Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Salvador
2015
ANALÍDIA DOS SANTOS BRANDÃO
Salvador
2015
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592
Contém referências.
CDD: 981.142
TERMO DE APROVAÇÃO
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Estudo
de Linguagens, da Universidade do Estado da Bahia, pela seguinte banca examinadora:
BANCA EXAMINADORA
Agradeço, em primeiro lugar, a Deus pelo dom da vida, pela força em cada momento difícil e
por permitir que mais uma obra se cumprisse na minha vida.
À minha família pelo apoio constante, pela atenção e pelo incentivo de sempre. Meus pais
Antonieta e Antonio e minha irmã Ana Paula foram as pessoas que mais acreditaram que eu
poderia ir mais longe.
À Marco Aurélio pela paciência, compreensão, pelo carinho e por ser meu porto seguro nos
momentos nada tranquilos.
À minha orientadora querida, Prof. Dra Celina Márcia de Souza Abbade, pelos ensinamentos,
pelo comprometimento, pelo profissionalismo, pelo carinho, pelas risadas e pelo exemplo de
força e alegria.
Aos meus colegas do PPGEL pelos momentos compartilhados, pelos risos e pelo rico
convívio, em especial a Celiane Souza, Cláudio Ribeiro, Yara Santiago, Maria Eugênia,
Edivanildo Flaubert, Antonia Cláudia e Janete Suzart. Que a amizade perdure para a vida!!
Aos funcionários do PPGEL, Camila, Geysa e Danilo, pelo apoio e pelo profissionalismo.
Enfim, a todos os meus amigos que de alguma forma contribuíram para a realização desse
meu trabalho: o meu muito obrigada!!!
RESUMO
A linguagem exerce um importante papel na sociedade, pois, por meio dela, o homem
constitui-se como sujeito e retrata, principalmente, o conhecimento de si próprio e do mundo
no qual está inserido, estabelecendo relações com o outro. Tendo a linguagem como um
“cartão - postal” do usuário, Jorge Amado foi buscar nela elementos que ajudaram a
desvendar as ruas, os mistérios, as belezas e muitas outras características da cidade de
Salvador - a Terra de Todos os Santos, na busca de descrever as peculiaridades que formam as
identidades do povo baiano. Amparada nos estudos lexicológicos que englobam várias áreas,
dentre estas a Onomasiologia - ciência que se ocupa em analisar os nomes próprios, tendo a
Antroponímia e a Toponímia como subáreas, em que a primeira estuda o nome de pessoas e a
segunda, nomes de lugares e acidentes geográficos, esta dissertação tem a Toponímia como o
enfoque linguístico. O objetivo desse texto é apresentar o vocabulário toponímico presente na
obra Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios ([1945] 2002), de Jorge Amado. Para
tanto, fez-se necessário apresentar a motivação para designação dos topônimos e verificar as
influências étnicas, culturais e históricas dos topônimos que contribuem para a construção
identitária do povo retratado e, a partir dela, observou-se os aspectos culturais que envolvem a
língua e a identidade desse povo. Para cumprir tais objetivos, utilizaram-se, como
fundamentação teórica, os conceitos de identidade do sujeito e linguística de Stuart Hall
(2000) e Kanavillil Rajagopalan (1998), respectivamente, que foram importantes para o
entendimento de aspectos intrínsecos referentes à(s) identidade(s) do povo baiano; para a
análise toponímica tem-se como base referencial teórico–metodológico o modelo toponímico de
Dauzat (1926), as categorias taxionômicas de Dick (1990, 1992); entre outros.
Palavras- chave: Língua. Identidade. Cultura. Topônimos. Bahia de Todos os Santos. Jorge Amado.
ABSTRACT
Language plays an important role in society, because through it, man turn up to be a subject
and portrays mainly the knowledge of himself and the world surrounding him, establishing
relationships with others. Having language as the user’s "postcard", Jorge Amado navigated
elements that unravel the streets, mysteries, and beauty of Salvador - the Land of All Saints,
in a discursive formation of idiosyncratic identities of Bahians. This work is supported by
lexicological studies comprising several areas, among them Onomasiology - science that deals
with analyzing the names, as well as the subareas of Anthroponym and Toponym. The former
studies the names of people and the latter, the names of places and landforms. This study has
the Toponym as the linguistic approach. The aim of this paper is to present the toponymic
vocabulary present in the work Bahia of All Saints: a guide to the streets and mysteries of
Salvador ([1945] 2002), by Jorge Amado. Therefore, it was necessary to present the
motivation for the designation of the toponyms and verify their ethnic, cultural and historical
influences that contribute to the identity construction of the portrayed people. These
considerations are significant to remark cultural aspects of language and the identity of these
people. In order to meet the objectives of this study the following theoretical foundation was
considered: the concept of the subject’s identity and linguistics of Stuart Hall (2000) and
Kanavillil Rajagopalan (1998), respectively. They were important to the understanding of
intrinsic aspects related to the identity of the Bahian people; for toponymic analysis, the
theoretical-methodological is based on the toponymic model of Dauzat (1926), the taxonomic
categories of Dick (1990, 1992); among others.
Key words: Language. Identity. Culture. Toponyms. Bahia of All Saints. Jorge Amado.
ABREVIATURAS
a. - antigo
adap. - adaptado
al. - alemão
arc. – arcaico
b. – baixo
cast. – castelhano
class. – clássico
cien. - científico
Cp. – compare
Dim. - diminutivo
Doc. - documento
ed. - edição
esp. - espanhol
etim. - etimologia
f. – formação
Fig. - figura
fr. – francês
germ. – germânico
gr. - grego
hebr. - hebraíco
hist. – história
Hip. – hipocorísticos, -a; relativo à linguagem carinhosa, infantil, familiar
i. é - isto é
ing. - inglês
it. - italiano
lat. – latim
lus. - lusitano
med. - medieval
n. - nome
n/c - não classificado
n/e - não encontrado
p. – página
pl. plural
port. - português
prov. - provençal
s/a - sem ano
sto - santo
séc. - século
Sobr. - sobrenome
subst. – substantivo
Top. - topônimo
V. - verbo
var. - variação
voc. - vocábulo
LISTA DE FIGURAS
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13
INTRODUÇÃO
Cada palavra usada por meio do discurso concretizado, a partir da interação social,
aponta a história, as ideologias e as inúmeras possibilidades de conhecer o povo que utiliza o
código linguístico como forma de expressão. Estudar os corpora escritos de uma comunidade
permite a inserção no universo particular que compõe essa comunidade, pois os escritores
deixam aparecer, a partir do vocabulário do povo retratado, os aspectos sociais, culturais,
históricos e linguísticos. Desse modo, ao estudar o léxico de uma língua, pode-se imergir nos
hábitos, conhecer os costumes, bem como, pode-se entender a maneira de agir e de pensar,
pois língua e cultura são linhas que “costuram” as identidades dos sujeitos.
influências culturais propiciadas a partir do contato com outros grupos étnicos que ali se
instalaram, bem como de acontecimentos históricos considerados relevantes para o grupo
enfocado.
O interesse por essa pesquisa surgiu do desejo de estudar a relação entre a língua, a
cultura e os inúmeros aspectos que permeiam a sociedade tais como a história, a geografia e
por acreditar que o estudo lexical pode fazer essa relação, pois estudar o vocabulário tendo
como base uma obra literária, que concebe a língua em seu uso a partir de um contexto de
identificação de uma dada comunidade, é poder desvendar os aspectos que pertencem àquela
comunidade vocabular. Dessa forma, o princípio dessa pesquisa a qual se ancora nos
construtos lexicológicos da linha Linguagens, Discurso e Sociedade do Programa de Pós-
graduação em Estudos de Linguagem levantou-se a seguinte questão: Como o léxico, mais
especificamente o estudo toponímico, representado em uma obra literária, pode contribuir
para a construção identitária do povo retratado em Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e
mistérios, de Jorge Amado?
Para responder tal questão, fez-se necessário levar em consideração o contexto sócio-
histórico e cultural em que o autor estava inserido. Jorge Amado retrata a Bahia da primeira
metade do século XX e que foi o cenário de muitas de suas histórias, na qual a religiosidade, a
raça e o povo caminharam e caminham juntos. Diferente de outros guias turísticos, Jorge
Amado mostra, em sua obra, não apenas os encantos da cidade, conhecida como guardiã de
15
Essa baía que engloba ilhas e que é margeada por algumas cidades do recôncavo é,
muitas vezes, no livro, sinônima do que conhecemos hoje como a cidade do Salvador - capital
da Bahia - e revela os mistérios que vão desde as lendas contadas pelos índios Tupinambás à
fé exacerbada dos que a batizaram com o nome do santo do dia. Com o tempo, ergueu-se em
oposição às ilhas, a cidade de Salvador Bahia de Todos os Santos. Com sua arquitetura que
denuncia as influências europeias, é visível a contribuição da cultura lusitana nas igrejas, nas
ruas, vilas e freguesias da cidade na primeira metade do século XX. Ao lado das marcas que
lembram os tempos de colônia, impera a constituição ímpar de um povo miscigenado, da
união das três raças que fizeram história na formação do povo brasileiro: europeia, indígena e
africana. Daí a gênese de uma cultura singular na qual a mistura é a base para o surgimento de
uma culinária, da música, do folclore, da religiosidade, que tanto caracterizam o povo baiano.
