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lndice
PORTUGAL NO RENASCIMENTO:
ESPLENDOR E MISERIA
,
Camões viveu no século XVI, em pleno Renascimento, uma das épocas mais fér
teis e de maiores transformações na história da civilização ocidental. A múltipla e
fecunda atividade dos humanistas, traduzindo e divulgando as idéias e as obras da
Antigüidade clássica, desenvolveu os debates e a criação cultural.
Novas idéias. Novas linguagens. A redescoberta do humanismo pagão, depois de
séculos de cristianismo medieval. O antropocentrismo. A euforia vital do homem, reco
locado no centro do universo, e tomado novamente como a medida de todas as coisas.
A liberdade de pensamento.
O culto da beleza, do prazer, dos sentimentos. A redescoberta da arte clássica -
grega e latina - como modelo ideal de criação. Equilíbrio, clareza, harmonia. Ra
cionalidade, universalidade. O Classicismo torna-se a expressão artística do
Renascimento.
O mapa do mundo europeu se transforma: grandes navegações, grandes descober
tas marítimas. Revolução científica e tecnológica. A nova concepção do universo -
Copémico, Giordano Bruno, Galileu Galilei. O método científico. A pólvora. A bússo
la. O astrolábio. As novas embarcações e novas técnicas de navegação. Os tipos móveis
de Gutenberg.
O desenvolvimento do capitalismo comercial. Mercantilismo. Crescimento do
comércio e das cidades. Grandes transformações políticas, econômicas e sociais mar
cam este tempo.
Portugal torna-se, com os descobrimentos marítimos, um país de importância pla
netária. A corte portuguesa é uma das mais ricas da Europa. A nobreza palaciana enri
quece com o comércio ultramarino, mas essa riqueza é dissipada: não houve acumula
ção do capital nem investimentos na produção. O período de opulência não estava
estruturado sobre sólidas bases e a crise já era evidente em meados do século. Em 1568,
Portugal é governado por D. Sebastião: obcecado pela convicção de que deveria salvar
a cristandade, segue dez anos mais tarde para a África para combater os mouros. É a
derrota de Alcácer-Quibir na qual o rei e mais da metade de seu exército morrem.
Consuma-se a crise, em 1 580 Portugal perde a independência. É a dominação espanho -
la, que durará até a restauração portuguesa, em 1640.
1
, -
ANTOLOGIA COMENTADA
Quando de minhas mágoas a comprida Brado: - "Não me fujais, sombra benina!"
Maginação os olhos me adorntece, Ela, os olhos em mim cum brando pejo,
Em sonhos aquela alma me aparece Como quem diz que já não pode ser,
Que para mim foi sonho nesta vida. Toma a fugir-me. E eu gritando - 'Vina ... "
Lá numa soidade, onde estendida Antes que diga- "mene!", - acordo, e vejo
A vista pelo campo desfalece, Que nem um breve engano posso ter.
Corro para ela; e ela então parece
Que mais de mim se alonga, compelida.
Endecha é canto fúnebre. Neste poema, o eu lírico, apaixonado, se sente cativo (escravo) de
uma escrava: Bárbara. Os olhos como símbolo do amor, a comparação da beleza da amada com a
rosa, as flores e as estrelas sendo invocadas para expressar a dimensão do sentimento amoroso
lembram as cantigas de amor medievais.
No entanto, não se trata da imagem de uma mulher-fatal, o que mata no poema é a transfor
mação da escrava em senhora e do sujeito enamorado em cativo, em escravo de uma presença
serena que a tormenta amansa, mas que constitui o elemento central de sua poesia - seu sofri
mento/ seu fazer poético. Observe como Camões subverte o modelo convencional de beleza femi
nina (loira, face cor da neve, olhos azuis etc), o jogo com o sentido do nome da amada - Bárbara
- e o duplo sentido da palavra pena: pode ser sofrimento ou a pena de escrever, a caneta.
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O poema é composto de estrofes de oito versos em "medida velha" - redondilha menor - ver
sos de cinco sílabas métricas.
Mote alheio
Voltas
O poema é composto em medida velha. Duas estrofes de sete versos em redondilhas maiores
- sete sílabas métricas. Observe como a ave toma-se símbolo do poeta: este poema pode ser lido
como um auto-retrato do próprio Camões, representado metaforicamente pelo perdigão: ave que
sobe às alturas pelo pensamento, mas que perde "as asas" lá no alto, isto é, vê substituída a pena
do vôo pela pena do tormento, da fragilidade humana que a dor de viver vai denunciando.
Amor é fogo que arde sem se ver; É querer estar preso por vontade;
Éferida que dói e não se sente; É servir a quem vence, o vencedor;
É um contentamento descontente; É ter com quem nos mata lealdade.
É' dor que desatina sem doer; Mas como causar pode seu favor
F um não querer mais que bem querer; Nos corações humanos amizade,
F solitário andar por entre a gente; Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
É' nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
Este soneto filosófico é composto em medida nova (de dez sílabas métricas). Observe a enu
meração de definições do amor (dois quartetos e o primeiro terceto) e que todas as definições são
antitéticas, num jogo de contradições. Essas definições parecem acentuar a dualidade entre o
amor-corpo, o amor-carne - Fogo que arde, ferida que dói - e amor-espírito, o amor-idéia
Sem se ver, não se sente. Além disso, o poema termina com uma pergunta que sintetiza as contra
dições apresentadas: sendo o amor tão contrário a si, tão complicado, como pode ao mesmo tempo
ser tão imprescindível aos corações humanos?
Busque Amor novas artes, novo engenho, Mas, conquanto não pode haver desgosto
Para matar-me, e novas esquivanças; Onde esperança falta, lá me esconde
Que não pode tirar-me as e�peranças, Amor um mal, que mata e não se vê;
Que mal me tirará o que eu não tenho. Que dias há que na alma me tem posto
Olhai de que esperanças me mantenho! Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vede que perigosas seguranças! Vem não sei como, e dói não sei por quê.
Que não temo contrastes nem mudanças,
<(
o Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Erros meus, má fortuna, amor ardente Errei todo o discurso de meus anm�·
Em minha perdição se conjuraram; Dei causa [a} que a Fortuna castigasse
Os erros e a fortuna sobejaram, As minhas mal fundadas esperanças.
Que para mim bastava amor somente.
De amor não vi senão breves enganos.
Tudo passei; mas tenho tão presente Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
A grande dor das causas que passaram, Este meu duro Gênio de vinganças!
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.
Ah! Senhora! Senhora! E que tão rica Que .fazíeis, que estáveis praticando,
Estais, que, cá tão longe, de alegria Onde, como, com quem, que dia e que hora?
Me sustentais com doce fingimento! Ali a vida cansada se melhora,
Em vos afigurando o pensamento, Toma espíritos novos, com que vença
Foge todo o trabalho e toda a pena. A Fortuna e Trabalho,
Só com vossas lembranças, Só por tomar a ver-vos,
Me acho seguro e .forte Só por ir a servir-vos e querer-vos.
Contra o rosto feroz da fera Morte, Diz-me o Tempo que a tudo dará talho;
E logo se me ajuntam as esperanças Mas o Desejo ardente, que detença
Com que a fronte, tomada mais serena, Nunca sqfreu, sem tento
Toma os tormentos graves Me abre as chagas de novo ao sofrimento.
Em saudades brandas e suaves.
Aqui com elas fico perguntando
Assim, vivo: e se alguém te perguntasse, (j)
Canção, como não mouro, LU
Aos ventos amorosos, que respiram
Podes-lhe responder que porque mouro. •O
Da parte donde estais, por vós, Senhora; �
Às aves que ali voam, se vos viram, <(
u
Observe, neste fragmento de uma canção, a exaltação platônica da amada e a serenidade do -
amante - apesar de todo o sofrimento.
5
Observe também a contradição: o desejo irrompe e reinicia-se o tormento e a antítese do final,
explicitando o caráter paradoxal- de morte e(m) vida- do sentimento amoroso.
Foge-me, pouco a pouco, a curta vida, Mas bem sei que primeiro o extremo passo
Se por acaso é verdade que inda vivo; Me há de vir a cerrar os tristes olhos,
Vai-se-me o breve tempo de ante os olhos; Que Amor me mostre aqueles por que vivo.
Testemunhas serão a tinta e pena,
Choro pelo passado; e, enquanto falo,
Que escreverão de tão molesta vida
Se me passam os dias passo a passo.
O menos que passei, e o mais que falo.
Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena.
Oh! que não sei que escrevo, nem que falo!
Que, se de um pensamento noutro passo,
Que maneira tão áspera de pena!
Vejo tão triste gênero de vida
Pois nunca uma hora viu tão longa vida
Que, se lhe não valerem tanto os olhos,
Em que possa do mal mover-se um passo. Não posso imaginar qual seja a pena
Que mais me monta ser morto que vivo? Que traslade esta pena com que vivo.
Para que choro? Enfim, para que falo,
Na alma tenho contínuo um fogo vivo,
Se lograr-me não pude de meus olhos?
Que, se não respirasse no que falo,
Estaria já feita cinza a pena;
Ó fermosos, gentis e claros olhos, Mas, sobre a maior dor que sofro e passo
Cuja ausência me move a tanta pena Me temperam as lágrimas dos olhos;
Quanta se não compreende enquanto falo! Com que, fugindo, não se acaba a vida.
Se, no fim de tão longa e curta vida,
Morrendo estou na vida, e em morte vivo;
De vós me inda inflamasse o raio vivo, Vejo sem olhos, e sem língua falo;
Por bem teria tudo quanto passo. e juntamente passo glória e pena .
El
Este fragmento de Camões pertence à fase medieval
de sua lírica, o que se percebe pelos versos redondi A oposição existente no interior da estrofe ocorre
lhos (redondilha maior: versos de sete sílabas métri devido à morte da amada, cuja "alma gentil repousa
cas) e pela presença de um mote sobre o qual o lá no céu eternamente " , enquanto ao eu-lírico, ao
poeta escreve através de voltas, isto é, de retornos amante, resta viver "cá na terra, sempre triste".
ao mote. Ambas as características medievais do frag
mento, no entanto, são acrescentadas de uma refle
xão generalizadora sobre o Amor, o que é típico de
riJ c
<( razão que dos sentidos, o autor conceptista cria raciocínios engenhosos, num refinado jogo inte
o lectual de paradoxos e sutilezas lógicas.
�
z
w A BAHIA DE GREGÓRIO DE MATOS
�
o Desde os meados do século XVI o Recôncavo baiano era um dos pólos produtores de cana e
u se tomara o principal centro da ação colonizadora portuguesa. O porto de Salvador movimenta
<( va toda a exportação do açúcar, rivalizando com Recife, que se desenvolvera sob o domínio
c:
::J holandês.
�c: Fundada em 1 549 para sediar o Governo Geral, Salvador já tinha quase vinte mil habitantes
na época de Gregório de Matos. A cidade fervilhava, sobretudo a partir de 166 1 , quando, por um
w tratado com a Inglaterra, os navios estrangeiros tiveram permissão de entrada nos portos brasilei
1-
:::i ros. Cenário de uma pequena Babel - ariqueza dos senhores de engenho, a diversidade de raças,
- o movimento do porto, parada importante da "carreira das Índias" -, Salvador tomou-se o prin
cipal personagem da sátira gregoriana.
8
O "BOCA DO INFERNO"
"!. . .] violento na sátira, quase piedoso na poesia sacra, num dualismo que é o moti
vo central do barroquismo, é Gregório, sempre, um rebelado, um renovador, um
agitado, brilhante e profu ndo. Na própria improvisação está a relação do seu
gênio " (Antônio Loureiro de Souza).
1. Diversidade de estilos:
• o estilo alto elabora os mais engenhosos jogos de pensamento (conceptismo, sob a influên
cia de Camões e do espanhol Francisco de Quevedo) e os mais requintados jogos de lingua
gem, manipulando a sonoridade e as imagens em verdadeira pirotecnia verbal (cultismo,
influenciado sobretudo por Góngora);
• o estilo baixo parodia a linguagem barroca do estilo alto, tirando efeitos saborosos do falar
brasileiro/baiano da época, incorporando o vocabulário indígena e africano e descendo à lin
guagem do mais baixo calão.
2. A diversidade temática da poesia gregoriana descreve um arco que vai da poesia sacra à poe
sia fescenina (pornográfica), passando pela lírica amorosa, pela poesia encomiástica, pela sáti
ra moralizante, pela sátira difamatória e pela poesia circunstancial-burlesca. Na simples
nomeação desses veios temáticos já se revela o contraditório espírito barroco contra-reformista:
o contraste, a fusão dos opostos, o céu e a terra, o espiritual e o carnal, o sublime e o grotesco.
ANTOLOGIA COMENTADA
Estas duas décimas são um bom exemplo da sátira desabusada do Boca do Inferno. A primei
ra satiriza o clero da Sé da Bahia, dando os nomes dos padres que formavam o "presépio de bes
tas". Na segunda, o poeta, destemidamente, denuncia a incompetência do governador Antônio
Luís da Câmara Coutinho, apelidado Tucano por causa do grande nariz (Nariz de embono I com
tal sacada, I que entra na escada I duas horas primeiro I que seu dono, diz outro poema sobre o
governador). As sátiras a Câmara Coutinho podem ser comparadas às cantigas de maldizer medie
vais, pelas maldosas acusações de sodomia (homossexualismo) que Gregório faz ao governador e
a Luís Ferreira de Noronha, capitão da guarda. Supõe-se que essas injúrias foram a causa do exí
lio do poeta em Angola.
Este soneto obtém o efeito d e humor pelo contraste entre as Rubi, concha de pertas peregrina,
Animado cristal, viva escarlata,
três primeiras e a última estrofe. No primeiro quarteto, a beleza de
Duas safiras sobre lisa prata,
Caterina é idealizada através do metaforismo mineral, preciosismo
Ouro encrespado sobre prata fina.
comum da poesia cultista: os lábios e dentes (rubi, escarlata, con
cha de per/as), (animado cristal, duas safiras), o
os olhos azuis Este o rostinho é de Caterina;
contraste entre o cabelo loiro e a brancura da pele (ouro encrespa E porque docemente obriga, e mata,
do sobre prata fina). No segundo quarteto, contrastes típicos da Não livra o ser divina em ser ingrata,
poesia barroca: docemente obriga I mata, fulmina; divina I ingra E raio a raio os coraçõesfulmína .
ta. No primeiro terceto, o transporte amoroso de um admirador,
Viu Fábio uma tarde transportado
Fábio, e o endeusamento de Caterina (a quem já tanto amor levan
Bebendo admirações, e galhardias,
tou aras - aras altares). O leitor é surpreendido pela inversão
=
A quem já tanto amor levantou aras:
violenta, ocorrida apenas no último verso. A descrição sublime da
mulher amada cede lugar ao realismo grotesco e o soneto se fecha Disse igualmente amante, e magoado:
com uma vulgaridade escatológica. Ah muchacha gentil, que tal serias,
Se sendo tão formosa não cagaras!
Neste soneto, Gregório satiriza os caramurus (os brancos Há causa como ver um Paiaiá
importantes), invertendo a genealogia e indicando a mestiçagem Mui prezado de ser Caramuru,
dos pretensos nobres da Bahia. Sabemos que uma das práticas da Descendente de sangue de Tatu,
colonização portuguesa foi a de firmar alianças com os índios atra Cujo torpe idioma é cobé pá.
vés do casamento com as mulheres das tribos. Observe a interes
A linha feminina é carimá
sante sonoridade do poema, conseguida através da utilização de
Moqueca, pitinga, caruru,
palavras indígenas e das aliterações, em imitação satírica do idio
Mingau de puba, e vinho de caju
ma tupi (que ele chama de cobé pá). Pisado num pilão de Piraguá.
A N. SENHOR JESUS CRISTO COM ATOS CELEBRA A GRANDE ALGAZARRA QUE FIZERAM
DE ARREPENDIDO E SUSPIROS DE AMOR NA FESTA OS ESTRANGEIROS
BRINDANDO A QUITOTA, MENINA BATIZADA,
Ofendi-vos, meu Deus, é bem verdade, SENDO NO TEMPO DA PESTE.
É verdade, Senhor, que hei delinqüido,
Se a morte anda de ronda, a vida trota,
Delinqüido vos tenho, e ofendido,
Aproveite-se o tempo, eferva o Baco,
Ofendido vos tem minha maldade.
Haja galhofa, e tome-se tabaco,
Maldade, que encaminha a vaidade, Venha rodando a pipa, e ande a bota.
Vaidade, que todo me há vencido, Brinde-se a cada triques à Quitota,
Vencido quero ver-me e arrependido, Té que a puro brindar se ateste o saco,
Arrependido a tanta enormidade. Cf)
E faça-lhe a razão pelo seu caco
o
�
Arrependido estou de coração, Dom Fragaton do Rhin compatriota.
De coração vos busco, dai-me os braços,
Abraços, que me rendem vossa luz.
Ande o licor por mão, funda-se a serra, �
Esgote-se o tonel, molhem-se os rengos. w
Luz, que claro me mostra a salvação, Toca tará-tará, que o vento berra. Cl
A salvação pretendo em tais abraços, Isto diz, que passou entre Flamengos, o
Misericórdia, amor, Jesus, Jesus! Quando veio tanta água sobre a teria, a:
Como vinho inundou sobre os podengos.
·O
(,!)
w
a:
(,!)
NOTAS: Baco: deus do vinho; a cada triques: a cada momento; ateste: encha; caco: cabeça; Fragaton do Rhin: -
Fragatão do Reno: flamengo, holandês; rengo: pano para bordar, toalha; podengo: cão de caça.
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O primeiro soneto, pertencente à poesia sacra, é um ato de contrição pelos pecados. Dentro do
espírito da Contra-Reforma, exprime uma piedade e um arrependimento pungentes. A dramatici
dade do poema é intensificada pelas reiterações e pelo uso constante da anadiplose (figura de lin
guagem que consiste na repetição da última palavra de um verso no início do verso seguinte). Com
esse recurso, ganham relevo, na primeira metade do poema, as palavras que se referem ao pecado
(é verdade, delinqüido, ofendido, maldade, vaidade) e, na segunda metade, as que se referem ao
arrependimento (vencido, arrependido, coração) e à salvação (braços/abraços, luz, salvação).
Observe que as anadiploses contínuas dão ao texto um movimento espiralado, retorcido, seme
lhante ao das colunas barrocas. A emoção se intensifica ao longo do soneto, que se fecha com uma
exclamação patética: Misericórdia, amor, Jesus, Jesus!.
O segundo soneto pertence à poesia circunstancial-burlesca. Se o primeiro exprimia o arrepen
dimento e o anseio pelo perdão e pela salvação, o segundo, no extremo oposto, é uma celebração
do prazer. A bebida e a farra, como formas de escapismo, são justificadas filosoficamente através
do motivo do carpe diem (Aproveite-se o tempo). O estilo baixo manifesta-se no uso de gírias e
expressões da linguagem popular (saco, caco, tará-tará, berra). Observe os efeitos de humor das
aliterações (jogo sonoro pela repetição de consoantes) e das rimas com consoantes oclusivas (trota
I Baco I tabaco I bota), típicas da poesia satírica de Gregório de Matos.
Nos manuscritos, vários poemas de Gregório de Matos são interpretados como referências à paixão do
autor por D. Ângela, filha do senhor de engenho Vasco de Sousa Paredes. A edição de James Amado (1968),
seguindo um dos apógrafos, organiza esses poemas num ciclo que tem a estrutura de urna novela, com todos
os lances da psicologia amorosa (encontro, paixão, tentativa ?e conquista, decepção). Este é o quarto poema
do ciclo e exprimiria os sentimentos do autor ao conhecer D. Angela. Observe a idealização da beleza: Angela
não é formosa, é a própria formosura, é anjo (Ângela) e Sol, que abrasa, cega e mata. Na última estrofe, o
sujeito lírico dirige-se aos próprios olhos, dizendo preferir a cegueira à perdição e à morte.
�
0:
w A idealização da mulher e do amor cede lugar ao amor carnal e venal da sátira fescenina. As mulheres
1- são agora as prostitutas e as freiras que, feias ou limpas (lindas), dissipam todos bens do amante. Restam a
::::::i
quem tem posses (quem se limpa da carepa) duas alternativas: ver seus bens dissipados ou contentar-se com
-
o sexo solitário. Observe as imagens com que o autor se refere ao ato sexual (desentupa a via que o desuso
12
às vezes tapa) e à masturbação (jaz da sua mão sua cachopa). Reconhecem-se no poema a mesma sonori
dade de efeito humorístico que vimos em soneto anterior: as aliterações (ex.:
topa, e topando, todo o bolo
rapa) e as rimas com consoantes oclusivas (em upa, apa, epa, ipa e opa).
VouEST6Es
11
(FUVEST) A poesia lírica de Gregório subdivide Numa cidade onde falta
se em amorosa e religiosa. Verdade, honra, vergonha.
a) Quais são os dois modos contrastantes de Pode-se reconhecer nestes versos de Gregório
se ver a mulher, em sua lírica amorosa? de Matos,
b) Como aparece em sua lírica religiosa a idéia a) o caráter de jogo verbal próprio do estilo bar
de Deus e do pecado? roco, a serviço de uma crítica, em tom de
sátira, do perfil moral da cidade da Bahia.
(VU NESP) b) o caráter de jogo verbal próprio da poesia
Ardor em firme coração nascido; religiosa do século XVI, sustentando piedosa
Pranto por belos olhos derramado; lamentação pela falta de fé do gentio.
Incêndio em mares de água disfarçado; c) o estilo pedagógico da poesia neoclássica,
Rio de neve em fogo convertido: por meio da qual o poeta se investe das fun
ções de um autêntico moralizador.
Tu, que em um peito abrasas escondido;
d) o caráter de jogo verbal próprio do estilo bar
Tu, que em um rosto corres desatado;
roco, a serviço da expressão l írica do arre
Quando fogo, em cristais aprisionado;
pendimento do poeta pecador.
Quando cristal, em chamas derretido.
e) o estilo pedagógico da poesia neoclássica,
O texto pertence a Gregório de Matos e apre sustentando em tom lírico as reflexões do
senta todas as características seguintes: poeta sobre o perfil moral da cidade da
a) trocadilhos, predomínio de metonímias e de Bahia.
símiles, a dualidade temática da sensualida
de e do refreamento, antíteses claras dispos (U FV) - Leia o texto:
tas em ordem indireta. Goza, goza da flor da mocidade,
b) sintaxe segundo a ordem lógica do que o tempo trota a toda ligeireza,
Classicismo que o autor procurava imitar,
e imprime em toda flor sua pisada.
predomínio das metáforas e das antíteses,
temática da fugacidade do tempo e da vida. Ó não aguardes que a madura idade
c) dualidade temática da sensualidade e do te converta essa flor, essa beleza,
refreamento, construção sintática por sime em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.
trias sucessivas, predomínio figurativo das (Gregório de Matos)
metáforas e pares antitéticos que tendem Os tercetos acima ilustram:
para o paradoxo. a) o caráter de jogo verbal próprio da poesia líri
d) temática naturalista, assi metria total de ca do séc. XVI, sustentando uma crítica à
construção, ordem direta predominando preocupação feminina com a beleza.
sobre a ordem inversa, imagens que prenun b) o jogo metafórico próprio do Barroco, a res
ciam o Romantismo. peito da fugacidade da vida, exaltando o
e) versificação clássica, temática neoclássica, gozo do momento.
sintaxe preciosista evidente no uso das sín c) o estilo pedagógico da poesia neoclássica,
quises, dos anacolutos e das alegorias, cons ratificando as reflexões do poeta sobre as
trução assimétrica. mulheres maduras.
d) as características de um romântico, porque
(PUCCAMP) fala de flores, terra, sombras.
Que falta nesta cidade ? - Verdade. e) uma poesia que fala de uma existência mais
Que mais por sua desonra ? - Honra. materialista do que espiritual, própria da
Falta mais que se lhe ponha? - Vergonha. visão de mundo nostálgico-cultista.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
CJ)
o
11
a) A lírica amorosa gregoriana reflete a dualida se de poemas de contrição, às vezes humil
�
de do Barroco contra-reformista: céu/terra; de, às vezes quase arrogante na formulação
�
espiritualidade/sensualidade. Por um lado, a de um raciocínio que justifica o pecado e vê
w
idealização da beleza e a espiritualização o perdão como uma necessidade do plano o
mulher, vista como um anjo; por outro, a divino.
o
visão sensual, o erotismo, o apelo sexual.
0:::
b) As idéias de Deus e do pecado são opostas, ·o
mas complementares. O pecado faz parte (.!)
da própria natureza humana decaída. Mas se w
0:::
o homem não pode fugir a ele, encontra em
(.!)
-
Deus a misericórdia e o perdão. Por isso,
parte da lírica religiosa de G regório compõe-
13
I NEOCLASSICISMO EM PORTUGAL
UM SÉCULO DE LUZES E DE REVOLUÇÕES;
UM PASTORALISMO ARTIFICIAL E ESTEREOTIPADO
Conhecido como "século das luzes", como era das revoluções, o século XVIII, como o século
XVI, é um dos momentos de maiores transformações na história do mundo ocidental. A burgue
sia se enriquece muito com a Revolução Industrial, que provoca grandes transformações nas estru
turas econômicas. A Revolução Francesa, o primeiro grande trunfo político da classe burguesa,
provoca também grandes transformações sociais e se espalha pelo mundo, deflagrando outros pro
cessos revolucionários.
A expressão "século das luzes" se refere ao Iluminismo, movimento filosófico revolucionário
que combatia a cultura e a ideologia do Antigo Regime e seus pilares, a aristocracia e a Igreja. São
as "luzes" do saber, as "luzes" da razão, contra as "trevas" da ignorância e dos dogmas do pensa
mento clerical e aristocrático; as "luzes" da ciência, do raciocínio, da experimentação, contra o
obscurantismo da Inquisição e da mentalidade contra-reformista. Esta mentalidade foi sintetizada
pelo Concílio de Trento, que havia dominado o século XVII, apoiando-se, inclusive, no movimen
to Barroco como propaganda de suas idéias.
Os iluministas acreditavam na "conscientização" do povo, através da divulgação das novas
idéias filosóficas e das novas descobertas científicas. Liberto da fé e da submissão aos religiosos
e aristocratas, o povo apoiaria a Revolução, lutando pelas transformações sociais, políticas e eco
nômicas que o pensamento burguês revolucionário preconizava - uma sociedade sem nobres e
sem plebeus, na qual cidadãos livres escolheriam seus governantes.
Com esse projeto de "esclarecer" o povo, através da divulgação da cultura, um grupo de ilumi
nistas, coordenado por Diderot e D 'Alambert, escreveu a Enciclopédia.
O Iluminismo-Enciclopedismo e o Neoclassicismo-Arcadismo correspondem às primeiras
expressões da cultura burguesa.
Em 1 765, ano do nascimento de Bocage, Portugal está sob o domínio do despotismo esclareci
do do Marquês de Pombal, ministro todo-poderoso do rei D. José I - que pretendia modernizar o
país.
Com a morte de D. José, Pombal é afastado do poder. A nova rainha, D. Maria I, a Louca,
embora não concordasse com as posições iluministas, é obrigada a prosseguir a modernização,
inclusive a reforma da universidade.
BOCAGE
Se entre versos mil de esquecimento Crede, ó mortais, que foram com violência
Encontrardes algum cuja aparência Escritos pela mão do Fingimento.
Indique festival contentamento, Cantados pela voz da Dependência.
ANTOLOGIA COMENTADA
Camões, grande Camões, quão semelhante Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Acho teu fado ao meu, quanto os cotejo! Meu fim demando ao Céu, pela certeza
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo, De que só terei paz na sepultura.
Arrostar co 'o sacrilégio gigante;
Modelo meu tu és, mas. . . oh, tristeza!. . .
Como tu, junto ao Ganges sussurrante, Se te imito nos transes da Ventura,
Da penúria cruel no horror me vejo; Não te imito nos dons da Natureza.
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.
Este soneto é bastante representativo de muitas obsessões da vida e da poesia de Bocage: a iden
tificação de destino com Camões, a dor do exílio, a adversidade da sorte, o desejo de paz através
da morte e também a dramática consciência dos limites da semelhança no último terceto. Observe
também um traço típico da poesia de Bocage: o uso reiterado e intenso de maiúsculas no interior
do verso (Sorte, Céu, Ventura, Natureza), transformando as palavras em alegorias, universali
zando-as enquanto símbolos alegóricos.
Exemplo típico do bucolismo convencional bem realizado. Neste soneto encontramos praticamen
te todos os elementos estereotipados do Arcadismo: flautas,
pastores, zéfiros, flores, ósculos, vagas
borboletas, rouxinol, abelhinha, alegre campo. O poema tem frescor de imagem e ritmos. Cadência
leve e sugestiva. E, no último terceto, a bem urdida confissão de amor, a exaltação da amada.
Já neste soneto, podemos perceber a mistura - bem realizada - de elementos árcades, bucó
licos (doce, ameno Estio, etéreas flores etc), que dominam as três primeira estrofes, e elementos
românticos, que estão intensamente concentrados na última estrofe, num clima de enlanguesci
mento, de torpor apaixonado, da sensual entrega amorosa, admiravelmente sintetizados no último
verso, considerado um dos mais harmoniosos da língua.
Célebre soneto de atmosfera noturna: invocação da noite, feita amiga, confidente, testemunha,
desejada amante. É importante observar a recusa da claridade, do diurno, a opção pelo sombrio,
pelo soturno. Observe, também, que o horror, a condição de horror é o grande extremo oposto da
suavidade bucólica, dos lugares amenos, da natureza aprazível. .. Este soneto é um dos intensos
exemplos de identificação noturna de Bocage e de negação radical do modelo árcade.
Notas: Dido - rainha de Cartago; Cleópatra - rainha do Egito; Lucrécia - romana que se suicidou por
ter sido violentada; Essa da Rússia - Catarina II, "a grande".
Igualmente célebre, este soneto é revelador do talento satírico de Bocage, que é brilhante w
(!)
mesmo quando fescenino. Observe o raciocínio desenvolvido rigorosamente, a partir da afirmação <(
geral no 1 o quarteto. Observe o raciocínio por analogia, que vai comparando Nise - a moça que u
o
co
o poeta consola cuj o nome é de inspiração árcade - a uma série de exemplos históricos (Dido,
-
Cleópatra, Lucrécia, Catarina da Rússia), no 2° quarteto e no 1 o terceto. Observe, também, a sínte
se generalizadora no final, no último terceto, e a força ratificadora do último verso, frase-síntese
' 11
no processo de persuasão de Nise, e que tem, inclusive, um sabor de provérbio, de síntese crista
lizada.
"Outro A retino fui . . . A santidade Deus, ó Deus!. . . Quando a morte à luz me roube,
Manchei. . . Oh! se me creste, gente ímpia, Ganhe um momento o que perderam anos,
Rasga meus versos, crê na Eternidade!" Saiba morrer o que viver não soube.
Os dois mais célebres sonetos de contrição, de arrependimento, escritos no fim da vida. Poemas
de confissão, diante da morte próxima, por um lago negam - na dimensão das idéias, dos signi
ficados - a traj etória poética e existencial de Bocage (recusam as paixões, os desejos, os praze
res, as rebeldias) e fazem, inclusive, dois dramáticos chamados, duas patéticas interlocuções - a
Deus, no primeiro, e aos leitores, no segundo - para que seja esquecido o poeta maldito e sua
poesia. Por outro lado, estes sonetos representam inteira e significamente a poesia e a existência
·
de Bocage. Por suas metáforas lancinantes, por seu ritmo fluente e apaixonado, pelas inteijeições,
pela entonação subjetiva e emocional, pela síntese conceitual, estes sonetos representam muito do
melhor da lírica de Bocage e o quanto esta poesia se afastou dos modelos neutralizantes, das este
reotipadas convenções neoclássicas, bucólicas, árcades e pastoris do tempo do poeta, razão enfim
da sua grandeza.
�
Além de elementos pré-românticos. o soneto da
O prado ameno de bobinas veste.
questão anterior revela uma posição explicitamente
z contrária aos preceitos do Neoclassicismo, do Varrendo os ares. o subtil Nordeste
UJ Arcadismo. Identifique-a e explique a oposição . Os torna azuis; as aves de mil cores
�
u
O soneto seguinte apresenta características predo
minantemente pré-românticas e também algumas
Adejam entre Zéfiros e Amores.
E toma o fresco Tejo a cor celeste.
�
a:
lnsónia Deixa louvar da corte a vã grandeza:
w Já sobre o coche de ébano estrelado Quanto me agrada mais estar comigo,
1- Deu meio giro a noite escura e feia; Notando as perfeições da Natureza !
:J Que profundo silêncio me rodeia
� Neste deserto bosque, à luz vedado!
18
(FUVEST)
Os sonetos de Bocage que transpõem poetica A postura racional, a linguagem utilizada e as
mente a experiência do autor na região colonial refe r ências à mitologia e ao nome de Elmano
de Goa apresentam alguns traços semelhantes indicam que as estrofes acima pertencem a um
aos dos poemas em que, anteriormente, poema:
Gregório de Matos enfocara a sociedade colonial
da Bahia. Sob esse aspecto, são traços comuns a) clássico de Camões
a ambos os poetas: b) neoclássico de Bocage
a) presunção de superioridade, crítica da vaida c) romântico de Garrett
de, preconceito de cor. d) realista de Guerra Junqueiro
b) sensualismo, crítica da presunÇão, elogio da e) simbolista de Eugênio de Castro
mestiçagem.
c) presunção de superioridade, elogio da no (U F-PA)
Leia os textos com atenção:
1
breza local, sátira da mestiçagem.
d) sensualismo, crítica da nobreza antiga, pre Texto
conceito de cor. Queres que fuja de Marília Bela,
e) estilo tropical, crítica da vaidade, elogio da Que a maldiga; a desdenhe; e o meu desejo
mestiçagem É carpir, delirar, morrer por ela.
Texto 2
( UF- PA) Musa, não cantes bárbara proeza
Leia o texto com atenção: De um braço audaz, de um coração tirano:
Outro Are tino fui. . . A santidade Não celebres o undívago troiano,
Manchei. . . Oh, se me creste, gente ímpia, Pérfido a Tíria, mísera princesa. •
Rasga meus versos, crê na eternidade. O lirismo dos dois trechos acima se orienta pelo
academicismo do século XVI I I . Seu autor é:
O autor dos sonetos acima é um dos maiores
a) Antônio Nobre
sonetistas da língua portuguesa, criador de tex
b) Almeida Garrett
tos marcados por subjetividade, confessionalis
c) Barbosa du Bocage
mo, autolamentação, pastoralismo e ardente d) Luís de Camões
admiração a Luís de Camões. Pode-se com e) Gregório de Matos Guerra
preender esse escritor integrado aos períodos:
a) barroco e árcade
b) árcade e pré-romântico (F. Objetivo S P)
c) pré-romântico e romântico Ele é considerado um dos três maiores sonetis
d) romântico e parnasiano tas da l íngua portuguesa, ao lado de Camões e
e) parnasiano e simbolista de Antero de Ouental. Sua poesia lírica, extrema
mente pessoal, é marcada por um rebelde liber
tarismo emocional, às vezes violento, às vezes
calmo. Sua vasta obra poética apresenta dois
fi ( U F-RO)
Leia o texto com atenção: aspectos fundamentais: o satírico e o lírico; mas
é no lírico que o poeta se realiza plenamente e
Não temas, ó Ritália, que o choroso, fica famoso. Foi, sem dúvida, o maior poeta do
O desvelado E/mano a fé quebrante, século XVI I I português. Seu pseudônimo arcádi
Não desconfies do singelo amante, co é Elmano Sadino. Trata-se de:
Que tu podes, só tu, fazer ditoso. a) Cruz e Silva
b) Domingos Caldas Barbosa
Serena o coração terno e cioso, c) Filinto Elíseo
Que inda minh 'alma há de ser constante d) Almeida Garrett
Se primeiro que a tua, andar errante e) Bocage
Pelas margens do Letes preguiçoso.
A atitude pré-romãntica fica evidente no último há referências e elementos árcades (zéfiro, Tejo
11 terceto, na atitude em relação ao amor: meu
desejo É carpir, delirar, morrer por ela. Trata-se
adormecido, mavioso rouxino�.
-
a solidão do Eu) e no segundo terceto (o ego
centrismo, o pessimismo, o noturno, a atração
pelo horror e pela morte) . No segundo quarteto,
19
O NEOCLASSICISMO: PORTUGAL E BRASIL
Um tanto tardiamente, apenas na segunda metade do século XVIII, os autores portugueses
aderiram à vaga de reação neoclássica aos exageros do Barroco. A nova moda propunha uma volta
ao equilíbrio, restaurando a harmonia, a disciplina e a obediência aos preceitos clássicos e, sobre
tudo, a simplicidade, através da valorização da natureza.
A poesia ganhou um tom familiar, singelo, gracioso, aparentemente espontâneo, sem dispen
sar as sofisticadas referências mitológicas. O tema dominante passou a ser o bucolismo.
Organizaram-se sociedades de escritores chamadas Arcádias (em Portugal, a Arcádia Lusitana
e a Nova Arcádia) e os autores adotaram pseudônimos pastoris.
Entretanto, o ideal de naturalidade acabou engessado pela repetição dos temas clássicos da
aurea mediocritas ("mediania de ouro", o culto do equilíbrio), do carpe diem ("goza do dia", o
momento presente); do fugere urbem ("fugir da cidade") e do locus amoenus ("lugar aprazível",
cenário bucólico idealizado).
Com o tempo, essas fórmulas literárias se esgotaram, e a poesia portuguesa começou a tingir
se de um emocionalismo pessimista que prenunciava o Romantismo (Pré-Romantismo).
Os ideais neoclássicos foram introduzidos no Brasil por Cláudio Manuel da Costa, com a
publicação de suas Obras, em 1 768. A ausência de tradição e as diferenças de contexto cultural e
social, suavizaram aqui os rigores da nova moda, arejando os temas, introduzindo novos motivos
(elementos da paisagem brasileira, a mineração, o índio . . . ), dando maior leveza ao verso.
Segundo os historiadores portugueses Antônio José Saraiva e Oscar Lopes, certa cor local e
certo dengue brasileiro constituem, no conjunto destes poetas, uma contribuição importante para
aformação do gosto romântico entre nós (In História da literatura portuguesa, 6° ed., Porto, Porto
Editora, s/d).
Tomás Antônio Gonzaga é considerado o principal autor neoclássico brasileiro.
MARÍLIA DE DIRCEU
A obra lírica de Tomás Antônio Gonzaga reduz-se, praticamente, a esse livro, um
dos mais lidos da história da literatura brasileira. onzaga nasceu em Portugai (Porto,
Por trás dos suaves idílios pastoris revelam-se elementos biográficos do autor. G 1 1 /08/1744) e morou em Salvador, Bahia,
Dirceu, o pastor, é também, um tanto inverossimilmente, o funcionário público, juiz, já entre os 7 e os 17 anos de idade. Formou-se
em Direito na Universidade de Coimbra e
quarentão, amando uma mocinha de 1 7 anos, ansioso pela estabilidade de um lar bur
permaneceu na Metrópole, exercendo a
guês cheio de filhos. advocacia, até 1 782, quando foi nomeado
A pastora Marília, ora loira, ora morena, delicada e freqüentemente enciumada é, ouvidor (juiz) de Vila Rica e retornou ao Brasil.
além de um motivo poético, uma Maria Dorotéia idealizada. Instalado na capital mineira, tornou-se amigo
Freqüentemente o sítio ameno convencional da poesia bucólica dá lugar à paisagem do poeta Cláudio Manuel da Costa, sob cuja
influência iniciou sua produção poética.
de Vila Rica, aos campos de mineração, onde aparecem os vultos dos escravos.
Nessa época a Capitania de Minas Gerais
O livro é dividido em duas parte, que correspondem às duas fases da vida de era governada por Luís da Cunha Meneses.
Gonzaga em que foram escritas (existe uma terceira parte, de autenticidade contestável). Os desmandos e a arrogância desse tiranete
Na primeira parte predominam as convenções neoclássicas: os idílios e os arrufos motivaram a principal obra satírica do século
amorosos dos pastores, as cançonetas anacreônticas, o locus amoenus, as referências XVIII, as Cartas Chilenas, atribuídas a
mitológicas. O pastor Dirceu faz a corte à pastora Marília, procurando convencê-la da Gonzaga, inimigo político do governador.
Ao vir para o Brasil, Gonzaga tinha 38 anos
futura felicidade no casamento. A recorrência do tema do carpe diem revela a preocu
de idade. Logo se apaixonou por uma vizinha,
pação de Gonzaga com a própria idade. Maria Dorotéia Joaquina de Seixas,
A segunda parte do livro foi escrita na prisão. As referências à realidade biográfica adolescente de apenas 17 anos. As
são mais diretas: o cárcere, o processo judicial, o medo, a perspectiva da morte, a soli diferenças de idade e de s ituação econômica
dão, o sentimento da injustiça. Embora ainda se mantenham, as convenções não garan devem ter provocado a oposição da família,
tem o pleno equilíbrio neoclássico; a expressão, dominada pelo pessimismo, toma-se pois o namoro arrastou-se por vários anos, <(
sem chegar ao matrimônio. (.!)
mais intensa e dramática - pré-romântica.
Em 1789, quando já obtivera o consentimento <(
O encadeamento das duas partes e a progressão do caso amoroso fazem de Marília dos pais da noiva e preparava sua mudança N
z
de Dirceu uma quase novela de psicologia amorosa. para a Bahia, Gonzaga foi detido, acusado de o
envolvimento na Inconfidência. Permaneceu (.!)
preso no Rio de Janeiro até 1 792, quando foi o
degredado para Moçambique. z
Em nossa literatura é dos maiores poetas, dentre os sete ou oito que trouxe Pesquisas feitas no século XX revelaram que, •O
ram alguma coisa à nossa visão do mundo. Com ele, a pesquisa neoclássica no desterro, Gonzaga refez sua vid�. 1-
da natureza alcança a expressão mais humana e artisticamente mais pura, casando-se com Juliana Mascarenhas de z
<(
liberta ao mesmo tempo da contorção barroca e dos escolhos da prosa. Nas Sousa, filha de um rico comerciante de
(/)
escravos. Morreu em 1 809. Essas ·<(
literaturas românicas do tempo, forma sem deslustre ao lado de um Bocage
revelações desfizeram o mito do poeta ::E
ou André Chénier.
apaixonado, enlouquecido e morto o
Antônio Cândido, In Formação da literatura brasileira. prematuramente pela saudade de sua 1-
Marília. -
o
21
ANTOLOGIA COMENTADA
LIRA IX
Eu sou, gentil Marília, eu sou cativo; O Vento quando parte em largas fitas
Porém não me venceu a mão armada As folhas, que meneia com brandura;
De ferro, e de furor: A fonte cristalina,
Uma alma sobre todas elevada Que sobre as pedras cai de imensa altura,
Não cede a outra força, que não seja Não forma um som tão doce, como forma
A tenra mão de A mor. A tua voz divina.
Arrastem pois os outros muito embora Em torno dos teus peitos, que palpitam,
Cadeias nas bigornas trabalhadas Exalam mil suspiros desvelados
Com pesados martelos: Enxames de desejos;
Eu tenho as minhas mãos ao carro atadas Se encontram os teus olhos descuidados,
Com duros ferros não, com fios d'ouro, Por mais que se atropelem, voam, chegam;
Que são os teus cabelos. E dão furtivos beijos.
Oculto nos teus meigos vivos olhos O Cisne, quando corta o manso lago,
Cupido a tudo jaz tirana guerra: Erguendo as brancas asas, e o pescoço;
Sacode a seta ardente; A Nau, que ao longe passa,
E sendo despedida cá da terra, Quando o vento lhe enfuna o pano grosso,
As ntiVens rompe, chega ao alto Empíreo. O teu garbo não tem, minha Marília,
E chega ainda quente. Não tem a tua graça.
'
As abelhas nas asas suspendidas Estimem pois os mais a liberdade;
Tiram, Marília, os sucos saborosos Eu prezo o cativeiro: sim, nem chamo
Das orvalhadas flores: À mão de amor ímpia:
Pendentes dos teus beiços graciosos Honro a virtude, e os teus dotes amo:
O mel não chupam, chupam ambrosias Também o grande Aquiles veste a saia,
Nunca fartos Amores. Também Alcides fia.
Esta lira pertence à primeira parte de Marília de Dirceu, desenvolvendo o tema da corte amo
rosa: Dirceu confessa-se cativo da beleza de Marilia, preso por seus cabelos dourados (é interes
sante observar que, na idealização de Marilia, ora seus cabelos são loiros, ora morenos), atingido
pelas setas que se desprendem de seus olhos. A partir da quarta estrofe, Marília é comparada com
elementos da natureza, mostrando-se superior aos mais doces, melodiosos, elegantes e belos.
Observe que esse naturismo é convencional e não inclui ainda a paisagem americana. Conven
cionais também são as referências mitológicas (Cupido, Aquiles e Alcides) e o tema da aurea me
diocritas (o ideal clássico do equilíbrio) nos três últimos versos do poema. A virtude não reside
apenas nos grandes feitos heróicos: as imagens de Aquiles em roupas caseiras e de Alcides em tra
balhos domésticos refletem o ideal burguês de vida segura e tranqüila.
Apesar de todo esse convencionalismo neoclássico, há uma leve referência à realidade da vida
colonial na comparação entre o cativeiro amoroso e a situação dos escravos (segunda estrofe) e
uma mal velada sensualidade na 43 e na 63 estrofes, onde Dirceu projeta seu desejo de beijar
Marilia nas abelhas que esvoaçam em tomo dela.
O ideal de simplicidade que transparece nesse quadro amoroso reflete-se também na forma do
poema: o vocabulário é simples; a ordem das frases é, quase sempre, direta; os versos hexassíla
bos entremeados quebram a monotonia ritmica dos decassílabos heróicos (acento na 63 e décima
sílabas); predominam os versos brancos, sendo rimados apenas os versos 2 e 4 de cada estrofe
(rimas geralmente pobres, sobretudo as de particípios).
LIRA IV
Esta lira pertence à segunda parte de Marília de Dirceu. Seu tema é a participação de Gonzaga
na Conjuração Mineira e o temor do desfecho do julgamento. Observe que Gonzaga se diz inocen
te das acusações, que ele atribui ao veneno das calúnias de seus inimigos. Foi esta, aliás, sua posi
ção em todo o inquérito, como se pode ler nos Autos da devassa.
Dirceu/Gonzaga desafia seus acusadores a provocar-lhe o medo, sentimento natural dos que
são culpados, e invoca a justiça divina contra os poderes infernais (o autor utiliza ainda as figuras
mitológicas de Jove (Júpiter) e Plutão). Na penúltima estrofe, Dirceu manifesta seu orgulho dian
te da morte.
A última estrofe é uma das mais belas que o autor escreveu: a grandeza de seu coração é com
provada pelo fato de nele caber a infinita beleza de Marília.
LIRA XIX
Esta lira também pertence à segunda parte da obra, escrita na prisão. O drama vivido por
Dirceu/Gonzaga, a revolta pela injustiça, o medo, as privações, tudo se concentra no sentimento da
solidão, que se traduz na saudade de Marília. Sentimento tão intenso que leva Dirceu ao delírio.
<( A visão de Marília é tão real, que ele se aproxima para beijá-la (23 estrofe). O reconhecimen
o to da ilusão (33 estrofe) provoca-lhe uma vertigem.
�
z
A personificação do Amor (Cupido, o deus alado) perde, em parte, o seu significado alegóri
co, para tornar-se elemento do delírio.
w
Na última estrofe, Cupido é encarregado de relatar os sofrimentos de Dirceu a Marília e de
�
o verificar se ela ainda o ama. Uma única lágrima da amada daria alívio suficiente ao prisioneiro.
u O locus amoenus foi substituído pelo ambiente da masmorra, comparada com uma sepultura;
<( a aurea mediocritas, pelo desespero e pelo delírio; o vocabulário constrói campos semânticos de
a:
::> dor e desespero (adjetivos: triste, semivivo, extremoso, imensa, vivo ou morto, doente; substanti
�a: vos: masmorra, sepultura, mal, vulto, ilusão, violência da mágoa, estrago, salgado pranto, defun
to, lágrimas, dor, alivio; verbos: resistir, cercar, matar, suportar, cair, representar, suspirar, cho
w rar, verter, arrastar).
1-
....J
Sentimentos tão pungentes e intensos escapam ao equilíbrio neoclássico e prenunciam o tom
- patético do Romantismo.
24
\Jom:sT6a
11 Compare as descrições de M a rília: ( P U C - Campinas) Pode-se afirmar que Marília de
Dirceu e as Cartas Chilenas são, respectivamente,
I
a ) altas expressões do lirismo amoroso e da sáti
Vivos olhos, e faces cor-de-rosa,
ra política, na literatura do século XVI I I .
Com crespos fios de ouro:
b ) exemplos d a poesia biográfica e d a l iteratura
Meus olhos só vêem graças e loureiros;
epistolar cultivadas no século XVI .
11 c ) exemplos d o lirismo amoroso e da poesia d e
O seu semblante é redondo, com bate, cu ltivados sobretudo pelos poetas
Sobrancelhas arqueadas, românticos da chamada terceira geração.
Negros e finos cabelos, d) altas expressões do lirismo e da sátira da nossa
Carnes de neve formadas. poesia barroca.
111
e) expressões menores da prosa e da poesia de
nosso Arcadismo, cultivadas no i nterior das
Papoula, ou rosa delicada, e fina,
Academias.
Te cobre as faces, que são cor de neve.
Os teus cabelos são uns fios d'ouro;
Teu lindo corpo bálsamo vapora.
n (CESESP -PE)
a) Que oscilação se observa nas descrições IÍII 1- o momento i deológico na literatura dos Sete-
de Marília? centos traduz a crítica da burguesia culta aos
b) Que conclusão podemos tirar dessa oscila abusos da nobreza e do clero.
ção ?
11- O momento poético, na literatura dos Sete
25
I o ROMANTISMO EM PORTUGAL
A economia portuguesa entra em crise em 1 808, com a transferência da corte de D. João VI
para o Brasil - motivada pela invasão napoleônica - e com a abertura dos portos brasileiros.
Desta data até 1 834, quando se instaura o regime constitucional, o país sofre: a situação eco
nômica atinge níveis calamitosos e a situação política caracteriza-se por grande instabilidade.
A exploração inglesa, a invasão francesa, a revolução de 1 820 - que exigiu o retomo de
D. João V I - e a guerra civil de 1 828 a 1 8 34 entre os absolutistas e os liberais constituem os prin
cipais fatos históricos do período, que culmina com o triunfo do liberalismo, por meio do
Movimento da Regeneração.
Assim, superadas as disputas entre os setembristas (a ala mais avançada do liberalismo) e os
cartistas (os mais conservadores), Portugal finalmente implanta uma política favorável à industria
lização.
É precisamente ao longo desse contexto que o país conhece a Revolução Romântica.
Iniciado cronologicamente em 1 825, com a publicação do poema Camões - de Almeida
Garrett - e finalizado em 1 865, com uma polêmica denominada "Questão Coimbrã", a qual
marca o início do Realismo, o Romantismo português tem três gerações.
A primeira, que transcorreu nas décadas de 20 e 30 e que foi representada sobretudo por
Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Antônio Feliciano de Castilho, mantém uma ligação
ainda forte com o Arcadismo.
Na segunda geração, que dominou nas décadas de 40 e 50, os autores já se consideram
libertos da influência neoclássica, o que lhes permite realizar plenamente os ideais estéticos
românticos: a exaltação da subj etividade, da imaginação criadora, da liberdade de expressão.
Camilo Castelo Branco é o grande escritor dessa geração, denominada ultra-romântica ou "mal
do século".
A reação ao gosto clássico, o sentimentalismo exacerbado, a religiosidade, a rebeldia e o
inconformismo nas criticas sociais constituem os mais importantes traços estéticos deste criador.
Além das antológicas novelas passionais que o popularizaram (principalmente Amor de perdição
e Amor de salvação), inclusive por se confundirem com cenas vivenciadas em sua própria exis
tência, Camilo Castelo Branco dedicou-se às novelas satíricas de costumes, entre as quais se des
<(
o tacam A Queda de Um Anjo e Coração, Cabeça e . Escreveu também contos, poesia, teatro, criti
�
z
ca literária, jornalismo, historiografia e "novelas de atualidade".
UJ
Este fato o coloca como autor português que melhor realiza a proposta romântica de democra
� tizar a cultura, a literatura, levando-o, por isso e porque dependia financeiramente de sua obra, a
G uma proletarização literária, ou seja, uma impossibilidade de escrever romances de maior fôlego,
u
que eliminassem os atrativos folhetinescos e a retórica sentimental da grande maioria dos textos
<(
a: que produziu.
:::> Já na década de 1 860, quando os exageros ultra-românticos estão em vias de desaparecer, só
�
a: se conservando em autores menores, os melhores tratam de depurar o Romantismo, rejeitando a
UJ pieguice e buscando um lirismo simples, sincero e combinado com a observação da realidade e
1-
_J com alguns laivos de visão crítica a respeito dela: já há nestes aspectos traços do Realismo, razão
- pela qual denominamos "pré-realistas" os seus autores, dentre os quais se destacam João de Deus
AMOR DE PERDIÇAO
A mais típica e mais popular novela
ilha bastardo e órfão desde criança,
passional do ultra-romantismo português. F Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1 825-
1 890) pode ser considerado, como homem e
como escritor, uma personalidade
Folheando os livros de antigos assentamentos no cartório das cadeias da Relação tipicamente ultra-romântica, isto é, de
do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, o seguinte: temperamento apaixonado e inconformista.
Em outras palavras, podemos identificá-lo
"Simão Antônio Botelho, quem assim disse chamar-se, ser solteiro e estudante na pela contradição, nunca superada ao longo
Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua de sua vida e sua obra, entre materialismo e
prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos (...). Foi para a Índia em 1 7 de março idealismo, entre a verdade "feia e
repugnante" da realidade e a necessidade de
de 1907. " romanceá-la, de transfigurá-la literariamente
Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o degredo para oferecê-la ao público leitor.
de um moço de dezoito anos lhe há de fazer dó (. . .) . Um dos motivos que podem explicar e
exemplificar esta dualidade, esta contradição,
O leitor decerto se compungia; e a leitora, se lhe dissessem em menos de uma linha a é a mistura entre realidade e romance, no
história daqueles dezoito anos, choraria! sentido romântico da palavra, que caracteriza
Amou, perdeu-se e morreu amando. a própria vida de Camilo: aos dezesseis anos,
casa-se com a aldeã Joaquina Pereira. de
quinze, de quem logo se separa para cursar,
Camilo Castelo Branco no Porto, a Escola Médica e a Academia
Amor de perdição Politécnica. Abandona a ambas e amplia
nesta cidade sua experiência mundana e
literária. A sucessão de amantes, de duelos.
de prisões, de escândalos passionais aos
Narrador olhos da burguesia do Porto culmina na mais
duradoura de suas paixões: Ana Plácido,
Escrita em terceira pessoa, esta obra caracteriza-se por um narrador onisciente, isto esposa do brasileiro Pinheiro Alves.
é, um narrador que desvenda o universo interior dos personagens, sabendo mais do que Iniciado em 1 850, o relacionamento entre
eles próprios o que lhes passa pela mente e pelo coração. Um exemplo significativo da Ana e Camilo é assumido pelos amantes em
1855, quando começam a ser perseguidos.
onisciência do narrador pode ser encontrado no capítulo 4, quando através da voz do
Fogem para esconderijos sucessivos,
narrador podemos perceber que Simão Botelho, protagonista da história, debate-se entre entregando-se o escritor à justiça em 1 861 .
o amor e a honra: Passa, então, 348 dias na cadeia da Relação
do Porto, onde escreve quatro obras, sendo
O acadêmico, chegando ao período das ameaças, já não tinha clara luz nos uma delas Amor de perdição Soltos e
absolvidos, Camilo e Ana se casam,
olhos para decifrar o instante da carta. Tremia sezões, e as artérias frontais
continuando, entretanto. o caráter novelesco
aifavam-lhe intumescidas. Não era sobressalto do coração apaixonado; era a índo da vida do autor.
le arrogante que lhe escaldava o sangue. . . Em 1 863 passa a residir em São Miguel de o
Seide, onde escreve quatro obras, inclusive u
Amor de salvação. Volta ao Porto por algum
z
O tipo onisciência deste narrador pode ser classificado como onisciência intrusa, <(
tempo, mas em 1 866 retorna a Seide, num 0:::
OJ
na medida em que ele não só revela mas também comenta os sentimentos e comporta
estado de saúde debilitado e que se agrava
mentos dos personagens, deixando claro o seu ponto de vista a favor dos que amam e em 1 867. Mesmo assim, a produção literária o
contra os que impedem a realização do amor por apego à honra e/ou a preconceitos continua: surgem oito novas histórias, ...J
morais e sociais. ressaltando-se A Queda de um Anjo. UJ
Atormentado pela debilidade física (em 1 887
r
Relendo o fragmento da introdução do romance, que citamos, você pode perceber a (/)
sua cegueira é quase completa) e pelas <(
parcialidade do narrador e, ainda, a sua preocupação, essencialmente romântica, de dar dificuldades financeiras, Camilo leiloa sua u
verossimilhança à história, quer dizer, de aproximá-la da verdade, através da ênfase ao biblioteca, de cerca de 5.000 volumes. o
seu caráter documental, biográfico e, portanto, real. Enfim, no dia 1° de junho de 1 890, decide ...J
Outro comentário sobre o narrador refere-se às críticas que faz ao Realismo, con terminar com sua própria vida, suicidando-se �
com um tiro no ouvido direito e assim mais <(
fundindo-se nestes momentos com o próprio autor, em sua resistência em aceitar este
uma vez mantendo o elo entre a própria u
novo estilo literário, com o qual conviveu e dialogou no final da carreira. Eis a frase que existência e o tipo de produção -
melhor exemplifica este procedimento: O pintor retrata uns olhos, e não explica as fun- literária a que se dedicou. D
21
ç?es óticas do aparelho visual (cap. 1 9) - crítica irônica ao racionalismo, à dissecação cientifi
Clsta do caráter humano, pretendida pelos escritores do Realismo-Naturalismo.
Quanto à ironia, encontramos passagens que chegam às raias da caricatura, quando o narrador
descreve a decadência do convento como instituição social. O convento de Viseu aparece, assim, no
cap. 8, como verdadeiro antro de prostituição, de degradação humana, de bisbilhotagens e de vícios.
Este edificante discurso de caridade foi interrompido pela madre escrivã, que vinha, pali
tando os dentes, pedir à prelada um copinho de certo vinho estomacal com que todas as noi
tes era brindada (. . ). Não delongaremos esta amostra do evangélico e exemplar viver do con
vento onde Tadeu de Albuquerque mandara sua filha a respirar o puríssimo ar dos anjos,
enquanto se lhe preparava crisol mais depurador dos sedimentos do vício no convento de
Monchique.
Encheu-se o coração de Teresa de amargura e nojo naquelas duas horas de vida conventual.
Eruedo
Dividido em vinte capítulos, mais a introdução e a conclusão, o livro Amor de perdição segue
uma sucessão temporal rigidamente cronológica.
. A síntese das principais ações que ocorrem em Amor de perdição mostra a presença de ingre
dientes romanescos de que Camilo invariavelmente se utiliza, em suas novelas passionais:
O amor irrealizado e alimentado à distância - lembre-se das cartas trocadas entre Simão
e Teresa, que mantêm o clima passional da história.
