, tem todas as característi-
por parte dos iguistas, de constru
cas da norma padronizada, da escrita literária clássica. É uma hipóstase,
comuns, que também agem e atuam na construção das crenças e do imaginário coletivos, mas
não de modo necessa mente consciente, cuja existência é uma crença que depende inteiramente da fé do linguista
que a constrój. Tanto quanto cs alexandrinos, os linguistas estruturalis- E porque, como já vimos, na linguagem o que é natura e 0 que é cultu-
tas desprezam a variação e a mudança para construir uma hipóstase que ra não se separam facilmente, ou talvez nunca. Portanto, para uma análise
atenderá pelo nome de sincronia, sistema perfeito, homogêneo e estável. minimamente honesta do fenômeno da linguagem humana,é é imprescin-
Tanto quanto o padrão normativo lapidado pelos gramáticos tradicionais, dível dar conta de seus aspectos estruturais, sistêmicos, com a necessária
o célebre “sistema do estruturalismo é um artifício, um construto, ou teorização que isso implica, e também de seus aspectos sociais, culturais
melhor,éé um reconstruto porque, sob a capa de cientificismo positivis- políticos e ideológicos. A contaminação recíproca dessas duas dimensões
ta, essa língua-sistema não é muito diferente da norma literária clássica. do linguísticoé inevitável, e até caberia perguntar se são de fato duas di-
Como afirma Bourdieu (1996:31): mensões distintas ou, isto sim, uma única e mesma coisa,
A lingua segundo Saussure, código do mesmio tempo legislativo e comuni- Em vez de desejar o impossível, que seria ignorar os aspectos socio-
cativo que existe e subsiste independentemente de seus usuários (“sujeitos culturais e político-ideológicos, como tem feito o estruturalismo clássico
falantes") o de suas utilizações ( as”), possui de [ato todas as proprieda-
e o gerativista, com seu “falante ideal” que não vive em nenhum lugar
des comumente atribuidas à língua oficial.
deste planeta, o mais sensato é buscar conhecer a dinâmica social da lin-
O mesmo viés se encontra no modelo gerativista de Noam ERON guagem, seu impacto na vida das comunidades humanas, as origens cul-
a “competência”,o “desempenho” que ele opõe outra coisa não é, feitas turais do próprio sistema linguístico, que não pode ser estudado fora das
todas as contas, senão «r língua que ele mesmo, Chomsky, conhece, fala circunstâncias reais da vida de seus falantes.A célebre divisão saussu-
e escreve, isto é, o inglês americano padrão. Com irritante frequência, a riana entre linguística interna e linguística externa (e a opção pela inter-
atribuição do rótulo de “agramaticalidade” a determinadas construções na como objeto de trabalho do linguista) é um escândalo epistemológico
só se explica porque essas construções não pertencem à variedade urba- para qualquer pessoa que reconheça a impossibilidade de cortar a língua
na de prestígio falada pelo linguista, como bem exemplifica Milroy, neste do falante (ser social por excelência, zôon polítikon por natureza, mergu-
«livro. Ora, essa facilidade de atribuição (em tudo ideológica) do rótulo de: lhado na história) para estudá-la num laboratório asseptizado como um
“agramaticalidade” não é muito diferente da atitude do purista normativo pedaço de carne morta. ;
que diz, por exemplo, gue determinada palavra ou frase “não existe” ou
“não é português” simplesmente porque não foi incluída na norma artifi-
cialmente.forjada para servir de padrão. À linguística científica não soube s. HIPÓSTASE CONSUMADA: A ORTOGRAFIA
escapar da armadilha da hipóstase. Fazendo a crítica da tradição gramia-

mr tm
Herdeiros da cultura europeia ocidental, estamos muito mal habitua-
tical normativa, ela própria não soube reconhecer em seus postulados de
dos a identificar a “língua” com o construto sociocultural e político-ideo-

mim
aparência científica os mesmos problemas que denunciava na gramática
tradicional. Afinal,
lógico que é anorma-padrão escrita das línguas nacionais das grandes po-

sei
tências europeias (cf. Milroy novamente). O processo de transformar uma

Ci
o fato de colocar o social entre parênteses, o que permite tratar a língua, ou
língua numa hipóstase passa sempre pela sistematização-da forma escrita
qualquer objeto simbólico, como finalidade sem fim, contribuiu bastante

meia mi
para o êxito da linguística estruturalista, ao conferir o encanto de-um jogo dessa língua, pela criação de uma ortografia. A escrita confereà “língua”,
mera abstração, uma aparência concreta, de coisa tangível, material

ia
inconsequente aos exercícios “puros” de uma análise puramente interna e , que
formal (Bourdieu 1996: 19). se pode tocar, ler, ouvir, desenhar, apagar, copiar, bordar, gravar no

a
metal,
,
m Ci LIMA LTS A , &
esculpir no mármore etc. É a hipóstase total, concluída, consumada. Não aos meus alunos na universidade, ou a professores de português) que a
surpreende que para quase todas as pessoas que vivem em sociedades ortografia não faz parte da língua, muitos acham que estou dizendo um
grafocêntricas, a língua se confunda com a escrita, com a ortografia da absurdo. (E talvez, de fato, esteja, por insistir em considerar que “língua”
língua. E por essa mesma razão éé que, apesar dos esforços dos linguistas é somente o mítico “sistema” composto de fonemas, morfemas, lexemas e
contemporâneos em provar que a fala e a escrita têm muito mais seme- regras sintáticas, supostamente “internalizado” no cérebro do falante...)
lhanças do que diferenças entre si, a língua escrita (hipostasiada na es- A escrita, com sua substância sólida, palpável, concreta, transpor-
crita literária dos grandes clássicos do idioma) permanecerá sempre, no ta a língua desde algum lugar inalcançável e misterioso para diante de
imaginário coletivo, no senso comum, como algo superior, mais sublime e nossos olhos. Esse lugar misterioso e invisível é o cérebro humano, mas
mais digno de veneração do que a língua falada: as pessoas não querem saber disso: a lingua é sempre, invariavelmente,
Escrever nunca foi e nunca vai ser a mesma coisa que falar:é uma operação para quase todos, uma instituição, um bem material, um objeto externo.
que influi necessariamente nas formas escolhidas e nos conteúdos referen- E também é quase impossível convencer alguém de que a gramática e o
ciais (Gnerre 1985: 5). dicionário não contêm toda a língua, mas tão somente uma parte muito
O discurso social sobre a escrita, sobre o que está registrado “preto pequena e pobre do rico universo de possibilidades de expressão que é
no-branco”, é há milênios um discurso de supervalorização do escrito e de uma língua viva em sua totalidade de usos.
superdepreciação do falado: Verba volant, scripta manent — “as palavras
voam, os escritos permanecem”. Afinal, “o que fulano diz não se escreve”.
