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Esse estudo traz discussões sobre o bilinguismo bimodal1 por meio da compreensão da
relação que os Tradutores e Intérpretes de Língua de Sinais (TILS), estabelecem entre a
Língua Brasileira de Sinais (Libras) e o Português Brasileiro. Especificamente como se
manifesta esse fenômeno em dois contextos discursivos diferentes, analisados por meio do
software ELAN – EUDICO Linguistic Annotator.
Os estudos realizados em torno do bilinguismo, cada vez mais tem abrangido aspectos
que envolvam a questão da tradução, da interpretação e os sujeitos que ocupam esse lugar de
mediadores da interlocução. Isso porque a crescente inserção dos surdos nos diferentes
contextos sociais, assim como a necessidade de garantia dos seus direitos, destaca tradutores e
intérpretes como relevantes interlocutores no processo de interação social entre surdos e
ouvintes, entre línguas vocais e línguas sinalizadas.
Esse cenário de interação entre línguas de diferentes modalidades permite a emergência
de fenômenos tais como alternância e sobreposição de códigos 2, reconhecidos também por
code-switching3 e code-blending, respectivamente. Rodrigues (2013) aponta que, apesar da
intensificação de pesquisas no Brasil direcionadas à tradução e interpretação da Libras,
permanecem lacunas importantes no que compete aos aspetos relacionados às modalidades,
seja oral-auditiva, seja gestual-visual.
Contudo, nas últimas décadas tem-se observado um importante interesse de diferentes
áreas do conhecimento como a linguística formal, linguística aplicada, sociolinguística,
estudos de aquisição da linguagem, neurolinguística, dentre outras, em torno do bilinguismo
bimodal. Tais estudos têm contribuído com a caracterização da natureza do bimodalismo e,
em conjunto com recursos tecnológicos, esses trabalhos somam forças para caracterizar
questões de ensino, educacionais, cognitivas, comunicativas, de processamento, linguísticas e
motivacionais (DUARTE & MESQUITA, 2016).
Nesse sentido, faz-se importante esclarecer o que se entende aqui por modalidade. Para
tanto, convoca-se McBurney (2004, p. 351, tradução nossa), que propõe a seguinte
compreensão:
(...) a modalidade de uma língua pode ser definida como sendo os sistemas físicos
ou biológicos de transmissão por meio dos quais a fonética de língua se realiza.
Existem sistemas diferentes de produção e percepção. Para as línguas orais, a
produção conta com o sistema vocal e a percepção depende do sistema auditivo.
Línguas orais podem ser categorizadas, portanto, como sendo expressas na
modalidade vocal-auditiva. Línguas de sinais, por outro lado, dependem do sistema
gestual para a produção e do sistema visual para a percepção. Portanto, línguas de
sinais são expressas na modalidade gestovisual.
1
Ressalte-se que aqui o termo bilinguismo bimodal afasta-se de uma concepção histórica de práticas de
educacionais, extensamente criticadas, na qual a língua de sinais não era compreendida como língua natural, mas
como uma ferramenta que deveria ser acomodada a uma outra língua dominante.
2
Neste trabalho parte-se de uma compreensão de língua(gem) enquanto fenômeno social e não enquanto código.
O uso dos termos: code-switching e code-blending, deu-se em considerando que esses são os termos que a
literatura específica adota para referir-se aos fenômenos aqui tratados.
3
Esse fenômeno não será abordado neste trabalho.
influenciando o uso (KROLL & STEWART, 1994; KROLL et al., 2006; EMMOREY et al.,
2008; SHOOK & MARIAN, 2012).
Uma pesquisa sobre bimodalismo entre línguas de sinais e línguas orais evidenciou que,
embora os falantes mantenham uma única língua como língua matriz, em alguns momentos
utilizam uma língua “convidada” concomitantemente à matriz. Esse fenômeno, conhecido
como code-blending, também chamado de sobreposição ou junção de código, ocorre, na
opinião de alguns pesquisadores, em razão da necessidade de complementar o sentido do que
se quer dizer, com a língua em que a informação que se pretende esteja mais clara. Dessa
maneira, fica demonstrado que duas línguas, no caso de bilíngues bimodais, podem e
permanecem ativas durante a interação (EMMOREY et al, 2008).
