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volume 1 - teoria

Emília Amaral - Severino Antônio


Ricardo Silva Leite

r:fJ CURSOS PRÁTICOS


� NOVA CULTUML I VESTIBULAR I
I'

lndice

PORTUGAL NO RENASCIMENTO: ESPLENDOR E MISÉRIA 1


Luís Vaz de Camóes 2
0 BARROCO: AMBIGUIDADES E CONTRADIÇÕES 8
Gregório de Matos 9
NEOCLASSICISMO EM PORTUGAL 14
&c� 15
0 NEOCLASSICISMO: PORTUGAL E BRASIL 20
Tomás Antônio Gonzaga 21
0 ROMANTISMO EM PORTUGAL 26
Camilo Castelo Branco 27
0 ROMANTISMO NO BRASIL 32
José de Alencar 33
Manoel Antônio de Almeida 45
Álvares de Azevedo 50
Castro Alves 54
0 REALISMO EM PORTUGAL: Eça de Queirós 59
0 REALISMO NO BRASIL: Machado de Assis 70
Raul Pompeia 84
0 PRÉ-MODERNISMO NO BRASIL: Lima Barreto 91
0 MODERNISMO EM PORTUGAL: Fernando Pessoa 97
0 MODERNISMO NO BRASIL- l.a FASE: Manuel Bandeira 104
Mário de Andrade 11 O
Oswald de Andrade 124
0 MODERNISMO NO BRASIL- 2.a FASE: Graciliano Ramos 131
Carlos Drummond de Andrade 145
José Lins do Rego 155
Rubem Braga 161
0 MODERNISMO NO BRASIL- 3. FASE 167
João Guimarães Rosa 168
Clarice Lispector 179
João Cabral de Melo Neto 187
ANEXO: LITERATURA- CARACTERÍSTICAS 193
ANEXO: EsTILOS DE ÉPOCA NA LITERATURA 194
ANEXO: LITERATURA COMENTADA (ESBOÇO) 195
LITERATURA COMENTADA
Emília Amaral, Severino Antônio, Ricardo Silva Leite

PORTUGAL NO RENASCIMENTO:
ESPLENDOR E MISERIA
,

Camões viveu no século XVI, em pleno Renascimento, uma das épocas mais fér­
teis e de maiores transformações na história da civilização ocidental. A múltipla e
fecunda atividade dos humanistas, traduzindo e divulgando as idéias e as obras da
Antigüidade clássica, desenvolveu os debates e a criação cultural.
Novas idéias. Novas linguagens. A redescoberta do humanismo pagão, depois de
séculos de cristianismo medieval. O antropocentrismo. A euforia vital do homem, reco­
locado no centro do universo, e tomado novamente como a medida de todas as coisas.
A liberdade de pensamento.
O culto da beleza, do prazer, dos sentimentos. A redescoberta da arte clássica -
grega e latina - como modelo ideal de criação. Equilíbrio, clareza, harmonia. Ra­
cionalidade, universalidade. O Classicismo torna-se a expressão artística do
Renascimento.
O mapa do mundo europeu se transforma: grandes navegações, grandes descober­
tas marítimas. Revolução científica e tecnológica. A nova concepção do universo -
Copémico, Giordano Bruno, Galileu Galilei. O método científico. A pólvora. A bússo­
la. O astrolábio. As novas embarcações e novas técnicas de navegação. Os tipos móveis
de Gutenberg.
O desenvolvimento do capitalismo comercial. Mercantilismo. Crescimento do
comércio e das cidades. Grandes transformações políticas, econômicas e sociais mar­
cam este tempo.
Portugal torna-se, com os descobrimentos marítimos, um país de importância pla­
netária. A corte portuguesa é uma das mais ricas da Europa. A nobreza palaciana enri­
quece com o comércio ultramarino, mas essa riqueza é dissipada: não houve acumula­
ção do capital nem investimentos na produção. O período de opulência não estava
estruturado sobre sólidas bases e a crise já era evidente em meados do século. Em 1568,
Portugal é governado por D. Sebastião: obcecado pela convicção de que deveria salvar
a cristandade, segue dez anos mais tarde para a África para combater os mouros. É a
derrota de Alcácer-Quibir na qual o rei e mais da metade de seu exército morrem.
Consuma-se a crise, em 1 580 Portugal perde a independência. É a dominação espanho­ -
la, que durará até a restauração portuguesa, em 1640.
1
, -

LUIS VAZ DE CAMOES


Uma lírica de duas faces e duas pulsações
ó vós que Amor obriga a ser sujeitos Verdades puras são e não defeitos;
A diversas vontades! Quando terdes E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Num breve livro casos tão diversos, Tereis o entendimento dos meus versos.

UMA DAS MAIS IMPORTANTES LÍRICAS DA LITERATURA


Durante muito tempo, a genialidade de Os Lusíadas - reconhecidamente a maior
epopéia do Renascimento - deslocou e absorveu quase tudo que se lia de Camões.
Hoje, e cada vez mais, a sua lírica vem sendo reconhecida como poesia da mais alta
expressão, que nada deve à épica.
A permanente atualidade dos poemas amorosos e reflexivos tem sido contínuo moti­
vo de espanto. A multiplicidade de vozes e perspectivas, a dramaticidade das contradi­
ções, a flexibilidade dos ritmos, a surpreendente fabulação de imagens, as inesperadas
danças de conceitos, têm revelado a obra de Camões como uma das mais importantes líri­
cas da literatura ocidental.
O fundamental da lírica está nas redondilhas e nos sonetos. Encontramos em seus
poemas basicamente dois grandes pólos, duas grandes estruturas métricas: a chamada
medida velha, os versos de cinco e de sete sílabas poéticas, as redondilhas menores e
maiores, respectivamente, e a chamada medida nova, os versos de dez sílabas que pas­
saram a ser conhecidos como os decassílabos "camonianos".
ouco se sabe, ao certo, sobre a vida de No entanto, mais do que métricas, no sentido de medida silábica, de contagem de
P Camões. Deve ter nascido em 1 524 ou sílabas, trata-se evidentemente de ritmos. De um lado, os ritmos leves e ligeiros dos ver­
em 1 525, não se sabe em que cidade. Famflia sos em redondilhas, emaizados na tradição popular e medieval. A espontaneidade e a
de alguma ascendência aristocrática, mas leveza destes metros é recriada por Camões com graciosidade dificilmente superável.
empobrecida. Provavelmente teve acesso aos Os temas e motivos são originados de fontes populares, de cantigas de amor e de
livros e ao estudo através de um suposto tio, amigo, e também da poesia placiana. Além destes, encontramos também, ainda em
prior de um mosteiro. Alista-se como soldado
medida velha, poemas reflexivos, filosóficos, de complexa estruturação de imagens e
raso e perde o olho direito em combate, em
de sentidos.
Ceuta, em fins de 1 549.
De outro lado, encontramos o ritmo longo, intenso e denso dos decassílabos - a
De volta a Portugal, leva vida desregrada.
Uma briga de rua, com um funcionário do medida nova, o "doce estilo novo" trazido do Renascimento italiano por Sá de
palácio, leva Camões à prisão (1 552). onde Miranda. Esse ritmo comprido e tenso se manifesta em unidade com a linguagem filo­
passa nove meses. Sai da cadeia para servir sófica e reflexiva, com o tom dramático e muitas vezes trágico dos questionamentos do
no exército português ultramarino, na fndia. amor e da condição humana.
Voltará somente dezessete anos depois. O A mais característica expressão da medida nova revela-se nos sonetos, que, por sua
"exflio" de Camões: fndia,China (em Macau, construção racional (introdução, desenvolvimento, conclusão; jogos de tese, antítese e
onde teria escrito grande parte de Os síntese) combinam-se profundamente com as características e processos de criação de
Lusfadas e de sua lfrica), África. Camões, com seu estilo, com sua natureza de poeta lírico que faz sempre poesia racio­
Ao sair da China, em 1 556, sofre nal, questionadora da própria emoção, e não apenas de confissão afetiva.
naufrágio, e, segundo a lenda, teria
conseguido salvar também os manuscritos de
Os Lusfadas. No entanto, Dinamene, moça POEMAS FILOSÓFICOS - EMOÇÃO E RAZÃO
chinesa com quem vivia, morre afogada e se
C§ transforma num dos temas mais intensos e Os poemas de Camões não dialogam somente com a sensibilidade do leitor, mas
também com a sua inteligência. Não é possível separar emoção e razão nesse lírico.

z
dramáticos da Ifrica de Camões. Um amigo,
que encontrou o poeta em Moçambique, conta Muitos dos poemas são reflexões sobre o amor, questionamentos do amor e da existên­
w que ele vivia "tão pobre que comia de amigos". cia, são tentativas de definição poética- da universalidade da vivência amorosa, assim
� De volta a Portugal, depois de tantos como de suas significações na condição humana. Há um contínuo embate, uma tensão
·o anos, consegue publicar sua epopéia, em entre os chamados do amor fisico, das cores do desejo, das iluminações e desesperos
u 1 572. Recebe uma pequena pensão do rei, das paixões, de um lado, e, de outro, os chamados do amor platônico, de serena iden­
< que não é paga regularmente. Continua tificação do amante com a pessoa amada, do vislumbre das esferas transcendentes, de
a: vivendo na miséria. Seu livro de poemas
:::> retomo, através do amor, à unidade divina do ser no reino das idéias.
I fricos, em que ele tinha trabalhado por duas
t;:a: décadas, desaparece, provavelmente
Esse embate, entre o erótico e o platônico, entre o amor-desejo e o amor-idéia,
entre o sensual e o espiritual, é fonte fecunda de antíteses que atravessam a lírica de
w roubado. Morre a 1 O de junho de 1 580. Uma
1- Camões, juntamente com a tentativa sempre recomeçada de atingir uma síntese reuni­
existência "pelo mundo em pedaços
::::i ficadora dos opostos. Essa poesia não apenas é a expressão mais elevada da tradição
repartida".
- o medieval e da novidade classicista, mas também é uma lírica prenunciadora do

2 Barroco, especialmente do Conceptismo.


Além da filosofia poética (e dialética) do amor, os poemas questionam outros temas univer­
sais da tradição lírica ocidental, como a transitoriedade da vida, a fugacidade do tempo e da bele­
za, a precariedade do destino, a necessidade de fruir o instante que passa.
Particularmente intenso em Camões, de grande força dramática e trágica, é o tema do descon­
certo do mundo: a idéia e o sentimento de desarmonia da vida, da distância entre o que se sonha
e o que se vive, da nunca realização plena dos desejos, da continua intervenção das forças dissi­
padoras e dilaceradoras do acaso, do caos, da morte.
Também o amor: a única força que poderia re-harmonizar o mundo, resgatar a unidade e a força
da existência, reunificar as dilacerações do destino- numa filosofia amorosa que vai do pan-eróti­
co à concepção de energia cósmica que anima a todos os seres e a própria matéria ainda inanimada
-o amor, ele mesmo se revela desconcertado. Esse desencontro amoroso é também matriz do pen­
samento trágico de Camões, outra vez prenunciando e antecipando o espírito barroco.

ANTOLOGIA COMENTADA
Quando de minhas mágoas a comprida Brado: - "Não me fujais, sombra benina!"­
Maginação os olhos me adorntece, Ela, os olhos em mim cum brando pejo,
Em sonhos aquela alma me aparece Como quem diz que já não pode ser,
Que para mim foi sonho nesta vida. Toma a fugir-me. E eu gritando - 'Vina ... "­
Lá numa soidade, onde estendida Antes que diga- "mene!", - acordo, e vejo
A vista pelo campo desfalece, Que nem um breve engano posso ter.
Corro para ela; e ela então parece
Que mais de mim se alonga, compelida.

Soneto para Dinamene, composto em medida nova.


Observe a intensidade emotiva dos dois tercetos deste soneto, que mostra a dor da separação
entre o poeta e sua amada, tematizando a rapidez do sonho como único momento em que pôde tê­
la de volta. Antes que o nome da amada seja completamente pronunciado, o sonho se esvai e fica
a consciência da perda, dramaticamente apresentada, em especial nos dois tercetos.

Endechas a Bárbara escrava

Aquela cativa Pretos os cabelos,


Que me tem cativo, Onde o povo vão
Porque nela vivo Perde opinião
já não quer que viva. Que os louros são belos.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos, Pretidão de Amor,
Que para meus olhos Tão doce a figura,
Fosse maisferntosa. Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Nem no campo flores, Leda mansidão,
Nem no céu estrelas Que o siso acompanha;
Me parecem belas Bem parece estranha,
Como os meus amores. Mas bárbara não.
Rosto singular,
Olhos sossegados, Presença serena
Pretos e cansados, Que a torntenta amansa,
Mas não de matar. Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Uma graça viva, Esta é a cativa
Que neles lhe mora, Que me tem cativo;
Para ser senhora e, pois nela vivo,
De quem é cativa. É força que viva.

Endecha é canto fúnebre. Neste poema, o eu lírico, apaixonado, se sente cativo (escravo) de
uma escrava: Bárbara. Os olhos como símbolo do amor, a comparação da beleza da amada com a
rosa, as flores e as estrelas sendo invocadas para expressar a dimensão do sentimento amoroso
lembram as cantigas de amor medievais.
No entanto, não se trata da imagem de uma mulher-fatal, o que mata no poema é a transfor­
mação da escrava em senhora e do sujeito enamorado em cativo, em escravo de uma presença
serena que a tormenta amansa, mas que constitui o elemento central de sua poesia - seu sofri­
mento/ seu fazer poético. Observe como Camões subverte o modelo convencional de beleza femi­
nina (loira, face cor da neve, olhos azuis etc), o jogo com o sentido do nome da amada - Bárbara
- e o duplo sentido da palavra pena: pode ser sofrimento ou a pena de escrever, a caneta.
3
O poema é composto de estrofes de oito versos em "medida velha" - redondilha menor - ver­
sos de cinco sílabas métricas.

Mote alheio

Perdigão perdeu a pena,


Não há mal que lhe não venha.

Voltas

Perdigão que o pensamento Quis voar a uma alta torre,


Subiu a um alto lugar, Mas achou-se desasado;
Perde a pena do voar, E, vendo-se depenado,
Ganha a pena do tormento. De puro penado morre.
Não tem nu ar nem no vento Se a queixumes se socorre
Asas com que se sustenha: Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha. Não há mal que lhe não venha.

O poema é composto em medida velha. Duas estrofes de sete versos em redondilhas maiores
- sete sílabas métricas. Observe como a ave toma-se símbolo do poeta: este poema pode ser lido
como um auto-retrato do próprio Camões, representado metaforicamente pelo perdigão: ave que
sobe às alturas pelo pensamento, mas que perde "as asas" lá no alto, isto é, vê substituída a pena
do vôo pela pena do tormento, da fragilidade humana que a dor de viver vai denunciando.

Amor é fogo que arde sem se ver; É querer estar preso por vontade;
Éferida que dói e não se sente; É servir a quem vence, o vencedor;
É um contentamento descontente; É ter com quem nos mata lealdade.
É' dor que desatina sem doer; Mas como causar pode seu favor
F um não querer mais que bem querer; Nos corações humanos amizade,
F solitário andar por entre a gente; Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
É' nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
Este soneto filosófico é composto em medida nova (de dez sílabas métricas). Observe a enu­
meração de definições do amor (dois quartetos e o primeiro terceto) e que todas as definições são
antitéticas, num jogo de contradições. Essas definições parecem acentuar a dualidade entre o
amor-corpo, o amor-carne - Fogo que arde, ferida que dói - e amor-espírito, o amor-idéia­
Sem se ver, não se sente. Além disso, o poema termina com uma pergunta que sintetiza as contra­
dições apresentadas: sendo o amor tão contrário a si, tão complicado, como pode ao mesmo tempo
ser tão imprescindível aos corações humanos?

Busque Amor novas artes, novo engenho, Mas, conquanto não pode haver desgosto
Para matar-me, e novas esquivanças; Onde esperança falta, lá me esconde
Que não pode tirar-me as e�peranças, Amor um mal, que mata e não se vê;
Que mal me tirará o que eu não tenho. Que dias há que na alma me tem posto
Olhai de que esperanças me mantenho! Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vede que perigosas seguranças! Vem não sei como, e dói não sei por quê.
Que não temo contrastes nem mudanças,
<(
o Andando em bravo mar, perdido o lenho.

;:;z Soneto filosófico composto em medida nova.


Observe as antíteses desta genial definição do amor, feita de indefinições. O eu-lírico chega a
w
esta paradoxal definição do amor através de um raciocínio dialético: de um lado, "desafia" o amor

o a novamente fazê-lo sofrer, o que demonstra a sua experiência, a sua vivência. De outro, entretan­
u to, esta vivência, esta experiência são perigosas seguranças, o amor as ameaça como um mistério
<( transcendente aos seres humanos - um mal que mata e não se vê.
0::
::J

0::
w Tanto de meu estado me acho incerto, É tudo quanto sinto um desconcerto;
1- Que em vivo ardor tremendo estou de frio; Da alma umfogo me sai, da vista um rio;
::::i Sem causa, juntamente choro e rio;
·

Agora espero, agora desconfio,


-
O mundo todo abarco e nada aperto. Agora desvario, ap,ora acerto.
4
Estando em terra, chego ao céu voando; Se me pergunta alguém por que assim ando,
Numa hora acho mil anos, e é de jeito Respondo que não sei; porém suspeito
Que em mil anos não posso achar uma hora. Que só porque vos vi, minha Senhora.

Soneto de confissão amorosa composto em medida nova.


Observe no poema o intenso jogo de antíteses, que anuncia o estilo Barroco, e também a suti­
leza da celebração amorosa da mulher amada, a senhora.
Aqui, a forma renascentista (soneto, versos decassílabos) brilhantemente se conjuga com o
conteúdo das cantigas de amor medievais: o culto à mulher amada, à senhora cujos olhos provo­
cam o desconcerto do sentir, sendo barrocas as imagens que o descrevem.

Alma minha gentil, que te partiste E se vires que pode merecer-te


Tão cedo desta vida, descontente, Alguma causa a dor que me ficou
Repousa lá no Céu eternamente Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
E viva eu cá na terra sempre triste. Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Se lá no assento etéreo, onde subiste, Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Memória desta vida se consente, Quão cedo de meus olhos te levou.
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

Soneto platônico, provavelmente escrito para Dinamene, composto em medida nova.


Observe a visão platônica do amor. De acordo com esta visão, a morte da amada não impede,
mas adia a consumação do amor; sentimento que na verdade não pertence ao mundo das aparên­
cias sensíveis, da matéria, mas à eternidade. Por isso, o desej o de morte, o pedido de que a amada
interceda aos céus pela brevidade da experiência terrena do amante.

Erros meus, má fortuna, amor ardente Errei todo o discurso de meus anm�·
Em minha perdição se conjuraram; Dei causa [a} que a Fortuna castigasse
Os erros e a fortuna sobejaram, As minhas mal fundadas esperanças.
Que para mim bastava amor somente.
De amor não vi senão breves enganos.
Tudo passei; mas tenho tão presente Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
A grande dor das causas que passaram, Este meu duro Gênio de vinganças!
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Soneto "autobiográfico", de "confissão", composto em medida nova.


Observe a grande intensidade dramática do soneto, relacionando-a com o uso da I a pessoa do
singular, a explicitação da presença emotiva de um "eu". Observe também as interjeições, nos dois
últimos versos. Estas interjeições realçam, enfatizam o sentimento da dor e da revolta cujas causas
vão aparecendo ao longo do poema: os erros, os azares, os desenganos amorosos. A dor de lembrar,
a recusa de ter esperança, a revolta contra a Fortuna (sorte), dão intensidade dramática ao poema, o
que se acentua com o uso da 1 a pessoa do singular.

Ah! Senhora! Senhora! E que tão rica Que .fazíeis, que estáveis praticando,
Estais, que, cá tão longe, de alegria Onde, como, com quem, que dia e que hora?
Me sustentais com doce fingimento! Ali a vida cansada se melhora,
Em vos afigurando o pensamento, Toma espíritos novos, com que vença
Foge todo o trabalho e toda a pena. A Fortuna e Trabalho,
Só com vossas lembranças, Só por tomar a ver-vos,
Me acho seguro e .forte Só por ir a servir-vos e querer-vos.
Contra o rosto feroz da fera Morte, Diz-me o Tempo que a tudo dará talho;
E logo se me ajuntam as esperanças Mas o Desejo ardente, que detença
Com que a fronte, tomada mais serena, Nunca sqfreu, sem tento
Toma os tormentos graves Me abre as chagas de novo ao sofrimento.
Em saudades brandas e suaves.
Aqui com elas fico perguntando
Assim, vivo: e se alguém te perguntasse, (j)
Canção, como não mouro, LU
Aos ventos amorosos, que respiram
Podes-lhe responder que porque mouro. •O
Da parte donde estais, por vós, Senhora; �
Às aves que ali voam, se vos viram, <(
u
Observe, neste fragmento de uma canção, a exaltação platônica da amada e a serenidade do -
amante - apesar de todo o sofrimento.
5
Observe também a contradição: o desejo irrompe e reinicia-se o tormento e a antítese do final,
explicitando o caráter paradoxal- de morte e(m) vida- do sentimento amoroso.

Foge-me, pouco a pouco, a curta vida, Mas bem sei que primeiro o extremo passo
Se por acaso é verdade que inda vivo; Me há de vir a cerrar os tristes olhos,
Vai-se-me o breve tempo de ante os olhos; Que Amor me mostre aqueles por que vivo.
Testemunhas serão a tinta e pena,
Choro pelo passado; e, enquanto falo,
Que escreverão de tão molesta vida
Se me passam os dias passo a passo.
O menos que passei, e o mais que falo.
Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena.
Oh! que não sei que escrevo, nem que falo!
Que, se de um pensamento noutro passo,
Que maneira tão áspera de pena!
Vejo tão triste gênero de vida
Pois nunca uma hora viu tão longa vida
Que, se lhe não valerem tanto os olhos,
Em que possa do mal mover-se um passo. Não posso imaginar qual seja a pena
Que mais me monta ser morto que vivo? Que traslade esta pena com que vivo.
Para que choro? Enfim, para que falo,
Na alma tenho contínuo um fogo vivo,
Se lograr-me não pude de meus olhos?
Que, se não respirasse no que falo,
Estaria já feita cinza a pena;
Ó fermosos, gentis e claros olhos, Mas, sobre a maior dor que sofro e passo
Cuja ausência me move a tanta pena Me temperam as lágrimas dos olhos;
Quanta se não compreende enquanto falo! Com que, fugindo, não se acaba a vida.
Se, no fim de tão longa e curta vida,
Morrendo estou na vida, e em morte vivo;
De vós me inda inflamasse o raio vivo, Vejo sem olhos, e sem língua falo;
Por bem teria tudo quanto passo. e juntamente passo glória e pena .

Medida nova: versos decassílabos.


Observe a dramaticidade das antíteses do poema; o duplo sentido da palavra pena, como sofrimen­
to e como caneta, e as mudanças de sentido da palavra passo, neste texto com muitas passagens que
comentam a condição e o ato de escrever: metapoesia, metalinguagem, ligada aos temas do envelhe­
cimento, da ausência da amada, do sofrimento e da morte; transformados em exercício poético.

11 (FUVEST) Na lírica de Camões, Camões é um poeta-filósofo. Seus poemas não dia­


logam somente com a sensibilidade do leitor, mas
a) o metro usado para a composição dos sonetos é
também com sua inteligência. Em quais elementos
a redondilha maior;
do fragmento a seguir podemos reconhecer as carac­
b) encontram-se sonetos, odes, sátiras e autos;
terísticas da lírica camoniana mencionadas acima?
c) cantar a Pátria é o centro das preocupações;
Amor é fogo que arde sem se ver;
d) encontra-se uma fonte de inspiração de muitos
É ferida que dói e não se sente;
poetas brasileiros do século XX;
É um contentamento descontente;
e) a Mulher é vista em seus aspectos físicos, despo­
É dor que desatina sem doer (. . . ).
<( jada de espiritualidade.
Cl

z
Que face da lírica camoniana está representada no
fragmento abaixo, e o que este fragmento possui de
I
Compare os dois poemas. descobrindo uma
lhança e uma diferença entre eles:
seme­

w inovador perante a tradição em que se insere?


:2: Mote
Quadrilha
o Descalça vai pela neve
João amava Teresa que amava Raimundo
u que amava Maria que amava Joaquim que
Assim faz quem Amor serve
<( amava Li/i
o: Voltas que não amava ninguém.
::l João foi para os Estados Unidos, Teresa para o
t;(o:
Os privilégios que os Reis
Não podem dar, pode Amor, convento,
Que faz qualquer amador Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
w Joaquim suicidou-se e Li/i casou com J. Pinto
1- Livre das humanas leis.
:::J Mortes e guerras cruéis, Fernandes

� Ferro, frio, fogo e neve que não tinha entrado na história.


Tudo sofre quem o serve. (C. Drummond- Alguma poesia)
6
Reinando Amor em dois peitos,
Tece tantas falsidades,
Que de conformes vontades
fi (FUVEST) Os paradoxos do sentimento amoroso
constituem um dos temas favoritos de sua poesia
lírica, exercitada sobretudo nos sonetos.
Faz desconformes efeitos.
Igualmente vive em nós;
a) De que poeta se trata?
Mas, por desconcerto seu, b) I ndique um texto do poeta em que este sentimen­
Vos leva, se venho eu, to contraditório se manifesta:
me leva, se vinde vós.
(Camões - L frica)
(UN ICAMP)
(FUVEST - SP) Amor é fogo que arde sem se ver;
Alma minha gentil, que te partiste É ferida que dói e não se sente;
Tão cedo desta vida, descontente, É um contentamento descontente;
Repousa lá no céu eternamente, É dor que desatina sem doer.
E viva eu cá na terra sempre triste. (Camões - L frica)
Existe uma forte oposição no interior da estrofe.
Identifique-a e dê uma pequena explicação para ela. Terror de te amar num sftio tão frágil como o mundo.
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
B (UM - SP) Sobre a lírica camoniana, é incorreto afirmar: Onde tudo nos quebra e emudece
• a) boa parte de sua realização se encontra na poesia Onde tudo nos mente e nos separa.
de inspiração clássica;
(Sophia de Mello Breyner Andresen -
b) sua temática é variada, encontrando-se desde
Terror de te amar, in Antologia Poética)
temas abstratos até tradicionais;
c) no aspecto formal, é toda construída em versos Dos dois textos transcritos, o primeiro é de Luis Vaz
decassílabos em oitava rima; de Camões (século XVI) e o segundo, de Sophia de
d) sonda o sombrio mundo do " eu " , da mulher, da Mello Breyner Andresen (século XX). Compare-os,
pátria e de Deus; discutindo, através de critérios formais e temáticos,
e) muitas vezes, o poeta procura conceituar o amor, aspectos em que ambos se aproximam e aspectos
lançando mão de antíteses e paradoxos . em que ambos se distanciam um do outro.

11 d) Comentário - Vinicius de Morais é um dos prin­


cipais poetas do século XX cuja l írica se constrói
poema de Camões, trata-se do desconcerto do amor
que, embora correspondido, não consegue se reali­
retomando alguns dos temas e também algumas zar; no poema de Drummond, não há correspondên­
das abordagens camonianas sobre o amor, como se cia entre o amador e a pessoa amada.
percebe por exemplo em seu Soneto da separação Há diferenças significativas quanto à estrutura e à lin­
(tema da despedida) e em seu Soneto da fidelidade guagem: o de Camões tem métrica regular e esque­
(tema da duração do sentimento amoroso em rela­ ma de rimas; sua linguagem é relativamente culta; o
ção à duração da vida humana). de Drummond é construído com versos livres, sem
métrica e sem rima, e sua linguagem é coloquial.

El
Este fragmento de Camões pertence à fase medieval
de sua lírica, o que se percebe pelos versos redondi­ A oposição existente no interior da estrofe ocorre
lhos (redondilha maior: versos de sete sílabas métri­ devido à morte da amada, cuja "alma gentil repousa
cas) e pela presença de um mote sobre o qual o lá no céu eternamente " , enquanto ao eu-lírico, ao
poeta escreve através de voltas, isto é, de retornos amante, resta viver "cá na terra, sempre triste".
ao mote. Ambas as características medievais do frag­
mento, no entanto, são acrescentadas de uma refle­
xão generalizadora sobre o Amor, o que é típico de
riJ c

Camões e inovador em relação à tradição medieval


11
a) Trata-se de Luís Vaz de Camões, poeta português
por constituir um procedimento renascentista. que viveu no século XVI e que é considerado um
dos maiores artistas de Portugal e de todo o pla­
O caráter filosófico, de reflexão sobre o Amor, está neta.
presente na sucessão de definições através das b) Um dos textos do poeta em que este sentimento
quais o poeta racionaliza genericamente o sentimen­ contraditório se manifesta é um soneto, que
to. Entretanto, a beleza das metáforas de que se uti­ começa com o verso "Amor é fogo que arde sem
liza, o seu caráter imagético denunciando a contradi­ se ver", enumerando várias definições antitéticas
ção entre o lado físico ( fogo que arde, ferida que dói) sobre o amor.
e o lado espiritual, platOnico (sem se ver, não se
sente) do amor, revelam um apelo não só à inteligên­
Ambos os poemas falam das contradições do senti­
cia, mas também à sensibilidade, à imaginação do mento amoroso: o primeiro, com paradoxos, procu­
cn
ra defin i r essas contradições como intrínsecas ao
leitor. Não se trata, então, de filosofia pura e sim­ w
ples, mas de poesia filosófica. amor; o segundo opõe ao amor, sentimento absolu­ •O
to e perfeito, o mundo frágil e imperfeito. Outras �
<3
Há uma semelhança fundamental: os dois poemas diferenças podem ser ressaltadas: os versos
são líricos, os dois tratam do amor. Além disso, há decassílabos heróicos do primeiro, os versos livres
outra semelhança: ambos falam do desencontro do segundo; as rimas ABBA do primeiro, os versos -
amoroso. No entanto, há uma grande diferença: no brancos do segundo.
1
O BARROCO: AMBIGÜIDADES E CONTRADIÇÕES
O significado artístico do estilo Barroco está ligado a duas das maiores tradições literárias do
mundo ocidental: a tradição clássica (humanista, racionalista, universalista) e a tradição medieval
(teocêntrica, sentimental, individualista).
Ao longo do século XVII ocorre um conflito entre ambas as tradições, o qual pode ser expli­
cado através de uma perspectiva histórica. A partir da terceira década do século XVI, a Reforma
liderada por Lutero desfez a unidade religiosa européia e abalou o poder da Igreja Católica. A rea­
ção da Contra-Reforma, por meio do Concílio de Trento (1545 a 1 563), acentuou um embate ideo­
lógico que se estendeu por todo o século XVII, avançando, em alguns países, pelo século XVIII.
Assim, ao mesmo tempo em que assistimos à vitória do capitalismo mercantil em países como
Holanda, Inglaterra e França, em outros, como Espanha e Portugal, vemos a ação da Igreja
Católica buscando um retomo à religiosidade medieval.
As contradições entre ideais antropocêntricos e teocêntricos podem explicar o surgimento do
estilo Barroco na Espanha, na I tália e em Portugal. O Barroco seria, portanto, a expressão, nas
artes, da profunda crise ideológica e da multiplicidade de estados de espírito do homem seiscen­
tista, dividido entre a razão e a fé, entre a mentalidade em expansão (tradição clássica) e os valo­
res medievais defendidos pelo clero e pela nobreza.
À primeira das tradições mencionadas, insere-se o viver voltado para a terra, o corpo, os pra­
zeres e as paixões deste mundo, tanto quanto o viver inspirado nas verdades científicas. Já a segun­
da caracteriza-se pelo viver voltado para o céu e para a consciência da precariedade de tudo o que
existe, almejando a salvação da alma, a necessidade de Deus e da eternidade.
Em consonância com este quadro, o estilo Barroco criou novas linguagens, novos significa­
dos, sendo que a irregularidade, em contraposição à simetria e à regularidade do Classicismo,
constitui a sua marca, expressando o pessimismo, o conflito, o desequilíbrio entre razão e emoção.
metáfora, que revela a tendência bar­
Literariamente, seus grandes recursos estilísticos são a
antítese e o paradoxo, que exprimem a coexistência angus­
roca à alusão e à descrição indireta; a
tiada de idéias e sentimentos opostos e contraditórios; a hipérbole, expressão da perplexidade
diante do mundo e da vida; e o hipérbato, que reflete a inversão da frase e as contorsões da alma.
Ocultismo e o conceptismo constituem as duas tendências básicas do Barroco. Embora sejam
estilos diferentes, podem coexistir num mesmo autor ou até numa mesma obra. Há casos em que
a distinção entre eles é muito difícil, se não impossível.
O cultismo ou gongorismo (termo inspirado no poeta barroco espanhol Luís de Góngora)
consiste numa hipertrofia da dimensão sensorial (sonoridade e imagens) da obra literária, recor­
rendo exageradamente a metáforas, sinestesias, aliterações, hipérbatos, antíteses, trocadilhos, neo­
logismos estranhos etc, e assim oferecendo-se como um espetáculo para os sentidos.
Já o conceptismo ou quevedismo (termo inspirado no poeta barroco espanhol Antônio de
Quevedo) consiste na hipertrofia da dimensão conceitual da obra literária. Utilizando-se mais da

<( razão que dos sentidos, o autor conceptista cria raciocínios engenhosos, num refinado jogo inte­
o lectual de paradoxos e sutilezas lógicas.

z
w A BAHIA DE GREGÓRIO DE MATOS

o Desde os meados do século XVI o Recôncavo baiano era um dos pólos produtores de cana e
u se tomara o principal centro da ação colonizadora portuguesa. O porto de Salvador movimenta­
<( va toda a exportação do açúcar, rivalizando com Recife, que se desenvolvera sob o domínio
c:
::J holandês.

�c: Fundada em 1 549 para sediar o Governo Geral, Salvador já tinha quase vinte mil habitantes
na época de Gregório de Matos. A cidade fervilhava, sobretudo a partir de 166 1 , quando, por um
w tratado com a Inglaterra, os navios estrangeiros tiveram permissão de entrada nos portos brasilei­
1-
:::i ros. Cenário de uma pequena Babel - ariqueza dos senhores de engenho, a diversidade de raças,
- o movimento do porto, parada importante da "carreira das Índias" -, Salvador tomou-se o prin­
cipal personagem da sátira gregoriana.
8
O "BOCA DO INFERNO"
"!. . .] violento na sátira, quase piedoso na poesia sacra, num dualismo que é o moti­
vo central do barroquismo, é Gregório, sempre, um rebelado, um renovador, um
agitado, brilhante e profu ndo. Na própria improvisação está a relação do seu
gênio " (Antônio Loureiro de Souza).

"Deixaria Gregório de Matos após si um fio de prata, ou deixaria simplesmente


baba? Foi ele, no bom sentido, um derrubador de ídolos, um torcionário da críti­
ca, ou apenas um azedo detrator dos méritos que o humilhavam, um bilioso, um
dispéptico, um pasquineiro vulgar? [. . .} Tudo manda ver nele um precursor de
quantos vivem a escrever, com brocha gorda molhada em ralo de esgoto, todos os
. 'forrobodós ' que convertem os nossos teatros em mafuás obscenos [. . .] Erucção pela
certa o lirismo de um tal bardo gargantuesco " (Agripino Grieco).

Gregório de Matos é considerado o fundador da literatura brasileira e o maior


poeta de nosso período colonial. Mas esse julgamento não é unânime. Passados já três
_f
biogra ia de Gregório d� Matos é bas·
séculos de sua morte, o poeta baiano continua sendo também o maior problema de A tante 1mprec1sa. po1s sao escassos os
nossa história literária e o centro de uma polêmica que se arrasta e ganha sempre novos
documentos e os depoimentos de contempo­
contornos.
râneos sobre ele.
No ponto em que estão os estudos sobre a obra de Gregório de Matos, nenhum jul­ De certo, sabemos que Gregório de Matos e
gamento sobre ela pode ser considerado definitivo. Entretanto, o tom exaltado dos crí­ Guerra nasceu em Salvador no d ia 23 de
ticos e a renovação constante da polêmica são os principais indícios de que estamos dezembro de 1 636. Seu pai, também
diante de uma poesia fascinante. Gregório, e sua mãe, Maria, pertenciam à
classe dominante - eram proprietários de
terras, de engenho de açúcar e de escravos.
;
Como filho de senhor de engenho. Gregório
GREGORIO DE MATOS estudou no colégio dos Jesuítas. em
Salvador, até por volta de 1 650. Por essa
época mudou-se para Portugal, onde cursou a
Universidade de Coimbra. formando-se em
Eu sou aquele, que os passados anos

Direito Canônico (1 652·1 661 ). Depois de for­


cantei na minha lira maldizente
torpezas do Brasil, vícios e enganos
mado, casou-se. exerceu advocacia. foi
A TRADIÇÃO GREGORIO DE MATOS nomeado juiz e participou das "Cortes" de
1 668 e 1 674 como Procurador da Cidade de
Gregório de Matos nunca publicou seus poemas. Seus versos corriam Salvador, em Salvador. Em 1 682, aos 46 anos de idade, o
cópias manuscritas que se multiplicavam ao passarem de mão em mão. Durante o sécu­ Dr. Gregório, já viúvo, interrompeu essa car­
lo seguinte (XVIII) alguns colecionadores copiaram em cadernos tudo o que se atribuía reira de sucesso na Corte e voltou para a
a ele. Evidentemente, essas cópias eram imperfeitas, sofriam alterações e, muitas vezes, Bahia.
censura. E nem sempre os poemas pertenciam realmente a Gregório. Em Salvador Gregório de Matos percorreu
Se, por um lado, essas cópias manuscritas deformaram a poesia gregoriana original, uma dupla trajetória da fama e da decadên­
por outro, garantiram a sua sobrevivência. Não fossem elas, nosso maior poeta colonial cia profissional e social (os moralistas acres­
seria, hoje, apenas um vago nome na história. centariam "moral"). Perdeu o cargo que exer­
A recuperação da obra, ainda hoje incompleta, processou-se muito lentamente, a cia na Relação Eclesiástica; casou-se, em
partir dos meados do século XIX. Apenas em nosso século, entre 1 923 e 1 933, a segundas núpcias. com O. Maria dos Povos.
Academia Brasileira de Letras publicou o conjunto da poesia gregoriana em 6 volumes. que lhe deu um filho (Gonçalo). e exerceu a
Essa edição, entretanto, está eivada de erros, por carecer de métodos científicos. Uma advocacia. Ao mesmo tempo ficava conheci­
segunda tentativa foi feita em 1 969 por James Amado, em 7 volumes. Essa edição, que do em todo o Recôncavo como poeta satírico.
também não pode ser considerada definitiva e da qual nos servimos neste trabalho, é a o que lhe valeria o apelido de "Boca do
Inferno", e como boêmio, freqüentador das
mais utilizada atualmente.
prostitutas de Salvador. Atestam sua popula­
A obra atribuída a Gregório de Matos pelas cópias manuscritas não é a poesia ori­
ridade as inúmeras anedotas que corriam
ginal do autor. Provavelmente muita coisa se perdeu; muitos poemas foram erronea­
sobre ele, recolhidas pelo primeiro biógrafo
mente atribuídos a ele. Por outro lado, mesmo o que legitimamente lhe pertence, sofreu (Pereira Rabelo). no início do século XVIII. (/)
modificações de toda ordem: supressões, substituições, correções de palavras, de ver­ No final da vida, Gregório de Matos era um o
sos, de estrofes inteiras.
Portanto, o que chamamos hoje de "Obra de Gregório de Matos" é, na verdade, toda
poeta ambulante, percorrendo os engenhos
do Recôncavo com sua viola de cabaça. As


uma tradição, cuja origem é a poesia de Gregório, mas que inclui os resultados da ação inimizades que ganhou com suas sátiras w
do tempo: a corrosão, as modificações e os acréscimos. Isso em nada diminui o valor foram a causa de um pequeno exílio em o
dessa poesia. Antes, atesta o seu impressionante vigor, que a manteve viva apesar de Angola (1 694). Foi perdoado. mas não pôde o
todas as adversidades. retornar a Salvador, passando o último ano 0:::
de sua vida ( 1 695) em Pernambuco, doente, '0
UM POETA DE VÁRIAS FACES sem recursos e proibido de fazer suas sátiras. (!)
w
Segundo a tradição, seu escritório de advoga­ 0:::
As múltiplas vertentes da poesia atribuída a Gregório de Matos têm provocado a do em Recife era decorado de cachos de (!)
perplexidade dos estudiosos e alimentado uma longa polêmica. Entretanto, é nessa bananas. Morreu em 1 696. -
o
mesma multiplicidade que reside sua riqueza. As contradições entre os vários Gregórios
9
de Matos é que desenham o seu perfil barroco: estilo alto/estilo baixo; o sublime/o grotesco; pie­
dade, ascese, arrependimento/hedonismo (culto do prazer); reflexão, moralismo/poesia jocosa,
sátira maldizente; idealização do amor e da mulher/amor carnal, pornografia...

1. Diversidade de estilos:
• o estilo alto elabora os mais engenhosos jogos de pensamento (conceptismo, sob a influên­
cia de Camões e do espanhol Francisco de Quevedo) e os mais requintados jogos de lingua­
gem, manipulando a sonoridade e as imagens em verdadeira pirotecnia verbal (cultismo,
influenciado sobretudo por Góngora);
• o estilo baixo parodia a linguagem barroca do estilo alto, tirando efeitos saborosos do falar
brasileiro/baiano da época, incorporando o vocabulário indígena e africano e descendo à lin­
guagem do mais baixo calão.

2. A diversidade temática da poesia gregoriana descreve um arco que vai da poesia sacra à poe­
sia fescenina (pornográfica), passando pela lírica amorosa, pela poesia encomiástica, pela sáti­
ra moralizante, pela sátira difamatória e pela poesia circunstancial-burlesca. Na simples
nomeação desses veios temáticos já se revela o contraditório espírito barroco contra-reformista:
o contraste, a fusão dos opostos, o céu e a terra, o espiritual e o carnal, o sublime e o grotesco.

ANTOLOGIA COMENTADA

AOS CAPITIJLARES DO SEU TEMPO


(Fragmento da GENEALOGIA QUE O POETA FAZ DO GOVERNADOR ANTÔNIO LUÍS)

A nossa Sé da Bahia, Se fosse El-Rei informado,


com ser um mapa de festas, de quem o Tucano era,
é um presépio de bestas, nunca à Bahia viera
se não for estrebaria: governar um povo honrado:
várias bestas cada dia mas foi E!-Rei enganado,
vemos, que o st'no congrega, e eu com o povo o paguei,
Caveira mula galega, que é já costume, e já lei
o Deão burrinha parda, dos reinos sem intervalo,
Pereira besta de albarda, que pague o triste vassalo
tudo para a Sé se agrega. os desacertos de um Rei.

Estas duas décimas são um bom exemplo da sátira desabusada do Boca do Inferno. A primei­
ra satiriza o clero da Sé da Bahia, dando os nomes dos padres que formavam o "presépio de bes­
tas". Na segunda, o poeta, destemidamente, denuncia a incompetência do governador Antônio
Luís da Câmara Coutinho, apelidado Tucano por causa do grande nariz (Nariz de embono I com
tal sacada, I que entra na escada I duas horas primeiro I que seu dono, diz outro poema sobre o
governador). As sátiras a Câmara Coutinho podem ser comparadas às cantigas de maldizer medie­
vais, pelas maldosas acusações de sodomia (homossexualismo) que Gregório faz ao governador e
a Luís Ferreira de Noronha, capitão da guarda. Supõe-se que essas injúrias foram a causa do exí­
lio do poeta em Angola.

Este soneto teve as duas primeiras estrofes musicadas por


Caetano Veloso, em 1 972 (LP Transa, Philips-Phonogram). É um
Triste Bahia! Oh quão dessemelhante bom exemplo da personificação da Cidade da Bahia (Salvador), obje­
Estás, e estou do nosso antigo estado! to constante da crítica gregoriana.
<( Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Depois das invasões holandesas, sobretudo a de Pernambuco, a cul­
o Rica te vi eu já, tu a mi abundante. tura da cana e o fabrico do açúcar espalharam-se pelo Caribe e o Brasil

z A ti trocou-te a máquina mercante,
perdera o monopólio do "ouro branco". Embora continuasse sendo o
principal porto brasileiro, Salvador refletia intensamente as crises eco­
LU Que em tua larga barra tem entrado, nômicas e políticas da colônia. O soneto compara essa mudança de
� A mim foi-me trocando, e tem trocado "estado" (empobrecimento) da cidade com a crise vivida pelo próprio
o
u Tanto negócio, e tanto negociante. poeta (cf. os dois quartetos). Ele culpa a máquina mercante (i. é, os
navios que aportavam para comerciar), os negócios e os negociantes.
<(
a: Deste em dar tanto açúcar excelente Apesar das crises, a população rica da cidade mantinha um padrão
::::> Pelas drogas inúteis, que a belhuda luxuoso de vida. O autor critica na terceira estrofe a troca da riqueza
�a: Simples aceitas do sagaz Brichote. da colônia (o açúcar) por "drogas inúteis" (o termo brichote, segundo
Antônio Soares Amora, é corruptela de british, e serve para designar
LU Oh se quisera Deus, que de repente
1- o estrangeiro. Corresponderia, hoje, a gringo). Veja a atualidade da
::::i Um dia a ma nheceras tão sisuda crítica. Hoje, o Brasil, apesar dos desequilíbrios da balança comercial,
-
Que fora de algodão o teu capote! importa todo tipo de "drogas inúteis" que sustentam o consumismo
das classes média e alta.
10
A última estrofe expressa o desejo de que a cidade tomasse juízo (fosse tão sisuda) e aban­
donasse o falso luxo em que vivia (passasse a usar capote de algodão).

Este soneto obtém o efeito d e humor pelo contraste entre as Rubi, concha de pertas peregrina,
Animado cristal, viva escarlata,
três primeiras e a última estrofe. No primeiro quarteto, a beleza de
Duas safiras sobre lisa prata,
Caterina é idealizada através do metaforismo mineral, preciosismo
Ouro encrespado sobre prata fina.
comum da poesia cultista: os lábios e dentes (rubi, escarlata, con­
cha de per/as), (animado cristal, duas safiras), o
os olhos azuis Este o rostinho é de Caterina;
contraste entre o cabelo loiro e a brancura da pele (ouro encrespa­ E porque docemente obriga, e mata,
do sobre prata fina). No segundo quarteto, contrastes típicos da Não livra o ser divina em ser ingrata,
poesia barroca: docemente obriga I mata, fulmina; divina I ingra­ E raio a raio os coraçõesfulmína .
ta. No primeiro terceto, o transporte amoroso de um admirador,
Viu Fábio uma tarde transportado
Fábio, e o endeusamento de Caterina (a quem já tanto amor levan­
Bebendo admirações, e galhardias,
tou aras - aras altares). O leitor é surpreendido pela inversão
=
A quem já tanto amor levantou aras:
violenta, ocorrida apenas no último verso. A descrição sublime da
mulher amada cede lugar ao realismo grotesco e o soneto se fecha Disse igualmente amante, e magoado:
com uma vulgaridade escatológica. Ah muchacha gentil, que tal serias,
Se sendo tão formosa não cagaras!

Neste soneto, Gregório satiriza os caramurus (os brancos Há causa como ver um Paiaiá
importantes), invertendo a genealogia e indicando a mestiçagem Mui prezado de ser Caramuru,
dos pretensos nobres da Bahia. Sabemos que uma das práticas da Descendente de sangue de Tatu,
colonização portuguesa foi a de firmar alianças com os índios atra­ Cujo torpe idioma é cobé pá.
vés do casamento com as mulheres das tribos. Observe a interes­
A linha feminina é carimá
sante sonoridade do poema, conseguida através da utilização de
Moqueca, pitinga, caruru,
palavras indígenas e das aliterações, em imitação satírica do idio­
Mingau de puba, e vinho de caju
ma tupi (que ele chama de cobé pá). Pisado num pilão de Piraguá.

A masculinha é uma aricobé


Cuja filha Cobé um branco Paí
Dormiu num promontório de Passé.

O branco era um marau, que veio aqui,


NOTAS: Paiaiá: pajé; cobé: descendente de índio, tupi; carimá: bolo feito de fari­ ela era uma Índia de Maré
nha de mandioca; pitinga: variedade de peixe; puba: mandioca fermentada; Cobé pá, Aricobé, Cobé Paí.
Aricobé: nome de uma tribo; marau: malandro, patife.

A N. SENHOR JESUS CRISTO COM ATOS CELEBRA A GRANDE ALGAZARRA QUE FIZERAM
DE ARREPENDIDO E SUSPIROS DE AMOR NA FESTA OS ESTRANGEIROS
BRINDANDO A QUITOTA, MENINA BATIZADA,
Ofendi-vos, meu Deus, é bem verdade, SENDO NO TEMPO DA PESTE.
É verdade, Senhor, que hei delinqüido,
Se a morte anda de ronda, a vida trota,
Delinqüido vos tenho, e ofendido,
Aproveite-se o tempo, eferva o Baco,
Ofendido vos tem minha maldade.
Haja galhofa, e tome-se tabaco,
Maldade, que encaminha a vaidade, Venha rodando a pipa, e ande a bota.
Vaidade, que todo me há vencido, Brinde-se a cada triques à Quitota,
Vencido quero ver-me e arrependido, Té que a puro brindar se ateste o saco,
Arrependido a tanta enormidade. Cf)
E faça-lhe a razão pelo seu caco
o

Arrependido estou de coração, Dom Fragaton do Rhin compatriota.
De coração vos busco, dai-me os braços,
Abraços, que me rendem vossa luz.
Ande o licor por mão, funda-se a serra, �
Esgote-se o tonel, molhem-se os rengos. w
Luz, que claro me mostra a salvação, Toca tará-tará, que o vento berra. Cl
A salvação pretendo em tais abraços, Isto diz, que passou entre Flamengos, o
Misericórdia, amor, Jesus, Jesus! Quando veio tanta água sobre a teria, a:
Como vinho inundou sobre os podengos.
·O
(,!)
w
a:
(,!)
NOTAS: Baco: deus do vinho; a cada triques: a cada momento; ateste: encha; caco: cabeça; Fragaton do Rhin: -
Fragatão do Reno: flamengo, holandês; rengo: pano para bordar, toalha; podengo: cão de caça.
11
O primeiro soneto, pertencente à poesia sacra, é um ato de contrição pelos pecados. Dentro do
espírito da Contra-Reforma, exprime uma piedade e um arrependimento pungentes. A dramatici­
dade do poema é intensificada pelas reiterações e pelo uso constante da anadiplose (figura de lin­
guagem que consiste na repetição da última palavra de um verso no início do verso seguinte). Com
esse recurso, ganham relevo, na primeira metade do poema, as palavras que se referem ao pecado
(é verdade, delinqüido, ofendido, maldade, vaidade) e, na segunda metade, as que se referem ao
arrependimento (vencido, arrependido, coração) e à salvação (braços/abraços, luz, salvação).
Observe que as anadiploses contínuas dão ao texto um movimento espiralado, retorcido, seme­
lhante ao das colunas barrocas. A emoção se intensifica ao longo do soneto, que se fecha com uma
exclamação patética: Misericórdia, amor, Jesus, Jesus!.
O segundo soneto pertence à poesia circunstancial-burlesca. Se o primeiro exprimia o arrepen­
dimento e o anseio pelo perdão e pela salvação, o segundo, no extremo oposto, é uma celebração
do prazer. A bebida e a farra, como formas de escapismo, são justificadas filosoficamente através
do motivo do carpe diem (Aproveite-se o tempo). O estilo baixo manifesta-se no uso de gírias e
expressões da linguagem popular (saco, caco, tará-tará, berra). Observe os efeitos de humor das
aliterações (jogo sonoro pela repetição de consoantes) e das rimas com consoantes oclusivas (trota
I Baco I tabaco I bota), típicas da poesia satírica de Gregório de Matos.

PONDERA AGORA COM MAIS ATENÇÃO A FORMOSURA DE D. ÂNGELA


Não vira em minha vida a formosura, Matem-me, disse eu vendo abrasar-me,
Ouvia falar nela cada dia, Se esta a causa não é, que encarecer-me
E ouvida me incitava, e me movia Sabia o mundo, e tanto exagerar-me:
A querer ver tão bela arquitetura:
Olhos meus, disse então por defender-me,
Ontem a vi por minha desventura Se a beleza heis de ver para matar-me,
Na cara, no bom ar, na galhardia Antes olhos cegueis, do que eu perder-me.
De uma mulher, que em Anjo se mentia;
De um Sol, que se trajava em criatura:

Nos manuscritos, vários poemas de Gregório de Matos são interpretados como referências à paixão do
autor por D. Ângela, filha do senhor de engenho Vasco de Sousa Paredes. A edição de James Amado (1968),
seguindo um dos apógrafos, organiza esses poemas num ciclo que tem a estrutura de urna novela, com todos
os lances da psicologia amorosa (encontro, paixão, tentativa ?e conquista, decepção). Este é o quarto poema
do ciclo e exprimiria os sentimentos do autor ao conhecer D. Angela. Observe a idealização da beleza: Angela
não é formosa, é a própria formosura, é anjo (Ângela) e Sol, que abrasa, cega e mata. Na última estrofe, o
sujeito lírico dirige-se aos próprios olhos, dizendo preferir a cegueira à perdição e à morte.

AO PADRE DÂMASO DA SILVA PEDINDO AO AUTOR REMÉDIO PARA NÃO


GASTAR COM DAMAS NEM COM FREIRAS
Descarto-me da tronga que me chupa, Que hei de fazer, se sou de boa cepa,
corro por um conchego todo o mapa; e na hora de ver repleta a pipa,
o ar da feia me arrebata a capa, darei por quem ma vaze toda Europa?
o gadanho da limpa até a garupa.
<( Amigo, quem se limpa da carepa,
o Busco uma freira que me desentupa ou sofre úa muchacha que o dissipa,
�z a via que o desuso às vezes tapa; ou faz da sua mão sua cachopa.
topa, e topando, todo o bolo rapa,
w que as cartas lho dão sempre com chalupa.

·o
u NOTAS: tronga: prostituta; chupar: consumir, dissipar, tirar os bens; gadanho: unha, garra; garupa: alforje (por metonímia, i. é, o que
<( se leva na garupa da montaria); chalupa: no jogo do voltarete, as cartas de maior valor (dar sempre com chalupa: ter sorte); limpar-se
0:
::J da carepa: melhorar de vida.


0:
w A idealização da mulher e do amor cede lugar ao amor carnal e venal da sátira fescenina. As mulheres
1- são agora as prostitutas e as freiras que, feias ou limpas (lindas), dissipam todos bens do amante. Restam a
::::::i
quem tem posses (quem se limpa da carepa) duas alternativas: ver seus bens dissipados ou contentar-se com
-
o sexo solitário. Observe as imagens com que o autor se refere ao ato sexual (desentupa a via que o desuso
12
às vezes tapa) e à masturbação (jaz da sua mão sua cachopa). Reconhecem-se no poema a mesma sonori­
dade de efeito humorístico que vimos em soneto anterior: as aliterações (ex.:
topa, e topando, todo o bolo
rapa) e as rimas com consoantes oclusivas (em upa, apa, epa, ipa e opa).

VouEST6Es
11
(FUVEST) A poesia lírica de Gregório subdivide­ Numa cidade onde falta
se em amorosa e religiosa. Verdade, honra, vergonha.
a) Quais são os dois modos contrastantes de Pode-se reconhecer nestes versos de Gregório
se ver a mulher, em sua lírica amorosa? de Matos,
b) Como aparece em sua lírica religiosa a idéia a) o caráter de jogo verbal próprio do estilo bar­
de Deus e do pecado? roco, a serviço de uma crítica, em tom de
sátira, do perfil moral da cidade da Bahia.
(VU NESP) b) o caráter de jogo verbal próprio da poesia
Ardor em firme coração nascido; religiosa do século XVI, sustentando piedosa
Pranto por belos olhos derramado; lamentação pela falta de fé do gentio.
Incêndio em mares de água disfarçado; c) o estilo pedagógico da poesia neoclássica,
Rio de neve em fogo convertido: por meio da qual o poeta se investe das fun­
ções de um autêntico moralizador.
Tu, que em um peito abrasas escondido;
d) o caráter de jogo verbal próprio do estilo bar­
Tu, que em um rosto corres desatado;
roco, a serviço da expressão l írica do arre­
Quando fogo, em cristais aprisionado;
pendimento do poeta pecador.
Quando cristal, em chamas derretido.
e) o estilo pedagógico da poesia neoclássica,
O texto pertence a Gregório de Matos e apre­ sustentando em tom lírico as reflexões do
senta todas as características seguintes: poeta sobre o perfil moral da cidade da
a) trocadilhos, predomínio de metonímias e de Bahia.
símiles, a dualidade temática da sensualida­
de e do refreamento, antíteses claras dispos­ (U FV) - Leia o texto:
tas em ordem indireta. Goza, goza da flor da mocidade,
b) sintaxe segundo a ordem lógica do que o tempo trota a toda ligeireza,
Classicismo que o autor procurava imitar,
e imprime em toda flor sua pisada.
predomínio das metáforas e das antíteses,
temática da fugacidade do tempo e da vida. Ó não aguardes que a madura idade
c) dualidade temática da sensualidade e do te converta essa flor, essa beleza,
refreamento, construção sintática por sime­ em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.
trias sucessivas, predomínio figurativo das (Gregório de Matos)
metáforas e pares antitéticos que tendem Os tercetos acima ilustram:
para o paradoxo. a) o caráter de jogo verbal próprio da poesia líri­
d) temática naturalista, assi metria total de ca do séc. XVI, sustentando uma crítica à
construção, ordem direta predominando preocupação feminina com a beleza.
sobre a ordem inversa, imagens que prenun­ b) o jogo metafórico próprio do Barroco, a res­
ciam o Romantismo. peito da fugacidade da vida, exaltando o
e) versificação clássica, temática neoclássica, gozo do momento.
sintaxe preciosista evidente no uso das sín­ c) o estilo pedagógico da poesia neoclássica,
quises, dos anacolutos e das alegorias, cons­ ratificando as reflexões do poeta sobre as
trução assimétrica. mulheres maduras.
d) as características de um romântico, porque
(PUCCAMP) fala de flores, terra, sombras.
Que falta nesta cidade ? - Verdade. e) uma poesia que fala de uma existência mais
Que mais por sua desonra ? - Honra. materialista do que espiritual, própria da
Falta mais que se lhe ponha? - Vergonha. visão de mundo nostálgico-cultista.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,

CJ)
o

11
a) A lírica amorosa gregoriana reflete a dualida­ se de poemas de contrição, às vezes humil­

de do Barroco contra-reformista: céu/terra; de, às vezes quase arrogante na formulação

espiritualidade/sensualidade. Por um lado, a de um raciocínio que justifica o pecado e vê
w
idealização da beleza e a espiritualização o perdão como uma necessidade do plano o
mulher, vista como um anjo; por outro, a divino.
o
visão sensual, o erotismo, o apelo sexual.
0:::
b) As idéias de Deus e do pecado são opostas, ·o
mas complementares. O pecado faz parte (.!)
da própria natureza humana decaída. Mas se w
0:::
o homem não pode fugir a ele, encontra em
(.!)
-
Deus a misericórdia e o perdão. Por isso,
parte da lírica religiosa de G regório compõe-
13
I NEOCLASSICISMO EM PORTUGAL
UM SÉCULO DE LUZES E DE REVOLUÇÕES;
UM PASTORALISMO ARTIFICIAL E ESTEREOTIPADO

Conhecido como "século das luzes", como era das revoluções, o século XVIII, como o século
XVI, é um dos momentos de maiores transformações na história do mundo ocidental. A burgue­
sia se enriquece muito com a Revolução Industrial, que provoca grandes transformações nas estru­
turas econômicas. A Revolução Francesa, o primeiro grande trunfo político da classe burguesa,
provoca também grandes transformações sociais e se espalha pelo mundo, deflagrando outros pro­
cessos revolucionários.
A expressão "século das luzes" se refere ao Iluminismo, movimento filosófico revolucionário
que combatia a cultura e a ideologia do Antigo Regime e seus pilares, a aristocracia e a Igreja. São
as "luzes" do saber, as "luzes" da razão, contra as "trevas" da ignorância e dos dogmas do pensa­
mento clerical e aristocrático; as "luzes" da ciência, do raciocínio, da experimentação, contra o
obscurantismo da Inquisição e da mentalidade contra-reformista. Esta mentalidade foi sintetizada
pelo Concílio de Trento, que havia dominado o século XVII, apoiando-se, inclusive, no movimen­
to Barroco como propaganda de suas idéias.
Os iluministas acreditavam na "conscientização" do povo, através da divulgação das novas
idéias filosóficas e das novas descobertas científicas. Liberto da fé e da submissão aos religiosos
e aristocratas, o povo apoiaria a Revolução, lutando pelas transformações sociais, políticas e eco­
nômicas que o pensamento burguês revolucionário preconizava - uma sociedade sem nobres e
sem plebeus, na qual cidadãos livres escolheriam seus governantes.
Com esse projeto de "esclarecer" o povo, através da divulgação da cultura, um grupo de ilumi­
nistas, coordenado por Diderot e D 'Alambert, escreveu a Enciclopédia.
O Iluminismo-Enciclopedismo e o Neoclassicismo-Arcadismo correspondem às primeiras
expressões da cultura burguesa.
Em 1 765, ano do nascimento de Bocage, Portugal está sob o domínio do despotismo esclareci­
do do Marquês de Pombal, ministro todo-poderoso do rei D. José I - que pretendia modernizar o
país.
Com a morte de D. José, Pombal é afastado do poder. A nova rainha, D. Maria I, a Louca,
embora não concordasse com as posições iluministas, é obrigada a prosseguir a modernização,
inclusive a reforma da universidade.

NEOCLASSICISMO - RETORNO AOS MODELOS GRECO-LATINOS


O Neoclassicismo, movimento artístico e literário, que tem no Arcadismo a sua principal mani­
festação, foi profundamente influenciado pelas idéias racionalistas do seu tempo. Foi o porta-voz
da Razão e das novas idéias filosóficas, científicas e políticas, buscando uma arte "pedagógica",
"didática", transmissora dos novos valores. Além disso, como o próprio nome deixa transparecer, o
movimento foi um retomo aos modelos clássicos greco-latinos e aos modelos do Renascimento­
<( Classicismo, como referências de uma perfeição estética a ser sempre imitada.
Cl
�z
Além da adoção dos preceitos clássicos e renascentistas, outra característica fundamental do
racional e
Neoclassicismo era a oposição ao estilo Barroco. Os neoclássicos defendiam uma arte
LU natural e, assim, eram inimigos do "mau-gosto", do "obscurantismo" e dos "excessos" do movi­
� mento Barroco. Buscaram uma arte sem antíteses, desequilíbrios ou dilacerações, tão característi­
·8 cos do Barroco. Elegeram o Pastor como a visualização desse ideal de vida simples e equilibrada
<( cuj a realização se daria no seio de uma natureza aprazível e idílica. Obucolismo é a atmosfera pre­
cr: dominante. Daí o nome Arcádia: região da Grécia antiga, mitologicamente configurada como a
:::::>
terra das artes e da poesia. Os slogans árcades como "corta o inútil" (inutilia truncat), "meio-termo
!;:
cr: de ouro" (aurea mediocritas), "fuga das cidades" (jugere urbem), "lugares amenos" (logus amenus)
LU revelam claramente o bucolismo convencional da poesia do Arcadismo.
1-
....J Ao freqüentar as Arcádias - Academias Literárias - os poetas adotavam pseudônimos pasto­
� rais, como Dirceu (Tomás Antônio Gonzaga), Elmano Sadino (Bocage), Glauceste Satúmio

14 (Cláudio Manuel da Costa) e outros.


Esse retomo à cultura clássica não correspondeu a uma obra poética expressiva. Ao
contrário: de um modo geral, a poesia árcade é insípida. A obrigação de restaurar os
modelos clássicos e renascentistas, a necessidade da postura antibarroca, a criação de
uma atmosfera bucólica-pastoril e a instrumentalização da literatura como meio "didá­
tico" de divulgação das novas idéias, tudo isso contribuiu para uma realização dema­
siadamente artificial. Uma poesia de clichê, de lugar-comum, de estereótipo, de frase­
feita. Cerceada por regras, normas e modelos demasiado rígidos, a poesia tomou-se
insípida, uniformizada, sem imaginação e sensibilidade.
O melhor do que foi escrito neste tempo, tanto em Portugal, com Bocage, como no
Brasil, com Gonzaga, é de outras vozes emergentes: vozes de intensidade emocional,
de imaginação criativa, que anunciam o Romantismo.

BOCAGE
Se entre versos mil de esquecimento Crede, ó mortais, que foram com violência
Encontrardes algum cuja aparência Escritos pela mão do Fingimento.
Indique festival contentamento, Cantados pela voz da Dependência.

O LÍRICO E SATÍRICO ELMANO BOCAGE


Durante muito tempo, Bocage espelhou-se no destino trágico de Camões e na poe­
sia camoniana. Para nós, sua figura aparece mesclada com a do genial satírico baiano,
Gregório de Matos, o Boca-do-Inferno. Bocage: inquieto, boêmio, desregrado. Poeta
das ruas, dos botequins, das casas de prostituição. Poeta maldito. Lírico e satírico.
Filósofo e fescenino.
É considerado um dos maiores sonetistas da língua portuguesa, ao lado de Camões
- em cujos sonetos muitas vezes se enraíza - e ao lado de Antero de Quental - a
quem influenciou em extensão e profundidade ainda não devidamente consideradas.

:� ilha de um advogado português e de


UMA LÍRICA QUE OSCILA: ENTRE O BUCOLISMO ·•·!F:·
mãe francesa, Manuel Maria Barbosa
CONVENCIONAL E A CONFISSÃO ROMÂNTICA du Bocage nasceu em 1765, em Setúbal.
Conviveu em casa com idéias liberais e com
O temperamento impulsivo e insubmisso de Bocage não se deixa cercear pelas lis­ atmosfera intelectual. Aos dezoito anos, vai
tas de preceitos do Arcadismo. Os sentimentos são demasiado fortes para um pastor para a corte. Freqüenta a escola da Marinha.
apático . . . A imaginação turbulenta transborda as margens bucólicas. Outras vozes Vida boêmia. Apaixona-se por Gertrudes, a
Gertrúria de muitos poemas (que se casará
emergem: vozes soturnas, de angústias, de mistérios. Vozes de noite, de amor, de
com o irmão do poeta).
morte. Uma poesia de pranto, solidão e morte.
Em 1 786 vai para a fndia, deixando
Bocage é um dos mais expressivos poetas noturnos da literatura portuguesa. Em também, como Camões, a vida pelo mundo
muitos dos seus sonetos ressoam atmosferas sombrias, antecipando a imaginação ultra­ em pedaços repartida. Deserta da Marinha.
romântica que recusa a vida normal e medíocre de um cotidiano sem lugar para a aven­ Passa por Macau. Miséria. Em 1790, volta a
tura, o sonho, o desejo. Portugal. Na Nova Arcádia, torna-se o pastor
Outros sonetos de Bocage caracterizam-se pela mescla de Arcadismo e Elmano Sadino. Publica seu livro Rimas
Romantismo. O poeta muitas vezes oscila entre a convenção - marca do tempo em (1791 ). A vida continua inquieta e
que vive - e o impulso - necessi­ desregrada. Poeta-maldito. Poeta das ruas.
dade de seu temperamento. Bocage Perseguido não apenas pelas musas, mas
Bocage - poeta maldito; também pela polícia. É preso pela Inquisição,
oscila entre o bucolismo convencio­
pastor bucólico/ romântico noturno em 1 797, como subversivo, antimonarquista e
nal e a confissão sentimental român­
A personalidade de Manuel Maria anticatólico.
tica.
Barbosa du Bocage parece concretizar a Bocage morre, vitimado por um
Uma parte frágil da sua lírica está
fase final e insaciável do conflito entre o
aneurisma, aos 40 anos, após um tempo de
na mistura indiscriminada de ele­
desfiguração e aquietamento, em que se
Arcadismo e o Romantismo (. . . ) mentos árcades e românticos, justa­
converteu à vida convencional. Abandonou a
O Elmano Sadino da Nova Arcáclia é já postos sem unidade interna. Outra poesia satfrica, reconciliou-se com os
parte frágil está nos poemas que adversários e escreveu poemas bem­
w
romântico por temperamento, apesar de
muito vocabulário e muito alegorismo apresentam ritmos e imagens fáceis, comportados exaltando a pátria e a religião. (!)
arcáclicos e dos seus laivos de iluminis- poesia declamatória, de circunstân­ Neste período de fim de vida, sua criação �
mo. cia, feita para impressionar os poética se salva da mediocridade por alguns u
ouvintes, com truques de retórica e poemas de grande intensidade dramática, o
Antônio José Saraiva; Óscar Lopes - História da
aJ
conhecidos como sonetos de contrição ou
literatura Portuguesa
eloqüência exagerada: este é um -
preço pago por Bocage para ser um arrependimento. o
15
poeta que saiu dos salões e levou a poesia para as ruas, ajudando, inclusive, a criar um público
moderno, urbano, não-aristocrático, para a poesia.
Os sonetos mais expressivos de Bocage têm uma forte atmosfera pessoal, de confissão egocêntri­
ca, de uma dramaticidade subjetiva intensa. Poesia de ritmos candentes e imaginação, muitas vezes
com ressonâncias profundas dos sonetos de Camões, e muitas vezes ressoando nos dramáticos sone­
tos de Antero de Quental. Poesia de angústias e desesperos: poesias de confidências com a noite, poe­
mas de amor e de medo sombriamente misturados, poemas de horror da morte e da morte como amor.

ANTOLOGIA COMENTADA
Camões, grande Camões, quão semelhante Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Acho teu fado ao meu, quanto os cotejo! Meu fim demando ao Céu, pela certeza
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo, De que só terei paz na sepultura.
Arrostar co 'o sacrilégio gigante;
Modelo meu tu és, mas. . . oh, tristeza!. . .
Como tu, junto ao Ganges sussurrante, Se te imito nos transes da Ventura,
Da penúria cruel no horror me vejo; Não te imito nos dons da Natureza.
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Este soneto é bastante representativo de muitas obsessões da vida e da poesia de Bocage: a iden­
tificação de destino com Camões, a dor do exílio, a adversidade da sorte, o desejo de paz através
da morte e também a dramática consciência dos limites da semelhança no último terceto. Observe
também um traço típico da poesia de Bocage: o uso reiterado e intenso de maiúsculas no interior
do verso (Sorte, Céu, Ventura, Natureza), transformando as palavras em alegorias, universali­
zando-as enquanto símbolos alegóricos.

Chorosos versos meus desentoados, Não vos inspire, ó versos, cobardia,


Sem arte, sem beleza, e sem brandura, Da sátira mordaz o furor louco,
Urdidos pela mão da desventura, De maldizente voz a tirania:
Pela baça tristeza envenenados;
Desculpas tendes, se valeis tão pouco
Vede a luz, não busqueis, desesperados, Que não pode cantar com melodia
No mundo esquecimento e sepultura: Um peito de gemer cansado e rouco.
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados.

Podemos perceber neste soneto metalingüístico a evidente presença de elementos pré-românti­


cos: a subjetividade, o sentimento de angústia, a confissão da dor. O próprio vocabulário já é for­
temente sentimental: desentoados, desventura, baça tristeza, desesperados, esquecimentos, sepul­
tura, ternura, desgraçados... A confissão efetiva é de queixas de lamento egocêntrico, de uma
certa autocomiseração tipicamente romântica: um peito de gemer cansado e rouco.

Magro, de olhos azuis, carão moreno, Devoto incensador de mil deidades,


Bem servido de pés, meão na altura, (Digo de moças mil) num só momento,
Triste de facha, o mesmo de figura, Inimigo de hipócritas e frades:
Nariz alto no meio, e não pequeno;
Eis Bocage, em que luz algum talento;
Incapaz de assistir num só terreno, Saíram dele mesmo estas verdades
Mais propenso ao furor do que à ternura, Num dia em que se achou cagando ao vento.
Bebendo em níveas mãos por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;
<(
o Neste soneto, um famoso auto-retrato de Bocage, o 1 ° quarteto faz uma precisa descrição fisi­

z
ca do poeta. O zo quarteto e o 1 o terceto revelam uma descrição psicológica e ideológica, onde se
percebe a impulsividade, a inquietude, a predominância da paixão, a independência intelectual. O
w
� zo terceto é um exemplo brilhante da capacidade satírica do poeta: o verso final é desconcertante
-o e rompe todas as expectativas dos leitores. Desfecho inusitado, um corte genial na autodescrição.
u Há outras versões deste soneto, em que no último verso apareceu bem comportadamente o elemen­
<( to satírico: Num dia em que se achou pachorrento.
a:
::::>
�a: Recreios campestres na companhia de Marília
w Olha, Marília, as flautas dos pastores, Vê como ali, beijando-se, os Amores
1-­
...J Que bem que soam, como estão cadentes! Incitam nossos ósculos ardentes!
- Olha o Tejo a sorrir-se! Olha: não sentes, Ei-las de planta em planta as inocentes,
Os Zéfiros brincar por entre as flores? As vagas borboletas de mil cores!
16
Naquele arbusto o rouxinol suspira; Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Ora nas folhas a abelhinha pára, Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira,
Ora nos ares, sussurando, gira. Mais tristeza que a morte me causara.

Exemplo típico do bucolismo convencional bem realizado. Neste soneto encontramos praticamen­
te todos os elementos estereotipados do Arcadismo: flautas,
pastores, zéfiros, flores, ósculos, vagas
borboletas, rouxinol, abelhinha, alegre campo. O poema tem frescor de imagem e ritmos. Cadência
leve e sugestiva. E, no último terceto, a bem urdida confissão de amor, a exaltação da amada.

Se é doce no recente, ameno Estio Se é doce mares, céus ver anilados


Ver touca r-se a manhã de etéreas flores, Pela quadra gentil, de Amor querida,
E, lambendo as areias e os verdores, Que esperta os corações, floreia os prados,
Mole e queixoso deslizar-se o rio;
Mais doce é ver-te de meus ais vencida,
Se é doce o inocente desafio Dar-me teus brandos olhos desmaiados
Ouvirem-se os voláteis amadores, Morte, morte de amor, melhor que a vida.
Seus versos modulando e seus ardores
Dentre os aromas de pomar sombrio;

Já neste soneto, podemos perceber a mistura - bem realizada - de elementos árcades, bucó­
licos (doce, ameno Estio, etéreas flores etc), que dominam as três primeira estrofes, e elementos
românticos, que estão intensamente concentrados na última estrofe, num clima de enlanguesci­
mento, de torpor apaixonado, da sensual entrega amorosa, admiravelmente sintetizados no último
verso, considerado um dos mais harmoniosos da língua.

O retrato da Morte! Ó noite amiga, E vós, ó cortesãos da escuridade,


Por cuja escuridão suspiro há tanto! Fantasmas vagos, mochos piadores,
Calada testemunha de meu pranto, Inimigos, como eu, da claridade!
De meus desgostos secretária antiga!
Em bandos acudi aos meus clamores;
Pois manda Amor que a ti somente os diga, Quero a vossa medonha sociedade,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto; Quero fartar meu coração de horrores.
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga.

Célebre soneto de atmosfera noturna: invocação da noite, feita amiga, confidente, testemunha,
desejada amante. É importante observar a recusa da claridade, do diurno, a opção pelo sombrio,
pelo soturno. Observe, também, que o horror, a condição de horror é o grande extremo oposto da
suavidade bucólica, dos lugares amenos, da natureza aprazível. .. Este soneto é um dos intensos
exemplos de identificação noturna de Bocage e de negação radical do modelo árcade.

Não lamentes, ó Nise, o teu estado; Essa da Rússia imperatriz famosa


Puta tem sido muita gente boa; Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta),
Putíssimas fidalgas tem Lisboa, Entre mil porras expirou vaidosa;
Milhões de vezes putas têm reinado:
Todas no mundo dão a sua greta;
Dido foi puta, e puta dum soldado; Não fique pois, ó Nise, duvidosa,
Cleópatra por puta alcança a c 'roa; Que isto de virgo e honra é tudo peta.
Tu, Lucrécía, com toda a tua proa,
O teu como não passa por honrado:

Notas: Dido - rainha de Cartago; Cleópatra - rainha do Egito; Lucrécia - romana que se suicidou por
ter sido violentada; Essa da Rússia - Catarina II, "a grande".

Igualmente célebre, este soneto é revelador do talento satírico de Bocage, que é brilhante w
(!)
mesmo quando fescenino. Observe o raciocínio desenvolvido rigorosamente, a partir da afirmação <(
geral no 1 o quarteto. Observe o raciocínio por analogia, que vai comparando Nise - a moça que u
o
co
o poeta consola cuj o nome é de inspiração árcade - a uma série de exemplos históricos (Dido,
-
Cleópatra, Lucrécia, Catarina da Rússia), no 2° quarteto e no 1 o terceto. Observe, também, a sínte­
se generalizadora no final, no último terceto, e a força ratificadora do último verso, frase-síntese
' 11
no processo de persuasão de Nise, e que tem, inclusive, um sabor de provérbio, de síntese crista­
lizada.

já Bocage não sou!. . À cova escura


. Meu ser evaporei na lida insana
Meu estro vai parar desfeito em vento. . . Do tropel das paixões, que me arrastava;
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento Ah!, cego eu cria, ah!, mísero eu sonhava
Leve me torne sempre a terra dura. Em mim quase imortal a essência humana.

Conheço agora já quão vãfigura De que inúmeros sóis a mente ufana


Em prosa e verso fez meu louco intento. Existência falaz não me doirava!
Musa!. . . Tivera algum merecimento, Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Se um raio da razão seguisse, pura! Ao mal que a vida em sua origem dana.

Eu me arrependo; a língua quase fria Prazeres, sócios meus e meus tiranos!


Brade em alto pregão ã mocidade, Esta alma, que sedenta em si não coube,
Que atrás do som fantástico corria: No abismo vos sumiu dos desenganos.

"Outro A retino fui . . . A santidade Deus, ó Deus!. . . Quando a morte à luz me roube,
Manchei. . . Oh! se me creste, gente ímpia, Ganhe um momento o que perderam anos,
Rasga meus versos, crê na Eternidade!" Saiba morrer o que viver não soube.

Os dois mais célebres sonetos de contrição, de arrependimento, escritos no fim da vida. Poemas
de confissão, diante da morte próxima, por um lago negam - na dimensão das idéias, dos signi­
ficados - a traj etória poética e existencial de Bocage (recusam as paixões, os desejos, os praze­
res, as rebeldias) e fazem, inclusive, dois dramáticos chamados, duas patéticas interlocuções - a
Deus, no primeiro, e aos leitores, no segundo - para que seja esquecido o poeta maldito e sua
poesia. Por outro lado, estes sonetos representam inteira e significamente a poesia e a existência
·
de Bocage. Por suas metáforas lancinantes, por seu ritmo fluente e apaixonado, pelas inteijeições,
pela entonação subjetiva e emocional, pela síntese conceitual, estes sonetos representam muito do
melhor da lírica de Bocage e o quanto esta poesia se afastou dos modelos neutralizantes, das este­
reotipadas convenções neoclássicas, bucólicas, árcades e pastoris do tempo do poeta, razão enfim
da sua grandeza.

11 Reconheça elementos pré-românticos no seguinte Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,


soneto de Bocage : O Tejo adormeceu na lisa areia;
Importuna Razão, não me persigas; Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Cesse a ríspida voz que em vão murmura, Nem pia o mocho, às trevas acostumado.
Se a lei de Amor, se a força de ternura,
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas.
56 eu vejo, s6 eu, pedindo à Sorte
Se acusas os mortais, e os não obrigas, Que o fio, com que está minha alma presa
Se, conhecendo o mal, não dás a cura, À vil matéria, lãnguida, me corte.
Deixa-me apreciar minha loucura;
Importuna Razão, não me persigas. Consola-me este horror. esta tristeza.
Porque a meus olhos se afigura a morte
É teu fim, teu projeto encher de pejo
No silêncio total da Natureza.
Esta alma, frágil vítima daquela
Que, injusta e vária, noutros laços vejo.
n Reconheça elementos árcades no seguinte soneto de
Queres que fuja de Marília bela, liil Bocage, exemplificando-os.
Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo
Já se afastou de n6s o Inverno agreste,
É carpir, delirar, morrer por ela.
� Envolto nos seus úmidos vapores;
A fértil Primavera, a mãe das flores


Além de elementos pré-românticos. o soneto da
O prado ameno de bobinas veste.
questão anterior revela uma posição explicitamente
z contrária aos preceitos do Neoclassicismo, do Varrendo os ares. o subtil Nordeste
UJ Arcadismo. Identifique-a e explique a oposição . Os torna azuis; as aves de mil cores


u
O soneto seguinte apresenta características predo­
minantemente pré-românticas e também algumas
Adejam entre Zéfiros e Amores.
E toma o fresco Tejo a cor celeste.

Vem, oh Marília, vem lograr comigo


<C referências árcades. Exemplifique ambas, escolhen­
a: do uma passagem do texto para cada uma.
Destes alegres campos a beleza,
::::> Destas capadas árvores o abrigo.


a:
lnsónia Deixa louvar da corte a vã grandeza:
w Já sobre o coche de ébano estrelado Quanto me agrada mais estar comigo,
1-­ Deu meio giro a noite escura e feia; Notando as perfeições da Natureza !
:J Que profundo silêncio me rodeia
� Neste deserto bosque, à luz vedado!

18
(FUVEST)
Os sonetos de Bocage que transpõem poetica­ A postura racional, a linguagem utilizada e as
mente a experiência do autor na região colonial refe r ências à mitologia e ao nome de Elmano
de Goa apresentam alguns traços semelhantes indicam que as estrofes acima pertencem a um
aos dos poemas em que, anteriormente, poema:
Gregório de Matos enfocara a sociedade colonial
da Bahia. Sob esse aspecto, são traços comuns a) clássico de Camões
a ambos os poetas: b) neoclássico de Bocage
a) presunção de superioridade, crítica da vaida­ c) romântico de Garrett
de, preconceito de cor. d) realista de Guerra Junqueiro
b) sensualismo, crítica da presunÇão, elogio da e) simbolista de Eugênio de Castro
mestiçagem.
c) presunção de superioridade, elogio da no­ (U F-PA)
Leia os textos com atenção:
1
breza local, sátira da mestiçagem.
d) sensualismo, crítica da nobreza antiga, pre­ Texto
conceito de cor. Queres que fuja de Marília Bela,
e) estilo tropical, crítica da vaidade, elogio da Que a maldiga; a desdenhe; e o meu desejo
mestiçagem É carpir, delirar, morrer por ela.
Texto 2
( UF- PA) Musa, não cantes bárbara proeza
Leia o texto com atenção: De um braço audaz, de um coração tirano:
Outro Are tino fui. . . A santidade Não celebres o undívago troiano,
Manchei. . . Oh, se me creste, gente ímpia, Pérfido a Tíria, mísera princesa. •
Rasga meus versos, crê na eternidade. O lirismo dos dois trechos acima se orienta pelo
academicismo do século XVI I I . Seu autor é:
O autor dos sonetos acima é um dos maiores
a) Antônio Nobre
sonetistas da língua portuguesa, criador de tex­
b) Almeida Garrett
tos marcados por subjetividade, confessionalis­
c) Barbosa du Bocage
mo, autolamentação, pastoralismo e ardente d) Luís de Camões
admiração a Luís de Camões. Pode-se com­ e) Gregório de Matos Guerra
preender esse escritor integrado aos períodos:
a) barroco e árcade
b) árcade e pré-romântico (F. Objetivo S P)
c) pré-romântico e romântico Ele é considerado um dos três maiores sonetis­
d) romântico e parnasiano tas da l íngua portuguesa, ao lado de Camões e
e) parnasiano e simbolista de Antero de Ouental. Sua poesia lírica, extrema­
mente pessoal, é marcada por um rebelde liber­
tarismo emocional, às vezes violento, às vezes
calmo. Sua vasta obra poética apresenta dois
fi ( U F-RO)
Leia o texto com atenção: aspectos fundamentais: o satírico e o lírico; mas
é no lírico que o poeta se realiza plenamente e
Não temas, ó Ritália, que o choroso, fica famoso. Foi, sem dúvida, o maior poeta do
O desvelado E/mano a fé quebrante, século XVI I I português. Seu pseudônimo arcádi­
Não desconfies do singelo amante, co é Elmano Sadino. Trata-se de:
Que tu podes, só tu, fazer ditoso. a) Cruz e Silva
b) Domingos Caldas Barbosa
Serena o coração terno e cioso, c) Filinto Elíseo
Que inda minh 'alma há de ser constante d) Almeida Garrett
Se primeiro que a tua, andar errante e) Bocage
Pelas margens do Letes preguiçoso.

A atitude pré-romãntica fica evidente no último há referências e elementos árcades (zéfiro, Tejo
11 terceto, na atitude em relação ao amor: meu
desejo É carpir, delirar, morrer por ela. Trata-se
adormecido, mavioso rouxino�.

do apaixonado amor romântico, impetuoso, Há uma nítida atmosfera bucólica, pastoril,


transbordante, incontrolado. amena. Trata-se de uma descrição da natureza
aprazível .
A contradição explícita aos preceitos neoclássi­ Ex. : a fértil Primavera, a mãe das flores; o prado
cos e árcades está na negação da razão, na ameno de boninas vestes; aves de mil cores etc.
negação da disciplina racional que controlaria os
impulsos do amor. Essa negação tem duas
dimensões: não apenas a razão não consegue
lb
controlar a paixão, como o poeta não deseja
ouvir a voz da razão, que é impotente e apenas
rl b w
causa consciência de culpa.
ll b (!)
<(
O clima pré-romântico está expresso principal­ BJ c u
o
IXl
lfJ e
mente no primeiro quarteto (a noite, o silêncio,

-
a solidão do Eu) e no segundo terceto (o ego­
centrismo, o pessimismo, o noturno, a atração
pelo horror e pela morte) . No segundo quarteto,
19
O NEOCLASSICISMO: PORTUGAL E BRASIL
Um tanto tardiamente, apenas na segunda metade do século XVIII, os autores portugueses
aderiram à vaga de reação neoclássica aos exageros do Barroco. A nova moda propunha uma volta
ao equilíbrio, restaurando a harmonia, a disciplina e a obediência aos preceitos clássicos e, sobre­
tudo, a simplicidade, através da valorização da natureza.
A poesia ganhou um tom familiar, singelo, gracioso, aparentemente espontâneo, sem dispen­
sar as sofisticadas referências mitológicas. O tema dominante passou a ser o bucolismo.
Organizaram-se sociedades de escritores chamadas Arcádias (em Portugal, a Arcádia Lusitana
e a Nova Arcádia) e os autores adotaram pseudônimos pastoris.
Entretanto, o ideal de naturalidade acabou engessado pela repetição dos temas clássicos da
aurea mediocritas ("mediania de ouro", o culto do equilíbrio), do carpe diem ("goza do dia", o
momento presente); do fugere urbem ("fugir da cidade") e do locus amoenus ("lugar aprazível",
cenário bucólico idealizado).
Com o tempo, essas fórmulas literárias se esgotaram, e a poesia portuguesa começou a tingir­
se de um emocionalismo pessimista que prenunciava o Romantismo (Pré-Romantismo).
Os ideais neoclássicos foram introduzidos no Brasil por Cláudio Manuel da Costa, com a
publicação de suas Obras, em 1 768. A ausência de tradição e as diferenças de contexto cultural e
social, suavizaram aqui os rigores da nova moda, arejando os temas, introduzindo novos motivos
(elementos da paisagem brasileira, a mineração, o índio . . . ), dando maior leveza ao verso.
Segundo os historiadores portugueses Antônio José Saraiva e Oscar Lopes, certa cor local e
certo dengue brasileiro constituem, no conjunto destes poetas, uma contribuição importante para
aformação do gosto romântico entre nós (In História da literatura portuguesa, 6° ed., Porto, Porto
Editora, s/d).
Tomás Antônio Gonzaga é considerado o principal autor neoclássico brasileiro.

O BRASIL E AS MINAS GERAIS


A partir do início do século XVIII a descoberta e a exploração do ouro deslocou o centro eco­
nômico e político da colônia, do Nordeste para o eixo Vila Rica/Rio de Janeiro.
O império português entrara em declínio já no final dos anos quinhentos e vivera uma suces­
são de crises durante os anos seiscentos. O reinado de D. João V ( 1 707 - 1 750) utilizou o ouro bra­
sileiro para manter o luxo da corte.
Com as obras faraônicas desse monarca e os desvantajosos acordos comerciais com a
Inglaterra (sobretudo o de Methuen, de 1 7 1 0), Portugal desperdiçou sua segunda oportunidade his­
< tórica de desenvolvimento.
o

z
O esgotamento das minas, durante a segunda metade do século, revelou a fragilidade da eco­
nomia portuguesa. A política de reformas do Marquês de Pombal, ministro de D. José I, foi insu­
w ficiente para reverter o quadro de crise.
:2E No reinado de D. Maria I (a partir de 1 777), a política colonial tomou-se cada vez mais rigo­
o
(.) rosa, com proibições de toda ordem e, sobretudo, com um insuportável arroxo tributário. Com o
< declínio da produção aurífera, entretanto, a arrecadação do imposto sobre a mineração era insufi­
c: ciente, dificilmente atingindo a quota fixada em 1 00 arrobas anuais.
:::>
�c: Foi nesse quadro de crise econômica qu� se desenvolveu o Neoclassicismo brasileiro, cujos
principais autores estavam ligados a Minas Gerais e ao Rio de Janeiro. A insatisfação e o medo
w substituíra a antiga euforia e criara um clima de insurreição, insuflado pelos ideais iluministas e
1-
:J pelo sucesso da Revolução Americana.
- A Inconfidência Mineira, de que participaram Tomás Antônio Gonzaga e vários poetas neo­
clássicos, é o principal símbolo desse período.
20
, A

TOMAS ANTONIO GONZAGA


Mito e Realidade
Eu tenho um coração maior que o mundo!
Tu, formosa Marília, bem o sabes:
Um coração . . ., e basta
Onde tu mesma cabes.

O Romantismo encarregou-se de transformar Tomás Antônio Gonzaga em verda­


deiro mito: herói da Pátria e trágico amante, consumindo-se em saudades de sua Marília
na terra do exílio.
Hoje, as pesquisas históricas revelam outro Gonzaga: sua participação na
Inconfidência parece ter sido secundária; sua conduta durante o julgamento não foi tão
heróica; as motivações de seu amor por Maria Dorotéia (a Marília de seus poemas) não
foram tão sentimentais; sua vida no exílio se refez através de um rico casamento.
Mas a poesia que criou resiste à demolição do mito, conservando o encanto origi­
nal. Tomás Antônio Gonzaga, a despeito das convenções neoclássicas que lhe marcam
a obra, continua sendo considerado um dos maiores poetas de nossa literatura.

MARÍLIA DE DIRCEU
A obra lírica de Tomás Antônio Gonzaga reduz-se, praticamente, a esse livro, um
dos mais lidos da história da literatura brasileira. onzaga nasceu em Portugai (Porto,
Por trás dos suaves idílios pastoris revelam-se elementos biográficos do autor. G 1 1 /08/1744) e morou em Salvador, Bahia,
Dirceu, o pastor, é também, um tanto inverossimilmente, o funcionário público, juiz, já entre os 7 e os 17 anos de idade. Formou-se
em Direito na Universidade de Coimbra e
quarentão, amando uma mocinha de 1 7 anos, ansioso pela estabilidade de um lar bur­
permaneceu na Metrópole, exercendo a
guês cheio de filhos. advocacia, até 1 782, quando foi nomeado
A pastora Marília, ora loira, ora morena, delicada e freqüentemente enciumada é, ouvidor (juiz) de Vila Rica e retornou ao Brasil.
além de um motivo poético, uma Maria Dorotéia idealizada. Instalado na capital mineira, tornou-se amigo
Freqüentemente o sítio ameno convencional da poesia bucólica dá lugar à paisagem do poeta Cláudio Manuel da Costa, sob cuja
influência iniciou sua produção poética.
de Vila Rica, aos campos de mineração, onde aparecem os vultos dos escravos.
Nessa época a Capitania de Minas Gerais
O livro é dividido em duas parte, que correspondem às duas fases da vida de era governada por Luís da Cunha Meneses.
Gonzaga em que foram escritas (existe uma terceira parte, de autenticidade contestável). Os desmandos e a arrogância desse tiranete
Na primeira parte predominam as convenções neoclássicas: os idílios e os arrufos motivaram a principal obra satírica do século
amorosos dos pastores, as cançonetas anacreônticas, o locus amoenus, as referências XVIII, as Cartas Chilenas, atribuídas a
mitológicas. O pastor Dirceu faz a corte à pastora Marília, procurando convencê-la da Gonzaga, inimigo político do governador.
Ao vir para o Brasil, Gonzaga tinha 38 anos
futura felicidade no casamento. A recorrência do tema do carpe diem revela a preocu­
de idade. Logo se apaixonou por uma vizinha,
pação de Gonzaga com a própria idade. Maria Dorotéia Joaquina de Seixas,
A segunda parte do livro foi escrita na prisão. As referências à realidade biográfica adolescente de apenas 17 anos. As
são mais diretas: o cárcere, o processo judicial, o medo, a perspectiva da morte, a soli­ diferenças de idade e de s ituação econômica
dão, o sentimento da injustiça. Embora ainda se mantenham, as convenções não garan­ devem ter provocado a oposição da família,
tem o pleno equilíbrio neoclássico; a expressão, dominada pelo pessimismo, toma-se pois o namoro arrastou-se por vários anos, <(
sem chegar ao matrimônio. (.!)
mais intensa e dramática - pré-romântica.
Em 1789, quando já obtivera o consentimento <(
O encadeamento das duas partes e a progressão do caso amoroso fazem de Marília dos pais da noiva e preparava sua mudança N
z
de Dirceu uma quase novela de psicologia amorosa. para a Bahia, Gonzaga foi detido, acusado de o
envolvimento na Inconfidência. Permaneceu (.!)
preso no Rio de Janeiro até 1 792, quando foi o
degredado para Moçambique. z
Em nossa literatura é dos maiores poetas, dentre os sete ou oito que trouxe­ Pesquisas feitas no século XX revelaram que, •O
ram alguma coisa à nossa visão do mundo. Com ele, a pesquisa neoclássica no desterro, Gonzaga refez sua vid�. 1-
da natureza alcança a expressão mais humana e artisticamente mais pura, casando-se com Juliana Mascarenhas de z
<(
liberta ao mesmo tempo da contorção barroca e dos escolhos da prosa. Nas Sousa, filha de um rico comerciante de
(/)
escravos. Morreu em 1 809. Essas ·<(
literaturas românicas do tempo, forma sem deslustre ao lado de um Bocage
revelações desfizeram o mito do poeta ::E
ou André Chénier.
apaixonado, enlouquecido e morto o
Antônio Cândido, In Formação da literatura brasileira. prematuramente pela saudade de sua 1-
Marília. -
o
21
ANTOLOGIA COMENTADA
LIRA IX
Eu sou, gentil Marília, eu sou cativo; O Vento quando parte em largas fitas
Porém não me venceu a mão armada As folhas, que meneia com brandura;
De ferro, e de furor: A fonte cristalina,
Uma alma sobre todas elevada Que sobre as pedras cai de imensa altura,
Não cede a outra força, que não seja Não forma um som tão doce, como forma
A tenra mão de A mor. A tua voz divina.

Arrastem pois os outros muito embora Em torno dos teus peitos, que palpitam,
Cadeias nas bigornas trabalhadas Exalam mil suspiros desvelados
Com pesados martelos: Enxames de desejos;
Eu tenho as minhas mãos ao carro atadas Se encontram os teus olhos descuidados,
Com duros ferros não, com fios d'ouro, Por mais que se atropelem, voam, chegam;
Que são os teus cabelos. E dão furtivos beijos.

Oculto nos teus meigos vivos olhos O Cisne, quando corta o manso lago,
Cupido a tudo jaz tirana guerra: Erguendo as brancas asas, e o pescoço;
Sacode a seta ardente; A Nau, que ao longe passa,
E sendo despedida cá da terra, Quando o vento lhe enfuna o pano grosso,
As ntiVens rompe, chega ao alto Empíreo. O teu garbo não tem, minha Marília,
E chega ainda quente. Não tem a tua graça.
'
As abelhas nas asas suspendidas Estimem pois os mais a liberdade;
Tiram, Marília, os sucos saborosos Eu prezo o cativeiro: sim, nem chamo
Das orvalhadas flores: À mão de amor ímpia:
Pendentes dos teus beiços graciosos Honro a virtude, e os teus dotes amo:
O mel não chupam, chupam ambrosias Também o grande Aquiles veste a saia,
Nunca fartos Amores. Também Alcides fia.

Esta lira pertence à primeira parte de Marília de Dirceu, desenvolvendo o tema da corte amo­
rosa: Dirceu confessa-se cativo da beleza de Marilia, preso por seus cabelos dourados (é interes­
sante observar que, na idealização de Marilia, ora seus cabelos são loiros, ora morenos), atingido
pelas setas que se desprendem de seus olhos. A partir da quarta estrofe, Marília é comparada com
elementos da natureza, mostrando-se superior aos mais doces, melodiosos, elegantes e belos.
Observe que esse naturismo é convencional e não inclui ainda a paisagem americana. Conven­
cionais também são as referências mitológicas (Cupido, Aquiles e Alcides) e o tema da aurea me­
diocritas (o ideal clássico do equilíbrio) nos três últimos versos do poema. A virtude não reside
apenas nos grandes feitos heróicos: as imagens de Aquiles em roupas caseiras e de Alcides em tra­
balhos domésticos refletem o ideal burguês de vida segura e tranqüila.
Apesar de todo esse convencionalismo neoclássico, há uma leve referência à realidade da vida
colonial na comparação entre o cativeiro amoroso e a situação dos escravos (segunda estrofe) e
uma mal velada sensualidade na 43 e na 63 estrofes, onde Dirceu projeta seu desejo de beijar
Marilia nas abelhas que esvoaçam em tomo dela.
O ideal de simplicidade que transparece nesse quadro amoroso reflete-se também na forma do
poema: o vocabulário é simples; a ordem das frases é, quase sempre, direta; os versos hexassíla­
bos entremeados quebram a monotonia ritmica dos decassílabos heróicos (acento na 63 e décima
sílabas); predominam os versos brancos, sendo rimados apenas os versos 2 e 4 de cada estrofe
(rimas geralmente pobres, sobretudo as de particípios).

LIRA IV

Marília, teus olhos Mal vi o teu rosto,


São réus, e culpados, o sangue gelou-se,
Que sofra, e que beije A língua prendeu-se,
os ferros pesados Tremi, e mudou-se
De injusto Senhor. Das faces a cor.
Marília, escuta Marília, escuta
Um triste Pastor. Um triste Pastor.
A vista furtiva, Falando com Laura,
O riso impeifeito, Marília dizia;
Fizeram a chaga, Sorriá-se aquela,
Que abriste no peito, E eu conhecia
Mais funda, e maior. O erro de amor.
Marília, escuta Marília, escuta
Um triste Pastor. Um triste Pastor.

Dispus-me a servir-te; Movida, Marília,


Levava o teu gado De tanta ternura,
À fonte mais clara, Nos braços me deste
À vargem, e prado Da tua fé pura
De relva melhor. Um doce penhor.
Marília, escuta Marília, escuta
Um triste Pastor. Um triste Pastor.

Se vinha da herdade, Tu mesma disseste


Trazia dos ninhos Que tudo podia
As aves nascidas, Mudar de figura;
Abrindo os biquinhos Mas nunca seria
De fome ou temor. Teu peito traidor.
Marília, escuta Marília, escuta
Um triste Pastor. Um triste Pastor.

Se alguém te louvava, Tu já te mudaste;


De gosto me enchia; E a faia frondosa,
Mas sempre o ciúme Aonde escreveste
No rosto acendia A jura horrorosa,
Um vivo calor. Tem todo o vigor.
Marília, escuta Marília, escuta
Um triste Pastor. Um triste Pastor.

Se estavas alegre, Mas eu te desculpo,


Dirceu se alegrava; Que o fado tirano
Se estavas sentida, Te obriga a deixar-me;
Dirceu suspirava Pois basta o meu dano
À força da dor. Da sorte, que for.
Marília, escuta Marília, escuta
Um triste Pastor. Um triste Pastor.

A Lira IV - pertencente à primeira parte da obra - é um bom exemplo da poesia ingênua,


que exprime os arrufos amorosos. As imagens são lugares comuns da linguagem dos namorados:
Dirceu confessa-se escravo do amor (injusto senhor), relembra a dedicação com que servia Marília
e a submissão dos seus sentimentos aos da amada.
Nas últimas estrofes cobra o cumprimento da jura de amor, gravada no tronco de uma faia,
mas, cheio de autopiedade, perdoa a amada por querer deixá-lo.
A forma do poema segue o padrão de simplicidade, leveza e ritmo de várias liras: presença de
refrão, versos curtos (pentassílabos) brancos, alternados com versos rimados. <(
'-'
r:5z
o
'-'
LIRA li o
z
Esprema a vil calún ia muito embora Podem muito, conheço, podem muito, •O
1-
Entre as mãos denegridas, e insolentes, As fúrias infernais, que Pluto move; z
Os venenos das plantas, Mas pode mais que todas <(
E das bravas sepentes. Um dedo só de jove. (/)
·<(
Chovam raios e raios, no meu rosto Este Deus converteu em flor mimosa, :i!
Não hás de ver, Marília, o medo escrito: A quem seu nome deram, a Narciso; o
O medo perturbador,
I-
-
Fez de muitos os Astros,
Que infunde o vil delito. Qu 'inda no Céu diviso.
23
Ele pode livrar-me das injúrias Eu tenho um coração maior que o mundo!
Do néscio, do atrevido ingrato povo; Tu, formosa Marília, bem o sabes:
Em nova flor mudar-me, Um coração . . . , e basta,
Mudar-me em Astro novo. Onde tu mesma cabes.