De nada valeu, portanto, a advertência do apóstolo Paulo: “A letra mata, 6. O PADRÃO NÃO É UMA VARIEDADE LINGUÍSTICA!.
mas o Espírito vivifica” (2Cor 3,6). Em sociedades entranhadamente gra-
A padronização, a gramatização, a ortografização de uma língua têm
focêntricas, ou mais precisamente, organizadas em torno de um poder
constituído, em todos os momentos históricos, um processo de seleção e,
definido e controlado pelos que sabem/podem ler e escrever (sempre
como todo processo de seleção; um processo simultâneo de exclusão. A
uma minoria), o que se reserva para a oralidade é, quando muito, o'terre-
centralização dos Estados nacionais a partir do Renascimento em torno
no do pitoresco, do folclórico, do anedótico. x
da-figura do rei, símbolo da nacionalidade, acarretou a construção políti-
O caráter socialmente hipostático da ortografia veio brilhantemente ca de uma língua nacional, de uma língua oficial.
à tona, por exemplo, no Brasil, depois da homologação pelo governo bra-
Ora, que critérios poderiam ser empregados para definir essa língua
sileiro do acordo para a unificação internacional da ortografia do portu-
oficial, essa língua que, de materna, se transformará em língua paterna,
guês (2009). Por toda parte, nosjornais, na televisão, na mídia em geral,
língua pátria, língua oficial? Em meio à diversidade linguística que sem-
as pessoas passaram a falar de “unificação da língua”, Na ocasião, eu mes-
pre caracterizou todos os países da Europa, que língua ou que variedade
mo concedi inúmeras entrevistas nas quais a primeiríssima pergunta era
de. língua será arrancada de sua dinâmica social para se transformar em
sempre a mesma: “O que você pensa da unificação da língua portuguesa?”
monumento, em símbolo da identidade nacional?
Explicar às pessoas que é impossível unificar uma língua, que toda língua
é por sua própria natureza variável, múltipla, heterogênea e inacabada, Os critérios serão, sempre, de ordem política e nunca-jamais de or-
se torna uma tarefa quase utópica. Se digo aos jornalistas (ou mesmo dem “linguística”, no sentido de não haver possibilidade alguma de uma
Por conseguinte, e ao contrário do que comumente (e lamentavel- »
variedadeser escolhida por algum conjunto de características “inerentes”
(beleza, elegância, riqueza, concisão etc.) que a tornem “naturalmente” mente) se lê em textos-assiriados por (socio linguistas — num discurso
mais aptaa ser eleita para o processo de hipostasiação. A língua escolhida que se repete também nos livros didáticos de português, supostamente
será sempre, nos causos de nações unificadas, a língua ou dialeto falado na “atualizados” com os avanços da ciência linguística” —, a norma-padrão
região onde se situa o poder, a Corte, a aristocracia, O rei. definitivamente não é uma das muitas variedades linguísticas que existem
A
na sociedade. Não existe uma variedade-padrão (aliás, uma contradição
A famosa Ordonnançe de Villers-Cotterêts, por exemplo, assinada em 6
em termos, pois se é padrão, isto é, uniforme e invariante, como pode ser
de setembro de 1539 pelo rei Francisco |, decreta que todo e qualquer do-
uma “variedade"?), nem um dialeto-padrão, nem uma língua padrão, em-
cumento legal, contratos, sentenças, testamentos etc, “sejam pronunciados,
bora esses termos pululem na bibliografia dedicada ao tema. O que exis-
registrados e entregues às partes em linguagem materna francesa, e não ou-
te é uma noima-padrão, lingua materna de ninguém, língua paterna por
tramente”. Ora essa “linguagem materna francesa” é de uso extremamente
excelência, língua da Lei, uma norma no sentido mais jurídico do termo.
minoritário no século XVI, e mesmo no final do século XVIII, como veremos
adiante, era desconhecida por três quartos da população da:França. Sua es- A norma-padrão, como observa Monteagudo, não faz parte da “es-
colha como língua oficial se deve ao mero fato de ser a línguamaterna do tratificação social da língua”, Ela é um construto sociocultural (uma hi- ;
rei, o que é razão suficiente para decretar sua oficialidade, apesar de sua re- póstast), que pode até se basear em alguma variedade linguística em-
duzida difusão entre os súditos. Com isso, o que poderia parecer um ato de piricamente detectável na sociedade, mas, precisamente por ser alvo
democratização das relações entre o poder e os cidadãos — a substituição de um intenso investimento de codificação (estabelecimento de regras
do latim pelo francês nos atos oficiais — era, na verdade, uma reafirmação gramaticais que muitas vezes não existem em nenhuma das variedades,
do caráter aristocrático daquele regime político e se prendia ao simples mas remetem a alguma tradição mais antiga, como, no caso do portu-
fato de, aquela altura da história francesa, o latim já ser uma língua desco- -guês, à gramática latina), de representação gráfica (legislação sobre a
nhecida para a maioria dos membros da elite política e cultural. ortografia oficial), de produção lexical (criação de amplo vocabulário
A língua ou variedade de língua eleita para ser a oficial será objeto técnico-científico, literário etc. para dar conta de uma “alta cultura”) e de
de um trabalho de codificação, de padronização, trabalho empreendido um intenso investimento político-ideológico (língua do poder, do Estado,
pelos gramáticos, e também de criação de um léxica novo, amplo, que per- da administração, da escola etc.),a norma-padrão não é “uma variedade”
mita à língua ser instrumento da alta literatura, da ciência, da religião e do como outra qualquer. Retomando as palavras de Milroy (neste livro), as
direito. Diante disso, só se pode concordar com Monteagudo (neste livro), línguas, em suas formas padronizadas,
ao afirmar que
ri
Um exemplo, entre muitos, da confusão reinante nos livros didáticos de português no
quando falamos de padrão não estamos nos referindo à estratificação social que diz respeito aos conceitos de norma-padrão, norma culta, variedade etc.: “Lingua padrão,
da língua, mas a uma perspectiva diferente sobre a variação linguística, re- norma culta on variedade padrão é à variedade linguística de maior prestígio social” [W. R. Cere-
lativa à codificação e à prescrição. O que acontece na realidade é que o códi- ja, TC. Magalhães (2006). Português: linguagens. São Paulo: Atual, vol. 5,p. 44]. Num livro (aliás,
muito bom) assinado por linguistas (Ilari e Basso 2006), também impera a profusão /confusão
go normativo costuma descansar na regulação de um socioleto de prestígio, nor
terminológica, numa cadeia equivocada de supostos sinônimos: “variedades cultas”, "português
mais precisamente do estilo “cardinal” (médio alto) desse-socioleto — ou, ara na nu DT
culto”, “língua culta” “variedade culta | “língua padrão”, “variante padrão”, “variedade padrão”,
melhor ainda, de uma versão idealizada dessa variedade (grifo meu). “português padrão”, “português culto”, “norma culta”. : E
de- O caso da Espanha é exemplar sobre todos. Uma data, uma única
não são vernáculos, e ninguém as fala exatamente; a ideologia do padrão
ente
creta que o padrãoé uma ideia na mente — é uma variedade perfeitam data, está vinculada a três fatos importantíssimos da história espanhola:
estável, claramente del limitada e perfeitamente uniforme —, uma variedade o ano de 1492. Nesse ano, os exércitos cristãos conquistam Granada, o úl-
que nunca é per feitamente nem consistentemente realizada no uso falado.