Jorge Amado apresenta um guia das ruas e dos mistérios de São Salvador da Bahia de Todos
os Santos e descreve os bairros operários e os nobres, as feiras e os mercados, as inúmeras
ladeiras e ruas da cidade, e apresenta as praias locais com o intuito de atrair a sua turista
imaginária.
A primeira seção traz a Introdução que faz a relação entre linguagem, língua, palavra,
vocabulário e, mais especificamente, os topônimos, como fatores preponderantes para a
construção da identidade. Faz-se também uma breve apresentação do corpus da pesquisa, os
objetivos e a importância deste estudo.
óleo” na cidade da Bahia de Todos os Santos. A Bahia apresentada por Jorge é mestiça,
alegre, festeira e sensual, representando um conjunto de elementos pinçados dentro de um
repertório histórico e cultural, que revela e esconde, ao mesmo tempo, um recorte de duas
faces de uma mesma moeda - a Bahia negra carregada de elementos que escondem conflitos,
heterogeneidade e transformações, mas revelam mitos, tabus e desejos de parte expressiva dos
brasileiros. Ainda nessa seção, fala-se sobre a Cidade do Salvador da Bahia e as discussões
acerca das suas denominações.
toponímicas baseadas em modelo desenvolvido por DICK (1992). Na última subseção, faz-se a
sistematização e análise dos dados por meio de gráficos.
É notável o papel das artes como um dos elementos representativos das realidades
humanas. O homem, ao longo da história da humanidade, buscou exteriorizar seus
sentimentos através das artes. A literatura, uma das manifestações artísticas, não só contribui
para representar os anseios da alma humana, mas também serve para divulgar as culturas e
ideologias. Simular a realidade através de uma obra literária é uma das formas de o escritor
mostrar, de modo ficcional ou testemunhal, o uso da palavra como objeto da arte. Como
representação do saber artístico de um povo, a literatura pode guardar a história, os costumes
e os saberes culturais do grupo que está sendo protagonizado nas páginas de um livro.
A leitura de Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios, uma das obras de Jorge
Amado, é uma das maneiras de perceber o quanto a literatura incide sobre a realidade social e
política de um povo. Jorge Amado imortalizou, nas páginas de seus livros, a cultura, as
belezas e as qualidades da Bahia, sem deixar de abordar, sobretudo, as necessidades sociais de
sua gente. As personagens dos romances amadianos estão vivas em cada rosto, em cada olhar
dos baianos, dos brasileiros de modo geral. É cada mulher que sofre de preconceito pelo
gênero e que luta para ocupar seu espaço no campo profissional. É cada geração descendente
de homens que tiveram seu sangue derramado no tronco e que ainda sofre por ter um fenótipo
considerado “inferior”. É cada menino ou menina sem família que trabalha nos cais ou nas
ruas da cidade da Bahia. É cada pessoa que sofre pela intolerância religiosa.
Ao abordar tais temáticas como âncoras norteadoras em seus livros, Jorge Amado traz à
tona personagens inspiradas em pessoas reais, com problemas sociais obstinados, na tentativa
de quebrar as barreiras inflexíveis de uma sociedade patriarcal, preconceituosa e capitalista
que dominava até a primeira metade de século XX, mas que pode ser observada em qualquer
ambiência das cidades baiana, mesmo nos dias atuais. Considerando que o povo da Bahia é o
protagonista de suas histórias, a literatura amadiana possui uma dupla face: de um lado atua
como um espelho da realidade e, do outro, como um instrumento de denúncia dessa realidade
que “sangra” dos olhos do autor. De acordo com Domício Proença Filho, Jorge Amado
“empresta sua voz, na contracorrente dos juízos de valor dominantes na sua época e ainda por
muito tempo, às mulheres submetidas ao juízo machista dos maridos; às prostitutas”.
(PROENÇA FILHO, 2013, p. 30)
20
Nesse contexto, Jorge Amado, quase que de modo documental, cumpre o papel de
mostrar a Bahia, pelo viés literário como um sinônimo de paraíso, conforme é possível
verificar em vários de seus livros. Começa então um processo de disseminação da ideia da
Bahia como uma cidade feminizada, dotada de características que a particularizava das outras
regiões do país. No entanto, o autor, justamente por transitar por terrenos variados e por ter
posturas políticas e ideológicas ligadas ao partido comunista, não escondeu o lado perverso
que se escondia nas faces desse povo. Apesar de todas as belezas naturais bastantes
ressaltadas nas suas obras, Jorge Amado jamais deixou de mostrar as injustiças, as moléstias e
21
o preconceito que surgem nas terras baianas, desde outrora, segundo é possível perceber nas
palavras do autor:
Não há cidade como essa por mais que se procure nos caminhos do mundo. Nenhuma
com suas histórias, com seu lirismo, seu pitoresco, sua funda poesia. No meio da
espantosa miséria do povo das classes pobres, mesmo aí nasce a flor da poesia porque
a resistência do povo é além de toda a imaginação. Dele, desse povo, baiano, vem o
lírico mistério da cidade, mistério que completa a sua beleza. (AMADO, [1945] 2002,
p. 22)
E entendemos como inventor o que deu forma a mitos e crenças duradouros, que
criou ícones e imagens incorporados a nosso universo cultural, à maneira pela qual
nos vemos e nos veem. Claro que, como aliás, é o caso de todo inventor, ele não cria
do nada, mas sente e concentra o que antes só se percebia de maneira diluída e
amorfa, canaliza o que de outro modo talvez nunca achasse expressão importante.
(RIBEIRO, 2014, p.98)
1
Para Vasconcelos (2012), essa “identidade baiana”, também chamada por alguns de “baianidade”, pode ser
entendida como o conjunto de particularidades, como a representação do modo de ser, de viver, ou seja, a
percepção do modo de pertencimento à Bahia.
22
largos e praças, indicando os seus respectivos nomes. Os nomes desses lugares revelam as
mudanças sofridas pelos espaços, às origens de cada lugar, os seus fundadores, pois ao
recuperar a essência dos nomes, descobrem-se as intenções do nomeador ao “batizar” tais
espaços, conforme nos assegura Dick:
Os nomes de lugares, nos romances de Jorge Amado, cumprem um papel tão importante
quanto os nomes dos personagens, uma vez que singularizam espaços, histórias e identidades.
Apesar de muitas críticas por parte da Academia e o não enquadramento de sua arte nos
moldes dos estudos estilísticos e suas obras sendo classificadas como subliteratura, devido ao
vocabulário característico do povo pobre e sem instrução, muitas vezes repleto de
obscenidade e fora da estética praticada no período, Jorge Amado conseguia aproximar os
seus leitores às suas obras, pois eram vistas como reflexo da realidade social e cultural, sem
máscaras, sem maquiagem.
Em seu processo de criação, o autor não estava preocupado com o rigor da estética
literária e/ou gramatical, mas com o desenho que seus textos faziam da realidade, de maneira
pessoal, intimista. A diferença entre a linguagem padrão e a linguagem coloquial tão discutida
no meio linguístico-acadêmico não tem nada a ver, a princípio, com o conceito de má
funcionalidade da língua e isso ficava evidente em seus escritos. No entanto, como a língua
está estritamente ligada à estrutura social e ao sistema de valor, as variedades linguísticas são
estigmatizadas, pois refletem a relação social, cultural e econômica de quem a fala.
Talvez tenha sido essa simplicidade da linguagem e as verdades nas palavras que
consagraram Jorge Amado como um dos escritores mais lido no Brasil e fora do país. Mas
também foi pelo mesmo motivo que ele foi chamado por muitos de “contador de histórias” e
“romancista das putas e vagabundos”. No entanto, essas expressões não eram depreciativas
para o autor, pois Jorge Amado tinha o papel de descrever os diversos elementos que
compunham as identidades que são formadas a partir das diferenças e da inegável mistura
étnica que compõem a miscigenação cultural da Bahia.
23
em Jubiabá, em Terras do sem fim, em São Jorge dos Ilhéus e nos outros diversos romances
que escreveu tendo o povo baiano como protagonista.