Porém se os justos Céus, porfins ocultos,


Em tão tirano mal me não socorrem;
Verás então, que os sábios,
Bem como vivem, morrem.

Esta lira pertence à segunda parte de Marília de Dirceu. Seu tema é a participação de Gonzaga
na Conjuração Mineira e o temor do desfecho do julgamento. Observe que Gonzaga se diz inocen­
te das acusações, que ele atribui ao veneno das calúnias de seus inimigos. Foi esta, aliás, sua posi­
ção em todo o inquérito, como se pode ler nos Autos da devassa.
Dirceu/Gonzaga desafia seus acusadores a provocar-lhe o medo, sentimento natural dos que
são culpados, e invoca a justiça divina contra os poderes infernais (o autor utiliza ainda as figuras
mitológicas de Jove (Júpiter) e Plutão). Na penúltima estrofe, Dirceu manifesta seu orgulho dian­
te da morte.
A última estrofe é uma das mais belas que o autor escreveu: a grandeza de seu coração é com­
provada pelo fato de nele caber a infinita beleza de Marília.

LIRA XIX

Nesta triste masmorra, Depois que represento


De um semivivo corpo sepultura, Por largo espaço a imagem de um defunto
Inda, Marília, adoro Movo os membros, suspiro,
A tua formosura. E onde estou pergunto.
Amor na minha idéia te retrata; Conheço então que amor me tem consigo;
Busca extremoso, que eu assim resista Ergo a cabeça, que inda mal sustento,
À dor imensa, que me cerca, e mata. E com doente voz assim lhe digo:

Quando em meu mal pondero, "Se queres ser piedoso,


Então mais vivamente te diviso: "Procura o sítio em que Marília mora,
Vejo o teu rosto, e escuto ''Pinta-lhe o meu estrago,
A tua voz, e riso. ''E vê, Amor, se chora.
Movo ligeiro para o vulto os passos; "Se lágrimas verter, se a dor a arrasta,
Eu beijo a tíbia luz em vez de face; "Uma delas me traze sobre as penas,
E aperto sobre o peito em vão os braços. ''E para alívio meu só isto basta. "

Conheço a ilusão minha;


A violência da mágoa não suporto;
Foge-me a vista, e caio,
Não sei se vivo, ou morto.
Enternece-se Amor de estrago tanto;
Reclina-me no peito, e com mão terna
Me limpa os olhos do salgado pranto.

Esta lira também pertence à segunda parte da obra, escrita na prisão. O drama vivido por
Dirceu/Gonzaga, a revolta pela injustiça, o medo, as privações, tudo se concentra no sentimento da
solidão, que se traduz na saudade de Marília. Sentimento tão intenso que leva Dirceu ao delírio.
<( A visão de Marília é tão real, que ele se aproxima para beijá-la (23 estrofe). O reconhecimen­
o to da ilusão (33 estrofe) provoca-lhe uma vertigem.

z
A personificação do Amor (Cupido, o deus alado) perde, em parte, o seu significado alegóri­
co, para tornar-se elemento do delírio.
w
Na última estrofe, Cupido é encarregado de relatar os sofrimentos de Dirceu a Marília e de

o verificar se ela ainda o ama. Uma única lágrima da amada daria alívio suficiente ao prisioneiro.
u O locus amoenus foi substituído pelo ambiente da masmorra, comparada com uma sepultura;
<( a aurea mediocritas, pelo desespero e pelo delírio; o vocabulário constrói campos semânticos de
a:
::> dor e desespero (adjetivos: triste, semivivo, extremoso, imensa, vivo ou morto, doente; substanti­

�a: vos: masmorra, sepultura, mal, vulto, ilusão, violência da mágoa, estrago, salgado pranto, defun­
to, lágrimas, dor, alivio; verbos: resistir, cercar, matar, suportar, cair, representar, suspirar, cho­
w rar, verter, arrastar).
1-
....J
Sentimentos tão pungentes e intensos escapam ao equilíbrio neoclássico e prenunciam o tom
- patético do Romantismo.

24
\Jom:sT6a
11 Compare as descrições de M a rília: ( P U C - Campinas) Pode-se afirmar que Marília de
Dirceu e as Cartas Chilenas são, respectivamente,
I
a ) altas expressões do lirismo amoroso e da sáti­
Vivos olhos, e faces cor-de-rosa,
ra política, na literatura do século XVI I I .
Com crespos fios de ouro:
b ) exemplos d a poesia biográfica e d a l iteratura
Meus olhos só vêem graças e loureiros;
epistolar cultivadas no século XVI .
11 c ) exemplos d o lirismo amoroso e da poesia d e
O seu semblante é redondo, com bate, cu ltivados sobretudo pelos poetas
Sobrancelhas arqueadas, românticos da chamada terceira geração.
Negros e finos cabelos, d) altas expressões do lirismo e da sátira da nossa
Carnes de neve formadas. poesia barroca.

111
e) expressões menores da prosa e da poesia de
nosso Arcadismo, cultivadas no i nterior das
Papoula, ou rosa delicada, e fina,
Academias.
Te cobre as faces, que são cor de neve.
Os teus cabelos são uns fios d'ouro;
Teu lindo corpo bálsamo vapora.
n (CESESP -PE)

a) Que oscilação se observa nas descrições IÍII 1- o momento i deológico na literatura dos Sete-
de Marília? centos traduz a crítica da burguesia culta aos
b) Que conclusão podemos tirar dessa oscila­ abusos da nobreza e do clero.
ção ?
11- O momento poético, na literatura dos Sete­

fJ Leia atentamente os textos:


centos, nasce de um encontro com a nature­
za e os afetos comuns do homem.
TEXTO I
Gozai, gozai da flor da formosura, 111- Façamos, sim, façamos, doce amada,
Os nossos breves dias mais ditosos.
Antes que o frio da madura idade
Tronco deixe despido, o que é verdura. A característica que está presente nestes versos é
o carpe diem (gozar a vida).
Que passado o zenith da mocidade,
Sem a noite encontrar da sepultura,
a) Só a p roposição I é correta.
É cada dia ocaso da beldade. b) Só a proposição li é correta.
TEXTO 11 c) Só a proposição 1 1 1 é correta.
Ah! enquanto os Destinos impiedosos d) São corretas as proposições I e 1 1 .
Não voltam contra nós a face irada, e) Todas a s proposições são corretas.
Façamos, sim, façamos, doce amada,
Os nossos breves dias mais ditosos.
Um coração, que frouxo (VUN ESP) Há no Arcadismo brasileiro uma obra
A grata posse de seu bem difere, satírica de forma epistolar que suscitou dúvidas de
A si, Marília, a si próprio rouba, autoria durante mais de um século. Assinale abai­
E a si própr.io fere. xo a alternativa que apresente o nome correto
dessa obra e seu autor mais provável :
O texto I é barroco; o 1 1 é arcádico. Comparando­
os, é possível afirmar: a) O reino da estupidez e Francisco d e Melo Franco.
a) que não há grande diferença entre a mentalida­ b) Viola de Lereno e Domingos Caldas Barbosa .
de barroca e a neoclássica, já que os dois textos c) O desertor e Manuel I nácio da S i lva Alvarenga.
desenvolvem o mesmo tema, o carpe diem; d) Cartas Chilenas e Tomás Antônio Gonzaga.
b) que o Arcadismo optou por uma li nguagem e) Os Bruzundangas e Lima Ba rreto.
mais s i mples, com predomínio da ordem direta
e de vocábulos de uso corrente;
c) que o Arcadismo conservou, do Barroco, o
gosto pelo hipérbato, pelas antíteses, parado­
<(
xos e hipérboles; (.9
r5z
d) que o Arcadismo conservou, do Barroco, o pes­
simismo em relação à vida ;
e) que certos autores neoclássicos, como To más
Antônio Gonzaga, sofrem profunda influência o
do Ba rroco.
(.9
o
\J UaPOs'f.ll jO� z
•O
11 a) Marília ora é descrita como tendo cabelos loi­
ros, ora negros.
coerência dessas descrições, mas com o padrão
poético realizado em cada composição.
1-
z
<(
b) E mbora Marília corresponda a um ser real, b. cn
Maria Dorotéia, ligada à vida do poeta, ela é, -<(
antes de tudo, uma idealização poética. As des­ �
crições apenas atendem à idealização da mu­ o
lher, exigida pelas convenções neoclássicas. O 1-
poeta, porta nto, não está preocupado com a -

25
I o ROMANTISMO EM PORTUGAL
A economia portuguesa entra em crise em 1 808, com a transferência da corte de D. João VI
para o Brasil - motivada pela invasão napoleônica - e com a abertura dos portos brasileiros.
Desta data até 1 834, quando se instaura o regime constitucional, o país sofre: a situação eco­
nômica atinge níveis calamitosos e a situação política caracteriza-se por grande instabilidade.
A exploração inglesa, a invasão francesa, a revolução de 1 820 - que exigiu o retomo de
D. João V I - e a guerra civil de 1 828 a 1 8 34 entre os absolutistas e os liberais constituem os prin­
cipais fatos históricos do período, que culmina com o triunfo do liberalismo, por meio do
Movimento da Regeneração.
Assim, superadas as disputas entre os setembristas (a ala mais avançada do liberalismo) e os
cartistas (os mais conservadores), Portugal finalmente implanta uma política favorável à industria­
lização.
É precisamente ao longo desse contexto que o país conhece a Revolução Romântica.
Iniciado cronologicamente em 1 825, com a publicação do poema Camões - de Almeida
Garrett - e finalizado em 1 865, com uma polêmica denominada "Questão Coimbrã", a qual
marca o início do Realismo, o Romantismo português tem três gerações.
A primeira, que transcorreu nas décadas de 20 e 30 e que foi representada sobretudo por
Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Antônio Feliciano de Castilho, mantém uma ligação
ainda forte com o Arcadismo.
Na segunda geração, que dominou nas décadas de 40 e 50, os autores já se consideram
libertos da influência neoclássica, o que lhes permite realizar plenamente os ideais estéticos
românticos: a exaltação da subj etividade, da imaginação criadora, da liberdade de expressão.
Camilo Castelo Branco é o grande escritor dessa geração, denominada ultra-romântica ou "mal
do século".
A reação ao gosto clássico, o sentimentalismo exacerbado, a religiosidade, a rebeldia e o
inconformismo nas criticas sociais constituem os mais importantes traços estéticos deste criador.
Além das antológicas novelas passionais que o popularizaram (principalmente Amor de perdição
e Amor de salvação), inclusive por se confundirem com cenas vivenciadas em sua própria exis­
tência, Camilo Castelo Branco dedicou-se às novelas satíricas de costumes, entre as quais se des­
<(
o tacam A Queda de Um Anjo e Coração, Cabeça e . Escreveu também contos, poesia, teatro, criti­


z
ca literária, jornalismo, historiografia e "novelas de atualidade".

UJ
Este fato o coloca como autor português que melhor realiza a proposta romântica de democra­

� tizar a cultura, a literatura, levando-o, por isso e porque dependia financeiramente de sua obra, a
G uma proletarização literária, ou seja, uma impossibilidade de escrever romances de maior fôlego,
u
que eliminassem os atrativos folhetinescos e a retórica sentimental da grande maioria dos textos
<(
a: que produziu.
:::> Já na década de 1 860, quando os exageros ultra-românticos estão em vias de desaparecer, só

a: se conservando em autores menores, os melhores tratam de depurar o Romantismo, rejeitando a
UJ pieguice e buscando um lirismo simples, sincero e combinado com a observação da realidade e
1-
_J com alguns laivos de visão crítica a respeito dela: já há nestes aspectos traços do Realismo, razão
- pela qual denominamos "pré-realistas" os seus autores, dentre os quais se destacam João de Deus

26 na poesia e, na prosa, Júlio Dinis.


CAMILO CASTELO BRANCO
A verdade! Se ela éfeia, para que oferecê-la em painéis ao Os reparos são de quem tem o juízo no seu lugar, mas, pois
público? A verdade do coração humano!Se o coração humano que eu perdi o meu a estudar a verdade, já agora a
temfilamentos deferro que o prendem ao barro donde saiu, ou desforra que tenho épintá-la como ela é, feia e repugnante.
pesam nele e o submergem no charco da culpaprimitiva, para A desgraça afervora ou quebranta o amor?
que emergi-lo, retratá-lo e pô-lo à venda? Isto é que eu submeto à decisão do leitor inteligente. Fatos e
não teses é o que trago para aqui. Opintor retrata uns olhos, e
não explica asfunções óticas do aparelho visual.

AMOR DE PERDIÇAO
A mais típica e mais popular novela
ilha bastardo e órfão desde criança,
passional do ultra-romantismo português. F Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1 825-
1 890) pode ser considerado, como homem e
como escritor, uma personalidade
Folheando os livros de antigos assentamentos no cartório das cadeias da Relação tipicamente ultra-romântica, isto é, de
do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, o seguinte: temperamento apaixonado e inconformista.
Em outras palavras, podemos identificá-lo
"Simão Antônio Botelho, quem assim disse chamar-se, ser solteiro e estudante na pela contradição, nunca superada ao longo
Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua de sua vida e sua obra, entre materialismo e
prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos (...). Foi para a Índia em 1 7 de março idealismo, entre a verdade "feia e
repugnante" da realidade e a necessidade de
de 1907. " romanceá-la, de transfigurá-la literariamente
Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o degredo para oferecê-la ao público leitor.
de um moço de dezoito anos lhe há de fazer dó (. . .) . Um dos motivos que podem explicar e
exemplificar esta dualidade, esta contradição,
O leitor decerto se compungia; e a leitora, se lhe dissessem em menos de uma linha a é a mistura entre realidade e romance, no
história daqueles dezoito anos, choraria! sentido romântico da palavra, que caracteriza
Amou, perdeu-se e morreu amando. a própria vida de Camilo: aos dezesseis anos,
casa-se com a aldeã Joaquina Pereira. de
quinze, de quem logo se separa para cursar,
Camilo Castelo Branco no Porto, a Escola Médica e a Academia
Amor de perdição Politécnica. Abandona a ambas e amplia
nesta cidade sua experiência mundana e
literária. A sucessão de amantes, de duelos.
de prisões, de escândalos passionais aos
Narrador olhos da burguesia do Porto culmina na mais
duradoura de suas paixões: Ana Plácido,
Escrita em terceira pessoa, esta obra caracteriza-se por um narrador onisciente, isto esposa do brasileiro Pinheiro Alves.
é, um narrador que desvenda o universo interior dos personagens, sabendo mais do que Iniciado em 1 850, o relacionamento entre
eles próprios o que lhes passa pela mente e pelo coração. Um exemplo significativo da Ana e Camilo é assumido pelos amantes em
1855, quando começam a ser perseguidos.
onisciência do narrador pode ser encontrado no capítulo 4, quando através da voz do
Fogem para esconderijos sucessivos,
narrador podemos perceber que Simão Botelho, protagonista da história, debate-se entre entregando-se o escritor à justiça em 1 861 .
o amor e a honra: Passa, então, 348 dias na cadeia da Relação
do Porto, onde escreve quatro obras, sendo
O acadêmico, chegando ao período das ameaças, já não tinha clara luz nos uma delas Amor de perdição Soltos e
absolvidos, Camilo e Ana se casam,
olhos para decifrar o instante da carta. Tremia sezões, e as artérias frontais
continuando, entretanto. o caráter novelesco
aifavam-lhe intumescidas. Não era sobressalto do coração apaixonado; era a índo­ da vida do autor.
le arrogante que lhe escaldava o sangue. . . Em 1 863 passa a residir em São Miguel de o
Seide, onde escreve quatro obras, inclusive u
Amor de salvação. Volta ao Porto por algum
z
O tipo onisciência deste narrador pode ser classificado como onisciência intrusa, <(
tempo, mas em 1 866 retorna a Seide, num 0:::
OJ
na medida em que ele não só revela mas também comenta os sentimentos e comporta­
estado de saúde debilitado e que se agrava
mentos dos personagens, deixando claro o seu ponto de vista a favor dos que amam e em 1 867. Mesmo assim, a produção literária o
contra os que impedem a realização do amor por apego à honra e/ou a preconceitos continua: surgem oito novas histórias, ...J
morais e sociais. ressaltando-se A Queda de um Anjo. UJ
Atormentado pela debilidade física (em 1 887
r
Relendo o fragmento da introdução do romance, que citamos, você pode perceber a (/)
sua cegueira é quase completa) e pelas <(
parcialidade do narrador e, ainda, a sua preocupação, essencialmente romântica, de dar dificuldades financeiras, Camilo leiloa sua u
verossimilhança à história, quer dizer, de aproximá-la da verdade, através da ênfase ao biblioteca, de cerca de 5.000 volumes. o
seu caráter documental, biográfico e, portanto, real. Enfim, no dia 1° de junho de 1 890, decide ...J
Outro comentário sobre o narrador refere-se às críticas que faz ao Realismo, con­ terminar com sua própria vida, suicidando-se �
com um tiro no ouvido direito e assim mais <(
fundindo-se nestes momentos com o próprio autor, em sua resistência em aceitar este
uma vez mantendo o elo entre a própria u
novo estilo literário, com o qual conviveu e dialogou no final da carreira. Eis a frase que existência e o tipo de produção -
melhor exemplifica este procedimento: O pintor retrata uns olhos, e não explica as fun- literária a que se dedicou. D
21
ç?es óticas do aparelho visual (cap. 1 9) - crítica irônica ao racionalismo, à dissecação cientifi­
Clsta do caráter humano, pretendida pelos escritores do Realismo-Naturalismo.
Quanto à ironia, encontramos passagens que chegam às raias da caricatura, quando o narrador
descreve a decadência do convento como instituição social. O convento de Viseu aparece, assim, no
cap. 8, como verdadeiro antro de prostituição, de degradação humana, de bisbilhotagens e de vícios.

Este edificante discurso de caridade foi interrompido pela madre escrivã, que vinha, pali­
tando os dentes, pedir à prelada um copinho de certo vinho estomacal com que todas as noi­
tes era brindada (. . ). Não delongaremos esta amostra do evangélico e exemplar viver do con­
vento onde Tadeu de Albuquerque mandara sua filha a respirar o puríssimo ar dos anjos,
enquanto se lhe preparava crisol mais depurador dos sedimentos do vício no convento de
Monchique.
Encheu-se o coração de Teresa de amargura e nojo naquelas duas horas de vida conventual.

Eruedo
Dividido em vinte capítulos, mais a introdução e a conclusão, o livro Amor de perdição segue
uma sucessão temporal rigidamente cronológica.

Comentário geral sobre o enredo

. A síntese das principais ações que ocorrem em Amor de perdição mostra a presença de ingre­
dientes romanescos de que Camilo invariavelmente se utiliza, em suas novelas passionais:
O amor irrealizado e alimentado à distância - lembre-se das cartas trocadas entre Simão
e Teresa, que mantêm o clima passional da história.
A proibição da sociedade à realização do senti­
Dois quartos da novela constam de uma lenta nm­ mento amoroso - as rixas entre as famílias de Simão e
ração sobre o namoro entre Simão Botelho e Teresa de Teresa são o motivo da proibição na história, neste sen­
Albuquerque, a separação do casal por rixas familia­ tido uma versão portuguesa de Romeu e Julieta, obra
res, a obstinação de Teresa mcmtendo-se fiel a Simão, dramática de Shakespeare, autor inglês do século XVI,
não cedendo à insistência do pai, Tadeu de redescoberto pelos românticos.
Albuquerque, em casá-la com o fidalgo Baltasm O final trágico dos protagonistas (o convento, a
Coutinho. Por outro lado, Simão, que não conta com o loucura e/ou a morte), cujas atitudes são extremamente
apoio de sua própria família, mcmtém-se escondido na passionais, de um sentimentalismo radical, obsessivo,
casa de João da Cruz, um ferrador. Contcmdo com a suicida - ultra-romântico, como veremos discutindo os
cumplicidade do ferrador e da filha Mcrricma, o jovem personagens.
está a salvo. Mmicma apaixona-se pelo hóspede e o
auxilia de todas as formas, no sentido de que se comu­ Personagens
nique com a amada Teresa. Protagonistas
O capítulo 1 O pode ser considerado o clímax da nm­
rativa: é qucmdo se dá a morte de Baltasm Coutinho. Simão Botelho, Teresa de Albuquerque e Mariana
Simão tentma se encontrm com Teresa, qucmdo da podem ser considerados os protagonistas da história se
mudcmça do convento de Viseu para Monchíque. Bal­ nela privilegiarmos a dimensão amorosa, isto é, o senti­
tasm provoca-o e Simão atira e o mata. Assim, os acon­ mento da paixão, ao qual se opõe o mundo exterior, a
tecimentos se precipitam. Os outros dois quartos da sociedade, voltada para a "falsa virtude dos homens, fei­
novela, ou seja, do capítulo 1 1 em dicmte, preparam o tos bárbaros em nome de sua honra". Os representantes
desenlace trágico. deste mundo, na medida em que tudo fazem para impe­
dir a consumação do amor, podem ser considerados os
Simão é preso na cadeia da Relação, no Porto.
Teresa é mcmtida enclausurado, no convento de Mon­ antagonistas da obra.
chíque, também no Porto. Julgado e condenado à Simão Botelho é o terceiro filho de um corregedor,
<(
Cl Domingos Botelho, e de uma dona do Paço, D. Rita Pre­
morte na forca, Simão passa os dias em desespero, ten­
j:! do ao lado a fiel compcmhía de Mcrricma.
ciosa. Inicialmente nos é apresentado como um jovem de
temperamento sanguinário e violento. Perturbador da
z Domingos Botelho, pai de Simão e corregedor, nega­
w ordem para defender a plebe com quem convive e agita­
se a auxílim o filho e só o faz tardiamente, qucmdo
� dor na faculdade, onde luta de forma brutal pelas idéias
() então c9nsegue comutação da pena e um degredo
(.)
j acobinistas (aquelas do período mais radical da
para as Indias. O final trágico dá-se qucmdo da partida
Revolução Francesa, o período do Terror e da Guilhotina),
<( de Simão para o exílio. Teresa assiste do mircmte do
0::: o seu caráter se transforma, e repentinamente, a partir da
convento à passagem do navio que leva o seu amado ,
::J capítulo 2. E que conhecera e amara, durante os três
e vem a falecer. Simão, não resistindo à dor de perder

0::: a amada, também morre no navio. Mcrricma suicida-se,
meses em que esteve em Viseu, a vizinha Teresa.
Ele com dezessete anos, ela com quinze, passam a
w abraçada ao cadáver do jovem, já lcmçado ao mar.
1- viver desde então o amor romântico: um amor que redi­
::::i .me os erros, que modifica as personalidades, que tem na
-
Samira Youssef Campedelli - Morrer de amor. em
pureza de intenções e na honestidade de princípios as
Amor de perdição - Carnilo Castelo Branco
suas principais virtudes.
28
Aliás, são as virtudes que caracterizam os sentimentos de Simão, desde que experimenta este
amor. Toma-se recatado, estudioso e até religioso, o que não o impede de sentir uma sede incon­
trolável de vingança, que resulta no assassinato do rival Baltasar Coutinho. Esse ato exemplifica
a proximidade entre "o sentimento moral do crime" ou "o sentimento religioso do pecado" e a ten­
tativa de consumação do amor.
O modo como assume este crime, recusando-se a aceitar todas as tentativas de escamoteá-lo,
feitas pelos amigos de seu pai, acaba de configurar o caráter passional do comportamento de
Simão. Nem a possibilidade da forca e do degredo, nem as misérias sofridas no cárcere conseguem
abater a firmeza, a dignidade, a obstinação que transformam Simão Botelho em símbolo heróico
da resistência do indivíduo perante as vilezas da sociedade. Trata-se de um típico herói ultra­
romântico, em outras palavras.
Teresa de Albuquerque, menina de quinze anos que se apaixona por Simão, também vai
adquirindo densidade heróica ao longo da obra: firme e resoluta em seu amor, ela mantém-se infle­
xível perante os pedidos, as ameaças e finalmente as atrocidades e violências cometidas pelo pai
severo e autoritário, seja para casá-la com o primo, seja para transformá-la em freira.
Neste sentido, a obstinação que a caracteriza é a mesma presente em Simão, com a diferença
de que nela o heroísmo consiste não em agir, mas em reagir. Isto por pertencer ao sexo feminino,
símbolo da fragilidade e da passividade perante o caráter viril, másculo, quase selvagem do
homem romântico.
Na medida em que não faz o jogo do pai, dando a vida pelo sentimento que a possui, Teresa
constitui uma heroína romântica típica, um exemplo da imagem da mulher-anjo que vigorou no
Romantismo.
Mariana, moça pobre e do campo, de olhos tristes e belos, tem sido considerada, algumas
vezes, como a personagem mais romântica da história, porque o sentir a satisfaz, sem necessi­
dade ao menos da esperança de concretizar-se o seu amor por Simão.
Independentemente do amor entre Simão e Teresa, Mariana o ama e tudo faz por ele: cuida de
suas feridas, arruma-lhe dinheiro, é cúmplice da paixão proibida, abandona o pai para fazer-lhe
companhia e prestar-lhe serviços na prisão e, finalmente, suicida-se após a morte de Simão.
Estas atitudes abnegadas, resignadas e totalmente desvinculadas de reciprocidade, fazem de
Mariana uma personificação do espírito de sacrificio, o que toma a sua dimensão humana abstra­
ta, pouco palpável.

Antagonistas

Domingos Botelho, o pai de Simão e Tadeu de Albuquerque, o pai de Teresa, são tão pas­
sionais, tão radicais em seu comportamento, quanto Simão e Teresa.
Entretanto, ambos podem ser considerados simetricamente o oposto dos heróis, na medida em
que representam a hipocrisia social, o apego egoísta e tirano à honra do sobrenome, aos brasões
cuja fidalguia é ironicamente ridicularizada, desmoralizada pelo narrador.
Baltasar Coutinho, o primo de Teresa assassinado por Simão, acrescenta à vilania do tio, de
quem se faz cúmplice, a dissimulação, o moralismo hipócrita e oportunista de um libertino de trin­
ta anos, que covardemente encomenda a criados a morte de Simão . . . Em suma, nele se concentram
toda a perversidade, toda a prepotência dos fidalgos. Tal personagem constitui, sem nenhuma
dúvida, o vilão da história.

Secundários
o
João da Cruz, o pai de Mariana, destaca-se como o personagem mais sensato, mais equilibra­ u
do, o único personagem que possui traços realistas, de Amor de perdição. Ferreiro e transforma­ z
<(
do em assassino numa briga, João da Cruz consegue de Domingos Botelho, pai de Simão, a liber­ a:
dade. Em nome dessa dívida de gratidão, toma-se protetor do herói com palavras sempre oportu­ aJ
nas, lúcidas, estratégicas, e com atos corajosos e violentos, quando necessário. A sua linguagem o
.....1
cheia de provérbios e de ditados populares, a simplicidade de sua vida, somadas ao amor que dedi­ w

ca à filha, por quem vive, desfazem aos olhos do leitor os crimes que comete e os substituem por C/)
uma honradez, uma bondade inata, forte e viril, que nos parecem representativas da visão do autor <(
u
a respeito das camadas rurais em Portugal. o
Como João da Cruz e a mendiga, personagem que miraculosamente consegue entregar cartas .....1
estratégicas, bem ao gosto do Romantismo, os personagens secundários subordinam-se em Amor �
de perdição à necessidade de enfatizar os momentos dramáticos vividos pelos protagonistas.
<(
u
Entretanto, a tensão dramática que percorre o texto concentra-se na polarização maniqueís­ -
ta, isto é, que separa rigidamente o bem do mal, representada por protagonistas e antagonistas: de : 29
um lado os "mártires do amor", os penitentes da "religião do amor", que se torna um laço sagra­
do pertencente a um espaço extraterreno, e de outro os defensores de uma sociedade cruel, irredu­
tível em seus interesses grosseiros, inconciliável com a busca individual de felicidade.

Tempo/espaço
Inicialmente, o texto rememora em rápidas passagens a vida de Domingos Botelho, pai de
Simão, entre o final do século XVIII e o início do século XIX. Mas a época que ocupa as princi­
pais páginas desse livro, o período em que Teresa e Simão vivem o seu intempestivo amor, situa­
se entre 1 803 e 1 807. Ao se conhecerem, Simão completava dezessete anos, e sua amada era uma
moça nos seus quinze anos de idade.
A narrativa transcorre principalmente em Viseu, cidade para onde o pai de Simão, magistra­
do público, foi nomeado. Há algumas referências a Coimbra, onde estuda Simão, e a Lisboa. O
desfecho do romance acontece na cidade do Porto, local da prisão de Simão e de sua partida para
o exílio, e também do convento onde Teresa permanece enclausurada.
Na cidade do Porto, em 1 807, passa-se uma das cenas de maior dramaticidade desse roman­
ce. Teresa, enclausurada no convento de Monchique, observa a partida do navio que leva Simão
para o exílio nas Índias. Trocam acenos à distância, e sabem que nunca mais irão se ver.

Linguagem
No prefácio à segunda edição desta novela, Camilo atribui o seu sucesso, dentre outras razões,
"à rapidez das peripécias, à derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo, à
ausência de divagações filosóficas, à lhaneza (franqueza, sinceridade, lisura) da linguagem e
desartificio das locuções".
Veja a opinião de Antônio José Saraiva e Óscar Lopes, que em História da literatura portu­
guesa escrevem:

Nas condições do gosto nacional da época, salientemos sobretudo as qualidades positivas dos
melhores espécimes desta novela, sobretudo o Amor de perdição: uma grandeza trágica de pai­
xões e situações; uma narração densa e rápida das ações decisivas; caracteres psicológicos
secundários inteiramente subordinados às necessidades de dignificação do conflito central,
mas por vezes realistas e enérgicos, sobretudo quando extraídos do meio popular Uoão da Cruz,
Mariana, por ex.); diálogo geralmente eivado de retórica sentimental, mas por vezes de grande
nobreza trágica nos personagens principais, e extraordinariamente vivo, colorido, incisivo nos
tipos populares.

Vamos, agora, ler um trecho de Amor de perdição, a fim de observarmos a sua linguagem,
além de outros elementos narrativos que estudamos.
Às dez horas e meia daquele dia, três vultos convergiam para o local, raro freqüentado, em
que se abria a porta do quintal de Tadeu de Albuquerque. Ali se detiveram alguns minutos
discutindo e gesticulando. Dos três vultos havia um, cujas palavras eram ouvidas em silêncio
e sem réplica pelos outros. Dizia ele a um dos outros:
- Não convém que estejas perto desta porta. Se o homem aparecesse morto, as suspeitas
caíam logo sobre mim ou meu tio. Afastem-se vocês um do outro e tenham o ouvido aplicado
<(
o ao tropel do cavalo. Depois apressem o passo até o encontrarem, de modo que os tiros sejam

z
� dados longe daqui.
- Mas. . . - atalhou um - quem nos diz que ele veio ontem a cavalo e hoje vem a pé?
w - É verdade! - acrescentou o outro.
:E - Se ele vier a pé, eu lhes darei aviso para o seguirem depois, até o terem a jeito de tiro,
o mas longe daqui, percebem vocês? - disse Baltasar Coutinho.
u - Sim, senhor; mas se ele sai da casa do pai, e entra sem nos dar tempo?
<( - Tenho a certeza de que não está em casa do pai, já lho disse. Basta de palavreado. Vão
a:
::> esconder-se atrás da igreja e não adormeçam.

�a: Debandou o grupo, e Baltasar ficou alguns momentos encostado ao muro. Soaram os três
quartos depois das dez. O de Castro-Da ire colou o ouvido à porta, e retirou-se aceleradamen­
w te ouvindo o rumor da folhagem seca que Teresa vinha pisando.
1-
_. (cap. 6)
.......

30
VoVEsTõEs
11
Embora se trate de uma obra u ltra-romântica, há a fim de que as senhoras a possam ler nas salas,
características realistas em Amor de perdição. Do em presença de suas filhas ou de suas mães, e
ponto de vista do foco na rrativo, quais são estas não precisem de esconder-se com o livro no seu
características e como podemos percebê-las 7 quarto de banho. Dizem, porém, que o Amor de
perdição fez chorar. Mau foi isso. Mas agora,
Quais são os personagens que amam e q uais os como indemnização, faz rir: tornou-se cómico
que impedem a realização do amor, em Amor de pela seriedade antiga (. . . ). E por isso mesmo se
Perdição? reimprime. O bom senso público relê isto, com­
para com aquilo, e vinga-se barrufando * com
Acusado de assassinar Ba ltasar Coutinho, qual a frouxos de riso realista as páginas que há dez
atitude tomada por Simão em relação ao crime? anos aijofarava * * com lágrimas românticas.
Em termos românticos, o que esse comporta­ Como você pode notar, o autor faz referência a
mento demonstra do caráter do protagonista ? duas escolas literárias para explicar como Amor
de perdição produziria no público leitor, por oca­
Pode-se notar alguma diferença q uanto ao a mor sião de sua reim pressão, uma reação completa­
de Mariana e o de Teresa e m relação a Simão? mente diferente daquela produzida ao ser publi­
Qual o perfil traçado dessas personagens a partir cado pela primeira vez. Considerando tal afirma­
de seu sentimento? ção:
a) Cite um episódio do romance que poderia
( U N ICAMP) No prefácio da q u i nta edição portu­ provoca r lágrimas nos l eitores da primeira edi­
guesa do romance Amor de perdição, Camilo ção e ataques de " riso realista" nos leitores
Castelo Branco afirmava ironicamente: da qui nta edição.
Eu não cessarei de dizer mal desta novela que b) Como se explica uma reação tão diferente por
tem a boçal inocência de não devassar alcovas, parte dos leitores dessas duas edições?

* barrufando: variante de borrifando.


* * aljofarava: orvalhada.

v RESPOSTAS PO�SÍVEIS

11
Do ponto de vista do foco na rrativo, ou da postu­ amor. Revela-se íntegra e forte ao enfrentar todas
ra do narrador perante a história, os elementos as barre i ras sociais pelo amor por S i mão.
realistas de Amor de perdição estão na crítica às J á Mariana amava Simão e sabia que o rapaz
instituições relig iosas, os conventos, e n o com­ não a amava, que nutria por ela uma ternura fra­
portamento não passional de alguns personagens tern a l . Ainda assim, Mariana tudo fez por Simão,
secundários, como João da Cruz. Podemos perce­ procurou ajudá-lo, pois tinha conheci mento de
ber estes ele me ntos nas passagens da obra em q ue ele só seria feliz ao lado de Teresa . Mesmo
que o narrador denuncia a corrupção do convento impossível, seu amor resiste a tudo, tornando-se
de Viseu e enfatiza a lealdade, o senso prático, a Mariana um exemplo de abnegação e de des­
sensatez de João da Cruz, opondo-se assim ao prendimento .
passionalismo predomina nte no romance.
a) O episódio do romance m a i s representativo n o
Os personagens que amam são Simão Botelho, sentido de provocar l á g r i m a s nos leitores
fJ Teresa de Albuquerque e Mariana; os que impe­
dem a realização do a m o r são Tadeu de
românticos e risos nos l e itores real istas ocorre
no seu desfecho, quando o tema da " morte
Albuquerque, D o m i n g o s Botelho e B a ltasa r por amor" atinge o c l í max: Teresa morre no
Coutinho. As semelha nças de comportamento convento, ao sentir i rreversível a perda de
predominam e m relação às diferenças nestes Simão, o qual, por sua vez, é tomado de uma
personagens, já que tanto os apaixonados quanto febre fatal, no navio que o levaria para longe da
os que se opõem à consumação deste sentimen­ amada, qua ndo fica sabendo d e sua morte. J á
to agem de forma absol utamente passional, Mariana, apaixonada p o r Simão, ati ra-se ao
caracterizando o U ltra-Romantismo de Amor de mar aga rrada ao seu corpo, s u icidando-se.
perdição. b) Enquanto os leitores do U l tra-Romantismo o
estão i m buídos dos grandes temas explorados u
Simão confessa a a utoria do crime e entrega-se. por esse estilo literário - a i ncompatibilidade z
<(
0:::
Negar u m crime que cometera em defesa de sua entre os sentimentos e as obrigações sociais,
h o n ra e d e seu amor sign ificaria denegrir-se, avil­ a visão do amor como algo absoluto, como l'll
tar-se, subjugar-se frente à vilania e crueza da uma " religião " , e conseqüentemente o caráter
o
sociedade, representada pelo mau-caratismo de épico e ao mesmo tempo trágico da " mo rte __J
w

Baltasar Coutinho. Assumindo a culpa, arriscando por amor" - os leitores do Realismo já os
a própria vida e m nome desse amor, Simão vêem ironicamente, devido ao desgaste do (/)
demonstra toda a passional idade de seu caráter e sentimenta l ismo romântico, o qual é substituí­ <(
a integridade de seu sentimento, o que acentua o do pelo racionalismo realista. Daí a consciência u
traço u ltra-romântico do personagem. de Camilo Castelo Branco da distância entre os o
seus leitores da 1 ª edição de Amor de perdi­ __J
Teresa amava Simão e sabia que este também a ção, leitores essencial mente românticos, e os �
amava. A heroína enfrentou seu pai, o primo seus leitores da 5ª edição da mesma obra, lei­ <(
Baltasar Coutinho, o convento, tudo em nome tores já contagiados pelas propostas a nti­ u
desse amor. Teresa q ueria ser a m u l her de românticas do estilo realista. -
Simão, estar sempre com ele, desfrutar esse
31
I o ROMANTISMO NO BRASIL
Os anos de 1 822 e 1 836 são os marcos respectivamente histórico e literário do primeiro movi­
mento coletivo de busca de identidade nacional em nosso país. Tanto o "grito do lpiranga" quan­
to a publicação de Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, constituem momen­
tos muito significativos na tentativa de superarmos a fase colonial, seja na subserviência econômi­
ca e política aos interesses da Coroa Portuguesa, sej a na submissão a uma cultura "de emprésti­
mo", vinda da Metrópole e desfiguradora das raízes nacionais.
Com a Independência e o Romantismo começam a mudar os rumos de nossa inteligência,
em direção a uma vitalização, como diz Antônio Cândido.
Os suportes de tais mudanças, no plano econômico e político, são as transformações sócio­
econômicas e culturais desencadeadas pela vinda da Família Real para o Brasil, em 1 808, dentre
as quais salientamos a urbanização do Rio de Janeiro, que se tomou a nova capital do país, e a
extinção do tráfico de escravos.
Apesar das contradições advindas do poder agrário, dos latifundios, da economia de exporta­
ção alicerçada no escravismo, o empenho de promover o desenvolvimento material que nos pos­
sibilitasse seguir rumo ao progresso, à civilização, é tão forte neste momento quanto a necessida­
de de nacionalizar a cultura brasileira.
A esta necessidade correspondem o espírito e o estilo românticos, fundamentalmente ligados
à ideologia liberal da Revolução Francesa ( 1 789) e comprometidos com uma "revolução literária",
contra as regras clássicas e pela liberdade de expressão.
Assim nasce o nosso Romantismo - o primeiro movimento literário no Brasil totalmente vol­
tado para o Brasil - embora inspirado, na maioria de seus autores, no exemplo europeu.
Daí a atualidade do movimento dialético entre o cosmopolitismo e o localismo mencionado
por Antônio Cândido. Daí a importância do movimento romântico como inaugürador da busca
de identidade nacional, do sentimento coletivo da pátria, que se desenvolve através da adequa­
ção das matrizes culturais metropolitanas - e a França foi o nosso modelo no século XIX - às
nuances da "cor local". O nacionalismo constitui a "bandeira" pela qual lutaram incessantemente
os nossos primeiros escritores românticos, sej a idealizando os elementos de "cor local" como José
de Alencar, seja rejeitando os modelos literários europeus, como Manuel Antônio de Almeida,
cuja obra - Memórias de um sargento de milícias - constitui rara exceção no contexto do nosso
Romantismo.

<(
o

z
Se tosse possível estabelecer uma lei de evolução da nossa vida espiritual, poderíamos
talvez dizer que toda ela se rege pela dialética do localismo e do cosmopolitismo, mcmi­
w testada pelos modos mais diversos. Ora a afirmação premeditada e por vezes violenta
� do nacionalismo literário, com veleidades de criar até uma língua diversa; ora o decla­
o rado conformismo, a imitação consciente dos padrões europeus (. . . ). Na literatura brasi­
u leira, há dois momentos decisivos que mudam os rumos e vitalizam toda a inteligência:
o Romantismo, no século XIX (1 836- 1 8 70), e o ainda chamado Modernismo, no presen­
<(
0::
::J te século ( 1 922- 1 945). Ambos apresentam fases culminantes de particularismo literário
!;i:0:: na dialética do local e do cosmopolita, ambos se inspiram, não obstante, no exemplo
europeu.
w
1-
_J
.......
Antônio Cândido
literatura e sociedade
32
,

JOSE DE ALENCAR
(. . .) a infância de nossa literatura, começada com a independência política,
ainda não terminou; espera escritores que lhe dêem os últimos traços e
formem o verdadeiro gosto nacional, jazendo calarem as pretensões, hoje tão acesas,

de nos recolonizarem pela alma e pelo coração, já que não o podem pelo braço.

IRACEMA
Exemplar mais perfeito da prosa poética na ficção romântica.

A literatura nacional, que outra coisa é senão a alma da pátria, que transmigrou
para este solo virgem com uma raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana
desta terra que lhe serviu de regaço; e cada dia se enriquece ao contacto de outros
povos e ao influxo da civilização?
(José de Alencar - Sonhos d 'Ouro)

Narrador
Em Iracema, obra escrita em terceira pessoa, temos um narrador-observador, isto
é, um narrador que caracteriza os personagens a partir do que pode observar de seus sen­
timentos e de seu comportamento.
Um exemplo deste tipo de narrador nos ajudará a conhecer o ponto de vista em que
se coloca para contar a história, o foco narrativo que escolhe para narrar:
O sentimento que ele (Martim) pôs nos olhos e no rosto não o sei eu. Porém a
virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da
mágoa que causara (cap. II) .
No trecho acima, Martim, o guerreiro branco, defronta-se em plena floresta com
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que acabara de flechá-lo. O narrador, contando o
fato, assume a primeira pessoa ao colocar em dúvida o sentimento de Martim diante do
ocorrido. Conserva-se porém na terceira pessoa ao referir-se a Iracema, dizendo apenas
que ela ficou sentida pela mágoa que causara a Martim.
Neste episódio podemos perceber que o narrador conta a história do encontro entre
o índio e o branco � tema desta obra � do ponto de vista de Iracema, privilegiando os
sentimentos dela e não os de Martim, que representa o colonizador português.
Por isso, o título do livro � Iracema � assim como o início (cap. 11) e o final do
enredo (cap. XXXIII) centralizam-se em Iracema, protagonista do romance.
Entretanto, isto não significa que a história sej a contada exclusivamente do ponto
de vista do índio, o que compreendemos principalmente pela proximidade entre os sen­
timentos e comportamentos de Iracema e os sentimentos e comportamentos das heroí­
nas românticas do romantismo europeu.
Exemplo 1 : De primeiro ímpeto, a mão !esta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sor­
riu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é osé de Alencar (1829-1 877) é o principal
símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d 'alma que da ferida (cap. li). J escritor romântico brasileiro. empenhado
num projeto de nacionalização da literatura
Exemplo 2: A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que
brasileira. Nascido em Mecejana, interior do
gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao des­ Ceará, ex-padre, foi deputado e Ministro da 0::
conhecido, guardando consigo a ponta farpada (cap. li). Justiça. Chamado de O Patriarca do Romance <(
u
No exemplo 1 , observamos predominar na reação de Martim perante a agressão de Brasileiro, José de Alencar, através deste z
w
_J
Iracema não a atitude de defesa de um branco em perigo diante de um selvagem, mas a gênero literário. incorporou como nenhum
atitude de um homem magoado � sofreu mais d 'alma que da ferida � diante da mu­ outro escritor a missão de "redescobrir <(
lher, símbolo de ternura e amor. culturalmente o Brasil", inclusive tentando w
No exemplo 2, a mesma mão que fere estanca mais rápida e compassiva o sangue criar uma "língua brasileira". o
Para isso. escreveu romances históricos, ·w
que gotejava. Aqui Iracema, ao mesmo tempo, comporta-se como indígena a mão
regionalistas, urbanos - como Senhora ­ CJ)

que rápida ferira � e como mulher, aquela que estanca a ferida. o


e, finalmente. romances indianistas, como ....,
Os exemplos apresentados mostram a adequação entre os elementos da "cor local", O Guarani e Iracema.
-
que conforme veremos caracterizam fisicamente a protagonista através de aspectos da o
: 33
natureza brasileira, e os elementos do romantismo europeu, de acordo com os quais Iracema se
aproxima da concepção romântica européia da mulher - a mulher-anjo, virgem, delicada, bela -,
que se sacrifica pelo homem por quem se apaixona, Martim.
Assim, embora privilegie os sentimentos e comportamentos de Iracema - representação idea­
lizada do índio - o ponto de vista do narrador recai sobre o branco, o colonizador.
Já o cap. I do livro constitui uma apresentação da história que vai ser contada anunciando,
através de uma cena que pertence ao final, o seu caráter de verdadeiro hino à nacionalidade, a sua
essência patriótica:

Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaú­
ba (. . ) .
.

Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando
as alvaspraias ensombradas de coqueiros (. ) . . .

Onde vai a afouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fluxo terra! a
grande vela? (. .)
.

Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora.
Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança e um
rafeiro que viram a luz no berço dasflorestas, e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra
selvagem (. . .).
Que deixara ele na terra do exílio?
Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à calada da noite, quando
a lua passeava no céu argenteando os campos, e a brisa rugitava nos palmares.

Observe o ritmo, a musicalidade destas frases, que fizeram com que José de Alencar fosse cha­
mado "o poeta do romance" ... Observe, também,a intensidade lírica da descrição, que romantiza a
natureza tropical brasileira e a ela associa a verossimilhança da narrativa: uma hístória que me
contaram...
Neste capítulo há, assim, a proposição, a revelação em tom épico do tema de uma obra que
incorpora de forma exemplar o mecanismo encontrado por José de Alencar de construção do mito da
pátria através da adequação dos elementos da "cor local" - a natureza, o índio, idealizados ufanis­
ticamente - aos elementos do romantismo europeu - a construção do emedo e dos personagens.

Enredo
No capítulo 11 é que se inicia o emedo. Martim Soares Moreno, personagem histórico respon­
sável pela colonização do ceará, em 1 603, encontra-se com Iracema, filha do pajé Araquém, da
tribo dos Tabajaras, os senhores das montanhas.
Neste encontro, ocorre o episódio da flechada atrás referido, seguindo-se a ele a permissão de
Iracema para que Martim visite a tribo.
O visitante, por quem Iracema se apaixonara, encontra em Irapuã (Mel Redondo), o chefe da
tribo, um rival. Um duelo entre ambos é interrompido pelo grito de guerra dos Pitiguaras, os
senhores do litoral, liderados por Poti (Antônio Felipe Camarão, personagem histórico real), amigo
de Martim.
Nas entranhas da terra, magicamente abertas por Araquém, Iracema esconde-se com Martim
e toma-se sua esposa, traindo o compromisso de virgem vestal, sacerdotisa da tribo e portadora do
segredo da Jurema, o segredo da fertilidade dos Tabajaras.
Durante o sono da tribo, propiciado por Iracema que a leva ao bosque da Jurema, onde os
guerreiros podem sonhar vitórias futuras, há o reencontro entre Martim e Poti, que fogem guiados
<( por Iracema. Ela não revela a Martim que houve entre ambos o himeneu (casamento), enquanto o
o jovem iniciava-se nos mistérios da Jurema, só o fazendo posteriormente à fuga.

z
Irapuã encontra os fugitivos, trava-se um combate entre os Tabajaras e os melhores Pitiguaras,
w conduzidos por Jacaúva, irmão de Poti. Nesse combate Iracema pede a Martim que não mate Caubi
� (o Senhor dos Caminhos), seu irmão, e por duas vezes salva a vida do estrangeiro. Os Tabajaras
o debandam, deixando Iracema triste e envergonhada.
u Os três chegam então ao território Pitiguara, de onde viajam para visitar Batuirité, avô de Poti,
<(
a: o qual denomina Martim Gavião Branco, fazendo, antes de morrer, a profecia da destruição de
:J seu povo pelos brancos.

a:
Iracema engravida e, acompanhada de Poti, pinta o corpo de Martim, que passa a ser Coatiabo,
o guerreiro pintado, que às vezes tem momentos de grande melancolia, com saudades da pátria.
w Um mensageiro Pitiguara leva a Poti um recado de Jacaúna contando sobre a aliança entre os
1-
:J franceses e os Tabajaras, Poti e Martim partem para a guerra; Iracema fica no litoral, em compa­
...... nhia de uma seta envolvida em um galho de Maracujá (a lembrança). Triste, recebe a visita de
34 Jandaia, antiga companheira, e torna-se mecejana (a abandonada), como ela.
Martim e Poti voltam vitoriosos; Martim sente maiores saudades da pátria; Iracema profetiza
a própria morte, que ocorrerá em seguida ao nascimento do filho.
Novo combate, nova vitória dos Pitiguaras; nasce Moacir, o filho do sofrimento de Iracema,
que recebe a visita de Caubi, seu irmão, quando o leite já está secando e as forças acabando.
Mal chega Martim, morre Iracema, após entregar-lhe o filho e pedir que fosse sepultada sob
o coqueiro que o esposo amava. Nesse lugar nasce o Ceará, colonizado por Martim, logo que volta
de Portugal, para onde levara o filho, mas onde não conseguira permanecer, como o narrador suge­
re no primeiro capítulo do livro.

Pelo enredo podemos concluir que Iracema é um livro no qual há um argumento histórico,
a colonização do Ceará, com personagens também históricos: Martim Soares Moreno, o coloniza­
dor português que se aliou aos índios Pitiguaras, através de Poti, Antônio Felipe Camarão.
Vê-se também pela forma como o enredo se desenvolve que José de Alencar romantizou, atra­
vés do amor entre Iracema e Martim, o processo de colonização do Brasil. Decorre de tal roman­
tização a suposta conciliação entre o branco e o índio, que de um lado escamoteia a violência, a
dominação, que caracterizam o processo de colonização, e de outro inaugura o mito heróico da
pátria, de natureza indianista - uma mentirada gentil que traduz a vontade profunda dos brasi­
leiros de perpetuar a convenção que dá a um país de mestiços o álibi duma raça heróica, e a uma
nação de história curta, a profundidade do tempo lendário. (Antônio Cândido - Formação da
literatura brasileira)

Personagens
Principais

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna,
e mais longos que seu talhe de palmeira, é um mito fundador da nacionalidade. Caracterizada por
elementos da "cor local" (principalmente nos traços fisicos) e por elementos do romantismo euro­
peu (principalmente nos traços psicológicos), Iracema concebe o primeiro brasileiro, Moacir, e da
terra sob a qual foi sepultada nasce o primeiro povoamento do Brasil, o Ceará. Portadora do
"segredo da Jurema", o segredo da fertilidade da tribo Tabaj ara, Iracema, virgem vestal, sacerdo­
tisa da tribo, trai o compromisso com o seu povo para se entregar ao homem branco. Neste ato de
amor e de dor, essencialmente romântico por privilegiar o sentimento em detrimento de oposições
sociais, funda a nacionalidade.
Martim, personagem histórico e literário, o viajante estrangeiro que tem nas faces o branco
das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas, representa o coloniza­
dor, o europeu civilizado cujo amor por Iracema, cuja amizade por Poti, o índio Pitiguara, trans­
formam em conciliação entre o branco e o índio o processo de colonização do Brasil.
Moacir, o filho do sofrimento de Iracema, a criança levada à Europa e trazida de volta ao
Ceará, representa, no livro, o primeiro brasileiro.

Secundários

De um lado temos Poti, personagem histórico e literário, o índio Pitiguara cuj a aliança com
os portugueses aparece no romance como amizade por Martim; Araquém, o feiticeiro da tribo
Tabaj ara, pai de Iracema; e Caubi, o "senhor dos caminhos", irmão de Iracema. E, de outro,
lrapuã, "Mel Redondo", chefe dos Tabajaras, único personagem que se opõe a Martim, mais
como um homem que ama e não é correspondido do que como um índio que pretende defender
seu povo da invasão branca; e Batuirité, o avô de Poti, cuja sabedoria, proporcionada pela
velhice, o faz denominar Martim Gavião Branco e assim profetizar a destruição dos índios a:
pelos brancos. t)z
UJ
Linguagem ....I

A presença de belas imagens visuais, a sonoridade, o ritmo, a cadência poética de Iracema w
o
aliam-se ao levantamento de termos, costumes e rituais indígenas como principais características ·w
da linguagem do livro. (/)
o
Um livro no qual salientamos o caráter épico e idealizador dos elementos da "cor local" - ....,
fundamentalmente o índio e a natureza - que aparecem por uma superposição de imagens e de -
comparações originais, adequadas à sugestão do nascimento de um novo mundo.
35
Para este novo mundo, Alencar queria criar uma nova língua, uma língua que repercutisse com
inteireza a sua dimensão heróica, lendária, poeticamente expressa em Iracema.
Em Formação da literatura brasileira, Antônio Cândido diz que Iracema, em 1 865, brota, no
limite da poesia, como o exemplar mais perfeito da prosa poética na ficção romântica - reali­
zando o ideal tão acariciado de integrar a expressão literária numa ordem mais plena de evoca­
ção plástica e musical. Música figurativa, ao gosto do tempo e do meio.
Vamos ler a caracterização inicial de Iracema, observando a beleza e a fecundidade das com­
parações com que a heroína e a natureza se fundem, numa redescoberta patriótica e ufanista das
"lindas várzeas" de onde brotou o romance:

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graú­
na e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como
o seu hálito peifumado.
Mais rápida que a ema selvap,em, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde
campeava sua guerreira tribo, da grande naçào tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, ali­
sava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas (. . .).
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol nào
deslumbra; sua vista perturba-se.
Diante dela e toda a contemplá-la, está o guerreiro estranho, se é guerreiro e nào algum
mau espírito da .floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar, nos olhos o
azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
(cap. II)

O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará, levando
no frágil barco o filho e o cão fiel. A jandaia não quis deixar a terra onde repousava sua
amiga e senhora.
O primeiro cearense, ainda no berço, imigrava da terra da pátria. Seria a predestinaçào
de uma raça? (. . .)
Afinal volta Martim de novo às terras que foram de sua felicidade e sào agora de amar­
ga saudade. Quando seu pé sentiu o calor das brancas areias, derramou-se em seu coraçào
um fogo que o requeimou; era o Jogo das recordações que ardiam como a centelha sob as cin­
zas (. . .).
Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar com ele a
mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua religião, de negras vestes, para plantar
a cruz na terra selva.gem.
Poti foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho; nào sofria ele que nada mais
o separasse de seu irmão branco. Deviam ter ambos um só Deus, como tinham um só coração.
Ele recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei, a quem ia servir,
e sobre os dous o seu, na língua dos novos irmãos. Sua fama cresceu e ainda hoje é o orgulho
da terra, onde ele primeiro viu a luz.
A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará, medrou. Germinou
<(
o a palavra do Deus verdadeiro na terra selvagem; e o bronze sagrado ressoou nos vales onde
rugia o maracá (. . . )

z
.

Tempo depois, quando veio Albuquerque, o grande chefe dos guerreiros brancos, Martim
w e Camarào partiram para as margens do Mearim a castigar o feroz tupinambá e expulsar o

8
branco tapuia.
Era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas ondefora tão feliz, e as
<( verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara (.. .) .
a::
::J Tudo passa sobre a terra.

a::
w
1- (cap. XXXI II)
_J
......

36
Eis aí uma reflexão sob a forma de pergunta
11
( U N I CA M P) O relacionamento amoroso de
I racema e Martim pode significar mais do que que o autor, , faz a si mesmo -
aparenta, pode ser visto do início ao fim como com toda propriedade, e por motivos que pode­
representatitivo do processo de conquista e de mos interpretar como pessoais -, ao finalizar o
colonização do Brasil. Como o romance I racema romance ______

representa esse processo?


Assinale a alternativa que completa os espaços.
Qual a função da presença de uma heroína indí­ a) José Lins do Rego - Menino de enge-
gena, I racema, no romance homônimo de José nho.
de Alencar? b) José de Alencar - Iracema.
c) Graciliano Ramos - São Bernardo.
(FUVEST) O primeiro cearense, ainda no berço, d) Aluísio Azevedo - O mulato.
emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestina­ e) Graciliano Ramos - Vidas secas.
çào de uma raça?

O relacionamento amoroso de I racema e Martim feita por comparação com elementos da nature­
11 pode ser interpretado, simbolicamente, como
metáfora, como alegoria representativa do cruza­
za. Embora psicologicamente Iracema se asse­
melhe às heroínas românticas européias, consti­
mento das raças índigena e branca, ou seja, o tui nesta fusão de elementos da cor local com
nativo e o europeu colonizador. O desenvolvi­ elementos do romantismo europeu um mito fun­
mento do enredo - ruptura de Iracema com o dador da pátria.
compromisso de virgem vestal e com sua tribo,
sua entrega amorosa, seu abandono e sua morte, b) Comentário - Neste trecho do final de
deixando o filho Moacir, aquele que nasce da dor I racema, podemos observar o tom místico e
- todos esses elementos da trama narrativa patriótico presente em todo o romance.
confirmam a possibilidade de leitura simbólica. A
própria construção da personagem I racema é
feita a partir da natureza, de comparaçôes com
elementos da fauna e da flora americana, em
geral brasileira e do Ceará, especificamente.

A índia Iracema, que se entrega por amor a


fJ Martim, tem a função de simbolizar, no roman­
ce, a presença do elemento nacional, da cor local
existente na construção de seus traços físicos,

SENHORA
Romance urbano que tematiza as contradições entre o sentimento
e a necessidade de "subir na vida", um dos famosos ''perfis de
mulher" de José de Alencar.

Narrador
Narrado em terceira pessoa, por um narrador-observador, o romance Senhora tem na obser­
vação de detalhes exteriores, que iluminam a personalidade e os lances da vida, uma de suas for­
tes características.
Com esse recurso, podemos perceber a preocupação com a psicologia dos personagens e tam­ a:
<1:
bém a mistura do romanesco e da realidade, que fazem desta obra um exemplo de literatura u
romântica na qual se procura imprimir certos traços realistas. z
w
Estes traços, assim como o estilo mais denso de alguns romances urbanos de José de Alencar, _J
<1:
especialmente Lucíola e Senhora, revelam a influência de Balzac, o mestre do realismo francês. O w
conflito psicológico em Senhora coloca uma questão central para o romance realista, contextuali­ o
'W
zado no mundo capitalista e burguês: a questão do dinheiro, da necessidade de "subir na vida", em (/)
oposição ao ideal da realização amorosa. o
-,
Vamos iniciar a nossa análise, observando como se coloca o narrador perante a história e ten­ -
tando compreender o seu ponto de vista diante dos personagens que a vivem.
31
A torrente de luz precipitando-se pela aberta das janelas, encheu o aposento; e a moça
adiantou-se até a sacada, para banhar-se nessas cascatas de sol, que lhe borbotavam sobre a
régia fronte, coroada do diadema de cabelos castanhos, e desdobravam-se pelas formosas
espáduas como uma túnica de ouro.
Embebia-se de luz. Quem a visse nesse momento assim resplandescente poderia acreditar
que sob as pregas do roupão de cambraia estava a ondular voluptuosamente a ninfa das cha­
mas, a lasciva salamandra, em que se transformara de chofre a fada encantada? (. . .)
A ferocidade da mulher enganada, sanha da leoa ferida, nunca teve para exprimi-la,
nem mesmo na exímia cantora, uma voz mais bramida, um gesto mais sublime. As notas que
desataram-se dos lábios de Aurélia, possantes de vigor e harmonia, deixavam após si um frê­
mito, que lembrava o silvo da smpente, sobretudo quando este braço mimoso e torneado dis­
tendia-se de repente com um movimento hirto para vibrar o supremo desprezo.
(cap . 2)

Observe que Aurélia Camargo, a protagonista do romance, é idealizada como uma rainha,
como uma heroína romântica, pelo narrador. De "régia fronte, coroada do diadema de cabelos
castanhos, de formosas espáduas", esta personagem no entanto é ao mesmo tempo ''fada encan­
tada" e "ninfa das chamas, lasciva salamandra".
Ao estereótipo da "mulher-anjo" romântica o narrador acrescenta, assim, um elemento demo­
níaco, elemento que, em vez de explicitar, deixa sugerido, "sob as pregas do roupão de cambraia
que a luz do sol não ilumina", e também "sob a voz bramida, o gesto sublime, escondendo um frê­
mito que lembrava o silvo da serpente" ou quando "o braço mimoso e torneado faz um movimen­
to hirto para vibrar o supremo desprezo. . ."

A contradição entre o anjo e o demônio, a bela e a fera, constitui um elemento de grande


importância neste romance.
Veremos agora, o modo como o narrador, partindo da observação exterior, apresenta a inte­
rioridade conflituosa, problemática, de outro personagem.
A um canto do aposento notava-se um sortimento de guarda-chuvas e bengalas, algumas
de muito preço. Parte destas naturalmenteprovinha de Minas, como outras curiosidades artís­
ticas, em bronze e jaspe, atiradas para baixo da mesa, e cujo valor excedia de certo ao custo
de toda a mobília da casa.
Um observador reconheceria nesse disparate a prova material de completa divergência
entre a vida exterior e a vida doméstica da pessoa que ocupava esta parte da casa (. . .).
Momentos depois volta a moça com a xícara de café. Enquanto o irmão, soerguendo o
busto, sorvia aos goles a aromática bebida dos poetas sibaritas, ela ia à alcova buscar um cha­
ruto de marca Pérola, e acendia um fósforo.
Todos estes pormenores praticava-os como quem tinha peifeito conhecimento dos hábitos
do irmão, e sabia por experiência que regalia não era o charuto para fumar-se logo pela
manhã, e depois o café.
Aceitava o indolente estes serviços como um sultão os receberia de sua alméia favorita; de
tão acostumado que estava, já não os agradecia, convencido de que para a moça era uma
fineza, consentir que lhos prestasse.
(cap . 5)

Alencar tem um golpe de vista infalível para o deta­ Nesta cena o narrador descreve o comodismo, a indo­
lhe expressivo, desde o charuto aceso e a mão que lência, a postura aristocrática de Fernando Seixas - que
apanha a cauda, até os frutos de um prato ou os contracena no romance com Aurélia Camargo. Também
gestos comerciais do corretor (. . ).
. através de detalhes, de elementos exteriores vai se configu­
Mas é na atenção com a moda feminina que pode­
rando o perfil deste personagem, modesto na condição,
mos avaliar todo o senso de detalhes exteriores, que mas fino no trato, nos gostos, nos hábitos.
<( Concluindo os comentários que fizemos sobre o narra­
o iluminam a personalidade ou os lances da vida.

� Balzac foi porventura o inventor da moda no roman­ dor, cabe acrescentar, à sua posição de observador, o fato
ce, o primeiro a perceber a sua íntima associação de recair sobre Aurélia Camargo - a heroína do romance
z
w com o próprio ritmo da vida social e a caracteriza­ - o seu ponto de vista.
� ção psicológica. Alencar não denota a influência Moça pobre e trocada por Fernandes Seixas, a quem
o marcada do mestre francês apenas na criação de
u amava, por um dote de trinta contos de réis, esta persona­
mulheres cujo porte espiritual domina os homens, ou
<( gem recebe uma herança e com ela decide comprar o
0:: na mistura do romanesco e da realidade. Denota-a
homem que lhe destruiu o coração a fim de, maltratando-o,
::> principalmente na intuição da vestimenta feminina,


provar-lhe a abjeção de sua conduta.
que aborda como elemento de revelação da vida
interior (. . . ). Em Senhora, um peignoir de veludo
0:: Aurélia Camargo centraliza, assim, a temática e a cons­
w trução do romance, no qual tanto os conflitos vividos pelos
� verde marca o âmbito máximo da tensão entre os
_J dois esposos. personagens quanto a preocupação de desnudar-lhes o
....... caráter constituem, como dissemos, elementos realistas
Antônio Cândido, Formação da literatura brasileira
que serão combinados com elementos românticos.
38
Enredo
Os títulos das quatro partes em que se divide o romance - O preço, Quitação, Posse e O res­
gate - anunciam a problemática da contradição entre o dinheiro e o amor desenvolvida no enre­
do, na medida em que constituem palavras relacionadas às fases de uma transação comercial.

Primeira parte - O preço


Aurélia Camargo aparece como uma nova estrela, que raiou no céu fluminense. Jovem, bela,
extremamente rica, vive cercada de admiradores, a quem trata com um desprezo satânico, ava­
liando cada um pelo preço de sua cotação no rol dos que pretendem contrair com ela a empresa
nupcial.
A extrema graça e a sensualidade, a inteligência brilhante, a nobreza de alma que se percebem
em Aurélia não condizem com a ironia, o sarcasmo e o escárnio presentes em seus atos, principal­
mente quando relacionados ao dinheiro.
Morando num palacete em Laranjeiras em companhia de uma parente afastada, D. Firmina
Mascarenhas, e tendo como tutor o tio, Senhor Lemos, é na verdade Aurélia quem decide a sua
vida, apesar de ter entre 1 8 e 19 anos.
A principal ação desta primeira parte do romance começa quando Aurélia pede ao tio e tutor
que ofereça ao jovem Fernando Seixas, recém-chegado na corte após uma longa viagem ao
Nordeste, a sua mão em casamento. Entretanto, uma aura de mistério cobre o pedido, pois
Fernando não deve saber a identidade da pretendente e além disso a quantia do dote proposto deve
ser irrecusável: cem contos de réis ou mais, se necessário.
A habilidade mercantil de Lemos, que chega a ser caricata, e a péssima situação financeira de
Fernando - moço elegante mas pobre, que gastou o espólio deixado pelo pai e que precisava resti­
tui-lo à família para a compra do enxoval da irmã - fazem com que dêem certo os planos de
Aurélia.
Fernando, envergonhado por aceitar um casamento de conveniência, é apresentado à futura
esposa e descobre ser ela uma antiga paixão, a maior de sua vida, que abandonara pelo dote de
trinta contos de réis de outra moça, Adelaide Amaral, filha de um empregado da Alffindega.
Assim, Fernando acredita estar unindo amor e fortuna quando se casa com Aurélia, que nada
demonstra de suas intenções até consumar-se a cerimônia.
Na noite de núpcias, recolhidos ao rico aposento das Laranjeiras destinado aos noivos, Aurélia
desacata Fernando e a "comédia" daquele casamento, afirmando ser ela uma mulher traída e ele
um homem vendido... Termina, assim, a primeira parte do romance.

Segunda parte - Quitação


Aqui, há um jlash-back, um retomo a acontecimentos anteriores da vida de ambos os prota­
gonistas, o que explica ao leitor o procedimento cruel de Aurélia em relação a Fernando.
Dois anos antes do casamento singular, vivia Aurélia com a mãe, pobre, enferma e viúva, D.
Emília Camargo.
A história desta mulher é trágica e exemplarmente romântica: quando moça, apaixonara-se por
um estudante, Pedro de Sousa Camargo, filho ilegítimo de um rico fazendeiro, que por não ter sido
oficialmente reconhecido pelo pai é recusado como pretendente de Emília.
Ela, então, abandona a família e secretamente casa-se com Pedro, passando a ser considerada
morta pelos parentes, que ignoram a sua união.
Lourenço Camargo, ao receber notícia de que o filho morava com uma rapariga, manda
chamá-lo e o prende na fazenda. Pedro era fraco e não foi capaz de relatar ao pai que se casara.
Vivem, então, os esposos, separados e marginalizados por doze anos, recebendo Emília eventual­
mente a visita de Pedro, a quem tudo perdoava pelo amor e com quem teve dois filhos: Emílio e
Aurélia. a:
Quando Lourenço Camargo tenta forçar o casamento de Pedro com uma rica herdeira, este se 5z
desespera e é acometido de uma febre cerebral, que o mata.
w
Emília escreve ao sogro, o qual sem a prova do casamento não acredita em suas palavras, man­ ....J
dando-lhe de forma rude e seca um conto de réis. <X:
O irmão de Aurélia, Emílio, frágil e pouco desenvolto para o trabalho, de espírito "curto e tar­ w
Cl
dio" e irresoluto como o pai, consegue a profissão de caixeiro de um corretor de fundos. No entan­ •W
to, é Aurélia, viva e inteligente, quem trabalha por ele. (/)
o
Um resfriado o mata, acentuando o desamparo das duas mulheres. Emília, que pressente a pró­ ....,
pria morte, passa a pressionar a filha para que esta, sempre fechada dentro de casa, arrume um bom -
casamento.
· 39
Nesta situação de aparecer na janela para chamar a atenção dos homens, situação que abomi­
nava, Aurélia conhece e se apaixona por Fernando Seixas. Por ele, recusa outros pretendentes,
inclusive Eduardo Abreu, moço rico e dos mais distintos da corte.
Embora tivesse chegado a pedir a mão de Aurélia, devido à insistência de Emília em conhecer­
lhe as intenções, Fernando a abandona, pelos motivos que já conhecemos.
Nesta ocasião, Lourenço Camargo, o avô de Aurélia, fica sabendo de toda a verdade sobre o
filho. Visita então a nora e a neta, reconhece a ambas, e deixa nas mãos de Aurélia um testamento.
Emília e Lourenço falecem, Aurélia transforma-se numa rica herdeira, a herdeira universal dos
bens do avô, e começa assim a vingar-se da sociedade que tanto a maltratara. A vingança culmi­
na com a conversa entre ela - mulher traída - e Fernando Seixas - homem vendido - em
plena câmara nupcial.

Terceira parte - Posse


Em Posse, assistimos à punição que Aurélia infringe a Fernando e à reabilitação dele, seduzi­
do pela grandeza e pelo fascínio de Aurélia. Fiel à palavra dada, o moço reage, com resignação e
firmeza que não possuía, aos maus tratos da mulher, que tudo faz para humilhá-lo ao mesmo tempo
que, em alguns momentos, não consegue esconder que ainda o ama.

Quarta parte - O resgate


Nesta parte, intensificam-se os caprichos e as contradições do comportamento de Aurélia,
ora ferina, mordaz, insaciável na sua sede de vingança, ora ciumenta, doce, apaixonada.
Intensifica-se também a transformação de Fernando, que não usufrui da riqueza de Aurélia, tor­
nando-se modesto nos trajes, assíduo na repartição onde trabalhava, e assim adquirindo, sem per­
der a elegância, uma dignidade de caráter que nunca tivera.
No final, Fernando, um ano após o casamento, negocia com Aurélia o seu resgate. Devolve­
lhe os vinte contos de réis, que correspondiam ao adiantamento do montante total do dote com o
qual possibilitara o casamento da irmã, e mais o cheque que Aurélia lhe dera, de oitenta contos de
réis, na noite de núpcias.
Separam-se, então, a esposa traída e o marido comprado, para se reencontrarem os amantes, a
última recusa de Seixas sendo debelada quando Aurélia lhe mostra o testamento que fizera, quan­
do casaram, revelando-lhe o seu amor e destinando-lhe toda a sua fortuna.
O enredo deste romance mostra claramente a mistura de elementos romanescos e da realidade.

Comentário geral sobre o enredo


A história de Emília, mãe de Aurélia, é um exemplo típico do romanesco: pelo homem que
ama abandona a tudo e a todos e sucumbe, sem uma queixa contra ele, cuja fraqueza a transforma
em mártir do amor, em grande heroína de um romance ultra-romântico.
A história de Aurélia, embora se tinja de cores e de momentos românticos, como seu happy
end, como a dignidade e o heroísmo com que ama Fernando, possui alguns elementos realistas,
conforme veremos estudando mais profundamente os personagens do romance.

Personagens
Principais
A necessidade de obter dinheiro para "subir na vida" afasta Fernando Seixas - de origem
modesta, mas elegante e ambicioso - da mulher amada, levando-o a realizar um "casamento de
conveniência", espécie de transação mercantil institucionalizada pela sociedade capitalista.

Em contraposição à maleabilidade do caráter de Fernando perante tal sociedade, da qual afir­


ma no final do romance ser um fruto, uma conseqüência, temos o desprendimento, a sublime devo­
ção ao amor, o horror ao interesse, de Aurélia.
No entanto, traída em sua sensibilidade, em sua adoração a um ser que se revela abjeto, indig­
no, ela não o perdoa e, mais do que isso, é capaz de usar exatamente o que mais detesta - o
dinheiro - para vingar-se.
A densidade humana de Aurélia Camargo avoluma-se assim a nossos olhos, e percebemos nela
uma mistura de anjo e demônio, de bondade e de maldade, que a distancia do maniqueísmo
- a rígida separação entre o bem e o mal - dos romances puramente românticos.
Entretanto, o poder regenerador do sentimento amoroso, o chamado à honra e à virtude que
dele faz parte, é capaz de alterar, romanticamente, o caráter de um "ator de sala", transforman­
do-o num homem, como ocorre a Fernando Seixas através da conduta perversa mas apaixonada
de Aurélia Camargo.
40
Assim, tanto o marido comprado quanto a mulher traída, os protagonistas de Senhora,
movem-se vertiginosamente entre o sublime e o sórdido, constituindo verdadeiros tipos huma­
nos representativos das contradições do mundo capitalista.

Secundários

De acordo com a observação no quadro ao lado, verificamos a


existência de um descompasso entre a "seriedade" dos assuntos Lemos, pelintra e interesseiro tio da heroína, é
tratados pelos protagonistas - o amor, o dinheiro, o interesse - gordinho como um vaso chinês e tem ar de
e a desenvoltura com que se movimentam os personagens secun­ pipoca; o velho Camargo é um fazendeiro bar­
dários, impunemente transitando entre o vício e a virtude. baças, rude mais direito; Dona Firmina, mãe de
O velho Lemos, por exemplo, embora tenha procurado se encomenda ou conveniência, estala beijos na
aproximar de Aurélia, empresariá-la na prostituição, embora tenha face da menina a quem serve, e, quando
interferido perante o pai de Adelaide Amaral para afastar senta, acomoda "a sua gordura semi-secular".
Fernando de Aurélia, mandando uma carta à moça - sem assina­ Noutras palavras, uma esfera singela e fami­
tura, mas cujo autor ela logo reconheceu - que denunciava a trai­ liar, em que pode haver sofrimento e conflito,
ção de Fernando ao seu amor, embora fosse detestável aos olhos sem que ela própria seja posta em questão,
de Aurélia, não passou pelo seu crivo crítico, servindo-lhe aos legitimada que está pela natural e simpática
interesses como tutor. propensão das pessoas à sobrevivência rotinei­
Do mesmo modo, não aparece no romance nenhum reparo ao ra. Os negociantes são espertalhões, as innãzi­
fato de o avô de Aurélia ser pai de um filho natural, de este filho nhas abnegadas, a parentela aproveita, vícios,
fazer um curso para o qual não tinha vocação ou revelar-se inca­ virtudes e mazelas admitem-se tranqüilamen­
paz de assumir o próprio casamento; de Emília, mãe de Aurélia, te, de modo que a prosa, ao descrevê-las, não
abandonar a família pelo seu amor, de esta família recusar-se a perde a isenção. Não é conformista, pois não
aceitar o romance de Emília; de serem boas mães e não pessoas justifica, nem é propriamente crítica, pois não
hipócritas as senhoras da sociedade que não gostam dos procedi­ quer transformar.
mentos de Aurélia; de os rapazes não se ofenderem com a sua cota­ Roberto Schwarz
ção no rol de seus pretendentes.
Ao vencedor as batatas
Assim, parece haver uma medida para os personagens prin­
cipais, de cunho universalista, e outra para os personagens
secundários, cuja lógica - local - revela-se diferente: a da degradação transformada em "coi­
sas da vida ", de forma que a dura dialética moral do dinheiro se presta ao galanteio da mocida­
defaceira, mas não afeta o fazendeiro rico, o negociante, as mães burguesas, a governanta pobre,
que se orientam pelas regras dofavor ou da brutalidade simples. (Roberto Schwarz, Ao vencedor
as batatas)
O estudo de Roberto Schwarz a respeito de Senhora culmina com a reflexão sobre uma cultu­
ra como a brasileira, que não só copia as novas feições da arte européia mas também as copia
segundo a maneira européia, o que produz as dissonâncias que verificamos entre o "modelo
europeu" e a "cor local".
Tais dissonâncias vão construindo elementos que nos permitem compreender a dialética do
cosmopolitismo e do localismo - de que Senhora, de José de Alencar, constitui precioso docu­
mento histórico e artístico.

Tempo;espaço
Em termos de tempo, podemos destacar o contraponto, no livro, entre o passado, que corres­
ponde à segunda parte - Quitação - e o presente, ao qual estão mais diretamente ligadas as ou­
tras três partes.
O passado se associa com a "cor local", na medida em que nele predomina a pobreza de
Aurélia e com ela o provincianismo, o acanhamento, a "brutalidade"singela, simples, a que se refe­
re Roberto Schwarz.
Quanto ao presente, podemos relacioná-lo com o lado cosmopolita, refinado, europeu, do
romance, cujo cenário (espaço) é a sociedade fluminense, em várias passagens criticada, pelo nar­ c:
rador, por sua submissão aos costumes estrangeiros. <(
Mas já habituada à inversão que têm sofrido nossos costumes com a invasão dos modos u
estrangeiros, assentou a viúva que o último chique de Paris devia ser esse de trocarem as noi­ z
UJ
vas o papel, ficando ao fraque o feminino, enquanto a saia alardeava o desplante do leão. _J
(cap. 3) <(
UJ
Aconteceu uma noite cair a conversa em assunto de literatura nacional. Fato raro. Entre Cl
nós há moda para tudo nos salões; menos para as letras pátrias, que ficam à porta ou quan­ •UJ
do muito vão para o fumatório servir de tema a dois ou três incorrigíveis. (/)
o
(cap. 2) ..,
-

41
Linguagem
Segundo Antônio Cândido, em Formação da literatura brasileira,
a força de Alencarfica provada pelo fato de ainda estimarmos os seus livros apesar do açu­
caramento, que acabou por enfastiar, ao fim de duas gerações.
Os seus diálogos, na maioria excelentes quanto à distribuição e à dosagem, denotam
igual tendência para idealizar. Talvez correspondam ao esforço de dar estilo e tom a uma
sociedade de hábitos pouco refinados, composta na maioria de comerciantes enriquecidos
ou provincianos em pleno ajustamento (. . .). A verdade e a eloqüência de muitos de seus per­
sonagens provêm menos da capacidade de análise, que de certos toques estilísticos de força
divinatória, que se revelam por meio da roupa, da voz, dos detalhes do ambiente.

Vamos, agora, observar alguns trechos de Senhora, percebendo as características de sua


linguagem.

Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela.


Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro; foi proclamada a rai-
nha dos salões.
Tomou-se a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade.
Era rica e formosa.
Duas opulências, que se realçam como a flor em vaso de alabastro, dois esplendores que
se refletem, como o raio de sol no prisma do diamante.
Quem não se recorda de Aurélia Camargo, que atravessou o firmamento da corte como
brilhante meteoro, e apagou-se de repente no meio do deslumbramento que produzira o seu
fulgor?
Tinha ela dezoito anos quando apareceu a primeira vez na sociedade. Não a conheciam;
e logo buscaram todos com avidez informações acerca da grande novidade do dia.
Dizia-se muita coisa que não repetirei agora, pois a seu tempo saberemos a verdade, sem
os comentas malévolos de que usam vesti-la os noveleiros.
Aurélia era óifã; tinha em sua companhia uma velha parenta, viúva, D. Firmina
Mascarenhas, que sempre a acompanhava na sociedade.
Mas essa parenta não passava de mãe de encomenda, para condescender com os escrú­
pulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha admitido ainda certa emancipa­
ção feminina.
Guardando com a viúva as deferências devidas à idade, a moça não declinava um ins­
tante do firme propósito de governar sua casa e dirigir suas ações como entendesse.
Constava também que Aurélia tinha um tutor; mas essa entidade desconhecida, a julgar
pelo caráter da pupila, não devia exercer maior influência em sua vontade do que a velha
parenta.
A convicção geral era que o futuro da moça dependia exclusivamente de suas inclinações
ou de seu capricho e por isso todas as adorações se iam prostrar aos próprios pés do ídolo.
Assaltada por uma turba de pretendentes que a disputavam como o prêmio da vitória,
Aurélia, com sagacidade admirável em sua idade, avaliou da situação difícil em que se acha­
va, e dos perigos que a ameaçavam.
Daíprovinha talvez a expressão cheia de desdém e um certo arprovocador, que eriçavam
a sua beleza aliás tão correta e cinzelada para a meiga e serena expansão d'alma.
Se o lindo semblante não se impregnasse constantemente, ainda nos momentos de cisma
e distração, dessa tinta de sarcasmo, ninguém veria nela a verdadeira fisionomia de Aurélia,
e sim a máscara de alguma profunda decepção.
Como acreditar que a natureza houvesse traçado as linhas tão puras e límpidas daquele
peifil para quebrar-lhes a harmonia com o riso de uma pungente ironia?
<(
o (O preço - cap. 1)


z
Lemos voltara satisfeito com o resultado da sua exploração.
w Era o velho um espírito otimista, mas à sua maneira; confiava no instinto infalível de que
a natureza dotou o bípede socialpara farejar seu interesse e descobri-lo (. . .).
:2:
·o Tinha pois como impossível que um moço, em seu peifeito juízo, dirigido por conselho de
u homem experiente, repelisse a fortuna que de repente lhe entrava pela porta da casa, e casa
<( da rua do Hospício a sessenta mil-réis mensais, para tomá-lo pelo braço e conduzi-lo de car­
a: ruagem, recostado em fofas almofadas, a um palácio nas Laranjeiras.
;::) Sabia Lemos que os escritores, para arranjarem lances dramáticos e quadros de romance,

a:
caluniavam a espécie humana atribuindo-lhe estultices desse jaez; mas na vida real não
w admitia a possibilidade de semelhantes fatos.
1- - Não se recusam cem contos de réis, pensava ele, sem uma razão sólida, uma razão prá­
:::i tica. O Seixas não a tem; pois não considero como tal essas palavras ocas de tráfico e merca­
....... do, que não passam de um disparate. Queria que me dissessem os senhores moralistas o que é

42 esta vida senão uma quitanda? Desde que nasce um pobre diabo até que o leva a breca não
jaz outra coisa senão comprar e vender? Para nascer é preciso dinheiro, epara morrer ainda
mais dinheiro. Os ricos alugam os seus capitais; os pobres alugam-se a si, enquanto não se
vendem de uma vez, salvo o direito do estelionato (. . .).
- Aurélia/ Que significa isto?
- Representamos uma comédia, na qual ambos desempenhamos o nosso papel com perí-
cia consumada. Podemos ter este orgulho, que os melhores atores não nos excederiam. Mas é
tempo de pôr termo a esta cruel mistificação, com que nos estamos escarnecendo mutuamen­
te, senhor. Entretemo-nos na realidade por mais triste que ela seja; e resigne-se cada um ao
que é, eu, uma mulher traída; o senhor, um homem vendido .
- Vendido/ Exclamou Seixas ferido dentro d'alma.
- Vendido sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica, sou milionária; precisava de
um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei­
o. Custou-me cem contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda
a minha riqueza por este momento.
(O preço - cap. 8)

11 Qual a função da segunda parte do romance


Senhora, de José de Alencar, denominada
c) Alencar, apesar de todo o ideal ismo ro­
mãntico, conseguiu, nas obras " Lucíola" e
Quitação, para o contexto geral da narrativa? " Senhora " , captar e denunciar certos aspec­

El Que relação há entre o final de Senhora e o final


tos profundos, recalcados, da rea lidade social
e individual, onde podemos detectar um pré­
da primeira parte deste romance, O preço? Realismo ainda inseguro;
d) A obra de Alencar, objetivando atingir a
B (UNICAMP) A moça trazia nessa ocasião um rou­ H istória do Brasil e a síntese de suas origens,
lilill pão de cetim verde cerrado à cintura por um cor­ volta-se exclusivamente para assuntos indí­
dão de fios de ouro. Era o mesmo da noite do genas e regionalistas, sem incursões pelo
casamento, e que desde então ela nunca mais romance urbano;
usara. Por uma espécie de superstição lembrara­ e) O indianismo de José de Alencar baseou-se
se de vesti-/o de novo, nessa hora na qual, a crer
em dados reais e pesquisa antropológica,
em seus pressentimentos, iam decidir-se afinal o
seu destino e a sua vida. (. . . )
apresentando, por isso, uma imagem do índio
brasileiro sem deformações ou idealismo.
Ergueu-se então, e tirou da gaveta uma chave;
atravessou a câmara nupcial (. . .) e abriu afoita­
mente aquela porta que havia fechado onze
As questões 7, 8 e 9 referem-se ao texto a seguir:
meses antes, num ímpeto de indignação e horror.
No trecho citado, extraído do capítulo final do Há anos raiou no céu fluminense uma
romance Senhora, de José de Alencar, o narra­ nova estrela.
dor faz referência a uma outra cena, passada no Desde o momento de sua ascensão nin­
mesmo lugar, muito importante para o desenro­ guém lhe disputou o cetro; foi proclamada a
lar do enredo. Pergunta-se: rainha dos salões.
a) que personagens protagonizaram as duas Tornou-se a deusa dos bailes; a musa dos
cenas e qual a relação entre esses persona­ poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade.
gens no romance? Era rica e formosa.
b) o que ocorreu na primeira vez em que esses Duas opulências que se realçam, como a
personagens se encontraram na cãmara flor em vaso de alabastro; dois esplendores
nupcial ? que se refletem, como o raio de sol no prisma
c) como a cena descrita no trecho citado rela­ do diamante.
ciona-se com a outra, referida pelo narrador, Quem não se recorda de Aurélia Camar­
no interior do romance? go, que atravessou o firmamento da corte
como brilhante meteoro, e apagou-se de re­
... Que relação há entre o título do romance Senho­ pente no meio do deslumbramento que pro­
liil ra e a sua protagonista, Aurélia Camargo? duzira o seu fulgor?

� Que aspecto do romance Senhora é revelado (Senhora, de José de Alencar)


o:
IWI pela personagem Lemos, cuja grande ciência da
vida resumia-se em " esperar a ocasião e apro­
fi (FUVEST) Qual o significado da expressão meta­ ()
veitá-la " ? fórica: z
"Há anos raiou no céu fluminense uma nova w
..J
PS (U FPR - PR) Qual das informações sobre José
estrela ".
<r
t:Q de Alencar é correta?
1!11 (FUVEST) Observe os três primeiros parágrafos w
Cl
lil do texto. Eles contêm elementos que se relacio­
a) Alencar inaugurou a ficção brasileira com a
·w
publicação de sua obra "Cinco Minutos " ; nam: CJ)
b) Alencar foi um romancista que soube conciliar a) com o tipo de sociedade descrita no roman­ o
um romantismo exacerbado com certas remi­ ce; b) com o tema central do livro. ...,
niscências do Arcadismo, manifestas, princi­ I ndique esses elementos e explique quais são -
palmente, na linguagem clássica; essas relações.
' 43
R (Faculdade de Ciências Agrárias - PA) ( ) Observa-se neste romance a atitude român­
lilll Relacione a frase com o nome da obra e a se­ tica de eleger a prostituta como centro da nar­
guir assinale a alternativa que contém a seqüên­ rativa, procurando justificar suas dores e com­
cia correta dos números: preendendo o tipo de vida que levava.
( ) Neste romance, são contados os primeiros
1- O Guarani contatos dos índios com os civilizados.
2- I racema
3- Senhora a) 4,2, 1
4- Diva b) 5, 1 , 2
5- Lucíola c) 3 , 1 ,4
d) 5,4, 1
3,5,2
( ) Desenvolve o enredo de tal maneira a con­ e)
denar o casamento de conveniência.

vRESPOSTAS POSSívEIS
11 Esta parte do romance é um flash-back, um
retorno no tempo que conta a história da
desencadeando o happy end tipicamente
romântico de Senhora.
pobreza de Aurélia Camargo, protagonista de
Senhora, explicitando ao leitor os motivos de A relação é inicialmente irônica. Embora tives­
sua c rueldade com o marido comprado, se sido pobre e desamparada até os dezoito
Fernando Seixas. Nesta parte, ficamos anos, Aurélia Camargo repentinamente enri­
sabendo que Fernando, embora a masse quece, herdando a fortuna de seu avô. Torna­
A u rélia, a troca por um dote de trinta contos se, assim, uma senhora, cercada de adorado­
de réis; podemos entender, assim, porque res a quem despreza, como despreza o
esta personagem o compra, vingando-se de dinheiro que possu i . Em relação a Fernando
sua fraqueza de caráter. Seixas, o marido que compra com um dote de
cem contos de réis, Aurélia Camargo é senho­
No final da primeira parte do romance ra primeiro por execer o seu domínio sobre
Senhora, de José de Alencar, o jovem elegan­ ele, por humilhá-lo, e, num sentido mais pro­
te e mundano Fernando Seixas, que aceita um fundo, por conseguir transformar-lhe o cará­
casamento de conveniência com Au rélia ter, depurar-lhe a personalidade, até ele se
Camargo, é desacatado por ela em plena noite tornar digno de seu amor.
nupcial, quando Aurélia o chama de homem
vendido e moralmente o destrói. No final do Lemos é um velho capitalista, interesseiro e
romance, Fernando devolve a Aurélia o mon­ obcecado pelo dinheiro. Tutor e tio de Aurélia
tante do dote que recebera e negocia, assim, Camargo, Lemos revela um aspecto funda­
seu resgate. Desta forma, fica provada a alte­ mental do romance: a contradição entre a
ração em seu caráter pelo amor e pela dor "amoralidade" de sua conduta, extensiva à de
com que Aurélia o submetera às piores h umi­ outros personagens secundários, e a " morali­
lhações, fazendo dele um homem digno e dade" da conduta dos personagens principais.
honrado. Ocorre, então, um happy end: o Tai contradição pode ser interpretada como
marido comprado e a mulher traída, que se uma conseqüência do "ajuste" entre a " cor
despedem, são substituídos por dois cora­ loca l " , manifestada nos personagens secundá­
ções apaixonados, que definitiva e mutua­ rios, e o "modelo europeu " , percebido nos per­
mente se entregam. sonagens principais. Enquanto os primeiros
vivem um universo doméstico, sem julgamen­
a) Os personagens-protagonistas de ambas as tos nem condenações, os segundos vivem a
cenas são A u rélia Cama rgo e Fernando degradação humana causada pelo di nheiro,
Seixas, os quais possuem uma relação de que transforma as pessoas e seus sentimentos
amor e ódio, ao longo do romance. Embora em mercadorias.
sejam apaixonados um pelo outro, a persona­
lidade interesseira de Seixas e o desejo de
vingança que provoca e desencadeia em
Aurélia, fazem com que ambos os sentimen­ Tal expressão significa que uma m u lher,
<(
o tos se alternem e se confundam reciproca­ Aurélia Camargo, certa ocasião surgiu na


z
mente, no enredo de Senhora.
b) Na primeira vez em que se encontraram na
corte carioca.

câmara n upcial, Aurélia, que havia oferecido " céu fluminense" ; "ascensão "; "cetro " ; " rai-
UJ um dote a ltíssimo para casar-se com nha " ; " deusa " ; "musa"; " ídolo" e " rica" são
� Fernando, humilha-o e passa a tratá-lo como elementos que se relacionam com o tipo de
o propriedade sua, isto é, como um " marido sociedade e com o tema central do livro. Trata­
u
comprado ", denominando-se uma "mulher se da classe alta, dos freqüentadores da corte ao
<( traída " . Isto pelo fato de ele ter provado pre­ longo do Segundo Reinado; a temática da obra,
c:
ferir o dinheiro à realização afetiva, ao des­ na medida em que discute a contradição entre
:::::>
�c:
denhá-la por uma mulher rica, quando ela valores espirituais e valores materiais, o amor e
ainda era pobre. o dinheiro, relaciona-se diretamente com esta
c) A cena descrita no trecho citado é o contrá­ sociedade, cujo materialismo, cuja necessidade
UJ rio da outra, referida pelo narrador, já que de ostentação e cujo culto do " parecer", em
!:::
...J agora Fernando se regenera, devolve.o dinhei­ detrimento do ser, são abordados.
-
ro do dote a Aurélia, e esta se atira aos seus
pés, confessando-lhe que sempre o amara e
44
A

MANOEL ANTONIO DE ALMEIDA


As 'Memórias' nos dão, na verdade, um corte sincrônico da vida familiar brasileira nos meios urbanos em uma fase em
quejá se esboçava uma estmtura não mais propriamente colonial, mas ainda longe do quadro industrial-burguês.
t� como o autor conviveu defato com o povo, o espelhamento foi distorcido apenaspelo ângulo da comicidade.
Que é, de longa data, o viés pelo qual o artista vê o típico, e sobretudo o popular.
(Alfredo Bosi - História Concisa da Literatura Brasileira)

� �

MEMORIAS DE UM SARGENTO DE MIUCIAS


Romance de exceção em nosso Romantismo, tem um malandro
no papel de herói e coloca a classe média em cena literária.

Narrador
Publicado em forma de folhetim (entre 1 852 e 1 853), no suplemento "A Pacotilha",
do Correio Mercantil, Memórias de um Sargento de Milícias contrasta com os roman­
ces românticos de sua época, primeiro por ter como protagonista um herói-malandro,
ou um anti-herói, conforme a opinião de alguns críticos. Segundo, pelo seu caráter
documental da sociedade carioca do tempo do rei D. João VI: os costumes, os tipos
sociais, os comportamentos típicos etc. Terceiro, pelo tom de crônica que dá leveza e
aproxima a fala a linguagem com que foi escrito. Além destes, há outros fatores que
diferenciam a obra do contexto romântico em que surgiu, conforme você irá perceben­
do ao longo da análise.
Apesar do título sugerir um narrador-personagem, Memórias de um Sargento de
Milicias caracteriza-se por um narrador em 3a. pessoa, que conta a história sem dela
participar, e na posição de observador dos acontecimentos. O cinismo bem-humorado,
as sistemáticas interferências nas situações sempre divertidas que relata, as ironias e as
brincadeiras envolvendo costumes e personagens da época constituem alguns traços
marcantes deste narrador, cujo juízo crítico a respeito do que vai documentando algu­
mas vezes revela-se de forma claramente debochada, como no exemplo a seguir:

Quanto ao moral, se os sinais físicos nãofalham, quem olhasse para a cara do


Sr. José Manuel assinava-lhe logo um lugar distinto na família dos velhacos de qui­
late. E quem talfizesse não se enganava de modo algum; o homem era o que pare­
cia ser. Se tinha alguma virtude, era a de não enganarpela cara. Entre todas as suas
qualidades possuía uma que infelizmente caracterizava naquele tempo, e talvez que
ainda hoje, positiva e claramente oflu minense, era a maledicência. ]osé Manuel era
uma crônica viva, porém crônica escandalosa, não só de todos os seus conhecidos e
anoel Antônio de Almeida, a voz de
amigos, mas ainda dos conhecidos e amigos dos seus amigos e de suas famílias.

Observe como a execração do personagem por um lado refere-se a certos costumes M exceção em nosso Romantismo.
da sociedade carioca, através dele ridicularizados, e por outro suaviza-se pelo tom bem­ nasceu no Rio de Janeiro. em 17 de
humorado, sempre presente no texto. O mesmo procedimento pode ser percebido na novembro de 1 831 , e morreu, em 28 de
novembro de 1 861 , no naufrágio do vapor <(
caracterização fortemente anti-romântica de outra personagem:
"Hermes". nas imediações de Macaé, nas o
Era a sobrinha de Dona Maria muito desenvolvida, porém, que tendo perdido costas da província do Rio de Janeiro. Filho w
de portugueses de origem humilde, estudou �
as graças de menina, ainda não tinha adquirido a beleza de moça; era alta,
no Rio de Janeiro. Depois, teve uma _J
magra, pálida; andava com o queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras sem­ <(
pre baixas e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos, o cabelo cortado, passagem pela Academia de Belas-Artes,
w
dava-lhe apenas até opescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça sem­ formando-se em Medicina em 1 855. o
pre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e os olhos como uma viseira. Trabalhou no Correio Mercantil, elaborando o o
suplemento que editou, em folhetins
z
Além de romper com a tradicional postura idealizadora do narrador romântico, em semanais. as Memórias de um Sargento de •O
relação aos indivíduos e também à terra, o narrador das Memórias ora suprime etapas Milícias, sob o pseudônimo de "Um 1-
narrativas, ora transita da 3a. para a l a. pessoa, assumindo uma cumplicidade com o lei­ Brasileiro". Tinha, então, vinte e dois anos z
tor, cujo caráter metalingüístico o faz anunciar procedimentos modernistas, também incompletos. Publicou o primeiro volume do <(
_J
percebidos nas conversas com o leitor e nos comentários jocosos a que nos referimos. livro em 1 854, e o segundo em 1 855. Foi w
Veja uma passagem que ilustra vários momentos do livro: Passemos por alto sobre os administrador da Tipografia Nacional, oficial o
anos que decorreram desde o nascimento e o batizado do nosso memorando e vamos da Secretaria de Negócios da Fazenda e z
encontrá-lo já na idade de sete anos. Em conclusão, podemos afirmar que o processo diretor da Imperial Academia de Músicos e <(
Ópera Nacional �
narrativo aqui analisado mostra aspectos desta obra que a caracterizam como atípica o -
para a época em que foi criada.
' 45
Enredo
Leonardo, o protagonista, nasceu no tempo do Rei... (início do século XIX), sendo filho de
"uma pisadela e um beliscão" entre um meirinho (oficial de justiça de nível inferior), Leonardo
Pataca, e uma saloia (camponesa), Maria da Hortaliça, quando vinham num navio, de Portugal
para cá.
Desde a folia do batizado do "heroi", começa a rondá-lo a polícia, representada pelo major
Vidigal, o representante da lei e da ordem ... Os pais se separam, devido à infidelidade da saloia,
que foge no mesmo navio onde conhecera Leonardo Pataca, amasiada com o capitão.
O menino, aos sete anos, após levar um pontapé de Leonardo Pataca, do qual j amais se
esqueceria, é abandonado à própria sorte. Seu padrinho e vizinho, o barbeiro, resolve criá-lo.
Devota-lhe muito amor e todos os cuidados, incluindo a preocupação com o futuro de Leonardo,
que quer transformado num padre. Ensina-lhe com muito custo as primeiras letras, depois o
matricula na escola, onde suas estrepolias aumentam até abandoná-la para ser coroinha.
Por uma série de desordens praticadas na igreja, o padre o enxota, e ele cresce neste ritmo,
sem se encaixar em nenhum dos projetos que o padrinho idealizara, o que aumenta a ojeriza que
a vizinha e madrinha de Leonardo tem por ele. Enfim, Leonardo não se interessa pelos estudos
nem pelo trabalho, preferindo desde cedo toda a sorte de malandragens, que vão caracterizar o
seu comportamento ao longo do livro.
Quando adulto, Luisinha, a moça estranha descrita na seção narrador, toma-se a predileta de
Leonardo, o seu primeiro amor. Entretanto, intrigas e fofocas contra o rapaz provocam o casa­
mento da menina com José Manuel, o mau-caráter a que se refere outro trecho colocado no item
anterior, um renomado caça-dotes. Com a morte do padrinho, e o dote que este deixa ao afilha­
do, Leonardo é convidado a morar com o pai, Leonardo Pataca, que após uma segunda desilusão
amorosa, agora com uma cigana, passa a viver com Chiquinha, a filha da comadre.
Reúnem-se na mesma casa a comadre, que se toma protetora de Leonardo, o filho, o pai e a
nova companheira, que se desentende com Leonardo, levando-a a ser expulso com outro ponta­
pé de Leonardo Pataca.
Então Leonardo reencontra o antigo parceiro de traquinagens da infância, Tomás da Sé, mora
uns tempos com a família do amigo, e apaixona-se por Vidinha, uma mulata de vinte anos, com
quem namora por algum tempo. Nesta fase é preso por vadiagem pelo major Vidigal, conseguin­
do fugir antes de chegar à cadeia. Arruma emprego na despensa real, para se livrar da persegui­
ção do major, envergonhado por tê-lo deixado fugir e sedento de vingar-se. Deixa rápido o tra­
balho, novamente metido em encrencas: tenta conquistar a mulher de um colega.
O major o agarra e o transforma em soldado para não perdê-lo de vista. Ao ajudar o bichei­
ro Teotônio a fugir, numa batida em que deveria prendê-lo, Leonardo de novo se toma prisionei­
ro. Devido a um pedido da comadre, uma ex-amante do major, Maria Regalada, intercede pelo
rapaz, que enfim é solto e promovido ao cargo de Sargento de Milícias . . . Ocorre então o desfe­
cho folhetinesco da história, com o reencontro e o casamento de Leonardo e Luisinha, já que esta
enviuvou e o "herói" se encontra empregado e de posse da herança deixada pelo barbeiro, na qual
Leonardo Pataca não mexera...