timo território árabe da Península Ibérica, o que resulta na unificação da
À norma-padrão, de fato, está lonpé e de ser uma “variedade”, um “dia- Espanha sob a coroa unificada de Castela, Leão e Aragão. No mesmo ano,
-
leto” ou uma “língua”, no sentido de um “sistema” fonomorfossintático que financiado poressa mesma coroa, 0 genovês Cristóvão Colombo chega ao
se “realiza” na fala dos indivíduos: ela é, isto sim, uma hipóstase (“uma continente americano. E também em 1492 se publica a Gramática de la
ideia na mente, uma instituição social e, nessa qualidade, goza de um lengua castellana, de autoria de Antonio de Nebrija. Não são coincidên-
as
poder simbólico especial, muito diferente do que se atribui às autêntic cias: são etapas distintasde uma mesma política, de um mesmo projeto.
variedades linguísticas; ocupa no imaginário coletivo um lugar de desta- E é o próprio Nebrija quem nos vai dizer isso com todas as letras: “Esta
aos
que; é objeto de um culto e de um cultivo que ninguém dedica jamais [língua castelhana] até nossos tempos esteve solta e fora de regra, e por isso
(e a
outros modos de falar. A norma-padrãoé o parâmetro contra O qual recebeu em poucos séculos muitas mudanças”. Por isso, continua ele: “De-
usos
preposição contra não é fortuita aqui) são medidos todos os demais cidi, antes de todas as outras coisas, reduzir em artifício essa nossa lingua-
falados e escritos'da língua:é o-leito de Procusto sobre o qual são assen- gem castelhana, para que o que agora e de aqui em diante nela se escrever
tadas todas as manifestações reais de uso da língua para que seus “erros”, possa permanecer em um só teor e estender-se a toda a duração dos tempos
os.
“vícios”, “defeitos”, “carências” e “excessos” sejam exibidos e amputad
que estão por vir
Tampouco a norma-padrão se confunde com a norma culta, isto é »
E uma enunciação perfeita daquilo que estou chamando aqui de
conjunto de variedades urbanas de prestígio realmente empregadas pe-
hipóstase: a transformação de uma língua “solta e fora de regra” num
las camadas privilegiadas da população. Desgraçadamente, essa confusão
“artifício”, num monumento cultural, social, num instrumento de poder
e norma culta faz a festa na literatura acadêmica e
entre norma-padrão
político, num objeto concreto. A relação entre língua é poder não se ocul-
didática produzida no Brasil, deixando atrás de si uma esteira de conse-
ta, não se dissimula. Pelo contrário, se declara explicitamente: “A língua
quências nefastas para o ensino e para o lúcido entendimento da realida-
sempre foi companheira do império”: Na apresentação de sua gramática
de sociolinguística do país”.
dedicada à rainha Isabel, precisamente a mesma que financiou Golombo
e conquistou os territórios mouros, Antonio de Nebrija escreve: “Depois
7. HISTÓRIA-EXEMPLAR: O CASTELHANO que. Vossa Alteza submetesse à vosso jugo muitos povos bárbaros e nações
de'línguas estranhas, e com vossa vitória, eles tivessem nécessidade de re-
Há capítulos deste livro em que foram analisados os processos his- ceber as leis que-o vencedor impõe aos vencidos, e com elas nossa língua.
tóricos de padronização de algumas línguas europeias. Vamos recapitular O projeto da gramática é um projeto claramente político, vai de mãos da-
aqui alguns desses casos, sob'a luz do conceito de hipóstase que venho das com a Reconquista do território ibérico e a conquista de novas terras
empregando até agora. em outros continentes. .
à
no uso de nor-
E por que é uma gramática da língua castelhana? Por que não é uma
e
Para uma «liscussão sobre os problemas terminológicos presentes
ma-padrão e norma culta, entre outros, ver Bagno (2003) e faraco (2008). gramática da língua galega, ou leonesa, ou asturiana, ou basca, ou catalã,
s

vs

ou aragonesa? Por que, com o transcorrer dos séculos, o nome “castelha- exato e verdadeiro que foram mortas, em cerca de quarenta anos, pelas ditas
no” se tornará sinônimo de “espanhol”? Porque Castela era e permanece tiranias e obras infernais dos cristãos, injusta e tiranicamente, mais de doze
sendo e centro do poder político. milhões de almas, hemens e mulheres e crianças; e, na verdade, acredito, sem
achar que me engano, que são mais de quinze milhões'º.
A honestidade do gramático Antonio de Nebrija contrasta duramen-
te com a piada de mau gosto do rei da Espanha, João Carlos |, em seu dis-
curso de 23 de abrilde 2001, por ocasião da entrega do Prêmio Cervantes.
8. NOMEAR UMA LÍNGUA
Disse o rei: ç E
Nossa língua nunca foi deimposição, e sim de encontro; ninguém foi obriga- O que a gramática castelhana de Nebrija nos mostra é que o nome
do a falar o castelhana; loram os mais a PE SeDAEE pevos que adotaram, por: das línguas é outro aspecto fundamental de sua transformação em objeto;
vontade libêr rima, o idioma de Cervantes em hipóstase cultural e social. Dar um nome a um modo de falar, rotulá-lo
de Ea não é um ato inocente: No senso comum, tudo parece “natu-
k A quem ele deseja enganar? À história recente da própria Espanha
ral”: se é a língua da Espanha,é o “espanhol”; se é a língua da França; é o
contradiz categoricamente essas palavras: Durante todo o pesadelo fran-
“francês”; se é a língua da Itália, é o “italiano” etc.!! Mas não há nada de
quista, as linguas regionais da Espanha foram perseguidas e proibidas. E a
natural no processo de nomear uma “língua”. Inclusive a atribuição do
conquista da América se fez sabidamente graças ao massacre sistemático
rótulo de “língua” a um modo de falar já é um ato político.
e planejado dos povos indígenas, de civilizações inteiras, de culturas mi-
lenares e, consequentemente, de muitas e muitas línguas. Falar de “von- A língua como algo com limites definidos e segurosé, repito, resulta-
tade libérrima” é querer apagar a verdade que nos contam os próprios do de um processo histórico e cultural. Na vida íntima das pessoas e das
conquistadores «espanhóis nas crônicas que nos deixaram documentando comunidades, não existem “línguas”: o que existe, sim, são variedades lin-
suas terríveis vitórias, como nestas palavras do religioso Bartolomé de guísticas, o que também se costuma chamar dé “dialetos”, um termo que
Las Casas, em sua Brevísima relación de la destrucción de las Indias (1552): a sociolinguística contemporânea prefere evitar por causa do caráter tra-
dicionalmente depretiativo que lhe foi atribuído com o passar do tempo.