A partir da década de 1940, Jorge Amado se torna efetivamente membro do PCB e sua
obra ganha um rumo mais específico, o caráter de romance proletário perde sua intensidade e
dá espaço as representações fiéis das ideologias comunistas, veemente opostas ao governo
Vargas. Nessa perspectiva de luta pela valorização da nacionalidade brasileira, cresce uma
luta contra o ideário nazista, o imperialismo e o capital estrangeiro com a tentativa de formar
a União Nacional. Nas palavras de Ramos (2013) é possível evidenciar o projeto de Jorge
Amado que:
Foi dentro desse cenário social e político que surgiu Bahia de Todos os Santos: guia de
ruas e mistérios, escrito em 1944, mas foi publicado um ano mais tarde. A obra em análise
trata de um guia endereçado a uma moça que, no começo e no final do livro, o autor se dirige
a essa leitora imaginária, convidando-a para conhecer a cidade da Bahia, tanto em seus
25
atrativos turísticos quanto em seus dramas. Jorge Amado faz a apresentação da Bahia dos
anos de 1940 e se intitula como “guia” que apresentará as belezas e as necessidades da cidade.
No “Convite”, que fica nas primeiras páginas do livro, cumprindo a função de prefácio,
o autor aponta para o que será encontrado no restante da obra. Amado alerta que, se a
convidada for como a maioria dos turistas que busca conhecer os lugares pelas belezas que
sempre ouviu contar e, nos lugares, que normalmente são vistos nos cartões-postais das
agências de turismo, ela pode desistir, como pode ser lido nas linhas a seguir:
Inicialmente, Guia chama atenção, no mínimo, por dois motivos: pelo título
auspicioso e pelo subtítulo não menos peculiar. Em uma leitura despretensiosa, se
poderia pensar que “Bahia de todos os Santos” denota a porção de mar em torno do
Recôncavo, onde se localiza precisamente a quase homônima Baía de Todos-os-
Santos. Porém, de uma maneira ampliada, o título do livro refere-se à “cidade da
Bahia” como um lugar próprio de coexistência: lugar de todos os santos, por assim
dizer, onde habita a “mistura” que lhe seria característica, a começar pelos orixás do
candomblé, divindades de origem africana que se confundem através dos séculos
com os santos católicos no sincretismo religioso. É dessa complicação entre a
“cidade da Bahia” e a religiosidade do povo baiano que se configura a mítica
sugerida pelo subtítulo do livro, pois pelas ruas da cidade da Bahia coexistiriam
tantos “mistérios” quanto a quantidade de santos e orixás. (WAS-DALL JUNIOR,
2013, p. 116)
Jorge Amado chama a atenção para o mistério que recobre a cidade de Salvador, muitas
vezes, deixando como reflexão vários questionamentos a fim de verificar de onde viria tal
mistério: Seria do som dos atabaques de candomblé, na busca pela desmistificação da Bahia
“negra por excelência”? Ou estaria nos saveiros dos cais, na face dos marinheiros em busca
do seu sustento diário? Ou tal mistério estaria escondido nas igrejas históricas “grávidas de
ouro” junto com seus numerosos segredos? Afinal, a própria cidade revela em seu nome o
divino esplendor: a cidade de Todos os Santos, cidade esta que “os baianos amam como mãe e
amante”, conforme se pode depreender da leitura do trecho a seguir:
“Roma negra”, já disseram dela. “Mãe das cidades do Brasil”, portuguesa e africana,
cheia de histórias, lendária, maternal e valorosa. Nela se objetiva, como na lenda de
Iemanjá, a deusa negra dos mares, o complexo de Édipo. Os baianos a amam como
mãe e amante, numa ternura entre filial e sensual. Aqui estão as grandes igrejas
27
Escorre o mistério sobre a cidade como um óleo. Pegajoso, todos o sentem. De onde
ele vem? Ninguém o pode localizar perfeitamente. Virá do baticum dos candomblés
nas noites de macumba? Dos feitiços pelas ruas nas manhãs de leiteiros e padeiros?
Das velas dos saveiros no cais do mercado? Dos Capitães da Areia, aventureiros de
onze anos de idade? Das inúmeras igrejas? Dos azulejos, dos sobradões, dos negros
risonhos, da gente pobre vestida de cores variadas? De onde vem esse mistério que
cerca e sombreia a cidade da Bahia? (AMADO, [1945] 2002, p.21-22)
como patrimônio histórico, todos revestidos pelos azulejos europeus e cravados pelo sangue
escravo.
Com a leitura da obra, alguns elementos parecem que permaneceram com o passar dos
anos. A imagem da Bahia que se tem hoje, certamente, mesmo não sendo a mesma que se
tinha no século XX, deixa transparecer fortes aspectos culturais e sociais, mesmo com mais de
70 anos de escritura do livro. Em outras palavras, não existe apenas uma identidade que
descreva o povo baiano, sua cultura e anseios não são prontamente definidos, ao contrário, é
com base na junção de outras culturas que a torna singular, pois a relação cultural e identitária
é um processo dinâmico de construção de fronteiras entre povos, histórias e culturas diversas.
O autor apresenta essa reflexão no seguinte texto do livro:
Existe uma cultura baiana com características próprias originais? Creio que sim.
Aqui toda a cultura nasce do povo, poderoso na Bahia é o povo, dele se alimentam
artistas e escritores. Há uma tradição social na arte e na literatura baianas que vem
desde Gregório de Matos e prossegue até hoje. Essa ligação com o povo e com os
seus problemas é marca fundamental da cultura baiana. Cultura baiana que
influencia toda a cultura brasileira da qual é célula mater. (AMADO, [1945] 2002, p.
20)
29
Ao ler essas palavras, pode-se confirmar como o romancista apresenta a cultura baiana
a partir os elementos representativos de um povo heterogênio que são sempre transformados
ou reestruturados, mas que estão sempre presentes, de um jeito ou de outro, no imaginário do
povo, ao manipular e recriar as representações identitárias da Bahia e dos baianos.
A religiosidade de matriz africana é descrita, nas suas obras, como uma religião que
cultua elementos da natureza e cujos ensinamentos humanizam e fazem o culto à vida. A
intimidade com que a religiosidade é abordada nas obras revela alguém que conhecia com
profundidade, seja pela amizade com vários membros de liderança nos terreiros ou porque
assumiu importante posto dentro do candomblé. Era Obá Otum Amolu do Axé, no Ilê Axé
Opô Afonjá2. Sobre a importância de Jorge Amado nesse universo religioso, Amádio diz:
Jorge Amado é pai-de-santo. É um obá. Sabem o que é isso? Obá é uma das
dignidades no candomblé de Xangô. É uma espécie de ministro (da mão direita) com
direito a voz e voto. O maior posto na hierarquia civil do candomblé, mas sem
autoridade religiosa. Está ligado aos terreiros há mais de 20 anos e é amigo íntimo
de Senhora, a mãe-de-santo nº 1 do Brasil. (AMÁDIO, 1960 apud DOURADO,
2010, p. 31)
2
Um grupo dissidente da Casa Branca do Engenho Velho (o terreiro mais antigo de que se tem notícia e o que,
segundo vários autores, serviu de modelo para todos os outros, de todas as nações), comandado por Mãe Aninha,
fundou, em 1910, numa roça adquirida no bairro de São Gonçalo do Retiro, o Terreiro Ketu do Axé Opô Afonjá.
Ocuparam o cargo de iyalorixás desse terreiro: Eugênia Anna dos Santos (Mãe Aninha, Obá Biyi), de 1910 a
1938; Maria Purificação Lopes (Mãe Bada de Oxalá), de 1939 a 1941; Maria Bibiana do Espírito Santo (Mãe
Senhora), de 1942 a 1967; Ondina Valéria Pimentel (Mãe Ondina de Oxalá, Mãezinha), de 1969 a 1975; e Maria
Stella de Santos (Mãe Stella de Oxóssi), de 1976 até os dias atuais. (DOURADO, 2010, p. 39)
30
Na última parte do livro, Terra, Mar e Céu, conforme cita o autor, faz-se um “intervalo
para os comerciais”, no qual são citados diversos locais e nomes de pessoas, com suas
respectivas utilidades. Tais informações podem servir de auxílio para o leitor-visitante, que
poderá necessitar dos variados serviços citados pelo autor. A mostra vai desde “A Suprema”,
casa de móveis, passando pela casa de bolos e doces até a necessidade de declarar um imposto
de renda e dos trabalhos do Doutor José Aragão Vila ou de um ginecologista Dr. David
Araujo.
Em consonância com tais ideias, Jorge Araujo (2013) traz a noção de metonímia, pois
através da Bahia, podem-se entender as inúmeras vertentes do Brasil como um todo, como
podemos ler no trecho abaixo:
31
Amparando-se nos pressupostos da Análise do Discurso, que defende que discurso parte
de um lugar e de um determinado tempo, no caso em questão, o Brasil da primeira metade do
século XX, leva-se em consideração o tempo e o espaço como elementos básicos para
compreender os sentidos dos enunciados. Diante disso, o discurso amadiano, em Bahia de
Todos os Santos, é para o outro (a turista imaginária) e dependente do outro, ou seja, busca-se
além do planejamento da fala para que o outro o entenda, numa atitude de antecipação, na
tentativa de preparar sua interlocutora-leitora-visitante, bem como para o entendimento de
outros discursos em outros momentos.