A proibição da sociedade à realização do senti
Dois quartos da novela constam de uma lenta nm mento amoroso - as rixas entre as famílias de Simão e
ração sobre o namoro entre Simão Botelho e Teresa de Teresa são o motivo da proibição na história, neste sen
Albuquerque, a separação do casal por rixas familia tido uma versão portuguesa de Romeu e Julieta, obra
res, a obstinação de Teresa mcmtendo-se fiel a Simão, dramática de Shakespeare, autor inglês do século XVI,
não cedendo à insistência do pai, Tadeu de redescoberto pelos românticos.
Albuquerque, em casá-la com o fidalgo Baltasm O final trágico dos protagonistas (o convento, a
Coutinho. Por outro lado, Simão, que não conta com o loucura e/ou a morte), cujas atitudes são extremamente
apoio de sua própria família, mcmtém-se escondido na passionais, de um sentimentalismo radical, obsessivo,
casa de João da Cruz, um ferrador. Contcmdo com a suicida - ultra-romântico, como veremos discutindo os
cumplicidade do ferrador e da filha Mcrricma, o jovem personagens.
está a salvo. Mmicma apaixona-se pelo hóspede e o
auxilia de todas as formas, no sentido de que se comu Personagens
nique com a amada Teresa. Protagonistas
O capítulo 1 O pode ser considerado o clímax da nm
rativa: é qucmdo se dá a morte de Baltasm Coutinho. Simão Botelho, Teresa de Albuquerque e Mariana
Simão tentma se encontrm com Teresa, qucmdo da podem ser considerados os protagonistas da história se
mudcmça do convento de Viseu para Monchíque. Bal nela privilegiarmos a dimensão amorosa, isto é, o senti
tasm provoca-o e Simão atira e o mata. Assim, os acon mento da paixão, ao qual se opõe o mundo exterior, a
tecimentos se precipitam. Os outros dois quartos da sociedade, voltada para a "falsa virtude dos homens, fei
novela, ou seja, do capítulo 1 1 em dicmte, preparam o tos bárbaros em nome de sua honra". Os representantes
desenlace trágico. deste mundo, na medida em que tudo fazem para impe
dir a consumação do amor, podem ser considerados os
Simão é preso na cadeia da Relação, no Porto.
Teresa é mcmtida enclausurado, no convento de Mon antagonistas da obra.
chíque, também no Porto. Julgado e condenado à Simão Botelho é o terceiro filho de um corregedor,
<(
Cl Domingos Botelho, e de uma dona do Paço, D. Rita Pre
morte na forca, Simão passa os dias em desespero, ten
j:! do ao lado a fiel compcmhía de Mcrricma.
ciosa. Inicialmente nos é apresentado como um jovem de
temperamento sanguinário e violento. Perturbador da
z Domingos Botelho, pai de Simão e corregedor, nega
w ordem para defender a plebe com quem convive e agita
se a auxílim o filho e só o faz tardiamente, qucmdo
� dor na faculdade, onde luta de forma brutal pelas idéias
() então c9nsegue comutação da pena e um degredo
(.)
j acobinistas (aquelas do período mais radical da
para as Indias. O final trágico dá-se qucmdo da partida
Revolução Francesa, o período do Terror e da Guilhotina),
<( de Simão para o exílio. Teresa assiste do mircmte do
0::: o seu caráter se transforma, e repentinamente, a partir da
convento à passagem do navio que leva o seu amado ,
::J capítulo 2. E que conhecera e amara, durante os três
e vem a falecer. Simão, não resistindo à dor de perder
�
0::: a amada, também morre no navio. Mcrricma suicida-se,
meses em que esteve em Viseu, a vizinha Teresa.
Ele com dezessete anos, ela com quinze, passam a
w abraçada ao cadáver do jovem, já lcmçado ao mar.
1- viver desde então o amor romântico: um amor que redi
::::i .me os erros, que modifica as personalidades, que tem na
-
Samira Youssef Campedelli - Morrer de amor. em
pureza de intenções e na honestidade de princípios as
Amor de perdição - Carnilo Castelo Branco
suas principais virtudes.
28
Aliás, são as virtudes que caracterizam os sentimentos de Simão, desde que experimenta este
amor. Toma-se recatado, estudioso e até religioso, o que não o impede de sentir uma sede incon
trolável de vingança, que resulta no assassinato do rival Baltasar Coutinho. Esse ato exemplifica
a proximidade entre "o sentimento moral do crime" ou "o sentimento religioso do pecado" e a ten
tativa de consumação do amor.
O modo como assume este crime, recusando-se a aceitar todas as tentativas de escamoteá-lo,
feitas pelos amigos de seu pai, acaba de configurar o caráter passional do comportamento de
Simão. Nem a possibilidade da forca e do degredo, nem as misérias sofridas no cárcere conseguem
abater a firmeza, a dignidade, a obstinação que transformam Simão Botelho em símbolo heróico
da resistência do indivíduo perante as vilezas da sociedade. Trata-se de um típico herói ultra
romântico, em outras palavras.
Teresa de Albuquerque, menina de quinze anos que se apaixona por Simão, também vai
adquirindo densidade heróica ao longo da obra: firme e resoluta em seu amor, ela mantém-se infle
xível perante os pedidos, as ameaças e finalmente as atrocidades e violências cometidas pelo pai
severo e autoritário, seja para casá-la com o primo, seja para transformá-la em freira.
Neste sentido, a obstinação que a caracteriza é a mesma presente em Simão, com a diferença
de que nela o heroísmo consiste não em agir, mas em reagir. Isto por pertencer ao sexo feminino,
símbolo da fragilidade e da passividade perante o caráter viril, másculo, quase selvagem do
homem romântico.
Na medida em que não faz o jogo do pai, dando a vida pelo sentimento que a possui, Teresa
constitui uma heroína romântica típica, um exemplo da imagem da mulher-anjo que vigorou no
Romantismo.
Mariana, moça pobre e do campo, de olhos tristes e belos, tem sido considerada, algumas
vezes, como a personagem mais romântica da história, porque o sentir a satisfaz, sem necessi
dade ao menos da esperança de concretizar-se o seu amor por Simão.
Independentemente do amor entre Simão e Teresa, Mariana o ama e tudo faz por ele: cuida de
suas feridas, arruma-lhe dinheiro, é cúmplice da paixão proibida, abandona o pai para fazer-lhe
companhia e prestar-lhe serviços na prisão e, finalmente, suicida-se após a morte de Simão.
Estas atitudes abnegadas, resignadas e totalmente desvinculadas de reciprocidade, fazem de
Mariana uma personificação do espírito de sacrificio, o que toma a sua dimensão humana abstra
ta, pouco palpável.
Antagonistas
Domingos Botelho, o pai de Simão e Tadeu de Albuquerque, o pai de Teresa, são tão pas
sionais, tão radicais em seu comportamento, quanto Simão e Teresa.
Entretanto, ambos podem ser considerados simetricamente o oposto dos heróis, na medida em
que representam a hipocrisia social, o apego egoísta e tirano à honra do sobrenome, aos brasões
cuja fidalguia é ironicamente ridicularizada, desmoralizada pelo narrador.
Baltasar Coutinho, o primo de Teresa assassinado por Simão, acrescenta à vilania do tio, de
quem se faz cúmplice, a dissimulação, o moralismo hipócrita e oportunista de um libertino de trin
ta anos, que covardemente encomenda a criados a morte de Simão . . . Em suma, nele se concentram
toda a perversidade, toda a prepotência dos fidalgos. Tal personagem constitui, sem nenhuma
dúvida, o vilão da história.
Secundários
o
João da Cruz, o pai de Mariana, destaca-se como o personagem mais sensato, mais equilibra u
do, o único personagem que possui traços realistas, de Amor de perdição. Ferreiro e transforma z
<(
do em assassino numa briga, João da Cruz consegue de Domingos Botelho, pai de Simão, a liber a:
dade. Em nome dessa dívida de gratidão, toma-se protetor do herói com palavras sempre oportu aJ
nas, lúcidas, estratégicas, e com atos corajosos e violentos, quando necessário. A sua linguagem o
.....1
cheia de provérbios e de ditados populares, a simplicidade de sua vida, somadas ao amor que dedi w
l
ca à filha, por quem vive, desfazem aos olhos do leitor os crimes que comete e os substituem por C/)
uma honradez, uma bondade inata, forte e viril, que nos parecem representativas da visão do autor <(
u
a respeito das camadas rurais em Portugal. o
Como João da Cruz e a mendiga, personagem que miraculosamente consegue entregar cartas .....1
estratégicas, bem ao gosto do Romantismo, os personagens secundários subordinam-se em Amor �
de perdição à necessidade de enfatizar os momentos dramáticos vividos pelos protagonistas.
<(
u
Entretanto, a tensão dramática que percorre o texto concentra-se na polarização maniqueís -
ta, isto é, que separa rigidamente o bem do mal, representada por protagonistas e antagonistas: de : 29
um lado os "mártires do amor", os penitentes da "religião do amor", que se torna um laço sagra
do pertencente a um espaço extraterreno, e de outro os defensores de uma sociedade cruel, irredu
tível em seus interesses grosseiros, inconciliável com a busca individual de felicidade.
Tempo/espaço
Inicialmente, o texto rememora em rápidas passagens a vida de Domingos Botelho, pai de
Simão, entre o final do século XVIII e o início do século XIX. Mas a época que ocupa as princi
pais páginas desse livro, o período em que Teresa e Simão vivem o seu intempestivo amor, situa
se entre 1 803 e 1 807. Ao se conhecerem, Simão completava dezessete anos, e sua amada era uma
moça nos seus quinze anos de idade.
A narrativa transcorre principalmente em Viseu, cidade para onde o pai de Simão, magistra
do público, foi nomeado. Há algumas referências a Coimbra, onde estuda Simão, e a Lisboa. O
desfecho do romance acontece na cidade do Porto, local da prisão de Simão e de sua partida para
o exílio, e também do convento onde Teresa permanece enclausurada.
Na cidade do Porto, em 1 807, passa-se uma das cenas de maior dramaticidade desse roman
ce. Teresa, enclausurada no convento de Monchique, observa a partida do navio que leva Simão
para o exílio nas Índias. Trocam acenos à distância, e sabem que nunca mais irão se ver.
Linguagem
No prefácio à segunda edição desta novela, Camilo atribui o seu sucesso, dentre outras razões,
"à rapidez das peripécias, à derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo, à
ausência de divagações filosóficas, à lhaneza (franqueza, sinceridade, lisura) da linguagem e
desartificio das locuções".
Veja a opinião de Antônio José Saraiva e Óscar Lopes, que em História da literatura portu
guesa escrevem:
Nas condições do gosto nacional da época, salientemos sobretudo as qualidades positivas dos
melhores espécimes desta novela, sobretudo o Amor de perdição: uma grandeza trágica de pai
xões e situações; uma narração densa e rápida das ações decisivas; caracteres psicológicos
secundários inteiramente subordinados às necessidades de dignificação do conflito central,
mas por vezes realistas e enérgicos, sobretudo quando extraídos do meio popular Uoão da Cruz,
Mariana, por ex.); diálogo geralmente eivado de retórica sentimental, mas por vezes de grande
nobreza trágica nos personagens principais, e extraordinariamente vivo, colorido, incisivo nos
tipos populares.
Vamos, agora, ler um trecho de Amor de perdição, a fim de observarmos a sua linguagem,
além de outros elementos narrativos que estudamos.
Às dez horas e meia daquele dia, três vultos convergiam para o local, raro freqüentado, em
que se abria a porta do quintal de Tadeu de Albuquerque. Ali se detiveram alguns minutos
discutindo e gesticulando. Dos três vultos havia um, cujas palavras eram ouvidas em silêncio
e sem réplica pelos outros. Dizia ele a um dos outros:
- Não convém que estejas perto desta porta. Se o homem aparecesse morto, as suspeitas
caíam logo sobre mim ou meu tio. Afastem-se vocês um do outro e tenham o ouvido aplicado
<(
o ao tropel do cavalo. Depois apressem o passo até o encontrarem, de modo que os tiros sejam
z
� dados longe daqui.
- Mas. . . - atalhou um - quem nos diz que ele veio ontem a cavalo e hoje vem a pé?
w - É verdade! - acrescentou o outro.
:E - Se ele vier a pé, eu lhes darei aviso para o seguirem depois, até o terem a jeito de tiro,
o mas longe daqui, percebem vocês? - disse Baltasar Coutinho.
u - Sim, senhor; mas se ele sai da casa do pai, e entra sem nos dar tempo?
<( - Tenho a certeza de que não está em casa do pai, já lho disse. Basta de palavreado. Vão
a:
::> esconder-se atrás da igreja e não adormeçam.
�a: Debandou o grupo, e Baltasar ficou alguns momentos encostado ao muro. Soaram os três
quartos depois das dez. O de Castro-Da ire colou o ouvido à porta, e retirou-se aceleradamen
w te ouvindo o rumor da folhagem seca que Teresa vinha pisando.
1-
_. (cap. 6)
.......
30
VoVEsTõEs
11
Embora se trate de uma obra u ltra-romântica, há a fim de que as senhoras a possam ler nas salas,
características realistas em Amor de perdição. Do em presença de suas filhas ou de suas mães, e
ponto de vista do foco na rrativo, quais são estas não precisem de esconder-se com o livro no seu
características e como podemos percebê-las 7 quarto de banho. Dizem, porém, que o Amor de
perdição fez chorar. Mau foi isso. Mas agora,
Quais são os personagens que amam e q uais os como indemnização, faz rir: tornou-se cómico
que impedem a realização do amor, em Amor de pela seriedade antiga (. . . ). E por isso mesmo se
Perdição? reimprime. O bom senso público relê isto, com
para com aquilo, e vinga-se barrufando * com
Acusado de assassinar Ba ltasar Coutinho, qual a frouxos de riso realista as páginas que há dez
atitude tomada por Simão em relação ao crime? anos aijofarava * * com lágrimas românticas.
Em termos românticos, o que esse comporta Como você pode notar, o autor faz referência a
mento demonstra do caráter do protagonista ? duas escolas literárias para explicar como Amor
de perdição produziria no público leitor, por oca
Pode-se notar alguma diferença q uanto ao a mor sião de sua reim pressão, uma reação completa
de Mariana e o de Teresa e m relação a Simão? mente diferente daquela produzida ao ser publi
Qual o perfil traçado dessas personagens a partir cado pela primeira vez. Considerando tal afirma
de seu sentimento? ção:
a) Cite um episódio do romance que poderia
( U N ICAMP) No prefácio da q u i nta edição portu provoca r lágrimas nos l eitores da primeira edi
guesa do romance Amor de perdição, Camilo ção e ataques de " riso realista" nos leitores
Castelo Branco afirmava ironicamente: da qui nta edição.
Eu não cessarei de dizer mal desta novela que b) Como se explica uma reação tão diferente por
tem a boçal inocência de não devassar alcovas, parte dos leitores dessas duas edições?
v RESPOSTAS PO�SÍVEIS
11
Do ponto de vista do foco na rrativo, ou da postu amor. Revela-se íntegra e forte ao enfrentar todas
ra do narrador perante a história, os elementos as barre i ras sociais pelo amor por S i mão.
realistas de Amor de perdição estão na crítica às J á Mariana amava Simão e sabia que o rapaz
instituições relig iosas, os conventos, e n o com não a amava, que nutria por ela uma ternura fra
portamento não passional de alguns personagens tern a l . Ainda assim, Mariana tudo fez por Simão,
secundários, como João da Cruz. Podemos perce procurou ajudá-lo, pois tinha conheci mento de
ber estes ele me ntos nas passagens da obra em q ue ele só seria feliz ao lado de Teresa . Mesmo
que o narrador denuncia a corrupção do convento impossível, seu amor resiste a tudo, tornando-se
de Viseu e enfatiza a lealdade, o senso prático, a Mariana um exemplo de abnegação e de des
sensatez de João da Cruz, opondo-se assim ao prendimento .
passionalismo predomina nte no romance.
a) O episódio do romance m a i s representativo n o
Os personagens que amam são Simão Botelho, sentido de provocar l á g r i m a s nos leitores
fJ Teresa de Albuquerque e Mariana; os que impe
dem a realização do a m o r são Tadeu de
românticos e risos nos l e itores real istas ocorre
no seu desfecho, quando o tema da " morte
Albuquerque, D o m i n g o s Botelho e B a ltasa r por amor" atinge o c l í max: Teresa morre no
Coutinho. As semelha nças de comportamento convento, ao sentir i rreversível a perda de
predominam e m relação às diferenças nestes Simão, o qual, por sua vez, é tomado de uma
personagens, já que tanto os apaixonados quanto febre fatal, no navio que o levaria para longe da
os que se opõem à consumação deste sentimen amada, qua ndo fica sabendo d e sua morte. J á
to agem de forma absol utamente passional, Mariana, apaixonada p o r Simão, ati ra-se ao
caracterizando o U ltra-Romantismo de Amor de mar aga rrada ao seu corpo, s u icidando-se.
perdição. b) Enquanto os leitores do U l tra-Romantismo o
estão i m buídos dos grandes temas explorados u
Simão confessa a a utoria do crime e entrega-se. por esse estilo literário - a i ncompatibilidade z
<(
0:::
Negar u m crime que cometera em defesa de sua entre os sentimentos e as obrigações sociais,
h o n ra e d e seu amor sign ificaria denegrir-se, avil a visão do amor como algo absoluto, como l'll
tar-se, subjugar-se frente à vilania e crueza da uma " religião " , e conseqüentemente o caráter
o
sociedade, representada pelo mau-caratismo de épico e ao mesmo tempo trágico da " mo rte __J
w
I
Baltasar Coutinho. Assumindo a culpa, arriscando por amor" - os leitores do Realismo já os
a própria vida e m nome desse amor, Simão vêem ironicamente, devido ao desgaste do (/)
demonstra toda a passional idade de seu caráter e sentimenta l ismo romântico, o qual é substituí <(
a integridade de seu sentimento, o que acentua o do pelo racionalismo realista. Daí a consciência u
traço u ltra-romântico do personagem. de Camilo Castelo Branco da distância entre os o
seus leitores da 1 ª edição de Amor de perdi __J
Teresa amava Simão e sabia que este também a ção, leitores essencial mente românticos, e os �
amava. A heroína enfrentou seu pai, o primo seus leitores da 5ª edição da mesma obra, lei <(
Baltasar Coutinho, o convento, tudo em nome tores já contagiados pelas propostas a nti u
desse amor. Teresa q ueria ser a m u l her de românticas do estilo realista. -
Simão, estar sempre com ele, desfrutar esse
31
I o ROMANTISMO NO BRASIL
Os anos de 1 822 e 1 836 são os marcos respectivamente histórico e literário do primeiro movi
mento coletivo de busca de identidade nacional em nosso país. Tanto o "grito do lpiranga" quan
to a publicação de Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, constituem momen
tos muito significativos na tentativa de superarmos a fase colonial, seja na subserviência econômi
ca e política aos interesses da Coroa Portuguesa, sej a na submissão a uma cultura "de emprésti
mo", vinda da Metrópole e desfiguradora das raízes nacionais.
Com a Independência e o Romantismo começam a mudar os rumos de nossa inteligência,
em direção a uma vitalização, como diz Antônio Cândido.
Os suportes de tais mudanças, no plano econômico e político, são as transformações sócio
econômicas e culturais desencadeadas pela vinda da Família Real para o Brasil, em 1 808, dentre
as quais salientamos a urbanização do Rio de Janeiro, que se tomou a nova capital do país, e a
extinção do tráfico de escravos.
Apesar das contradições advindas do poder agrário, dos latifundios, da economia de exporta
ção alicerçada no escravismo, o empenho de promover o desenvolvimento material que nos pos
sibilitasse seguir rumo ao progresso, à civilização, é tão forte neste momento quanto a necessida
de de nacionalizar a cultura brasileira.
A esta necessidade correspondem o espírito e o estilo românticos, fundamentalmente ligados
à ideologia liberal da Revolução Francesa ( 1 789) e comprometidos com uma "revolução literária",
contra as regras clássicas e pela liberdade de expressão.
Assim nasce o nosso Romantismo - o primeiro movimento literário no Brasil totalmente vol
tado para o Brasil - embora inspirado, na maioria de seus autores, no exemplo europeu.
Daí a atualidade do movimento dialético entre o cosmopolitismo e o localismo mencionado
por Antônio Cândido. Daí a importância do movimento romântico como inaugürador da busca
de identidade nacional, do sentimento coletivo da pátria, que se desenvolve através da adequa
ção das matrizes culturais metropolitanas - e a França foi o nosso modelo no século XIX - às
nuances da "cor local". O nacionalismo constitui a "bandeira" pela qual lutaram incessantemente
os nossos primeiros escritores românticos, sej a idealizando os elementos de "cor local" como José
de Alencar, seja rejeitando os modelos literários europeus, como Manuel Antônio de Almeida,
cuja obra - Memórias de um sargento de milícias - constitui rara exceção no contexto do nosso
Romantismo.
<(
o
�
z
Se tosse possível estabelecer uma lei de evolução da nossa vida espiritual, poderíamos
talvez dizer que toda ela se rege pela dialética do localismo e do cosmopolitismo, mcmi
w testada pelos modos mais diversos. Ora a afirmação premeditada e por vezes violenta
� do nacionalismo literário, com veleidades de criar até uma língua diversa; ora o decla
o rado conformismo, a imitação consciente dos padrões europeus (. . . ). Na literatura brasi
u leira, há dois momentos decisivos que mudam os rumos e vitalizam toda a inteligência:
o Romantismo, no século XIX (1 836- 1 8 70), e o ainda chamado Modernismo, no presen
<(
0::
::J te século ( 1 922- 1 945). Ambos apresentam fases culminantes de particularismo literário
!;i:0:: na dialética do local e do cosmopolita, ambos se inspiram, não obstante, no exemplo
europeu.
w
1-
_J
.......
Antônio Cândido
literatura e sociedade
32
,
JOSE DE ALENCAR
(. . .) a infância de nossa literatura, começada com a independência política,
ainda não terminou; espera escritores que lhe dêem os últimos traços e
formem o verdadeiro gosto nacional, jazendo calarem as pretensões, hoje tão acesas,
de nos recolonizarem pela alma e pelo coração, já que não o podem pelo braço.
IRACEMA
Exemplar mais perfeito da prosa poética na ficção romântica.
A literatura nacional, que outra coisa é senão a alma da pátria, que transmigrou
para este solo virgem com uma raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana
desta terra que lhe serviu de regaço; e cada dia se enriquece ao contacto de outros
povos e ao influxo da civilização?
(José de Alencar - Sonhos d 'Ouro)
Narrador
Em Iracema, obra escrita em terceira pessoa, temos um narrador-observador, isto
é, um narrador que caracteriza os personagens a partir do que pode observar de seus sen
timentos e de seu comportamento.
Um exemplo deste tipo de narrador nos ajudará a conhecer o ponto de vista em que
se coloca para contar a história, o foco narrativo que escolhe para narrar:
O sentimento que ele (Martim) pôs nos olhos e no rosto não o sei eu. Porém a
virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da
mágoa que causara (cap. II) .
No trecho acima, Martim, o guerreiro branco, defronta-se em plena floresta com
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que acabara de flechá-lo. O narrador, contando o
fato, assume a primeira pessoa ao colocar em dúvida o sentimento de Martim diante do
ocorrido. Conserva-se porém na terceira pessoa ao referir-se a Iracema, dizendo apenas
que ela ficou sentida pela mágoa que causara a Martim.
Neste episódio podemos perceber que o narrador conta a história do encontro entre
o índio e o branco � tema desta obra � do ponto de vista de Iracema, privilegiando os
sentimentos dela e não os de Martim, que representa o colonizador português.
Por isso, o título do livro � Iracema � assim como o início (cap. 11) e o final do
enredo (cap. XXXIII) centralizam-se em Iracema, protagonista do romance.
Entretanto, isto não significa que a história sej a contada exclusivamente do ponto
de vista do índio, o que compreendemos principalmente pela proximidade entre os sen
timentos e comportamentos de Iracema e os sentimentos e comportamentos das heroí
nas românticas do romantismo europeu.
Exemplo 1 : De primeiro ímpeto, a mão !esta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sor
riu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é osé de Alencar (1829-1 877) é o principal
símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d 'alma que da ferida (cap. li). J escritor romântico brasileiro. empenhado
num projeto de nacionalização da literatura
Exemplo 2: A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que
brasileira. Nascido em Mecejana, interior do
gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao des Ceará, ex-padre, foi deputado e Ministro da 0::
conhecido, guardando consigo a ponta farpada (cap. li). Justiça. Chamado de O Patriarca do Romance <(
u
No exemplo 1 , observamos predominar na reação de Martim perante a agressão de Brasileiro, José de Alencar, através deste z
w
_J
Iracema não a atitude de defesa de um branco em perigo diante de um selvagem, mas a gênero literário. incorporou como nenhum
atitude de um homem magoado � sofreu mais d 'alma que da ferida � diante da mu outro escritor a missão de "redescobrir <(
lher, símbolo de ternura e amor. culturalmente o Brasil", inclusive tentando w
No exemplo 2, a mesma mão que fere estanca mais rápida e compassiva o sangue criar uma "língua brasileira". o
Para isso. escreveu romances históricos, ·w
que gotejava. Aqui Iracema, ao mesmo tempo, comporta-se como indígena a mão
regionalistas, urbanos - como Senhora CJ)
�
Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaú
ba (. . ) .
.
Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando
as alvaspraias ensombradas de coqueiros (. ) . . .
Onde vai a afouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fluxo terra! a
grande vela? (. .)
.
Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora.
Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança e um
rafeiro que viram a luz no berço dasflorestas, e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra
selvagem (. . .).
Que deixara ele na terra do exílio?
Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à calada da noite, quando
a lua passeava no céu argenteando os campos, e a brisa rugitava nos palmares.
Observe o ritmo, a musicalidade destas frases, que fizeram com que José de Alencar fosse cha
mado "o poeta do romance" ... Observe, também,a intensidade lírica da descrição, que romantiza a
natureza tropical brasileira e a ela associa a verossimilhança da narrativa: uma hístória que me
contaram...
Neste capítulo há, assim, a proposição, a revelação em tom épico do tema de uma obra que
incorpora de forma exemplar o mecanismo encontrado por José de Alencar de construção do mito da
pátria através da adequação dos elementos da "cor local" - a natureza, o índio, idealizados ufanis
ticamente - aos elementos do romantismo europeu - a construção do emedo e dos personagens.
Enredo
No capítulo 11 é que se inicia o emedo. Martim Soares Moreno, personagem histórico respon
sável pela colonização do ceará, em 1 603, encontra-se com Iracema, filha do pajé Araquém, da
tribo dos Tabajaras, os senhores das montanhas.
Neste encontro, ocorre o episódio da flechada atrás referido, seguindo-se a ele a permissão de
Iracema para que Martim visite a tribo.
O visitante, por quem Iracema se apaixonara, encontra em Irapuã (Mel Redondo), o chefe da
tribo, um rival. Um duelo entre ambos é interrompido pelo grito de guerra dos Pitiguaras, os
senhores do litoral, liderados por Poti (Antônio Felipe Camarão, personagem histórico real), amigo
de Martim.
Nas entranhas da terra, magicamente abertas por Araquém, Iracema esconde-se com Martim
e toma-se sua esposa, traindo o compromisso de virgem vestal, sacerdotisa da tribo e portadora do
segredo da Jurema, o segredo da fertilidade dos Tabajaras.
Durante o sono da tribo, propiciado por Iracema que a leva ao bosque da Jurema, onde os
guerreiros podem sonhar vitórias futuras, há o reencontro entre Martim e Poti, que fogem guiados
<( por Iracema. Ela não revela a Martim que houve entre ambos o himeneu (casamento), enquanto o
o jovem iniciava-se nos mistérios da Jurema, só o fazendo posteriormente à fuga.
�
z
Irapuã encontra os fugitivos, trava-se um combate entre os Tabajaras e os melhores Pitiguaras,
w conduzidos por Jacaúva, irmão de Poti. Nesse combate Iracema pede a Martim que não mate Caubi
� (o Senhor dos Caminhos), seu irmão, e por duas vezes salva a vida do estrangeiro. Os Tabajaras
o debandam, deixando Iracema triste e envergonhada.
u Os três chegam então ao território Pitiguara, de onde viajam para visitar Batuirité, avô de Poti,
<(
a: o qual denomina Martim Gavião Branco, fazendo, antes de morrer, a profecia da destruição de
:J seu povo pelos brancos.
�
a:
Iracema engravida e, acompanhada de Poti, pinta o corpo de Martim, que passa a ser Coatiabo,
o guerreiro pintado, que às vezes tem momentos de grande melancolia, com saudades da pátria.
w Um mensageiro Pitiguara leva a Poti um recado de Jacaúna contando sobre a aliança entre os
1-
:J franceses e os Tabajaras, Poti e Martim partem para a guerra; Iracema fica no litoral, em compa
...... nhia de uma seta envolvida em um galho de Maracujá (a lembrança). Triste, recebe a visita de
34 Jandaia, antiga companheira, e torna-se mecejana (a abandonada), como ela.
Martim e Poti voltam vitoriosos; Martim sente maiores saudades da pátria; Iracema profetiza
a própria morte, que ocorrerá em seguida ao nascimento do filho.
Novo combate, nova vitória dos Pitiguaras; nasce Moacir, o filho do sofrimento de Iracema,
que recebe a visita de Caubi, seu irmão, quando o leite já está secando e as forças acabando.
Mal chega Martim, morre Iracema, após entregar-lhe o filho e pedir que fosse sepultada sob
o coqueiro que o esposo amava. Nesse lugar nasce o Ceará, colonizado por Martim, logo que volta
de Portugal, para onde levara o filho, mas onde não conseguira permanecer, como o narrador suge
re no primeiro capítulo do livro.
Pelo enredo podemos concluir que Iracema é um livro no qual há um argumento histórico,
a colonização do Ceará, com personagens também históricos: Martim Soares Moreno, o coloniza
dor português que se aliou aos índios Pitiguaras, através de Poti, Antônio Felipe Camarão.
Vê-se também pela forma como o enredo se desenvolve que José de Alencar romantizou, atra
vés do amor entre Iracema e Martim, o processo de colonização do Brasil. Decorre de tal roman
tização a suposta conciliação entre o branco e o índio, que de um lado escamoteia a violência, a
dominação, que caracterizam o processo de colonização, e de outro inaugura o mito heróico da
pátria, de natureza indianista - uma mentirada gentil que traduz a vontade profunda dos brasi
leiros de perpetuar a convenção que dá a um país de mestiços o álibi duma raça heróica, e a uma
nação de história curta, a profundidade do tempo lendário. (Antônio Cândido - Formação da
literatura brasileira)
Personagens
Principais
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna,
e mais longos que seu talhe de palmeira, é um mito fundador da nacionalidade. Caracterizada por
elementos da "cor local" (principalmente nos traços fisicos) e por elementos do romantismo euro
peu (principalmente nos traços psicológicos), Iracema concebe o primeiro brasileiro, Moacir, e da
terra sob a qual foi sepultada nasce o primeiro povoamento do Brasil, o Ceará. Portadora do
"segredo da Jurema", o segredo da fertilidade da tribo Tabaj ara, Iracema, virgem vestal, sacerdo
tisa da tribo, trai o compromisso com o seu povo para se entregar ao homem branco. Neste ato de
amor e de dor, essencialmente romântico por privilegiar o sentimento em detrimento de oposições
sociais, funda a nacionalidade.
Martim, personagem histórico e literário, o viajante estrangeiro que tem nas faces o branco
das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas, representa o coloniza
dor, o europeu civilizado cujo amor por Iracema, cuja amizade por Poti, o índio Pitiguara, trans
formam em conciliação entre o branco e o índio o processo de colonização do Brasil.
Moacir, o filho do sofrimento de Iracema, a criança levada à Europa e trazida de volta ao
Ceará, representa, no livro, o primeiro brasileiro.
Secundários
De um lado temos Poti, personagem histórico e literário, o índio Pitiguara cuj a aliança com
os portugueses aparece no romance como amizade por Martim; Araquém, o feiticeiro da tribo
Tabaj ara, pai de Iracema; e Caubi, o "senhor dos caminhos", irmão de Iracema. E, de outro,
lrapuã, "Mel Redondo", chefe dos Tabajaras, único personagem que se opõe a Martim, mais
como um homem que ama e não é correspondido do que como um índio que pretende defender
seu povo da invasão branca; e Batuirité, o avô de Poti, cuja sabedoria, proporcionada pela
velhice, o faz denominar Martim Gavião Branco e assim profetizar a destruição dos índios a:
pelos brancos. t)z
UJ
Linguagem ....I
�
A presença de belas imagens visuais, a sonoridade, o ritmo, a cadência poética de Iracema w
o
aliam-se ao levantamento de termos, costumes e rituais indígenas como principais características ·w
da linguagem do livro. (/)
o
Um livro no qual salientamos o caráter épico e idealizador dos elementos da "cor local" - ....,
fundamentalmente o índio e a natureza - que aparecem por uma superposição de imagens e de -
comparações originais, adequadas à sugestão do nascimento de um novo mundo.
35
Para este novo mundo, Alencar queria criar uma nova língua, uma língua que repercutisse com
inteireza a sua dimensão heróica, lendária, poeticamente expressa em Iracema.
Em Formação da literatura brasileira, Antônio Cândido diz que Iracema, em 1 865, brota, no
limite da poesia, como o exemplar mais perfeito da prosa poética na ficção romântica - reali
zando o ideal tão acariciado de integrar a expressão literária numa ordem mais plena de evoca
ção plástica e musical. Música figurativa, ao gosto do tempo e do meio.
Vamos ler a caracterização inicial de Iracema, observando a beleza e a fecundidade das com
parações com que a heroína e a natureza se fundem, numa redescoberta patriótica e ufanista das
"lindas várzeas" de onde brotou o romance:
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graú
na e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como
o seu hálito peifumado.
Mais rápida que a ema selvap,em, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde
campeava sua guerreira tribo, da grande naçào tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, ali
sava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas (. . .).
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol nào
deslumbra; sua vista perturba-se.
Diante dela e toda a contemplá-la, está o guerreiro estranho, se é guerreiro e nào algum
mau espírito da .floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar, nos olhos o
azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
(cap. II)
O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará, levando
no frágil barco o filho e o cão fiel. A jandaia não quis deixar a terra onde repousava sua
amiga e senhora.
O primeiro cearense, ainda no berço, imigrava da terra da pátria. Seria a predestinaçào
de uma raça? (. . .)
Afinal volta Martim de novo às terras que foram de sua felicidade e sào agora de amar
ga saudade. Quando seu pé sentiu o calor das brancas areias, derramou-se em seu coraçào
um fogo que o requeimou; era o Jogo das recordações que ardiam como a centelha sob as cin
zas (. . .).
Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar com ele a
mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua religião, de negras vestes, para plantar
a cruz na terra selva.gem.
Poti foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho; nào sofria ele que nada mais
o separasse de seu irmão branco. Deviam ter ambos um só Deus, como tinham um só coração.
Ele recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei, a quem ia servir,
e sobre os dous o seu, na língua dos novos irmãos. Sua fama cresceu e ainda hoje é o orgulho
da terra, onde ele primeiro viu a luz.
A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará, medrou. Germinou
<(
o a palavra do Deus verdadeiro na terra selvagem; e o bronze sagrado ressoou nos vales onde
rugia o maracá (. . . )
�
z
.
Tempo depois, quando veio Albuquerque, o grande chefe dos guerreiros brancos, Martim
w e Camarào partiram para as margens do Mearim a castigar o feroz tupinambá e expulsar o
�
8
branco tapuia.
Era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas ondefora tão feliz, e as
<( verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara (.. .) .
a::
::J Tudo passa sobre a terra.
�
a::
w
1- (cap. XXXI II)
_J
......
36
Eis aí uma reflexão sob a forma de pergunta
11
( U N I CA M P) O relacionamento amoroso de
I racema e Martim pode significar mais do que que o autor, , faz a si mesmo -
aparenta, pode ser visto do início ao fim como com toda propriedade, e por motivos que pode
representatitivo do processo de conquista e de mos interpretar como pessoais -, ao finalizar o
colonização do Brasil. Como o romance I racema romance ______
O relacionamento amoroso de I racema e Martim feita por comparação com elementos da nature
11 pode ser interpretado, simbolicamente, como
metáfora, como alegoria representativa do cruza
za. Embora psicologicamente Iracema se asse
melhe às heroínas românticas européias, consti
mento das raças índigena e branca, ou seja, o tui nesta fusão de elementos da cor local com
nativo e o europeu colonizador. O desenvolvi elementos do romantismo europeu um mito fun
mento do enredo - ruptura de Iracema com o dador da pátria.
compromisso de virgem vestal e com sua tribo,
sua entrega amorosa, seu abandono e sua morte, b) Comentário - Neste trecho do final de
deixando o filho Moacir, aquele que nasce da dor I racema, podemos observar o tom místico e
- todos esses elementos da trama narrativa patriótico presente em todo o romance.
confirmam a possibilidade de leitura simbólica. A
própria construção da personagem I racema é
feita a partir da natureza, de comparaçôes com
elementos da fauna e da flora americana, em
geral brasileira e do Ceará, especificamente.
SENHORA
Romance urbano que tematiza as contradições entre o sentimento
e a necessidade de "subir na vida", um dos famosos ''perfis de
mulher" de José de Alencar.
Narrador
Narrado em terceira pessoa, por um narrador-observador, o romance Senhora tem na obser
vação de detalhes exteriores, que iluminam a personalidade e os lances da vida, uma de suas for
tes características.
Com esse recurso, podemos perceber a preocupação com a psicologia dos personagens e tam a:
<1:
bém a mistura do romanesco e da realidade, que fazem desta obra um exemplo de literatura u
romântica na qual se procura imprimir certos traços realistas. z
w
Estes traços, assim como o estilo mais denso de alguns romances urbanos de José de Alencar, _J
<1:
especialmente Lucíola e Senhora, revelam a influência de Balzac, o mestre do realismo francês. O w
conflito psicológico em Senhora coloca uma questão central para o romance realista, contextuali o
'W
zado no mundo capitalista e burguês: a questão do dinheiro, da necessidade de "subir na vida", em (/)
oposição ao ideal da realização amorosa. o
-,
Vamos iniciar a nossa análise, observando como se coloca o narrador perante a história e ten -
tando compreender o seu ponto de vista diante dos personagens que a vivem.
31
A torrente de luz precipitando-se pela aberta das janelas, encheu o aposento; e a moça
adiantou-se até a sacada, para banhar-se nessas cascatas de sol, que lhe borbotavam sobre a
régia fronte, coroada do diadema de cabelos castanhos, e desdobravam-se pelas formosas
espáduas como uma túnica de ouro.
Embebia-se de luz. Quem a visse nesse momento assim resplandescente poderia acreditar
que sob as pregas do roupão de cambraia estava a ondular voluptuosamente a ninfa das cha
mas, a lasciva salamandra, em que se transformara de chofre a fada encantada? (. . .)
A ferocidade da mulher enganada, sanha da leoa ferida, nunca teve para exprimi-la,
nem mesmo na exímia cantora, uma voz mais bramida, um gesto mais sublime. As notas que
desataram-se dos lábios de Aurélia, possantes de vigor e harmonia, deixavam após si um frê
mito, que lembrava o silvo da smpente, sobretudo quando este braço mimoso e torneado dis
tendia-se de repente com um movimento hirto para vibrar o supremo desprezo.
(cap . 2)
Observe que Aurélia Camargo, a protagonista do romance, é idealizada como uma rainha,
como uma heroína romântica, pelo narrador. De "régia fronte, coroada do diadema de cabelos
castanhos, de formosas espáduas", esta personagem no entanto é ao mesmo tempo ''fada encan
tada" e "ninfa das chamas, lasciva salamandra".
Ao estereótipo da "mulher-anjo" romântica o narrador acrescenta, assim, um elemento demo
níaco, elemento que, em vez de explicitar, deixa sugerido, "sob as pregas do roupão de cambraia
que a luz do sol não ilumina", e também "sob a voz bramida, o gesto sublime, escondendo um frê
mito que lembrava o silvo da serpente" ou quando "o braço mimoso e torneado faz um movimen
to hirto para vibrar o supremo desprezo. . ."
Alencar tem um golpe de vista infalível para o deta Nesta cena o narrador descreve o comodismo, a indo
lhe expressivo, desde o charuto aceso e a mão que lência, a postura aristocrática de Fernando Seixas - que
apanha a cauda, até os frutos de um prato ou os contracena no romance com Aurélia Camargo. Também
gestos comerciais do corretor (. . ).
. através de detalhes, de elementos exteriores vai se configu
Mas é na atenção com a moda feminina que pode
rando o perfil deste personagem, modesto na condição,
mos avaliar todo o senso de detalhes exteriores, que mas fino no trato, nos gostos, nos hábitos.
<( Concluindo os comentários que fizemos sobre o narra
o iluminam a personalidade ou os lances da vida.
� Balzac foi porventura o inventor da moda no roman dor, cabe acrescentar, à sua posição de observador, o fato
ce, o primeiro a perceber a sua íntima associação de recair sobre Aurélia Camargo - a heroína do romance
z
w com o próprio ritmo da vida social e a caracteriza - o seu ponto de vista.
� ção psicológica. Alencar não denota a influência Moça pobre e trocada por Fernandes Seixas, a quem
o marcada do mestre francês apenas na criação de
u amava, por um dote de trinta contos de réis, esta persona
mulheres cujo porte espiritual domina os homens, ou
<( gem recebe uma herança e com ela decide comprar o
0:: na mistura do romanesco e da realidade. Denota-a
homem que lhe destruiu o coração a fim de, maltratando-o,
::> principalmente na intuição da vestimenta feminina,
�
provar-lhe a abjeção de sua conduta.
que aborda como elemento de revelação da vida
interior (. . . ). Em Senhora, um peignoir de veludo
0:: Aurélia Camargo centraliza, assim, a temática e a cons
w trução do romance, no qual tanto os conflitos vividos pelos
� verde marca o âmbito máximo da tensão entre os
_J dois esposos. personagens quanto a preocupação de desnudar-lhes o
....... caráter constituem, como dissemos, elementos realistas
Antônio Cândido, Formação da literatura brasileira
que serão combinados com elementos românticos.
38
Enredo
Os títulos das quatro partes em que se divide o romance - O preço, Quitação, Posse e O res
gate - anunciam a problemática da contradição entre o dinheiro e o amor desenvolvida no enre
do, na medida em que constituem palavras relacionadas às fases de uma transação comercial.
Personagens
Principais
A necessidade de obter dinheiro para "subir na vida" afasta Fernando Seixas - de origem
modesta, mas elegante e ambicioso - da mulher amada, levando-o a realizar um "casamento de
conveniência", espécie de transação mercantil institucionalizada pela sociedade capitalista.
Secundários
Tempo;espaço
Em termos de tempo, podemos destacar o contraponto, no livro, entre o passado, que corres
ponde à segunda parte - Quitação - e o presente, ao qual estão mais diretamente ligadas as ou
tras três partes.
O passado se associa com a "cor local", na medida em que nele predomina a pobreza de
Aurélia e com ela o provincianismo, o acanhamento, a "brutalidade"singela, simples, a que se refe
re Roberto Schwarz.
Quanto ao presente, podemos relacioná-lo com o lado cosmopolita, refinado, europeu, do
romance, cujo cenário (espaço) é a sociedade fluminense, em várias passagens criticada, pelo nar c:
rador, por sua submissão aos costumes estrangeiros. <(
Mas já habituada à inversão que têm sofrido nossos costumes com a invasão dos modos u
estrangeiros, assentou a viúva que o último chique de Paris devia ser esse de trocarem as noi z
UJ
vas o papel, ficando ao fraque o feminino, enquanto a saia alardeava o desplante do leão. _J
(cap. 3) <(
UJ
Aconteceu uma noite cair a conversa em assunto de literatura nacional. Fato raro. Entre Cl
nós há moda para tudo nos salões; menos para as letras pátrias, que ficam à porta ou quan •UJ
do muito vão para o fumatório servir de tema a dois ou três incorrigíveis. (/)
o
(cap. 2) ..,
-
41
Linguagem
Segundo Antônio Cândido, em Formação da literatura brasileira,
a força de Alencarfica provada pelo fato de ainda estimarmos os seus livros apesar do açu
caramento, que acabou por enfastiar, ao fim de duas gerações.
Os seus diálogos, na maioria excelentes quanto à distribuição e à dosagem, denotam
igual tendência para idealizar. Talvez correspondam ao esforço de dar estilo e tom a uma
sociedade de hábitos pouco refinados, composta na maioria de comerciantes enriquecidos
ou provincianos em pleno ajustamento (. . .). A verdade e a eloqüência de muitos de seus per
sonagens provêm menos da capacidade de análise, que de certos toques estilísticos de força
divinatória, que se revelam por meio da roupa, da voz, dos detalhes do ambiente.
�
z
Lemos voltara satisfeito com o resultado da sua exploração.
w Era o velho um espírito otimista, mas à sua maneira; confiava no instinto infalível de que
a natureza dotou o bípede socialpara farejar seu interesse e descobri-lo (. . .).
:2:
·o Tinha pois como impossível que um moço, em seu peifeito juízo, dirigido por conselho de
u homem experiente, repelisse a fortuna que de repente lhe entrava pela porta da casa, e casa
<( da rua do Hospício a sessenta mil-réis mensais, para tomá-lo pelo braço e conduzi-lo de car
a: ruagem, recostado em fofas almofadas, a um palácio nas Laranjeiras.
;::) Sabia Lemos que os escritores, para arranjarem lances dramáticos e quadros de romance,
�
a:
caluniavam a espécie humana atribuindo-lhe estultices desse jaez; mas na vida real não
w admitia a possibilidade de semelhantes fatos.
1- - Não se recusam cem contos de réis, pensava ele, sem uma razão sólida, uma razão prá
:::i tica. O Seixas não a tem; pois não considero como tal essas palavras ocas de tráfico e merca
....... do, que não passam de um disparate. Queria que me dissessem os senhores moralistas o que é
42 esta vida senão uma quitanda? Desde que nasce um pobre diabo até que o leva a breca não
jaz outra coisa senão comprar e vender? Para nascer é preciso dinheiro, epara morrer ainda
mais dinheiro. Os ricos alugam os seus capitais; os pobres alugam-se a si, enquanto não se
vendem de uma vez, salvo o direito do estelionato (. . .).
- Aurélia/ Que significa isto?
- Representamos uma comédia, na qual ambos desempenhamos o nosso papel com perí-
cia consumada. Podemos ter este orgulho, que os melhores atores não nos excederiam. Mas é
tempo de pôr termo a esta cruel mistificação, com que nos estamos escarnecendo mutuamen
te, senhor. Entretemo-nos na realidade por mais triste que ela seja; e resigne-se cada um ao
que é, eu, uma mulher traída; o senhor, um homem vendido .
- Vendido/ Exclamou Seixas ferido dentro d'alma.
- Vendido sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica, sou milionária; precisava de
um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei
o. Custou-me cem contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda
a minha riqueza por este momento.
(O preço - cap. 8)
vRESPOSTAS POSSívEIS
11 Esta parte do romance é um flash-back, um
retorno no tempo que conta a história da
desencadeando o happy end tipicamente
romântico de Senhora.
pobreza de Aurélia Camargo, protagonista de
Senhora, explicitando ao leitor os motivos de A relação é inicialmente irônica. Embora tives
sua c rueldade com o marido comprado, se sido pobre e desamparada até os dezoito
Fernando Seixas. Nesta parte, ficamos anos, Aurélia Camargo repentinamente enri
sabendo que Fernando, embora a masse quece, herdando a fortuna de seu avô. Torna
A u rélia, a troca por um dote de trinta contos se, assim, uma senhora, cercada de adorado
de réis; podemos entender, assim, porque res a quem despreza, como despreza o
esta personagem o compra, vingando-se de dinheiro que possu i . Em relação a Fernando
sua fraqueza de caráter. Seixas, o marido que compra com um dote de
cem contos de réis, Aurélia Camargo é senho
No final da primeira parte do romance ra primeiro por execer o seu domínio sobre
Senhora, de José de Alencar, o jovem elegan ele, por humilhá-lo, e, num sentido mais pro
te e mundano Fernando Seixas, que aceita um fundo, por conseguir transformar-lhe o cará
casamento de conveniência com Au rélia ter, depurar-lhe a personalidade, até ele se
Camargo, é desacatado por ela em plena noite tornar digno de seu amor.
nupcial, quando Aurélia o chama de homem
vendido e moralmente o destrói. No final do Lemos é um velho capitalista, interesseiro e
romance, Fernando devolve a Aurélia o mon obcecado pelo dinheiro. Tutor e tio de Aurélia
tante do dote que recebera e negocia, assim, Camargo, Lemos revela um aspecto funda
seu resgate. Desta forma, fica provada a alte mental do romance: a contradição entre a
ração em seu caráter pelo amor e pela dor "amoralidade" de sua conduta, extensiva à de
com que Aurélia o submetera às piores h umi outros personagens secundários, e a " morali
lhações, fazendo dele um homem digno e dade" da conduta dos personagens principais.
honrado. Ocorre, então, um happy end: o Tai contradição pode ser interpretada como
marido comprado e a mulher traída, que se uma conseqüência do "ajuste" entre a " cor
despedem, são substituídos por dois cora loca l " , manifestada nos personagens secundá
ções apaixonados, que definitiva e mutua rios, e o "modelo europeu " , percebido nos per
mente se entregam. sonagens principais. Enquanto os primeiros
vivem um universo doméstico, sem julgamen
a) Os personagens-protagonistas de ambas as tos nem condenações, os segundos vivem a
cenas são A u rélia Cama rgo e Fernando degradação humana causada pelo di nheiro,
Seixas, os quais possuem uma relação de que transforma as pessoas e seus sentimentos
amor e ódio, ao longo do romance. Embora em mercadorias.
sejam apaixonados um pelo outro, a persona
lidade interesseira de Seixas e o desejo de
vingança que provoca e desencadeia em
Aurélia, fazem com que ambos os sentimen Tal expressão significa que uma m u lher,
<(
o tos se alternem e se confundam reciproca Aurélia Camargo, certa ocasião surgiu na
�
z
mente, no enredo de Senhora.
b) Na primeira vez em que se encontraram na
corte carioca.
•
câmara n upcial, Aurélia, que havia oferecido " céu fluminense" ; "ascensão "; "cetro " ; " rai-
UJ um dote a ltíssimo para casar-se com nha " ; " deusa " ; "musa"; " ídolo" e " rica" são
� Fernando, humilha-o e passa a tratá-lo como elementos que se relacionam com o tipo de
o propriedade sua, isto é, como um " marido sociedade e com o tema central do livro. Trata
u
comprado ", denominando-se uma "mulher se da classe alta, dos freqüentadores da corte ao
<( traída " . Isto pelo fato de ele ter provado pre longo do Segundo Reinado; a temática da obra,
c:
ferir o dinheiro à realização afetiva, ao des na medida em que discute a contradição entre
:::::>
�c:
denhá-la por uma mulher rica, quando ela valores espirituais e valores materiais, o amor e
ainda era pobre. o dinheiro, relaciona-se diretamente com esta
c) A cena descrita no trecho citado é o contrá sociedade, cujo materialismo, cuja necessidade
UJ rio da outra, referida pelo narrador, já que de ostentação e cujo culto do " parecer", em
!:::
...J agora Fernando se regenera, devolve.o dinhei detrimento do ser, são abordados.
-
ro do dote a Aurélia, e esta se atira aos seus
pés, confessando-lhe que sempre o amara e
44
A
� �
Narrador
Publicado em forma de folhetim (entre 1 852 e 1 853), no suplemento "A Pacotilha",
do Correio Mercantil, Memórias de um Sargento de Milícias contrasta com os roman
ces românticos de sua época, primeiro por ter como protagonista um herói-malandro,
ou um anti-herói, conforme a opinião de alguns críticos. Segundo, pelo seu caráter
documental da sociedade carioca do tempo do rei D. João VI: os costumes, os tipos
sociais, os comportamentos típicos etc. Terceiro, pelo tom de crônica que dá leveza e
aproxima a fala a linguagem com que foi escrito. Além destes, há outros fatores que
diferenciam a obra do contexto romântico em que surgiu, conforme você irá perceben
do ao longo da análise.
Apesar do título sugerir um narrador-personagem, Memórias de um Sargento de
Milicias caracteriza-se por um narrador em 3a. pessoa, que conta a história sem dela
participar, e na posição de observador dos acontecimentos. O cinismo bem-humorado,
as sistemáticas interferências nas situações sempre divertidas que relata, as ironias e as
brincadeiras envolvendo costumes e personagens da época constituem alguns traços
marcantes deste narrador, cujo juízo crítico a respeito do que vai documentando algu
mas vezes revela-se de forma claramente debochada, como no exemplo a seguir:
Observe como a execração do personagem por um lado refere-se a certos costumes M exceção em nosso Romantismo.
da sociedade carioca, através dele ridicularizados, e por outro suaviza-se pelo tom bem nasceu no Rio de Janeiro. em 17 de
humorado, sempre presente no texto. O mesmo procedimento pode ser percebido na novembro de 1 831 , e morreu, em 28 de
novembro de 1 861 , no naufrágio do vapor <(
caracterização fortemente anti-romântica de outra personagem:
"Hermes". nas imediações de Macaé, nas o
Era a sobrinha de Dona Maria muito desenvolvida, porém, que tendo perdido costas da província do Rio de Janeiro. Filho w
de portugueses de origem humilde, estudou �
as graças de menina, ainda não tinha adquirido a beleza de moça; era alta,
no Rio de Janeiro. Depois, teve uma _J
magra, pálida; andava com o queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras sem <(
pre baixas e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos, o cabelo cortado, passagem pela Academia de Belas-Artes,
w
dava-lhe apenas até opescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça sem formando-se em Medicina em 1 855. o
pre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e os olhos como uma viseira. Trabalhou no Correio Mercantil, elaborando o o
suplemento que editou, em folhetins
z
Além de romper com a tradicional postura idealizadora do narrador romântico, em semanais. as Memórias de um Sargento de •O
relação aos indivíduos e também à terra, o narrador das Memórias ora suprime etapas Milícias, sob o pseudônimo de "Um 1-
narrativas, ora transita da 3a. para a l a. pessoa, assumindo uma cumplicidade com o lei Brasileiro". Tinha, então, vinte e dois anos z
tor, cujo caráter metalingüístico o faz anunciar procedimentos modernistas, também incompletos. Publicou o primeiro volume do <(
_J
percebidos nas conversas com o leitor e nos comentários jocosos a que nos referimos. livro em 1 854, e o segundo em 1 855. Foi w
Veja uma passagem que ilustra vários momentos do livro: Passemos por alto sobre os administrador da Tipografia Nacional, oficial o
anos que decorreram desde o nascimento e o batizado do nosso memorando e vamos da Secretaria de Negócios da Fazenda e z
encontrá-lo já na idade de sete anos. Em conclusão, podemos afirmar que o processo diretor da Imperial Academia de Músicos e <(
Ópera Nacional �
narrativo aqui analisado mostra aspectos desta obra que a caracterizam como atípica o -
para a época em que foi criada.
' 45
Enredo
Leonardo, o protagonista, nasceu no tempo do Rei... (início do século XIX), sendo filho de
"uma pisadela e um beliscão" entre um meirinho (oficial de justiça de nível inferior), Leonardo
Pataca, e uma saloia (camponesa), Maria da Hortaliça, quando vinham num navio, de Portugal
para cá.
Desde a folia do batizado do "heroi", começa a rondá-lo a polícia, representada pelo major
Vidigal, o representante da lei e da ordem ... Os pais se separam, devido à infidelidade da saloia,
que foge no mesmo navio onde conhecera Leonardo Pataca, amasiada com o capitão.
O menino, aos sete anos, após levar um pontapé de Leonardo Pataca, do qual j amais se
esqueceria, é abandonado à própria sorte. Seu padrinho e vizinho, o barbeiro, resolve criá-lo.
Devota-lhe muito amor e todos os cuidados, incluindo a preocupação com o futuro de Leonardo,
que quer transformado num padre. Ensina-lhe com muito custo as primeiras letras, depois o
matricula na escola, onde suas estrepolias aumentam até abandoná-la para ser coroinha.
Por uma série de desordens praticadas na igreja, o padre o enxota, e ele cresce neste ritmo,
sem se encaixar em nenhum dos projetos que o padrinho idealizara, o que aumenta a ojeriza que
a vizinha e madrinha de Leonardo tem por ele. Enfim, Leonardo não se interessa pelos estudos
nem pelo trabalho, preferindo desde cedo toda a sorte de malandragens, que vão caracterizar o
seu comportamento ao longo do livro.
Quando adulto, Luisinha, a moça estranha descrita na seção narrador, toma-se a predileta de
Leonardo, o seu primeiro amor. Entretanto, intrigas e fofocas contra o rapaz provocam o casa
mento da menina com José Manuel, o mau-caráter a que se refere outro trecho colocado no item
anterior, um renomado caça-dotes. Com a morte do padrinho, e o dote que este deixa ao afilha
do, Leonardo é convidado a morar com o pai, Leonardo Pataca, que após uma segunda desilusão
amorosa, agora com uma cigana, passa a viver com Chiquinha, a filha da comadre.
Reúnem-se na mesma casa a comadre, que se toma protetora de Leonardo, o filho, o pai e a
nova companheira, que se desentende com Leonardo, levando-a a ser expulso com outro ponta
pé de Leonardo Pataca.
Então Leonardo reencontra o antigo parceiro de traquinagens da infância, Tomás da Sé, mora
uns tempos com a família do amigo, e apaixona-se por Vidinha, uma mulata de vinte anos, com
quem namora por algum tempo. Nesta fase é preso por vadiagem pelo major Vidigal, conseguin
do fugir antes de chegar à cadeia. Arruma emprego na despensa real, para se livrar da persegui
ção do major, envergonhado por tê-lo deixado fugir e sedento de vingar-se. Deixa rápido o tra
balho, novamente metido em encrencas: tenta conquistar a mulher de um colega.
O major o agarra e o transforma em soldado para não perdê-lo de vista. Ao ajudar o bichei
ro Teotônio a fugir, numa batida em que deveria prendê-lo, Leonardo de novo se toma prisionei
ro. Devido a um pedido da comadre, uma ex-amante do major, Maria Regalada, intercede pelo
rapaz, que enfim é solto e promovido ao cargo de Sargento de Milícias . . . Ocorre então o desfe
cho folhetinesco da história, com o reencontro e o casamento de Leonardo e Luisinha, já que esta
enviuvou e o "herói" se encontra empregado e de posse da herança deixada pelo barbeiro, na qual
Leonardo Pataca não mexera...
Personagens
Algumas das principais características dos personagens da obra são o fato de que eles não
pertencem à chamada "classe dominante", não constituem seres europeizados e não possuem os
traços maniqueístas (heróis x vilões) dos personagens românticos. Trata-se, ao contrário, de tipos
<( sociais populares, pouco "literários" para a época, como passaremos a verificar:
o Leonardo, o protagonista, desordeiro desde a infância, é um desocupado, que vive às custas
�
z
dos outros, embora tenha gestos generosos (por exemplo o episódio em que salva o bicheiro de
ir para a prisão) e mereça a simpatia de outros personagens, como o padrinho e a comadre, que
UJ
acabam arranjando a vida do rapaz. Este personagem é o típico malandro amoral, que para alguns
�
·o críticos encama a figura do anti-herói.
u Leonardo Pataca, o pai de Leonardinho, é um meirinho sentimental, enquanto sua mãe,
<( Maria da Hortaliça, é uma saloia infiel. Já o padrinho, o barbeiro, por um lado dedica aten
a: ção e dinheiro a Leonardo, e por outro suas posses são provenientes de um roubo que praticara
::J
t;(a: na juventude, quando fingiu-se de médico perante a tripulação de um navio e assistiu a morte do
capitão, ficando com o dinheiro que este lhe pedira para entregar à filha.