Nessas ovelhas mansas [os índios] [...] entraram os espanhóis, assim-que as
conheceram, como lobos e tigres e leões crudelíssimos, famintos de muitos A natureza essencialmente heterogênea das línguas é evidente: dois
dias. E outra coisa não têm feito de quarenta anos para cá, até hoje, e hoje filhos de uma mesma família, por mais semelhanças que apresentem em
mesmo só fazem despedaçá- las, matá-las, angustiá-las, afligi-las, atormenitá- seu modo de falar, também apresentarão diferenças devidasà paia
-las e destruí-las pelas ESTES e várias e nunca como tais vistas, nem lidas, cultural e social e à personalidade própria de cada um. Se àssim é num
nem ouvidas, maneiras de crueldade, das quais algumas poucas adiante se di-
nível tão íntimo, quando se trata de uma sociedade ampla, como um país
" rão, em tamanha intensidade, que havendo na ilha Espanhola mais de um mi-
lhão de'almas que vimos, hoje já não há duzentas-pessoas dos naturais dela. A
1º O texto integral da obra está disponível em http://www.eumed.net/textos/07/fbc/1c.
ilha de Cubaé quase tão êxtensa quanto a distância de Valladolid a Roma; está
htm (acesso em 29/12/2009).
hoje quase completamente despovoada [...] Daremos como cálculo muito "Certa vez, numa loja de produtos indianos em São Paulo, ouvi uma cliente perguntar
ao gerente: “Como é que se chama isso aqui em indiano?” A Índia é o país do mundo com o maior
número de línguas faladas em seu têrritório, alguma coisa em torno de mil. Nenhuma delas,
o Texto completo do discurso disponível em http://www.casareal.es/noticias/ porém, é “o indiano”, A pergunta revela precisamente a impregnação da mitologia monolíngué
news/640-ides-idweb.html (acesso em 29/12/2009).
“característica da cultura brasileira, herdeira do monolinguismo atávico dos portugueses.
um q F ae ; %
inteiro, a heterogeneidade linguística é quáse incomensurável. Não é exa- são “línguas espanholas”, isto é, línguas faladas na Espanha por cidadãos
gero dizer que existem tantas línguas num território quantos são os indir espanhóis. Mas para a política linguística internacional, o nome do caste-
víduos que o habitam. E exatamente por isso é que os Estados nacionais lhano é “língua espanhola”, sem mais, como se vê, por exemplo, no sítio do
unificados e centralizadores sempre tentaram fabricar um idioma tam- Instituto Cervantes na internet, que é assim apresentado:
bém unificado e centralizador a gu das múltiplas variedades linguísti- O Instituto Cervantes é a instituição pública criada pela Espanha em 1911
cas de seu território. para a promoção e o ensino da língua espanhola e para a En fca da cultura
A eleição de uma língua-ou de uma variedade linguística especifi- espanhola e hispano-americana!? (grifo meu)..
ca impõe, entre tantas outras coisas que já mencionei, a necessidade de
nomear essa língua ou variedade. Durante muitos séculos, as línguas ma-
ternas europeias foram chamadas de “vulgares”. Nos territórios do antigo
9. HISTÓRIAS EXEMPLARES:O FRANCÊS E O PORTUGUÊS
Império Romano, esses “vulgares” foram chamados de “romances”, sem
Em outros países, no entanto, o nome da língua perdeu completa-
outra designação específica. Isso porque, durante quase milanos, a única
mente sua referência à origem regional, provinciana, da variedade sobre
língua digna desse rótulo foi o latim, a única língua estudada sistematica-
a qual se construiu o idioma pátrio. É o caso do francês que, no entanto,
mente, a única empregada em obras de caráter filosófico, científico, moral
levou muito tempo para se firmar como a “língua da França”. Até a Revolu-
etc. Somente a partir do Renascimento as línguas vulgares passarão a ser
ção de 1789, as línguas e dialetos regionais eram muito dinâmicos. Mas a
valorizadas, como-instrumentos que permitem a comunicação direta do
ideologia revolucionária exigia o fim das divisões feudais, a unificação do
poder com seus súditos. E para isso, elas precisam de um nome,
país em torno do centro político que era Paris. E mesmo o nome “França”
O caso da língua castelhana é muito particular. Ao contrário do que precisou de muito tempo para se estabelecer como designação de todo
ocorreu com outras línguas, que assumiram definitivamente o nome de o território francês atual, À França como entidade nacional centralizada
seu país, a lírigua do poder central da Espanha até os dias de hoje conser- só aparece no imaginário do povo francês a partir precisamente da Revo-
va seu nome de origem regional, isto é,o nome do dialeto, do romance, do lução e mais ainda depois das façanhas imperiais de Napoleão. Por seu
vulgar empregado pelas forças sociais e políticas que unificaram o terri- turno, a língua “francesa” só se propaga e se impõe a todo o território nos.
tório ibérico depois de expulsar os mouros. Embora também seja chama- cinguenta anos seguintesà Revolução.
dade “espanhol” ou “língua espanhola”, o nome “castelhano” se conserva:
Em 1794, o religioso, erudito e revolucionário francês Henri Gré-
Depois da redemocratização da Espanha, após quarenta anos de goire escreve um documento no qual lamenta que a língua francesa seja
ditadura franquista, foi desenhada uma nova política linguística para falada somente em 15 dos 83 departamentos do país, o que equivale a
aquele país, com o reconhecimento de estatuto co-oficial para algumas somente um quarto da população. O documento se chama, muito signi-
das línguas regionais: galego, catalão e basco. Outras línguas regionais, ficativamente, Rappori sur la nécessité et les moyens d'anéantir les patois
no entanto, não tiveram a mesma sorte, como o leonês e o aragonês. Para et d'universaliser Pusage de la langue française (Relatório sobre-a necessi-
não ferir suscetibilidades, a língua majoritária, a língua do centre do po- dade e os meios de aniquilar os patoás e de universalizar o uso da língua
der, é referida nessa política: com o nome de “castelhano”, porque, ao fim.