Por ser um morador da cidade da Bahia, na posição de autoridade que pode falar da sua
terra natal e, na condição de anfitrião, como é possível perceber no trecho: “Vem e serei o teu
cicerone”, Jorge Amado se apresenta como um guia diferente daqueles que são encontrados
em qualquer cidade de atração turística: “Qualquer catálogo oficial, ou simples cavação, te
dirá quanto custou o Elevador Lacerda [...] Mas eu te direi muito mais, pois te falarei do
pitoresco e da poesia, te contarei da dor e da miséria” (AMADO, [1945] 2002, p. 13).
A imagem que se faz da Cidade do Salvador da Bahia é de uma cidade acolhedora, que
possui um povo cordial, civilizado: “A Bahia te espera para a sua festa cotidiana” e que
carrega um mistério que ronda essa terra ora verdadeira ora lendária: “Onde estará mesmo a
verdade quando ela se refere à cidade da Bahia? Nunca se sabe bem o que é verdade e o que é
lenda nesta cidade”. Mas que leva no seio de sua história desde a escravidão ao descaso atual,
a dupla face pintada pela beleza e pela miséria, “porque assim é a Bahia, mistura de beleza e
sofrimento, de fartura e fome, de risos álacres e de lágrimas doloridas” (AMADO, [1945]
2002, p.12-13).
Jorge Amado, ao projetar a sua posição no mundo, busca persuadir a leitora imaginária,
que recebe aquele convite, a conhecer os bairros pobres, que exala a fome e a miséria e
ancorado no contexto ideológico da época que busca o fim das injustiças sociais, faz um
convite à “moça” para mudar tal realidade. Como afirma Jorge Amado, “esse é um estranho
32
guia. Com ele não verás apenas a casca amarela e linda da laranja. Verás igualmente os
gomos podres que repugnam ao paladar” (AMADO, [1945] 2002, p.12).
O núcleo que constituía a cidade do Salvador, nos primeiros anos de colônia, tinha
como base esse declive: a Cidade Baixa, que se encontra no nível do mar, era onde estavam
instalados os armazéns para depósito de mercadorias a serviço do porto, local de trabalho; na
Cidade Alta, encontravam-se o centro administrativo e religioso, além das residências. A
ocupação das primeiras habitações começou nas ladeiras e caminhos que ligavam a Cidade
Baixa à Alta, justamente por ser trânsito de ligação entre uma localidade e outra devido ao
movimento econômico e religioso.
33
A imagem a seguir permite verificar a cidade do Salvador, também chamada por muitos de
“Cidade de dois andares”, e sua área ocupada com bairros residenciais, comerciais, delimitando
um avanço considerável desde a década de 1940.
34
Fig. 7 - Mercado Modelo e Casa da Alfândega 1940, vista da Cidade Alta e da Cidade Baixa
As duas cidades se completam, no entanto, e seria difícil explicar de qual das duas
provém o mistério que envolve a Bahia. Porque o viajante o sente tanto na Cidade
Baixa como na Alta, pela manhã ou pela noite, no silêncio do cais ou nos ruídos da
multidão na baixa dos Sapateiros. Impossível explicar o mistério dessa cidade. É
segredo que ninguém sabe, chega talvez do seu passado na sombra do forte velho
sobre o mar, chega talvez do seu povo misturado e alegre, talvez do mar onde reina
Inaê, talvez da montanha coberta de verde e salpicada de casas. É certo que todos o
sentem. Ele rola sobre a Bahia, é como um óleo a envolvê-la. Quando na noite
solitária da Cidade Baixa o ruído do baticum longínquo do candomblé coincidir com
o encontro de um casal de mulatos que se dirige ao amor no cais, então o forasteiro
se rende conta que esta é uma cidade diferente, que nela existe algo que alvoroça os
corações. (AMADO, [1945] 2002, p.24)
Embora busque mostrar toda a cidade para o leitor-turista, representado pela “moça”
convidada, Amado evidencia constantemente a peculiaridade das duas cidades, que mesmo
sendo complementares, apresentam características distintas. Mesmo diante da modernização
da cidade e do surgimento de novos sítios urbanos, ele traz o centro histórico como o
“coração” da cidade que se modernizou, mas que traz marcas reais do passado provinciano.
35
Na obra, outro fato interessante e que deixa o leitor curioso é a recorrência de Jorge
Amado se referir à capital baiana de variadas denominações ora chamando de Salvador, São
Salvador, ora Bahia de Todos os Santos, ora de Cidade do Salvador da Bahia ou de
Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos. Nas narrativas, assim como na
denominação da realidade, há uma representação do espaço real que se corporifica a partir de
um designativo, ou seja, quando se analisa o nome de lugar, busca-se desvendar o povo a
partir da representação sígnica - o topônimo. Carvalhinhos (2009) discorre sobre essa ideia de
nomeação dentro da narrativa e afirma que:
Quando o topônimo figura em uma obra ficcional, pode-se afirmar que a escolha
desse nome passou por crivo duplo, pois autor cria um topônimo (ou escolhe um
dentro de um paradigma já existente) com o objetivo deliberado de construir um
determinado espaço na sua narrativa, de modo que crie um efeito de realidade.
(CARVALHINHOS, 2009, p. 86)
Esses topônimos referentes à capital da Bahia, com as mais diversas variações feitas
pelo autor, comprovam uma característica interessante no ato de nomeação, conforme afirma
Menezes e Santos (2006):
A expressão Bahia de todos os Santos, muitas vezes evocada por Jorge Amado, foi
inspirada na baía, uma extensa área que recebeu o nome dos lusitanos durante uma expedição
portuguesa comandada por Gaspar Lemos em 1º de novembro de 1501, dia de Todos os
36
Jorge Amado dedica um tópico, no primeiro capítulo da obra Bahia de Todos os Santos:
guia de ruas e mistérios, para falar sobre o nome da cidade. O autor fala do desejo purista dos
estudiosos, que fazem discussões e debates entre os acadêmicos, na tentativa chamar a cidade
pelo seu nome “verdadeiro”, no caso, Cidade do Salvador, desprezando o querer do povo.
Isso justifica o fato de o autor asseverar que:
Podem eles perder o tempo que quiserem, podem encher colunas de jornais com
massudos e maçantes artigos, escrever grosso volumes que ninguém lê, xingar,
esbravejar, o povo continua chamando sua cidade pelo doce nome de Bahia. Esta é a
cidade da Bahia. Assim a trata o povo de suas ruas desde a sua fundação em 1º de
Novembro de 1549. (AMADO, [1945] 2002, p. 25)
europeizado na nova terra sem Fé, sem Lei, sem Rei. O topônimo Salvador da Bahia
também faz menção ao imaginário religioso cristão católico, marcando a religiosidade
daqueles que ali estavam nos primeiros momentos da colonização. E Jorge Amado também
contesta sobre tal nomeação, conforme se pode ler abaixo:
Pode ser que o colonizador devoto desejasse colocar a nova povoação sob o
patrocínio de Jesus designando-a Cidade do Salvador. Mas somo um povo misturado
com sangue índio e muito sangue de negro, e nosso primitivismo ama os nomes
pagãos tirados da natureza em torno. Bahia. Em frente à cidade está a baía enorme,
belíssima, rodeando a ilha de Itaparica; [...] Bahia de Todos os Santos. O católico
lusitano batizou a baía ao redor. O índio e o negro crismaram a cidade que ali
nasceu: Bahia tão somente. Não adianta o desejo de D. João III, Rei de Portugal,
que, mesmo antes de fundar a cidade, deu-lhe o nome de Salvador. Não adiantou a
pertinácia de Tomé de Souza conservando-lhe esse nome quando todos os
chamavam Bahia. Esse povo misturado é, por vezes, cabeçudo. Permaneceu Bahia.
(AMADO, [1945] 2002, p. 25)
O ser humano é um ser social que faz uso da linguagem para interagir com o meio que o
cerca. É possível verificar na linguagem os reflexos de elementos que revelam as estruturas
sociais. Assim como existem as relações de poder no seio social, fixadas pelas forças
simbólicas já evidenciadas por Bourdieu (1983), a linguagem, através do seu léxico, é um
fator que cria laços entre seus semelhantes bem como separa os diferentes. Bourdieu
apresenta o discurso como um bem simbólico, o qual pode receber valores distintos a
depender do mercado que ele seja exposto, isso ocorre porque língua é sinônimo de poder.
Émile Benveniste (1976, p.32) debate com a defesa de que a linguagem, enquanto
instituição social garante a difusão e fixação de ideologias e princípios na seguinte passagem:
“A linguagem manifesta e transmite um universo de símbolos integrados numa estrutura
específica: tradições, leis, ética e artes; e é pela língua que o homem assimila a cultura, a
perpetua ou a transforma”.