UJ O major Vidigal, exemplo maior da lei e da ordem, temido por todos, exerce as funções de
1-
.....J
policial e juiz, fazendo cumprir e exe<;utando as sentenças por conta própria. Único personagem
-
realmente histórico destas Memórias, sua austeridade se desfaz no final, quando cede ao pedido
da ex-amante, Maria Regalada, e transforma o prisioneiro em oficial das Milícias.
46
Dona Maria, uma velhota rica e bondosa, caracteriza-se por sua paixão pelas demandas judi
Luisinha, primeiro amor e futura esposa de Leonardo, opõe-se às
ciais, enquanto sua afilhada,
características da heroína romântica: é feia, pálida e desaj eitada, andando sempre calada, com o
queixo enterrado no peito. Já Vidinha, a cantora de modinhas que inicia todas as frases com um
"Qual!" típico da linguagem popular e falada, é aquela que inspira nova e rápida paixão no herói,
após o casamento de Luisinha com José Manuel, o caça-dotes espertalhão e mentiroso.
Há aindaa vizinha do barbeiro, que detesta o Leonardo filho, a cigana que desperta paixões
em Leonardo pai e no mestre de rezas, que o menino rediculariza em uma das maiores estrepo
lias da infância e vários outros personagens típicos, caricaturas que, sem maior profundidade psi
cológica, equivalem-se pela representação social a que pertencem: um estrato médio da socieda
de do período, até então ignorado pela literatura.
Linguagem
Com linguagem despojada e precisa, em estilo coloquial, direto, Manuel Antônio de Almeida,
em Memórias de um Sargento de Milícias, recria o cotidiano carioca do início de século XIX. As
marcas de oralidade, de coloquialidade, o constante tom de crônica de jornal, e a mistura de leve
C3
w
za e realismo aproximam a linguagem desta obra da literatura modernista, para a qual se deveria :E
escrever como se fala. "Com a contribuição milionária de todos os erros", diria Oswald de ....J
Andrade mais tarde.
<(
w
Em conclusão, nesta obra não aparecem vestígios do idealismo algumas vezes açucarado da Q
literatura romântica, estilo predominante na época em que foi escrita. o
Em vez disso, a constante combinação de ironia e espírito crítico, de bom humor e registro joco z
so de costumes populares, incluindo o linguajar, contribuem fortemente com a inserção destas <O
Memórias no quadro mais amplo da construção de uma literatura brasileira moderna, como obser 1-
z
varemos lendo os trechos finais da história: <(
....J
Depois disto entraram todos em conferência. O major desta vez achou o pedido muito justo, w
em conseqüência do fim que se tinha em vista. Com a sua influência tudo alcançou; e em o
uma semana entregou ao Leonardo dois papéis: u m era a sua baixa da tropa de linha; outro, z
<(
sua nomeação de Sargento de Milícias.
:E
Além disso recebeu o Leonardo ao mesmo tempo carta de seu pai, na qual o chamava para -
fazer-lhe entrega do que lhe deixara seu padrinho, religiosamente intacto. •
41
Passado o tempo indispensáuel do luto, o Leonardo, em uniforme de Sargento de Milícias,
receheu-se na Sé com Lztisinha, assistindo a cerimônia a família em peso.
Daqui em dian te aparece o reverso da medalha. Se[!,u iu-se a morte de Dona Maria, a do
Leonardo Pataca, e uma m�jzada de acolltecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazen
do aqui o pontojznal.
Neste exemplo o narrador se refere ao leitor, faz uso da metalinguagem (''fazendo aqui o ponto
final"), ou sej a, alude ao ato de estar compondo ao longo da própria composição, e parece se auto
ironizar, ironizando o happy end romântico, pois logo após os dados do desfecho feliz noticia duas
mortes e afirma que vai poupar o leitor de inevitáveis acontecimentos tristes. Estes são procedi
mentos que anunciam a estética modernista em nosso país.
v QUESTÕES
11 ( U N I CAMP) apenas porém reconheceu as três, correu apressado
à camarinha vizinha, e envergou o mais depressa
Manuel Antônio deseja contar de que maneira
se vivia no Rio popularesco de D. João VI; as que pôde a farda; como o tempo urgia, e era uma
famílias mal organizadas, os vadios, as procis incivilidade deixar sós as senhoras, não completou
sões, as festas e as danças, a polícia; o meca o uniforme, e voltou de novo à sala defarda, calças
nismo dos empen hos, influências, compadrios, de enfiar, tamancos, e um lenço de A /cabaça sobre
punições que determinavam certa forma de o ombro, segundo seu uso. A comadre, ao vê-lo
consciência e se man ifestavam por certos tipos assim, apesar da aflição em que se achava, mal pôde
de comportamento ( . . . ). O livro aparece. pois, conter uma risada que lhe veio aos lábios.
como seqüência de situações. (Antônio Cândi
Compare essa imagem do major com a que ele
do, Formação da Literatura Brasileira).
tem nos capítulos anteriores. Diga se a nova
a) Quem dá unidade, na obra, a essa seqüência imagem do major antecipa o resultado da visita
de episódios aparentemente soltos? das três mulheres e explique por quê.
b) Cite um desses relatos e mostre como ele se Que tipo de herói é apresentado em Memórias
articula com a linha mestra do romance. de um Sargento de Milícias e quais as conse
qüências de sua criação para o romance brasi
( U N ICAMP) No capítulo XXI I I das Memórias de leiro?
um Sargento de Milícias, o major Vidigal é visita
do por três mul heres que intercedem por E m termos de linguagem, por que a obra Me
Leonardo. mórias de um Sargen to de Milícias afasta-se do
v RESPOSTAS POSSÍVEIS
11 a) Os relatos aparentemente soltos da obra mado e trapalhão, deixa entrever que sua seve
adquirem coesão através do foco na rrativo, ridade pode ser vencida, ou melhor, que u m
isto é, da postura irônica e crítica com que o pedido d e senhoras ( n o caso a libertação de
narrador-observador vai tecendo as situa Leonardo) tem grandes chances de ser atendi
ções, e também através dos personagens do (o que de fato acontece).
que nelas atuam, especialmente o protago
nista - Leonardo - cuja trajetória constitui Em vez do tradicional herói romântico, temos
um dos " ganchos" que nos permitem reco um anti-herói em Memórias de um Sargento de
nhecer a presença do en redo e de persona Milícias. Filho de uma " pisadela" e de um " be
gens: elementos fundamentais que caracteri liscão " , vadio, malandro, Leonardo no entanto é
<( zam o romance. simpático ao leitor. Por isso, não deixa de ser
Cl b) A prisão de Leonardo por vadiagem, realizada um herói, embora "pelo avesso " , isto é, através
�
z
pelo major Vidigal, e posteriormente a sua li
bertação e inclusão nos quadros da própria
de defeitos e não de virtudes, o que prenuncia
Macunaíma, o " herói sem nenhum caráter" do
LU polícia - situações deflagradas graças à Modernismo brasileiro e assim enfatiza em nos
� intervenção de Maria Regalada, que fora sa literatura uma tendência de discussão de ele
·o amante do major e o faz mudar de atitude mentos típicos da realidade brasileira, presente
u com tamanha radicalidade - constituem em a utores como Mário de Andrade, o criador
<( relatos que se articulam com a linha mestra de Macunaíma e Oswald de Andrade.
o: do romance. Isto pelo fato de tais relatos evi
::> denciarem a lguns de seus elementos mais O tom jornalístico, coloquial, a presença da ora
�
o:
importantes: a malandragem bem-sucedida,
a oscilação entre os u niversos da ordem e da
lidade, as conversas com o leitor, a metalingua
gem e a ironia leve, constituem alguns elemen
LU desordem, o amoralismo dos personagens, tos da linguagem de Memórias de um Sargento
1- dentre outros. de Milícias que distanciam a obra do contexto
.....J romântico em que foi escrita, aproximando-a da
n o major sempre cultivou uma imagem austera,
-
literatura modernista.
(iil de severidade e disciplina. Ao aparecer desarru-
48
LITERATURA COMENTADA
Emília Amaral, Ricardo Silva Leite
O ROMANTISMO NO BRASIL
Na primeira metade do século XIX, a literatura européia foi acometida por uma onda de hiper
sensibilidade, tão ampla e intensa que logo foi considerada o mal do século. A poesia passou a
exprimir uma crise moral que alternava momentos de angústia e depressão com ironia e cinismo.
Amor e morte, idealização e erotismo, confissão e fantasia, tudo se misturava em delírios escapis
tas. O pessimismo e a melancolia tornaram-se a última moda e sinal identificador do gênio artís
tico. O modelo e grande ídolo dessa tendência foi Byron, poeta inglês morto aos 36 anos.
A voga byroniana chegou ao Brasil nos anos 50, dominando, por duas décadas, a segunda
geração de nossos poetas românticos. A poesia nacionalista-indianista e a recatada sensualidade
de Gonçalves Dias deram lugar ao pessimismo adolescente de Casimira de Abreu, ao "mundo
visionário" e ao erotismo mórbido de Álvà'res de Azevedo. A Lira dos Vinte Anos (poesia) e Noite
na Taverna (contos) são as principais rtlâlizações de nosso Ultra-Romantismo.
ALVARES DE AZEVEDO
...
- Foi poeta - sonhou - e amou na vida. -
UM POETA ADOLESCENTE
Se o Romantismo, como disse alguém, foi um movimento de adolescência, ninguém
o representou mais tipicamente no Brasil. O adolescente é muitas vezes um ser dividi
do, não raro ambíguo, ameaçado de dilaceramento, como ele, em cuja personalidade
literária se misturam a ternura casimiriana e nítidos traços de perversidade; desejo de
afirmar e submisso temor de menino amedrontado; rebeldia dos sentidos, que leva
duma parte à extrema idealização da mulher e, de outra, à lubricidade que a degrada
(Antônio Cândido, Formação da Literatura Brasileira).
O adolescente de que fala Antônio Cândido não teve tempo de amadurecer. Se
tivesse vivido mais tempo, sua poesia talvez tivesse ultrapassado a moda byroniana,
caminhando em direção ao Realismo. Mas, mesmo com a limitação da idade, produziu
a melhor obra de sua geração: um livro de poesia lírica (Lira dos Vinte Anos), dois em
prosa (Noite na Taverna e Livro de Fra Gondicário) e uma obra dramática (Macário).
Neste poema encontramos os principais temas da primeira parte da Lira dos Vinte Anos, assim
como as principais qualidades e defeitos do autor.
Observe-se primeiramente a influência de Byron, explicitada na citação em epígrafe ("É inú
til lutar - deixe-me morrer jovem"). Ao mesmo tempo, o caráter confessional do poema transpa
rece na referência à idade do autor ("vinte anos"). O tom de frustração e desalento perpassa todo
o texto: o adolescente envelhecido numa experiência amorosa intensa, mas feita apenas de sonhos.
A mulher, idealizada como uma "virgem doce", "divina", de "alma inocentinha", é única saudade
que resta à alma esgotada por uma intensa experiência amorosa ("quantas eu amei!"). Essa nostal
gia da inocência perdida é tema freqüente no Ultra-Romantismo. Ao sujeito lírico resta apenas a
esperança de reencontrá-la na morte.
A T. .•
Este é um dos mais conhecidos poemas da segunda parte da Lira dos Vinte Anos. Já no título
o autor satiriza o tom patético da poesia ultra-romântica. Os três primeiros versos poderiam figu
rar na primeira parte do livro: a emoção do encontro, a participação da natureza, através do eco, a
idealização da mulher - "fada aérea e pura". Reserva-se a surpresa para o quarto verso e, a par
tir daí, o poema torna-se uma paródia reveladora dos exageros emocionais da poesia byroniana
(melhor diríamos, azevediana).
A sátira se faz através das antíteses (fada/lavadeira; roncava/maviosa e pura; versos/rol de
roupa suja) que operam inversões entre o sublime e o grotesco, o alto e o baixo, a fantasia e a rea
lidade, o poético e o prosaico. Tais inversões põem em ridículo não a realidade prosaica da lava
deira idealizada, mas a própria atitude evasiva do Ultra-Romantismo diante da vida.
Não nos enganemos, portanto: o riso não diminue o pessimismo do poeta na segunda parte da
obra. Pelo contrário. Na primeira parte, dois valores se afirmam, absolutos, acima do bem e do
mal, como únicas condições necessárias à felicidade: o amor e a poesia. Na segunda parte, esses
<(
Q mesmos valores são motivos de zombaria.
�
z
Adeus, Meus Sonhos
w
Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro! Que me resta, meu Deus? morra comigo
�
o Não levo da existência uma saudade! A estrela de meus cândidos amores,
u E tanta vida que meu peito enchia já que não levo no meu peito morto
<( Morreu na minha triste mocidade! Um punhado sequer de murchas flores!
a:
::::> Misérrimo/ votei meus pobres dias
�
À sina doida de um amor sem fruto,
E minh 'a lma na treva agora dorme
a:
w Como um olhar que a morte envolve em luto.
1-
....J Neste poema da terceira parte, o tema central é a morte. O pessimismo agora, quando o poeta
-
está diante da morte, toma-se pungente. Nada o prende à vida, dela não leva qualquer saudade. Por
52
isso, em sua despedida, dirige-se aos sonhos, que, embora irreais, foram a única sustentação de sua
existência.
Estes versos ecoam outros, da primeira parte, em que assim fala à virgem de seus sonhos:
Só tu -mocidade sonhadora Se viveu, foi por til e de esperança
Do pálido poetadesteflores. . . De na vida gozar de teus amores.
53
CASTRO ALVES
Quebre-se o cetro do Papa,
Faça-se dele- uma crnz!
A púrpura siroa ao povo
P'ra cobrir os ombros nus.
Por definição, Castro Alves era um romântico, mas contrariamente a seus prede
cessores que se deixaram absorver pelo passado ou simplesmente por suas nostálgicas
sugestões, voltava-se para o futuro com todo o fervor de um coração juvenil. Não tanto
por ser ainda um adolescente, mas porque havia algo místico nessa atitude, com a qual
Victor Hugo mereceu o título de Poeta- Vidente, por suas messiâncias pregações em
prol do Progresso e da Civilização.
(Eugênio Gomes)
Antologia Comentada
Neste trecho do prefácio de Espumas Flutuantes, podemos observar que o poeta, ao afirmar
serem os seus cantos filhos da musa - este sopro do alto; e do coração - este pélago da alma,
identifica-se como romântico ao leitor, uma vez que lança mão de elementos característicos desse
estilo literário, que são recorrentes ao longo de toda a obra: o fazer poético como resultado de
inspiração, que vem de um "sopro do alto", isto é, de uma musa transcendente, e também dos
sentimentos. c )
UJ
Tais sentimentos - tanto os que ele vivenda quanto os que desej a despertar - são poetica
mente expressos por meio da natureza, grande aliada dos poetas românticos, como se percebe na
�
<(
evocação do mar, com suas vagas e espumas, do céu, do vento etc . o
A associação metafórica entre os cantos e as espumas flutuantes do mar permite-nos reconhe a:
1-
cer, nesta imagem que foi utilizada como título da obra, a presença da temática da transitorieda CJ)
de da vida, da brevidade da existência, fazendo com que nos lembremos tratar-se de trabalho <(
u
-
organizado para publicação apenas um ano antes da morte do poeta.
55
O livro e a América (fragmento)
Filhos do sec'lo das luzes! Da Alemanha o velho obreiro
Filhos da Grande nação! A ave da imprensa gerou. . .
Quando ante Deus vos mostrardes, O Genovês salta os mares .. .
Tereis um livro na mão: Busca um ninho entre os palmares
O livro - esse audaz guerreiro E a pátria da imprensa achou. . .
Que conquista o mundo inteiro
Sem nunca ter Waterloo. . . Por isso na impaciência
Eólo de pensamentos, Desta sede de saber,
Que abrira a gruta dos ventos Como as aves do deserto
Donde a Igualdade voou!. . . As almas buscam beber. . .
Oh! Bendito o que semeia
Por uma fatalidade Livros. . . livros ã mão cheia . . .
Dessas que descem de além, E manda o povo pensar!
O sec 'lo, que viu Colombo, O livro caindo n 'alma
Viu Guttenberg também. É germe - que jaz a palma,
Quando no tosco estaleiro É chuva - quejaz o mar.
Repare que neste fragmento de O Livro e a América, Castro Alves tematiza, em tom épico,
grandiloqüente, condoreiro, o livro e a imprensa, vendo-os como símbolos da cultura e do saber,
no Novo Mundo, a América. Repare também que esta apologia dos valores do "futuro" e da civi
lização utiliza-se das figuras de linguagem típicas do romantismo social do poeta e de sua gera
ção para expressar-se artisticamente.
Na 1 a. estrofe, por exemplo, o poeta saúda o povo americano e o século em que foi descober
to (passagem do século XV ao XVI, quando surge a ideologia burguesa, de caráter iluminista), por
meio de apóstrofe: Filhos do sec 'lo das luzesf/Filhos da Grande nação.
Na 2a. estrofe, a descoberta da América e do surgimento do livro e da imprensa são evoca
dos, através de metáforas que romanticamente os idealiza, associando-os com elementos da natu
reza, como a ave, o ninho, a chuva etc., e heroicizando Colombo e Gutenberg, os responsáveis
pelo nascimento do futuro, o futuro das luzes do saber e da razão, aclamado pelo poeta.
Na terceira estrofe, a metáfora e o paralelismo, sempre em tom hiperbólico, auxiliam na
construção de versos lapidares, em termos de força expressiva e poder de síntese, como O livro
caindo n 'alma/É germe - que faz a palma/É chuva - que faz o mar.
O ''adeus" de Teresa
A primeira vez que eu fitei Teresa, Passaram tempos. . . sec 'los de delírio
Como as plantas que arrasta a correnteza, Prazeres divinais. . . Gozos do Empíreo. . .
A valsa nos levou nos giros seus. . . . . . Mas u m dia volvi aos lares meus.
E amamos juntos. . . E depois na sala Partindo eu disse - "Voltarei!. . . descansa!. . . "
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co 'a fala . . . Ela, chorando mais que uma criança,
Neste fragmento de Mocidade e Morte há uma estrutura textual em forma de diálogo entre a
vida e a morte. Por meio dela, percebemos que o suj eito lírico, apesar de seu desejo imenso de
viver, amar e dar asas a seu talento, sente-se condenado a morrer.
O verso Eu sinto em mim o borbulhar do gênio, um verso antológico de Castro Alves, exem
plifica a visão romântica da poesia como resultado de inspiração e de talento, mais que de quais
quer outros fatores. Observe na 23• estrofe o exotismo e o sensualismo do poeta: no seio da mu
lher há tanto aroma (.. .) - Arabe errante vou dormir à tarde.
Hebréia (fragmento)
Fios campi et lilium convallium. Tu és, ófilha de Israel formosa . . .
(Cântico dos Cânticos) Tu és, ó linda, sedutora Hebréia . . .
Pálida rosa da infeliz judéia
Pomba d'esp 'rança sobre um mar d'escolhos! Sem ter o oroalho, que do céu deriva!
Lírio do vale oriental, brilhante!
Estrela vésper do pastor errante!
Ramo de murta a recender cheirosa!. . .
Observe que os sinais exclamativos que finalizam os versos da estrofe ampliam o caráter meta
fórico de cada um deles, aumentando-lhes a expressividade e tomando-os mais emotivos e passio
nais. Além disso, as metáforas referentes à Hebréia constróem, por meio de elementos pertencentes
à natureza - pomba, lírio, estrela e ramo de murta - uma imagem idealizada da mulher, reforçada
com apóstrofe: Tu és ", á filha . . . ; Tu és, ó linda... ; e antonomásia: filha de Israelformosa.
\7ouàt6JJ
11
(FUVEST) Quando eu morrer. . . não lancem meu cadáver
Oh! Eu quero viver, beber perfumes No fosso de um sombrio cemitério . . .
Na flor silvestre, que embalsama os ares; Odeio o mausoléu que espera o morto
Ver minh 'alma adejar pelo infinito, Como o viajante desse hotel funéreo.
Qual branca vela n 'amplidão dos mares. Corre nas veias negras desse mármore
No seio da mulher há tanto aroma. . . Não sei que sangue vil de messalina,
Nos seus be1jos de fogo h á tanta vida. . . A cova, num bocejo indiferente,
- Á rabe errante, vou dormir à tarde Abre ao primeiro a boca libertina.
À sombra fresca da palmeira erguida.
Nesta estrofe de Mocidade e Morte, de Castro Alves, reúnem a) Que relação temática há entre o fragmento e a poesia pro
se, como numa espécie de súmula, vários dos temas e aspectos duzida pela segunda geração do romantismo brasileiro,
mais característicos de sua poesia. São eles: especialmente a de Á lvares de Azevedo?
b) Que comparação demonstra o horror que o sujeito poético
a) identificação com a natureza, condoreirismo, erotismo parece ter da morte?
franco, exotismo.
b) aspiração de amor e morte, titanismo, sensualismo, exo Podemos afirmar que ao longo do poema:
tismo. a) a temática da morte é desenvolvida de modo idêntico ao
c) sensualismo, aspiração de absoluto, nacionalismo, orien tratamento dado a ela pelos poetas ultra-românticos;
talismo.
d) person ificação da natureza, hipérboles, sensualismo vela b) há semelhanças e diferenças no modo como Castro Alves
do, exotismo. desenvolve o tema da morte, se o compararmos com o
e) aspiração de amor e morte, condoreirismo, hipérboles, tratamento dado ao mesmo assunto pelos ultra-românti
orientalismo. cos;
O PRIMO BASILIO
Romance de tese, de inquérito da vida contemporânea
portuguesa, que ataca a família da média burguesia lisboeta,
enfocando os fatores do adultério feminino.
Narrador
Exemplo I
Havia doze dias que Jorge tinha partido e, apesar do calor e da poeira, Luísa
vestia-se para ir à casa de Leopoldina. SeJorge soubesse, não havia de gostar, não/
Mas estava tão farta de estar só, aborrecia-se tanto/ De manhã, ainda tinha os
arranjos, a costura, a toillete, algum romance.. Mas de tarde!
À hora em queJorge costumava voltar do ministério, a solidão parecia alargar
se em torno dela. Fazia-lhe tantafalta o seu toque de campainha, os seus passos no
corredor!. . .
Ao crepúsculo, ao ver cair o dia, entristecia-se sem razão, caía numa vaga
sentimentalidade: (. . .) O que pensava em tolices então!
(cap. 3)
Comentário
Observe neste exemplo a presença do discurso indireto livre, que mistura a voz do
narrador ao fluxo de consciência da personagem, Luísa, cujo sentimentalismo, cujo
temperamento romântico e cuja vida ociosa a tornam frágil, desamparada na ausência
do marido e, assim, suscetível à sedução do primo Basílio, por quem acaba sendo leva
da ao adultério ...
Exemplo 2
Servia havia vinte anos. Como ela dizia, mudava de amos, mas não m udava
de sorte. Vinte anos a dormir em cacifros, a levantar-se de madrugada, a comer os
restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más palavras das
senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando vinha a doença, a esfalfar
se quando voltava a saúde!. . . Era demais! Tinha agora dias em que só de ver o
balde das águas sujas e o ferro de engomar se lhe embrulhava o estômago. Nunca
se acostumara a servir (. ..) .
As antipatias que a cercavam faziam-na assanhada, como um circulo de
espingardas enraivece um lobo. Fez-se má; beliscava crianças até lhes enodar
a pele; e se lhe ralhavam, a sua cólera rompia em rajadas. Começou a ser des
pedida. Num só ano esteve em três casas. Saía com escândalo, aos gritos, atirando
osé Maria de Eça de Queirós nasceu
J em 1 845, em Póvoa de Varzim, e
as portas, deixando as amas todas pálidas, todas nervosas . . . (. . .)
A necessidade de se constranger trouxe-lhe o hábito de odiar: odiou sobretudo
morreu em Paris, em 1 900. Formado em as patroas, com um ódio irracional e pueril.
Direito pela Universidade de Coimbra, o
(cap .3)
escritor ingressou na carreira diplomática,
tendo participado ativamente do processo de Comentário
criação do Realismo português.
Outra caracterização de personagem, em que também aparece o discurso indireto
A sua obra l iterária pode ser dividida entre
livre. Trata-se de Juliana, a empregada de Luísa e Jorge, que representa no romance o
três fases. À primeira pertencem O mistério
da estrada de Sintra (realizado em parceria
ódio, a ferocidade dos pobres em relação aos "ricos", além do caráter irracional, anima
com Ramalho Ortigão) e Prosas bárbaras. lesco, de sua busca de ascensão social, vistos na perspectiva do estilo naturalista.
Influenciado pelo poeta Victor Hugo, Eça
Exemplo 3
realiza nesta fase uma literatura impregnada
de romantismo social. a) - O casamento é uma fórmula administrativa, que há-de um dia acabar. . . -
A partir de O crime do padre Amaro, inicia-se De resto, segundo ele, a fêmea era um ente subalterno; o homem deveria aproxi
sua segunda fase, que conta com O primo mar-se dela em certas épocas do ano (como Jazem os animais, que compreen
Basílio e Os Maias, os três "romances de dem estas coisas melhor que nós), fecundá-las, e afastar-se com tédio.
<( tese" do escritor. isto é, romances que se b) -Essasfêmeas (. . .) são nossas mães, nossas carinhosas irmãs, a esposa do Chefe
o utilizaram das doutrinas positivistas da do Estado, as damas ilustres da nobreza . . .
�
z
segunda metade do século XIX para
acrescentar ao Realismo o Naturalismo: a
(cap. 11)
w explicação cientificista dos problemas Temos, aqui, duas opiniões ilustradoras dos "tipos" da média burguesia lisboeta,
Personagens
À primeira vista, Luísa, Basílio e Jorge, as "peças" do questionamento do casamento através
do adultério, constituem os principais personagens da história. Vamos analisá-los:
Como já dissemos, Luísa tem uma fragilidade, uma incapacidade de ação e de reflexão, que
são atribuídas ao longo da obra, de forma naturalista, à vida ociosa que leva e ao seu temperamen
to romântico, alimentado pelas leituras de Walter Scott e de outros livros "açucarados", propícios
ao "devaneio", como A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas.
Percebemos, assim, nesta personagem, por um lado a critica realista à sentimentalidade
romântica e, por outro, um "esvaziamento psicológico", de que resulta um caráter móbil, incons
ciente, cheio de deixar-se ir (cap. 9) que nos parece decorrente da exacerbação da tendência natu
ralista, muito forte nesta fase literária do autor.
Quanto a Basílio, trata-se mais de um tipo que de uma pessoa, como ocorre com Luísa e com
a maioria dos personagens do livro: a sua irresponsabilidade, o seu cinismo, a sua "mania de gran
deza", de superioridade, que o fazem ter uma relação de uso tanto com as mulheres quanto com
o país, configuram o ')anota", o "almofadinha". Um maroto, sem paixão nem a justificação da sua
tirania - que o que pretende é a vaidadezinha de uma aventura, e o amor grátis, de acordo com
as palavras do autor, escritas a Teófilo Braga.
Jorge, por sua vez, caracteriza-se por uma personalidade pacata, mansa, dividida entre o que
realmente sente e o papel social de homem casado, de engenheiro, que justificam sua primeira opi
nião - truculenta e radical - sobre o adultério, sua aversão à vida desregrada de Leopoldina, sua
cobrança à esposa em relação à carta de Basílio, mesmo ela estando fraca, doente. E, por outro
lado, sua mudança de opinião, seu perdão a Luísa, o desespero com que tenta impedi-Ia de partir...
A tais personagens típicos da média burguesia lisboeta, acrescentam-se alguns persona
gens secundários, que o próprio Eça caracteriza em sua carta a Teófilo Braga; "o formalismo ofi
cial" do Conselheiro Acácio, que representa o convencionalismo bem sucedido, a vacuidade pre
miada, na medida em que além do título de Conselheiro, obtido por carta régia, é nomeado
Cavaleiro da Ordem de São Tiago, pelas obras sem utilidade, supérfluas, que escreve, como a
Descrição das principais cidades do reino e seus estabelecimentos; a "beatice parva, de tempera
mento irritado", de Dona Felicidade; a "literaturinha acéfala" de Ernestinho; o "descontentamen
to azedo" de Julião Zuzarte; e, "às vezes quando calha, um pobre bom rapaz", Sebastião, que
tinha a força de um ginasta e a resignação de um mártir (cap. 4).
Outra dimensão de O Primo Basílio é a da presença das classes socialmente inferiores, em sua
devastadora "aversão" aos mais abastados. O "patriota" Paula, que detesta os padres e as mulheres,
a carvoeira "imunda, disforme de obesidade e prenhez", a estanqueira "de carão viúvo", que exem
plificam a vizinhança de Luísa e Basílio, somam-se à tia Vitória, ex-inculcadeira (alcoviteira) e pro
fissional na "arte" de orientar os criados contra os patrões. Ela emprestava dinheiro aos desempre
gados, guardava as economias dos poupados, fazia escrever (..) as correspondências amorosas a
<( domésticas que não tinham ido à escola, vendia vestidos de segunda mão, alugava casacas, aconse
Cl lhava colocações, recebia confidências, dirigia intrigas, entendia de partos ( cap. 6).
�z Estes personagens, também secundários como os freqüentadores da casa de Luísa e Jorge, e
também apresentados com fortes traços naturalistas, encontram sua expressão máxima em Juliana,
w
� "o caráter mais completo e verdadeiro do livro", na opinião de Machado de Assis, e cujo destaque
o no desenvolvimento do enredo faz com que a consideremos do grupo dos personagens principais.
u Vamos, então, sintetizar seus traços mais marcantes. Servindo há vinte anos sem nunca se
<( acostumar a servir, Juliana Couceiro Tavira foi passando do azedume, do "gênio embezerrado",
a:.
:::> às desconfianças, à maldade, ao ódio "irracional e pueril" às patroas, a quem rogava pragas, can
�
a:.
tarolava a Carta Adorada, se havia motivo para tristeza, chamava de "récua de cabras".
Invejosa, curiosa, gulosa, encontrou na casa de Luísa o segredo de que tanto precisava. De
w posse dele, desforrou na "piorrinha" (apelido que lhe pôs) toda a mágoa acumulada ao longo dos
1-
::J anos, inclusive a de sua virgindade, que comparava com a "devassidão" da "bêbada".
- Esta personagem tinha, ainda, o vício de "trazer o pé sempre catita", enfeitando-o com boti
nas e expondo-o no Passeio Público. Constitui, enfim, um exemplo de utilização do estilo natura-
62
lista que nos parece bem sucedido no livro, em oposição à inconsciência de Luísa, que analisamos,
e de todos os outros personagens, excessivamente caricatos, modelares, exemplificações sumá
rias das teses da literatura naturalista.
Linguagem
Sem dúvida, podemos considerar Eça de Queirós um dos grandes renovadores da prosa literá
ria portuguesa. Vejamos alguns motivos:
11 (FUVEST) .
a) No início do romance O primo Basílio, Jorge
(UNICAMP) No romance O primo Basílio, de
Eça de Queirós, Ernestinho é autor de uma pe
assume uma posição bem definida em rela- ça teatral que tematiza o adultério. Aconselhado
ção à mulher adúltera. Qual era essa posi por seu empresário, decide que, na peça, o ma
ção e que incidente o levou a externá-la? rido traído deve perdoar a esposa no final. No
b) A posição final de Jorge diante da traição da trecho abaixo, Ernestinho revela sua decisão a
esposa é coerente com seu pronunciamen Luísa:
to inicial ? Comente o comportamento de - Ah! esquecia-me de dizer-lhe, sabe que lhe
Jorge. perdoei?
Luiza abriu muito os olhos.
ft (FUVEST) Segundo a opinião de Machado de - À condessa, à heroína! Exclamou Ernestinho.
(il Assis, em O primo Basílio apenas uma persona - Ah!
gem está bem realizada e convence o leitor pela - Sim, o marido perdoa-lhe, obtém uma embai-
estatura moral e pelo desempenho dentro do xada, e vão viver no estrangeiro. É mais natural!
romance. A primeira fala de Ernestinho pode ser interpre
c) Dê o nome e a profissão dessa personagem. tada de duas maneiras.
d) Aduza elementos que justifiquem sua res a) Quais são as duas interpretações?
posta. b) Qual das duas foi a interpretação de Luísa?
c) Que fatos da vida de Luísa motivam essa
interpretação da fala de Ernestinho?
A RELIQUIA
Narrador
Tanto quanto O Mandarim (de 1 880), A Relíquia (de 1 887) constitui uma obra "fantasista",
de Eça de Queirós. Por meio de ambas, o escritor tentou libertar-se da "impertinente tirania da rea
lidade", provocada pela feitura de seus romances de tese: O Primo Basílio, O Crime do Padre
Amaro e Os Maias.
Em A Relíquia, Teodorico Raposo, Raposão para os seus amigos de Coimbra, conta a histó
ria de sua vida. Escrita em primeira pessoa, a obra tematiza a hipocrisia, representada pelo próprio
personagem-narrador, que no entanto possui certas ambigüidades, certas inverossimilhanças, de
importância fundamental para a compreensão de sua estrutura narrativa.
Vej amos o parágrafo inicial do prefácio de Teodorico, para começarmos a nossa análise:
Decidi compor nos vagares desse Verão, na minha quinta do Mosteiro (antigo solar dos
Condes de Lindoso), as memórias da minha vida - que neste século, tão consumido pelas
incertezas da Inteligência e tão angustiado pelos tormentos do Dinheiro, encerra, penso eu, e
pensa meu cunhado Crispim, uma lição lúcida e forte.
Observe que essa passagem sugere ser o narrador-personagem um homem de grande capaci
dade reflexiva e crítica, inclusive em relação ao dinheiro, o que não se éompatibiliza com o
Teodorico ganancioso e sem escrúpulos que vamos conhecendo, ao longo da leitura.
Conheça a opinião de João Gaspar Simões a respeito do assunto:
"Teodorico, neto do padre Rufino da Conceição, que em Coimbra ganhara o sobrenome de
Raposão e se embebedara nas Camelas, homem de gostos soezes e letras grossas, para quem os
maiores prazeres da vida eram o fado e uma Adélia que o enganava com um tal Adelino, nunca
poderia ser o autor de um prefácio tão flamej ante de estilo e de cultura".
Enredo
"Eu por mim, salvo o respeito que lhe é devido, não admiro pessoalmente A Relíquia. A estru
tura e composição do livreco são muito defeituosas. Aquele mundo antigo está ali como um tram
bolho, e só é antigo por fora, nas exterioridades, nas vestes e nos edificios. É no fundo uma pará
frase tímida do Evangelho de São João, com cenários e fatos de teatro: e falta-lhe ser atravessado
por um sopro naturalista de ironia forte que daria unidade a todo o livro. D. Raposo, em lugar de
se deixar assombrar pela solenidade histórica, devia rir-se dos Judeus e troçar dos Rabis. O único C/)
valor do livreco está no realismo fantasista da Farsa". (Eça de Queirós) -o
a:
De acordo com próprio Eça de Queirós, autor de A Relíquia, o livro tem defeitos em sua estru w
::::)
tura e em sua composição, além de funcionar como um "trambolho" a presença, nele, do mundo d
antigo. Vej amos tais pontos à luz de seu enredo. w
Órfão de pai e de mãe aos seis anos, Teodorico, o narrador-personagem de A Relíquia, é reco o
lhido pela titi, a Sra. D. Patrocínio, sua tia materna, que representa a personificação da riqueza
beata e tirânica, intocada por quaisquer prazeres da vida.
().
w
Embora houvesse no menino que Teodorico foi um natural maravilhamento respeitoso pelas -
coisas do céu, ao longo do romance esse maravilhamento não se concretiza, uma vez que ele perde
65
a fé e passa a se mostrar de uma carolice abjeta e caricata, a fim de tomar-se herdeiro da titi.
Incorpora, assim, o comportamento hipócrita - tema central de A Relíquia - ao mesmo tempo
em que, por outro lado, possui misticismos e ingenuidades que se chocam com o "defeito" huma
no que personifica.
Teodorico vai para Coimbra cursar Direito. Volta Bacharel, mas sem nenhuma consistência
intelectual, uma vez que mais vadiou do que estudou. Passa a dedicar-se, então, ao projeto de fin
gir-se de casto e beato, ao mesmo tempo em que arranja uma amante, Adélia, com quem passa as
horas de desforra...
Certa ocasião, ele surpreende Adélia com outro. Ela facilmente o convence de que o outro é
apenas seu primo; embora se julgue um espertalhaço, Teodorico deixa-se persuadir pela amante,
até que a empregada lhe conta toda a verdade, o que o deixa extremamente deprimido.
Em seguida, a titi resolve enviar Teodorico à Terra Santa - Egito, Palestina, Jerusalém etc.
- de onde espera que o enteado lhe traga indulgências e relíquias que garantirão a ela lugar na
corte celeste.
Acompanhado por Topsius, um alemão erudito, doutor pela Universidade de Bona e membro
do Instituto Imperial de Escavações Históricas, que se toma seu companheiro ao longo da viagem,
Teodorico em seu decorrer encontra uns galhos penugentos e espinhosos, que decide transformar
na relíquia que daria à titi.
Topsius converte os galhos numa coroa de espinhos, que o protagonista afirmaria à madrasta
ter pertencido a Jesus e portanto poder devolver-lhe a saúde e a juventude. Entretanto, ao mesmo
tempo em que o alegra, essa idéia deixa-o inseguro e inquieto:
Mas de repente assaltou-me uma áspera inquietação . . . E se realmente uma virtude trans
cendente circulasse nas fibras daquele tronco? E se a titi começasse a melhorar do fígado, a
reverdecer, mal eu instalasse no seu oratório, entre lumes e flores, um daqueles galhos eriça
dos de espinhos? Ó misérrimo logro! Era eu pois que lhe levava nesciamente o princípio m ira
culoso da saúde, e a tornava rija, indestrutível, ininterrável, com os contos de G. Godinho fir
mes na mão avara.
supor - mas que perdera a almejada herança por não ter sido suficientemente esperto para
salvar sua própria hipocrisia, no momento exato em que ela foi desmascarada. . .
A conclusão de que ela, a hipocrisia, é de fato quem vence n a vida, pode assim ser considera
da um defeito de composição do romance, tendo em vista a tese contra a hipocrisia nele presente.
Tal defeito, no entanto, tanto quanto a mencionada duplicidade de caráter de Teodorico, vis
tos de outra ótica, podem ser interpretados como ambigüidades, como aspectos irônicos e pluris
significativos de A Relíquia.
Personagens
Principais:
Teodorico Raposo e titi, a Sra. D. Patrocínio, sua tia.
Teodorico:
Embora ao longo da obra Teodorico se finja de carola para agradar à tia e assim tomar-se seu
herdeiro, encarnando de forma caricata o tema da hipocrisia, ele tem duas faces, ou seja, é um per
sonagem ambíguo: de um lado, apresenta a face beata, de adorador de Jesus, e, de outro, a face
devassa, de mulherengo e oportunista. Além disso, oscila entre o cinismo e a ingenuidade, seja em
relação à religião, às mulheres ou ao próprio comportamento hipócrita que ao mesmo tempo repre
senta e critica.
Exemplo
À noite, depois do chá, refugiava-me no oratório, como numa fonaleza de santidade,
embebia os meus olhos no corpo de ouro deJesus, pregado na sua linda cruz de pau preto. Mas
então o brilho fulvo do metal precioso ia, pouco a pouco, embaciando, tomava uma alva cor
de carne, quente e tenra; a magreza de um Messias triste, mostrando os ossos, arredondava
se em formas divinamente cheias e belas; por entre a coroa de espinhos, desenrolavam-se las
civos anéis de cabelos crespos e negros; no peito, sobre as duas chagas, levantavam-se, rijos,
direitos, dois esplêndidos seios de mulher, com u m botâozinho de rosa na ponta; - e era ela,
a minha Adélia, que assim estava no alto da luz, nua, soberba, risonha, vitoriosa, profanan
do o altar, com os braços abenos para mim!
Exemplo
Numa sala forrada de papel escuro, encontramos uma senhora muito alta, muito seca,
vestida de preto, com um grilhão de ouro no peito; num lenço roxo, amarrado no queixo, caía
lhe num bico lúgubre sobre a testa; e nofundo dessa sombra, negrejavam dois óculos defuma
dos. Por trás dela, na parede, uma imagem de Nossa Senhora das Dores olhava para mim, com
o peito trespassado de espadas. (. . .) Donzela, e velha, e ressequida como um galho de sarmen
to; não tendo jamais provado na lívida pele senão os bigodes do comendador G. Godinho,
paternais e grisalhos; resmungando incessantemente, diante de Cristo nu, essas jaculatórias
das 'Horas da Piedade ', soluçantes do amor divino - entranhara-se, pouco a pouco, dum
(J)
rancor invejoso e amargo a todas asformas e a todas as graças do amor humano.
·O
Secundários a:
UJ
Adélia, a mulher que foi a paixão de Teodorico em Arco de Sant' Ana e Mary ou Mari :::::>
coquinhas, a mulher que foi a paixão de Teodorico no Egito, são tão caricatas e planas quanto os d
demais personagens; representam uma imagem estereotipada da !emea: ambas iludem e traem o nar UJ
o
rador-personagem, por meio de um comportamento ao mesmo tempo devasso e oportunista. Mary
ou Maricoquinhas, além disso, involuntariamente participou da deserção de Teodorico pela titi,
quando esta viu a sua camisola, no lugar da relíquia da Terra Santa que lhe prometera o sobrinho.
5.
UJ
Em contraposição a ambas, há a religiosa que apanhou o embrulho com a camisola de Mary, o -
qual ia se perdendo, e o devolveu a Teodorico. Ele a reencontra após despedir-se de Topsius, quan-
61
do está voltando para casa. Seu bote cruza com o da religiosa, e ele chega a desejá-la, ironicamente
imaginando que só um coração fechado para as paixões terrenas como o dela lhe poderia ser fiel.
Topsius, o alemão que era doutor pela Universidade de Bona e membro do Instituto Imperial
de Escavações Históricas, e que se tomou o companheiro de Teodorico ao longo da viagem à Terra
Santa, representa de forma caricata a erudição, a busca do conhecimento intelectual e o desliga
mento das coisas terrenas, sendo por essa razão o extremo oposto do narrador-personagem.
Alpedrinhas é o patricio de Teodorico, que também fora amante de Maricoquinhas, e que, como
o narrador-personagem, caracteriza-se pela fraqueza com relação às seduções do sexo oposto.
Padre Negrão, como outros clérigos e religiosos presentes em A Relíquia, incorpora a hipo
crisia, neste caso da Igreja, irônica e severamente criticada na obra, que neste sentido se aproxima
de O Crime do Padre Amaro: romance de tese do escritor, de extração naturalista, contra a devas
sidão, a mediocridade e o oportunismo dos padres.
Exemplo
Por que corria tanto mel no seu falar? Por que se privilegiava ele no sofá, roçando a sór
dida joelheira da calça pelos castos cetins da titi? (. . .) Execrei-o/ E, remexendo a água com
açúcar, decidi em meu espírito que, mal eu começasse a governarferrenhamente o campo de
Sant'Ana - não mais a cabidela da minha famt1ia escorregaria na goela aduladora daque
le servo de Deus.
Linguagem
"Sutil, se não díficil de precisar, a distinção entre a farsa e a comédia. De um modo genérico,
pode-se afirmar que a diferença é de grau: a farsa consistiria no exagero do cômico, graças ao
emprego de processos grosseiros, como os absurdos, as incongruências, os equívocos, os enganos,
a caricatura, o humor primário, as situações ridículas. A farsa dependeria mais da ação que do diá
logo, mais dos processos externos que do conflito dramático". (Massaud Moisés - Dicionário de
Termos Literários)
"Etimologicamente, alegoria consiste num discurso que faz entender outro, numa linguagem
que oculta outra. ( ... ) Podemos considerar alegoria toda concretização, por meio de imagens, figu
ras ou pessoas, de idéias, qualidades ou entidades abstratas. O aspecto material funcionaria como
disfarce, dissimulação, ou revestimento, do aspecto moral, ideal ou ficcional". (Massaud Moisés
- Dicionário de Termos Literários)
A Relíquia pode ser considerada um romance com traços farsescos, alegóricos e "fantasistas".
Para realizá-lo, Eça de Queirós utilizou-se do fantástico e da farsa, por meio dos quais denun
ciou a sociedade, num de seus males típicos: a hipocrisia, alegoricamente encarnada por Teodorico
Raposo, o narrador-personagem.
Assim, em sua intenção moralizadora a obra não se afasta das propostas realistas do escritor,
embora sej a mais fantasista que seus "romances de tese" propriamente ditos. Podemos afirmar
então que se aproxima do Realismo-Naturalismo, do ponto de vista temático, porque nela há uma
tese a ser defendida - a tese da inutilidade da hipocrisia.
Por outro lado, distancia-se do Realismo-Naturalismo do ponto de vista formal, por lançar
mão da farsa e da imaginação fantástica, deixando em segundo plano a racionalidade e o cientifi
cismo do referido estilo.
Vejamos, por meio de exemplos comentados, a presença dos elementos essenciais com que se
articula a linguagem de A Relíquia: a imaginação fantástica, entrelaçada com o humor crítico
<( e farsesco.
o
Exemplo 1
�
z Os teus tédios de deserdado - proclama ele - não provêm dessa mudança de espinhos
w em rendas: - mas de viveres duas vidas, uma verdadeira e de iniqüidade, outra fingida e de
� santidade. Desde que contraditoriamente eras do lado direito o devoto Raposo e do lado
o esquerdo o obsceno Raposo - não poderias seguir muito tempo, junto da titi, mostrando só o
u lado vestido de casimiras de domingo, onde resplandescia a virtude; um dia fatalmente che
<( garia em que ela, espantada, visse o lado despido e natural onde negrejavam as máculas do
a:
:::::> vício . . . E aí está porque eu aludo, Teodorico, ã inutilidade da hipocrisia.
�
a: Comentário
w Nesta passagem, a voz que fala a Teodorico é a de sua própria consciência.
1-
:J Essa voz se dirige ao narrador-personagem porque ele, ao saber que fora deserdado pela tia,
- olha para um crucifixo e diz palavras de revolta e de indignação a Cristo, que, se autonomeando
sua própria consciência, responde-lhe as acusações.
68
O caráter fantástico nela presente está no fato de Cristo falar ao narrador-personagem, como se
fosse sua consciência, por meio de um recurso inverossímil, isto é, a animização da imagem do cru
cifixo. Outro episódio fantástico já referido é o fato de Teodorico ter visto o julgamento e a cruci
ficação de Jesus Cristo, voltando imaginariamente no tempo através de uma mudança de espaço.
Exemplo 2
Sim! quando em vez duma Coroa de Martírio aparecera sobre o altar da titi uma camisa
de pecado, eu deveria ter gritado, com segurança: 'Eis aí a Relíquia! Quis Jazer a surpresa . . .
Não é a Coroa de Espinhos. É melhor! É a camisa de Santa Maria Madalena!. . . Deu-ma ela no
Deserto. '
E logo o provava com esse papel, escrito em letra peifeita: 'Ao meu portuguesinho valente,
pelo muito que gozámos . . . ' Era essa a carta em que a Santa me ofertava a sua camisa. Lá bri
lhavam as suas iniciais M. M.! Lá destacava essa clara, evidente confissão - o muito que
gozámos; o muito que eu gozara em mandar à Santa as minhas orações para o céu, o muito
que a Santa gozara no céu em receber as minhas orações.
Comentário
Repare que a situação apresentada no fragmento é irônica e farsesca, porque nela acontece
exatamente o contrário do que se esperava, o que a toma ao mesmo tempo ridícula: em vez de uma
coroa de espinhos, representando toda a devoção que Teodorico queria provar a titi, por meio de
tal relíquia, o que aparece - em pleno altar da tia - é um símbolo de pecado e de devassidão . . .
Além disso, a explicação que Teodorico queria ter dado também é irônica e farsesca, por se
revestir de elementos absurdos, inverossíveis, satíricos dos excessos de perda de bom senso a que
se pode chegar por meio de muita carolice. Associar a camisola de Mary com a de Maria Madalena
e interpretar o bilhete da amante como pretende o narrador-personagem é tão burlesco quanto a
situação provocada pela troca de embrulhos.
11
(UNICAM P)- Em A Relíquia, de Eça de Queirós, encontramos b) Sabendo que o autor usa a ironia para suas críticas, dê os
a seguinte resposta de Li no, comprador habitual das relíquias sentidos, literal e irônico, que pode tomar dentro da narra
de Raposo: Está o mercado abarrotado, já não há maneira de tiva a frase: São ferraduras demais para um país tão peque
vender nem um cueirinho do Menino Jesus, uma relíquia que no! . . .
se vendia tão bem! O seu negócio com as ferraduras é per
feitamente indecente . . . Perfeitamente indecente! É o que Leia com atenção o fragmento de A Relíquia:
me dizia noutro dia um capelão, primo meu: "São ferraduras - Tu lá nos estudos costumas fazer o teu terço? - pergun
demais para um país tão pequeno! . . . " Catorze ferraduras, se
ta-me com secura a titi.
nhor! É abusar! Sabe vossa Senhoria quantos pregos, dos
E eu, sorrindo, abjetamente:
que pregaram Cristo na Cruz, Vossa Senhoria tem impingido,
todos com documentos? Setenta e cinco, Senhor! . . . Não lhe
- Ora essa! Eu que nem posso adormecer sem ter rezado o
meu terço!. . .
digo mais nada. . . Setenta e cinco!
a ) Identifique o s personagens que dialoga m :
a) Relate o episódio que faz com que Lino dê essa resposta b ) Por q u e razão a titi, autora d a pergunta, o faz "com secura " ?
a Raposo. c) Por que a reposta é acompanhada de u m " sorriso abjeto? "
11
a) Teodorico Raposo, em viagem à Terra Santa, pretendia tra b) O duplo sentido da frase ocorre devido à palavra " ferradu
zer para a tia, a beata D. Patrocínio das Neves, uma relíquia ras " . Li no se utiliza dela para se referir à inflação daquele
sagrada, com a qual conseguiria obter sua herança. tipo de relíquia no mercado, no sentido literal da frase. Já
Ao longo da travessia, entregou-se às aventuras sexuais no sentido irônico, ele está aludindo aos "ferraduras" que
que l he eram proibidas e ganhou de Maricoquinhas, uma adquirem esses produtos. Aqui, a palavra tem a sign ifica
de suas amantes, um embrulho contendo uma camisola. ção de " burros", de gente "pouco inteligente", o que pode
Em Lisboa, no momento de entregar o presente à tia, per se estender à ignorância e ao atraso cultural dos portugue
cebeu que trocara os embrulhos: esta recebe a camisola,
cn
ses, que Eça critica na passagem e em grande parte de
·O
em vez da relíquia . . . o que o desmascara e faz com que suas obras. ex:
seja sumariamente expulso e deserdado. w
Passa a dedicar-se, então, ao comércio i lícito de falsas relí a) Os personagens são Teodorico Raposo e titi, a Sra. D . ::::>
quias católicas, por meio de Lino, sujeito inescrupuloso Patrocínio, sua tia. o
que conhecera por acaso. b) A titi faz a pergunta com secura porque é esta a sua per w
Depois de algum tempo, resolve vender diretamente as sonalidade: seca, ríspida e insensível a quaisquer afetos, o
"preciosidades", sonegando-as de seu intermediário. Mas a ela só vive em função da religião.
<(
queda das vendas faz com que o chame de volta, mostran c) Este sorriso abjeto é uma demonstração, uma prova, da t>
do-lhe um novo lote de mercadorias e o convidando a reto hipocrisia da Teodorico, que se finge de carola para agradar w
marem os negócios. O fragmento presente no enunciado a tia e assim tornar-se seu herdeiro. -
da questão é a resposta de Lino a Teodorico Raposo.
69
I o REAUSMO NO BRASIL
Vindo da França, o Realismo consiste basicamente na superação do sentimenta
lismo romântico pela busca de objetividade, de uma postura racionalista, coeren
te com a "febre cientificista" das últimas décadas do século XIX. E, também, defla
gra o engajamento da arte ao movimento social, pela crítica de costumes e pela defe
sa de reformas sociais.
Os escritores realistas pretendiam fazer uma literatura antiburguesa, antimonár
quica, anticlerical, através do predomínio da razão sobre a emoção, da rígida obe
diência ao princípio da verossimilhança, de uma postura de análise crítica que lhes
permitisse o retrato objetivo e imparcial da sociedade.
O Naturalismo, espécie de exagero do Realismo, considera o comportamento
humano um produto de leis naturais, uma decorrência de fatores biológicos, tendo,
assim, um caráter reducionista que não se verifica no Realismo, mais propenso a discu
tir o homem e as relações sociais do que a explicá-las de forma unilateral.
Machado de Assis e Aluísio de Azevedo, o primeiro com Memórias Póstumas de
Brás Cubas e o segundo com O Mulato, constituem os dois grandes escritores que ini
ciam respectivamente o Realismo e o Naturalismo brasileiros.
achado de Assis nasceu no Rio de
M Janeiro, em 1 839, no Morro do
Livramento. Filho de pai muito pobre (pintor) e
de mãe lavadeira, ficou órfão muito cedo.
Pobre, mulato, tímido, gago, epilético,
conseguiu sobreviver e fazer carreira de
funcionário público e escritor. Autodidata, MACHADO DE ASSIS
conquistou vasta cultura literária. Aos 1 6
anos, trabalhou na Imprensa Nacional, como
aprendiz de tipógrafo, em jornais. Aos 30 Cada criatura humana traz duas almas consigo:
anos, casou-se com Carolina Xavier de uma que olha de dentro para fora, outra que olha defora para dentro . . .
Novais. Ascendeu na carreira burocrática. Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo;
Teve vida social e cultural ativas. Foi um dos não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir.
fundadores e primeiro presidente da
Academia Brasileira de Letras. Morreu aos 69
anos, também no Rio, em 1 908.
É considerado, praticamente por DOM CASMURRO
unanimidade, como o maior escritor em prosa
da literatura brasileira. Iniciou o Realismo, Dom Casmurro é a história, contada pelo marido, de um adultério a seu ver come
em 1 88 1 , com o romance Memórias tido pela mulher_ ..
póstumas de Brás Cubas, ao mesmo tempo
realizando a sua superação, num salto mortal
para a modernidade, de que é um Dom Casmurro (1899) é um bom ponto de partida para apreciar a distância, na
antecipa dor, em vários aspectos: a crítica da verdade o adiantamento, que separava Machado de Assis de seus compatriotas. O livro
<(
o I inguagem e da estrutura tradicional da tem algo da armadilha, com aguda lição crítica - se a armadilha for percebida como
narrativa; os microcapítulos e o enredo não
�z l inear, descontínuo; a constante
tal. Desde o início há incongruências, passos obscuros, ênfases desconcertantes, que
vão formando um enigma.
w meta linguagem, questionando o próprio fazer
do livro; o estilo substantivo, anti-retórico; a
Roberto Schwarz
� "A Poesia Envenenada de Dom Casmurro ".
o análise psicológica que vai além dos limites
da consciência do personagem; o humor sutil Rev. CE-BRAP, Novos Estudos, n o 29.
u
<( e permanente, distruindo as ilusões e as
o: pieguices românticas; a visão aguda e
::J profundamente relativista, com a linguagem Narrador
sutil, ambígua, de múltiplos sentidos etc.
�a: Além de seu grande salto de qualidade, Enigma é uma palavra que nos parece exata para manifestar as impressões causadas
w Memórias póstumas de Brás Cubas, publica pela leitura de Dom Casmurro, cuja poesia envenenada procuraremos comentar.
1- outros romances fundamentais: Ouincas
.....J Borba, Dom Casmurro, Memorial de Aires etc.
Narrada em primeira pessoa, por um narrador-personagem, que se coloca como
....... escritor, a história de Dom Casmurro tem como primeira chave para tentarmos nos apro
o
ximar de seu enigma a própria figura desde que ao mesmo tempo a vive e a relata.
10
Trata-se de um velho solitário, apelidado de Dom Casmurro, que por desfastio da monotonia
em que vive, passa a relatar seu passado.
É assim que ele explica as razões do livro, no capítulo 2 do romance. Entretanto, se o compa
rarmos com o capítulo 1 , o qual dedica ao apelido, veremos um dos aspectos mais importantes do
processo narrativo da obra.
Por um lado, o narrador nos dá a aparência de que tanto o apelido quanto os motivos de escre
ver são aleatórios, quase banais . . . Poderia, por exemplo, escrever sobre filosofia, jurisprudência,
política, ou mesmo uma História dos Subúrbios, preferindo, por casualidade, falar da sua pró
pria existência. . . ( cap. 2). Mas, por outro lado, prestando atenção em ambos os capítulos, per
ceberemos ser mais importantes do que parecem, tanto o apelido quanto o livro.
O apelido lhe foi dado por um rapaz que se aborreceu com o fato de ele ter dormido, enquan
to, num trem, lia-lhe os versos que fizera. O narrador atribui ao cansaço tal atitude, embora ao
mesmo tempo afirme que os versos pode ser que não fossem inteiramente maus.
Ficamos, então, em dúvida: ele fechou os olhos três ou quatro vezes por cansaço ou porque
não gostou dos versos? Se pode ser que não fossem de todo maus, com certeza também não eram
de todo bons . . .
Além disso, o s vizinhos, que não gostavam de seus hábitos reclusos, calados e também os
amigos da cidade, fizeram com que "pegasse" o apelido, cujo significado ele mesmo nos dá:
não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas, no
que lhepôs o vulgo de homem calado, metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me
fumos defidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha
narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo.
O meu poeta ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno eiforço, sendo o
título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso de seus autores;
alguns, nem tanto. (cap. 1 - "Do título ".)
Observe nesta passagem outra "contradição" do narrador: se ele não guarda rancor do poeta
pelo apelido, por que o comentário maldoso de que, sendo o título seu, poderá pensar que a obra
é sua? Observe, também, a ironia com que fala de livros que têm apenas o nome dos autores, ou
nem isso . . .
Você j á percebeu: uma das "armadilhas" do romance é o seu narrador não-confiável. Ele
mente, distorce, confunde o leitor, com quem conversa ao longo da narração, anunciando a meta
linguagem da literatura do século XX.
Outra característica percebida no trecho lido é a habilidade com que o narrador faz pare
cer sem importância o que é fundamental, como por exemplo o apelido, que de mera graça,
brincadeira, vai se transformando, durante a leitura, na síntese das conseqüências que os desenga
nos da vida trouxeram à sua personalidade: fechada em si mesma, com ares de superioridade, soli
tária, casmurra.
Esta habilidade também se revela no segundo capítulo, quando comparamos a aparente casua
lidade que leva o narrador a falar de si, de seu passado, com a descrição da casa onde mora.
A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão par
ticular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastante anos, lembrou-me reproduzir
no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo
aspecto e economia daquela outra, que desapareceu (. . .) O meu fim evidente era atar as duas
pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o
que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem
os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde, masfalto eu mesmo
e esta lacuna é tudo.
(cap. 2 - Do livro.)