Personagens
Algumas das principais características dos personagens da obra são o fato de que eles não
pertencem à chamada "classe dominante", não constituem seres europeizados e não possuem os
traços maniqueístas (heróis x vilões) dos personagens românticos. Trata-se, ao contrário, de tipos
<( sociais populares, pouco "literários" para a época, como passaremos a verificar:
o Leonardo, o protagonista, desordeiro desde a infância, é um desocupado, que vive às custas

z
dos outros, embora tenha gestos generosos (por exemplo o episódio em que salva o bicheiro de
ir para a prisão) e mereça a simpatia de outros personagens, como o padrinho e a comadre, que
UJ
acabam arranjando a vida do rapaz. Este personagem é o típico malandro amoral, que para alguns

·o críticos encama a figura do anti-herói.
u Leonardo Pataca, o pai de Leonardinho, é um meirinho sentimental, enquanto sua mãe,
<( Maria da Hortaliça, é uma saloia infiel. Já o padrinho, o barbeiro, por um lado dedica aten­
a: ção e dinheiro a Leonardo, e por outro suas posses são provenientes de um roubo que praticara
::J
t;(a: na juventude, quando fingiu-se de médico perante a tripulação de um navio e assistiu a morte do
capitão, ficando com o dinheiro que este lhe pedira para entregar à filha.
UJ O major Vidigal, exemplo maior da lei e da ordem, temido por todos, exerce as funções de
1-
.....J
policial e juiz, fazendo cumprir e exe<;utando as sentenças por conta própria. Único personagem
-
realmente histórico destas Memórias, sua austeridade se desfaz no final, quando cede ao pedido
da ex-amante, Maria Regalada, e transforma o prisioneiro em oficial das Milícias.
46
Dona Maria, uma velhota rica e bondosa, caracteriza-se por sua paixão pelas demandas judi­
Luisinha, primeiro amor e futura esposa de Leonardo, opõe-se às
ciais, enquanto sua afilhada,
características da heroína romântica: é feia, pálida e desaj eitada, andando sempre calada, com o
queixo enterrado no peito. Já Vidinha, a cantora de modinhas que inicia todas as frases com um
"Qual!" típico da linguagem popular e falada, é aquela que inspira nova e rápida paixão no herói,
após o casamento de Luisinha com José Manuel, o caça-dotes espertalhão e mentiroso.
Há aindaa vizinha do barbeiro, que detesta o Leonardo filho, a cigana que desperta paixões
em Leonardo pai e no mestre de rezas, que o menino rediculariza em uma das maiores estrepo­
lias da infância e vários outros personagens típicos, caricaturas que, sem maior profundidade psi­
cológica, equivalem-se pela representação social a que pertencem: um estrato médio da socieda­
de do período, até então ignorado pela literatura.

Entre o universo da ordem e o da desordem


Além de colocar em cena tais personagens, nem proprietários nem escravos e por isso pouco
considerados em sua representatividade social, o autor das Memórias desvenda um mecanismo
básico de seu comportamento.
Tal mecanismo, segundo Antônio Cândido e Roberto Schwarz, constitui uma espécie de
"espinha dorsal" do funcionamento de nossa sociedade. Vejamos por quê: na medida em que lutam
pela sobrevivência, os personagens das Memórias agem de acordo com a necessidade, transitando
entre os universos da ordem e da desordem sem moralismos nem escrúpulos, uma vez que suas
virtudes compensam seus pecados. É o que verificamos, por exemplo, no comportamento do bar­
beiro, o padrinho de Leonardo-filho, que apesar da fortuna mal adquirida se reabilita, utilizando­
a nobremente, isto é, assumindo como filho o afilhado.
Além desta "lei das compensações", gerada pela necessidade de sobrevivência, há, ainda, outra
característica interessante desta classe social, que Roberto Schwarz chama de "política de favor",
da qual parece nascer o famoso ''jeitinho brasileiro", em que "uma mão lava a outra". O compa­
dre, assim, ajuda Leonardo, sendo ajudado pela comadre nesta função. A comadre, por sua vez,
pede ajuda a Dona Maria, e esta a Maria Regalada, para salvarem Leonardo-filho das mãos do
major Vidigal, que pela sedução da ex-amante é atraído ao universo da desordem.
Leonardo-filho, malandro mas simpático, converte-se para a ordem quando se casa, o que não
significa que nela ficará para sempre. . . Assim, há uma amoralidade no comportamento dos perso­
nagens, e do "herói" do romance em especial, que faz dele uma espécie de anti-herói, o prenúncio
de Macunaíma, "o herói sem nenhum caráter", de Mário de Andrade.
Então, o "uma mão lava a outra", o ''jeitinho brasileiro" da "política do favor", somando-se a
esta "amoralidade", constituem traços que não só diferenciam nossa classe média das outras clas­
ses sociais, como também, em sentido mais amplo, caracterizam uma especificidade da cultura
brasileira, que será explorada por Machado de Assis e que não se confunde com o caráter pitores­
co da "cor local" buscada pelos escritores românticos.
Na medida em que começa a revelar tal especificidade, Manuel Antônio de Almeida cria uma
obra cuj a dimensão realista está na captação precisa da realidade brasileira, paradoxalmente escon­
dida, neste momento histórico-literário, em nome de um nacionalismo patriótico e ufanista.

Linguagem
Com linguagem despojada e precisa, em estilo coloquial, direto, Manuel Antônio de Almeida,
em Memórias de um Sargento de Milícias, recria o cotidiano carioca do início de século XIX. As
marcas de oralidade, de coloquialidade, o constante tom de crônica de jornal, e a mistura de leve­
C3
w
za e realismo aproximam a linguagem desta obra da literatura modernista, para a qual se deveria :E
escrever como se fala. "Com a contribuição milionária de todos os erros", diria Oswald de ....J
Andrade mais tarde.
<(
w
Em conclusão, nesta obra não aparecem vestígios do idealismo algumas vezes açucarado da Q
literatura romântica, estilo predominante na época em que foi escrita. o
Em vez disso, a constante combinação de ironia e espírito crítico, de bom humor e registro joco­ z
so de costumes populares, incluindo o linguajar, contribuem fortemente com a inserção destas <O
Memórias no quadro mais amplo da construção de uma literatura brasileira moderna, como obser­ 1-
z
varemos lendo os trechos finais da história: <(
....J
Depois disto entraram todos em conferência. O major desta vez achou o pedido muito justo, w
em conseqüência do fim que se tinha em vista. Com a sua influência tudo alcançou; e em o
uma semana entregou ao Leonardo dois papéis: u m era a sua baixa da tropa de linha; outro, z
<(
sua nomeação de Sargento de Milícias.
:E
Além disso recebeu o Leonardo ao mesmo tempo carta de seu pai, na qual o chamava para -
fazer-lhe entrega do que lhe deixara seu padrinho, religiosamente intacto. •
41
Passado o tempo indispensáuel do luto, o Leonardo, em uniforme de Sargento de Milícias,
receheu-se na Sé com Lztisinha, assistindo a cerimônia a família em peso.
Daqui em dian te aparece o reverso da medalha. Se[!,u iu-se a morte de Dona Maria, a do
Leonardo Pataca, e uma m�jzada de acolltecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazen­
do aqui o pontojznal.

Neste exemplo o narrador se refere ao leitor, faz uso da metalinguagem (''fazendo aqui o ponto
final"), ou sej a, alude ao ato de estar compondo ao longo da própria composição, e parece se auto­
ironizar, ironizando o happy end romântico, pois logo após os dados do desfecho feliz noticia duas
mortes e afirma que vai poupar o leitor de inevitáveis acontecimentos tristes. Estes são procedi­
mentos que anunciam a estética modernista em nosso país.

v QUESTÕES
11 ( U N I CAMP) apenas porém reconheceu as três, correu apressado
à camarinha vizinha, e envergou o mais depressa
Manuel Antônio deseja contar de que maneira
se vivia no Rio popularesco de D. João VI; as que pôde a farda; como o tempo urgia, e era uma
famílias mal organizadas, os vadios, as procis­ incivilidade deixar sós as senhoras, não completou
sões, as festas e as danças, a polícia; o meca­ o uniforme, e voltou de novo à sala defarda, calças
nismo dos empen hos, influências, compadrios, de enfiar, tamancos, e um lenço de A /cabaça sobre
punições que determinavam certa forma de o ombro, segundo seu uso. A comadre, ao vê-lo
consciência e se man ifestavam por certos tipos assim, apesar da aflição em que se achava, mal pôde
de comportamento ( . . . ). O livro aparece. pois, conter uma risada que lhe veio aos lábios.
como seqüência de situações. (Antônio Cândi­
Compare essa imagem do major com a que ele
do, Formação da Literatura Brasileira).
tem nos capítulos anteriores. Diga se a nova
a) Quem dá unidade, na obra, a essa seqüência imagem do major antecipa o resultado da visita
de episódios aparentemente soltos? das três mulheres e explique por quê.

b) Cite um desses relatos e mostre como ele se Que tipo de herói é apresentado em Memórias
articula com a linha mestra do romance. de um Sargento de Milícias e quais as conse­
qüências de sua criação para o romance brasi­
( U N ICAMP) No capítulo XXI I I das Memórias de leiro?
um Sargento de Milícias, o major Vidigal é visita­
do por três mul heres que intercedem por E m termos de linguagem, por que a obra Me­
Leonardo. mórias de um Sargen to de Milícias afasta-se do

O major recebeu-as de rodaque de chita e tamancos,


contexto romântico em que foi escrita?
não tendo a princípio suposto o quilate da visita;

v RESPOSTAS POSSÍVEIS
11 a) Os relatos aparentemente soltos da obra mado e trapalhão, deixa entrever que sua seve­
adquirem coesão através do foco na rrativo, ridade pode ser vencida, ou melhor, que u m
isto é, da postura irônica e crítica com que o pedido d e senhoras ( n o caso a libertação de
narrador-observador vai tecendo as situa­ Leonardo) tem grandes chances de ser atendi­
ções, e também através dos personagens do (o que de fato acontece).
que nelas atuam, especialmente o protago­
nista - Leonardo - cuja trajetória constitui Em vez do tradicional herói romântico, temos
um dos " ganchos" que nos permitem reco­ um anti-herói em Memórias de um Sargento de
nhecer a presença do en redo e de persona­ Milícias. Filho de uma " pisadela" e de um " be­
gens: elementos fundamentais que caracteri­ liscão " , vadio, malandro, Leonardo no entanto é
<( zam o romance. simpático ao leitor. Por isso, não deixa de ser
Cl b) A prisão de Leonardo por vadiagem, realizada um herói, embora "pelo avesso " , isto é, através

z
pelo major Vidigal, e posteriormente a sua li­
bertação e inclusão nos quadros da própria
de defeitos e não de virtudes, o que prenuncia
Macunaíma, o " herói sem nenhum caráter" do
LU polícia - situações deflagradas graças à Modernismo brasileiro e assim enfatiza em nos­
� intervenção de Maria Regalada, que fora sa literatura uma tendência de discussão de ele­
·o amante do major e o faz mudar de atitude mentos típicos da realidade brasileira, presente
u com tamanha radicalidade - constituem em a utores como Mário de Andrade, o criador
<( relatos que se articulam com a linha mestra de Macunaíma e Oswald de Andrade.
o: do romance. Isto pelo fato de tais relatos evi­
::> denciarem a lguns de seus elementos mais O tom jornalístico, coloquial, a presença da ora­


o:
importantes: a malandragem bem-sucedida,
a oscilação entre os u niversos da ordem e da
lidade, as conversas com o leitor, a metalingua­
gem e a ironia leve, constituem alguns elemen­
LU desordem, o amoralismo dos personagens, tos da linguagem de Memórias de um Sargento
1- dentre outros. de Milícias que distanciam a obra do contexto
.....J romântico em que foi escrita, aproximando-a da
n o major sempre cultivou uma imagem austera,
-
literatura modernista.
(iil de severidade e disciplina. Ao aparecer desarru-
48
LITERATURA COMENTADA
Emília Amaral, Ricardo Silva Leite

O ROMANTISMO NO BRASIL
Na primeira metade do século XIX, a literatura européia foi acometida por uma onda de hiper­
sensibilidade, tão ampla e intensa que logo foi considerada o mal do século. A poesia passou a
exprimir uma crise moral que alternava momentos de angústia e depressão com ironia e cinismo.
Amor e morte, idealização e erotismo, confissão e fantasia, tudo se misturava em delírios escapis­
tas. O pessimismo e a melancolia tornaram-se a última moda e sinal identificador do gênio artís­
tico. O modelo e grande ídolo dessa tendência foi Byron, poeta inglês morto aos 36 anos.
A voga byroniana chegou ao Brasil nos anos 50, dominando, por duas décadas, a segunda
geração de nossos poetas românticos. A poesia nacionalista-indianista e a recatada sensualidade
de Gonçalves Dias deram lugar ao pessimismo adolescente de Casimira de Abreu, ao "mundo
visionário" e ao erotismo mórbido de Álvà'res de Azevedo. A Lira dos Vinte Anos (poesia) e Noite
na Taverna (contos) são as principais rtlâlizações de nosso Ultra-Romantismo.

O BRASIL DA SEGUNDA GERAÇÃO ROMÂNTICA


Nos anos 50 o Brasil tinha sete mllhões de habitantes, dos quais dois milhões eram escravos.
Nas três décadas anteriores (Primeiro Reinado e Regência), firmara sua independência e vencera
crises econômicas e políticas. A aparente estabilidade do Segundo Reinado (a partir de 1 840) mal
disfarçava as contradições do modelo monárquico-escravocrata que o levariam, através de crises
sucessivas, a um melancólico final.
Com a abolição do tráfico negreiro ( 1 850), os capitais nele empregados ficaram disponíveis
para a aplicação em outras atividades econômicas. O país iniciava um lento processo de moder­
nização que resultaria na abolição definitiva do trabalho escravo, em 1 888. Os costumes da alta
sociedade carioca passaram por grandes transformações nesse período, agitando-se em bailes e
saraus que arremedavam o estilo de vida da aristocracia e da burguesia européia. Mas o requinte
da vida social da corte não escondia o arcaísmo e as contradições do sistema escravagista, manti­ o
do pela aristocracia rural. Foi nesse ambiente de provincianismo esnobe que se desenvolveu a Q
w
moda ultra-romântica. >
w
A Província de São Paulo estava em plena ascensão econômica, com a expansão da cultura
do café e o incipiente desenvolvimento industrial. Sua capital, entretanto, era uma pequena cida­ �
w
de, de cuja monotonia Álvares de Azevedo muitas vezes se queixou em cartas à família e aos ami­ Q
gos. Agitava-a apenas a vida estudantil, pois, desde a fundação da Academia de Ciências U)
w
Jurídicas, em 1 827, tornara-se uma das duas únicas opções (a outra era Olinda) para as famílias a:
ricas que queriam ter um filho bacharel. No Largo São Francisco formaram-se grandes políticos �
:..J
do Império e muitos dos grandes autores de nossa literatura. Foi entre os acadêmicos que surgi­ -<(
ram as primeiras manifestações da poesia byroniana brasileira e o principal de seus poetas - -
Álvares de Azevedo.
49
,

ALVARES DE AZEVEDO
...
- Foi poeta - sonhou - e amou na vida. -

Imploro uma ilusão. . . tudo é silêncio!


Só o deserto leito, a sala muda!

UM POETA ADOLESCENTE
Se o Romantismo, como disse alguém, foi um movimento de adolescência, ninguém
o representou mais tipicamente no Brasil. O adolescente é muitas vezes um ser dividi­
do, não raro ambíguo, ameaçado de dilaceramento, como ele, em cuja personalidade
literária se misturam a ternura casimiriana e nítidos traços de perversidade; desejo de
afirmar e submisso temor de menino amedrontado; rebeldia dos sentidos, que leva
duma parte à extrema idealização da mulher e, de outra, à lubricidade que a degrada
(Antônio Cândido, Formação da Literatura Brasileira).
O adolescente de que fala Antônio Cândido não teve tempo de amadurecer. Se
tivesse vivido mais tempo, sua poesia talvez tivesse ultrapassado a moda byroniana,
caminhando em direção ao Realismo. Mas, mesmo com a limitação da idade, produziu
a melhor obra de sua geração: um livro de poesia lírica (Lira dos Vinte Anos), dois em
prosa (Noite na Taverna e Livro de Fra Gondicário) e uma obra dramática (Macário).

A LIRA DOS VINTE ANOS


Embora publicada postumamente, como toda a sua obra, a edição da Lira dos Vinte
Anos foi preparada pelo próprio autor, que a dividiu em três partes, antepondo peque­
nos prefácios às duas primeiras. É o próprio poeta que chama a atenção do leitor: [ . .]
a unidade deste livro funda-se numa hinomia. Duas almas que moram nas cavernas de
um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha
de duasfaces.
J6 PARTE (33 poemas)
No prefácio o autor coloca a primeira parte sob o signo de Ariel, personagem sha­
kespeareana, espírito do ar. Predominam aqui os poemas sentimentais, de um confes­
sionalismo pungente e ingênuo. A temática amorosa é predominante. A mulher ideali­
zada, anjo ao mesmo tempo virginal e lúbrico, é o sucedâneo do amor não experimen­
tado, feito de desejos e frustrações, páginas despedaçadas de um livro não lido
(Prefácio). Um erotismo febril manifesta-se em sonhos e visões, no leito vazio.
2" PARTE (14 poemas)
A segunda parte abre-se com a advertência do autor:
Cuidado, leitor, ao voltar esta página!
Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico.
ascido em São Paulo em 1 83 1 . passou Sob o signo de Caliban, gnomo monstruoso que personifica as forças brutas e pri­
Na infância no Rio de Janeiro, até a mitivas, desenvolve-se uma poesia irônica e mesmo sarcástica. A evasão pelo sonho dá
conclusão do curso de humanidades. Em
lugar à confissão realista do romântico entediado, ao culto do spleen e dos vícios (cha­
1 848 estabeleceu-se em São Paulo para
rutos, conhaque) e até mesmo à paródia satírica da poesia ultra-romântica. O poeta
cursar a Faculdade de Direito, onde foi
colega de Bernardo Guimarães, José de
acorda na terra.
<( Alencar e Aureliano Lessa. participou de
o 3" PARTE - 30 poemas
associações estudantis e produziu sua obra
z
� literária. Não chegou a terminar o curso de
Volta-se aqui ao tom e aos temas da primeira parte: poesia visionária e platônica,
amor e morte, a mulher idealizada em sonhos, delírios eróticos.
w direito. No final de 1 85 1 , atacado pela
� tuberculose pulmonar. Álvares de Azevedo
o voltou para o Rio em tratamento de saúde. ANTOLOGIA COMENTADA
u Um acidente num passeio a cavalo causou­
, , · -' \.) '
<( lhe um tumor na fossa ilíaca. Não resitiu à Saudades
c:
=> cirurgia a que foi submetido, falecendo no
dia 25 de abril de 1 852, antes de completar

cr.
21 anos. Os poemas mais comoventes e
'T is vain to struggle - let me perish young
BYRON.
w pessimistas do autor foram escritos neste
1- último período da vida e atestam a angústia Foi por ti que num sonho de ventura Vinte anos! �wm-os gota a gota
:::i e o pressentimento da morte que o A .flor da mocidade consumi, Num abismo d li��.f esquecimento. . .
- dominavam.
o E às primaveras disse adeus tào cedo De fogosas viStféS nutft meu peito . . .
50 E na idade do amor envelheci! Vinte anos!. . . não vivi' um só momento!
Contudo, no passado uma esperança
Tanto amor e ventura prometia, Meu Deus! e quantas eu amei!. . . Contudo
E uma virgem tão doce, tão divina Das noites voluptuosas da existência
Nos sonhos junto a mim adormecia!. . . Só restam-me saudades dessas horas
Que iluminou tua alma d'inocência!
Quando e u lia com ela - e n o romance
Foram três noites só . . . três noites belas
Suspirava melhor ardente nota,
De lua e de verão, no val saudoso . . .
E jocelyn sonhava com Laurence
Que eu pensava existir. . . sentindo o peito
Ou Werther se morria por Carlota,
Sobre teu coração morrer de gozo!
Eu sentia a tremer, e a transluzir-lhe
E por três noites padeci três anos,
Nos olhos negros a alma inocentinha,
Na vida cheia de saudade infinda . . .
E uma furtiva lágrima rolando
Três anos de esperança e de martírio . . .
Da face dela umedecer a minha!
Três anos de sofrer - e espero ainda!
E quantas vezes o luar tardio
A ti se ergueram meus doridos versos,
Não viu nossos amores inocentes?
Reflexos sem calor de um sol intenso:
Não embalou-se da morena virgem
Votei-os ã imagem dos amores
No suspirar, nos cânticos ardentes?
Pra velá-la nos sonhos como incenso!
E quantas vezes não dormi sonhando
Eu sonhei tanto amor, tantas venturas,
Eterno amor, eternas as venturas,
Tantas noites de febre e d'esperança!
E que o céu ia abrir-se, e que entre os anjos
Mas hoje o coração desbota, esfria,
Eu ia despertar em noites puras?
E do peito no túmulo descansa!
Foi esse o amor primeiro - requeimou-me
Pálida sombra dos amores santos,
As artérias febris da juventude,
Passa, quando eu morrer, no meu jazigo;
Acordou-me dos sonhos da existência
Ajoelha-te ao luar e canta um pouco,
Na harmonia primeira do alaúde!
E lá na morte eu sonhei contigo!

Neste poema encontramos os principais temas da primeira parte da Lira dos Vinte Anos, assim
como as principais qualidades e defeitos do autor.
Observe-se primeiramente a influência de Byron, explicitada na citação em epígrafe ("É inú­
til lutar - deixe-me morrer jovem"). Ao mesmo tempo, o caráter confessional do poema transpa­
rece na referência à idade do autor ("vinte anos"). O tom de frustração e desalento perpassa todo
o texto: o adolescente envelhecido numa experiência amorosa intensa, mas feita apenas de sonhos.
A mulher, idealizada como uma "virgem doce", "divina", de "alma inocentinha", é única saudade
que resta à alma esgotada por uma intensa experiência amorosa ("quantas eu amei!"). Essa nostal­
gia da inocência perdida é tema freqüente no Ultra-Romantismo. Ao sujeito lírico resta apenas a
esperança de reencontrá-la na morte.
A T. .•

No amor basta uma noite para jazer de um homem um Deus.


PROPÉRCIO.

Amoroso palor meu rosto inunda, Estrela de mistério! em tua fronte


Mórbida languidez me banha os olhos, Os céus revela, e mostra-me na terra,
Ardem sem sono as pálpebras doridas, Como um anjo que dorme, a tua imagem
Convulsivo tremor meu co!po vibra: E teus encantos onde amor estende
Quanto sofro por ti! Nas longas noites Nessa morena tez a cor de rosa
Adoeço de amor e de desejos Meu amor, minha vida, eu sofro tanto!
O fogo de teus olhos me fascina,
E nos meu sonhos desmaiando passa
O langor de teus olhos me enlanguesce.
A imagem voluptuosa da ventura . . .
Cada suspiro que te abala o seio
Vem no meu peito enlouquecer minh 'alma!
Eu sinto-a de paixão encher a brisa,
Embalsamar a noite e o céu sem nuvens, Ah! vem, pálida virgem, se tens pena
E ela mesma suave descorando De quem morre por ti, e morre amando,
Os alvacentos véus soltar do colo, Dá vida em teu alento à minha vida, o
Une nos lábios meus minh'alma à tua! o
Cheirosas flores desparzir sorrindo w
Eu quero ao pé de ti sentir o mundo
Da mágica cmtura. >
Na tu 'alma infantil; na tudji'Onte w
Sinto na fronte pétalas deflores,
Sinto-as nos lábios e de amor suspiro.
Beijar a luz de Deus; nos teus suspiros
Sentir as virações do paraíso: �
Mas flores e peifumes embriagam, E a teus pés, de joelhos, crer ainda w
E no fogo da febre, e em meu delírio Que não mente o amor que um anjo impira,
o
Embebem na minh 'alma enamorada Que eu posso na tu 'alma ser ditoso, cn
w
Delicioso veneno. Beijar-te nos cabelos soluçando a:
E no teu seio serfeliz morrendo/
(Dezembro, 185 1)

;,_,j
-<(
Este poema, também da primeira parte do livro, foi composto alguns meses antes da morte do -
autor, quando a tuberculose já se manifestara. As imagens do amor confundem-se com as imagens
51
da doença e da morte. Esta é uma interpretação possível, mas lembremos que a relação entre amor
e morte é lugar-comum no Ultra-Romantismo e na Lira dos Vinte Anos.
O sentimento intenso de solidão e de frustração dos desejos provoca as noites de insônia, a
febre e a evasão pela fantasia erótica. No delírio, a imagem da mulher torna-se concreta, excitan­
do todos os sentidos do eu lírico: a visão (a mulher desnudando-se), o olfato, o tato e o paladar
(pétalas de flores, cheirosas, pousando-lhe nos lábios e embebendo-os de delicioso veneno), a
audição (os suspiros). Na segunda estrofe, a expressão atinge um tom patético, de autopiedade,
comum em muitos poemas do autor: Meu amor, minha vida, eu sofro tanto!.
Cabe aqui a observação de Alfredo Bosi: A evasão segue, nessejovem hipersensível, a rota de
Eros, mas o horizonte último é sempre a morte (in História Concisa da Literatura Brasileira). No
último verso, a morte é a condição da felicidade.

É Ela! É Ela! É Ela! É Ela!

É ela! é ela f - murmurei tremendo, Oh! de certo . . . (pensei) é doce página


E o eco ao longe murmurou - é ela! Onde a alma derramou gentis amores;
Eu a vi . . . minha fada aérea e pura - São versos dela . . . que amanhã de certo
A minha lavadeira na janela! Ela me enviará cheios deflores. . .
Dessas águasfurtadas onde eu moro Tremi de febre! Venturosa folha!
Eu a vejo estendendo no telhado Quem pousasse contigo neste seio!
Os vestidos de chita, as saias brancas; Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu a vejo e suspiro enamorado! Eu beijei-a a tremer de devaneio . . .
Esta noite eu ousei mais atrevido É Ela! é Ela! - repeti tremendo;
Nas telhas que estalavam nos meus passos Mas cantou nesse instante uma coruja . . .
Ir espiar seu venturoso sono, Abri cioso a página secreta . . .
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços! Oh! meu Deus! era u m rol de roupa suja!
Como dormia! que profundo sono!. . . Mas se Werther morre"a por ver Carlota
Tinha na mão o ferro do engomado . . . Dando pão com manteiga às criancinhas
Como roncava maviosa e pura!. . . Se achou-a assim mais bela, - eu mais te adoro
Quase cai na ' rua desmaiado! Sonhando-te a lavar as camisinhas/
Afastei a janela, entrei medroso. . . É ela! é ela! meu amor, minh'alma,
Palpitava-lhe o seio adormecido . . . A Laura, a Beatriz que o céu revela . . .
Fui beijá-la . . . roubei do seio dela É ela! é ela! murmurei tremendo
Um bilhete que estava ali metido . . . E o eco ao longe suspirou - é ela!

Este é um dos mais conhecidos poemas da segunda parte da Lira dos Vinte Anos. Já no título
o autor satiriza o tom patético da poesia ultra-romântica. Os três primeiros versos poderiam figu­
rar na primeira parte do livro: a emoção do encontro, a participação da natureza, através do eco, a
idealização da mulher - "fada aérea e pura". Reserva-se a surpresa para o quarto verso e, a par­
tir daí, o poema torna-se uma paródia reveladora dos exageros emocionais da poesia byroniana
(melhor diríamos, azevediana).
A sátira se faz através das antíteses (fada/lavadeira; roncava/maviosa e pura; versos/rol de
roupa suja) que operam inversões entre o sublime e o grotesco, o alto e o baixo, a fantasia e a rea­
lidade, o poético e o prosaico. Tais inversões põem em ridículo não a realidade prosaica da lava­
deira idealizada, mas a própria atitude evasiva do Ultra-Romantismo diante da vida.
Não nos enganemos, portanto: o riso não diminue o pessimismo do poeta na segunda parte da
obra. Pelo contrário. Na primeira parte, dois valores se afirmam, absolutos, acima do bem e do
mal, como únicas condições necessárias à felicidade: o amor e a poesia. Na segunda parte, esses
<(
Q mesmos valores são motivos de zombaria.


z
Adeus, Meus Sonhos
w
Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro! Que me resta, meu Deus? morra comigo

o Não levo da existência uma saudade! A estrela de meus cândidos amores,
u E tanta vida que meu peito enchia já que não levo no meu peito morto
<( Morreu na minha triste mocidade! Um punhado sequer de murchas flores!
a:
::::> Misérrimo/ votei meus pobres dias


À sina doida de um amor sem fruto,
E minh 'a lma na treva agora dorme
a:
w Como um olhar que a morte envolve em luto.
1-
....J Neste poema da terceira parte, o tema central é a morte. O pessimismo agora, quando o poeta
-
está diante da morte, toma-se pungente. Nada o prende à vida, dela não leva qualquer saudade. Por
52
isso, em sua despedida, dirige-se aos sonhos, que, embora irreais, foram a única sustentação de sua
existência.
Estes versos ecoam outros, da primeira parte, em que assim fala à virgem de seus sonhos:
Só tu -mocidade sonhadora Se viveu, foi por til e de esperança
Do pálido poetadesteflores. . . De na vida gozar de teus amores.

11 (U. F. Viçosa) Leia o poema, considerando o tema da


atração que a mulher exerce sobre o poeta românti­
b) o primeiro se destaca por um gênero jamais fre­
qüentado pelo segundo: o gênero lírico-amoroso.
co: c) os versos do primeiro traduzem um lirismo senti­
Junto a meu leito, com as mãos unidas mental e intimista, enquanto que os do segundo
Olhos fitos no céu, cabelos soltos, abrem-se para os temas históricos e políticos da
Pálida sombra de mulher formosa época.
Entre nuvens azuis pranteia orando d) os versos do poeta baiano estão comprometidos
É um retrato talvez. Naquele seio com a causa abolicionista, ao passo que os versos
Porventura sonhei doiradas noites: do poeta paulista revelam um empenho político
Talvez sonhando desatei sorrindo bastante conservador.
Alguma vez nos ombros perfumados e) a linguagem da Lira dos Vinte Anos é mais ousada
Esses lábios negros, e em delíquio e exclamativa que a das Espumas Flutuantes, que
Nos lábios dela suspirei tremendo, revela a timidez e o abafamento psicológico de
Foi-se a minha visão. E resta agora seu autor.
Aquela vaga sombra na parede
- Fantasma de carvão e pó cerúleo. n (UNES) O ul�ra-romantismo brasileiro é bem repre­
Tão vaga, tão extinta e fumarenta lill sentado por Alvares de Azevedo, cujas características
Como de um sonho o recordar incerto. principais são:
(Álvares de Azevedo) a) poesia noturna e subjetiva, gosto por temas mórbi­
dos.
Assinale a alternativa FALSA: bl poesia lírica e ingênua, gosto por temas singelos.
a) A presença de um erotismo doentio e reprimido c) poesia indianista e nacionalista, gosto por temas
torna a mulher uma musa distante do poeta. políticos.
b) A descrição da mulher amada aproxima-se da ima­ d) poesia panteísta e naturalista, gosto por temas da
gem angelical e sagrada que caracteriza a Senhora natureza.
da concepção medieval. e) poesia condoreira e polftico-social, gosto por
c) Só em sonhos, o poeta realiza o desejo de tocar a temas revolucionários.
mulher amada.
d) Dividido entre espírito e matéria, o poeta só deixa � (FUVEST) Em frente do m_eu leito, em negro quadro
transparecer o aspecto inocente dessa relação. liWI A mmha amante dorme. E uma estampa
De bela adormecida. A rósea face
e) A subjetividade romântica idealiza a figura da mu­
Parece em visos de um amor lascivo
lher.
De fogos vagabundos acender-se. . .
r:ll (U. F. Pará)
� Alguns poetas adolescen tes, mortos antes de toca­
Esses versos de Álvares de Azevedo, da Lira dos Vin­
te Anos, apóiam a seguinte afirmação sobre o conjun­
rem a plena juventude, darão exemplos de toda uma
temática emotiva de amor e morte, dúvida e ironia,
to 'Idéias íntimas', de onde foram extraídos:
entusiasmo e tédio.
a) Em versos brancos e em ritmo fluente, o discurso
O texto acima, de Alfredo Bosi, faz referências à obra poético combina notações realistas e fantasias
de: amorosas.
a) Castro Alves b) A lascívia, combinada com a sátira, elimina a possi­
b) Alberto de Oliveira bilidade de lirismo amoroso, reservado para a
c) Tomás Antônio Gonzaga segunda parte do livro.
d) Álvares de Azevedo c) No espaço do quarto, o poeta vinga-se das frustra­
e) Machado de Assis ções amorosas, satirizando a imagem de sua
amada.
Bll (Fund. Édson Queiroz - Fortaleza) Comparando-se d) Imaginando-se pintor, o poeta vai esboçando num
Y os aspectos mais marcantes da poesia de Álvares de quadro as figuras da virgem romântica e da aman­
Azevedo e de Castro Alves, pode-se corretamente te calorosa. o
afirmar que: e) Os decassílabos e o lirismo intimista são traços o
que já fazem antever as tendências poéticas da w
>
a) se trata de obras igualmente expressivas e repre­ geração seguinte.
w
sentativas da mesma geração de escritores român­
ticos. �
w
o
(/)
w
a:

:.J
·<(
-

53
CASTRO ALVES
Quebre-se o cetro do Papa,
Faça-se dele- uma crnz!
A púrpura siroa ao povo
P'ra cobrir os ombros nus.

CASTRO ALVES E O ROMANTISMO BRASILEIRO


Sua estréia coincide com o amadurecer de uma situação nova: a crise do Brasil
puramente rural; o lento mas firme crescimento da cultura urbana, dos ideais demo­
cráticos e, portanto, o despontar de uma repulsa pela moral do senhor-e-servo, que
poluíra as fontes da vida familiar e social do Brasil-Império. (..) Mostra-se entusias­
mado ao ver a penetração da máquina no meio agreste; e nisto é um autêntico filho da
burguesia liberal em fase de expansão, logo ficada e reduzida ao sistema agrário.
(Alfredo Bosi)

Por definição, Castro Alves era um romântico, mas contrariamente a seus prede­
cessores que se deixaram absorver pelo passado ou simplesmente por suas nostálgicas
sugestões, voltava-se para o futuro com todo o fervor de um coração juvenil. Não tanto
por ser ainda um adolescente, mas porque havia algo místico nessa atitude, com a qual
Victor Hugo mereceu o título de Poeta- Vidente, por suas messiâncias pregações em
prol do Progresso e da Civilização.
(Eugênio Gomes)

A produção da poesia romântica brasileira deu-se ao longo de três gerações de poetas.


A primeira ( 1 840 a 1 850), comprometida com a consolidação artística de nossa
Independência política ( 1 822), caracteriza-se por um nacionalismo indianista e encon­
tra em Gonçalves Dias seu principal representante.
A segunda ( 1 850 a 1 860) denomina-se "ultra-romantismo". Seu traço mais típico é
um estado de espírito conhecido como "mal do século", no qual predomina o spleen
(tédio, morbidez, depressão), o desejo de evasão e morte, o constante sentimento de
incompatibilidade entre o ideal e a existência cotidiana, vista como medíocre, prosaica
ntônio Frederico de Castro Alves, ·o poeta
e injusta. Álvares de Azevedo é o nosso grande poeta ultra-romântico.
A dos escravos". teve vida efêmera, mas A terceira ( 1 8960 a 1 870) antes de mais nada procurou questionar a realidade a fim
agitada e brilhante. Nasceu em Curralinho !hoje de transformá-la, por esta razão prenunciando o Realismo.
Castro Alves). Bahia, em 1847; estudou Direito no Castro Alves, o principal criador dessa geração, dedicou-se principalmente a dois
Recife - onde conheceu Eugênia Câmara. uma gêneros poéticos: o lírico-amoroso e o épico.
atriz portuguesa a quem amou perdidamente, e No primeiro, embora preserve em alguns textos as visões idealizadas do amor e da
que em muitos poemas l íricos denominou a "Dama
mulher, destacou-se por um erotismo mais natural e mais ardente que aquele encontra­
Negra" - e também em São Paulo.
do na lírica de Álvares de Azevedo, o que toma sua musa mais encarnada, mais real que
Junto de Eugênia. encenou em vários lugares sua
peça teatral, denominada Gonzaga, ou a
as fugidias senhoras medievais que povoam grande parte dos poemas ultra-românticos.
Revolução de Minas, procurando despertar o No segundo, criou uma poesia social, dedicada a temas públicos, políticos, conhe­
<( interesse da mocidade brasileira pelas grandes cida como condoreira ou hugoana. Condoreira pelas simbologias de amplidão e de
Cl idéias revolucionárias da época: a Abolição e a liberdade presentes na palavra condor, que significa uma ave-símbolo dos vôos altos e

z
República. livres; hugoana em referência a Victor Hugo, o grande escritor romântico francês cujas
Dedicou, assim, a curta existência à poesia, às
w obras tematizam as revoluções e transformações sociais, que com Lord Byron foi o
experiências amorosas e às lutas políticas e
� mestre de Castro Alves e de sua geração.
sociais. com intensa participação em comícios e
o Com tom oratório, exaltado e grandiloqüente, esta poesia é feita para ser decla­
u manifestações abolicionistas.
Aos 22 anos, já separado de Eugênia, amputou o mada em praças e comícios, para resgatar o sentido de missão e de "alta" inspiração da
<(
a: pé esquerdo, que foi ferido num acidente de caça. lira romântica, para saudar os novos tempos - o avento do Progresso e da
:::) Dois anos depois 11871), a tuberculose, que Modernidade, a Democracia, a República - e defender grandes causas, como a
�a: contraíra ainda adolescente. voltou a atacá-lo. Abolição da Escravatura.
Morreu em Salvador. aos 24 anos. Pujante, inconformista, messiânica, universal e ao mesmo tempo nacionalista, essen­
w
.,__ cialmente romântica e ao mesmo tempo pré-realista, a poesia de Castro Alves possui
::i Outras obras: A Cachoeira de Paulo Afonso,
- Os Escravos
grande qualidade artística e humana.
o
54
ESPUMAS FLUTUANTES O livro das Espumas Flutuantes é, pelo visto, o de
um moço que, náufrago de todas as ilusões, angus­
Data de 1 870 o surgimento de Espumas Flutuantes, tiadamente lança-se a seus versos para não soço­
único livro que Castro Alves publicou em vida. Sentindo-se brar de vez ante a posteridade. O sentimento do
próximo da morte, organizou-o a fim de deixar uma amos­ abismo final à vista influiu evidentemente sobre a
tra com as principais diretrizes de sua inspiração: a poesia precipitada organização dessa coletânea, na qual
amorosa; a poesia social e humana; a poesia patriótica e Castro Alves quis deixar uma idéia de todas as vii­
a poesia laudatória (de louvação à natureza, às datas, à per­ tualidades de sua poética, com os olhos ainda fitos
sonagens da pátria, às pessoas etc.). no futuro . . . Encontram-se ali as principais diretrizes
Trata-se, portanto, de uma coletânea desigual. Nela há de sua inspiração, que variou sempre de acordo
com as circunstâncias e o gosto de sua época.
textos de idealização da mulher e de obsessão pela morte,
de clara influência ultra-romântica, e também textos em que (Eugênio Gomes)
a sensualidade explícita e o erotismo expresso remetem ao
lirismo-amoroso que se tomou marca registrada do poeta.
Composta de 53 textos, escritos entre 1 864 e 1 870, a obra também abarca os grandes temas
sociais - a defesa do Progresso, da Civilização, da Justiça, do Ideal, da Liberdade; a Abolição da
escravatura, o advento da República etc - e as imensas paixões às quais Castro Alves se dedicou:
a Natureza, a Inspiração poética, o primado do Sentimento sobre a Razão, a Nação com seus vul­
tos heróicos etc.
Além disso, nela aparecem os estados emocionais do poeta, tanto em seus momentos de alvo­
roço juvenil, de arrebatamento eufórico, quanto nas terríveis apreensões diante da morte e do sen­
timento precoce da velhice.
Os sentimentos humanitários, a preocupação com o futuro da humanidade e do mundo, a evo­
cação da infância, a brejeirice e a voluptuosidade, o desengano e a esperança, as paisagens bucó­
licas e a natureza antropomorfizada, constituem, enfim, elementos do amplo espectro temático que
recobre estas Espumas Flutuantes.
Vazada na imaginação essencialmente plástica, exterior, objetiva de Castro Alves - um poeta
atento ao espaço visível, ao tato, ao movimento, à expressividade das camadas rítmicas e ima­
géticas do verso - a obra de que conheceremos alguns poemas exemplares sem dúvida constitui
um marco do Romantismo liberal e pré-realista que tivemos em nosso país.

Antologia Comentada

(. . .) E o que são na verdade estes meus cantos?. . .


Como as espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos da
musa - este sopro do alto; do coração - este pélago da alma.
E como as espumas são, às vezes, a flora sombria da tempestade, eles por vezes rebenta­
ram ao estalarfatídico do látego da desgraça.
E como também o aljofre dourado das espumas reflete as opalas, rutilantes do arco-íris,
eles por acaso refletiram o prisma fantástico da ventura ou do entusiasmo - estes signos bri­
lhantes da aliança de Deus com a juventude!
Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a lágrima sau­
dosa do marujo . . . possam eles, ó meus amigos! - efêmeros filhos de mính 'a lma - levar uma
lembrança de mim às vossas plagas!

Neste trecho do prefácio de Espumas Flutuantes, podemos observar que o poeta, ao afirmar
serem os seus cantos filhos da musa - este sopro do alto; e do coração - este pélago da alma,
identifica-se como romântico ao leitor, uma vez que lança mão de elementos característicos desse
estilo literário, que são recorrentes ao longo de toda a obra: o fazer poético como resultado de
inspiração, que vem de um "sopro do alto", isto é, de uma musa transcendente, e também dos
sentimentos. c )
UJ
Tais sentimentos - tanto os que ele vivenda quanto os que desej a despertar - são poetica­
mente expressos por meio da natureza, grande aliada dos poetas românticos, como se percebe na

<(
evocação do mar, com suas vagas e espumas, do céu, do vento etc . o
A associação metafórica entre os cantos e as espumas flutuantes do mar permite-nos reconhe­ a:
1-
cer, nesta imagem que foi utilizada como título da obra, a presença da temática da transitorieda­ CJ)
de da vida, da brevidade da existência, fazendo com que nos lembremos tratar-se de trabalho <(
u
-
organizado para publicação apenas um ano antes da morte do poeta.

55
O livro e a América (fragmento)
Filhos do sec'lo das luzes! Da Alemanha o velho obreiro
Filhos da Grande nação! A ave da imprensa gerou. . .
Quando ante Deus vos mostrardes, O Genovês salta os mares .. .
Tereis um livro na mão: Busca um ninho entre os palmares
O livro - esse audaz guerreiro E a pátria da imprensa achou. . .
Que conquista o mundo inteiro
Sem nunca ter Waterloo. . . Por isso na impaciência
Eólo de pensamentos, Desta sede de saber,
Que abrira a gruta dos ventos Como as aves do deserto ­
Donde a Igualdade voou!. . . As almas buscam beber. . .
Oh! Bendito o que semeia
Por uma fatalidade Livros. . . livros ã mão cheia . . .
Dessas que descem de além, E manda o povo pensar!
O sec 'lo, que viu Colombo, O livro caindo n 'alma
Viu Guttenberg também. É germe - que jaz a palma,
Quando no tosco estaleiro É chuva - quejaz o mar.

Repare que neste fragmento de O Livro e a América, Castro Alves tematiza, em tom épico,
grandiloqüente, condoreiro, o livro e a imprensa, vendo-os como símbolos da cultura e do saber,
no Novo Mundo, a América. Repare também que esta apologia dos valores do "futuro" e da civi­
lização utiliza-se das figuras de linguagem típicas do romantismo social do poeta e de sua gera­
ção para expressar-se artisticamente.
Na 1 a. estrofe, por exemplo, o poeta saúda o povo americano e o século em que foi descober­
to (passagem do século XV ao XVI, quando surge a ideologia burguesa, de caráter iluminista), por
meio de apóstrofe: Filhos do sec 'lo das luzesf/Filhos da Grande nação.
Na 2a. estrofe, a descoberta da América e do surgimento do livro e da imprensa são evoca­
dos, através de metáforas que romanticamente os idealiza, associando-os com elementos da natu­
reza, como a ave, o ninho, a chuva etc., e heroicizando Colombo e Gutenberg, os responsáveis
pelo nascimento do futuro, o futuro das luzes do saber e da razão, aclamado pelo poeta.
Na terceira estrofe, a metáfora e o paralelismo, sempre em tom hiperbólico, auxiliam na
construção de versos lapidares, em termos de força expressiva e poder de síntese, como O livro
caindo n 'alma/É germe - que faz a palma/É chuva - que faz o mar.

O ''adeus" de Teresa
A primeira vez que eu fitei Teresa, Passaram tempos. . . sec 'los de delírio
Como as plantas que arrasta a correnteza, Prazeres divinais. . . Gozos do Empíreo. . .
A valsa nos levou nos giros seus. . . . . . Mas u m dia volvi aos lares meus.
E amamos juntos. . . E depois na sala Partindo eu disse - "Voltarei!. . . descansa!. . . "
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co 'a fala . . . Ela, chorando mais que uma criança,

E ela, corando, murmurou-me: "adeus". Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"

Uma noite. . . entreabriu-se um reposteiro. . . Quando voltei. . . era o palácio em festa!. . .


E da alcova saía u m cavaleiro E a voz d'Ela e de u m homem lá na orquestra
Inda beijando uma mulher sem véus. . . Preenchiam de amor o azul dos céus.
Era eu . . . Era a pálida Teresa! Entrei! . . . Ela me olhou branca . . . sutpresa!
<( "Adeus" lhe disse conservando-a presa . . . Foi a última vez que eu vi Teresa!. . .
c
�z E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!" E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"
w
� Este poema apresenta afinidades com a produção lírico-amorosa do ultra-romantismo, como
o se vê pela utilização da natureza para expressar os sentimentos, pela visão idealizada do
u amor e da mulher, pela linguagem exclamativa e repleta de adjetivos etc. Entretanto, lendo-o
<(
a: com atenção podemos perceber que aqui o amor e a mulher adquirem maior concretude e vera­
::J cidade, tomando-se portanto menos fantasistas e puramente imaginários.

a:
No texto, há forte presença de cromatismo como recurso expressivo: a cor vermelha e a cor

w branca estão associadas, respectivamente, com os temas do encontro e do desencontro amoroso.


1- Observe, ainda, como se organiza o enredo do poema: a primeira e a última cena se aproximam,
:::::i na medida em que têm um baile por cenário; entretanto, enquanto na cena inicial o sujeito poéti­
.-.
co e sua amada dançam, na final ele a surpreende com outro homem.
56
Mocidade e Morte (fragmento)

E perto avisto o porto Não! o seio da amante é um lago virgem . . .


Imenso, nebuloso e sempre noite, Quero boiar à tona das espumas.
Chamando - Eternidade! Vem!formosa mulher - camélia pálida,
Laurindo (Rabelo) Que banhara m de pranto as alvoradas.
Minh 'alma é a borboleta, que espaneja
Lasciate ogni speranza, vai ch 'entrate O pó das asas lúcidas, douradas . . .
Dante
E a mesma voz repete-me terrível,
Oh! Eu quero viver, beberpeifu mes Com gargalhar sarcástico: - impossível!
Na flor silvestre, que embalsama os ares;
Ver minh 'alma adejar pelo infinito, Eu sinto em mim o borbulhar do gênio.
Qual branca vela n 'amplidão dos mares. Vejo além um futuro radiante:
No seio da mulher há tanto aroma . . . Avante! - brada-me o talento n 'alma
Nos seus beijos de fogo h á tanta vida . . . E o eco ao longe me repete - avante! ­
- Á rabe errante, vou dormir à tarde O futuro . . . o futuro . . . no seu seio. . .
À sombra fresca da palmeira erguida. Entre louros e bênçãos dorme a glória!
Após - um nome do universo n 'alma,
Mas uma voz responde-me sombria: Um nome escrito no Panteon da história.
Terás o sono sob a lájea fria.
E a mesma voz repete funerária: -
Morrer. . . quando este mundo é um paraíso, Teu Panteon - a pedra mortuária!
E a alma um cisne de douradas plumas:

Neste fragmento de Mocidade e Morte há uma estrutura textual em forma de diálogo entre a
vida e a morte. Por meio dela, percebemos que o suj eito lírico, apesar de seu desejo imenso de
viver, amar e dar asas a seu talento, sente-se condenado a morrer.
O verso Eu sinto em mim o borbulhar do gênio, um verso antológico de Castro Alves, exem­
plifica a visão romântica da poesia como resultado de inspiração e de talento, mais que de quais­
quer outros fatores. Observe na 23• estrofe o exotismo e o sensualismo do poeta: no seio da mu­
lher há tanto aroma (.. .) - Arabe errante vou dormir à tarde.

Hebréia (fragmento)
Fios campi et lilium convallium. Tu és, ófilha de Israel formosa . . .
(Cântico dos Cânticos) Tu és, ó linda, sedutora Hebréia . . .
Pálida rosa da infeliz judéia
Pomba d'esp 'rança sobre um mar d'escolhos! Sem ter o oroalho, que do céu deriva!
Lírio do vale oriental, brilhante!
Estrela vésper do pastor errante!
Ramo de murta a recender cheirosa!. . .

Observe que os sinais exclamativos que finalizam os versos da estrofe ampliam o caráter meta­
fórico de cada um deles, aumentando-lhes a expressividade e tomando-os mais emotivos e passio­
nais. Além disso, as metáforas referentes à Hebréia constróem, por meio de elementos pertencentes
à natureza - pomba, lírio, estrela e ramo de murta - uma imagem idealizada da mulher, reforçada
com apóstrofe: Tu és ", á filha . . . ; Tu és, ó linda... ; e antonomásia: filha de Israelformosa.

Quem dá aos pobres empresta a Deus ( . .)


(fragmento) E foram grandes teus heróis, ó pátria,
Eu, que a pobreza de meus pobres cantos - Mulherfecunda, que não cria escravos ­
Dei aos heróis - aos miseráveis grandes ­ Que ao trom da guerra soluçaste aos filhos:
Eu, que sou cego, - mas só peço luzes . . . "Parti - soldados, mas volta i-me - bravos!"
Que sou pequeno, - mas só fito os Andes . . . E qual Moema desgrenhada, altiva, CfJ
Canto nest'hora, como o bardo antigo Eis tua prole, que se arroja então, w
Das priscas eras, que bem longe vão, De um mar de glórias apartando as vagas �
O grande NADA dos heróis, que dormem Do vasto pampa no funéreo chão. <(
Do vasto pampa no funéreo chão. . . o
a:
1-
Perceba o tom ufanista com que esse poema tematiza a Guerra do Paraguai e exalta a carida­ CfJ
de dos que se compadeceram de seu órfãos. O sentimento de patriotismo nele presente manifesta­ <(
u
-
se pela adesão do poeta à causa da pátria, a cujos heróis - os soldados que lutaram para defendê­
la - oferece o seu canto.
51
Na primeira estrofe, observe a presença de antítese, expressando a imagem que o � <lfiiiJI
romântico condoreiro tem de si mesmo enquanto bardo, isto é, enquanto criador cuja lira está vol­
tada para os grandes temas sociais: Eu, que sou cego, - mas só peço luzes. . .
Que sou pequeno, - mas só fito os Andes. . .
N a segunda estrofe, uma metáfora essencialmente romântica caracteriza a pátria, associando­
a com uma mãe cujos filhos, os soldados que a seu pedido foram para a guerra, são os heróis da
nação. Ao mesmo tempo, ao comparar a pátria com Moema, personagem de O Caramuru, de Santa
Rita Durão, Castro Alves dialoga com personagens nacionalistas do Arcadismo.
Metáforas, prosopopéias, antíteses, hipérboles e repetições intencionais aliam-se aos versos
decassílabos sáficos com que o texto é estruturado, para caracterizar-lhe o estilo condoreiro.

\7ouàt6JJ
11
(FUVEST) Quando eu morrer. . . não lancem meu cadáver
Oh! Eu quero viver, beber perfumes No fosso de um sombrio cemitério . . .
Na flor silvestre, que embalsama os ares; Odeio o mausoléu que espera o morto
Ver minh 'alma adejar pelo infinito, Como o viajante desse hotel funéreo.
Qual branca vela n 'amplidão dos mares. Corre nas veias negras desse mármore
No seio da mulher há tanto aroma. . . Não sei que sangue vil de messalina,
Nos seus be1jos de fogo h á tanta vida. . . A cova, num bocejo indiferente,
- Á rabe errante, vou dormir à tarde Abre ao primeiro a boca libertina.
À sombra fresca da palmeira erguida.
Nesta estrofe de Mocidade e Morte, de Castro Alves, reúnem­ a) Que relação temática há entre o fragmento e a poesia pro­
se, como numa espécie de súmula, vários dos temas e aspectos duzida pela segunda geração do romantismo brasileiro,
mais característicos de sua poesia. São eles: especialmente a de Á lvares de Azevedo?
b) Que comparação demonstra o horror que o sujeito poético
a) identificação com a natureza, condoreirismo, erotismo parece ter da morte?
franco, exotismo.
b) aspiração de amor e morte, titanismo, sensualismo, exo­ Podemos afirmar que ao longo do poema:
tismo. a) a temática da morte é desenvolvida de modo idêntico ao
c) sensualismo, aspiração de absoluto, nacionalismo, orien­ tratamento dado a ela pelos poetas ultra-românticos;
talismo.
d) person ificação da natureza, hipérboles, sensualismo vela­ b) há semelhanças e diferenças no modo como Castro Alves
do, exotismo. desenvolve o tema da morte, se o compararmos com o
e) aspiração de amor e morte, condoreirismo, hipérboles, tratamento dado ao mesmo assunto pelos ultra-românti­
orientalismo. cos;

Texto para as questões 2 e 3:


c) a comparação entre a cova e uma prostituta tem o sentido
de expressar o fascínio que o sujeito lírico sente em rela­
Quando eu morrer ção à morte;
Eu morro, eu morro. A matutina brisa d) o poeta humaniza a cova, transformando-a em prostituta e
Já não me arranca um riso. A rósea tarde assim morbidamente sugerindo nela uma fonte de sedu­
Já não me doura as descoradas faces ção;
Que gélidas se encovam. e) o poeta, ao falar da morte, dá a respeito dela uma visão que
Junq ueira Freire se opõe àquela percebida na epígrafe de Junqueira Freire.

b) A comparação entre a cova e uma prostituta, que se entre­


ga ao primeiro que aparece.
a) Tanto no fragmento quanto em certos poemas noturnos de
Álvares de Azevedo, o principal representante de nosso
ultra-romantismo, o tema da morte é desenvolvido.
I o REALISMO EM PORTUGAL
Na citação ao lado, Eça de Queirós define com brilho o estilo realista, por ocasião É a negação da arte pela
de uma das Conferências do Cassino Lisbonense, que marcaram o início do movi­ arte, é a proscrição do
mento no país. convencional, do enfático
Essa postura revolucionária foi a marca maior da geração de 70, a geração realista e do piegas(. . . ). É a análise
com o fito na verdade
portuguesa, que nasceu da luta dos jovens de Coimbra contra o atraso literário dos
absoluta. (. . .) Por outro
velhos românticos concentrados em Lisboa, e contra a estagnação econômica e política lado, o Realismo é uma
de Portugal. reação contra o
Romantismo: o Romantismo
era a apoteose do
sentimento; o Realismo é a
;
anatomia do caráter. É a
crítica do homem. É a arte
EÇA DE QUEIROS que nos pinta a nossos
próprios olhos - para
O que queremos nós com o Realismo? Fazer o quadro do velho mundo burguês, sentimental, devoto, católi­ condenar o que houver de
do mundo moderno, nasfeições em que ele é mau, co, explorador, aristocrático etc; e apontando-o ao mal na nossa sociedade.
escárnio, à gargalhada, ao desprezo do mundo
por persistir em se educar segundo o passado; quere­
Antônio José Saraiva e
mosfazer a fotografia, ía quase dizer a caricatura, moderno e democrático- preparar a sua ruína. Óscar Lopes
História da literatura
portuguesa

O PRIMO BASILIO
Romance de tese, de inquérito da vida contemporânea
portuguesa, que ataca a família da média burguesia lisboeta,
enfocando os fatores do adultério feminino.

Narrador

Em O primo Basílio, romance de tese, de inquérito da vida portuguesa, o alvo


do Realismo - Naturalismo é a família lisboeta da média burguesia, atacada através de
um episódio doméstico, um adultério, inspirado em Madame Bovary, de Gustave
Flaubert, e em Eugênia Grandet, de Honoré de Balzac .
Os aspectos naturalistas da obra marcam fortemente o seu processo narrativo, ao
longo do qual percebemos a aproximação da criação literária com as ciências naturais, CJ)
·O
defendida pelos representantes do estilo. 0::
Escrito em terceira pessoa, Oprimo Basílio possui um narrador onisciente tipica­ LU
mente naturalista, isto é, que dirige a atenção do leitor para o seu ponto de vista, cuja :::::>
o
tendência de reduzir o comportamento dos personagens a influências do meio, do
LU
ambiente, salta aos olhos. o
Assim, tanto a sentimentalidade romântica quanto as desigualdades sociais, a <(
luta feroz das classes pobres contra as mais abastadas, medíocres em seus valores e (.)o
LU
hábitos - ambas negadas pelo escritor em suas propostas teóricas _:__ constituem alvos -
de crítica muitas vezes mordaz, agora literariamente, neste livro.
59
É o que vamos reconhecer, primeiro através da postura do narrador, que passare­
mos a exemplificar:

Exemplo I
Havia doze dias que Jorge tinha partido e, apesar do calor e da poeira, Luísa
vestia-se para ir à casa de Leopoldina. SeJorge soubesse, não havia de gostar, não/
Mas estava tão farta de estar só, aborrecia-se tanto/ De manhã, ainda tinha os
arranjos, a costura, a toillete, algum romance.. Mas de tarde!
À hora em queJorge costumava voltar do ministério, a solidão parecia alargar­
se em torno dela. Fazia-lhe tantafalta o seu toque de campainha, os seus passos no
corredor!. . .
Ao crepúsculo, ao ver cair o dia, entristecia-se sem razão, caía numa vaga
sentimentalidade: (. . .) O que pensava em tolices então!
(cap. 3)
Comentário
Observe neste exemplo a presença do discurso indireto livre, que mistura a voz do
narrador ao fluxo de consciência da personagem, Luísa, cujo sentimentalismo, cujo
temperamento romântico e cuja vida ociosa a tornam frágil, desamparada na ausência
do marido e, assim, suscetível à sedução do primo Basílio, por quem acaba sendo leva­
da ao adultério ...

Exemplo 2
Servia havia vinte anos. Como ela dizia, mudava de amos, mas não m udava
de sorte. Vinte anos a dormir em cacifros, a levantar-se de madrugada, a comer os
restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más palavras das
senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando vinha a doença, a esfalfar­
se quando voltava a saúde!. . . Era demais! Tinha agora dias em que só de ver o
balde das águas sujas e o ferro de engomar se lhe embrulhava o estômago. Nunca
se acostumara a servir (. ..) .
As antipatias que a cercavam faziam-na assanhada, como um circulo de
espingardas enraivece um lobo. Fez-se má; beliscava crianças até lhes enodar
a pele; e se lhe ralhavam, a sua cólera rompia em rajadas. Começou a ser des­
pedida. Num só ano esteve em três casas. Saía com escândalo, aos gritos, atirando
osé Maria de Eça de Queirós nasceu
J em 1 845, em Póvoa de Varzim, e
as portas, deixando as amas todas pálidas, todas nervosas . . . (. . .)
A necessidade de se constranger trouxe-lhe o hábito de odiar: odiou sobretudo
morreu em Paris, em 1 900. Formado em as patroas, com um ódio irracional e pueril.
Direito pela Universidade de Coimbra, o
(cap .3)
escritor ingressou na carreira diplomática,
tendo participado ativamente do processo de Comentário
criação do Realismo português.
Outra caracterização de personagem, em que também aparece o discurso indireto
A sua obra l iterária pode ser dividida entre
livre. Trata-se de Juliana, a empregada de Luísa e Jorge, que representa no romance o
três fases. À primeira pertencem O mistério
da estrada de Sintra (realizado em parceria
ódio, a ferocidade dos pobres em relação aos "ricos", além do caráter irracional, anima­
com Ramalho Ortigão) e Prosas bárbaras. lesco, de sua busca de ascensão social, vistos na perspectiva do estilo naturalista.
Influenciado pelo poeta Victor Hugo, Eça
Exemplo 3
realiza nesta fase uma literatura impregnada
de romantismo social. a) - O casamento é uma fórmula administrativa, que há-de um dia acabar. . . -
A partir de O crime do padre Amaro, inicia-se De resto, segundo ele, a fêmea era um ente subalterno; o homem deveria aproxi­
sua segunda fase, que conta com O primo mar-se dela em certas épocas do ano (como Jazem os animais, que compreen­
Basílio e Os Maias, os três "romances de dem estas coisas melhor que nós), fecundá-las, e afastar-se com tédio.

<( tese" do escritor. isto é, romances que se b) -Essasfêmeas (. . .) são nossas mães, nossas carinhosas irmãs, a esposa do Chefe
o utilizaram das doutrinas positivistas da do Estado, as damas ilustres da nobreza . . .


z
segunda metade do século XIX para
acrescentar ao Realismo o Naturalismo: a
(cap. 11)

w explicação cientificista dos problemas Temos, aqui, duas opiniões ilustradoras dos "tipos" da média burguesia lisboeta,

�u sociais, vistos de uma perspectiva


anticlerical e anti burguesa.
atacados pelo escritor. A primeira é de Julião Zuzarte, médico entediado da profissão,
sujo, amarrotado - que inveja e despreza o sucesso alheio - e a segunda do Conse­
A terceira fase de Eça de Queirós abrange
lheiro Acácio, representante do convencionalismo, da demagogia oca e hipócrita.
romances como A cidade e as serras e A
<(
a:
ilustre Casa de Ramires. Nela, a crítica
Ambos fazem parte do círculo de amizades de Luísa e Jorge, cujo "incidente do­
::J
�a: cáustica do Realismo Naturalista deixa
espaço para a meditação. Eça
méstico" analisaremos, sintetizando elementos do enredo do livro.

w definitivamente se universal iza, Enredo


, 1-
· :::i transformando-se num dos maiores
romancistas portugueses de todos os Dividido em dezesseis capítulos, o romance se inicia com a descrição da vida de
tempos. o
Luísa e Jorge.
60 Casados há três anos, moram numa rua pouco elegante de Lisboa, fre-
qüentada por gente pobre e que se diverte com mexericos e intrigas. A casa pertence à família de
Jorge, que é engenheiro e trabalha num Ministério.
Trata-se de um casal feliz, a quem só falta um filho, por ambos desejado. São visitados com
regularidade por um conjunto de amigos : Dona Felicidade, senhora que sofre de dispepsia e de
gases, além de padecer de desejo pelo Conselheiro Acácio, que não lhe dá atenção e cujas "fra­
ses de efeito" lhe parecem erudição e espírito; Julião Zuzarte, o médico frustrado de quem fala­
mos, Sebastião, o melhor e mais generoso amigo de Jorge e Ernestinho, seu primo, que escreve
para teatro.
Jorge parte para o interior - o Alentejo - a negócios. Luísa, solitária, se aborrece com a
ausência do marido até a chegada de Basílio, seu primo e também seu primeiro amor.
Basílio, que viajara ao Brasil arruinado, abandonando Luísa, e que conseguira novamente
enriquecer, retoma a Lisboa após sete anos.
Ao rever a prima, passa a desejá-la para uma aventura que diminua o tédio de sua permanên­
cia na cidade, cujo provincianismo despreza mas na qual tem negócios a resolver.
Luísa cede às "tentações" do charme, do "chique", da pretensa paixão que Basílio lhe decla­
ra, julgando amá-lo, e "pervertida" em sua ingenuidade pelas conversas do primo sobre as sedu­
ções da vida aventureira - a "mesma" dos romances que lia - comete o adultério.
As visitas cotidianas de Basílio à Luísa, cortejando-a, envolvendo-a, despertam os falatórios
maldosos da vizinhança, as preocupações de Sebastião, que inutilmente tenta avisá-la do perigo
que corre, e grande atenção de Juliana, a "criada de dentro", ávida por uma "prova do crime".
Após a conquista, Basílio aluga para ambos um quarto pobre e feio, num terceiro andar de um
bairro distante, que chama de "Paraíso". Luísa se decepciona com o lugar - tão diferente do que
sonhara - mas acaba se acostumando e lá conhece as "novas sensações", as delícias e também os
desgastes da relação. Percebe vagamente a falta de sentimento de Basílio, o seu egoísmo, as suas
grosserias, embora não consiga resistir ao domínio que ele exerce sobre ela.
Enquanto isso, Juliana, que já conseguira uma carta de Luísa para Basílio, rouba duas de
Basílio para Luísa, contando-lhe o fato num momento de cólera.
Luísa, desesperada, prepara-se para fugir com Basílio para Paris, conforme este lhe promete­
ra tantas vezes. Em vez disso, entretanto, Basílio a abandona, com o pretexto de negócios urgen­
tes, sem dar tempo à tia Vitória, que aconselha e orienta Juliana, de lhe cobrar uma alta quantia
pelas cartas.
Juliana passa, então, a chantagear Luísa, atormentando-a, até a chegada de Jorge, quando a
situação piora.
Aos poucos, Juliana vai conseguindo de Luísa tudo o que quer: a mudança para um quarto
melhor, uma cômoda, tapetes, roupas e, quando se sente "satisfeita", começa a acordar mais tarde,
a sair com freqüência, a abandonar o serviço. Luísa, apaixonada "como nunca" por Jorge, trans­
forma-se na "criada", isto é, trabalha no lugar de Juliana, até que o marido a pega "em flagrante"
engomando roupa e, num acesso de cólera, demite a empregada.
Luísa, que já rezara, jogara na loteria, tentara se entregar a um banqueiro que a desej ava, o
Castro (a conselho de sua amiga Leopoldina, mulher "devassa", detestada por Jorge) - sem
saída, confessa o segredo a Sebastião, que traça um plano para ajudá-la.
De acordo com o plano de Sebastião, Luísa, Jorge e Dona Felicidade vão ao teatro ver Fausto,
enquanto ele, acompanhado de um policial, consegue retirar as cartas de Juliana. Esta, que já tinha
um aneurisma prestes a se arrebentar, morre espumando de raiva, atingida por um colapso nervoso.
Tudo parece voltar à normalidade: a cozinheira Joana, que agredira Juliana para defender a
patroa e por isso teve de sair do emprego, retoma ao lar do Engenheiro, como era chamado pela
vizinhança, e Luísa, que sofrera uma "febre cerebral", começa a melhorar.
No entanto, Jorge abre uma carta de Basílio à prima, descobre o adultério e se martiriza, entre
o desejo de matar a mulher (opinião que defendera no início do romance, a propósito de uma peça
de Emestinho sobre o tema - Honra e Paixão) e o desejo de perdoá-la, que prevalece. Antes
disso, ele mostra a carta a Luísa, o que deflagra a volta de sua febre, agora fatal.
cn
A história termina com o Conselheiro Acácio passando a limpo as imagens fúnebres, purita­ ·O
nas, empoladas do necrológio que escreve sobre Luísa, enquanto sua criada e amante, Adelaide, a:
espera-o para "fazerem nenê". E por último com Basílio, que retoma a Lisboa e toma conhecimen­ w
::>
to da morte da prima, lamentando-se com o amigo Conde Reinaldo por não ter trazido
o
Alphonsine, sua amante francesa . . . w
o
Comentário geral sobre o enredo �
Com este "episódio doméstico" Eça de Queirós pretendeu mostrar às pessoas, de forma exem­
(..)>
w
plar, a tese realista da corrupção da família vista como instituição burguesa, mais especificamen­ -
te a família da média burguesia lisboeta.
61
Observando, entretanto, o seu enredo, verificando a falta de consistência psicológica das ati­
tudes de Luísa, que tem medo em vez de remorso e que trai o marido arrastada pelas circuns­
tâncias, como um joguete nas mãos do "destino", lembramo-nos de uma opinião de Machado de
Assis sobre o romance, que vale a pena mencionar. Nela, o escritor ironicamente recoloca a tese
defendida por Eça: A boa escolha de fâmulos (criados) é uma condição de paz no adultério.
(Machado de Assis, Obra completa, vol. III)
Vamos, agora, estudar os personagens do O primo Basílio, percebendo outras dimensões da
obra.

Personagens
À primeira vista, Luísa, Basílio e Jorge, as "peças" do questionamento do casamento através
do adultério, constituem os principais personagens da história. Vamos analisá-los:
Como já dissemos, Luísa tem uma fragilidade, uma incapacidade de ação e de reflexão, que
são atribuídas ao longo da obra, de forma naturalista, à vida ociosa que leva e ao seu temperamen­
to romântico, alimentado pelas leituras de Walter Scott e de outros livros "açucarados", propícios
ao "devaneio", como A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas.
Percebemos, assim, nesta personagem, por um lado a critica realista à sentimentalidade
romântica e, por outro, um "esvaziamento psicológico", de que resulta um caráter móbil, incons­
ciente, cheio de deixar-se ir (cap. 9) que nos parece decorrente da exacerbação da tendência natu­
ralista, muito forte nesta fase literária do autor.
Quanto a Basílio, trata-se mais de um tipo que de uma pessoa, como ocorre com Luísa e com
a maioria dos personagens do livro: a sua irresponsabilidade, o seu cinismo, a sua "mania de gran­
deza", de superioridade, que o fazem ter uma relação de uso tanto com as mulheres quanto com
o país, configuram o ')anota", o "almofadinha". Um maroto, sem paixão nem a justificação da sua
tirania - que o que pretende é a vaidadezinha de uma aventura, e o amor grátis, de acordo com
as palavras do autor, escritas a Teófilo Braga.
Jorge, por sua vez, caracteriza-se por uma personalidade pacata, mansa, dividida entre o que
realmente sente e o papel social de homem casado, de engenheiro, que justificam sua primeira opi­
nião - truculenta e radical - sobre o adultério, sua aversão à vida desregrada de Leopoldina, sua
cobrança à esposa em relação à carta de Basílio, mesmo ela estando fraca, doente. E, por outro
lado, sua mudança de opinião, seu perdão a Luísa, o desespero com que tenta impedi-Ia de partir...
A tais personagens típicos da média burguesia lisboeta, acrescentam-se alguns persona­
gens secundários, que o próprio Eça caracteriza em sua carta a Teófilo Braga; "o formalismo ofi­
cial" do Conselheiro Acácio, que representa o convencionalismo bem sucedido, a vacuidade pre­
miada, na medida em que além do título de Conselheiro, obtido por carta régia, é nomeado
Cavaleiro da Ordem de São Tiago, pelas obras sem utilidade, supérfluas, que escreve, como a
Descrição das principais cidades do reino e seus estabelecimentos; a "beatice parva, de tempera­
mento irritado", de Dona Felicidade; a "literaturinha acéfala" de Ernestinho; o "descontentamen­
to azedo" de Julião Zuzarte; e, "às vezes quando calha, um pobre bom rapaz", Sebastião, que
tinha a força de um ginasta e a resignação de um mártir (cap. 4).
Outra dimensão de O Primo Basílio é a da presença das classes socialmente inferiores, em sua
devastadora "aversão" aos mais abastados. O "patriota" Paula, que detesta os padres e as mulheres,
a carvoeira "imunda, disforme de obesidade e prenhez", a estanqueira "de carão viúvo", que exem­
plificam a vizinhança de Luísa e Basílio, somam-se à tia Vitória, ex-inculcadeira (alcoviteira) e pro­
fissional na "arte" de orientar os criados contra os patrões. Ela emprestava dinheiro aos desempre­
gados, guardava as economias dos poupados, fazia escrever (..) as correspondências amorosas a
<( domésticas que não tinham ido à escola, vendia vestidos de segunda mão, alugava casacas, aconse­
Cl lhava colocações, recebia confidências, dirigia intrigas, entendia de partos ( cap. 6).
�z Estes personagens, também secundários como os freqüentadores da casa de Luísa e Jorge, e
também apresentados com fortes traços naturalistas, encontram sua expressão máxima em Juliana,
w
� "o caráter mais completo e verdadeiro do livro", na opinião de Machado de Assis, e cujo destaque
o no desenvolvimento do enredo faz com que a consideremos do grupo dos personagens principais.
u Vamos, então, sintetizar seus traços mais marcantes. Servindo há vinte anos sem nunca se
<( acostumar a servir, Juliana Couceiro Tavira foi passando do azedume, do "gênio embezerrado",
a:.
:::> às desconfianças, à maldade, ao ódio "irracional e pueril" às patroas, a quem rogava pragas, can­

a:.
tarolava a Carta Adorada, se havia motivo para tristeza, chamava de "récua de cabras".
Invejosa, curiosa, gulosa, encontrou na casa de Luísa o segredo de que tanto precisava. De
w posse dele, desforrou na "piorrinha" (apelido que lhe pôs) toda a mágoa acumulada ao longo dos
1-
::J anos, inclusive a de sua virgindade, que comparava com a "devassidão" da "bêbada".
- Esta personagem tinha, ainda, o vício de "trazer o pé sempre catita", enfeitando-o com boti­
nas e expondo-o no Passeio Público. Constitui, enfim, um exemplo de utilização do estilo natura-
62
lista que nos parece bem sucedido no livro, em oposição à inconsciência de Luísa, que analisamos,
e de todos os outros personagens, excessivamente caricatos, modelares, exemplificações sumá­
rias das teses da literatura naturalista.

Linguagem

Sem dúvida, podemos considerar Eça de Queirós um dos grandes renovadores da prosa literá­
ria portuguesa. Vejamos alguns motivos:

Os mestres da arte realista, principalmente Flaubert, transmitiram-lhe uma técnica de


notação impressionista dos ambientes que Eça soubera admiravelmente desenvolver
(. . .). Cada ambiente é, no romance de Eça, sugestivo de uma disposição da persona­
gem tocada - langor, cansaço, hostilidade, sensualidade, etc: eis o que podemos
designar de impressionismo (. . . ). E assim a adjetivação e as associações através das
quais nos surge uma descrição, um quadro, uma cena, dão conotação subjetiva às coi­
sas inanimadas. (. . .) O romance de Eça pode parecer empobrecido de verdadeiros
caracteres dotados de torça própria. com ganas de triunfar ou viver (. . .), como Ema
Bovary (. . .) e ainda carecido de um mundo balzaquiano com]Xlcto de relações huma­
nas objetivamente estruturadas. Em contrapartida, a narração queirosiana tem uma
qualidade lírica. sensível e humoral, que lhe contere uma poesia mais imediata, defor­
mando as coisas e recortando horízontes da vida segundo uma câmara óptica móvel
que, ao experimentar uma série de ângulos de visão, nos põe, sem o resolver. o proble­
ma de descortinar qual a realidade e quais os valores objetivos.
Antônio José Saraiva e Óscar Lopes
História da Literatura Portuguesa

O comentário transcrito é fundamental para compreendermos e relativizarmos a objetividade


e a imparcialidade pretendidas pelos escritores do Realismo-Naturalismo e em especial por Eça de
Queirós.
A sintonização entre ambientes e sensações dos personagens, chamada de notação impressio­
nista pelos autores mencionados, tanto quanto o lirismo, a intensidade poética de determinadas
cenas de O primo Basílio, dão uma conotação de subj etividade à obra que questiona e amplia posi­
tivamente o compromisso de rigidez racional excessiva dos escritores realistas. Na verdade, este
compromisso está mais presente nos textos teóricos sobre o movimento que nos literários, eviden­
temente mais ricos e fecundos que os primeiros.
Vamos então perceber alguns elementos da linguagem de Eça de Queirós, lendo e apreciando
uma das mais belas cenas amorosas, cheia de detalhes e de sensualidade, da obra que estudamos.
Às três horas lancharam. Foi delicioso; tinham estendido um guardanapo sobre a cama;
a louça tinha a marca do Hotel Central; aquilo parecia a Luísa muito estróina, adorável - e
ria de sensualidade, fazendo tilintar os pedacinhos de gelo contra o vidro do copo, cheio de
champanhe. Sentia uma felicidade exuberante que transbordava em gritinhos, em beijos, em
toda a sorte de gestos buliçosos. Comia com gula; e eram adoráveis os seus braços nus moven­
do-se por cima dos pratos.
Nunca achara Basílio tão bonito; o quarto mesmo parecia-lhe muito conchegado para
aquelas intimidades da paixão; quase julgava possível viver ali, naquele cacifro anos, feliz
com ele, num amorpermanente, e lanches ãs três horas . . . Tinham as pieguices clássicas; meti­
am-se bocadinhos na boca; ela ria com os seus dentinhos brancos; bebiam pelo mesmo copo,
devoravam-se de beijos - e ele quis-lhe ensinar então a verdadeira maneira de beber cham­
panhe. Talvez ela não soubesse!
- Como é? - perguntou Luísa erguendo o copo.
- Não é com o copo! Horror! Ninguém que se preza bebe champanhe por um copo. O copo (/)
é bom para o Colares . . . ·O
a:
Tomou u m gole de champanhe e num beijo passou-o para a boca dela. Luísa riu muito,
w
achou "divino ": quis beber mais assim. Ia-se fazendo vermelha, o olhar luzia-lhe. :::>
Tinham tirado os pratos da cama; e sentada à beira do leito, os seus pezinhos calçados d
numa meia cor-de-rosa pendiam, agitavam-se, enquanto um pouco dobrada sobre si, os coto­ w
velos sobre o regaço, a cabecinha de lado, tinha em toda a sua pessoa a graça lânquida de o
uma pomba fatigada. <(
Basílio achava-a irresistível; quem diria que uma burguesinha podia ter tanto chique, C>
w
-
tanta queda? Ajoelhou-se, tomou-lhe os pezinhos entre as mãos, beijou-lhos; depois, dizendo
muito mal das ligas "tão feias, com fechos de metal'; beijou-lhe respeitosamente os joelhos; e
63
entãofez-lhe baixinho um pedido. Ela corou, sorriu, dizia: não! não!- E quando saiu do seu
delírio tapou o rosto com as mãos, toda escarlate; murmurou repreensivamente:
- Oh Basílio!
Ele torcia o bigode, muito satisfeito. Ensinara-lhe uma sensação nova; tinha-a na mão!

11 (FUVEST) .
a) No início do romance O primo Basílio, Jorge
(UNICAMP) No romance O primo Basílio, de
Eça de Queirós, Ernestinho é autor de uma pe­
assume uma posição bem definida em rela- ça teatral que tematiza o adultério. Aconselhado
ção à mulher adúltera. Qual era essa posi­ por seu empresário, decide que, na peça, o ma­
ção e que incidente o levou a externá-la? rido traído deve perdoar a esposa no final. No
b) A posição final de Jorge diante da traição da trecho abaixo, Ernestinho revela sua decisão a
esposa é coerente com seu pronunciamen­ Luísa:
to inicial ? Comente o comportamento de - Ah! esquecia-me de dizer-lhe, sabe que lhe
Jorge. perdoei?
Luiza abriu muito os olhos.
ft (FUVEST) Segundo a opinião de Machado de - À condessa, à heroína! Exclamou Ernestinho.
(il Assis, em O primo Basílio apenas uma persona­ - Ah!
gem está bem realizada e convence o leitor pela - Sim, o marido perdoa-lhe, obtém uma embai-
estatura moral e pelo desempenho dentro do xada, e vão viver no estrangeiro. É mais natural!
romance. A primeira fala de Ernestinho pode ser interpre­
c) Dê o nome e a profissão dessa personagem. tada de duas maneiras.
d) Aduza elementos que justifiquem sua res­ a) Quais são as duas interpretações?
posta. b) Qual das duas foi a interpretação de Luísa?
c) Que fatos da vida de Luísa motivam essa
interpretação da fala de Ernestinho?

11 a) Durante reunião em casa de Jorge e Luísa,


Ernestino, um teatrólogo, pergunta a opinião
social e afetiva, pelo relacionamento subal­
terno da sua condição de criada, pela soli­
dos presentes sobre o adultério. Jorge se dão e a miséria em que vive. Enfim, há
mostra inflexível, dizendo que a mulher deve nesta personagem uma coerência entre as
� ser punida. suas ações e o que as deflagra.
o b) Jorge é complacente diante da situação vivi­
�z da; tende, inclusive, a perdoar a esposa adúl­
tera, numa posição contraditória em relação a
a) A primeira interpretação possível da fala de
Ernestinho é que o perdão pelo adultério re­
w sua opinião sobre o assunto, manifestada no fere-se à condessa , à heroína de sua peça
� jantar, o que demonstra a distância entre a teatral. A segunda interpretação coloca Lufsa
o mansidão de seu caráter e o papel de marido, como a pessoa que deve ser perdoada.
u de homem ajustado ao sistema, que precisa­ b) Lufsa, ao "abrir muito os olhos " , demonstra
� va cumprir. claramente que a sua interpretação da fala de
a:
:::> Ernestinho foi a segunda.
ft
�a: a) A personagem é Juliana, empregada domés­ c) O fato de ter uma relação extra-conjugal com
(il tica da casa de Jorge e Luísa. o primo Basílio, e o fato de por isso saber-se
w b) J u l iana - "o caráter mais completo do li­ uma mulher adúltera, levam Luísa a julgar-se
1-­ vro" - é movida, na tortura que i m pi nge a a pessoa de quem o amigo fala, e em segui­
:::J Luísa, roubando suas cartas de amor e da a se sentir aliviada, pois percebe que se
- chantageando-a, pelo enfado de servir, pelo trata da personagem e não dela própria.
sent i mento de inferioridade econômica,
64
*'

A RELIQUIA
Narrador

"Com A Relíquia concretizam-se as aspirações libertárias da sua escravizada alma de realista.


( . . . ) Para sentir-se em liberdade, bastava-lhe um tema em que lhe não fosse preciso observar, ana­
lisar, ou imaginar dentro das fronteiras do real. Que melhor assunto, por conseguinte, que uma evo­
cação da sua viagem ao Oriente? É de crer que ao principiar A Relíquia não pensasse em incluir
nela uma evocação histórica da idade bíblica. ( . . . ) Só mais tarde lhe ocorreria, talvez, a possibili­
dade de evocar, dentro das normas históricas, os velhos tempos bíblicos. A isso o arrastaria, insen­
sivelmente, o esplendor de sua prosa. É em A Relíquia que ele se encontra pela primeira vez em
plena invenção estilística". (João Gaspar Simões)

Tanto quanto O Mandarim (de 1 880), A Relíquia (de 1 887) constitui uma obra "fantasista",
de Eça de Queirós. Por meio de ambas, o escritor tentou libertar-se da "impertinente tirania da rea­
lidade", provocada pela feitura de seus romances de tese: O Primo Basílio, O Crime do Padre
Amaro e Os Maias.
Em A Relíquia, Teodorico Raposo, Raposão para os seus amigos de Coimbra, conta a histó­
ria de sua vida. Escrita em primeira pessoa, a obra tematiza a hipocrisia, representada pelo próprio
personagem-narrador, que no entanto possui certas ambigüidades, certas inverossimilhanças, de
importância fundamental para a compreensão de sua estrutura narrativa.
Vej amos o parágrafo inicial do prefácio de Teodorico, para começarmos a nossa análise:

Decidi compor nos vagares desse Verão, na minha quinta do Mosteiro (antigo solar dos
Condes de Lindoso), as memórias da minha vida - que neste século, tão consumido pelas
incertezas da Inteligência e tão angustiado pelos tormentos do Dinheiro, encerra, penso eu, e
pensa meu cunhado Crispim, uma lição lúcida e forte.

Observe que essa passagem sugere ser o narrador-personagem um homem de grande capaci­
dade reflexiva e crítica, inclusive em relação ao dinheiro, o que não se éompatibiliza com o
Teodorico ganancioso e sem escrúpulos que vamos conhecendo, ao longo da leitura.
Conheça a opinião de João Gaspar Simões a respeito do assunto:
"Teodorico, neto do padre Rufino da Conceição, que em Coimbra ganhara o sobrenome de
Raposão e se embebedara nas Camelas, homem de gostos soezes e letras grossas, para quem os
maiores prazeres da vida eram o fado e uma Adélia que o enganava com um tal Adelino, nunca
poderia ser o autor de um prefácio tão flamej ante de estilo e de cultura".

Um primeiro elemento que podemos levantar para compreender a inverossimilhança do pro­


tagonista pode ser o fato de ele pertencer a uma obra com fortes características de alegoria e de
farsa, conforme verificaremos melhor na seção linguagem deste trabalho. Por enquanto, devemos
apenas nos lembrar de que neste tipo de obra os personagens são caricaturais e personificam
determinadas idéias, razões pelas quais possuem pouca densidade psicológica.
Rememorando passagens significativas do enredo de A Relíquia, poderemos nos aprofundar
neste e em outros pontos de relevância para a sua inteligibilidade.

Enredo
"Eu por mim, salvo o respeito que lhe é devido, não admiro pessoalmente A Relíquia. A estru­
tura e composição do livreco são muito defeituosas. Aquele mundo antigo está ali como um tram­
bolho, e só é antigo por fora, nas exterioridades, nas vestes e nos edificios. É no fundo uma pará­
frase tímida do Evangelho de São João, com cenários e fatos de teatro: e falta-lhe ser atravessado
por um sopro naturalista de ironia forte que daria unidade a todo o livro. D. Raposo, em lugar de
se deixar assombrar pela solenidade histórica, devia rir-se dos Judeus e troçar dos Rabis. O único C/)
valor do livreco está no realismo fantasista da Farsa". (Eça de Queirós) -o
a:
De acordo com próprio Eça de Queirós, autor de A Relíquia, o livro tem defeitos em sua estru­ w
::::)
tura e em sua composição, além de funcionar como um "trambolho" a presença, nele, do mundo d
antigo. Vej amos tais pontos à luz de seu enredo. w
Órfão de pai e de mãe aos seis anos, Teodorico, o narrador-personagem de A Relíquia, é reco­ o
lhido pela titi, a Sra. D. Patrocínio, sua tia materna, que representa a personificação da riqueza
beata e tirânica, intocada por quaisquer prazeres da vida.
().
w
Embora houvesse no menino que Teodorico foi um natural maravilhamento respeitoso pelas -
coisas do céu, ao longo do romance esse maravilhamento não se concretiza, uma vez que ele perde
65
a fé e passa a se mostrar de uma carolice abjeta e caricata, a fim de tomar-se herdeiro da titi.
Incorpora, assim, o comportamento hipócrita - tema central de A Relíquia - ao mesmo tempo
em que, por outro lado, possui misticismos e ingenuidades que se chocam com o "defeito" huma­
no que personifica.
Teodorico vai para Coimbra cursar Direito. Volta Bacharel, mas sem nenhuma consistência
intelectual, uma vez que mais vadiou do que estudou. Passa a dedicar-se, então, ao projeto de fin­
gir-se de casto e beato, ao mesmo tempo em que arranja uma amante, Adélia, com quem passa as
horas de desforra...
Certa ocasião, ele surpreende Adélia com outro. Ela facilmente o convence de que o outro é
apenas seu primo; embora se julgue um espertalhaço, Teodorico deixa-se persuadir pela amante,
até que a empregada lhe conta toda a verdade, o que o deixa extremamente deprimido.
Em seguida, a titi resolve enviar Teodorico à Terra Santa - Egito, Palestina, Jerusalém etc.
- de onde espera que o enteado lhe traga indulgências e relíquias que garantirão a ela lugar na
corte celeste.
Acompanhado por Topsius, um alemão erudito, doutor pela Universidade de Bona e membro
do Instituto Imperial de Escavações Históricas, que se toma seu companheiro ao longo da viagem,
Teodorico em seu decorrer encontra uns galhos penugentos e espinhosos, que decide transformar
na relíquia que daria à titi.
Topsius converte os galhos numa coroa de espinhos, que o protagonista afirmaria à madrasta
ter pertencido a Jesus e portanto poder devolver-lhe a saúde e a juventude. Entretanto, ao mesmo
tempo em que o alegra, essa idéia deixa-o inseguro e inquieto:

Mas de repente assaltou-me uma áspera inquietação . . . E se realmente uma virtude trans­
cendente circulasse nas fibras daquele tronco? E se a titi começasse a melhorar do fígado, a
reverdecer, mal eu instalasse no seu oratório, entre lumes e flores, um daqueles galhos eriça­
dos de espinhos? Ó misérrimo logro! Era eu pois que lhe levava nesciamente o princípio m ira­
culoso da saúde, e a tornava rija, indestrutível, ininterrável, com os contos de G. Godinho fir­
mes na mão avara.

Nesse misto de cinismo e credulidade, desenvolve-se a travessia de Teodorico, que em


Jerusalém, como que arrebatado em sonhos, volta aos tempos de Jesus, assistindo ao julgamento
e à crucificação do Nazareno. Fica sabendo então que Ele não é divino, porque seu corpo é rouba­
do e enterrado, em vez de "subir aos céus".
Em tal episódio, a presença da fantasia na obra parece extrapolar, gerando um dos defeitos de
estrutura mencionados pelo autor. Há uma mudança de tempo (da modernidade aos primórdios do
Cristianismo), provocada por uma mudança de espaço (o deslocamento de Teodorico de Portugal
para a Terra Santa). Entretanto, não fica claro ao leitor se Teodorico de fato sonhou o que viu, e,
neste caso, o que tal sonho representou para ele, pois não parece ter apresentado qualquer reper­
cussão na sua vida e na sua crença.
Um acontecimento devasso, de grande significação enquanto "gancho" de toda a trama de A
Relíquia, começa no Egito e se conclui na volta da viagem, em Portugal, interferindo significati­
vamente no destino de Teodorico.
No Egito, Teodorico conhece Mary ou Maricoquinhas, que se toma sua amante. Quando
parte para Jerusalém, ela lhe dá como recordação uma camisola.
Retomando de Jerusalém e ávido por revê-la, Teodorico fica sabendo por Alpedrinhas, o pa­
trício que encontrara, que Mary fora para Tebas com um italiano de cabelos compridos, que ía
fotografar as ruínas do lugar, utilizando-se dela para "amenizar as vistas". Além disso,
Alpedrinhas também fora amante de Maricoquinhas ...
<( Novamente traído, ele joga o embrulho em que julga estar a camisola de Mary a uma mendi­
o ga, a fim de chegar sem provas de sua devassidão à casa da titi; no entanto, o embrulho de que se

z
livra é na verdade aquele que envolve a relíquia que lhe daria.
w Já em Portugal, Teodorico oferta o presente à madrasta num ambiente solene, do qual faz parte
� o padre Negrão, novo conviva da Sra. Dona Patrocínio e aos olhos enfurecidos de Teodorico mais
o hipócrita do que ele próprio . . .
u A titi, a o ver-se perante a camisola de Mary, indecentemente espalhada sobre o altar da sua
<( capela, quando supunha ir receber das mãos do piedoso sobrinho a autêntica coroa de Nosso
0:
:::> Senhor Jesus Cristo, compreendeu que Teodorico era um hipócrita, expulsando-o e deserdando-o

0:
numa situação ridícula, isto é, de farsa.
Ele, então, cai aos pés de Jesus para reclamar seu fracasso e obtém como resposta a denúncia
w do quanto era hipócrita, o que o leva a mudar radicalmente de vida.
1-­
--l Depois de hospedar-se num hotel e vender relíquias trazidas da Terra Santa encontra, em S.
- Pedro de Alcântara, o seu antigo condiscípulo Crispim, filho da firma Crispim & Cia., que o
emprega em sua empresa. Trabalha, toma-se honesto e se casa com a irmã do patrão, que é vesga.
66
Quando enriquece e compra a Quinta do Mosteiro, põe-se a meditar sobre a hipocrisia . . . Não
a própria, mas a alheia, já que a titi morrera e deixara numa situação de abundância e prosperida­
de o padre Negrão, aquele que o substituíra nas preferências da Sra. D. Patrocínio, por meio do
mesmo comportamento que fora dele.
Teodorico enfim conclui não que a hipocrisia é inútil, como a estrutura da obra nos faz
-

supor - mas que perdera a almejada herança por não ter sido suficientemente esperto para
salvar sua própria hipocrisia, no momento exato em que ela foi desmascarada. . .
A conclusão de que ela, a hipocrisia, é de fato quem vence n a vida, pode assim ser considera­
da um defeito de composição do romance, tendo em vista a tese contra a hipocrisia nele presente.
Tal defeito, no entanto, tanto quanto a mencionada duplicidade de caráter de Teodorico, vis­
tos de outra ótica, podem ser interpretados como ambigüidades, como aspectos irônicos e pluris­
significativos de A Relíquia.

Personagens

Principais:
Teodorico Raposo e titi, a Sra. D. Patrocínio, sua tia.
Teodorico:
Embora ao longo da obra Teodorico se finja de carola para agradar à tia e assim tomar-se seu
herdeiro, encarnando de forma caricata o tema da hipocrisia, ele tem duas faces, ou seja, é um per­
sonagem ambíguo: de um lado, apresenta a face beata, de adorador de Jesus, e, de outro, a face
devassa, de mulherengo e oportunista. Além disso, oscila entre o cinismo e a ingenuidade, seja em
relação à religião, às mulheres ou ao próprio comportamento hipócrita que ao mesmo tempo repre­
senta e critica.

Exemplo
À noite, depois do chá, refugiava-me no oratório, como numa fonaleza de santidade,
embebia os meus olhos no corpo de ouro deJesus, pregado na sua linda cruz de pau preto. Mas
então o brilho fulvo do metal precioso ia, pouco a pouco, embaciando, tomava uma alva cor
de carne, quente e tenra; a magreza de um Messias triste, mostrando os ossos, arredondava­
se em formas divinamente cheias e belas; por entre a coroa de espinhos, desenrolavam-se las­
civos anéis de cabelos crespos e negros; no peito, sobre as duas chagas, levantavam-se, rijos,
direitos, dois esplêndidos seios de mulher, com u m botâozinho de rosa na ponta; - e era ela,
a minha Adélia, que assim estava no alto da luz, nua, soberba, risonha, vitoriosa, profanan­
do o altar, com os braços abenos para mim!

Sra. D. Patrocínio - titi:


A tia rica e beata de Teodorico é uma personagem mais plana, mais próxima da caricatura
pura e simples: encama o apego obsessivo e "pouco cristão" à religião como forma de compen­
sar as frustrações da vida. Virgem, egoísta e mesquinha, ela desconhece o amor, a compreensão e
a solidariedade. Seca, ríspida e insensível a quaisquer afetos, para ela o enteado não poderia "andar
atrás de saias" porque essa atitude, em si, lhe era repugnante.

Exemplo
Numa sala forrada de papel escuro, encontramos uma senhora muito alta, muito seca,
vestida de preto, com um grilhão de ouro no peito; num lenço roxo, amarrado no queixo, caía­
lhe num bico lúgubre sobre a testa; e nofundo dessa sombra, negrejavam dois óculos defuma­
dos. Por trás dela, na parede, uma imagem de Nossa Senhora das Dores olhava para mim, com
o peito trespassado de espadas. (. . .) Donzela, e velha, e ressequida como um galho de sarmen­
to; não tendo jamais provado na lívida pele senão os bigodes do comendador G. Godinho,
paternais e grisalhos; resmungando incessantemente, diante de Cristo nu, essas jaculatórias
das 'Horas da Piedade ', soluçantes do amor divino - entranhara-se, pouco a pouco, dum
(J)
rancor invejoso e amargo a todas asformas e a todas as graças do amor humano.
·O
Secundários a:
UJ
Adélia, a mulher que foi a paixão de Teodorico em Arco de Sant' Ana e Mary ou Mari­ :::::>
coquinhas, a mulher que foi a paixão de Teodorico no Egito, são tão caricatas e planas quanto os d
demais personagens; representam uma imagem estereotipada da !emea: ambas iludem e traem o nar­ UJ
o
rador-personagem, por meio de um comportamento ao mesmo tempo devasso e oportunista. Mary
ou Maricoquinhas, além disso, involuntariamente participou da deserção de Teodorico pela titi,
quando esta viu a sua camisola, no lugar da relíquia da Terra Santa que lhe prometera o sobrinho.
5.
UJ
Em contraposição a ambas, há a religiosa que apanhou o embrulho com a camisola de Mary, o -
qual ia se perdendo, e o devolveu a Teodorico. Ele a reencontra após despedir-se de Topsius, quan-
61
do está voltando para casa. Seu bote cruza com o da religiosa, e ele chega a desejá-la, ironicamente
imaginando que só um coração fechado para as paixões terrenas como o dela lhe poderia ser fiel.
Topsius, o alemão que era doutor pela Universidade de Bona e membro do Instituto Imperial
de Escavações Históricas, e que se tomou o companheiro de Teodorico ao longo da viagem à Terra
Santa, representa de forma caricata a erudição, a busca do conhecimento intelectual e o desliga­
mento das coisas terrenas, sendo por essa razão o extremo oposto do narrador-personagem.
Alpedrinhas é o patricio de Teodorico, que também fora amante de Maricoquinhas, e que, como
o narrador-personagem, caracteriza-se pela fraqueza com relação às seduções do sexo oposto.
Padre Negrão, como outros clérigos e religiosos presentes em A Relíquia, incorpora a hipo­
crisia, neste caso da Igreja, irônica e severamente criticada na obra, que neste sentido se aproxima
de O Crime do Padre Amaro: romance de tese do escritor, de extração naturalista, contra a devas­
sidão, a mediocridade e o oportunismo dos padres.

Exemplo
Por que corria tanto mel no seu falar? Por que se privilegiava ele no sofá, roçando a sór­
dida joelheira da calça pelos castos cetins da titi? (. . .) Execrei-o/ E, remexendo a água com
açúcar, decidi em meu espírito que, mal eu começasse a governarferrenhamente o campo de
Sant'Ana - não mais a cabidela da minha famt1ia escorregaria na goela aduladora daque­
le servo de Deus.

Linguagem
"Sutil, se não díficil de precisar, a distinção entre a farsa e a comédia. De um modo genérico,
pode-se afirmar que a diferença é de grau: a farsa consistiria no exagero do cômico, graças ao
emprego de processos grosseiros, como os absurdos, as incongruências, os equívocos, os enganos,
a caricatura, o humor primário, as situações ridículas. A farsa dependeria mais da ação que do diá­
logo, mais dos processos externos que do conflito dramático". (Massaud Moisés - Dicionário de
Termos Literários)

"Etimologicamente, alegoria consiste num discurso que faz entender outro, numa linguagem
que oculta outra. ( ... ) Podemos considerar alegoria toda concretização, por meio de imagens, figu­
ras ou pessoas, de idéias, qualidades ou entidades abstratas. O aspecto material funcionaria como
disfarce, dissimulação, ou revestimento, do aspecto moral, ideal ou ficcional". (Massaud Moisés
- Dicionário de Termos Literários)

A Relíquia pode ser considerada um romance com traços farsescos, alegóricos e "fantasistas".
Para realizá-lo, Eça de Queirós utilizou-se do fantástico e da farsa, por meio dos quais denun­
ciou a sociedade, num de seus males típicos: a hipocrisia, alegoricamente encarnada por Teodorico
Raposo, o narrador-personagem.
Assim, em sua intenção moralizadora a obra não se afasta das propostas realistas do escritor,
embora sej a mais fantasista que seus "romances de tese" propriamente ditos. Podemos afirmar
então que se aproxima do Realismo-Naturalismo, do ponto de vista temático, porque nela há uma
tese a ser defendida - a tese da inutilidade da hipocrisia.
Por outro lado, distancia-se do Realismo-Naturalismo do ponto de vista formal, por lançar
mão da farsa e da imaginação fantástica, deixando em segundo plano a racionalidade e o cientifi­
cismo do referido estilo.
Vejamos, por meio de exemplos comentados, a presença dos elementos essenciais com que se
articula a linguagem de A Relíquia: a imaginação fantástica, entrelaçada com o humor crítico
<( e farsesco.
o
Exemplo 1

z Os teus tédios de deserdado - proclama ele - não provêm dessa mudança de espinhos
w em rendas: - mas de viveres duas vidas, uma verdadeira e de iniqüidade, outra fingida e de
� santidade. Desde que contraditoriamente eras do lado direito o devoto Raposo e do lado
o esquerdo o obsceno Raposo - não poderias seguir muito tempo, junto da titi, mostrando só o
u lado vestido de casimiras de domingo, onde resplandescia a virtude; um dia fatalmente che­
<( garia em que ela, espantada, visse o lado despido e natural onde negrejavam as máculas do
a:
:::::> vício . . . E aí está porque eu aludo, Teodorico, ã inutilidade da hipocrisia.


a: Comentário
w Nesta passagem, a voz que fala a Teodorico é a de sua própria consciência.
1-
:J Essa voz se dirige ao narrador-personagem porque ele, ao saber que fora deserdado pela tia,
- olha para um crucifixo e diz palavras de revolta e de indignação a Cristo, que, se autonomeando
sua própria consciência, responde-lhe as acusações.
68
O caráter fantástico nela presente está no fato de Cristo falar ao narrador-personagem, como se
fosse sua consciência, por meio de um recurso inverossímil, isto é, a animização da imagem do cru­
cifixo. Outro episódio fantástico já referido é o fato de Teodorico ter visto o julgamento e a cruci­
ficação de Jesus Cristo, voltando imaginariamente no tempo através de uma mudança de espaço.

Exemplo 2
Sim! quando em vez duma Coroa de Martírio aparecera sobre o altar da titi uma camisa
de pecado, eu deveria ter gritado, com segurança: 'Eis aí a Relíquia! Quis Jazer a surpresa . . .
Não é a Coroa de Espinhos. É melhor! É a camisa de Santa Maria Madalena!. . . Deu-ma ela no
Deserto. '
E logo o provava com esse papel, escrito em letra peifeita: 'Ao meu portuguesinho valente,
pelo muito que gozámos . . . ' Era essa a carta em que a Santa me ofertava a sua camisa. Lá bri­
lhavam as suas iniciais M. M.! Lá destacava essa clara, evidente confissão - o muito que
gozámos; o muito que eu gozara em mandar à Santa as minhas orações para o céu, o muito
que a Santa gozara no céu em receber as minhas orações.