Outro estudo buscou revelar qual seria o impacto do code-blending em tarefas de
reconhecimento de figuras, nas quais os estímulos deveriam ser interpretados via sinal, via
palavra oral e via code-blending. Concluiu-se que a percepção das figuras foi mais rápida na
condição code-blending do que nas modalidades isoladamente, sugerindo que o bimodalismo
acelera o processamento das duas línguas (EMMOREY et al., 2012). Revelando-se assim,
uma importante estratégia discursiva.
De acordo com Duarte e Mesquita (2016), o code-blending, assim como o code-
switching, funciona como um recurso linguístico (com diferentes funções discursivas e
pragmáticas), é sinal de motivações sócio-psicológicas operantes no discurso, fornece
informações linguísticas para compreensão de aspectos gramaticais observados nos diferentes
pares de línguas, é um marcador de contextos sociolinguístico, relaciona-se a questões
culturais e identitárias. Ou seja, oferece importantes subsídios para o ensino de línguas. Em
se tratando do ensino para surdos, em qualquer nível educacional, se faz mister a
compreensão em como os TILS processam as informações veiculadas em L1 (Português
Brasileiro) pelos professores ouvintes de diferentes áreas e interpretam para L2 (Libras),
mediando a comunicação entre professor ouvinte-aluno surdo.
Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é observar a presença de code-blending no par
Libras e Português Brasileiro e suas funções discursivas em um sujeito ouvinte que atua como
TILS, tendo o software ELAN como o meio tecnológico utilizado para a análise dos dados
observados. Tais dados foram registrados em vídeos produzidos em contextos discursivos
distintos, simulando os ambientes socioeducacionais em que os TILS atuam. Assim, esse
trabalho se justifica uma vez que permite contribuir para a compreensão de como a Libras e o
Português Brasileiro são estruturadas e processadas em situações de bimodalismo,
influenciando o processo de ensino e aprendizagem dos sujeitos surdos.
2 PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS
A geração de dados foi realizada em três etapas distintas: Etapa A (Questionário Escrito)
– perguntas visando à identificação mais detalhada do perfil do sujeito participante da
pesquisa; Etapa B (Protocolo Verbal Livre) – sinalização a partir da seguinte pergunta aberta:
“O que te motivou a se tornar TILS?”, gravada em dois vídeos, um com equipamento
posicionado em frente aos dois interlocutores (CAM1) e, o outro, com equipamento
posicionado na diagonal de frente para interlocutor 2 (CAM2), para posterior transcrição; e
Etapa C (Protocolo Verbal Dirigido) – interpretação de uma reportagem4 veiculada na mídia
gravado em vídeo (CAM2) para posterior transcrição. A participante assinou o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido e Termo de Autorização de Uso de Imagem.
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Paraná TV 1ª edição – Paranavaí – Paranaense trabalha como voluntária no resgate dos meninos na Tailândia.
Disponível em www.globoplay.globo.com/v/6867179. Exibida em 12 de julho de 2018 (duração: 3’).
“doutoradolibrasentrev.eaf” (Figura 1) e se refere à transcrição e análise dos vídeos
“PG_2018_ENTREV_TILS_CAM1” (2’20”) e “PG_2018_ENTREV_TILS_CAM2” (2’29”)
(Figura 2 e Figura 3, respectivamente), que apresentam um contexto menos formal sinalizado.
Para melhor entendimento, determinou-se citar a pesquisadora como “Interlocutor 1” e a
TILS participante como “Interlocutor 2”. Esses vídeos foram sincronizados, permitindo a
visualização da sinalização em dois ângulos diferentes aos mesmo tempo.
A partir dos dados coletados em vídeo e transcritos por meio do ELAN, a análise buscou
compreender a presença de code-blending no par Libras e Português Brasileiro a depender de
dois contextos discursivos.
Conforme esperado, numa análise inicial pode-se observar que a Libras foi elegida pela
interlocutora como língua matriz em ambos os contextos discursivos. Entretanto, pode-se
notar a ocorrência (de modo não explícito) de sobreposição do Português Brasileiro sobre a
Libras em ambos os contextos de interlocução. Nesse sentido, observou-se ainda que o code-
blending manifestou-se mais claramente no contexto mais formal (interpretação da
reportagem). Crê-se que isso se deve ao fato de o contexto menos formal ter sido realizado em
situação monomodal. Nesse caso, vê-se que mesmo que seja utilizada apenas uma língua
(como L2), pode haver a influência da estrutura e funcionamento da L1 na construção do
discurso em L2. Isso depende do domínio, fluência e conhecimento linguístico-cultural da L1
e da L2.