A língua deve ser vista como o meio pelo qual o homem evidencia o seu pensamento, as
aquisições de saberes, percepções e experiências da sociedade. Sobre essa ideia, Duranti
afirma:
a partir do surgimento de sociedades letradas, esse significado foi ampliado para refinamento
pessoal, sofisticação. Por isso, até hoje, esta palavra possui conotação relacionada a
conhecimento, desenvolvimento de ideias, polimento intelectual - pessoa culta.
No entanto, quando se pensa em cultura não se pode ficar preso a essa visão limitada,
simplista e defasada. Atualmente, a preocupação em entender sobre as questões culturais é
bem forte, pois os estudiosos buscam compreender a humanidade de modo mais amplo, mas,
ao mesmo tempo, entender a concepção de nação, grupos humanos e sociedade. Assim, o
termo cultura inclui o coletivo, pois é o resultado da inserção do homem em contextos sociais
variados.
No século XIX, o conceito de cultura era ligado a uma hierarquização das culturas
humanas, na qual, segundo essa visão, as sociedades passaram por etapas de evolução. Essa
era uma visão europeizada em que todos os povos que não entravam na sua categorização de
cultura baseada na noção capitalista eram considerados como bárbaros, inferiores. E essa ideia
de evolução cultural esteve ancorada em ideais racistas que, infelizmente, ainda podemos
perceber camufladas nos moldes da sociedade atual.
Cada realidade cultural tem sua lógica interna, a qual devemos procurar conhecer
para que façam sentido as suas práticas, costumes, concepções e as transformações
pelas quais estas passam. É preciso relacionar a variedade de procedimentos
culturais com os contextos em que são produzidos. (SANTOS, 1986, p. 8)
De acordo com Edward T. Hall (1973 apud OLIVEIRA, online), o conceito de cultura,
no sentido etnográfico, foi primeiramente definido por E. B. Tylor ao dizer que:
40
Ainda no que diz respeito à relação entre língua e cultura, a ideia de que elas estão
intimamente ligadas não é recente. Desde o século XIX, Humboldt tratou dessa relação
quando discutiu a ideia de relativismo linguístico, que pode ser entendido como a noção de
que a língua que falamos pode influenciar a realidade. Mais tarde, Edward Sapir argumentou
que o conteúdo da língua está atrelado à cultura. Nos anos 1950, Whorf (1940, p. 231 apud
OLIVEIRA, online) discute que os falantes de uma língua dividem a mesma realidade
linguística, ou seja, cada indivíduo, ao apreender uma língua materna, aprende a associar os
símbolos de modo igual, na situação que se encontram ou no pensamento.
Por sua vez, a língua é social e culturalmente construída e é através das práticas
discursivas, caracterizadas pelo modo de ser, dizer e agir que cada grupo social estabelece o
papel de exteriorizar o seu pensamento. É nesse sentido que nos assevera Baldinger: “a
história da língua é a história da cultura...O fato de que a língua reflete a história dos povos,
isto é, a relação entre história da língua e a história da cultura já se reconheceu então”.
(BALDINGER, 1966, p. 37)
Câmara Jr (1954, p. 193) também diz que “a língua, considerada em sua essência, é
mais do que uma simples manifestação cultural: é o veículo através do qual toda cultura se
consolida, se intercambia e se transmite”. Qualquer processo de construção identitária por
meio da língua é um encontro entre elementos que envolvem culturas, valores ou práticas que
convergem ou divergem em alguns momentos, mas que a partir de contextos históricos
específicos passam a fazer sentido e representar o indivíduo que está inserido naquela época.
41
Na visão de Freitas et al. (s/d online), outro aspecto importante para a compreensão
entre língua e identidade é que o conceito de língua tem significação geopolítica, ou seja,
representa a geografia e os aspectos políticos de uma determinada comunidade. Como as
comunidades são plurais e multifacetadas, assim, entende-se que quanto mais influenciado for
o ser humano pelos diversos contextos, infinitamente ampliada e composta será a forma de
42
perceber e agir sobre a realidade que ele está inserido. Ao encontro dessa ideia, Hall (2000, p.
37) defende que:
[...] as identidades nunca são unificadas; que são, na modernidade tardia, cada vez
mais fragmentadas e fraturadas; que elas nunca são singulares, mas multiplamente
construídas ao longo de discursos, práticas e posições que se cruzam e até podem ser
antagônicas. As identidades estão sujeitas a uma historicidade radical,
constantemente em processo de mudança e transformação. (HALL, 2000, p.37)
Rajagopalan afirma que a língua é como uma “roupagem”, que, ao despir-se dela,
podem-se observar diversos aspectos, pois a língua está sempre ligada a questões de
identidade e alteridade, visto que a ela vincula a subjetividade do sujeito. Dessa forma,
qualquer tentativa de retirar o “EU” da linguagem está fadada ao fracasso (informações
verbais)4.
4
Apontamentos de aulas ministradas pelo professor Rajagopalan à turma de Programa de Pós-graduação em
Estudo de Linguagens, em março de 2013.
43
O léxico pode ser considerado como tesouro vocabular de uma determinada língua.
Ele inclui a nomenclatura de todos os conceitos lingüísticos e não-lingüísticos e de
todos os referentes do mundo físico e do universo cultural, criado por todas as
culturas humanas atuais e do passado. Por isso, o léxico é o menos linguístico de
todos os domínios da linguagem. Na verdade, é uma parte do idioma que se situa
entre o linguístico e o extra-lingüístico. (BIDERMAN, 1981, p. 138)
O vocabulário de cada cultura é bem mais amplo para os assuntos que lhes tocam de
perto, e restrito para aqueles nos quais não tem interesse direto. [...] As línguas
realizam o recorte direto do mundo de maneira diversas; daí a dificuldade na
elaboração de traduções. Há nuanças e escalas de valores. O sentido de uma palavra
vai assim depender de associações resultantes de comparações, cargas emocionais e
de preconceitos da comunidade. (CARVALHO, 2010, p. 47)
De acordo com as palavras de Carvalho (2010), averígua-se que a língua não é estática
nem homogênea e que o léxico, diferentemente dos outros sistemas linguísticos como o
fonológico, sintático e o morfológico, é um sistema aberto a mutações. Conforme já ressaltou
E. Sapir, o léxico de uma língua é a parte mais flutuante e mais suscetível a mudanças
resultantes de acréscimos e/ou de perdas de palavras em uso – são os chamados neologismos e
arcaísmos, respectivamente. Assim sendo, o estudo lexical revela os interesses socioculturais
de uma comunidade à medida que modela pensamentos e atitudes e desponta conceitos e
preconceitos, valores e ideais, depreendendo os enigmas presentes na alma de seus falantes.
Oliveira e Isquerdo corroboram com essa ideia ao afirmarem que:
Desde Saussure, a língua é vista como um fator social e toda a sua dinâmica é tecida
pelo vocabulário, pois “[...] o léxico de uma língua conserva uma estreita relação com a
história cultural da comunidade [...] na medida em que o léxico recorta realidades do mundo,
define, também, fatos de cultura.” (OLIVEIRA; ISQUERDO, 2001, p. 9). O estudo do
vocabulário nos permite conhecer a história, a aprendizagem de seus falantes, os valores, as
vivências em sociedade, podendo-se “[...] mergulhar na vida de um povo em um determinado
período da história, [...]” (ABBADE, 2006, p. 213).
O léxico de uma língua pode ser estudado dentro de três ciências tradicionais que
enfocam o mesmo objeto com finalidades distintas: a Lexicologia, a Lexicografia e a
Terminologia: a Lexicologia é a parte da Linguística que se ocupa em estudar a palavra
segundo a sua categorização, estruturação e funcionamento; a Lexicografia é a ciência dos
dicionários e a Terminologia se preocupa em categorizar o vocabulário especializado de uma
determinada área do saber humano.
Para esta dissertação, que tem como objetivo averiguar as motivações semânticas
presentes nos nomes dos bairros e ruas presentes na obra de Jorge Amado, faz-se necessário
delimitar a base teórica dentro da Lexicologia. Dentro do campo de pesquisa, tomar o léxico
como objeto de investigação não é sinônimo de ter um campo homogêneo, livre de
intersecções outras no que tange às teorias e epistemologias, pois o estudo do léxico abarca
um universo de saberes que não se limita apenas ao campo linguístico, mas que o torna
grandioso e interessante, não mais que outros campos linguísticos, justamente porque conta
com o auxílio de diversas ciências do campo de saber.
apesar de admitir que conceituar palavra sempre foi um problema para linguistas e
gramáticos, define-a como “uma unidade linguística básica, facilmente reconhecida por
falantes em sua língua”.
O estudo lexical permite identificar traços do grupo social que o usa, evidenciando,
sobretudo, a evolução desse grupo social, bem como as transformações culturais, tais como as
tradições, a moda, a religiosidade, as novas tecnologias, tudo isso permite modificações no
léxico e revela o enriquecimento do universo pessoal e social. Tudo de concreto ou abstrato
que está diante do olhar humano pode ser nomeado e, justamente por está no campo da
lexemática, engloba o léxico. Por isso, pode-se afirmar que os nomes de lugares, que
compõem a obra Bahia de Todos os Santos, de Jorge Amado, abrangem muito mais do que
um universo literário-ficcional, são saberes partilhados pelos falantes, que garantem a
memória de um povo.