Comentário
Repare que a situação apresentada no fragmento é irônica e farsesca, porque nela acontece
exatamente o contrário do que se esperava, o que a toma ao mesmo tempo ridícula: em vez de uma
coroa de espinhos, representando toda a devoção que Teodorico queria provar a titi, por meio de
tal relíquia, o que aparece - em pleno altar da tia - é um símbolo de pecado e de devassidão . . .
Além disso, a explicação que Teodorico queria ter dado também é irônica e farsesca, por se
revestir de elementos absurdos, inverossíveis, satíricos dos excessos de perda de bom senso a que
se pode chegar por meio de muita carolice. Associar a camisola de Mary com a de Maria Madalena
e interpretar o bilhete da amante como pretende o narrador-personagem é tão burlesco quanto a
situação provocada pela troca de embrulhos.

11
(UNICAM P)- Em A Relíquia, de Eça de Queirós, encontramos b) Sabendo que o autor usa a ironia para suas críticas, dê os
a seguinte resposta de Li no, comprador habitual das relíquias sentidos, literal e irônico, que pode tomar dentro da narra­
de Raposo: Está o mercado abarrotado, já não há maneira de tiva a frase: São ferraduras demais para um país tão peque­
vender nem um cueirinho do Menino Jesus, uma relíquia que no! . . .
se vendia tão bem! O seu negócio com as ferraduras é per­
feitamente indecente . . . Perfeitamente indecente! É o que Leia com atenção o fragmento de A Relíquia:
me dizia noutro dia um capelão, primo meu: "São ferraduras - Tu lá nos estudos costumas fazer o teu terço? - pergun­
demais para um país tão pequeno! . . . " Catorze ferraduras, se­
ta-me com secura a titi.
nhor! É abusar! Sabe vossa Senhoria quantos pregos, dos
E eu, sorrindo, abjetamente:
que pregaram Cristo na Cruz, Vossa Senhoria tem impingido,
todos com documentos? Setenta e cinco, Senhor! . . . Não lhe
- Ora essa! Eu que nem posso adormecer sem ter rezado o
meu terço!. . .
digo mais nada. . . Setenta e cinco!
a ) Identifique o s personagens que dialoga m :
a) Relate o episódio que faz com que Lino dê essa resposta b ) Por q u e razão a titi, autora d a pergunta, o faz "com secura " ?
a Raposo. c) Por que a reposta é acompanhada de u m " sorriso abjeto? "

11
a) Teodorico Raposo, em viagem à Terra Santa, pretendia tra­ b) O duplo sentido da frase ocorre devido à palavra " ferradu­
zer para a tia, a beata D. Patrocínio das Neves, uma relíquia ras " . Li no se utiliza dela para se referir à inflação daquele
sagrada, com a qual conseguiria obter sua herança. tipo de relíquia no mercado, no sentido literal da frase. Já
Ao longo da travessia, entregou-se às aventuras sexuais no sentido irônico, ele está aludindo aos "ferraduras" que
que l he eram proibidas e ganhou de Maricoquinhas, uma adquirem esses produtos. Aqui, a palavra tem a sign ifica­
de suas amantes, um embrulho contendo uma camisola. ção de " burros", de gente "pouco inteligente", o que pode
Em Lisboa, no momento de entregar o presente à tia, per­ se estender à ignorância e ao atraso cultural dos portugue­
cebeu que trocara os embrulhos: esta recebe a camisola,
cn
ses, que Eça critica na passagem e em grande parte de
·O
em vez da relíquia . . . o que o desmascara e faz com que suas obras. ex:
seja sumariamente expulso e deserdado. w
Passa a dedicar-se, então, ao comércio i lícito de falsas relí­ a) Os personagens são Teodorico Raposo e titi, a Sra. D . ::::>
quias católicas, por meio de Lino, sujeito inescrupuloso Patrocínio, sua tia. o
que conhecera por acaso. b) A titi faz a pergunta com secura porque é esta a sua per­ w
Depois de algum tempo, resolve vender diretamente as sonalidade: seca, ríspida e insensível a quaisquer afetos, o
"preciosidades", sonegando-as de seu intermediário. Mas a ela só vive em função da religião.
<(
queda das vendas faz com que o chame de volta, mostran­ c) Este sorriso abjeto é uma demonstração, uma prova, da t>
do-lhe um novo lote de mercadorias e o convidando a reto­ hipocrisia da Teodorico, que se finge de carola para agradar w
marem os negócios. O fragmento presente no enunciado a tia e assim tornar-se seu herdeiro. -
da questão é a resposta de Lino a Teodorico Raposo.
69
I o REAUSMO NO BRASIL
Vindo da França, o Realismo consiste basicamente na superação do sentimenta­
lismo romântico pela busca de objetividade, de uma postura racionalista, coeren­
te com a "febre cientificista" das últimas décadas do século XIX. E, também, defla­
gra o engajamento da arte ao movimento social, pela crítica de costumes e pela defe­
sa de reformas sociais.
Os escritores realistas pretendiam fazer uma literatura antiburguesa, antimonár­
quica, anticlerical, através do predomínio da razão sobre a emoção, da rígida obe­
diência ao princípio da verossimilhança, de uma postura de análise crítica que lhes
permitisse o retrato objetivo e imparcial da sociedade.
O Naturalismo, espécie de exagero do Realismo, considera o comportamento
humano um produto de leis naturais, uma decorrência de fatores biológicos, tendo,
assim, um caráter reducionista que não se verifica no Realismo, mais propenso a discu­
tir o homem e as relações sociais do que a explicá-las de forma unilateral.
Machado de Assis e Aluísio de Azevedo, o primeiro com Memórias Póstumas de
Brás Cubas e o segundo com O Mulato, constituem os dois grandes escritores que ini­
ciam respectivamente o Realismo e o Naturalismo brasileiros.
achado de Assis nasceu no Rio de
M Janeiro, em 1 839, no Morro do
Livramento. Filho de pai muito pobre (pintor) e
de mãe lavadeira, ficou órfão muito cedo.
Pobre, mulato, tímido, gago, epilético,
conseguiu sobreviver e fazer carreira de
funcionário público e escritor. Autodidata, MACHADO DE ASSIS
conquistou vasta cultura literária. Aos 1 6
anos, trabalhou na Imprensa Nacional, como
aprendiz de tipógrafo, em jornais. Aos 30 Cada criatura humana traz duas almas consigo:
anos, casou-se com Carolina Xavier de uma que olha de dentro para fora, outra que olha defora para dentro . . .
Novais. Ascendeu na carreira burocrática. Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo;
Teve vida social e cultural ativas. Foi um dos não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir.
fundadores e primeiro presidente da
Academia Brasileira de Letras. Morreu aos 69
anos, também no Rio, em 1 908.
É considerado, praticamente por DOM CASMURRO
unanimidade, como o maior escritor em prosa
da literatura brasileira. Iniciou o Realismo, Dom Casmurro é a história, contada pelo marido, de um adultério a seu ver come­
em 1 88 1 , com o romance Memórias tido pela mulher_ ..
póstumas de Brás Cubas, ao mesmo tempo
realizando a sua superação, num salto mortal
para a modernidade, de que é um Dom Casmurro (1899) é um bom ponto de partida para apreciar a distância, na
antecipa dor, em vários aspectos: a crítica da verdade o adiantamento, que separava Machado de Assis de seus compatriotas. O livro
<(
o I inguagem e da estrutura tradicional da tem algo da armadilha, com aguda lição crítica - se a armadilha for percebida como
narrativa; os microcapítulos e o enredo não­
�z l inear, descontínuo; a constante
tal. Desde o início há incongruências, passos obscuros, ênfases desconcertantes, que
vão formando um enigma.
w meta linguagem, questionando o próprio fazer
do livro; o estilo substantivo, anti-retórico; a
Roberto Schwarz
� "A Poesia Envenenada de Dom Casmurro ".
o análise psicológica que vai além dos limites
da consciência do personagem; o humor sutil Rev. CE-BRAP, Novos Estudos, n o 29.
u
<( e permanente, distruindo as ilusões e as
o: pieguices românticas; a visão aguda e
::J profundamente relativista, com a linguagem Narrador
sutil, ambígua, de múltiplos sentidos etc.
�a: Além de seu grande salto de qualidade, Enigma é uma palavra que nos parece exata para manifestar as impressões causadas
w Memórias póstumas de Brás Cubas, publica pela leitura de Dom Casmurro, cuja poesia envenenada procuraremos comentar.
1- outros romances fundamentais: Ouincas
.....J Borba, Dom Casmurro, Memorial de Aires etc.
Narrada em primeira pessoa, por um narrador-personagem, que se coloca como
....... escritor, a história de Dom Casmurro tem como primeira chave para tentarmos nos apro­
o
ximar de seu enigma a própria figura desde que ao mesmo tempo a vive e a relata.
10
Trata-se de um velho solitário, apelidado de Dom Casmurro, que por desfastio da monotonia
em que vive, passa a relatar seu passado.
É assim que ele explica as razões do livro, no capítulo 2 do romance. Entretanto, se o compa­
rarmos com o capítulo 1 , o qual dedica ao apelido, veremos um dos aspectos mais importantes do
processo narrativo da obra.
Por um lado, o narrador nos dá a aparência de que tanto o apelido quanto os motivos de escre­
ver são aleatórios, quase banais . . . Poderia, por exemplo, escrever sobre filosofia, jurisprudência,
política, ou mesmo uma História dos Subúrbios, preferindo, por casualidade, falar da sua pró­
pria existência. . . ( cap. 2). Mas, por outro lado, prestando atenção em ambos os capítulos, per­
ceberemos ser mais importantes do que parecem, tanto o apelido quanto o livro.
O apelido lhe foi dado por um rapaz que se aborreceu com o fato de ele ter dormido, enquan­
to, num trem, lia-lhe os versos que fizera. O narrador atribui ao cansaço tal atitude, embora ao
mesmo tempo afirme que os versos pode ser que não fossem inteiramente maus.
Ficamos, então, em dúvida: ele fechou os olhos três ou quatro vezes por cansaço ou porque
não gostou dos versos? Se pode ser que não fossem de todo maus, com certeza também não eram
de todo bons . . .
Além disso, o s vizinhos, que não gostavam de seus hábitos reclusos, calados e também os
amigos da cidade, fizeram com que "pegasse" o apelido, cujo significado ele mesmo nos dá:

não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas, no
que lhepôs o vulgo de homem calado, metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me
fumos defidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha
narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo.
O meu poeta ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno eiforço, sendo o
título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso de seus autores;
alguns, nem tanto. (cap. 1 - "Do título ".)

Observe nesta passagem outra "contradição" do narrador: se ele não guarda rancor do poeta
pelo apelido, por que o comentário maldoso de que, sendo o título seu, poderá pensar que a obra
é sua? Observe, também, a ironia com que fala de livros que têm apenas o nome dos autores, ou
nem isso . . .
Você j á percebeu: uma das "armadilhas" do romance é o seu narrador não-confiável. Ele
mente, distorce, confunde o leitor, com quem conversa ao longo da narração, anunciando a meta­
linguagem da literatura do século XX.
Outra característica percebida no trecho lido é a habilidade com que o narrador faz pare­
cer sem importância o que é fundamental, como por exemplo o apelido, que de mera graça,
brincadeira, vai se transformando, durante a leitura, na síntese das conseqüências que os desenga­
nos da vida trouxeram à sua personalidade: fechada em si mesma, com ares de superioridade, soli­
tária, casmurra.
Esta habilidade também se revela no segundo capítulo, quando comparamos a aparente casua­
lidade que leva o narrador a falar de si, de seu passado, com a descrição da casa onde mora.

A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão par­
ticular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastante anos, lembrou-me reproduzir
no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo
aspecto e economia daquela outra, que desapareceu (. . .) O meu fim evidente era atar as duas
pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o
que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem
os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde, masfalto eu mesmo
e esta lacuna é tudo.
(cap. 2 - Do livro.)
C/)
Perceba, agora, a importância do passado na velhice de Dom Casmurro, a sua vontade -
C/)
construindo uma casa semelhante à aquela em que fora criado - de atar as duas pontas da vida, C/)
de restaurar na velhice a adolescência. Perceba, ainda, a impossibilidade de se realizar o projeto. <(
Se há a casa, não há mais a pessoa que havia: falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. w
o
Escreve, então, para de outra forma tentar preencher a lacuna entre o passado e o presente,
o
entre o menino Bentinho que fora, e o Dom Casmurro em que se transformara. o
Embora se refira ao obj etivo de reviver o passado, de reencontrar-se, escrevendo; o narrador, <(
J:
com as "armadilhas" com que tece todo o relato, atribui às imagens dos quadros de sua casa (as u
mesmas de antigamente) a "inspiração" para escrever: <(

Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma -
vez que eles não alcançavam reconstituir-me nos tempos idos, pegasse da pena e contasse
11
alguns. Talvez a narração me desse a ilusão e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao
poeta, não o do trem mas o do Fausto: "Aí vindes outra vez, inquietas sombras?". . .
(cap . 2 - Do livro.)

A presença da metalinguagem - desnudamento do ato de escrever, escrevendo - a não­


confiabilidade do narrador, as suas alusões ao fundamental como se fosse o supérfluo e vice­
versa, emfim, os modos pelos quais o narrador provoca o leitor - iludindo-o, confundindo-o,
desconcertando-o - constituem algumas das "pistas" que nos levam ao enigma de Dom Cas­
murro. A elas, a última passagem lida acrescenta as comparações insólitas, incongruentes (o
obscuro poeta do trem e Goethe, o maior poeta do romantismo alemão, autor de Fausto) e as cita­
ções. Estas não se restrigem a grandes obras e grandes escritores, dos mais diversos estilos e cam­
pos do conhecimento, mas incluem desde as Sagradas Escrituras, tanto cristãs quanto muçulma­
nas, desde os textos dos mais diferentes profetas, até os pregões populares, opúsculos obscuros,
além de um soneto que não foi escrito. . .
O elemento que permite ao narrador manej ar tamanha diversidade de recursos, tamanha mul­
tiplicidade de fontes, tamanhas redes de armadilhas é a ironia: uma ironia fina, sofisticada, devas­
tadora de ilusões e conformismo, com a qual Machado de Assis mistura humor e amargura, poe­
sia e veneno, não para fotografar mas para fazer a radiografia da psique humana, pretendi­
da pelos escritores realistas de seu tempo.
Percorrendo o enredo de Dom Casmurro, poderemos perceber alguns dos motivos do adian­
tamento deste escritor - considerado o maior de nosso país e um dos "gigantes" da literatura
universal - em relação a seus compatriotas e também ao estilo literário da época em que viveu:
o Realismo de tendência naturalista, no qual se destaca, como vimos em O Primo Basílio, de Eça
de Queirós, o tema do adultério. O mesmo tema de Dom Casmurro, que lhe dá, entretanto, outro
enfoque, que passaremos a estudar.

Eruedo
Ao mesmo tempo em que faremos uma síntese dos principais elementos do enredo do roman­
ce, vamos tentar "desmontar algumas peças do enigma", isto é, vamos conhecer mais algumas
"chaves" que nos permitam penetrar em seu universo ficcional.
A primeira é a total ausência de linearidade do enredo. Repleto de cortes, de digressões, de
idas e voltas, Dom Casmurro possui, em seus 1 48 capítulos, os que funcionam como prólogos
de outros capítulos, os que retomam capítulos anteriores, como se explicitassem passagens que
ficaram "obscuras" ou "incompletas", os que discutem com o leitor o rumo dos acontecimen­
tos, os que se dirigem a determinados personagens ou objetos personificados, além daqueles
que aludem tanto ao desfecho do romance quanto à possibilidade de compreendê-lo e inter­
pretá-lo.
Como num jogo, há uma série de "pistas" que tanto podem ser "falsas" como "verdadeiras",
isto é, tanto podem "desviar" o leitor desatento da problemática humana tematizada na obra, quan­
to podem fazer o movimento inverso: seduzir o leitor atento, iluminando-o com sua riqueza de sig­
nificados.
Tudo depende de como se lê, de como se interpreta a alternância entre acontecimentos,
ações, e comentários, digressões, com a qual o romance se estrutura.
Tal estrutura sistematicamente "desvia" a atenção do leitor do fluxo dos fatos narrados, retar­
dando-os, dispersando-os, fragmentando-os. Assim, ao mesmo tempo em que ironiza a irritação
<( do leitor impaciente, a devoção da leitora casta, as ilusões da leitora romântica, a necessidade
o de explicações do leitor obtuso, Dom Casmurro vai se fabulando e desvendando o seu processo
�z de fabulação. Como os grandes livros da nossa época, em que o "rascunho" é parte da obra, o ato
de criar se revela na própria criação: metalinguagem.
w Mas, quais os significados destes recursos, para a compreensão de Dom Casmurro? Como

o interferem no "salto de qualidade" do romance, em relação a outros com os quais possui semelhan­
(.) ça temática? Aproximemo-nos do enigma.
<( A primeira cena evocada refere-se a uma célebre tarde de novembro, em 1 857, quando
a:
:::> Bentinho se sente nascer...

a:
Tinha ele 1 5 anos e ouviu às escondidas uma denúncia de José Dias, o agregado de sua famí­
lia, sobre o perigo das "intimidades" que mantinha com Capitu, menina de 14 anos, com quem
w crescera e de quem era vizinho.
1-
::J A denúncia provocou na mãe de Bentinho, D. Glória, a obrigação de cumprir a promessa que
- fizera em seu nascimento: como perdera o primeiro filho, o segundo, se sobrevivesse, seria padre.
Bentinho, então, deveria ir para o Seminário.
12
Ao menino, José Dias o denuncia a si mesmo: descobre a partir daí que ama Capitu, também
sendo amado por ela. Trocam as primeiras carícias, os primeiros beijos, as primeiras ironias; tra­
çam planos para impedir a partida de Bentinho, juram casar-se um dia e, enfim, o momento chega:
Bentinho vai para o Seminário, onde fica por um ano.
Uma idéia do amigo Escobar o livra, e também à mãe, da promessa, sem que se fique mal com
Deus: D. Glória adota uma criança pobre, que assume a batina no lugar de Bentinho, o qual se
forma em Direito e se casa com Capitu. Escobar, que conhecera no Seminário, casa-se com Sancha
- a melhor amiga de Capitu - com quem tem uma filha.
O filho de Bentinho e Capitu demora mas vem, os dois casais se freqüentam assiduamente até
que ... ocorre a tragédia. Escobar morre afogado e Bentinho tem ciúmes de certo olhar de Capitu
ao defunto. A partir de então começa a ver no filho Ezequiel (o mesmo nome do amigo) a fisio­
nomia, os gestos, a personalidade de Escobar.
O adultério entre a primeira amada de seu coração e o melhor amigo - é "provado" a
Bentinho pela natureza: a semelhança cada vez maior de Ezequiel com Escobar, reconhecida por
Capitu, que no entanto não se confessa culpada.
O casal se separa, Capitu e Ezequiel morrem no estrangeiro, e Bentinho se faz o Casmurro
de quem falamos, a vítima da "crueldade" do destino, cuja única dúvida, expressa no último capí­
tulo do romance,
é saber se a Capitu da praia da Glória (local onde moravam, depois de casados) já estava
dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente.
Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX,
vers. L não tenha ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malí­
cia que aprender de ti. Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da
Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da
casca. (cap. 148 - "Bem, e o resto?")

Observe, neste trecho do final do romance, que a dúvida é se Capitu sempre fora desonesta
ou se passou a sê-lo depois de casada. Observe ainda que o narrador, usando Jesus Cristo como
argumento de autoridade, sugere a possibilidade de os seus cíumes terem provocado a malícia
de Capitu, desmentindo-a, entretanto, agora através do aliciamento do leitor: Se te lembras bem
da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da
casca.
Comentário geral sobre o enredo
Durante 60 anos, o "leitor", isto é, a crítica literária, acreditou em Bentinho, e o livro foi lido
como mais um exemplo de adultério feminino, explorado pela literatura realista.
Mas, em 1960, uma professora norte-americana, Helen Cadwel, propôs uma releitura da obra
que chegou ao cerne de seu enigma apontando Bentinho, e não Capitu, como o problema central
de Dom Casmurro.
Vej amos alguns motivos. O mais importante, que traz à tona todos os outros, é que a his­
tória é contada do ponto de vista de Bentinho, o personagem-narrador não-confiável que
comentamos.
Vimos de passagem, na parte sobre o narrador, a maldade com a qual ironiza o obscuro poeta
do trem que lhe deu o apelido de Casmurro. Esta maldade aparece em vários momentos do livro,
como no capítulo 67 ("Um pecado"), em que, voltando do Seminário para ver a mãe doente pensa
que mamãe defunta, acaba o Seminário. Já nos capítulos de 85 ("Um defunto '') a 93 ("Um amigo
por um defunto ''), há um verdadeiro tratado sobre a maldade de Bentinho: na ocasião da doen­
ça da mãe, morre o Manduca, que sofria de lepra, e com quem convivera. Ao saber da notícia, pri­
meiro Bentinho - a cabeça no encontro que tivera com Capitu - desapontado pela interrupção cn
de sua felicidade, desejou que Manduca esperasse algumas horas para morrer. Em seguida, vendo cn
o defunto, comentou consigo mesmo que vivo era feio: morto pareceu-lhe horrível. Entretanto, cn
<(
substituiu a repugnância por uma pretensa piedade para convencer a mãe a deixá-lo ir ao enterro w
e, assim, adiar a volta ao Seminário, podendo de novo ver Capitu. A negativa da mãe, influencia­ o
da por prima Justina, que pôs em dúvida a amizade que teria ao menino, deu-lhe, em vez de revol­ o
o
ta, um sabor particular, fê-lo perguntar-se que intimidade poderia haver entre a doença dele e a <(
sua saúde. J:
u
Lembrou-se então de uma polêmica que tivera com o menino, devido à qual a repugnância por <(
sua "cara nojosa", debaixo da triste rota e infecta colcha de retalhos momentaneamente diminuí­ �
ra. Utilizou-se da mesma polêmica para se justificar ao leitor no capítulo seguinte, em que ao -
mesmo tempo afirma ter dado alívio e até felicidade ao Manduca, a quem distraíra da doença, e
13
que o menino - se fosse pecado a opinião que defendera - era melhor haver gemido somente,
sem opinar coisa alguma...
Tais reflexões, reveladoras não só da maldade mas d o egoísmo, da vaidade, d o sentimento
de superioridade de Bentinho, terminam com mais um requinte de perversão: ao encontrar em
casa Escobar, troca um amigo por um defunto e dá o caso por encerrado . . .
Outra característica deste narrador cada vez menos confiável e m seus depoimentos, e cada vez
mais querendo provar ao leitor o contrário do que demonstra ser, é o ciúme doentio que o domi­
na em relação à Capitu.
Quando no Seminário José Dias, cuja hipocrisia várias vezes presenciara, afirma que Capitu
está alegre e bem disposta longe da sua companhia, procurando um peralta da vizinhança que case
com ela, Bentinho experimenta um sentimento cruel e desconhecido. Obcecado por tal sentimen­
to, vê passar um cavaleiro em frente da casa da namorada, e julga perceber uma troca de olhares
entre ambos. Tem, então, vontade de cravar-lhes as unhas no pescoço, enterrá-las bem, até ver­
lhe sair a vida com o sangue. . . (cap. 75 - O desespero.)
Logo que se casam, tortura-se nos bailes - vexado e aborrecido - com os olhares dos ho­
mens aos belos braços de Capitu, os mesmos que o desvanecem por serem "os mais belos da
noite". Após o nascimento de Ezequiel tem a seguinte conversa com o leitor:

Porfalar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso dela, não continuei
a sê-lo apesar dofilho e dos anos. Sim, senhor, continuei. Continuei a talponto que o menor
gesto me afligia, a mais íntima palavra, uma insistência qualquer (. . .) cheguei a ter ciúmes
de tudo e de todos. . . (cap. 1 1 3 - Embargo de terceiros.)

Ao ciúme de Bentinho, acrescente a imaginação que ele próprio compara com uma grande
égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre, em seguida des­
pistando o leitor, mas deixemos de metáforas atrevidas e impróprias para os meus quinze anos.
(cap. 40 - Uma égua).
Acrescente, também, a inveja das astúcias d e Capitu - d e suas iniciativas sempre lúcidas e
sempre bem-sucedidas, incluindo a do primeiro beijo - além da inveja dos braços musculosos de
Escobar - de sua cabeça aritmética, de seu brilho na aula como na sala de estar e à mesa . . . Você,
agora com facilidade, passa a ver na vítima o agressor, na superioridade a inferioridade, na
confissão o aliciamento.
Esta nova leitura da obra, iniciada pela professora norte-americana, deflagra a dimensão psi­
canalítica, perturbadoramente requintada, da poesia envenenada de Dom Casmurro.
Se a semelhança entre o menino Ezequiel e Escobar é mera casualidade, como o romance
sugere e o protagonista desmente, se a Capitu mulher estava dentro da menina, como Dom
Casmurro pergunta e depois responde, desviando com esta falsa dúvida a atenção do leitor para a
dúvida sobre a legitimidade da culpa de Capitu, enfim, se esta culpa é legítima, não o sabemos,
j amais o saberemos.
O que podemos afirmar é que a crueldade de Bentinho ao tentar matar o filho, envenenando­
o, a crueldade com que se refere às despesas de seu enterro, afirmando que pagaria o triplo para
não o ver mais, a crueldade com que desterra a "traidora" estão presentes no menino que se sen­
tia, aos quinze anos, menos homem do que a menina de catorze, Capitu, mulher ••.

Aí está o centro da problemática deste livro cujos j ogos de luzes misturam a penumbra de
uma personalidade medíocre - entre o fascínio e a necessidade de destruir os que lhes são
caros, os que "lhe roubam as cenas", como Capitu e Escobar - com a luminosidade de um novo
realismo. Um Realismo que através da não-confiabilidade do narrador, e dos demais recursos
<! a que nos referimos, dentre outros, confirma a opinião de Roberto Schwarz sobre o referido adian­
o tamento de Machado de Assis: "não há dúvida quanto ao passo adiante em relação ao obj etivis­
�z mo de realistas e naturalistas: também o árbitro é parte interessada e precisa ser adivinhado como
tal" (obra citada).
w
E quanto a nós, leitores, o mínimo que podemos fazer diante das perversidades do narrador de

o que também fomos vítimas, e diante da intensidade desta mescla de poesia e veneno - é, agora
u apaixonada e lucidamente, reler o romance atentando melhor para os olhos de Capitu, dos quais
<! passaremos a falar . . .
a:
:::>

a: Personagens
w
1-
....J
Principais
- Sobre Bentinho/Dom Casmurro, acreditamos j á o termos "denunciado" para a compreensão

14 do enredo do romance.
Resta-nos, então, Capitu - a vizinha Capitolina, cujos olhos eram vistos pelo agregado José
Dias como olhos de cigana oblíqua e dissimulada, e por Bentinho como olhos de ressaca:

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram
aqueles olhos de Capitu. Não me ocorre imagem capaz de dizer, sem quebrar a dignidade do
estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá a idéia
daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arras­
tava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.
(cap. 32 - Olhos de Ressaca.)

Vemos nesta passagem, claramente metalingüística e na qual o narrador ironiza o Romantis­


mo, como faz em muitos outros momentos da narração de seu "idílio adolescente", que Capitu,
sem dúvida, é outra das "chaves do enigma".
Desde a primeira até a última cena do livro em que aparece, seus traços de personalidade são
marcados entre o fascínio pela esperteza, pela sagacidade, pela feminilidade, pelo equilíbrio entre
ação e reflexão, e a desconfiança, devido aos mesmos motivos.
Enquanto Bentinho é denunciado no seu amor por Capitu por José Dias, esta já sabia que o
amava, já lhe contava sonhos apaixonados que tinha com ele, os quais não eram compreendidos.
Após a descoberta de Bentinho, Capitu continua tomando todas as iniciativas: o primeiro e o
segundo beijo, a primeira briga e a primeira reconciliação, os planos para impedir a ida de
Bentinho ao Seminário e, quando fracassam, o juramento de que não só se casariam um com o
outro, como queria Bentinho, mas de que haviam de se casar, independentemente do que houves­
se. Planeja com sucesso o casamento, percebendo e realizando a necessidade de se fazer indispen­
sável a Dona Glória, que é quem iria decidir a vida do filho.
Depois de casada, mostra-se econômica, tão hábil com as despesas da casa quanto com os ciú­
mes de Bentinho, a quem diz que será sempre uma criança e cujas inseguranças e medos conhe­
ce desde menina.
Como a vemos pela ótica do narrador, também tendemos a oscilar entre o fascínio e a descon­
fiança. Entretanto, na medida em que a única razão concreta da desconfiança é a semelhança entre
Ezequiel e Escobar, sendo que as outras constituem as mesmas pelas quais Bentinho admira e
inveja a mulher, resta-nos admirá-la. E o motivo da admiração não é a possibilidade de sua ino­
cência, mas a antecipação feita por Machado de Assis, através da personagem, de uma discussão
essencialmente moderna: o questionamento do papel social da mulher, a partir da "libertação" de
seu saber, o qual não se concilia com o patriarcalismo da sociedade em que vivemos.

Secundários
Dentre os personagens secundários, destaca-se José Dias, o agregado, que representa um tipo
essencial para a compreensão do funcionamento da nossa sociedade, estudado por Roberto
Schwarz nesta e em outras obras de Machado de Assis.
Vamos sintetizar algumas de suas opiniões, acrescentadas à leitura que fizemos da obra.
A condição de agregado, isto é, de viver da proteção dos ricos, aos quais faz "favores" de
todos os tipos, explica bem o seu comportamento, resumido por Bentinho: sabia opinar obedecen­
do. Para opinar, a necessidade de conhecimentos tão amplos quanto ocos de conteúdo, superficiais.
Daí a predileção pelos superlativos, com os quais não só referenda as falas dos protetores, mas,
ainda, mostra certo pendor à retórica, à oratória, ironizado no livro, por exemplo com a seguinte
frase: Nada há mais feio que dar pernas longuíssimas a idéias curtíssimas.
José Dias aparece - na ocasião do nascimento de Bentinho - na velha fazenda de ltaguaí, e
se apresenta como médico homeopata ao rico proprietário Pedro Albuquerque de Santiago,
curando sem remuneração dois escravos atacados de febre. C/)
O pai de Bentinho o convida a ficar, ele aceita e quando ocorrem outras doenças confessa-se C/)
charlatão, com uma "dignidade" que o faz parecer estar dizendo o contrário do que afirma. C/)
<(
A tal confissão precede o dom de se fazer aceito e necessário de José Dias, o que o mantém w
na família, que se muda para o Rio de Janeiro quando o pai de Bentinho se elege deputado. Após o
a sua morte, José Dias continua como agregado, agora sob a proteção de D. Glória, a viúva devo­ o
o
ta, cuja felicidade no casamento Bentinho idealiza. <(
Passando a exercer certa influência em D. Glória, não apenas uma santa mas uma "santíssi­ :c
u
ma" na opinião do agregado, dele sai a denúncia que apressa a ida de Bentinho ao Seminário. <(
Entretanto, a perspicácia de Capitu coloca-o como defensor da liberdade de Bentinho, função que �
aceita já servindo ao "próximo protetor" e também tentando conciliá-la com o desejo de ir à -
Europa, onde o menino "deveria" fazer os estudos, "evidentemente" acompanhado por ele . . .
15
O plano não funciona, apesar das insinuações de José Dias, que tenta mudar a opinião de D.
Glória. Frases ditas como que por acaso, do tipomesmo que não seja padre, e é preciso ter voca­
ção, ilustram o opinar obedecendo do agregado. Ele trata Bentinho como mãe e como servo, e seu
cálculo nas atitudes aparece no próprio ritmo de seus passos: a premissa antes da conseqüência,
a conseqüência antes da conclusão.
Assim, o agregado se subordina à vontade do "protetor", compensando-se imaginariamente da
condição subalterna através de maldades para com o vizinho pobre, o Pádua (pai de Capitu), a
quem apelida "o tartaruga". Quando descobre os amores de Bentinho e Capitu, novamente se curva
aos de quem depende, o que o faz passar de opositor a cúmplice.
O favor é um dos elementos básicos das relações sociais do país ao longo do século XIX, no
romance representadas pela casa de D. Glória.
Lá, além do agregado, vivem dois parentes pobres: prima Justina, cuja maldade também se
relaciona com a compensação imaginária da dependência e o tio Cosme, advogado aposentado,
"gordo" e "passado".
Formado para as severas funções do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no fôro: ia comendo.
(cap . 6 - Tio Cosme.)

A vizinhança também aspira à proteção dos ricos, como se percebe pela cumplicidade da mãe
de Capitu com o namoro da filha e pelo episódio da despedida entre Bentinho e o Pádua. Este, ao
ver o menino partir para o Seminário,

levava a cara dos desenganados, como quem emprega em um só bilhete todas as suas economias
de esperança, e vê sair branco o maldito número - um número tão bonito!
(cap. 52 - O velho Pádua.)

À presença do dinheiro, do interesse, escamoteada pelos parentescos, pelos favores, pela "reli­
giosidade"dos personagens, Machado de Assis dedica passagens primorosas, em especial aquelas
em que ironicamente relaciona a devoção cristã ao capitalismo.
Um exemplo pode ser o do capítulo 50 ( Um meio termo), no qual o padre Cabral, professor de
primeiras letras, de latim e de doutrina de Bentinho - através de quem D. Glória adiava a promessa
que no fundo não queria cumprir - arranja ummeio-termo entre a terra e o céu: experimentar por
dois anos a vocação de Bentinho. Vejamos como se dá o "negócio": Era uma concessão do padre.
Dava a minha mãe um perdão antecipado, fazendo vir do credor a revelação da dívida.
O único personagem que se distancia deste círculo de relações paternalistas, fincadas na
dependência e na dissimulação da mesma, éEscobar. Aqui, a ironia está no fato de ser ele o único
personagem que fala em dinheiro explicitamente, que pensa e executa atividades de comércio,
pelas quais tem paixão especial.
Dedica-se ao café, e acaba "ajudando" o protegido e rico Bentinho - o qual não se cansa de
se gabar a ele das casas, dos escravos, da própria riqueza - ao arranjar-lhe clientes, embargos,
demandas . . .
Vê-se por estes comentários sobre o s personagens de Dom Casmurro outra dimensão do livro,
tão longamente ignorada quanto a deflagrada pela não- confiabilidade do narrador: a agudez com
que Machado de Assis desvenda as relações sociais de nossa sociedade ao longo do século passa­
do - uma sociedade escravocrata, oligárquica, paternalista e centrada nas "relações de favor".

Linguagem

< Já comentamos alguns dos aspectos centrais da linguagem de Dom Casmurro: as reflexões
o metalingüísticas, as ironias às expectativas do leitor, as digressões. Através delas, o narrador nos
�z revela, como se os tivesse escondendo, não só "bastidores" sombrios da personalidade de
w Bentinho, mas também a própria arquitetura do romance, como veremos em alguns capítulos
� exemplares.
a No capítulo 59, que se intitula Convivas de boa memória e fala sobre reminiscências, lembran­
u
ças, o narrador de início afirma ter boa memória, e logo depois o contrário. Compara sua memó­
<
a: ria fraca com alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem
:J nomes, e somente raras circunstâncias. Após dizer invejar os que não esqueceram a cor das pri­
�o: meiras calças que vestiram, enquanto ele não atina com as que enfiou ontem, diz preferir o olvi­
w do (o esquecimento) à confusão. Em seguida, explica-se:
1-
...J Nada se emenda bem nos livros confusos mas tudo se pode meter nos livros omissos (. . .) É
- que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias;
assim podes também preencher as minhas.
16
Atente para esta explicação. O que ela explica? Que o livro tem lacunas, ironicamente asso­
ciadas a falhas de memória, omissões, as quais o leitor deve preencher, como o narrador faz com
as alheias. . . Veja que há aqui três pistas de leitura "despistadas" pela aparência de "conversa fiada"
do começo do capítulo. A primeira é a suposta memória fraca do narrador, que, assim, pode tanto
alterar quanto omitir passagens relevantes para compreensão de seu passado. A segunda é que
diante disso o leitor deve "preencher as lacunas que encontrar", quer dizer, recriar o texto, inter­
pretando-o com a sua própria imaginação, inteligência e sensibilidade. E a terceira refere-se à já
comentada mania de superioridade do narrador, que se coloca como exemplo a ser seguido.
Você tem, então, um anúncio metalingüístico da ambigüidade do romance ironicamente
ligado a um indício da prepotência, do autoritarismo do seu narrador.
No capítulo 60, Querido opúsculo, que continua a reflexão comentada, o narrador conversa
com um opúsculo de páginas amareladas - o panegírico de Santa Mônica (elogio à santa feito por
um colega de ápoca em que vivia no Seminário);

Querido opúsculo, tu não prestavas para nada, mas que mais presta um velho par de chinelos?

A conclusão desta comparação de aparentes inutilidades é exatamente outra pista, agora sobre
o valor de tais inutilidades:

já agora creio que não basta que os pregões de rua, como os opúsculos de Seminário,
encerrem casos, pessoas e sensações; é preciso que a gente os tenha conhecido e padecido no
tempo sem o que tudo é calado e incolor.

Veja que se coloca, aqui, outra dimensão fundamental do romance: o seu caráter de memória,
de reminiscência, faz com que os casos, as pessoas, as sensações, isto é, os elementos do enredo,
sejam deflagrados por coisas cuja desimportância aparente encobre o seu verdadeiro valor, o sen­
tido que possuem para quem os viu, viveu e sofreu. É assim que funcionam as nossas memórias,
as lembranças, as evocações do passado, que não seguem uma seqüência lógica mas, ao contrário,
obedecem ao fluxo com que irrompem movidas pelas emoções que as suscitam.
Esse fluxo é trabalhado literariamente - sempre recoberto pela ironia - ao longo do roman­
ce. Portanto, na linguagem de Dom Casmurro há reflexão metalinguística - de seu ritmo, de sua
não-linearidade, da presença de "reticências" ...
Por um lado, como vimos, as "reticências" - as omissões, as lacunas, as digressões - instau­
ram a ambigüidade do romance e, por outro, aludem aos alicerces da arquitetura com que é magis­
tralmente tecido: entre o fluxo da memória de Dom Casmurro , de que surge Bentinho e a trajetória
de Bentinho, comentada, justificada, pretensamente "racionalizada" por Dom Casmurro.

11 No início de Dom Casmurro, de Machado de c) Escolha um dos momentos em que o narrador


Assis, há o seguinte trecho: O meu fim evidente retoma o velho pregão e explique o seu sig­
era atar as duas pontas da vida, e restaurar na nificado para a compreensão do romance.
velhice a adolescência.
a) Quais são as duas formas pelas quais Dom (UN ICAMP)
Casmurro, o protagonista do romance, tenta Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui parti­
alcançar o fim a que se refere no trecho lido? cular, mais mulher do que eu era homem. Se
b) Em qual delas foi melhor sucedido? Por quê? ainda não o disse, aí fica. Se disse, fica também.
Há conceitos que se deve incutir na alma do
!11 No enredo de Dom Casmurro, há um momento leitor, à força de repetição. (/)
liil em que Capitu e Bentinho refletem sobre o seu (Machado de Assis, Dom Casmurro) (/)
" amor impossível " , enquanto passa um preto No trecho acima o narrador, Bentinho, apre­ (/)
vendendo cocadas e cantando um velho pregão. senta uma i nteressante comparação ao leitor: <(
Este pregão reaparece em vários capítulos do ro­ w
mance, u m dos quais se intitula Em que se expli­
"Capitu (. . . ) era mais mulher do que eu era ho­
o
mem". Considerando tal comparação responda:
ca o explicado. o
a) Que características do comportamento dos o
Sobre este assunto, dois personagens, quando crianças, permitem <(
a) Apresente um dos elementos importantes entender a afirmação de Bentinho? :c
b) Qual a diferença fundamental entre o B en ti­ u
para o desenvolvimento do enredo do roman­
ce, presente no episódio do pregão. nho-narrador, que está escrevendo a história
<(
b) Por que o episódio do pregão, como vários de sua vida, e o Bentinho-menino, que se sur­

outros, reaparece tantas vezes ao longo do ro­ preendia com o comportamento de Capitu? -
mance?
11
11 a) Uma das formas foi construir no Engenho Novo uma
casa semelhante àquela de sua infância e adolescên­
perante a situação, em oposição à maneira grave, mais
madura e mais rEJflexiva, com que Capitu - que não
cia, que ficava em Matacavalos. A outra é o próprio teve vontade de comer cocada àquela hora - procura
romance, quer dizer, a tentativa de relatar o passado enfrentá-la.
e assim se reencontrar, restaurar na velhice a ado­ b) A não-linearidade do enredo do romance, a alternân­
lescência. cia ente ações e digressões do narrador, o reaprovei­
b) A primeira das tentativas de se reencontrar falhou, tamento de temas de certos capítulos (por exemplo,
pois embora a casa do Engenho Novo fosse muito o do pregão). constituem, dentre outros, alguns dos
parecida com a de Matacavalos, Dom Casmurro não fatores responsáveis pela modernidade de Dom
encontra nela Bentinho - a criança e o adolescente Casmurro, pela riqueza de recursos literários que
que fora. funcionam como " p istas " para o leitor compreender
A segunda, que é o relato de seu passado, aparente­ a profundidade do romance.
mente falha também, já que o narrador escreve j usti­ c) O melhor momento nos parece ser o do capítulo que
ficando os próprios defeitos e condenando a mu lher se i ntitula Em que se explica o explicado. Nele,
que amara e o melhor amigo como traidores, devido Bentinho, que reclamara ao leitor o fato de Capitu ter
à relação adúltera que teriam tido. Entretanto, no esquecido o velho pregão (como se por isso ela o
modo como o livro é narrado, há uma série de " pis­ amasse menos, ou não o amasse). confessa que
tas " , de " indícios" que colocam em dúvida a confia­ também o esquecera. Isto nos dá uma " pista " das
bilidade do narrador. Assim, a obra sugere ser Dom " culpas" que Bentinho procura atri buir a Capitu ao
Casmurro não a vítima, o " marido traído " , mas o cau­ longo de todo o romance, devido à insegurança, à
sador da própria solidão, do próprio isolamento, pelos sensação de inferioridade, ao ciúme doentio que
seus ciúmes doentios em relação à Capitu, pela inve­ tinha em relação a ela.
ja que tinha da mulher e também do amigo Escobar,
pelo egoísmo, pela vaidade e outros traços de uma 11!!11 a) A imagem que Bentinho cria de Capitu quando
personalidade egocêntrica, autoritária, incapaz de 1;11 ambos são crianças é a mesma que mostra ao leitor,
conviver com a superioridade humana dos que lhe o qual vai percebendo, no início do romance, as dife­
são caros. renças marcantes entre ambos. Enquanto Capitu
Em conclusão, se Dom Casmurro não encontra o revela-se dominadora, dissimulada e "dona de s i " ,
" verdadeiro" Bentinho durante o relato, nós, os lei­ q u e r dizer, capaz d e controlar e de administrar racio­
tores, podemos percebê-lo, o que faz com que o nalmente os próprios sentimentos, Bentinho vai apa­
romance revele o passado do narrador-personagem recendo como um menino inseguro, indeciso, super­
não para si próprio, mas para o leitor, o que constitui protegido, o que o faz sentir-se dependente em rela­
um dos fatores do brilhantismo, da qualidade literá­ ção à namorada e por isso afirmar ser ela " mais mu­
ria sem dúvida excepcional, deste romance de lher'' que ele " home m " .
Machado de Assis. b ) A diferença entre ambos é marcante. Enquanto
Bentinho-narrador, o Dom Casmurro, ao longo do ro­
1:11 a) Um dos elementos importantes presente no episó­ mance move um verdadeiro processo de acusação
(111 dia do pregão relaciona-se ao fato de o preto estar contra a esposa, que o teria traído com seu melhor
vendendo cocadas, antes de cantá-lo. Bentinho com­ amigo - interpretando as atitudes de Capitu-menina
pra duas, e oferece uma a Capitu. Esta não a aceita e também de Capitu-mul her como prenúncios da
por estar refletindo, procurando uma saída que impe­ traição - Bentinho-menino revela-se inseguro, ingê­
disse a ida de Bentinho ao Seminário e a conseqüente nuo, perdido no misto de fascínio e desconfiança
separação entre eles. O episódio revela o descomprcr que sente em relação a Capitu.
misso, a ingenuidade ou inferioridade de Bentinho

, , ,
MEMORIAS POSTUMAS DE BRAS CUBAS
Nesta história fantasticamente narrada por um defunto-autor, Machado de Assis utiliza-se da pre­
tensa superioridade de Brás Cubas, o narrador-personagem, para desnudar a precariedade da condição
humana, num exemplo universal e intemporal de Realismo irônico, niilista, filosófico e metafisico.
<{
o
�z Narrador
w
� Supostamente escritas por um "defunto-autor", isto é, por um narrador-personagem que resolve
o
u contar a sua vida "de além-túmulo", estas Memórias Póstumas de Brás Cubas constituem um roman­
<{ ce grandioso, de leitura dificil mas profundamente enriquecedora.
a:
::> O foco narrativo em 1 a pessoa faz com que a palavra de Brás Cubas monopolize o texto, num

t;(a: relato aparentemente caracterizado pela isenção, pela imparcialidade de quem já não tem necessida­
de de mentir, pois deixou o mundo e todas as suas ilusões.
w
1-­ Entretanto, essa constitui uma das famosas armadilhas machadeanas. Com ela, o escritor desa­
...J fiou a credulidade do leitor romântico de sua época e do leitor ingênuo, intemporal e universal: aque­
- le acostumado com os romances de ação, lineares e sem densidade literária.
18
Neste sentido, uma das chaves para com­
Em Memórias Póstumas de Brás CUbas ousadamente,
preendermos a obra é justamente colocarmos em
varriam-se de wn golpe o sentimentalismo, o moralismo
dúvida a veracidade do relato, prestando atenção superficial, a fictícia unidade da pessoa hwnana, as frases
nas "pistas" que denunciam as mentiras, os exa­ piegas, o receio de chocar preconceitos, a concepção do pre­
geros, as incongruências do narrador-perso­ domínio do amor sobre todas as outras paixões: afirmava-se
nagem. a possibilidade de construir wn grande livro, sem recorrer à
natureza, desdenhava-se a cor local, colocava-se wn autor,
Sua capacidade de manipulação, tanto quan­
pela primeira vez dentro das personagens: surgiam afinal
to sua presunção de superioridade ou "mania de homens e mulheres, e não brasileiros, ou gaúchos, ou nortis­
grandeza"' transparecem desde a 1 a página, de tas (. . .), introduzia-se entre nós o hwnorismo.
que transcrevemos o seguinte trecho:
A independência literária, que tanto se buscara, só com
este livro foi selada. Independência que não significa, nem
poderia significar, auto-suficiência, e sim o estado de maturi­
Capítulo Primeiro - Óbito do Autor dade intelectual e social que permite a liberdade de concep­
ção e expressão. Criando personagens e ambientes brasilei­
Algum tempo hesitei se devia abrir estas ros - bem brasileiros - Machado não se julgou obrigado a
memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, fazê-los pitorescamente típicos, porque a consciência da
se poria em primeiro lugar o meu nasci­ nacionalidade, já sendo nele total, não carecia de elementos
mento ou a minha morte. Suposto o uso decorativos. (. . .) E por isso pôde - o primeiro entre nós - ser
vulgar seja começar pelo nascimento, duas universal sem deixar de ser brasileiro.
considerações me levam a adotar diferente
método: a primeira é que eu não sou pro­ (Lúcia Miguel-Pereira - Prosa de Ficção: de 1 870 a 1 920)
priamente u m a utor defunto, mas um
defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que assim o escrito ficaria
mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas
no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na
minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era sol­
teiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos.
Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia - peneira­
va uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles
fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferiu à beira de
minha cova: !._ Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natu­
reza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm hon­
rado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem
o azul do céu com um crepe funéreo, tudo isso é a dor ema e má que lhe rói à Natureza as
mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustrefinado '.
Bom e fiel amigo! Nào, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.

Comentários
Repare que no primeiro parágrafo o narrador compara suas Memórias com o Pentateuco: os
cinco primeiros livros do Velho Testamento, atribuídos ao profeta Moisés, sugerindo que a dife­
rença radical entre ambas as obras estaria apenas na seqüência de que se utilizam.
Entretanto, é notória a distância entre um livro sagrado, histórico, fundador de uma tradição
religiosa e atribuído a um profeta de importância universal e o relato da vida de apenas um homem,
cuja identidade não se conhece. Percebe-se nessa mentira de Brás Cubas a referida "mania de
grandeza", a comentada presunção, que se confirma com a continuidade da leitura.
Quando conta sobre o seu enterro, ele se refere aos onze amigos que o acompanham, imedia­
tamente apressando-se em justificar essa exígua quantidade com a falta de cartas e anúncios de que
falecera, e também com a chuva que caía na ocasião. Em seguida, transcreve c elogio fúnebre que
lhe teria sido proferido por um dos amigos. CJ)
Veja que agora Brás Cubas justifica-se para despistar o leitor: se fosse importante como o CJ)
CJ)
profeta, o seu enterro estaria repleto de pessoas, sem a necessidade de cartas ou anúncios. <(
Além disso, repare também que há um forte elemento romântico, presente no elogio fúnebre: w
a utilização da natureza para expressar sentimentos humanos. o
Ao afirmar não ter se arrependido do dinheiro que deixara ao amigo, Brás Cubas coloca em o
o
dúvida a sua bondade, a sua fidelidade e também a veracidade do elogio fúnebre, no qual encon­ <(
I
tramos uma clara ironia do escritor ao Romantismo. u
Com tais "escorregadas" de Brás Cubas, disseminadas ao longo de todo o romance, Machado <(
de Assis vai denunciando o seu verdadeiro caráter, que procuraremos conhecer melhor estudando ::
-
o enredo do romance.
19
Emedo
Desde a narração de cenas da infãncia, Brás Cubas confunde e ludibria o leitor. Se num pri­
meiro instante afirma:cresci naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos, no próximo
apressa-se em acrescentar: talvez os gatos são menos matreiros e, com certeza, as magnólias são
menos inquietas do que eu era na minha itifância. (Capítulo IX: O Menino é o Pai do Homem).
Na verdade, Brás Cubas foi um menino não apenas matreiro, mas malvado. Apelidado de
"menino-diabo", mentia, escondia o chapéu das visitas, colocava rabo de papel em pessoas graves,
puxava cabelos, dava beliscões e maltratava cruelmente os escravos. Enfim, possuía um tempera­
mento maligno, pelo qual o pai e a mãe não o repreendiam. Ela por sempre ter sido fraca, omissa;
ele por admirar-lhe as "traquinagens", chamando-o brejeiro ...
Desenvolvendo-se num contexto familiar que o favorece e justifica, Brás Cubas sintetiza o
seu ambiente doméstico com estas palavras: O que importa é a expressão geral do meio domésti­
co, e essa aífica indicada, - vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruí­
do, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nas­
ceu essaflor.
Tal "flor" acaba por transformar-se num adulto egocêntrico, mentiroso, cínico, entediado e
petulante; isto é, que se coloca como superior às outras pessoas, para assim disfarçar a seqüência
de fracassos que na verdade foi sua vida.
Quando jovem, apaixona-se por Marcela, uma cortesã espanhola que o ama durante quinze
meses e onze contos de réis. O pai, assustado com os gastos do filho, manda-o à Europa para estu­
dos aos quais pouco se dedica, tornando-se um fiel compêndio de trivialidade e presunção. Re­
toma alguns anos depois, poucos dias antes do falecimento da mãe.
Então, o pai arranja-lhe um duplo negócio: tomá-lo deputado e casá-lo com Virgília.
No entanto, ambos os projetos falham: Brás Cubas perde a noiva e o cargo para Lobo Neves,
além de morrer-lhe o pai, desgostoso e decepcionado.
Mais tarde, almejando ser ministro, o que consegue é o amor adúltero de Virgília e, depois de
novamente perdê-la, o cargo de deputado.
Nhá Loló (Eulália), outra possibilidade de casamento, agora arranjada pela irmã Sabina,
morre vitimada por uma epidemia de febre amarela.
Quincas Borba, um colega de infãncia que se diz filósofo, visita-o, rouba-lhe o relógio e desa­
parece, para retomar posteriormente, enriquecido graças a uma herança. Devolve-lhe o relógio,
passa a freqüentá-lo, tomando-se um de seus raros amigos e conta-lhe sobre o Humanitismo: teo­
ria filosófica que inventa e com a qual também justifica-lhe os caprichos e fracassos. Quase no
desfecho do romance, enlouquece e morre, em sua casa.
Inventar um emplasto contra a hipocondria - a seu ver um remédio miraculoso que curaria
os males da humanidade - constitui a última tentativa de Brás Cubas, o seu último projeto, sem
sucesso e inútil como todos os outros, inclusive aquele com o qual pretendeu adquirir uma pasta
no ministério: "diminuir a barretina (antigo chapéu militar, alto) da guarda nacional. . ."
Segundo o personagem, o que o impede de enfim realizar-se por meio do divino emplasto, que
lhe daria o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza é a morte, já que ironi­
camente contrai pneumonia ao sair de casa, logo quando ía patentear o invento. . .
Vejamos como s e conclui o romance:

Capítulo CLX - Das Negativas


Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira
parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo,
por causa da moléstia que apanhei. (. . .) O acaso determinou o contrário; e aí vos ficais eter­
namente hipocondríacos.
Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui
ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas,
coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor de meu rosto. Mais; não padeci a
morte de D. Plácida, nem a semidemência de Quincas Borba. Somadas umas causas e outras,
qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí
quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me
com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive
filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
Comentários
Veja que Brás Cubas, após enumerar as negativas de que se compôs sua existência, tanto no
plano afetivo quanto no profissional, relativiza-as mencionando algumas supostas compensações:
não ter morrido na miséria, como D. Plácida (a criada que escondeu seus amores adúlteros com
Virgília); nem na semidemência, como Quincas Borba; e sobretudo não ter comprado o pão com
o suor do rosto, isto é, não lhe foi preciso trabalhar (e assim compactuar com as ilusões do univer­
so burguês, nas quais se enredam os heróis do Realismo do tempo de Machado de Assis). Com tal
raciocínio, supõe uma provável conclusão do leitor: a de que saiu quite com a vida.
Entretanto, em seguida desmente essa conclusão triste mas consoladora, de certa forma con­
ciliadora, por meio da menção a um pequeno saldo, que simultaneamente é a derradeira negativa
do romance e a derradeira ironia machadeana. Seu niilismo fica patente na mais radical de todas
as negativas; aquela que rejeita o principal valor em que se ancora a espécie humana: o de que ela
merece continuidade ...
Quando se vinga da vida recusando-a de forma tão radicalmente demolidora, Brás Cubas
passa da 1 a pessoa do singular ("Não tive") para a 1 a pessoa do plural ("nossa miséria"). Assim,
parece estender a todos os homens a sua miséria, o que a toma universal, como o leitor atento pôde
pressentir desde o início do romance: Brás Cubas não é a criação de uma pessoa determinada, mas
de uma síntese de muitas, se não de todas as pessoas, cujos fracassos não-assumidos, escamotea­
dos, Machado de Assis analisa, com rara capacidade de penetração psicológica.
Com o estudo dos personagens, vamos aprofundar a leitura desse aspecto da obra, costumei­
ramente associado com o famoso humor irônico e pessimista do escritor.

Personagens

Protagonista: Brás Cubas


Espécie de antimodelo, de personagem-símbolo da ironia machadeana quanto ao ideal burguês
de "vencer na vida", a figura de Brás Cubas constitui uma inversão da travessia dos heróis bur­
gueses, tematizados pela literatura realista.
Esses heróis, que aparecem nos romances de Stendhal e Balzac, conseguem ascensão social e
econômica, pagando por ela o preço do fracasso, no plano afetivo. Com eles o romance realista
aborda a velha temática burguesa de se preferir o amor ou o dinheiro, os bens materiais, por meio
de uma narração de caráter documental, fotográfico, racionalista.
Machado de Assis, ao escolher a situação fantástica de um morto que conta histórias, e que
mesmo estando do outro lado da vida procura mais "parecer" do que "ser", isto é, que mente, ilude
e distorce os fatos, escondendo suas misérias para que sejam vistas como superioridades, questio­
na tanto a forma quanto o conteúdo do Realismo tradicional.
Em relação à forma, põe em cheque o mito racionalista da neutralidade do sujeito, da sua isen­
ção perante o que narra, mostrando a parcialidade que está implícita no ato de narrar.
Em relação ao conteúdo, transcende os modelos literários consagrados de sua época, na medi­
da em que substitui o burguês pelo ser humano, que desnuda cética e impiedosamente em todas as
suas imperfeições, complexidades, contradições.
Nesse sentido, Brás Cubas encama sutilezas de mecanismos do homem em sua sujeição à
sociedade, em sua necessidade de valorizar-se perante si mesmo tendo ao seu lado a platéia, a opi­
nião; convertendo em supostas virtudes as motivações mais mesquinhas e inconfessáveis.

cn
Personagens Secundários cn
cn
Quincas Borba <(
UJ
Além da negação do herói e da estrutura tradicionais da literatura realista, a obra questiona os o
paródia das doutrinas positivis­
modelos literários e ideológicos importados pelo Brasil, fazendo a o
Humanitismo e de seu criador, o filósofo­
tas e deterministas, por exemplo através da filosofia do
o
<(
maluco Quincas Borba, que reaparece em Quincas Borba, o romance subseqüente do escritor. :J:
No trecho a seguir veremos que o Humanitismo, em sua teimosia de justificar a manutenção
u
<(
da espécie por meio do sacrificio do indivíduo, de reafirmar que nessa perspectiva o vício e a vir­ �
tude se equivalem, constitui não apenas uma irônica alusão ao cientificismo em voga na segunda -
metade do século XIX. Além disso, revela-se mais um expediente com que Machado de Assis põe
81
em xeque motivações e atitudes humanas, ironicamente apontando-lhes duplicidades e intenções
recônditas e insuspeitadas:

Não se explica o que é de sua natureza evidente, retorquiu o Quincas Borba: mas eu direi
alguma causa a mais. A persistência do benefício na memória de quem exerce explica-se pela
natureza mesma do benefício e de seus efeitos. Primeiramente há o sentimento de uma boa
ação, e dedutivamente a consciência de que somos capazes de boas ações; em segundo lugar,
recebe-se uma convicção de superioridade sobre outra criatura, superioridade no estado e nos
meios; e esta é uma das causas mais legitimamente agradáveis, segundo as melhores opiniões,
ao organismo humano. Erasmo, no seu Elogio da Sandice, escreveu algumas causas boas, cha­
mou a atenção para a complacência com que dous burros se coçam um ao outro. Estou longe
de rejeitar essa observação de Erasmo; mas direi o que ele não disse, a saber, que se um dos
burros coçar melhor o outro, esse há de ter nos olhos algum indício especial de satisfação. Por
que é que uma mulher bonita olha muitas vezes para o espelho, senão porque se acha bonita,
e porque isso lhe dá certa superioridade sobre uma multidão de outras mulheres menos boni­
tas ou absolutamente feias? A consciência é a mesma causa; remira-se a miúdo, quando se
acha bela. Nem o remorso é outra causa mais que o trejeito de uma consciência que se vê
hedionda. Não esqueças que, sendo tudo uma simples irradiação de Humanitas, o benefício e
seus efeitos sãofenômenos peifeitamente admiráveis.

Quincas Borba, um dos raros amigos de Brás Cubas, de mendigo ladrão de relógios trans­
forma-se em filósofo e, como vimos, em interlocutor do narrador-personagem, enlouquecendo
pouco antes de sua morte.
Os outros personagens secundários também são caracterizados pela ótica narcisista e demoli­
dora de Brás Cubas. Marcela, por exemplo, a cortesã interesseira que o enganou, acaba sendo ata­
cada pela varíola, o que lhe parece causar certo prazer, como se o destino o houvesse vingado por
meio das marcas no rosto da espanhola.
Quanto a Lobo Neves, o homem que lhe toma a noiva e o cargo de deputado, Brás Cubas con­
sidera-o um supersticioso, enquanto Cotrim, o cunhado com quem fora obrigado a repartir a
herança paterna, vê-o como submisso aos poderosos e arrogante.
Virgília, a quem ele amou e por quem foi amado, tem suas fragilidades e duplicidades perdoa­
das, como se o fato de ter se tomado sua amante a fizesse merecedora de complacência; enfim ela
mesma compensa a frustração que causara a Brás Cubas perdê-la como esposa: Vi que era impossí­
vel separar duas causas que no espírito dela estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a consi­
deração pública. Virgília era capaz de iguais e grandes sacrificios para conservar ambas as vanta­
gens, e a fuga só lhe deixava uma. Talvez senti alguma causa semelhante a despeito; mas as como­
ções daqueles dous dias eramjá muitas, e o despeito morreu depressa. Vá lá; arranjemos a casinha.

Linguagem
O estilo substantivo e anti-retórico de Machado de Assis; sua linguagem sutil, ambígua e
repleta de um humor cáustico e permanente, que destrói e ironiza cada uma das ilusões românti­
cas, caracterizam estas Memórias .. . , distanciando-as das obras realistas de seu tempo e fazendo
com que anunciem a modernidade literária, quer dizer, a literatura produzida no século XX.
Vamos enumerar e exemplificar dois dos mais significativos recursos literários machadeanos,
presentes no texto em estudo:

Metalinguagem e interlocução com o leitor

<( O comentado narrador não-confiável ilude, provoca e desconcerta o leitor, em "conversas" em


o que muitas vezes ironiza suas expectativas, fazendo a metalinguagem da obra.

z
Tais reflexões metalingüísticas, por sua vez, criticam a linguagem e a estrutura da narrativa
w tradicional, e questionam o próprio processo de criação literária.

o
u Exemplo
<( Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e,
a: realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um
::::>
�a:
pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cada­
vérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pres­
w sa de envelhecer, e o livro anda devagar,· tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regu­
1- lar e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda,
_J andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem . . .
-
(Ca pítulo LXXI - O Senão do Livro)
82
A Narração Fragmentária

Quebrando a linearidade do enredo, com microcapítulos digressivos, que comentam, explicam


e exemplificam outros capítulos, Machado de Assis fragmenta o romance tradicional e convida o
leitor a um constante esforço de montagem, de organização, de recriação critica e criativa da obra.

Exemplo

O capítulo XXXI, em que Brás Cubas conta o episódio da borboleta preta (uma borboleta que
entra em seu quarto, sendo por ele esmagada), pode ser visto como alegoria do que sucedia na oca­
sião: ele tentava aproveitar-se de Eugênia, uma moça bonita, mas manca e pobre. Assim, embora
não se perceba ligação entre o referido capítulo e o acontecimento mencionado, o primeiro faz uma
referência irônica e cruel ao segundo: como a borboleta preta, Eugênia é um ser fraco e deficien­
te, o que lhe possibilita, enquanto ser forte e saudável, destrui-la também. . .

Texto para a s questões 1a 4: N (FUVEST) Definindo-se como um " defunto­


� autor", o narrador:
Algum tempo hesitei se devia abrir estas
a) pôde descrever a própria morte.
memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se
b) escreveu suas memórias antes de morrer.
poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a
c) ressuscitou na sua obra após a morte.
minha morte. Suposto o uso vulgar seja come­
d) obteve em vida o reconhecimento de sua obra.
çar pelo nascimento, duas considerações me
e) descreveu a morte após o nascimento.
levaram a adotar diferente método: a primeira é
que eu não sou propriamente um autor defunto,
!W (F UVEST) Segundo o narrador, Moisés contou
mas um defunto autor, para quem a campa foi
&;i� sua morte no:
outro berço; a segunda é que assim o escrito
a) promontório.
ficaria mais galante e mais novo. Moisés, que b) meio do livro.
também contou a sua morte, não a pôs no
c) fim do livro.
intróito, mas no cabo: diferença radical entre
d) intróito.
este livro e o Pentateuco.
e) começo da missa.
( Memórias Póstumas de Brás Cubas
- Machado de Assis) R (FUVEST) O tom predominante no texto é de:
liil a) luto e tnsteza.
11 (FUVEST) O autor afirma que: b) humor e ironia.
c) pessim ismo e resignação.
a) vai começar suas memórias pela narração de
seu nascimento. d) mágoa e hesitação.
b) vai adotar uma seqüência narrativa vulgar. e) su rpresa e nostalgia.
c) O que o levou a escrever suas memórias
foram duas considerações sobre a vida e a
� Que relação podemos estabelecer entre a tra­
morte.
I:Q vessia de Brás Cubas e a de Ouincas Borba,
ambos personagens de Memórias Póstumas de
d) vai começar suas memórias pela narração de
Brás Cubas, de Machado de Assis?
sua morte.
e) vai adotar a mesma seqüência narrativa utili­
zada por Moisés.

CIJ
\7RESPOSTU.PO$SÍVEIS CIJ
CIJ
<{
ll d A travessia de B rás Cubas aproxima-se da de
Quincas Borba na medida em que ambos fra­
w
o
fJ a cassam na vida. Enquanto o primeiro não con­
segue realizar nenhuma de suas pretensões,
o
o
g c
como o casamento, o cargo de ministro etc., o
segundo cria o Humanitismo - sátira macha­
<(
J:
u
deana às doutrinas positivistas e determi nistas
<(
em voga na segunda metade do século XIX
a
b -

tornando-se filósofo, mas enlouquece e vem a
-
falecer, tão sem glória e reconhecimento quan­
to B rás Cubas.
83
,

RAUL POMPEIA
Escrevo para os maus. Caim é que deve ler-me.
Todo homem que considerar que do homicídio lhepode
provir a liberdade injustamente calcada pela opressão,
todo o homem escravizado tem o direito do punhal.

O ATENEU
Tendo por cenário um internato e por protagonista um menino de
onze anos, Sérgio, n'O Ateneu é tematizado o drama da solidão, o
desajuste do indivíduo em relação a um meio que lhe é hostil.

Em 1888, quando culminava o Naturalismo, começou a Gazeta de Notícias a publi­


car um romance estranho, de Raul Pompéia (.. .) Misto de Romance e memórias, o
Ateneu também na feitura era complexo: oscilava entre as insinuações de Machado de
Assis e as ousadias dos naturalistas, variava no estilo da sobriedade ao rebuscamento.

Lúcia Miguel Pereira


Prosa de ficção, de 1870 a 1920

Narrador
Um dia, meu pai tomou-me pela mão, minha mãe beijou-me a testa, molhando-me
aul d'Ávila Pompéia nasceu em de lágrimas os cabelos e eu parti.
R 1 836, no Rio de Janeiro. Sua trajetória Narrado em primeira pessoa pelo seu próprio protagonista - Sérgio, um perso­
existencial se cruza intimamente com a obra nagem-narrador - O Ateneu mostra elementos importantes de seu foco narrativo desde
na qual mais se destacou: O Ateneu. Como a abertura do romance, em que percebemos nitidamente uma distância entre os senti­
Sérgio, protagonista do romance, entrou mentos infantis e as reflexões do adulto. Vejamos um exemplo desta afirmação:
ainda menino para um internato,
denominado Colégio Abílio. Nele Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das

desenvolveu-se com brilhantismo tanto nas ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regímen do amor

atividades literárias quanto nas artes doméstico; diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cui­
plásticas; passando, depois, a estudar no dados maternos um artificio sentimental, com a vantagem única defazer mais sensível a
Imperial Colégio O. Pedro li, onde fundou o criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na
grêmio literário "Amor ao Progresso". influência de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com uma saudade
Cursou Direito em São Paulo, concluindo no hipócrita dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não
Recife a formação universitária. Ao longo nos houvesse perseguido outrora, e não viesse de longe a enfiada de decepções que nos
dessa fase, exerceu grande I iderança, agora ultrajam.
também no jornalismo e na política
partidária. Participou intensamente das Aqui, como acontece em todo o livro, há por um lado a criança educada exotica­
agitações políticas da 1 a República na mente na estufa de carinho que é o regímen do amor doméstico, o poema dos cuidados
qualidade de Florianista exaltado. maternos, e, por outro, a consciência das ilusões desta criança, do caráter de artifício
Entretanto, a tendência à morbidez, a sentimental do amor doméstico, dos cuidados matemos.
sensibilidade doentia e a solidão que
Tal consciência, ou tal interpretação do passado que percebemos repleta de amar­
percebemos na maioria das páginas de
<x:
O A teneu - obra cuja importância para o
gura, decepcionada, infeliz é a mola propulsora do romance, o fio que puxa a memória
o
Realismo e para a I iteratura brasileira em
�z geral estudaremos - venceram-no:
através da qual O Ateneu vai sendo tecido.
Ao relatar os episódios emocionalmente mais marcantes, mais traumatizantes das
UJ suicidou-se com um tiro no coração, aos 32 experiências de Sérgio-menino durante os dois anos em que esteve interno no Ateneu,
� anos, em pleno dia de Natal, na Capital do Sérgio-adulto não rememora apenas o próprio sofrimento, a dolorosa descoberta das
o país.
u atrocidades cometidas nos bastidores do grande colégio da época, freqüentado pela fina

Obras principais
<x: flor da mocidade brasileira. Ao mesmo tempo, procurando refletir sobre o que viveu,
a:
::>Romance: O Ateneu e Agonia !romance o que sentiu, constrói uma opinião negativa a respeito das pessoas; da solidão e da falta
incompleto, encontrado em seus papéis).
a:
� Novela: Uma tragédia na Amazonas.
de solidariedade entre elas.
Assim, quer dizer, acrescentando às impressões da criança as reflexões amargas
UJ Poema em prosa: Canções sem metro, do adulto, Raul Pompéia nos legou um romance de formação, romance cujo traço mais
1- publicada postumamente. fecundo é "a saudade que os desajustados carregam pela existência em fora do 'conche­
:::i
Conto: Alma marta, dentre outros. publicados
- go placentário', as arestas vivas que representam para eles cada movimento dos outros",
no jornal Gazeta da Tarde. o
na opinião de Lúcia Miguel Pereira.
84
Para fixarmos a percepção do foco narrativo de O Ateneu, que procuramos explicitar, vamos
ler outro fragmento no qual novamente encontramos de forma nítida o cruzamento das impressões
infantis com as reflexões do adulto. Trata-se de uma das visitas de Sérgio ao colégio, antes de nele
ingressar:

Eu me sentia compenetrado daquilo tudo, não tanto por entender bem, como pelafaci­
lidade da fé cega a que estava disposto. . . (reflexões do adulto).
Oh, que não seria o colégio, tradução concreta da alegoria, ronda angélica de cora­
ções à porta de um templo, dulia permanente das almas jovens no ritual da virtude!
(impressões infantis).

Enredo
"O Ateneu pode ser considerado como uma sucessão de quadros, dos quais alguns perfeitos
( . . . ) Mas, apreciadas em conjunto, essas cenas, por mais nítidas que sejam, começam a esbater-se,
tomam-se meros ilustrativos de uma figura única, a de Sérgio: este aparece indiretamente, recons­
truído pelas sensações que cada episódio lhe despertara."
(Lúcia Miguel Pereira - obra citada)

A comparação entre os episódios de O Ateneu e uma sucessão de quadros é valiosa para com­
preendermos alguns mecanismos do enredo do livro.
Composto de doze capítulos, podemos dizer que há certa linearidade cronológica no roman­
ce, na medida em que ele se inicia com a ida de Sérgio ao internato e termina com o incêndio deste,
dois anos depois.
Entretanto, assim como um episódio necessariamente não se subordina ao outro, não parece
haver rigidez, do ponto de vista da seqüência dos eventos, entre os capítulos de O Ateneu. Daí a
perfeição da expressão sucessão de quadros para caracterizá-los; quadros, vale acrescentar, mais
descritivos que narrativos; mais destinados a reconstruir os aspectos da vida de Sérgio no interna­
to, ou melhor, as sensações que esta vida lhe causa, que a relatar acontecimentos ou ações. Além
disso percebemos com nitidez em nossa leitura a intenção do autor de criticar o sistema educativo
do colégio: suas punições, seu autoritarismo, o regime de hipocrisia e de espionagem instituído por
Aristarco, o diretor.
V amos fazer um sumário do enredo do livro, correndo os olhos pelo seus episódios mais
importantes.

Sumário
No primeiro capítulo são descritas as duas visitas de Sérgio ao Ateneu, antes da matrícula.
Vemos aí as primeiras impressões do menino em relação ao colégio e ao seu diretor.
A belafarda negra dos alunos, de botões dourados, infundia-me a consideração tímida de um
militarismo brilhante, aparelhado para as campanhas da ciência e do bem.
Quando, acompanhado pelo pai, Sérgio se matricula, Aristarco o aconselha, num tom de cen­
sura, que corte os cachinhos do cabelo. A esposa do diretor, Ema, opõe-se à intransigência do
marido: defende-lhe os cabelos e desperta-lhe uma atração ao mesmo tempo erótica e filial que
voltará a aparecer no final do romance. Aristarco, entretanto, rouba a cena de ambos clamando
como para um auditório de dez mil pessoas, como um leiloeiro, os seus trinta anos de serviços à
causa santa da instrução.
O segundo capítulo é o da chegada de Sérgio ao internato: após desfalecer de vergonha por
ter de ir à lousa na frente de todos, conhece Rabelo, um dos melhores alunos, que lhe conta ver­
dadeiras atrocidades do dia-a-dia do colégio. Pinta os colegas como tipos perversos, maldosos,
depravados. Recomenda-lhe de forma veemente fazer-se forte, fazer-se homem, não ter proteto­
<{
res, pois
•W
ll...
os gênios fazem aqui dous sexos, como se fosse uma escola mista. Os rapazes tímidos, ingênuos,

sem sangue, são brandamente impelidos para o sexo da fraqueza; são dominados, festejados, perver­ o
tidos como as meninas ao desamparo. ll...
__J
Apavorado com esta conversa, com um folheto obsceno que lhe cai às mãos, com as provoca­ :::>
<{
ções do graúdo Malheiro, com quem acaba brigando, Sérgio tem pesadelos durante a noite. 0:::
Desiludido, decepcionado pela distância entre o que sonhara e o que vivera, sente-se só, fraco, des­ -
protegido e saudoso da família.
85
A partir do capítulo três, Sérgio declara-se aclimatado no colégio: estava aclimatado, mas eu
me aclimatara pelo desalento, como um encarcerado no seu cárcere. Neste capítulo ocorre o epi­
sódio da natação: Sérgio toma banho num tanque com os colegas quando um deles tenta afogá-lo.
Sanches, que depois lhe parece ter sido o causador do incidente, salva-lhe a vida. Sérgio, agrade­
cido, reprime a repulsa que ao primeiro olhar sentira por ele - o primeiro da classe - tornando­
se seu amigo. De amigo, Sanches transforma-se no protetor de Sérgio, a quem ensina de forma
maliciosa todas as matérias e de quem tenta se aproximar sexualmente. Sérgio reage com uma
resistência passiva à sedução de Sanches, deixando-se levar pela efeminação mórbida das escolas
até o momento em que consegue se afastar, num rasgo de heroísmo, movido por um asco instinti­
vo que Sanches lhe causava. Este, escolhido como vigilante da turma de Sérgio, passa a maltratá­
lo, a persegui-lo.
Sérgio, por vingança, resolve escandalizar o mundo com uma vadiação sem exemplo; torna­
se o último da aula...
Vemo-lo, então, ao longo do capítulo quatro, num período de depressão contemplativa:
tendo descido ao fundo do descrédito escolar - suas notas lidas publicamente pelo diretor no "tri­
bunal supremo" do "livro de notas" - Sérgio torna-se beato, evangélico. Numa febre religiosa que
o faz admirar o Ribas, que canta como os anjos, e transformar em capela seu compartimento na
sala de estudos, compartimento onde deposita uma velha gravura de Santa Rosália, presente de
uma priminha morta que fora boa, maternal com ele, Sérgio também se aproxima de Franco -
colega que vive de joelhos, em eterna penitência pelas faltas que comete. Aristarco descobre mais
uma de tais faltas - urinar na água de lavar pratos - e novamente o castiga. Franco, ajudado por
Sérgio, sai em vingança no meio da noite, quebra garrafas e joga os cacos no tanque de banho cole­
tivo.
Atormentado de remorso pela cumplicidade, Sérgio adormece rezando, na capela. De manhãzi­
nha fica sabendo do fracasso da vingança; os meninos, devido à chuva, se banharam no chuveiro...
Ao se recusar ao castigo impingido por Aristarco a ele e a Franco pela saída noturna, Sérgio
sente em si nova vitalidade.
Inicia-se assim no capítulo cinco a sua fase de independência. Visita o pai, conta-lhe das notas
baixas e, ajudado por ele, recupera-se. Aumenta a antipatia entre Sérgio e o diretor.
Barreto, um colega para quem o mal eram as fêmeas, aproxima-se de Sérgio com suas idéias
sobre o inferno e a perdição. Idéias que parecem comprovar-se através do episódio de um assassi­
nato ocorrido no colégio por causa de Ângela, a camareira de D. Ema, sensual e provocadora.
Bento Alves, rapaz hercúleo e misterioso, consegue prender o assassino e assim se torna o novo
herói do Ateneu.
No capítulo seis funda-se no colégio o Grêmio Literário Amor ao Saber - instituição des­
tinada ao exercício da retórica - do qual Nearco da Fonseca, aluno novo fracassado nos espor­
tes, mostra-se líder imbatível. Sérgio comparece às reuniões, aproximando-se da biblioteca e do
bibliotecário, Bento Alves, com quem tem nova amizade "efeminada".
Barbalho, inimigo antigo de Sérgio, vê Bento Alves presenteá-lo com flores e conta o fato a
Malheiro, a fim de que este, rival de Bento Alves, provoque-o. Após o discurso do Dr. Cláudio,
Bento Alves e Malheiro brigam. Bento Alves é preso e Sérgio entrega-se de coração ao desespe­
ro das damas romanceiras pelo gentil cavalheiro.
O capítulo sete é delicado à normalidade da vida no internato e aos momentos de tédio sen­
tidos pelos estudantes, que procuram diminui-lo com conversas, provocações, movimentos nos
dormitórios, jogos e transações comerciais. O capítulo termina com as provas de fim de ano, nas
quais Sérgio se sai bem, e com a descrição das tentativas que os estudantes realizam de fazer o
<( retrato de Aristarco, adulando-lhe o êxtase da vaidade.
o No capítulo oito há o início de um novo ano letivo. Sérgio, após dois meses de férias, sente­
�z se mais encarcerado do que nunca. Os passeios coletivos do internato, como o passeio ao
Corcovado e o piquenique no Jardim Botânico, surgem como ocasiões de festa e de alegria, dimi­
w
� nuindo o sentimento de prisão.
o. Na volta de um destes passeios, Aristarco, que encontrara uma carta amorosa entre dois rapa­
u zes, cria uma "inquisição" para descobrir os culpados: doze alunos são castigados publicamente,
<( sob o olhar amedrontado dos outros. Nesse ínterim, Bento Alves agride Sérgio surpreendentemen­
a:
:::1 te e os dois brigam, sem perceberem a presença de Aristarco. Quando o fazem, Bento Alves foge

a:
e Sérgio enfrenta Aristarco, inclusive fisicamente. Deixando-o perplexo, Aristarco silencia sobre
o caso e Bento Alves sai do colégio.
w Uma confusão no recreio, gerada por Franco - o eterno penitente- e pelo inspetor Silvino,
1-
_J envolve vinte rapazes, dentre os quais Sérgio. Enquanto Aristarco os repreende acontece no colégio
- uma revolta contra a refeição: "a revolta da goiabada". O evento inverte a situação; Aristarco se des­
culpa das "goiabadas de banana" servidas aos alunos há três meses e a "ordem" volta a imperar...
86
No capítulo nove surge nova amizade para Sérgio, a mais pura e a mais recíproca de todas:
Egbert. Juntos estudam, conversam, sonham; juntos lêem e escrevem poemas, tentativas de
romances, Sérgio �entindo por Egbert cuidados e ternuras de irmão mais velho. Graças às boas
notas que obtêm, ambos recebem como prêmio um convite para jantar na casa do diretor.
Inicialmente de má-vontade, Sérgio depois se encanta com o evento, totalmente seduzido por D.
Ema, a mulher de Aristarco. Na volta do colégio, Sérgio olha para Egbert como para uma recor­
dação . . . começa a esfriar, assim, a fraternidade entre ambos.
O capítulo dez mostra mais um período de descontentamento de Sérgio. Ao mudar para o dor­
mitório dos maiores fica mais afastado de Egbert, descrevendo, solitário, as conversas dos cole­
gas, a sensualidade que lhes desperta a camareira Ângela, o processo de efeminação de alguns, os
passeios noturnos que um grupo faz ao jardim de Aristarco.
No capítulo onze o presidente do Grêmio, Dr. Cláudio, faz uma série de preleções, uma das
quais sobre educação, colocando o internato como espelho da sociedade.
Sérgio lembra-se de Franco, sente pena e vai visitá-lo. Encontra-o doente, febril, após sua
última prisão. Alguns dias depois, morre o menino.
A preparação para a solenidade da distribuição bienal de prêmios e a oferta de um busto de
bronze a Aristarco ocupam a todos, no final do ano. Durante a solenidade, na presença da prince­
sa Regente, do Exmo. Ministro do Império e de várias figurões da Instrução Pública, Aristarco
inunda a arena com o seu discurso e, após a entrega de medalhas e menções honrosas é homena­
geado. Quando se descobre o seu busto, Aristarco fica indignado de ciúmes daquele metal...
O capítulo doze finaliza O Ateneu, sendo iniciado com um novo período de férias escolares.
Sérgio, com sarampo, a família na Europa devido à doença do pai, fica na enfermaria do colégio,
sob os cuidados de D. Ema. Há intimidade, doçura, amor maternal e filial e atração erótica entre
ambos. Sérgio, embevecido, nem repara na carta do pai, que recebe da Europa.

A última cena do romance é o incêndio do Ateneu, que teria sido provocado por América, um
como um deus caipora, triste, presencia
menino forçado pela família a ficar na escola. Aristarco,
o desastre universal de sua obra. Ema desaparece. Sérgio finaliza o relato, com estas palavras:
Aqui suspendo a crônica das saudades. Saudades verdadeiramente? Puras recordações, sauda­
des talvez, se ponderarmos que o tempo é a ocasião passageira dosfatos, mas sobretudo - ofune­
ral para sempre das horas.

Comentário sobre o enredo


Com a reconstrução dos principais quadros que se sucedem no romance não é dificil perce­
ber a possibilidade de interpretá-los como panos de fundo, como variações até certo ponto repeti­
tivas, recorrentes, dos temas de O Ateneu já levantados. Um deles, a incapacidade de Sérgio de se
comunicar com as pessoas, a inadaptação, a solidão, revelam-nos suas decepcionantes e inúteis
tentativas de amizade.
O outro, que sem dúvida se relaciona com o primeiro, seria a preocupação de Raul Pompéia
em denunciar o internato e seu diretor - ambos descritos ao longo do romance de forma virulen­
ta, agressiva.
Vamos agora estudar os personagens, para aprofundar a compreensão de ambos os temas de
O Ateneu que apontamos.

Personagens
"O livro, pode-se dizer, é a memória adulta de uma experiência infantil vista por dentro. Os
limites da visão, portanto, são ditados pela criança; só pode ser narrado ou o:: omentado o que esta
experimentou. O Ateneu atende essa exigência com bastante rigor. Em coeréncia com a perspecti­
va tomada, a única interioridade que apresenta é a do próprio autor. As outras personagens são
todas vistas de fora, interpretadas à luz dos traços principalmente visuais, confrontados com um
<(
pessimismo biologista, feroz e irônico."
·w
(Roberto Schwarz, A Sereia e o desconfiado.) a..

O fato de a experiência infantil de O Ateneu ser vista por dentro, isto é, de só ser narrado ou o
a..
comentado o que Sérgio experimentou, tem grande importância no estudo dos personagens da ...J
obra. Este fato explica, por exemplo, o tom caricatural com que Sérgio descreve os personagens, :::>
<(
todos envolvidos, em maior ou menor grau, na negatividade de sua vivência no Ateneu. a:
Assim, Aristarco, o diretor, encabeça a lista dos seres deploráveis que habitam o interna­ -
to na visão de Sérgio-adulto contaminada pelas emoções de Sérgio-menino. Autoritário, gran-
81
diloqüente, egocêntrico, moralista, cruel e dissimulado, hipócrita, o diretor nos é apresentado
como

o homem sanduich da educação nacional. Lardeado entre dous monstruosos cartazes. Às cos­
tas, o seu passado incalculável de trabalhos; sobre o ventre, para a frente, o seu futuro: a reclame
dos imortais projetos. Soldavam-se nele o educador e o empresário com uma peifeição rigorosa de
acordo, dois lados da mesma medalha; opostos, masjustapostos. Em suma, uma personagem que, ao
primeiro exame, produzia-nos a impressão de um enfermo, desta erifermidade atroz e estranha: a
obsessão da própria estátua.

Vemos nestas passagens, escolhidas dentre inumeráveis do mesmo tipo espalhadas pelo
romance, a terrível imagem que Sérgio mostra de fora e na qual corporifica todos os horrores que
sofreu. Por este motivo, trata-se de um dos personagens principais do livro, sendo que o outro é o
próprio Sérgio - protagonista e narrador.
Observe que a hipersensibilidade de Sérgio, a timidez e a solidão em que vive aparecem-nos
indiretamente, quer dizer, através das impressões que um homem como Aristarco lhe provoca.
Uma explicação para a aversão com que Sérgio descreve o diretor do colégio, de resto como
já dissemos fazendo-o assumir a posição de símbolo de um universo detestável, seria o caráter
autobiográfico do livro de que nos fala Mário de Andrade:

"Raul Pompéia foi um revoltado e isso lhe ditou a vida penosa e a obra irregular. Mas no meio
desta eleva-se um marco do romance brasileiro: O Ateneu. Não é possível negar, as provas são
fortes de que neste livro de ficção o autor vazou a sua vingança contra o seu internato no Colégio
Abílio. O Ateneu é uma caricatura sarcástica e, relativamente a Raul Pompéia, dolorosíssima, da
vida psicológica dos internatos."
Mário de Andrade
Aspectos da literatura brasileira

O suicídio de Raul Pompéia numa noite de Natal, aos 32 anos, parece reforçar a hipótese de
ter sido O Ateneu um "livro vingador" - do Colégio Abílio e de seu diretor, o Barão de Macaúbas
- e de o adulto não ter conseguido superar os traumas infantis. Entretanto, não só Mário de
Andrade, mas os estudiosos de literatura em geral reconhecem que a capacidade artística do escri­
tor ultrapassou a sua intenção pessoal, transformando O Ateneu num denso e consistente romance
psicológico sobre a solidão dos desajustados e sobre a perversidade da vida nos internatos.

Assim, pelos olhos amedrontados e mudos de Sérgio-menino e pelas reflexões amargas e


cruéis de Sérgio-adulto, vemos passar seres grotescos, sem dúvida reconhecíveis fora do roman­
ce, como Aristarco e como alguns personagens secundários, também caricaturizados, isto é, trans­
formados em tipos pelo narrador. Estes seres, ora sujeitos ora objetos de perversão e maldade, são,
por exemplo, Sanches, o crápula an tigo , Barbalho, o gatuno de jóias o graúdo e provocador
,

Malheiro, Barreto, o beato para quem o mal eram as fêmeas, Franco, o penitente e Ângela, a
camareira de D. Ema que não escolhia amores. Era de todos como os elementos; como os elemen­
tos, sem remorso das desordens e depredações.
Rabelo, venerável e conselheiro, o misterioso Bento Alves e Egbert, além de Sanches, foram
os quatro colegas que se aproximaram de Sérgio.
De Rabelo ele se afastou para aceitar a proteção, a submissão voluntária, que dedicou a
Sanches e a Bento Alves. Com ambos manteve uma relação repleta de insinuações homossexuais,
na qual ocupava o papel de efeminado. Este detalhe é importante para reconhecermos a presença
<C( do tema da homossexualidade na vida do internato como um todo e mais especificamente na per­
c sonalidade de Sérgio. Para ele, o amor está ligado à necessidade de proteção, como percebemos
�z observando os momentos do romance em que sente saudade dos pais. Na verdade, tais momentos
só ocorrem quando Sérgio se vê sozinho e desamparado, não parecendo se tratar de saudade "de
w
fato", mas de carência de cuidados e de amparo. A "efeminação" de Sérgio não é vista no roman­

o ce, portanto, do ponto de vista biológico, mas psicológico.
(J Egbert, a amizade verdadeira, o irmão mais novo que ele esperava dormir para velar, foi sin­
<( tomaticamente preterido na afeição de Sérgio, de forma repentina e sumária, desde o instante em
a:
::J que Ema, a esposa de Aristarco, lhe deu atenção.

�a: Misto de mãe e de amante, esta mulher, insatisfeita no casamento e disponível para ele, apaga
de sua cabeça o amigo com quem inverteu suas relações de protegido e faz com que nem repare
w na carta dos pais, chegada da Europa . . . Entretanto, no final do romance, Sérgio mal menciona o
1-
::::i seu desaparecimento. Ela se enevoa no ar, conforme ocorre com os outros, constituindo, como de
- resto todos os personagens do livro, mais um repouso momentâneo de uma solidão intrinseca,
doentia: a solidão de Sérgio, a sua tendência para a dor e para a incomunicabilidade.
88
Linguagem
Embora haja passagens que se aproximam do Naturalismo no romance, principalmente aque­
las em que se faz a caricatura de cenas e de certos personagens, não podemos dizer que esta seja
a tendência literária nele predominante. Isto porque a personalidade de Sérgio não se alterou ao
longo de sua estadia no internato, como querem os defensores da idéia de que o comportamento
humano decorre de influências do meio ambiente. Ao contrário, Sérgio se mantém frágil e submis­
so, tímido e arredio, a despeito da aprendizagem de malícia e perversão que teve no Ateneu.
Vejamos entretanto uma passagem que lembra este estilo, presente na obra estudada:

Os olhos riam destilando uma lágrima de desejo; as narinas ofegavam, adejavam trêmu­
las por interoalos, com a vivacidade espasmódica do amor das aves; os lábios, animados de
convulsões tetânicas, balbuciavam desafios, prometendo submissão de cadela e a doçura dos
sonhos orientais. Dominava então pela oferta abusiva, de repente: abatia-se ã derradeira
humilhação, para atrair de baixo, como as vertigens. Ali estava, por terra, a prostituição da
vestal, o himeneu da donzela, a deturpação da inocente, três servilismos reclamando um
dono; apetite, apetite para esta orgia rara sem convivas!
(trecho de uma descrição de Ângela)

Se nos lembrarmos dos episódios d' O Ateneu como "sucessão de quadros", recordaremos tam­
bém termos dito que o mais importante no romance não são exatamente os quadros, mas as
impressões que causam em Sérgio. Deste ponto de vista, acentuado pela falta de rigidez cronoló­
gica entre os capítulos, pelo fato de os episódios não se subordinarem necessariamente entre si,
podemos afirmar ser impressionista a sua estrutura.
Vamos ler um fragmento descritivo que nos lembra o estilo impressionista:

A sala do professor Mânlio era ao nível do pátio, em pavilhão independente do edificio princi­
pal,· com duas outras do curso primário, o alojamento da banda de música e o salão suplementar de
recreio, vantajoso em dias de chuva. Formando ângulo reto com esta casa, uma extensa construção
de tijolo e tábuas pintadas, sala geral de estudo no pavimento térreo e dormitório em cima, concor­
ria para fechar metade do quadrilátro do palco, que o grande edificio completava, revertendo-se em
duas alas, como os braços da reclusão severa. No fo.ndo desta caixa desmedida de paredes, dilata­
va-se um areal claro, estéril, insípido como a alegria obrigatória; algumas árvores de cambucá mos­
travam, em roda, a folhagem fu;a, com o verdor morto das palmas de igreja, alourada a esmo da
senilidade precoce dos ramos que sofrem, como se não coubesse a vegetação no internato; a um
canto, esgalgado cipreste subia até as goteiras, tentando fo.gir pelos telhados.

Além de passagens próximas ao Naturalismo, ao Impressionalismo, há momentos do livro em


que a linguagem toma-se excessivamente adornada, excessivamente retórica, como nos discursos
do professor Cláudio, espécie de porta-voz intelectual do narrador, por exemplo. Há, também, uma
ironia profunda, sarcástica de acordo com Mário de Andrade, tanto em relação à retórica de que
o próprio escritor se utiliza como em relação à vida no colégio e aos seus personagens. É assim
que em alguns momentos o livro nos parece também expressionista, pelo modo como ressalta
detalhes grotescos, cruéis, dos objetos e indivíduos que descreve.
Entretanto, no seu tom geral, ficamos com a opinião de Lúcia Miguel Pereira: "A escrita artís­
tica, o estilo trabalhado como um desenho, tendo em vista uma harmonia independente do assun­
to, que prenunciava o Simbolismo, foi O A ten eu que o inaugurou entre nós". (obra citada).
Para finalizar a nossa análise, vejamos exemplos desta tendência, que parece ser a responsá­
vel pelo tom geral do romance: a "bruma" que o envolve afastando-o da "objetividade" realista...

O sol vinha também à capela e colava de fora a fronte às vidraças, brando ainda do des­
pertar recente, fresco da toilete da aurora, com medo de entrar; corado de vergonha de não
rezar, pobre astro ateu. Pelas janelas abertas, esgalhavam-se para dentro frondosas ramas de
jasminetro, como uma invasão de floresta; e os jasmins de véspera, cansados, debulhavam-se
em conchinhas de nácarpelo soalho, mortos, expirando no ambiente a alma livre do aroma . . .

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89
11 (Pompéia,
PUC-SP) Considerando a obra O A teneu,
de Raul � (FUVEST) Leia o texto abaixo:
como um todo, constata-se nela uma
perfeita correspondência entre a sociedade do Ardia efetivamente o Ateneu. Transpus a correr a
Ateneu e a sociedade de fora dele, porque: porta de comun icação entre a casa de Aristarco e
a) em ambos, os valores sociais, éticos e morais o colégio.
são i rrepreensíveis. (Raul Pompéia - O Ateneu)
b) a figura afável do diretor de escola equivale à do Considerando a obra a que pertence o trecho
pai de família. acima:
c) tanto na escola quanto na família a criança se
sente na estufa de carinho que é o regime do a) Cite o nome do narrador-personagem
amor doméstico b) Saliente a importância do episódio a que se
d) escola e sociedade completam eficazmente a refere o trecho.
educação da criança e a preparam para a vida.
e) o internato é um pequeno mundo que reflete a N ( U N I CAMP) No capítulo 7 de O A teneu, ao descre­
sociedade e seus desequilíbrios. liil ver a exposição de quadros dos a l unos do colégio,
o narrador assim se refere aos sentimentos de
(UF-RS) As afirmações seguintes se referem ao Aristarco:
romance O A teneu, de Raul Pompéia:
1- O narrador Sérgio, ao relembrar sua experiência Não obstante, Aristarco sentia-se lisonjeado pela
de adolescente vivida no internato, faz uma críti­ intenção Parecia-lhe ter na face a cocegazinha sutil
ca ao modelo educacional autoritário do Brasil do creion passando, brincando na ruga mole da
imperial. pálpebra, dos pés de galinha, contornando a con­
1 1- A linguagem de Raul Pompéia é caracterizada cha da orelha, calcando a comissura dos lábios,
como prosa artística pelo uso do tom requinta­ entrevista na franja pelas dobras oblíquas da pele
do e pela utilização de figuras estilísticas na ao nariz, varejando a pituitária, extorquindo um
escritura. espirro agradável e desopilante.
1 1 1- Segundo a visão de Raul Pompéia, a escola (Rau l Pompéia - O Ateneu)
reproduz a mesma estrutura corrompida e
degradada da sociedade da época, representa­ a) A que intenção se refere o narrador?
da por todos os integrantes da instituição: dire­ b) Quais características de Aristarco estão sugeri­
tor, professores, alunos e funcionários. das neste comentário?
Quais estão corretas? c) Lendo esta descrição, você considera que o nar­
a) Apenas a I rador compartilha dos mesmos sentimentos de
b) Apenas a 1 1 Aristarco? Justifique a resposta:
c) I e 11
d) 11 e 111
e ) Todas

R a) No colégio interno, as exposições artísticas


1M1 eram realizadas de dois em dois anos. Havia,
entre outras manifestações artísticas dos alu­
nos, os desenhos. Entre os desenhos, o mais
a) O narrador-personagem chama-se Sérgio. recorrente era o retrato do diretor. Ainda que
<( b) O episódio da destruição do Ateneu por meio não fosse de composição competente, já que
o
�2 de um incêndio, no desfecho do romance, é de
fundamental importância para a sua compreen­
era resultado de mãos de aprendizes, Aristarco
sentia-se lisonjeado pela intenção.
são . As proporções gigantescas da destruição e b) A característica essencial da personalidade de
w
a imagem de Aristarco - contemplando, como Aristarco, expressa em especial no capitulo 7, é

um deus caipora, o desastre universal de sua a vaidade. Cada exposição de seus retratos era
o
u obra - levam o leitor a pensar que este fato objeto de grande prazer pessoal, pois ele era
<( simbolicamente constitui a vingança do narra­ extremamente sensível à baju lação. Como
cr: dor contra todas as atrocidades que viveu no decorrência dos elogios, já que se sentia glorifi­
::> colégio. Destruindo-o com o fogo, ele faz expi­ cado por seus alunos, vinha-lhe a soberba.
�a: rar um mundo perverso e doentio, que por
exemplo pode ser o mundo retrógrado da Mo­
c) Não. O narrador descreve Aristarco de forma
g rosseira e com pinceladas deformadoras
w narquia, representado por Aristarco. características da técnica expressionista. Os
._ desenhos são toscos; no entanto, o fato de que
::i

representam a sua pessoa deixa o diretor orgu­
lhoso. Acha-os resultado de seu mérito como
90 educador.
I o PRÉ-MODERNISMO NO BRASIL

MOMENTO HISTÓRICO-LITERÁRIO: O BRASIL NO INÍCIO DO SÉCULO


(1900 - 1922): Uma literatura satisfeita, sem angústia formal, sem rebelião nem
abismos. Sua única mágoa é não parecer de todo européia, seu esforço mais tenaz é
conseguir pela cópia o equilíbrio e a harmonia, ou seja, o academicismo. (Antônio
Cândido - J. Aderaldo Castelo -Presença da Literatura Brasileira)
Denomina-se Pré-Modernismo, o momento de transição entre a tradição literária
do século XIX e a sua ruptura radical, proporcionada pelo advento do Modernismo.
São considerados pré-modernistas alguns escritores cujas obras destoam do cenário
dominante, convencional e conservador. Enquanto na poesia se sobressai Augusto dos
Anjos, com poemas que desafiam classificações rígidas e inserem em nosso contexto
cultural algumas características universalmente modernas, na prosa destacam-se três
escritores, que se debruçaram sobre a realidade do país, em obras que o questionam e
promov�m a sua revisão crítica. fonso Henriques Lima Barreto teve
Euclides da Cunha, com Os Sertões; Monteiro Lobato, com Urupês e Lima Barreto,
A
uma existência desde cedo marcada
com Triste Fim de Policarpo Quaresma, constituem os mais importantes representantes pelo sofrimento: mulato, órfão de mãe aos
seis anos, o pai doente mental, alcoólatra e
de nossa prosa pré-modernista.
sem estabilidade financeira.
Com abordagens e estilos específicos, tais prosadores se aproximam por anuncia­
Com a doença do pai, precisou afastar·se da
rem a grande temática que ocupará nossa primeira geração modernista: a redescoberta faculdade que cursava, a Escola Politécnica
dos valores brasileiros, por meio de um nacionalismo crítico, polêmico, problemati­ do Rio de Janeiro, para trabalhar como
zador. amanuense na Secretaria da Guerra.
As experiências com jornalismo, que vinham
dos tempos de estudante, continuaram e se
transformaram em profissão. Em 1 905,
tornou-se jornalista do Correio da Manhã, e
LIMA BARRETO quatro anos mais tarde publicou, em Lisboa.
seu primeiro romance, Recordações do
Escrivão Isaías Caminha. Nesse trabalho, há
Estou cansado de dizer que os malucos
foram os reformadores do mundo.
fortes elementos autobiográficos, principal­
São eles os heróis; são eles os iludidos;
mente quando o autor focaliza os bastidores
são eles que trazem as grandes idéias
dos grandes jornais brasileiros, formadores de
para a melhoria das condições de opinião, e o tema do preconceito racial. de que
existência da nossa triste Humanidade. sempre se sentiu vítima.
Em 191 1 , Lima Barreto publicou, em forma
de folhetim, seu romance mais conhecido,
Triste fim de Policapo Quaresma. Em 1 9 1 4,
TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA sofreu sua primeira internação, num hospí­
cio. Foi afastado por invalidez da Secretaria
Lutando contra moinhos de vento como D. Quixote, o patriotismo
da Guerra, em 1 9 1 8, e passou novo período
ingênuo de Policarpo Quaresma é o tema deste livro. no sanatório. Em 1 920, candidatou-se sem
sucesso à Academia Brasileira de Letras.
"A verdadeira sátira - lembremo-nos de D. Quixote - é toda impregnada de poe­ Vítima de um colapso cardíaco, faleceu em
sia, funde emoção e julgamento, lágrimas e riso ( . . .) . Lima Barreto a atingiu com o 1 922, alguns meses depois da Semana de
Triste Fim de Policarpo Quaresma, o seu grande livro, aquele que lhe marca o lugar na Arte Moderna, na mesma cidade onde
o
1-
nasceu, em 1 88 1 , e passou toda a sua vida: w
literatura brasileira ( . . . ). O major Quaresma, de quem Lima Barreto logra fazer ao
o Rio de Janeiro. a:
mesmo tempo um homem e um tipo - um dos maiores de nossa ficção - ( . . .) infunde a:
<(
vida e movimento ao livro todo ( . . . ) . Mas nem por tratar da loucura o Triste Fim de outras obras do escritor: CO
Policarpo Quaresma se processa num ambiente de exaltação, ou é atormentado. Ao Numa e Ninfa; Vida e Morte de M. J. <(
contrário, tudo nele é arejado e claro, a sátira se exerce com delicada sobriedade, pene­ Gonzaga de Sá; Bagatelas; Os Bruzundangas, �
trada de humor. Clara dos Anjos. Histórias e sonhos; Feiras e ....J
(Lúcia Miguel - Pereira - Prosa de ficção - de 1870 a 1920) Mafuás.
0-

91
Narrador

Triste Fim de Policarpo Quaresma é narrado em terceira pessoa, por um narrador que pode
ser denominado onisciente intruso. Onisciente porque conhece a interioridade dos personagens e
intruso porque, embora não participe do enredo, demonstra ao longo de toda a obra a adesão ao
protagonista: o major Policarpo Quaresma.
Personagem quixotesca, nacionalista, ufanista, sem nenhum senso da realidade prática, mas
embriagado de amor pelo país, o major Quaresma é descrito com imensa empatia pelo narrador,
ao longo do romance.
Em seu desvario por melhorar o Brasil, em cada um dos proj etos a que se dedicou - o lin­
güístico, que consistiu em tomar o tupi-guarani nossa língua oficial, em detrimento do português;
o agrícola, por meio do qual quis valorizar nossa terra e nossas plantações e o político, em que fez
parte da Revolta da Armada, lutando a favor do governo republicano de Floriano Peixoto - o
major Quaresma fracassa, já que, sendo um visionário, nada vê, nada percebe, nada compreende,
em termos pragmáticos.
No entanto, a proximidade com que o narrador focaliza a sua humanidade simplória mas ínte­
gra, tanto quanto o distanciamento irônico com que descreve grande parte dos demais persona­
gens - uma galeria de burocratas, bajuladores e oportunistas - faz com que, através da ingenui­
dade dos olhos do major Quaresma, os nossos comecem a enxergar, a desvendar as últimas ilusões
românticas, não exatamente sobre o patriota, mas sobre a pátria que o patriota ingênuo acredita
existir...
Vejamos alguns exemplos da adesão do narrador a Policarpo, da centralização do foco narra­
tivo da obra na perspectiva de seu protagonista:

Exemplo 1

Durante os lazeres burocráticos, estudou, mas estudou a Pátria, nas suas riquezas natu­
rais, na sua história, na sua geografia, na sua literatura e na sua política. Quaresma sabia
as espécies de minerais, vegetais e animais que o Brasil continha; sabia o valor do ouro, dos
diamantes exportados por Minas, as guerras holandesas, as batalhas do Paraguai, as nascen­
tes e o curso de todos os rios. Defendia com azedume e paixão a proeminência do Amazonas
sobre todos os demais rios do mundo. Para isso ia até ao crime de amputar alguns quilôme­
tros ao Nilo e era com este rival do ''seu " rio que ele mais implicava. Ai de quem o citasse na
sua frente! Em geral, calmo e delicado, o majorficava agitado e malcriado, quando se discu­
tia a extensão do A mazonas em face da do Nilo.