C/)
Perceba, agora, a importância do passado na velhice de Dom Casmurro, a sua vontade -
C/)
construindo uma casa semelhante à aquela em que fora criado - de atar as duas pontas da vida, C/)
de restaurar na velhice a adolescência. Perceba, ainda, a impossibilidade de se realizar o projeto. <(
Se há a casa, não há mais a pessoa que havia: falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. w
o
Escreve, então, para de outra forma tentar preencher a lacuna entre o passado e o presente,
o
entre o menino Bentinho que fora, e o Dom Casmurro em que se transformara. o
Embora se refira ao obj etivo de reviver o passado, de reencontrar-se, escrevendo; o narrador, <(
J:
com as "armadilhas" com que tece todo o relato, atribui às imagens dos quadros de sua casa (as u
mesmas de antigamente) a "inspiração" para escrever: <(
�
Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma -
vez que eles não alcançavam reconstituir-me nos tempos idos, pegasse da pena e contasse
11
alguns. Talvez a narração me desse a ilusão e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao
poeta, não o do trem mas o do Fausto: "Aí vindes outra vez, inquietas sombras?". . .
(cap . 2 - Do livro.)
Eruedo
Ao mesmo tempo em que faremos uma síntese dos principais elementos do enredo do roman
ce, vamos tentar "desmontar algumas peças do enigma", isto é, vamos conhecer mais algumas
"chaves" que nos permitam penetrar em seu universo ficcional.
A primeira é a total ausência de linearidade do enredo. Repleto de cortes, de digressões, de
idas e voltas, Dom Casmurro possui, em seus 1 48 capítulos, os que funcionam como prólogos
de outros capítulos, os que retomam capítulos anteriores, como se explicitassem passagens que
ficaram "obscuras" ou "incompletas", os que discutem com o leitor o rumo dos acontecimen
tos, os que se dirigem a determinados personagens ou objetos personificados, além daqueles
que aludem tanto ao desfecho do romance quanto à possibilidade de compreendê-lo e inter
pretá-lo.
Como num jogo, há uma série de "pistas" que tanto podem ser "falsas" como "verdadeiras",
isto é, tanto podem "desviar" o leitor desatento da problemática humana tematizada na obra, quan
to podem fazer o movimento inverso: seduzir o leitor atento, iluminando-o com sua riqueza de sig
nificados.
Tudo depende de como se lê, de como se interpreta a alternância entre acontecimentos,
ações, e comentários, digressões, com a qual o romance se estrutura.
Tal estrutura sistematicamente "desvia" a atenção do leitor do fluxo dos fatos narrados, retar
dando-os, dispersando-os, fragmentando-os. Assim, ao mesmo tempo em que ironiza a irritação
<( do leitor impaciente, a devoção da leitora casta, as ilusões da leitora romântica, a necessidade
o de explicações do leitor obtuso, Dom Casmurro vai se fabulando e desvendando o seu processo
�z de fabulação. Como os grandes livros da nossa época, em que o "rascunho" é parte da obra, o ato
de criar se revela na própria criação: metalinguagem.
w Mas, quais os significados destes recursos, para a compreensão de Dom Casmurro? Como
�
o interferem no "salto de qualidade" do romance, em relação a outros com os quais possui semelhan
(.) ça temática? Aproximemo-nos do enigma.
<( A primeira cena evocada refere-se a uma célebre tarde de novembro, em 1 857, quando
a:
:::> Bentinho se sente nascer...
�
a:
Tinha ele 1 5 anos e ouviu às escondidas uma denúncia de José Dias, o agregado de sua famí
lia, sobre o perigo das "intimidades" que mantinha com Capitu, menina de 14 anos, com quem
w crescera e de quem era vizinho.
1-
::J A denúncia provocou na mãe de Bentinho, D. Glória, a obrigação de cumprir a promessa que
- fizera em seu nascimento: como perdera o primeiro filho, o segundo, se sobrevivesse, seria padre.
Bentinho, então, deveria ir para o Seminário.
12
Ao menino, José Dias o denuncia a si mesmo: descobre a partir daí que ama Capitu, também
sendo amado por ela. Trocam as primeiras carícias, os primeiros beijos, as primeiras ironias; tra
çam planos para impedir a partida de Bentinho, juram casar-se um dia e, enfim, o momento chega:
Bentinho vai para o Seminário, onde fica por um ano.
Uma idéia do amigo Escobar o livra, e também à mãe, da promessa, sem que se fique mal com
Deus: D. Glória adota uma criança pobre, que assume a batina no lugar de Bentinho, o qual se
forma em Direito e se casa com Capitu. Escobar, que conhecera no Seminário, casa-se com Sancha
- a melhor amiga de Capitu - com quem tem uma filha.
O filho de Bentinho e Capitu demora mas vem, os dois casais se freqüentam assiduamente até
que ... ocorre a tragédia. Escobar morre afogado e Bentinho tem ciúmes de certo olhar de Capitu
ao defunto. A partir de então começa a ver no filho Ezequiel (o mesmo nome do amigo) a fisio
nomia, os gestos, a personalidade de Escobar.
O adultério entre a primeira amada de seu coração e o melhor amigo - é "provado" a
Bentinho pela natureza: a semelhança cada vez maior de Ezequiel com Escobar, reconhecida por
Capitu, que no entanto não se confessa culpada.
O casal se separa, Capitu e Ezequiel morrem no estrangeiro, e Bentinho se faz o Casmurro
de quem falamos, a vítima da "crueldade" do destino, cuja única dúvida, expressa no último capí
tulo do romance,
é saber se a Capitu da praia da Glória (local onde moravam, depois de casados) já estava
dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente.
Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX,
vers. L não tenha ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malí
cia que aprender de ti. Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da
Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da
casca. (cap. 148 - "Bem, e o resto?")
Observe, neste trecho do final do romance, que a dúvida é se Capitu sempre fora desonesta
ou se passou a sê-lo depois de casada. Observe ainda que o narrador, usando Jesus Cristo como
argumento de autoridade, sugere a possibilidade de os seus cíumes terem provocado a malícia
de Capitu, desmentindo-a, entretanto, agora através do aliciamento do leitor: Se te lembras bem
da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da
casca.
Comentário geral sobre o enredo
Durante 60 anos, o "leitor", isto é, a crítica literária, acreditou em Bentinho, e o livro foi lido
como mais um exemplo de adultério feminino, explorado pela literatura realista.
Mas, em 1960, uma professora norte-americana, Helen Cadwel, propôs uma releitura da obra
que chegou ao cerne de seu enigma apontando Bentinho, e não Capitu, como o problema central
de Dom Casmurro.
Vej amos alguns motivos. O mais importante, que traz à tona todos os outros, é que a his
tória é contada do ponto de vista de Bentinho, o personagem-narrador não-confiável que
comentamos.
Vimos de passagem, na parte sobre o narrador, a maldade com a qual ironiza o obscuro poeta
do trem que lhe deu o apelido de Casmurro. Esta maldade aparece em vários momentos do livro,
como no capítulo 67 ("Um pecado"), em que, voltando do Seminário para ver a mãe doente pensa
que mamãe defunta, acaba o Seminário. Já nos capítulos de 85 ("Um defunto '') a 93 ("Um amigo
por um defunto ''), há um verdadeiro tratado sobre a maldade de Bentinho: na ocasião da doen
ça da mãe, morre o Manduca, que sofria de lepra, e com quem convivera. Ao saber da notícia, pri
meiro Bentinho - a cabeça no encontro que tivera com Capitu - desapontado pela interrupção cn
de sua felicidade, desejou que Manduca esperasse algumas horas para morrer. Em seguida, vendo cn
o defunto, comentou consigo mesmo que vivo era feio: morto pareceu-lhe horrível. Entretanto, cn
<(
substituiu a repugnância por uma pretensa piedade para convencer a mãe a deixá-lo ir ao enterro w
e, assim, adiar a volta ao Seminário, podendo de novo ver Capitu. A negativa da mãe, influencia o
da por prima Justina, que pôs em dúvida a amizade que teria ao menino, deu-lhe, em vez de revol o
o
ta, um sabor particular, fê-lo perguntar-se que intimidade poderia haver entre a doença dele e a <(
sua saúde. J:
u
Lembrou-se então de uma polêmica que tivera com o menino, devido à qual a repugnância por <(
sua "cara nojosa", debaixo da triste rota e infecta colcha de retalhos momentaneamente diminuí �
ra. Utilizou-se da mesma polêmica para se justificar ao leitor no capítulo seguinte, em que ao -
mesmo tempo afirma ter dado alívio e até felicidade ao Manduca, a quem distraíra da doença, e
13
que o menino - se fosse pecado a opinião que defendera - era melhor haver gemido somente,
sem opinar coisa alguma...
Tais reflexões, reveladoras não só da maldade mas d o egoísmo, da vaidade, d o sentimento
de superioridade de Bentinho, terminam com mais um requinte de perversão: ao encontrar em
casa Escobar, troca um amigo por um defunto e dá o caso por encerrado . . .
Outra característica deste narrador cada vez menos confiável e m seus depoimentos, e cada vez
mais querendo provar ao leitor o contrário do que demonstra ser, é o ciúme doentio que o domi
na em relação à Capitu.
Quando no Seminário José Dias, cuja hipocrisia várias vezes presenciara, afirma que Capitu
está alegre e bem disposta longe da sua companhia, procurando um peralta da vizinhança que case
com ela, Bentinho experimenta um sentimento cruel e desconhecido. Obcecado por tal sentimen
to, vê passar um cavaleiro em frente da casa da namorada, e julga perceber uma troca de olhares
entre ambos. Tem, então, vontade de cravar-lhes as unhas no pescoço, enterrá-las bem, até ver
lhe sair a vida com o sangue. . . (cap. 75 - O desespero.)
Logo que se casam, tortura-se nos bailes - vexado e aborrecido - com os olhares dos ho
mens aos belos braços de Capitu, os mesmos que o desvanecem por serem "os mais belos da
noite". Após o nascimento de Ezequiel tem a seguinte conversa com o leitor:
Porfalar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso dela, não continuei
a sê-lo apesar dofilho e dos anos. Sim, senhor, continuei. Continuei a talponto que o menor
gesto me afligia, a mais íntima palavra, uma insistência qualquer (. . .) cheguei a ter ciúmes
de tudo e de todos. . . (cap. 1 1 3 - Embargo de terceiros.)
Ao ciúme de Bentinho, acrescente a imaginação que ele próprio compara com uma grande
égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre, em seguida des
pistando o leitor, mas deixemos de metáforas atrevidas e impróprias para os meus quinze anos.
(cap. 40 - Uma égua).
Acrescente, também, a inveja das astúcias d e Capitu - d e suas iniciativas sempre lúcidas e
sempre bem-sucedidas, incluindo a do primeiro beijo - além da inveja dos braços musculosos de
Escobar - de sua cabeça aritmética, de seu brilho na aula como na sala de estar e à mesa . . . Você,
agora com facilidade, passa a ver na vítima o agressor, na superioridade a inferioridade, na
confissão o aliciamento.
Esta nova leitura da obra, iniciada pela professora norte-americana, deflagra a dimensão psi
canalítica, perturbadoramente requintada, da poesia envenenada de Dom Casmurro.
Se a semelhança entre o menino Ezequiel e Escobar é mera casualidade, como o romance
sugere e o protagonista desmente, se a Capitu mulher estava dentro da menina, como Dom
Casmurro pergunta e depois responde, desviando com esta falsa dúvida a atenção do leitor para a
dúvida sobre a legitimidade da culpa de Capitu, enfim, se esta culpa é legítima, não o sabemos,
j amais o saberemos.
O que podemos afirmar é que a crueldade de Bentinho ao tentar matar o filho, envenenando
o, a crueldade com que se refere às despesas de seu enterro, afirmando que pagaria o triplo para
não o ver mais, a crueldade com que desterra a "traidora" estão presentes no menino que se sen
tia, aos quinze anos, menos homem do que a menina de catorze, Capitu, mulher ••.
Aí está o centro da problemática deste livro cujos j ogos de luzes misturam a penumbra de
uma personalidade medíocre - entre o fascínio e a necessidade de destruir os que lhes são
caros, os que "lhe roubam as cenas", como Capitu e Escobar - com a luminosidade de um novo
realismo. Um Realismo que através da não-confiabilidade do narrador, e dos demais recursos
<! a que nos referimos, dentre outros, confirma a opinião de Roberto Schwarz sobre o referido adian
o tamento de Machado de Assis: "não há dúvida quanto ao passo adiante em relação ao obj etivis
�z mo de realistas e naturalistas: também o árbitro é parte interessada e precisa ser adivinhado como
tal" (obra citada).
w
E quanto a nós, leitores, o mínimo que podemos fazer diante das perversidades do narrador de
�
o que também fomos vítimas, e diante da intensidade desta mescla de poesia e veneno - é, agora
u apaixonada e lucidamente, reler o romance atentando melhor para os olhos de Capitu, dos quais
<! passaremos a falar . . .
a:
:::>
�
a: Personagens
w
1-
....J
Principais
- Sobre Bentinho/Dom Casmurro, acreditamos j á o termos "denunciado" para a compreensão
14 do enredo do romance.
Resta-nos, então, Capitu - a vizinha Capitolina, cujos olhos eram vistos pelo agregado José
Dias como olhos de cigana oblíqua e dissimulada, e por Bentinho como olhos de ressaca:
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram
aqueles olhos de Capitu. Não me ocorre imagem capaz de dizer, sem quebrar a dignidade do
estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá a idéia
daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arras
tava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.
(cap. 32 - Olhos de Ressaca.)
Secundários
Dentre os personagens secundários, destaca-se José Dias, o agregado, que representa um tipo
essencial para a compreensão do funcionamento da nossa sociedade, estudado por Roberto
Schwarz nesta e em outras obras de Machado de Assis.
Vamos sintetizar algumas de suas opiniões, acrescentadas à leitura que fizemos da obra.
A condição de agregado, isto é, de viver da proteção dos ricos, aos quais faz "favores" de
todos os tipos, explica bem o seu comportamento, resumido por Bentinho: sabia opinar obedecen
do. Para opinar, a necessidade de conhecimentos tão amplos quanto ocos de conteúdo, superficiais.
Daí a predileção pelos superlativos, com os quais não só referenda as falas dos protetores, mas,
ainda, mostra certo pendor à retórica, à oratória, ironizado no livro, por exemplo com a seguinte
frase: Nada há mais feio que dar pernas longuíssimas a idéias curtíssimas.
José Dias aparece - na ocasião do nascimento de Bentinho - na velha fazenda de ltaguaí, e
se apresenta como médico homeopata ao rico proprietário Pedro Albuquerque de Santiago,
curando sem remuneração dois escravos atacados de febre. C/)
O pai de Bentinho o convida a ficar, ele aceita e quando ocorrem outras doenças confessa-se C/)
charlatão, com uma "dignidade" que o faz parecer estar dizendo o contrário do que afirma. C/)
<(
A tal confissão precede o dom de se fazer aceito e necessário de José Dias, o que o mantém w
na família, que se muda para o Rio de Janeiro quando o pai de Bentinho se elege deputado. Após o
a sua morte, José Dias continua como agregado, agora sob a proteção de D. Glória, a viúva devo o
o
ta, cuja felicidade no casamento Bentinho idealiza. <(
Passando a exercer certa influência em D. Glória, não apenas uma santa mas uma "santíssi :c
u
ma" na opinião do agregado, dele sai a denúncia que apressa a ida de Bentinho ao Seminário. <(
Entretanto, a perspicácia de Capitu coloca-o como defensor da liberdade de Bentinho, função que �
aceita já servindo ao "próximo protetor" e também tentando conciliá-la com o desejo de ir à -
Europa, onde o menino "deveria" fazer os estudos, "evidentemente" acompanhado por ele . . .
15
O plano não funciona, apesar das insinuações de José Dias, que tenta mudar a opinião de D.
Glória. Frases ditas como que por acaso, do tipomesmo que não seja padre, e é preciso ter voca
ção, ilustram o opinar obedecendo do agregado. Ele trata Bentinho como mãe e como servo, e seu
cálculo nas atitudes aparece no próprio ritmo de seus passos: a premissa antes da conseqüência,
a conseqüência antes da conclusão.
Assim, o agregado se subordina à vontade do "protetor", compensando-se imaginariamente da
condição subalterna através de maldades para com o vizinho pobre, o Pádua (pai de Capitu), a
quem apelida "o tartaruga". Quando descobre os amores de Bentinho e Capitu, novamente se curva
aos de quem depende, o que o faz passar de opositor a cúmplice.
O favor é um dos elementos básicos das relações sociais do país ao longo do século XIX, no
romance representadas pela casa de D. Glória.
Lá, além do agregado, vivem dois parentes pobres: prima Justina, cuja maldade também se
relaciona com a compensação imaginária da dependência e o tio Cosme, advogado aposentado,
"gordo" e "passado".
Formado para as severas funções do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no fôro: ia comendo.
(cap . 6 - Tio Cosme.)
A vizinhança também aspira à proteção dos ricos, como se percebe pela cumplicidade da mãe
de Capitu com o namoro da filha e pelo episódio da despedida entre Bentinho e o Pádua. Este, ao
ver o menino partir para o Seminário,
levava a cara dos desenganados, como quem emprega em um só bilhete todas as suas economias
de esperança, e vê sair branco o maldito número - um número tão bonito!
(cap. 52 - O velho Pádua.)
À presença do dinheiro, do interesse, escamoteada pelos parentescos, pelos favores, pela "reli
giosidade"dos personagens, Machado de Assis dedica passagens primorosas, em especial aquelas
em que ironicamente relaciona a devoção cristã ao capitalismo.
Um exemplo pode ser o do capítulo 50 ( Um meio termo), no qual o padre Cabral, professor de
primeiras letras, de latim e de doutrina de Bentinho - através de quem D. Glória adiava a promessa
que no fundo não queria cumprir - arranja ummeio-termo entre a terra e o céu: experimentar por
dois anos a vocação de Bentinho. Vejamos como se dá o "negócio": Era uma concessão do padre.
Dava a minha mãe um perdão antecipado, fazendo vir do credor a revelação da dívida.
O único personagem que se distancia deste círculo de relações paternalistas, fincadas na
dependência e na dissimulação da mesma, éEscobar. Aqui, a ironia está no fato de ser ele o único
personagem que fala em dinheiro explicitamente, que pensa e executa atividades de comércio,
pelas quais tem paixão especial.
Dedica-se ao café, e acaba "ajudando" o protegido e rico Bentinho - o qual não se cansa de
se gabar a ele das casas, dos escravos, da própria riqueza - ao arranjar-lhe clientes, embargos,
demandas . . .
Vê-se por estes comentários sobre o s personagens de Dom Casmurro outra dimensão do livro,
tão longamente ignorada quanto a deflagrada pela não- confiabilidade do narrador: a agudez com
que Machado de Assis desvenda as relações sociais de nossa sociedade ao longo do século passa
do - uma sociedade escravocrata, oligárquica, paternalista e centrada nas "relações de favor".
Linguagem
< Já comentamos alguns dos aspectos centrais da linguagem de Dom Casmurro: as reflexões
o metalingüísticas, as ironias às expectativas do leitor, as digressões. Através delas, o narrador nos
�z revela, como se os tivesse escondendo, não só "bastidores" sombrios da personalidade de
w Bentinho, mas também a própria arquitetura do romance, como veremos em alguns capítulos
� exemplares.
a No capítulo 59, que se intitula Convivas de boa memória e fala sobre reminiscências, lembran
u
ças, o narrador de início afirma ter boa memória, e logo depois o contrário. Compara sua memó
<
a: ria fraca com alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem
:J nomes, e somente raras circunstâncias. Após dizer invejar os que não esqueceram a cor das pri
�o: meiras calças que vestiram, enquanto ele não atina com as que enfiou ontem, diz preferir o olvi
w do (o esquecimento) à confusão. Em seguida, explica-se:
1-
...J Nada se emenda bem nos livros confusos mas tudo se pode meter nos livros omissos (. . .) É
- que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias;
assim podes também preencher as minhas.
16
Atente para esta explicação. O que ela explica? Que o livro tem lacunas, ironicamente asso
ciadas a falhas de memória, omissões, as quais o leitor deve preencher, como o narrador faz com
as alheias. . . Veja que há aqui três pistas de leitura "despistadas" pela aparência de "conversa fiada"
do começo do capítulo. A primeira é a suposta memória fraca do narrador, que, assim, pode tanto
alterar quanto omitir passagens relevantes para compreensão de seu passado. A segunda é que
diante disso o leitor deve "preencher as lacunas que encontrar", quer dizer, recriar o texto, inter
pretando-o com a sua própria imaginação, inteligência e sensibilidade. E a terceira refere-se à já
comentada mania de superioridade do narrador, que se coloca como exemplo a ser seguido.
Você tem, então, um anúncio metalingüístico da ambigüidade do romance ironicamente
ligado a um indício da prepotência, do autoritarismo do seu narrador.
No capítulo 60, Querido opúsculo, que continua a reflexão comentada, o narrador conversa
com um opúsculo de páginas amareladas - o panegírico de Santa Mônica (elogio à santa feito por
um colega de ápoca em que vivia no Seminário);
Querido opúsculo, tu não prestavas para nada, mas que mais presta um velho par de chinelos?
A conclusão desta comparação de aparentes inutilidades é exatamente outra pista, agora sobre
o valor de tais inutilidades:
já agora creio que não basta que os pregões de rua, como os opúsculos de Seminário,
encerrem casos, pessoas e sensações; é preciso que a gente os tenha conhecido e padecido no
tempo sem o que tudo é calado e incolor.
Veja que se coloca, aqui, outra dimensão fundamental do romance: o seu caráter de memória,
de reminiscência, faz com que os casos, as pessoas, as sensações, isto é, os elementos do enredo,
sejam deflagrados por coisas cuja desimportância aparente encobre o seu verdadeiro valor, o sen
tido que possuem para quem os viu, viveu e sofreu. É assim que funcionam as nossas memórias,
as lembranças, as evocações do passado, que não seguem uma seqüência lógica mas, ao contrário,
obedecem ao fluxo com que irrompem movidas pelas emoções que as suscitam.
Esse fluxo é trabalhado literariamente - sempre recoberto pela ironia - ao longo do roman
ce. Portanto, na linguagem de Dom Casmurro há reflexão metalinguística - de seu ritmo, de sua
não-linearidade, da presença de "reticências" ...
Por um lado, como vimos, as "reticências" - as omissões, as lacunas, as digressões - instau
ram a ambigüidade do romance e, por outro, aludem aos alicerces da arquitetura com que é magis
tralmente tecido: entre o fluxo da memória de Dom Casmurro , de que surge Bentinho e a trajetória
de Bentinho, comentada, justificada, pretensamente "racionalizada" por Dom Casmurro.
, , ,
MEMORIAS POSTUMAS DE BRAS CUBAS
Nesta história fantasticamente narrada por um defunto-autor, Machado de Assis utiliza-se da pre
tensa superioridade de Brás Cubas, o narrador-personagem, para desnudar a precariedade da condição
humana, num exemplo universal e intemporal de Realismo irônico, niilista, filosófico e metafisico.
<{
o
�z Narrador
w
� Supostamente escritas por um "defunto-autor", isto é, por um narrador-personagem que resolve
o
u contar a sua vida "de além-túmulo", estas Memórias Póstumas de Brás Cubas constituem um roman
<{ ce grandioso, de leitura dificil mas profundamente enriquecedora.
a:
::> O foco narrativo em 1 a pessoa faz com que a palavra de Brás Cubas monopolize o texto, num
t;(a: relato aparentemente caracterizado pela isenção, pela imparcialidade de quem já não tem necessida
de de mentir, pois deixou o mundo e todas as suas ilusões.
w
1- Entretanto, essa constitui uma das famosas armadilhas machadeanas. Com ela, o escritor desa
...J fiou a credulidade do leitor romântico de sua época e do leitor ingênuo, intemporal e universal: aque
- le acostumado com os romances de ação, lineares e sem densidade literária.
18
Neste sentido, uma das chaves para com
Em Memórias Póstumas de Brás CUbas ousadamente,
preendermos a obra é justamente colocarmos em
varriam-se de wn golpe o sentimentalismo, o moralismo
dúvida a veracidade do relato, prestando atenção superficial, a fictícia unidade da pessoa hwnana, as frases
nas "pistas" que denunciam as mentiras, os exa piegas, o receio de chocar preconceitos, a concepção do pre
geros, as incongruências do narrador-perso domínio do amor sobre todas as outras paixões: afirmava-se
nagem. a possibilidade de construir wn grande livro, sem recorrer à
natureza, desdenhava-se a cor local, colocava-se wn autor,
Sua capacidade de manipulação, tanto quan
pela primeira vez dentro das personagens: surgiam afinal
to sua presunção de superioridade ou "mania de homens e mulheres, e não brasileiros, ou gaúchos, ou nortis
grandeza"' transparecem desde a 1 a página, de tas (. . .), introduzia-se entre nós o hwnorismo.
que transcrevemos o seguinte trecho:
A independência literária, que tanto se buscara, só com
este livro foi selada. Independência que não significa, nem
poderia significar, auto-suficiência, e sim o estado de maturi
Capítulo Primeiro - Óbito do Autor dade intelectual e social que permite a liberdade de concep
ção e expressão. Criando personagens e ambientes brasilei
Algum tempo hesitei se devia abrir estas ros - bem brasileiros - Machado não se julgou obrigado a
memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, fazê-los pitorescamente típicos, porque a consciência da
se poria em primeiro lugar o meu nasci nacionalidade, já sendo nele total, não carecia de elementos
mento ou a minha morte. Suposto o uso decorativos. (. . .) E por isso pôde - o primeiro entre nós - ser
vulgar seja começar pelo nascimento, duas universal sem deixar de ser brasileiro.
considerações me levam a adotar diferente
método: a primeira é que eu não sou pro (Lúcia Miguel-Pereira - Prosa de Ficção: de 1 870 a 1 920)
priamente u m a utor defunto, mas um
defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que assim o escrito ficaria
mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas
no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na
minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era sol
teiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos.
Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia - peneira
va uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles
fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferiu à beira de
minha cova: !._ Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natu
reza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm hon
rado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem
o azul do céu com um crepe funéreo, tudo isso é a dor ema e má que lhe rói à Natureza as
mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustrefinado '.
Bom e fiel amigo! Nào, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.
Comentários
Repare que no primeiro parágrafo o narrador compara suas Memórias com o Pentateuco: os
cinco primeiros livros do Velho Testamento, atribuídos ao profeta Moisés, sugerindo que a dife
rença radical entre ambas as obras estaria apenas na seqüência de que se utilizam.
Entretanto, é notória a distância entre um livro sagrado, histórico, fundador de uma tradição
religiosa e atribuído a um profeta de importância universal e o relato da vida de apenas um homem,
cuja identidade não se conhece. Percebe-se nessa mentira de Brás Cubas a referida "mania de
grandeza", a comentada presunção, que se confirma com a continuidade da leitura.
Quando conta sobre o seu enterro, ele se refere aos onze amigos que o acompanham, imedia
tamente apressando-se em justificar essa exígua quantidade com a falta de cartas e anúncios de que
falecera, e também com a chuva que caía na ocasião. Em seguida, transcreve c elogio fúnebre que
lhe teria sido proferido por um dos amigos. CJ)
Veja que agora Brás Cubas justifica-se para despistar o leitor: se fosse importante como o CJ)
CJ)
profeta, o seu enterro estaria repleto de pessoas, sem a necessidade de cartas ou anúncios. <(
Além disso, repare também que há um forte elemento romântico, presente no elogio fúnebre: w
a utilização da natureza para expressar sentimentos humanos. o
Ao afirmar não ter se arrependido do dinheiro que deixara ao amigo, Brás Cubas coloca em o
o
dúvida a sua bondade, a sua fidelidade e também a veracidade do elogio fúnebre, no qual encon <(
I
tramos uma clara ironia do escritor ao Romantismo. u
Com tais "escorregadas" de Brás Cubas, disseminadas ao longo de todo o romance, Machado <(
de Assis vai denunciando o seu verdadeiro caráter, que procuraremos conhecer melhor estudando ::
-
o enredo do romance.
19
Emedo
Desde a narração de cenas da infãncia, Brás Cubas confunde e ludibria o leitor. Se num pri
meiro instante afirma:cresci naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos, no próximo
apressa-se em acrescentar: talvez os gatos são menos matreiros e, com certeza, as magnólias são
menos inquietas do que eu era na minha itifância. (Capítulo IX: O Menino é o Pai do Homem).
Na verdade, Brás Cubas foi um menino não apenas matreiro, mas malvado. Apelidado de
"menino-diabo", mentia, escondia o chapéu das visitas, colocava rabo de papel em pessoas graves,
puxava cabelos, dava beliscões e maltratava cruelmente os escravos. Enfim, possuía um tempera
mento maligno, pelo qual o pai e a mãe não o repreendiam. Ela por sempre ter sido fraca, omissa;
ele por admirar-lhe as "traquinagens", chamando-o brejeiro ...
Desenvolvendo-se num contexto familiar que o favorece e justifica, Brás Cubas sintetiza o
seu ambiente doméstico com estas palavras: O que importa é a expressão geral do meio domésti
co, e essa aífica indicada, - vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruí
do, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nas
ceu essaflor.
Tal "flor" acaba por transformar-se num adulto egocêntrico, mentiroso, cínico, entediado e
petulante; isto é, que se coloca como superior às outras pessoas, para assim disfarçar a seqüência
de fracassos que na verdade foi sua vida.
Quando jovem, apaixona-se por Marcela, uma cortesã espanhola que o ama durante quinze
meses e onze contos de réis. O pai, assustado com os gastos do filho, manda-o à Europa para estu
dos aos quais pouco se dedica, tornando-se um fiel compêndio de trivialidade e presunção. Re
toma alguns anos depois, poucos dias antes do falecimento da mãe.
Então, o pai arranja-lhe um duplo negócio: tomá-lo deputado e casá-lo com Virgília.
No entanto, ambos os projetos falham: Brás Cubas perde a noiva e o cargo para Lobo Neves,
além de morrer-lhe o pai, desgostoso e decepcionado.
Mais tarde, almejando ser ministro, o que consegue é o amor adúltero de Virgília e, depois de
novamente perdê-la, o cargo de deputado.
Nhá Loló (Eulália), outra possibilidade de casamento, agora arranjada pela irmã Sabina,
morre vitimada por uma epidemia de febre amarela.
Quincas Borba, um colega de infãncia que se diz filósofo, visita-o, rouba-lhe o relógio e desa
parece, para retomar posteriormente, enriquecido graças a uma herança. Devolve-lhe o relógio,
passa a freqüentá-lo, tomando-se um de seus raros amigos e conta-lhe sobre o Humanitismo: teo
ria filosófica que inventa e com a qual também justifica-lhe os caprichos e fracassos. Quase no
desfecho do romance, enlouquece e morre, em sua casa.
Inventar um emplasto contra a hipocondria - a seu ver um remédio miraculoso que curaria
os males da humanidade - constitui a última tentativa de Brás Cubas, o seu último projeto, sem
sucesso e inútil como todos os outros, inclusive aquele com o qual pretendeu adquirir uma pasta
no ministério: "diminuir a barretina (antigo chapéu militar, alto) da guarda nacional. . ."
Segundo o personagem, o que o impede de enfim realizar-se por meio do divino emplasto, que
lhe daria o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza é a morte, já que ironi
camente contrai pneumonia ao sair de casa, logo quando ía patentear o invento. . .
Vejamos como s e conclui o romance:
Personagens
cn
Personagens Secundários cn
cn
Quincas Borba <(
UJ
Além da negação do herói e da estrutura tradicionais da literatura realista, a obra questiona os o
paródia das doutrinas positivis
modelos literários e ideológicos importados pelo Brasil, fazendo a o
Humanitismo e de seu criador, o filósofo
tas e deterministas, por exemplo através da filosofia do
o
<(
maluco Quincas Borba, que reaparece em Quincas Borba, o romance subseqüente do escritor. :J:
No trecho a seguir veremos que o Humanitismo, em sua teimosia de justificar a manutenção
u
<(
da espécie por meio do sacrificio do indivíduo, de reafirmar que nessa perspectiva o vício e a vir �
tude se equivalem, constitui não apenas uma irônica alusão ao cientificismo em voga na segunda -
metade do século XIX. Além disso, revela-se mais um expediente com que Machado de Assis põe
81
em xeque motivações e atitudes humanas, ironicamente apontando-lhes duplicidades e intenções
recônditas e insuspeitadas:
Não se explica o que é de sua natureza evidente, retorquiu o Quincas Borba: mas eu direi
alguma causa a mais. A persistência do benefício na memória de quem exerce explica-se pela
natureza mesma do benefício e de seus efeitos. Primeiramente há o sentimento de uma boa
ação, e dedutivamente a consciência de que somos capazes de boas ações; em segundo lugar,
recebe-se uma convicção de superioridade sobre outra criatura, superioridade no estado e nos
meios; e esta é uma das causas mais legitimamente agradáveis, segundo as melhores opiniões,
ao organismo humano. Erasmo, no seu Elogio da Sandice, escreveu algumas causas boas, cha
mou a atenção para a complacência com que dous burros se coçam um ao outro. Estou longe
de rejeitar essa observação de Erasmo; mas direi o que ele não disse, a saber, que se um dos
burros coçar melhor o outro, esse há de ter nos olhos algum indício especial de satisfação. Por
que é que uma mulher bonita olha muitas vezes para o espelho, senão porque se acha bonita,
e porque isso lhe dá certa superioridade sobre uma multidão de outras mulheres menos boni
tas ou absolutamente feias? A consciência é a mesma causa; remira-se a miúdo, quando se
acha bela. Nem o remorso é outra causa mais que o trejeito de uma consciência que se vê
hedionda. Não esqueças que, sendo tudo uma simples irradiação de Humanitas, o benefício e
seus efeitos sãofenômenos peifeitamente admiráveis.
Quincas Borba, um dos raros amigos de Brás Cubas, de mendigo ladrão de relógios trans
forma-se em filósofo e, como vimos, em interlocutor do narrador-personagem, enlouquecendo
pouco antes de sua morte.
Os outros personagens secundários também são caracterizados pela ótica narcisista e demoli
dora de Brás Cubas. Marcela, por exemplo, a cortesã interesseira que o enganou, acaba sendo ata
cada pela varíola, o que lhe parece causar certo prazer, como se o destino o houvesse vingado por
meio das marcas no rosto da espanhola.
Quanto a Lobo Neves, o homem que lhe toma a noiva e o cargo de deputado, Brás Cubas con
sidera-o um supersticioso, enquanto Cotrim, o cunhado com quem fora obrigado a repartir a
herança paterna, vê-o como submisso aos poderosos e arrogante.
Virgília, a quem ele amou e por quem foi amado, tem suas fragilidades e duplicidades perdoa
das, como se o fato de ter se tomado sua amante a fizesse merecedora de complacência; enfim ela
mesma compensa a frustração que causara a Brás Cubas perdê-la como esposa: Vi que era impossí
vel separar duas causas que no espírito dela estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a consi
deração pública. Virgília era capaz de iguais e grandes sacrificios para conservar ambas as vanta
gens, e a fuga só lhe deixava uma. Talvez senti alguma causa semelhante a despeito; mas as como
ções daqueles dous dias eramjá muitas, e o despeito morreu depressa. Vá lá; arranjemos a casinha.
Linguagem
O estilo substantivo e anti-retórico de Machado de Assis; sua linguagem sutil, ambígua e
repleta de um humor cáustico e permanente, que destrói e ironiza cada uma das ilusões românti
cas, caracterizam estas Memórias .. . , distanciando-as das obras realistas de seu tempo e fazendo
com que anunciem a modernidade literária, quer dizer, a literatura produzida no século XX.
Vamos enumerar e exemplificar dois dos mais significativos recursos literários machadeanos,
presentes no texto em estudo:
Exemplo
O capítulo XXXI, em que Brás Cubas conta o episódio da borboleta preta (uma borboleta que
entra em seu quarto, sendo por ele esmagada), pode ser visto como alegoria do que sucedia na oca
sião: ele tentava aproveitar-se de Eugênia, uma moça bonita, mas manca e pobre. Assim, embora
não se perceba ligação entre o referido capítulo e o acontecimento mencionado, o primeiro faz uma
referência irônica e cruel ao segundo: como a borboleta preta, Eugênia é um ser fraco e deficien
te, o que lhe possibilita, enquanto ser forte e saudável, destrui-la também. . .
CIJ
\7RESPOSTU.PO$SÍVEIS CIJ
CIJ
<{
ll d A travessia de B rás Cubas aproxima-se da de
Quincas Borba na medida em que ambos fra
w
o
fJ a cassam na vida. Enquanto o primeiro não con
segue realizar nenhuma de suas pretensões,
o
o
g c
como o casamento, o cargo de ministro etc., o
segundo cria o Humanitismo - sátira macha
<(
J:
u
deana às doutrinas positivistas e determi nistas
<(
em voga na segunda metade do século XIX
a
b -
�
tornando-se filósofo, mas enlouquece e vem a
-
falecer, tão sem glória e reconhecimento quan
to B rás Cubas.
83
,
RAUL POMPEIA
Escrevo para os maus. Caim é que deve ler-me.
Todo homem que considerar que do homicídio lhepode
provir a liberdade injustamente calcada pela opressão,
todo o homem escravizado tem o direito do punhal.
O ATENEU
Tendo por cenário um internato e por protagonista um menino de
onze anos, Sérgio, n'O Ateneu é tematizado o drama da solidão, o
desajuste do indivíduo em relação a um meio que lhe é hostil.
Narrador
Um dia, meu pai tomou-me pela mão, minha mãe beijou-me a testa, molhando-me
aul d'Ávila Pompéia nasceu em de lágrimas os cabelos e eu parti.
R 1 836, no Rio de Janeiro. Sua trajetória Narrado em primeira pessoa pelo seu próprio protagonista - Sérgio, um perso
existencial se cruza intimamente com a obra nagem-narrador - O Ateneu mostra elementos importantes de seu foco narrativo desde
na qual mais se destacou: O Ateneu. Como a abertura do romance, em que percebemos nitidamente uma distância entre os senti
Sérgio, protagonista do romance, entrou mentos infantis e as reflexões do adulto. Vejamos um exemplo desta afirmação:
ainda menino para um internato,
denominado Colégio Abílio. Nele Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das
desenvolveu-se com brilhantismo tanto nas ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regímen do amor
atividades literárias quanto nas artes doméstico; diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cui
plásticas; passando, depois, a estudar no dados maternos um artificio sentimental, com a vantagem única defazer mais sensível a
Imperial Colégio O. Pedro li, onde fundou o criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na
grêmio literário "Amor ao Progresso". influência de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com uma saudade
Cursou Direito em São Paulo, concluindo no hipócrita dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não
Recife a formação universitária. Ao longo nos houvesse perseguido outrora, e não viesse de longe a enfiada de decepções que nos
dessa fase, exerceu grande I iderança, agora ultrajam.
também no jornalismo e na política
partidária. Participou intensamente das Aqui, como acontece em todo o livro, há por um lado a criança educada exotica
agitações políticas da 1 a República na mente na estufa de carinho que é o regímen do amor doméstico, o poema dos cuidados
qualidade de Florianista exaltado. maternos, e, por outro, a consciência das ilusões desta criança, do caráter de artifício
Entretanto, a tendência à morbidez, a sentimental do amor doméstico, dos cuidados matemos.
sensibilidade doentia e a solidão que
Tal consciência, ou tal interpretação do passado que percebemos repleta de amar
percebemos na maioria das páginas de
<x:
O A teneu - obra cuja importância para o
gura, decepcionada, infeliz é a mola propulsora do romance, o fio que puxa a memória
o
Realismo e para a I iteratura brasileira em
�z geral estudaremos - venceram-no:
através da qual O Ateneu vai sendo tecido.
Ao relatar os episódios emocionalmente mais marcantes, mais traumatizantes das
UJ suicidou-se com um tiro no coração, aos 32 experiências de Sérgio-menino durante os dois anos em que esteve interno no Ateneu,
� anos, em pleno dia de Natal, na Capital do Sérgio-adulto não rememora apenas o próprio sofrimento, a dolorosa descoberta das
o país.
u atrocidades cometidas nos bastidores do grande colégio da época, freqüentado pela fina
Obras principais
<x: flor da mocidade brasileira. Ao mesmo tempo, procurando refletir sobre o que viveu,
a:
::>Romance: O Ateneu e Agonia !romance o que sentiu, constrói uma opinião negativa a respeito das pessoas; da solidão e da falta
incompleto, encontrado em seus papéis).
a:
� Novela: Uma tragédia na Amazonas.
de solidariedade entre elas.
Assim, quer dizer, acrescentando às impressões da criança as reflexões amargas
UJ Poema em prosa: Canções sem metro, do adulto, Raul Pompéia nos legou um romance de formação, romance cujo traço mais
1- publicada postumamente. fecundo é "a saudade que os desajustados carregam pela existência em fora do 'conche
:::i
Conto: Alma marta, dentre outros. publicados
- go placentário', as arestas vivas que representam para eles cada movimento dos outros",
no jornal Gazeta da Tarde. o
na opinião de Lúcia Miguel Pereira.
84
Para fixarmos a percepção do foco narrativo de O Ateneu, que procuramos explicitar, vamos
ler outro fragmento no qual novamente encontramos de forma nítida o cruzamento das impressões
infantis com as reflexões do adulto. Trata-se de uma das visitas de Sérgio ao colégio, antes de nele
ingressar:
Eu me sentia compenetrado daquilo tudo, não tanto por entender bem, como pelafaci
lidade da fé cega a que estava disposto. . . (reflexões do adulto).
Oh, que não seria o colégio, tradução concreta da alegoria, ronda angélica de cora
ções à porta de um templo, dulia permanente das almas jovens no ritual da virtude!
(impressões infantis).
Enredo
"O Ateneu pode ser considerado como uma sucessão de quadros, dos quais alguns perfeitos
( . . . ) Mas, apreciadas em conjunto, essas cenas, por mais nítidas que sejam, começam a esbater-se,
tomam-se meros ilustrativos de uma figura única, a de Sérgio: este aparece indiretamente, recons
truído pelas sensações que cada episódio lhe despertara."
(Lúcia Miguel Pereira - obra citada)
A comparação entre os episódios de O Ateneu e uma sucessão de quadros é valiosa para com
preendermos alguns mecanismos do enredo do livro.
Composto de doze capítulos, podemos dizer que há certa linearidade cronológica no roman
ce, na medida em que ele se inicia com a ida de Sérgio ao internato e termina com o incêndio deste,
dois anos depois.
Entretanto, assim como um episódio necessariamente não se subordina ao outro, não parece
haver rigidez, do ponto de vista da seqüência dos eventos, entre os capítulos de O Ateneu. Daí a
perfeição da expressão sucessão de quadros para caracterizá-los; quadros, vale acrescentar, mais
descritivos que narrativos; mais destinados a reconstruir os aspectos da vida de Sérgio no interna
to, ou melhor, as sensações que esta vida lhe causa, que a relatar acontecimentos ou ações. Além
disso percebemos com nitidez em nossa leitura a intenção do autor de criticar o sistema educativo
do colégio: suas punições, seu autoritarismo, o regime de hipocrisia e de espionagem instituído por
Aristarco, o diretor.
V amos fazer um sumário do enredo do livro, correndo os olhos pelo seus episódios mais
importantes.
Sumário
No primeiro capítulo são descritas as duas visitas de Sérgio ao Ateneu, antes da matrícula.
Vemos aí as primeiras impressões do menino em relação ao colégio e ao seu diretor.
A belafarda negra dos alunos, de botões dourados, infundia-me a consideração tímida de um
militarismo brilhante, aparelhado para as campanhas da ciência e do bem.
Quando, acompanhado pelo pai, Sérgio se matricula, Aristarco o aconselha, num tom de cen
sura, que corte os cachinhos do cabelo. A esposa do diretor, Ema, opõe-se à intransigência do
marido: defende-lhe os cabelos e desperta-lhe uma atração ao mesmo tempo erótica e filial que
voltará a aparecer no final do romance. Aristarco, entretanto, rouba a cena de ambos clamando
como para um auditório de dez mil pessoas, como um leiloeiro, os seus trinta anos de serviços à
causa santa da instrução.
O segundo capítulo é o da chegada de Sérgio ao internato: após desfalecer de vergonha por
ter de ir à lousa na frente de todos, conhece Rabelo, um dos melhores alunos, que lhe conta ver
dadeiras atrocidades do dia-a-dia do colégio. Pinta os colegas como tipos perversos, maldosos,
depravados. Recomenda-lhe de forma veemente fazer-se forte, fazer-se homem, não ter proteto
<{
res, pois
•W
ll...
os gênios fazem aqui dous sexos, como se fosse uma escola mista. Os rapazes tímidos, ingênuos,
�
sem sangue, são brandamente impelidos para o sexo da fraqueza; são dominados, festejados, perver o
tidos como as meninas ao desamparo. ll...
__J
Apavorado com esta conversa, com um folheto obsceno que lhe cai às mãos, com as provoca :::>
<{
ções do graúdo Malheiro, com quem acaba brigando, Sérgio tem pesadelos durante a noite. 0:::
Desiludido, decepcionado pela distância entre o que sonhara e o que vivera, sente-se só, fraco, des -
protegido e saudoso da família.
85
A partir do capítulo três, Sérgio declara-se aclimatado no colégio: estava aclimatado, mas eu
me aclimatara pelo desalento, como um encarcerado no seu cárcere. Neste capítulo ocorre o epi
sódio da natação: Sérgio toma banho num tanque com os colegas quando um deles tenta afogá-lo.
Sanches, que depois lhe parece ter sido o causador do incidente, salva-lhe a vida. Sérgio, agrade
cido, reprime a repulsa que ao primeiro olhar sentira por ele - o primeiro da classe - tornando
se seu amigo. De amigo, Sanches transforma-se no protetor de Sérgio, a quem ensina de forma
maliciosa todas as matérias e de quem tenta se aproximar sexualmente. Sérgio reage com uma
resistência passiva à sedução de Sanches, deixando-se levar pela efeminação mórbida das escolas
até o momento em que consegue se afastar, num rasgo de heroísmo, movido por um asco instinti
vo que Sanches lhe causava. Este, escolhido como vigilante da turma de Sérgio, passa a maltratá
lo, a persegui-lo.
Sérgio, por vingança, resolve escandalizar o mundo com uma vadiação sem exemplo; torna
se o último da aula...
Vemo-lo, então, ao longo do capítulo quatro, num período de depressão contemplativa:
tendo descido ao fundo do descrédito escolar - suas notas lidas publicamente pelo diretor no "tri
bunal supremo" do "livro de notas" - Sérgio torna-se beato, evangélico. Numa febre religiosa que
o faz admirar o Ribas, que canta como os anjos, e transformar em capela seu compartimento na
sala de estudos, compartimento onde deposita uma velha gravura de Santa Rosália, presente de
uma priminha morta que fora boa, maternal com ele, Sérgio também se aproxima de Franco -
colega que vive de joelhos, em eterna penitência pelas faltas que comete. Aristarco descobre mais
uma de tais faltas - urinar na água de lavar pratos - e novamente o castiga. Franco, ajudado por
Sérgio, sai em vingança no meio da noite, quebra garrafas e joga os cacos no tanque de banho cole
tivo.
Atormentado de remorso pela cumplicidade, Sérgio adormece rezando, na capela. De manhãzi
nha fica sabendo do fracasso da vingança; os meninos, devido à chuva, se banharam no chuveiro...
Ao se recusar ao castigo impingido por Aristarco a ele e a Franco pela saída noturna, Sérgio
sente em si nova vitalidade.
Inicia-se assim no capítulo cinco a sua fase de independência. Visita o pai, conta-lhe das notas
baixas e, ajudado por ele, recupera-se. Aumenta a antipatia entre Sérgio e o diretor.
Barreto, um colega para quem o mal eram as fêmeas, aproxima-se de Sérgio com suas idéias
sobre o inferno e a perdição. Idéias que parecem comprovar-se através do episódio de um assassi
nato ocorrido no colégio por causa de Ângela, a camareira de D. Ema, sensual e provocadora.
Bento Alves, rapaz hercúleo e misterioso, consegue prender o assassino e assim se torna o novo
herói do Ateneu.
No capítulo seis funda-se no colégio o Grêmio Literário Amor ao Saber - instituição des
tinada ao exercício da retórica - do qual Nearco da Fonseca, aluno novo fracassado nos espor
tes, mostra-se líder imbatível. Sérgio comparece às reuniões, aproximando-se da biblioteca e do
bibliotecário, Bento Alves, com quem tem nova amizade "efeminada".
Barbalho, inimigo antigo de Sérgio, vê Bento Alves presenteá-lo com flores e conta o fato a
Malheiro, a fim de que este, rival de Bento Alves, provoque-o. Após o discurso do Dr. Cláudio,
Bento Alves e Malheiro brigam. Bento Alves é preso e Sérgio entrega-se de coração ao desespe
ro das damas romanceiras pelo gentil cavalheiro.
O capítulo sete é delicado à normalidade da vida no internato e aos momentos de tédio sen
tidos pelos estudantes, que procuram diminui-lo com conversas, provocações, movimentos nos
dormitórios, jogos e transações comerciais. O capítulo termina com as provas de fim de ano, nas
quais Sérgio se sai bem, e com a descrição das tentativas que os estudantes realizam de fazer o
<( retrato de Aristarco, adulando-lhe o êxtase da vaidade.
o No capítulo oito há o início de um novo ano letivo. Sérgio, após dois meses de férias, sente
�z se mais encarcerado do que nunca. Os passeios coletivos do internato, como o passeio ao
Corcovado e o piquenique no Jardim Botânico, surgem como ocasiões de festa e de alegria, dimi
w
� nuindo o sentimento de prisão.
o. Na volta de um destes passeios, Aristarco, que encontrara uma carta amorosa entre dois rapa
u zes, cria uma "inquisição" para descobrir os culpados: doze alunos são castigados publicamente,
<( sob o olhar amedrontado dos outros. Nesse ínterim, Bento Alves agride Sérgio surpreendentemen
a:
:::1 te e os dois brigam, sem perceberem a presença de Aristarco. Quando o fazem, Bento Alves foge
�
a:
e Sérgio enfrenta Aristarco, inclusive fisicamente. Deixando-o perplexo, Aristarco silencia sobre
o caso e Bento Alves sai do colégio.
w Uma confusão no recreio, gerada por Franco - o eterno penitente- e pelo inspetor Silvino,
1-
_J envolve vinte rapazes, dentre os quais Sérgio. Enquanto Aristarco os repreende acontece no colégio
- uma revolta contra a refeição: "a revolta da goiabada". O evento inverte a situação; Aristarco se des
culpa das "goiabadas de banana" servidas aos alunos há três meses e a "ordem" volta a imperar...
86
No capítulo nove surge nova amizade para Sérgio, a mais pura e a mais recíproca de todas:
Egbert. Juntos estudam, conversam, sonham; juntos lêem e escrevem poemas, tentativas de
romances, Sérgio �entindo por Egbert cuidados e ternuras de irmão mais velho. Graças às boas
notas que obtêm, ambos recebem como prêmio um convite para jantar na casa do diretor.
Inicialmente de má-vontade, Sérgio depois se encanta com o evento, totalmente seduzido por D.
Ema, a mulher de Aristarco. Na volta do colégio, Sérgio olha para Egbert como para uma recor
dação . . . começa a esfriar, assim, a fraternidade entre ambos.
O capítulo dez mostra mais um período de descontentamento de Sérgio. Ao mudar para o dor
mitório dos maiores fica mais afastado de Egbert, descrevendo, solitário, as conversas dos cole
gas, a sensualidade que lhes desperta a camareira Ângela, o processo de efeminação de alguns, os
passeios noturnos que um grupo faz ao jardim de Aristarco.
No capítulo onze o presidente do Grêmio, Dr. Cláudio, faz uma série de preleções, uma das
quais sobre educação, colocando o internato como espelho da sociedade.
Sérgio lembra-se de Franco, sente pena e vai visitá-lo. Encontra-o doente, febril, após sua
última prisão. Alguns dias depois, morre o menino.
A preparação para a solenidade da distribuição bienal de prêmios e a oferta de um busto de
bronze a Aristarco ocupam a todos, no final do ano. Durante a solenidade, na presença da prince
sa Regente, do Exmo. Ministro do Império e de várias figurões da Instrução Pública, Aristarco
inunda a arena com o seu discurso e, após a entrega de medalhas e menções honrosas é homena
geado. Quando se descobre o seu busto, Aristarco fica indignado de ciúmes daquele metal...
O capítulo doze finaliza O Ateneu, sendo iniciado com um novo período de férias escolares.
Sérgio, com sarampo, a família na Europa devido à doença do pai, fica na enfermaria do colégio,
sob os cuidados de D. Ema. Há intimidade, doçura, amor maternal e filial e atração erótica entre
ambos. Sérgio, embevecido, nem repara na carta do pai, que recebe da Europa.
A última cena do romance é o incêndio do Ateneu, que teria sido provocado por América, um
como um deus caipora, triste, presencia
menino forçado pela família a ficar na escola. Aristarco,
o desastre universal de sua obra. Ema desaparece. Sérgio finaliza o relato, com estas palavras:
Aqui suspendo a crônica das saudades. Saudades verdadeiramente? Puras recordações, sauda
des talvez, se ponderarmos que o tempo é a ocasião passageira dosfatos, mas sobretudo - ofune
ral para sempre das horas.
Personagens
"O livro, pode-se dizer, é a memória adulta de uma experiência infantil vista por dentro. Os
limites da visão, portanto, são ditados pela criança; só pode ser narrado ou o:: omentado o que esta
experimentou. O Ateneu atende essa exigência com bastante rigor. Em coeréncia com a perspecti
va tomada, a única interioridade que apresenta é a do próprio autor. As outras personagens são
todas vistas de fora, interpretadas à luz dos traços principalmente visuais, confrontados com um
<(
pessimismo biologista, feroz e irônico."
·w
(Roberto Schwarz, A Sereia e o desconfiado.) a..
�
O fato de a experiência infantil de O Ateneu ser vista por dentro, isto é, de só ser narrado ou o
a..
comentado o que Sérgio experimentou, tem grande importância no estudo dos personagens da ...J
obra. Este fato explica, por exemplo, o tom caricatural com que Sérgio descreve os personagens, :::>
<(
todos envolvidos, em maior ou menor grau, na negatividade de sua vivência no Ateneu. a:
Assim, Aristarco, o diretor, encabeça a lista dos seres deploráveis que habitam o interna -
to na visão de Sérgio-adulto contaminada pelas emoções de Sérgio-menino. Autoritário, gran-
81
diloqüente, egocêntrico, moralista, cruel e dissimulado, hipócrita, o diretor nos é apresentado
como
o homem sanduich da educação nacional. Lardeado entre dous monstruosos cartazes. Às cos
tas, o seu passado incalculável de trabalhos; sobre o ventre, para a frente, o seu futuro: a reclame
dos imortais projetos. Soldavam-se nele o educador e o empresário com uma peifeição rigorosa de
acordo, dois lados da mesma medalha; opostos, masjustapostos. Em suma, uma personagem que, ao
primeiro exame, produzia-nos a impressão de um enfermo, desta erifermidade atroz e estranha: a
obsessão da própria estátua.
Vemos nestas passagens, escolhidas dentre inumeráveis do mesmo tipo espalhadas pelo
romance, a terrível imagem que Sérgio mostra de fora e na qual corporifica todos os horrores que
sofreu. Por este motivo, trata-se de um dos personagens principais do livro, sendo que o outro é o
próprio Sérgio - protagonista e narrador.
Observe que a hipersensibilidade de Sérgio, a timidez e a solidão em que vive aparecem-nos
indiretamente, quer dizer, através das impressões que um homem como Aristarco lhe provoca.
Uma explicação para a aversão com que Sérgio descreve o diretor do colégio, de resto como
já dissemos fazendo-o assumir a posição de símbolo de um universo detestável, seria o caráter
autobiográfico do livro de que nos fala Mário de Andrade:
"Raul Pompéia foi um revoltado e isso lhe ditou a vida penosa e a obra irregular. Mas no meio
desta eleva-se um marco do romance brasileiro: O Ateneu. Não é possível negar, as provas são
fortes de que neste livro de ficção o autor vazou a sua vingança contra o seu internato no Colégio
Abílio. O Ateneu é uma caricatura sarcástica e, relativamente a Raul Pompéia, dolorosíssima, da
vida psicológica dos internatos."
Mário de Andrade
Aspectos da literatura brasileira
O suicídio de Raul Pompéia numa noite de Natal, aos 32 anos, parece reforçar a hipótese de
ter sido O Ateneu um "livro vingador" - do Colégio Abílio e de seu diretor, o Barão de Macaúbas
- e de o adulto não ter conseguido superar os traumas infantis. Entretanto, não só Mário de
Andrade, mas os estudiosos de literatura em geral reconhecem que a capacidade artística do escri
tor ultrapassou a sua intenção pessoal, transformando O Ateneu num denso e consistente romance
psicológico sobre a solidão dos desajustados e sobre a perversidade da vida nos internatos.
Malheiro, Barreto, o beato para quem o mal eram as fêmeas, Franco, o penitente e Ângela, a
camareira de D. Ema que não escolhia amores. Era de todos como os elementos; como os elemen
tos, sem remorso das desordens e depredações.
Rabelo, venerável e conselheiro, o misterioso Bento Alves e Egbert, além de Sanches, foram
os quatro colegas que se aproximaram de Sérgio.
De Rabelo ele se afastou para aceitar a proteção, a submissão voluntária, que dedicou a
Sanches e a Bento Alves. Com ambos manteve uma relação repleta de insinuações homossexuais,
na qual ocupava o papel de efeminado. Este detalhe é importante para reconhecermos a presença
<C( do tema da homossexualidade na vida do internato como um todo e mais especificamente na per
c sonalidade de Sérgio. Para ele, o amor está ligado à necessidade de proteção, como percebemos
�z observando os momentos do romance em que sente saudade dos pais. Na verdade, tais momentos
só ocorrem quando Sérgio se vê sozinho e desamparado, não parecendo se tratar de saudade "de
w
fato", mas de carência de cuidados e de amparo. A "efeminação" de Sérgio não é vista no roman
�
o ce, portanto, do ponto de vista biológico, mas psicológico.
(J Egbert, a amizade verdadeira, o irmão mais novo que ele esperava dormir para velar, foi sin
<( tomaticamente preterido na afeição de Sérgio, de forma repentina e sumária, desde o instante em
a:
::J que Ema, a esposa de Aristarco, lhe deu atenção.
�a: Misto de mãe e de amante, esta mulher, insatisfeita no casamento e disponível para ele, apaga
de sua cabeça o amigo com quem inverteu suas relações de protegido e faz com que nem repare
w na carta dos pais, chegada da Europa . . . Entretanto, no final do romance, Sérgio mal menciona o
1-
::::i seu desaparecimento. Ela se enevoa no ar, conforme ocorre com os outros, constituindo, como de
- resto todos os personagens do livro, mais um repouso momentâneo de uma solidão intrinseca,
doentia: a solidão de Sérgio, a sua tendência para a dor e para a incomunicabilidade.
88
Linguagem
Embora haja passagens que se aproximam do Naturalismo no romance, principalmente aque
las em que se faz a caricatura de cenas e de certos personagens, não podemos dizer que esta seja
a tendência literária nele predominante. Isto porque a personalidade de Sérgio não se alterou ao
longo de sua estadia no internato, como querem os defensores da idéia de que o comportamento
humano decorre de influências do meio ambiente. Ao contrário, Sérgio se mantém frágil e submis
so, tímido e arredio, a despeito da aprendizagem de malícia e perversão que teve no Ateneu.
Vejamos entretanto uma passagem que lembra este estilo, presente na obra estudada:
Os olhos riam destilando uma lágrima de desejo; as narinas ofegavam, adejavam trêmu
las por interoalos, com a vivacidade espasmódica do amor das aves; os lábios, animados de
convulsões tetânicas, balbuciavam desafios, prometendo submissão de cadela e a doçura dos
sonhos orientais. Dominava então pela oferta abusiva, de repente: abatia-se ã derradeira
humilhação, para atrair de baixo, como as vertigens. Ali estava, por terra, a prostituição da
vestal, o himeneu da donzela, a deturpação da inocente, três servilismos reclamando um
dono; apetite, apetite para esta orgia rara sem convivas!