' e ao cabo, o galego, o catalão, o basco, e também o aragonês e o leonês, 1º www.cervantes.es (acesso em 29/12/2009).
francesa). Começa assim uma explícita e sistemática política-linguística “português”, em contraposição declarada à língua galega. O historiador
de repressão das línguas regionais e de imposição do ensino exclusivo da e gramático Duarte Nunes de Leão, em 1606, escreveu com perspicácia:
língua francesa em sua modalidade parisiense. as quaisambas [galega e portuguesa] eraô antigamente quasi hia mesma,
nas palavras & nos diphtongos e na pronunciação que as outras de Hespa-
Depois da francização da França, os filólogos e linguistas sentirão a
nha naô tem. Da qual lingoa Gallega a Portuguesa se aventajou tanto, quan-
necessidade de criar um “dialeto original” a partir do qual teria evoluído
to na copia e na elegarcia della vemos. O que se causou por em Portugal
a “língua francesa”. E esse dialeto original não poderia ser outra coisa
haver Reis e corte que he a officina onde os vocabulos se forjão e pulem e
senão o que era supostamente falado na região chamada lle-de-France, onde manão pera os outros homês, o que nunqua houve em Galliza...
onde se localiza a capital, Paris. Esse dialeto é inteiramente uma inven-
A presença de reis e de uma corte é o que permitiu à língua portu-
ção dos filólogos do século XIX, que o chamam de “francien” (“francia-
guesa distinguir-se e separar-se do galego, uma língua que por muitos sé-
no"), um nome que nunca tinha sido empregado em nenhum documento
culos não será objeto de cultivo literário, relegada aos usos menos nobres,
histórico escrito em território francês: “Uma especificidade dialetal de
que ninguém jamais ouvira falar”, nas palavras de Bernard Cerquiglini sempre oprimida pelo castelhano centralizador.
(2007:36), que qualifica'o francien de “ectoplasma”;ou seja, na parapsi- Também no caso do português, a ciência filológica sentiráa neces-
cologia, “substância visível considerada capaz de produzir materializa- sidade de criar um nome que dê à língua pátria uma origem digna. Para
ção do espírito” (Houaiss), quase um sinônimo do que venho chamando começar, à gramática histórica, nascida no século XIX, vai estabelecer
aqui de hipóstase. O termo francien só aparece em 1889 nos escritos do um mito: o mito de que “o português vem do latim”, o que historicamen-
é
filólogo Gaston Paris. A tarefa ideológica de nomear a língua é tão opres- “te e geograficamente é um erro. O português vem, sim, mas é do galego,
siva que mesmo a ciência, que proclama seu caráter objetivo e isento de é a continuação histórica da língua românica que surgiu no extremô
preconceitos, sente seu peso e cumpre sua missão de produzir um mito noroeste da Península e foi sendo levada cada vez mais para o sul da
de origem. franja ocidental da Península no processo de Reconquista empreendi-
A-história do português também apresenta suas curiosidades polí- do pelos soberanos portugueses. O galego, sim, vem do latim vulgar
tico-ideológicas. Historicamente, o português outra coisa não é senão a falado naquela região. Mas seria uma grande desonra para uma língua
continuação histórica do galego, romance surgido no extremo noroeste imperial como a portuguesa reconhecer como sua “mãe” uma língua
da Península Ibérica após a colonização romana que suplantou a civili- pobre, falada por uma gente rústica, sem poder político. Daí o mito de
zação céltica ou celtibérica que havia por lá. As vicissitudes históricas, as que “o português vem do latim”, mito que se encontra estampado em
guerras intrafamiliares, as etapas da Reconquista cristã dos territórios todos os livros de história da língua portuguesa, criando uma fictícia fi-
sob controle muçulmano, tudo isso conduziu à criação de um reino de liação direta que qualquer investigação histórico-geográfica desmente
Portugal em 1139, separado da coroa de Leão. O território galego, no en- com facilidade.
tanto, jamais se separou, nunca obteve sua independência e assim é até os Isso explica outra criação da filologia do século XIX: o nome ga-
dias de hoje: a Galiza é somente uma região da Espanha. lego-português para descrever a língua da poesia medieval, dos trova-
No Renascimento, os primeiros gramáticos portugueses trataram de dores. Seria impossível dizer que aquela língua já era “português”, pois
destacar a elegância e a riqueza da língua que então passou a se chamar não existia o reino de Portugal quando foram compostas as primeiras '
cantigas de amigo e de amor, muitas das quais se referem a lugares ex- 10. HISTÓRIAS EXEMPLARES: O ALEMÃO E O ITALIANO
plicitamente galegos (como as muitas que cantam o mar de Vigo, maior.
A história do “alemão” e do “italiano” também merece nossa aten-
cidade: da Galizá hoje em dia). Mas tampouco seria aceitável chamá-la
ção”, A-Alemanha e a Itália foram durante muitos séculos territórios divi-
simplesmente de “galego”. Daí a invenção desse hibridismo bizarro, “ga-
didos entre diferentes poderes políticos. É somente no final do século XIX
lego-português”. De fato, como relata Garcia Turnes (2002: 333), em sua
que vão surgir os países unificados que hoje chamamos Itália e Alemanha,
investigação sobre as origens do termo galego-português e seu emprego
: o primeiro em 1861 e o segundo em 1871. São dois países que sempre
pelos filólogos lusitanos:
conheceram uma grande multiplicidade linguística. Mas a unificação ter-
Ô longo de todo o século |XIX| fomos vendo aparecer distintas variantes
ritorial e política exigiu também a unificação linguística.
como portugues galli ano, portuguez galleziano, gulliziano-português, gal-
fezio-luzitano ou gullecio-portuguez. Non será ata as vísperas do século XX, Assim, na Alemanha se cria uma língua padrão, chamada Hochdeutsch,
da man de €. Michaélis, autora que desenvolverá o groso e o fundamental da “alto-alemão”, que não é construída a partir de um só dialeto, mas com base
súa obra nesta centuria, cando encontremos, alternando con outras formas, em diversos dialetos centrais e do sul do território. O Hochdeutsch é emi-
o actual galego-portiguês. nentemente uma língua paterna, a língua pátria, língua que se escreve, mas
Argumenta a pesquisadora que Carolina Michaélis será, de fato, a que não é a língua materna, íntima e familiar de praticamente ninguém.
principal responsável pela difusão e, acrescento eu, pela instituição, nos Na Itália, depois da unificação, o problema da língua nacional, debatido
estudos históricos, do termo galego-português, que se transformará numa durante séculos, foi resolvido com a eleição do dialeto toscano como base
hipóstase conveniente para designar uma língua que, em tudo, era pura e para'o que se chamará a partir de então “língua italiana”, O toscano não é o
simplesmente o galego, numa versão literarizada, convencional, cortesã, dialeto de Roma, a capital. É o dialeto da Toscana, cuja capital, Florença, foi
própria para o uso na poesia lírica e que, com toda probabilidade, nunca durante séculos, um importante centro político, cultural e econômico. Por
foi realmente falada como variedade espontânea, materna, de nenhuma causa disso, o toscano adquiriu o maior prestígio cultural entre todas as
comunidade linguística autêntica. demais línguas faladas na Península Itálica, graças ao trabalho literário de
Ao contrário do francien, que nunca existiu como “dialeto” e do qual grandes figuras como Petrarca, Bocácio, Maquiavel, Guicciardini, Ariosto e,
não Se tem absolutameênte nenhum registro histórico documentado, o sobre todos os outros e em caráter pioneiro, Dante Alighieri.