(cap. 1 - A lição de violão - Primeira parte)

Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha elefeito de sua vida? Nada.
Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intui­
to de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua
virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o pre­
miava, como ela o condecorava? Matando-o. E o que não deixara de ver, de gozar, de fruir,
na sua vida? Tudo. Não brincara, não pandegara, não amara - todo esse lado da existência
que parece fugir um pouco ã sua tristeza necessária, ele não vira, ele não provara, ele não
<( experimentara.
o Desde dezoito anos que o tal patriotismo lhe absoroia e por ele fizera a tolice de estudar
� inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois quefossem . . . Em que lhe contri­
z buiria para a felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada . . . O importante é que ele
w


tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas causas de tupi, do folk-lore, das suas tentati­
vas agrícolas. . . Restava disso tudo em sua alma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!
u
<( (cap . 5 - A afilhada - Terceira Parte)
a:
:::>
�a: Comentário: Enquanto no primeiro exemplo observamos a largueza da entrega de Policarpo a
w seus ideais patrióticos, no segundo, próximo ao desfecho da obra, o narrador revela a desilusão que
1-
::J o protagonista tem com a pátria, a qual amara ingenuamente. Repare que em ambos os casos o dis­
- curso indireto livre, ou seja, a confusão entre a voz do narrador e a voz do personagem, é utili­
zado para marcar a proximidade daquele em relação a este.
92
Enredo
Conhecido como major Quaresma, o nosso Policarpo é um funcionário civil do Arsenal da
Guerra, cujas atitudes metódicas e corretas, ao longo de toda a vida, fazem com que seja tido, entre os
vizinhos, amigos e colegas de trabalho, como uma espécie de padrão de respeitabilidade e confiança.
No entanto, o major começa a agir de modo estranho. Adquire um violão, e passa a ter aulas
do instrumento com Ricardo Coração dos Outros, o que abala sua reputação.
A essa se segue uma sucessão de idiossincrasias, que parecem cada vez mais comprovar a
"insanidade" do major aos olhos da população do bairro - São Cristóvão - e do seu convívio
social.
O fato é que, depois de trinta anos de meticuloso estudo e de paciente meditação patriótica, ao
longo dos quais foi se tomando um nacionalista obcecado, cultivador de um fanatismo xenófobo,
o major resolveu concretizar em obras as suas idéias.
Por um lado, tal fato o distancia do conformismo em que se arrastam os burocratas e milita­
res reformados - pessoas mesquinhas, medíocres e incompetentes - que povoam o romance. Por
outro, entretanto, o mesmo fato, na medida em que acentua a incompatibilidade entre o ideal que
Policarpo representa e o real que o cerca, desencadeia a sua perdição.
No primeiro grande arroubo nacionalista, envia ao congresso Nacional um requerimento, soli­
citando a adoção do tupi como língua oficial do Brasil.
A partir de então, o major toma-se alvo de comentários jocosos nas ruas, nos meios burocrá­
ticos, na própria repartição.
Mas não se deixa intimidar: a firmeza de propósitos constitui um de seus traços peculiares.
Recebe as visitas chorando e gesticulando como um genuíno goitacá e manda ao comandante-dire­
tor da repartição onde trabalha, um oficio de rotina redigido em língua indígena ...
Na medida em que assim se confirmam as suposições sobre sua loucura, Quaresma é interna­
do num hospício. Nele permanece por seis meses, mantendo inalteradas as convicções nacionalis­
tas que o movem e contando com apenas dois amigos realmente capazes de entendê-lo e respeitá­
lo: a afilhada Olga e o violeiro Ricardo Coração dos Outros.
O ideal de preservar as tradições e os costumes do país dá lugar ao de operar uma reforma na
agricultura, iniciando-se com esta mudança a segunda fase da trajetória do major Quaresma.
Acompanhado por Anastácio, um empregado de confiança, muda-se para o Sítio do Sossego, a
fim de levantar o ânimo, que fora duramente abatido na convivência com a alienação mental: de
todas as causas tristes de ver no mundo, a mais triste é a loucura; é a mais depressora e pungente.
Novamente engajado num projeto concreto, Policarpo o planeja e avalia, sempre preciso e
meticuloso; acaba enfim por pô-lo em prática.
Outra decepção o aguarda, apesar de todo o empenho, de todo o esforço inutilmente gastos: a
comercialização dos produtos rende-lhe um lucro mínimo e, pior do que isso, os trabalhadores
rurais revelam-se apáticos e destituídos de espírito de solidariedade.
Um fato histórico transposto para a literatura vem interromper a experiência de Policarpo, que
no entanto já estava fadada ao fracasso: explode a Revolta da Armada contra o governo do mare­
chal Floriano. Policarpo, defensor árduo do "Marechal de Ferro", envia-lhe um telegrama de soli­
dariedade. Em seguida, deixa o Sossego para participar da luta contra os rebeldes.
Aqui já nos aproximamos do desfecho do romance: a visão idealizada que Quaresma cultiva­
ra a respeito de Floriano vai sendo abalada, na medida em que testemunha as atrocidades e injus­
tiças cometidas por seus soldados.
Sem qualquer conhecimento a respeito de guerra, o major vai à frente de batalha, mas logo é
punido, por sua condescendência para com a tropa que chefiava.
Quando o governo consegue a vitória, Quaresma, em vez de se unir ao coro dos bajuladores e
oportunistas, denuncia as arbitrariedades ocorridas com prisioneiros da Revolta. O "Marechal de
Ferro", agora já visível ao protagonista como um ditador sem nenhum interesse pela pátria,
denomina-o visionário, prende-o por crime de alta traição e o condena à morte.
Esta, a ironia maior: o regime que Policarpo Quaresma defendera de maneira tão entusiasta
o
acaba responsável pelo seu "triste fim"; o único patriota de fato presente no romance é sumaria­ 1-­
w
mente sacrificado, como um traidor da pátria... a:
a:
<(
lll
Personagens
<(
Principais �
::i
Policarpo Quaresma, o protagonista, seguido de Olga e Ricardo Coração dos Outros, seus -
seguidores, podem ser considerados os personagens que mais se destacam no romance.
93
O protagonista - Policarpo Quaresma - funcionário civil do Arsenal de Guerra, consti­
tui ao mesmo tempo um homem e um tipo, como afirma Lúcia Miguel-Pereira; nacionalista exal­
tado, imbuído de um sentimento sério, grave e absorvente pelo seu país, ele personifica o idealis­
mo quixotesco e bem intencionado, que não sobrevive em meio à hipocrisia, ao arrivismo e à
supremacia do interesse pessoal que caracterizam a sociedade.
Olga, afilhada do major, com seu ar de reflexão e curiosidade, com seu espírito ao mesmo
tempo sensível e inteligente, caracteriza-se fundamentalmente por um inconformismo em relação
ao valores de sua época. Este sentimento a aproxima de Policarpo, seu padrinho, tanto quanto a
marginaliza em relação aos demais personagens.
Ricardo Coração dos Outros é tipicamente um artista popular. Violeiro, ele quer resgatar a
respeitabilidade e a importância nacional do instrumento, marginalizado e considerado vulgar.
Como Olga, mantém-se ao lado de Quaresma, acreditando em seus sonhos, até o momento da exe­
cução do major.

Secundários
Adelaide, a irmã de Quaresma, embora zelosa e carinhosa com ele, não conseguia com­
preendê-lo, nos seus sonhos e ideais nacionalistas, por constituir uma personagem acomodada ao
sistema, sem grandes vôos e reflexões.
Coleoni, o pai de Olga e compadre de Quaresma, representa a figura do imigrante enriqueci­
do, mas solitário: vindo da Itália, conseguiu ascensão social; entretanto, não se adaptou aos
padrões de uma sociedade canhestra, que se pretendia refinada e culta.
Albernaz, o general que nunca foi à guerra, é um dos inúmeros burocratas que compõem a
vasta galeria presente no romance. No entanto, generoso e leal, preocupa-se sobretudo em casar a
filha Ismênia com o doutor Cavalcanti, o diplomado que para a família da noiva, de mentalida­
de provinciana, era mais que um bom partido, de futuro promissor; era mais que um simples
homem, era homem e mais alguma coisa sagrada e de essência superior. No entanto, ele abando­
na a noiva, moça triste, de pouca imaginação e inteligência fraca, cujo único pensamento era o de
que toda a existência só tendia ao casamento. Ao ver sucumbir o único sonho que a alimentava,
lsmênia enlouquece, numa das cenas mais patéticas do romance.
Bustamante, um major que como Caldas se ocupava com demandas, transformando-as em
grande manía, ia diariamente ao quartel-general ver como andava a tramitação de seu requerimen­
to e também dos requerimentos dos colegas. Servil e humilde, de antigo voluntário da pátria trans­
forma-se em fanático por apenas uma idéia: a aposentadoria.
Caldas, contra-almirante militar entregue à burocracia das repartições, quando parece que vai
entrar "na ativa" - recebe o comando do navio "Lima Barros" - ironicamente jamais consegue
encontrá-lo ...
Armando, o médico, personifica o pedantismo e a falta de escrúpulo: casa-se com Olga, uma
herdeira endinheirada, concretizando o chamado "golpe do baú" e, além disso, dedica-se a escre­
ver artigos empolados e ininteligíveis em seu pretenso "estilo clássico", ridicularizado ao longo do
romance.
Genelício, o funcionário público, é o arrivista típico, a falta de escrúpulo e de dignidade huma­
na caricaturizadas ... Ele tudo faz para "subir na vida" e atingir posição social: não havia ninguém
mais bajulador e submisso do que ele. Nenhum pudor, nenhuma vergonha.
<(
o

z
Linguagem

w
� "(Em Triste Fim de Policarpo Quaresma), as cenas de rua ou os encontros e desencontros
o domésticos acham-se narrados com uma animação simples e discreta, as frases j amais brilham por
u
si mesmas, isoladas e insólitas (como resultava a linguagem parnasiana), mas deixam transparecer
<(
a: naturalmente a paisagem e as figuras humanas." (Alfredo Bosi - História Concisa da Literatura
:::> Bras i/eira)
!=i:
a: "Na verdade, poucos, neste país, pagaram tão caro como ele por terem se atrevido a falar em
w nome do oprimido com a mesma ferocidade do opressor. " (Arnoni Prado - Lima Barreto).
1-
:::J
- De linguagem combativa e ao mesmo tempo plástica e acessível, próxima da crônica jornalís­

94 tica, Triste Fim de Policarpo Quaresma é um romance que anuncia o Modernismo.


Trata-se de um texto que, como os outros de Lima Barreto, foi tido por desleixado por alguns
críticos, na medida em que incorpora formas populares de expressão, ironizando o academicismo
do final do século XIX e início do XX, por meio de sua frase coloquial, de seu esforço pelo perío­
do despojado e próximo da oralidade, da contundência de sua veia satírica e essencialmente crítica.
Na qualidade de escritor voltado para um público maior e mais abrangente que o restrito cír­
culo de intelectuais, bacharéis e jornalistas do seu tempo, Lima Barreto denuncia as estruturas
sufocantes e hipócritas da socie�de brasileira do período, como se vê por exemplo na passagem
em que faz a caricatura do "Marechal de Ferro", Floriano Peixoto, e também naquela em que
Armando exercita o chamado "estilo clássico" em seus artigos: um estilo artificial e pretensamen­
te culto, que funcionava como marca de refinamento, distinção e superioridade intelectual.

Exemplo 1:
Quaresma pôde então ver melhor a fisionomia do homem que ia enfeixar em suas mãos,
durante quase um ano, tão fortes poderes, poderes de Imperador Romano, pairando sobre
tudo, limitando tudo, sem encontrar obstáculo algum aos seus caprichos, às suas fraquezas e
vontades, nem nas leis, nem nos costumes, nem na piedade universal e humana.
Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se agar­
rava numa grande "mosca''; os traçosflácidos e grosseiros; não havia nem o desenho do quei­
xo ou olhar quefosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redon­
do, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, da raça;
e todo ele era gelatinoso - parecia não ter nervos.
Não quis o major ver em tais sinais nada que lhe denotasse o caráter, a inteligência e o
temperamento. Essas causas não vogam, disse ele de si para si.
O seu entusiasmo por aquele ídolo político era forte, sincero e desinteressado. Tinha-o na
conta de enérgfco, de fino e supervidente, tenaz e conhecedor das necessidades do país,
manhoso talvez um pouco, uma espécie de Luís XIforrado de um Bismarck. Entretanto, não
era assim. Com uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do Marechal
Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo; e no seu temperamento, muita pre­
guiça. Não a preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma preguiça mórbida, como
que uma pobreza de irrigação nervosa, provinda de uma insuficiente quantidade de fluido
no seu organismo. Pelos lugares que passou, tornou-se notável pela indolência e desamor às
obrigações dos seus cargos (. . .).
Dessa preguiça de pensar e agir, vinha o seu mutismo, os seus misteriosos monossílabos,
levados à altura de ditos sibilinos, asfamosas "encruzilhadas dos ta/vezes" que tanto reagiram
sobre a inteligência e imaginação nacionais, mendigas de heróis e grandes homens.
Essa doentia preguiça fazia-o andar de chinelos e deu-lhe aquele aspecto de calma supe­
rior, calma de grande homem de Estado ou de guerreiro extraordinário.
(cap. l - Patriotas - Terceira parte)

Exemplo 2:
De fato ele estava escrevendo ou mais particularmente: traduzia para o "clássico " um
grande artigo sobre ''Ferimentos por arma de fogo ". O seu último truc intelectual era este do
clássico. Buscava nisto uma distinção, uma separação intelectual desses meninos por aí que
escrevem contos e romances nos jornais. Ele, um sábio, e sobretudo, um doutor, não podia
escrever da mesma forma que eles. A sua sabedoria superior e o seu título "acadêmico" não
podiam usar da mesma língua, dos mesmos modismos, da mesma sintaxe que esses poetastros
e literatecos. Veio-lhe então a idéia do clássico. O processo era simples: escrevia do modo
comum, com palavras e o jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picaua o período com
vírgulas e substituía incomodar por molestar, ao redor por derredor, isto por esta, quão gran­
de ou tão grande por quamanho, sarapintava tudo de ao invés, empós, e assim obtinha o seu
estilo clássico que começava a causar admiração aos seus pares e ao público em geral.
Gostava muito da expressão - às rebatinhas; usava-a a todo momento e, quando a o
1-
punha no branco do papel, imaginava que dera ao seu estilo uma força e um brilho pascalia­ w
nos e às suas idéias uma suficiência transcendente. De noite, lia o padre Vieira, mas logo às 0::
0::
primeiras linhas o sono lhe vinha e dormia sonhando-se "físico'; tratado de mestre, em pleno <t:
Seiscentos, prescrevendo sangria e água quente, tal e qual o doutor Sangrado. al
A sua tradução estava quase no fim, já estava bastante pratico, pois com o tempo adqui­ <t:
rira um vocabulário suficiente e a versão era feita mentalmente, em quase metade, logo na �
primeira escrita. ::i
-
(cap. 1 - Patriotas - Terceira parte)
95
11 (UNICAMP) O trecho abaixo, escolhido por Lima 32. A construção psicológica d a galeria de perso­
Barreto como epígrafe para introduzir a sua obra, nagens está mais a cargo do leitor do que do
Triste Fim de Policarpo Quaresma, comenta o autor.
confronto entre o ideal e o real.
O grande inconveniente da vida real e o (Cefet) Na obra Triste Fim de Policarpo Quares­
que a torna insuportável ao homem superior é ma, o p rotagonista envia um requerimento ao
que, se transportamos para ela os princípios do Congresso Nacional, pedindo que:
ideal, as qualidades passam a ser defeitos, de
tal modo que, na maioria das vezes, o homem 1 . se proíbam os termos tupis-guaranis em língua
íntegro não consegue se sair tão bem quanto portuguesa.
aquele que tem por estímulo o egofsmo ou a 2. se decrete o uso obrigatório do tupi-guarani.
rotina vulgar. 3. se zele com maior interesse pela pureza da lín­
(Renan, Marc-Aurele) gua portuguesa.
4. se adote o nome 'língua brasileira' para o por­
a) cite dois episódios do livro em que o comporta­ tuguês falado no Brasil.
mento idealista de Policarpo é ridicularizado por 5. se adote uma redação oficial expurgada pelos
outras personagens. plebe ísmos brasileiros.
b) considerando-se a epígrafe citada, como pode
ser analisada a trajetória de Policarpo R (UFO P - MG) Triste Fim de Policarpo Quaresma
Quaresma? lill é, freqüentemente, considerado um romance
pré-modernista no sentido de que revela um

El
(UFPR-PR) É correto afirmar a respeito de Triste esforço para penetrar a fundo na realidade brasi­
Fim de Policarpo Quaresma: leira, esforço este que será um dos pilares da
01 . A personagem central do romance é uma Revolução Modernista de 22.
espécie de Dom Quixote nacional. Você concorda com essa afirmação? Se con­
02. Policarpo Quaresma é um otimista incurável. cordar, discuta os aspectos do romance em que
04. Os desajustes sociais mais os sofrimentos este esforço pode ser percebido. Se não concor­
humanos, pela ótica de Quaresma, podem dar, justifique sua resposta :
ser superados com a aplicação da justiça, da
qual se considera um paladino. Quais são os três projetos aos quais se dedica
08. Quaresma pode ser entendido como um vi­ Policarpo Quaresma e qual a diferença do último
sionário, já que suas deduções não guardam em relação aos dois primeiros para a compreen­
correlação com o ambiente nacional. são de sua trajetória existencial?
1 6. Coerente com sua visão ideológica da so­
ciedade e da cultura brasileiras, Lima Barreto
procurou escrever um texto com linguagem
que não fosse rebuscada nem pedante.

11 a) O comportamento idealista de Policarpo é ridicu­


larizado por outras personagens em vários
0 1 ,02,04,08, 1 6

11 2
momentos da obra, como por exemplo quando
envia ao Congresso Nacional um requerimento,
solicitando que o tupi-guarani seja transformado R Esta afirmação está correta. O esforço do
na língua oficial do país. Outra atitude de lill romance pari:l penetrar fundo na realidade brasilei-
Policarpo que acentua a distância entre o seu ra é percebido principalmente por meio da crítica
idealismo e a mediocridade das personagens que às figuras carreiristas, pedantes, bajuladoras e in­
o ridicularizam ocorre através de um 'lapso" : competentes que se utilizam de quaisquer expedi­
mergulhado no sonho patriótico que o domina,
<( entes para subir socialmente e exercer poder.
c ele se distrai e envia um ofício de rotina, na repar­


tição pública onde trabalha, em tupi-guarani. Os projetos linguístico (decretar o tupi-guarani
z como língua oficial brasileira), agrícola (plantar e
w b) A epígrafe citada tem na trajetória de Policarpo
Quaresma um fato-exemplo que a explicita.
colher frutas, cereais e verduras 'nacionais' em
� sólo pátrio . .. ) e político (lutar pela República na
o Profu ndamente idealista e desprovido de revel ução federalista de 1 893) são os três modos
u senso prático, Policarpo entrega-se a três pro­ pelos quais Policarpo Quaresma, um patriota ufa­
<( jetos patrióticos que fracassam: o projeto lin­ nista e ingênuo, tentou melhorar a nação. Fra­
a: güístico, o agrícola e o político. Neste último, cassa em todos eles, pela falta de senso prático.
::::> que o leva à condenação por crime de alta trai­ A partir do último projeto, entretanto, Policarpo
�a: ção à pátria, observamos de forma contunden­
te como as qual idades do homem superior
Quaresma torna-se desalentado e começa a per­
der a esperança nos governantes. É o início de
w transformam-se em defeitos, num contexto sua desilusão; o lento processo de destruição de
1- em que predominam o egoísmo e a rotina vul­
::::i gar: ao denunciar a tirania ao próprio tirano, ele
seus ideais nacionalistas, já que o regime pelo

-
qual lutara começa a destrui-lo.
chega ao auge da ingenuidade, da inviabilidade

96 para a vida real . . .


LITERATURA COMENTADA
Emília Amaral , Severino Antônio

O MODERNISMO EM PORTUGAL
Os primeiros anos do século XX em Portugal, são marcados pelo entrecho­
que de correntes literárias que vinham agitando os espíritos desde algum
tempo: Decadentismo, Simbolismo, Impressionismo etc. , eram denominações
da mesma tendência geral que impunha o domínio da Metafísica e do
Mistério no terreno em que as ciências se julgavam exclusivas e todo­
poderosas.

O ideal republicano, engrossado por sucessivas manifestações de instabili­


dade, vai-se concretizar em 1 91 O, com a proclamação da República, depois
dos sangrentos acontecimentos de 1 908, quando o rei D. Carlos perde a
vida nas mãos de um homem do povo, alucinadamente antimonárquico.

(. . .) E é nessa atmosfera de emaranhadas torças estéticas, que se sobrepõe à


inquietação trazida pela Primeira Grande Guerra, que um grupo de rapazes,
em 1 9 1 5, tunda a revista Orpheu. São eles: Mário de Sá-Carneiro, Fernando
Pessoa, Luís de Montalvor, Santa Rita Pintor, Ronald de Carvalho, Raul Leal.

(Massaud Moisés - Presença da literatura portuguesa ­


O Modernismo)

FERNANDO PESSOA
O multiplicador dos eus
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: Só quero torná-la de toda a humanidade:
'Navegar é preciso: viver não é preciso". ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Quero para mim o espírito {d]esta frase, transformada a Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na 'I!! ernando Pessoa nasce e� L!sboa. em
forma para a casar com o que eu sou: essência anímica do meu sangue o propósito :(i 1888. Passa parte da 1nfanc1a e da
Viver não é necessário; o que é necessário é criar. impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
mocidade na África do Sul. em Durban. De
<(
o
votta a Portugal. chega a iniciar o curso
nem
(/)
Não conto gozar a minha vida; em gozá-la penso. para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça. (/)
superior de Letras. em Lisboa. mas abandona
Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser
o meu corpo e a (minha alma) a lenha dessefogo. (Palavras depórtico) w
a Universidade. Trabalha obscuramente 0..
como representante e como tradutor de o
contratos comerciais. Publica em vida um Cl
Ao morrer, em 1 935, com apenas 47 anos, Fernando Pessoa era desconhecido do único livro - Mensagem - pouco antes de Z
grande público, apesar de ter participado dos movimentos e das publicações que reali­
zaram o Modernismo em Portugal, entre eles a revista Orpheu (em 1 9 15 , com Mário
morrer. em 1 935. Apaixonado por ocultismo,
por filosofia, por estudos de psiquiatria e

a:
psicanálise. de grande erudição autodidata. W
de Sá-Carneiro e outros). Pouco antes de sua morte, havia recebido o prêmio de segun­ LL
da categoria do Secretariado de Propaganda Nacional, pela publicação de sua obra participa intensamente das publicações do
m-od ern ismo -po ug s
Mensagem... - _____ _ rt__u_
ê_. _._._._._.o

=
Nestes quase setenta anos que nos separam do fim de sua vida, no entanto, Fernando Pessoa
tem se tomado, cada vez mais, poeta de reconhecimento universal, de dimensões lendárias.
Milhares de páginas têm sido escritas sobre sua criação, reconhecida como uma das maiores do
século XX, ao lado de Eliot, Rilke, Pound, Lorca e alguns outros.
Sua figura se toma lendária por sua característica mais intrigante : a multiplicação dos Eus poé­
ticos, o desdobramento de sua obra em heterônimos, em outros eus - Alberto Caeiro, Ricardo
Reis, Álvaro de Campos - que são, ao lado de Fernando Pessoa - ortônimo (ele mesmo), os mais
importantes poetas do Modernismo em Portugal.
A complexidade e o mistério dos heterônimos, dos outros Eus poéticos, tanto em sua gênese
como em suas inter-relações, têm sido tema de inumeráveis estudos, debates e controvérsias. O
próprio Fernando Pessoa fala dos heterônimos em uma carta a Adolfo Casais Monteiro:
Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro,
Ricardo Reis e Á lvaro de Campos. Constrní-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em
1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presente­
mente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas
viveu quase toda a vida no campo. Não teveprofissão nem educação quase alguma. Á lvaro de
Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1 .30 da tarde, diz-me o Ferretra
Gomes; e é verdade, pois, feito horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é enge­
nheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inatividade. Caeiro era de
estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tãofrágil como
era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baiXo, mais forte, mais seco. Á lvaro de
Campos é alto (1. 75 m de altura, mais 2 em do que eu), magro e um pouco tendente a cur­
var-se. Cara rapada todos - o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno
mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo porém, liso
e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que
quase nenhuma - só instrnção primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar
em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo
Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois
se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um
semi-helenista por educação própria. Á lvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu;
depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval.
Numas férias fez a viagem ao Oriente, de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio
beirão que era padre. Como escrevo em nome desses três?. . . Caeiro por pura e inesperada ins­
piração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma delibera­
ção abstrata, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando S<nto um súbito
impulso para escrever e não sei o quê.
(Carta a Adolfo Casais Monteiro de 1935.)

Nesta nossa iniciação à leitura de sua poesia, é preciso apresentar algumas características dos
outros Eus e do próprio Fernando Pessoa - ele mesll}o.
Alberto Caeiro: o camponês.poeta, autor de O guardador de rebanhos Homem de grande
.•

simplicidade, autodidata, que prega o contato direto com a natureza, com as próprias coisas, como
sendo a maior sabedoria. Autor de versos livres, próximos da prosa, Caeiro rejeita radicalmente as
metafísicas, os sistemas de idéias que impedem o pleno contato sensorial com o mundo, que impe­
<( dem o sadio e pleno ver o mundo, a comunhão com a natureza. Os sistemas filosóficos e religio­
o
�z sos transcendentes fazem com que nós fiquemos doentes de idéias e doentes pela falta de relação
vital com a natureza. É preciso desaprender as idéias, para aprender as coisas. Ele é o poeta
w dos fenômenos, contra a poesia piegas e sentimental, fundador de uma nova poesia da natureza.

u
Ricardo Reis: é o poeta de sabor clássico, latinizante, de vocabulário muitas vezes erudito, de
sintaxe puxando ao clássico, de referências mitológicas. Seus poemas lembram a lírica grega e lati­
<( na, em especial Horácio. Textos curtos, concisos, intelectualizados, tematizando a transitoriedade
a: da vida, a irreversibilidade do Fado (destino), a necessidade de fruir o instante que passa. Uma ati­
::)
!;(
a:
tude serena e contemplativa, de grande controle emocional, faz-se presente em todos os poemas
reunidos em Odes - o que o aproxima de um equih'brio entre o estoicismo e o epicurismo.
w Ricardo Reis é uma espécie de neoclássico moderno.
1-
:::J Álvaro de Campos: é o poeta modernista, futurista, cubista, sensacionista (uma corrente que
- faz a mistura eclética das vanguardas modernistas). Autor de versos livres, de ritmos explosivos,
de linguagem coloquial, de referências à vida moderna, urbana e industrial. Poeta da crise de
98
todos os valores, da ruptura de todas as referências tradicionais, expressando a vertigem e o
caos da fragmentação da vida moderna, oscilando entre a excitação e o cansaço, entre a euforia e
a depressão, entre o êxtase e a desilusão.
Fernando Pessoa - ortônimo: Fernando Pessoa, ele mesmo, autor de Mensagem, revela-se um
sutil e complexo poeta-filósofo, que escreve geralmente em redondilhas rimadas, próximo do
Simbolismo.
Em seu livro Mensagem desenvolve temas da raça e da história de Portugal, em atmosfera visio­
nária, mitopoética, fundindo o lírico e o épico, como que realizando um destino superior: o de cons­
truir a grandeza da Pátria e da Humanidade, desenvolvendo espiritualmente a espécie humana, por
meio da criação de grande poesia.
Quando lemos as múltiplas vozes da poesia de Fernando Pessoa, percebemos quase de imediato
a presença de uma inteligência dialética extremamente arguta, questionadora de tudo, com a necessi­
dade de compreender tudo e, ao mesmo tempo, a consciência da impossibilidade de se ter cons­
ciência, e o gosto do oculto, o amor pelo espiritual, pelo misterioso, pelo obscuro.
As inumeráveis e intrincadas contradições entre a necessidade da lucidez e a necessidade da vidên­
cia, entre a obsessão pela análise e a paixão pelo sonho, permeiam também os processos de criação de
sua poesia, que vão desde possessões verbais (como seqüência de dezenas de poemas de Alberto Caeiro,
escritos em pé, ou poemas de Álvaro de Campos, escritos vertiginosamente na máquina de escrever, sem
rascunho) até o rigor critico e a intencionalidade arquitetura} do poema (como, por exemplo, nos textos
clássicos de Ricardo Reis e nos poemas alegóricos de Fernando Pessoa).

ANTOLOGIA COMENTADA
ALBERTO CAEIRO
O guardador de rebanhos

VIII

Num meio-dia de fim de primavera Um dia que Deus estava a dormir


Tive um sonho como uma fotografia. E o Espírito Santo andava a voar,
Vi Jesus Cristo descer à terra. Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Veio pela encosta de um monte Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele
Tornado outra vez menino, tinha fugido.
A correr e a rolar-se pela eroa Com o segundo criou-se eternamente humano e
E a arrancarflores para as deitarfora menino.
E a rir de modo a ouvir-se de longe. Com o terceiro criou um Cristo eternamente na
cruz
Tinha fugido do céu. E deixou-o pregado na cruz que há no céu
Era nosso demais para fingir E seroe de modelo às outras.
Da segunda pessoa da Trindade. Depois fugiu para o sol
No céu era tudo falso, tudo em desacordo E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Com flores e ároores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério Hoje vive na minha aldeia comigo.
E de vez em quando de se tornar outra vez homem É uma criança bonita de riso e natural.
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer Limpa o nariz ao braço direito,
Com uma coroa toda à roda de espinhos Chapinha nas poças de água,
E os pés espetados por prego com cabeça, Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações. Atira pedras aos burros,
Nem sequer o deixavam terpai e màe Rouba a fruta dos pomares
Como as outras crianças. Efoge a chorar e a gritar dos cães.
O seu pai era duas pessoas - E, porque sabe que elas não gostam <(
Um velho chamado José, que era carpinteiro, E que toda a gente acha graça, o
(/)
E que não era pai dele; Corre atrás das raparigas (/)
E o outro pai era uma pomba estúpida, Que vão em ranchos pelas estradas w
A única pomba feia do mundo
a..
Com as bilhas às cabeças
Porque não era do mundo nem era pomba. E levanta-lhes as saias. o
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
o
z
A mim ensinou-me tudo. <(
Não era mulher: era uma mala Ensinou-me o olharpara as causas, z
Em que ele tinha vindo do céu. Aponta-me todas as causas que há nas flores. a:
w
E queriam que ele, que só nascera da mãe, Mostra-me como as pedras são engraçadas u.
E nunca tivera pai para amar com respeito, Quando a gente as tem na mão -
Pregasse a bondade e a justiça! E olha devagar para elas.
99
Diz-me muito mal de Deus. E a criança tão humana que é divina
Diz que ele é um velho estúpido e doente, É esta minha quotidiana vida de poeta,
Sempre a escarrar no chão E é porque ele anda sempre comigo que eu sou
E a dizer indecências. poeta sempre,
A virgem Maria leva as tardes da eternidade a E que o meu mínimo olhar
fazer meia. Me enche de sensação,
E o Espírito Santo coça-se com o bico E o mais pequeno som, seja do que for,
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as. Parece falar comigo.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica. (. . .)
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou - IX
"Se é que ele as criou, do que duvido " -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua Sou um guardador de rebanhos.
glória. O rebanho é os meus pensamentos
Mas os seres não cantam nada. E os meus pensamentos são todos sensações.
Se cantassem seriam cantores. Penso com os olhos e com os ouvidos
Os seres existem e mais nada, E com as mãos e os pés
E por isso se chamam seres. " E com o nariz e a boca.
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O menino Jesus adormece nos meus braços Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E eu levo-o ao colo para casa. E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor


Ele mora comigo na minha casa a meio do auteiro. Me sinto triste de gozá-lo tanto.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. E me deito ao comprido na erva,
Ele é o humano que é natural, Efecho os olhos quentes,
Ele é o divino que sorri e que brinca . Sinto todo o meu cotpo deitado na realidade,
E por isso é que eu sei com toda a certeza Sei a verdade e sou feliz.
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

Observe, nestes dois trechos de O guardador de rebanhos, a linguagem coloquial de Alberto


Caeiro, muitas vezes próxima da prosa, algumas vezes muito rítmica. Observe a negação radical das
metafisicas, das transcendências, a radical opção pela natureza, pelo que é natural. No primeiro
texto, a criança é divina porque é humana e natural e, assim, é muito mais verdadeira. No segun­
do, observe a identificação do ato de pensar com as sensações tísicas, com a relação corpo-a­
corpo com o mundo. Um sadio empirismo que reconhece a verdade na natureza e se acha feliz.

RICARDO REIS

1. 3.
Para ser grande, sê inteiro: nada já sobre a fronte não se me acinzenta
Teu exagera, ou exclui, O cabelo do jovem que perdi.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és Meus olhos brilham menos.
No mínimo que fazes. já não tem jus a beijos minha boca.
Assim em cada lago a lua toda Se me ainda amas, por amor não ames:
Brilha, porque alta vive. Traíras-me comigo.
<t
o 2. 4.

�z Tão cedo passa tudo quanto passa!


Morre tão jovem ante os deuses quanto
Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele, reservemos
w Morre! Tudo é tão pouco! Um pensamento, não para o futuro
� Nada se sabe, tudo se imagina. Primavera, que é de outrem,
o
u Circunda-te de rosas, ama, bebe Nem para o estilo, de quem somos mortos,
<t E cala. O mais é nada. Senão para o que fica do que passa -
a: O amarelo atual que as folhas vivem
::> E as torna diferentes.
�a:
w Observe o vocabulário erudito, a sintaxe de sabor clássico, a referência aos deuses e ao desti­
1-
::::i no. Observe também o tema da passagem do tempo, da transitoriedade da vida, da necessidade de
- viver o aqui-agora, sem ilusões e serenamente. Repare, ainda, na atitude epicurista: buscar sere­
namente o prazer possível.
100
ÁLVARO DE CAMPOS
Ode triunfal
(fragmento)
À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
.
' , ·• •1' · · · liknivo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
:• " Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, é engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Fotte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de petto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Observe em Ode triunfal o fluxo das idéias, o vigor do verso livre (sem rima e sem métrica
regular), a expressividade da linguagem coloquial. As referências à civilização industrial (lâmpa­
das, rodas, engrenagens etc.) e o ritmo entusiástico e eufórico da celebração da tecnologia são típi­
cos de muitas vanguardas do início do século XX, especialmente o futurismo. Observe também a
ênfase nas sensações.

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.


Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhas e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho por nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo


Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida. . .
<(
o
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana cn
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; cn
w
Que contasse, não u ma violência, mas uma cobardia/ c..
Nào, são todos o ideal, se os oiço e me falam. o
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? c
z
Ó príncipes, meus irmãos. <(
z
Arre, estou fatto de semideus! a:
w
Onde é que há gente no mundo? LL
-
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
101
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca'
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Este poema, além do verso livre, da linguagem coloquial e da estrofação irregular, apresenta outra
caracteristica estrutural da prosa moderna: a enumeração dos elementos, a listagem livre e descontí­
nua das idéias. O texto tem um tom de desabafo, de confissão, de catarse, típico de Álvaro de Campos.

FERNANDO PESSOA - ORTÔNIMO


Mar Portuguez

ó mar salgado, quanto do teu sal


São lágrimas de Portugal!
Por te cn..tzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão resaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena


Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu.
Mas nelle é que espelhou o céu.

D. Sebastião, Rei de Portugal


Louco, sim, louco, porque quiz grandeza Minha loucura, outros que me a tomem
Qual a Sorte a não dá. Com o que nella ia.
Não coube em mim minha certeza; Sem a loucura que é o homem
Porisso onde o areal está Mais que a besta sadia,
Ficou meu ser que houve, não o que ha. Cadaver addiado que procria?

Perceba a presença, em Mensagem, dos temas históricos portugueses: as conquistas maritimas


e D. Sebastião. Os dois poemas têm um tom filosófico, épico, heróico. A aventura portuguesa é
apresentada de modo transfigurado, universalizando-se. Observe a estrutura das rimas e a regula­
ridade da organização das estrofes (no primeiro, duas estrofes de seis versos; no segundo, duas
estrofes de cinco versos). Nos dois textos, verificamos a opção pela aventura e pelo sonho, pelas
utopias que engrandecem a espécie humana.

Autopsicografia Isto

O poeta é um fingidor. Dizem que finjo ou minto


Finge tão completamente Tudo que escrevo. Não.
Que chega a fingir que é dor Eu simplesmente sinto
A dor que deveras sente. Com a imaginação.
<( Não uso o coração.
Cl
�z E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem, Tudo o que sonho ou passo,
Não as duas que ele teve, O que me falha ou finda,
w
Mas só a que eles não têm. É como que um terraço

o Sobre outra coisa ainda.
u E assim nas calhas de roda Essa coisa é que é linda.
<( Gira, a entreter a razão,
a: Por isso escrevo em meio
::) Esse comboio de corda
Do que não está ao pé,
!;:
a:
Que se chama o coração.
Livre do meu enleio,
w Sério do que não é.
1- Sentir? Sinta quem lê!
::::i
-... Dois célebres metapoemas, poemas que tratam da própria poesia, que teorizam sobre o ato de

102 escrever, sobre os processos de criação, sobre as relações entre o àutor e o texto, e sobre as rela-
ções entre o texto e o leitor. Observe a métrica curta, da tradição portuguesa: redondilhas maiores,
sete sílabas. Perceba a sutileza dos raciocínios e a opção anti-sentimental.

(FUVEST) O poeta é um fingidor. (Fernando Pessoa).


11
Nunca ouviste passar o vento,
Qual a relação entre o verso acima e Poesias de Álvaro O vento só fala do vento.
Campos, Poemas de Alberto Caeiro e Odes de Ricardo O que lhe ouviste foi mentira,
Reis? E a mentira está em ti.
(Alberto Caeiro).
( U N I CAMP) O poema Falso diálogo entre Pessoa e
El Caeiro, de José Paulo Paes, remete-nos ao Poema X de O
guardador de rebanhos, de Alberto Caeiro (heterônimo de
(FUVEST)

Fernando Pessoa). Leia atentamente os dois poemas, Texto 1


transcritos a seguir, e identifique no poema de Alberto
Caeiro as falas que, segundo o poema de José Paulo Voltemos à casinha. Não serias capaz de lá entrar hoje,
Paes, poderiam ser atribuídas a Pessoa e a Caeiro, respec­ curioso leitor; envelheceu, enegreceu, apodreceu, e o
tivamente. Justifique a sua resposta. proprietário deitou-a abaixo para substituí-/a por outra,
três,. vezes maior, mas juro-te que muito menor que a
Falso Diálogo entre Pessoa e Caeiro primeira. O mundo era estreito para Alexandre; um des­
vão de telhado é o infinito para as andorinhas.
{Pessoa} - A chuva me deixa triste. . . (Machado de Assis, Memórias póstumas
{Caeirol - A mim m e deixa molhado. de Brás Cubas).
(José Paulo Paes).
Texto 2
Poema X (0 guardador de rebanho)
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha
Olá, guardador de rebanhos, aldeia.
Aí à beira da estrada, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela
Que te diz o vento que passa ? minha aldeia.
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. . .
Que é vento, e que passa, (Fernando Pes soa, Poemas de Alberto Caeiro) .
E que já passou antes,
E que passará depois. A respeito dos textos ng 1 e ng 2, explique por que:
E a ti o que te diz?
a) a nova casa era três vezes maior, rnas muito menor que
a casinha;
Muita causa mais do que isso,
b) o Tejo é mais belo e não é mais belo que o rio que corre
Fala-me de muitas outras causas.
pela aldeia.
De memórias e de saudades
E de causas que nunca foram.

<(
o
11
O verso fala do poeta como um "fingidor'', no sentido de corresponde a: a chuva me deixa triste) . Já Alberto Caeiro
que é um inventor, um fazedor de ficção, um criador; essa tem uma posição rad icalmente contrária: o SUJeito não atri­ (/)
(/)
visão tem relação direta com os heterônimos de Fernando bui à natureza idéias e sentimentos que não pertencem a w
Pessoa, que são criações dele, outros Eus, outras vozes ela (o que corresponde à: A mim me deixa molhado) . a..
poéticas que, por sua vez, criam outros poemas. Fernando o
Pessoa é um poeta criador de poetas. Os dois textos falam da relatividade das coisas, da relati­ Cl
vidade dos valores e das medidas. A primeira casa, embo­ z
<(
As falas que podem ser atribuídas a Fernando Pessoa são ra fisicamente menor, era maior, por ser a casa da memó­
z
El a primeira e a terceira estrofe: ele seria o interlocutor que
está conversando com o guardador de rebanhos, Alberto
ria, do afeto, do que foi vivido nela. No caso do rio da al­
deia, ele é mais belo do que o Tejo exatamente porque é
a:
w
Caeiro, autor das falas da segunda e quarta estrofe. o rio da minha aldeia, da minha vida, da minha vivência, da LL
Fernando Pessoa tem uma visão metafísica, subj etivista, m inha relação corporal afetiva e existencia l . -
que atribui ao vento idéias e sentimentos do sujeito (o que
103
lo MODERNISMO NO BRASIL - 1 11 FASE
Em 1 922 - ano do Centenário da Independência - ocorre, no Teatro Municipal de São
Paulo, a Semana de Arte Moderna, que foi o momento máximo do rompimento radical com o pas­
sado, com uma tradição envelhectda e esclerosada; que foi o marco fundador de um novo tempo
para as artes e a cultura brasileiras, o tempo da redescoberta das raízes nacionais à luz da moder­
nidade artística internacional.
Inaugura-se, assim, a partir de 1922, a fase heróica de nosso Modernismo, fundamentalmen­
te caracterizada pela rebeldia na ruptura com velhos modelos importados, modelos de que resulta­
ram obras cuja amenidade e cujo convencionalismo fizeram com que fossem conhecidas como
literatura "sorriso-da-sociedade".
Em vez do Parnasianismo, buscava-se uma literatura viva e próxima do quotidiano, feita com
"os olhos livres" e com a "contribuição milionária de todos os erros" (Oswald de Andrade), uma
literatura "interessada" em refletir sobre os problemas do país e em "recuperar as manifestações
culturais populares" (Mário de Andrade), sufocadas pela nossa constante submissão aos modelos
europeus.
Diante de tais propostas, como conciliar o localismo e o cosmopolitismo que parecem ser
simultâneos neste movimento?

Apresença dos "ismos europeus" em nosso primeiro Modernismo ( 1922-1 930) ocorre de
forma antropofágica, no dizer de Oswald de Andrade. Em vez da cópia, a "devoração", a assimi­
lação crítica da cultura da metrópole que agora será reinventada, recriada através da ousadia, do
experimentalismo, da vitalidade dos escritores de 22, dentre os quais os dois Andrades se desta­
cam, como fundadores e difusores da moderna literatura brasileira.

MANUEL BANDEIRA
Uma poesia de universalidade ardente e simples
"Sou bem nascido, Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
Efez de mim o que quis".

A oposição entre a natureza apaixonada que aspirava à plenitude, e o exílio em que a doença
o obrigará a viver, marcará profundamente a sua sensibilidade, traduzindo-se, no plano estrutural,
<( pelo gosto das antíteses, dos paradoxos, dos contrastes violentos; no plano emocional, por um
o movimento polar, uma oscilação constante que, no decorrer da obra, vai alternar a atitude da sere­

z
nidade melancólica e o sentimento de revolta impotente.
w (Gilda e Antônio Cândido de Mello e Souza ­
� Introdução in Estrela da vida inteira)
o
u
<(
a: PASÁRGADA: A POESIA DAS COISAS MAIS SIMPLES
:::>

a:
Quando Manuel Bandeira morreu, em outubro de 1 968, um jornal dedicou-lhe a manchete
w Bandeira, enfim, Pasárgada!, em referência ao seu mais conhecido poema - Vou-me embora pra
1- Pasárgada. Neste poema o poeta evoca a vida que poderia ter sido e que não foi, uma espécie de
:::::i
......
paraíso pessoal, lugar de sonhos e de desejos, em que ele poderia realizar as felicidades mais sim­
ples, como andar em burro bravo, subir em pau-de-sebo, andar de bicicleta, tomar banho de mar...
104
A ernnneração, nesse lugar ideal, de fantasias tão simples e despojadas já revela um
dado biográfico que se transformará em fonte de muitos ·temas da poesia de Bandeira:
a presença da morte, anunciada em plena adolescência, sob a forma de uma tuberculo­
se, doença mortal na época (início do século XX). (..)fui vivendo, morre-não-morre, e,
em 19U, o doutor Bodmer, médico-chefe do Sanatório de Clavadel, tendo-lhe eu per­
guntado quantos anos me restam de vida, me respondeu assim: o senhor tem lesões teo­
ricamente incompatíveis com a vida; no entanto, está sem bacilos, come bem, dorme
bem, não apresenta em suma nenhum sintoma alarmante. Pode viver cinco, dez, quin­
ze anos... Quem poderá dizer? Continuei esperando a morte para qualquer momento,
vivendo sempre como que provisoriamente.
(Manuel Bandeira - Itinerário de Pasárgada)

A permanente consciência da morte, a luta contra ela, a convivência com sua pre­
sença - fazedora de ausências - transformam-se poeticamente numa descoberta
essencial de vida, numa valorização intensa da existência mais cotidiana, redescoberta
como única, irrepetível, insubstituível. Não é possível separar a experiência de vida da
experiência poética no autor de Pasárgada, embora a sua poesia - de uma universali­
dade intensa, ardente e simples - não possa ser reduzida aos acontecimentos biográfi­
cos, que se revelam matrizes de imagens, de emoções, de ritmos, transfigurados na
alquimia da criação.
O crítico Alfredo Bosi, em sua História concisa da literatura brasileira, escreve:
( . .) veremos que a presença do biográfico é ainda poderosa mesmo nos livros de ins­
piração absolutamente moderna, como Libertinagem, núcleo daquele se não-me­
importismo irônico, e, no fundo, melancólico, que lhe deu uma fisionomia tão cara aos
leitores jovens desde 1930. O adolescente mal curado da tuberculose persiste no adul­
to solitário que olha de longe o carnaval da vida e de tudo faz matéria para os ritmos
livres do seu obrigado distanciamento.
A sua obra, escrita ao longo de mais de meio século, atravessa praticamente toda a
história do Modernismo no Brasil e apresenta muitos dos mais expressivos livros da
poesia moderna, como Ritmo dissoluto, Libertinagem, Estrela da manhã e outros .
... a poesia está em tudo - tanto nos amores como nos chinelos,
tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas.
Os poemas de Bandeira nascem e crescem dos acontecimentos mais cotidianos,
mais comuns, dos momentos que aparentemente são banais e insignificantes. Do dia-a­ ascido no Recife, em 1886, e morto no
N Rio, em 1 968, tendo passado a infância
dia mais desapercebido desentranha sua poesia, em que instantes da existência apare­
principalmente no Rio de Janeiro e no pró­
cem transfigurados em pura essencialidade da vida. prio Recife, Manuel Bandeira publica seu pri­
Detalhes prosaicos e perdidos na rotina descolorida dos dias revelam-se instantes meiro livro de poemas em 1 91 7 - A cinza
de iluminação, instantes de transcendência e de proximidade da essência mais profunda das horas, que será seguido por Carnaval,
- e mais simples - da vida. O grande milagre da existência, a mais cotidiana, que a em 1 91 9, em que apresenta, pela primeira
consciência da morte revelará como algo intenso, único, irrepetível.
vez, versos livres na literatura brasileira.
Conhece Mário de Andrade e os modernistas
Sua linguagem coloquial e despojada atinge alguns dos momentos mais expressi­
paulistas em 1 921 .
vos da língua: grande intensidade, grande condensação, com imensa simplicidade. Ao Não participa diretamente da Semana de
lado de Carlos Drummond, Bandeira é o grande incorporador do prosaico e do coloquial Arte Moderna de 1 922, mas o seu poema Os
na poesia brasileira moderna. sapos, paródia contundente dos parnasianos,
Trata-se de uma poética de iluminações da existência cotidiana, com a mais expres­ provoca um dos momentos de maior escân­
dalo, ao ser lido por Ronald de Carvalho, no
siva coloquialidade, e com intensa condensação de imagens e ritmos. A obra de Ban­
Teatro Municipal de São Paulo, no dia 15 de
deira lembra muitas vezes a criação poética dos haicais japoneses, em que se flagram
fevereiro: o de maior polêmica de toda a <(
a:
instantes de plenitude, de frágil e plena percepção da vida, concentrada em um detalhe Semana.
w
aparentemente banal. A partir de então, não é possível pensar a o
Ao mesmo tempo, em unidade indissociável, a obra de Bandeira representa a mais poesia moderna no Brasil sem a presença de z
longa convivência com a morte, de toda a poesia brasileira. Sem ser dominado pelo Bandeira, que atravessará todas as chama­ <(
das fases do Modernismo, com uma produ­ Ol
desespero, sem ser possuído pelo medo, sem dramatizações retóricas. Com amadureci­ ....1
ção poética do mais alto nível. Já na fase w
heróica, de 1 922. em que a ruptura com o
da amargura. Com ironia e auto-ironia, melancólicas. Com sofrida serenidade. Com
:::>
nostalgia da vida que poderia ter sido e que não foi e nem será. passado e com as estruturas estabelecidas z
Até mesmo com ternura pela morte, companhia constante de muitos anos, interlo­ era a mais vital palavra de ordem, Mário de <(
cutora secreta que, paradoxalmente, revela o valor absoluto de cada dia, de cada pessoa, Andrade chamava o poeta de S. João :2
Batista da Modernismo, reconhecendo o seu -
de cada coisa. A sabedoria da morte - quando se descobre que não apenas os outros
papel de anunciador da nova poesia. o
morrem - transformou-se, como em muitas correntes filosóficas, em sabedoria da
105
vida. A importância da existência, de cada um: simples, essencial, passageira. Milagre. E a morte,
também milagre.
Bandeira é poeta da mais intensa ternura. De ardor temo e intenso pela vida. Uma sensibilida­
de moderna, não grandiloqüente. Ternura melancólica pela inf'ancia perdida, e por seus persona­
gens. Ternura ardente pelo corpo. A sua poesia amorosa revela-se como ardente lírica erótica.
Poesia do corpo, de grande intensidade. Os corpos se entendem, as almas não. Imagens eróticas
que se tomam experiências sagradas, transcendentalizadas, tal a naturalidade, o ardor e a intensi­
dade da ternura. O fisico se funde com o onírico, tema e desconcertantemente.
Além disso, revela-se um dos mais versáteis e flexíveis fazedores de versos do Modernismo
brasileiro. Suas estruturas de métrica e de ritmo vão desde as mais libertárias experiências de
verso livre, dos fluxos mais soltos e irregulares até as estruturas mais tradicionais, de versos em
redondilhas da lírica medieval, de versos decassílabos clássicos e neo-clássicos e outros combi­
nados com variadas formas fixas de estrófica regular, com sonetos, canções etc. Um fazedor de
versos e de estrofes extremamente versátil, com raro domínio técnico e com grande erudição,
capaz de traduzir de várias línguas e de escrever à moda de, imitando estilos os mais diversos, de
época e autores.
Manuel Bandeira é também um expressivo criador de imagens, com igual e desconcertante
simplicidade. Nas constelações de imagens dos seus poemas percebemos um movimento oposto e
complementar: por um lado, o cotidiano aparece transfigurado, instante de iluminação, com aura
de símbolo transcendente, e, por outro lado, o desconhecido, o misterioso, o onírico aparecem con­
figurados familiarmente, tomados próximos e confidentes, tomados íntimos do dia-a-dia.
Morto há mais de trinta anos, Bandeira continua se revelando como o mais simples e mais des­
pojado dos poetas do Modernismo brasileiro, como o poeta capaz de simplicidade mais essencial
e mais expressiva.

ANTOLOGIA COMENTADA

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.


A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:


- Diga trinta e três.
- Trinta e três . . . trinta e três. . . trinta e três . . .
- Respire.

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.


- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Um dos mais conhecidos textos de Bandeira e de todo o Modernismo. O tema é claramente


autobiográfico. Observe o tom coloquial e irônico, quebrado por uma frase-síntese de grande
intensidade (segundo verso) e pelo final inesperado, desconcertante, do humor absurdo diante da
morte sem remédio, final típico de poema-piada característico da poesia moderna.

Poética

Estou farto do lirismo comedido


Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com o livro de ponto
expediente protocolo e manifestações de apreço ao
sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no


dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo na morador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo

De resto não é lirismo


Será contabilidade tabela de co-senos secretário do
amante exemplar com cem modelos de cartas e as
diferentes maneiras de agradar às mulheres etc.

Quero antes o lirismo dos loucos


O lirismo dos bêbados
O lirismo dificil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Este texto equivale a um manifesto modernista. Metapoema, poesia que fala de poesia.
Observe que ele apresenta negações e rupturas - contra as convenções que desfiguram a criação
poética, em especial as do academicismo parnasiano - e apresenta, por outro lado, afirmações
libertárias típicas da luta modernista (particularmente no final do poema). Observe o último verso,
frase-síntese, verdadeiro slogan do momento heróico do Modernismo.

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo


Lá sou amigo do rei É outra civilização
Lá tenho a mulher que eu quero Tem um processo seguro
Na cama que escolherei De impedir a concepção
Vou-me embora pra Pasárgada Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Vou-me embora pra Pasárgada Tem prostitutas bonitas
Aqui eu não sou feliz Para a gente namorar
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente E quando eu estiver mais triste
Que Joana a Louca de Espanha Mas triste de não ter jeito
Rainha e falsa demente Quando de noite me der
Vem a ser contraparente Vontade de me matar
Da nora que nunca tive - Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
E como farei ginástica Na cama que escolherei
Andarei de bicicleta Vou-me embora pra Pasárgada . . .
Montarei em burro bravo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Texto-síntese da poesia de Bandeira, tanto de sua linguagem como de sua temática da vida que
<(
podia ter sido, que precisava ter sido - e que não foi. Observe a enumeração livre dos elementos a:
que compõem Pasárgada - lugar ideal, lugar de sonhos, lugar de desejos, onde a vida é o que w
o
deveria ser. Na segunda estrofe, observe a enumeração caótica, sem seqüência lógica, dos elemen­ z
tos. Observe também a extrema simplicidade da linguagem, junto da mais intensa expressividade. <(
m
...J
Estrela da manhã w
::>
z
Eu quero a estrela da manhã Ela desapareceu ia nua <(
Onde está a estrela da manhã? Desapareceu com quem? �
Meus amigos meus inimigos Procurem por toda parte -
Procurem a estrela da manhã
101
Digam que sou um homem sem orgulho Com os gregos e com os troianos
Um homem que aceita tudo Com o padre e com o sacristão
Que me importa? Com o leproso de Pouso Alto
Eu quero a estrela da manhã

Três dias e três noites Depois comigo


Fui assassino e suicida Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
Ladrão, pulha, falsário Comerei terra e direi coisas
Virgem mal-sexuada [de uma ternura tão simples
Atribuladora dos aflitos Que tu deifalecerás
Girafa de duas cabeças
Procurem por toda parte
Pecai por todos pecai com todos
Pura ou degradada até a última baixeza
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos Eu quero a estrela da manhã.
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras

Outro texto-síntese, um dos mais expressivos poemas lírico-amorosos de todo o Modernismo.


Observe a celebração da mulher amada, evocada na metáfora estrela; a enumeração caótica das
imagens; o desconcerto amoroso. Na quinta e sexta estrofes, uma espécie de ladainha celebra a
amada, faz sua invocação (na verdade, é uma paródia da ladainha para a Virgem Maria, que acom­
panhava a reza do terço: consoladora dos aflitos! Rogai por nós etc). Observe a intensidade - até
o delírio - da confissão amorosa nas duas últimas estrofes.

Arte de amar
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma,
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satíifação,
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.


Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

Poema filosófico, fundamentador da lírica erótica, intensamente corporal, de Manuel Bandei­


ra. Observe a ruptura do senso comum, das concepções espiritualizantes e platônicas do amor. O
texto de natureza dissertativa, com ponto de vista e processo de argumentação, é também radical­
mente poético, pela força das imagens e dos ritmos. O texto é dirigido para alguém, para um inter­
locutor, que acaba se transformando no próprio leitor.

Consoada
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
<t: (A noite com os seus sortilégios.)
o Encontrará lavrado o campo, a casa limpa.
�z
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
w
.� Um dos mais conhecidos poemas com o tema da morte. Observe o tom sereno, familiar, cama­
o
u rada. Consoada, a ceia de fim de ano, no texto representa encontro simbólico com a morte. O poema
<t: apresenta um balanço do vivido, sem ilusões quanto à própria finitude, e não se desfigura diante da
0:: presença indesejada pelas gentes. O dia foi bom, com cada coisa em seu lugar. Observe também,
:::>

0::
tal como nos outros textos, a linguagem coloquial, a estrófica irregular, heterogênea, o verso livre.

w
1-
.-J
-

108
11 El seguinte:
Identifique o processo de composição que Bandeira Aponte características do Modernismo no poema
utilizou para arquitetar este poema:

Antologia Poema do beco

A vida Que importa a paisagem, a glória, a baía, a


linha do horizonte ?
Com cada coisa em seu lugar.
- O que vejo é o beco.
Não vale a pena e a dor de ser vivida.
Os corpos se entendem mas as almas não.
(UN ICAMP) Leia atentamente as três estrofes abai­
A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
xo. Explique o sentido dos verbos adormeci (primei­
Vou-me embora pra Pasárgada! ra estrofe) e dormindo (terceira estrofe) . Identifique
Aqui eu não sou feliz. no poema os elementos que permitem atribuir um
Quero esquecer tudo: sentido diferente a esses verbos.
- A dor de ser homem. . .

Este anseio infinito e vão Profundamente


1.
De possuir o que me possui.

Quero descansar Quando eu tinha seis anos


Humildemente pensando na vida e nas mulhe- Não pude ver o fim da festa de São João
res que amei. . . Porque adormeci
Na vida inteira que podia ter s1do e que não foi.
2.
Quero descansar.
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Morrer.
Minha avó
Morrer de corpo e de alma.
Meu avô
Completamente.
Totônio Rodrigues
(Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá
Tomásia
lições de partir.)
Rosa
Quando a Indesejada das gentes chegar Onde estão todos eles?
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta, 3.
Com cada coisa em seu lugar. - Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente
(Manuel Bandeira)

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�-- � ��,, ç· ·.,
�-� <(
a:
w
11 Trata-se do processo conhecido como colagem, que
é uma j ustaposição de elementos já existentes, rea­
Na primeira estrofe, adormeci está em sentido literal,
denotativo, significando dormir mesmo. Na terceira
o
z
grupados em um novo contexto. Neste poema, estrofe, dormindo está em sentido figurado, conotati­ <(
Bandeira realizou uma colagem de fragmentos de vo, corno metáfora da morte. Observe que, no primei­ CC
outros poemas seus. ro caso, o poeta dorme numa festa, aos seis anos. No ..J
segundo caso, muito tempo já se passou ( Hoje não w
:J
1:11 Trata-se de um típico micro-poema, ou poema-pílula, ouço mais as vozes daquele tempo) e todas as vozes
z
(ii1il ou ainda poema-minuto. Texto extremamente con­ e as personagens da infância já estão mortas. Este é <(
densado, sintético, com o menor número possível de um dos temas arquetípicos da poesia de Bandeira: a �
-
palavras. Além disso, são também características ternura nostálgica pela infância e por suas persona­
modernistas o verso livre - sem rima e sem métri­ gens.
ca - e a linguagem coloquial. 109
,

MARIO DE ANDRADE
"Eu tenho paixão por pensar.
Mas não tenho medo de que isso me
prejudique porque tenho mais
paixão pela vida".

CONTOS NOVOS
Obra-síntese que reúne as conquistas modernistas de 22 e os
elementos responsáveis pela maturidade literária de Mário de
Andrade

A maturidade artística de Mário de Andrade, no campo da ficção literária, culmina


com os Contos novos, obra publicada postumamente em 1947. Como o autorfez ques­
tão de anotar no final de cada narrativa, o livro é fruto de um minucioso processo de
elaboração artesanal que compreende várias versões de um mesmo texto e se estende
por períodos de tempo que vão de quatro até dezoito anos de preparação... Este é o
caso de Frederico Paciência, cuja gestação criativa evoluiu de 1924 até 1942.
Maria Cecília de Almeida Paulillo
Contos da plenitude, em (;_ontos novos

Narrador

A paixão por pensar, em consonância com a paixão pela vida, redescoberta através
da memória e da imaginação, constituem os traços mais marcantes da vida e da obra de
Mário de Andrade, exemplarmente encontrados nestes Contos novos.
Escritos a partir de 1 924, reescritos ao longo de até dezoito anos de depuração artís­
tica, os Contos dividem-se, do ponto de vista de seu foco narrativo, em dois tipos: os
narrados em primeira pessoa, de caráter memorialista, e os narrados em terceira pes­
soa, nos quais a voz do narrador onisciente confunde-se com a voz dos personagens.

Em ambos os tipos, há uma aproximação entre narrador e personagem, tanto pela


adesão do adulto aos momentos do passado recriados através do personagem-nar­
rador, protagonista dos contos em primeira pessoa, quanto pela adesão do narrador aos
protagonistas dos contos em terceira pessoa.
Tal aproximação e/ou adesão do narrador aos personagens é percebida, nos dois
tipos de contos, por um recurso narrativo extremamente moderno a que chamamos de
discurso indireto livre.
Vamos exemplificar este procedimento, a fim de compreendê-lo melhor:
Se esperavam "grandes motins" em Paris, deu uma raiva tal no 35. E ele ficou
todofremente, quase sem respirar, desejando "motins " (devia ser turumbamba) na
sua desmesurada força física, ah, asfuças de algum . . . polícia? polícia. Pelo menos
aulistano (1 893-1945), Mário Raul de
<( PMorais Andrade, muitas vezes chama-
os safados dos polícias.
O do de "pai" ou "papa" do Modernismo. é (Primeiro de maio)

Z
� considerado o espírito mais vasto, mais culto
e mais versátil deste movimento no Brasil, a Sem censura aparente, perguntou aos camaradas se ainda não tinham ido
w personalidade de maior influência. pela sua trabalhar.
� obra (que abrange praticamente todos os Os camaradas responderam que já tinham sim, mas que com aquele tempo
8 gêneros), pela sua atuação política e huma- quem agüentava .permanecer dentro do poço continuando a perfuração!
<( na. pelo engajamento de sua vida, em busca (O Poço)
a: permanente de um mapeamento poético I Observe no primeiro exemplo a transposição direta da fala interior, isto é, dos
::> cultural I ideológico I lingüístico do país.
pensamentos do 35 - protagonista do conto Primeiro de maio - que se confunde
!;i:
A escrava que não é lsaura e o Prefácio
a: interessantíssimo (ensaios). Paulicéia des- com a fala inicial do narrador. No segundo exemplo, as características do discurso
vairada (poesia), Contos novos, Macunaíma indireto se preservam - os camaradas respondiam que já tinham (verbo declarativo
� e Amar verbo intransitivo (romances) são + conjugação integrante) - embora a elas se acrescentem as expressões de oralidade
:::i
algumas obras fundamentais, dentre as -já tinham sim; quem agüentava permanecer. . . - normalmente presentes no dis­
-
centenas que escreveu. 0 curso direto.
110
Assim, há um enriquecimento expressivo que vem do .tom de naturalidade conseguido, dentre
outros recursos, pelo discurso indireto livre. Nos contos em primeira pessoa o mesmo enriqueci­
mento pode ser percebido - além do discurso indireto livre - pela intersecção entre presente
e passado: a voz do adulto que conta e reflete sobre a história e a voz do menino, do adolescente,
do jovem que a vive, como veremos no exemplo abaixo:

Frederico Paciência estava maravilhoso, sujo do futebol, suado, corado, derramando


vida. Me olhou com uma ternura sorridente. Talvez houvesse, havia um pouco de piedade.
(Frederico Paciência)

Fui abraçando os livros de mansinho, acariciei-os junto ao rosto, pousei a minha boca
numa capa, suja de pó suado, retirei a boca sem desgosto. Naquele instante não sabia, hoje
sei: era o segundo beijo que eu dava em Maria, último beijo, beijo de despedida, que o cheiro
desagradável do papelão confirmou. Estava tudo acabado entre nós dois.
(Vestida de preto)

No trecho de Frederico Paciência, fica extremamente clara a interpenetração entre o passado


da história vivida - Talvez houvesse - e o presente da história contada - havia um pouco de
piedade.
A emoção da experiência afetiva conjuga-se assim com a compreensão racional de seu signi­
ficado, como também ocorre no fragmento de Vestida de preto, em que à descrição sensual, do
beijo, sucede a revelação madura de que fora o último...
O narrador, assim, revive a emoção, a enorme sensibilidade de momentos profundamente
especiais e marcantes, e ao mesmo tempo é capaz de refletir sobre eles, de percebê-los de forma
lúcida e nem por isso menos apaixonada.
Em suma, o raro equilíbrio entre emoção e razão, entre fruição da memória e lucidez no seu
desvendamento, é um dos principais motivos da preciosidade literária e humana dos Contos novos,
obra que representa tanto o experimentalismo da fase heróica de nossa primeira geração moder­
nista quanto o amadurecimento, o adensamento crítico da Geração de 30.

Enredo

Há um total de nove contos no livro, quatro em primeira pessoa, de caráter memorialista, com
fortes elementos autobiográficos, e cinco em terceira pessoa.
Para facilitar o nosso trabalho, vamos reuni-los em dois grupos, de acordo com a diferença de
foco narrativo mencionada, e apresentando o sumário de seu enredo.

Contos em primeira pessoa

Tempo da camisolinha (inf'ancia). Aos três anos de idade, quando ainda vestia camisolinhas
como as meninas, o personagem-narrador tem os cabelos cortados por ordem paterna. Sofre com
esta violência um trauma que no entanto é compensado pelas três estrelas-do-mar - estrelas da
"boa sorte" - que ganha de pescadores em Santos, onde passava férias com a família. Um velho
operário sofrido e sem sorte, a quem se sente obrigado a dar a maior das estrelas, vem de novo fus­
trá-lo numa descoberta dolorida e difícil da existência da dor e da necessidade de solidariedade
humana.
Vestida de preto (infância - adolescência - juventude). Aos dez anos, Juca vive um momen­
to de grande pureza, emoção e pavor. Este momento ocorre durante uma brincadeira "de família",
quando beija o primeiro amor de sua vida - a prima Maria - sendo ambos interrompidos pela
w
malícia da tia velha, que destrói a ingenuidade da cena. Após tal acontecimento, Maria afasta-se Cl
de Juca que, já adolescente e mau estudante, é insultado por este motivo pela menina, dando por <(
encerrado o amor entre eles. a:
o
Na juventude, o destino de ambos se inverte: Maria toma-se namoradeira e irresponsável, e z
acaba por se casar com um diplomata. Juca passa de "caso perdido" a intelectual, poeta e confe­ <(
w
rencista. A revelação acidental da mãe de Maria de que esta sempre o amara causa-lhe a terceira o
grande emoção deste conto: ele então a procura e a encontra vestida de preto, sem conseguir,
o
entretanto, dizer-lhe o quanto a queria bem e a desejava. a:
Frederico Paciência (adolescência). Este conto narra a história de uma amizade ambígua, ·<(
misto de pureza e de impureza, entre o personagem-narrador e Frederico Paciência, companheiro :rE
de ginásio, que lhe desperta sucessivamente simpatia, admiração, inveja, vontade de imitar e sen­ -
sualidade. Através do desenvolvimento do enredo, vamos percebendo que a perfeição moral e fisi- 111
ca de Frederico Paciência, a sua "pureza", deixam de servir como modelo ao protagonista. Este,
após episódios de proximidade física e espiritual com Frederico Paciência, opta pela própria
imperfeição, pela própria impureza, individualizando-se e acabando por se distanciar do amigo.
O peru de natal (juventude). O pai, em todos os contos memorialistas, é descrito como uma
personalidade autoritária, incapaz de manifestar carinho e escravizado pelo trabalho. Neste conto,
que ocorre alguns meses após a sua morte, o pai aparece como um "desmancha-prazeres". O pro­
tagonista, tachado de "louco" pela família, resolve aproveitar-se da fama e promover uma grande
ceia de Natal, com peru e cerveja, apesar da recente morte do pai.
Durante a ceia, quando especialmente a mãe e a tia solteirona comem numa abundância des­
conhecida por ambas, e também pelos filhos sempre reprimidos nas manifestações de alegria, o
momento de plenitude familiar é posto em risco através da lembrança do defunto. O protagonista,
então, enfrenta e vence a luta entre o peru e o fantasma do pai, hipocritamente referindo-se ao pra­
zer que este sentiria se pudesse testemunhar a felicidade de todos naquele Natal. . . Consegue,
assim, recuperar o clima benéfico e de comunhão que minuciosamente preparara, por amor à mãe,
à tia, e à irmã: seus três "anjos da guarda".

Comentário

Os temas desenvolvidos nestes contos percorrem a existência de Juca, o personagem-narrador,


que em muitos momentos se confunde com a existência de Mário de Andrade, o que percebemos
por informações que temos de sua vida, de suas relações familiares, seus amores etc. São temas
autobiográficos, portanto, cuj a densidade e cujo significado procuraremos analisar.
A perda da ingénuidade infantil (Tempo da camisolinha), a descoberta e a sublimação da sen­
sualidade e do erotismo ( Vestida de preto e Frederico Paciência) e a resistência contra a imagem
paterna castradora e autoritária (O peru de natal) constituem, resumidamente, alguns destes temas.
Embora diferentes e específicos no universo de cada conto, eles estão ligados entre si por consti­
tuírem momentos marcantes da trajetória humana, momentos mágicos como o do presente das três
estrelas-do-mar, que por algum tempo recupera a ingenuidade infantil (Tempo da camisolinha), o
do primeiro beijo ( Vestido de preto), o da descoberta da amizade (Frederico Paciência) e o da sen­
sação de vitória numa luta contra a opressão (O peru de natal).
Esses momentos mágicos, podemos dizer fundadores e fecundadores da poesia da autodesco­
berta e da descoberta do outro e do mundo, estão presentes em todos os contos, sendo, portanto,
um elo que os une.
A eles se atrelam, entretanto, momentos de decepção e de dor, de profunda solidão e de
duro amadurecimento, como o corte dos cabelos (Tempo da camisolinha), a interrupção do pri­
meiro beijo ( Vestida de preto) e a revelação da impureza no desenrolar de uma amizade "suspei­
ta" (Frederico Paciência).
Temos aqui o contraponto da plenitude encontrada nos primeiros momentos analisados.
Somados todos podemos perceber a alternância de amor e de dor, de comunhão e de solidão, de
ingenuidade e de malícia, que vão delineando o indivíduo, cujo processo de formação e de diálo­
go conflituoso com a sociedade parece ser a grande temática dos contos em primeira pessoa.

Contos em terceira pessoa


O ladrão. A perseguição de um suposto ladrão, que ninguém consegue enxergar, desperta um
bairro suburbano cujos tipos vão sendo revelados ao leitor, num momento extraordinário de que­
bra de rotina e de encontro entre as pessoas. Esse momento culmina com a valsa triste tocada pelo
<(
Cl violinista, que assim estréia a sua única música perante a platéia improvisada. Esta o aplaude de

z
forma efusiva antes de dissolver-se na calada da noite.

w Primeiro de maio. O 35, um operário carregador de malas, passeia pela cidade de São Paulo
� para confusa e apaixonadamente comemorar o Dia do Trabalho, primeiro de maio. Cercado de
o policiais e de colegas indiferentes, o conto narra a intensidade ingênua mas lírica dos sentimentos
u
do 35, cuja euforia transforma-se em angústia e medo, até conseguir, carregando as malas pesadas
<(
c: para um companheiro, o 22, manifestar a piedade, o amor, a fraternidade desamparada que senti­
::> ra ao longo do dia. . .
�c: Atrás da catedral de Ruão. Mademoiselle é uma professora de francês, quarentona e virgem,
w tomada por um vendaval do mal do sexo. Preceptora de duas adolescentes, Alba e Lúcia - aban­
1-
:J donadas pelo pai e de certo modo pela mãe, infeliz e distante - Mademoiselle conversa imorali­
� dades e malícias com elas, fixando-se em suas fantasias eróticas no cenário de uma antiga história
picante: atrás da Catedral de Ruão. Intensificam-se tais fantasias até o momento em que Made-
112
rnoiselle, ao sair de urna festa, imaginariamente é perseguida por dois homens, correndo deles e ao
mesmo tempo entregando-se à volúpia de fazê-lo, atrás da Catedral. Quando chega à pensão onde
mora, dá um níquel a cada um dos supostos perseguidores, agradecendo, em francês, a boa com­
panhia que lhe fizeram...

O poço. Joaquim Prestes, fazendeiro rico, dono de três automóveis, de dez chapéus, criador de
mel e inventor da moda dos pesqueiros de beira de rio, é urna personalidade estranha, obcecada
pela idolatria da autoridade. Num dia frio, chuvoso e escuro, leva urna visita ao pesqueiro de que
é proprietário, e onde quatro operários constroem um poço. Neste contexto, pressiona os homens
a prosseguirem com o trabalho, o que é praticamente impossível pelas condições atmosféricas.
Deixa cair a caneta-tinteiro no poço, urna caneta de ouro, exigindo que os operários a resgatem.
Maltrata-os então de forma cruel e desumana, até o momento em que um dos operários - José ­
desafia sua autoridade e impede que o irmão, fraco e doente - Albino - volte a descer ao poço.
Contrariado mas impotente, o velho cede à firmeza de José, embora se vingue alguns dias
depois, xingando os operários, que reencontraram a caneta, por ela não escrever. Abre, então, a
gaveta da escrivaninha, onde há várias lapiseiras e três canetas-tinteiro, urna de ouro...

Nelson. Neste misterioso conto, um homem não nomeado, com um ar esquisito, ar antigo, que
talvez lhe viesse da roupa mal talhada, entra num bar. Enquanto toma seis chopes, sua presença
desperta a atenção de três pessoas, sentadas em outra mesa, que passam a contar histórias estra­
nhas a respeito dele. Urna, do amor que teve por urna paraguaia, a quem entregou toda a fortuna,
vinda das fazendas que possuía em Mato Grosso, e outra, da sua participação heróica na Coluna
Prestes, não se sabe de que lado, quando urna piranha comera-lhe um pedaço da mão ... Ambas as
histórias intercalam-se, acentuando, com o seu desfecho, a curiosidade dos personagens. A para­
guaia o abandona, conta Alfredo, o narrador exageradamente preocupado em criar suspense, o que
irrita os companheiros.
Diva, a garçonete do bar que também é prostituta, protege o homem da curiosidade alheia,
demonstrando-lhe respeito e admiração.
O homem se levanta, sai do bar, anda seis quarteirões e, após esperar que se dissolva um
pequeno grupo que bebe num outro bar, certifica-se de que ninguém o segue, entra em casa, e
fecha a porta atrás de si com três voltas à chave.

Comentário
Nestes cinco contos, continuam aparecendo momentos iluminadores, especiais, como a que­
bra da rotina e as manifestações de solidariedade entre as pessoas, em O ladrão; a ousadia e a fir­
meza do operário José ao enfrentar Joaquim Prestes para proteger o irmão, Albino, em O Poço; o
impulso de amor e de fraternidade do 35, em Primeiro de maio; a humanidade com que a garço­
nete priva os curiosos de informações que poderiam violentar um homem que ela mal conhece mas
por quem sente respeito, em Nelson.
Por outro lado, continuam também os contrapontos desses momentos: em O ladrão, há urna
italiana que marginaliza urna portuguesa, cuja suposta "vida fácil", devido às viagens do marido,
a transforma em vítima da maldade alheia, o que faz com que ela ironicamente vá dormir sozinha,
tendo sete homens a seus pés ... Em Primeiro de maio, os colegas do 35 ridicularizam a comemo­
ração, trabalhando indiferentes e alheios ao policiamento ostensivo na cidade. Em O poço, a obses­
são pela autoridade, o sadismo e a violência de Joaquim Prestes retomam a imagem castradora do
pai, agora o patrão, desenvolvida nos contos em primeira pessoa.
Em Atrás da catedral de Ruão, a temática da sexualidade reprimida, sublimada, presente em
Frederico Paciência e em Vestida de preto, reaparece, através das fantasias sexuais de uma mu­ w
o
lher envelhecida, puritana, extremamente solitária, que por um instante mergulha na fantasia e se <{
liberta da solidão. a:
o
Dentre os contos que ternatizam a solidão, entretanto, destaca-se Nelson, urna história cujo z
enigma não se explica, mas que mostra claramente, apenas pelo comportamento do protagonista, <{
o isolamento em que vive. w
o
O conto Nelson é o único do livro despido da adesão do narrador aos personagens, o que acen­
o
tua o mistério que o caracteriza. a:
Em geral, tanto nestes últimos contos comentados quanto nos primeiros, há urna fixação de ·<{
momentos, de breves lapsos de vida, que ora revelam a beleza, a grandeza da suspensão da medio­ �
cridade cotidiana ( Vestida de preto, O ladrão, O peru de natal, especialmente), ora revelam o -

desamparo, a prepotência, que fazem parte desta mesma mediocridade (Nelson, O poço). 113
Em Primeiro de Maio, Atrás da catedral de Ruão, Frederico Paciência e Tempo da camisa­
linha tais momentos, eufóricos e vazios, plenos e impotentes, solidários e solitários, são simultâ­
neos, na alegria e na angústia do 35, na solidão e no delírio de Mademoiselle, na pureza e na impu­
reza do Juca, na infelicidade e na dolorosa descoberta, por uma criança, de que as pessoas sofrem
e precisam de ajuda.

Personagens

Em Tempo da camisolinha, Vestida de preto, Frederico Paciência e O peru de natal (contos


em primeira pessoa), o protagonista é um único sujeito. Este sujeito ao mesmo tempo vive e conta
as histórias, redescobre o passado, conjuga imaginação e memória, e assim nos mostra sentimen­
tos e imagens possivelmente reconhecíveis em nossa trajetória humana: o ódio pelo pai autoritá­
rio; o amor desmedido pela mãe extremosa, cúmplice; o fascínio e o medo da descoberta da sexua­
lidade e ao mesmo tempo a necessidade de reprimi-la; a perda do primeiro amor; a perda de uma
amizade adolescente que parecia eterna...
A recuperação de tudo isso e a tentativa de compreensão de seu significado, transfiguradas
literariamente por Mário de Andrade, transformam-no no personagem principal destes Contos,
onde se lê por exemplo:
Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar
é conto ou não, sei que é verdade (. . .).
Quem falou que este mundo é ruim! Só recordar. . . (. . .) .
Sou falsamente um solitário. Quatro amores me acompanham, cuidam de mim, vêm con­
versar comigo.

Estes trechos significativamente pertencem a Vestida de preto, o conto que inicia o livro e no
qual se passa o período mais abrangente da vida do personagem-narrador (inf'ancia - adoles­
cência - juventude), cujos fatores marcantes se confundem com os ocorridos com Mário de
Andrade, autor, narrador e personagem, simultaneamente. Em O ladrão, Primeiro de maio, Atrás
da catedral de Ruão, O poço e Nelson, os personagens são os operários (O ladrão, Primeiro de
maio), as pessoas obsessivamente dominadoras (O poço), as mulheres solitárias, sexualmente
reprimidas (Atrás da catedral de Ruão) e os marginalizados, os incompreendidos pela sociedade
(Nelson). Com exceção deste último conto, todos os personagens mencionados são desvendados
em sua interioridade, em seus sentimentos e pensamentos mais íntimos, pelo narrador onisciente.
Este narrador, como vimos, utiliza-se do discurso indireto livre, do fluxo da consciência, do
monólogo interior, para revelar com extrema densidade, com extrema penetração psicológica, o
universo subjetivo de cada personagem, o que afasta o livro da caricatura, do traço grosseiro, e o
aproxima intensamente da sutileza do comportamento do homem, seja o operário brasileiro de
Primeiro de maio, seja o fazendeiro rico, também brasileiro, de O poço, seja o ser humano univer­
sal, presente nestes e em todos os outros contos.

Linguagem

Vamos conhecer a opinião de Maria Célia de Almeida Paulillo sobre a linguagem de Contos
novos, no contexto da geração Modernista de 22, da qual o livro se aproxima neste aspecto.

O vocabulário, a sintaxe e sobretudo o ritmo da tala brasileira são matéria-prima incorporada e trabalhada
<{ nos diálogos dos personagens e na tala do narrador.
o

z
Na procura da cadência da língua falada, o autor lcmça mão de recurso muito caro aos modernistas, o
emprego de uma pontuação de ordem emotiva, qucmdo o ponto de interrogação, o ponto de exclamação
w e as reticências são associados: "Quem falou que este mundo é ruim! só recordar. . . Beijei Maria, rapazesr
� (Vestida de preto). 'Até o padeirinho da tarde, que tinha só . . . quinze? dezesseis emas? entrava" (0 ladrão).
o
u Aliás a pontuação desempenha papel importem te na captação daquele ritmo quebrado, próprio da
<{ linguagem oral. Assim é qucmdo o narrador se auto-interrompe, se auto-corrige, se auto-confirma, tato
a:
:::> estilístico que ocorre com mais freqüência nos contos conduzidos em primeira pessoa: "as estrelas me

a:
salvavam, davam nela, machucavam muito ela, isto é. . . muito eu não queria não" (Tempo da
camisolinha); "Fui heróico, cmtes: fui artistar (Frederico Paciência).
w
1- Maria Célia de Almeida Paulillo
....J
Contos da plenitude, em Contos novos,
-
Mário de Andrade
114
As expressões que indicam oralidade, como Bom, principiou-se a comer em silêncio (O peru
de natal), as expressões fáticas, isto é, que mantêm viva a comunicação com o leitor, como Ofhem,
eu sei que a gente exagera em amor ( Vestida de preto), a colocação do pronome oblíquo no iní­
cio da frase - Me deu de sopetão uma ternura imensa (O peru de natal) a pesquisa de pala­
-

vras e de expressões da fala brasileira ("assuntou, macota, uma feita" etc), constituem mais
alguns elementos lingüísticos presentes neste livro.
Tais elementos indicam a permanência do teor "brasileiro" da linguagem de Mário de Andrade
em Contos novos, repletos também de momentos metalingüísticos, isto é, de desvendamento do
processo narrativo durante a narração, preciosos nos primeiros modernistas, como na literatura
modernista em geral.

11 ( U NICAMP) No conto O peru de natal, de Mário de Andrade,


o narrador afirma. a uma certa altura, durante o almoço em
b) como se explica sua identificação com " uma negra dispo­
nível " ?
que todos se deliciavam: Principiou uma luta baixa entre o
peru e o vulto do papai. Explique por que o narrador faz essa E m Primeiro de maio, de Mário de Andrade, há uma referên­
afirmação. I cia explícita a um momento político muito importante na
História do Brasil . De que momento se trata e como este
( U N ICAMP) Foi lá no fundo do jardim campear banco escon­ momento se relaciona com o 35, protagonista do conto?
dido. Já passavam negras disponíveis por ali. E o 35 teve
uma idéia muito não pensada, recusada, de que ele também Em Contos novos, de Mário de Andrade, a prima Maria de
estava uma espécie de negra disponível, assim.
a) no conto Primeiro de maio, de Mário de Andrade, o perso­
I nome, possuem elementos
Vestida de preto
e Frederico Paciência,
do conto do mesmo
comuns em seu significado para
nagem central quer comemorar o feriado, mas seus pas­ a vida do narrador. Que elementos são estes e que função
sos o levam sempre para a Estação da Luz. Explique por exercem no contexto geral da obra?
quê.

11 deu
O narrador faz esta afirmação devido ao contexto em que se
a ceia de Natal. Morto o par há a lguns meses, era sua
da Luz, vagueia pela cidade de São Paulo tomado pelo dese­
jo de comemorar, de manifestar solidariedade aos seus com­
intenção proporcionar à família, especialmente à mãe, à tia panheiros. Entretanto, a euforia com que sai de casa vai se
solteirona e à irmã, uma festa de Natal com peru e cerveja, transformando em angústia e medo ao se defrontar com os
com uma alegria e uma abundância sempre impedidas pelo colegas indiferentes ou coagidos a participarem de uma
pai, um " desmancha prazeres " , no entender do narrador. " Comemoração Oficial " . A relação entre o protagonista do
Conseguiu, então, que o evento se realizasse, embora duran­ conto e o momento repressivo e autoritário da H istória do
te a refeição alguém tenha se lembrado do morto, pondo em Brasil é, portanto, intensa, embora a forma como o narrador
risco a confraternização geral. O narrador aceita e vence a desvenda os sentimentos íntimos do 35, o fluxo de sua cons­
luta baixa entre o peru e o vulto do pai, isto é, entre a pleni­ ciência confusa e liricamente em busca de fraternidade,
tude do momento e a dor da lembrança, maliciosa e hipocri­ extrapole a imagem normalmente caricata do operário e reve­
tamente dizendo a todos o quanto o pai ficaria contente se os le a imensidade de seu universo interior, humanizando-o.
visse também contentes. Com este lance político e inteligen­
te, o narrador afasta o vulto do pai e resgata o espírito de Ambos são amores profundos vividos pelo narrador, e ao
comunhão familiar. I semesmo tempo são imagens de perfeição diante das quais ele
sentia propenso à pureza, ao bem. Maria, a prima beijada
a) A Estação da Luz, local de trabalho, representa a rotina do aos dez anos, que o insulta brutalmente durante a adolescên­
fJ 35, o seu cotidiano de carregador de malas. No dia 1º de cia e que ele volta a encontrar quando adulto, ao descobrir
maio, embora tenha grande vontade de comemorar o feria­ que ela também sempre o amara, reaparece vestida de
do, o que acaba fazendo, o 35 oscila entre este desejo soli­ preto, o que realça a impureza de sua vida atual em contras-
tário e a ignorância do significado daquela data, man ifesta­ te com a pureza dos te mpos de criança. Embora sinta u m w
da pelos seus companheiros. grande desejo por ela, já casada e infeliz nas diversas rela­ o
b) A identificação com " uma negra disponível " se justifica ções que tivera, o narrador sublima esta paixão, preferindo a <(
a:
pelo sentimento de solidão, de estar "fora de lugar" do 35. lembrança da pureza a tocá-la e assim conspurcar tal lem­ o
Embora haja nele disponibilidade e adesão à possibilidade brança. z
de comemorar o dia do trabalho, estes sentimentos não Frederico Paciência , o maior amigo da época de ginásio, <(
encontram reciprocidade, o que os torna marginais, anôni­ também possui uma ingenuidade - uma ausência rija de w
mos. Daí a sua associação com o un iverso das prostitutas, segundas intenções - que faz com que o narrador sublime o
das " negras disponíveis " . a sensualidade que percebe existir entre ambos. Nos dois o
casos, há, assim, a descoberta e o sentimento da i m possibi-
Trata-se do período do Estado Novo ( 1 937-1 945), durante o lidade de realização do afeto, pela proibição moral e/ou social,
I qual ocorre um feriado internacional, o Primeiro de Maio, o que os transformam em exemplos de sublimação da sexua-
-
marcado pela repressão da polícia às manifestações dos tra­ l idade, que marcam para sempre a vida do narrador.
balhadores. O 35, um pobre carregador de malas da Estação
115
AMAR, VERBO INTRANSITIVO
Amar, verbo intransitivo é prosa experimental e metalingüística voltada
para a construção da identidade da nação e para uma abordagem da
relação amorosa, em sua intransitividade, em seus elementos complexos,
de fundo psicológico, destacando-se a especificidade da alma feminina.

O núcleo da narrativa é o idílio, a história de amor; a descoberta do amor, sua prática pelo
jovem aluno e Friiulein revisitando sua pedagogia e seu sonho, afeiçoando-se, mais do que dese­
java, a Carlos, sem esquecer, entretanto, a intransitividade do verbo amar. . .

Telê Porto Ancona Lopez, Uma dificil conjugação,


estudo introdutório de Amar, verbo intransitivo,
de Mário de Andrade

Narrador

A "lição de amor" da governanta alemã Frãulein ao jovem brasileiro Carlos constitui, nas
palavras de Telê P. A. Lopez, o núcleo narrativo do "idílio" que vamos estudar.
A utilização da palavra idílio - poesia lírica bucólica ou pastoril - para classificar a obra,
indica o seu principal aspecto: trata-se de um exemplo da prosa experimental de Mário de
Andrade, o mais expressivo líder de nossa primeira geração modernista, a geração de 22. Com
Amar, verbo intransitivo, o autor pretendia, então, colocar em prática as propostas de renovação
literária que instauram a modernidade artística brasileira.
No trabalho mencionado, a estudiosa de Mário de Andrade afirma o seguinte: "O Narrador
que capta a cena no que ela tem de essencial, freqüentemente nos faz lembrar a representação cine­
matográfica: a câmera que segue os passos, foco isento, olhando por detrás, ou foco comprometi­
do que faz às vezes dos olhos da personagem. Narrar cinematograficamente de romance moderno
combinado com reflexão literária, machadiana, metalingüística, e com a capacidade do Narrador
de se fundir às manifestações do mundo interior de seus personagens".
A afirmação lida refere-se aos dois fatores essenciais que caracterizam o Narrador, transfor­
mando-o em personagem da história. O primeiro consiste na aproximação entre literatura e
cinema, no caráter metonímico (a parte pelo todo) das cenas narradas, as quais aparecem em
"close", destacando um traço de personagem, um elemento narrativo, para que o leitor participe
ativamente da montagem do romance, como uma espécie de co-autor. O segundo conceme às
digressões metalingüísticas do Narrador, digressões que lembram o estilo de Machado de Assis,
e que nos permitem ver no Narrador um personagem, e personagem principal, não pela sua pre­
sença na intriga, ou por se confundir com aqueles que a vivem, mas porque, ao contar, o
Narrador mostra-nos como conta, exercendo, assim, a metalinguagem.
A técnica cinematográfica e a metalinguagem - a linguagem que tematiza a própria lingua­
gem - constituem, portanto, os procedimentos essencialmente modernos presentes ao longo de
todo o texto.
Através deles, o Narrador altera o foco narrativo da primeira para a terceira pessoa e vice­
versa, assume concomitantemente as posições de observador e de "onisciente", sem deixar de ana­
<t:
c lisar as motivações íntimas dos personagens, mas sem esgotá-las. Enfim, podemos afirmar que o

z
Narrador interfere de forma sistemática e pedagógica na arquitetura do processo narrativo,
para desvendá-lo ao leitor, quebrando a "ilusão romanesca" e conduzindo o mergulho na fic­
w
� ção para um outro mergulho, o mergulho no fazer ficcional.
o A paródia, ou a imitação satírica e crítica de procedimentos e aspectos que envolvem a cria­
u ção literária, associa-se aos dois fatores comentados e toma, conforme exemplificaremos, dificil
<t: mas fascinante a leitura de Amar, verbo intransitivo.
a:
::>
�a: Exemplo 1
w
1- Não vejo razão para me chamarem vaidoso si imagino que o meu livro tem neste momen­
::J to cinqüenta leitores. Comigo 51 . Ninguém duvide: esse um que lê com mais compreensão e
....... entusiasmo um escrito é autor dele. Quem cria, vê sempre uma L indóia na criatura, embora

116 as índias sejam pançudas e ramelentas.


Volto a afirmar que meu livro tem 50 leitores. Com igo 51. Não é muito não. Cinqüenta
exemplares distribuí com dedicatórias gentilíssimas . Ora dentre cinqüenta livros presenteados,
não tem exagero algum supor que 5 hão de ler o livro. Cinco leitores. Tenho, salvo omissão, 45
inimigos. Esses lerão meu livro, juro. E a lotação do bonde se completa. Pois toquemos pra ave­
nida Higienópolis.
Si este livro conta 51 leitores sucede que neste lugar da leiturajá existem 51 Elzas. É bem desa­
gradável, mas logo depois da primeira cena, cada um tinha a Fraulein dele na imaginação.
Contra isso não posso nada e teria sido indiscreto se antes de qualquerfamiliaridade com
a moça, a minucíasse em todos os seus pormenoresfísicos, não faço isso. Outro mal apareceu:
cada um criou Frdulein segundo a própria fantasia, e temos atualmente 51 heroínas pra um
só idílio.

Exemplo 2
Um dia, era uma quarta-feira. Frdulein apareceu diante de mim e se contou. O que disse
está com poucas vírgulas, vernaculização acomodatícia e ortografia. Os personagens (. . .) asse­
guro serem criaturas já feitas e que se moveram sem mim. São os personagens que escolhem os
seus autores e não estes que constróem as suas heroínas. Virgulam-nas apenas, pra que os
homens possam ter delas conhecimento suficiente.