(trecho de uma descrição de Ângela)
Se nos lembrarmos dos episódios d' O Ateneu como "sucessão de quadros", recordaremos tam
bém termos dito que o mais importante no romance não são exatamente os quadros, mas as
impressões que causam em Sérgio. Deste ponto de vista, acentuado pela falta de rigidez cronoló
gica entre os capítulos, pelo fato de os episódios não se subordinarem necessariamente entre si,
podemos afirmar ser impressionista a sua estrutura.
Vamos ler um fragmento descritivo que nos lembra o estilo impressionista:
A sala do professor Mânlio era ao nível do pátio, em pavilhão independente do edificio princi
pal,· com duas outras do curso primário, o alojamento da banda de música e o salão suplementar de
recreio, vantajoso em dias de chuva. Formando ângulo reto com esta casa, uma extensa construção
de tijolo e tábuas pintadas, sala geral de estudo no pavimento térreo e dormitório em cima, concor
ria para fechar metade do quadrilátro do palco, que o grande edificio completava, revertendo-se em
duas alas, como os braços da reclusão severa. No fo.ndo desta caixa desmedida de paredes, dilata
va-se um areal claro, estéril, insípido como a alegria obrigatória; algumas árvores de cambucá mos
travam, em roda, a folhagem fu;a, com o verdor morto das palmas de igreja, alourada a esmo da
senilidade precoce dos ramos que sofrem, como se não coubesse a vegetação no internato; a um
canto, esgalgado cipreste subia até as goteiras, tentando fo.gir pelos telhados.
O sol vinha também à capela e colava de fora a fronte às vidraças, brando ainda do des
pertar recente, fresco da toilete da aurora, com medo de entrar; corado de vergonha de não
rezar, pobre astro ateu. Pelas janelas abertas, esgalhavam-se para dentro frondosas ramas de
jasminetro, como uma invasão de floresta; e os jasmins de véspera, cansados, debulhavam-se
em conchinhas de nácarpelo soalho, mortos, expirando no ambiente a alma livre do aroma . . .
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89
11 (Pompéia,
PUC-SP) Considerando a obra O A teneu,
de Raul � (FUVEST) Leia o texto abaixo:
como um todo, constata-se nela uma
perfeita correspondência entre a sociedade do Ardia efetivamente o Ateneu. Transpus a correr a
Ateneu e a sociedade de fora dele, porque: porta de comun icação entre a casa de Aristarco e
a) em ambos, os valores sociais, éticos e morais o colégio.
são i rrepreensíveis. (Raul Pompéia - O Ateneu)
b) a figura afável do diretor de escola equivale à do Considerando a obra a que pertence o trecho
pai de família. acima:
c) tanto na escola quanto na família a criança se
sente na estufa de carinho que é o regime do a) Cite o nome do narrador-personagem
amor doméstico b) Saliente a importância do episódio a que se
d) escola e sociedade completam eficazmente a refere o trecho.
educação da criança e a preparam para a vida.
e) o internato é um pequeno mundo que reflete a N ( U N I CAMP) No capítulo 7 de O A teneu, ao descre
sociedade e seus desequilíbrios. liil ver a exposição de quadros dos a l unos do colégio,
o narrador assim se refere aos sentimentos de
(UF-RS) As afirmações seguintes se referem ao Aristarco:
romance O A teneu, de Raul Pompéia:
1- O narrador Sérgio, ao relembrar sua experiência Não obstante, Aristarco sentia-se lisonjeado pela
de adolescente vivida no internato, faz uma críti intenção Parecia-lhe ter na face a cocegazinha sutil
ca ao modelo educacional autoritário do Brasil do creion passando, brincando na ruga mole da
imperial. pálpebra, dos pés de galinha, contornando a con
1 1- A linguagem de Raul Pompéia é caracterizada cha da orelha, calcando a comissura dos lábios,
como prosa artística pelo uso do tom requinta entrevista na franja pelas dobras oblíquas da pele
do e pela utilização de figuras estilísticas na ao nariz, varejando a pituitária, extorquindo um
escritura. espirro agradável e desopilante.
1 1 1- Segundo a visão de Raul Pompéia, a escola (Rau l Pompéia - O Ateneu)
reproduz a mesma estrutura corrompida e
degradada da sociedade da época, representa a) A que intenção se refere o narrador?
da por todos os integrantes da instituição: dire b) Quais características de Aristarco estão sugeri
tor, professores, alunos e funcionários. das neste comentário?
Quais estão corretas? c) Lendo esta descrição, você considera que o nar
a) Apenas a I rador compartilha dos mesmos sentimentos de
b) Apenas a 1 1 Aristarco? Justifique a resposta:
c) I e 11
d) 11 e 111
e ) Todas
91
Narrador
Triste Fim de Policarpo Quaresma é narrado em terceira pessoa, por um narrador que pode
ser denominado onisciente intruso. Onisciente porque conhece a interioridade dos personagens e
intruso porque, embora não participe do enredo, demonstra ao longo de toda a obra a adesão ao
protagonista: o major Policarpo Quaresma.
Personagem quixotesca, nacionalista, ufanista, sem nenhum senso da realidade prática, mas
embriagado de amor pelo país, o major Quaresma é descrito com imensa empatia pelo narrador,
ao longo do romance.
Em seu desvario por melhorar o Brasil, em cada um dos proj etos a que se dedicou - o lin
güístico, que consistiu em tomar o tupi-guarani nossa língua oficial, em detrimento do português;
o agrícola, por meio do qual quis valorizar nossa terra e nossas plantações e o político, em que fez
parte da Revolta da Armada, lutando a favor do governo republicano de Floriano Peixoto - o
major Quaresma fracassa, já que, sendo um visionário, nada vê, nada percebe, nada compreende,
em termos pragmáticos.
No entanto, a proximidade com que o narrador focaliza a sua humanidade simplória mas ínte
gra, tanto quanto o distanciamento irônico com que descreve grande parte dos demais persona
gens - uma galeria de burocratas, bajuladores e oportunistas - faz com que, através da ingenui
dade dos olhos do major Quaresma, os nossos comecem a enxergar, a desvendar as últimas ilusões
românticas, não exatamente sobre o patriota, mas sobre a pátria que o patriota ingênuo acredita
existir...
Vejamos alguns exemplos da adesão do narrador a Policarpo, da centralização do foco narra
tivo da obra na perspectiva de seu protagonista:
Exemplo 1
Durante os lazeres burocráticos, estudou, mas estudou a Pátria, nas suas riquezas natu
rais, na sua história, na sua geografia, na sua literatura e na sua política. Quaresma sabia
as espécies de minerais, vegetais e animais que o Brasil continha; sabia o valor do ouro, dos
diamantes exportados por Minas, as guerras holandesas, as batalhas do Paraguai, as nascen
tes e o curso de todos os rios. Defendia com azedume e paixão a proeminência do Amazonas
sobre todos os demais rios do mundo. Para isso ia até ao crime de amputar alguns quilôme
tros ao Nilo e era com este rival do ''seu " rio que ele mais implicava. Ai de quem o citasse na
sua frente! Em geral, calmo e delicado, o majorficava agitado e malcriado, quando se discu
tia a extensão do A mazonas em face da do Nilo.
Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha elefeito de sua vida? Nada.
Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intui
to de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua
virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o pre
miava, como ela o condecorava? Matando-o. E o que não deixara de ver, de gozar, de fruir,
na sua vida? Tudo. Não brincara, não pandegara, não amara - todo esse lado da existência
que parece fugir um pouco ã sua tristeza necessária, ele não vira, ele não provara, ele não
<( experimentara.
o Desde dezoito anos que o tal patriotismo lhe absoroia e por ele fizera a tolice de estudar
� inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois quefossem . . . Em que lhe contri
z buiria para a felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada . . . O importante é que ele
w
�
tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas causas de tupi, do folk-lore, das suas tentati
vas agrícolas. . . Restava disso tudo em sua alma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!
u
<( (cap . 5 - A afilhada - Terceira Parte)
a:
:::>
�a: Comentário: Enquanto no primeiro exemplo observamos a largueza da entrega de Policarpo a
w seus ideais patrióticos, no segundo, próximo ao desfecho da obra, o narrador revela a desilusão que
1-
::J o protagonista tem com a pátria, a qual amara ingenuamente. Repare que em ambos os casos o dis
- curso indireto livre, ou seja, a confusão entre a voz do narrador e a voz do personagem, é utili
zado para marcar a proximidade daquele em relação a este.
92
Enredo
Conhecido como major Quaresma, o nosso Policarpo é um funcionário civil do Arsenal da
Guerra, cujas atitudes metódicas e corretas, ao longo de toda a vida, fazem com que seja tido, entre os
vizinhos, amigos e colegas de trabalho, como uma espécie de padrão de respeitabilidade e confiança.
No entanto, o major começa a agir de modo estranho. Adquire um violão, e passa a ter aulas
do instrumento com Ricardo Coração dos Outros, o que abala sua reputação.
A essa se segue uma sucessão de idiossincrasias, que parecem cada vez mais comprovar a
"insanidade" do major aos olhos da população do bairro - São Cristóvão - e do seu convívio
social.
O fato é que, depois de trinta anos de meticuloso estudo e de paciente meditação patriótica, ao
longo dos quais foi se tomando um nacionalista obcecado, cultivador de um fanatismo xenófobo,
o major resolveu concretizar em obras as suas idéias.
Por um lado, tal fato o distancia do conformismo em que se arrastam os burocratas e milita
res reformados - pessoas mesquinhas, medíocres e incompetentes - que povoam o romance. Por
outro, entretanto, o mesmo fato, na medida em que acentua a incompatibilidade entre o ideal que
Policarpo representa e o real que o cerca, desencadeia a sua perdição.
No primeiro grande arroubo nacionalista, envia ao congresso Nacional um requerimento, soli
citando a adoção do tupi como língua oficial do Brasil.
A partir de então, o major toma-se alvo de comentários jocosos nas ruas, nos meios burocrá
ticos, na própria repartição.
Mas não se deixa intimidar: a firmeza de propósitos constitui um de seus traços peculiares.
Recebe as visitas chorando e gesticulando como um genuíno goitacá e manda ao comandante-dire
tor da repartição onde trabalha, um oficio de rotina redigido em língua indígena ...
Na medida em que assim se confirmam as suposições sobre sua loucura, Quaresma é interna
do num hospício. Nele permanece por seis meses, mantendo inalteradas as convicções nacionalis
tas que o movem e contando com apenas dois amigos realmente capazes de entendê-lo e respeitá
lo: a afilhada Olga e o violeiro Ricardo Coração dos Outros.
O ideal de preservar as tradições e os costumes do país dá lugar ao de operar uma reforma na
agricultura, iniciando-se com esta mudança a segunda fase da trajetória do major Quaresma.
Acompanhado por Anastácio, um empregado de confiança, muda-se para o Sítio do Sossego, a
fim de levantar o ânimo, que fora duramente abatido na convivência com a alienação mental: de
todas as causas tristes de ver no mundo, a mais triste é a loucura; é a mais depressora e pungente.
Novamente engajado num projeto concreto, Policarpo o planeja e avalia, sempre preciso e
meticuloso; acaba enfim por pô-lo em prática.
Outra decepção o aguarda, apesar de todo o empenho, de todo o esforço inutilmente gastos: a
comercialização dos produtos rende-lhe um lucro mínimo e, pior do que isso, os trabalhadores
rurais revelam-se apáticos e destituídos de espírito de solidariedade.
Um fato histórico transposto para a literatura vem interromper a experiência de Policarpo, que
no entanto já estava fadada ao fracasso: explode a Revolta da Armada contra o governo do mare
chal Floriano. Policarpo, defensor árduo do "Marechal de Ferro", envia-lhe um telegrama de soli
dariedade. Em seguida, deixa o Sossego para participar da luta contra os rebeldes.
Aqui já nos aproximamos do desfecho do romance: a visão idealizada que Quaresma cultiva
ra a respeito de Floriano vai sendo abalada, na medida em que testemunha as atrocidades e injus
tiças cometidas por seus soldados.
Sem qualquer conhecimento a respeito de guerra, o major vai à frente de batalha, mas logo é
punido, por sua condescendência para com a tropa que chefiava.
Quando o governo consegue a vitória, Quaresma, em vez de se unir ao coro dos bajuladores e
oportunistas, denuncia as arbitrariedades ocorridas com prisioneiros da Revolta. O "Marechal de
Ferro", agora já visível ao protagonista como um ditador sem nenhum interesse pela pátria,
denomina-o visionário, prende-o por crime de alta traição e o condena à morte.
Esta, a ironia maior: o regime que Policarpo Quaresma defendera de maneira tão entusiasta
o
acaba responsável pelo seu "triste fim"; o único patriota de fato presente no romance é sumaria 1-
w
mente sacrificado, como um traidor da pátria... a:
a:
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lll
Personagens
<(
Principais �
::i
Policarpo Quaresma, o protagonista, seguido de Olga e Ricardo Coração dos Outros, seus -
seguidores, podem ser considerados os personagens que mais se destacam no romance.
93
O protagonista - Policarpo Quaresma - funcionário civil do Arsenal de Guerra, consti
tui ao mesmo tempo um homem e um tipo, como afirma Lúcia Miguel-Pereira; nacionalista exal
tado, imbuído de um sentimento sério, grave e absorvente pelo seu país, ele personifica o idealis
mo quixotesco e bem intencionado, que não sobrevive em meio à hipocrisia, ao arrivismo e à
supremacia do interesse pessoal que caracterizam a sociedade.
Olga, afilhada do major, com seu ar de reflexão e curiosidade, com seu espírito ao mesmo
tempo sensível e inteligente, caracteriza-se fundamentalmente por um inconformismo em relação
ao valores de sua época. Este sentimento a aproxima de Policarpo, seu padrinho, tanto quanto a
marginaliza em relação aos demais personagens.
Ricardo Coração dos Outros é tipicamente um artista popular. Violeiro, ele quer resgatar a
respeitabilidade e a importância nacional do instrumento, marginalizado e considerado vulgar.
Como Olga, mantém-se ao lado de Quaresma, acreditando em seus sonhos, até o momento da exe
cução do major.
Secundários
Adelaide, a irmã de Quaresma, embora zelosa e carinhosa com ele, não conseguia com
preendê-lo, nos seus sonhos e ideais nacionalistas, por constituir uma personagem acomodada ao
sistema, sem grandes vôos e reflexões.
Coleoni, o pai de Olga e compadre de Quaresma, representa a figura do imigrante enriqueci
do, mas solitário: vindo da Itália, conseguiu ascensão social; entretanto, não se adaptou aos
padrões de uma sociedade canhestra, que se pretendia refinada e culta.
Albernaz, o general que nunca foi à guerra, é um dos inúmeros burocratas que compõem a
vasta galeria presente no romance. No entanto, generoso e leal, preocupa-se sobretudo em casar a
filha Ismênia com o doutor Cavalcanti, o diplomado que para a família da noiva, de mentalida
de provinciana, era mais que um bom partido, de futuro promissor; era mais que um simples
homem, era homem e mais alguma coisa sagrada e de essência superior. No entanto, ele abando
na a noiva, moça triste, de pouca imaginação e inteligência fraca, cujo único pensamento era o de
que toda a existência só tendia ao casamento. Ao ver sucumbir o único sonho que a alimentava,
lsmênia enlouquece, numa das cenas mais patéticas do romance.
Bustamante, um major que como Caldas se ocupava com demandas, transformando-as em
grande manía, ia diariamente ao quartel-general ver como andava a tramitação de seu requerimen
to e também dos requerimentos dos colegas. Servil e humilde, de antigo voluntário da pátria trans
forma-se em fanático por apenas uma idéia: a aposentadoria.
Caldas, contra-almirante militar entregue à burocracia das repartições, quando parece que vai
entrar "na ativa" - recebe o comando do navio "Lima Barros" - ironicamente jamais consegue
encontrá-lo ...
Armando, o médico, personifica o pedantismo e a falta de escrúpulo: casa-se com Olga, uma
herdeira endinheirada, concretizando o chamado "golpe do baú" e, além disso, dedica-se a escre
ver artigos empolados e ininteligíveis em seu pretenso "estilo clássico", ridicularizado ao longo do
romance.
Genelício, o funcionário público, é o arrivista típico, a falta de escrúpulo e de dignidade huma
na caricaturizadas ... Ele tudo faz para "subir na vida" e atingir posição social: não havia ninguém
mais bajulador e submisso do que ele. Nenhum pudor, nenhuma vergonha.
<(
o
�
z
Linguagem
w
� "(Em Triste Fim de Policarpo Quaresma), as cenas de rua ou os encontros e desencontros
o domésticos acham-se narrados com uma animação simples e discreta, as frases j amais brilham por
u
si mesmas, isoladas e insólitas (como resultava a linguagem parnasiana), mas deixam transparecer
<(
a: naturalmente a paisagem e as figuras humanas." (Alfredo Bosi - História Concisa da Literatura
:::> Bras i/eira)
!=i:
a: "Na verdade, poucos, neste país, pagaram tão caro como ele por terem se atrevido a falar em
w nome do oprimido com a mesma ferocidade do opressor. " (Arnoni Prado - Lima Barreto).
1-
:::J
- De linguagem combativa e ao mesmo tempo plástica e acessível, próxima da crônica jornalís
Exemplo 1:
Quaresma pôde então ver melhor a fisionomia do homem que ia enfeixar em suas mãos,
durante quase um ano, tão fortes poderes, poderes de Imperador Romano, pairando sobre
tudo, limitando tudo, sem encontrar obstáculo algum aos seus caprichos, às suas fraquezas e
vontades, nem nas leis, nem nos costumes, nem na piedade universal e humana.
Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se agar
rava numa grande "mosca''; os traçosflácidos e grosseiros; não havia nem o desenho do quei
xo ou olhar quefosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redon
do, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, da raça;
e todo ele era gelatinoso - parecia não ter nervos.
Não quis o major ver em tais sinais nada que lhe denotasse o caráter, a inteligência e o
temperamento. Essas causas não vogam, disse ele de si para si.
O seu entusiasmo por aquele ídolo político era forte, sincero e desinteressado. Tinha-o na
conta de enérgfco, de fino e supervidente, tenaz e conhecedor das necessidades do país,
manhoso talvez um pouco, uma espécie de Luís XIforrado de um Bismarck. Entretanto, não
era assim. Com uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do Marechal
Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo; e no seu temperamento, muita pre
guiça. Não a preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma preguiça mórbida, como
que uma pobreza de irrigação nervosa, provinda de uma insuficiente quantidade de fluido
no seu organismo. Pelos lugares que passou, tornou-se notável pela indolência e desamor às
obrigações dos seus cargos (. . .).
Dessa preguiça de pensar e agir, vinha o seu mutismo, os seus misteriosos monossílabos,
levados à altura de ditos sibilinos, asfamosas "encruzilhadas dos ta/vezes" que tanto reagiram
sobre a inteligência e imaginação nacionais, mendigas de heróis e grandes homens.
Essa doentia preguiça fazia-o andar de chinelos e deu-lhe aquele aspecto de calma supe
rior, calma de grande homem de Estado ou de guerreiro extraordinário.
(cap. l - Patriotas - Terceira parte)
Exemplo 2:
De fato ele estava escrevendo ou mais particularmente: traduzia para o "clássico " um
grande artigo sobre ''Ferimentos por arma de fogo ". O seu último truc intelectual era este do
clássico. Buscava nisto uma distinção, uma separação intelectual desses meninos por aí que
escrevem contos e romances nos jornais. Ele, um sábio, e sobretudo, um doutor, não podia
escrever da mesma forma que eles. A sua sabedoria superior e o seu título "acadêmico" não
podiam usar da mesma língua, dos mesmos modismos, da mesma sintaxe que esses poetastros
e literatecos. Veio-lhe então a idéia do clássico. O processo era simples: escrevia do modo
comum, com palavras e o jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picaua o período com
vírgulas e substituía incomodar por molestar, ao redor por derredor, isto por esta, quão gran
de ou tão grande por quamanho, sarapintava tudo de ao invés, empós, e assim obtinha o seu
estilo clássico que começava a causar admiração aos seus pares e ao público em geral.
Gostava muito da expressão - às rebatinhas; usava-a a todo momento e, quando a o
1-
punha no branco do papel, imaginava que dera ao seu estilo uma força e um brilho pascalia w
nos e às suas idéias uma suficiência transcendente. De noite, lia o padre Vieira, mas logo às 0::
0::
primeiras linhas o sono lhe vinha e dormia sonhando-se "físico'; tratado de mestre, em pleno <t:
Seiscentos, prescrevendo sangria e água quente, tal e qual o doutor Sangrado. al
A sua tradução estava quase no fim, já estava bastante pratico, pois com o tempo adqui <t:
rira um vocabulário suficiente e a versão era feita mentalmente, em quase metade, logo na �
primeira escrita. ::i
-
(cap. 1 - Patriotas - Terceira parte)
95
11 (UNICAMP) O trecho abaixo, escolhido por Lima 32. A construção psicológica d a galeria de perso
Barreto como epígrafe para introduzir a sua obra, nagens está mais a cargo do leitor do que do
Triste Fim de Policarpo Quaresma, comenta o autor.
confronto entre o ideal e o real.
O grande inconveniente da vida real e o (Cefet) Na obra Triste Fim de Policarpo Quares
que a torna insuportável ao homem superior é ma, o p rotagonista envia um requerimento ao
que, se transportamos para ela os princípios do Congresso Nacional, pedindo que:
ideal, as qualidades passam a ser defeitos, de
tal modo que, na maioria das vezes, o homem 1 . se proíbam os termos tupis-guaranis em língua
íntegro não consegue se sair tão bem quanto portuguesa.
aquele que tem por estímulo o egofsmo ou a 2. se decrete o uso obrigatório do tupi-guarani.
rotina vulgar. 3. se zele com maior interesse pela pureza da lín
(Renan, Marc-Aurele) gua portuguesa.
4. se adote o nome 'língua brasileira' para o por
a) cite dois episódios do livro em que o comporta tuguês falado no Brasil.
mento idealista de Policarpo é ridicularizado por 5. se adote uma redação oficial expurgada pelos
outras personagens. plebe ísmos brasileiros.
b) considerando-se a epígrafe citada, como pode
ser analisada a trajetória de Policarpo R (UFO P - MG) Triste Fim de Policarpo Quaresma
Quaresma? lill é, freqüentemente, considerado um romance
pré-modernista no sentido de que revela um
El
(UFPR-PR) É correto afirmar a respeito de Triste esforço para penetrar a fundo na realidade brasi
Fim de Policarpo Quaresma: leira, esforço este que será um dos pilares da
01 . A personagem central do romance é uma Revolução Modernista de 22.
espécie de Dom Quixote nacional. Você concorda com essa afirmação? Se con
02. Policarpo Quaresma é um otimista incurável. cordar, discuta os aspectos do romance em que
04. Os desajustes sociais mais os sofrimentos este esforço pode ser percebido. Se não concor
humanos, pela ótica de Quaresma, podem dar, justifique sua resposta :
ser superados com a aplicação da justiça, da
qual se considera um paladino. Quais são os três projetos aos quais se dedica
08. Quaresma pode ser entendido como um vi Policarpo Quaresma e qual a diferença do último
sionário, já que suas deduções não guardam em relação aos dois primeiros para a compreen
correlação com o ambiente nacional. são de sua trajetória existencial?
1 6. Coerente com sua visão ideológica da so
ciedade e da cultura brasileiras, Lima Barreto
procurou escrever um texto com linguagem
que não fosse rebuscada nem pedante.
11 2
momentos da obra, como por exemplo quando
envia ao Congresso Nacional um requerimento,
solicitando que o tupi-guarani seja transformado R Esta afirmação está correta. O esforço do
na língua oficial do país. Outra atitude de lill romance pari:l penetrar fundo na realidade brasilei-
Policarpo que acentua a distância entre o seu ra é percebido principalmente por meio da crítica
idealismo e a mediocridade das personagens que às figuras carreiristas, pedantes, bajuladoras e in
o ridicularizam ocorre através de um 'lapso" : competentes que se utilizam de quaisquer expedi
mergulhado no sonho patriótico que o domina,
<( entes para subir socialmente e exercer poder.
c ele se distrai e envia um ofício de rotina, na repar
�
tição pública onde trabalha, em tupi-guarani. Os projetos linguístico (decretar o tupi-guarani
z como língua oficial brasileira), agrícola (plantar e
w b) A epígrafe citada tem na trajetória de Policarpo
Quaresma um fato-exemplo que a explicita.
colher frutas, cereais e verduras 'nacionais' em
� sólo pátrio . .. ) e político (lutar pela República na
o Profu ndamente idealista e desprovido de revel ução federalista de 1 893) são os três modos
u senso prático, Policarpo entrega-se a três pro pelos quais Policarpo Quaresma, um patriota ufa
<( jetos patrióticos que fracassam: o projeto lin nista e ingênuo, tentou melhorar a nação. Fra
a: güístico, o agrícola e o político. Neste último, cassa em todos eles, pela falta de senso prático.
::::> que o leva à condenação por crime de alta trai A partir do último projeto, entretanto, Policarpo
�a: ção à pátria, observamos de forma contunden
te como as qual idades do homem superior
Quaresma torna-se desalentado e começa a per
der a esperança nos governantes. É o início de
w transformam-se em defeitos, num contexto sua desilusão; o lento processo de destruição de
1- em que predominam o egoísmo e a rotina vul
::::i gar: ao denunciar a tirania ao próprio tirano, ele
seus ideais nacionalistas, já que o regime pelo
-
qual lutara começa a destrui-lo.
chega ao auge da ingenuidade, da inviabilidade
O MODERNISMO EM PORTUGAL
Os primeiros anos do século XX em Portugal, são marcados pelo entrecho
que de correntes literárias que vinham agitando os espíritos desde algum
tempo: Decadentismo, Simbolismo, Impressionismo etc. , eram denominações
da mesma tendência geral que impunha o domínio da Metafísica e do
Mistério no terreno em que as ciências se julgavam exclusivas e todo
poderosas.
FERNANDO PESSOA
O multiplicador dos eus
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: Só quero torná-la de toda a humanidade:
'Navegar é preciso: viver não é preciso". ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Quero para mim o espírito {d]esta frase, transformada a Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na 'I!! ernando Pessoa nasce e� L!sboa. em
forma para a casar com o que eu sou: essência anímica do meu sangue o propósito :(i 1888. Passa parte da 1nfanc1a e da
Viver não é necessário; o que é necessário é criar. impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
mocidade na África do Sul. em Durban. De
<(
o
votta a Portugal. chega a iniciar o curso
nem
(/)
Não conto gozar a minha vida; em gozá-la penso. para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça. (/)
superior de Letras. em Lisboa. mas abandona
Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser
o meu corpo e a (minha alma) a lenha dessefogo. (Palavras depórtico) w
a Universidade. Trabalha obscuramente 0..
como representante e como tradutor de o
contratos comerciais. Publica em vida um Cl
Ao morrer, em 1 935, com apenas 47 anos, Fernando Pessoa era desconhecido do único livro - Mensagem - pouco antes de Z
grande público, apesar de ter participado dos movimentos e das publicações que reali
zaram o Modernismo em Portugal, entre eles a revista Orpheu (em 1 9 15 , com Mário
morrer. em 1 935. Apaixonado por ocultismo,
por filosofia, por estudos de psiquiatria e
�
a:
psicanálise. de grande erudição autodidata. W
de Sá-Carneiro e outros). Pouco antes de sua morte, havia recebido o prêmio de segun LL
da categoria do Secretariado de Propaganda Nacional, pela publicação de sua obra participa intensamente das publicações do
m-od ern ismo -po ug s
Mensagem... - _____ _ rt__u_
ê_. _._._._._.o
�
=
Nestes quase setenta anos que nos separam do fim de sua vida, no entanto, Fernando Pessoa
tem se tomado, cada vez mais, poeta de reconhecimento universal, de dimensões lendárias.
Milhares de páginas têm sido escritas sobre sua criação, reconhecida como uma das maiores do
século XX, ao lado de Eliot, Rilke, Pound, Lorca e alguns outros.
Sua figura se toma lendária por sua característica mais intrigante : a multiplicação dos Eus poé
ticos, o desdobramento de sua obra em heterônimos, em outros eus - Alberto Caeiro, Ricardo
Reis, Álvaro de Campos - que são, ao lado de Fernando Pessoa - ortônimo (ele mesmo), os mais
importantes poetas do Modernismo em Portugal.
A complexidade e o mistério dos heterônimos, dos outros Eus poéticos, tanto em sua gênese
como em suas inter-relações, têm sido tema de inumeráveis estudos, debates e controvérsias. O
próprio Fernando Pessoa fala dos heterônimos em uma carta a Adolfo Casais Monteiro:
Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro,
Ricardo Reis e Á lvaro de Campos. Constrní-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em
1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presente
mente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas
viveu quase toda a vida no campo. Não teveprofissão nem educação quase alguma. Á lvaro de
Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1 .30 da tarde, diz-me o Ferretra
Gomes; e é verdade, pois, feito horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é enge
nheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inatividade. Caeiro era de
estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tãofrágil como
era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baiXo, mais forte, mais seco. Á lvaro de
Campos é alto (1. 75 m de altura, mais 2 em do que eu), magro e um pouco tendente a cur
var-se. Cara rapada todos - o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno
mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo porém, liso
e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que
quase nenhuma - só instrnção primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar
em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo
Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois
se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um
semi-helenista por educação própria. Á lvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu;
depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval.
Numas férias fez a viagem ao Oriente, de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio
beirão que era padre. Como escrevo em nome desses três?. . . Caeiro por pura e inesperada ins
piração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma delibera
ção abstrata, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando S<nto um súbito
impulso para escrever e não sei o quê.
(Carta a Adolfo Casais Monteiro de 1935.)
Nesta nossa iniciação à leitura de sua poesia, é preciso apresentar algumas características dos
outros Eus e do próprio Fernando Pessoa - ele mesll}o.
Alberto Caeiro: o camponês.poeta, autor de O guardador de rebanhos Homem de grande
.•
simplicidade, autodidata, que prega o contato direto com a natureza, com as próprias coisas, como
sendo a maior sabedoria. Autor de versos livres, próximos da prosa, Caeiro rejeita radicalmente as
metafísicas, os sistemas de idéias que impedem o pleno contato sensorial com o mundo, que impe
<( dem o sadio e pleno ver o mundo, a comunhão com a natureza. Os sistemas filosóficos e religio
o
�z sos transcendentes fazem com que nós fiquemos doentes de idéias e doentes pela falta de relação
vital com a natureza. É preciso desaprender as idéias, para aprender as coisas. Ele é o poeta
w dos fenômenos, contra a poesia piegas e sentimental, fundador de uma nova poesia da natureza.
�
u
Ricardo Reis: é o poeta de sabor clássico, latinizante, de vocabulário muitas vezes erudito, de
sintaxe puxando ao clássico, de referências mitológicas. Seus poemas lembram a lírica grega e lati
<( na, em especial Horácio. Textos curtos, concisos, intelectualizados, tematizando a transitoriedade
a: da vida, a irreversibilidade do Fado (destino), a necessidade de fruir o instante que passa. Uma ati
::)
!;(
a:
tude serena e contemplativa, de grande controle emocional, faz-se presente em todos os poemas
reunidos em Odes - o que o aproxima de um equih'brio entre o estoicismo e o epicurismo.
w Ricardo Reis é uma espécie de neoclássico moderno.
1-
:::J Álvaro de Campos: é o poeta modernista, futurista, cubista, sensacionista (uma corrente que
- faz a mistura eclética das vanguardas modernistas). Autor de versos livres, de ritmos explosivos,
de linguagem coloquial, de referências à vida moderna, urbana e industrial. Poeta da crise de
98
todos os valores, da ruptura de todas as referências tradicionais, expressando a vertigem e o
caos da fragmentação da vida moderna, oscilando entre a excitação e o cansaço, entre a euforia e
a depressão, entre o êxtase e a desilusão.
Fernando Pessoa - ortônimo: Fernando Pessoa, ele mesmo, autor de Mensagem, revela-se um
sutil e complexo poeta-filósofo, que escreve geralmente em redondilhas rimadas, próximo do
Simbolismo.
Em seu livro Mensagem desenvolve temas da raça e da história de Portugal, em atmosfera visio
nária, mitopoética, fundindo o lírico e o épico, como que realizando um destino superior: o de cons
truir a grandeza da Pátria e da Humanidade, desenvolvendo espiritualmente a espécie humana, por
meio da criação de grande poesia.
Quando lemos as múltiplas vozes da poesia de Fernando Pessoa, percebemos quase de imediato
a presença de uma inteligência dialética extremamente arguta, questionadora de tudo, com a necessi
dade de compreender tudo e, ao mesmo tempo, a consciência da impossibilidade de se ter cons
ciência, e o gosto do oculto, o amor pelo espiritual, pelo misterioso, pelo obscuro.
As inumeráveis e intrincadas contradições entre a necessidade da lucidez e a necessidade da vidên
cia, entre a obsessão pela análise e a paixão pelo sonho, permeiam também os processos de criação de
sua poesia, que vão desde possessões verbais (como seqüência de dezenas de poemas de Alberto Caeiro,
escritos em pé, ou poemas de Álvaro de Campos, escritos vertiginosamente na máquina de escrever, sem
rascunho) até o rigor critico e a intencionalidade arquitetura} do poema (como, por exemplo, nos textos
clássicos de Ricardo Reis e nos poemas alegóricos de Fernando Pessoa).
ANTOLOGIA COMENTADA
ALBERTO CAEIRO
O guardador de rebanhos
VIII
RICARDO REIS
1. 3.
Para ser grande, sê inteiro: nada já sobre a fronte não se me acinzenta
Teu exagera, ou exclui, O cabelo do jovem que perdi.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és Meus olhos brilham menos.
No mínimo que fazes. já não tem jus a beijos minha boca.
Assim em cada lago a lua toda Se me ainda amas, por amor não ames:
Brilha, porque alta vive. Traíras-me comigo.
<t
o 2. 4.
Observe em Ode triunfal o fluxo das idéias, o vigor do verso livre (sem rima e sem métrica
regular), a expressividade da linguagem coloquial. As referências à civilização industrial (lâmpa
das, rodas, engrenagens etc.) e o ritmo entusiástico e eufórico da celebração da tecnologia são típi
cos de muitas vanguardas do início do século XX, especialmente o futurismo. Observe também a
ênfase nas sensações.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhas e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho por nisto tudo neste mundo.
Este poema, além do verso livre, da linguagem coloquial e da estrofação irregular, apresenta outra
caracteristica estrutural da prosa moderna: a enumeração dos elementos, a listagem livre e descontí
nua das idéias. O texto tem um tom de desabafo, de confissão, de catarse, típico de Álvaro de Campos.
Autopsicografia Isto
102 escrever, sobre os processos de criação, sobre as relações entre o àutor e o texto, e sobre as rela-
ções entre o texto e o leitor. Observe a métrica curta, da tradição portuguesa: redondilhas maiores,
sete sílabas. Perceba a sutileza dos raciocínios e a opção anti-sentimental.
<(
o
11
O verso fala do poeta como um "fingidor'', no sentido de corresponde a: a chuva me deixa triste) . Já Alberto Caeiro
que é um inventor, um fazedor de ficção, um criador; essa tem uma posição rad icalmente contrária: o SUJeito não atri (/)
(/)
visão tem relação direta com os heterônimos de Fernando bui à natureza idéias e sentimentos que não pertencem a w
Pessoa, que são criações dele, outros Eus, outras vozes ela (o que corresponde à: A mim me deixa molhado) . a..
poéticas que, por sua vez, criam outros poemas. Fernando o
Pessoa é um poeta criador de poetas. Os dois textos falam da relatividade das coisas, da relati Cl
vidade dos valores e das medidas. A primeira casa, embo z
<(
As falas que podem ser atribuídas a Fernando Pessoa são ra fisicamente menor, era maior, por ser a casa da memó
z
El a primeira e a terceira estrofe: ele seria o interlocutor que
está conversando com o guardador de rebanhos, Alberto
ria, do afeto, do que foi vivido nela. No caso do rio da al
deia, ele é mais belo do que o Tejo exatamente porque é
a:
w
Caeiro, autor das falas da segunda e quarta estrofe. o rio da minha aldeia, da minha vida, da minha vivência, da LL
Fernando Pessoa tem uma visão metafísica, subj etivista, m inha relação corporal afetiva e existencia l . -
que atribui ao vento idéias e sentimentos do sujeito (o que
103
lo MODERNISMO NO BRASIL - 1 11 FASE
Em 1 922 - ano do Centenário da Independência - ocorre, no Teatro Municipal de São
Paulo, a Semana de Arte Moderna, que foi o momento máximo do rompimento radical com o pas
sado, com uma tradição envelhectda e esclerosada; que foi o marco fundador de um novo tempo
para as artes e a cultura brasileiras, o tempo da redescoberta das raízes nacionais à luz da moder
nidade artística internacional.
Inaugura-se, assim, a partir de 1922, a fase heróica de nosso Modernismo, fundamentalmen
te caracterizada pela rebeldia na ruptura com velhos modelos importados, modelos de que resulta
ram obras cuja amenidade e cujo convencionalismo fizeram com que fossem conhecidas como
literatura "sorriso-da-sociedade".
Em vez do Parnasianismo, buscava-se uma literatura viva e próxima do quotidiano, feita com
"os olhos livres" e com a "contribuição milionária de todos os erros" (Oswald de Andrade), uma
literatura "interessada" em refletir sobre os problemas do país e em "recuperar as manifestações
culturais populares" (Mário de Andrade), sufocadas pela nossa constante submissão aos modelos
europeus.
Diante de tais propostas, como conciliar o localismo e o cosmopolitismo que parecem ser
simultâneos neste movimento?
Apresença dos "ismos europeus" em nosso primeiro Modernismo ( 1922-1 930) ocorre de
forma antropofágica, no dizer de Oswald de Andrade. Em vez da cópia, a "devoração", a assimi
lação crítica da cultura da metrópole que agora será reinventada, recriada através da ousadia, do
experimentalismo, da vitalidade dos escritores de 22, dentre os quais os dois Andrades se desta
cam, como fundadores e difusores da moderna literatura brasileira.
MANUEL BANDEIRA
Uma poesia de universalidade ardente e simples
"Sou bem nascido, Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
Efez de mim o que quis".
A oposição entre a natureza apaixonada que aspirava à plenitude, e o exílio em que a doença
o obrigará a viver, marcará profundamente a sua sensibilidade, traduzindo-se, no plano estrutural,
<( pelo gosto das antíteses, dos paradoxos, dos contrastes violentos; no plano emocional, por um
o movimento polar, uma oscilação constante que, no decorrer da obra, vai alternar a atitude da sere
�
z
nidade melancólica e o sentimento de revolta impotente.
w (Gilda e Antônio Cândido de Mello e Souza
� Introdução in Estrela da vida inteira)
o
u
<(
a: PASÁRGADA: A POESIA DAS COISAS MAIS SIMPLES
:::>
�
a:
Quando Manuel Bandeira morreu, em outubro de 1 968, um jornal dedicou-lhe a manchete
w Bandeira, enfim, Pasárgada!, em referência ao seu mais conhecido poema - Vou-me embora pra
1- Pasárgada. Neste poema o poeta evoca a vida que poderia ter sido e que não foi, uma espécie de
:::::i
......
paraíso pessoal, lugar de sonhos e de desejos, em que ele poderia realizar as felicidades mais sim
ples, como andar em burro bravo, subir em pau-de-sebo, andar de bicicleta, tomar banho de mar...
104
A ernnneração, nesse lugar ideal, de fantasias tão simples e despojadas já revela um
dado biográfico que se transformará em fonte de muitos ·temas da poesia de Bandeira:
a presença da morte, anunciada em plena adolescência, sob a forma de uma tuberculo
se, doença mortal na época (início do século XX). (..)fui vivendo, morre-não-morre, e,
em 19U, o doutor Bodmer, médico-chefe do Sanatório de Clavadel, tendo-lhe eu per
guntado quantos anos me restam de vida, me respondeu assim: o senhor tem lesões teo
ricamente incompatíveis com a vida; no entanto, está sem bacilos, come bem, dorme
bem, não apresenta em suma nenhum sintoma alarmante. Pode viver cinco, dez, quin
ze anos... Quem poderá dizer? Continuei esperando a morte para qualquer momento,
vivendo sempre como que provisoriamente.
(Manuel Bandeira - Itinerário de Pasárgada)
A permanente consciência da morte, a luta contra ela, a convivência com sua pre
sença - fazedora de ausências - transformam-se poeticamente numa descoberta
essencial de vida, numa valorização intensa da existência mais cotidiana, redescoberta
como única, irrepetível, insubstituível. Não é possível separar a experiência de vida da
experiência poética no autor de Pasárgada, embora a sua poesia - de uma universali
dade intensa, ardente e simples - não possa ser reduzida aos acontecimentos biográfi
cos, que se revelam matrizes de imagens, de emoções, de ritmos, transfigurados na
alquimia da criação.
O crítico Alfredo Bosi, em sua História concisa da literatura brasileira, escreve:
( . .) veremos que a presença do biográfico é ainda poderosa mesmo nos livros de ins
piração absolutamente moderna, como Libertinagem, núcleo daquele se não-me
importismo irônico, e, no fundo, melancólico, que lhe deu uma fisionomia tão cara aos
leitores jovens desde 1930. O adolescente mal curado da tuberculose persiste no adul
to solitário que olha de longe o carnaval da vida e de tudo faz matéria para os ritmos
livres do seu obrigado distanciamento.
A sua obra, escrita ao longo de mais de meio século, atravessa praticamente toda a
história do Modernismo no Brasil e apresenta muitos dos mais expressivos livros da
poesia moderna, como Ritmo dissoluto, Libertinagem, Estrela da manhã e outros .
... a poesia está em tudo - tanto nos amores como nos chinelos,
tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas.
Os poemas de Bandeira nascem e crescem dos acontecimentos mais cotidianos,
mais comuns, dos momentos que aparentemente são banais e insignificantes. Do dia-a ascido no Recife, em 1886, e morto no
N Rio, em 1 968, tendo passado a infância
dia mais desapercebido desentranha sua poesia, em que instantes da existência apare
principalmente no Rio de Janeiro e no pró
cem transfigurados em pura essencialidade da vida. prio Recife, Manuel Bandeira publica seu pri
Detalhes prosaicos e perdidos na rotina descolorida dos dias revelam-se instantes meiro livro de poemas em 1 91 7 - A cinza
de iluminação, instantes de transcendência e de proximidade da essência mais profunda das horas, que será seguido por Carnaval,
- e mais simples - da vida. O grande milagre da existência, a mais cotidiana, que a em 1 91 9, em que apresenta, pela primeira
consciência da morte revelará como algo intenso, único, irrepetível.
vez, versos livres na literatura brasileira.
Conhece Mário de Andrade e os modernistas
Sua linguagem coloquial e despojada atinge alguns dos momentos mais expressi
paulistas em 1 921 .
vos da língua: grande intensidade, grande condensação, com imensa simplicidade. Ao Não participa diretamente da Semana de
lado de Carlos Drummond, Bandeira é o grande incorporador do prosaico e do coloquial Arte Moderna de 1 922, mas o seu poema Os
na poesia brasileira moderna. sapos, paródia contundente dos parnasianos,
Trata-se de uma poética de iluminações da existência cotidiana, com a mais expres provoca um dos momentos de maior escân
dalo, ao ser lido por Ronald de Carvalho, no
siva coloquialidade, e com intensa condensação de imagens e ritmos. A obra de Ban
Teatro Municipal de São Paulo, no dia 15 de
deira lembra muitas vezes a criação poética dos haicais japoneses, em que se flagram
fevereiro: o de maior polêmica de toda a <(
a:
instantes de plenitude, de frágil e plena percepção da vida, concentrada em um detalhe Semana.
w
aparentemente banal. A partir de então, não é possível pensar a o
Ao mesmo tempo, em unidade indissociável, a obra de Bandeira representa a mais poesia moderna no Brasil sem a presença de z
longa convivência com a morte, de toda a poesia brasileira. Sem ser dominado pelo Bandeira, que atravessará todas as chama <(
das fases do Modernismo, com uma produ Ol
desespero, sem ser possuído pelo medo, sem dramatizações retóricas. Com amadureci ....1
ção poética do mais alto nível. Já na fase w
heróica, de 1 922. em que a ruptura com o
da amargura. Com ironia e auto-ironia, melancólicas. Com sofrida serenidade. Com
:::>
nostalgia da vida que poderia ter sido e que não foi e nem será. passado e com as estruturas estabelecidas z
Até mesmo com ternura pela morte, companhia constante de muitos anos, interlo era a mais vital palavra de ordem, Mário de <(
cutora secreta que, paradoxalmente, revela o valor absoluto de cada dia, de cada pessoa, Andrade chamava o poeta de S. João :2
Batista da Modernismo, reconhecendo o seu -
de cada coisa. A sabedoria da morte - quando se descobre que não apenas os outros
papel de anunciador da nova poesia. o
morrem - transformou-se, como em muitas correntes filosóficas, em sabedoria da
105
vida. A importância da existência, de cada um: simples, essencial, passageira. Milagre. E a morte,
também milagre.
Bandeira é poeta da mais intensa ternura. De ardor temo e intenso pela vida. Uma sensibilida
de moderna, não grandiloqüente. Ternura melancólica pela inf'ancia perdida, e por seus persona
gens. Ternura ardente pelo corpo. A sua poesia amorosa revela-se como ardente lírica erótica.
Poesia do corpo, de grande intensidade. Os corpos se entendem, as almas não. Imagens eróticas
que se tomam experiências sagradas, transcendentalizadas, tal a naturalidade, o ardor e a intensi
dade da ternura. O fisico se funde com o onírico, tema e desconcertantemente.
Além disso, revela-se um dos mais versáteis e flexíveis fazedores de versos do Modernismo
brasileiro. Suas estruturas de métrica e de ritmo vão desde as mais libertárias experiências de
verso livre, dos fluxos mais soltos e irregulares até as estruturas mais tradicionais, de versos em
redondilhas da lírica medieval, de versos decassílabos clássicos e neo-clássicos e outros combi
nados com variadas formas fixas de estrófica regular, com sonetos, canções etc. Um fazedor de
versos e de estrofes extremamente versátil, com raro domínio técnico e com grande erudição,
capaz de traduzir de várias línguas e de escrever à moda de, imitando estilos os mais diversos, de
época e autores.
Manuel Bandeira é também um expressivo criador de imagens, com igual e desconcertante
simplicidade. Nas constelações de imagens dos seus poemas percebemos um movimento oposto e
complementar: por um lado, o cotidiano aparece transfigurado, instante de iluminação, com aura
de símbolo transcendente, e, por outro lado, o desconhecido, o misterioso, o onírico aparecem con
figurados familiarmente, tomados próximos e confidentes, tomados íntimos do dia-a-dia.
Morto há mais de trinta anos, Bandeira continua se revelando como o mais simples e mais des
pojado dos poetas do Modernismo brasileiro, como o poeta capaz de simplicidade mais essencial
e mais expressiva.
ANTOLOGIA COMENTADA
Pneumotórax
Poética
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo na morador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
Este texto equivale a um manifesto modernista. Metapoema, poesia que fala de poesia.
Observe que ele apresenta negações e rupturas - contra as convenções que desfiguram a criação
poética, em especial as do academicismo parnasiano - e apresenta, por outro lado, afirmações
libertárias típicas da luta modernista (particularmente no final do poema). Observe o último verso,
frase-síntese, verdadeiro slogan do momento heróico do Modernismo.
Texto-síntese da poesia de Bandeira, tanto de sua linguagem como de sua temática da vida que
<(
podia ter sido, que precisava ter sido - e que não foi. Observe a enumeração livre dos elementos a:
que compõem Pasárgada - lugar ideal, lugar de sonhos, lugar de desejos, onde a vida é o que w
o
deveria ser. Na segunda estrofe, observe a enumeração caótica, sem seqüência lógica, dos elemen z
tos. Observe também a extrema simplicidade da linguagem, junto da mais intensa expressividade. <(
m
...J
Estrela da manhã w
::>
z
Eu quero a estrela da manhã Ela desapareceu ia nua <(
Onde está a estrela da manhã? Desapareceu com quem? �
Meus amigos meus inimigos Procurem por toda parte -
Procurem a estrela da manhã
101
Digam que sou um homem sem orgulho Com os gregos e com os troianos
Um homem que aceita tudo Com o padre e com o sacristão
Que me importa? Com o leproso de Pouso Alto
Eu quero a estrela da manhã
Arte de amar
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma,
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satíifação,
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
Consoada
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
<t: (A noite com os seus sortilégios.)
o Encontrará lavrado o campo, a casa limpa.
�z
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
w
.� Um dos mais conhecidos poemas com o tema da morte. Observe o tom sereno, familiar, cama
o
u rada. Consoada, a ceia de fim de ano, no texto representa encontro simbólico com a morte. O poema
<t: apresenta um balanço do vivido, sem ilusões quanto à própria finitude, e não se desfigura diante da
0:: presença indesejada pelas gentes. O dia foi bom, com cada coisa em seu lugar. Observe também,
:::>
�
0::
tal como nos outros textos, a linguagem coloquial, a estrófica irregular, heterogênea, o verso livre.
w
1-
.-J
-
108
11 El seguinte:
Identifique o processo de composição que Bandeira Aponte características do Modernismo no poema
utilizou para arquitetar este poema:
· ' V ···,�
'\7 - - -� -�
�-- � ��,, ç· ·.,
�-� <(
a:
w
11 Trata-se do processo conhecido como colagem, que
é uma j ustaposição de elementos já existentes, rea
Na primeira estrofe, adormeci está em sentido literal,
denotativo, significando dormir mesmo. Na terceira
o
z
grupados em um novo contexto. Neste poema, estrofe, dormindo está em sentido figurado, conotati <(
Bandeira realizou uma colagem de fragmentos de vo, corno metáfora da morte. Observe que, no primei CC
outros poemas seus. ro caso, o poeta dorme numa festa, aos seis anos. No ..J
segundo caso, muito tempo já se passou ( Hoje não w
:J
1:11 Trata-se de um típico micro-poema, ou poema-pílula, ouço mais as vozes daquele tempo) e todas as vozes
z
(ii1il ou ainda poema-minuto. Texto extremamente con e as personagens da infância já estão mortas. Este é <(
densado, sintético, com o menor número possível de um dos temas arquetípicos da poesia de Bandeira: a �
-
palavras. Além disso, são também características ternura nostálgica pela infância e por suas persona
modernistas o verso livre - sem rima e sem métri gens.
ca - e a linguagem coloquial. 109
,
MARIO DE ANDRADE
"Eu tenho paixão por pensar.
Mas não tenho medo de que isso me
prejudique porque tenho mais
paixão pela vida".
CONTOS NOVOS
Obra-síntese que reúne as conquistas modernistas de 22 e os
elementos responsáveis pela maturidade literária de Mário de
Andrade
Narrador
A paixão por pensar, em consonância com a paixão pela vida, redescoberta através
da memória e da imaginação, constituem os traços mais marcantes da vida e da obra de
Mário de Andrade, exemplarmente encontrados nestes Contos novos.
Escritos a partir de 1 924, reescritos ao longo de até dezoito anos de depuração artís
tica, os Contos dividem-se, do ponto de vista de seu foco narrativo, em dois tipos: os
narrados em primeira pessoa, de caráter memorialista, e os narrados em terceira pes
soa, nos quais a voz do narrador onisciente confunde-se com a voz dos personagens.
Z
� considerado o espírito mais vasto, mais culto
e mais versátil deste movimento no Brasil, a Sem censura aparente, perguntou aos camaradas se ainda não tinham ido
w personalidade de maior influência. pela sua trabalhar.
� obra (que abrange praticamente todos os Os camaradas responderam que já tinham sim, mas que com aquele tempo
8 gêneros), pela sua atuação política e huma- quem agüentava .permanecer dentro do poço continuando a perfuração!
<( na. pelo engajamento de sua vida, em busca (O Poço)
a: permanente de um mapeamento poético I Observe no primeiro exemplo a transposição direta da fala interior, isto é, dos
::> cultural I ideológico I lingüístico do país.
pensamentos do 35 - protagonista do conto Primeiro de maio - que se confunde
!;i:
A escrava que não é lsaura e o Prefácio
a: interessantíssimo (ensaios). Paulicéia des- com a fala inicial do narrador. No segundo exemplo, as características do discurso
vairada (poesia), Contos novos, Macunaíma indireto se preservam - os camaradas respondiam que já tinham (verbo declarativo
� e Amar verbo intransitivo (romances) são + conjugação integrante) - embora a elas se acrescentem as expressões de oralidade
:::i
algumas obras fundamentais, dentre as -já tinham sim; quem agüentava permanecer. . . - normalmente presentes no dis
-
centenas que escreveu. 0 curso direto.
110
Assim, há um enriquecimento expressivo que vem do .tom de naturalidade conseguido, dentre
outros recursos, pelo discurso indireto livre. Nos contos em primeira pessoa o mesmo enriqueci
mento pode ser percebido - além do discurso indireto livre - pela intersecção entre presente
e passado: a voz do adulto que conta e reflete sobre a história e a voz do menino, do adolescente,
do jovem que a vive, como veremos no exemplo abaixo:
Fui abraçando os livros de mansinho, acariciei-os junto ao rosto, pousei a minha boca
numa capa, suja de pó suado, retirei a boca sem desgosto. Naquele instante não sabia, hoje
sei: era o segundo beijo que eu dava em Maria, último beijo, beijo de despedida, que o cheiro
desagradável do papelão confirmou. Estava tudo acabado entre nós dois.
(Vestida de preto)
Enredo
Há um total de nove contos no livro, quatro em primeira pessoa, de caráter memorialista, com
fortes elementos autobiográficos, e cinco em terceira pessoa.
Para facilitar o nosso trabalho, vamos reuni-los em dois grupos, de acordo com a diferença de
foco narrativo mencionada, e apresentando o sumário de seu enredo.
Tempo da camisolinha (inf'ancia). Aos três anos de idade, quando ainda vestia camisolinhas
como as meninas, o personagem-narrador tem os cabelos cortados por ordem paterna. Sofre com
esta violência um trauma que no entanto é compensado pelas três estrelas-do-mar - estrelas da
"boa sorte" - que ganha de pescadores em Santos, onde passava férias com a família. Um velho
operário sofrido e sem sorte, a quem se sente obrigado a dar a maior das estrelas, vem de novo fus
trá-lo numa descoberta dolorida e difícil da existência da dor e da necessidade de solidariedade
humana.
Vestida de preto (infância - adolescência - juventude). Aos dez anos, Juca vive um momen
to de grande pureza, emoção e pavor. Este momento ocorre durante uma brincadeira "de família",
quando beija o primeiro amor de sua vida - a prima Maria - sendo ambos interrompidos pela
w
malícia da tia velha, que destrói a ingenuidade da cena. Após tal acontecimento, Maria afasta-se Cl
de Juca que, já adolescente e mau estudante, é insultado por este motivo pela menina, dando por <(
encerrado o amor entre eles. a:
o
Na juventude, o destino de ambos se inverte: Maria toma-se namoradeira e irresponsável, e z
acaba por se casar com um diplomata. Juca passa de "caso perdido" a intelectual, poeta e confe <(
w
rencista. A revelação acidental da mãe de Maria de que esta sempre o amara causa-lhe a terceira o
grande emoção deste conto: ele então a procura e a encontra vestida de preto, sem conseguir,
o
entretanto, dizer-lhe o quanto a queria bem e a desejava. a:
Frederico Paciência (adolescência). Este conto narra a história de uma amizade ambígua, ·<(
misto de pureza e de impureza, entre o personagem-narrador e Frederico Paciência, companheiro :rE
de ginásio, que lhe desperta sucessivamente simpatia, admiração, inveja, vontade de imitar e sen -
sualidade. Através do desenvolvimento do enredo, vamos percebendo que a perfeição moral e fisi- 111
ca de Frederico Paciência, a sua "pureza", deixam de servir como modelo ao protagonista. Este,
após episódios de proximidade física e espiritual com Frederico Paciência, opta pela própria
imperfeição, pela própria impureza, individualizando-se e acabando por se distanciar do amigo.
O peru de natal (juventude). O pai, em todos os contos memorialistas, é descrito como uma
personalidade autoritária, incapaz de manifestar carinho e escravizado pelo trabalho. Neste conto,
que ocorre alguns meses após a sua morte, o pai aparece como um "desmancha-prazeres". O pro
tagonista, tachado de "louco" pela família, resolve aproveitar-se da fama e promover uma grande
ceia de Natal, com peru e cerveja, apesar da recente morte do pai.
Durante a ceia, quando especialmente a mãe e a tia solteirona comem numa abundância des
conhecida por ambas, e também pelos filhos sempre reprimidos nas manifestações de alegria, o
momento de plenitude familiar é posto em risco através da lembrança do defunto. O protagonista,
então, enfrenta e vence a luta entre o peru e o fantasma do pai, hipocritamente referindo-se ao pra
zer que este sentiria se pudesse testemunhar a felicidade de todos naquele Natal. . . Consegue,
assim, recuperar o clima benéfico e de comunhão que minuciosamente preparara, por amor à mãe,
à tia, e à irmã: seus três "anjos da guarda".
Comentário
w Primeiro de maio. O 35, um operário carregador de malas, passeia pela cidade de São Paulo
� para confusa e apaixonadamente comemorar o Dia do Trabalho, primeiro de maio. Cercado de
o policiais e de colegas indiferentes, o conto narra a intensidade ingênua mas lírica dos sentimentos
u
do 35, cuja euforia transforma-se em angústia e medo, até conseguir, carregando as malas pesadas
<(
c: para um companheiro, o 22, manifestar a piedade, o amor, a fraternidade desamparada que senti
::> ra ao longo do dia. . .
�c: Atrás da catedral de Ruão. Mademoiselle é uma professora de francês, quarentona e virgem,
w tomada por um vendaval do mal do sexo. Preceptora de duas adolescentes, Alba e Lúcia - aban
1-
:J donadas pelo pai e de certo modo pela mãe, infeliz e distante - Mademoiselle conversa imorali
� dades e malícias com elas, fixando-se em suas fantasias eróticas no cenário de uma antiga história
picante: atrás da Catedral de Ruão. Intensificam-se tais fantasias até o momento em que Made-
112
rnoiselle, ao sair de urna festa, imaginariamente é perseguida por dois homens, correndo deles e ao
mesmo tempo entregando-se à volúpia de fazê-lo, atrás da Catedral. Quando chega à pensão onde
mora, dá um níquel a cada um dos supostos perseguidores, agradecendo, em francês, a boa com
panhia que lhe fizeram...
O poço. Joaquim Prestes, fazendeiro rico, dono de três automóveis, de dez chapéus, criador de
mel e inventor da moda dos pesqueiros de beira de rio, é urna personalidade estranha, obcecada
pela idolatria da autoridade. Num dia frio, chuvoso e escuro, leva urna visita ao pesqueiro de que
é proprietário, e onde quatro operários constroem um poço. Neste contexto, pressiona os homens
a prosseguirem com o trabalho, o que é praticamente impossível pelas condições atmosféricas.
Deixa cair a caneta-tinteiro no poço, urna caneta de ouro, exigindo que os operários a resgatem.
Maltrata-os então de forma cruel e desumana, até o momento em que um dos operários - José
desafia sua autoridade e impede que o irmão, fraco e doente - Albino - volte a descer ao poço.
Contrariado mas impotente, o velho cede à firmeza de José, embora se vingue alguns dias
depois, xingando os operários, que reencontraram a caneta, por ela não escrever. Abre, então, a
gaveta da escrivaninha, onde há várias lapiseiras e três canetas-tinteiro, urna de ouro...