Diante disso, considera-se que as pausas verificadas na análise do vídeo da entrevista
podem ser consideradas como um exemplo de code-blending, uma vez que se trata de L2 para
ambas as interlocutoras. Evidencia-se que, para uma troca de estrutura linguística em
modalidades distintas, é necessário um tempo de organização mental maior para que ocorra
essa troca. Nessa análise inicial foram observadas 5 (cinco) pausas, sendo 2 (duas) da
interlocutora 1, e 3 (três) pausas da interlocutora 2. Também durante a sinalização da
interlocutora 2, foi possível verificar alguns sinais congelados (duração de tempo maior), que
indicavam certa pausa. Porém não foi possível definir se são ocorrências de code-blending ou
se são intervalos em estruturas frasais (parágrafos) diferentes. Ou, em outro caso, se
correspondem a uma dúvida pessoal da interlocutora quanto à época (ano) que queria fazer
referência.
No contexto mais formal, interpretação de reportagem veiculada na mídia, a TILS
participante da pesquisa, durante a sinalização, tinha à sua frente uma TV em que foi
reproduzida a reportagem escolhida. Não houve conhecimento prévio do vídeo de referência
por parte da TILS para que pudesse ser simulado um contexto formal em que atuam esses
profissionais. Porém, o assunto foi amplamente difundido na mídia uma vez que se tratava do
acidente ocorrido com atletas e treinador presos na caverna na Tailândia. O vídeo foi
escolhido a partir do critério ‘atualidade’ e por conter assunto pertinente à região onde mora a
TILS participante e a comunidade surda na qual ela convive - missionária da região atuou
como intérprete de inglês e tailandês. Ainda sobre o vídeo da reportagem, é necessário
esclarecer que participaram 3 (três) interlocutoras: a repórter-âncora, a repórter da matéria, e a
entrevistada (missionária).
Na análise dos vídeos foi possível verificar o tempo de escuta (lag-time) necessário da
TILS para o início da interpretação da reportagem. A primeira ocorrência de lag-time teve
uma duração de 4 segundos entre o início do áudio e o início da sinalização. Esses intervalos
de tempo sem sinalização durante o áudio da reportagem foram considerados como exemplo
de code-blending, apesar de não ter havido sobreposição da fala sobre o sinal. Observou-se,
nesses intervalos, um processamento linguístico de uma língua (L1) para ser reproduzida em
outra estrutura e modalidade (L2). Ou ainda, como a compreensão da TILS quando da troca
das interlocutoras durante a matéria no que se refere à diferença da voz durante imagens
apresentadas sem que as interlocutoras aparecessem, sendo necessário indicar quem estava
falando no momento.
Também houve omissão da informação oral inicial até o início da sinalização, deixando
claro que nesse primeiro tempo de escuta foi processado parte do que foi ouvido. Isso pode
ser entendido como as escolhas (subjetividade) da TILS em determinar o que é relevante para
a sinalização, bem como as suas escolhas lexicais e/ou uso de classificadores.
Exemplificando essa ocorrência, o trecho de áudio: “A gente falando de solidariedade,
né? O mundo inteiro aí acompanhou o resgate dos meninos que ficaram presos na caverna lá
na Tailândia, né?” (fala da repórter âncora), teve a seguinte sinalização correspondente: “O
tema é reportagem mundial que explica sobre a segunda-feira passada, no país embaixo água
caverna. Muitas pessoas voluntárias ajudando...”. Observou-se aqui a omissão da informação
acerca da notícia incluir o tema da solidariedade e do resgate dos meninos. Essas omissões
também podem ser consideradas como code-blending, em que a sinalização do trecho “país
embaixo água caverna” já fazia referência aos meninos, por se tratar de assunto amplamente
veiculado na mídia, sobrepondo a estrutura da L2 sobre a L1 em uma generalização. E a
posterior sinalização de “pessoas voluntárias” deixa implícita a ideia de solidariedade.