Comentários
Repare que os exemplos retirados do romance são metalingüísticos, isto é, utilizam-se do
espaço da ficção para refletirem sobre vários aspectos "técnicos" da criação do texto.
No primeiro exemplo, as conjecturas sobre o número de leitores do livro dentro do próprio
livro, possuem um tom irônico que pode ser relacionado ao experimentalismo da prosa de Mário
de Andrade, e, conseqüentemente, às reações adversas que provoca a um público acostumado com
o tradicional. O Narrador coloca-se como Autor e em cada parágrafo do fragmento associa a iro­
nização de seus poucos leitores a um aspecto de modernidade da obra.
Assim, o parágrafo inicial refere-se à adesão do autor ao trabalho que cria - o autor como
principal leitor de si mesmo - destacando a relação criador (escritor) I criatura (personagem),
através da ridicularização dos personagens idealizados de nosso Indianismo. A figura de Lindóia
(heroína de O Uraguai, de Basílio da Gama) simboliza tais personagens, na medida em que se trata
de uma índia criada à semelhança das heroínas dos romances românticos europeus, embora as
índias sejam pançudas e ramelentas.
Já o parágrafo seguinte intensifica a questão da raridade dos leitores, que de 5 1 passam a 5,
além do próprio autor, sendo os 45 restantes identificados como os inimigos de Mário de Andrade,
a maioria que o lerá para criticá-lo ... Com essa passagem que satiriza a distância entre o texto
modernista e o tradicionalismo da critica e do público a que se destina, o Narrador-Autor, em gesto
de provocação, completa a lotação do bonde e toca pra avenida Higienópolis, quer dizer, para o
espaço onde se desenvolve o idílio, o espaço ficcional.
Neste espaço, onde esperamos pelo prosseguimento da narrativa, o que ocorre na verdade é
outra reflexão a respeito de outro fator de importância básica na criação literária: o personagem
criado no livro é recriado pelos leitores, o que o faz multiplicar-se a ponto de tomar-se um na cabe­
ça de cada leitor. De novo a ironia de Mário de Andrade entra em ação, agora em forma de justi­
ficativa quanto ao processo de construir o personagem: teria sido indiscreto se antes de qualquer
familiaridade com a moça, a minuciasse em todos os seus pormenoresjisicos...
w
A esta suposta "timidez" e à conseqüência que acarreta - 51 heroínas pra um só idílio -
o
como se fosse um mal o enriquecimento artístico dos personagens decorrentes da imaginação do <(
a:
leitor - segue-se, no exemplo 2, uma teoria vanguardista sobre a criação de personagens. Trata­ o
se da concepção de Pirandello, dramaturgo italiano, autor de Seis personagens em busca de um z
<(
autor, segundo a qual a arte tem supremacia sobre a vida, pois os seres por ela engendrados, por w
serem produtos da imaginação, são mais consistentes e verossímeis que os seres do mundo real. o
Assim, Frãulein Elza, uma criatura do universo imaginário, teria escolhido um autor, Mário de o
Andrade, a fim de que ele a "virgulasse", a "traduzisse" em linguagem artística, para que os ho­ a:
·<(
mens pudessem compreendê-la... ::2E
Em nosso estudo sobre o enredo do romance, vamos destacar passagens em que a dimensão -
cinematográfica, metonímica de sua linguagem será exemplificada. 111
Enredo
Retomando a epígrafe de nosso trabalho, encontramos em Amar, verbo intransitivo, um
núcleo narrativo que conta a história de uma "lição de amor".
O estudo do desenvolvimento do enredo desta "lição de amor" terá duas direções. Em primei­
ro lugar, procuraremos perceber como a experiência afetiva da governanta e iniciadora amorosa de
adolescentes com seu aluno Carlos revela não apenas a complexidade de sua personalidade, mas
a complexidade da relação homem-mulher, tematizada no romance.
Em segundo lugar, entrelaçaremos a temática mencionada ao sentido de confronto entre raças
- a alemã, "superior" e definida, representada por Frãulein e a brasileira, "inferior" e a se defi­
nir, representada por Carlos e sua família - fortemente explorado. De ambas as direções, verifi­
caremos, enfim, o projeto nacionalista e adimensão psicológica, os quais nos parecem consti­
tuir os traços mais significativos de Amar, verbo intransitivo.
Já comentamos que as cenas tomadas cinematograficamente e as digressões do narrador cons­
tituem os principais procedimentos literários da obra, cuja modernidade se toma patente também
através da paródia e da metalinguagem. Vejamos um trecho no qual tais procedimentos nos per­
mitem prosseguir a análise, agora centrada no enredo:
Bem diferente dos quartinhos de pensão . . . Alegre, espaçoso. Pelas duas janelas escanca­
radas entrava a serenidade rica dos jardins. O olhar torcendo para a esquerda seguia a dis­
ciplinada carreira das árvores na avenida. Em Higienópolis os bondes passam com bulha
quase grave-soberbosa, macaqueando o bem-estar dos autos particulares. É o m imetismo aris­
co e irônico das coisas ditas inanimadas. São bondes que nem badalam . Procedem como o
rico-de-repente que no chá da senhora Tal, família campineira de sangue, adquire na epider­
me do fraque a macieza dos tradicionais e cruza as mãos nas costas - que importância! ­
pra que a gente não repare na grossura dos dedos, no quadrado das unhas chatas. (. . .)
A moça, depois das cortesias trocadas com a senhora Sousa Costa e um naco de conver­
sa indiferente, subira apenas pra tirar o chapéu. Logo o criado viria chamá-la pro almoço . . .
Nenhuma faceirice por enquanto. No princípio tinha de ser simples. Simples e insexual. O
amor nasce das excelências interiores. Espirituais, pensava. O desejo depois.
Quando pronta, esperou imaginando, encostada no lavatório. Ganhava mais oito con­
tos. . . Se o estado da Alemanha melhorasse, mais um ou dois serviços e podia partir. E a casi­
nha sossegada . . . Rendimento certo, casava. . . O vulto ideal, esculpido com o pensamento de
anos, atravessou devagarinho a memória dela. Comprido magro . . . Apenas curvado pelo pro­
longamento dos estudos . . . Científicos. Muito alvo, quase transparente. . . E a mancha irregular
do sangue nas maçãs. . . Óculos sem aro . . .
Se impacientou. Quis pensar prático, e o almoço? Porque o criado não chegava? A
Senhora Sousa Costa avisara que o almoço era já. Devia de serjá. No entanto esperava jazia
uns quinze minutos, que irregularidade.
Observe que no trecho destacado o Narrador, acompanhando o olhar de Frãulein, ironiza a
condição de novos-ricos da família Sousa Costa através do contraponto entre os bondes que pas­
sam por Higienópolis e os automóveis, aos quais os primeiros macaqueiam com o mimetismo aris­
co e irônico das coisas ditas inanimadas. . . Em seguida, o Narrador compara-os com o rico-de­
repente que no chá da senhora Tal...
Após mostrar e m frases reticentes, metonímicas, metafóricas, ricas e m pausas, cortes melódi­
cos e imagens, o ambiente onde chega Frãulein - "Vila Laura", a mansão de Felisberto Sousa
Costa, criador de touros de raça, situada no bairro pouco nobre de Higienópolis - o Narrador
focaliza a heroína em seu começo (que é sempre um recomeço).
Tal focalização nos dá alguns dos traços essenciais de Frãulein, a governanta e professora de
<(
C) línguas, de boas maneiras e de amor, que, a despeito da "fraqueza" de sua profissão, sonha roman­


z
ticamente voltar a seu país e encontrar um casamento burguês: a casinha sossegada, o vulto ideal,
magro e intelectualizado . . . o rendimento certo. A essa imagem de Frãulein que representa a sua
w face alemã de "homem-do-sonho", na obra associada a Wagner, de quem tem um retrato, opõe-se
:?E subitamente, na mesma cena, a face, também alemã, de "homem-da-vida": Se impacientou. Quis
o
u pensar prático, e o almoço? Segundo o Narrador, esta última face, por sua vez associada a outro
<( retrato pertencente à heroína, o de Bismarck, prevalece sobre a primeira.
a: É pela ótica de Frãulein que germanicamente pensa prático, adapta-se com rapidez, exerce o con­
::>

a:
trole e a ordem sem vacilações, enfim, é por sua ótica de "homem-da-vida" que o Narrador vai des­
nudando as características "brasileiras" e, num sentido mais amplo, latinas, como neste exemplo:
isto
w da vida continuar igualzinha, embora nova e diversa, é um mal. Mal de alemães. O alemão não tem

::J escapadas nem imprevistas. A surpresa, o inédito da vida é pra ele uma continuidade a continuar
...... (...) Decisão: viajaremos hoje. O latino falará: viajaremos hoje! O alemão fala: viajaremos hoje.
Ponto final. Pontos de exclamação... É preciso exclamar pra que a realidade não canse...
118
Assim, Frãulein irrita-se, indigna-se, encoleriza-se com a falta de "gramática" dos costumes
da família Sousa Costa, ao mesmo tempo que se adapta. . . E por mais motivos que a "superiorida­
de racial", conforme veremos comentando o núcleo narrativo, o idílio.
Desde o início de sua relação com Carlos, o menino "machucador", que machuca as irmãs sem
querer, mas machuca, Frãulein sente que algo está diferente do habitual. Contratada por Sousa
Costa para iniciá-lo no amor, demora mais que as outras vezes a seduzir. Além disso, é concomi­
tantemente seduzida por ele.
Trinta dias depois da chegada de Frãulein, Carlos deixa de lado as irmãs - Maria Luísa, de
12 anos, Laurita, de 7 e Aldinha, de 5 - para, com seus quase dezesseis, "viver na saia" dela, até
que a professora não pôde mais consigo. Se despejou sobre o menino, com o pretexto de corrigir...
No auge d a consumação do desejo que igualava a ambos, Dona Laura percebe o interesse de
Carlos pela governanta e, sem nada saber, pede-lhe que deixe a família. Frãulein, ao constatar que
Sousa Costa não cumprira a promessa de informar a mulher sobre o seu trabalho, explode em lágri­
mas. Justifica perante ambos o ideal de amor sincero,elevado, cheio de senso prático, sem loucu­
ras, o amor como deve ser que ensina, e não a mera iniciação sexual sem o perigo de vícios - nas
palavras atrasadas e insultantes para ela de Sousa Costa, a quem, no entanto, dona Laura com­
preende muito melhor... - e ameaça ir embora.
No entanto, volta atrás, considerando o pedido sem grandes insistências de Sousa Costa, já
arrependido do acordo e temeroso de um escândalo familiar.
A paixão de Carlos e Frãulein se intensifica; ocorrem o primeiro beijo, o primeiro encontro no
quarto dela, os primeiros ciúmes de mulher, que fazem e não fazem parte da lição . . . Frãulein sofre
quando descobre não ter sido a primeira na vida de Carlos; antes disso, sofre com a maneira "desa­
finada" mas forte, "máscula" com que o menino a domina, e por fim sofre pela rapidez da evolu­
ção do amante em seus encontros noturnos.
Assim, enquanto Carlos tinha exigências risonhas, por instinto, demonstradas com despotis­
mo calmo, satisfeito, muito seguro de si (. . .) Criança ainda e desajeitado, embonecava nele o
homem latino, vocês sabem: o homem das adivinhações, Frãulein germanicamente decide substi­
tuir as reticências pelo ponto final.
Insiste, então, com Sousa Costa, que se cumpra o combinado: a violência necessária ao desfe­
cho da lição e, apesar do sacrificio da memória dela perante o menino, ao resgate da dignidade da
profissão, como que abalada e necessitada de um desejo alemão de tragédia inútil.. .
O pai de Carlos, mais por desejo de vingança do filho - propriedade dele, em amores escan­
dalosos debaixo do teto familiar - finge surpreendê-los em flagrante, demite a governanta e,
penalizado com o sofrimento do menino, conta-lhe do dinheiro que Frãulein recebera, ameaça-o
com a idéia de ela obrigá-lo a casar-se e, pior do que isso, engravidar. . .
Desta forma, exatamente de acordo com o planejado, Frãulein parte para Santos, e m busca de
outro trabalho . . . O não planejado, ininteligível para Sousa Costa, é que ela o faz chorando . . .
Embora anuncie que O livro está acabado, e embora escreva a palavra "FIM", o Narrador,
mais uma vez desconstruindo as convenções do romance, continua o relato. Primeiro mostra
Frãulein tomar posse de si mesma, recordar as citações preferidas e o seu velho sonho de amor...
Em seguida, convida o leitor a seguir Carlos mais um poucadinho... Voltemos pra avenida
Higienópolis. Eu volto.
Descreve Carlos em sua dor, em sua transformação em homem. O bom homem que tinha que
ser, honesto, forte, vulgar. Que seria mesmo sem Friiulein, só que um pouco mais tarde. É o que
ela constata, ao reencontrá-lo, num corso de carnaval, dirigindo um carro e acompanhado das
irmãs e de uma bela holandesa, com quem possivelmente se casaria. Frãulein se machuca mais
uma vez, enciumada do menino que fez homem, mas logo se consola, interrompendo a declama­
ção de versos alemães e refletindo: O mundo é tal como é. A gente deve aceitar sem revolta. Carlos
casará rico. Perfeitamente.
w
Com uma comoção materna, lembrou-se dos outros alunos e, ela que era mãe do amor, o
deixou-se amparar pelo novo discípulo, com quem não simpatizava, mas a quem ensinava, assim, <(
a:
o mais doce, mais suave dos gestos de proteção. o
z
Comentário geral sobre o enredo <(
Quanto ao primeiro enfoque deste enredo, o da "lição de amor" tematizando a relação homem­
w
o
mulher, não podemos deixar de ressaltar a complexidade de Elza, que atende profissionalmente
o
pelo nome de Frãulein (senhorita e professora, em alemão), em oposição à linearidade de Carlos, a:
o adolescente, futuro herdeiro, cujo comportamento reproduz, em essência, o do pai. ·<(
O que nele seduz Frãulein não é, então, a sensibilidade pouco ou nada especial, nem os dotes �
intelectuais medianos. Neste sentido, Carlos não coincide com o ideal burguês do amor sonhado e -

ensinado por ela. 119


O que seduz Frãulein na imagem de Carlos, e de outros adolescentes de que se aproxima
sexualmente para iniciar numa visão espiritualizada, idealizada do amor, constitui, talvez, uma das
chaves para a compreensão de sua feminilidade, e, por extensão, da relação homem-mulher tal
como é explorada no romance.
Uma frase dita por ela para defender a sua profissão - hoje a filosofia invadiu o campo do
amor - é utilizada pelo Narrador numa longa digressão que parte de uma possível acusação de
ter sido mal construída a heroína. Como quem pretende refutar tal acusação, segundo a qual
Frãulein "não concorda com ela mesma", o Narrador começa se perguntando: Mas eu só queria
saber neste mundo misturado quem concorda consigo mesmo! Somos misturas incompletas,
assustadoras incoerências, metades, três-quartos e quando muito nove-décimos. Em seguida,
passa em revista o pensamento científico-filosófico, de Platão a Freud, passando por Charles
Darwin e outros, para concluir, em letras maiúsculas: NÃO EXISTE MAIS UMA ÚNICA PESSOA
INTEIRA NESTE MUNDO E NADA MAIS SOMOS QUE DISCÓRDIA E COMPLICAÇÃO. E con­
tinua: O que chama-se vulgarmente personalidade é um complexo e não um completo. Uma per­
sonalidade concordante, milagre! Pra criar tais milagres e romance psicológico apareceu (..).
Oh! Positivistas dafantasia! Oh ficções monótonas e resultadosjá sabidos f Friiulein é senho­
rita modesta e um pouco estúpida. Não é dama nem padre de Bourget. Pois uma vez em defesa
própria afirmou: Hoje a filosofia invadiu o terreno do amor, que surpresa pra nós f Ninguém espe­
rava por isso, não é verdade? Daí uma sensação de discordância, eminentemente realista. (..)
Pois tomemos essa frase de Friiulein por uma idéia genial que ela teve. E tanto assim que produ­
ziu uma surpresa nos leitores e outra em Sousa Costa e dona Laura. De tal força que os abateu.
Estão, faz quase um minuto, mudos e parados. Sousa Costa olha o chão. Dona Laura olha o teto.
Ah! criaturas, criaturas de Deus, quão díspares sois! As Lauras olharão sempre o céu. Os
Felisbertos sempre o chão. Alma feminina ascensional... E o macho apegado às imundícies terre­
nas. Ponhamos imundícies terráqueas.
Nesta passagem-síntese da modernidade do romance, não apenas pelas críticas ao roman­
ce psicológico e ao romance naturalista, mas especialmente pela constatação da cisão do "en", da
quebra do mito da personalidade no século XX - o século da fragmentação da inteiridade do ser
- o Narrador aponta para outra cisão: a do macho, que olha para o chão, e a da remea, que olha
para o teto ...
Entre o papel materialista e dominador do macho, os Felisbertos, e o papel alienado e subli­
mador da remea, as Lauras, entre a opressão masculina que a faz sofrer e a repressão feminina que
a faz encarcerar os instintos sexuais, os desejos dionisíacos, o erotismo germanicamente vigiado
pelo "homem-da-vida", a realidade prática, Frãulein é um ser marginal, uma personalidade que
não concorda consigo própria. Isto porque, embora o Narrador a chame de senhorita modesta e
um pouco estúpida, ela na verdade o deixa perplexo em sua ambigüidade, em sua infelicidade de
saber intransitivo o verbo amar, mas de ao mesmo tempo conjugá-lo, praticá-lo, não quando sonha
o vulto ideal, a vida de casada. Frãulein transgride e reafirma as convenções sociais que dão ao
macho o poder de dominar, submetendo-se a eles enquanto ainda não estão constituídos, enquan­
to ainda representam a virilidade pura que a abate deliciosamente.
Neste sentido, o episódio do grito que dá na floresta da Tijuca, é o único momento em que a
vemos plena, em que a assistimos entregando-se à própria libido, em comunhão completa com a
natureza que a ajuda a libertar o deus encarcerado, Dionísio, o deus da embriaguês e da paixão. . .
O amor eremero e sob controle praticado por Frãulein, constitui, então, u m ato simultanea­
mente de liberação de suas fantasias mais íntimas, de seu parentesco com o primitivo, e de legiti­
<( mação do sistema que a oprime e a fere.
o

z
De acordo com tal leitura, o livro privilegiaria a mulher como ser ambíguo e complexo, em
detrimento da imagem masculina, dominadora e sumária em sua linearidade.
w Na discussão sobre os personagens do romance, acrescentamos aos comentários sobre a rela­
� ção homem-mulher, algumas colocações a respeito do outro elemento temático fundamental nele
o presente: o confronto de raças, no contexto do projeto nacionalista de Mário de Andrade.
u
<(
a:
::::> Personagens

a: O livro gira em torno de Frãulein, conforme já pudemos verificar.
w Através da "lição de amor" da governanta alemã a Carlos, o adolescente primogênito da famí­
I­ ·
� lia Sousa Costa, também existe a questão do confronto, do contraponto entre a tradição, a cultura,
....... a obediência às normas e às regras de decoro, representadas por Frãulein em sua face de "homem­
120 da-vida" e a pesquisa sobre a identidade nacional.
Conforme Telê P. A. Lopez, no estudo citado, "o caráter nacional do alemão contracena com
a 'constância cultural brasileira constatada' e ambos possuem traços positivos e traços que são
duramente criticados; o alemão é condenado porque tenta amordaçar o sublime e o brasileiro por­
que não possui consciência, conhecimento de seu modo de ser. Como os impressionistas e os
expressionistas alemães, Mário de Andrade condena a burguesia, calcando o giz no grotesco em
sua representação.

Os brasileiros - A família Sousa Costa


Sousa Costa I Dona Laura
Sousa Costa usava bigodes onde a brilhantina indiscreta suava negrores nítidos. Aliás
todo ele era um cuité de brilhantinas simbólicas, uma graxa, mônada sensitiva e cuidadoso
de sua pessoa. Não esquecia nunca o cheiro no lenço. Vinha de portugueses. Perfeitamente. E
de Camões herdara serfemeeiro irredutível.
Em tempos de calorão surgiam nos cabelos negros de dona Laura umas ondulações sus­
peitas. Usava penteados e vestidos de seda muito largos. Apenas um gesto e aqueles panos de
rendas e vidrilhos despencavam pra uma banda, afligindo a gente. Meia ma/acabada. Era
maior que o marido, era. Lhe permitia aumentar as fábricas de tecido no Brás e se dedicar
por deifastio à criação do gado caracu.
Nas noites espaçadas em que Sousa Costa se aproximava da mulher, ele tomava sempre o
cuidado de não mostrar jeitos e sabenças adquiridos lá em baixo no vale. No vale do
Anhangabaú? É. Dona Laura comprazia com prazer o marido. Com prazer? Cansada. Entre
ambos se firmara tacitamente e bem cedo uma convenção honesta: nunca jamais ele trouxe­
ra do vale um fio louro no paletó nem aromas que nãofossem pessoais. Ou então aromas cívi­
cos. Dona Laura por sua vez fingia ignorar as navegações do Pedro Álvares Cabral.
Convenção honesta se quiserem . . . Não seria talvez a precisão interior de sossego?. . . Parece que
sim. Afirmo que não. Ah! ninguém o saberá jamais!. . .

Os filhos
Enquanto as meninas brincam a única brincadeira que lhes convém - de boneca - reprodu­
zindo a imagem da mãe, Carlos era machucador. Porém não fazia por mal. Atrapalhava tudo,
nunca tinha intenção de atrapalhar coisa nenhuma. Comparado com o boi em sua sexualidade,
"com vantagem para este, que Mário considerará como símbolo da unidade nacional" (Telê P. A.
Lopez - obra citada), o "desraçado" Carlos, legítimo herdeiro da mentalidade paterna, para o
Narrador é um bocado longínquo. Isso não quer dizer falta de coração, significa somente esque­
cimento do coração, coisa muito comum nas pessoas normais. Carlos é frio? Não, porém não se
lembra de querer bem. Se basta a si mesmo e se defende das festinhas.
Apesar dos fortes traços expressionistas com que o Narrador firma o grotesco da família cató­
lica e "virtuosa", não podemos chamá-lo de maniqueísta. Há episódios, como o da viagem de trem,
na volta do Rio de Janeiro a São Paulo, em que o lirismo transcende a caricatura: neste episódio,
diante da vergonha da família, pela má educação das crianças, enquanto Frãulein se entrega à cóle­
ra e tenta "salvar" o decoro, Sousa Costa se solidariza com a menina de sete anos, Laurita, a qual
se diverte em ler as tabuletas das cidades que aparecem, lendo Mictório quando chegam a Taubaté ...

O s estrangeiros
Frãulein Elza e Tanaka
Quanto a Frãulein, já comentamos a sua divisão interior: entre Bismarck, o homem-da-vida e
Wagner, o homem-do-sonho. Entretanto, quando o "deus encarcerado", Dionísio, tende a mani­
festar-se, quando seu desejo de liberdade, de primitivismo, a toma, ela "multiplica-se nas reticên­
cias. Sua pontuação é a mesma dos latinos que condena. Com uma diferença, entretanto: eles hesi­ w
tam nas reticências de quem não sabe o que quer. Frãulein homem-da-vida e homem-do-sonho, o
<(
alienada ou não, sabe se definir, não gosta de hesitar. Em sua mente as duas facetas se conjugam, a:
se justapõem, se opõem: o ponto final e as reticências. O ponto final marcando tudo o que é prá­ o
z
tico, mesmo no sonho". (Telê P. A. Lopez - obra citada). <(
Graças a tal fidelidade ao "ponto final", Frãulein, embora na condição inferior de governanta, w
assume certa "soberania" perante a família, ocupando melhor e com mais eficiência o papel de o
mãe, seja durante a doença de Maria Luísa, seja na viagem de trem, situações em que dona Laura o
a:
perde o controle e o entrega de bom grado a ela. ·<(
Entre Frãulein e Tanaka, o criado japonês, há rivalidade pelo domínio do espaço no qual inter­ �
ferem - rivalidade que o Narrador compara em longa digressão com uma luta de tigres - mas -
há simultaneamente solidariedade: ambos são estrangeiros, ambos vivem exilados, ambos falam
121
mal dos patrões e do Brasil, mas, de acordo com o Narrador, não constituem perigo sério, pois
serão assimilados . . .

Tempo/espaço
Em certa passagem da obra, o Narrador afirma: Ahn ... ia me esquecendo que este idílio é imi­
tado do francês de Bernardin de Saint-Pierre. Do francês. De Bernardin de Saint-Pierre.
O primeiro comentário que salta aos olhos é a ironia do Narrador com relação à tradição de
cópia, e do francês, que caracteriza a literatura brasileira "passadista", contra a qual os modernis­
tas se colocam.
Entretanto, de acordo com as reflexões de Telê P. A. Lopez, há semelhanças entre Amar, verbo
intransitivo e Paulo e Virgínia, de Bemardin de Saint-Pierre.
O escritor francês constrói uma écloga, um romance pastoril, no qual ocorre uma "lição de
amor" que se constitui através da valorização do simples, do primitivo, em detrimento da realida­
de urbana.
Para fazê-lo, ele ambienta sua história numa província da França e assim se distancia tanto da
linguagem "culta", do francês castiço da cidade, quanto de seus referenciais de vida e de pensa­
mento.
No projeto de Mário de Andrade também existe a preocupação de se afastar da metrópole, no
caso a Europa, e de valorizar a especificidade da paisagem e do modo de ser brasileiros. Neste sen­
tido é que a aproximação de ambas as obras vai além da "blague" (a brincadeira) e nos auxilia a
compreender uma das significações possíveis do idílio de Mário de Andrade: além da semelhança
temática - a "lição de amor" - encontramos uma semelhança espaço-temporal.
Assim, São Paulo torna-se o cenário de um idílio que, deslocado de suas características tradi­
cionais, tematiza o "amor terno" sonhado por Frãulein - ela se imaginaregando flores, pasto­
reando os alvos gansos no prado, enfeitando os lindos cabelos com margaridinhas - o amor ...

como recuperação do primitivismo, que vivenda com os adolescentes, e o amor à terra enquanto
raiz, enquanto busca de identidade nacional.
Neste sentido, e também na criação de cenas, de quadros muitas vezes não apenas cinemato­
gráficos, mas musicais, Amar, verbo intransitivo recupera formas literárias; antigas como o idílio
e modernas, vanguardistas, como o expressionismo, não para "imitá-las". O que pretende, ao con­
trário, é "deglutir" antropofagicamente as influências cosmopolitas para recriá-las no contexto de
um novo tempo; um novo mundo, a ser redescoberto: o Brasil.

Linguagem
Durante toda a análise que realizamos, você esteve em contacto com a riqueza da linguagem
desta obra. Conheceu suas pausas musicais, seus cortes metonímicos, seus enfoques cinematográ­
ficos, suas imagens líricas e jocosas, seus aspectos paródico e metalingüístico.
Vamos, então, destacar um dos fatores já fartamente exemplificado mas ainda não comentado
da linguagem de Mário de Andrade. Trata-se do principal projeto lingüístico-literário do autor: o
de transformar a fala brasileira em linguagem artística, distinguindo-a da sintaxe e do voca­
bulário europeus e convertendo-a no mais importante elemento de identidade nacionàl.
Em carta a Manuel Bandeira, veja o que diz Mário de Andrade a respeito de Amar, verbo
<( intransitivo: "O livro é uma mistura incrível. Tem tudo lá dentro. Crítica, teoria, psicologia e até
Cl
romance: sou eu. E eu pesquisador. Pronomes oblíquos começando a frase, 'mandei ela' e coisas

z assim, não na boca de personagens, mas na minha direta pena. Fugi do sistema português. Meu
w destino é lembrar que existem mais coisas que as vistas e ouvidas por todos. Se Constlguir que se
� escreva brasileiro sem por isso ser caipira, mas sistematizando erros diários de conversação, .idio­
o
u tismos brasileiros e sobretudo psicologia brasileira, já cumpri o meu destino. Que me importa ser
<( louvado em 1 985? O que eu quero é viver a minha vida e ser louvado por mim nas noiaes wes de
a: dormir. Daí: Frãulein. Confesso-te que sou feliz" (Cartas a Manuel Bandeira Mário de
:::>
-


a:
Andrade).
Para você assimilar a riqueza vocabular, sintática e poética do "falar brasileiro" rde Mário de
w Andrade, em Amar, verbo intransitivo, faça o exercício de reler as passagens da obra ,anaJisadas,
1-
::J reparando neste aspecto de sua linguagem. Assim você vai descobrir sozinho que, como diz ironi­
....... camente o Narrador em algumas passagens do livro, a dificuldade é menor do qlle pa1rece... Não
122 apenas na "lição de amor", mas também na "lição da grande obra de arte".
11 Leia com atenção o fragmento abaixo, retirado de Amar,
verbo intransitivo de Mário de Andrade: El
Ao longo de Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade,
ocorre uma " lição de amor " . Que significado esta lição pos­
Aqui devem se trocar naturalmente umas primeiras fra­ sui:
ses de explicação - se ele der espaço para tanto entre a) Para Carlos;
os dois ! - porém obedeço a várias razões que obrigam­ b) Para Friiulein.
me a não contar a cena do quarto. Mas como nos será
impossível dormir, ao leitor e a mim, ambos naquela tor­ Relacione a profissão de Frãulein, e as sign ificações que pos­
cida pelo triunfo de Carlos, vamos passar este resto de sui em sua vida, com o título do romance de que é protago­
noite resolvendo uma questão pançuda. . . nista: Amar, verbo intransitivo.
Agora, responda às questões propostas:
Por que Mário de Andrade classifica como um idílio o seu ro­
a) A que cena o narrador se refere e por que ele se recusa a mance Amar, verbo intransitivo ?
contá-la?
b) Que elementos do fragmento demonstram a modernidade
do foco narrativo da obra? Por quê?
c) Como você responderia a pergunta do narrador sobre as
relações entre os personagens mencionados?

11 a) O narrador refere-se à cena da primeira relação sexual


entre Frãulein e Carlos e, embora não explique as razões
b) Para Friiulein, a " lição de amor" com Carlos foi diferente
das outras, pois ela se e nvolve afetivamente com o meni­
de não contá-la, podemos concluir que age desta forma no, sente-se subjugada por sua masculinidade desajeitada,
por privilegiar a sugestão de uma cena, em vez de relatá­ mas forte, enfim, " perde o controle" da situação de pro­
la, por ser esta a técnica cinematográfica que predomina fessora de amor, na medida em que simultaneamente
em todo o romance. seduz e é seduzida. Por tudo isso, Fraulein sofre, o que
b) O principal elemento que nos mostra a modernidade do não faz parte de seus planos, mas, embora sofrendo, cum­
foco narrativo da obra é a metalinguagem. Através dela, o pre o trabalho até o fim, e germanicamente resigna-se,
Narrador, ao mesmo tempo que conta, explícita ao leitor a deixando Carlos e encontrando outro menino a iniciar.
forma como conta. O fato de o Narrador se colocar como
autor, aliado ao fato de " conversar" com o leitor, também Fraulein é professora de língua alemã e iniciadora de adoles­
constituem recursos significativos de modernidade da centes na relação amorosa, na descoberta do amor. Embora
obra, pois quebram a i lusão romanesca do leitor e o trans­ ela sonhe em juntar dinheiro com seu trabalho, voltar à
formam em participante do ato de criar uma história. Alemanha e conseguir um casamento nos moldes burgue­
c) As relações entre Fraulein e o criado japonês são de rivali­ ses, uma "fraqueza " por adolescentes a seduz. Nesta fra­
dade, de ódio na disputa pelo espaço onde trabalham: a queza está o erotismo de Fraulein, que parece ver no adoles­
mansão da família Sousa Costa, que simboliza o Brasil. cente a virilidade primitiva, a sexualidade a inda não contami­
Entretanto, ao mesmo tempo ambos se solidarizam na nada pelo papel social opressor do macho. Assim, enquanto
w
o
condição de estrangeiros, na saudade que sentem de suas ela sonha uma relação idealizada, acomodada ao sistema, <(
pátrias, nos rancores que cultivam contra os padrões bra­ pratica o seu amor, liberta o seu desejo cujo objeto, entretan­ a:
sileiros. to, não lhe pertence, é efêmero por natureza, o que torna o
para ela intransitivo o verbo amar. z
a) Para Carlos, a " l ição de amor" de Fraulein apenas apressa <(
El o seu processo de crescimento de menino para homem,
não no sentido de humanamente lapidá-lo, mas no sentido
A aproximação entre o romance e o idílio, além de temática,
pode ser atribuída à arquitetura da obra: nela são representa­
w
o
de reforçar os traços medíocres de sua masculinidade, a das cenas e quadros, em vez de capítulos, como nos idílios. o
ser exercida nos moldes hipócritas e burgueses represen­ Outro fator que explica a classificação de Mário de Andrade a:
tados pelo pai, de quem ele será herdeiro materialmente e pode ser a equivalência simbólica entre o espaço marginal, ·<(
também em termos de mentalidade. campestre do idílio e a paisagem nacional, diferenciada da �
européia, que o autor quer mostrar. -

123
OSWALD DE ANDRADE
"Eu sou redondo, redondo
Redondo, redondo eu sei
Eu sou uma redond'ilba
Das mulheres que beijei".

SERAFIM PONTE GRANDE


Espécie de não-livro, de anti-romance, esta obra faz a paródia
do livro, do romance, no Brasil.

O romance-invenção Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, "escrito em


1929 para trás " (ou "terminado em 1928 ", como se lê no prefácio) e publicado em
1933, é uma dessas obras que põem em xeque a idéia tradicional de gênero e obra lite­
rária, para nos propor um novo conceito de livro e de leitura. Nas Memórias sentimen­
tais de João Miramar (concluídas em 1923, publicadas em 1924), Oswaldjájizera esta
experiência de limites, abolindo asfronteiras entre a poesia e a prosa. Agora ele a radi­
caliza numa outra dimensão, utilizando-se das conquistas estilísticas anteriores, mas
entrando ainda mais fundo - se assim é possível dizer - na desarticulação da forma
romanesca tradicional.
(Haroldo de Campos - Serajim: um grande não-livro)

Narrador

Serajim Ponte Grande foi chamado por Antônio Cândido de fragmento de grande
livro e por Haroldo de Campos de grande não-livro ou antilivro, feito pela acumulação
paródica de modos costumeiros de fazer livro.
A idéia de fragmento é fundamental para começarmos a estudar esta obra extrema­
mente complexa: nela não há os tradicionais capítulos que caracterizam os romances,
mas unidades que separam trechos onde aparecem muitos tipos de escrita, literária e
não-literária.
Além de prosa, poesia e teatro (os tipos de escrita literária), encontramos trechos de
diário íntimo, de cartilha e composição escolar, de cartas, de relatório policial, de crô­
nicas e artigos jornalísticos, de roteiros de cinema, dentre outros, neste livro, que mis­
tura tantas linguagens diferentes de maneira paródica, quer dizer, imitando-as satirica­
mente, muitas vezes ridicularizando-as.
Quanto à literatura, os vários estilos que conhecemos - o Romantismo, o
Realismo-Naturalismo, o Parnasianismo, e até os modernos como o Futurismo - são
satirizados, acrescentando-se a eles os romances medievais de capa e espada, os roman­
ces policiais, os discursos da oratória barroca, enfim, podemos afirmar que a totalidade
do fazer literário é recuperada e "dinamitada" pela irreverência devoradora de Oswald.
Portanto, dos mais elevados aos menos nobres registros lingüísticos, da retórica
<( artificial da norma culta e do Parnasianismo à informalidade, à oralidade, aos palavrões
o
� Q swald de Andrade nasce em São Paulo e às expressões consideradas chulas, "de baixo calão", nada escapa ao autor. Ele tam­
z em 1 890, sendo filho de gente bém utiliza epígrafes e outros elementos comuns num romance (Obras do Autor, copy­
w abastada. Viaja cedo para a Europa, onde right, errata, cronologia) para com a sua extraordinária capacidade de humor tomá-las
à
u
entra em contato com os movimentos de
vanguarda.
cômicas aos olhos do leitor.
Temos assim uma colagem de fragmentos que se reúnem jocosamente em Serajim
Além de Memórias sentimentais de João
<( Ponte Grande, o que dificulta a sua leitura, ao mesmo tempo em que causa um efeito
a: Miramar e Serafim Ponte Grande, entre
=> outros romances, escreve o Manifesto de "estranhamento", de anormalidade cuja intenção é critica: Oswald pretende rein­

!;i:
a:
Pau-Brasil e o Manifesto Antropofágico.
destacando-se na poesia o volume Poesias
ventar a linguagem neste livro e, para fazê-lo, necessita questionar todas as linguagens
existentes, em especial a literária, ampliando-lhe os limites e as convenções como nunca
w reunidas e no teatro a peça Rei da vela. se fez na literatura brasileira.
1-
:::J Falece em 1 954, aos 64 anos de idade, este Neste sentido, a obra possui um caráter experimental típico da fase heróica de
extraordinário e febril intelectual brasileiro.
....... nosso Modernismo, e da modernidade literária em geral, sendo James Joyce, Mareei
o
124 Proust e Virgínia Woolf alguns de seus representantes.
Você já percebeu que o narrador, o enredo, os personagens, o tempo e o espaço, ou seja, as
categorias literárias tradicionais, não poderão ser tratadas tradicionalmente aqui. O que veremos é
como o livro vai trabalhando estas categorias para consolidar-se enquanto não-livro, ou, em outras
palavras, enquanto infinitas possibilidades de infinitos livros reunidas num só livro.
Falando especificamente do narrador, observamos em Serafim Ponte Grande a existência de
uma espécie de polifonia, de justaposição de vozes narrativas - ora em terceira ora em primeira
pessoa - extremamente móveis, alteráveis de um fragmento para o outro. Com o ponto de vista
do(s) narrador(es) evidentemente ocorre o mesmo, havendo então uma multiplicidade de focos
narrativos, ligados ao tipo de linguagem utilizada. Vamos exemplificar alguns deles:

1. A paisagem desta capital apodrece. Apareço ao leitor(. . .). Personagem através de uma
vidraça. De capa de borracha e galochas. Foram alguns militares que transformaram a
minha vida . . . (Recitativo).

2. Serafim como um diamante no dedo da cidade pega no canhão que colocou graças aos
acontecimentos, sobre a oscilante banana do arranha-céu onde inultimente se apresenta
candidato a edil (Cômputo).

3. Terça-feira
A ndo com vontade de escrever um romance naturalista que está muito em moda.
Começaria assim: "Por todo o largo meio disco de praia dejurujuba, havia uma vida sen­
sual com ares gregos e pagãos. O marparecia um sátiro contente após o coito!".
Nota: Não sei ainda se escreverei a palavra "coito " com todas as letras. O arcebispo e
as famílias podem ficar revoltados. Talvez ponha só a sílaba "cai " seguida de três pontinhos
discretos. Como Camôes fazia com "bunda ".
(. . .)
Terça-feira
Amanhã, missa em Santa Efigênia. Ação de graças pelo aniversário da besta do
Carlindoga. Podia ser de 30º dia!
Sábado
Lalá passou mal a noite. Não morreu.
(Folhinha conjugal ou seja Serafim no front)

4. Na mesa perniciosa do Barão Tapavento, Dona Branca Clara, rainha da beleza, belisca-o.
Por quê? Por que Dona Branca Clara o beliscaste-o?
Mas ei-la que sorri como um isqueiro:
- Escuche Dom Serafim. Eu lhe falo com todo o descaramento de que uma católica
fogosa é capaz. Um homem só botina e diz que ama para fazer da protagonista duas coi­
sas: ou sua esposa ou sua sobrancelha . . .
Serafim some pelo escapamento. (Cérebro, coração e pavio)

No primeiro exemplo, temos, em primeira pessoa, a apresentação de Serafim Ponte Grande ao


leitor em estilo metonímico, isto é, oferecendo-lhe fragmentos que anunciam a sua desilusão em
relação a São Paulo, a vestimenta com que pretende enfrentá-la e o motivo - alguns militares. . .
- das aventuras narradas ao longo do livro.
Em Cômputo (espécie de balanço final, antecipando-se à sucessão de acontecimentos) a nar­
ração - que lembra um roteiro cinematográfico - ocorre em terceira pessoa. Observe a estranhe­
za e a comicidade das comparações: Serafim como um diamante no dedo da cidade, a oscilante
banana do arranha-céu. . .
w
No terceiro exemplo, retoma a primeira pessoa com um fragmento de diário íntimo que faz c
paródia de romance naturalista (veja a presença ostensiva da sexualidade e a ridicularização das <(
CC
convenções para evitar palavras a ela relacionadas, aparecendo na referência a Camões uma pala­ c
vra mais explícita que a pretensamente escondida), ironizando o aniversário do patrão z
<(
(Carlindoga) e a saúde da esposa (Lalá). w
Finalmente, no último exemplo, um "diálogo romântico" é satirizado pelo narrador - Por que o
o
...J
Dona Branca Clara o beliscoste-o? -, pela caracterização que o mesmo faz da personagem ­
(Mas ei-la que sorri como um isqueiro) -, pela linguagem da personagem, (Escuche . . . eu lhefalo
com todo o descaramento . . .) e pelo desenlace da cena (Serafim some pelo escapamento). �cn
Apesar da diversidade mencionada de tipos e de pontos de vista do(s) narrador(es), a presen­ o
ça da paródia, da sátira, da comicidade é constante em todo o livro, como veremos agora na pers­ -
pectiva do enredo.
125
Enredo

Vamos alinhar as unidades de que falamos, numerá-las de acordo com a seqüência em que
aparecem, exemplificar com um pequeno trecho cada uma delas, e em seguida, apresentar o sumá­
rio da história.

I - Recitativo
Apresentação de Serafim - já exemplificado (ver narrador).

li - Alpendre
Serafim na escola, adolescente; descoberta da sexualidade e casamento na polícia com Lalá.
O trecho que segue é uma paródia de cartilha escolar.

Primeiro contacto de Serajim e a malícia


A - e- i-o-u
Ba - Be - Bi - Bo - Bu
Ca - Ce - Ci - Co - Cu

III - Folhinha conjugal ou seja Serafim no front


Incompatibilidade entre o casamento e os desejos sexuais e artísticos de Serafim; malfadada
paixão por Dorotéia - uma artista de cinema, que o trai com Birimba, colega de serviço na repar­
tição pública onde trabalha. A esposa - Lalá - foge com Manso, também colega de serviço, em
companhia dos três filhos (trecho já exemplificado, ver narrador).

IV- Testamento de um legalista defraque


Libertação de Serafim, que rouba um canhão da Revolução de 24, em São Paulo, dá um tiro
do alto de um arranha-céu no patrão e, com o dinheiro também roubado da Revolução, foge num
transatlântico. O exemplo é uma digressão pseudofilosófica sobre o óbvio: anúncio do regresso à
pátria, antes da viagem.

O Largo da Sé

Ensaio de apreciação nirvanista pelo Sr. Serajim Ponte Grande-novo-rico


O Largo da Sé é, sem perigo de contestação, o ponto de conjunção das Ruas 15 de Novembro
e Direita que também são, sem perigo de contestação, as principais de São Paulo. De modo que
as pessoas que querem fazer o célebre triângulo, seja ou por negócios e business ou para o sim­
ples e civilizado footing, passam fatalmente no Largo da Sé.
Quando um estrangeiro saudoso regressa à pátria e procura o Largo da Sé, encontra no lugar
a Praça da Sé. Mas é a mesma coisa.

<t V - No elemento sedativo


o

z
Aventuras eróticas de Serafim Ponte Grande e de Pinto Calçudo - seu amigo e secretário -
a bordo do Steam-Ship ou Rompe-Nuve, onde Mariquinhas Navegadeira, por não ser virgem, leva
w o capitão do navio ao suicídio em alto-mar e onde Pinto Calçudo se excede em aventuras que
::?! fazem com que Serafim - o verdadeiro personagem principal do livro - retire-o da história.
o
u O exemplo é uma paródia de "poesia de bordo": arcaísmos, rimas fáceis, preciosismos verbais
<t ao lado de termos oralizados, e estrangeirismo.
0: A noite desce qual um pássaro inclemente.
:::J
�0: Sobre a gran vasta amplidão.
Só zéjiro acaricia.
w O crepe-santé da água quando tudo invade.
1-
.....1 O mantô da Nostalgia.
...... Numa lúrida e doentia.
126 Mas agridoce saudade.
VI - Cérebro, coração e pavio
Serafim vive aventuras eróticas na Europa com uma mulher frígida - Branca Clara - e um
jovem artista. O seu cachorro vira-lata - Serafim Ponte Pequena (Pompeque) - é atropelado e
Serafim recebe indenizaçê o.
O exemplo é uma paródia de carta psicanalista, na qual Freud responde a Serafim ao seu pedi­
do de desvendar um sonho erótico da amante, Branca Clara, com Jesus Cristo. Observe a "objeti­
vidade" do comentário do assistente e o "chamamento" do início da carta . . .

Receita
Ilustre balaústre
5'ó um acordo com o subconsciente de Dona Branca Clara poderá esclarecer o magnifico
negativo que tenho em mãos e revelá-lo. Parabéns pelo monstro que tem em casa. Mande-o.
Sigismundo
Diagnóstico: Dona Branca Clara é uma vítima da cristianização do Direito Romano tam­
bém conhecida pelo mote de Civilização Ocidental.
Seu josé, assistente

VII - Biblioteca da Juventude/O meridiano de Greenwich. Romance de capa e pistola em qua­


tro partes e um desenlace.
Aventura sexual de Serafim, transformado em Barão Papalino e D. Solanja, a virgem, que na
quarta parte assassina Lalá - reaparecida de súbito com o Birimba e um revólver para matar
Serafim. D. Solanja, finalmente, pega no "falo" do herói e transforma-o em arma de um assassi­
nato fálico. No Epílogo Final (redundância cômica) sucede o seu linchamento pelas senhoras da
multidão.
O exemplo é uma paródia do epílogo "dramático" do romance medieval, de capa e espada
(aqui chamado capa e pistola... ) .
Epílogo Final
Dona Solanja foi linchada pelas senhoras da multidão.

VIII - Os esplendores do Oriente. Epígrafe: Amar sem gemer (Do diário noturno de Caridad­
Claridad)
Serafim, no Oriente, converte uma girl d 'hoje ' em-dia - lésbica - amante de Pafuncheta, ao
heterossexualismo, após perseguir as duas fugitivas pela Grécia, Turquia, Egito e Palestina.
Exemplo de estilo descritivo-cubista, isto é, fragmentado, em ritmo de romance policial. Note
a comicidade da epígrafe, ridicularizando o lesbianismo.

Alcântara, o canal milionário, as alfândegas sob o domicílio das estrelas. Os olhos de


Serafim ajlitamente procuraram o Cmzeiro no forro do céu africano.
O Cairo ãs onze horas. Nas luzes colossais do hangar costumes de opereta, fezes, gente da
Europa. Lá fora, autocars com nomes excitantes. Semíramis, Heliópolis, Palace, Shepherds
Hotel.
Procurou um detetive que imediatamente lhe deu o endereço das girls por quem viera.

IX - Fim de Serafim
O herói volta para São Paulo, onde morre vitimado por um raio, embora, perseguido pela polí­
cia, tenha colocado um pára-raios na cabeça.
O trecho-exemplo é uma paródia da oratória barroca, um discurso de Serafim aos pósteros .

- Tudo é tempo e contra-tempo! E o tempo é eterno. Eu sou uma fonna vitoriosa do tempo.
Em luta seletiva, antropofágica. Com outras fonnas do tempo: moscas, eletro-éticas, cataclis­
mas, policiais e marimbondos! w
Ó criadores das elevações artificiais do destino, eu vos maldigo! A felicidade do homem é Cl
<(
uma felicidade guerreira. Tenho dito. Viva a rapaziada! O gênio é uma longa besteira! a:
Cl
2
X - Errata. Epígrafe: Os mortos governam os vivos (frase-feita) <(
Construção pela família e pelos amigos do "asilo" Serafim, cujo primeiro "hóspede" é o pin­ w
tor - louco como um silogismo - que retrata o defunto. Note a ironia da frase-feita da epígrafe Cl
Cl
e da transformação de uma errata em capítulo. ....J
O trecho-exemplo mostra linguagem jornalística, grave e ao mesmo tempo cômica.

Senhores e possuidores de fundos e largos latifúndios, quiseram perpetuar, no bronze



CJ)
filantrópico das comemorações, ex-marido, ex-pai e ex-amigo. Fizeram constmir num arra­ o
balde de juqueri um Asilo para tratamento da loucura sob suas fonnas lógicas. E encomen­ -
daram a um pintor vindo da Europa uma fotografia a óleo do falecido . . .
121
XI- Os antropófagos
Reaparecimento de Pinto Calçudo, em viagem erótica e em festim antropofágico, no navio "El
Durasno".
No trecho-exemplo, observe os espanholismos estropiados e os trocadilhos.

- Uma vez puso dos ingleses nocaute en la calhe. Passavam e mi dabam encontrones toda­
via! Yo me fué arrabiando e exc/amé: - animales I Hijos de puêta (. ..) .
Foi ordenado que sejogasse ao mar uma senhora que estrilara por ver asfilhas nuas no tom­
badilho que passara a se chamar tobandalho. Mas ela replicou que chorava de saudades do céle­
bre curandeiro Dr. Voronoff.

Sumário do enredo

Em Serafim Ponte Grande temos um homem aparentemente "comum", que se casa na polícia
e trabalha como funcionário público numa Repartição Federal de Saneamento, que ele chama de
Escarradeira.
Entretanto, este homem rouba o dinheiro da Revolução, escondido na sua casa pelo filho, que
dela participa, compra um canhão, atira no chefe da Escarradeira, viaja à Europa e em seguida ao
Oriente, onde libera o erotismo, a sensualidade, o individualismo, a energia vital represada dura­
mente nos tempos em que era um "honesto contribuinte".
Ao voltar para São Paulo, após todas as aventuras sexuais possíveis e imagináveis, é morto,
enquanto a polícia o persegue por um raio, em plena tempestade e no mesmo local em que perma­
necera o canhão . . .
A família e o s amigos mandam construir um hospício e m sua homenagem e o melhor amigo,
Pinto Calçudo, continua a viagem erótica indefinidamente, num navio-fantasma chamado El
Durasno. . .
Vamos, agora, acrescentar alguns elementos à nossa análise, estudando o s personagens desta
obra, cujo enredo pudemos reconstruir, apesar dos avanços e recuos que quebram a sua linearida­
de e que verificaremos com mais detalhe quando comentarmos o tempo e o espaço.

Personagens

Principal
O protagonista do livro, que tem o seu nome, foi chamado de "Macunaíma urbano" por
Antônio Cândido, pois, tal como Macunaíma (personagem de uma obra de Mário de Andrade),
Serafim é também um "herói sem nenhum caráter", um anti-herói caracterizado pelo individua­
lismo, pela sensualidade e pela malandragem. Esta malandragem, entretanto, não pode ser enten­
dida como uma avaliação moral, pois aquilo que chamamos de "imoralidade" corresponde em
Serafim a um comportamento amoral, antropofágico, devorador de tudo o que corrompe o
homem na sua busca de felicidade, aqui entendida no sentido epicurista (o prazer como "bem sobe­
rano"), hedonista (saúde do corpo e sossego do espírito através da luxúria e da sensualidade), ico­
noclasta (destruidor de mitos) da palavra.
<( A devoração e a mobilidade são, para Antônio Cândido, os dois signos principais da vida de
o
Oswald, sempre crítico, sempre inconformista e inquieto, sempre pronto para mudar, para viajar

z
em busca de novo, como faz Serafim neste livro.
w
� Secundários
o
u Dentre os personagens secundários, há os "adaptados" aos quais Serafim se opõe - Lalá, a
<( esposa; Benedito Carlindoga, o chefe da Escarradeira, morto pelo "herói"; o Manso, que assume
a:
sua família; o filho Pombinho (Pery Astiages) cuja ingenuidade abomina - e os "inadaptados"
::>

a:
com os quais Serafim compartilha as aventuras eróticas: a traiçoeira atriz Dorotéia, Branca
Clara, a mulher frígida, Dona Solanja, a virgem distante e evasiva, Caridad-Claridad, a moça
w lésbica, e, principalmente, Pinto Calçudo, o companheiro e secretário que continua a viagem utó­
1-
....J pica de Serafim. As aventuras deste personagem no Steam-Ship, também chamado de Rompe­
- Nuve (veja a convivência grotesca de um nome ao mesmo tempo cosmopolita e caipira), são de
uma comicidade extraordinária: numa delas, que culmina com a sua expulsão temporária do livro,
128
uma verruga parcialmente eletrocutada que possui transforma-se em radar, fazendo chegar notí­
cias da terra ao navio, neste momento perdido no oceano ... Noutra, ele vai fazer esporte com um
remo e acaba desviando o transatlântico da rota.
Enfim, também na caracterização dos personagens há deslocamentos, estranhamentos, anorma­
lidades em Serafim Ponte Grande, acentuando a hilaridade perplexa com que o lemos e percebe­
mos a inteligência e a lucidez crítica de seu humor, que não chega a ser grosseiro embora parado­
xalmente lide com as mais grotescas grosserias.
Esta aparente contradição resolve-se se pensarmos na moralidade, isto é, no fundamento ques­
tionador que não deixa de ser moral, subterrâneo às jocosas passagens de Serafim Ponte Grande.
É o que veremos melhor, quando verificarmos a linguagem com que foi escrito.

Tempo/Espaço

Embora o livro tenha um enredo, que conseguimos reconstruir, é importante perceber que o
fizemos ajustando e decifrando os fragmentos de que se compõe e cuja variação comentamos.
Para compreendermos como se dá a justaposição destes fragmentos ou unidades, podemos
compará-las a slides cuja seqüência muitas vezes se altera: entre a unidade IV (Testamento de um
legalista defraque) e a unidade V (No elemento sedativo) por exemplo, há dois slides fora do con­
junto (Cômputo e Intermezzo) .
O primeiro, Cômputo, palavra que significa balanço, cálculo final, tem como subtítulo
Efemérides, metempsicose ou transmigração de almas. Nele, como se Serafim reaparecesse depois
da viagem transatlântica, que na verdade ainda não ocorrera, há um anúncio de sua morte, o que
nos faz pensar num forte temporal que transformaria emjlash-back (retorno ao passado) os frag­
mentos que se seguem, até o fragmento IX - Os antropófagos - em que a situação é retomada.
Verificamos aí a sugestão de que o pintor responsável pelo retrato de Serafim teria se contamina­
do com a loucura do herói através da metempsicose (reaparecimento de alguém já morto, no corpo
de outra pessoa). Esta sugestão se reforça com a epígrafe - Os mortos governam os vivos.
O Intermezzo possui uma epígrafe de São Tomás de Aquino sobre a fornicação, além de vários
subtítulos de romances pitorescos (Dinorá a todo cérebro ou seja A estranha mulher do
Copacabana Palace ou seja A ex-peitudinha do Hotel Fracaroli ou seja O mais belo amor de
Casanova) e narra um episódio sensual entre Serafim e Dinorá, agora como se ele já estivesse no
mar.
Tais "desajustes" indicam uma superação, em Serafim Ponte Grande, do tempo e também do
espaço. Mais uma vez como Macunaíma, o herói está em vários lugares e várias épocas simulta­
neamente: na Europa, no Oriente, realizando a utópica da viagem, e no Brasil, em companhia de
Lalá, com quem dialoga depois da separação, ou a quem se refere, apesar de ela estar presente.
Segundo Haroldo de Campos, essa ambigüidade no desenrolar cronológico dos eventos dá ao
herói uma dimensão de perpetuidade temporal e de ubiqüidade. É ele que na falsa Errata (que na
verdade é mais uma unidade) "governa os vivos ", ensandecendo o pintor de seu retrato memo­
rial e inspirando depois o cruzeiro antropofágico de seu ex-secretário Pinto Calçudo, ressurreto
do limbo extra-livro para onde fora jogado em No elemento sedativo- V (Haroldo de Campos -

Serafim: um grande não-livro, em Memórias sentimentais de João Miramar/Serafim Ponte


Grande - Oswald de Andrade)

Linguagem
w
(. . .) a penetração psicológica é geralmente condicionada por certo grau de discursivida­ o
<(
de, de desenvolvimento literário, que não se encontra em seus rápidos close-ups. Em compen­ a:
sação a sua técnica pressupõe um conhecimento por meio do dado externo, o detalhe expres­ o
sivo e pitoresco (. .) O autor possui como poucos o dom da expressividade pela elipse: uma
.
z
<(
w
demão rápida, um traço acentuado, um corte hábil - e eis um tipo, uma cena, um aspecto
significativo ou simbólico. Habilidadeperigosa, pela tentação de malabarismo verbal, e técni­ o
co, a que ele nem sempre resiste. . (Antônio Cândido - Vários escritos) o
_.J
.

Chamado de fragmento de grande livro por Antônio Cândido, e de grande não-livro por
Haroldo de Campos, Serafim Ponte Grande sem dúvida é grande: no seu inconformismo mostra­ �
(/)
do pelo riso e pela sátira, na moralidade com que denuncia e devora todos os pressupostos da o
moral burguesa, capitalista e cristã do mundo ocidental, na ousadia através da qual vai crivando -
todas as linguagens, uma a uma, para redescobrir e reinventar a própria linguagem, para fazê-la
129
frutificar nova e rebelde, indomável e sem fronteiras. Com este livro - sejam quais forem as difi­
culdades de leitura que ofereça, apesar das perplexidades (ou mesmo por causa delas) - é possí­
vel que reaprendamos a aprender, a redescobrir e a reinventar significados, como fez Oswald,
desautomatizando o que permaneceu estático, desarticulando o que o costume e não a natureza
articulou, muitas vezes para nos impedir de ver o personagem através de uma vidraça.

'\7 0**6•
11 1. Comente a modernidade do foco narrativo de Serafim assassinato de Benedito Carlindoga, chefe da Repartição
Ponte Grande. onde trabalha. Por que essas ações são decisivas para a
seqüência da narrativa?
� Qual a função dos capítulos Cômputo e lntermezzo, em
� Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade? (UNICAMP)
Terça-feira
Em Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade, há um epi­ Amanhã, missa em Santa Efigênia. Ação
sódio relacionado com o personagem Pinto Calçudo de de graças pelo aniversário da besta
extrema importância para a literatura moderna. De que episó­ do Car/indoga. Podia ser de 302 dia !
dio se trata e por que ele é considerado um dos momentos
mais preciosos do livro? Sábado
La/á passou mal a noite. Não morreu.
(UNICA M P) Em Serafim Ponte Grande, de Oswald de
Andrade, o capítulo Tes tamento de um legalista de fraque Selecione e comente, do trecho acima transcrito, traços do
desempenha função importante para a seqüência do enredo estilo oswaldiano que sejam relevantes na estrutura geral de
do romance. Nele, dentre outras coisas. Serafim confessa o Serafim Ponte Grande e identifique Carlindoga e Lalá .
roubo do dinheiro confiado ao filho por tropas rebeldes e o

11 A modernidade do foco narrativo desta obra pode ser verifi­ isto é, uma invenção produzida por alguém e não uma h istó­
cada pela pluralidade de narradores, de estilos literários e não ria real, verdadeira. Como a metalinguagem ou o desvenda­
l iterários, e da linguagens nela existente. menta do ato de narrar é um dos aspectos fundamentais da
modernidade literária, nela se inscreve com o brilho o livro de

fJ
Os capítulos Cômputo e lntermezzo anunciam fatos que só Oswald de Andrade, em especial, mas não exclusivamente,
ocorrerão mais à frente no livro. como a viagem erótica de pelo episódio comentado.
<( Serafim em lntermezzo e a sua morte, quando volta a São
Cl Paulo, após um longo período no exterior, em Cômputo. R Estas ações são decisivas para a seqüência da narrativa na


z
Assim sendo, eles têm a função de desarticular a linearidade
do enredo tradicional, fazendo com que o livro, por este e por
lil medida em que constituem um divisor de águas. um
momento fundamental e definitivo na transformação de
w outros motivos, seja extremamente ousado e moderno. Serafim Ponte Grande. De funcionário público e chefe de
.� família ele passa, a partir daí, a boêmio e sensual viajante,
o Trata-se do episódio da expulsão de Pinto Calçudo do livro, conhecendo e amando várias mulheres e assim dando uma
u
<(
a por Serafim Ponte Grande. O motivo de tal expulsão é o perspectiva anarquista a sua vida.
" estrelismo" com que Pinto Calçudo, com uma verruga ele­
a:
::> trocutada, recebe as mensagens da terra no navio onde viaja � A " paródia" de diário íntimo em estilo metonímico. sintético


a:
com Serafim, roubando deste o status de personagem-prin­
cipa l .
e cinematográfico é o principal traço relevante da estrutura
geral de Serafim Ponte Grande, presente neste fragmento.
w Este episódio é extremamente importante para a literatura Através dela, o autor satiriza a ojeriza que tem do Carlindoga,
1- moderna porque nele se desvenda a ilusão romanesca. se seu chefe na Repartição onde trabalha - que chama de
__.
explicita as fronteiras da fantasia, da ficção, fazendo com que Escarradeira - e de Lalá, sua esposa, com quem se casou
....... o leitor esteja consciente de que está lendo um romance, na polícia.
130
[o MODERNISMO NO BRASIL - 211 FASE
Do ponto de vista literário, o periodo que vai de 1 930 a 1 945 - denominado 23 Geração
Modernista - corresponde a uma reavaliação do passado, com o Neo-Romantismo e o Neo­
Simbolismo na poesia, em que se destacam Carlos Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima,
Cecília Meireles e Vinícius de Moraes.
De grande repercussão e importância nesta época, foi a prosa regionalista do Nordeste, que
assume uma visão crítica das relações sociais, focalizando os problemas da seca, do coronelismo,
da decadência do modelo oligárquico patriarcal, com a extinção dos antigos engenhos açucareiros.
Fortemente influenciada pelas idéias de Gilberto Freire, autor do Manifesto regionalista ( 1 926) e
Casa grande e senzala, esta geração "redescobre" o Brasil.
Além de José América de Almeida, Rachei de Queirós e Jorge Amado, destacam-se José Lins
de Rego, autor dos romances do ciclo da cana-de-açúcar, e Graciliano Ramos, a voz mais fecun­
da de todas, na proposta de universalização das questões nordestinas.

GRACILIANO RAMOS
"Não sei por quê.
Acho que o artista deve procurar dizer a verdade.
Não a grande verdade, naturalmente.
Pequenas verdades, essas que são nossas conhecidas".

SÃO BERNARDO
Nesta obra Graciliano consegue a síntese regionalismo/universalismo,
equilibrando homem e paisagem e mostrando a relação da realidade
nordestina com o sistema capitalista como um todo.

Narrador
O narrador de São Bernardo, Paulo Honório, é também protagonista da história que conta.
Temos, assim, um personagem-narrador que se coloca como autor, quer dizer, como alguém
que pretende relatar sua própria vida, escrevendo um romance.
Primeiro, Paulo Honório faz uma "divisão de trabalho". Distribui a cada amigo, de acordo
com a sua especialidade, uma função na construção do romance.
Entretanto, tal procedimento não dá certo:
João Nogueira queria o romance em língua de Camões, com períodos Acompanhando a natureza do
formados de trás para diante. Calculem. personagem, tudo em São
Padre Silvestre recebeu-me friamente (. ..). Está direito: cada qual tem Bemardo é seco, bruto e cortan­
Cf)
as suas manias. te. Talvez não haja em nossa lite­
Afastei-o da combinação e concentrei as minhas esperanças em Lúcio ratura outro livro tão reduzido ao o
Gomes de Azevedo Gondim, periodista de boa índole e que escreve o que essencial, capaz de exprimir �
lhe mandam (. . .).
tanta coisa em resumo tão estrei­ <(
O resultado foi um desastre. Quinze dias depois do nosso primeiro a:
to. Por isso é inesgotável o seu
encontro, o redator do Cruzeiro apresentou-me dois capítulos dactilogra­ o
fados, tão cheios de besteiras que me zanguei:
fascínio, pois poucos darão, z
quanto ele, semelhante idéia de <(
- Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço.Está pernósti­
perfeição de ajuste ideal entre os :::J
co, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!
elementos que compõem um u
Azevedo Gondim apagou o sorriso, engoliu em seco, apanhou os cacos
romance. <(
da sua pequenina vaidade e replicou amuado que um artista não pode a:
escrever como fala. Antônio Cândido
(!)
- Não pode? perguntei com assombro. Epor quê? -
Tese e Antítese
Azevedo Gondim respondeu que não pode porque não pode.
131
A relação de Paulo Honório com as pessoas se explícita neste trecho do primeiro
capítulo do romance. Ele manda nelas sumariamente, como faz com o Gondim, a quem
considera uma espécie de folha de papel destinada a receber idéias confusas. Ao
mesmo tempo, também sumariamente, rechaça os participantes do proj eto de escrever
o romance, ora os criticando(João Nogueira queria o romance em língua de Camões...
Calculem), ora aceitando sua recusa (Está direito: cada qual tem as suas manias), ora
xingando ( Vá para o inferno, Gondim ... ).
Nos três casos, a rispidez de Paulo Honório salta aos olhos. Com essa rispidez ele
se propõe a realizar sozinho a tarefa, instigado por um pio de coruja que o faz pensar
em Madalena, a esposa morta há dois anos.
Valendo-se de seus próprios recursos e sem indagar as vantagens materiais que o
livro lhe traria, ou seja, mudando de atitude em relação à "divisão do trabalho" e ao
retorno financeiro no início pretendido, Paulo Honório começa a escrever.
Ele, então, que apenas traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de
agricultura e pecuária, faria as despesas e colocaria o nome na capa, transforma�se no
único autor do romance. Um romance escrito com o sumarismo, a rispidez e a falta de
cultura literária que demonstrou, mas no qual poderia revelar fatos que, cara a cara, não
tem a coragem de revelar a ninguém.
As características da personalidade de Paulo Honório que nos foram desvendadas
até agora são imprescindíveis para a compreensão do foco narrativo do romance: o
proprietário da fazenda São Bernardo, por cuja posse lutou muitos anos, usando os
expedientes do "capitalismo selvagem", como veremos, é um narrador autoritário. Ele
duela em vez de conversar com as pessoas, submete-as ao seu poder duramente conquis­
tado, procura se restringir ao essencial, ao mais pragmático, ao longo da escritura.
Desta maneira, Graciliano Ramos nos apresenta um romance sintético, resumido,
econômico como o seu narrador. Nele, consegue um nível de concisão de linguagem,
de expressividade e ao mesmo tempo de desvendamento metalingüístico, isto é, de
reflexão sobre o ato de escrever um romance enquanto este é escrito (através das
digressões de Paulo Honório) , que comprovam a sua maturidade literária. A condensa­
ção e a densidade psicológica do romance, cuja verossimilhança ocorre pela narração
em primeira pessoa, exclusivamente centrada em Paulo Honório, constituem os motivos
principais da grande qualidade artística de São Bernardo. Um livro no qual o equilíbrio
e a interpenetração entre o social e o individual, por um lado, e entre o regional e o uni­
versal, por outro, demonstram a superioridade deste escritor no contexto de sua geração
e da modernidade literária do país.

Enredo

Abandonado pelos pais, criado por uma negra, a doceira Margarida, Paulo Honório,
aos dezoito anos, tem a primeira experiência sexual, de que decorre a primeira violên­
cia: esfaqueia João Fagundes, quando este se engraça com Germana, a cabritinha sara­
rá que abrecou (possuiu).
Neste tempo, já pensava em ganhar dinheiro, sendo que trabalhou na enxada até
então, dentre outros lugares em São Bernardo, onde permanecera no eito e de que dese­
java se tornar senhor.
Emprestando dinheiro a juros, negociando de arma engatilhada no sertão, passan­
c
l raciliano Ramos, considerado o maior do fome e sede, Paulo Honório acumula algum capital e com ele volta à sua terra, muni­
c G representante da geração neo-realista cípio de Viçosa, Alagoas. Aí ficava a fazenda São Bernardo, cujo novo dono, Luís
.. nordestina, nasceu em Ouebrângulo, Alagoas, Padilha - filho do falecido patrão de Paulo, Salustiano Padilha - é beberrão, mulhe­
J em 1892. Autodidata em literatura, foi rengo e incompetente.
prefeito da cidade de Palmeira dos Índios Paulo Honório atribui aos estudos que Padilha fizera, sem concluí-los, na cidade, a
) ( 1928-1 930). cargo do qual renuncia.
) incompetência que demonstra.
Nomeado di retor da Instrução Pública em
� Alagoas, é demitido e preso, sob suspeita de Aproxima-se então de Padilha com o propósito calculado de tirar-lhe a proprieda­

) ter participado da Aliança Nacional de. Consegue ter êxito fazendo-se seu amigo, emprestando-lhe dinheiro, dando-lhe
Libertadora. Da experiência da prisão, maus conselhos sobre o cultivo de São Bernardo. Subvenciona os investimentos que
� escreveu Mémorias do cárcere. este faz, e para os quais hipoteca a fazenda. Quando vence a última letra que Padilha
J Vidas secas e São Bernardo são as suas devia a Paulo Honório, dirige-se a São Bernardo e praticamente rouba a propriedade de
- obras principais. Em 1 945 aderiu ao Partido
J Padilha, que, arruinado, acaba por vendê-la a preço irrisório.
Comunista do Brasil. Faleceu em 1 953,
... Com violência e determinação, Paulo Honório começa a reconstruir a fazenda.
no Rio de Janeiro. o
132 Através do capanga Casemiro Lopes, assassina o velho Mendonça, da propriedade vizi-
nha. Invade os domínios vizinhos, compra máquinas, empresta dinheiro de bancos, comete gran­
des e pequenas violências, ganha causas no fórum graças às trapaças de João Nogueira, o advoga­
do que o protegia.
Além do capanga e do advogado, Paulo Honório contava com um jornalista, o Gondim, com
o Padre Silvestre e com os políticos da terra, que manejava de acordo com os seus interesses, a
fim de vencer. Reconstruída a casa, iniciada a pomicultura, a avicultura, a plantação de algodão,
construída a estrada de rodagem para vender a produção, Paulo Honório resolve casar-se, menos
por solidão que pela necessidade de um herdeiro.
Conhece, então, Madalena, a professora da vila, e simpatiza com ela. Na mesma determina­
ção, no mesmo pragmatismo com que conseguiu a posse e o progresso de São Bernardo, conse­
gue desposá-la, vencendo os argumentos de que não lhe tinha amor. Madalena muda-se para São
Bernardo, em companhia da tia Glória.
A vida de Paulo Honório modifica-se a partir daí num processo lento mas fatal de ruína:
Madalena, humanitária e "esclarecida", interfere em sua rotina de domínio e de exploração. Ajuda
os empregados e melhora a situação da escola que Paulo Honório construíra na fazenda apenas
para "agradar" o governador (e cujo professor era Luís Padilha, o antigo dono de São Bernardo).
Trabalha com o guarda-livros, o seu Ribeiro, mostrando uma conduta que Paulo Honório consi­
derava inadequada às mulheres: comunista e intelectual.
As brigas iniciadas oito dias após o casamento se repetem e se intensificam, movidas pela in­
compatibilidade entre a violência de Paulo Honório e a suavidade e a solidariedade de Madalena.
Não podendo possui-la como possuía todas as coisas e pessoas, Paulo Honório passa a duvi­
dar de sua fidelidade, a ter um ciúme doentio que o faz desconfiar do Padilha, do João Nogueira,
do Gondim, de todos os homens - do Padre Silvestre ao seu Ribeiro - e finalmente dos empre­
gados da fazenda. A violência chega então à brutalidade, que estende à D. Glória, e ao filho cho­
rão e feio, abandonado pela mulher, cada vez mais triste e fraca.
Madalena não resiste aos maus tratos do marido, suicidando-se. Com a sua morte, Paulo
Honório vai perdendo as outras pessoas - D. Glória, seu Ribeiro, o Padilha - e também a von­
tade obcecada de produzir.
A Revolução de 30 dificulta-lhe os negócios e ele não reage. São Bernardo fenece sob os
olhos indeferentes do proprietário, que começa então a sentir a derrota de sua antiga imponência:
a presença de Madalena perseguindo-o, denunciando a coisificação estúpida que imprimiu em
tudo de que se aproximou.
Através dela, a quem amava sem conhecer este sentimento e que só depois de morta passa
a ter vida em sua subjetividade, Paulo Honório compreende o "aleijão" que se tomara.
Deformado pela "profissão" que o afastou das pessoas e das relações humanas, substituindo-as
por relações de posse, de domínio, de poder bruto e animalesco, Paulo Honório reconhece a pró­
pria monstruosidade.
Impotente para se transformar, sem ter simpatia pelos infelizes que o rodeiam, inclusive pelo
filho de três anos, desconfiado de tudo e de todos, Paulo Honório amarga a solidão e o isolamen­
to escrevendo um romance e buscando, assim, o sentido de sua vida.
Composto por trinta e seis capítulos, este romance combina a objetividade e a concisão do
enredo com a subjetividade e a emoção revelada nos monólogos interiores do narrador. Eles inten­
sificam a densidade dramática da narração, interrompendo-a, inclusive, no capítulo dezenove,
onde passado e presente, objetividade e subjetividade se confundem, anunciando a decadência do
proprietário e o surgimento do homem em seu lugar.

Personagens (/)
o
Principais �
<(
Paulo Honório e Madalena podem ser considerados os protagonistas desta obra. Paulo a:
Honório, como já pudemos perceber pela trajetória de sua vida, é o capitalista tacanho, o self o
made man (homem que se faz por si mesmo), que se tomou superior à sua classe, passando de tra­ z
<(
palhador braçal a proprietário. Para realizar esta travessia, foi necessária a sua desumanização, a ::i
coisificação de sua humanidade através da qual pôde exercer o domínio sobre os outros, matan­ u
do, roubando, mentindo, trapaceando. <(
a:
Assim, a violência da tradicional dominação patriarcal, que não condiz com a modernidade C.!)
do modelo produtivo que imprime em São Bernardo, também não condiz com a relação afetiva, -
especialmente em se tratando de uma pessoa delicada e instruída como Madelena. 133
O casamento, que deveria consolidar a vitória do proprietário, dando-lhe um des­
cendente, transforma-a em derrota, uma vez que aos olhos de Madalena o seu sucesso
é mesquinho, prepotente, destituído de qualquer positividade.
Quando perde a esposa, Paulo Honório, que até então não a compreendia, como não
compreendia nada que fosse alheio ao seu mundo, começa a adquirir consciência da
bondade, da intensidade humana de Madalena, e conseqüentemente de seu embruteci­
mento. Esta consciência, embora não lhe mude os modos por demais enraizados, é
transformadora: de proprietário se converte em homem, abandonando a vertigem da
posse e substituindo-a pela procura de si mesmo.
Madalena, a professora loura de olhos azuis, de quase trinta anos, que se recusa a
ser objeto de posse de Paulo Honório, é o avesso dele: de grande sensibilidade, preocu­
pada com as condições de vida dos trabalhadores, incapaz de assumir a passividade da
condição de esposa, sente necessidade de trabalhar e de andar pela fazenda, o que a leva
a rejeitar o mundo de Paulo Honório.
A dimensão humana desta personagem, a sua solidariedade e o seu inconformismo
diante do sofrimento das pessoas, especialmente os de condição social inferior, assim
como a sua formação de "escola normal", precária mas claramente incompatível com a
brutalidade do sistema patriarcal, não conseguem impedi-la de se destruir.
Ao mesmo tempo em que revela a fragilidade e a impotência da condição femini­
na diante de um mundo que restringe radicalmente o seu espaço de ação, este passo pos­
sui uma função precisa no romance: através dele, a fragilidade, a fraqueza, transfor­
mam-se em força, em móvel de uma revolução interna, a recuperação da humanidade
de Paulo Honório, pelo afeto que dedicava a Madalena, pela lembrança de sua presen­
ça. Neste sentido, é magistral a revelação da suavidade de Madalena, da forma íntegra
como se conduz moral e existencialmente, através da incompreensão, da dúvida, da
maledicência atormentada e algumas vezes reconhecida de Paulo Honório. Procurando
destruí-la, e ao mesmo tempo mostrando este fato ao leitor, ele na verdade a agiganta
aos nossos olhos.
Secundários
Luís Padilha, o antigo dono de São Bernardo, é um personagem profundamente
antipatizado pelo narrador. Fraco, submisso, covarde, ele ensina "comunismo" aos tra­
balhadores como Marciano (velho e doente, marido de Rosa, a mulher com quem
Paulo Honório tinha encontros sexuais clandestinos) e acaba levando alguns deles para
a Revolução. Nela também se envolve o Padre Silvestre, descrito como uma persona­
lidade estreita, que, impossibilitado de admitir coisas contraditórias, lê apenas as fo­
lhas da oposição. Danadamente liberal, anda no mundo da lua, no dizer de Paulo
Honório.
João Nogueira, o advogado que o auxiliou nas falcatruas, e Azevedo Gondim, o jor­
nalista, o primeiro mais moderado e o segundo mais radical, são exemplos do pensamen­
to conservador da oligarquia, ardente e confusamente defendida por João Nogueira no
romance. A imprensa, representada por Gondim e também pelo Brito, o jornalista surra­
do por Paulo Honório por difamá-lo, aparece em sua corrupção e venalidade, e também
em sua linguagem retorcida, criticadas e ironizadas pelo narrador.
Além da ironia com que se refere a episódios e personagens ligados à política, que
despreza, Paulo Honório demonstra claramente em sua narração que se relaciona de
<3::
o forma utilitária, isto é, de acordo com os interesses do momento, com os personagens
�z mencionados. Assim, afirma não saber quanto o Padilha vale, embora o contrate por
um preço baixo para trabalhar na escola de São Bernardo, protege o Pereira, agiota e
w chefe político, até que este caia do poder, julga-se superior ao João Nogueira, apesar
:E de ter menos ciência e menos manha que ele, desprezando mas achando úteis suas
o
u habilidades.
<3:: Aliás, as habilidades intelectuais em geral merecem duras críticas do narrador, não
a: só por considerá-las inoperantes, inócuas, mas porque este é um dos eixos de sua infe­
::J

a:
rioridade em relação a Madalena, que conversava longamente com todas as pessoas,
menos com ele, durante as crises entre os dois.
w O seu Ribeiro, o guarda-livros a cuja história de vida Paulo Honório dedica um
1-
:J capítulo, de Major no lugarejo em que morava, fazendo as vezes de justiceiro e de
- homem sábio em várias funções, passou a indigente solitário, devido à vinda do pro­
134 gresso. Paulo Honório demonstra simpatia por ele, uma vaga solidariedade que destoa
de seu habitual desrespeito pelas pessoas e que se acentua em outros personagens. Casimiro
Lopes, o capanga que tem faro de cão e fidelidade de cão, crédulo como um selvagem, o único a
se interessar pelo filho abandonado por todos, cantando para o embalar as cantigas do sertão,
possui a estima de Paulo Honório. Ele inclusive se identifica com o capanga, nos momentos de
grande solidão. Margarida, a preta velha que o criou, é outro referencial afetivo do narrador: ele
a redescobre, manda buscá-la e a alimenta em São Bernardo, o mesmo amparo financeiro ofere­
cendo a D. Glória - tia de Madalena avessa ao campo e cuja urbanidade o irritava - quando esta
se vai, após a morte de Madalena.
Em conclusão, Paulo Honório tem a sua brutalidade relativizada por estes personagens e tam­
bém pelas referências tímidas que faz à necessidade de auxiliar as filhas do velho Mendonça, o
vizinho que mandou matar. A referência aos raros momentos de união e de harmonia que vivia
com Madalena, quando não precisavam brigar e conversavam longamente durante os serões, faz
parte deste lado humano do personagem.

Linguagem

Vamos ler a análise de Antônio Cândido sobre a linguagem em São Bernardo, que parte do
momento em que Paulo Honório resolve escrever um romance:

Interoém então o elemento inesperado: Paulo Honório sente uma necessidade nova -
escrever - e dela surge uma construção nova: o livro em que conta a sua derrota. Por ele,
obtém uma visão ordenada das coisas e de si; no momento em que se conhece pela narrativa,
destrói-se enquanto homem depropriedade, mas constrói com o testemunho da sua dor a obra
que o redime. E a inteligência se elabora nos destroços da vontade.
O próprio estilo, graças à secura e violência dos períodos curtos, em que a expressão densa
e cortante é penosamente obtida, parece indicar essapassagem da vontade de construir à von­
tade de análise, resultando um livro direto e sem subterfúgio, honesto ao modo de um cader­
no de notas.
(. . .) Caso elucidativo é o da paisagem. Não há em São Bernardo uma única descrição, no
sentido romântico e naturalista, em que o escritor procura jazer efeito, encaixando no texto,
periodicamente, visões ou arrolamentos da natureza e das coisas. No entanto, surgem, a ·cada
passo, a terra vermelha, em lama ou poeira; o verde dasplantas; o relevo; as estações; as obras
do trabalho humano; e tudo forma enquadramento constante, discretamente referido, com
um senso de oportunidade que, tirando-lhe o caráter de tema, lhe dá necessidade, incopo­
rando-o ao ritmo psicológico da narrativa. Desse livro breve e severo, ficam no leitor impres­
sões admiráveis do mundo exterior (. . .) .
Se a percepção literária do mundo sensível aparece aqui refinada, é igualmente notável
o progresso verificado nos mecanismos do monólogo interior, gênese dos sentimentos e evoca­
ção da experiência vivida.

Vamos, agora, ler um dos mais belos monólogos interiores do livro, observando a precisão e
densidade de sua linguagem.

A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que
mande algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das ou­
tras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao
mesmo tempo zangada e tranqüila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra mestre
Caetano. No obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião!
A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a
que estava aqui há cinco anos.
Rumor do vento, dos sapos, dos grilos. A porta do escritório abre-se de manso, os passos de cn
o
seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na torre da Igreja. Terá realmente piado a coruja? Será

a mesma que piava há dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo. <(
Agora seu Ribeiro está conversando com D. Glória no salão. Esqueço que eles me deixa­ a:
ram e que esta casa está quase deserta. o
- Casimira! z
Penso que chamei Casimira Lopes. A cabeça dele, com o chapéu de couro de sertanejo, <(
::i
assoma de quando em quando à janela, mas ignoro se a visão que me dá é atual ou remota.
u
(cap. XIX) <(
a:
(.9
-

135
\] OUftêBS.
11 ( U N ICAMP) A trajetória da personagem Paulo Honório em
São Bernardo pode ser dividida em dois grandes segmentos.
No primeiro, todas as suas ações estão voltadas para a con­
!!11
liiiil
( U N I CAMP) " B ichos. As criaturas que me serviram durante
anos eram bichos. "

Essa visão das pessoas é expressa por Paulo Honório, narra­


secução de objetivos previamente definidos (bens, terras,
dor e personagem central de São Bernardo, de Graciliano
esposa etc). O segundo segmento, iniciado no suicídio de
Ramos.
Madalena, mostra um outro retrato e uma outra trajetória da
personagem. Quais as características de Paulo Honório
a) indique de que l ugar social fala Paulo Honório.
neste segundo segmento e em que di reção sua trajetória se
b) explique por que, na posição de Paulo Honório, as pes­
desenvolve?
soas podem ser vistas como bichos.
(FUVEST) No decênio de 1 930 houve uma renovação do
c) mencione dois episódios que ilustrem essa forma de tra­
tamento por parte de Paulo Honório.
romance brasileiro de tema regional, que passou de descriti­
vo e sentimental a crítico e realista.
a) Identifique um romance que pode exemplificar essa reno­
vação. Justifique sua escolha com elementos desse
romance.
b) A obra Os sertões, de E uclides da Cunha, está na gênese
dessa transformação. Por quê?

11 1. Com o suicídio de Madalena. Paulo Honório se vê diante b) Os Sertões aparece como primeira obra a tratar de modo
de alguém que se recusou à sua dominação, ao seu mando­ crítico a contradição entre os "dois brasis" : de um lado a
nismo. Assim, com Madalena morta, ele se vê diante de sua civilização, a modernização. e de outro a opressão sofrida
própria brutalidade, de sua permanente violência contra os pelos sertanejos em face das secas, do latifúndio e do des­
outros. Paulo Honório vai fazendo o relato de sua vida, con­ caso oficial. O livro de Euclides da Cunha fornece diretrizes
<( fundido entre o presente e o passado, entre o aqui-agora e a críticas para as gerações modernistas, através de sua aná­
Q

memória, contando a sua história para tentar entender a si lise minuciosa do contexto histórico e social do nordeste.
mesmo, oscilando entre o remorso não assumido e a reafir­
z mação de seu extremo autoritarismo. !!li a) O narrador-personagem Paulo Honório fala como prop rietá­
w Além disso. percebemos um início de compreensão de liill rio da fazenda São Bernardo, fala como patrão autoritário:
.� que sua brutalidade vem das relações que vive, vem do sua visão é a do mando, a do poder truculento, a visão de
o social. assim como percebemos que ele se move em direção quem se considera dono das pessoas.
u
à sua decadência, enquanto latifundiário. E à sua humaniza­ b) As pessoas podem ser vistas como bichos porque Paulo
<(
a: ção, enquanto pessoa. Honório coisifica-as, apropria-se de seus trabalhos e de
::> suas vidas, usa-as como instrumento.
ft

a: '111
a) São Bernardo, de G raciliano Ramos, entre outros, é um
bom exemplo. Este romance, ao acompanhar a trajetória
c) Dois exemplos que ilustram essa forma de tratamento
podem ser o episódio em que Paulo Honório manda o
w do autoritário e intratável Paulo Honório, trata da acumula­ empregado mestre Caetano, já morto, ir trabalhar, xingan­
1- ção de riquezas, através de métodos violentos. A miséria do-o de mandrião, e o episódio em que Paulo Honório
:::J social do latifúndio e daqueles que gravitam em torno do espanca o empregado Marciano. por este ter falado de
-
proprietário e à sombra de sua autoridade inabalável apare­ uma forma considerada desrespeitosa.
136 ce de maneira gritante e central neste romance.
VIDAS SECAS
Vidas secas utiliza-se de um tema local - a seca do Nordeste e a vida
martirizada dos retirantes - para atingir um universalismo proveniente
da riqueza humana de seus personagens, cuja inferioridade é esculpida
com raro brilho e concisão.

Será um romance? É antes uma série de quadros, de gravuras em madeira, talhadas com pre­
cisão e firmeza.
Lúcia Miguel Pereira, citada por
Antônio Cândido, em Ficção e confissão

Narrador

Publicado em 1 938, Vidas secas é o último romance escrito por Graciliano Ramos e, de acor­
do com críticos como Lúcia Miguel Pereira e Antônio Cândido, o mais diferente - o único reali­
zado em terceira pessoa e o único em que os capítulos parecem "peças autônomas", encaixando­
se de forma descontínua e com raro talento artístico.
Na primeira parte de nosso trabalho, vamos estudar como o narrador, sem se confundir com
os personagens, institui, cria, sugere a humanidade deles, transformando em linguagem "precisa e
firme" o silêncio que os caracteriza.
Fabiano, sinhá Vitória, os filhos e Baleia - a cachorrinha que age, pensa e sente como gente
- são os membros de uma família desumanizada, reduzida à condição animalesca - no sentido
mais brutal da palavra - pela precariedade de uma existência cotidianamente aviltada por situ­
ações-limite. Não ter como sobreviver, na fuga periódica da seca e assim tomar-se nômade, sem
teto que não seja transitório, sem perspectiva de trabalho que não seja ocasional - uma época efê­
mera de condições climáticas favoráveis - constituem os fatores de rebaixamento fisico, social,
moral e humano dos personagens.
Embora esse rebaixamento, também motivado pela opressão social, se expresse na forma
silenciosa e hostil como se comportam, na incomunicabilidade que os separa tanto das pessoas da
cidade quando deles mesmos, o narrador, nas mesmas passagens em que aparecem como bichos,
como brutos, desvenda-lhes a humanidade submersa, aderindo ao mundo interior de cada um
deles, que reinventa. O melhor exemplo de tal procedimento é Baleia, um parâmetro de humani­
dade que ora se contrapõe à desumanidade dos seres humanos, ora parece representar um veículo
de sua humanização. Pois enquanto as pessoas viram bichos, o bicho, convertendo-se em pessoa,
toma-se uma alegoria, um símbolo da temática central do romance.
Essa temática não se reduz às conseqüências da seca e da opressão, mas, através de ambas,
concentra-se na oscilação entre sujeito e objeto, homem e bicho, revolta e conformismo, esperança
e passividade que universaliza as criaturas de Vidas secas de modo que na obra palpite a vida - "A
vida que é a mesma em todas as classes e em todos os climas" (Antônio Cândido - Obra citada).
Vamos exemplificar o foco narrativo de Vidas secas, atentando para o fato de que não se trata
de um narrador onisciente. Trata-se, · conforme comentamos, de um narrador que por um
lado relata com objetividade e precisão, e por outro adere tão profundamente aos persona­
gens que lhes institui a humanidade dilacerada. O uso do discurso indireto livre e os monó­
logos interiores, os fluxos de consciência dos personagens, cujo silêncio é convertido em pala­
vras que eles não sabem dizer, constituem, como veremos,
recursos importantes deste foco narrativo sofisticado e de O narrador não quer identificar-se com o perso­ (/)
grande qualidade artística. nagem, e por isso há na sua voz uma certa obje­ o
tividade de relatar. Mas quer fazer as vezes do per­ �
sonagem, de modo que, sem perder a própria iden­ <{
Exemplo 1 a:
tidade, sugere a dele. É como se o narrador tosse,
o
A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso não um intérprete mimético, mas alguém que insti­ z
salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O tui a humanidade de seres que a sociedade põe à <{
vôo negro dos urubusfazia círculos altos em redor dos margem, empurrando-os para a fronteira da ani­ ::J
bichos moribundos. malidade. Aqui, a animalidade reage e penetra u
- Anda, excomungado. <{
pelo universo reservado, em geral, ao adulto civi­ a:
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou lizado. C)
matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabili­ -
Antônio Cândido, obra citada
131
zar alguém pela sua desgraça.
A seca aparecia-lhe como um fato necessário - e a obstinação da criança irritava-o.
Certamente esse obstáculo miúdo não era o culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro
precisava chegar, não sabia onde.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de a bandona r ofilho naquele descam­
pado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os
arredores. Sinbá Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com
alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cin­
turão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, osjoi!lbos encostados no estô­
mago magro, frio como um defunto. A í a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível
abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a sinhá Vitória, pôs o filho
no cangote, levantou-se, agarrou os bracínhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como
cambitos. Sinhá Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a expressão gutural, designou
os juazeiros invisíveis.
E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande.
(cap. 1 - Mudança)

Exemplo 2
Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber. Tinha? Não tinha.
- Está aí.
Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria satisfeito.
Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado era seu
Tomás da bolandeira. Por quê? Só era porque lia demais (. . .).
Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros, mas
não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem remediado se-r cortês. Até o povo censurava
aquelas maneiras. Mas todos obedeciam ele. Ah! Quem disse que não obedeciam?"
(cap. 2 - Fabiano)

Exemplo 3
Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se pruden­
temente, receosa de sapecar o pêlo, eficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que
se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenômeno e
desejou expressar sua admiração à dona. Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se
nas pernas traseiras, imitando gente. Mas sinhá Vitória n,ão gueria saber de elogios.
- Arreda!
Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada .e com sentimentos revolucionários ".
(cap. 4 - Sinhá Vitória)
· ·

Comentários
No exemplo 1 , a descrição animizada da natureza crestada pela seca - A caatinga estendia­
se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas -; o tratamento
brutal de Fabiano ao filho, o desejo de matá-lo , abandoná-lo no desamparo, são justificados pelo
narrador: tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça, a seca apare­
cia-lhe como um fato necessário, precisava chegar,. não sabia onde...
Tal aspecto de análise psicológica coloca o .narrador como sabedor, como decifrador do com­
portamento animalesco do personagem.
<(
o Entretanto, os momentos de análise psicológica são relativizados pelo relato dos fatos, na


z
forma e no significado que adquirem, contextual�ando uma situação-limite: Sinhá Vitória estirou
o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto.
w Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do meni­
� no, que se encolhia, os joelhos encostados no estômago magro, frio como um defunto.
o
u Na medida em que entendemos o desespero de Fabiano, e conseguimos associá-lo à de­
<( sumanidade que comete, o narrador pode, de forma verossímil, voltar a interpretá-lo, agora no
a: Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Além
movimento de recobrar-lhe a humanidade:
::>
�a: disso, o narrador aproxima-se mais do personagem quando se funde com sua interioridade,
quando transforma-a em linguagem através do discurso indireto livre: Impossível abandonar
w o anjinho aos bichos do mato.
1-
::::; Agora você pode distinguir os três procedimentos que caracterizam o narrador perante a his­
....... a narração dos fatos, a análise psicológica dos personagens, a exposição de
tória que conta:

138 seu universo mental através do discurso indireto livre.


Como estes procedimentos se combinam com grande coesão, o leitor consegue associá-los e
recriar em sua mente a oscilação de Fabiano entre selvageria e humanidade. Oscilando aó longo
de todo o romance, e assim reunindo vários outros pares de opostos, Fabiano e sinhá Vitória adqui­
rem vida - vida atravessada constantemente pela morte, mas vida.
.
No exemplo 2, a fusão entre a voz do narrador e a voz silenciada do personagem - o narra­
dor dando-lhe palavras para expressar-se interiormente - aparece com mais clareza. A frase
Tinha o direito de saber: Tinha? Não tinha exemplifica várias passagens em que Fabiano se inter­
roga sobre a própria identidade humana e, embora a negue, aqui em termos do seu direito à instru­
ção, a interrogação prevalece, fixando a ambigüidade do personagem.
Entre o medo do conhecimento, que vê como algo mítico, entre as criticas a seu Tomás da
bolandeira, que o simboliza no romance, e a admiração por aquele homem, vale dizer, a admira­
ção pelo conhecimento, Fabiano novamente oscila, o que faz em relação a outros atributos huma­
nos que deseja encontrar em si, mas que ao mesmo tempo se nega acreditar possuir.
O processo narrativo de Vidas secas, na medida em que recria e institui as dúvidas de Fabiano
e sinhá Vitória, traduzindo-lhes os pensamentos confusos sem resolvê-los como faria um narrador
onisciente, constitui um dos principais fatores do raro equilíbrio artístico da obra, da originalida­
de com que se esculpe o ser humano universal, a partir de um contexto regionalista brasileiro: a
seca do nordeste, a opressão dos pobres, a condição animalesca em que vivem.
A existência deste contexto pode nos levar a classificar Vidas secas como "romance regiona­
lista" ou como "romance proletário", assim como o brilhantismo com que Graciliano Ramos esca­
va a humanidade embotada dos personagens pode, por sua vez, levar-nos a pensar que se trata de
um "romance psicológico".
Embora possua as três dimensões, afirmamos que a obra as transcende, por exemplo utilizan­
do-nos do terceiro fragmento dado. Nele a fantasia criadora do escritor cria uma cachorrinha com
alma, sentimentos, pensamentos e sensibilidade. Ao levar um pontapé de sinhá Vitória quando
tenta elogiá-la, Baleia afasta-se humilhada e com sentimentos revolucionários.
Como entender melhor por que a inversão homem-bicho, presente neste e em outros trechos,
torna inviáveis e redutoras as classificações mencionadas? Que outros fatores fazem de Vidas secas
um romance dificil de classificar? Vamos aprofundar a discussão, estudando o enredo do livro.

Enredo
A "série de quadros, de gravuras em madeira, talhadas com precisão e firmeza" de que fala
Lúcia Miguel Pereira, alude ao caráter autônomo e completo dos capítulos do livro. Et:nbora real­
mente possam ser lidos como peças independentes, e assim tenham sido publicados em jornais, os
"segmentos" de Vidas secas reúnem-se com uma organicidade exemplar.
Isto porque mantêm uma estrutura descontínua, não linear, como que reafirmando o iso­
lamento dos personagens, a instabilidade de sua existência de retirantes. Além disso, um capí­
tulo é evocado em outro através do processo associativo que caracteriza os pensamentos confu­
sos, o universo mental no qual o passado se confunde com o presente e com o futuro - espécie
de sombra que atemoriza Fabiano e sua família.

A montagem do enredo, formado de 1 3 segmentos ou capítulos que se justapõem sem nexos


lógicos, organiza-se primeiramente pela proximidade entre o primeiro: Mudança - a chegada da
·
família de retirantes a uma velha fazenda arruinada e abandonada - e o último: Fuga a saída
-

da família, que, diante de um novo período de seca, foge para o Sul.


Na opinião de Antônio Cândido, na obra citada,
cn
este encontro do fim com o começo (. . .) forma wn anel de ferro, em cujo círculo sem o
saída se fecha a vida esmagada da pobre família de retirantes - agregados - reti­ �
<(
rantes, mostrando que a poderosa visão social de Graciliano Ramos neste livro não a:
depende de ele ter feito ''romance regionalista" ou ''romance proletário". Mas do fato o
de ter sabido criar em todos os níveis, desde o pormenor do discurso até o desenho z
geral da composição, os modos literários de mostrar a visão dramática de wn <(
:::J
mundo opressivo.

a:
Assim, do segundo ao décimo segundo capítulos, nos quais a família vive como agregada na (.!)
fazenda, para cujo proprietário Fabiano trabalha, o que temos é por um lado uma fase de "descan­ -
so" em relação ao nomadismo provocado pela seca, e por outro, além da tortura gerada pela lem-
139
brança do passado e pelo medo do futuro, as diferentes facetas que a opressão exerce nos mem­
bros da família; seja entre eles, seja entre eles e os outros homens, os moradores da cidade.
Vamos enumerar e sintetizar os episódios principais dos capítulos mencionados:
cap. 2 - Fabiano - episódio: Fabiano procura uma novilha para curá-la de bicheira.
cap. 3 - Cadeia - episódio: Fabiano vai à cidade fazer compras, bebe uma pinga e é convi­
dado para um jogo de cartas pelo "soldado amarelo". Ambos perdem dinheiro, Fabiano decide ir
embora, mas o soldado o provoca, pisando em seus pés. Fabiano solta um palavrão, o que o faz
ser preso e surrado.
cap. 4 - Sinhá Vitória - episódio: Sinhá Vitória prepara uma refeição para a família.
cap. 5 - O menino mais novo - episódio: O menino tenta imitar o pai, que sobe numa égua,
cai e não se machuca, fazendo o mesmo com um bode e se machucando.
cap. 6 - O menino mais velho - episódio: O menino ouve a palavra "inferno", acha-a boni­
ta e procura aprender o seu significado com a mãe, que o repele brutalmente.
cap. 7 - Inverno - episódio: A família reúne-se numa noite de inverno, em que Fabiano tenta
contar histórias, enquanto os meninos passam frio.
cap. 8 - Festa - episódio: A família vai à cidade, comemorar a festa de Natal.
cap. 9 - Baleia - episódio: Baleia adoece e Fabiano a mata, temendo que sofra de hidrofo­
bia e passe o mal para os meninos.
cap. 1 O - Contas - episódio: Fabiano é lesado pelo patrão no acerto de contas, e, apesar de
as contas do patrão não coincidirem com as de sinhá Vitória, não se defende. Ao contrário, humi­
lha-se e pede desculpas ao patrão.
cap. 1 1
- O soldado amarelo - episódio: Um ano após ter sido preso pelo soldado amarelo,
Fabiano o reencontra em seu território: a caatinga. Embora deseje vingança, acaba curvando-se e
ensinando o caminho ao soldado amarelo.
cap. 1 2 - O mundo coberto de penas - episódio: Na iminência de outro período de seca,
Fabiano e sinhá Vitória preparam-se para partir.
Pela rapidez com que foram sintetizados, você percebeu que os episódios, os acontecimentos,
não constituem a questão central do romance.
Na verdade, eles se configuram como quadros ou cenas através dos quais vamos nos aprofun­
dando no conhecimento das "gravuras em madeira", das criaturas que povoam Vidas secas.
Por esta razão, passaremos aos comentários sobre os personagens da obra, utilizando-nos dos
episódios e de outros elementos de seu enredo para ampliar a nossa percepção a respeito de como
se estruturam: enredo e personagens.

Personagens e elementos do enredo

Fabiano
Iniciemos a nossa análise de Fabiano, enfocando o cap. 2, que tem por título o seu nome.
Neste capítulo, enquanto o vaqueiro procura a novilha, por um lado sente-se satisfeito com o
fato de ter-se arrumado, ter arranjado emprego na fazenda, o que o faz exclamar que é um homem.
Por outro lado, entretanto, ao lembrar-se de que vive em terra alheia, cuida de animais alheios,
descobria-se, encolhia-se na presença de brancos, corrige a exclamação dizendo-se um bicho, um
cabra, um macaco.
Aqui, aparece um referencial forte de Fabiano, uma espécie de paradigma que o oprime mas
o fascina: seu Tomás da bolandeira, o velho bom e lido: Em horas de maluqueira, Fabiano dese­
<( java imitá-lo: dizia palavras dificeis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava, Tolice.
o Via-se peifeitamente bem que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo.

z
Na verdade, a opressão representada por seu Tomás da bolandeira inferioriza Fabiano na
medida em que significa o poder e o respeito adquiridos pela bondade e pela cultura, em oposição
w
� ao poder autoritário dos "outros brancos", que vê como inimigos. No episódio do cap. 3, Cadeia,
o quando o soldado amarelo (adjetivo referente à farda que é signo de autoridade e que portanto inti­
u mida o vaqueiro) convida-o para o jogo, ele tenta imitar seu Tomás da bolandeira e o resultado é
<( uma profusão de palavras desconexas: - Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contan­
a:
::> to, etc. É conforme.

a:
Depois de pronunciá-las, segue o soldado que era autoridade e mandava. Fabiano sempre
havia obedecido. Tinha muque e sustância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia. O
w mesmo ocorre no cap. 1 O, Contas, quando ele se sabe roubado e culpa as contas "erradas" da mu­

-I lher para desculpar-se perante o patrão, que ameaça despedi-lo.
--. Estes exemplos de passividade culminam no cap. 1 1 , referente ao reencontro entre Fabiano e
140 o soldado amarelo - o segundo acovardado perante o primeiro - o qual se fere de vez em seu
orgulho, em sua dignidade, atribuindo à velhice a inação, agora diante de alguém que ftaqueja e
recua em vez de enfrentá-lo.
Aos exemplos colocados, contrapõem-se momentos de revolta vividos por Fabiano. Embora
na cadeia tente culpar a família, a responsabilidade que o prende a sinhá Vitória e aos filhos, den­
tre outros motivos confusos e inúteis de que se utiliza para justificar a submissão, Fabiano intima­
mente sente-se um traste, uma coisa, a bolandeira de Seu Tomás.
Por isso, por duvidar da condição humana de que faz parte, na medida em que nada tem, e que
associa humanidade a propriedade, o vaqueiro por um lado resigna-se, aceita-se como inferior,
estende aos filhos a "sina" que recebeu do pai, o qual a herdou do avô. Por outro lado, entretanto,
em capítulos como Inverno (cap. 7) e Festa (cap. 8), sucessivamento dá vazão à individualidade
esmagada através de histórias nas quais vence as brigas, inventa um heroísmo em que acredita, e
através de insultos que profere, embriagado e sem possibilidade de ser ouvido, não às autoridades,
mas aos matutos como ele, que se divertem na festa de Natal. ..
Em conclusão, Fabiano, de olhos azuis, barba e cabelos ruivos, Vivia longe dos homens, só se
dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra.
Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. Efalava uma linguagem cantada, monos­
silábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para um
lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a
mesma língua com que se dirigia aos brutos - exclamações, onomatopéias. Na yerdade falava
pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algu­
mas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.
Com essa belíssima síntese, conseguimos conciliar a imagem animalizada de Fabiano com as
manifestações - não pelas palavras, que teme e admira, nem pelo convívio humano, de que se
afasta - de sua humanidade por ele mesmo negada. As manifestações que configuram a dimen­
são humana deste vaqueiro marginalizado e oprimido pela natureza e pela sociedade aparecem
quando o narrador o soletra humanamente, perguntando-se se é homem, se é bicho, se precisa mor­
rer, enquanto o seu desejo maior e mais poderoso é o de vida.

Sinhá Vitória
No cap. 4, denominado sinhá Vitória, ela cozinha e, como o marido, perde-se em pensamen­
tos confusos. A briga que tiveram por ele se recusar a realizar-lhe o sonho de ter uma cama de las­
tro de couro, como a de seu Tomás da bolandeira e as de outras pessoas, magoà sinhá Vitória.
Esta mágoa, de que se vinga maltratando Baleia e os filhos, desencadeia a lembrança da vida
antiga, de que havia se esquecido. Com a comparação de Fabiano entre ela vestida de sapato de
verniz e um papagaio, vem-lhe à mente o papagaio que, por sugestão dela, fora sacrificado para
alimentá-los durante a seca. Recordação de que foge, pensando em Deus.
No final do capítulo, uma conclusão de sinhá Vitória é significativa para a compreensão da
personagem: Inútil consultar Fabiano, que sempre se entusiasmava, arrumava projetos. Esfriava
logo - e ela franzia a testa, espantada, certa de que o marido se satisfazia com a idéia de pos­
suir uma cama. Sinhá Vitória desejava uma cama real, igual à de seu Tomás da bolandeira.
Enquanto Fabiano oscila entre a condição de homem e a condição de bicho, a revolta e a sub­
missão, a esperança imprecisa e o determinismo teimoso, enquanto o medo de reagir faz com que
não haja, sinhá Vitória encama a praticidade, o espírito de iniciativa, a fé em Deus e num destino
melhor para a família.
Por desejar uma cama real e não se conformar com a idéia de cama que satisfaz Fabiano ­
metáforas do comportamento de ambos - é ela quem aponta a direção concreta a ser seguida por
todos, do começo ao final do'romance.
Com a mesma precisão, decide pela morte do papagaio e faz as contas certas dos negócios de
Fabiano, embora inutilmente. Na festa de Natal na cidade - o marido roncando e sonhando com cn
muitos soldados amarelos, ameaçadores - sinhá Vitória alivia a vontade de urinar, molha os pés o

das outras matutas, pensa que a vida não é má e, apesar do medo da seca, fica alí de cócoras, <
cachimbando, os olhos e os ouvidos muito abertos para não perder a festa. a:
Considerada por Fabiano "o único vivente que o compreendia", encanta-o com o raciocínio o
rápido que associa o aparecimento das aves de arribação com a morte do gado. (As arribações z
<
bebiam a água. Bem. O gado curtia sede e morria. Muito bem. As arribações matavam o gado. ::i
cap. 1 1 - O mundo coberto de penas).
Quando, no último capítulo, a família foge da seca, Fabiano procura adiar a viagem, pois teme �
a:
afastar-se da fazenda, teme convencer-se da realidade. C)
Sínhá Vitória reza e ftaqueja, uma ternura imensa enche-lhe o coração, sente necessidade de -
falar (se ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo).
141
Chega-se então a Fabiano, e puxa com ele uma conversa de esperança que aos poucos o vai
animando. Ele elogia-lhe as pernas grossas, as nádegas volumosas, os peitos cheios. Ela baixa os
olhos, envaidecida, e reconhece que logo estaria magra, de seios bambos. Mas recuperaria car­
nes. Insiste com o marido até dominá-lo: Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo
no mato como bichos?
Entre o zumbido de um e o rosnado de outro, pensam nos filhos: seriam vaqueiros, na opinião
do pai; adotariam costumes diferentes, estudariam, na opinião da mãe.
Fabiano divide-se, ao mesmo tempo deslumbrado com os sonhos da mulher e, ao sentir-se
fraco, tendo pena dela. Após descansarem, ele indica um bebedouro à frente e, diante da dúvida
de sinhá Vitória, exalta-se, procura incutir-lhe coragem, mente sem saber que está mentindo para
excitá-la, enquanto ela lhe transmite esperança.