Nelson. Neste misterioso conto, um homem não nomeado, com um ar esquisito, ar antigo, que
talvez lhe viesse da roupa mal talhada, entra num bar. Enquanto toma seis chopes, sua presença
desperta a atenção de três pessoas, sentadas em outra mesa, que passam a contar histórias estra
nhas a respeito dele. Urna, do amor que teve por urna paraguaia, a quem entregou toda a fortuna,
vinda das fazendas que possuía em Mato Grosso, e outra, da sua participação heróica na Coluna
Prestes, não se sabe de que lado, quando urna piranha comera-lhe um pedaço da mão ... Ambas as
histórias intercalam-se, acentuando, com o seu desfecho, a curiosidade dos personagens. A para
guaia o abandona, conta Alfredo, o narrador exageradamente preocupado em criar suspense, o que
irrita os companheiros.
Diva, a garçonete do bar que também é prostituta, protege o homem da curiosidade alheia,
demonstrando-lhe respeito e admiração.
O homem se levanta, sai do bar, anda seis quarteirões e, após esperar que se dissolva um
pequeno grupo que bebe num outro bar, certifica-se de que ninguém o segue, entra em casa, e
fecha a porta atrás de si com três voltas à chave.
Comentário
Nestes cinco contos, continuam aparecendo momentos iluminadores, especiais, como a que
bra da rotina e as manifestações de solidariedade entre as pessoas, em O ladrão; a ousadia e a fir
meza do operário José ao enfrentar Joaquim Prestes para proteger o irmão, Albino, em O Poço; o
impulso de amor e de fraternidade do 35, em Primeiro de maio; a humanidade com que a garço
nete priva os curiosos de informações que poderiam violentar um homem que ela mal conhece mas
por quem sente respeito, em Nelson.
Por outro lado, continuam também os contrapontos desses momentos: em O ladrão, há urna
italiana que marginaliza urna portuguesa, cuja suposta "vida fácil", devido às viagens do marido,
a transforma em vítima da maldade alheia, o que faz com que ela ironicamente vá dormir sozinha,
tendo sete homens a seus pés ... Em Primeiro de maio, os colegas do 35 ridicularizam a comemo
ração, trabalhando indiferentes e alheios ao policiamento ostensivo na cidade. Em O poço, a obses
são pela autoridade, o sadismo e a violência de Joaquim Prestes retomam a imagem castradora do
pai, agora o patrão, desenvolvida nos contos em primeira pessoa.
Em Atrás da catedral de Ruão, a temática da sexualidade reprimida, sublimada, presente em
Frederico Paciência e em Vestida de preto, reaparece, através das fantasias sexuais de uma mu w
o
lher envelhecida, puritana, extremamente solitária, que por um instante mergulha na fantasia e se <{
liberta da solidão. a:
o
Dentre os contos que ternatizam a solidão, entretanto, destaca-se Nelson, urna história cujo z
enigma não se explica, mas que mostra claramente, apenas pelo comportamento do protagonista, <{
o isolamento em que vive. w
o
O conto Nelson é o único do livro despido da adesão do narrador aos personagens, o que acen
o
tua o mistério que o caracteriza. a:
Em geral, tanto nestes últimos contos comentados quanto nos primeiros, há urna fixação de ·<{
momentos, de breves lapsos de vida, que ora revelam a beleza, a grandeza da suspensão da medio �
cridade cotidiana ( Vestida de preto, O ladrão, O peru de natal, especialmente), ora revelam o -
desamparo, a prepotência, que fazem parte desta mesma mediocridade (Nelson, O poço). 113
Em Primeiro de Maio, Atrás da catedral de Ruão, Frederico Paciência e Tempo da camisa
linha tais momentos, eufóricos e vazios, plenos e impotentes, solidários e solitários, são simultâ
neos, na alegria e na angústia do 35, na solidão e no delírio de Mademoiselle, na pureza e na impu
reza do Juca, na infelicidade e na dolorosa descoberta, por uma criança, de que as pessoas sofrem
e precisam de ajuda.
Personagens
Estes trechos significativamente pertencem a Vestida de preto, o conto que inicia o livro e no
qual se passa o período mais abrangente da vida do personagem-narrador (inf'ancia - adoles
cência - juventude), cujos fatores marcantes se confundem com os ocorridos com Mário de
Andrade, autor, narrador e personagem, simultaneamente. Em O ladrão, Primeiro de maio, Atrás
da catedral de Ruão, O poço e Nelson, os personagens são os operários (O ladrão, Primeiro de
maio), as pessoas obsessivamente dominadoras (O poço), as mulheres solitárias, sexualmente
reprimidas (Atrás da catedral de Ruão) e os marginalizados, os incompreendidos pela sociedade
(Nelson). Com exceção deste último conto, todos os personagens mencionados são desvendados
em sua interioridade, em seus sentimentos e pensamentos mais íntimos, pelo narrador onisciente.
Este narrador, como vimos, utiliza-se do discurso indireto livre, do fluxo da consciência, do
monólogo interior, para revelar com extrema densidade, com extrema penetração psicológica, o
universo subjetivo de cada personagem, o que afasta o livro da caricatura, do traço grosseiro, e o
aproxima intensamente da sutileza do comportamento do homem, seja o operário brasileiro de
Primeiro de maio, seja o fazendeiro rico, também brasileiro, de O poço, seja o ser humano univer
sal, presente nestes e em todos os outros contos.
Linguagem
Vamos conhecer a opinião de Maria Célia de Almeida Paulillo sobre a linguagem de Contos
novos, no contexto da geração Modernista de 22, da qual o livro se aproxima neste aspecto.
O vocabulário, a sintaxe e sobretudo o ritmo da tala brasileira são matéria-prima incorporada e trabalhada
<{ nos diálogos dos personagens e na tala do narrador.
o
�
z
Na procura da cadência da língua falada, o autor lcmça mão de recurso muito caro aos modernistas, o
emprego de uma pontuação de ordem emotiva, qucmdo o ponto de interrogação, o ponto de exclamação
w e as reticências são associados: "Quem falou que este mundo é ruim! só recordar. . . Beijei Maria, rapazesr
� (Vestida de preto). 'Até o padeirinho da tarde, que tinha só . . . quinze? dezesseis emas? entrava" (0 ladrão).
o
u Aliás a pontuação desempenha papel importem te na captação daquele ritmo quebrado, próprio da
<{ linguagem oral. Assim é qucmdo o narrador se auto-interrompe, se auto-corrige, se auto-confirma, tato
a:
:::> estilístico que ocorre com mais freqüência nos contos conduzidos em primeira pessoa: "as estrelas me
�
a:
salvavam, davam nela, machucavam muito ela, isto é. . . muito eu não queria não" (Tempo da
camisolinha); "Fui heróico, cmtes: fui artistar (Frederico Paciência).
w
1- Maria Célia de Almeida Paulillo
....J
Contos da plenitude, em Contos novos,
-
Mário de Andrade
114
As expressões que indicam oralidade, como Bom, principiou-se a comer em silêncio (O peru
de natal), as expressões fáticas, isto é, que mantêm viva a comunicação com o leitor, como Ofhem,
eu sei que a gente exagera em amor ( Vestida de preto), a colocação do pronome oblíquo no iní
cio da frase - Me deu de sopetão uma ternura imensa (O peru de natal) a pesquisa de pala
-
vras e de expressões da fala brasileira ("assuntou, macota, uma feita" etc), constituem mais
alguns elementos lingüísticos presentes neste livro.
Tais elementos indicam a permanência do teor "brasileiro" da linguagem de Mário de Andrade
em Contos novos, repletos também de momentos metalingüísticos, isto é, de desvendamento do
processo narrativo durante a narração, preciosos nos primeiros modernistas, como na literatura
modernista em geral.
11 deu
O narrador faz esta afirmação devido ao contexto em que se
a ceia de Natal. Morto o par há a lguns meses, era sua
da Luz, vagueia pela cidade de São Paulo tomado pelo dese
jo de comemorar, de manifestar solidariedade aos seus com
intenção proporcionar à família, especialmente à mãe, à tia panheiros. Entretanto, a euforia com que sai de casa vai se
solteirona e à irmã, uma festa de Natal com peru e cerveja, transformando em angústia e medo ao se defrontar com os
com uma alegria e uma abundância sempre impedidas pelo colegas indiferentes ou coagidos a participarem de uma
pai, um " desmancha prazeres " , no entender do narrador. " Comemoração Oficial " . A relação entre o protagonista do
Conseguiu, então, que o evento se realizasse, embora duran conto e o momento repressivo e autoritário da H istória do
te a refeição alguém tenha se lembrado do morto, pondo em Brasil é, portanto, intensa, embora a forma como o narrador
risco a confraternização geral. O narrador aceita e vence a desvenda os sentimentos íntimos do 35, o fluxo de sua cons
luta baixa entre o peru e o vulto do pai, isto é, entre a pleni ciência confusa e liricamente em busca de fraternidade,
tude do momento e a dor da lembrança, maliciosa e hipocri extrapole a imagem normalmente caricata do operário e reve
tamente dizendo a todos o quanto o pai ficaria contente se os le a imensidade de seu universo interior, humanizando-o.
visse também contentes. Com este lance político e inteligen
te, o narrador afasta o vulto do pai e resgata o espírito de Ambos são amores profundos vividos pelo narrador, e ao
comunhão familiar. I semesmo tempo são imagens de perfeição diante das quais ele
sentia propenso à pureza, ao bem. Maria, a prima beijada
a) A Estação da Luz, local de trabalho, representa a rotina do aos dez anos, que o insulta brutalmente durante a adolescên
fJ 35, o seu cotidiano de carregador de malas. No dia 1º de cia e que ele volta a encontrar quando adulto, ao descobrir
maio, embora tenha grande vontade de comemorar o feria que ela também sempre o amara, reaparece vestida de
do, o que acaba fazendo, o 35 oscila entre este desejo soli preto, o que realça a impureza de sua vida atual em contras-
tário e a ignorância do significado daquela data, man ifesta te com a pureza dos te mpos de criança. Embora sinta u m w
da pelos seus companheiros. grande desejo por ela, já casada e infeliz nas diversas rela o
b) A identificação com " uma negra disponível " se justifica ções que tivera, o narrador sublima esta paixão, preferindo a <(
a:
pelo sentimento de solidão, de estar "fora de lugar" do 35. lembrança da pureza a tocá-la e assim conspurcar tal lem o
Embora haja nele disponibilidade e adesão à possibilidade brança. z
de comemorar o dia do trabalho, estes sentimentos não Frederico Paciência , o maior amigo da época de ginásio, <(
encontram reciprocidade, o que os torna marginais, anôni também possui uma ingenuidade - uma ausência rija de w
mos. Daí a sua associação com o un iverso das prostitutas, segundas intenções - que faz com que o narrador sublime o
das " negras disponíveis " . a sensualidade que percebe existir entre ambos. Nos dois o
casos, há, assim, a descoberta e o sentimento da i m possibi-
Trata-se do período do Estado Novo ( 1 937-1 945), durante o lidade de realização do afeto, pela proibição moral e/ou social,
I qual ocorre um feriado internacional, o Primeiro de Maio, o que os transformam em exemplos de sublimação da sexua-
-
marcado pela repressão da polícia às manifestações dos tra l idade, que marcam para sempre a vida do narrador.
balhadores. O 35, um pobre carregador de malas da Estação
115
AMAR, VERBO INTRANSITIVO
Amar, verbo intransitivo é prosa experimental e metalingüística voltada
para a construção da identidade da nação e para uma abordagem da
relação amorosa, em sua intransitividade, em seus elementos complexos,
de fundo psicológico, destacando-se a especificidade da alma feminina.
O núcleo da narrativa é o idílio, a história de amor; a descoberta do amor, sua prática pelo
jovem aluno e Friiulein revisitando sua pedagogia e seu sonho, afeiçoando-se, mais do que dese
java, a Carlos, sem esquecer, entretanto, a intransitividade do verbo amar. . .
Narrador
A "lição de amor" da governanta alemã Frãulein ao jovem brasileiro Carlos constitui, nas
palavras de Telê P. A. Lopez, o núcleo narrativo do "idílio" que vamos estudar.
A utilização da palavra idílio - poesia lírica bucólica ou pastoril - para classificar a obra,
indica o seu principal aspecto: trata-se de um exemplo da prosa experimental de Mário de
Andrade, o mais expressivo líder de nossa primeira geração modernista, a geração de 22. Com
Amar, verbo intransitivo, o autor pretendia, então, colocar em prática as propostas de renovação
literária que instauram a modernidade artística brasileira.
No trabalho mencionado, a estudiosa de Mário de Andrade afirma o seguinte: "O Narrador
que capta a cena no que ela tem de essencial, freqüentemente nos faz lembrar a representação cine
matográfica: a câmera que segue os passos, foco isento, olhando por detrás, ou foco comprometi
do que faz às vezes dos olhos da personagem. Narrar cinematograficamente de romance moderno
combinado com reflexão literária, machadiana, metalingüística, e com a capacidade do Narrador
de se fundir às manifestações do mundo interior de seus personagens".
A afirmação lida refere-se aos dois fatores essenciais que caracterizam o Narrador, transfor
mando-o em personagem da história. O primeiro consiste na aproximação entre literatura e
cinema, no caráter metonímico (a parte pelo todo) das cenas narradas, as quais aparecem em
"close", destacando um traço de personagem, um elemento narrativo, para que o leitor participe
ativamente da montagem do romance, como uma espécie de co-autor. O segundo conceme às
digressões metalingüísticas do Narrador, digressões que lembram o estilo de Machado de Assis,
e que nos permitem ver no Narrador um personagem, e personagem principal, não pela sua pre
sença na intriga, ou por se confundir com aqueles que a vivem, mas porque, ao contar, o
Narrador mostra-nos como conta, exercendo, assim, a metalinguagem.
A técnica cinematográfica e a metalinguagem - a linguagem que tematiza a própria lingua
gem - constituem, portanto, os procedimentos essencialmente modernos presentes ao longo de
todo o texto.
Através deles, o Narrador altera o foco narrativo da primeira para a terceira pessoa e vice
versa, assume concomitantemente as posições de observador e de "onisciente", sem deixar de ana
<t:
c lisar as motivações íntimas dos personagens, mas sem esgotá-las. Enfim, podemos afirmar que o
�
z
Narrador interfere de forma sistemática e pedagógica na arquitetura do processo narrativo,
para desvendá-lo ao leitor, quebrando a "ilusão romanesca" e conduzindo o mergulho na fic
w
� ção para um outro mergulho, o mergulho no fazer ficcional.
o A paródia, ou a imitação satírica e crítica de procedimentos e aspectos que envolvem a cria
u ção literária, associa-se aos dois fatores comentados e toma, conforme exemplificaremos, dificil
<t: mas fascinante a leitura de Amar, verbo intransitivo.
a:
::>
�a: Exemplo 1
w
1- Não vejo razão para me chamarem vaidoso si imagino que o meu livro tem neste momen
::J to cinqüenta leitores. Comigo 51 . Ninguém duvide: esse um que lê com mais compreensão e
....... entusiasmo um escrito é autor dele. Quem cria, vê sempre uma L indóia na criatura, embora
Exemplo 2
Um dia, era uma quarta-feira. Frdulein apareceu diante de mim e se contou. O que disse
está com poucas vírgulas, vernaculização acomodatícia e ortografia. Os personagens (. . .) asse
guro serem criaturas já feitas e que se moveram sem mim. São os personagens que escolhem os
seus autores e não estes que constróem as suas heroínas. Virgulam-nas apenas, pra que os
homens possam ter delas conhecimento suficiente.
Comentários
Repare que os exemplos retirados do romance são metalingüísticos, isto é, utilizam-se do
espaço da ficção para refletirem sobre vários aspectos "técnicos" da criação do texto.
No primeiro exemplo, as conjecturas sobre o número de leitores do livro dentro do próprio
livro, possuem um tom irônico que pode ser relacionado ao experimentalismo da prosa de Mário
de Andrade, e, conseqüentemente, às reações adversas que provoca a um público acostumado com
o tradicional. O Narrador coloca-se como Autor e em cada parágrafo do fragmento associa a iro
nização de seus poucos leitores a um aspecto de modernidade da obra.
Assim, o parágrafo inicial refere-se à adesão do autor ao trabalho que cria - o autor como
principal leitor de si mesmo - destacando a relação criador (escritor) I criatura (personagem),
através da ridicularização dos personagens idealizados de nosso Indianismo. A figura de Lindóia
(heroína de O Uraguai, de Basílio da Gama) simboliza tais personagens, na medida em que se trata
de uma índia criada à semelhança das heroínas dos romances românticos europeus, embora as
índias sejam pançudas e ramelentas.
Já o parágrafo seguinte intensifica a questão da raridade dos leitores, que de 5 1 passam a 5,
além do próprio autor, sendo os 45 restantes identificados como os inimigos de Mário de Andrade,
a maioria que o lerá para criticá-lo ... Com essa passagem que satiriza a distância entre o texto
modernista e o tradicionalismo da critica e do público a que se destina, o Narrador-Autor, em gesto
de provocação, completa a lotação do bonde e toca pra avenida Higienópolis, quer dizer, para o
espaço onde se desenvolve o idílio, o espaço ficcional.
Neste espaço, onde esperamos pelo prosseguimento da narrativa, o que ocorre na verdade é
outra reflexão a respeito de outro fator de importância básica na criação literária: o personagem
criado no livro é recriado pelos leitores, o que o faz multiplicar-se a ponto de tomar-se um na cabe
ça de cada leitor. De novo a ironia de Mário de Andrade entra em ação, agora em forma de justi
ficativa quanto ao processo de construir o personagem: teria sido indiscreto se antes de qualquer
familiaridade com a moça, a minuciasse em todos os seus pormenoresjisicos...
w
A esta suposta "timidez" e à conseqüência que acarreta - 51 heroínas pra um só idílio -
o
como se fosse um mal o enriquecimento artístico dos personagens decorrentes da imaginação do <(
a:
leitor - segue-se, no exemplo 2, uma teoria vanguardista sobre a criação de personagens. Trata o
se da concepção de Pirandello, dramaturgo italiano, autor de Seis personagens em busca de um z
<(
autor, segundo a qual a arte tem supremacia sobre a vida, pois os seres por ela engendrados, por w
serem produtos da imaginação, são mais consistentes e verossímeis que os seres do mundo real. o
Assim, Frãulein Elza, uma criatura do universo imaginário, teria escolhido um autor, Mário de o
Andrade, a fim de que ele a "virgulasse", a "traduzisse" em linguagem artística, para que os ho a:
·<(
mens pudessem compreendê-la... ::2E
Em nosso estudo sobre o enredo do romance, vamos destacar passagens em que a dimensão -
cinematográfica, metonímica de sua linguagem será exemplificada. 111
Enredo
Retomando a epígrafe de nosso trabalho, encontramos em Amar, verbo intransitivo, um
núcleo narrativo que conta a história de uma "lição de amor".
O estudo do desenvolvimento do enredo desta "lição de amor" terá duas direções. Em primei
ro lugar, procuraremos perceber como a experiência afetiva da governanta e iniciadora amorosa de
adolescentes com seu aluno Carlos revela não apenas a complexidade de sua personalidade, mas
a complexidade da relação homem-mulher, tematizada no romance.
Em segundo lugar, entrelaçaremos a temática mencionada ao sentido de confronto entre raças
- a alemã, "superior" e definida, representada por Frãulein e a brasileira, "inferior" e a se defi
nir, representada por Carlos e sua família - fortemente explorado. De ambas as direções, verifi
caremos, enfim, o projeto nacionalista e adimensão psicológica, os quais nos parecem consti
tuir os traços mais significativos de Amar, verbo intransitivo.
Já comentamos que as cenas tomadas cinematograficamente e as digressões do narrador cons
tituem os principais procedimentos literários da obra, cuja modernidade se toma patente também
através da paródia e da metalinguagem. Vejamos um trecho no qual tais procedimentos nos per
mitem prosseguir a análise, agora centrada no enredo:
Bem diferente dos quartinhos de pensão . . . Alegre, espaçoso. Pelas duas janelas escanca
radas entrava a serenidade rica dos jardins. O olhar torcendo para a esquerda seguia a dis
ciplinada carreira das árvores na avenida. Em Higienópolis os bondes passam com bulha
quase grave-soberbosa, macaqueando o bem-estar dos autos particulares. É o m imetismo aris
co e irônico das coisas ditas inanimadas. São bondes que nem badalam . Procedem como o
rico-de-repente que no chá da senhora Tal, família campineira de sangue, adquire na epider
me do fraque a macieza dos tradicionais e cruza as mãos nas costas - que importância!
pra que a gente não repare na grossura dos dedos, no quadrado das unhas chatas. (. . .)
A moça, depois das cortesias trocadas com a senhora Sousa Costa e um naco de conver
sa indiferente, subira apenas pra tirar o chapéu. Logo o criado viria chamá-la pro almoço . . .
Nenhuma faceirice por enquanto. No princípio tinha de ser simples. Simples e insexual. O
amor nasce das excelências interiores. Espirituais, pensava. O desejo depois.
Quando pronta, esperou imaginando, encostada no lavatório. Ganhava mais oito con
tos. . . Se o estado da Alemanha melhorasse, mais um ou dois serviços e podia partir. E a casi
nha sossegada . . . Rendimento certo, casava. . . O vulto ideal, esculpido com o pensamento de
anos, atravessou devagarinho a memória dela. Comprido magro . . . Apenas curvado pelo pro
longamento dos estudos . . . Científicos. Muito alvo, quase transparente. . . E a mancha irregular
do sangue nas maçãs. . . Óculos sem aro . . .
Se impacientou. Quis pensar prático, e o almoço? Porque o criado não chegava? A
Senhora Sousa Costa avisara que o almoço era já. Devia de serjá. No entanto esperava jazia
uns quinze minutos, que irregularidade.
Observe que no trecho destacado o Narrador, acompanhando o olhar de Frãulein, ironiza a
condição de novos-ricos da família Sousa Costa através do contraponto entre os bondes que pas
sam por Higienópolis e os automóveis, aos quais os primeiros macaqueiam com o mimetismo aris
co e irônico das coisas ditas inanimadas. . . Em seguida, o Narrador compara-os com o rico-de
repente que no chá da senhora Tal...
Após mostrar e m frases reticentes, metonímicas, metafóricas, ricas e m pausas, cortes melódi
cos e imagens, o ambiente onde chega Frãulein - "Vila Laura", a mansão de Felisberto Sousa
Costa, criador de touros de raça, situada no bairro pouco nobre de Higienópolis - o Narrador
focaliza a heroína em seu começo (que é sempre um recomeço).
Tal focalização nos dá alguns dos traços essenciais de Frãulein, a governanta e professora de
<(
C) línguas, de boas maneiras e de amor, que, a despeito da "fraqueza" de sua profissão, sonha roman
�
z
ticamente voltar a seu país e encontrar um casamento burguês: a casinha sossegada, o vulto ideal,
magro e intelectualizado . . . o rendimento certo. A essa imagem de Frãulein que representa a sua
w face alemã de "homem-do-sonho", na obra associada a Wagner, de quem tem um retrato, opõe-se
:?E subitamente, na mesma cena, a face, também alemã, de "homem-da-vida": Se impacientou. Quis
o
u pensar prático, e o almoço? Segundo o Narrador, esta última face, por sua vez associada a outro
<( retrato pertencente à heroína, o de Bismarck, prevalece sobre a primeira.
a: É pela ótica de Frãulein que germanicamente pensa prático, adapta-se com rapidez, exerce o con
::>
�
a:
trole e a ordem sem vacilações, enfim, é por sua ótica de "homem-da-vida" que o Narrador vai des
nudando as características "brasileiras" e, num sentido mais amplo, latinas, como neste exemplo:
isto
w da vida continuar igualzinha, embora nova e diversa, é um mal. Mal de alemães. O alemão não tem
t
::J escapadas nem imprevistas. A surpresa, o inédito da vida é pra ele uma continuidade a continuar
...... (...) Decisão: viajaremos hoje. O latino falará: viajaremos hoje! O alemão fala: viajaremos hoje.
Ponto final. Pontos de exclamação... É preciso exclamar pra que a realidade não canse...
118
Assim, Frãulein irrita-se, indigna-se, encoleriza-se com a falta de "gramática" dos costumes
da família Sousa Costa, ao mesmo tempo que se adapta. . . E por mais motivos que a "superiorida
de racial", conforme veremos comentando o núcleo narrativo, o idílio.
Desde o início de sua relação com Carlos, o menino "machucador", que machuca as irmãs sem
querer, mas machuca, Frãulein sente que algo está diferente do habitual. Contratada por Sousa
Costa para iniciá-lo no amor, demora mais que as outras vezes a seduzir. Além disso, é concomi
tantemente seduzida por ele.
Trinta dias depois da chegada de Frãulein, Carlos deixa de lado as irmãs - Maria Luísa, de
12 anos, Laurita, de 7 e Aldinha, de 5 - para, com seus quase dezesseis, "viver na saia" dela, até
que a professora não pôde mais consigo. Se despejou sobre o menino, com o pretexto de corrigir...
No auge d a consumação do desejo que igualava a ambos, Dona Laura percebe o interesse de
Carlos pela governanta e, sem nada saber, pede-lhe que deixe a família. Frãulein, ao constatar que
Sousa Costa não cumprira a promessa de informar a mulher sobre o seu trabalho, explode em lágri
mas. Justifica perante ambos o ideal de amor sincero,elevado, cheio de senso prático, sem loucu
ras, o amor como deve ser que ensina, e não a mera iniciação sexual sem o perigo de vícios - nas
palavras atrasadas e insultantes para ela de Sousa Costa, a quem, no entanto, dona Laura com
preende muito melhor... - e ameaça ir embora.
No entanto, volta atrás, considerando o pedido sem grandes insistências de Sousa Costa, já
arrependido do acordo e temeroso de um escândalo familiar.
A paixão de Carlos e Frãulein se intensifica; ocorrem o primeiro beijo, o primeiro encontro no
quarto dela, os primeiros ciúmes de mulher, que fazem e não fazem parte da lição . . . Frãulein sofre
quando descobre não ter sido a primeira na vida de Carlos; antes disso, sofre com a maneira "desa
finada" mas forte, "máscula" com que o menino a domina, e por fim sofre pela rapidez da evolu
ção do amante em seus encontros noturnos.
Assim, enquanto Carlos tinha exigências risonhas, por instinto, demonstradas com despotis
mo calmo, satisfeito, muito seguro de si (. . .) Criança ainda e desajeitado, embonecava nele o
homem latino, vocês sabem: o homem das adivinhações, Frãulein germanicamente decide substi
tuir as reticências pelo ponto final.
Insiste, então, com Sousa Costa, que se cumpra o combinado: a violência necessária ao desfe
cho da lição e, apesar do sacrificio da memória dela perante o menino, ao resgate da dignidade da
profissão, como que abalada e necessitada de um desejo alemão de tragédia inútil.. .
O pai de Carlos, mais por desejo de vingança do filho - propriedade dele, em amores escan
dalosos debaixo do teto familiar - finge surpreendê-los em flagrante, demite a governanta e,
penalizado com o sofrimento do menino, conta-lhe do dinheiro que Frãulein recebera, ameaça-o
com a idéia de ela obrigá-lo a casar-se e, pior do que isso, engravidar. . .
Desta forma, exatamente de acordo com o planejado, Frãulein parte para Santos, e m busca de
outro trabalho . . . O não planejado, ininteligível para Sousa Costa, é que ela o faz chorando . . .
Embora anuncie que O livro está acabado, e embora escreva a palavra "FIM", o Narrador,
mais uma vez desconstruindo as convenções do romance, continua o relato. Primeiro mostra
Frãulein tomar posse de si mesma, recordar as citações preferidas e o seu velho sonho de amor...
Em seguida, convida o leitor a seguir Carlos mais um poucadinho... Voltemos pra avenida
Higienópolis. Eu volto.
Descreve Carlos em sua dor, em sua transformação em homem. O bom homem que tinha que
ser, honesto, forte, vulgar. Que seria mesmo sem Friiulein, só que um pouco mais tarde. É o que
ela constata, ao reencontrá-lo, num corso de carnaval, dirigindo um carro e acompanhado das
irmãs e de uma bela holandesa, com quem possivelmente se casaria. Frãulein se machuca mais
uma vez, enciumada do menino que fez homem, mas logo se consola, interrompendo a declama
ção de versos alemães e refletindo: O mundo é tal como é. A gente deve aceitar sem revolta. Carlos
casará rico. Perfeitamente.
w
Com uma comoção materna, lembrou-se dos outros alunos e, ela que era mãe do amor, o
deixou-se amparar pelo novo discípulo, com quem não simpatizava, mas a quem ensinava, assim, <(
a:
o mais doce, mais suave dos gestos de proteção. o
z
Comentário geral sobre o enredo <(
Quanto ao primeiro enfoque deste enredo, o da "lição de amor" tematizando a relação homem
w
o
mulher, não podemos deixar de ressaltar a complexidade de Elza, que atende profissionalmente
o
pelo nome de Frãulein (senhorita e professora, em alemão), em oposição à linearidade de Carlos, a:
o adolescente, futuro herdeiro, cujo comportamento reproduz, em essência, o do pai. ·<(
O que nele seduz Frãulein não é, então, a sensibilidade pouco ou nada especial, nem os dotes �
intelectuais medianos. Neste sentido, Carlos não coincide com o ideal burguês do amor sonhado e -
Os filhos
Enquanto as meninas brincam a única brincadeira que lhes convém - de boneca - reprodu
zindo a imagem da mãe, Carlos era machucador. Porém não fazia por mal. Atrapalhava tudo,
nunca tinha intenção de atrapalhar coisa nenhuma. Comparado com o boi em sua sexualidade,
"com vantagem para este, que Mário considerará como símbolo da unidade nacional" (Telê P. A.
Lopez - obra citada), o "desraçado" Carlos, legítimo herdeiro da mentalidade paterna, para o
Narrador é um bocado longínquo. Isso não quer dizer falta de coração, significa somente esque
cimento do coração, coisa muito comum nas pessoas normais. Carlos é frio? Não, porém não se
lembra de querer bem. Se basta a si mesmo e se defende das festinhas.
Apesar dos fortes traços expressionistas com que o Narrador firma o grotesco da família cató
lica e "virtuosa", não podemos chamá-lo de maniqueísta. Há episódios, como o da viagem de trem,
na volta do Rio de Janeiro a São Paulo, em que o lirismo transcende a caricatura: neste episódio,
diante da vergonha da família, pela má educação das crianças, enquanto Frãulein se entrega à cóle
ra e tenta "salvar" o decoro, Sousa Costa se solidariza com a menina de sete anos, Laurita, a qual
se diverte em ler as tabuletas das cidades que aparecem, lendo Mictório quando chegam a Taubaté ...
O s estrangeiros
Frãulein Elza e Tanaka
Quanto a Frãulein, já comentamos a sua divisão interior: entre Bismarck, o homem-da-vida e
Wagner, o homem-do-sonho. Entretanto, quando o "deus encarcerado", Dionísio, tende a mani
festar-se, quando seu desejo de liberdade, de primitivismo, a toma, ela "multiplica-se nas reticên
cias. Sua pontuação é a mesma dos latinos que condena. Com uma diferença, entretanto: eles hesi w
tam nas reticências de quem não sabe o que quer. Frãulein homem-da-vida e homem-do-sonho, o
<(
alienada ou não, sabe se definir, não gosta de hesitar. Em sua mente as duas facetas se conjugam, a:
se justapõem, se opõem: o ponto final e as reticências. O ponto final marcando tudo o que é prá o
z
tico, mesmo no sonho". (Telê P. A. Lopez - obra citada). <(
Graças a tal fidelidade ao "ponto final", Frãulein, embora na condição inferior de governanta, w
assume certa "soberania" perante a família, ocupando melhor e com mais eficiência o papel de o
mãe, seja durante a doença de Maria Luísa, seja na viagem de trem, situações em que dona Laura o
a:
perde o controle e o entrega de bom grado a ela. ·<(
Entre Frãulein e Tanaka, o criado japonês, há rivalidade pelo domínio do espaço no qual inter �
ferem - rivalidade que o Narrador compara em longa digressão com uma luta de tigres - mas -
há simultaneamente solidariedade: ambos são estrangeiros, ambos vivem exilados, ambos falam
121
mal dos patrões e do Brasil, mas, de acordo com o Narrador, não constituem perigo sério, pois
serão assimilados . . .
Tempo/espaço
Em certa passagem da obra, o Narrador afirma: Ahn ... ia me esquecendo que este idílio é imi
tado do francês de Bernardin de Saint-Pierre. Do francês. De Bernardin de Saint-Pierre.
O primeiro comentário que salta aos olhos é a ironia do Narrador com relação à tradição de
cópia, e do francês, que caracteriza a literatura brasileira "passadista", contra a qual os modernis
tas se colocam.
Entretanto, de acordo com as reflexões de Telê P. A. Lopez, há semelhanças entre Amar, verbo
intransitivo e Paulo e Virgínia, de Bemardin de Saint-Pierre.
O escritor francês constrói uma écloga, um romance pastoril, no qual ocorre uma "lição de
amor" que se constitui através da valorização do simples, do primitivo, em detrimento da realida
de urbana.
Para fazê-lo, ele ambienta sua história numa província da França e assim se distancia tanto da
linguagem "culta", do francês castiço da cidade, quanto de seus referenciais de vida e de pensa
mento.
No projeto de Mário de Andrade também existe a preocupação de se afastar da metrópole, no
caso a Europa, e de valorizar a especificidade da paisagem e do modo de ser brasileiros. Neste sen
tido é que a aproximação de ambas as obras vai além da "blague" (a brincadeira) e nos auxilia a
compreender uma das significações possíveis do idílio de Mário de Andrade: além da semelhança
temática - a "lição de amor" - encontramos uma semelhança espaço-temporal.
Assim, São Paulo torna-se o cenário de um idílio que, deslocado de suas características tradi
cionais, tematiza o "amor terno" sonhado por Frãulein - ela se imaginaregando flores, pasto
reando os alvos gansos no prado, enfeitando os lindos cabelos com margaridinhas - o amor ...
como recuperação do primitivismo, que vivenda com os adolescentes, e o amor à terra enquanto
raiz, enquanto busca de identidade nacional.
Neste sentido, e também na criação de cenas, de quadros muitas vezes não apenas cinemato
gráficos, mas musicais, Amar, verbo intransitivo recupera formas literárias; antigas como o idílio
e modernas, vanguardistas, como o expressionismo, não para "imitá-las". O que pretende, ao con
trário, é "deglutir" antropofagicamente as influências cosmopolitas para recriá-las no contexto de
um novo tempo; um novo mundo, a ser redescoberto: o Brasil.
Linguagem
Durante toda a análise que realizamos, você esteve em contacto com a riqueza da linguagem
desta obra. Conheceu suas pausas musicais, seus cortes metonímicos, seus enfoques cinematográ
ficos, suas imagens líricas e jocosas, seus aspectos paródico e metalingüístico.
Vamos, então, destacar um dos fatores já fartamente exemplificado mas ainda não comentado
da linguagem de Mário de Andrade. Trata-se do principal projeto lingüístico-literário do autor: o
de transformar a fala brasileira em linguagem artística, distinguindo-a da sintaxe e do voca
bulário europeus e convertendo-a no mais importante elemento de identidade nacionàl.
Em carta a Manuel Bandeira, veja o que diz Mário de Andrade a respeito de Amar, verbo
<( intransitivo: "O livro é uma mistura incrível. Tem tudo lá dentro. Crítica, teoria, psicologia e até
Cl
romance: sou eu. E eu pesquisador. Pronomes oblíquos começando a frase, 'mandei ela' e coisas
�
z assim, não na boca de personagens, mas na minha direta pena. Fugi do sistema português. Meu
w destino é lembrar que existem mais coisas que as vistas e ouvidas por todos. Se Constlguir que se
� escreva brasileiro sem por isso ser caipira, mas sistematizando erros diários de conversação, .idio
o
u tismos brasileiros e sobretudo psicologia brasileira, já cumpri o meu destino. Que me importa ser
<( louvado em 1 985? O que eu quero é viver a minha vida e ser louvado por mim nas noiaes wes de
a: dormir. Daí: Frãulein. Confesso-te que sou feliz" (Cartas a Manuel Bandeira Mário de
:::>
-
�
a:
Andrade).
Para você assimilar a riqueza vocabular, sintática e poética do "falar brasileiro" rde Mário de
w Andrade, em Amar, verbo intransitivo, faça o exercício de reler as passagens da obra ,anaJisadas,
1-
::J reparando neste aspecto de sua linguagem. Assim você vai descobrir sozinho que, como diz ironi
....... camente o Narrador em algumas passagens do livro, a dificuldade é menor do qlle pa1rece... Não
122 apenas na "lição de amor", mas também na "lição da grande obra de arte".
11 Leia com atenção o fragmento abaixo, retirado de Amar,
verbo intransitivo de Mário de Andrade: El
Ao longo de Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade,
ocorre uma " lição de amor " . Que significado esta lição pos
Aqui devem se trocar naturalmente umas primeiras fra sui:
ses de explicação - se ele der espaço para tanto entre a) Para Carlos;
os dois ! - porém obedeço a várias razões que obrigam b) Para Friiulein.
me a não contar a cena do quarto. Mas como nos será
impossível dormir, ao leitor e a mim, ambos naquela tor Relacione a profissão de Frãulein, e as sign ificações que pos
cida pelo triunfo de Carlos, vamos passar este resto de sui em sua vida, com o título do romance de que é protago
noite resolvendo uma questão pançuda. . . nista: Amar, verbo intransitivo.
Agora, responda às questões propostas:
Por que Mário de Andrade classifica como um idílio o seu ro
a) A que cena o narrador se refere e por que ele se recusa a mance Amar, verbo intransitivo ?
contá-la?
b) Que elementos do fragmento demonstram a modernidade
do foco narrativo da obra? Por quê?
c) Como você responderia a pergunta do narrador sobre as
relações entre os personagens mencionados?
123
OSWALD DE ANDRADE
"Eu sou redondo, redondo
Redondo, redondo eu sei
Eu sou uma redond'ilba
Das mulheres que beijei".
Narrador
Serajim Ponte Grande foi chamado por Antônio Cândido de fragmento de grande
livro e por Haroldo de Campos de grande não-livro ou antilivro, feito pela acumulação
paródica de modos costumeiros de fazer livro.
A idéia de fragmento é fundamental para começarmos a estudar esta obra extrema
mente complexa: nela não há os tradicionais capítulos que caracterizam os romances,
mas unidades que separam trechos onde aparecem muitos tipos de escrita, literária e
não-literária.
Além de prosa, poesia e teatro (os tipos de escrita literária), encontramos trechos de
diário íntimo, de cartilha e composição escolar, de cartas, de relatório policial, de crô
nicas e artigos jornalísticos, de roteiros de cinema, dentre outros, neste livro, que mis
tura tantas linguagens diferentes de maneira paródica, quer dizer, imitando-as satirica
mente, muitas vezes ridicularizando-as.
Quanto à literatura, os vários estilos que conhecemos - o Romantismo, o
Realismo-Naturalismo, o Parnasianismo, e até os modernos como o Futurismo - são
satirizados, acrescentando-se a eles os romances medievais de capa e espada, os roman
ces policiais, os discursos da oratória barroca, enfim, podemos afirmar que a totalidade
do fazer literário é recuperada e "dinamitada" pela irreverência devoradora de Oswald.
Portanto, dos mais elevados aos menos nobres registros lingüísticos, da retórica
<( artificial da norma culta e do Parnasianismo à informalidade, à oralidade, aos palavrões
o
� Q swald de Andrade nasce em São Paulo e às expressões consideradas chulas, "de baixo calão", nada escapa ao autor. Ele tam
z em 1 890, sendo filho de gente bém utiliza epígrafes e outros elementos comuns num romance (Obras do Autor, copy
w abastada. Viaja cedo para a Europa, onde right, errata, cronologia) para com a sua extraordinária capacidade de humor tomá-las
à
u
entra em contato com os movimentos de
vanguarda.
cômicas aos olhos do leitor.
Temos assim uma colagem de fragmentos que se reúnem jocosamente em Serajim
Além de Memórias sentimentais de João
<( Ponte Grande, o que dificulta a sua leitura, ao mesmo tempo em que causa um efeito
a: Miramar e Serafim Ponte Grande, entre
=> outros romances, escreve o Manifesto de "estranhamento", de anormalidade cuja intenção é critica: Oswald pretende rein
!;i:
a:
Pau-Brasil e o Manifesto Antropofágico.
destacando-se na poesia o volume Poesias
ventar a linguagem neste livro e, para fazê-lo, necessita questionar todas as linguagens
existentes, em especial a literária, ampliando-lhe os limites e as convenções como nunca
w reunidas e no teatro a peça Rei da vela. se fez na literatura brasileira.
1-
:::J Falece em 1 954, aos 64 anos de idade, este Neste sentido, a obra possui um caráter experimental típico da fase heróica de
extraordinário e febril intelectual brasileiro.
....... nosso Modernismo, e da modernidade literária em geral, sendo James Joyce, Mareei
o
124 Proust e Virgínia Woolf alguns de seus representantes.
Você já percebeu que o narrador, o enredo, os personagens, o tempo e o espaço, ou seja, as
categorias literárias tradicionais, não poderão ser tratadas tradicionalmente aqui. O que veremos é
como o livro vai trabalhando estas categorias para consolidar-se enquanto não-livro, ou, em outras
palavras, enquanto infinitas possibilidades de infinitos livros reunidas num só livro.
Falando especificamente do narrador, observamos em Serafim Ponte Grande a existência de
uma espécie de polifonia, de justaposição de vozes narrativas - ora em terceira ora em primeira
pessoa - extremamente móveis, alteráveis de um fragmento para o outro. Com o ponto de vista
do(s) narrador(es) evidentemente ocorre o mesmo, havendo então uma multiplicidade de focos
narrativos, ligados ao tipo de linguagem utilizada. Vamos exemplificar alguns deles:
1. A paisagem desta capital apodrece. Apareço ao leitor(. . .). Personagem através de uma
vidraça. De capa de borracha e galochas. Foram alguns militares que transformaram a
minha vida . . . (Recitativo).
2. Serafim como um diamante no dedo da cidade pega no canhão que colocou graças aos
acontecimentos, sobre a oscilante banana do arranha-céu onde inultimente se apresenta
candidato a edil (Cômputo).
3. Terça-feira
A ndo com vontade de escrever um romance naturalista que está muito em moda.
Começaria assim: "Por todo o largo meio disco de praia dejurujuba, havia uma vida sen
sual com ares gregos e pagãos. O marparecia um sátiro contente após o coito!".
Nota: Não sei ainda se escreverei a palavra "coito " com todas as letras. O arcebispo e
as famílias podem ficar revoltados. Talvez ponha só a sílaba "cai " seguida de três pontinhos
discretos. Como Camôes fazia com "bunda ".
(. . .)
Terça-feira
Amanhã, missa em Santa Efigênia. Ação de graças pelo aniversário da besta do
Carlindoga. Podia ser de 30º dia!
Sábado
Lalá passou mal a noite. Não morreu.
(Folhinha conjugal ou seja Serafim no front)
4. Na mesa perniciosa do Barão Tapavento, Dona Branca Clara, rainha da beleza, belisca-o.
Por quê? Por que Dona Branca Clara o beliscaste-o?
Mas ei-la que sorri como um isqueiro:
- Escuche Dom Serafim. Eu lhe falo com todo o descaramento de que uma católica
fogosa é capaz. Um homem só botina e diz que ama para fazer da protagonista duas coi
sas: ou sua esposa ou sua sobrancelha . . .
Serafim some pelo escapamento. (Cérebro, coração e pavio)
Vamos alinhar as unidades de que falamos, numerá-las de acordo com a seqüência em que
aparecem, exemplificar com um pequeno trecho cada uma delas, e em seguida, apresentar o sumá
rio da história.
I - Recitativo
Apresentação de Serafim - já exemplificado (ver narrador).
li - Alpendre
Serafim na escola, adolescente; descoberta da sexualidade e casamento na polícia com Lalá.
O trecho que segue é uma paródia de cartilha escolar.
O Largo da Sé
Receita
Ilustre balaústre
5'ó um acordo com o subconsciente de Dona Branca Clara poderá esclarecer o magnifico
negativo que tenho em mãos e revelá-lo. Parabéns pelo monstro que tem em casa. Mande-o.
Sigismundo
Diagnóstico: Dona Branca Clara é uma vítima da cristianização do Direito Romano tam
bém conhecida pelo mote de Civilização Ocidental.
Seu josé, assistente
VIII - Os esplendores do Oriente. Epígrafe: Amar sem gemer (Do diário noturno de Caridad
Claridad)
Serafim, no Oriente, converte uma girl d 'hoje ' em-dia - lésbica - amante de Pafuncheta, ao
heterossexualismo, após perseguir as duas fugitivas pela Grécia, Turquia, Egito e Palestina.
Exemplo de estilo descritivo-cubista, isto é, fragmentado, em ritmo de romance policial. Note
a comicidade da epígrafe, ridicularizando o lesbianismo.
IX - Fim de Serafim
O herói volta para São Paulo, onde morre vitimado por um raio, embora, perseguido pela polí
cia, tenha colocado um pára-raios na cabeça.
O trecho-exemplo é uma paródia da oratória barroca, um discurso de Serafim aos pósteros .
- Tudo é tempo e contra-tempo! E o tempo é eterno. Eu sou uma fonna vitoriosa do tempo.
Em luta seletiva, antropofágica. Com outras fonnas do tempo: moscas, eletro-éticas, cataclis
mas, policiais e marimbondos! w
Ó criadores das elevações artificiais do destino, eu vos maldigo! A felicidade do homem é Cl
<(
uma felicidade guerreira. Tenho dito. Viva a rapaziada! O gênio é uma longa besteira! a:
Cl
2
X - Errata. Epígrafe: Os mortos governam os vivos (frase-feita) <(
Construção pela família e pelos amigos do "asilo" Serafim, cujo primeiro "hóspede" é o pin w
tor - louco como um silogismo - que retrata o defunto. Note a ironia da frase-feita da epígrafe Cl
Cl
e da transformação de uma errata em capítulo. ....J
O trecho-exemplo mostra linguagem jornalística, grave e ao mesmo tempo cômica.
- Uma vez puso dos ingleses nocaute en la calhe. Passavam e mi dabam encontrones toda
via! Yo me fué arrabiando e exc/amé: - animales I Hijos de puêta (. ..) .
Foi ordenado que sejogasse ao mar uma senhora que estrilara por ver asfilhas nuas no tom
badilho que passara a se chamar tobandalho. Mas ela replicou que chorava de saudades do céle
bre curandeiro Dr. Voronoff.
Sumário do enredo
Em Serafim Ponte Grande temos um homem aparentemente "comum", que se casa na polícia
e trabalha como funcionário público numa Repartição Federal de Saneamento, que ele chama de
Escarradeira.
Entretanto, este homem rouba o dinheiro da Revolução, escondido na sua casa pelo filho, que
dela participa, compra um canhão, atira no chefe da Escarradeira, viaja à Europa e em seguida ao
Oriente, onde libera o erotismo, a sensualidade, o individualismo, a energia vital represada dura
mente nos tempos em que era um "honesto contribuinte".
Ao voltar para São Paulo, após todas as aventuras sexuais possíveis e imagináveis, é morto,
enquanto a polícia o persegue por um raio, em plena tempestade e no mesmo local em que perma
necera o canhão . . .
A família e o s amigos mandam construir um hospício e m sua homenagem e o melhor amigo,
Pinto Calçudo, continua a viagem erótica indefinidamente, num navio-fantasma chamado El
Durasno. . .
Vamos, agora, acrescentar alguns elementos à nossa análise, estudando o s personagens desta
obra, cujo enredo pudemos reconstruir, apesar dos avanços e recuos que quebram a sua linearida
de e que verificaremos com mais detalhe quando comentarmos o tempo e o espaço.
Personagens
Principal
O protagonista do livro, que tem o seu nome, foi chamado de "Macunaíma urbano" por
Antônio Cândido, pois, tal como Macunaíma (personagem de uma obra de Mário de Andrade),
Serafim é também um "herói sem nenhum caráter", um anti-herói caracterizado pelo individua
lismo, pela sensualidade e pela malandragem. Esta malandragem, entretanto, não pode ser enten
dida como uma avaliação moral, pois aquilo que chamamos de "imoralidade" corresponde em
Serafim a um comportamento amoral, antropofágico, devorador de tudo o que corrompe o
homem na sua busca de felicidade, aqui entendida no sentido epicurista (o prazer como "bem sobe
rano"), hedonista (saúde do corpo e sossego do espírito através da luxúria e da sensualidade), ico
noclasta (destruidor de mitos) da palavra.
<( A devoração e a mobilidade são, para Antônio Cândido, os dois signos principais da vida de
o
Oswald, sempre crítico, sempre inconformista e inquieto, sempre pronto para mudar, para viajar
�
z
em busca de novo, como faz Serafim neste livro.
w
� Secundários
o
u Dentre os personagens secundários, há os "adaptados" aos quais Serafim se opõe - Lalá, a
<( esposa; Benedito Carlindoga, o chefe da Escarradeira, morto pelo "herói"; o Manso, que assume
a:
sua família; o filho Pombinho (Pery Astiages) cuja ingenuidade abomina - e os "inadaptados"
::>
�
a:
com os quais Serafim compartilha as aventuras eróticas: a traiçoeira atriz Dorotéia, Branca
Clara, a mulher frígida, Dona Solanja, a virgem distante e evasiva, Caridad-Claridad, a moça
w lésbica, e, principalmente, Pinto Calçudo, o companheiro e secretário que continua a viagem utó
1-
....J pica de Serafim. As aventuras deste personagem no Steam-Ship, também chamado de Rompe
- Nuve (veja a convivência grotesca de um nome ao mesmo tempo cosmopolita e caipira), são de
uma comicidade extraordinária: numa delas, que culmina com a sua expulsão temporária do livro,
128
uma verruga parcialmente eletrocutada que possui transforma-se em radar, fazendo chegar notí
cias da terra ao navio, neste momento perdido no oceano ... Noutra, ele vai fazer esporte com um
remo e acaba desviando o transatlântico da rota.
Enfim, também na caracterização dos personagens há deslocamentos, estranhamentos, anorma
lidades em Serafim Ponte Grande, acentuando a hilaridade perplexa com que o lemos e percebe
mos a inteligência e a lucidez crítica de seu humor, que não chega a ser grosseiro embora parado
xalmente lide com as mais grotescas grosserias.
Esta aparente contradição resolve-se se pensarmos na moralidade, isto é, no fundamento ques
tionador que não deixa de ser moral, subterrâneo às jocosas passagens de Serafim Ponte Grande.
É o que veremos melhor, quando verificarmos a linguagem com que foi escrito.
Tempo/Espaço
Embora o livro tenha um enredo, que conseguimos reconstruir, é importante perceber que o
fizemos ajustando e decifrando os fragmentos de que se compõe e cuja variação comentamos.
Para compreendermos como se dá a justaposição destes fragmentos ou unidades, podemos
compará-las a slides cuja seqüência muitas vezes se altera: entre a unidade IV (Testamento de um
legalista defraque) e a unidade V (No elemento sedativo) por exemplo, há dois slides fora do con
junto (Cômputo e Intermezzo) .
O primeiro, Cômputo, palavra que significa balanço, cálculo final, tem como subtítulo
Efemérides, metempsicose ou transmigração de almas. Nele, como se Serafim reaparecesse depois
da viagem transatlântica, que na verdade ainda não ocorrera, há um anúncio de sua morte, o que
nos faz pensar num forte temporal que transformaria emjlash-back (retorno ao passado) os frag
mentos que se seguem, até o fragmento IX - Os antropófagos - em que a situação é retomada.
Verificamos aí a sugestão de que o pintor responsável pelo retrato de Serafim teria se contamina
do com a loucura do herói através da metempsicose (reaparecimento de alguém já morto, no corpo
de outra pessoa). Esta sugestão se reforça com a epígrafe - Os mortos governam os vivos.
O Intermezzo possui uma epígrafe de São Tomás de Aquino sobre a fornicação, além de vários
subtítulos de romances pitorescos (Dinorá a todo cérebro ou seja A estranha mulher do
Copacabana Palace ou seja A ex-peitudinha do Hotel Fracaroli ou seja O mais belo amor de
Casanova) e narra um episódio sensual entre Serafim e Dinorá, agora como se ele já estivesse no
mar.
Tais "desajustes" indicam uma superação, em Serafim Ponte Grande, do tempo e também do
espaço. Mais uma vez como Macunaíma, o herói está em vários lugares e várias épocas simulta
neamente: na Europa, no Oriente, realizando a utópica da viagem, e no Brasil, em companhia de
Lalá, com quem dialoga depois da separação, ou a quem se refere, apesar de ela estar presente.
Segundo Haroldo de Campos, essa ambigüidade no desenrolar cronológico dos eventos dá ao
herói uma dimensão de perpetuidade temporal e de ubiqüidade. É ele que na falsa Errata (que na
verdade é mais uma unidade) "governa os vivos ", ensandecendo o pintor de seu retrato memo
rial e inspirando depois o cruzeiro antropofágico de seu ex-secretário Pinto Calçudo, ressurreto
do limbo extra-livro para onde fora jogado em No elemento sedativo- V (Haroldo de Campos -
Linguagem
w
(. . .) a penetração psicológica é geralmente condicionada por certo grau de discursivida o
<(
de, de desenvolvimento literário, que não se encontra em seus rápidos close-ups. Em compen a:
sação a sua técnica pressupõe um conhecimento por meio do dado externo, o detalhe expres o
sivo e pitoresco (. .) O autor possui como poucos o dom da expressividade pela elipse: uma
.
z
<(
w
demão rápida, um traço acentuado, um corte hábil - e eis um tipo, uma cena, um aspecto
significativo ou simbólico. Habilidadeperigosa, pela tentação de malabarismo verbal, e técni o
co, a que ele nem sempre resiste. . (Antônio Cândido - Vários escritos) o
_.J
.
Chamado de fragmento de grande livro por Antônio Cândido, e de grande não-livro por
Haroldo de Campos, Serafim Ponte Grande sem dúvida é grande: no seu inconformismo mostra �
(/)
do pelo riso e pela sátira, na moralidade com que denuncia e devora todos os pressupostos da o
moral burguesa, capitalista e cristã do mundo ocidental, na ousadia através da qual vai crivando -
todas as linguagens, uma a uma, para redescobrir e reinventar a própria linguagem, para fazê-la
129
frutificar nova e rebelde, indomável e sem fronteiras. Com este livro - sejam quais forem as difi
culdades de leitura que ofereça, apesar das perplexidades (ou mesmo por causa delas) - é possí
vel que reaprendamos a aprender, a redescobrir e a reinventar significados, como fez Oswald,
desautomatizando o que permaneceu estático, desarticulando o que o costume e não a natureza
articulou, muitas vezes para nos impedir de ver o personagem através de uma vidraça.
'\7 0**6•
11 1. Comente a modernidade do foco narrativo de Serafim assassinato de Benedito Carlindoga, chefe da Repartição
Ponte Grande. onde trabalha. Por que essas ações são decisivas para a
seqüência da narrativa?
� Qual a função dos capítulos Cômputo e lntermezzo, em
� Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade? (UNICAMP)
Terça-feira
Em Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade, há um epi Amanhã, missa em Santa Efigênia. Ação
sódio relacionado com o personagem Pinto Calçudo de de graças pelo aniversário da besta
extrema importância para a literatura moderna. De que episó do Car/indoga. Podia ser de 302 dia !
dio se trata e por que ele é considerado um dos momentos
mais preciosos do livro? Sábado
La/á passou mal a noite. Não morreu.
(UNICA M P) Em Serafim Ponte Grande, de Oswald de
Andrade, o capítulo Tes tamento de um legalista de fraque Selecione e comente, do trecho acima transcrito, traços do
desempenha função importante para a seqüência do enredo estilo oswaldiano que sejam relevantes na estrutura geral de
do romance. Nele, dentre outras coisas. Serafim confessa o Serafim Ponte Grande e identifique Carlindoga e Lalá .
roubo do dinheiro confiado ao filho por tropas rebeldes e o
11 A modernidade do foco narrativo desta obra pode ser verifi isto é, uma invenção produzida por alguém e não uma h istó
cada pela pluralidade de narradores, de estilos literários e não ria real, verdadeira. Como a metalinguagem ou o desvenda
l iterários, e da linguagens nela existente. menta do ato de narrar é um dos aspectos fundamentais da
modernidade literária, nela se inscreve com o brilho o livro de
fJ
Os capítulos Cômputo e lntermezzo anunciam fatos que só Oswald de Andrade, em especial, mas não exclusivamente,
ocorrerão mais à frente no livro. como a viagem erótica de pelo episódio comentado.
<( Serafim em lntermezzo e a sua morte, quando volta a São
Cl Paulo, após um longo período no exterior, em Cômputo. R Estas ações são decisivas para a seqüência da narrativa na
�
z
Assim sendo, eles têm a função de desarticular a linearidade
do enredo tradicional, fazendo com que o livro, por este e por
lil medida em que constituem um divisor de águas. um
momento fundamental e definitivo na transformação de
w outros motivos, seja extremamente ousado e moderno. Serafim Ponte Grande. De funcionário público e chefe de
.� família ele passa, a partir daí, a boêmio e sensual viajante,
o Trata-se do episódio da expulsão de Pinto Calçudo do livro, conhecendo e amando várias mulheres e assim dando uma
u
<(
a por Serafim Ponte Grande. O motivo de tal expulsão é o perspectiva anarquista a sua vida.
" estrelismo" com que Pinto Calçudo, com uma verruga ele
a:
::> trocutada, recebe as mensagens da terra no navio onde viaja � A " paródia" de diário íntimo em estilo metonímico. sintético
�
�
a:
com Serafim, roubando deste o status de personagem-prin
cipa l .
e cinematográfico é o principal traço relevante da estrutura
geral de Serafim Ponte Grande, presente neste fragmento.
w Este episódio é extremamente importante para a literatura Através dela, o autor satiriza a ojeriza que tem do Carlindoga,
1- moderna porque nele se desvenda a ilusão romanesca. se seu chefe na Repartição onde trabalha - que chama de
__.
explicita as fronteiras da fantasia, da ficção, fazendo com que Escarradeira - e de Lalá, sua esposa, com quem se casou
....... o leitor esteja consciente de que está lendo um romance, na polícia.
130
[o MODERNISMO NO BRASIL - 211 FASE
Do ponto de vista literário, o periodo que vai de 1 930 a 1 945 - denominado 23 Geração
Modernista - corresponde a uma reavaliação do passado, com o Neo-Romantismo e o Neo
Simbolismo na poesia, em que se destacam Carlos Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima,
Cecília Meireles e Vinícius de Moraes.
De grande repercussão e importância nesta época, foi a prosa regionalista do Nordeste, que
assume uma visão crítica das relações sociais, focalizando os problemas da seca, do coronelismo,
da decadência do modelo oligárquico patriarcal, com a extinção dos antigos engenhos açucareiros.
Fortemente influenciada pelas idéias de Gilberto Freire, autor do Manifesto regionalista ( 1 926) e
Casa grande e senzala, esta geração "redescobre" o Brasil.
Além de José América de Almeida, Rachei de Queirós e Jorge Amado, destacam-se José Lins
de Rego, autor dos romances do ciclo da cana-de-açúcar, e Graciliano Ramos, a voz mais fecun
da de todas, na proposta de universalização das questões nordestinas.
GRACILIANO RAMOS
"Não sei por quê.
Acho que o artista deve procurar dizer a verdade.