O intervalo de tempo entre o final do áudio da repórter-âncora e o início do áudio da
repórter foram de apenas 740 milésimos de segundo. E o intervalo de tempo entre o início do
áudio da repórter e o início da sinalização correspondente foi de 4 segundos e 530 milésimos.
Porém, não houve intervalo de tempo no final da sinalização correspondente ao áudio da
repórter-âncora e o início da sinalização correspondente ao áudio da repórter, ficando apenas
uma sinalização, sem que fosse possível diferenciar uma da outra interlocutora por meio da
interpretação. Essa não distinção entre interlocutoras na sinalização, também foi considerada
um exemplo de code-blending porque a estrutura de L1 se sobrepôs à L2, em que deveria ser
enunciado outra repórter ou ser manifestada por meio da incorporação do sujeito
(deslocamento do eixo do corpo para a esquerda, uma vez que a incorporação à direita faz
referência à entrevistada).
A pausa entre o fim do áudio da repórter e o início do áudio da entrevistada foi de 150
milésimos de segundo. O lag-time da TILS correspondente a essa pausa entre áudios foi de
630 milésimos de segundo. Porém, o início da interpretação correspondente ao início do áudio
da entrevistada teve uma diferença de 5 segundos e 350 milésimos, evidenciando que, além
do intervalo para incorporação de personagem, também foi necessário um tempo maior de
adequação de modalidade e língua, voltando a L2 se sobrepor à L1 (code-blending).
A pausa de áudio (em 46” do vídeo) entre a entrevistada e a repórter foi de 180 milésimos
de segundo. Mas não teve referência em lag-time nem nas trilhas de transcrição e de tradução,
sendo apenas evidenciado por sair da incorporação de personagem (entrevistada) voltando o
corpo no eixo frontal (como repórter). Contudo, a diferença de tempo do início do áudio da
repórter e do início da interpretação de referência, foi de 4 segundos e 45 décimos. Nesse
trecho é visível o code-blending de L2 sobre L1, pois houve a inferência de sinais que não
aparecem como uma referência de áudio e também a omissão de informação. Tal estrutura é
para que fique mais claro o entendimento do assunto tratado.
Como exemplo, no áudio é falada a cidade em que a entrevistada Tatiane mora - Xangai,
bem como o tempo. Na interpretação foi citado apenas os 6 anos de moradia na cidade,
generalizando a localidade pelo nome do país - Tailândia, “Ela mora 6 anos na cidade (país
Tailândia)”. Quando a repórter comenta sobre a Tatiane ser de Arapoti, na interpretação há a
inserção de outros sinais: “Ela é de Arapoti…” (áudio da repórter); “(ela) nasceu aqui
Paraná, cidade Arapoti” (interpretação em Libras).
O outro intervalo de pausa (1’02” no vídeo) entre o fim do áudio da repórter e o início do
áudio da entrevistada teve duração de 790 milésimos de segundo, correspondendo a 570
milésimos de segundo de lag-time na interpretação. A diferença de tempo entre o início do
áudio e o início da interpretação foi de 3 minutos e 840 milésimos. Essa diminuição de tempo
de escuta evidenciou certa confusão na interpretação na mudança entre os áudios, havendo
uma quebra de estrutura frasal sinalizada, prevalecendo a estrutura da língua oral mesmo que
tenha havido a incorporação de personagem (aspecto linguístico da L2) - mais uma ocorrência
de code-blending.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHRISTMANN, K. E; OLIVEIRA, J. S; DOMINGOS, F. K. P; QUADROS, R. M. O
software ELAN como ferramenta para transcrição, organização de dados e pesquisa em
aquisição da língua de sinais. In: CELSUL - CÍRCULO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO
SUL, 20 a 22 de outubro de 2010, Palhoça – SC. Anais do IX Encontro do CELSUL.
Palhoça-SC: Universidade do Sul de Santa Catarina, out. 2010.
SHOOK, A.; & MARIAN, V. Bimodal bilinguals co-activate both languages during spoken
comprehension. Cognition, v. 124, p. 314–324, 2012.
THE ELAN SOFTWARE AND THE BRAZILIAN SIGN LANGUAGE:
A TECHNOLOGICAL RESOURCE FOR LINGUISTICS ANALYSIS