O menino mais novo/o menino mais velho e Baleia


No capítulo 5, a ele dedicado, o menino mais novo expressa, no desejo de imitar o pai, a
admiração que o faz querer "virar" Fabiano. A esta fantasia que não consegue compartilhar com
Baleia, com a mãe, nem com o objeto de sua admiração - Fabiano - seguem-se pensamentos
confusos, reveladores da solidão do menino: Conversando, talvez conseguisse explicar-se. Mas a
ausência de interlocutores e o fracasso da aventura machucam-no e levam-no a sonhar, a desejar
crescer - transformar-se em homem e assim deixar admirados Baleia e o irinão.
Um fragmento do sonho do menino, do qual só a natureza participa, exemplifica alguns
momentos de lirismo presentes no romance: Levantou os olhos tímidos. A lua tinha crescido,
engrossava, acompanhada de uma estrelinha quase invisível. Àquela hora os periquitos descan­
,
savam na vazante. Se possuísse um daqueles periquitos, seria feliz.
· Baixou a cabeça, tornou a olhar a poça escura que o gado esvaziara. Uns riachos miúdos
marejavam na areia como artérias abertas de animais. .
No capítulo 6, acontece com o menino mais velho a mesma decepção sofrida pelo menino
mais novo, por motivo idêntico: a solidão, a incomunicabilidade.
Ao perguntar a sinhá Vitória o significado da palavra "inferno", primeiro ela falou de espetos
quentes e fogueiras. Depois, como insistisse,
achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote.
Baleia, suspeitando que as coisas não iam bem, topou o ca7parqda, c�orando, muito infeliz à
sombra das catingueiras (. . .). Afinal convenceu-o de que o prÓcedimer.zto dele era inútil.
O menino, então, conta-lhe baixinho uma história, vakndo�se de exclamações e de gestos (seu
vocabulário era minguado como o do papagaio morto no tempo da ,seca).
Todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava simpatia (...) Ele tinha
querido que a palavra virasse coisa eficara desapontado quando a mãe se referira a um lugar ruim,
com espetos e fogueiras. Por isso rezingara, esperando que elafizesse o inferno transformar-se.
Para o menino mais velho, todos os lugares conhecidos são bons, o que o faz associar o mundo
ruim com a época da seca, lembrando-se das pancadas que Fabiano lhe dera. Mas, quando tudo se
consertara, era como se as coisas ruins nunca tivessem ex.istidó e o mundo se povoasse de magia:
Ossos e seixos transformavam-se às vezes nos entes que povoavam as moitas, o morro, a serra
distante e os bancos de cacambira.
Embora não soubesse falar direito - imitando os berros dos animais, os sons dos galhos que
rangiam na caatinga, roçando-se - ele decide decorar a palàvra "inferno" e ensiná-la ao irmão e
à cachorra, sem acreditar que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim.
Entretanto, nem o consolo de Baleia, nem a invenção de que não fizera a pergunta, não recebera
portanto o cascudo, diminuem-lhe a tristeza. Sentindo-se fraco e desamparado, abraçou a cachorrinha
<( com uma violência que a descontentou. Não gostava de ser apertada, preferia saltar e espojar-se
o

z Comentário Geral sobre os Personagens
w Você percebeu como os capítulos do enredo nos vão dando a interioridade dos personagens, e

o os configurando em sua humanidade desvalida, solitária, incomunicável.
A solidão, a dificuldade
u de comunicar-se, seja pela desatenção dos outros, seja pela ausência de palavras, e os pensa­
<( mentos confusos constituem elementos que aproximam todos os personagens de Vidas secas.
c:
::::> Entretanto, há algo de específico no universo infantil, cujas fantasias - virar o pai, possuir

�c: periquitos, entender o sentido de uma palavra, fazer de conta que não houve o castigo injusto para
não sofrer - encontram eco na delicadeza de sentimentos de Baleia.
w Embora também tenha o seu sonho t< os seus gostos, que às vezes não coincidem com as neces­
1-
:J sidades das crianças, Baleia parece juntar-se a elas, que por sua vez se unem à natureza, servindo
--. como uma espécie de elo de ligação entre a sensibilidade ingênua e primitiva e a insensibilida­
142 de, talvez a inconsciência, também ingênua e primitiva, dos adultos em relação a elas.
Nesse sentido, a cachorrinha e os meninos se contrapõem a sinhá Vitória e Fabiano.
Entretanto, tal contraposição se relativiza se pensarmos na condição de opressão que todos sofrem;
os adultos reagindo através da reprodução do que sentem, e assim oprimindo e marginalizando; as
crianças e Baleia reagindo 1través da fantasia, do sonho, da comunhão com a natureza da qual
decorre a leveza poética, o encantamento mágico que exemplificamos. Mas o sonho ocupa igual­
mente o imaginário de sinhá Vitória e de Fabiano, como podemos verificar comentando o capítu­
lo 7, Inverno.
Nele, prevalece o sonho de Fabiano, que, otimista com a chuva, tenta relatar histórias incom­
preensíveis, exercendo em todas elas o desejado papel de herói. Sinhá Vitória, que dorme -numa
cama de varas, com um pau no meio e cheia de pulgas, j á tem o seu sonho conhecido pelo leitor:
uma cama de couro, uma cama de gente. Em vez de alimentá-lo, preocupa-se com a possibilidade
de enchente, :.t qual faria a família dormir nas árvores, como os preás.
O espírito prático que lhe traz essa preocupação é compensado pelo otimismo com que confia
a Deus a proteção da família e imagina que a casa é forte, que, se não resistisse, voltariam quan­
do as águas baixassem.
Os meninos, sentindo frio numa banda e calor na outra, não podiam dormir com as lorotas
do pai. Enquanto o mais novo extasia-se em cada luta que Fabiano vence, bate palmas para cada
façanha de que o pai acredita-se capaz, e assim alimenta o próprio sonho, o menino mais velho
percebe que Fabiano modificava a história - e isto reduzia-lhe a verossimilhança, o que o desi­
lude perante um herói humano e contraditório.
Quanto a Baleia, enjoada com o barulho, permanece paciente, à espera de que a deixem em
paz, sonhando: Varrido o chão com a vassorinha, escorregaria entre as pedras, enroscar-se-ia,
adormecida no calor, sentido o cheiro das cabras molhadas e ouvindo rumores desconhecidos, o
tique-taque das pingueiras, a cantiga dos sapos, o sopro do rio cheio. Bichos miúdos e sem dono
iriam visitá-la.
Em síntese, o capítulo se constitui de um conjunto de monólogos interiores através dos quais
observamos cada personagem entregue ao próprio devaneio, ao longo de uma "reunião" em que o
misto de calor e frio, de luz e sombra - ambos provocados pela fogueira que se mantém acesa,
mas não aquece nem ilumina o suficiente - dá a impressão visual e tátil do gigantesco silêncio
que isola os personagens. Além do contexto comum, aproxima-os mais os sonhos e os outros sen­
tidos que a linguagem verbal, substituída por rugidos, gesticulações, inteljeições e uma fala dura
e rouca, entrecortada de silêncios.
Concluindo o nosso estudo dos personagens de Vidas secas, em sua instauração através de ele­
mentos do enredo, vamos comentar um dos mais belos capítulos do livro, o capítulo 9, que relata
a morte de Baleia.
Sinhá Vitória maltrata rudemente os filhos, para impedi-los de sofrer a perda da companhei­
ra. Ao mesmo tempo, de coração pesado lamenta que o marido não espere mais um dia para ver
se a execução é indispensável.
Enquanto Fabiano procura realizar a tarefa com firmeza, Baleia - um bicho diferente dos ou­
tros - oscila entre o desejo de mordê-lo e o reconhecimento de que j amais o faria: Tinha nasci­
do perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão,
ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.
Assustada com a interrupção da rotina, a "criaturinha" não se lembra mais de Fabiano nem do
desastre que ocorrera. Com uma pata ferida por um tiro, encosta acabecinha fatigada na pedra,
querendo dormir. Acordaria feliz nummundo cheio depreás. E lamberia as mãos de Fabiano, um
Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num
chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.
Aqui novamente se roçam sonho e realidade, vida e morte, humanidade e desumanidade,
revolta e submissão, agora tematizados com a força e o lirismo desta "criaturinha única". Misto de
animal, de criança, de poeta, nela reconhecemos um ser delicado e frágil magicamente tecido de
cada um dos seres do romance, de cuja animalidade pudemos ver "a outra face", especialmente
através de Baleia . . .

Linguagem
Na opinião de Antônio Cândido, na obra citada, em todas as obras de Graciliano Ramos "estão
presentes a correção de escrita e a suprema expressividade da linguagem, assim como a secura da
visão de mundo e o acentuado pessimismo, tudo marcado pela ausência de qualquer chantagem
sentimental ou estilística. ( . . . ) E o medo de encher lingüiça é um dos motivos de sua eminência, de
143
escritor que só dizia o essencial e, quanto ao resto, preferia o silêncio. ( . . . ) Entre o nada primor­
dial anterior ao texto, e o risco de acabar em nada devido a insatisfação posterior, se equilibra a
sua obra essencial, uma das poucas em nossa literatura que parece melhor com a passagem do
tempo, porque mais válida à medida que a lemos de novo".
As frases curtas, a pontuação precisa e cortante, o uso do futuro do pretérito nas passagens em
que o discurso indireto livre permite que sejam expressos os sonhos dos personagens, a inexistên­
cia de diálogos, a abundância de interjeições, exclamações, sons onomatopaicos, substituindo a
fala dos personagens e mostrando-lhes a animalidade, constituem alguns dos elementos enrique­
cedores de Vidas secas.
A eles acrescentamos a dimensão visual e sonora explorada na descrição da natureza, ora
inclemente em sua aridez, ora significando segurança, esperança, seja quando, animizada, une-se
aos sonhos dos personagens, seja através da imagem dos juazeiros, verdes e acolhedores, destoan­
do do abandono e da secura que o livro expõe com a violência e a precisão do mestre Graciliano
Ramos.
Além da objetividade narrativa, conciliada com a instituição da humanidade dos seres que a
povoam, através de monólogos interiores nos quais o silêncio é convertido em linguagem - uma
linguagem que é espoliada dos personagens, como os outros fatores essenciais para a sobrevivên­
cia - a riqueza de imagens a engrandece sem tomá-la kitsch, sem apelos emocionais e estilísti­
cos, como bem lembrou Antônio Cândido.

V�
·
. - .·· '
- · .
.,• , , . , , •· , . " " '""· · · '
·
.

11 (UNICAMP) Um personagem constantemente mencionado


em Vidas secas, de Graciliano Ramos, é Seu Tomás da
bolandeira. Homem letrado, é tido como um exemplo de
a) Cite um episódio do romance em que fica evidente a difi­
culdade de expressão de Fabiano, na presença de pessoas
que julga superiores.
"sabedoria " por Fabiano, que muitas vezes o vê como um b) Como o episódio escolhido por você exemplifica a relação,
modelo. percebida por Fabiáno, entre u ni uso mais "diffcil " da lin­
Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-/o: dizia pala­ guagem e o poder exercido por determinadas pessoas?
vras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhora­

El
va. (FUVEST} E pensando bem, ele não era homem: era apenas
Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho,
tinha nascido para falar certo. queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos:
Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios,
cima de jornais e livros, mas não sabia mandar: pedia. descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava­
Esquisitice um homem remediado ser cortês. se cabra.
A té o povo censurava aquelas maneiras. Este é o retrato de Fabiano, do livro Vidas secas, de
Mas todos obedeciam a ele. Ah! quem disse que não obede­ Graciliano Ramos.
ciam? a) Por que o autor enumera os caracteres físicos de Fabiano?
b) Que sentido tem a palavra cabra no texto?

!:11
11
a) Um episódio do capítulo " Cadeia " deixa evidente a dificul­ a) O autor enumera os caracteres físicos de Fabiano - os
dade de Fabiano de expressar-se na presença de pessoas (i1l olhos azuis, a barba e o cabelo ruívos, a cor vermelha, quei­
<( que julga superiores. Trata-se do momento em que é pra­ mado de Sol - para mostrar que ele é um homem, embo­
o ticamente coagido pelo soldado amarelo a jogar cartas ra se j ulgue apenas um "cabra " , por viver em terra alheia

z
com ele, e responde ao " convite" gaguejando, procurando
as palavras " culta s " de seu Tomás da bolandeira. O esfor­
e ocupar-se em guardar coisas dos outros, isto é, pela con­
dição de inferioridade social e de subalterno em que vive.
w ço de Fabiano leva-o a aceitar o convite, ou melhor, a "obe­ b) A palavra cabra no texto tem o sentido de oprimido, de
·� decer" o desejo do soldado, expressando-se de maneira subalterno, de inferior socialmente. Em relação aos " bran­
o confusa, criando uma frase ininteligível: - Isto é. Vamos e cos" , os homens da cidade, os proprietários, Fabiano se
(.J não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme. sente um " cabra " , quer dizer, menos que um homem, um
<( b) O episódi,p escolhido exemplifica a relação entre um uso bicho.
a: mais "difícil" da linguagem e o poder que as pessoas "da
:::>

cidade" exercem sobre Fabiano, em especial aquelas " de
farda " , como o soldado amarelo, na medida em que o pro­
a: tagonista de Vidas secas, percebendo-se interiorizado pela
w
1- linguagem daquele que o oprime, tenta responder com a
:J " mesma moeda " , isto é, com palavras emprestadas de seu
- Tomás da Balandeira, o homem cuja " cultura" admirava.

144
LITERATURA COMENTADA
Emília Amaral, Mário Francisco Spanghero, Severino Antônio

DRUMMOND DE ANDRADE
o antilírico da secura, do beijo tácito, da sede infinita
Eu pego num livro velho com reverência; o desejo de alongar asfronteiras da existência,
sinto nele a substância inerente pela reflexão ou pelo sonho acordado. . .
a toda criação do espírito:

"EU NÃO DISSE AO SENHOR QUE NÃO SOU SENÃO POETA?"


A obra de Carlos Drummond de Andrade representa o melhor dos múltiplos cami­
nhos da moderna poesia brasileira, do poema-piada como Cota zero (Stop/ A vida em ltabira do Mato Dentro. Minas
parou?/ Ou foi o automóvel?) ao poema social e político de Mãos dadas, da lírica exis­ is. em 1902. Em 1925. participa da
tencial de Confidência do itabirano ao épico-filosófico de Amar, de textos discursivos A Revista, porta·voz de um grupo de jovens
como em Os ombros suportam o mundo aos textos elípticos e condensados. mineiros e estabelece contato com os
modernistas do Rio e de São Paulo.
Além da criação de uma poesia de alta qualidade, Drummond conseguiu conquis­
principalmente Manuel Bandeira e Mário de
tar significativo público para a poética modernista: ao morrer, em 1 987, aos 85 anos, Andrade.
apesar de seu retraimento e seu jeito avesso à publicidade, era muito conhecido, dentro Sua atividade poética atravessará mais de 60
e fora do Brasil, uma espécie de personificação - não-institucional, não-acadêmica ­ anos, sendo considerado. quase por
do poeta e da poesia. unanimidade. o mais totalizante e o mais
significativo poeta do século XX no Brasil.
Em 1 930 publica Alguma Poesia. que, com
Brejo das Almas. seu segundo livro, melhor
POESIAS DE DENUNCIA E DILACERAÇÃO DO MUNDO realizou a unidade entre a poesia de 22 e a
de 30.
Drummond participa da segunda geração modernista, a de 1 930-1945; no entanto, sua Em 1 933, passa a morar no Rio de Janeiro.
obra representa a síntese, a unidade entre a primeira (a fase "heróica", de 1 922 a 1930) e onde trabalhou como funcionário público e
a segunda geração. A partir de Alguma poesia (poemas típicos de ruptura das convenções, escreveu diariamente para jornais. ao longo
de 50 anos. Nesta cidade veio a falecer, em
em especial das acadêmicas e parnasianas), o poeta assume novas linguagens, até a colo­ 1 987. aos 85 anos. w
quial e aborda temas do cotidiano, das pequenas cidades e das metrópoles.
Obras
o
Encontramos em Alguma poesia micro-poemas, poemas-piada, poemas-paródia, <(
Poesia a:
versos livres, estrofação heterogênea, em uma realização radicalmente pessoal, com voz Alguma Poesia; Brejo das Almas; Sentimento o
própria, marcada de inquietude e investigação existencial, de densa ironia, de antilirismo do Mundo; José; A Rosa do Povo; Novos z
intencional, como verificaremos na Antologia comentada. O segundo livro, Brejo das Poemas; Claro Enigma; Fazendeiro do At;- <(
A Vida Passada a Limpo; Lição de Coisas; w
almas, de 1 934, reapresenta essas características intensificando a temática existencial. o
A Falta que Ama; As Impurezas do Branco;
Drummond escreve também uma poesia típica da segunda fase modernista, sempre Boitempo I e 11; Versiprosa; Viola de Bolso; o
com inconfundível voz pessoal. É uma poesia menos voltada para a ruptura, com maior Discurso da Primavera e Algumas Sombras; z
Corpo.
o
universalidade de temas, de linguagens, e de imagens, desenvolvendo novos caminhos

(filosóficos, políticos, sociais) e superando certa atitude maniqueísta da vanguarda, que Prosa

negava em bloco e indiscriminadamente a herança passada. Drummond publica Contos de Aprendiz; Confissões de Minas; :::>
Sentimento do mundo ( l 940), José ( 1 942), A rosa do povo ( 1 945), Novos poemas ( 1 948). Passeios na Ilha; Fala. Amendoeira: A Bolsa a:
& a Vida; Cadeira de Balanço; Caminhos de O
Nessas obras, apresenta poesia social e política do mais alto nível, de denúncia das João Brandão; O Poder Ultrajovem; De -
dilacerações do mundo, de resistência diante dos totalitarismos (principalmente do nazi- Notícias & não Notícias Faz-se a Crônica. O 145
fascismo). Poesia que questiona e chama à ação, poesia pública, para ser lida em voz alta, falada até
em comícios, participante, altamente expressiva, com vigorosos versos livres, com intensa fabula­
ção de imagens, sem se desfigurar em panfleto de propaganda.
Com Claro enigma ( 1 95 1), seguido de Fazendeiro do ar ( 1954) e A vida passada a limpo
( 1 959), outra face de Drummond prevalece: uma poesia de grande elaboração formal, fundindo o
clássico e o moderno, com grande rigor de construção, muitas vezes hermética, de acentuada preo­
cupação filosófica e mesmo metaflsica.
Nessas obras o poeta questiona o sentido e a ausência de sentido da existência, a crise do indi­
víduo, da linguagem e da poesia. Uma poética de fundo desencanto, que não se faz cúmplice de
aparências, que arranca todas as máscaras do real para olhar cara a cara os vazios, sem medo de
perder as ilusões.
O critico Alfredo Bosi escreve, em sua História
concisa da literatura brasileira: A partir de
Claro enigma (1958-51), o desencanto que sobreveio à fugaz experiência da poesia política tem
ditado ao poeta dois modos principais de compor o poema:
a) escavar o real mediante um processo de interrogações e negações que acaba revelando o vazio
à espreita do homem no coração da matéria e da História. O mundo define-se como um vácuo
atormentado! um sistema de erros (...).
b) fazer as coisas e as palavras - nomes das coisas - boiarem nesse vácuo sem bordas a que a
interrogação reduziu os reinos do saber.
Essa poética de escavação, que predomina agora e que se dissemina por toda sua obra, pare­
ce o avesso do desejo de totalização harmônica da vida, desejo sempre de transpor a cisão entre a
palavra e a coisa, para além do mistério e da precariedade do destino humano.
Com Lição de coisas, em 1962, já é outra face a predominante: Drummond retoma temas soei­
ais e subjetivos, retoma os versos livres, e abre um campo de reiterada experimentação com as
palavras. Na apresentação do livro Drummond escreve: O poeta abandona quase completamente
a forma fixa que cultivou durante certo período, voltando ao verso que tem apenas a medida e o
impulso determinados pela coisa poética a exprimir. Pratica, mais do que antes, a violação e a
desintegração da palavra, sem entretanto aderir a qualquer receita poética vigente.
A multiplicidade de ritmos de sua poesia não tem paralelo entre os modernistas; a densidade
emocional, semântica e imagística a toma uma espécie de síntese da moderna poesia brasileira,
matriz de muitos outros poetas.

ANTOLOGIA COMENTADA
Explicação

Meu verso é minha consolação.


Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha defolha-de-jlandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.
Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meus versos. E meu verso me agrada
(. . .)
<( Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
o Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?
j:f
z
w Sob o título provisório deReunião, Drummond publicou em 1 969, um volume contendo dez
� livros de poesia: Alguma poesia ( 1 930), Brejo das almas ( 1 934), Sentimento do mundo ( 1940),
o José (1 942), A Rosa do povo ( 1 945), Novos poemas ( 1 948), Claro enigma ( 1 95 1 ), Fazendeiro do
(:)
<( ar (1 954), A vida passada a limpo ( 1 959), Lição de coisas ( 1 962).
a: Ao organizar a sua Antologia poética, em 1 962, Drummond optou por apresentá-la em certos
::>
�a:
núcleos temáticos, que seriam, segundo suas próprias palavras, certas características, preocupa­
ções ou tendências que a condicionam ou definem em conjunto. A Antologia lhe pareceu assim
w mais vertebrada e, por outro lado, espelho mais fiel.
1-
::::i Para fazermos esta travessia de iniciação à sua obra, optamos por seguir a arquitetação pro­
- posta por ele; além disso, incluímos o livro a que pertence cada poema, para que se possa identi­
ficá-lo nos momentos da criação de Drummond.
146
Um eu todo retorcido

Poema de setefaces
(Alguma poesia)
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.

As casas espiam os homens


que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bondepassa cheio de pernas:


pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode


é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste


se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,


se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer


mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

As sete faces correspondem a sete estrofes, como se fosse um retrato em sete partes. Poema
tipicamente modernista, de ruptura com as convenções. Descontínuo, inesperado, coloquial.
Escrito com versos livres e com estrofes heterogêneas. Irônico: neste poema de descoberta do eu
e do mundo Drummond se coloca como gauche - um desaj eitado - mas cuj o coração transbor­
da, mais vasto que o mundo, com humor desencantado, sarcástico. Com uma secura que represa a
emoção. Anti-lírica. Observe o tom de confidência da última estrofe, onde o poeta assume a emo­
ção, embora a atribua ao conhaque e à lua . . .

Uma província: esta


Corifidência do itabirano
(Sentimento do mundo)
w
o
Alguns anos vivi em Itabira. <(
a:
Principalmente nasci em Itabira. o
Por isso sou triste, orgulhoso: deferro. z
Noventa por cento de ferro nas calçadas. <(
Oitenta por cento de ferro nas almas. w
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
o
o
A vontade de amar, que me paralísa o trabalho, z
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. o
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, �
é doce herança itabirana. �
::::>
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço: a:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; o
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; -
este orgulho, esta cabeça baixa . . .
141
Tive ouro, tive gado, tivefazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede
Mas como daí!

Cidadezinha qualquer
(Alguma poesia)
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar. . . as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.

Estes dois poemas são referências para toda a obra de Drummond. O primeiro, um autoretra­
to, e o segundo, um flash de uma cidadezinha qualquer, ambas constituem reelaborações poéticas
de sua cidade natal, Itabira. Enquanto em Confidência do itabirano há expressivas antíteses, de
ironia amarga e sutil (por exemplo, hábito de sofrer I que tanto me diverte I doce herança itabira­
na) , em Cidadezinha qualquer os verbos no infinitivo, as repetições e uma prosopopéia
(Devagar... as janelas olham) expressam o tédio, a monotonia da vida no interior, que no entanto
deixa tanta saudade, como mostram os versos finais, antológicos, de Confidência do itabirano.

A família que me dei


Itiftincta
(Alguma poesia)
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé
Comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu


a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãeficava sentada cosendo


olhando para mim:
- Psiu . . . Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro . . . que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
<( era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
o
Outro antológico poema "itabirano". Observe que o prosaico, o cotidiano - montar a cavalo,
�z ir para o campo, fazer criança dormir, tomar o café da preta velha, ler histórias - são transforma­
w dos em elementos poéticos intensamente expressivos, com uma simplicidade essencial, raramente
2 atingida na poesia brasileira. Novamente, versos livres, estrofes heterogêneas, linguagem coloquial.
o
u Cantar de amigos
<(
a: Mário de Andrade desce aos infernos
::> (fragmento)
�a: (A Rosa do povo)
w I
1- Daqui a vinte anos farei teu poema
::i e te cantarei com tal suspiro
� que as flores pasmarão, e as abelhas,

148 confu ndidas, esvairão seu mel.


Daqui a vinte anos: poderei
tanto esperar o preço da poesia?
É preciso tirar da boca urgente
o canto rápido, ziguezagueante, rouco,
feito da impureza do minuto
e de vozes em febre, que golpeiam
esta viola desatinada
no chão, no chão.

Escrito para a morte de Mário de Andrade, este fragmento já revela a tensão do teto, a inten­
sidade emocional do poema. Tendo como tema o desconcerto diante da morte (observe as imagens
da natureza caótica, a repetição no chão, no chão que dá maior ênfase ao desatino, ao desespero),
Drummond anuncia um poema futuro no entanto realizado no aqui/agora da perplexidade, da
comoção.

Amar-Amaro
Mãos dadas
(Sentimento do mundo)
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,


não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entotpoecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
o tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Este é um dos mais fundamentais poemas políticos de todo o Modernismo. Texto engajado,
comprometido, participante, e, ao mesmo tempo, de grande força poética. Ritmo intenso, ima­
gens intensas. Observe o tom da fala, de oralidade, a linguagem coloquial muito expressiva, acen­
tuada pela pulsação livre dos versos. Na construção do poema, observe a enumeração de negações
- que recusam as variadas formas de escapismos românticos, de fuga da realidade. A repetição
de palavras, em especial a palavra presente, carrega ainda mais o texto de alta tensão poética.

Canção amiga
(Novos poemas)

Eu preparo uma canção


em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua


UJ
que passa em muitos países. c
Se não me vêem, eu vejo <(
e saúdo velhos amigos.
a:
c
z
Eu distribuo um segredo <(
como quem ama ou sorri. UJ
No jeito mais natural o
dois carinhos se procuram. o
z
o
Minha vida, nossas vidas

formam um só diamante.

Aprendi novas palavras :::I
e tornei outras mais belas. a:
Eu preparo uma canção o
que faça acordar os homens -
e adormecer as crianças.
149
Canção amiga é um dos textos de ritmo mais fluente e mais musical de toda a obra de
Drummond, fundado em versos redondilhos maiores (sete sílabas). As imagens são de uma sim­
plicidade iluminada. Neste poema, a desejada unidade harmônica da vida - para além das nega­
ções, das rupturas, das cisões, das precariedades - está anunciada: há uma rara e dificil positivi­
dade das idéias e das metáforas. Observe a interação entre os versos redondilhos, as estrofes regu­
lares (quatro de quatro versos, uma de três versos) e o coloquial intensamente expressivo.

Os ombros suportam o mundo


(Sentimento do mundo)

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.


Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem ã porta, não abrirás.


Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandescem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?


Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou em tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Outro poema político e existencial de grande intensidade, representante da poesia social de


Drummond, aquela em que o coração é menor, muito menor que o mundo. Questionador da rela­
ção conflituosa do indivíduo e do mundo, numa perspectiva anti-romântica, antilírica convencio­
nal, chamando à vida que há por se fazer. Texto que exemplifica como a linguagem coloquial e as
imagens diretas podem ser altamente expressivas, no reconhecimento da necessidade de perceber
que a vida é uma ordem, sem mistificação, sem ilusões vãs, com sobriedade, clareza e desencan­
to irônico, amargo, embora não resignado.

Uma, duas argolinhas

Quadrilha
(Alguma poesia)
<(
o João amava Teresa que amava Raimundo
�z que amava Maria que amava Joaquim que amava Li/i
w que não amava ninguém.
� João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
o Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
u
<( Joaquim suicidou-se e Li/i casou com J Pinto Fernandes
o: que não tinha entrado na história.
::::>
!d:o: Poema-piada, em versos livres, tipicamente modernista e drummondiano: carregado de antili­
w rismo, de ironia seca e amarga, sobre os desconcertos do amor, sobre a cadeia de desencontros e
1-
....J a permanente falta de correspondência das relações amorosas, mas com humor, que se acentua na
...... figura de Lili, a que não amava e que se casa ... Como se o casamento nada tivesse a ver com as
150 histórias de amor.
Amar
(Claro enigma)

Que pode uma criatura senão,


entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,


sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,


o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,


distribuído pelas coisas péifidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa


amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Poema filosófico de alto nível, observe os ritmos, ao mesmo tempo tensos e fluentes, a com­
plexa rede de metáforas enumeradas. O texto funde o lírico da temática amorosa e o épico da refle­
xão coletiva, universal, sobre a necessidade de amar. A linguagem funde o coloquial - amar e
malamar - e o culto - e amar o inóspito.
Atravessado de indagações e de respostas, este é um dos mais significativos poemas de amor
de toda a língua portuguesa.

Poesia contemplada
Procura da poesia
(fragmento)
(A rosa do povo)

Não faças versos sobre acontecimentos.


Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
w
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. o
Não jaças poesia com o corpo, <
esse excelente, completo e confortável cotpo, tão infenso à infusão lírica. a:
o
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro z
são indiferentes. <
Nem me reveles teus sentimentos, w
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem. o
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. o
z
Não cantes tua cidade, deixe-a em paz.
o
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

:::>
(. . .) a:
Penetra surdamente no reino das palavras. o
Lá estão os poemas que esperam ser escritos. -
Estão paralisados, mas não há desespero,
151
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consuma
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.


Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceite-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma
tem milfaces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito,
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Outro poema fundamental na obra de Drummond e no Modernismo brasileiro. Metapoema,


metalinguagem. Poesia que fala de poesia. A concepção é universal na poética moderna: a poe­
sia se faz com palavras, a poesia está na linguagem. O fazer poético é penetração no reino das pala­
vras, descoberta de suas faces secretas, que se escondem sob a face neutra, aparente, usual.

Na praça de convites
Os materiais da vida
(A vida passada a limpo)

Dris? Faço meu amor em vidrotil


Nossos coitos são de modernfold
Até que a lança de inteiflex
Vipax nos separe
em clavilux
Camabel camabel o vale ecoa
Sobre o vazio de ondalit
A noite asfáltica
plkx

Poema de experimentação verbal, de experiências com as palavras: criação de neologismos,


disposições visuais significantes, jogos sonoros fragmentários, descontinuidade radical dos versos.
<( Observe a intensa ironia drununondiana, parodiando os termos e os slogans da sociedade de con­
o sumo altamente urbana e industrial.

z
w Tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo

o.
u No meio do caminho
<( (Alguma poesia)
a:
::J No meio do caminho tinha uma pedra


a:
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
w no meio de caminho tinha uma pedra .
.._.
::J Nunca me esquecerei desse acoYJ[ecimento
---. na vida de minhas retinas tãofatigadas.

152 Nunca me esquecerei que no meio do caminho


tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Provavelmente este é o mais polêmico poema da história do Modernismo, por sua concepção
e sua estrutura revolucionárias: os versos se repetem, circulares, em torno da pedra (a frase vai até
a pedra e volta, sem ultrapassá-la). Por essa organização sintática, pelo radical coloquialismo da
linguagem, pelas inumeráveis leituras metafóricas que possibilita, este poema tornou-se um sím­
bolo da poesia de Drummond e do Modernismo brasileiro. No meio do caminho, de poesia anti­
poética, de lírica antilírica, ilustra a travessia do poeta e de todos nós entre o individual e o social,
o coração e a pedra no meio do caminho, o mundo.

A máquina do mundo
(Claro enigma)
(fragmento)
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pousado e seco; e aves pairassem
n o céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romperjá se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
(. . .)
baixei os olhos, incurioso, !asso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
w
c
Poema épico-filosófico de dimensão universal. Escrito em tercetos/estrofes de três versos <(
a:
(como a Divina comédia, de Dante) e em versos decassílabos camonianos, sem rima. O texto c
representa o tema da máquina do mundo, do episódio de Ilha dos amores (Os Lusíadas), em que z
Vênus, em homenagem às conquistas portuguesas, revela a Vasco da Gama a máquina do cosmos, <(
w
a estrutura do universo, síntese da concepção da natureza. Numa postura moderna, radicalmente c
anti-épica, anti-heróica, o narrador-personagem se recusa a contemplá-la e continua o caminho, de c
mãos pensas... z
o


::::>
a:
c
-

153
1. Reconheça características modernistas no poema em ter­
11 mos de forma e temática: El (FUVEST)

Elegia

José Está sem mulher, Ganhei (perdi) meu dia.


(fragmento) está sem discurso, E baixa a coisa fria
está sem carinho, Também chamada noite, e o frio ao frio
E agora, José ? já não pode beber, em bruma se entrelaça, num suspiro.
A festa acabou, já não pode fumar,
a luz apagou, cuspir já não pode, E me pergunto e me respiro
o povo sumiu, a noite esfriou, na fuga deste dia que era mil
a noite esfriou, para mim que esperava
e agora, José? o dia não veio, os grandes sóis violentos, me sentia
e agora, José ? o bonde não veio, tão rico deste dia
Você que é sem nome, o riso não veio e lá se foi secreto, ao serro frio (. . .)
que zomba dos outros, não veio a utopia (Vida passada a limpo)
você que faz versos, e tudo acabou
que ama, protesta ? e tudo fugiu Dos versos anteriores podemos entender que:
e agora, José? e tudo mofou, a) o poeta sente medo e tristeza dentro da noite negra e fria.
e agora, José? Ele ama o dia e a sua luz.
b) O poeta exprime um suave sentimento de tranqüilidade,
ao cair de uma noite de inverno: ele merecera e ganhara

El Identifique o tema da poesia e sua classificação segundo os mais u m dia, aproveitando o descanso da noite para medi­
critérios de Drummond para organizar sua antologia. tar.
c) O poeta sente-se triste ao fim de mais um dia de um longo
inverno, e lembra-se com saudade dos dias quentes e ale­
O lutador para meu sustento gres do verão.
num dia de vida. d) O poeta, sentindo próximo o fim da vida, faz um retrospec­
Lutar com palavras Deixam-se enlaçar, to melancólico, confrontando o m uito que espera e o nada
é a luta mais vã. tontas à carícia que tem nas mãos.
Entanto lutamos e súbito fogem e) A poesia é puramente objetiva e descritiva. O poeta pre­
mal rompe a manhã. tende transmitir-nos, quase que fisicamente, a sensação
São muitas, eu pouco. e não há ameaça de um dia de inverno.
Algumas, tão fortes e nem há sevícia
como o javali. que as traga de novo
Não me julgo louco. ao centro da praça.
(. . . )
Se o fosse, teria Tamanha paixão
poder de encantá-las. e nenhum pecúlio.
Mas lúcido e frio, Cerradas as portas,
apareço e tento a luta prossegue
apanhar algumas nas ruas do sono.



z
w

o
u
<(
a:
� 11 O poema é nitidamente modernista, pelos versos livres, pela
linguagem coloquial, pelas estrofes heterogêneas e também
O tema é a própria luta com as palavras, o ato de escrever, o
trabalho de se expressar. Trata-se de um metapoema, que
a: pelo tema: a crise do homem comum, do homem da rua, no faz metalinguagem. Na classificação de Drummond ele seria
mundo moderno, espécie de beco sem saída pela ausência enquadrado no item Poesia contemplada, ou seja, poesia
� de ilusões, de solidariedade humana, pela consciência da que fala sobre a própria poesia .
....I solidão, da morte dos deuses, da falta de arrimo e da neces­
� sidade implacável de continuar: Você marcha José!/ Jot;é,
154 para onde ?
;

JOSE LINS DO REGO


A história desses livros é bem simples - comecei querendo apenas escrever umas
memórias quefossem a de todos os meninos criados nas casas-grandes do
engenhos nordestinos. Seria apenas um pedaço de vida o que eu queria contar.
Sucede, porém, que um romancista é muitas vezes o instrnmento
apenas deforças que se acham escondidas no seu interior.

FOGO MORTO
Obra-prima do autor, fecho e superação do ciclo da
cana-de-açúcar.
(Alfredo Bosi - História concisa da literatura)

Narrador
Em Fogo morto, o foco narrativo é em terceira pessoa. Optando por um narrador
onisciente, que não faz parte do enredo, José Lins do Rego, além de sair do memoria­
lismo de seus romances iniciais, diversifica as vozes participantes da história, enfatizan­
do vários modos de sentir, de perceber a realidade sobre a qual escreve.
Três vozes se sobressaem, no contexto geral da obra, e outras as acompanham, desven­
dadas em sua interioridade pelo narrador através do discurso indireto livre. São elas: a do
mestre José Amaro, um seleiro de olhos amarelos, pernas inchadas e envelhecido, que mora
à beira da estrada do Engenho Santa F é, a do coronel Luís César de Holanda Chacon, o se­
nhor deste engenho e a do capitão Vitorino Carneiro da Cunha, parente dos grandes da
terra, dos coronéis, mas por opção ligado à defesa dos pobres e de seus direitos.
Além desses personagens, que são os protagonistas da obra, existem Sinhá, Dona
Vitória e Adriana, respectivamente as esposas de cada um deles, cuj as ações e cujos
sentimentos se destacam, dando ao romance uma espécie de polifonia, de diversificação
de perspectivas, de tensões entre os eus e a realidade, que passaremos a exemplificar.

Exemplo l
O seleiro estava possuído de paz, de tema tristeza; ta ver a lua, por cima das
Cajazeíras, banhando de leite as várzeas do coronel Lula de Holanda. Foi andan­
do de estrada afora, queria estar só, viver só, sentir tudo só. A noite convidava-o
para andar. Era o que nunca jazia. Vivia pegado naquele tamborete, como negro
no tronco. Efoi andando (. . .). Na lagoa, a saparia enchia o mundo de um gemer
semfim. E os vaga-lumes rastejavam no chão com medo da lua. Tudo era tão boni­
to, tão diferente da sua casa. Quis andarpara mais longe. E se deixasse a estrada?
(Primeira parte - O mestre José Amaro)

Exemplo 2
Seu Lula dava o sítio ao irmão do
A região canavieira da Paraíba e de velho Félix. E quando ele se foi, come­
Pernambuco em período de transição çou a imaginar em Neném. Não dei­
do engenho JXIIa a usina encontrou no xaria que a sua filha, que ele criara " osé Lins do Rego Cavalcanti nasce em
ciclo da cana-dEHiçúcar de José Lins do com tanto mimo, se casasse com um I Pilar. Pernambuco. em 1 901 . Morre no
Rego a sua mais alta expressão literária tipo da rua, um filho de alfaiate. Não, Rio de Janeiro. em 1 975. Um dos principais o
(. . . ). À torça de cmrear JXIIa o romance C!)
o fluxo da memória, José Lins do Rego
tudo que estivesse em suas mãos ele
representantes do neo-realismo no Brasil. w
faria para evitar. O pobre irmão de
expressou-se literariamente numa linguagem
a:
aprofundou a tensão eu/ realidade, Félix tivera coragem para liquidar o
viva e espontânea. que retrata com
o
apenas latente nas primeiras miserável, que desgraçara a filha ino­ o
experiências. E o ponto alto da conquis­ cente. Era o que faria também. fidelidade o povo nordestino. Principais (/)
ta foi essa obra-prima que é Fogo morto, Mataria sim, mataria o atrevido. obras: Menino de engenho (1 932). Doidinho z
fecho e superação do ciclo da ccma-de­ Estava só, era doente, não tinha a for­ (1 933). Moleque Ricardo (1935), Usina :J
açúcar. tuna de José Paulino, mas saberia •W
( 1 936), Fogo morto ( 1 943). Pedra bonita (/)
defender a sua filha com a sua vida,
(Alfredo Bosi - História concisa da ( 1 938). Riacho doce (1 929). Eurídice ( 1 947). o
com a sua morte se preciso fosse. ...,
literatura brasileira) Os cangaceiros (1953). Publicou ainda
(Segunda parte - O engenho de -
crôn icas . me mór ias e en sa i_
o s_
.............................. . ===-0
seu Lula)
155
=
Exemplo 3
O capitão Vitorino Carneiro da Cunha tinha cinco mil réis no bolso. Daria para o seu
telegrama de protesto. O que mandaria dizer ao presidente? O que mandaria dizer ao coro­
nel Rego Barros? E as palavras se formavam na sua cabeça. Em nome do povo de Pilar, em
nome de cidadãos honestos do município, pediria garantia aospoderes políticos (. . .). Vitorino
Carneiro da Cunha não faria como o primo ]osé Paulino que tolerava o bandido. Podia o seu
sangue correr, podiam arrancar-lhe a vida. Era homem para sustentar as suas opiniões, para
enfrentar os perigos.
(Terceira pane - O capitão Vitorino)

Observe, no exemplo 1, a solidão do mestre José Amaro, intensificada pela presença da natu­
reza, que lhe faz companhia em meio aos sapos, que enchem o mundo de um gemer sem fim e aos
vaga-lumes, que rastejam no chão com medo da lua...
A frase E se deixasse a estrada? é um exemplo de discurso indireto livre, de confusão volun­
tária entre a sua subjetividade calada, atormentada, por um momento entregue ao devaneio, e a voz
do narrador, que a traduz aos leitores.
No exemplo 2, o narrador também se aproxima do coronel Lula, agora para destacar a fúria
- Mataria, sim, mataria o atrevido - com que se nega a entregar a filha a um simples filho de
alfaiate, que não a merece e por quem lutaria com a sua vida, com a sua morte se preciso fosse.
Enquanto o mestre seleiro e o velho coronel se sentem abandonados, rejeitam a impotência
que parece dominá-los, o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, todo força e determinação, pensa
num telegrama - O que mandaria dizer ao coronel Rego Barros? - através do qual faria uma
reivindicação em nome dos cidadãos honestos do município.
Nos três casos, o discurso indireto livre mostra o desenvolvimento, feito pelo narrador, do
mundo interior dos personagens, em sua extrema e lírica solidão (mestre José Amaro), em sua
ruína e em seu ódio incontidos (coronel Lula), na reação inconformista e heróica ao domínio, ao
poder (capitão Vitorino).
As vozes femininas, como a de Sinhá, sofredora pela filha desequilibrada e pelo marido que
teme, igualmente merecem a adesão, a cumplicidade do narrador:

Mas, voltando a si, retomou para casa e foi encontrar o marido, em pé, como sem cons­
ciência, e a filha calada. A casa na paz dos monos. Procurou ver Mana, e não teve coragem.
Zeca, de pé, tinha os olhos arregalados fixos num ponto só. A luz da candeia bulia com o
vento. E os morcegos chiavam no jenipapeiro. O marido agora andava para o seu lado, vinha
para a potta da cozinha, com a sela na mão. Era um bicho, era o diabo que marchava por
cima dela (. . .). Estava com medo da sua casa. Em poucos minutos viu-se uma infeliz, uma
mulher sem coragem, sem força, um trapo. Teve vergonha de seu medo.

Vamos, agora, conhecer o enredo do romance e entender melhor o universo e as ações destes
e de outros personagens, procurando contextualizar a dor e o abandono que pulsam em Fogo
morto.

Enredo

Dividido em três partes, o romance enfoca na primeira a vida do seleiro, o mestre José
Amaro.
Batendo sela na beira da estrada, por onde passam personagens típicos do lugar, como o cego
Anacleto, o negro José Passarinho, o pintor Laurentino, o caçador Manuel da Úrsula, além do com­
<( padre capitão Vitorino e de Sinhá Adriana, a mulher do capitão, comadre e amiga de Sinhá, o mes­
o

z
tre José Amaro cotidianamente amarga grande revolta.
É revoltado contra os ricos como o coronel José Paulino, dono do engenho Santa Rosa, que
w fora ríspido com ele sem necessidade, o que não perdoa. É revoltado contra a Sinhá, que se unira
� a ele sem amor, por falta de opção, e que protege a filha Marta, estranha e silenciosa, uma moça
o
u velha que não desperta o interesse de nenhum pretendente.
<( A culpa de tudo é Sinhá, repete incansavelmente, atribuindo-lhe inclusive a responsabilidade
a: de não ter tido filho homem, que pudesse continuar o seu oficio, como fizera em relação ao pai,
:::::>

a:
homem valente, vindo de Goiânia com uma morte nas costas.
A amargura do mestre vem assim de uma vida irrealizada, cujos acontecimentos se precipi­
w tam: a filha enlouquece, sendo levada a um hospício do Recife, o menosprezo dos coronéis o apu­
1-
::J nhala pelas costas - devido a intrigas do negro Floripes, o coronel Lula o expulsa de suas terras
...... - e finalmente o hábito de sair para esticar as pernas nas noites de lua cheia o faz ser confundi­

156 do com um lobisomem, e assim ser temido e rejeitado por todos.


Apenas a admiração que sente por Vitorino, mais homem do que ele na capacidade de resis­
tir, e a adesão ao cangaceiro Antônio Silvino - o vingador dos pobres de quem passa a ser cúm­
plice, juntamente com o cego Torquato e o aguardenteiro Alípio - mantêm José Amaro vivo.
As surras que dá em Marta, durante os acessos da moça, chorando depois como um menino,
afastam dele a mulher, Sinhá, que o julga um desalmado e que começa a temê-lo, a considerá-lo
um lobisomem, como as outras pessoas do Pilar.

Na segunda parte, denominada O engenho de seu Lula, assistimos à construção do engenho


Santa Fé, pelo capitão Tomás Cabral de Melo, que chegara do Ingá do Bacamarte para a várzea da
Paraíba, em companhia da esposa Mariquinha.
Homem de brio e de muito trabalho, o capitão Tomás, apesar do espaço reduzido do seu enge­
nho em relação aos outros da região, e de nada saber de açúcar por ter sido criador e plantador de
algodão, consegue tomar próspero o Santa Fé. Com boa escravatura, rigorosamente treinada, este
homem duro e avesso às festas fez fama no Pilar, tirando da terra o que ninguém imaginava.
Transforma-se assim, com a família criada - duas filhas, Olívia e Amélia o engenho corren­
-

te, gado de primeira ordem, partidos de cana, roçados de algodão, no chefe do Partido Liberal,
no pai defilha educada no Recife, com piano em casa, quefalava francês, que bordava com mãos
de anjo.
A filha, Amélia, não encontrava pretendente à altura, embora se entusiasmasse com um primo,
Luís César de Holanda Chacon, o Lula. Filho único de Antônio Chacon, viera de Pernambuco,
onde o pai lutara e morrera como revolucionário, ao lado de Pedro Ivo, dando a vida por Nunes
Machado - nome do chefe político de que a história falava, o parente cuja valentia tirava lágri­
mas dos olhos do capitão Tomás.
De barba negra, olhos azuis, ar tristonho e fala mansa, o primo Lula pede a mão de Amélia,
tirando a família do capitão Tomás do desconsolo devido à insanidade de Olívia, moça para sem­
pre perdida, aos dezessete anos.
A tristeza do velho Tomás pela loucura da filha caçula acentua-se com o reconhecimento da
incompetência do primo Lula para cuidar do engenho. Senhor de olhar abstrato, vestido como
gente da cidade, sempre ao redor de Amélia que lhe tocava piano conforme antes fazia para o pai,
o coronel Lula mandara buscar uma carruagem que tilintava pelas estradas, fazia vista e garantia
assim a superioridade da gente do Santa Fé.
Um negro, fugido duas vezes, na primeira tirara o capitão Tomás da apatia a que o relegara a
doença de Olívia, trazida para morar com a família. Na segunda, a humilhação ae buscar o negro
em Campina Grande, somou-se ao desencanto do capitão Tomás com o genro e às outras infelici­
dades, levando-o à morte.
Dona Mariquinha, mulher que era metade de seu esforço, que cuidava dos negros, cozia o
algodãozinho para vesti-los, fazia-lhes o angu, assava-lhes a carne, toma as rédeas de Santa Fé,
contra a vontade do coronel Lula. Este batia nos escravos sem razão, maltratava-os, revelando,
assim, o gênio ruim que escondera com as delicadezas, as lordezas de homem fino.
Com o nascimento de Neném, de olhos azuis e pele rosada como na família de Lula, a rivali­
dade entre ele e a sogra transforma-se em maior crueldade : impede D. Mariquinha de cuidar da
neta com a conivência de Amélia, vindo a velha a falecer, repentinamente.
O Santa Fé começa então a decair, os negros vão um a um abandonando o engenho, cuja anti­
ga grandeza fenece graças ao senhor cruel. Após a abolição é definitivamente abandonado por
todos.
Amélia compreende, assim, o mau gênio do marido, cada vez mais devoto à religião e à filha
Neném, educada no Recife e luz dos olhos do pai, que só vê a ela desde que a esposa perdera um
filho, de parto.
o
(!)
Quando o filho do alfaiate se interessa por Neném, que também se mostra disposta a namorar UJ
a:
o rapaz, os fantasmas do passado invadem a personalidade do velho Lula, e ele vai acabando epi­
o
lético, incompatível com o cargo de senhor de engenho, furioso com a paixão de Neném por um o
qualquer, ano a ano gastando o dinheiro deixado pelo sogro Tomás. (/)
A degradação do Santa Fé se consuma apesar dos esforços de Amélia, que vende galinhas z
:::J
escondida do marido, nos últimos estertores do engenho enfim de
fogo morto, isto é, desativado. ·UJ
Na terceira parte do romance - centrada no capitão Vitorino o cangaceiro Antônio
- (/)
o
Silvino invade o Pilar, distribuindo para os pobres o dinheiro dos ricos, e segue para Santa Fé, a ....,
fim de encontrar as moedas enterradas (já inexistentes) e de impedir que o coronel Lula desaloje -
o mestre José Amaro.
151
A trama então se agiliza: o tenente Maurício, em busca do cangaceiro, prende o mestre José
Amaro, Zé Passarinho e o cego Torquato, dos quais procura extorquir informações sobre o canga­
ceiro através de torturas e de maus tratos.
A figura de Vitorino se agiganta na defesa dos amigos, presos pelo tenente e na luta contra o
coronel Lula, de quem é inimigo político.
Contra todas as injustiças, venham de onde vierem, o velho capitão achincalhado pelo povo,
que maldosamente o apelidara de Papa-Rabo, consegue sucesso no habeas-corpus que pede a
Rego Barros - o político com quem se alia contra os desmandos no Pilar - a favor dos presos.
José Amaro, entretanto, sem a filha e sem Sinhá, que o abandona, suicida-se ao sair da cadeia,
usando a faca de cortar couro ...
Sinhá Adriana, sua mulher, e o filho Luís, da Marinha, (que em visita aos pais quer levá-los
ao Rio para mudarem de vida), redescobrem no final do romance a grandeza de Vitorino, o Dom
Quixote do Pilar, cujo heroísmo é reconhecido nos jornais e cuja expectativa com as eleições
deixa um rastro de esperança. O romance termina com as providências do capitão Vitorino e de
Sinhá Adriana para o enterro do mestre José Amaro e com a observação de José Passarinho ­
acompanhando-os na função - de que o Santa Fé não bota mais, está defogo morto.
No enredo do romance, com uma pluralidade de perspectivas que vão do coronel decadente
ao seleiro derrotado, da senhora de engenho (Dona Amélia) à esposa do quixotesco capitão justi­
ceiro (Sinhá Adriana), conta-se assim a decadência dos engenhos açucareiros do Nordeste, os pro­
blemas do latifúndio, do coronelismo, da seca que dizimou a família de Sinhá Adriana, do canga­
ço e das violências policiais e políticas. Todos esses problemas, embora regionais, universalizam­
se ao longo da leitura de Fogo morto, devido à interpenetração entre conflitos individuais e con­
flitos sociais, conseguida pela superação do memorialismo de José Lins do Rego. Ele aqui empres­
tou sua voz à mudez dos habitantes de um mundo em extinção, como veremos melhor estudando
os personagens da obra.

Personagens

Principais
O mestre José Amaro é a imagem do agregado do engenho, do trabalhador artesanal livre da
escravidão mas dependente da boa vontade do senhor, em cuja terra habita. Representa, assim, a
degenerescência do sistema patriarcal, do ponto de vista dos que dele se alimentam de forma indi­
reta. A loucura da filha, a falta de um filho que continue o seu trabalho, o medo que a esposa lhe
tem, a fama de lobisomem aliam-se à sua expulsão do engenho pelo coronel Lula, levando-o para
o desenlace trágico. E esta destruição é lç:nta e gradual, acompanhando a perda da nobreza da pro­
fissão, o que o inferioriza em relação aos ricos, e o alimenta em sua revolta impotente.
O coronel Lula de Holanda Chacon é uma pessoa inadequada e por isso incompetente para
preservar a riqueza do sogro. Criado pela mãe viúva, vindo de outro mundo, desconhece os códi­
gos do novo habitat, o engenho. Refugia-se da própria ignorância maltratando negros, substituin­
do pelo autoritarismo gratuito a falta de autoridade e, finalmente, tentando compensar a mesqui­
nhez de seu comportamento, que chega ao desequilíbrio mental, com o apego exagerado à religião.
O capitão Vitorino Carneiro da Cunha destoa dos personagens anteriores pois nele a força
do ideal se sobrepõe à realidade da decadência e do ridículo. Redimido pela p-aranóia heróica, o
velho Vitorino se eleva no conceito do público. Os pequenos começam a respeitá-lo. O cego
Torquato acha que ele é mandado por Deus (. ). A sua candura e a sua coragem fazem dele um
..

<( campeão. O único homem da várzea com sentimento e consciência das necessidades sociais e dos
o
problemas políticos, porque não se aproximou deles com a bruteza dos chefes nem com a malícia

z
habilidosa dos políticos, mas com a direita ingenuidade dos puros. (Antônio Cândido - Brigada
w ligeira)

Secundários
8
<( Enquanto o capitão Tomás, pai de Amélia, a esposa Mariquinlta e o coronel José Paulino
a:
:::::> representam a pujança do patriarcalismo, a força de vida do poder oligárquico exercido no contex­


a:
to dos engenhos de açúcar, algumas personagens femininas do romance - Sinhá,
e
Sinhá Adriana
Dona Amélia - revelam a impotência da condição da mulher perante tal sistema.
w Embora cada uma delas, a seu modo, consiga reagir, com heroísmo marcado pela dor e pelo
._.
...J sofrimento, à decomposição do mundo, à decadência e/ou à alienação mental do(s) marido(s), só
...... lhes ouvimos as vozes, estranguladas e emudecidas, devido à cumplicidade do narrador. Assim,

158 podemos perceber a "agilidade" e a "materialidade" de suas ações, voltadas para a realidade, para
o que há por fazer, e ao mesmo tempo quase que inoperantes, de tão anônimas aos olhos masculi­
nos, ao longo do romance.
Uma "ausência" maior se nota nos filhos Neném, Marta, Luís
- ora distantes e alheios,
-

ora em outro lugar, como que em fuga da miséria e dos fantasmas que rondam as famílias, em pro­
cesso de degeneração.
O teaente Maurício e o cangaceiro Antônio Silvino, a força bruta legalizada e a força bruta
marginal, respectivamente, aparecem com mais intensidade no final do romance, acelerando a
ação e assim mostrando ao leitor mais dois pólos de conflito. Ambos tendem a se destruir na medi­
da em que ambos compactuam com a brutalidade que, em nome dos ricos ou dos pobres, faz parte
do mesmo sistema, do mesmo modelo de vida arruinado.
Finalmente, o negro cachaceiro Zé Passarinho, o cego Torquato, o contrabandista de aguar­
dente AHpio, o pintor Laurentino, a preta Margarida, e os outros personagens de Fogo morto
são a seiva de sentimentos confusos, de preconceitos e manias, de costumes e devoções, de cren­
dices e maledicências, que alimenta a dimensão regionalista do romance.

A divisão em três partes de Fogo morto, contudo, se unifica pelas inter-relações humanas que
se estabelecem envolvendo análise de detalhes circunstanciais, para a visão sintética da paisagem
física e humana na sub-região açucareiro. Caracterizada em si mesma, ela é, ao mesmo tempo,
condicionada por toda a realidade humana e social da região nordestina. É como se os seus limi­
tes se dilatassem e logo se retraíssem, como presenças interferentes de múltiplos valores, circuns­
tâncias e reações, num momento agudo de redefinição da condição e do destino humano naquela
paisagem. Convergem assim para este romance os componentes fundamentais de toda a obra
regionalista do Autor, e não somente aqueles do ciclo da cana-de-açúcar. Seus personagens se
apresentam como expressão de todas as dimensões do homem nordestino, preso a raízes telúricas
profundas, ao mesmo tempo num esforço dramático de libertação, para o reencontro de umajusta
condição humana. (Antônio Cândido, J. Aderaldo Costeio - Presença da literatura brasileira ­
O Modernismo)

Vamos, agora, ler mais duas passagens do romance, percebendo a força poética e a intensida­
de dramática de sua linguagem.

Ti/intavam as campainhas da carruagem do coronel Lula de Holanda Chacon na estra­


da cbeitJl de gente do Pilar. Opovo cortava caminho para deixá-lo passar. O mestrepensou na
velha doente e amorteceu a sua alegria. D. Amélia, não havia quem não pensasse nela e não
. visse os tempos do capitão Tomás, as festas do Santa Fé, os dias de mocidade do engenho da
várzea. Era pequeno, mas dava para um homem viver, e dar grandeza à sua família.
Cinqüenia escravos lavraram as terras do Santa Fé. Tinha uma fortuna em negros, o capitão
Tomás. Agora era aquilo que se via, um engenho de duzentos pés, moendo cana, puxado a
besta. Toda a alegria do seteira se pondo como um sol em dia de chuva. Todo ele enroscava­
se outra vez, fechava-se em sombras. E a cara dura, os olhos inchados, a tristeza íntima, eram
outra vez o mestre José Amaro. Por que D. Amélia pudera transtorná-lo daquele jeito? A /ilha
voltava da beira do rio naquele seu passo de velha. Teve ímpeto de sacudir-lhe aquele marte­
lo, de quebrar-lhe o corpo em pedaços. Batia sola, não lhe aparecesse ninguém para tratar
com ele. Passou o Padre José João, e tirou-lhe o chapéu. Ia para a missa de S. Miguel. Era bom
padre, mas quando se metia na política, sem terforça para isto, os chefes faziam dele o que
queriam. E o mascate Pascoal surgiu na estrada, silencioso, sem o batuque do metro.
Levantou-se para vê-lo de perto. Queria ver aquele infeliz que se metera em facão.
(O mestre José Amaro) o
(!)
w
Aí começou a chorar outra vez. D. A mélia foi lá dentro e voltou com uma peça de mada­ a:
polão. o
- Toma, é para a mortalha de Joaquina. Leve também estes sapatos. Eu nem cheguei a Cl
calçar, estão encardidos pelo tempo. cn
Os galos começaram a cantar, o chocalho de um boi, no curral, batia como toque de sino. z
O negro saiu, e D. Amélia ainda ficou a olhar a noite. Agora ouvia uma cantoria fanhosa, :::i
um gemer que abafava o canto dos galos. Da casa de Macário saíam vozes chorando uma -w
cn
morta. A alma deJoaquina, na noite de lua, se embalava naquele pranto que queria tocar o o
coração de Deus. D. Amélia fechou a porta da cozinha. Dentro de sua casa havia uma coisa '""')
pior do que a morte. Não havia vezes que amansassem as dores que andavam no coração do -
seu povo. Viu a réstia que vinha do quarto dos santos, da luz mortiça da lâmpada de azeite.
159
Caiu nos pés de Deus, com o corpo mais doído que o de Lula, com a alma mais pesada que a
de Neném.
Acabara-se o Santa Fé.
(O engenho de seu Lula)

11 Fogo morto destaca-se dos romances do ciclo da cana-de­


açúcar de José Lins do rego porque:
a) A narração em primeira pessoa aprofunda o tom memo­
11
Que função possui o capitão Vitorino Carneiro da Cunha
no enredo de Fogo morto, de José Lins do Rego?

a
rialista dos romances do ciclo. Leia o trecho abaixo, extraído de Fogo morto, de José Lins
b) A narração em terceira pessoa enfatiza personagens do Rego:
i nexistentes nos romances do ciclo.
Viu a réstia que vinha do quarto dos santos, da luz
c) A narração em terceira pessoa abrange uma pluralidade
mortiça da lâmpada de azeite. Caiu nos pés de Deus,
de personagens não explorados em profundidade pelos
com o corpo mais doído que o de Lula, com a alma mais
romances do ciclo.
pesada que a de Neném.
d) A alternância de narradores amplia o processo narrativo
Acabara-se o Santa Fé
presente nos romances do ciclo.
e) O foco narrativo mantém e intensifica aquele presente a) Relacione o trecho com o nome do romance.
nos romances do ciclo. b) Que personagem do romance poderia estar sendo

fJ
focalizado pelo narrador neste trecho? Por quê?
No enredo de Fogo morto há alguns episódios que anun­
ciam o desenlace trágico de José Amaro. Mencione pelo
menos três, explique o que ocorre neste desenlace e em
seguida comente sua importância para o contexto geral da
obra.

D. Quixote, na sua luta, o que o opõe à falência econômi­


11
b) Comentário - Nesta alternativa está sintetizado o
avanço que Fogo morto significa em relação aos roman­ ca e psicológica dos outros personagens do romance.
<(
o ces do ciclo da cana-de-açúcar, de José Lins do Rego.


a) O trecho transcrito fala da decadência do engenho do
O desprezo da mulher, a loucura da filha e a fama de "lobi­ coronel Lula de Holanda. Com o fim de sua produção,
z
w fJ somem " são três elementos do enredo de Fogo morto
que prenunciam o final trágico do mestre José Amaro. Ao
não haveria mais o trabalho de ferver a garapa da cana
para fazer o açúcar. Por isso, a chaminé do engenho
� se suicidar o personagem revela não só o próprio abando­ deixava de soltar fumaça, como se o fogo do engenho
o
u no, a própria solidão, como também o abandono e a soli­ tivesse morrido, o que significa no romance a decadên­
<( dão dos engenhos açucareiros do Nordeste, cuja deca­ cia dos antigos engenhos açucareiros do Nordeste,
a: dência é tematizada nesta obra. sugestivamente indicada com a expressão Fogo morto.
::> b) A personagem focalizada no trecho parece ser D.

�a: O capitão Vitorino funciona no enredo e na caracterização


dos personagens de Fogo morto como uma espécie de
Amélia, a esposa do coronel Lula e mãe de Neném, o
que se vê pela referência ao marido e ao filho e pelo
w contraponto em relação à decadência geral dos persona­ fato de ela estar testemunhando de perto a decadência
1- gens e à história de destruição vivida por eles. Isto ocorre do engenho do coronel Lula.
::J pela pureza com que Vitorino luta pela liberdade e pela
--. justiça, acreditando ingênua mas poeticamente, como um
160
RUBEM BRAGA
Alguém precisa cuidar das coisas pequenas,
dessas coisas sem as quais a vida diária não anda ...
Podem deixá-las comigo, o velho Braga!. . .

OS MELHORES CONTOS

LINGUAGEM E TEMAS
Acima e além de suas flutuações e permutações temáticas, a grande maioria dos
textos de Braga exibe uma indissolúvel unidade, em que se fundem um valor ético e um
valor estético - uma sincera postura de humildade diante da vida, adequadamente
expressa num estilo também humilde.
A atitude humilde nasce da profunda compreensão da fragilidade do ser humano,
cuja existência o tempo toma tão inconstante e fugaz. Resulta dessa compreensão o
modo entre temo e amargo com que sua voz narrativa - quase sempre em 1 � pessoa -
reconhece e expõe as próprias imperfeições e/ou a própria impotência diante da dificil
arte de viver. Esse viver tão contraditório, de tão poucas e esquivas grandezas e forças:
pequenas ilhas que, mal afloram, logo submergem no oceano do banal cotidiano...
Essas mesmas limitações o eu-narrador reconhece em seus semelhantes, e perceber
que ele e os outros conseguem resistir à precariedade da condição humana leva-o a uma
espécie de humanitarismo solidário.
Não se trata, contudo, do humanitarismo à moda castroalvina, por exemplo, do
artista condoreiro que sente em si "o borbulhar do gênio" e assume a condição de porta­
voz, não só de seu povo, como também de toda a humanidade. Rubem Braga é artista
do século XX, deste tempo em que ideais e sonhos coletivos de progresso, libertação e
sublimidade evaporaram-se em desilusões. O artista não mais se eleva acima dos outros
homens, muito menos se propõe messianicamente a guiá-los - sua tarefa, como a con­
cebe e realiza Rubem Braga, é estar entre seus companheiros e iguais, a oferecer-lhes
não mais que o alimento humanizador suficiente para cada dia e que a cada dia deve ser
de novo obtido.
Assim se compreende por que Rubem Braga não buscou a "grande arte", mas per­
maneceu fiel à crônica, esse texto de ar despretensioso, o professor e crítico Antônio
endo nascido em Cachoeira do
Cândido faz comentários bastante esclarecedores:
T ltapemirim,
· 1 Espírito Santo. em 12 de
A crônica não é um gênero maior. Não se imagina uma literatura feita de janeiro de 1 9 1 3. Rubem Braga começou a
grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dra­ trabalhar em jornal ainda estudante.
maturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por assinando uma crônica diária no Diário da
melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor. Tarde. de Belo Horizonte. para onde se
"Graças a Deus ", - seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós. transferira. depois de curto período no Rio de
E para muitos pode servir de caminho não apenas para a vida, que ela serve de Janeiro. A partir de então. escreveu em
perto, mas para a literatura (. . .) diversos jornais e revistas do Brasil, tendo
Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem morado em São Paulo. Recife. Belo
necessidade que costuma assumir, ela se ajusta ã sensibilidade de todo o dia.
Horizonte. Porto Alegre e finalmente de novo
no Rio de Janeiro.
Principalmente porque elabora uma linguagem quefala deperto ao nosso modo de
Acompanhou a Força Expedicionária
ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permi­
te, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundi­
Brasileira durante a Segunda Guerra
dade de significado e um certo acabamento deforma, que de repente podem fazer
Mundial, como correspondente do Diário
dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição.
Carioca, junto ao Alto Comando Aliado na
Vamos pensar um pouco na própria crônica como gênero. Lembrar, por exem­
Itália. Suas viagens se estenderam a vários
países. tendo vivido durante o ano de 1 950
plo, que ofato deficar tão perto do dia-a-dia age como quebra do monumental e da
ênfase. Não que estas coisas sejam necessariamente ruins. Há estilos roncantes mas
em Paris e em 1 955 em Santiago do Chile.
eficientes, e muita grandiloqüência consegue não só arrepiar, mas nos deixar hones­
onde chefiou o Escritório Comercial do
tamente admirados. O problema é que a magnitude do assunto e a pompa da lin­ <(
Brasil, exonerando-se a pedido em novembro (!)
guagem podem atuar como disfarce da realidade e mesmo da verdade. A literatura
corre com freqüência este risco, cujo resultado é quebrar no leitor a possibilidade de
do mesmo ano. Em 1 961 foi nomeado <(
ver as coisas com retidão e pensar em conseqüência disto. Ora, a crônica está sem­ embaixador do Brasil em Marrocos. posto do a:
qual também se exonerou a pedido em 1 963.
co
pre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. Em
lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos eperíodos canden­ Nunca deixou de escrever regularmente �
crônicas para jornais e revistas. vindo a
w
tes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade co
insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas . . . constituir um verdadeiro fenômeno: o de ser :J
o único escritor a conquistar um lugar a:
(A vida ao rés-do-chão, prefácio ao Volume 5 da série definitivo na nossa l iteratura exclusivamente -
Para Gostar de Ler, Editora Ática, São Paulo, 1984) como cron ista . Morre u e m..1 _
9s_
o __
. ____o 161
;;;;;;
............................
As observações de Antônio Cândido deixam bastante claro que a humildade da crônica não
implica pobreza ou vulgaridade - o termo dever ser entendido na sua acepção de simplicidade:

A simplicidade como valor ético - esta característica está na escolha de temas e assuntos
que privilegiam a vida comum, de seres humanos comuns, vistos tanto em suas virtudes quanto em
seus defeitos, em suas belezas ou suas fealdades, em seus momentos de luz ou de escuridão.
Rubem Braga contempla-os (e a si mesmo, na persona do narrador de 1 a pessoa) com senso de jus­
tiça - quer com admiração, quer com abominação, quer com severidade, quer com ternura.
Esse olhar ético volta-se, com especial cuidado, para os seres em situação de fragilidade.
Mesmo aqueles que, em princípio, mereceriam um olhar de censura moral ou de menosprezo, ter­
minam acolhidos e perdoados.
Não se pode, entretanto, supor no rigor ético de Rubem Braga, qualquer traço de visão mora­
lista, de quem se põe a fazer julgamentos dos atos e atitudes de seus semelhantes. A consciência
da brevidade e inconstância dos "bens deste mundo", fonte da humildade do velho Braga, não o
leva ao estoicismo conformado e contemplativo à Ricardo Reis - a percepção da transitoriedade
provoca no cronista, não raramente, uma espécie de ímpeto hedonista no aproveitamento de cada
instante.
Em certas crônicas, a necessidade de fruir o momento sempre tão fugidio leva-o a suspender
considerações moralistas - em si e nos outros - e entregar-se à realização urgente do desejo.
Trata-se, enfim, de exaltar aquilo que convida a viver: a beleza da mulher, o frescor da criança, a
luminosa pulsação erótica da própria Natureza.
A simplicidade como valor estético - em adequação à humildade temática, Rubem Braga
mostra predileção pelo padrão mais coloquial do idioma - no vocabulário, nas construções sintá­
ticas. Sua prosa, de composição aparentemente solta (v. o texto de Antônio Cândido), exibe clara
filiação a uma das conquistas centrais do Modernismo de 22: utilização de uma linguagem livre
de preciosismos, numa atitude de radical rejeição à "parnasianice" e ao academicismo do código
da classe dominante.
A simplicidade da linguagem do velho Braga, por outro lado, ajusta-se com perfeição ao jor­
nal, veículo onde suas crônicas sempre foram originalmente publicadas.

Síntese comentada das crônicas mais representativas

Os contos-crônicas de Rubem Braga são narrativas extremamente breves, de fábula reduzida


ao mínimo essencial. Resumir histórias assim, já concebidas e estruturadas de modo conciso, é tão
danoso quanto resumir um poema - em ambos os casos o denso significado dos textos é indisso­
ciável da forma com que foram arquitetados.
Por isso, as condensações feitas para este estudo destinam-se unicamente a expor os fatos
essenciais das narrativas mais significativas, por meio dos quais se apreendem seus núcleos temá­
ticos. Tais núcleos foram divididos em quatro categorias, para facilitar a compreensão da obra.
A ordem das histórias escolhidas foi alterada com o intuito de enquadrá-las nesses quatro gru­
pos temáticos, e essa reordenação já fornece elementos para compreendê-las.
Utilizou-se neste estudo a 5!! edição de Os Melhores Contos, selecionados por Davi Arriguci
Jr. e publicados pela Global Editora e Distribuidora Ltda, SP, 1 997.

NÚCLEOS TEMÁTICOS
1. Fauna, flora, gente grande, gente pequena
(3

z
Tuim criado no dedo
Um menino paulistano, de férias no campo, encontra, numa casa de joão-de-barro, três filho­
w
tes de tuim. Como eram muito novinhos, dois deles morreram, apesar dos cuidados do menino. O

0 sobrevivente foi crescendo, e seu dono domesticou-o a tal ponto que, mesmo voando solto, basta­
u va chamá-lo - "tuim, tuim, tuim! " -: lá voltava o periquito e pousava no dedo do menino.
<( Terminadas as férias, o garoto, muito afeiçoado ao pássaro, convenceu os pais a permitir-lhe
a:
=> levá-lo para a cidade. Lá, porém, deixá-lo livre para voar seria perdê-lo, e o menino viu-se força­

!d:a: do a cortar·lhe as penas das asas.


Foi a desgraça do tuim: solto no cimento do quintal, um gato matou·o.
w "Tuim. . . " focaliza a criança e suas experiências existenciais - suas alegrias e dores; a vivên­
1-
...J cia da ternura e da perda; o contato com a crueza da morte.
---.. Nesta crônica percebe-se o contraste entre as visões de mundo do adulto e da criança: o pai do meni­
no adverte-o contra um apego afetivo ao tuim - quando perdesse o bichinho, a dor seria inevitável.
162
Não se pense, porém, em frieza do adulto em oposição ao envolvimento afetivo da criança:
trata-se apenas de um pai que, com seu conhecimento realista da vida, alerta o filho para o fato de
que amar envolve o alegrar-se e o sofrer, e o amadurecimento exige a consciência/aceitação dessa
lei inexorável.

Praga de menino
O narrador relembra seu tempo de criança, particularmente as partidas de futebol j ogadas em
plena rua. As "peladas" eram animadíssimas e . . . ruidosas! Acontece que os jogos - e a algazarra
- incomodavam muitíssimo as irmãs Teixeiras (Quantas eram, oito ou vinte. . . ?), que moravam
quase defronte à casa do narrador, justamente no trecho da rua que os meninos usavam como
"estádio".
As implicantes mulheres tentaram vários recursos: repreenderam asperamente os j ogadores,
queixaram-se à mãe do narrador, pediram ao próprio pai que interviesse (mas o coronel de bigo­
des brancos não respondeu às filhas, nem mesmo olhou os "moleques"); uma delas até experimen­
tou apelar delicadamente à garotada . . . Tudo em vão - aquele era o único ponto da rua que ofere­
cia condições técnicas para as partidas.
Um dia, entretanto, as Teixeiras conseguiram sua terrível vingança: a precária bola de meia,
usada até então pelos meninos, fora trocada por outra, de borracha e lindamente colorida, trazida
do Rio de Janeiro pelo pai de um dos garotos. Pois foi essa linda bola que partiu uma das vidraças
da casa das reclamantes. Uma das irmãs, depois de extravasar sua fúria, aos berros, contra os meni­
nos, apanhou a bola e sumiu dentro de casa.
Retoma logo em seguida, munida de um canivete, fura a bola, corta-a e joga as duas metades
na rua, diante dos atônitos e inconsoláveis garotos. Um crime desses exigia severa represália: no
dia seguinte, aproveitando a ausência da família Teixeira, os meninos, seguindo um plano do nar­
rador, arrombam a porta dos fundos e invadem a casa das inimigas. Aprontam lá uma boa mixór­
dia e, à saída, levam uma faca de cozinha, um martelo, uma lata de goiabada.
A peça mas importante do furto - um anel sem muito valor, mas de grande estimação - é
enterrada no alto do morro. Poucos dias depois, entretanto, a enxurrada de um temporal apaga a
marca do esconderijo, e os "ladrões" rasgam o mapa, agora inútil, que haviam feito do local.
Os meninos nunca mais, nem mesmo ')á grandes", cumprimentaram a implacável Teixeira, e
Não sei se (a Teixeira do canivete) foi feliz
o narrador encerra a crônica explicitando-lhe o titulo:
na vida e espero que não; se foi, é porque praga de menino não tem força.

Lembrança de Zig
Mais uma vez de volta à época da infância, vivida em Cachoeiro do ltapemirim, o narrador
centraliza a história em Zig, o maior e mais especial dos cachorros que a família possuíra.
Todos os cachoeirenses conheciam-no e chamavam-no de "Zig Braga", o que, segundo o nar­
rador, mostra como se identificou com o espírito da casa em que nasceu, viveu, mordeu, latiu, aba­
nou o rabo e morreu.
De Zig, fica-se sabendo que exibia "personalidade" e comportamento bastante peculiares: ele
não era mesmo muito amistoso com estranhos em geral, mas chegava ao ódio com gente fardada,
a quem atacava furiosamente - fosse um soldado ou o carteiro. Paradoxalmente, porém, desde
pequeno vivia carinhosa amizade por uma gata, e seu relacionamento com ela só esfriou quando
uma ninhada de bichaninhos entrou a passear sobre ele - mesmo assim, apesar de incomodado,
suportou-os pacientemente.
Esse jeito carinhoso estendia-se a todos os habitantes da casa, e gostava, em particular, da mãe
do narrador - nas manhãs de domingo, quando conseguia escapar, farejava-lhe as pe�adas pelas
ruas afora e acabava encontrando-a entre as inúmeras pessoas que assistiam à missa. E claro que
sua alegria, ao ver-se junto da dona, era diretamente proporcional ao susto e à zanga que provoca­
va em seu redor.
Ao fmal da crônica, o narrador reassume o tempo presente: fala, enternecido, de sua mãe, que,
já velha e cansada, não faz mais a caminhada domingueira até a igreja. Nas últimas linhas, a notí­ <(
(!)
cia de que Zig estava enterrado sob o velho pé defruta-pão . . . (Na crônica a seguir, o narrador men­ <(
ciona esta mesma árvore, que ficava no quintal, ao lado da casa). a:
CC

O cajueiro w
aJ
As recordações da infância do narrador, nesta crônica, trocam a fauna pela flora: a variada :::::>
vegetação do quintal da casa paterna, um cajueiro, belo, imenso, no alto do morro, atrás de casa. a:
Uma carta da irmã mais jovem conta ao narrador que a árvore, já velha quando este nascera, não -
resistira a uma tarde de ventania e caiu.
163
A notícia traz à memória do narrador a significativa imagem que lhe ficara do cajueiro: tal
como um mestre, a grande árvore parecia dar apoio e segurança a cada menino que se aventurava
por ela acima, até que, encorajado, atingia os galhos mais altos. De lá, o jovem aprendiz descorti­
nava ampla paisagem, enquanto sentia o leve balanceio na brisa da tarde.
Além da lição de coragem e habilidade, o cajueiro ensinava o paladar da meninada a reconhe­
cer o ponto de maturidade de seus sempre abundantes frutos amarelos, com os quais também nutria
os pássaros que, aos bandos, nele pousavam. Até ao tombar com a ventania, o cajueiro parece ter
feito uma última generosidade: caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar o telhado da velha.

2. Provisoriamente não cantaremos o amor (. ) cantaremos o medo.


•. .. (Drummond)

Diário de um subversivo
(no remoto ano de 1930)
A Indicação cronológica sob o título situa a fábula na Era Vargas, às vésperas do ditatorial
Estado Novo. O narrador - um opositor do regime repressivo - relata o que faz e lhe acontece
nos dias 1 5, 1 6, 1 8, 2 1 ,24, 26 e 28 de fevereiro e 1 ° de março: mora, sob nome falso, numa pen­
são, mas a presença de dois estudantes integralistas amedronta-o, forçando-o a mudar-se. Após
alguns insucessos, no dia 2 1 acaba encontrando refúgio na residência de um conhecido, Edgar,
casado com Alice.
Nas anotações referentes ao último dia de fevereiro, revela que um envolvimento afetivo entre
ele e a esposa de Edgar estava iminente; entretanto, se tivesse qualquer coisa com ela, seria o últi­
mo dos cachorros. O próximo - e último - registro no diário exibe um lacônico e assumido
cinismo: ] '.2 de março - Sou.

Os perseguidos
O narrador acompanha (ou leva) um certo Moreira até um apartamento de luxo, no qual são
introduzidos por uma serviçal uniformizada, que os convida a sentar e aguardar um momento.
Falando de Moreira, o narrador revela que este passara mais de um mês na cadeia, onde fora tor­
turado e sofrera fome durante dias, trancado numa solitária escura. Estava enfraquecido e sujo. O
narrador sente desgosto pela sujeira do ex-prisioneiro, desgosto e pena. Enquanto aguardam, o nar­
rador vai até a j anela, imensa, e fica a contemplar o grande mar azul, refletetindo sobre a vida mes­
quinha que ele e Moreira tinham passado nos últimos tempos, em quartos apertados e quentes, de
uma só e miserável janela, dando para uma parede suja.
O luxo do apartamento não o surpreende, mas sentia que Moreira estava humilhado de estar
ali. O que o espanta é a vista do mar, o mar dos ricos, contemplado lá do alto, tão superior ao mar
dos pobres.
O vento traz-lhe um aroma salgado e limpo, ele aspira-o prazerosamente, embora sinta que
não o merecia, pois a gente como ele só cabia o ar dos pobres.

3. Mulher: "A penumbra banhada de luz"

Falamos de carambolas
À mesa de um bar (ou restaurante) bebem e conversam o narrador e uma mulher. Tinham vivi­
do, "antigamente", uma relação amorosa. Mas não é disso que falam: seus assuntos são diversos,
desencontrados. Começam com sorvete, de carambola, passam por romã, jambo, detêm-se um
pouco em mangas: manga-rosa, espada e carlotinha. O narrador emenda com a história (bem
"boba") de um amigo, que envolve manga carlotinha e galinha ao molho pardo com angu; pouco
<( mais tarde, põe-se a falar sobre palavras cruzadas, e, não muito depois, discutem sobre balé russo.
Q
�z O último tópico dessa embaralhada conversa é o bigode do narrador, que a mulher acha horrível,
ao que ele retruca:
w - Por que você não toma conta de mim, não dirige meus uísques e meus bigodes?
� Ela ri, alegremente, uma risada de cristal, que se parte tão fácil.
o· Acontece que esse diálogo-colcha-de-retalhos não é o verdadeiro assunto da crônica: entre
u
uma e outra dessas amenas banalidades, ambos falaram de algo do qual, embora tentassem, não
<(
a: conseguiram fugir - a mulher estava condenada por uma doença fatal.
::J
�a: Viúva na praia
w Atraído pela beleza de uma mulher na praia, o narrador detém-se a contemplá-la. Sua idade,
1-
:::i imagina ele, fica entre vinte e sete (ou menos) e, no máximo, trinta anos. Ela está com o filho de
� uns dois anos, ambos j á conhecidos, de vista, pelo narrador, que conhecera, também do mesmo
164 modo, o marido dela, falecido há alguns dias, após longa enfermidade.
A lembrança do defunto acaba levando o narrador a considerações morais quanto à presença
da viúva na praia, tão pouco tempo depois da morte do marido e também quanto a si próprio por
contemplá-la. Que culpa tem ele, se a própria viúva transborda de vida?
O marido é que morrera - ela está luminosamente viva, a usufruir prazeres e como que ofe­
recendo sua beleza e vitalidade ao olhar do narrador, o qual, além de eximir sua consciência de
qualquer remordimento, termina sentindo-se cúmplice no hedonismo que ele supõe na viúva.

A mulher que ia navegar


O narrador acompanha a conversa de um grupo composto de um homem muito inteligente que
falava muito; um pintor louro e nervoso; uma senhora morena de riso fácil e engraçado; umfisi­
co e uma senhora recentemente desquitada.
Quer em grupo, quer individualmente, essas personagens recebem uma parcela apenas secun­
dária da atenção do narrador, que centraliza o relato no casal que completa a "roda": o marido é
"todo bovino", no inicio, e "um boi esquecido, mugindo", no final da narrativa; em sua única inter­
venção na conversa, expõe grosseria e vulgaridade.
Contudo, o foco narrativo fixa-se especialmente na esposa desse homem. O narrador segue
cada gesto, cada feição, cada olhar dessa bela mulher de trinta anos e, tudo somado, "sente" que
ela, lenta mas decidida, preparava-se para enganar o marido. Primeiro, contempla a si mesma
como quem diz; eis um belo barco prestes a sefazer ao mar. Depois, olha à sua volta, já em busca
de um parceiro para a viagem. Ela ia navegar...

Um braço de mulher
Vindo do Rio de Janeiro, o avião em que está o narrador leva cerca de meia hora sobrevoan­
do São Paulo, impedido de aterrissar por causa do nevoeiro. A passageira ao lado do narrador entra
em profunda aflição e acaba agarrando-se ao braço dele, em busca de amparo.
Tranqüilizada a companheira de vôo, o narrador toma consciência de que poderia mesmo ter­
minar morrendo naquela viagem. Começa, então, amargo e melancólico, a refletir sobre sua vida
e conclui que talvez fosse até bom deixá-la. Essas reflexões niilistas interrompem-se a um novo
movimento assustado da passageira. - é nesse momento que o narrador dá-se conta de que aque­
la mulher de cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado.
Como por mágica, a visão desse braço leva o observador à percepção da figura toda da mu­
lher e esta lhe aparece como a imagem da própria vida! Já no aeroporto, o narrador é apresentado
ao marido de sua companheira de viagem. Este lhe agradece, embora com indisfarçável frieza. Ao
se afastarem, a mulher despede-se com um pequeno sorriso, que o narrador imagina vagamente
cúmplice, dado às escondidas daquele homem de cara desagradável.
A primeira mulher do Nunes
O protagonista-narrador contempla, por poucos instantes, uma mulher sentada num banco de
praça do Rio de Janeiro;acha-a bonita e com um "ar de estrangeira", cruza um rápido olhar com
ela e logo vai embora - foi o bastante para convencê-lo de que "acabara de ver a primeira mu­
lher do mundo ".
O fantasioso narrador põe-se então a falar do Nunes, com quem trabalhara alguns meses em
São Paulo, anos antes do encontro na praça. O colega havia-lhe apresentado sua segunda mulher,
mas vários amigos comuns sempre se referiam à beleza e ao encanto de Marissa, "a primeira mu­
lher do Nunes".
O fato é que ele acaba perdendo duas oportunidades de conhecer pessoalmente essa sua "estrela",
que termina separando-se do Nunes e parte para terras estrangeiras. Para o narrador, ela .ficou sendo
um mito, uma estrela perdida para sempre em remotos horizontes e quejamais cheguei a avistar.

Visão
A crônica, de elevadíssima densidade lírica, reduz-se a dois parágrafos: no primeiro, o mais
extenso, não há propriamente um relato - o narrador, em 1 ª· pessoa, limita-se a alinhavar várias
reflexões sobre si mesmo e sua existência, progressivamente preparando-se (e preparando o leitor) <(
para o que vai revelar no parágrafo seguinte. Aqui, a visão: no brevíssimo instante antes de se abrir (.9
um sinal numa esquina, o narrador percebe a figura de uma mulher que, após fitá-lo com seus olhos <(
cr:
azuis, move os lábios como para dizer alguma coisa.. . O carro parte e desaparece no tráfego. co
::?!
4. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração (Drummond) w
co
Ojovem casal :J
cr:
Marido e mulher, ano e meio de casados, abatidos e amargurados pela pobreza, moram numa -
pensão de última categoria - estavam atrasados no pagamento -, alimentam-se precariamente.
165
Ele trata a mulher com carinho, preocupa-se com a dor de cabeça de que ela reclama, abraça-a pela
cintura.
À espera do bonde, vêem parar no farol um grande conversível, marido ao volante e esposa ao
lado. Esta, meio gorducha, muito clara, olha a moça pobre, da cabeça aos sapatos, enquanto o
homem fala algo a respeito de um anel, ao que a esposa comenta: se ele deixar por quinze,
eufico.
aquela vaca dizendo que vai
O rapaz pobre sente profunda indignação: eles tão necessitados e
comprar o anel de quinze contos!... Mas olha sua mulher, comove-se diante de sua fragilidade e
beleza...

Marinheiro na rua
O único fato da fábula: um marinheiro, às primeiras claridades de um dia, numa rua totalmen­
te vazia, bate seguidas vezes à enorme porta de um edificio. Depois de vã insistência, contempla
o prédio durante algum tempo e, finalmente desesperançado, vai-se embora.
Do alto de um prédio fronteiro, o narrador, de 1a pessoa, assiste à cena e vai intercalando em
sua narração fantasias, reflexões e sensações - comovido com o marinheiro, ora chega a imaginar­
se pai do rapaz; ora, "suspeita" que ele próprio era o marinheiro, de tal modo se identifica com ele . . .
Quando o marinheiro se vai, o narrador encontra-se num estado verdadeiramente alucinatório:
conta que todas as luzes do prédio observado acendem-se subitamente, o edificio oscila, emite ran­
gidos e . . . pesadamente como um grande navio iluminado - lentamente partiu.

As meninas
O eu-narrador recorda-se, sem um motivo definido, de uma manhã de sol à beira do mar.
Lembra que apareceram na praia duas meninas de vestidos compridos - o de uma era verde, o
da outra era azul. Ele não as conhecia nem as via bem, uma teria uns sete, a outra, nove ou dez
anos. Brincavam à beira d'água, acabaram molhando-se e, rindo muito, resolveram banhar-se
assim mesmo, vestidas.
A tristeza que o narrador vinha sentindo suspendeu-se um pouco e permitiu-lhe usufruir a graça
e a felicidade daquelas crianças. . . Mas, mesmo naqueles breves instantes, dentro de sua alma per­
manecia o sentimento de quão precária e fugaz é a alegria - o sentimento doloroso de que, no pró­
prio momento em que chega, essa alegria já se esvai . . . E as meninas riam brincando no mar.

a
O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas Aborrecido e inquieto, o marido bocejou - era um boi
mais antigas recordações de minha infância: belo, imen­ esquecido, mugindo, numa ilha distante e abandonada
so, no alto do morro, atrás de casa. Agora vem uma carta para sempre. É estranho: não dava pena.
dizendo que ele caiu (. . . ) Ela ia navegar. ( Rubem Braga)
A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa
Considere as afirmações sobre o fragmento de "A mulher
tarde de ventania, num fragor tremendo pela nbanceira; e
que ia navegar" e assinale a alternativa correta:
caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar o telha­
I. A voz narrativa radicalmente objetiva é de implacável
do de nossa velha casa. (Rubem Braga)
realismo na apresentação do " marido " .
1 1 . A o apresentar a imagem degradante do marido, o nar­
a) Dentre as referências ao cajueiro, transcreva aquela
rador permite supor que aprova a atitude da mulher.
em que se entrevê um traço romântico - embora
1 1 1 . O narrador exibe uma brevíssima auto-recriminação
muito contido - utilizado pelo narrador.
por não apiedar-se daquele homem já quase traído.
b) Justifique sua escolha e identifique a figura de lingua­
gem implícita em tal traço romântico. a) Estão corretas as três afirmações.
< b) Apenas I está correta.
o Mas senti que seu olhar estudava aquele homem com c) Apenas I está i ncorreta.


z
uma severa e fascinada atenção, como se procurasse na
sua cara morena os sulcos do vento do mar e, no ombro
d) Apenas 11 está correta.
e) I e 1 1 1 estão corretas.
w largo, a secreta insígnia do piloto de longo, longo curso.

o
u
<
a:
=>
� a a) " . . . como se não quisesse quebrar o telhado de nossa
velha casa. "
essa personificação romântica - embora discreta -
dos seres da Natureza a figura de linguagem implícita
a: b ) Por sob a frase comparativa - estabelecida pela con­ na passagem.
w j u nção como - o narrador praticamente antropomor­
1- fiza o cajueiro, ao supor nele o cuidado de não " que­
:::i brar o telhado" da "velha casa" atrás da qual erguera­
..... se belo e i mponente por longos anos. É justamente
166
I o MODERNISMO NO BRASIL

Em 1 945, com a queda de Getúlio Vargas, o Brasil inicia um período de democra­


tização que se estende até 1964.
Nesses quase vinte anos, o país, dominado pela política populista de Getúlio,
Juscelino e João Goulart, tentará encontrar os rumos de seu desenvolvimento. Apesar
da grande abertura ao capital estrangeiro proporcionada pelo Plano de Metas do gover­
no Juscelino, será na fase seguinte, na ditadura militar, que se consolidará o modelo eco­
nômico brasileiro assentado no Estado, nas multinacionais e no capital nacional.
Do ponto de vista literário, há um retrocesso em relação às conquistas de 22, uma
volta ao passado com a revalorização da rima, da métrica, do vocabulário erudito e das
referências mitológicas.
A geração de 45 é, então, passadista, acadêmica, inexpressiva em termos de gran­
des autores, grandes obras, mesmo abordando temas contemporâneos.
Em contraposição a esta produção literária oficial, três grandes criadores se sobres­
saem: João Cabral de Melo Neto na poesia e, na prosa, João Guimarães Rosa e Clarice
Lispector.
Além de considerarem a literatura como constante pesquisa de linguagem, como
expressão artística caracterizada pela preocupação formal, estética, tais criadores tam­
bém têm em comum o sentido do compromisso entre arte e realidade, o engajamento do
escritor e de sua obra na vida social, tão debatido ao longo da perspectiva nacionalista
da primeira fase do Modernismo - a geração de 22 - e da perspectiva universalista
da segunda fase do Modernismo - a geração de 30.
Podemos, então, considerá-los uma espécie de síntese de ambas as gerações, já que
ao experimentalismo da primeira acrescentam a maturidade artística da segunda, unin­
do, também, nacionalismo e universalismo.
Assim, a precisão arquitetônica, substantiva da poesia de João Cabral; a sutileza do
elo entre a fala e o texto transfigurador das narrativas mitopoéticas de Guimarães Rosa;
e o diálogo com as fronteiras entre o dizível e o indizível dos romances e contos intros­
pectivos de Clarice Lispector retomam e fecundam as experiências modernistas desen­
volvidas no país.
Simultaneamente, podemos ver estes autores como alicerces da nossa produção
literária contemporânea, seja na vertente mais ligada à exploração dos limites da pala­ <(
(/)
vra poética, exemplificada pela poesia concretista das décadas de 50 e 60, seja na busca o
de engajamento, de uma perspectiva política explícita para a obra literária, encontrada 0::
em poetas como Ferreira Guiar, Tiago de Melo e muitos outros. Também entre contis­ (/)
w
tas e romancistas da atualidade - Dalton Trevisan, Murilo Rubião, Rubem Fonseca e •<C
João Ubaldo Ribeiro são alguns deles - verificamos ressonâncias dos escritores de 45, 0::
<(
aos quais se acrescentam aqueles que os antecederam e que se tomaram vozes definiti­ �
vas da literatura brasileira e universal. Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Murilo ::>
Mendes, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Graciliano Ramos constituem exem­ (!)
plos de menção imprescindível neste rápido balanço de nossa produção literária moder­ -
na e contemporânea.
161
- -

JOAO GUIMARAES ROSA


O senhor. . . Mire veja: o mais imporlante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas ­
mas que elas vão sempre mudando.

PRIMEIRAS ESTORIAS
São contos povoados de crianças, loucos e seres rústicos que
cedem ao encanto de uma iluminação junto à qual os conflitos
perdem todo o relevo e todo o sentido

Narrador

As Primeiras estórias de João Guimarães, publicadas em 1 962, após Sagarana


( 1 946) e Grande sertão: veredas ( 1 956), dentre outras obras que já haviam consagrado
o escritor, compõem-se de 2 1 contos.
O neologismo de sabor folclórico do título estórias e o significado de primitivas, de
ancestrais - e não de textos do início da carreira do escritor - de que se reveste a palavra
primeiras constituem elementos que duplamente instauram a "aura mágica" do livro.
A partir de seu título, percebemos, então, a existência de um "tom", de uma "atmos­
fera "mítica e poética, que dá unidade à diversidade de temas, de enredos, e mesmo de
tipos, presente nos contos.
Vamos estudá-los, primeiro comentando o seu processo narrativo, isto é, o ponto
de vista do narrador, a partir do qual também veremos unidade na diversidade.
Das 2 1 estórias 1 2 são narradas em terceira pessoa e 9 em primeira pessoa, por nar­
radores-personagens.
Nas 1 2 estórias em que o narrador não participa diretamente dos acontecimentos
narrados, o seu ponto de vista pode ser percebido pela condição de testemunha em que
se coloca, na maioria delas. Não se trata, entretanto, de uma testemunha que apenas
observa os fatos: o narrador desvenda a interioridade dos personagens assumindo uma
onisciência não absoluta (o saber tudo sobre eles), mas provocada pela adesão, pela
onsiderado. por muitos. como o maior cumplicidade com a qual acompanha a sua "travessia".
C criador, em prosa, do século XX, no A primeira e a última estórias ilustram com clareza este procedimento. Em ambas
Brasil. e um dos maiores da cultura ocidental o protagonista é um menino, em ambas há a travessia, a viagem ao longo da qual ocorre
moderna. João Guimarães Rosa nasceu em uma aprendizagem: a aprendizagem da perda, da dor, em As margens da alegria
Cordisburgo, Minas Gerais. em 1 908. Estudou
( 1� estória) e, inversamente, a aprendizagem da magia, da fantasia, como formas de
medicina e trabalhou no interior de seu
superar o medo provocado pela perda, pela dor, em Os cimos (última estória).
estado como médico da Força Pública.
Conhecendo mais de uma dezena de idiomas. Para penetrar o imaginário do menino, para acompanhá-lo psicologicamente em suas
em 1 934 prestou concurso para o ltamarati. descobertas, o narrador se aproxima dele através do discurso indireto livre , que inde­
Trabalhou como diplomata e como limita as fronteiras entre sua voz e o fluxo de consciência do personagem, tomando inde­
embaixador. limitadas, ao mesmo tempo, as fronteiras entre fantasia e realidade - neste caso pela
Publicou Sagarana (1 946). que renova o conto adesão do narrador ao universo alógico, encantado, das crianças. Vejamos um exemplo:
( brasileiro. Somente dez anos depois. em
) 1 956, publicou Grande sertão: veredas, De volta, não queria sair mais do terreirinho, lá era uma saudade abandona­
( romance filosófico, mítico, mitopoético, que da, um incerto remorso. Nem ele sabia bem . Seu pensamentozinho estava ainda na
funde prosa e poesia. narrativa com intensa fase hieroglifica.
criação de ritmos. de metáforas. de alegorias. (As magens da alegria)
>
Primeiras estórias. de 1962. é um conjunto de
) contos nos quais as crianças, os velhos, os A decifração dos pensamentos e sentimentos do menino - os quais nem ele sabia
.) bem, estende-se a outros personagens do livro, outros seres em fase hieroglífica com os
loucos - os seres rústicos e "em
� disponibilidade" para travessia existencial ­ quais ocorre alguma forma de magia, como veremos, estudando os enredos da obra.

) vivem momentos de encantamento. de


iluminação, de rara e ancestral poesia que
� universalizam e reinventam literariamente o Enredos
J sertão.
Guimarães Rosa morreu aos 59 anos. no Rio Para facilitar o nosso trabalho, façamos uma divisão dos contos, sem pretender clas­
j
de Janeiro, três dias depois de tomar posse sificá-los. O que queremos é · aproximar os que nos parecem possuir características
...
na Academia Brasileira de letras. o comuns, também presentes nos outros, mas predominantes em cada grupo que criaremos.
168
Estórias de travessia
I. As margens da alegria
Tema: a descoberta da perda, da morte
Tom: lírico-filosófico
Narrador: 3� pessoa (adesão e desvendamento da interioridade do personagem)
Protagonista: o menino

Enredo: o título - As margens da alegria - sintetiza os principais elementos do enredo.


Numa margem, a alegria do menino, em viagem de avião - o tema da travessia - para visitar a
casa dos tios. Na outra margem, o desfecho da estória, nova alegria: do meio das trevas da noite
vem da mata um vagalume, piscando a sua luzinha verde um instante só, alto, distante, indo-se.

Entre as margens, isto é, no desenvolvimento, o episódio da morte do peru, que o menino tanto
admirara, para os festejos do aniversário do tio. O aparecimento de outro peru, ferozmente queren­
do devorar a cabeça degolada do primeiro, conclui o episódio ao longo do qual o menino aprende
a dor pelo que se perde:Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as
mais belas coisas se roubavam.

2. Os cimos _

Tema: a magia, a imaginação, superando o medo da dor, da perda


Tom: lírico-filosófico
Narrador: 3a pessoa (adesão e desvendamento da interioridade do personagem)
Protagonista: o menino da 1a estória

Enredo: dividida em 4 partes - O inverso afastamento/ Aparecimento do pássaro/ O traba­


lho do pássaro/ O desmedido momento - esta estória retoma o menino de As margens da alegria.
Agora, uma nova viagem, uma nova travessia, em sentido inverso à primeira. Com a mãe
doente, o tio leva o menino de novo no avião: ele sofre, acompanhado de um brinquedo, um
macaquinho, cujo chapéu joga fora.
O trabalho do pássaro - que chegava, a-justo, a-tempo, a-ponto, às seis e vinte da manhã -

habita o menino que o identifica com a saudade, a vontade da mãe sempre salva.
No final, o desmedido momento, o menino está no avião, de volta para casa, a mãe recupe­
rada, mas sem o tucano e o macaquinho, que perdera, sendo que acham e lhe devolvem o chapeu­
zinho jogado fora. Ele, então, associa o medo da perda da mãe ao macaquinho e ao tucano e, no
inesquecível de-repente sorri presenciando todos ao seu lado . . . Quando o tio diz Chegamos afinal
o menino diz que ainda não. Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. E vinha a vida.
Comentário
Nestes contos, que abrem e fecham o livro, há elementos que reaparecem em outras estórias,
como a travessia durante a qual ocorre uma aprendizagem. De um lado o medo, a perda, a
descoberta da perecibilidade das coisas. De outro, a magia, o encantamento de um momento
desmedido - um momento que transcende o tempo e o espaço, e que assim provoca a intuição
hieroglífica, indizível, de uma força maior, que aumenta, isto é, aprofunda a alma em si mesma.
A introspecção do personagem, o não saber expressar o que sente, desvendado psicologica­
mente pelo narrador, não por explicações mas por adesão, por cumplicidade, constitui um dos
alicerces da poeticidade de ambos os contos.

Estórias fantásticas de anti-clímax


I. Famigerado <(
CJ)
Tema: a astúcia vence a violência
o
Tom: do suspense à comicidade (a presença do insólito, do inesperado) a:
Narrador: }!! pessoa CJ)
w
Protagonista: um homem instruído e astuto ·<(
a:
<(
Enredo: um homem perigosíssimo, Damásio, chega à casa do narrador-personagem, acom­

panhado de mais três, todos armados, o que lhe desperta medo - a extrema ignorância em ::>
momento muito agudo. Entretanto, o medo se dissolve com o humor, a violência se dissolve com (!)
a instrução e a astúcia. Damásio quer saber o que é famigerado . . .faz-me gerado. . .falnisgeral­ -
do. . .familhas-gerado. .. - nome com o qual o xingara certo moço do governo. O personagem-
169
narrador primeiro tenta enrolar e, em seguida, percebendo a ignorância e a brutalidade ofendida
de Damásio, afirma que famigerado significa importante, que merece louvor. O homem amansa,
aceita um copo d'água e se vai, aliviado. O narrador-personagem reflete sobre o sucedido: tese
para alto rir. . .