Não a grande verdade, naturalmente.
Pequenas verdades, essas que são nossas conhecidas".
SÃO BERNARDO
Nesta obra Graciliano consegue a síntese regionalismo/universalismo,
equilibrando homem e paisagem e mostrando a relação da realidade
nordestina com o sistema capitalista como um todo.
Narrador
O narrador de São Bernardo, Paulo Honório, é também protagonista da história que conta.
Temos, assim, um personagem-narrador que se coloca como autor, quer dizer, como alguém
que pretende relatar sua própria vida, escrevendo um romance.
Primeiro, Paulo Honório faz uma "divisão de trabalho". Distribui a cada amigo, de acordo
com a sua especialidade, uma função na construção do romance.
Entretanto, tal procedimento não dá certo:
João Nogueira queria o romance em língua de Camões, com períodos Acompanhando a natureza do
formados de trás para diante. Calculem. personagem, tudo em São
Padre Silvestre recebeu-me friamente (. ..). Está direito: cada qual tem Bemardo é seco, bruto e cortan
Cf)
as suas manias. te. Talvez não haja em nossa lite
Afastei-o da combinação e concentrei as minhas esperanças em Lúcio ratura outro livro tão reduzido ao o
Gomes de Azevedo Gondim, periodista de boa índole e que escreve o que essencial, capaz de exprimir �
lhe mandam (. . .).
tanta coisa em resumo tão estrei <(
O resultado foi um desastre. Quinze dias depois do nosso primeiro a:
to. Por isso é inesgotável o seu
encontro, o redator do Cruzeiro apresentou-me dois capítulos dactilogra o
fados, tão cheios de besteiras que me zanguei:
fascínio, pois poucos darão, z
quanto ele, semelhante idéia de <(
- Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço.Está pernósti
perfeição de ajuste ideal entre os :::J
co, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!
elementos que compõem um u
Azevedo Gondim apagou o sorriso, engoliu em seco, apanhou os cacos
romance. <(
da sua pequenina vaidade e replicou amuado que um artista não pode a:
escrever como fala. Antônio Cândido
(!)
- Não pode? perguntei com assombro. Epor quê? -
Tese e Antítese
Azevedo Gondim respondeu que não pode porque não pode.
131
A relação de Paulo Honório com as pessoas se explícita neste trecho do primeiro
capítulo do romance. Ele manda nelas sumariamente, como faz com o Gondim, a quem
considera uma espécie de folha de papel destinada a receber idéias confusas. Ao
mesmo tempo, também sumariamente, rechaça os participantes do proj eto de escrever
o romance, ora os criticando(João Nogueira queria o romance em língua de Camões...
Calculem), ora aceitando sua recusa (Está direito: cada qual tem as suas manias), ora
xingando ( Vá para o inferno, Gondim ... ).
Nos três casos, a rispidez de Paulo Honório salta aos olhos. Com essa rispidez ele
se propõe a realizar sozinho a tarefa, instigado por um pio de coruja que o faz pensar
em Madalena, a esposa morta há dois anos.
Valendo-se de seus próprios recursos e sem indagar as vantagens materiais que o
livro lhe traria, ou seja, mudando de atitude em relação à "divisão do trabalho" e ao
retorno financeiro no início pretendido, Paulo Honório começa a escrever.
Ele, então, que apenas traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de
agricultura e pecuária, faria as despesas e colocaria o nome na capa, transforma�se no
único autor do romance. Um romance escrito com o sumarismo, a rispidez e a falta de
cultura literária que demonstrou, mas no qual poderia revelar fatos que, cara a cara, não
tem a coragem de revelar a ninguém.
As características da personalidade de Paulo Honório que nos foram desvendadas
até agora são imprescindíveis para a compreensão do foco narrativo do romance: o
proprietário da fazenda São Bernardo, por cuja posse lutou muitos anos, usando os
expedientes do "capitalismo selvagem", como veremos, é um narrador autoritário. Ele
duela em vez de conversar com as pessoas, submete-as ao seu poder duramente conquis
tado, procura se restringir ao essencial, ao mais pragmático, ao longo da escritura.
Desta maneira, Graciliano Ramos nos apresenta um romance sintético, resumido,
econômico como o seu narrador. Nele, consegue um nível de concisão de linguagem,
de expressividade e ao mesmo tempo de desvendamento metalingüístico, isto é, de
reflexão sobre o ato de escrever um romance enquanto este é escrito (através das
digressões de Paulo Honório) , que comprovam a sua maturidade literária. A condensa
ção e a densidade psicológica do romance, cuja verossimilhança ocorre pela narração
em primeira pessoa, exclusivamente centrada em Paulo Honório, constituem os motivos
principais da grande qualidade artística de São Bernardo. Um livro no qual o equilíbrio
e a interpenetração entre o social e o individual, por um lado, e entre o regional e o uni
versal, por outro, demonstram a superioridade deste escritor no contexto de sua geração
e da modernidade literária do país.
Enredo
Abandonado pelos pais, criado por uma negra, a doceira Margarida, Paulo Honório,
aos dezoito anos, tem a primeira experiência sexual, de que decorre a primeira violên
cia: esfaqueia João Fagundes, quando este se engraça com Germana, a cabritinha sara
rá que abrecou (possuiu).
Neste tempo, já pensava em ganhar dinheiro, sendo que trabalhou na enxada até
então, dentre outros lugares em São Bernardo, onde permanecera no eito e de que dese
java se tornar senhor.
Emprestando dinheiro a juros, negociando de arma engatilhada no sertão, passan
c
l raciliano Ramos, considerado o maior do fome e sede, Paulo Honório acumula algum capital e com ele volta à sua terra, muni
c G representante da geração neo-realista cípio de Viçosa, Alagoas. Aí ficava a fazenda São Bernardo, cujo novo dono, Luís
.. nordestina, nasceu em Ouebrângulo, Alagoas, Padilha - filho do falecido patrão de Paulo, Salustiano Padilha - é beberrão, mulhe
J em 1892. Autodidata em literatura, foi rengo e incompetente.
prefeito da cidade de Palmeira dos Índios Paulo Honório atribui aos estudos que Padilha fizera, sem concluí-los, na cidade, a
) ( 1928-1 930). cargo do qual renuncia.
) incompetência que demonstra.
Nomeado di retor da Instrução Pública em
� Alagoas, é demitido e preso, sob suspeita de Aproxima-se então de Padilha com o propósito calculado de tirar-lhe a proprieda
) ter participado da Aliança Nacional de. Consegue ter êxito fazendo-se seu amigo, emprestando-lhe dinheiro, dando-lhe
Libertadora. Da experiência da prisão, maus conselhos sobre o cultivo de São Bernardo. Subvenciona os investimentos que
� escreveu Mémorias do cárcere. este faz, e para os quais hipoteca a fazenda. Quando vence a última letra que Padilha
J Vidas secas e São Bernardo são as suas devia a Paulo Honório, dirige-se a São Bernardo e praticamente rouba a propriedade de
- obras principais. Em 1 945 aderiu ao Partido
J Padilha, que, arruinado, acaba por vendê-la a preço irrisório.
Comunista do Brasil. Faleceu em 1 953,
... Com violência e determinação, Paulo Honório começa a reconstruir a fazenda.
no Rio de Janeiro. o
132 Através do capanga Casemiro Lopes, assassina o velho Mendonça, da propriedade vizi-
nha. Invade os domínios vizinhos, compra máquinas, empresta dinheiro de bancos, comete gran
des e pequenas violências, ganha causas no fórum graças às trapaças de João Nogueira, o advoga
do que o protegia.
Além do capanga e do advogado, Paulo Honório contava com um jornalista, o Gondim, com
o Padre Silvestre e com os políticos da terra, que manejava de acordo com os seus interesses, a
fim de vencer. Reconstruída a casa, iniciada a pomicultura, a avicultura, a plantação de algodão,
construída a estrada de rodagem para vender a produção, Paulo Honório resolve casar-se, menos
por solidão que pela necessidade de um herdeiro.
Conhece, então, Madalena, a professora da vila, e simpatiza com ela. Na mesma determina
ção, no mesmo pragmatismo com que conseguiu a posse e o progresso de São Bernardo, conse
gue desposá-la, vencendo os argumentos de que não lhe tinha amor. Madalena muda-se para São
Bernardo, em companhia da tia Glória.
A vida de Paulo Honório modifica-se a partir daí num processo lento mas fatal de ruína:
Madalena, humanitária e "esclarecida", interfere em sua rotina de domínio e de exploração. Ajuda
os empregados e melhora a situação da escola que Paulo Honório construíra na fazenda apenas
para "agradar" o governador (e cujo professor era Luís Padilha, o antigo dono de São Bernardo).
Trabalha com o guarda-livros, o seu Ribeiro, mostrando uma conduta que Paulo Honório consi
derava inadequada às mulheres: comunista e intelectual.
As brigas iniciadas oito dias após o casamento se repetem e se intensificam, movidas pela in
compatibilidade entre a violência de Paulo Honório e a suavidade e a solidariedade de Madalena.
Não podendo possui-la como possuía todas as coisas e pessoas, Paulo Honório passa a duvi
dar de sua fidelidade, a ter um ciúme doentio que o faz desconfiar do Padilha, do João Nogueira,
do Gondim, de todos os homens - do Padre Silvestre ao seu Ribeiro - e finalmente dos empre
gados da fazenda. A violência chega então à brutalidade, que estende à D. Glória, e ao filho cho
rão e feio, abandonado pela mulher, cada vez mais triste e fraca.
Madalena não resiste aos maus tratos do marido, suicidando-se. Com a sua morte, Paulo
Honório vai perdendo as outras pessoas - D. Glória, seu Ribeiro, o Padilha - e também a von
tade obcecada de produzir.
A Revolução de 30 dificulta-lhe os negócios e ele não reage. São Bernardo fenece sob os
olhos indeferentes do proprietário, que começa então a sentir a derrota de sua antiga imponência:
a presença de Madalena perseguindo-o, denunciando a coisificação estúpida que imprimiu em
tudo de que se aproximou.
Através dela, a quem amava sem conhecer este sentimento e que só depois de morta passa
a ter vida em sua subjetividade, Paulo Honório compreende o "aleijão" que se tomara.
Deformado pela "profissão" que o afastou das pessoas e das relações humanas, substituindo-as
por relações de posse, de domínio, de poder bruto e animalesco, Paulo Honório reconhece a pró
pria monstruosidade.
Impotente para se transformar, sem ter simpatia pelos infelizes que o rodeiam, inclusive pelo
filho de três anos, desconfiado de tudo e de todos, Paulo Honório amarga a solidão e o isolamen
to escrevendo um romance e buscando, assim, o sentido de sua vida.
Composto por trinta e seis capítulos, este romance combina a objetividade e a concisão do
enredo com a subjetividade e a emoção revelada nos monólogos interiores do narrador. Eles inten
sificam a densidade dramática da narração, interrompendo-a, inclusive, no capítulo dezenove,
onde passado e presente, objetividade e subjetividade se confundem, anunciando a decadência do
proprietário e o surgimento do homem em seu lugar.
Personagens (/)
o
Principais �
<(
Paulo Honório e Madalena podem ser considerados os protagonistas desta obra. Paulo a:
Honório, como já pudemos perceber pela trajetória de sua vida, é o capitalista tacanho, o self o
made man (homem que se faz por si mesmo), que se tomou superior à sua classe, passando de tra z
<(
palhador braçal a proprietário. Para realizar esta travessia, foi necessária a sua desumanização, a ::i
coisificação de sua humanidade através da qual pôde exercer o domínio sobre os outros, matan u
do, roubando, mentindo, trapaceando. <(
a:
Assim, a violência da tradicional dominação patriarcal, que não condiz com a modernidade C.!)
do modelo produtivo que imprime em São Bernardo, também não condiz com a relação afetiva, -
especialmente em se tratando de uma pessoa delicada e instruída como Madelena. 133
O casamento, que deveria consolidar a vitória do proprietário, dando-lhe um des
cendente, transforma-a em derrota, uma vez que aos olhos de Madalena o seu sucesso
é mesquinho, prepotente, destituído de qualquer positividade.
Quando perde a esposa, Paulo Honório, que até então não a compreendia, como não
compreendia nada que fosse alheio ao seu mundo, começa a adquirir consciência da
bondade, da intensidade humana de Madalena, e conseqüentemente de seu embruteci
mento. Esta consciência, embora não lhe mude os modos por demais enraizados, é
transformadora: de proprietário se converte em homem, abandonando a vertigem da
posse e substituindo-a pela procura de si mesmo.
Madalena, a professora loura de olhos azuis, de quase trinta anos, que se recusa a
ser objeto de posse de Paulo Honório, é o avesso dele: de grande sensibilidade, preocu
pada com as condições de vida dos trabalhadores, incapaz de assumir a passividade da
condição de esposa, sente necessidade de trabalhar e de andar pela fazenda, o que a leva
a rejeitar o mundo de Paulo Honório.
A dimensão humana desta personagem, a sua solidariedade e o seu inconformismo
diante do sofrimento das pessoas, especialmente os de condição social inferior, assim
como a sua formação de "escola normal", precária mas claramente incompatível com a
brutalidade do sistema patriarcal, não conseguem impedi-la de se destruir.
Ao mesmo tempo em que revela a fragilidade e a impotência da condição femini
na diante de um mundo que restringe radicalmente o seu espaço de ação, este passo pos
sui uma função precisa no romance: através dele, a fragilidade, a fraqueza, transfor
mam-se em força, em móvel de uma revolução interna, a recuperação da humanidade
de Paulo Honório, pelo afeto que dedicava a Madalena, pela lembrança de sua presen
ça. Neste sentido, é magistral a revelação da suavidade de Madalena, da forma íntegra
como se conduz moral e existencialmente, através da incompreensão, da dúvida, da
maledicência atormentada e algumas vezes reconhecida de Paulo Honório. Procurando
destruí-la, e ao mesmo tempo mostrando este fato ao leitor, ele na verdade a agiganta
aos nossos olhos.
Secundários
Luís Padilha, o antigo dono de São Bernardo, é um personagem profundamente
antipatizado pelo narrador. Fraco, submisso, covarde, ele ensina "comunismo" aos tra
balhadores como Marciano (velho e doente, marido de Rosa, a mulher com quem
Paulo Honório tinha encontros sexuais clandestinos) e acaba levando alguns deles para
a Revolução. Nela também se envolve o Padre Silvestre, descrito como uma persona
lidade estreita, que, impossibilitado de admitir coisas contraditórias, lê apenas as fo
lhas da oposição. Danadamente liberal, anda no mundo da lua, no dizer de Paulo
Honório.
João Nogueira, o advogado que o auxiliou nas falcatruas, e Azevedo Gondim, o jor
nalista, o primeiro mais moderado e o segundo mais radical, são exemplos do pensamen
to conservador da oligarquia, ardente e confusamente defendida por João Nogueira no
romance. A imprensa, representada por Gondim e também pelo Brito, o jornalista surra
do por Paulo Honório por difamá-lo, aparece em sua corrupção e venalidade, e também
em sua linguagem retorcida, criticadas e ironizadas pelo narrador.
Além da ironia com que se refere a episódios e personagens ligados à política, que
despreza, Paulo Honório demonstra claramente em sua narração que se relaciona de
<3::
o forma utilitária, isto é, de acordo com os interesses do momento, com os personagens
�z mencionados. Assim, afirma não saber quanto o Padilha vale, embora o contrate por
um preço baixo para trabalhar na escola de São Bernardo, protege o Pereira, agiota e
w chefe político, até que este caia do poder, julga-se superior ao João Nogueira, apesar
:E de ter menos ciência e menos manha que ele, desprezando mas achando úteis suas
o
u habilidades.
<3:: Aliás, as habilidades intelectuais em geral merecem duras críticas do narrador, não
a: só por considerá-las inoperantes, inócuas, mas porque este é um dos eixos de sua infe
::J
�
a:
rioridade em relação a Madalena, que conversava longamente com todas as pessoas,
menos com ele, durante as crises entre os dois.
w O seu Ribeiro, o guarda-livros a cuja história de vida Paulo Honório dedica um
1-
:J capítulo, de Major no lugarejo em que morava, fazendo as vezes de justiceiro e de
- homem sábio em várias funções, passou a indigente solitário, devido à vinda do pro
134 gresso. Paulo Honório demonstra simpatia por ele, uma vaga solidariedade que destoa
de seu habitual desrespeito pelas pessoas e que se acentua em outros personagens. Casimiro
Lopes, o capanga que tem faro de cão e fidelidade de cão, crédulo como um selvagem, o único a
se interessar pelo filho abandonado por todos, cantando para o embalar as cantigas do sertão,
possui a estima de Paulo Honório. Ele inclusive se identifica com o capanga, nos momentos de
grande solidão. Margarida, a preta velha que o criou, é outro referencial afetivo do narrador: ele
a redescobre, manda buscá-la e a alimenta em São Bernardo, o mesmo amparo financeiro ofere
cendo a D. Glória - tia de Madalena avessa ao campo e cuja urbanidade o irritava - quando esta
se vai, após a morte de Madalena.
Em conclusão, Paulo Honório tem a sua brutalidade relativizada por estes personagens e tam
bém pelas referências tímidas que faz à necessidade de auxiliar as filhas do velho Mendonça, o
vizinho que mandou matar. A referência aos raros momentos de união e de harmonia que vivia
com Madalena, quando não precisavam brigar e conversavam longamente durante os serões, faz
parte deste lado humano do personagem.
Linguagem
Vamos ler a análise de Antônio Cândido sobre a linguagem em São Bernardo, que parte do
momento em que Paulo Honório resolve escrever um romance:
Interoém então o elemento inesperado: Paulo Honório sente uma necessidade nova -
escrever - e dela surge uma construção nova: o livro em que conta a sua derrota. Por ele,
obtém uma visão ordenada das coisas e de si; no momento em que se conhece pela narrativa,
destrói-se enquanto homem depropriedade, mas constrói com o testemunho da sua dor a obra
que o redime. E a inteligência se elabora nos destroços da vontade.
O próprio estilo, graças à secura e violência dos períodos curtos, em que a expressão densa
e cortante é penosamente obtida, parece indicar essapassagem da vontade de construir à von
tade de análise, resultando um livro direto e sem subterfúgio, honesto ao modo de um cader
no de notas.
(. . .) Caso elucidativo é o da paisagem. Não há em São Bernardo uma única descrição, no
sentido romântico e naturalista, em que o escritor procura jazer efeito, encaixando no texto,
periodicamente, visões ou arrolamentos da natureza e das coisas. No entanto, surgem, a ·cada
passo, a terra vermelha, em lama ou poeira; o verde dasplantas; o relevo; as estações; as obras
do trabalho humano; e tudo forma enquadramento constante, discretamente referido, com
um senso de oportunidade que, tirando-lhe o caráter de tema, lhe dá necessidade, incopo
rando-o ao ritmo psicológico da narrativa. Desse livro breve e severo, ficam no leitor impres
sões admiráveis do mundo exterior (. . .) .
Se a percepção literária do mundo sensível aparece aqui refinada, é igualmente notável
o progresso verificado nos mecanismos do monólogo interior, gênese dos sentimentos e evoca
ção da experiência vivida.
Vamos, agora, ler um dos mais belos monólogos interiores do livro, observando a precisão e
densidade de sua linguagem.
A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que
mande algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das ou
tras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao
mesmo tempo zangada e tranqüila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra mestre
Caetano. No obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião!
A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a
que estava aqui há cinco anos.
Rumor do vento, dos sapos, dos grilos. A porta do escritório abre-se de manso, os passos de cn
o
seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na torre da Igreja. Terá realmente piado a coruja? Será
�
a mesma que piava há dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo. <(
Agora seu Ribeiro está conversando com D. Glória no salão. Esqueço que eles me deixa a:
ram e que esta casa está quase deserta. o
- Casimira! z
Penso que chamei Casimira Lopes. A cabeça dele, com o chapéu de couro de sertanejo, <(
::i
assoma de quando em quando à janela, mas ignoro se a visão que me dá é atual ou remota.
u
(cap. XIX) <(
a:
(.9
-
135
\] OUftêBS.
11 ( U N ICAMP) A trajetória da personagem Paulo Honório em
São Bernardo pode ser dividida em dois grandes segmentos.
No primeiro, todas as suas ações estão voltadas para a con
!!11
liiiil
( U N I CAMP) " B ichos. As criaturas que me serviram durante
anos eram bichos. "
11 1. Com o suicídio de Madalena. Paulo Honório se vê diante b) Os Sertões aparece como primeira obra a tratar de modo
de alguém que se recusou à sua dominação, ao seu mando crítico a contradição entre os "dois brasis" : de um lado a
nismo. Assim, com Madalena morta, ele se vê diante de sua civilização, a modernização. e de outro a opressão sofrida
própria brutalidade, de sua permanente violência contra os pelos sertanejos em face das secas, do latifúndio e do des
outros. Paulo Honório vai fazendo o relato de sua vida, con caso oficial. O livro de Euclides da Cunha fornece diretrizes
<( fundido entre o presente e o passado, entre o aqui-agora e a críticas para as gerações modernistas, através de sua aná
Q
�
memória, contando a sua história para tentar entender a si lise minuciosa do contexto histórico e social do nordeste.
mesmo, oscilando entre o remorso não assumido e a reafir
z mação de seu extremo autoritarismo. !!li a) O narrador-personagem Paulo Honório fala como prop rietá
w Além disso. percebemos um início de compreensão de liill rio da fazenda São Bernardo, fala como patrão autoritário:
.� que sua brutalidade vem das relações que vive, vem do sua visão é a do mando, a do poder truculento, a visão de
o social. assim como percebemos que ele se move em direção quem se considera dono das pessoas.
u
à sua decadência, enquanto latifundiário. E à sua humaniza b) As pessoas podem ser vistas como bichos porque Paulo
<(
a: ção, enquanto pessoa. Honório coisifica-as, apropria-se de seus trabalhos e de
::> suas vidas, usa-as como instrumento.
ft
�
a: '111
a) São Bernardo, de G raciliano Ramos, entre outros, é um
bom exemplo. Este romance, ao acompanhar a trajetória
c) Dois exemplos que ilustram essa forma de tratamento
podem ser o episódio em que Paulo Honório manda o
w do autoritário e intratável Paulo Honório, trata da acumula empregado mestre Caetano, já morto, ir trabalhar, xingan
1- ção de riquezas, através de métodos violentos. A miséria do-o de mandrião, e o episódio em que Paulo Honório
:::J social do latifúndio e daqueles que gravitam em torno do espanca o empregado Marciano. por este ter falado de
-
proprietário e à sombra de sua autoridade inabalável apare uma forma considerada desrespeitosa.
136 ce de maneira gritante e central neste romance.
VIDAS SECAS
Vidas secas utiliza-se de um tema local - a seca do Nordeste e a vida
martirizada dos retirantes - para atingir um universalismo proveniente
da riqueza humana de seus personagens, cuja inferioridade é esculpida
com raro brilho e concisão.
Será um romance? É antes uma série de quadros, de gravuras em madeira, talhadas com pre
cisão e firmeza.
Lúcia Miguel Pereira, citada por
Antônio Cândido, em Ficção e confissão
Narrador
Publicado em 1 938, Vidas secas é o último romance escrito por Graciliano Ramos e, de acor
do com críticos como Lúcia Miguel Pereira e Antônio Cândido, o mais diferente - o único reali
zado em terceira pessoa e o único em que os capítulos parecem "peças autônomas", encaixando
se de forma descontínua e com raro talento artístico.
Na primeira parte de nosso trabalho, vamos estudar como o narrador, sem se confundir com
os personagens, institui, cria, sugere a humanidade deles, transformando em linguagem "precisa e
firme" o silêncio que os caracteriza.
Fabiano, sinhá Vitória, os filhos e Baleia - a cachorrinha que age, pensa e sente como gente
- são os membros de uma família desumanizada, reduzida à condição animalesca - no sentido
mais brutal da palavra - pela precariedade de uma existência cotidianamente aviltada por situ
ações-limite. Não ter como sobreviver, na fuga periódica da seca e assim tomar-se nômade, sem
teto que não seja transitório, sem perspectiva de trabalho que não seja ocasional - uma época efê
mera de condições climáticas favoráveis - constituem os fatores de rebaixamento fisico, social,
moral e humano dos personagens.
Embora esse rebaixamento, também motivado pela opressão social, se expresse na forma
silenciosa e hostil como se comportam, na incomunicabilidade que os separa tanto das pessoas da
cidade quando deles mesmos, o narrador, nas mesmas passagens em que aparecem como bichos,
como brutos, desvenda-lhes a humanidade submersa, aderindo ao mundo interior de cada um
deles, que reinventa. O melhor exemplo de tal procedimento é Baleia, um parâmetro de humani
dade que ora se contrapõe à desumanidade dos seres humanos, ora parece representar um veículo
de sua humanização. Pois enquanto as pessoas viram bichos, o bicho, convertendo-se em pessoa,
toma-se uma alegoria, um símbolo da temática central do romance.
Essa temática não se reduz às conseqüências da seca e da opressão, mas, através de ambas,
concentra-se na oscilação entre sujeito e objeto, homem e bicho, revolta e conformismo, esperança
e passividade que universaliza as criaturas de Vidas secas de modo que na obra palpite a vida - "A
vida que é a mesma em todas as classes e em todos os climas" (Antônio Cândido - Obra citada).
Vamos exemplificar o foco narrativo de Vidas secas, atentando para o fato de que não se trata
de um narrador onisciente. Trata-se, · conforme comentamos, de um narrador que por um
lado relata com objetividade e precisão, e por outro adere tão profundamente aos persona
gens que lhes institui a humanidade dilacerada. O uso do discurso indireto livre e os monó
logos interiores, os fluxos de consciência dos personagens, cujo silêncio é convertido em pala
vras que eles não sabem dizer, constituem, como veremos,
recursos importantes deste foco narrativo sofisticado e de O narrador não quer identificar-se com o perso (/)
grande qualidade artística. nagem, e por isso há na sua voz uma certa obje o
tividade de relatar. Mas quer fazer as vezes do per �
sonagem, de modo que, sem perder a própria iden <{
Exemplo 1 a:
tidade, sugere a dele. É como se o narrador tosse,
o
A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso não um intérprete mimético, mas alguém que insti z
salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O tui a humanidade de seres que a sociedade põe à <{
vôo negro dos urubusfazia círculos altos em redor dos margem, empurrando-os para a fronteira da ani ::J
bichos moribundos. malidade. Aqui, a animalidade reage e penetra u
- Anda, excomungado. <{
pelo universo reservado, em geral, ao adulto civi a:
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou lizado. C)
matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabili -
Antônio Cândido, obra citada
131
zar alguém pela sua desgraça.
A seca aparecia-lhe como um fato necessário - e a obstinação da criança irritava-o.
Certamente esse obstáculo miúdo não era o culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro
precisava chegar, não sabia onde.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de a bandona r ofilho naquele descam
pado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os
arredores. Sinbá Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com
alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cin
turão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, osjoi!lbos encostados no estô
mago magro, frio como um defunto. A í a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível
abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a sinhá Vitória, pôs o filho
no cangote, levantou-se, agarrou os bracínhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como
cambitos. Sinhá Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a expressão gutural, designou
os juazeiros invisíveis.
E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande.
(cap. 1 - Mudança)
Exemplo 2
Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber. Tinha? Não tinha.
- Está aí.
Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria satisfeito.
Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado era seu
Tomás da bolandeira. Por quê? Só era porque lia demais (. . .).
Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros, mas
não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem remediado se-r cortês. Até o povo censurava
aquelas maneiras. Mas todos obedeciam ele. Ah! Quem disse que não obedeciam?"
(cap. 2 - Fabiano)
Exemplo 3
Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se pruden
temente, receosa de sapecar o pêlo, eficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que
se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenômeno e
desejou expressar sua admiração à dona. Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se
nas pernas traseiras, imitando gente. Mas sinhá Vitória n,ão gueria saber de elogios.
- Arreda!
Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada .e com sentimentos revolucionários ".
(cap. 4 - Sinhá Vitória)
· ·
Comentários
No exemplo 1 , a descrição animizada da natureza crestada pela seca - A caatinga estendia
se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas -; o tratamento
brutal de Fabiano ao filho, o desejo de matá-lo , abandoná-lo no desamparo, são justificados pelo
narrador: tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça, a seca apare
cia-lhe como um fato necessário, precisava chegar,. não sabia onde...
Tal aspecto de análise psicológica coloca o .narrador como sabedor, como decifrador do com
portamento animalesco do personagem.
<(
o Entretanto, os momentos de análise psicológica são relativizados pelo relato dos fatos, na
�
z
forma e no significado que adquirem, contextual�ando uma situação-limite: Sinhá Vitória estirou
o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto.
w Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do meni
� no, que se encolhia, os joelhos encostados no estômago magro, frio como um defunto.
o
u Na medida em que entendemos o desespero de Fabiano, e conseguimos associá-lo à de
<( sumanidade que comete, o narrador pode, de forma verossímil, voltar a interpretá-lo, agora no
a: Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Além
movimento de recobrar-lhe a humanidade:
::>
�a: disso, o narrador aproxima-se mais do personagem quando se funde com sua interioridade,
quando transforma-a em linguagem através do discurso indireto livre: Impossível abandonar
w o anjinho aos bichos do mato.
1-
::::; Agora você pode distinguir os três procedimentos que caracterizam o narrador perante a his
....... a narração dos fatos, a análise psicológica dos personagens, a exposição de
tória que conta:
Enredo
A "série de quadros, de gravuras em madeira, talhadas com precisão e firmeza" de que fala
Lúcia Miguel Pereira, alude ao caráter autônomo e completo dos capítulos do livro. Et:nbora real
mente possam ser lidos como peças independentes, e assim tenham sido publicados em jornais, os
"segmentos" de Vidas secas reúnem-se com uma organicidade exemplar.
Isto porque mantêm uma estrutura descontínua, não linear, como que reafirmando o iso
lamento dos personagens, a instabilidade de sua existência de retirantes. Além disso, um capí
tulo é evocado em outro através do processo associativo que caracteriza os pensamentos confu
sos, o universo mental no qual o passado se confunde com o presente e com o futuro - espécie
de sombra que atemoriza Fabiano e sua família.
Fabiano
Iniciemos a nossa análise de Fabiano, enfocando o cap. 2, que tem por título o seu nome.
Neste capítulo, enquanto o vaqueiro procura a novilha, por um lado sente-se satisfeito com o
fato de ter-se arrumado, ter arranjado emprego na fazenda, o que o faz exclamar que é um homem.
Por outro lado, entretanto, ao lembrar-se de que vive em terra alheia, cuida de animais alheios,
descobria-se, encolhia-se na presença de brancos, corrige a exclamação dizendo-se um bicho, um
cabra, um macaco.
Aqui, aparece um referencial forte de Fabiano, uma espécie de paradigma que o oprime mas
o fascina: seu Tomás da bolandeira, o velho bom e lido: Em horas de maluqueira, Fabiano dese
<( java imitá-lo: dizia palavras dificeis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava, Tolice.
o Via-se peifeitamente bem que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo.
�
z
Na verdade, a opressão representada por seu Tomás da bolandeira inferioriza Fabiano na
medida em que significa o poder e o respeito adquiridos pela bondade e pela cultura, em oposição
w
� ao poder autoritário dos "outros brancos", que vê como inimigos. No episódio do cap. 3, Cadeia,
o quando o soldado amarelo (adjetivo referente à farda que é signo de autoridade e que portanto inti
u mida o vaqueiro) convida-o para o jogo, ele tenta imitar seu Tomás da bolandeira e o resultado é
<( uma profusão de palavras desconexas: - Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contan
a:
::> to, etc. É conforme.
�
a:
Depois de pronunciá-las, segue o soldado que era autoridade e mandava. Fabiano sempre
havia obedecido. Tinha muque e sustância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia. O
w mesmo ocorre no cap. 1 O, Contas, quando ele se sabe roubado e culpa as contas "erradas" da mu
l
-I lher para desculpar-se perante o patrão, que ameaça despedi-lo.
--. Estes exemplos de passividade culminam no cap. 1 1 , referente ao reencontro entre Fabiano e
140 o soldado amarelo - o segundo acovardado perante o primeiro - o qual se fere de vez em seu
orgulho, em sua dignidade, atribuindo à velhice a inação, agora diante de alguém que ftaqueja e
recua em vez de enfrentá-lo.
Aos exemplos colocados, contrapõem-se momentos de revolta vividos por Fabiano. Embora
na cadeia tente culpar a família, a responsabilidade que o prende a sinhá Vitória e aos filhos, den
tre outros motivos confusos e inúteis de que se utiliza para justificar a submissão, Fabiano intima
mente sente-se um traste, uma coisa, a bolandeira de Seu Tomás.
Por isso, por duvidar da condição humana de que faz parte, na medida em que nada tem, e que
associa humanidade a propriedade, o vaqueiro por um lado resigna-se, aceita-se como inferior,
estende aos filhos a "sina" que recebeu do pai, o qual a herdou do avô. Por outro lado, entretanto,
em capítulos como Inverno (cap. 7) e Festa (cap. 8), sucessivamento dá vazão à individualidade
esmagada através de histórias nas quais vence as brigas, inventa um heroísmo em que acredita, e
através de insultos que profere, embriagado e sem possibilidade de ser ouvido, não às autoridades,
mas aos matutos como ele, que se divertem na festa de Natal. ..
Em conclusão, Fabiano, de olhos azuis, barba e cabelos ruivos, Vivia longe dos homens, só se
dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra.
Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. Efalava uma linguagem cantada, monos
silábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para um
lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a
mesma língua com que se dirigia aos brutos - exclamações, onomatopéias. Na yerdade falava
pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algu
mas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.
Com essa belíssima síntese, conseguimos conciliar a imagem animalizada de Fabiano com as
manifestações - não pelas palavras, que teme e admira, nem pelo convívio humano, de que se
afasta - de sua humanidade por ele mesmo negada. As manifestações que configuram a dimen
são humana deste vaqueiro marginalizado e oprimido pela natureza e pela sociedade aparecem
quando o narrador o soletra humanamente, perguntando-se se é homem, se é bicho, se precisa mor
rer, enquanto o seu desejo maior e mais poderoso é o de vida.
Sinhá Vitória
No cap. 4, denominado sinhá Vitória, ela cozinha e, como o marido, perde-se em pensamen
tos confusos. A briga que tiveram por ele se recusar a realizar-lhe o sonho de ter uma cama de las
tro de couro, como a de seu Tomás da bolandeira e as de outras pessoas, magoà sinhá Vitória.
Esta mágoa, de que se vinga maltratando Baleia e os filhos, desencadeia a lembrança da vida
antiga, de que havia se esquecido. Com a comparação de Fabiano entre ela vestida de sapato de
verniz e um papagaio, vem-lhe à mente o papagaio que, por sugestão dela, fora sacrificado para
alimentá-los durante a seca. Recordação de que foge, pensando em Deus.
No final do capítulo, uma conclusão de sinhá Vitória é significativa para a compreensão da
personagem: Inútil consultar Fabiano, que sempre se entusiasmava, arrumava projetos. Esfriava
logo - e ela franzia a testa, espantada, certa de que o marido se satisfazia com a idéia de pos
suir uma cama. Sinhá Vitória desejava uma cama real, igual à de seu Tomás da bolandeira.
Enquanto Fabiano oscila entre a condição de homem e a condição de bicho, a revolta e a sub
missão, a esperança imprecisa e o determinismo teimoso, enquanto o medo de reagir faz com que
não haja, sinhá Vitória encama a praticidade, o espírito de iniciativa, a fé em Deus e num destino
melhor para a família.
Por desejar uma cama real e não se conformar com a idéia de cama que satisfaz Fabiano
metáforas do comportamento de ambos - é ela quem aponta a direção concreta a ser seguida por
todos, do começo ao final do'romance.
Com a mesma precisão, decide pela morte do papagaio e faz as contas certas dos negócios de
Fabiano, embora inutilmente. Na festa de Natal na cidade - o marido roncando e sonhando com cn
muitos soldados amarelos, ameaçadores - sinhá Vitória alivia a vontade de urinar, molha os pés o
�
das outras matutas, pensa que a vida não é má e, apesar do medo da seca, fica alí de cócoras, <
cachimbando, os olhos e os ouvidos muito abertos para não perder a festa. a:
Considerada por Fabiano "o único vivente que o compreendia", encanta-o com o raciocínio o
rápido que associa o aparecimento das aves de arribação com a morte do gado. (As arribações z
<
bebiam a água. Bem. O gado curtia sede e morria. Muito bem. As arribações matavam o gado. ::i
cap. 1 1 - O mundo coberto de penas).
Quando, no último capítulo, a família foge da seca, Fabiano procura adiar a viagem, pois teme �
a:
afastar-se da fazenda, teme convencer-se da realidade. C)
Sínhá Vitória reza e ftaqueja, uma ternura imensa enche-lhe o coração, sente necessidade de -
falar (se ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo).
141
Chega-se então a Fabiano, e puxa com ele uma conversa de esperança que aos poucos o vai
animando. Ele elogia-lhe as pernas grossas, as nádegas volumosas, os peitos cheios. Ela baixa os
olhos, envaidecida, e reconhece que logo estaria magra, de seios bambos. Mas recuperaria car
nes. Insiste com o marido até dominá-lo: Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo
no mato como bichos?
Entre o zumbido de um e o rosnado de outro, pensam nos filhos: seriam vaqueiros, na opinião
do pai; adotariam costumes diferentes, estudariam, na opinião da mãe.
Fabiano divide-se, ao mesmo tempo deslumbrado com os sonhos da mulher e, ao sentir-se
fraco, tendo pena dela. Após descansarem, ele indica um bebedouro à frente e, diante da dúvida
de sinhá Vitória, exalta-se, procura incutir-lhe coragem, mente sem saber que está mentindo para
excitá-la, enquanto ela lhe transmite esperança.
�c: periquitos, entender o sentido de uma palavra, fazer de conta que não houve o castigo injusto para
não sofrer - encontram eco na delicadeza de sentimentos de Baleia.
w Embora também tenha o seu sonho t< os seus gostos, que às vezes não coincidem com as neces
1-
:J sidades das crianças, Baleia parece juntar-se a elas, que por sua vez se unem à natureza, servindo
--. como uma espécie de elo de ligação entre a sensibilidade ingênua e primitiva e a insensibilida
142 de, talvez a inconsciência, também ingênua e primitiva, dos adultos em relação a elas.
Nesse sentido, a cachorrinha e os meninos se contrapõem a sinhá Vitória e Fabiano.
Entretanto, tal contraposição se relativiza se pensarmos na condição de opressão que todos sofrem;
os adultos reagindo através da reprodução do que sentem, e assim oprimindo e marginalizando; as
crianças e Baleia reagindo 1través da fantasia, do sonho, da comunhão com a natureza da qual
decorre a leveza poética, o encantamento mágico que exemplificamos. Mas o sonho ocupa igual
mente o imaginário de sinhá Vitória e de Fabiano, como podemos verificar comentando o capítu
lo 7, Inverno.
Nele, prevalece o sonho de Fabiano, que, otimista com a chuva, tenta relatar histórias incom
preensíveis, exercendo em todas elas o desejado papel de herói. Sinhá Vitória, que dorme -numa
cama de varas, com um pau no meio e cheia de pulgas, j á tem o seu sonho conhecido pelo leitor:
uma cama de couro, uma cama de gente. Em vez de alimentá-lo, preocupa-se com a possibilidade
de enchente, :.t qual faria a família dormir nas árvores, como os preás.
O espírito prático que lhe traz essa preocupação é compensado pelo otimismo com que confia
a Deus a proteção da família e imagina que a casa é forte, que, se não resistisse, voltariam quan
do as águas baixassem.
Os meninos, sentindo frio numa banda e calor na outra, não podiam dormir com as lorotas
do pai. Enquanto o mais novo extasia-se em cada luta que Fabiano vence, bate palmas para cada
façanha de que o pai acredita-se capaz, e assim alimenta o próprio sonho, o menino mais velho
percebe que Fabiano modificava a história - e isto reduzia-lhe a verossimilhança, o que o desi
lude perante um herói humano e contraditório.
Quanto a Baleia, enjoada com o barulho, permanece paciente, à espera de que a deixem em
paz, sonhando: Varrido o chão com a vassorinha, escorregaria entre as pedras, enroscar-se-ia,
adormecida no calor, sentido o cheiro das cabras molhadas e ouvindo rumores desconhecidos, o
tique-taque das pingueiras, a cantiga dos sapos, o sopro do rio cheio. Bichos miúdos e sem dono
iriam visitá-la.
Em síntese, o capítulo se constitui de um conjunto de monólogos interiores através dos quais
observamos cada personagem entregue ao próprio devaneio, ao longo de uma "reunião" em que o
misto de calor e frio, de luz e sombra - ambos provocados pela fogueira que se mantém acesa,
mas não aquece nem ilumina o suficiente - dá a impressão visual e tátil do gigantesco silêncio
que isola os personagens. Além do contexto comum, aproxima-os mais os sonhos e os outros sen
tidos que a linguagem verbal, substituída por rugidos, gesticulações, inteljeições e uma fala dura
e rouca, entrecortada de silêncios.
Concluindo o nosso estudo dos personagens de Vidas secas, em sua instauração através de ele
mentos do enredo, vamos comentar um dos mais belos capítulos do livro, o capítulo 9, que relata
a morte de Baleia.
Sinhá Vitória maltrata rudemente os filhos, para impedi-los de sofrer a perda da companhei
ra. Ao mesmo tempo, de coração pesado lamenta que o marido não espere mais um dia para ver
se a execução é indispensável.
Enquanto Fabiano procura realizar a tarefa com firmeza, Baleia - um bicho diferente dos ou
tros - oscila entre o desejo de mordê-lo e o reconhecimento de que j amais o faria: Tinha nasci
do perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão,
ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.
Assustada com a interrupção da rotina, a "criaturinha" não se lembra mais de Fabiano nem do
desastre que ocorrera. Com uma pata ferida por um tiro, encosta acabecinha fatigada na pedra,
querendo dormir. Acordaria feliz nummundo cheio depreás. E lamberia as mãos de Fabiano, um
Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num
chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.
Aqui novamente se roçam sonho e realidade, vida e morte, humanidade e desumanidade,
revolta e submissão, agora tematizados com a força e o lirismo desta "criaturinha única". Misto de
animal, de criança, de poeta, nela reconhecemos um ser delicado e frágil magicamente tecido de
cada um dos seres do romance, de cuja animalidade pudemos ver "a outra face", especialmente
através de Baleia . . .
Linguagem
Na opinião de Antônio Cândido, na obra citada, em todas as obras de Graciliano Ramos "estão
presentes a correção de escrita e a suprema expressividade da linguagem, assim como a secura da
visão de mundo e o acentuado pessimismo, tudo marcado pela ausência de qualquer chantagem
sentimental ou estilística. ( . . . ) E o medo de encher lingüiça é um dos motivos de sua eminência, de
143
escritor que só dizia o essencial e, quanto ao resto, preferia o silêncio. ( . . . ) Entre o nada primor
dial anterior ao texto, e o risco de acabar em nada devido a insatisfação posterior, se equilibra a
sua obra essencial, uma das poucas em nossa literatura que parece melhor com a passagem do
tempo, porque mais válida à medida que a lemos de novo".
As frases curtas, a pontuação precisa e cortante, o uso do futuro do pretérito nas passagens em
que o discurso indireto livre permite que sejam expressos os sonhos dos personagens, a inexistên
cia de diálogos, a abundância de interjeições, exclamações, sons onomatopaicos, substituindo a
fala dos personagens e mostrando-lhes a animalidade, constituem alguns dos elementos enrique
cedores de Vidas secas.
A eles acrescentamos a dimensão visual e sonora explorada na descrição da natureza, ora
inclemente em sua aridez, ora significando segurança, esperança, seja quando, animizada, une-se
aos sonhos dos personagens, seja através da imagem dos juazeiros, verdes e acolhedores, destoan
do do abandono e da secura que o livro expõe com a violência e a precisão do mestre Graciliano
Ramos.
Além da objetividade narrativa, conciliada com a instituição da humanidade dos seres que a
povoam, através de monólogos interiores nos quais o silêncio é convertido em linguagem - uma
linguagem que é espoliada dos personagens, como os outros fatores essenciais para a sobrevivên
cia - a riqueza de imagens a engrandece sem tomá-la kitsch, sem apelos emocionais e estilísti
cos, como bem lembrou Antônio Cândido.
V�
·
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.
El
va. (FUVEST} E pensando bem, ele não era homem: era apenas
Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho,
tinha nascido para falar certo. queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos:
Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios,
cima de jornais e livros, mas não sabia mandar: pedia. descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava
Esquisitice um homem remediado ser cortês. se cabra.
A té o povo censurava aquelas maneiras. Este é o retrato de Fabiano, do livro Vidas secas, de
Mas todos obedeciam a ele. Ah! quem disse que não obede Graciliano Ramos.
ciam? a) Por que o autor enumera os caracteres físicos de Fabiano?
b) Que sentido tem a palavra cabra no texto?
!:11
11
a) Um episódio do capítulo " Cadeia " deixa evidente a dificul a) O autor enumera os caracteres físicos de Fabiano - os
dade de Fabiano de expressar-se na presença de pessoas (i1l olhos azuis, a barba e o cabelo ruívos, a cor vermelha, quei
<( que julga superiores. Trata-se do momento em que é pra mado de Sol - para mostrar que ele é um homem, embo
o ticamente coagido pelo soldado amarelo a jogar cartas ra se j ulgue apenas um "cabra " , por viver em terra alheia
�
z
com ele, e responde ao " convite" gaguejando, procurando
as palavras " culta s " de seu Tomás da bolandeira. O esfor
e ocupar-se em guardar coisas dos outros, isto é, pela con
dição de inferioridade social e de subalterno em que vive.
w ço de Fabiano leva-o a aceitar o convite, ou melhor, a "obe b) A palavra cabra no texto tem o sentido de oprimido, de
·� decer" o desejo do soldado, expressando-se de maneira subalterno, de inferior socialmente. Em relação aos " bran
o confusa, criando uma frase ininteligível: - Isto é. Vamos e cos" , os homens da cidade, os proprietários, Fabiano se
(.J não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme. sente um " cabra " , quer dizer, menos que um homem, um
<( b) O episódi,p escolhido exemplifica a relação entre um uso bicho.
a: mais "difícil" da linguagem e o poder que as pessoas "da
:::>
�
cidade" exercem sobre Fabiano, em especial aquelas " de
farda " , como o soldado amarelo, na medida em que o pro
a: tagonista de Vidas secas, percebendo-se interiorizado pela
w
1- linguagem daquele que o oprime, tenta responder com a
:J " mesma moeda " , isto é, com palavras emprestadas de seu
- Tomás da Balandeira, o homem cuja " cultura" admirava.
144
LITERATURA COMENTADA
Emília Amaral, Mário Francisco Spanghero, Severino Antônio
DRUMMOND DE ANDRADE
o antilírico da secura, do beijo tácito, da sede infinita
Eu pego num livro velho com reverência; o desejo de alongar asfronteiras da existência,
sinto nele a substância inerente pela reflexão ou pelo sonho acordado. . .
a toda criação do espírito:
ANTOLOGIA COMENTADA
Explicação
Poema de setefaces
(Alguma poesia)
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.
As sete faces correspondem a sete estrofes, como se fosse um retrato em sete partes. Poema
tipicamente modernista, de ruptura com as convenções. Descontínuo, inesperado, coloquial.
Escrito com versos livres e com estrofes heterogêneas. Irônico: neste poema de descoberta do eu
e do mundo Drummond se coloca como gauche - um desaj eitado - mas cuj o coração transbor
da, mais vasto que o mundo, com humor desencantado, sarcástico. Com uma secura que represa a
emoção. Anti-lírica. Observe o tom de confidência da última estrofe, onde o poeta assume a emo
ção, embora a atribua ao conhaque e à lua . . .
Cidadezinha qualquer
(Alguma poesia)
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar. . . as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
Estes dois poemas são referências para toda a obra de Drummond. O primeiro, um autoretra
to, e o segundo, um flash de uma cidadezinha qualquer, ambas constituem reelaborações poéticas
de sua cidade natal, Itabira. Enquanto em Confidência do itabirano há expressivas antíteses, de
ironia amarga e sutil (por exemplo, hábito de sofrer I que tanto me diverte I doce herança itabira
na) , em Cidadezinha qualquer os verbos no infinitivo, as repetições e uma prosopopéia
(Devagar... as janelas olham) expressam o tédio, a monotonia da vida no interior, que no entanto
deixa tanta saudade, como mostram os versos finais, antológicos, de Confidência do itabirano.
Escrito para a morte de Mário de Andrade, este fragmento já revela a tensão do teto, a inten
sidade emocional do poema. Tendo como tema o desconcerto diante da morte (observe as imagens
da natureza caótica, a repetição no chão, no chão que dá maior ênfase ao desatino, ao desespero),
Drummond anuncia um poema futuro no entanto realizado no aqui/agora da perplexidade, da
comoção.
Amar-Amaro
Mãos dadas
(Sentimento do mundo)
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Este é um dos mais fundamentais poemas políticos de todo o Modernismo. Texto engajado,
comprometido, participante, e, ao mesmo tempo, de grande força poética. Ritmo intenso, ima
gens intensas. Observe o tom da fala, de oralidade, a linguagem coloquial muito expressiva, acen
tuada pela pulsação livre dos versos. Na construção do poema, observe a enumeração de negações
- que recusam as variadas formas de escapismos românticos, de fuga da realidade. A repetição
de palavras, em especial a palavra presente, carrega ainda mais o texto de alta tensão poética.
Canção amiga
(Novos poemas)
Quadrilha
(Alguma poesia)
<(
o João amava Teresa que amava Raimundo
�z que amava Maria que amava Joaquim que amava Li/i
w que não amava ninguém.
� João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
o Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
u
<( Joaquim suicidou-se e Li/i casou com J Pinto Fernandes
o: que não tinha entrado na história.
::::>
!d:o: Poema-piada, em versos livres, tipicamente modernista e drummondiano: carregado de antili
w rismo, de ironia seca e amarga, sobre os desconcertos do amor, sobre a cadeia de desencontros e
1-
....J a permanente falta de correspondência das relações amorosas, mas com humor, que se acentua na
...... figura de Lili, a que não amava e que se casa ... Como se o casamento nada tivesse a ver com as
150 histórias de amor.
Amar
(Claro enigma)
Poema filosófico de alto nível, observe os ritmos, ao mesmo tempo tensos e fluentes, a com
plexa rede de metáforas enumeradas. O texto funde o lírico da temática amorosa e o épico da refle
xão coletiva, universal, sobre a necessidade de amar. A linguagem funde o coloquial - amar e
malamar - e o culto - e amar o inóspito.
Atravessado de indagações e de respostas, este é um dos mais significativos poemas de amor
de toda a língua portuguesa.
Poesia contemplada
Procura da poesia
(fragmento)
(A rosa do povo)
Repara:
ermas de melodia e conceito,
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Na praça de convites
Os materiais da vida
(A vida passada a limpo)
�
a:
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
w no meio de caminho tinha uma pedra .
.._.
::J Nunca me esquecerei desse acoYJ[ecimento
---. na vida de minhas retinas tãofatigadas.
Provavelmente este é o mais polêmico poema da história do Modernismo, por sua concepção
e sua estrutura revolucionárias: os versos se repetem, circulares, em torno da pedra (a frase vai até
a pedra e volta, sem ultrapassá-la). Por essa organização sintática, pelo radical coloquialismo da
linguagem, pelas inumeráveis leituras metafóricas que possibilita, este poema tornou-se um sím
bolo da poesia de Drummond e do Modernismo brasileiro. No meio do caminho, de poesia anti
poética, de lírica antilírica, ilustra a travessia do poeta e de todos nós entre o individual e o social,
o coração e a pedra no meio do caminho, o mundo.
A máquina do mundo
(Claro enigma)
(fragmento)
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pousado e seco; e aves pairassem
n o céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romperjá se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
(. . .)
baixei os olhos, incurioso, !asso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
w
c
Poema épico-filosófico de dimensão universal. Escrito em tercetos/estrofes de três versos <(
a:
(como a Divina comédia, de Dante) e em versos decassílabos camonianos, sem rima. O texto c
representa o tema da máquina do mundo, do episódio de Ilha dos amores (Os Lusíadas), em que z
Vênus, em homenagem às conquistas portuguesas, revela a Vasco da Gama a máquina do cosmos, <(
w
a estrutura do universo, síntese da concepção da natureza. Numa postura moderna, radicalmente c
anti-épica, anti-heróica, o narrador-personagem se recusa a contemplá-la e continua o caminho, de c
mãos pensas... z
o
�
�
::::>
a:
c
-
153
1. Reconheça características modernistas no poema em ter
11 mos de forma e temática: El (FUVEST)
Elegia
El Identifique o tema da poesia e sua classificação segundo os mais u m dia, aproveitando o descanso da noite para medi
critérios de Drummond para organizar sua antologia. tar.
c) O poeta sente-se triste ao fim de mais um dia de um longo
inverno, e lembra-se com saudade dos dias quentes e ale
O lutador para meu sustento gres do verão.
num dia de vida. d) O poeta, sentindo próximo o fim da vida, faz um retrospec
Lutar com palavras Deixam-se enlaçar, to melancólico, confrontando o m uito que espera e o nada
é a luta mais vã. tontas à carícia que tem nas mãos.
Entanto lutamos e súbito fogem e) A poesia é puramente objetiva e descritiva. O poeta pre
mal rompe a manhã. tende transmitir-nos, quase que fisicamente, a sensação
São muitas, eu pouco. e não há ameaça de um dia de inverno.
Algumas, tão fortes e nem há sevícia
como o javali. que as traga de novo
Não me julgo louco. ao centro da praça.
(. . . )
Se o fosse, teria Tamanha paixão
poder de encantá-las. e nenhum pecúlio.
Mas lúcido e frio, Cerradas as portas,
apareço e tento a luta prossegue
apanhar algumas nas ruas do sono.
�
�
z
w
�
o
u
<(
a:
� 11 O poema é nitidamente modernista, pelos versos livres, pela
linguagem coloquial, pelas estrofes heterogêneas e também
O tema é a própria luta com as palavras, o ato de escrever, o
trabalho de se expressar. Trata-se de um metapoema, que
a: pelo tema: a crise do homem comum, do homem da rua, no faz metalinguagem. Na classificação de Drummond ele seria
mundo moderno, espécie de beco sem saída pela ausência enquadrado no item Poesia contemplada, ou seja, poesia
� de ilusões, de solidariedade humana, pela consciência da que fala sobre a própria poesia .
....I solidão, da morte dos deuses, da falta de arrimo e da neces
� sidade implacável de continuar: Você marcha José!/ Jot;é,
154 para onde ?
;
FOGO MORTO
Obra-prima do autor, fecho e superação do ciclo da
cana-de-açúcar.
(Alfredo Bosi - História concisa da literatura)
Narrador
Em Fogo morto, o foco narrativo é em terceira pessoa. Optando por um narrador
onisciente, que não faz parte do enredo, José Lins do Rego, além de sair do memoria
lismo de seus romances iniciais, diversifica as vozes participantes da história, enfatizan
do vários modos de sentir, de perceber a realidade sobre a qual escreve.
Três vozes se sobressaem, no contexto geral da obra, e outras as acompanham, desven
dadas em sua interioridade pelo narrador através do discurso indireto livre. São elas: a do
mestre José Amaro, um seleiro de olhos amarelos, pernas inchadas e envelhecido, que mora
à beira da estrada do Engenho Santa F é, a do coronel Luís César de Holanda Chacon, o se
nhor deste engenho e a do capitão Vitorino Carneiro da Cunha, parente dos grandes da
terra, dos coronéis, mas por opção ligado à defesa dos pobres e de seus direitos.
Além desses personagens, que são os protagonistas da obra, existem Sinhá, Dona
Vitória e Adriana, respectivamente as esposas de cada um deles, cuj as ações e cujos
sentimentos se destacam, dando ao romance uma espécie de polifonia, de diversificação
de perspectivas, de tensões entre os eus e a realidade, que passaremos a exemplificar.
Exemplo l
O seleiro estava possuído de paz, de tema tristeza; ta ver a lua, por cima das
Cajazeíras, banhando de leite as várzeas do coronel Lula de Holanda. Foi andan
do de estrada afora, queria estar só, viver só, sentir tudo só. A noite convidava-o
para andar. Era o que nunca jazia. Vivia pegado naquele tamborete, como negro
no tronco. Efoi andando (. . .). Na lagoa, a saparia enchia o mundo de um gemer
semfim. E os vaga-lumes rastejavam no chão com medo da lua. Tudo era tão boni
to, tão diferente da sua casa. Quis andarpara mais longe. E se deixasse a estrada?
(Primeira parte - O mestre José Amaro)
Exemplo 2
Seu Lula dava o sítio ao irmão do
A região canavieira da Paraíba e de velho Félix. E quando ele se foi, come
Pernambuco em período de transição çou a imaginar em Neném. Não dei
do engenho JXIIa a usina encontrou no xaria que a sua filha, que ele criara " osé Lins do Rego Cavalcanti nasce em
ciclo da cana-dEHiçúcar de José Lins do com tanto mimo, se casasse com um I Pilar. Pernambuco. em 1 901 . Morre no
Rego a sua mais alta expressão literária tipo da rua, um filho de alfaiate. Não, Rio de Janeiro. em 1 975. Um dos principais o
(. . . ). À torça de cmrear JXIIa o romance C!)
o fluxo da memória, José Lins do Rego
tudo que estivesse em suas mãos ele
representantes do neo-realismo no Brasil. w
faria para evitar. O pobre irmão de
expressou-se literariamente numa linguagem
a:
aprofundou a tensão eu/ realidade, Félix tivera coragem para liquidar o
viva e espontânea. que retrata com
o
apenas latente nas primeiras miserável, que desgraçara a filha ino o
experiências. E o ponto alto da conquis cente. Era o que faria também. fidelidade o povo nordestino. Principais (/)
ta foi essa obra-prima que é Fogo morto, Mataria sim, mataria o atrevido. obras: Menino de engenho (1 932). Doidinho z
fecho e superação do ciclo da ccma-de Estava só, era doente, não tinha a for (1 933). Moleque Ricardo (1935), Usina :J
açúcar. tuna de José Paulino, mas saberia •W
( 1 936), Fogo morto ( 1 943). Pedra bonita (/)
defender a sua filha com a sua vida,
(Alfredo Bosi - História concisa da ( 1 938). Riacho doce (1 929). Eurídice ( 1 947). o
com a sua morte se preciso fosse. ...,
literatura brasileira) Os cangaceiros (1953). Publicou ainda
(Segunda parte - O engenho de -
crôn icas . me mór ias e en sa i_
o s_
.............................. . ===-0
seu Lula)
155
=
Exemplo 3
O capitão Vitorino Carneiro da Cunha tinha cinco mil réis no bolso. Daria para o seu
telegrama de protesto. O que mandaria dizer ao presidente? O que mandaria dizer ao coro
nel Rego Barros? E as palavras se formavam na sua cabeça. Em nome do povo de Pilar, em
nome de cidadãos honestos do município, pediria garantia aospoderes políticos (. . .). Vitorino
Carneiro da Cunha não faria como o primo ]osé Paulino que tolerava o bandido. Podia o seu
sangue correr, podiam arrancar-lhe a vida. Era homem para sustentar as suas opiniões, para
enfrentar os perigos.
(Terceira pane - O capitão Vitorino)
Observe, no exemplo 1, a solidão do mestre José Amaro, intensificada pela presença da natu
reza, que lhe faz companhia em meio aos sapos, que enchem o mundo de um gemer sem fim e aos
vaga-lumes, que rastejam no chão com medo da lua...