46
Com os avanços dos estudos linguísticos no final do séc. XIX para o início do séc. XX,
um novo paradigma linguístico surgiu e os estudos voltados para a língua, que até então eram
pautados no som, tomam um novo direcionamento: a palavra toma visibilidade como mais
uma forma de investigação dos fenômenos linguísticos. Foi nesse contexto, por volta de 1900,
que surgem os métodos de pesquisa e estudo voltados para a designação e o significado,
respectivamente, a semasiologia e a onomasiologia, assim definidos por Baldinger (1966).
Para Baldinger (1966, p. 28), “cada signo linguístico e cada palavra se compõe de dois
elementos: forma e conteúdo”. No plano da semasiologia, “a significação liga a forma ao
conteúdo”. Já no plano da onomasiologia, “o conceito é designado por diferentes formas
(diferentes nomes). A designação vai do conceito à forma (ao nome)”. Conforme pode ser
visto no esquema a seguir:
47
Ainda segundo o autor, a relação de dependência dessas duas estruturas se dá, pois “o
nome e o conceito, a significação que parte da forma (nome) para atingir o conteúdo e a
designação que parte do conceito para atingir a forma (nome)”.
Assim, a partir do momento que se consolidou que o signo linguístico era constituído de
um duplo aspecto, foi preciso criar um duplo aspecto do método linguístico a fim de verificar
as características semânticas e estruturais das palavras, conforme afirma Feller (apud
BALDINGER, 1966, p. 35), “será necessário partir da palavra para atingir o pensamento
(semântica), e partir do pensamento para atingir as palavras (onomasiologia)”.
48
Uma das formas de estudar a linguagem perpassa pelos estudos onomásticos, que
buscam compreender os nomes próprios, sejam estes nomes de lugares ou acidentes
geográficos - objeto de estudo da Toponímia; ou nome de pessoas e sobrenomes de famílias
ou alcunhas - objeto da Antroponímia. Esses estudos onomásticos estão no campo da
Lexicologia e se interessam pela palavra quando inserida no campo da nomeação ou
denominação.
A Onomástica tem como objeto de estudo o ónyma, do grego nome que difere da
palavra, pois pressupõe um nomeador e um ser ou lugar nomeado, conforme Dick (1998):
Pelo viés toponímico, objeto de estudo desta dissertação, é possível perceber que os
nomes de lugares e/ou acidentes geográficos ultrapassam os limites do sistema linguístico,
pois se unem aos elementos extralinguísticos que compõem o ato de nomeação no momento
que o denominador em um ato batismal escolhe o nome. Mesmo sendo um signo referencial,
os topônimos possuem uma característica importante: a motivação semântica.
Saussure, ao falar sobre a sua primeira dicotomia - língua versus fala - mostra ser a
língua o objeto de estudo da Linguística, concebendo-a como um sistema de signos
(constituídos por significado e significante), sendo fruto de convenção social, coletiva,
imutável pelo indivíduo e exterior a ele.
O equívoco nas discussões propostas por Saussure está no fato de o autor definir a
língua como fato social, mas excluir das tarefas linguísticas a preocupação com os elementos
de ordem social, ou seja, as relações extralinguísticas, o que pressupõe a homogeneidade
como elemento primordial para essa descrição.
Além de Saussure, outros autores, como Peirce, se debruçaram sobre o estudo do signo.
No entanto, enquanto Peirce descreveu o signo em caráter imediato, Saussure apontava a
noção de tempo como requisito preponderante na sua análise, apoiando numa investigação
diacrônica para seus estudos.
Um ponto de convergência nos dois estudos é o caráter arbitrário do signo linguístico.
Para ambos os estudiosos, o signo é um processo mental, psíquico que se estrutura nas
relações sociais. Porém não há uma relação direta entre o objeto extralinguístico e o signo
enquanto símbolo - na visão de Peirce, e relação entre significante e significado, na visão de
Saussure.
Ao afirmar que o signo é arbitrário, Saussure (1969) afirma também que todo signo não
tem motivação, ou seja, não há a relação entre as palavras e o objeto nomeado. Mas será que
50
todo signo é realmente arbitrário? O próprio Saussure faz ressalvas a esse princípio,
afirmando que há certas palavras que possuem graus relativos de arbitrariedade, como é o
caso das onomatopeias e das exclamações, por conseguinte, possuem certa motivação
linguística que podem ser explicadas dentro do próprio sistema linguístico.
A Toponímia, como já foi dito anteriormente, é uma das subdivisões da Onomástica e
tem como objeto de investigação os signos toponímicos, a partir das motivações dos nomes de
lugares. São espécies de enunciados próprios os quais fazem ecoar aspectos culturais dos
núcleos em que habitam em determinadas regiões.
Os topônimos refletem a capacidade que o homem possui para nomear o seu entorno,
evidenciando os saberes, as experiências e o modo de ser acumulados ao longo dos tempos.
Os nomes de lugares documentam a língua e fazem emergir os costumes e os valores que
regem as condutas da comunidade nomeada, deixando transparecer as influências culturais
propiciadas a partir do contato com outros grupos étnicos que ali se instalaram, além de
registrar e perpetuar acontecimentos históricos considerados relevantes para o olhar do
denominador.
A relação direta entre os topônimos e o referente pode ser analisada à luz dos
estudos peirciano, pois os topônimos podem apresentar aspectos que se inserem aos três
tipos se signos propostos por Peirce (1975)5.
Tendo em vista que todo Topônimo é um nome próprio e que tem a função
identificadora que individualiza o objeto, além de possuir uma função dêitica, ou seja,
referenciadora, os topônimos apresentam características de índice. Sabendo que os
índices pressupõem, na sua materialização, os ícones, os topônimos, através do nome
que recebeu como função simbólica da língua, relacionam o caráter qualitativo do
referente à sua forma física. Dessa forma, os topônimos podem ser comparados aos
signos icônicos, porque preservam as noções de índices e ícones, pois, além de mostrar
a identificação dos lugares, servem para a indicação de elementos físicos ou
antropoculturais, contidos nas denominações.
5
Dentro das discussões cunhadas por Peirce, o autor propôs que a noção de primeiridade, secundicade e
terceiridade com as suas respectivas categorias do representamem os índices, os ícones e os símbolos que
estariam ligados, pois cada categoria pressupõe a outra, mesmo guardando suas características peculiares.
53
O pequeno espaço que tais pesquisas iam ocupando e o interesse mínimo por esse
campo de pesquisas fizeram com que Drumond (1965) afirmasse que no Brasil não
55
Outros trabalhos de caráter embrionário surgem para análise na região sul, como o
Projeto Toponímia de Caxias do Sul, coordenado por Vitalina Maria Frosi (UCS) e, na
região nordeste, a tese de doutoramento sobre a toponímia dos municípios baianos de
Ricardo Tupiniquim Ramos, intitulada Toponímia dos Municípios Baianos: descrição,
história e mudanças (2008), sob a orientação da Profª Drª Suzana Alice Marcelino da
Silva Cardoso (UFBA). No ano de 2014, iniciaram-se os trabalhos do NEL – Grupo de
Estudos Lexicais, no qual esta dissertação está vinculada. O grupo é ligado ao Programa
de Pós-graduação de Estudos de Linguagem, da Universidade do Estado da Bahia -
UNEB, sob a coordenação da Profª Drª Celina Márcia de Souza Abbade. Além de
abarcar projetos de pesquisas ainda em fase embrionária, a proposta do grupo é realizar
estudos nas áreas das ciências do léxico, a fim de verificar relação entre léxico, discurso
e sociedade. O macroprojeto do grupo visa elaboração do Atlas Toponímico da cidade
do São Salvador, para, posteriormente, expandir para o Atlas Toponímico da Bahia.
57
À medida que houve o crescimento da cidade, foram adicionados espaços que ora
não existiam na primeira versão, bem como a atualização das personalidades artísticas,
políticas que se fizeram necessárias para o entendimento da obra que assume um caráter
documental e factual. Por isso, a necessidade de mais uma ampliação em 1976 em que a
obra ganhou mais um capítulo com o nome de “Caetano de Matos e Castro Alves Veloso”,
o qual o autor faz questão de falar dos redutos culturais e artísticos desses artistas baianos,
59
bem como de suas obras de alcance nacional. Em 1986, o autor faz a última atualização tal
qual encontramos atualmente na obra, contendo as novas e alargadas avenidas, marcando o
desenvolvimento urbanístico e arquitetônico da cidade, assim como os velhos e
reincidentes problemas de infraestrutura e a pobreza da população menos abastada. O
tempo passou, a cidade cresceu e o autor documenta essas mudanças a cada edição
atualizada, sem perder de vista a essência da obra primeira: mostrar as graças do povo
baiano, conforme argumenta Amado:
Aos poucos este guia foi se convertendo numa espécie de enciclopédia da vida
baiana - paisagens, histórias, velhas ruas, novas avenidas, costumes, festas, a
permanente miséria e a imbatível alegria, igrejas e candomblés, santos, orixás e
personagens os mais variados, que juntos dão a imagem real e mágica desta terra
e do povo que a habita, da mistura de sangue, de raças, de culturas que faz nossa
originalidade mestiça. (AMADO, 1986, apud [1945] 2002, p. 1)
A última publicação da obra foi feita em 2012, pela Editora Companhia das Letras6.