2. O cavalo que bebia cerveja


Tema: o engano, o mistério que não se desvenda
Tom: suspense/mistério
Narrador: 1!! pessoa
Protagonista: Reivalino Belarmino (o empregado)

Enredo: um estrangeiro, Seo Giovânio, mora numa casa misteriosa, onde nem ele entrava, a
não ser para dormir.
Reivalino Belarmino, o personagem-narrador, diz detestá-lo por comer muito e como porco;
por viver lhe pedindo que busque cerveja para o seu cavalo.
Entretanto, quando a mãe de Reivalino adoece, seu Giovânio oferece-lhe dinheiro e, quando
ela morre, convida-o para trabalhar na fazenda.
Seo Giovânio, que era sobrevivente de guerra, vivia temeroso, desconfiado. Só o alegrava a
cerveja para o cavalo . . . Chegam outros estrangeiros, da cidade, e revistam a casa do italiano.
Reivalino, sempre desconfiado, conta-lhes os mistérios do patrão. Nada, porém, se prova contra
ele: há um cavalo que realmente bebe cerveja e, num dos quartos ocultados, encontram um enorme
cavalo branco empalhado. Um dia, morre o irmão de Seo Giovânio, que também vivia escondido
na casa. Os homens vão revistar o cadáver e se horrorizam com o rosto do falecido, desfigurado
pela guerra.
Reivalino - a convite do patrão - acaba tomando com ele a cerveja do cavalo. Seo Giovânio
morre, deixa-lhe a fazenda e ele - como para se justificar do engano que sempre o mantivera de pé
atrás com o protetor - bebe todas as garrafas de cerveja que restaram e finge que sempre consumi­
ra, no lugar do cavalo . . . Fica, assim, o suspense sobre quem de fato bebia a cerveja do cavalo . . .

3. Os irmãos Dagobé
Tema: o fraco vence o forte/ o "bem" vence o "mal"
Tom: suspense
Narrador: 3! pessoa (testemunha)
Protagonista: Liojorge, o agente do "bem"

Enredo: A estória ocorre durante o enterro de um facínora, morto por Liojorge, homem pací­
fico e honesto, estimado de todos. O suspense se dá devido à expectativa da vingança dos três
irmãos mais novos do bandido, que os liderava em crueldades. Liojorge, para espanto geral, com­
parece à cerimônia e se oferece para ajudar a levar o caixão, justificando a legítima defesa em que
agiu. Após o enterro, no cemitério, os três irmãos, em vez de punir Liojorge, agradecem e se des­
pedem dele e das outras pessoas, já que vão para a cidade grande, mudar de vida. . .

4. Luas de mel
Tema: o amor rejuvenescido
Tom: do suspense ao lirismo
Narrador: 1'! pessoa
<( Protagonista: um fazendeiro velho, de passado violento
Cl
�z Enredo: Joaquim Norberto, fazendeiro velho e de passado violento, recebe uma carta do amigo
w Seo Seotaziano, que lhe pede proteção para um casal.
� Joaquim arma-se, a mulher faz os preparativos, chegam homens para a prevenção do perigo
o
u iminente.
<( Na verdade, o casal é de noivos. Os três dias em que permanecem na fazenda são de suspense,
a: de expectativa em relação a uma briga que não acontece, e de festejos que contaminam os donos
:::>

a:
da casa, rejuvenescendo-lhes o amor.
Há o casamento - até o padre armado - e, em vez do coronel, pai da moça, de quem espera­
w vam a vingança, aparece-lhe o irmão, em missão de paz.

� As visitas se vão e a estória se acaba �om duas luas de mel: a do casal novo, apaixonado, e a
---, do casal velho, remoçado.

110
5. Tarantão, meu patrão
Tema: a "loucura"/ a solidariedade
Tom: do suspense ao lirismo
Narrador: 1!! pessoa (o empregado)
Protagonista: Iô João-de-Barros-Dinis-Robertes (o velho patrão)

Enredo: Vagalume conta o caso de seu patrão que, envelhecido e meio doido, arreia um cava­
lo dizendo ir matar o sobrinho médico, responsável por sua saúde.
Vagalume é obrigado a acompanhar o patrão nesta demência, durante a qual se diz o demo.
Na caminhada, encontram uma mulher pobre e uma criança, uma procissão e depois uma festa ­
em casa do referido sobrinho.
Durante a trajetória, o patrão vai fazendo o bem e falando o mal: empresta o cavalo à mulher
enquanto Vagalume carrega a criança; sente-se homenageado na procissão e a reverencia. Então,
na festa, com o seu bando que Vagalume chama os palhaços destemidos - o ajudante de crimi­
noso, o sobrinho da velha que socorrera, dentre outros desvalidos - faz um discurso que ninguém
entende, mas emociona a todos. Principalmente ao Vagalume, que fica em lágrimas e saudade -
quando, após comerem e se divertirem - morre Iô João-de-Barros-Dinis-Robertes : ta patrão, ta
patrão. . . tarantão. . . tarantão. . . o Patrão, que saudoso.

Comentário
Observe que nestas cinco estórias ocorre o anti-clímax, isto é, a mudança de rumo de seu des­
fecho, em relação à expectativa provocada ao longo de cada enredo.
São estórias de suspense, o qual se dilui e se converte em outras "matérias", pelo desenlace
inesperado. Nos casos de O cavalo que bebia cerveja, Luas de mel e Tarantão, meu patrão os pro­
tagonistas constituem velhos combatentes em relação aos quais ocorre um engano. Seja o engano
do empregado (O cavalo que bebia cerveja e Tarantão, meu patrão) a respeito da pretensa vio­
lência e/ou da "doideira" do patrão, que de motivos de desconfiança se transformam em motivos
de afeto, de cumplicidade; seja do engano do próprio fazendeiro velho de Luas de mel: esperando
a guerra, o que reencontra é o amor.
Em Famigerado e Os irmãos Dagobé presenciamos outro tema constante nos textos de
Guimarães Rosa: o homem instruído e astuto (Famigerado) e o homem "de paz" (Os irmãos
Dagobé) como agentes do bem que vence o mal, do "fraco" que vence o "forte".
Trata-se, enfim, de estórias de mistérios que não se desvendam totalmente, mas que provocam
a aprendizagem da solidariedade, do afeto, da força do bem e da loucura, identificada com santi­
dade, com "ocultos saberes", que veremos em outros contos.

Estórias satíricas

I. Fata/idade
Tema: A fatalidade/ o "agente" do destino
Tom: irônico-filosófico
Narrador: 3!! pessoa (testemunha)
Protagonista: Meu Amigo (poeta, professor, ex-sargento da cavalaria, delegado de polícia)

Enredo: Meu Amigo, homem instruído e justiceiro, recebe a visita de um caipira que lhe conta
estar sendo perseguido - ele e sua mulher - por Herculinão, um desordeiro.
Meu Amigo afirma a Zé Centeralfe, o homem rústico e acanhado, que se cumpriria não a lei, mas
a graça. . . E prepara a arma, sugerindo ao outro as chaves dojogo. Este compreende e se dá o episó­
dio: três pessoa sacam a arma - Herculinão, Zé Centeralfe e Meu Amigo - e só dois tiros são ouvi­
fatalmente o mais lento, falecido, merece apenas um comentário de Meu Amigo,
dos . . . Herculinão, <(
(/)
conhecedor dos Gregos e dos destinos: o que houve de fato foi resistência à prisão, constatada. o
a:
2. Darandina (/)
w
Tema: a loucura •<(
Tom: satírico, irônico cr:
<(
Narrador: 1!! pessoa (trabalhador num instituto de doentes mentais)

Protagonista: o louco
::>
(!)
Enredo: diante de um instituto de doentes mentais, um homem exato, rápido, podendo-se dizer que -
provisoriamente impoluto, afana uma caneta-tinteiro de outro homem e, perseguido, sobe ao alto de
111
uma palmeira. Lá diz loucuras lúcidas do tipoViver é impossível. . . Adalgiso, também do instituto, rela­
ta o caso ao personagem-narrador: -Disse que era são, mas que, vendo a humanidadejá enlouquecida,
e em véspera de mais tresloucar-se, inventara a decisão de se internar. . . para se garantir.
Forma-se 11ma multidão, os médicos discutem o caso, mostrando-se suas rivalidades e
palavrórios especializados. Chega a polícia, o carro de bombeiros, o secretário das finanças com
quem de início o "louco" é confundido, e até o secretário de segurança e justiça.
Quando ameaçam resgatá-lo, o homem tira os sapatos e depois as roupas, repetindo dizeres
que o tomam para os estudantes "um dos seus", para os médicos os mais variados diagnósticos,
para o capelão um endemoniado e, para o resto da multidão, um herói . . .
Entretanto, o homem volta do "delírio" e pede "socorro".
A multidão quer linchá-lo mas "a vida vence" - ele é salvo e protegido, após o último berro:
Viva a luta! Viva a liberdade!
O conto termina com uma irônica desconfiança do narrador-personagem sobre o comporta­
mento do colega Adalgiso: ajuizado, correto, circunspecto demais . . . Visto que, no sonho geral,
permanecera insolúvel.

Comentário
Fatalidade e Darandina são duas estórias satíricas: a primeira dá um tom irônico, "ilustrado",
à fatalidade do cumprimento da justiça, da punição da maldade, não exatamente pela lei, mas pela
graça . . . Isto é, pela astuciosa intervenção de um homem sábio e ao mesmo tempo uma autoridade
(Meu Amigo, delegado de polícia), fazendo com que se cumpra - fatalmente - o destino . . .
A segunda estória, Darandina - a única do livro que acontece em ambiente urbano, na cidade
- satiriza o tema da loucura através de um episódio inesperado e de suas conseqüências. As
reações do "louco", dos médicos, dos políticos, dos estudantes, do padre, de Adalgiso (impassível
diante do evento) e da multidão revelam ironicamente as perguntas implícitas no texto: quem é
louco? Quem é são?

Estórias dissertativas
1. O Espelho
Tema: o visível como "ilusão" do real: o invisível
Tom: dissertativo/persuasivo
Narrador: 1 a pessoa
Protagonista: um autodidata, que relata seus raciocínios e intuições
Enredo: num contexto de polêmica, o narrador-personagem conversa com um interlocutor,
cujos argumentos recria e refuta, defendendo a tese de que é ilusória a imagem que vemos de nós
mesmos nos espelhos.
Utilizando-se de argumentos "científicos", de superstições entendidas "como bases de
pesquisas", dizendo-se lógico e racional, o narrador-personagem relata o processo que vivera ao
buscar a verdadeira imagem - a imagem não distorcida - nos espelhos. Para isso, olha no espe­
lho excluindo, abstraindo, os fatores que considera responsável pela deformação: o bicho com o
qual se parece (a onça); os traços hereditários; a materialização, no rosto, das paixões, das pressões
psicológicas, das idéias e sugestões dos outros, dos interesses efêmeros.
Chega, enfim, à total simplificação de sua figura, que é a desfiguração: olha-se no espelho e
não se vê, o que o leva à conclusão terrível da não existência, em si, de uma alma. . . .
Deixa de se olhar no espelho por muito tempo. Quando volta a fazê-lo - ao fim de uma
<( ocasião de sofrimentos grandes - vê uma luzinha . . . Que luzinha, aquela, que de mim se emitia,
Cl
para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo.

z
Assim, confirma a verdadeira tese que pretende defender, ao longo do conto.
w Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida?
� Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo (. . .) porque vivemos, de modo
o incorrigível, distraídos das coisas mais importantes.
u
<( 2. A benfazeja
a:
::J Tema: a "santidade" amaldiçoada, incompreendida


a:
Tom: interpelativo
Narrador: 12 pessoa (alguém do povoado)
w
1- Protagonista: Mula-Marmelo
::::i
- Enredo: o narrador fala às pessoas do povoado sobre o engano que cometem ao amaldiçoarem

112 a Mula-Marmelo: um mulher suja, feia, esfarrapada e malquista.


Na eloqüência com que argumenta, mostra a sina terrivel desta mulher, que mereceria a san­
tificação. Casa-se por amor com um homem perverso, encarnação do Demo, o Mumbungo, que só
a ela teme, cometendo, com os outros, as piores crueldades.
Assassina o marido e livra, assim, o povoado de sua presença. No entanto, sobra-lhe o filho
do Demo, do cão, o Retrupé, a quem cega com plantas venenosas, para lhe evitar a maldade, e de
quem se torna guia. Um dia, este também morre, com a ajuda de suas mãos.
Mula-Marmelo, antes de partir, ainda recolhe um cachorro morto, para livrar o logradouro
de sua pestilência perigosa, para piedade de dar-lhe cova em terra, ou para com ele ter com quem
ou com quê se abraçar, na hora de sua grande morte solitária.
Trata-se, então, da benfazeja que ninguém compreendeu, do aparo do ódio que deveria ir só
para os dois homens, da abominada cuja expulsão prova que ninguém entende ninguém; e
ninguém entenderá nada, jamais; esta é a prática da verdade.

Comentário
Ambas as estórias são dissertativas, argumentativas. Nelas há afirmações e fatos-exemplos,
em tom de interlocução, de persuasão.
Em O espelho, mais uma vez Guimarães Rosa recria literariamente a realidade do que parece
irreal: o invisível, o impalpável, a ponta de mistério que existe tanto nos fatos quanto na ausência
deles e de que nos distraímos, ingenuamente apegados a "imagens", a "aparências".
Enquanto nesta estória o narrador-personagem se utiliza de argumentos "científicos",
"racionais", para questionar a ciência, a razão, que - simplificadas, banalizadas - acabam justi­
ficando o senso comum, as deformações que associam o real ao visível - em A benfazeja per­
manece a argumentação, mas em outro "tom".
Agora, "alguém do povoado" quer resgatar a santidade que é confundida com o pecado, a ben­
fazeja que todos consideram a abominada.
Relatando a sina de Mula-Marmelo, o narrador-personagem em contexto agora religioso
inverte o senso-comum, mostrando que há santidade no pecado, há "razão" na loucura, há um sen­
tido oculto na aparente falta de sentido, há "o bem" que afasta "o mal" sem que se perceba, sem
que se compreenda. Assim, a nossa distração das coisas mais importantes nos torna incapazes de
entender os outros (A benfazeja) e a nós mesmos (O espelho).
Reminiscências
1. Pirlimpsiquice
Tema: o encantamento provocado pela arte vivenciada/ o "desmedido momento"
Tom: do suspense ao lirismo
Narrador: l a pessoa (um menino)
Protagonista: o menino

Enredo: no colégio interno, o ensaio de um drama. Ao personagem-narrador é dada a função


de "ponto", enquanto Zé Boné - um parvo, um estafermo - consegue um papel.
A necessidade de segredo sobre o enredo da peça faz com que os participantes inventem um
enredo falso, para "despistar" os colegas. Uma turma, a do Gamboa, cria outro enredo, num
"clima" de intrigas, disputas, curiosidades, mistério.
No dia da encenação, o pai de Ataualpa, menino que faria o personagem principal, adoece.
Ataualpa viaja. No seu lugar, fica "o ponto". Abrem-se as cortinas e o narrador-personagem,
mudo, descobre que não sabia os versos que iniciariam o drama.
Há confusão, vaias, ele grita versos desconexos, o pano não se abaixa e o Zé Boné, surpreen­
dendo a todos, começa a representar magistralmente. Os outros o seguem e ocorre o encantamen­
to: representam como se estivessem vivendo, não o enredo verdadeiro, mas o que inventaram, com
sucesso absoluto. Não há início nem fim na magia que confunde e funde arte e vida . . . O narrador­
personagem, então, para acabar o espetáculo, dá uma cambalhota e cai, de propósito. E lhe parece
<(
que o mundo também se acabou. Ao menos, o daquela noite. No dia seguinte o Gamboa comenta CIJ
ter sido a sua a versão "verdadeira" do drama, a que fora representada. . . o
o:
CIJ
2. Partida do audaz navegante w
Tema: a magia do universo infantil •<(
o:
Tom: lírico-evocativo <(
Narrador: 3a pessoa (adesão e desvendamento da interioridade dos personagens) ::2:
Protagonista: a menina Brejeirinha :::>
(!)
Enredo: Nesta estória de crianças, a fantasia se interpenetra com a realidade. Num dia chu­ -
voso, a menina Brejeirinha - poetiza - conta à mãe, aos irmãos (Ciganinha e Pele) e ao primo
113
(Zito) um caso que nunca se acaba, e cujo enredo muda várias vezes: a partida, num grande navio,
do Audaz Navegante.
Com a estiagem, as crianças vão brincar na beira do rio e Ciganinha e Zito vivem o amor da
história que Brejeirinha continua contando, enquanto Pele colhe flores que vão enfeitar - depois
- um estrume de vaca que "vira"o audaz navegante.
Vem outra chuva, a mãe chega para proteger Brejeirinha dos trovões e a água leva para o mar
a fantasia das crianças . . .

Comentário
Em ambas as estórias, a interpenetração de enredos, a mistura entre arte e vida, a indelimitação
de fronteiras entre fantasia e realidade.
Na primeira (Pirlimpsiquice), o tema do mistério, já comentado, e também o do desmedido
momento, vivido pelo menino da última estória (Os cimos). Agora, o instante que se prolonga sem
começo e sem fim vem do encantamento provocado pela arte que de representada, ensaiada, passa
a espontaneamente vivenciada. Como em Partida do audaz navegante, em que a fantasia da
Brejeirinha é realizada por Zito e Ciganinha . . .

Estórias fantásticas lírico-amorosas


I. Seqüência
Tema: a força do destino, do "acaso"
Tom: lírico
Narrador: 33 pessoa (onisciente)
Protagonista: uma vaca

Enredo: uma vaca, por querência, foge de uma boiada para voltar ao seu lugar. Nada a desvia,
de todos os impecilhos se desembaraça. Um dos filhos do Seo Rogério, o dono da boiada, põe-se
a persegui-la, sem saber porque. E atrás dela chega à fazenda do Major Quitério, a qual também
se torna o seu lar. . . Reconhece amar a segunda das quatro moças da casa, o que sucede graças ao
acaso ou talvez ao destino que provocara tão insensata perseguição.

2. Substância
Tema: a descoberta do amor/ o "desmedido momento"
Tom: lírico-amoroso
Narrador: 33 pessoa (onisciente)
Protagonista: Maria Exita

Enredo: Sionésio, produtor de polvilho, emprega Maria Exita, de mãe leviana, pai leproso e
irmãos assassinos.
Fazendo a pior parte do serviço - partir o polvilho nas lajes - ela, no entanto, não parecia
padecer, antes tirar segurança efolguedo, do triste, sinistro polvilho, pórtentoso, mais a maldade
do sol.
Sionésio apaixona-se por sua beleza, pela imensidão de seu olhar, pela doçura de seu sorriso,
artes como um descer de anjos.
Não consegue tirá-la da cabeça, vigia-a nos bailes, mas ela é diferente, ninguém a quer de
medo da doença do pai, da má vida da mãe, da violência dos irmãos.
<( Sionésio, então, procura Maria Exita no trabalho e - antes de lhe falar - os mencionados
o motivos o perturbam.
�z Mas era o exato, o grande, o repentino amor - o acima.
Acontece com eles o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. Só o um-e-outra, um
w
� em-si juntos, o viver em ponto sem parar, coraçãomente: pensamento, pensamor. Alvor.
o Avançaram, parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os Pássaros.
u
<(
a: Comentário
::>
!d:a: Na 1! estória (Seqüência), outro agente do destino que se manifesta por
acaso que move as pessoas, para encontrarem o amor. E também a animização dos animais - a
ocultos caminhos: o

w vaca que tem querência - e da natureza, presente e� grande parte dos textos do escritor.

::i Em Substância, o tema da descoberta do amor se aproxima do da santidade em meio ao peca­
- do - Maria Exita, que lembra Mula-Mármelo (de A benfazeja) - e do desmedido instante - o

114 não-fato, o não-tempo - agora provocado pela força da paixão.


Estórias fantásticas metafisicas

1. Soroco, sua mãe, sua filha


Tema: loucura/ solidariedade
Tom: lírico-metafísico
Narrador: 3a pessoa (testemunha)
Protagonista: Soroco: um homem só e atormentado pela loucura das pessoas que ama

Enredo: com a presença de todo o povoado, a Filha e a Mãe de Soroco partem num trem que
as levará ao hospício de Barbacena. A moça começa a entoar uma cantiga incompreensível, acom­
panhada pela mãe. Após a partida, que é "para sempre", Soroco, muito triste, retoma a mesma
cantiga. Todos os presentes também cantam, num momento de solidariedade e comunhão:Todos,
no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de
Soroco (. . .) A gente, com ele, ia até onde que ia aquela cantiga.

2. A menina de lá
Tema: loucura/ santidade
Tom: lírico-metafísico
Narrador: 3a pessoa (testemunha)
Protagonista: Nhinhinha, uma menina de menos de 4 anos, que faz milagres

Enredo: Nhinhinha é uma menina que conversa com a natureza e os bichos, que sabe que vai
morrer (como conta ao narrador e à tiantônia) e que faz "milagres" que os adultos não entendem
e de que querem tirar proveito. . . A menina morre e a mãe espera - o caixãozinho cor-de-rosa com
verdesfune-bri/hos - o que a menina desejara e que aconteceria por mais um "milagre", o de sua
filhinha em glória, Santa Nhinhinha.
3. A terceira margem do rio
Tema: loucura! sina
Tom: lírico - metafísico
Narrador: la pessoa (o filho)
Protagonista: o pai

Enredo: o pai, homem calado e cumpridor, constrói para si uma canoa e com ela vai viver no
no.
A família, abandonada, nunca o esquece, especialmente o filho, que lhe leva alimentos com a
cumplicidade silenciosa da mãe (Nossa mãe nunca não se demonstrava), e o justifica aos outros e
a si próprio. Sem compreendê-lo mas se identificando, cada vez mais, com sua "sina", o filho
envelhece e um dia grita ao pai, da margem do rio, oferecendo-se para tomar-lhe o lugar. . . O pai
vem da parte de além em sua direção, concordando, e o filho foge num procedimento desatinado.
Entre a culpa cuj o motivo não sabe mas intui e o pedido de perdão, o filho aguarda, após a morte,
o cumprimento do destino . . .

4. Nada e a nossa condição


Tema: loucura/ santidade
Tom: lírico-metafísico
Narrador: 3a pessoa (testemunha)
Protagonista:tio Man'Antônio: um fazendeiro que podia ter sido o velho rei ou o príncipe
mais moço, nas futuras estórias de fadas
<(
cn
Enredo: esquivo na conversa, "individido", tio Man' Antônio entrava na própria casa como se o
enquanto pensava o que não pensava.
fosse alheia, alisava os dedos na testa, a:
Ao morrer-lhe a mulher, consola a filha que lhe pergunta se a vida é feita só de traiçoeiros cn
w
altos e baixos, dizendo Faz de conta, minha filha. . . Faz de conta. •<(
E não diz outra coisa além disso, nunca mais. Sem cara de viúvo, reforma a fazenda, des­ a:
<(
manchando o aspecto do lugar e afastando o que lembraria a mulher. No aniversário de sua morte
:E
sozinho, mas não triste. Sem olhar para o
dá uma festa e, quando as filhas casam e se vão, fica
::>
o transitório, doa e distribui suas terras aos servos, que não o com­
passado, tio Man' Antônio, (.!)
preenderam nem o amaram - o caduco maluco estafermo. Mesmo assim, deles faz-se capataz e -
rendeiro.
115
Quando morre, sua grande casa se incendeia, as mulheres se ajoelham, os homens de cara no
chão se prostram, pedindo algo e nada, precisados de paz...

5. Um moço muito branco


Tema: loucura! santidade
Tom: lírico - metafisico
Narrador: 3'! pessoa (testemunha)
Protagonista: o moço

Enredo: um moço muito branco - claro como o olho do sol, espiador de estrelas - sobre­
vive a um terremoto e a um temporal ocorridos na comarca de Serro Frio, em Minas Gerais.
Desmemoriado, passa a viver com Hilário Cordeiro. Todos gostam dele, silencioso e branco
como um anjo.
Duarte Dias - um homem mau, perverso - tenta de todas as formas ficar com o moço, o
qual dá sorte e faz milagres: diz blasfêmias a seu respeito; afirma pertencer a sua família e, quan­
do o moço toca o seio de sua filha Viviana, tornando-a para sempre alegre - quer forçar o casa­
mento. Nenhuma das artimanhas é bem sucedida.
Então, Duarte Dias implora a Hilário Cordeiro a presença do moço, em nome da muita afeição
que lhe tem. O moço o pega pela mão e faz com que ache em sua própria terra - cavando - uma
gupiara de diamantes ou um panelão de dinheiro (depende da tradição dessas antigas estórias).
Após dar a um cego um caroço de árvore que, plantado, transforma-se num azulado pé deflor,
o moço branco desaparece com o preto endoidecido pelas mesmas catástrofes, José Kakende - o
qual diz ter o moço acendido nove fogueiras e outras estranhezas.
Duarte Dias morre de dó e os outros experimentam uma saudade e meia-morte, só de imagi­
narem nele. Ele cintilava ausente, aconteceu.

6. Nenhum, nenhuma
Tema: a memória
Tom: lírico-metafisico
Narrador: 3'!. pessoa (espécie de testemunha inconsciente)
Protagonista: o Menino
Enredo: o Menino tenta, através de impressões confusas, evocar um lugar: uma velha casa de
fazenda, o escritório da casa, a escrivaninha vermelha cujo cheiro nunca mais houve.
No escritório, um homem velho sem aspecto, que seria o pai da Moça, linda e misteriosa, a
qual trocava olhares com o Moço, de quem o menino tem ciúmes.
Um quarto escondido uma velha, uma velhinha - de história, de estória - velhíssima, a ina­
creditável. Sem saberem seu nome, chamaram-na "Nenha".
A Moça cuida da velhinha, com amor. E pede ao Moço que a espere, até a hora da morte, não
do pai nem da velhinha, mas de ambos, para saberem se era o certo, o único, o amor de ambos. O
Moço, optando pelo viver comum, dá-lhe as costas. O Menino o acompanha, contra tudo o que
sentisse e percebe que se gostasse dele, estaria de alguma forma perto da moça: a mais formosa
criatura que jamais foi vista, que poderia ser a princesa no castelo, na torre.
O Menino chega em casa e desconhece os pais, agredindo-os por eles serem alheios à expe­
riência fantástica que vivenciara, sem saber quando, onde, nem porque...
<t:
o

z
Comentário
w As seis estórias que escolhemos para finalizar os conjuntos de enredos que criamos, parecem­
� nos conter os principais elementos comentados nas demais, além de aprofundá-los.
o
(j Em Soroco, sua mãe, sua filha, a loucura não compreendida mas testemunhada, deflagra a
<t: comunhão entre as pessoas, a solidariedade, que também acontece com os empregados em relação
c: aos patrões (O cavalo que bebia cerveja, Tarantão, meu patrão).
:::>
�c: Em oposição, há a loucura amaldiçoada, renegada, de Mula-Marmelo (A benfazeja), a loucu­
ra "cientificamente" provada de O espelho, a loucura satirizada de Darandina.
w Há, ainda, a loucura santificada de A menina de lá, de Um moço muito branco, de Nada e a

_J nossa condição. Nestas três estórias os seres hieroglíficos, desmemoriados, transitórios cons­
- tituem os agentes da loucura. Uma loucúra que se traduz como acaso, sina, fatalidade, astúcia,
fazendo brotar o amor (Seqüência, Substância, Luas de mel), a justiça (Os irmãos Dagobé,
116
Famigerado, Fatalidade), a fantasia dos "desmedidos momentos" (As margens da alegria, Os
cimos, Pirlimpsiquice, Partida do audaz navegante).
Em A terceira margem do rio, o filho se identifica com a loucura do pai ao mesmo tempo em
que não a entende. Ou, talvez, a intua sem saber dizê-la, por medo, culpa ou, ainda, por ser ela "o
insolitíssimo", o indizível, o infinito representado neste conto pelo rio, pelo fluir das águas nas
quais o pai permanece, sem nunca chegar a nenhuma das duas margens.
E a terceira, onde está? O que representa?
A nosso ver, a terceira margem do rio é a grande metáfora que aproxima todas as estórias
de que falamos: da sua pluralidade, da aparente diversidade de enredos, vem se delineando um uni­
verso sem contornos, um universo ancestral, mitopoético, que nos parece estar concentrado - de
forma especial - no conto Nenhum, nenhuma.
Povoado por Nenha - a velhinha de história, de estória - velhíssima, a inacreditável, pela
Moça que é a maisformosa criatura que jamais foi vista, que poderia ser a princesa no castelo,
na torre, o conto faz a metalinguagem de todo o livro: a busca da memória não individual mas
coletiva, a procura, através do não-saber, da sabedoria mítica, metafisica, poética.
Esta sabedoria é a única que torna possível entender, ou melhor, pressentir em que sentido um rio
pode ter uma terceira margem, em que sentido um velho fazendeiro, como o tio Man' Antônio, pode
virar alguém que podia ter sido o velho rei ou o príncipe mais moço, nasfUturas estórias defada.

Personagens
Você já percebeu que os personagens de Primeiras estórias são as crianças, os loucos, os ve­
lhos, os seres rústicos e "em disponibilidade", na expressão de Walnice Nogueira Galvão. Por
estarem à margem do processo produtivo, por não possuírem o que chamamos de "civilização" ou
"cultura", por pertencerem a universos primitivos, alógicos, estes seres podem ceder ao encanto,
à iluminação que transcende os conflitos, na opinião de Alfredo Bosi.
Este encanto, esta iluminação, na opinião de Benedito Nunes, faz com que

não haja de um lado o mundo e de outro o homem que o atravessa. Além de viajante, o homem
- como você testemunhou ao longo das estórias - é a
viagem - objeto e sujeito da travessia, em
cujo processo o mundo se faz.

Um mundo reinventado. Um mundo onde reina a poesia dos contos de fadas, a magia do sertão
sem fim, a maldade do Demo e a santidade dos desvalidos, dos esquecidos, dos que por não
saberem o que se considera o saber tomam-se videntes.

Linguagem

A adesão do narrador ao universo mágico dos personagens, a humanização de bichos, de plan­


tas, de elementos da natureza, a presença de metalinguagem, a utilização de recursos da oralidade
- como rimas e onomatopéias - a fusão da linguagem popular regionalista com a linguagem
culta, os neologismos, os arcaísmos, o ritmo, dentre outros elementos, dão grande beleza, grande
poeticidade, aos contos do livro.
Vamos exemplificar alguns aspectos da linguagem de Primeiras estórias, transcrevendo pas­
sagens significativas para compreendê-las:

Presença do lirismo, de prosa poética, na evocação da memória.


<
Nenhum, nenhuma (/)
Ultramuito, porém, houve o que há, por aquela parte, até aonde o luar do meu mais longe, o
o que certifico e sei. A casa-rústica ou solarenga-sem história visível, só por sombras, tintas sur­ a:
das: a janela parapeitada, o patamar da escadaria, as vazias tarimbas dos escravos, o tumul­ (/)
w
to do gado? Se eu conseguir recordar, ganharei calma, se conseguisse religar-me: adivinhar o ·<
verdadeiro e real, já havido. Infância é coisa, coisa? a:
<
A Môça e o Môço, quando entre si, passavam-se um embebido olhar, diferente do dos ou­ �
tros; e radiava em ambos um modo igual, parecido. Eles olhavam um para o outro como os ::::>
passarinhos ouvidos de repente a cantar, as árvores pé-ante-pé, as nuvens desconcertadas: (.!)
como do assoprado das cinzas a esplendição das brasas. Eles se olhavam para não-distância, -
estiadamente, sem sabêres, sem caso. Mas a Môça estava devagar. Mas o Môço estava ansioso.
111
11 (FUVEST) Elemento coletivo e contagiante, o canto fun­
ciona como fator de solidariedade entre as pessoas que se
(FUVEST)
Cê vai, ocê fique, você nunca volte!
agrupam, na estação, em volta da personagem. O canto Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?
perm ite que dividam com ela a mágoa da partida dos pa­ Pai, o senhor está velho, já fez seu tanto. . . Agora, o senhor
rentes loucos e preenche o vazio que fica. Entre os contos vem, não carece mais. . . O senhor vem, e eu, agora
de Primeiras estórias abaixo nomeados, em qual deles se mesmo, quando me seja, a ambas as vontades, eu tomo
encontra esta situação? o seu lugar, do senhor, na canoa !. . .
a) Partida do audaz navegante Os fragmentos foram extraídos do conto A terceira
b) As margens da alegria margem do rio, do livro Primeiras estórias, de João
c) Fatalidade Guimarães Rosa.
d) Nenhum, nenhuma
e) Soroco, sua mãe, sua filha a) Na sua opinião, o que simboliza essa terceira margem
do rio?
· b) Quais os elementos que demonstram a intencional
elaboração de linguagem realizada no primeiro período
transcrito?

<(
o

z
w

o
u b) Os elementos que demonstram a intencional elabo­
<( ração de linguagem no primeiro período transcrito,
a: podem ser as marcas de oralidade, a presença de uma
::>
El
a) A terceira margem do rio é a metáfora da " loucura " que fala que resgata o universo da cultura popular e a busca

a:
faz um homem afastar-se da família e ir viver dentro de
uma canoa, no rio. Trata-se de uma metáfora que alude
da sonoridade poética, através da qual percebemos a
linguagem de João Guimarães Rosa num momento
w à dimensão mística, metafísica, mitopoética da existên­ estratégico de elaboração intencional: Cê vai, ocê fique,
1-
cia humana, tematizada em especial neste, mas tam­ você nunca volte! As três expressões grifadas indicam
:J
---,
bém em outros contos de Primeiras estórias. de João o processo de fusão da linguagem popular, oral, regio­
Guimarães Rosa. nalista com a l i nguagem erudita, universal.
118
CLARICE LISPECTOR
Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzivel,
é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocante.

"

LAÇOS DE FAMIUA
A violência represada dos sentimentos primários que, de repente,
explodem é um traço comum nos personagens de Clarice
Lispector. (Berta Waldman - Clarice Lispector).

Narrador
Laços de família é o primeiro livro de contos de Clarice Lispector. Oito dos treze
contos (Devaneio e embriaguez de uma rapariga [conto de abertura], Amor, A imitação
da rosa, Os laços de família, Feliz aniversário, Preciosidade, Mistério em São
Cristóvão e O Búfalo) tratam da condição feminina no contexto familiar.
Nos quatro contos restantes ( Uma galinha, A menor mulher do mundo, Começos de
uma fortuna e O crime do professor de matemática), a escrita continua presa ao univer­
so familiar, privilegiando outros membros da família.
Nos doze contos em terceira pessoa, o foco narrativo caracteriza-se pela onisciên­
cia do narrador, que desvenda a interioridade dos personagens através de um movi­
mento ora de cumplicidade, ora de distanciamento em relação a eles.
A cumplicidade, ou adesão, ocorre por intermédio do discurso indireto livre, da
apresentação do fluxo de consciência dos personagens femininos, como veremos no
exemplo abaixo.
Ai, palavras, palavras, objetos do quarto alinhados em ordem de palavras a
formarem aquelas frases turvas e maçantes, que quem souber ler lerá.
Aborrecimento, aborrecimento, ai que chatura. Que maçada. Enfim, ai de mim,
seja lá o que Deus bem quiser. Que é que se havia defazer. Ai, é uma tal coisa que
se me dá que nem bem sei dizer. Enfim, seja lá bem o que Deus quiser. E dizer que
se divertira tanto esta noite! E dizer que fora tão bom, e a gosto seu o restaurante,
ela sentada fina à mesa! Mesa! gritou-lhe o mundo. Mas ela nem sequer a respon­
der-lhe, a alçar os ombros com um muxoxo amuado, importunada, que não me
venhas a maçar com carinhos; desiludida, resignada, empanturrada, casada, con­
tente, a vaga náusea. (Devaneio e embriaguez de uma rapariga).

Observe que o narrador contrapõe a terceira (. . . e dizer que se divertira tanto esta
noite) à primeira pessoa (Ai, é uma coisa que se me dá que nem bem sei dizer), aproxi­
mando-se da personagem sem explicar-lhe os sentimentos, mas expondo-os tal como \li! ascida em Tchetchelnik, aldeia da
surgem, confusos, repetitivos, calados... Lllll Ucrânia, em 1 925, e morta no Rio de
Este procedimento distingue os textos de Clarice dos romances de análise intros­ Janeiro, em 1 977, Clarice Lispector, brasilei­
pectiva, já que nos de Clarice o olhar de míope se cola aos personagens, desvenda-os ra naturalizada, passou a infância no Recife,
mudando·se para o Rio de Janeiro entre os
com a minúcia, com o apego ao detalhe sensível, que segundo Gilda de Mello e Souza
1 2 e 13 anos.
caracterizam o universo feminino, um universo de lembrança ou de espera, como mos­ Em 1 944, com apenas 19 anos, publicou
tra o exemplo transcrito, revelado com luminosa nitidez de contornos. Perto do coração selvagem, romance que
causou estranheza à crítica, peias novidades
O feminino é assim femininamente representado, por empatia e não por esforço ê5
que traz1a: a sondagem d o mundo mtenor, as l­
racionalizador, embora, nos momentos de distanciamento, o narrador traduza o silêncio
profundezas do subconsciente relativizando o U
deste universo, e também as suas atribuições socialmente definidas. enredo, a ação, como em Virginia Woolf,
James Joyce e Mareei Proust.

cn
A i, que cousa que se me dá! Pensou desesperada. Teria comido demais? A i, que Além de outros romances, como A paixão ::J
causa que se me dá, minha santa mãe! segundo G.H., A maçã no escuro e Água w
Era a tristeza. viva, Clarice publicou alguns livros de U
Acordou com o dia atrasado, as batatas por descascar, os miúdos que volta­ contos, sendo o primeiro Laços de família, a:
riam à tarde das titias, ai que até me faltei ao respeito!, o dia de lavar roupa e cer­ um verdadeiro mergulho nos bastidores do
universo familiar, e em especial na "doce
:::S
zir as peúgas, ai que vagabunda que me saíste!, censurou-se curiosa e satisfeita, ir u
náusea" da condição feminina dentro deste -
às compras, não esquecer o peixe, o dia atrasado, a manhã pressurosa de sol.
umverso. O
(Devaneio e embriaguez de uma rapariga)
;;;;;; 119
No segundo parágrafo, o narrador, com a frase Era a tristeza,
Não será difícil apontar na literatura femini­
verbaliza a indizível sensação da personagem expressa no primeiro
na a vocação da minúcia, o apego ao
detalhe sensível na transcrição do real (. . . ). parágrafo. No terceiro parágrafo, o mesmo narrador informa a per­
Ligada aos objetos e deles dependendo, sonagem das batatas por descascar, das crianças por cuidar, da
presa ao tempo, em cujo ritmo se sabe fisio­ roupa por lavar e das peúgas (meias) por cerzir.
logicamente inscrita, a mulher desenvolve As compras, o peixe, o dia atrasado, quer dizer, as obrigações
um temperamento concreto e terreno, domésticas que precisam ser cumpridas, constituem os elementos
movendo-se como coisa num universo de que reprimem a embriaguez, fazendo com que a personagem retor­
coisas, como tração de tempo num univer­ ne à rotina . . . Assim, mesmo indo além da percepção confusa da per­
so temporal (. . .). O universo feminino é um sonagem, mesmo traduzindo-a, o narrador não se afasta do imaginá­
universo de lembrança ou de espera (. . . ). E rio da personagem mais que o suficiente para denunciar a estreiteza
como não lhe permitem a paisagem que se de seu universo doméstico, denunciar uma prisão incompatível com
desdobra para lá da janela aberta, (. . .) a a autodescoberta, com o processo de reconhecimento da individua­
visão que constrói é uma visão de míope, e
lidade, que ocorre ao longo dos enredos em forma de expressão de
no terreno que o olhar baixo abrange, as
sentimentos primários, em forma de manifestação de um interesse
coisas muito próximas adquirem uma lumi­
apaixonado pela existência que momentaneamente transgride as
nosa nitidez de contornos.
limitações do papel social da mulher, sem transformá-lo, entretanto.
(Gilda de Mello e Souza ­ É o que veremos, estudando os enredos desta obra.
Exercícios de leitura)

Enredos
Vamos organizar o nosso trabalho, aproximando os contos pelo modo como abordam a temá­
tica dos laços de família, passando em seguida à apresentação sumária dos enredos e comentando
as afinidades entre eles.

Devaneio e embriaguez de uma rapariga


Uma mulher portuguesa, com a ausência circunstancial dos filhos, passa a devanear e a sonhar
- Ela amava... Estava previamente a amar o homem que um dia ela ia amar. Neste clima chega
o marido, a quem não dá importância quando este suspeita de que ela esteja doente, e continua o
devaneio, lembrando-se de um jantar a que fora com o marido e o patrão dele. Neste jantar, a dupli-
. cidade de sua vida como esposa e como mulher é revelada no êxtase com que se percebe corteja­
da pelo patrão do marido, na inveja que lhe provoca uma moça loira de peitos chatos, cintura fma
e chapéu - uma mulher que lhe parece ainda não ter assumido o papel doméstico.
Com a proximidade do retomo dos filhos, a mulher portuguesa (neste conto o narrador adere
à personagem inclusive utilizando o português de Portugal) volta do devaneio e, para compensá­
lo, resolve fazer uma grande faxina na casa.

Amor
Ana, uma mulher casada e com filhos, bem sucedida na vida familiar, está no bonde voltando
das compras quando vê, numa parada, um cego mascando chicletes. Esta visão a desestabiliza
emocionalmente; ela sente ódio, piedade, prazer, bondade, uma doce náusea da qual costuma fugir
mergulhando no dia-a-dia, em especial quando cai a tarde e não tem o que fazer, e se refugia nos
serviços domésticos.
Sua bolsa de compras cai, alguns ovos quebram, e ela desce no ponto errado. Entra no Jardim
Botânico, observando em êxtase a matéria bruta da vida; as árvores, as flores, a terra. O delírio ao
<(
o qual se entrega, misto de repulsa e fascínio, sedução, é bruscamente cortado pela lembrança dos


z
filhos, do jantar que faria aos irmãos com suas famílias.
Ela retoma à casa, o jantar obtém sucesso, e a estranheza do dia se esfumaça ao deitar-se para
w dormir, conduzida pelo marido.
:E
o Uma galinha
u
<( Num domingo em família, a galinha que seria morta para o almoço foge e, após muita persegui­
0::: ção, é recuperada pelo chefe da família. De susto, bota um ovo, o que faz com que seja preservada e
::>
�0:::
transformada em rainha da casa até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

w A imitação da rosa
1- Laura, esposa de Armando, de volta ao lar após um período de internamento numa clínica psi­
:::i
......
quiátrica, espera pelo marido para irem jantar, acompanhados por Carlota, amiga antiga, e pelo
marido desta.
180
Ao longo desta espera, obsessivamente procura se prender à sua imperfeição singela de mu­
lher afeita à rotina, de coxas baixas e grossas, sem filhos, pouco original e meio chata, desinte­
ressante. Ao mesmo tempo a perfeição de umas rosas que comprara na feira de manhã e vai sedu­
zindo como se fosse uma das tentações de cristo. No colégio, lera A imitação de Cristo e sentira,
sem entender a obra, que quem o imitasse estaria perdido. Cristo era a pior tentação.
Embora tentasse se defender do abismo ao qual novamente estava se entregando - o abismo
da perfeição de cristo e das rosas, cuj a beleza a transtorna - embora mandasse levar as rosas para
Carlota, a amiga autoritária e prática, que vagamente a despreza, Laura volta ao estado de "tran­
se" que fez com que fosse internada. Quando Armando chega encontra a mulher num pedido de
perdão misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita... alerta e tranqüila como num trem.
Quejá partira.
Feliz aniversário
A velha Anita, no dia em que completa 89 anos, é homenageada com uma festa, organizada
pela filha com quem mora: Zilda. Desde a chegada dos convidados, vamos percebendo a medio­
cridade, a rivalidade e o egoísmo que fazem das noras, dos genros e dos filhos ratos se acotove­
lando em tomo da aniversariante, que fica horrorizada com o que semeara, com a vida que falha­
ra. Ela, então, que se mantinha muda e imponente, num determinado momento cospe no chão,
pede vinho e acaba por xingar a todos, com exceção da nora Cordélia (mãe do único neto que real­
mente estima), infeliz, mas ainda com uma chance de amar, talvez a última vez. A ela a velha Anita
"diz" em silêncio: É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida
é curta.
A festa termina, todos se vão, e a velha medita sobre o jantar (teria sido substituído pela
festa?). O narrador então nos revela que a morte era o seu mistério.
A menor mulher do mundo
Pequena-Flor é o nome que um explorador francês dá à menor mulher do mundo, de 45 cen­
tímetros, escura e peluda como um macaco, descoberta nas profundezas da África. Grávida, ela se
apaixona pelo explorador, que se perturba como só um homem grande se perturba, saindo nos jor­
nais e incomodando as famílias: uma mulher se lembra da história de uma antiga cozinheira, que
no orfanato brincava com uma criança morta, outros têm pena, repulsa e indiferença.
O explorador não entende que Pequena-Flor o ame e também à sua bota, pois na umidade da
floresta não há desses refinamentos cruéis - e amor é não ser comido, amor é achar bonita uma
bota, amor é gostar da cor rara de um homem que não é negro, amor é rir de amor a um anel que
brilha.
O jantar
Único conto narrado em primeira pessoa, nele é relatado o jantar de um homem velho por
alguém que de outra mesa do restaurante o observa ora comendo tranqüilo, ora desesperado aper­
tando as têmporas com as mãos. O observador através desta imagem mergulha em suas próprias
contradições (o que percebemos pelo discurso indireto livre, também presente neste conto), dolo­
rosamente identificando-se com o velho, tomado pelo êxtase da náusea. Quando o velho se retira
do restaurante, o observador sente-se um homem ainda: Não sou ainda esta potência, esta cons­
trução, esta ruína. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue.
Preciosidade
Uma adolescente de quinze anos guardava-se da vida com seus sapatos, de ruído feio como
ela, temendo que a olhassem e assim desvendassem o medo secreto que tinha de crescer, de se tor­
nar mulher. A preciosidade deste medo era seu maior segredo. No ritual cotidiano de madrugar e a:
pegar um bonde e um ônibus para chegar à escola, um dia dois rapazes a seguem no trajeto a pé. o
Então, quatro mãos erradas de quem não tinha a vocação tocam-na tão inesperadamente que ela t;
w
percebe ser seu medo menor que o deles. Recompõe-se, recolhe do chão os livros e o caderno aber­
a..
to, onde viu a letra redonda e graúda que até esta manhã fora sua, chega atrasada à escola e, de CJ)
noite, exige da família sapatos novos, deixando, sem saber por que processo, de ser preciosa. A ::i
esta frase se sucede a seguinte explicação do narrador: Há uma obscura lei quefaz com que se pro­
w
u
teja o ovo até que nasça o pinto, pássaro defogo. a:
Os laços defamz1ia :5
u
Catarina leva a mãe à rodoviária, após duas semanas de visita desta à sua família, durante a -
qual mal falara com o genro - Antônio - e estragara o neto, magro e nervoso, com guloseimas.
181
No taxi, em meio a frases rotineiras e convencionais, um solavanco aproxima fisicamente mãe e
filha, numa intimidade de corpo há muito esquecida.
Despedem-se convencionalmente sem que, entretanto, a vertigem daquela revelação de um
afeto reprimido se apague. Catarina volta ao lar, o filho a chama de mãe como nunca o fizera ou
talvez como ela nunca percebera, e ambos saem para um passeio.
Antônio, desconfiado daquela súbita cumplicidade entre a mulher e o filho, fica na expectati­
va de que retomem para que o sábado - dia dele, mas com o testemunho da mulher, de que não
pode prescindir - volte ao normal, indo o casal ao cinema depois do jantar.

Começos de uma fortuna


Numa manhã daquelas que parecem suspensas no ar, Artur, o filho adolescente, reencontra a
mãe e o pai no café durante o qual conversam amenidades, cada um representando seu papel. Neste
episódio, o narrador enfatiza a carência efetiva de Artur, que de forma inconsciente procura com­
pensá-la, pensando fixamente em dinheiro.
Assim começa a sua "fortuna", que na verdade é a manifestação de sua profunda inseguran­
ça: o medo de pagar a Glorinha (uma amiga) a entrada de cinema, temendo ser explorado pela
menina. Primeiro ele a acusa interiormente pelas "malícias" que poderiam ocorrer, depois, não
ocorrendo tais malícias, ele a acusa do mesmo jeito, agora pela "gratuidade" da diversão de
Glorinha, contra quem se revolta por lhe ter pago a entrada de cinema.
No final do conto, Artur está de novo na mesa da refeição, falando de dinheiro com o pai ...
O dinheiro e o medo da exploração escondem, assim, a carência e a insegurança de um menino
solitário.

Mistério em São Cristóvão


Numa noite de maio, uma família que vive raro período de paz e de entendimento vai dormir.
De madrugada, três mascarados - um gato, um touro, um cavalheiro antigo, com máscara de
demônio - que iam a uma festa carnavalesca param para roubar jacintos do jardim da casa da
família adormecida. A menina magra, de dezenove anos, acorda e grita, os mascarados fogem, e o
a avó de novo pronta a se ofender, o pai e a mãefatigados,
equilíbrio dificil da família se desfaz:
as crianças insuportáveis, toda a casa parecendo esperar que mais uma vez a brisa da abastança
soprasse depois de um jantar. O que sucederia talvez noutra noite de maio.
O crime do professor de matemática
Enquanto enterra um cão morto encontrado na rua, no alto de uma colina de uma pequena
cidade, o professor de matemática, um senhor de meia idade míope e frio, relembra sem nenhuma
confusão, sem nenhum fio solto, um outro cão que fora seu e que o fazia sentir-se um criminoso.
Este cão lhe ensinara a amar a sua imagem, isto é, com uma liberdade e uma aceitação tão inte­
gral, que o incomodavam.
Sendo apenas um cão, José (o nome que lhe dera) o obrigava a ser um homem, a exercer uma
integridade de amor verdadeiro, que nada cede e nada exige, o que o professor não suportara.
Abandonou-o, então, com a conivência indiferente da família - esse fora seu crime.
Mas jamais alguém o descobriria, como também não descobriram que o cachorro constituía a
possibilidade constante de um crime, uma transgressão - o aprendizado do amor integral e ver­
dadeiro - na vida do professor.
Enquanto entrerra o cão anônimo, o professor friamente raciocina que assim está pagando um
tributo ao cão que abandonou. Entretanto, a lembrança dele transforma-se em saudade, a saudade
<(
o em diálogo comovido com o companheiro ausente, o diálogo em reconhecimento de que o crime


z
não tem remissão.
Ele, então, consciente de que procurava punir-se com um ato de bondade eficar livre de seu
w crime, desenterra o cão anônimo. Assim renova o seu crime para sempre e desce as escarpas em
�u direção ao seio dafamília.

<( O búfalo
a: Uma mulher rejeitada pelo homem que ama vai ao Jardim Zoológico para aprender o ódio
::>
�a: entre os bichos, mas só consegue encontrar amor. A girafa, o hipopótamo, os macacos, o camelo
e até a vertigem na montanha russa ensinam-lhe mais e mais amor . E ela, que precisava conhecer
w o ódio para não morrer de amor, que se perdoasse mais uma vez estaria perdida, que só sabia res­
1-
::J ignar-se, suportar e pedir perdão, finalmente defronta-se com um búfalo, olha nos seus olhos, e
...... encontra o ódio que procurava. Seu corpo tomba, então, no chão, e antes de baquear macio, em tão

182 lenta vertigem, a mulher viu o céu inteiro e um búfalo.


Comentário geral
A interrupção da rotina e a volta a ela podem ser analisadas como o mais forte elemento orga­
nizador dos contos de Laços defamília, nos quais os personagens pertencem ao universo familiar,
sendo em sua maioria femininos.
Em Devaneio e embriaguez de uma rapariga, Amor e Os laços de família a condição social
da mulher, a dona-de-casa, parece 'Colocá-la numa "segurança" que represa, ou reprime, as mani­
festações de sua subjetividade.
Bloqueada em termos de iniciativa e de decisões pela autoridade masculina, cabe à mulher o
mundo restrito, porém trabalhoso, do lar. Ela então se entrega aos afazeres do cotidiano - o mari­
do, os filhos, a casa - num esforço de organização que se toma obsessivo na exata proporção em
que desse desempenho depende o seu equilíbrio interior. Ou melhor: à faina doméstica transfor­
ma-se no único horizonte preenchedot de sua carência de horizontes, da redução de sua humani­
dade circunscrita a um único <espaço. Pequeno e portanto repetitivo, monótono, alienador.
Desta alienação nascem os desejos insatisfeitos, as sensações de "vazio" que não são dizíveis
e nem mesmo pensáveis por ausência de referências externas, de diálogos com outros mundos, que
lhe permitam relativizar aquele no qual está mergulhada, enclausurada.
Assim, os devaneios, os momentos de êxtase, ocorrem "perigosamente" quando os filhos saem
(Devaneio e embriaguez de uma rapariga), em certa hora do dia em que não há o que fazer
(Amor), ou quando algo extraordinário irrompe perturbando a normalidade (Os laços de família).
Nos três casos, tais momentos explodem, invadem a rotina, sem que as personagens com­
preendam-lhes o sentido, mas provocando neles um vôo, uma transcendência que nega toda a sua
vida e que por isso constitui uma transgressão. Radical por pertencer ao domínio das sensações,
das emoções, que a deflagram, a transgressão no entanto também é momentânea, fugaz, uma vez
que a chamada à realidade inevitavelmente ocorre: o jantar por fazer, os filhos por cuidar, a casa,
o marido etc.
Clarice Lispector capta, traduz e desvenda o vertiginoso relance destes momentos, mostrando
as contradições entre náusea, nojo, repulsa, e fascínio, luminosidade, paixão, de que são feitos.
Quando Ana vê o cego mascando chicletes (Amor) é orgânica e incontrolável a piedade que a
toma. Uma piedade que repudia a falta de piedade em que vive no dia-a-dia, como se não houves­
se cegos que mascam chicletes, como se não houvesse a matéria bruta da vida a desafiar a estrei­
teza de nossa humanidade. No Jardim Botânico, onde fora guiada pelo cego (sempre sem saber),
ela então se entrega ao delírio e à vertigem das sensações que afloram e que são impossíveis de
conter. Neste conto, o cego constitui o mediador entre o cotidiano e a aventura da descoberta, o
revelador da intimidade latente de seus sentimentos embotados.
Em Os laços defamília, o mesmo acontece através de um abraço imprevisto, no qual Catarina
percebe o quanto de distância e silêncio a separa de sua mãe. Em Devaneio e embriaguez, a rapa­
riga portuguesa por um instante de mergulho em si própria recupera uma sensualidade com a qual,
entretanto, não sabe o que fazer.
A volta à rotina renegada durante os vertiginosos relances substitui os sentimentos fortes -
a náusea doce de ir além e de ao mesmo tempo precisar retornar - pela contenção costumeira,
pela retomada do fio, que são as obrigações domésticas.
Em A imitação da rosa, temos a mesma história pelo avesso: a loucura de Laura é a sua per­
feição, a sua imitação de cristo, que a isola do marido e da mediocridade em que se esforça inutil­
mente por se manter. Não cabe na rainha a esposa, parecem gritar as flores silvestres que, como o
cego mascando chicletes em Amor, corrompem a personagem, a despeito de sua vontade.
Em A menor mulher do mundo e Uma galinha, dois seres primários, pertencentes à natureza,
incompreensíveis em sua estupidez (a galinha) ou em sua estranheza (Pequena-Flor), duas mani­
festações da matéria bruta da vida quebram a cadeia do cotidiano alienante das pessoas, que no a:
entanto a ele retornam. Como ocorre com a velha Anita, de Feliz aniversário, que pensa no jantar o
após um momento de reconhecimento de que a vida falhara, de que eram podres as sementes que l­
u
semeara. w
a..
O isolamento, a falta de comunicação entre as pessoas, cada uma voltada para o próprio papel U)
em uma representação em que não há diálogos, mas monólogos superpostos, faz do ambiente :::i
familiar uma espécie de farsa, em que o equilíbrio é frágil e precário, como vemos em Mistério em w
u
São Cristóvão, e em que as descobertas e carências individuais passam desapercebidas, como a:
sugerem Começos de uma fortuna e Preciosidade.
Nestes dois contos, os filhos adolescentes constituem os protagonistas, ambos distantes dos

u
pais, solitários, e em busca do selvagem coração da vida, seja pelo medo rompido em Preciosidade, -
seja pela compensação da carência através do dinheiro em Começos de uma fortuna.
183
A menina de 1 5 anos de Preciosidade é a promessa do futuro que não se cumpre em Feliz ani­
versário, em que no entanto a velha Anita com os punhos cerrados e a monumental decadência de
seus descendentes diante de si, transmite uma sabedoria duramente conquistada a alguém com
quem não tem laços de sangue, mas que também pertence à condição feminina. É preciso que se
saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta. . .
A necessidade deste aprendizado parece estar presente em O búfalo, onde a mulher rejeitada
busca suplantar a passividade de sua condição, chegando à vertigem do ódio cujo poder esmaga­
dor a faz desmaiar sem que possamos saber se a contemplação do que procurava consegue libertá­
la da obrigação de amar e de perdoar.
Enquanto o destino de amar, de perdoar e de se resignar aprisiona e silencia a mulher, o des­
tino do homem de não compreendê-la se repete exaustivamente nos contos, sendo tematizado o
seu quinhão de esmagamento interior, para preservar os laços de família. Em O crime do profes­
sor de matemática, a frieza do raciocínio do professor, sepultando com o cão anônimo o próprio
anonimato, a própria desumanização, contrapõe-se ao amor com que se lembra do cão verdadeiro,
o que o força a desenterrar, através do cão, o crime de não ter conseguido amar, e reconhecer que
não tem remissão este crime. Isto não o impede de retornar, como as mulheres, à comodidade
familiar...
Finalmente, em O jantar, há um observador da vida arruinada, fracassada (como a da velha
Anita), que empurra o prato, rejeita a carne e seu sangue, isto é, ainda se sente um homem, um
projeto de esperança, cuja realização fica em aberto, assim como em aberto fica para a adolescen­
te de Preciosidade, para a nora de Feliz aniversário, para a mulher desmaiada de O búfalo...
Estudando os personagens, vamos nos aprofundar mais um pouco no desvendamento deste
vertiginosos relances, captados pela sensibilida­
universo familiar, que nauseia e fascina, em seus
de de uma escritora que tanto quanto os seus personagens possui o segredo do indizível: mas já
que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.

Personagens
Não tem pessoas que cosem para fora? Eu coso para dentro. . . Assim respondia Clarice, quan­
do perguntavam como escrevia. Assim ela constrói seus personagens, aparentemente descoloridos
e desinteressantes, nas funções que desempenham no universo familiar: a dona-de-casa, o marido,
os filhos, a avó, o genro, a nora, os netos etc.
Entretanto, à medida que desvenda a interioridade destes personagens, sem perscrutá-los inte­
lectualmente mas olhando-os, tocando-os, aproximando-se deles, dando voz ao seu silêncio, à sua
solidão, Clarice nos ensina o segredo do indizível. Com ela, pela forma como faz das linhas pre­
textos de percepção das entrelinhas, aprendemos a paixão da descoberta do humano, do substrato
inquieto da vida que se esconde atrás dos atores, no vão entre silêncio e linguagem, nos bastido­
res das representações de cenas aparentemente banais.
Começando e terminando com a rotina, com aquilo que o hábito lambe até dar-lhe uma apa­
rência de suavidade - a expressão é de Júlio Cortázar (Histórias de Cronópios e de Famas) ­
estes contos interessam, prendem, fascinam quando a ação é estrangulada pela emoção, e neste
momento perplexo, passageiro como se não tivesse existido, exatamente neste momento, defronta­
mo-nos com a matéria bruta da vida: seu gosto, seu cheiro, sua textura, a indomável violência da
subjetividade represada.
<( Ao explodirem, ao transcenderem a si próprias, ao perderem os contornos que a repetição tor­
o

z
nou pálidos, descoloridos, as mulheres destes contos revelam que da materialidade de seu univer­
so, um universo tradicionalmente de lembrança e de espera, surge o saber de quem não sabe, o
w dizer de quem não diz: este saber e este dizer talvez possam ser expressos pela palavra pulsação.
� Pulsam os sentimentos, pulsam as emoções, as sensações nos momentos de exceção, de suspen­
o
u são, em que é como se apalpássemos os corações batendo, a vida acontecendo, desautomatizada e
<( livre, indomável, por um milésimo de segundo sem espaço, sem tempo, sem coerções... Quando
0::: os contos terminam, e fechamos o livro, o que aprendemos é exatamente o que não conseguimos
::J
Éa percepção de um ritmo interior que nos move subterraneamente, que por detrás do
!;3:
c::
explicar.
que aparentamos constitui o que de mais precioso existe em nossa humanidade.
w Assim, os personagens de Clarice são o avesso dos papéis, das funções que desempenham nos
1-
:J laços de família. E no entanto retornam a estes papéis, como nós, leitores, retornamos da leitura
--. dos contos: preocupados com o que fazer, ameaçados pela iluminada fecundidade do instante que

184 vivemos.
Linguagem
Vamos transcrever algumas passagens do livro de Berta Waldman, escrito para uma coleção
chamada Encanto radical, em que fala da linguagem de Clarice:
(. . .) o mundo de Clarice é vivo e sensual. Erotizado, elepulsa de corpo inteiro. Mundo car­
regado de cheiros, frutos podres e adocicados, carne crua e sangrenta, cheiro de cal, de mare­
sia, de guardados, de estrebaria, de vacas, de leite e sangue. Carregado deformas gelatinosas
e macilentas, de lama, de pus. De musicalidade que ecoa e vibra suas dissonâncias ao som
agudo da flauta e do violino plangente. De telas e mais telas que pretendem alcançar o bran­
co sobre o branco.
A convocação de todos esses elementos e de outros mais são recursos tidos como necessá­
rios para captar a vida, a existência. Não a existência abstrata, exemplar, mas aquela que se
entranha na banalidade do cotidiano. E isso Clarice consegue captar, de modo magistral, nos
contos (. . .) .
Quem nos conta todas as histórias é Clarice Lispector que se conta através delas (. . .).
O fracasso é também o estigma que a escritora carrega. Entre a realidade, sua matéria­
prima, e a linguagem - o modo como vai buscá-la e não a encontra - o seu esforço huma­
no e apaixonado é buscar e voltar com as mãos vazias. Com o indizível. "O indizível só me
poderá ser dado com o fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção é que
obtenho o que ela não conseguiu. "
Enquanto nomeia e designa, a palavra jaz surgir, à sua sombra, a multiplicidade do que
não tem nome. Ela trai no que alcança dizer e éfiel quando silencia. Para contar não osfatos
mas seus ecos e ''sussurros", não os personagens, mas suas vibrações e intimidades, não um
caminho mas instantes privilegiados e fugidios, é preciso lapidar as entrelinhas, golpear a
linha e aumentar o cerco do silêncio que rodeia a palavra. Dilacerada, a linguagem mapeia
o dilaceramento dos personagens, sua dispersão. Dispersa, mutilada, a linguagem espelha o
vazio do sujeito à procura da própria imagem de totalidade perdida no mundo em que vive.
Entre a palavra e o silêncio, entre o que diz e o que está implícito em seu dizer, situa-se o
texto de Clarice.
(Berta Waldman - Clarice Lispector)

Vamos, agora, ler um trecho de Laços de família, e procurar perceber a intensidade e a sen­
sualidade de sua linguagem.

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no
bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco
procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam
banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim
espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos
poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que
se quisesse ia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela
plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores.
Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cres­
ciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo
de fome, o canto importuno das empregadas do edi.ficio. Ana dava a tudo, tranqüilamente,
sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam
dela. Quando nada mais precisava de suaforça, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sóli­
da do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava as blu­
sas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vaga­
mente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com
o tempo, seu gosto decorativo se desenvolvera, suplantara a íntima desordem. Parecia ter des­
coberto que tudo era possível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência a:
harmoniosa; a vida podia serfeita pela mão do homem (. . .). o
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pen­ tw
sou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se
a..
ela estivesse grávida e abandonada. A moral do jardim era outra. Agora que o cego a guiara CIJ
até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundofascinante, sombrio, onde vitórias-régias ::i
boiavam monstruosas. As pequenasflores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou w
rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada . . . Mas u
todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados a:
pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que :5
sentia o seu cheiro adocicado. . . O jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno. u
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra . Sob os -
pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.
185
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com
uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alame­
da. Quase corria - e via o jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu
os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de
não a ter visto.
(Amor)

R
11
Como você explica as frases Agora estou bem certo de O búfalo, conto de Laços de família, de Clarice Lispector,
que não fui eu que tive um cão. Foste tu que tiveste uma liil i nicia-se com a seguinte frase: Mas era primavera. Que
pessoa, presentes no conto O crime do professor de relação existe entre esta frase e a trajetória da protagonis­
matemática, de Laços de família, escrito por Clarice ta do conto, no Zoológico?
Lispector?
Em que sentido podemos afirmar que há uma relação

El
( U NICAMP) A certa altura do conto Amor (Laços de famí­ entre o dizível e indizível na linguagem dos contos de
lia), de Clarice Lispector, a personagem Ana assinala o Laços de família?
papel desempenhado por um cego na sua vida; Um cego
me levou ao pior de mim mesma, pensou. Conte como
ocorreu o encontro entre eles e explique o papel do cego
no desenvolvimento da narrativa.

Não tem pessoas que cosem para fora ? Eu coso para


dentro. Explique à luz desta frase de Clarice Lispector o
processo de construção dos personagens de Laços de
família.

11
Estas frases mostram a relação do professor de matemá­ Esta frase mostra que o mundo interior, a subjetividade
tica com José, o cão que por ser livre, por ser apenas um represada pelas obrigações, pelos laços de família, cons­
cão, ensinou-o a amar com liberdade, com um desprendi­ titui a dimensão mais importante da construção dos per­
mento de amor verdadeiro que se tornou insuportável ao sonagens de Clarice Lispector e de toda a sua literatura,
professor, incompatível com o seu cotidiano reprimido e voltada, como sabemos, para o desvendamento da
alienado. Assim, o professor abandona o seu cão, José, e essência humana que se esconde atrás dos papéis soci­
para se perdoar deste crime enterra outro cão, anônimo, ais assumidos pelas pessoas.
que encontra. No entanto, ao perceber não ter remissão

I
o seu crime, o professor desenterra o cão anônimo e A conjunção adversativa mas chama a atenção dos leito­
volta para casa, para os laços de família que o impediam res para uma situação anterior ao início do conto, que se
<( de conviver com José, o qual o teve, em vez de ser tido contrapõe à primavera. Depois ficamos sabendo que se
o

por ele, por lhe ensinar o que não conseguiu aprender. trata da rejeição que sofre uma mulher, da parte do
homem que ama. Então ela vai ao Zoológico para apren­
z O encontro entre Ana e o cego ocorreu quando esta vol­ der o ódio, para se l ibertar da clausura de amor e de per­
w

El tava das compras, de ônibus, e viu o cego parado num
ponto. Ele mascava chicletes e esta imagem causou um
dão que a impede de reagir, de manifestar os seus verda­
deiros sentimentos. Mas era primavera e os bichos do
o transtorno, um desequilíbrio emocional em Ana, que pas­ Zoológico só lhe ensinam o amor do qual ela tenta fugir,
u
sou a sentir ao mesmo tempo simpatia, piedade, repulsa, até que finalmente um búfalo lhe transmite o ódio que
<( náusea e amor pelo cego. O papel deste personagem na buscava. A mulher desmaia, na vertigem desta sensação.
a:
:::J narrativa é fundamental: através dele, há uma quebra,

�a: uma suspensão na rotina em que Ana vive, o que a faz


intensificar-se humanamente, percebendo a intensidade
Podemos afirmar que há uma relação entre o dizfvel e o
indizível em Laços de família pela sensualidade e erotis­
w da vida que o mundo doméstico a impedia de ver. mo de sua linguagem, repleta de aromas, de sonoridades,
I­ de coisas palpáveis e ao mesmo tempo difíceis de
� apreender porque fugidias, mais sugeridas que ditas,
...... mais próximas do que se sente do que daquilo que se

186 consegue dizer . . .


-

JOAO CABRAL DE MELO NETO


No sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

MORTE E VIDA SEVERINA


Tematizando a travessia do retirante nordestino do sertão para o litoral,
e a esperança de vida num contexto de sucessão de mortes provocadas
pela miséria e pelo abandono, Morte e vida severina conjuga o sabor
das palavras poéticas com a sua encarnação, proporcionada pelos
recursos da arte da dramaturgia.

Enredo

Publicada pela primeira vez em 1 954 e encenada com grande sucesso em inúmeros
palcos do Brasil e de outros países, esta obra, de João Cabral de Melo Neto, estrutura­
se na forma de auto, peça teatral de origem medieval e popular.
Além da grande sonoridade provocada pela predominância de versos em redondi­
lha maior (verso de 7 sílabas poéticas, também pertencentes à tradição medieval), de
rimas sem um esquema regular, mas constantes, de repetições de palavras e de versos
inteiros, Morte e vida severina prende a atenção do leitor-ouvinte por combinar simpli­
cidade e concentração, fortes imagens visuais e auditivas com uma linguagem muito
próxima do registro oral.
Nela, o autor tematiza o itinerário do retirante nordestino, que parte do sertão parai­
bano em direção ao litoral, em busca de sobrevivência, devido à seca e às precárias, se
não insustentáveis, condições de vida, para a esmagadora maioria da população.
A obra possui 1 8 trechos ao longo dos quais Severino, o retirante, primeiro apre­
senta-se ao leitor para em seguida ir relatando, com o auxílio de outras vozes, outros
personagens encontrados na travessia, as etapas de que ela se compõe até chegar no João Cabral de Melo Neto nasceu em
N Recife. Pernambuco. em 1 920. Morte e
Recife, onde o rio se encontra com o mar. . . Ora dialogando individualmente com ele,
vida severina. auto de Natal pernambucano
ora funcionando como um coro, tais vozes dão mobilidade aos trechos e ressoam de publicado em 1 965 e encenado no mesmo
modo a contagiar os que seguem as pegadas do protagonista, explicitadas por títulos que ano, com enorme sucesso, no Teatro da
resumem os seus movimentos principais, de forma semelhante às titulações dos capítu­ Universidade Católica de São Paulo, é o
los dos romances medievais. texto mais conhecido de João Cabral de
Para facilitar o entendimento do enredo de Morte e vida severina, vamos dividi-lo Melo Neto.
Em poesias metalingüísticas de grande
em duas partes: a primeira compreendendo dos trechos 1 ao 9, e que consiste na via­
importância como Rios sem discurso.
gem da Paraíba ao Recife; e a segunda compreendendo dos trechos 10 ao 18, nos Psicologia da composição, A educação peta
quais aparecem as experiências vividas pelo retirante na cidade grande. pedra, João Cabral desvenda poeticamente,
com estilo seco e despojado de verbalismos,
]'!: Parte: Do interior da Paralba ao Recife: a o caráter essencial de sua obra: a procura
da palavra·homem, a palavra-coisa, a O
busca da vida x a sucessão de mortes palavra·pedra. que, como queria Drummond
em A procura da poesia. elite sujeito e

Antes de narrar a história de sua vida, Severino, cujo nome de próprio se tomou z
objeto. Dizendo melhor, os poemas de João
comum (elemento que estudaremos na seção Personagens), identifica-se ao leitor no O
Cabral se reúnem numa só entidade, ...J
trecho 1 - "O retirante explica ao leitor quem é e a que vai" - como personificação aparentemente objetivista. impessoal, mas, W
de um tipo humano e brasileiro: o oprimido socialmente, o retirante cuja vida é deter­ se os lermos bem, são reveladores do mar e :2:
minada pelas condições atmosféricas devido à omissão, ao descaso, às desigualdades do canavial. do l itoral e do sertão. da morte w
econômicas que se mantêm irreparáveis. em vida e da vida que explode, mesmo na O
morte - Morte e vida Severina. ...J
Mas para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
Diplomata de carreira desde 1 945, serviu à
representação do Brasil na Inglaterra,

IJl
e melhor possam seguir França, Suíça e Espanha. Membro da <(
a h istória de minha vida, Academia Brasileira de Letras desde 1 969. U
passo a ser o Severino Entre outras obras, João Cabral de Melo O
que em vossa presença emigra Neto escreveu: Pedra do sono; O engenheiro; •<(

Nas etapas desta emigração, o que vemos, através de seus sonhos, é sempre a morte
Psicologia da composição; O cão sem
plumas; A educação peta pedra; Museu de
Q
-
interrompendo a vida. tudo· D
========== 181
No 2� trecho, por exemplo, intitulado Encontra dois homens carregando um defunto numa
rede, aos gritos de: "o irmão das almas! Irmãos das almas! Não fui eu que matei não ", há um
diálogo entre o Severino-retirante e os carregadores daquele corpo, o corpo do Severino-lavrador.
Aqui se alternam quartetos de versos com 7 e 4 sílabas poéticas, e se repetem no 2° verso de
cada quarteto as expressões irmãos das almas (quando a fala é de Severino) e irmão das almas
(quando a fala é dos carregadores de corpo), formando uma espécie de refrão, de ladainha, de
coro, que fortalecem a dramaticidade e o lirismo de muitas partes do texto.
O diálogo nos informa que Severino-lavrador morreu de morte matata, assassinado a bala,
numa emboscada, por Ter uns hectares de terra. ..Ide pedra e areia lavada/que cultivava. As per­
guntas de Severino-retirante sobre quem o emboscou e que roças ele podia plantar/na pedra
avara, e também sobre por que o fizeram, as respostas são: - Ali é dificil dizer/irmão das
almas./Sempre há uma bala voando/desocupada "; "- Nos magros lábios de areia/irmão das
almas, dos intervalos das pedras/plantava palha " e "- Queria mais espalhar-se/irmão das
almas,lqueria voar mais livre/essa ave-bala.
Vemos, assim, nas imagens da "ave-bala" e dos "magros lábios de areia", tanto a impunidade
do crime quanto a estreiteza do pedaço de terra que o deflagra: "- Tinha somente dez qua­
dras/irmão das almas,/todas nos ombros da serra, nenhuma várzea" ...
Severino-retirante se oferece para ajudar a levar o morto, o que permite que um dos conduto­
res possa voltar para casa. Uma fala final deste trecho exemplifica a ironia com que é retratada a
morte, de forma crescente à medida que aumenta o número de cadáveres: " Mais sorte tem o
-

defunto/irmão das almas,/pois já não fará na volta/ a caminhada".

No 3° trecho - O retirante tem medo de se extraviar porque seu guia, o rio Capibaribe, cor­
tou com o verão - as imagens das vilas e cidades por onde Severino-retirante vai passar como
um rosário, e da estrada como uma linha, enriquecem-se com a imagem do Capibaribe. O rio­
guia, identificado com o homem do nordeste, tem uma sina a cumprir, mas no verão a seca o inter­
rompe, e ele se transforma em ''pernas que não caminham... "
Entretanto, o som de uma cantoria orienta o viajante, que encontra, ao segui-la, o segundo
defunto - trecho 4: Na casa a que o retirante chega estão cantando as excelências para um
defunto, enquanto um homem, ao lado de fora, vai parodiando as palavras dos cantores.
Nos trechos 5 e 6, e nos trechos 7 e 8, mais duas interrupções ocorrem na travessia do retiran­
te. A primeira (referente aos trechos 5 - Cansado da viagem o retirante pensa interrompê-la por
uns instantes e procurar trabalho onde se encontra - e 6 - Dirige-se à mulher na janela que
depois descobre tratar-se de quem se saberá) decorre do cansaço de Severino. Perante a sucessão
de mortes que testemunha tem vontade de, como o rio, "interromper sua linha", permanecer onde
está.
Vê, então, uma mulher na janela, que lhe parece "remediada" e resolve perguntar-lhe por tra­
balho. O diálogo entre o protagonista e a mulher faz com que o primeiro, respondendo às pergun­
tas dela, enumere os oficios que já teve (lavrador, vaqueiro, moedor de cana em engenhos, "supor­
tar o sol" e, "havendo ou não (trabalho) trabalhar"), enquanto a mulher indaga se sabe "benditos
rezar, cantar excelências, defuntos encomendar. . . " Trata-se de uma encomendadora de mortos,
que "se soubesse rezar ou mesmo cantar " lhe proporia sociedade, "que a freguesia bem dá".
O diálogo então se inverte, Severino quer saber "como a senhora, comadre, pode manter o seu
lar" e ela, rezadora titular de toda a região, responde-lhe: "- Como aqui a morte é tanta,/só é pos­
sível trabalhar/nessas profissões que fazem/da morte oficio ou bazar". Enumera por sua vez os
<( ''profissionais da morte" - farmacêuticos, coveiros, "doutor de anel no anular" - denominando­
o os "retirantes às avessas", isto é, pessoas que sobem do mar para o ser­

z
Morte e vida severina é wna das peças tão e cultivam os "roçados da morte", os quais ironicamente "nem é pre­
w mais modelares que até hoje foram ciso esperar/pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear... "
� lavradas em língua portuguesa, pelo Nos trechos 7- O retirante chega à zona da mata, que o faz pen­
8 plano da construção, pela emoção
concentrada, pela riqueza imagística,
sar, outra vez, em interromper a viagem - e 8 - Assiste ao enterro de
um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que o
<( pela carga afetiva, pelos efeitos
a: levam ao cemitério - a chegada a uma terra "mais fácil, doce e rica"
::J plásticos, pela solidariedade hwnana
enche de esperanças o coração do retirante.
�a: com que se consegue penetrar o
ouvinte.
Mas, em vez de gente ele vê apenas, numa várzea, um bangüê velho
w em ruína, o que o leva a conclusões apressadas: "Por onde andará a
t­ Antonio Houaiss gente/ que tantas canas cultiva?I Feriando: que nesta terra/ tãofácil, tão
::i
doce e rica,/ não é preciso trabalhar/ todas as horas do dia,/ os dias
.......
Drwnmond, mais seis poetas e
um problema todos do mês,/ os meses todos da vida... "
188
Tais conclusões são desmentidas no trecho 8, um dos mais conhecidos do texto, no qual o coro
dos amigos do morto é uma forma de condenar, agora mais concentradamente, o que já vinha
sendo denunciado desde o início: a desigualdade social, o extremo desamparo dos pobres perante
o latifúndio, o coronelismo, as grandes oligarquias.
Os versos dirigem-se ao morto, cuja cova "é a parte que te cabe/ neste latifúndio, é a terra
que querias/ ver dividida", é onde "estarás mais ancho/ que estavas no mundo", é onde "mais que
no mundo/ te sentirás largo... "
Assim, o trabalho exercido com justiça e dignidade associa-se com a terra de que, "além de
senhor/ será homem de eito e trator ( . . .). Serás semente, adubo, colheita" numa terra que "Também
te briga e te veste:/ embora com o brim do nordeste".
Esta enumeração de imagens acaba por identificar o homem morto com a terra onde deveria
"-Se abre o caixão e te abri­
trabalhar, de onde precisaria tirar o seu sustento, mas que agora. . .
ga,/ lençol que não tiveste em vida; - Se abre o chão e te fecha,/ dando-te agora cama e cober­
ta;/ - Se abre o chão e te envolve,/ como mulher com que se dorme".
No trecho 9 - O retirante resolve apressar os passos para chegar logo ao Recife - nova­
mente Severino fala com o leitor, por um lado afirmando não ter sentido diferença "entre o Agreste
e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui a Mata" e, por outro lado, identificando-se mais com o
rio ( "vive a fugir de remansos,/ a que a paisagem o convida,/ com medo de se deter,/ grande que
seja a fadiga ''), chegar logo "ao fim dessa ladainha", ao Recife, "derradeira ave-maria do rosá­
rio, derradeira invocação da ladainha,/ Recife, onde o rio some/ e essa minha viagem se finda...

2! Parte: O retirante na cidade grande:


a sucessão de mortes x a explosão da vida

A partir do trecho 1 O Chegando ao Recife, o retirante senta-se para descansar ao pé de


-

um muro alto e caiado e ouve, sem ser notado, a conversa de dois coveiros - Severino inicia seu
trajeto pela cidade grande.

Dois coveiros - um do bairro de Casa Amarela e outro do bairro de Santo Amaro - conver­
sam, o primeiro querendo deixar o seu cemitério, cujo vaivém de mortos compara com ''paradas
de ônibus, com filas de mais de cem", e o segundo comparando o setor do cemitério onde trabalha
com "a estação de trens: diversas vezes por dia chega o comboio de alguém".
Enquanto isso, afirma o coveiro de Santo Amaro, "As avenidas do centro/ onde se enterram
os ricos,/ são como o porto do mar:/ não é ali muito e serviço: no máximo um transatlântico/
chega ali cada dia/ com muita pompa, protocolo/ e ainda mais cenografia". A estes bairros (den­
tro do cemitério) de usineiros, políticos, banqueiros, industriais, etc., contrapõem-se, continua o
coveiro de Santo Amaro, os bairros dos funcionários, dos jornalistas, dos escritores, dos artistas,
dos bancários, etc . . .
O coveiro de casa Amarela reconhece um bairro dessa gente n o cemitério do qual quer sair:
"Raras as letras douradas,/ raras também as gorjetas", e conta ao amigo que conseguiu do admi­
nistrador mudar de bairro, não de cemitério.
Então, o interlocutor comenta: "Passa para o dos operários,/ deixas o dos pobre vários;/ me­
lhor, não são tão contagiosos,/ e são muito menos numerosos".
A conversa prossegue com ambos os coveiros falando dos indigentes, "da gente retirante/ que o
1-
vem do sertão de longe... Não podem continuar,/pois tem pela frente o mar./ Não tem onde tra­ w
z
balhar/ e muito menos onde morar... essa gente do sertão/ que desce para o litoral, sem razão,
o
fica vivendo no meio da lama,/ comendo os siris que apanha;/ Pois bem: quando sua morte chega/ ...J
temos que enterrá-los em terra seca.. . " com a sugestão de que morressem no rio, facilitando o tra­ w

balho deles. Enfim, a conclusão a que chegam é de que o erro dos sertanejos é virem seguindo "seu
w
próprio enterro". c
Severino, após ouvir tais palavras, aprende que "nessa viagem que eu fazia,/ sem saber desde ...J
o Sertão,/ meu próprio enterro eu seguia. . . " e encontra como solução apressar a própria morte,
<(
a:
como o coveiro a descrevera/ jogar-se no Capibaribe "que o rio, aqui no Recife,/ não seca, vai toda co
a vida. . . " (trecho 1 1 - O retirante aproxima-se de um dos cais do Capibaribe).
<(
u
Do trecho 12 ao 13 ocorre o encontro de Severino com Seu José, um mestre carpina que defen­ o
de a vida, "mesmo que em retalhos, a vida de cada dia, que cada dia deve ser conquistada". Após t<(
o trecho 1 2 (Aproxima-se do retirante um morador de um dos mocambos que existem entre o cais
o
...,
e a água do rio) há a notícia do nascomento de uma criança, filha do carpinteiro (trecho 1 3 - Uma -
mulher, da porta de onde saiu o homem, anuncia-lhe o que se verá), e nos trechos 1 4 (Aparecem
189
e se aproximam da casa do homem vizinhos, amigos, duas ciganas, etc.), 15 (Começam a chegar
pessoas trazendo presentes para o recém-nascido), 1 6 (Falam as duas ciganas que tinham apare­
cido com os vizinhos) e 1 7 (Falam os vizinhos, amigos, pessoas que vieram com presentes, etc.) a
celebração do evento transcorre.
Os presentes humildes dos amigos, os prognósticos das ciganas vindas dos "Egitos" (a primei­
ra vendo a criança como um futuro pescador e a segunda, como um operário, alguém de condição
e de moradia melhores), as falas dos presentes, reconhecendo que "o menino magro/ de muito peso
não é, mas tem peso de homem, de obra de ventre de mulher' e poeticamente o descrevendo ("é
belo como o coqueiro/ que vence a areia marinha... ", "é tão belo como um sim/ numa sala nega­
tiva ", ... "belo porque corrompe/ com sangue o novo a anemia... ") criam a atmosfera do trecho 1 8,
que finaliza o poema.
Nele - O carpina fala com o retirante que esteve fora, sem tomarparte em nada - o pai do
menino recém-nascido mostra o filho como fato-exemplo de que a vida deve ser celebrada ela pró­
pria, que a sua explosão - que assemelha ao nascimento de mais um pobre o renascimento da
existência - pode inverter a seqüência de sombras em que mergulhara o retirante, e com ele o lei­
tor, e substituí-lo por outra resposta: "E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida:/ vê-la
desfiar seu fio,/ que também se chama vida,/ ver a fábrica que ela mesma,/ teimosamente, se fabri­
ca,/ vê-la brotar como há pouco/ em nova vida explodida;/ mesmo quando é assim pequena/ a
explosão, como a ocorrida;/ mesmo quando é a explosão/ corno a de há pouco, franzina;/ mesmo
quando é a explosão/ de uma vida severina".

Personagens
Além do mestre carpinteiro que representa a possibilidade de esperança na vida através da
própria vida se fazendo e refazendo, o protagonista da obra, seu personagem modelar de quem o
mestre constitui a "outra face", é o retirante personificado por Severino. Vamos, então, analisá-lo.
No primeiro trecho, ele se apresenta aos leitores - pessoas letradas e pertencentes ao mundo
urbano - chamando-os de "Vossas Senhorias" e inicialmente procurando distinguir-se enquanto
indivíduo.
Para fazê-lo, detalha ao máximo o seu nome - "é o Severino/ da Maria do Zacarias,/ lá da
Serra da Costela,/ limites da Paraíba". Entretanto, isso ainda diz pouco: "Se ao menos mais cinco
havia/ com o nome de Severino/filhos de tantas Marias/ Mulheres de outros tantos,/já finados,
Zacarias,l vivendo na mesma Serra/ magra e ossuda em que eu vivia".
Neste trecho que inicia o auto, um de seus eixos temáticos fundamentais pose ser notado com
facilidade: o anonimato de uma gente cuja vida só tem a morte como horizonte - "E se somos
Severinos/ iguais em tudo na vida,/ morremos de morte igual,/ mesma morte severina,/ que é a
morte de quem se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ defome um
pouco por dia/ de fraqueza e de doença! é que a morte severina/ ataca em qualquer idade/ e até
a gente não nascida".
Repare que a pluralização do nome próprio Severino transforma-o em nome comum, nome
que simboliza a violência e a miséria de vidas tão iguais quanto as mortes .. . "esta morte severina".
Agora, a palavra torna-se um adjetivo que caracteriza a precariedade da existência dos seres
oprimidos pela seca e pelo conservadorismo de um sistema socio-econômico-político opressor, de
estrutura anacronicamente reacionária (os severinos como descendentes do coronel Zacarias, o
<(
o "mais antigo senhor desta sesmaria", e de mães chamadas Marias... ).

z
� A sina, o destino, a fatalidade de "abrandar pedras", de "tentar despertar terra sempre mais
extinta", constitui outro elemento temático que persiste ao longo de todo o texto, cujo conteúdo de
w
denúncia social fica nítido no enredo, na caracterização do personagem principal e modelar
::2:
o do livro, Severino, e, como veremos, no tempo/ espaço e na linguagem da obra.
u
<(
a:
:::> Tempo/espaço
!;:(
a: Morte e vida severina entrelaçam-se a características da
Os aspectos temporais e espaciais de
w Enquanto o tempo é inde­
obra estudadas em seu enredo e através de seu protagonista, Severino.
1-
::J terminado cronologicamente, dando-nos a situação da seca como único marcador, que pare­
....... ce eternizá-lo, o espaço possui um movimento de deslocamento mais simbólico que real,
embora aconteça de fato.
190
Isto porque a travessia do retirante do Agreste para a Caatinga, da Caatinga para a Zona da
Mata, da Zona da Mata para o Recife, não apenas não muda as suas perspectivas de vida, mas, ao
contrário, apenas intensifica o acúmulo de mortes que o leva a pensar em jogar-se no rio e apres­
sar a própria morte.
Assim, tanto o tempo quanto o espaço intensificam o caráter de denúncia social do texto, o qual,
pela simbologia da vida representada via nascimento de uma criança, e via significado desse nasci­
mento de acordo com as palavras do mestre carpina, conjuga a denúncia de que se reveste com um
lirismo que não chega nem pretende chegar a seu redentor, reconfortante, mas que colore de tons
substantivamente poéticos a possibilidade de esperanças presente em Morte e vida severina.

Linguagem
Conhecido como o "engenheiro da palavra" por sua poesia precisa, substantiva, elíptica, mais
plástica que musical, João Cabral de Melo Neto surpreendeu alguns críticos ao conseguir conju­
gar tais características, que mantem na obra que lemos, com outros recursos que o tornam mais
"legível" e conseqüentemente menos "hermético". Tais recursos estão vivos na linguagem conci­
sa mas fluida e permeada de expressões e musicalidade popular de Morte e vida severina, na sedu­
ção de sua leitura pelos fortes traços orais, pelas rimas e repetições que não enfraquecem, mas, ao
no lirismo que soletra a vida e a
contrário, intensificam a tensão dramática, e principalmente
celebra, ao mesmo tempo em que denuncia de forma implacável os fatores que a impedem
de expandir-se: a seca e os arbítrios, os desmandos, os responsáveis por ela e por suas con­
seqüências.
Vamos terminar este trabalho com a opinião de um estudioso e mais um fragmento do texto,
para lermos, relermos e reconhecermos sua intensidade enquanto texto literário e enquanto peça
teatral.

- Severino, retirante,
A visão plástica (. . .) é tão predominante em João Cabral de Melo Neto
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta que acarreta o quase amortecimento do lado musical (. . . ). Dessa forma,
da pergunta que jazia, sua poesia pode parecer - ante uma tradição que tem timbrado em
se não vale mais saltar requintar ao lado musical (ejou rítmico ejou tônico) - algumas vezes
fora da ponta e da vida; "dura· aos menos avisados ou mesmo aos pseudo-avisados (. . .). E não
nem conheço essa resposta, estranhará que tenha sido a consciência disso que o tenha levado,
se quer mesmo que lhe diga. quando quer obter efeitos rítmicos mais definidos, aos metros tradicionais
É difícil defender, da redondilha e do romance. Mas a sua repulsa aos apoios fonéticos
só com palavras, a vida, não necessários à sua visão poética é tal, que raríssimos são os casos de
ainda mais quando ela é rimas, salvo as toantes, e estas são freqüentes sobretudo como "molde"
esta que vê, severina; ou "fôrma" para a obtenção de uma certa fixidez poemática (, . . ). Chega
mas se responder não pude à situação de um sábio que esgotou toda a teoria neutra de sua ciência,
à pergunta que jazia, viu que por sua pretensa neutralidade era uma ciência a serviço, viu
ela, a vida, a respondeu mais - que a serviço de uma causa que não era a da ciência mesma
com sua presença viva.
e se perguntou qual seria, pois, aquela ciência sincera, que se pudesse
pôr a serviço do homem . . .
(Trecho 18 - A empina fala
com o retirante que esteve de Antônio Houaiss, obra citada
fora sem tomar parte em o

w
nada).
z
o
....J
w

1
As questões de números e 2 referem-se ao seguinte tre­ a) O trecho possui a predominância de versos em redondilha

W
cho de Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto: maior, e de rimas bem marcadas, que embora sem regu- 0
Vejo agora: não é fácil/ seguir essa ladainha;/ entre uma laridade fixam em versos que se alternam uma forte ....J
conta e outra conta,/ entre uma e outra ave-maria,/ há certas semelhança sonora. <(
paragens brancas,/ de planta e bicho vazias,/ vazias até de b) O trecho apresenta uma cadência melódica musical, que a:
donos,/ e onde o pé se descaminha./ Não desejo emaranhar/
o fio de minha linha/ nem que se enrede no pêlo/ hirsuto se por fortes imagens auditivas e visuais.

lembra poemas da tradição medieval, a lém de caracteriza-
U
desta caatinga./ Pensei que seguindo o rio/ eu jamais me c) Nos versos 1 a 1 2 as imagens referem-se ao sertão e pos-
suem elementos religiosos (imagens auditivas), que se t<(
O
perderia./ ele é o caminho mais certo,/ de todos o melhor
guia./ Mas como segui-/o agora/ que interrompeu a descida ? combinam com os elementos cromáticos e espaciais (ima- 0
gens visuais), também utilizados como metáforas da caa- ....,
tinga. -

11 Assinale a alternativa incorreta:


191
d) Nos versos 1 3 a 1 8 a imagem do rio como guia do retiran­ d) Como então dizer quem fala/ ora a Vossas Senhorias?
te intensifica a sensação de estar perdido, pois ele se Vejamos: é o Severino/ da Maria do Zacarias,/ lá da serra
interrompe com a seca. da Costela,/ limites da Paraíba.
e) Embora a riqueza de imagens contribua com a expressivi­ e) E se somos Severinos/ iguais em tudo na vida,/ morremos
dade do trecho, nele predomina uma postura dissertativa de morte igual./ mesma morte severina.
que o torna menos literário.
(PUCCAMP) As questões de números 5 e 6 referem-se ao
Agora, assinale a alternativa que julgar mais correta : seguinte excerto de João Cabral de Melo Neto:
El a) As imagens da linha e do fio que o retirante não deseja
emaranhar referem-se à estrada por onde passa, que pode
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
ser identificada com a linha, e aos lugares nos quais se girando ao redor do sol
perde, paragens brancas e vazias, personificadas pela que as limpa do que não é faca:
expressão " pêlo h i rsuto desta caatinga " .
b) Se dividirmos o trecho em duas partes, podemos afirmar de toda uma crosta viscosa,
que a primeira (correspondente aos versos 1 a 1 2) é mais resto de janta abaionada,
esperançosa que a segunda (correspondente aos versos que fica na lâmina e cega
1 3 a 1 8), jé que nela a sensação de estar perdido do reti­ seu gosto da cicatriz clara.
rante encontra consolo nas ladainhas.
c) Tanto a primeira quanto a segunda parte do trecho são Falo somente do que falo:
pouco esperançosas, uma vez que não hé nenhuma afini­ do seco e de suas paisagens,
dade entre o homem e as paisagens por onde passa. nordestes, debaixo de um sol
d) O rio a que a segunda parte se refere é um rio simbólico ali do mais quente vinagre:
e não real.
e) Neste trecho, Severino-retirante está bem próximo do que reduz tudo ao espinhaço,
mar, e conseqüentemente de sua esperança de sobrevi­ cresta o simplesmente folhagem,
vência, uma vez que jé atravessa o rio. folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.
Em Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto,
ocorre: Este excerto representa a seguinte possibilidade entre os
a) uma sucessão de mortes que denunciam a precariedade caminhos da poesia contemporânea:
das condições de vida dos flagelados pela seca; a)a lírica confessional, em que a medida dos versos atende à
b) uma sucessão de mortes à qual se contrapõe a esperança variedade das emoções e ao ritmo subjetivo do poeta.
de vida, corporificada pelo nascimento de uma criança que b)a experiência concretista, em que se abandona a linearida­
certamente terá um destino melhor que o de seus pais; de do verso e se espacializam os signos na página.
c) um sucessão de mortes que denunciam a precariedade c)a poética construtiva, em que se disciplina um determina­
das condições de vida dos flagelados pela seca, e no des­ do uso da linguagem e se objetiva o l imite da forma.
fecho uma explosão de esperança na vida, metaforizada d)a denúncia política, em que a contundência das imagens
pelo nascimento de uma criança e pela fala de seu pai, o expressa com i ndignação as injustiças da organização social.
mestre carpina; e)a recuperação do ideal modernista, em que se revalorizam
d) uma sucessão de mortes que vão desiludindo o retirante
a linguagem prosaica e as percepções da vida cotidiana.
Severino em relação às suas possibilidades de vida, até
que ele decide jogar-se nas éguas do Capibaribe;
Neste excerto de João Cabral de Melo Neto está expressa a
e) uma sucessão de mortes que chega ao clímax no discur­
seguinte comvicção de sua poética:
so dos coveiros dos bairros do Recife, discurso que mos­
a) as palavras são fugidias e i ndetermináveis, cabendo ao
tra que a diferença entre ricos e pobres continua depois da
poeta persegui-las nesse movimento imprevisível.
morte.
b) a forma poética deve ser rigorosa e precisa, traduzindo
com senso de limite a materialidade do tema a que se apli­
Escolha a alternativa em que aparece com mais clareza o
ca.
anonimato de Severino, o retirante nordestino, que protago­
c) a disciplina poética é alcançada quando se evita a metáfo­
niza Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto.
ra ou a comparação, empregando-se as palavras enquanto
a) O meu nome é Severino! Não tenho outro de pia./ Como
há muitos Severinos,/ que é santo de romaria,/ deram
conceitos abstratos.
d) a palavra é sobretudo encantamento e a função da poesia
então de me chamar/ Severino da Maria.
é revestir a realidade com as fantasias da linguagem figu­
b) como há muitos Severinos/ com mães chamadas Maria.!
rada.
fiquei sendo o da Maria/ do finado Zacarias.
e) a arte popular é a verdadeira fonte dos grandes poetas, e
c) Mas isso ainda diz pouco:/ há muitos na freguesia,/ por
é ao povo simples que estes devem dedicar a comunica­
causa de um coronel/ que se chamou Zacarias/ que foi o
bilidade da poesia.
mais antigo/ senhor desta sesmaria.

11
E. A combinação entre a dissertatividade e a expressividade E. Esta a lternativa revela, com maior abrangência, pela plu­
poética do trecho é um dos grandes fatores de sua qualida­ ralização e adjetivação do nome Severino, a dimensão de
de artística. seu anonimato.

A. Apenas nesta alternativa se encontram os elementos C. Nesta alternativa estão a disciplina e a concisão da nossa
mais significativos para uma compreensão correta dos enre­ poesia contemporânea, cujo centro de influência encontra­
dos do trecho. se em João Cabral.

C. Esta é a alternativa mais completa enquanto síntese do B. Nesta alternativa estão concentradas as características da
enredo de Morte e vida severiana . poesia de João Cabral, que aparecem no trecho do poema
dado.
LITERATURA
• O culto do contraste • Tom altamente poético
• Pessimismo • Çonhecimento intuitivo e não lógico
• Human ização do sobrenatural • Enfase na imagi nação e na fantasia
• Tendência para a descrição • Desprezo à natureza em troca do místico e do sobrenatura l
• Cu lto da sol idão • Pouco interesse pelo enredo e ação na narrativa
• Retorno ao equilíbrio e à simpl icidade dos modelos greco-romanos • Valorização dos estados de alma e das emoções
• Culto da teoria aristotélica da arte como imitação da natu reza • Interpretação da natureza
• Imposição de uma disciplina literária naciona l • Quanto à linguagem, o impressionismo se caracteriza por:

• O poeta é pi ntor de situações e não de emoções 1 . abandono da estrutura regular da frase, da ordem lógica;
• Condenação da rima 2. uso acentuado da metáfora e do símile;
• Simplicidade, mas nobreza de li nguagem 3 . liberdade de expressão, riqueza de i magens.
• Busca de motivos bucólicos Movimento literário espan hol e hispano-americano do fim do século
• Defesa de uma fu nção social da l iteratura
XIX. No Brasil, o Modernismo teve como marco inicial a Semana de
• Caráter didático e doutrinário
Arte Moderna ( 1 922), em São Paulo.
• Sub j etivismo • Fé • Liberdade criadora Principais objetivos: romper com as tradições acadêmicas; atualizar a
• Senso do mistério • i lo g ismo • Sen ti me nta lis mo literatura brasileira em relação aos movimentos de vanguarda
• Con sci ê n cia da • Culto da natureza • Ânsia de glória europeus e encontrar uma linguagem autenticamente nacional.
solidão • Retorno ao passado • Gosto pelas ruínas o Modernismo no Brasil
• •

Reformismo Gosto pelo pitoresco Gosto pelo noturno cn 3a fase (de 1 945 até os dias de hoje)

-
• Sonho • Exa g ero • Idealização da mu lher z 1 a fase ( 1 922· 1 930) Romance e Conto:
a=
..... Manuel Bandeira ( 1 886- 1 968) João Guimarães Rosa ( 1 908- 1 967)
Q Mário de Andrade ( 1 893- 1 945) Clarice Lispector ( 1 925- 1 977)
• Preocupação com observação e anál ise da realidade o Oswald de Andrade ( 1 890- 1 954)
• O escritor real ista encara a vida com objetividade � Poesia Contemporânea
• A forma de expressão se caracteriza por: 2a fase ( 1 930· 1 945) João Cabral de Melo Neto ( 1 920- 1 999)
Graciliano Ramos ( 1 892-1 953) Ferreira Gullar ( 1 930)
1 . clareza, equilíbrio e harmonia na composição; Carlos Drummond
2. correção gramatical; preocupação com a perfeição formal; de Andrade ( 1 902- 1 987)
Teatro Contemporâneo
3. retrato fiel dos personagens, por meio de uma linguagem simples; Nelson Rodri g ues ( 1 91 2- 1 980)
José Lins do Rego ( 1 901 - 1 975)
Gianfrancesco Guarnieri ( 1 934)
4. li nguagem próxima da realidade, sem rebuscamentos, natural; Rubem Brag a ( 1 91 3- 1 990)
Chico Buarque ( 1 944)
ESTI LOS DE E POCA NA LITE RATURA

11
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CLASSICISMO IDADE MÉDIA E
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MODERNISMO
(Séc. XX)
Cubismo - Dadaísmo
Surrealismo
Futurismo
Purismo

Bu sca de
integração
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