“galego-português”, sim, existiu, como língua da poesia medieval, mas De fato, Dante, no ano de 1305, publica em latim um opúsculo cha-
nunca chamado com esse nome, que só responde às exigências de nacio- macto De vulgari eloquentia, onde defende a tese de que as línguas vul-
nalismo da filologia lusa do século XIX. Monteagudo (1999: 119-121), de- gares, se forem transformadas em objeto de investimento cultural por.
pois de apresentar as mais antigas denominações para a língua galega, já seus falantes, podem muito bem ser empregadas na alta literatura e na
a partir do século XII, afirma justamente que” ciência. E o próprio Dante vai comprovar isso, escrevendo em toscano sua
a denominación que recibía a lingua dos cancioneiros, cando menos nos Comédia, que passará à posteridade com o epíteto de “Divina”. Está criada
ambientes eruditos e trobadorescos [...], era a de-galego, e convídanos a
cuestionar a moderna denominación, xurdida nos ambientes filolóxicos lu- IS
Ver também, neste livro, os capítulos destinados a estas línguas assinados, respectiva-
sitanos de finais do século XIX, de galego-portugués. niente,por Mônica Savedra e Patrícia A. Gonçalves.
assim a língua literária da Itália. O toscano se impõe, portanto, como lín- 2 NAPOLITANO
gua nacional após a unificação política do território italiano. Pate nuoste ca staje ncielo,
santificammo 'o nomme tujo,
O fato de o toscano ser somente um dialeto como os demais é com-
faje vení 'o regno tujo
provado pela curiosa situação linguística do primeiro rei da Itália unifica-
sempe c''a vuluntã toja,
da: Víctor Manuel II teve que aprender a nova língua oficial de seu reino,
accussí ncielo e nterra.
o “italiano” recém-criado, porque era, inicialmente, apenas o rei do Pie- Fance avê 'o ppane tutt' “e juorne
monte e da Sardenha e, portanto, era falante nativo do piemontês, uma lévece'e riébbete
língua muito diferente do toscano, aliás incompreensível para os falantes comme nuje “e llevamme alPate,
do italiano padrão. nun ce fa spanteca,
e llévace 'o male 'a tuorno. -
A criação do “italiano” representou também a divisão linguística da Amen.
; Itália em duas categorias; a primeira, a categoria de “língua”, ficou reser-
3 TOSCANO
vada exclusivamente ao toscano, que passóu a se chamar “língua italiana”;
Padre nostro, che sei nei cieli,
a segunda, a categoria de “dialeto”, é empregada até: hoje para designar
sia santificato il Tuo nome.
todas as muitas-entidades linguísticas presentes no território itálico. No Venga il Tuo.regno.
caso da Itália, o termo “dialeto” já não tem sua acepção tradicional nos Sia fatta la Tua volonta
“estudos linguísticos: variedades regionais de uma mesma língua. “Diale- anche in terra com'é fatta nel cielo,
to” na Itália é qualquer forma de falar que não seja a “língua italiana”, Os Dacci oggi il nostro pane quotidiano.
chamados “dialetos” italianos, no entanto, são muito diferentes entre si e Rimetti a noi i nostri debiti,,
come noi li rimettiamo ai nostri debitori.
incompreensíveis para seus falantes respectivos. Isso se comprova, por
e nonesporci alla tentazione, |
exemplo, no texto da oração do pai-nosso, empregado tradicionalmente
ma liberaci dal maligno.
para estabelecer comparações entre línguas diferentes: ;
Y
Amen.
1 PrEMONTÊS 4 BERGAMASCO
O Nostr Pare che tê ses an cel, j O nost Pader, che te sé sô in siel,
tô nôm asia santifica.
al sies santificat ol tô nom.
Tô regno avena,
Alvegne ol tô regn,
toa volontã a sia faita
al sies fac la tô olontã,
su la tera com al ciel.
come in siel, cosé ach in tera.
Dane ancheuj nóst pan cotidian, - Dam incô ol nost pa per sostegnes.
e pêrdonene ij nôstri debit,
E dunem inos'c debec,
com noi i pêrdonoma a coj ch'a I'han offendune,
come noter am ghi duna ai nos'c debitur,
“e laSsene nen tombé an tentassion,
e fam miga borlã in di tentasiú
ma libererene d'ogni mal. ma liberem del mal,
Amen. . ;
e cosé sea.
5 MILANÊS “selvagens”, Essa separação é tão poderosa que se enraizou no incons-
Pader noster, che te see in ciel; ciente da maioria das pessoas, inclusive das que declaram fazer um traba-
che 'L sia santificaa el tô nômm: lho “politicamente correto”. Veja-se o seguinte exemplo: "publicado numa
Che | vegna el tó regn,
revista brasileira (Nossa História, outubro de 2004):é a declaração do
che sia pur faa quell che te voeutti, *
cineasta moçambicano Víctor Lopes, realizador do documentário Língua
tantin ciel, come in terra,
— vidas em português, exibido nos cinemas brasileiros:
Daggh incoeu el noster pan tantde sta in pee.