Na ficha catalográfica, a publicação indica como 1ª edição, no que seria a 43ª, seguindo
uma ordem cronológica das publicações. Essa edição póstuma possui algumas
modificações no que se referem às atualizações ortográficas e, como ilustrações,
encontram-se as fotografias, de Flávio Damm7, mostrando uma cidade mais recente.
6
Apesar de ter publicado a obra em 2012, a editora Companhia das Letras detém os direitos autorais das
obras de Jorge Amado desde 2008. (Informações obtidas na Fundação Casa de Jorge Amado)
7
Flávio Damm já havia feito fotos para publicações em outras edições da obra.
60
Sobre esse complexo de edições e atualizações, Wan-Dall Junior (2013) defende que
é possível perceber que existia a narrativa de uma cidade que crescia e modificava a tal
ponto que poderia ser vista como amostragem de duas cidades se comparado com o espaço
narrado na primeira edição de 1945 até a última de 2002 [ou a de 2012] publicada pela
Companhia das Letras, conforme é possível verificar na leitura do trecho que segue:
A primeira “cidade da Bahia” seria uma “Bahia de Todos os Santos” envolta nos
mistérios da cidade do Salvador, em uma estrutura de temas compostos por uma
sucessão de breves capítulos, enquanto que a “segunda cidade da Bahia” seria
uma “Bahia de Todos os Santos”, envolta tanto nos mistérios da moderna cidade
do Salvador, em uma estrutura composta por sete seções temáticas. Teríamos,
assim, pelo menos dois diferentes “Guias” resultantes: aquele que narra, através
de uma “cidade do Salvador” e aquele que narra “Salvador”. Ou, se não são dois
Guias, então o Guia seria pelo menos narrativas de duas cidades, ainda que
ambas seja partes de um continuum [...]. (WAN-DELL JUNIOR, 2013, p. 130)
Jorge Amado apresenta a cidade do Salvador da Bahia sob diversas facetas e cada
atualização exibe as notoriedades do momento, denunciando uma cidade que passa de uma
fase provinciana a uma sociedade de consumo, de crescimento e transformações.
Tais mudanças e ampliações, no entanto, não mudaram a gênese da obra que foi
inicialmente pensada por Jorge Amado, ao apresentar a sua cidade e a sua gente;
topônimos analisados na obra Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios, de Jorge
Amado foram ordenados em traçados classificatórios e sistematizados em fichas, pois,
segundo as palavras de Dick:
Como já foi dito anteriormente, adotou-se o modelo proposto por Dick (1992),
porém foi necessário realizar algumas adaptações para o corpus em estudo, visto que se
trata de uma obra literária. Logo, alguns elementos presentes em fichas lexicográfico-
toponímicas padrão, conforme proposto acima pela autora, não serão vistos nas fichas
deste trabalho, como por exemplo, os nomes do pesquisador e revisor, fonte e data de
coleta. Os demais elementos foram mantidos e/ou adaptados e não houve a necessidade de
acrescentar nenhum outro elemento.
TOPÔNIMO: TAXIONOMIA:
MUNICÍPIO:
ACIDENTE:
ETIMOLOGIA:
ENTRADA
LEXICAL
ESTRUTURA
MORFOLÓGICA
HISTÓRICO/
INFORMAÇÕES
ENCICLOPÉDICAS
CONTEXTO
Há topônimos que aparecem em grande quantidade, por essa razão, não serão
dispostos todos os exemplos encontrados, optando por apresentar até cinco exemplos,
quando encontrados.
Quando em um dos itens da ficha não forem encontradas informações ou não for
possível a sua classificação, essa ausência é marcada por: n/e (não encontrado) e n/c (não
classificado).
Taxionomia Significado
Relativos aos corpos celestes em geral.
Astrotopônimos
64
Taxionomia Significado
Ecotopônimos
Relativos às habitações de um modo geral
Ergotopônimos
Relativos aos elementos da cultura
material
A preferência pelo critério geográfico para apresentar tais análises se deu por acreditar
que tal divisão põe em evidência a identificação de identidades múltiplas, pois as escolhas dos
nomes de lugares caracterizavam a presença ou ausência de privilégios socioeconômicos. Nos
bairros da “Cidade Alta”, por exemplo, encontravam os moradores das classes altas, as lojas
sofisticadas, as principais funções administrativas e religiosas (relacionadas ao catolicismo, é
claro), enquanto que os bairros da “Cidade Baixa” alojavam o comércio mais intenso, os
operários, os trabalhadores menos favorecidos.
(2) ALAGADOS
(4) CALÇADA
“[...] separado pelo resto da cidade por uma longa rua parte
da Associação Comercial e vai até a Calçada”. (p. 23)
“Por ali passam todos os ônibus da chamada linha de baixo:
Lapinha, Santo Antonio, Barbalho, Estrada da Liberdade,
Calçada, vários outros”. (p.86)
CONTEXTO “Vão para os bairros pequeno-burgueses mais típicos da
cidade: Lapinha, Santo Antonio, Barbalho, Brotas, bairros
operários também: Estrada da Liberdade, Calçada, Cosme
de Faria”. (p. 86-87 )
71
ACIDENTE: Humano/Bairro
ETIMOLOGIA: FAZENDA - Do lat. facenda, por facienda, de facere ‘fazer,
executar’. GRANDE - Do lat. grandis ‘vasto, comprido,
desmedido, numeroso’. RETIRO – De tirar. Origem
desconhecida ‘lugar solitário’. (CUNHA, 2007)
ENTRADA Fazenda Grande do Retiro
LEXICAL
ESTRUTURA Elemento composto (substantivo feminino singular +
MORFOLÓGICA Adjetivo masculino singular + contração + substantivo
masculino singular)
(6) ITACARANHA
(7) ITAPAGIPE
(8) LIBERDADE
(9) LOBATO
ENTRADA Lobato
LEXICAL
ESTRUTURA Elemento simples masculino singular (apelido de família)
MORFOLÓGICA
Recebeu esse nome por causa do dono de engenho de bois
Vasco Rodrigues Lobato. O topônimo registra a importância
HISTÓRICO/ do dono de engenho, que também prosperou como produtor
INFORMAÇÕES de açúcar em terras baianas.
ENCICLOPÉDICAS Dorea (2006) afirma que segundo o historiador Cid Teixeira,
“o petróleo na Bahia foi pela primeira vez extraído na área
do Lobato”, por essa razão ganhou conhecimento nacional
como o local onde foi descoberto o primeiro poço de
petróleo brasileiro na década de 40, na campanha Getulista
"O Petróleo é nosso”.
“O primeiro é Lobato, que ainda exibe as antigas torres de
petróleo e onde um pequeno monumento marca o lugar da
descoberta do ouro negro baiano, e o último é Paripe, com
poucas casas”. (p. 97)
CONTEXTO
“Depois de Lobato vem Plataforma com sua grande fábrica
de tecidos e vasta população operária”. (p. 98)
76
(10) MASSARANDUBA
(12) PARIPE
(13) PERI-PERI
(14) PILAR
(15) PIRAJÁ
(16) PLATAFORMA
(17) RIBEIRA
(21) URUGUAI
(22) AMARALINA
(23) BARBALHO
(24) BARRA
(25) BARRIS
(26) BARROQUINHA
(27) BEIRU
(29) BONFIM
(30) BROTAS
(32) CANELA
(34) CHAME-CHAME
(35) VITÓRIA
(37) ESCADA
(40) FEDERAÇÃO
(41) GARCIA
(42) GRAÇA
(43) ITAPUÃ
(45) LAPINHA
(47) NAZARÉ
(49) ONDINA
(50) PELOURINHO
(51) PERNAMBUÉS
8
Sobre a origem do nome desse bairro, os estudiosos não têm nenhuma certeza. Segundo Dorea (2006), nas
pesquisas para descobrir a origem desse topônimo, até agora, não foi possível chegar a uma conclusão.
116
(52) PIATÃ
(53) PITUBA
(58) SAÚDE
(60) SOLEDADE
ENTRADA Soledade
LEXICAL
ESTRUTURA Elemento simples (substantivo masculino singular)
MORFOLÓGICA
Com uma vista maravilhosa para a Baía de Todos os Santos, o
bairro da Soledade tem sua história com os mesmos méritos
HISTÓRICO/ que o vizinho Lapinha no que diz respeito a sua participação
INFORMAÇÕES no Dois de Julho. Possui devoção a Nossa Senhora da
ENCICLOPÉDICAS Soledade e um dos marcos no bairro é a estátua da maior
heroína deste movimento, Maria Quitéria.