“E perdonem i noster debit, : A língua portuguesa serviu como um E ETAEnta unificador da comunicação
istess come nun e em territórios nos quais se falavam, e ainda se falam, dezenas de dialetos
ghe perdonem a quijtaj che ne dev quajcóss, Ê maternos das diversas tribos que a colonização atingiu. Assim, em Moçam-
e metten minga-in brusa de fà peccaa bique, onde se falam hoje cerca'de 35 dialetos locais, o português é língua
ma tegnen a la larga del maa. materna de 3% da população, mas é utilizado por cerca de 40% dos mo-
E che la sia insei. çambicanos (grifos meus). ,
6 FRIULANO A separação é claríssima: o rótulo “língua” só se aplica ao português,
Pari nestri, che tu sês tai cii, língua do colonizador. As outras muitas e diferentes línguas do povo mo-
ch'al sedi santificâvil to nom, çambicano são “dialetos”. O mesmo se verifica neste outro exemplo, tam-
ch'al vegúi il to ream, ;
bém publicado num periódico brasileiro:
ch'e sedi fate la tô volontãt
come in cil, cussi in tiere. Pela primeira vez em sua história de 33 anos, a Universidade do Vale do
Dânus vuê il pan che nus covente Itajaí (Univali) recebe a matrícula de um índio. Ele se chama Nanblá Gakran,
parinus ju i nestris debits à ; é natural de Ibirama e garantiu uma vaga no curso de ciências sociais, im-
come che nô ur aí parin ju ai nestris debitôrs plantado este ano pela instituição para ser desenvolvido no campus de Ita-
e no sta molânus te tentazion, jaí. Nanblá é da tribo xokleng e trabalha como professor de 12 a 42 séries
ma libérinus dal mãl. primárias em Ibirama [...] Segundo Nanblá, os xokleng estão perdendo seus
Amen: valores linguísticos e assimilando o idioma português, sem manter vivo o
dialeto indígena (Agência UOL, 17/2/1998) (grifos meus). ,
É muito longa a tradição de distinguir a “língua”, hipostasiada e refe-
11. LÍNGUA OU DIALETO? rida ao centro do poder, dos “dialetos”. Com o nome pejorativo de patois
(aportuguesado em patoá), os dialetos (ou, melhor dizendo, as línguas
O emprego do termo “dialeto”, fora dos estudos científicos (embora,
regionais) foram definidos pela célebre Encyclopédie do século XVII —
às vezes, também neles), sempre tem sido Fat ed ado de preconceito ra-
obra emblemática do chamado Iluminismo — com as seguintes.palavras:
cial e/ou cultural. Nesse emprego, “diateto” é uma forma “errada, “feia”,
patoá (gram.). Linguagem corrompida tal como se fala em quase todas as
“ruim”, “pobre” ou “atrasada” de se falar uma “língua”. 4
províncias: cada uma tem seu patoá; assim temos o patoá burguinhão, o
Também é uma maneira de distinguir as “línguas” dos povos “civili-
L . a
patoá normando, o patoá champanhês, o patoá gascão, O patoá provençal,
zados”, brancos, das formas supostamente primitivas de falar dos povos etc. Só se fala a língua na capital.
Outro exemplo muito eloquente do fenômeno de hipostasiação é o de um território à terrível escuridão do não ser. A referência ao que vem
da chamada “língua árabe”. Por razões de natureza religiosa, oque os fa- de cima, do poder, das classes dominantes, cria nos falantes das varieda-
lantes de “árabe” chamam de “árabe” é a língua na forma como ela se en- des e línguas sem prestígio social e cultural um complexo de inferiorida-
contrava quando o profeta Maomé redigiu o livro sagrado do Islã, o Corão, de, uma baixa autoestima linguística, à qual os sociolinguistas catalães
no século VIL Essa língua, também chamada-de “árabe clássico”, é uma deram o nome de “auto-ódio”. : i
língua morta, não é falada por ninguém como idioma materno, está restri- Evidentemente, também há muito de político e ideológico na desig-
ta à literatura religiosa. Nos diferentes países chamados “árabes”, existem nação “língua” que se aplica a um modo de falar específico. Por exem-
formas de falar tão diferentes entre si quanto, por exemplo, o português e plo, o galegoé considerado uma “língua” diferente do português, mas o
o italiano, sem possibilidades de intercompreensão entre seus falantes, e português do Brasil não é oficialmente chamado “brasileiro”, em contra-
não poderia ser de outra maneira. É uma ilusão ideológica achar que num posição ao português europeu, embora os estudos linguísticos venham
território imenso, que vai do extremo ocidental da África até a fronteira comprovando que, do ponto de vista sistêmico (fonológico e morfossintá-
do Iraque com o Irã, passando por todo o Oriente Médio, se fala uma só e tico, semântico e pragmático), são duas línguas diferentes. Ora, o galego
única “língua árabe”. não pode ser confundido com o português, para que a Galiza não tenha
No entanto, essa ilusão ideológica é sustentada pela própria cultura a pretensão de se separar da Espanha e criar um Estado soberano ou,
“árabe” tradicional, já que na maioria dos 22 países “árabes” o sistema talvez, de sg unir ao território de Portugal. Mas, por outro lado, A GiRe
educacional se dedica exclusivamente ao ensino do “árabe clássico” e de gia colonialista que sempre imperou nas elites brasileiras impede que se
sua forma mais modernizada, o “árabe padrão”, enquanto que os chama- reconheçao idioma majoritário dos brasileiros como uma língua inde-
“dos “dialetos” particulares falados nos diferentes países não recebem pendente do português europeu e que possa ser chamada simplesmente
apoio institucional nem são valorizados, embora sejam as verdadeiras de “brasileiro”,
línguas maternas nacionais. É inconcebível que 300 milhões de pessoas,
distribuídas por um terpitório tão dilatado, falem uma mesma e única lín-
gua “árabe”. 12. NOMES IGUAIS, NOMES DIFERENTES ,
Por essas e outras razões é que faz parte do folclore acadêmico da
4
Com isso, se verifica no mundo duas situações distintas: (1) o mesmo
linguística a declaração jocosa atribuída ao linguista Max Weinreich: nome aplicado a modos de falar bem diferentes e (2) nomes diferentes
“Uma línguaé um dialeto com exército e marinha!!*. De fato, a separação aplicados a modos de falar muito semelhantes. As duas situações, nunca
entre língua e dialeto é eminentemente política, escapa dos critérios que é demais repetir, são resultantes de processos históricos e ideológicos.
os linguistas tentam estabelecer para delimitar tal separação.
Já vimos o caso do L
“árabe”, nome único para 22 países e 300 milhões
À eleição de uma língua ou dialeto para ocupar o cargo de “língua ofi-
de pessoas. Podemos dizer o mesmo do “espanhof”, um só nome de lín-
cial” relega, no mesmo gesto político, todas as outras variedades e línguas
gua para mais de vinte países e quase meio bilhão de falantes. Será uma
mesma língua a que se fala em Ushuaia, no extremo sul da Argentina, às
nm Ver neste livro, no capítulo assinado por Thomas D. Finbow, a explicação para a supos-
ta origem desta frase famosa.
portas da Antártida, e na Cidade do México, a dezenas de milhares de
como uma única língua. Embora para alguns propósitos.seja conveniente
a,
quilômetros de distância? Será a mesma língua a que se fala na Andaluzi enfeixá-las, não é muito acertado falar de uma única língua escandinava
?
no sul da Espanha, e na Guiné Equatorial, em plena África tropical ou nórdica. Tal prática exigiria uma definição bastante restrita do termo
Vejamos agora alguns exemplos da segunda situação: dois nomes língua”. Desprezaria os aspectos que não são puramente linguísticos, mas
e do
para modos de falar semelhantes. Vamos examinar o'caso do híndi
também sociaise políticos (Haugen 1987: 157).
o urdu
urdu. O urdu é a língua oficial do Paquistão. Como língua falada, A situação das línguas da Índia e do Paquistão se reproduz em certa
da
é praticamente indistinguível do hindi, língua oficial mais importante mecida na antiga Iugoslávia. Depois da sangrenta divisão da antiga con-
é utili-
Índia. A diferença entre as duas línguas está no fato de que o urdu federação socialista em diferentes pequenos Estados independentes, a
forma
zado como língua escrita por falantes muçulmanos € escrito numa língua que sempre se chamou servo-croata recebeu três nomes distintos:
ligeiramente adaptada do atfabeto persa que, por sua vez, é uma variante sérvio, croata e bósnio. As diferenças entre o sérvio e o croata sempre se
ri,
do alfabeto árabe. O híndi, por seu lado, escrito no alfabeto devanága restringiram à escrita: os croatas, católicos romanos, empregam o alfabe-
de
originalmente empregado para o sânscrito, e é utilizado pelos falantes to latino; os sérvios, católicos ortodoxos, empregam o alfabeto cirílico; os
religião hindu. A rivalidade histórica entre Paquistão e Índia, que gerou bósnios, muçulmanos, empregam tanto o alfabeto latino quanto o cirílico.
divisão
terríveis guerras sanguinárias entre os dois países, junto com a Com a criação dos Estados independentes da Croácia .e da Bósnia, a lín-
religiosa, é o que explica a atribuição de nomes diferentes a um único gua, que para os linguistas é um sistema único com variedades locais que
sistema linguístico. não impedem-a intercompreensão dos falantes, passou a ser designada
O mesmo vale para a distinção entre q norueguês é 0 dinamarquês. À com nomes distintos, nomes de países, de nações.
Noruega foi uma província do reino da Dinamarca durante quatrocentos
anos, até 1905, quando conquistou-sua independência. Para marcar expli-
citamente a independência política, a língua também ganhou nome novo: 13. A LÍNGUA É UM PÂNTANO?
o norueguês, que é, de fato, a mesma língua dinamarquesa com pequenas
A conclusão, portanto, não pode ser outra: falar de uma
variações locais. A intercomunicabilidade entre os"povos dos três países língua é
sempre mover-se, no terreno pantanoso
nórdicos (Dinamarca, Noruega e Suécia)é quase perfeita, e os programas das crenças, das SUPErSHEDES:
das ideologias e das representações. E nessa areia movediça também a
de televisão produzidos em qualquer um deles são acompanhados tran-
filologia, a gramática e a linguística científica acabam se atolando. Sem
quilamente nos outros dois países. Mas as línguas recebem nomes dife-
rentes: dinamarquês, sueco e norueguês. E quem nos fala a esse respeito dúvida, o exame da dinâmica linguística deve ser feito com instrumentos
hoje
é ninguém menos do que Einar Haugen, pioneiro nos estudos que analíticos da antropologia, da sociologia e da psicologia social, além dos
í
“chamamos de sociologia da linguagem: instrumentos linguísticos.
no-
Os não escandinavos às vezes ficam atônitos ao ouvir dinamarqueses, Quando passamos ao terreno-do ensino das línguas, o risco de ficar
ruegueses e suecos conversar, cada qual em sua língua, sem intérpretes. O preso no pântano ideológico é sempre iminente. Para escapar desse peri-
fato de que haja certo grau de mútua inteligibilidade entre essas línguas, às go, é necessário recordar incessantemente que “língua” não é um conceito
quais nos reteriremos como línguas escandinavas continentais, tem leva-
claro e delimitado, nem sequer para a ciência linguística.
do algumas pessoas a sugerir que, juntas, deviam ser de fato consideradas
O que vai ser ensinado não é uma “língua” em toda sua vitalidade, chamamos de “língua” tem uma origem histórica, não é algo que nascei
seu dinamismo, sua instabilidade permanente, sua heterogeneidade in- “naturalmente”, como se fosse uma planta que brota sem que ninguém.
trínseca. O que vai se ensinar é um construto sociocultiral, mesclado de tenha semeado. Podemos amar e cultivar uma ou mais “línguas”, mas sen
ideologia e de pressupostos impossíveis de comprovar empiricamente. É esquecer o preço caríssimo que muita gente pagou e ainda paga para qu:
uma hipóstase, um objeto criado, normatizado, codificado, institucionali- elas se implantassem como idiomas oficiais, nacionais, línguas pátrias
zado para garantir a unidade política de um Estado, sob o lema tradicio- línguas do ensino, do poder e da lei.
nal: “Um país, um povo, uma língua”. O reconhecimento do multilinguis- Z
E evidente que esse construto político-ideológico, essa hipóstas:
mo que caracteriza praticamente todos os países do mundo e o desenho
monumental, guarda relações com a vida íntima da linguagem humana
de políticas linguísticas democráticas e democr atizadoras são fatos muito
essa nossa poderosa faculdade sociocognitiva de interação com o mund
recentes na história dos povos e das línguas."
e com os outros seres humanos. Mas essa hipóstase nãoé “a língua” en
- Enesse campo, o'Brasil está muito atrasado, mergulhado na ideologia sua totalidade:é somente uma parte pequena, sim, porém importantíssi
monolíngue que sempre caracterizou nossa história, em que todas as po- ma, do ponto de vista histórico e cultural, de alguma coisa tão grande «
líticas linguísticas sempre se destinaram a massacrar Os povos indígenas tão complexa que ninguém sabe definir a contento.
junto com suas línguas, a distribuir os escravos africanos em lotes de in-
divíduos falantes de línguas diferentes e etnias rivais para que não emer-
gisse nenhuma solidariedade entre eles, a proibir o uso.e o ensino das lín- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
guas minoritárias trazidas pela imigração europeia e asiática, a ridiculari-
BAGNO, M, (2003). 4 norma oculta: língua & poder na sociedade brasileira. São Paulo: Pa
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, Editorial. |
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Press.
“O que se chama, portanto, de “língua” é o fruto de toda essa histó- MONTEAGUDO, H. (1999). Historia social da lingua galega. Vigo: Galaxia.
ria, que não deve ser esquecida. Não vamos incorrer naquilo que Pier-
re Bourdieu chamou de “amnésia da gênese”, isto é, esquecer que o que

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