(61) COUTOS
CONTEXTO “Na Rua Aracaju, 14, Jardim Brasil, Barra Avenida exerce o
ofício de barbeiro o poeta Antonio de Jesus Santana”. (p. 379)
133
9
A Rua do Tira Chapéu possui a motivação do hábito que os homens tinham em retirar os chapéus, em
respeito da casa da sede do governo.
10
Ladeira do Pau da Bandeira fica situada no antigo sítio político da colônia. Recebeu esse nome, pois ali
ficava um mastro onde se hasteavam bandeiras para orientar os navegantes em sua ida e vinda, traduzindo o
pertencimento da terra.
146
(p. 72)
279)
Cabeça, Rua da Forca, Rua do Chega Negra, Rua Mata Maroto, Liberdade,
Rua Chile, Rua Aracaju, Rua do Jogo do Lourenço, Rua dos Carvões, Rua da
Assembleia, Federação, Corredor Da Vitória, Rua do Carmo, Santa Tereza,
Rua Guindastes do Padres, Fazenda Grande do Retiro, Rua Guedes Brito,
Uruguai, Bonfim, Coutos, Vitória, Chame-Chame.
30%
70%
Física
Antropocultural
Hidrotopônimo
9% 3% Geomorfotopôni
mo
6% 32%
Litotopônimo
Fitotopônimo
Zootopônimo
Cardinotopônimo
28%
9% Meteorotopônimo
13%
Diante dos gráficos apresentados e de uma análise mais sistemática dos referenciais
toponímicos, dentro das taxes de natureza física, analisam-se os nomes de lugares que
tiveram como motivação elementos de ordem animal, vegetal, mineral, hidrográfica, a
posição geográfica e as formas topografias e formações litorâneas nomeias os lugares,
testemunhando a vontade primeira do nomeador. Essa escolha pode ser verificada na
maioria dos bairros da Cidade Baixa.
Gomes, Rua Franco Valasco, Rua José Bahia, Coutos, Rua José Joaquim Seabra, Rua
Luiz Anselmo, Rua Norma Guimarães, Hagiotopônimo, Santo Antonio, São Caetano, São
Gonçalo, São Tomé de Paripe, Rua São Miguel, Rua São Francisco, Rua São Pedro, Santa
Tereza; Hierotopônimo: Brotas, Graça, Bonfim, Lapinha, Escada, Monte Serrat, Nazaré,
Pilar, Rua da Misericórdia, Vitória, Saúde, Soledade, Rua das Mercês, Rua dos Aflitos,
Rua do Carmo; Númerotopônimo: Rua dos Quinze Mistérios; Ergotopônimo: Barris,
Pelourinho, Plataforma, Rua Guindastes dos Padres, Rua do Gasômetro, Placa Ford;
Corotopônimo: Rua Chile, Rua Aracaju, Uruguai; Historiotopônimo: Rua da Forca, Rua
Ary Barroso, Rua Guedes de Brito, Rua Ruy Barbosa, Rua do Chega Negra; Federação,
Liberdade, Rua Bolivar das Flores; Somatotopônimo: Rua da Cabeça; Animotopônimo:
Rua Alegria do Paraíso; Rua da Agonia, Pituba, Piatã, Rua do Bom Marché;
Sociotopônimo: Rua dos Marchantes, Rua do Liceu, Engenho Velho de Brotas, Rua do
Jogo do Lourenço, Engenho Velho da Federação, Rua da Assembleia, Rua dos Carvões,
Fazenda Grande do Retiro; Hodotopônimo: Corredor da Vitória, Calçada;
Poliotopônimo: Cidade da Palha; Dirrematotopônimo: Rua Mata Maroto, Chame-
Chame.
3% 1% 3% Antropotopônimo
11% 20% Hierotopônimos
7% Hagiotopônimo
1% Numerotopônimo
Ergotopônimo
Corotopônimo
Historiotopônimo
11% 19% Somatopônimo
Animotopônimo
4%
8% 1% 11% Sociotopônimo
Hodotopônimo
Poliotopônimo
Dirrematotopônimo
coletiva da região por alguma razão específica. Dick (1990) chama atenção para a
importância dos topônimos dessa natureza:
Dentro as taxionomias propostas por Dick (citadas em 5.2), não foram encontradas
no corpus: astrotopônimos, cromotopônimo, morfototônimos e os dimensiotopônimos,
dentro do campo de natureza física. Já as taxionomias de natureza antropocultural não
173
Dos topônimos que mudaram de nome, aparece José Bahia que era chamada de
Beco do Padre e Rua Caio Moura que já foi chamada de Rua dos Carvões. A Rua Carlos
Gomes já foi chamada de Rua de Baixo, Baixa dos Sapateiros, como popularmente é
chamada, foi a antiga Rua da Vala e, hoje, é chamada de Rua José Joaquim Seabra. Houve
também a mudança ortográfica dos nomes dos bairros que aparecem na obra, a saber: Peri-
Peri atualmente escrito Periperi, Placa Ford, hoje escrito Placaford.
174
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por acreditar que cada nome de lugar pode revelar elementos singulares referentes à
comunidade linguística estudada, foi possível constatar o importante papel do léxico como
elemento retratador de realidades diversas, capaz de refletir saberes, culturas, identidades,
crenças e ideologias. Estudar esses elementos característicos de um povo por meio de
aspectos lexicais e, de maneira particular a partir do estudo dos nomes de lugares, permitiu
uma aproximação maior entre o real e o “topo”, pois foi possível evidenciar, também, a
realidade social, histórica e cultural de uma região, na medida em que revela características
175
Ao longo deste trabalho, foram feitas algumas modificações no projeto inicial, desde o
título do projeto até ao número de topônimos que seriam analisados no corpus da pesquisa. A
proposta inicial era analisar todos os topônimos presentes na obra-guia, desde os becos, as
avenidas, as praças e outros. No entanto, pela amplitude do trabalho, o tempo não favoreceu
para que se realizasse tal abordagem.
176
Jorge Amado, em seu “guia de ruas e mistérios”, apresenta uma cidade hospedeira,
mística que, desde a sua formação, busca vencer dificuldades através da luta de sua gente
alegre, e que não perde a esperança de dias melhores. Bahia de Todos os Santos é uma
enciclopédia da cidade do salvador, do povo da Bahia.
REFERÊNCIAS
AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios. 42. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2002.
AMADO, Paloma Jorge. Um canto de Amor à Bahia. Pósfácio. In. Bahia de Todos-os-
Santos: guia de ruas e mistérios. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas linguísticas. In: ORTIZ, Renato (Orgs.) Pierre
Bourdieu - Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
178
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário histórico das palavras portuguesas de origem
tupi. 4ª Ed.. São Paulo: Companhia Melhoramentos; Brasília: Universidade de Brasília,
1999.
_______. Atlas toponímico do Brasil: Teoria e prática II. In.: Revista Trama. 2007, p.
141-155.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade?. In: SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
MENEZES, Paulo Márcio Leal de; SANTOS, Cláudio João Barreto dos. Geonímia do
Brasil: reflexões e aspectos relevantes. Revista Brasileira de Cartografia, Rio de Janeiro,
v. 2, n. 58, p. 193-200, ago. 2006.
OLIVEIRA, Ana Maria Pinto Pires de; ISQUERDO, Aparecida Negri (Org.). As ciências
do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. 2. ed.Campo Grande: UFMS, 2001, p. 9.
RAMOS, Ana Rosa. Jorge Amado e os campos da produção cultural e política no Brasil
dos anos 30 a 50. In.: FRAGA, Myrian; FONSECA, Aleilton; HOISEL, Evelina (orgs).
Jorge Amado: 100 anos escrevendo o Brasil. Salvador: Casa de Palavras, 2013. v.1.
RIBEIRO, João Ubaldo. Jorge Amado e a invenção do Brasil (Dossiê Jorge Amado). In.:
Revista Brasileira. Academia Brasileira de Letras: Rio de Janeiro. Ano I, nº 73, p. 97-103,
2012. Disponível em:
http://www.academia.org.br/abl/media/revista%20brasileira%2073%20-
%20dossie%20jorge%20amado.pdf. Acesso em: 01 abr. 2014.
RISÁRIO, Antonio. Caymmi, uma utopia de lugar. São Paulo: Perspectiva, 1993.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Trad. Fulvia M. L.
Moretto.3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo. Ed. Brasiliense, 5. ed. 1986.
SARTORI, Tríssia Ordovás. Ruas de minha cidade: um estudo hodonímico. 2010. 82f.
Dissertação (Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade): Universidade de Caxias do
Sul, Caxias do Sul, 2010.
SAUSSURE, F. de. Curso de Línguística Geral. Tradução de Antonio Chelini, José
Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo, Cultrix, 1969.