A frase E se deixasse a estrada? é um exemplo de discurso indireto livre, de confusão volun
tária entre a sua subjetividade calada, atormentada, por um momento entregue ao devaneio, e a voz
do narrador, que a traduz aos leitores.
No exemplo 2, o narrador também se aproxima do coronel Lula, agora para destacar a fúria
- Mataria, sim, mataria o atrevido - com que se nega a entregar a filha a um simples filho de
alfaiate, que não a merece e por quem lutaria com a sua vida, com a sua morte se preciso fosse.
Enquanto o mestre seleiro e o velho coronel se sentem abandonados, rejeitam a impotência
que parece dominá-los, o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, todo força e determinação, pensa
num telegrama - O que mandaria dizer ao coronel Rego Barros? - através do qual faria uma
reivindicação em nome dos cidadãos honestos do município.
Nos três casos, o discurso indireto livre mostra o desenvolvimento, feito pelo narrador, do
mundo interior dos personagens, em sua extrema e lírica solidão (mestre José Amaro), em sua
ruína e em seu ódio incontidos (coronel Lula), na reação inconformista e heróica ao domínio, ao
poder (capitão Vitorino).
As vozes femininas, como a de Sinhá, sofredora pela filha desequilibrada e pelo marido que
teme, igualmente merecem a adesão, a cumplicidade do narrador:
Mas, voltando a si, retomou para casa e foi encontrar o marido, em pé, como sem cons
ciência, e a filha calada. A casa na paz dos monos. Procurou ver Mana, e não teve coragem.
Zeca, de pé, tinha os olhos arregalados fixos num ponto só. A luz da candeia bulia com o
vento. E os morcegos chiavam no jenipapeiro. O marido agora andava para o seu lado, vinha
para a potta da cozinha, com a sela na mão. Era um bicho, era o diabo que marchava por
cima dela (. . .). Estava com medo da sua casa. Em poucos minutos viu-se uma infeliz, uma
mulher sem coragem, sem força, um trapo. Teve vergonha de seu medo.
Vamos, agora, conhecer o enredo do romance e entender melhor o universo e as ações destes
e de outros personagens, procurando contextualizar a dor e o abandono que pulsam em Fogo
morto.
Enredo
Dividido em três partes, o romance enfoca na primeira a vida do seleiro, o mestre José
Amaro.
Batendo sela na beira da estrada, por onde passam personagens típicos do lugar, como o cego
Anacleto, o negro José Passarinho, o pintor Laurentino, o caçador Manuel da Úrsula, além do com
<( padre capitão Vitorino e de Sinhá Adriana, a mulher do capitão, comadre e amiga de Sinhá, o mes
o
�
z
tre José Amaro cotidianamente amarga grande revolta.
É revoltado contra os ricos como o coronel José Paulino, dono do engenho Santa Rosa, que
w fora ríspido com ele sem necessidade, o que não perdoa. É revoltado contra a Sinhá, que se unira
� a ele sem amor, por falta de opção, e que protege a filha Marta, estranha e silenciosa, uma moça
o
u velha que não desperta o interesse de nenhum pretendente.
<( A culpa de tudo é Sinhá, repete incansavelmente, atribuindo-lhe inclusive a responsabilidade
a: de não ter tido filho homem, que pudesse continuar o seu oficio, como fizera em relação ao pai,
:::::>
�
a:
homem valente, vindo de Goiânia com uma morte nas costas.
A amargura do mestre vem assim de uma vida irrealizada, cujos acontecimentos se precipi
w tam: a filha enlouquece, sendo levada a um hospício do Recife, o menosprezo dos coronéis o apu
1-
::J nhala pelas costas - devido a intrigas do negro Floripes, o coronel Lula o expulsa de suas terras
...... - e finalmente o hábito de sair para esticar as pernas nas noites de lua cheia o faz ser confundi
te, gado de primeira ordem, partidos de cana, roçados de algodão, no chefe do Partido Liberal,
no pai defilha educada no Recife, com piano em casa, quefalava francês, que bordava com mãos
de anjo.
A filha, Amélia, não encontrava pretendente à altura, embora se entusiasmasse com um primo,
Luís César de Holanda Chacon, o Lula. Filho único de Antônio Chacon, viera de Pernambuco,
onde o pai lutara e morrera como revolucionário, ao lado de Pedro Ivo, dando a vida por Nunes
Machado - nome do chefe político de que a história falava, o parente cuja valentia tirava lágri
mas dos olhos do capitão Tomás.
De barba negra, olhos azuis, ar tristonho e fala mansa, o primo Lula pede a mão de Amélia,
tirando a família do capitão Tomás do desconsolo devido à insanidade de Olívia, moça para sem
pre perdida, aos dezessete anos.
A tristeza do velho Tomás pela loucura da filha caçula acentua-se com o reconhecimento da
incompetência do primo Lula para cuidar do engenho. Senhor de olhar abstrato, vestido como
gente da cidade, sempre ao redor de Amélia que lhe tocava piano conforme antes fazia para o pai,
o coronel Lula mandara buscar uma carruagem que tilintava pelas estradas, fazia vista e garantia
assim a superioridade da gente do Santa Fé.
Um negro, fugido duas vezes, na primeira tirara o capitão Tomás da apatia a que o relegara a
doença de Olívia, trazida para morar com a família. Na segunda, a humilhação ae buscar o negro
em Campina Grande, somou-se ao desencanto do capitão Tomás com o genro e às outras infelici
dades, levando-o à morte.
Dona Mariquinha, mulher que era metade de seu esforço, que cuidava dos negros, cozia o
algodãozinho para vesti-los, fazia-lhes o angu, assava-lhes a carne, toma as rédeas de Santa Fé,
contra a vontade do coronel Lula. Este batia nos escravos sem razão, maltratava-os, revelando,
assim, o gênio ruim que escondera com as delicadezas, as lordezas de homem fino.
Com o nascimento de Neném, de olhos azuis e pele rosada como na família de Lula, a rivali
dade entre ele e a sogra transforma-se em maior crueldade : impede D. Mariquinha de cuidar da
neta com a conivência de Amélia, vindo a velha a falecer, repentinamente.
O Santa Fé começa então a decair, os negros vão um a um abandonando o engenho, cuja anti
ga grandeza fenece graças ao senhor cruel. Após a abolição é definitivamente abandonado por
todos.
Amélia compreende, assim, o mau gênio do marido, cada vez mais devoto à religião e à filha
Neném, educada no Recife e luz dos olhos do pai, que só vê a ela desde que a esposa perdera um
filho, de parto.
o
(!)
Quando o filho do alfaiate se interessa por Neném, que também se mostra disposta a namorar UJ
a:
o rapaz, os fantasmas do passado invadem a personalidade do velho Lula, e ele vai acabando epi
o
lético, incompatível com o cargo de senhor de engenho, furioso com a paixão de Neném por um o
qualquer, ano a ano gastando o dinheiro deixado pelo sogro Tomás. (/)
A degradação do Santa Fé se consuma apesar dos esforços de Amélia, que vende galinhas z
:::J
escondida do marido, nos últimos estertores do engenho enfim de
fogo morto, isto é, desativado. ·UJ
Na terceira parte do romance - centrada no capitão Vitorino o cangaceiro Antônio
- (/)
o
Silvino invade o Pilar, distribuindo para os pobres o dinheiro dos ricos, e segue para Santa Fé, a ....,
fim de encontrar as moedas enterradas (já inexistentes) e de impedir que o coronel Lula desaloje -
o mestre José Amaro.
151
A trama então se agiliza: o tenente Maurício, em busca do cangaceiro, prende o mestre José
Amaro, Zé Passarinho e o cego Torquato, dos quais procura extorquir informações sobre o canga
ceiro através de torturas e de maus tratos.
A figura de Vitorino se agiganta na defesa dos amigos, presos pelo tenente e na luta contra o
coronel Lula, de quem é inimigo político.
Contra todas as injustiças, venham de onde vierem, o velho capitão achincalhado pelo povo,
que maldosamente o apelidara de Papa-Rabo, consegue sucesso no habeas-corpus que pede a
Rego Barros - o político com quem se alia contra os desmandos no Pilar - a favor dos presos.
José Amaro, entretanto, sem a filha e sem Sinhá, que o abandona, suicida-se ao sair da cadeia,
usando a faca de cortar couro ...
Sinhá Adriana, sua mulher, e o filho Luís, da Marinha, (que em visita aos pais quer levá-los
ao Rio para mudarem de vida), redescobrem no final do romance a grandeza de Vitorino, o Dom
Quixote do Pilar, cujo heroísmo é reconhecido nos jornais e cuja expectativa com as eleições
deixa um rastro de esperança. O romance termina com as providências do capitão Vitorino e de
Sinhá Adriana para o enterro do mestre José Amaro e com a observação de José Passarinho
acompanhando-os na função - de que o Santa Fé não bota mais, está defogo morto.
No enredo do romance, com uma pluralidade de perspectivas que vão do coronel decadente
ao seleiro derrotado, da senhora de engenho (Dona Amélia) à esposa do quixotesco capitão justi
ceiro (Sinhá Adriana), conta-se assim a decadência dos engenhos açucareiros do Nordeste, os pro
blemas do latifúndio, do coronelismo, da seca que dizimou a família de Sinhá Adriana, do canga
ço e das violências policiais e políticas. Todos esses problemas, embora regionais, universalizam
se ao longo da leitura de Fogo morto, devido à interpenetração entre conflitos individuais e con
flitos sociais, conseguida pela superação do memorialismo de José Lins do Rego. Ele aqui empres
tou sua voz à mudez dos habitantes de um mundo em extinção, como veremos melhor estudando
os personagens da obra.
Personagens
Principais
O mestre José Amaro é a imagem do agregado do engenho, do trabalhador artesanal livre da
escravidão mas dependente da boa vontade do senhor, em cuja terra habita. Representa, assim, a
degenerescência do sistema patriarcal, do ponto de vista dos que dele se alimentam de forma indi
reta. A loucura da filha, a falta de um filho que continue o seu trabalho, o medo que a esposa lhe
tem, a fama de lobisomem aliam-se à sua expulsão do engenho pelo coronel Lula, levando-o para
o desenlace trágico. E esta destruição é lç:nta e gradual, acompanhando a perda da nobreza da pro
fissão, o que o inferioriza em relação aos ricos, e o alimenta em sua revolta impotente.
O coronel Lula de Holanda Chacon é uma pessoa inadequada e por isso incompetente para
preservar a riqueza do sogro. Criado pela mãe viúva, vindo de outro mundo, desconhece os códi
gos do novo habitat, o engenho. Refugia-se da própria ignorância maltratando negros, substituin
do pelo autoritarismo gratuito a falta de autoridade e, finalmente, tentando compensar a mesqui
nhez de seu comportamento, que chega ao desequilíbrio mental, com o apego exagerado à religião.
O capitão Vitorino Carneiro da Cunha destoa dos personagens anteriores pois nele a força
do ideal se sobrepõe à realidade da decadência e do ridículo. Redimido pela p-aranóia heróica, o
velho Vitorino se eleva no conceito do público. Os pequenos começam a respeitá-lo. O cego
Torquato acha que ele é mandado por Deus (. ). A sua candura e a sua coragem fazem dele um
..
<( campeão. O único homem da várzea com sentimento e consciência das necessidades sociais e dos
o
problemas políticos, porque não se aproximou deles com a bruteza dos chefes nem com a malícia
�
z
habilidosa dos políticos, mas com a direita ingenuidade dos puros. (Antônio Cândido - Brigada
w ligeira)
�
Secundários
8
<( Enquanto o capitão Tomás, pai de Amélia, a esposa Mariquinlta e o coronel José Paulino
a:
:::::> representam a pujança do patriarcalismo, a força de vida do poder oligárquico exercido no contex
�
a:
to dos engenhos de açúcar, algumas personagens femininas do romance - Sinhá,
e
Sinhá Adriana
Dona Amélia - revelam a impotência da condição da mulher perante tal sistema.
w Embora cada uma delas, a seu modo, consiga reagir, com heroísmo marcado pela dor e pelo
._.
...J sofrimento, à decomposição do mundo, à decadência e/ou à alienação mental do(s) marido(s), só
...... lhes ouvimos as vozes, estranguladas e emudecidas, devido à cumplicidade do narrador. Assim,
158 podemos perceber a "agilidade" e a "materialidade" de suas ações, voltadas para a realidade, para
o que há por fazer, e ao mesmo tempo quase que inoperantes, de tão anônimas aos olhos masculi
nos, ao longo do romance.
Uma "ausência" maior se nota nos filhos Neném, Marta, Luís
- ora distantes e alheios,
-
ora em outro lugar, como que em fuga da miséria e dos fantasmas que rondam as famílias, em pro
cesso de degeneração.
O teaente Maurício e o cangaceiro Antônio Silvino, a força bruta legalizada e a força bruta
marginal, respectivamente, aparecem com mais intensidade no final do romance, acelerando a
ação e assim mostrando ao leitor mais dois pólos de conflito. Ambos tendem a se destruir na medi
da em que ambos compactuam com a brutalidade que, em nome dos ricos ou dos pobres, faz parte
do mesmo sistema, do mesmo modelo de vida arruinado.
Finalmente, o negro cachaceiro Zé Passarinho, o cego Torquato, o contrabandista de aguar
dente AHpio, o pintor Laurentino, a preta Margarida, e os outros personagens de Fogo morto
são a seiva de sentimentos confusos, de preconceitos e manias, de costumes e devoções, de cren
dices e maledicências, que alimenta a dimensão regionalista do romance.
A divisão em três partes de Fogo morto, contudo, se unifica pelas inter-relações humanas que
se estabelecem envolvendo análise de detalhes circunstanciais, para a visão sintética da paisagem
física e humana na sub-região açucareiro. Caracterizada em si mesma, ela é, ao mesmo tempo,
condicionada por toda a realidade humana e social da região nordestina. É como se os seus limi
tes se dilatassem e logo se retraíssem, como presenças interferentes de múltiplos valores, circuns
tâncias e reações, num momento agudo de redefinição da condição e do destino humano naquela
paisagem. Convergem assim para este romance os componentes fundamentais de toda a obra
regionalista do Autor, e não somente aqueles do ciclo da cana-de-açúcar. Seus personagens se
apresentam como expressão de todas as dimensões do homem nordestino, preso a raízes telúricas
profundas, ao mesmo tempo num esforço dramático de libertação, para o reencontro de umajusta
condição humana. (Antônio Cândido, J. Aderaldo Costeio - Presença da literatura brasileira
O Modernismo)
Vamos, agora, ler mais duas passagens do romance, percebendo a força poética e a intensida
de dramática de sua linguagem.
a
rialista dos romances do ciclo. Leia o trecho abaixo, extraído de Fogo morto, de José Lins
b) A narração em terceira pessoa enfatiza personagens do Rego:
i nexistentes nos romances do ciclo.
Viu a réstia que vinha do quarto dos santos, da luz
c) A narração em terceira pessoa abrange uma pluralidade
mortiça da lâmpada de azeite. Caiu nos pés de Deus,
de personagens não explorados em profundidade pelos
com o corpo mais doído que o de Lula, com a alma mais
romances do ciclo.
pesada que a de Neném.
d) A alternância de narradores amplia o processo narrativo
Acabara-se o Santa Fé
presente nos romances do ciclo.
e) O foco narrativo mantém e intensifica aquele presente a) Relacione o trecho com o nome do romance.
nos romances do ciclo. b) Que personagem do romance poderia estar sendo
fJ
focalizado pelo narrador neste trecho? Por quê?
No enredo de Fogo morto há alguns episódios que anun
ciam o desenlace trágico de José Amaro. Mencione pelo
menos três, explique o que ocorre neste desenlace e em
seguida comente sua importância para o contexto geral da
obra.
�
a) O trecho transcrito fala da decadência do engenho do
O desprezo da mulher, a loucura da filha e a fama de "lobi coronel Lula de Holanda. Com o fim de sua produção,
z
w fJ somem " são três elementos do enredo de Fogo morto
que prenunciam o final trágico do mestre José Amaro. Ao
não haveria mais o trabalho de ferver a garapa da cana
para fazer o açúcar. Por isso, a chaminé do engenho
� se suicidar o personagem revela não só o próprio abando deixava de soltar fumaça, como se o fogo do engenho
o
u no, a própria solidão, como também o abandono e a soli tivesse morrido, o que significa no romance a decadên
<( dão dos engenhos açucareiros do Nordeste, cuja deca cia dos antigos engenhos açucareiros do Nordeste,
a: dência é tematizada nesta obra. sugestivamente indicada com a expressão Fogo morto.
::> b) A personagem focalizada no trecho parece ser D.
OS MELHORES CONTOS
LINGUAGEM E TEMAS
Acima e além de suas flutuações e permutações temáticas, a grande maioria dos
textos de Braga exibe uma indissolúvel unidade, em que se fundem um valor ético e um
valor estético - uma sincera postura de humildade diante da vida, adequadamente
expressa num estilo também humilde.
A atitude humilde nasce da profunda compreensão da fragilidade do ser humano,
cuja existência o tempo toma tão inconstante e fugaz. Resulta dessa compreensão o
modo entre temo e amargo com que sua voz narrativa - quase sempre em 1 � pessoa -
reconhece e expõe as próprias imperfeições e/ou a própria impotência diante da dificil
arte de viver. Esse viver tão contraditório, de tão poucas e esquivas grandezas e forças:
pequenas ilhas que, mal afloram, logo submergem no oceano do banal cotidiano...
Essas mesmas limitações o eu-narrador reconhece em seus semelhantes, e perceber
que ele e os outros conseguem resistir à precariedade da condição humana leva-o a uma
espécie de humanitarismo solidário.
Não se trata, contudo, do humanitarismo à moda castroalvina, por exemplo, do
artista condoreiro que sente em si "o borbulhar do gênio" e assume a condição de porta
voz, não só de seu povo, como também de toda a humanidade. Rubem Braga é artista
do século XX, deste tempo em que ideais e sonhos coletivos de progresso, libertação e
sublimidade evaporaram-se em desilusões. O artista não mais se eleva acima dos outros
homens, muito menos se propõe messianicamente a guiá-los - sua tarefa, como a con
cebe e realiza Rubem Braga, é estar entre seus companheiros e iguais, a oferecer-lhes
não mais que o alimento humanizador suficiente para cada dia e que a cada dia deve ser
de novo obtido.
Assim se compreende por que Rubem Braga não buscou a "grande arte", mas per
maneceu fiel à crônica, esse texto de ar despretensioso, o professor e crítico Antônio
endo nascido em Cachoeira do
Cândido faz comentários bastante esclarecedores:
T ltapemirim,
· 1 Espírito Santo. em 12 de
A crônica não é um gênero maior. Não se imagina uma literatura feita de janeiro de 1 9 1 3. Rubem Braga começou a
grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dra trabalhar em jornal ainda estudante.
maturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por assinando uma crônica diária no Diário da
melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor. Tarde. de Belo Horizonte. para onde se
"Graças a Deus ", - seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós. transferira. depois de curto período no Rio de
E para muitos pode servir de caminho não apenas para a vida, que ela serve de Janeiro. A partir de então. escreveu em
perto, mas para a literatura (. . .) diversos jornais e revistas do Brasil, tendo
Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem morado em São Paulo. Recife. Belo
necessidade que costuma assumir, ela se ajusta ã sensibilidade de todo o dia.
Horizonte. Porto Alegre e finalmente de novo
no Rio de Janeiro.
Principalmente porque elabora uma linguagem quefala deperto ao nosso modo de
Acompanhou a Força Expedicionária
ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permi
te, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundi
Brasileira durante a Segunda Guerra
dade de significado e um certo acabamento deforma, que de repente podem fazer
Mundial, como correspondente do Diário
dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição.
Carioca, junto ao Alto Comando Aliado na
Vamos pensar um pouco na própria crônica como gênero. Lembrar, por exem
Itália. Suas viagens se estenderam a vários
países. tendo vivido durante o ano de 1 950
plo, que ofato deficar tão perto do dia-a-dia age como quebra do monumental e da
ênfase. Não que estas coisas sejam necessariamente ruins. Há estilos roncantes mas
em Paris e em 1 955 em Santiago do Chile.
eficientes, e muita grandiloqüência consegue não só arrepiar, mas nos deixar hones
onde chefiou o Escritório Comercial do
tamente admirados. O problema é que a magnitude do assunto e a pompa da lin <(
Brasil, exonerando-se a pedido em novembro (!)
guagem podem atuar como disfarce da realidade e mesmo da verdade. A literatura
corre com freqüência este risco, cujo resultado é quebrar no leitor a possibilidade de
do mesmo ano. Em 1 961 foi nomeado <(
ver as coisas com retidão e pensar em conseqüência disto. Ora, a crônica está sem embaixador do Brasil em Marrocos. posto do a:
qual também se exonerou a pedido em 1 963.
co
pre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. Em
lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos eperíodos canden Nunca deixou de escrever regularmente �
crônicas para jornais e revistas. vindo a
w
tes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade co
insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas . . . constituir um verdadeiro fenômeno: o de ser :J
o único escritor a conquistar um lugar a:
(A vida ao rés-do-chão, prefácio ao Volume 5 da série definitivo na nossa l iteratura exclusivamente -
Para Gostar de Ler, Editora Ática, São Paulo, 1984) como cron ista . Morre u e m..1 _
9s_
o __
. ____o 161
;;;;;;
............................
As observações de Antônio Cândido deixam bastante claro que a humildade da crônica não
implica pobreza ou vulgaridade - o termo dever ser entendido na sua acepção de simplicidade:
A simplicidade como valor ético - esta característica está na escolha de temas e assuntos
que privilegiam a vida comum, de seres humanos comuns, vistos tanto em suas virtudes quanto em
seus defeitos, em suas belezas ou suas fealdades, em seus momentos de luz ou de escuridão.
Rubem Braga contempla-os (e a si mesmo, na persona do narrador de 1 a pessoa) com senso de jus
tiça - quer com admiração, quer com abominação, quer com severidade, quer com ternura.
Esse olhar ético volta-se, com especial cuidado, para os seres em situação de fragilidade.
Mesmo aqueles que, em princípio, mereceriam um olhar de censura moral ou de menosprezo, ter
minam acolhidos e perdoados.
Não se pode, entretanto, supor no rigor ético de Rubem Braga, qualquer traço de visão mora
lista, de quem se põe a fazer julgamentos dos atos e atitudes de seus semelhantes. A consciência
da brevidade e inconstância dos "bens deste mundo", fonte da humildade do velho Braga, não o
leva ao estoicismo conformado e contemplativo à Ricardo Reis - a percepção da transitoriedade
provoca no cronista, não raramente, uma espécie de ímpeto hedonista no aproveitamento de cada
instante.
Em certas crônicas, a necessidade de fruir o momento sempre tão fugidio leva-o a suspender
considerações moralistas - em si e nos outros - e entregar-se à realização urgente do desejo.
Trata-se, enfim, de exaltar aquilo que convida a viver: a beleza da mulher, o frescor da criança, a
luminosa pulsação erótica da própria Natureza.
A simplicidade como valor estético - em adequação à humildade temática, Rubem Braga
mostra predileção pelo padrão mais coloquial do idioma - no vocabulário, nas construções sintá
ticas. Sua prosa, de composição aparentemente solta (v. o texto de Antônio Cândido), exibe clara
filiação a uma das conquistas centrais do Modernismo de 22: utilização de uma linguagem livre
de preciosismos, numa atitude de radical rejeição à "parnasianice" e ao academicismo do código
da classe dominante.
A simplicidade da linguagem do velho Braga, por outro lado, ajusta-se com perfeição ao jor
nal, veículo onde suas crônicas sempre foram originalmente publicadas.
NÚCLEOS TEMÁTICOS
1. Fauna, flora, gente grande, gente pequena
(3
�
z
Tuim criado no dedo
Um menino paulistano, de férias no campo, encontra, numa casa de joão-de-barro, três filho
w
tes de tuim. Como eram muito novinhos, dois deles morreram, apesar dos cuidados do menino. O
�
0 sobrevivente foi crescendo, e seu dono domesticou-o a tal ponto que, mesmo voando solto, basta
u va chamá-lo - "tuim, tuim, tuim! " -: lá voltava o periquito e pousava no dedo do menino.
<( Terminadas as férias, o garoto, muito afeiçoado ao pássaro, convenceu os pais a permitir-lhe
a:
=> levá-lo para a cidade. Lá, porém, deixá-lo livre para voar seria perdê-lo, e o menino viu-se força
Praga de menino
O narrador relembra seu tempo de criança, particularmente as partidas de futebol j ogadas em
plena rua. As "peladas" eram animadíssimas e . . . ruidosas! Acontece que os jogos - e a algazarra
- incomodavam muitíssimo as irmãs Teixeiras (Quantas eram, oito ou vinte. . . ?), que moravam
quase defronte à casa do narrador, justamente no trecho da rua que os meninos usavam como
"estádio".
As implicantes mulheres tentaram vários recursos: repreenderam asperamente os j ogadores,
queixaram-se à mãe do narrador, pediram ao próprio pai que interviesse (mas o coronel de bigo
des brancos não respondeu às filhas, nem mesmo olhou os "moleques"); uma delas até experimen
tou apelar delicadamente à garotada . . . Tudo em vão - aquele era o único ponto da rua que ofere
cia condições técnicas para as partidas.
Um dia, entretanto, as Teixeiras conseguiram sua terrível vingança: a precária bola de meia,
usada até então pelos meninos, fora trocada por outra, de borracha e lindamente colorida, trazida
do Rio de Janeiro pelo pai de um dos garotos. Pois foi essa linda bola que partiu uma das vidraças
da casa das reclamantes. Uma das irmãs, depois de extravasar sua fúria, aos berros, contra os meni
nos, apanhou a bola e sumiu dentro de casa.
Retoma logo em seguida, munida de um canivete, fura a bola, corta-a e joga as duas metades
na rua, diante dos atônitos e inconsoláveis garotos. Um crime desses exigia severa represália: no
dia seguinte, aproveitando a ausência da família Teixeira, os meninos, seguindo um plano do nar
rador, arrombam a porta dos fundos e invadem a casa das inimigas. Aprontam lá uma boa mixór
dia e, à saída, levam uma faca de cozinha, um martelo, uma lata de goiabada.
A peça mas importante do furto - um anel sem muito valor, mas de grande estimação - é
enterrada no alto do morro. Poucos dias depois, entretanto, a enxurrada de um temporal apaga a
marca do esconderijo, e os "ladrões" rasgam o mapa, agora inútil, que haviam feito do local.
Os meninos nunca mais, nem mesmo ')á grandes", cumprimentaram a implacável Teixeira, e
Não sei se (a Teixeira do canivete) foi feliz
o narrador encerra a crônica explicitando-lhe o titulo:
na vida e espero que não; se foi, é porque praga de menino não tem força.
Lembrança de Zig
Mais uma vez de volta à época da infância, vivida em Cachoeiro do ltapemirim, o narrador
centraliza a história em Zig, o maior e mais especial dos cachorros que a família possuíra.
Todos os cachoeirenses conheciam-no e chamavam-no de "Zig Braga", o que, segundo o nar
rador, mostra como se identificou com o espírito da casa em que nasceu, viveu, mordeu, latiu, aba
nou o rabo e morreu.
De Zig, fica-se sabendo que exibia "personalidade" e comportamento bastante peculiares: ele
não era mesmo muito amistoso com estranhos em geral, mas chegava ao ódio com gente fardada,
a quem atacava furiosamente - fosse um soldado ou o carteiro. Paradoxalmente, porém, desde
pequeno vivia carinhosa amizade por uma gata, e seu relacionamento com ela só esfriou quando
uma ninhada de bichaninhos entrou a passear sobre ele - mesmo assim, apesar de incomodado,
suportou-os pacientemente.
Esse jeito carinhoso estendia-se a todos os habitantes da casa, e gostava, em particular, da mãe
do narrador - nas manhãs de domingo, quando conseguia escapar, farejava-lhe as pe�adas pelas
ruas afora e acabava encontrando-a entre as inúmeras pessoas que assistiam à missa. E claro que
sua alegria, ao ver-se junto da dona, era diretamente proporcional ao susto e à zanga que provoca
va em seu redor.
Ao fmal da crônica, o narrador reassume o tempo presente: fala, enternecido, de sua mãe, que,
já velha e cansada, não faz mais a caminhada domingueira até a igreja. Nas últimas linhas, a notí <(
(!)
cia de que Zig estava enterrado sob o velho pé defruta-pão . . . (Na crônica a seguir, o narrador men <(
ciona esta mesma árvore, que ficava no quintal, ao lado da casa). a:
CC
�
O cajueiro w
aJ
As recordações da infância do narrador, nesta crônica, trocam a fauna pela flora: a variada :::::>
vegetação do quintal da casa paterna, um cajueiro, belo, imenso, no alto do morro, atrás de casa. a:
Uma carta da irmã mais jovem conta ao narrador que a árvore, já velha quando este nascera, não -
resistira a uma tarde de ventania e caiu.
163
A notícia traz à memória do narrador a significativa imagem que lhe ficara do cajueiro: tal
como um mestre, a grande árvore parecia dar apoio e segurança a cada menino que se aventurava
por ela acima, até que, encorajado, atingia os galhos mais altos. De lá, o jovem aprendiz descorti
nava ampla paisagem, enquanto sentia o leve balanceio na brisa da tarde.
Além da lição de coragem e habilidade, o cajueiro ensinava o paladar da meninada a reconhe
cer o ponto de maturidade de seus sempre abundantes frutos amarelos, com os quais também nutria
os pássaros que, aos bandos, nele pousavam. Até ao tombar com a ventania, o cajueiro parece ter
feito uma última generosidade: caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar o telhado da velha.
Diário de um subversivo
(no remoto ano de 1930)
A Indicação cronológica sob o título situa a fábula na Era Vargas, às vésperas do ditatorial
Estado Novo. O narrador - um opositor do regime repressivo - relata o que faz e lhe acontece
nos dias 1 5, 1 6, 1 8, 2 1 ,24, 26 e 28 de fevereiro e 1 ° de março: mora, sob nome falso, numa pen
são, mas a presença de dois estudantes integralistas amedronta-o, forçando-o a mudar-se. Após
alguns insucessos, no dia 2 1 acaba encontrando refúgio na residência de um conhecido, Edgar,
casado com Alice.
Nas anotações referentes ao último dia de fevereiro, revela que um envolvimento afetivo entre
ele e a esposa de Edgar estava iminente; entretanto, se tivesse qualquer coisa com ela, seria o últi
mo dos cachorros. O próximo - e último - registro no diário exibe um lacônico e assumido
cinismo: ] '.2 de março - Sou.
Os perseguidos
O narrador acompanha (ou leva) um certo Moreira até um apartamento de luxo, no qual são
introduzidos por uma serviçal uniformizada, que os convida a sentar e aguardar um momento.
Falando de Moreira, o narrador revela que este passara mais de um mês na cadeia, onde fora tor
turado e sofrera fome durante dias, trancado numa solitária escura. Estava enfraquecido e sujo. O
narrador sente desgosto pela sujeira do ex-prisioneiro, desgosto e pena. Enquanto aguardam, o nar
rador vai até a j anela, imensa, e fica a contemplar o grande mar azul, refletetindo sobre a vida mes
quinha que ele e Moreira tinham passado nos últimos tempos, em quartos apertados e quentes, de
uma só e miserável janela, dando para uma parede suja.
O luxo do apartamento não o surpreende, mas sentia que Moreira estava humilhado de estar
ali. O que o espanta é a vista do mar, o mar dos ricos, contemplado lá do alto, tão superior ao mar
dos pobres.
O vento traz-lhe um aroma salgado e limpo, ele aspira-o prazerosamente, embora sinta que
não o merecia, pois a gente como ele só cabia o ar dos pobres.
Falamos de carambolas
À mesa de um bar (ou restaurante) bebem e conversam o narrador e uma mulher. Tinham vivi
do, "antigamente", uma relação amorosa. Mas não é disso que falam: seus assuntos são diversos,
desencontrados. Começam com sorvete, de carambola, passam por romã, jambo, detêm-se um
pouco em mangas: manga-rosa, espada e carlotinha. O narrador emenda com a história (bem
"boba") de um amigo, que envolve manga carlotinha e galinha ao molho pardo com angu; pouco
<( mais tarde, põe-se a falar sobre palavras cruzadas, e, não muito depois, discutem sobre balé russo.
Q
�z O último tópico dessa embaralhada conversa é o bigode do narrador, que a mulher acha horrível,
ao que ele retruca:
w - Por que você não toma conta de mim, não dirige meus uísques e meus bigodes?
� Ela ri, alegremente, uma risada de cristal, que se parte tão fácil.
o· Acontece que esse diálogo-colcha-de-retalhos não é o verdadeiro assunto da crônica: entre
u
uma e outra dessas amenas banalidades, ambos falaram de algo do qual, embora tentassem, não
<(
a: conseguiram fugir - a mulher estava condenada por uma doença fatal.
::J
�a: Viúva na praia
w Atraído pela beleza de uma mulher na praia, o narrador detém-se a contemplá-la. Sua idade,
1-
:::i imagina ele, fica entre vinte e sete (ou menos) e, no máximo, trinta anos. Ela está com o filho de
� uns dois anos, ambos j á conhecidos, de vista, pelo narrador, que conhecera, também do mesmo
164 modo, o marido dela, falecido há alguns dias, após longa enfermidade.
A lembrança do defunto acaba levando o narrador a considerações morais quanto à presença
da viúva na praia, tão pouco tempo depois da morte do marido e também quanto a si próprio por
contemplá-la. Que culpa tem ele, se a própria viúva transborda de vida?
O marido é que morrera - ela está luminosamente viva, a usufruir prazeres e como que ofe
recendo sua beleza e vitalidade ao olhar do narrador, o qual, além de eximir sua consciência de
qualquer remordimento, termina sentindo-se cúmplice no hedonismo que ele supõe na viúva.
Um braço de mulher
Vindo do Rio de Janeiro, o avião em que está o narrador leva cerca de meia hora sobrevoan
do São Paulo, impedido de aterrissar por causa do nevoeiro. A passageira ao lado do narrador entra
em profunda aflição e acaba agarrando-se ao braço dele, em busca de amparo.
Tranqüilizada a companheira de vôo, o narrador toma consciência de que poderia mesmo ter
minar morrendo naquela viagem. Começa, então, amargo e melancólico, a refletir sobre sua vida
e conclui que talvez fosse até bom deixá-la. Essas reflexões niilistas interrompem-se a um novo
movimento assustado da passageira. - é nesse momento que o narrador dá-se conta de que aque
la mulher de cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado.
Como por mágica, a visão desse braço leva o observador à percepção da figura toda da mu
lher e esta lhe aparece como a imagem da própria vida! Já no aeroporto, o narrador é apresentado
ao marido de sua companheira de viagem. Este lhe agradece, embora com indisfarçável frieza. Ao
se afastarem, a mulher despede-se com um pequeno sorriso, que o narrador imagina vagamente
cúmplice, dado às escondidas daquele homem de cara desagradável.
A primeira mulher do Nunes
O protagonista-narrador contempla, por poucos instantes, uma mulher sentada num banco de
praça do Rio de Janeiro;acha-a bonita e com um "ar de estrangeira", cruza um rápido olhar com
ela e logo vai embora - foi o bastante para convencê-lo de que "acabara de ver a primeira mu
lher do mundo ".
O fantasioso narrador põe-se então a falar do Nunes, com quem trabalhara alguns meses em
São Paulo, anos antes do encontro na praça. O colega havia-lhe apresentado sua segunda mulher,
mas vários amigos comuns sempre se referiam à beleza e ao encanto de Marissa, "a primeira mu
lher do Nunes".
O fato é que ele acaba perdendo duas oportunidades de conhecer pessoalmente essa sua "estrela",
que termina separando-se do Nunes e parte para terras estrangeiras. Para o narrador, ela .ficou sendo
um mito, uma estrela perdida para sempre em remotos horizontes e quejamais cheguei a avistar.
Visão
A crônica, de elevadíssima densidade lírica, reduz-se a dois parágrafos: no primeiro, o mais
extenso, não há propriamente um relato - o narrador, em 1 ª· pessoa, limita-se a alinhavar várias
reflexões sobre si mesmo e sua existência, progressivamente preparando-se (e preparando o leitor) <(
para o que vai revelar no parágrafo seguinte. Aqui, a visão: no brevíssimo instante antes de se abrir (.9
um sinal numa esquina, o narrador percebe a figura de uma mulher que, após fitá-lo com seus olhos <(
cr:
azuis, move os lábios como para dizer alguma coisa.. . O carro parte e desaparece no tráfego. co
::?!
4. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração (Drummond) w
co
Ojovem casal :J
cr:
Marido e mulher, ano e meio de casados, abatidos e amargurados pela pobreza, moram numa -
pensão de última categoria - estavam atrasados no pagamento -, alimentam-se precariamente.
165
Ele trata a mulher com carinho, preocupa-se com a dor de cabeça de que ela reclama, abraça-a pela
cintura.
À espera do bonde, vêem parar no farol um grande conversível, marido ao volante e esposa ao
lado. Esta, meio gorducha, muito clara, olha a moça pobre, da cabeça aos sapatos, enquanto o
homem fala algo a respeito de um anel, ao que a esposa comenta: se ele deixar por quinze,
eufico.
aquela vaca dizendo que vai
O rapaz pobre sente profunda indignação: eles tão necessitados e
comprar o anel de quinze contos!... Mas olha sua mulher, comove-se diante de sua fragilidade e
beleza...
Marinheiro na rua
O único fato da fábula: um marinheiro, às primeiras claridades de um dia, numa rua totalmen
te vazia, bate seguidas vezes à enorme porta de um edificio. Depois de vã insistência, contempla
o prédio durante algum tempo e, finalmente desesperançado, vai-se embora.
Do alto de um prédio fronteiro, o narrador, de 1a pessoa, assiste à cena e vai intercalando em
sua narração fantasias, reflexões e sensações - comovido com o marinheiro, ora chega a imaginar
se pai do rapaz; ora, "suspeita" que ele próprio era o marinheiro, de tal modo se identifica com ele . . .
Quando o marinheiro se vai, o narrador encontra-se num estado verdadeiramente alucinatório:
conta que todas as luzes do prédio observado acendem-se subitamente, o edificio oscila, emite ran
gidos e . . . pesadamente como um grande navio iluminado - lentamente partiu.
As meninas
O eu-narrador recorda-se, sem um motivo definido, de uma manhã de sol à beira do mar.
Lembra que apareceram na praia duas meninas de vestidos compridos - o de uma era verde, o
da outra era azul. Ele não as conhecia nem as via bem, uma teria uns sete, a outra, nove ou dez
anos. Brincavam à beira d'água, acabaram molhando-se e, rindo muito, resolveram banhar-se
assim mesmo, vestidas.
A tristeza que o narrador vinha sentindo suspendeu-se um pouco e permitiu-lhe usufruir a graça
e a felicidade daquelas crianças. . . Mas, mesmo naqueles breves instantes, dentro de sua alma per
manecia o sentimento de quão precária e fugaz é a alegria - o sentimento doloroso de que, no pró
prio momento em que chega, essa alegria já se esvai . . . E as meninas riam brincando no mar.
a
O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas Aborrecido e inquieto, o marido bocejou - era um boi
mais antigas recordações de minha infância: belo, imen esquecido, mugindo, numa ilha distante e abandonada
so, no alto do morro, atrás de casa. Agora vem uma carta para sempre. É estranho: não dava pena.
dizendo que ele caiu (. . . ) Ela ia navegar. ( Rubem Braga)
A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa
Considere as afirmações sobre o fragmento de "A mulher
tarde de ventania, num fragor tremendo pela nbanceira; e
que ia navegar" e assinale a alternativa correta:
caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar o telha
I. A voz narrativa radicalmente objetiva é de implacável
do de nossa velha casa. (Rubem Braga)
realismo na apresentação do " marido " .
1 1 . A o apresentar a imagem degradante do marido, o nar
a) Dentre as referências ao cajueiro, transcreva aquela
rador permite supor que aprova a atitude da mulher.
em que se entrevê um traço romântico - embora
1 1 1 . O narrador exibe uma brevíssima auto-recriminação
muito contido - utilizado pelo narrador.
por não apiedar-se daquele homem já quase traído.
b) Justifique sua escolha e identifique a figura de lingua
gem implícita em tal traço romântico. a) Estão corretas as três afirmações.
< b) Apenas I está correta.
o Mas senti que seu olhar estudava aquele homem com c) Apenas I está i ncorreta.
�
z
uma severa e fascinada atenção, como se procurasse na
sua cara morena os sulcos do vento do mar e, no ombro
d) Apenas 11 está correta.
e) I e 1 1 1 estão corretas.
w largo, a secreta insígnia do piloto de longo, longo curso.
�
o
u
<
a:
=>
� a a) " . . . como se não quisesse quebrar o telhado de nossa
velha casa. "
essa personificação romântica - embora discreta -
dos seres da Natureza a figura de linguagem implícita
a: b ) Por sob a frase comparativa - estabelecida pela con na passagem.
w j u nção como - o narrador praticamente antropomor
1- fiza o cajueiro, ao supor nele o cuidado de não " que
:::i brar o telhado" da "velha casa" atrás da qual erguera
..... se belo e i mponente por longos anos. É justamente
166
I o MODERNISMO NO BRASIL
PRIMEIRAS ESTORIAS
São contos povoados de crianças, loucos e seres rústicos que
cedem ao encanto de uma iluminação junto à qual os conflitos
perdem todo o relevo e todo o sentido
Narrador
Entre as margens, isto é, no desenvolvimento, o episódio da morte do peru, que o menino tanto
admirara, para os festejos do aniversário do tio. O aparecimento de outro peru, ferozmente queren
do devorar a cabeça degolada do primeiro, conclui o episódio ao longo do qual o menino aprende
a dor pelo que se perde:Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as
mais belas coisas se roubavam.
2. Os cimos _
habita o menino que o identifica com a saudade, a vontade da mãe sempre salva.
No final, o desmedido momento, o menino está no avião, de volta para casa, a mãe recupe
rada, mas sem o tucano e o macaquinho, que perdera, sendo que acham e lhe devolvem o chapeu
zinho jogado fora. Ele, então, associa o medo da perda da mãe ao macaquinho e ao tucano e, no
inesquecível de-repente sorri presenciando todos ao seu lado . . . Quando o tio diz Chegamos afinal
o menino diz que ainda não. Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. E vinha a vida.
Comentário
Nestes contos, que abrem e fecham o livro, há elementos que reaparecem em outras estórias,
como a travessia durante a qual ocorre uma aprendizagem. De um lado o medo, a perda, a
descoberta da perecibilidade das coisas. De outro, a magia, o encantamento de um momento
desmedido - um momento que transcende o tempo e o espaço, e que assim provoca a intuição
hieroglífica, indizível, de uma força maior, que aumenta, isto é, aprofunda a alma em si mesma.
A introspecção do personagem, o não saber expressar o que sente, desvendado psicologica
mente pelo narrador, não por explicações mas por adesão, por cumplicidade, constitui um dos
alicerces da poeticidade de ambos os contos.
Enredo: um estrangeiro, Seo Giovânio, mora numa casa misteriosa, onde nem ele entrava, a
não ser para dormir.
Reivalino Belarmino, o personagem-narrador, diz detestá-lo por comer muito e como porco;
por viver lhe pedindo que busque cerveja para o seu cavalo.
Entretanto, quando a mãe de Reivalino adoece, seu Giovânio oferece-lhe dinheiro e, quando
ela morre, convida-o para trabalhar na fazenda.
Seo Giovânio, que era sobrevivente de guerra, vivia temeroso, desconfiado. Só o alegrava a
cerveja para o cavalo . . . Chegam outros estrangeiros, da cidade, e revistam a casa do italiano.
Reivalino, sempre desconfiado, conta-lhes os mistérios do patrão. Nada, porém, se prova contra
ele: há um cavalo que realmente bebe cerveja e, num dos quartos ocultados, encontram um enorme
cavalo branco empalhado. Um dia, morre o irmão de Seo Giovânio, que também vivia escondido
na casa. Os homens vão revistar o cadáver e se horrorizam com o rosto do falecido, desfigurado
pela guerra.
Reivalino - a convite do patrão - acaba tomando com ele a cerveja do cavalo. Seo Giovânio
morre, deixa-lhe a fazenda e ele - como para se justificar do engano que sempre o mantivera de pé
atrás com o protetor - bebe todas as garrafas de cerveja que restaram e finge que sempre consumi
ra, no lugar do cavalo . . . Fica, assim, o suspense sobre quem de fato bebia a cerveja do cavalo . . .
3. Os irmãos Dagobé
Tema: o fraco vence o forte/ o "bem" vence o "mal"
Tom: suspense
Narrador: 3! pessoa (testemunha)
Protagonista: Liojorge, o agente do "bem"
Enredo: A estória ocorre durante o enterro de um facínora, morto por Liojorge, homem pací
fico e honesto, estimado de todos. O suspense se dá devido à expectativa da vingança dos três
irmãos mais novos do bandido, que os liderava em crueldades. Liojorge, para espanto geral, com
parece à cerimônia e se oferece para ajudar a levar o caixão, justificando a legítima defesa em que
agiu. Após o enterro, no cemitério, os três irmãos, em vez de punir Liojorge, agradecem e se des
pedem dele e das outras pessoas, já que vão para a cidade grande, mudar de vida. . .
4. Luas de mel
Tema: o amor rejuvenescido
Tom: do suspense ao lirismo
Narrador: 1'! pessoa
<( Protagonista: um fazendeiro velho, de passado violento
Cl
�z Enredo: Joaquim Norberto, fazendeiro velho e de passado violento, recebe uma carta do amigo
w Seo Seotaziano, que lhe pede proteção para um casal.
� Joaquim arma-se, a mulher faz os preparativos, chegam homens para a prevenção do perigo
o
u iminente.
<( Na verdade, o casal é de noivos. Os três dias em que permanecem na fazenda são de suspense,
a: de expectativa em relação a uma briga que não acontece, e de festejos que contaminam os donos
:::>
�
a:
da casa, rejuvenescendo-lhes o amor.
Há o casamento - até o padre armado - e, em vez do coronel, pai da moça, de quem espera
w vam a vingança, aparece-lhe o irmão, em missão de paz.
I
� As visitas se vão e a estória se acaba �om duas luas de mel: a do casal novo, apaixonado, e a
---, do casal velho, remoçado.
110
5. Tarantão, meu patrão
Tema: a "loucura"/ a solidariedade
Tom: do suspense ao lirismo
Narrador: 1!! pessoa (o empregado)
Protagonista: Iô João-de-Barros-Dinis-Robertes (o velho patrão)
Enredo: Vagalume conta o caso de seu patrão que, envelhecido e meio doido, arreia um cava
lo dizendo ir matar o sobrinho médico, responsável por sua saúde.
Vagalume é obrigado a acompanhar o patrão nesta demência, durante a qual se diz o demo.
Na caminhada, encontram uma mulher pobre e uma criança, uma procissão e depois uma festa
em casa do referido sobrinho.
Durante a trajetória, o patrão vai fazendo o bem e falando o mal: empresta o cavalo à mulher
enquanto Vagalume carrega a criança; sente-se homenageado na procissão e a reverencia. Então,
na festa, com o seu bando que Vagalume chama os palhaços destemidos - o ajudante de crimi
noso, o sobrinho da velha que socorrera, dentre outros desvalidos - faz um discurso que ninguém
entende, mas emociona a todos. Principalmente ao Vagalume, que fica em lágrimas e saudade -
quando, após comerem e se divertirem - morre Iô João-de-Barros-Dinis-Robertes : ta patrão, ta
patrão. . . tarantão. . . tarantão. . . o Patrão, que saudoso.
Comentário
Observe que nestas cinco estórias ocorre o anti-clímax, isto é, a mudança de rumo de seu des
fecho, em relação à expectativa provocada ao longo de cada enredo.
São estórias de suspense, o qual se dilui e se converte em outras "matérias", pelo desenlace
inesperado. Nos casos de O cavalo que bebia cerveja, Luas de mel e Tarantão, meu patrão os pro
tagonistas constituem velhos combatentes em relação aos quais ocorre um engano. Seja o engano
do empregado (O cavalo que bebia cerveja e Tarantão, meu patrão) a respeito da pretensa vio
lência e/ou da "doideira" do patrão, que de motivos de desconfiança se transformam em motivos
de afeto, de cumplicidade; seja do engano do próprio fazendeiro velho de Luas de mel: esperando
a guerra, o que reencontra é o amor.
Em Famigerado e Os irmãos Dagobé presenciamos outro tema constante nos textos de
Guimarães Rosa: o homem instruído e astuto (Famigerado) e o homem "de paz" (Os irmãos
Dagobé) como agentes do bem que vence o mal, do "fraco" que vence o "forte".
Trata-se, enfim, de estórias de mistérios que não se desvendam totalmente, mas que provocam
a aprendizagem da solidariedade, do afeto, da força do bem e da loucura, identificada com santi
dade, com "ocultos saberes", que veremos em outros contos.
Estórias satíricas
I. Fata/idade
Tema: A fatalidade/ o "agente" do destino
Tom: irônico-filosófico
Narrador: 3!! pessoa (testemunha)
Protagonista: Meu Amigo (poeta, professor, ex-sargento da cavalaria, delegado de polícia)
Enredo: Meu Amigo, homem instruído e justiceiro, recebe a visita de um caipira que lhe conta
estar sendo perseguido - ele e sua mulher - por Herculinão, um desordeiro.
Meu Amigo afirma a Zé Centeralfe, o homem rústico e acanhado, que se cumpriria não a lei, mas
a graça. . . E prepara a arma, sugerindo ao outro as chaves dojogo. Este compreende e se dá o episó
dio: três pessoa sacam a arma - Herculinão, Zé Centeralfe e Meu Amigo - e só dois tiros são ouvi
fatalmente o mais lento, falecido, merece apenas um comentário de Meu Amigo,
dos . . . Herculinão, <(
(/)
conhecedor dos Gregos e dos destinos: o que houve de fato foi resistência à prisão, constatada. o
a:
2. Darandina (/)
w
Tema: a loucura •<(
Tom: satírico, irônico cr:
<(
Narrador: 1!! pessoa (trabalhador num instituto de doentes mentais)
�
Protagonista: o louco
::>
(!)
Enredo: diante de um instituto de doentes mentais, um homem exato, rápido, podendo-se dizer que -
provisoriamente impoluto, afana uma caneta-tinteiro de outro homem e, perseguido, sobe ao alto de
111
uma palmeira. Lá diz loucuras lúcidas do tipoViver é impossível. . . Adalgiso, também do instituto, rela
ta o caso ao personagem-narrador: -Disse que era são, mas que, vendo a humanidadejá enlouquecida,
e em véspera de mais tresloucar-se, inventara a decisão de se internar. . . para se garantir.
Forma-se 11ma multidão, os médicos discutem o caso, mostrando-se suas rivalidades e
palavrórios especializados. Chega a polícia, o carro de bombeiros, o secretário das finanças com
quem de início o "louco" é confundido, e até o secretário de segurança e justiça.
Quando ameaçam resgatá-lo, o homem tira os sapatos e depois as roupas, repetindo dizeres
que o tomam para os estudantes "um dos seus", para os médicos os mais variados diagnósticos,
para o capelão um endemoniado e, para o resto da multidão, um herói . . .
Entretanto, o homem volta do "delírio" e pede "socorro".
A multidão quer linchá-lo mas "a vida vence" - ele é salvo e protegido, após o último berro:
Viva a luta! Viva a liberdade!
O conto termina com uma irônica desconfiança do narrador-personagem sobre o comporta
mento do colega Adalgiso: ajuizado, correto, circunspecto demais . . . Visto que, no sonho geral,
permanecera insolúvel.
Comentário
Fatalidade e Darandina são duas estórias satíricas: a primeira dá um tom irônico, "ilustrado",
à fatalidade do cumprimento da justiça, da punição da maldade, não exatamente pela lei, mas pela
graça . . . Isto é, pela astuciosa intervenção de um homem sábio e ao mesmo tempo uma autoridade
(Meu Amigo, delegado de polícia), fazendo com que se cumpra - fatalmente - o destino . . .
A segunda estória, Darandina - a única do livro que acontece em ambiente urbano, na cidade
- satiriza o tema da loucura através de um episódio inesperado e de suas conseqüências. As
reações do "louco", dos médicos, dos políticos, dos estudantes, do padre, de Adalgiso (impassível
diante do evento) e da multidão revelam ironicamente as perguntas implícitas no texto: quem é
louco? Quem é são?
Estórias dissertativas
1. O Espelho
Tema: o visível como "ilusão" do real: o invisível
Tom: dissertativo/persuasivo
Narrador: 1 a pessoa
Protagonista: um autodidata, que relata seus raciocínios e intuições
Enredo: num contexto de polêmica, o narrador-personagem conversa com um interlocutor,
cujos argumentos recria e refuta, defendendo a tese de que é ilusória a imagem que vemos de nós
mesmos nos espelhos.
Utilizando-se de argumentos "científicos", de superstições entendidas "como bases de
pesquisas", dizendo-se lógico e racional, o narrador-personagem relata o processo que vivera ao
buscar a verdadeira imagem - a imagem não distorcida - nos espelhos. Para isso, olha no espe
lho excluindo, abstraindo, os fatores que considera responsável pela deformação: o bicho com o
qual se parece (a onça); os traços hereditários; a materialização, no rosto, das paixões, das pressões
psicológicas, das idéias e sugestões dos outros, dos interesses efêmeros.
Chega, enfim, à total simplificação de sua figura, que é a desfiguração: olha-se no espelho e
não se vê, o que o leva à conclusão terrível da não existência, em si, de uma alma. . . .
Deixa de se olhar no espelho por muito tempo. Quando volta a fazê-lo - ao fim de uma
<( ocasião de sofrimentos grandes - vê uma luzinha . . . Que luzinha, aquela, que de mim se emitia,
Cl
para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo.
�
z
Assim, confirma a verdadeira tese que pretende defender, ao longo do conto.
w Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida?
� Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo (. . .) porque vivemos, de modo
o incorrigível, distraídos das coisas mais importantes.
u
<( 2. A benfazeja
a:
::J Tema: a "santidade" amaldiçoada, incompreendida
�
a:
Tom: interpelativo
Narrador: 12 pessoa (alguém do povoado)
w
1- Protagonista: Mula-Marmelo
::::i
- Enredo: o narrador fala às pessoas do povoado sobre o engano que cometem ao amaldiçoarem
Comentário
Ambas as estórias são dissertativas, argumentativas. Nelas há afirmações e fatos-exemplos,
em tom de interlocução, de persuasão.
Em O espelho, mais uma vez Guimarães Rosa recria literariamente a realidade do que parece
irreal: o invisível, o impalpável, a ponta de mistério que existe tanto nos fatos quanto na ausência
deles e de que nos distraímos, ingenuamente apegados a "imagens", a "aparências".
Enquanto nesta estória o narrador-personagem se utiliza de argumentos "científicos",
"racionais", para questionar a ciência, a razão, que - simplificadas, banalizadas - acabam justi
ficando o senso comum, as deformações que associam o real ao visível - em A benfazeja per
manece a argumentação, mas em outro "tom".
Agora, "alguém do povoado" quer resgatar a santidade que é confundida com o pecado, a ben
fazeja que todos consideram a abominada.
Relatando a sina de Mula-Marmelo, o narrador-personagem em contexto agora religioso
inverte o senso-comum, mostrando que há santidade no pecado, há "razão" na loucura, há um sen
tido oculto na aparente falta de sentido, há "o bem" que afasta "o mal" sem que se perceba, sem
que se compreenda. Assim, a nossa distração das coisas mais importantes nos torna incapazes de
entender os outros (A benfazeja) e a nós mesmos (O espelho).
Reminiscências
1. Pirlimpsiquice
Tema: o encantamento provocado pela arte vivenciada/ o "desmedido momento"
Tom: do suspense ao lirismo
Narrador: l a pessoa (um menino)
Protagonista: o menino
Comentário
Em ambas as estórias, a interpenetração de enredos, a mistura entre arte e vida, a indelimitação
de fronteiras entre fantasia e realidade.
Na primeira (Pirlimpsiquice), o tema do mistério, já comentado, e também o do desmedido
momento, vivido pelo menino da última estória (Os cimos). Agora, o instante que se prolonga sem
começo e sem fim vem do encantamento provocado pela arte que de representada, ensaiada, passa
a espontaneamente vivenciada. Como em Partida do audaz navegante, em que a fantasia da
Brejeirinha é realizada por Zito e Ciganinha . . .
Enredo: uma vaca, por querência, foge de uma boiada para voltar ao seu lugar. Nada a desvia,
de todos os impecilhos se desembaraça. Um dos filhos do Seo Rogério, o dono da boiada, põe-se
a persegui-la, sem saber porque. E atrás dela chega à fazenda do Major Quitério, a qual também
se torna o seu lar. . . Reconhece amar a segunda das quatro moças da casa, o que sucede graças ao
acaso ou talvez ao destino que provocara tão insensata perseguição.
2. Substância
Tema: a descoberta do amor/ o "desmedido momento"
Tom: lírico-amoroso
Narrador: 33 pessoa (onisciente)
Protagonista: Maria Exita
Enredo: Sionésio, produtor de polvilho, emprega Maria Exita, de mãe leviana, pai leproso e
irmãos assassinos.
Fazendo a pior parte do serviço - partir o polvilho nas lajes - ela, no entanto, não parecia
padecer, antes tirar segurança efolguedo, do triste, sinistro polvilho, pórtentoso, mais a maldade
do sol.
Sionésio apaixona-se por sua beleza, pela imensidão de seu olhar, pela doçura de seu sorriso,
artes como um descer de anjos.
Não consegue tirá-la da cabeça, vigia-a nos bailes, mas ela é diferente, ninguém a quer de
medo da doença do pai, da má vida da mãe, da violência dos irmãos.
<( Sionésio, então, procura Maria Exita no trabalho e - antes de lhe falar - os mencionados
o motivos o perturbam.
�z Mas era o exato, o grande, o repentino amor - o acima.
Acontece com eles o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. Só o um-e-outra, um
w
� em-si juntos, o viver em ponto sem parar, coraçãomente: pensamento, pensamor. Alvor.
o Avançaram, parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os Pássaros.
u
<(
a: Comentário
::>
!d:a: Na 1! estória (Seqüência), outro agente do destino que se manifesta por
acaso que move as pessoas, para encontrarem o amor. E também a animização dos animais - a
ocultos caminhos: o
w vaca que tem querência - e da natureza, presente e� grande parte dos textos do escritor.
�
::i Em Substância, o tema da descoberta do amor se aproxima do da santidade em meio ao peca
- do - Maria Exita, que lembra Mula-Mármelo (de A benfazeja) - e do desmedido instante - o
Enredo: com a presença de todo o povoado, a Filha e a Mãe de Soroco partem num trem que
as levará ao hospício de Barbacena. A moça começa a entoar uma cantiga incompreensível, acom
panhada pela mãe. Após a partida, que é "para sempre", Soroco, muito triste, retoma a mesma
cantiga. Todos os presentes também cantam, num momento de solidariedade e comunhão:Todos,
no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de
Soroco (. . .) A gente, com ele, ia até onde que ia aquela cantiga.
2. A menina de lá
Tema: loucura/ santidade
Tom: lírico-metafísico
Narrador: 3a pessoa (testemunha)
Protagonista: Nhinhinha, uma menina de menos de 4 anos, que faz milagres
Enredo: Nhinhinha é uma menina que conversa com a natureza e os bichos, que sabe que vai
morrer (como conta ao narrador e à tiantônia) e que faz "milagres" que os adultos não entendem
e de que querem tirar proveito. . . A menina morre e a mãe espera - o caixãozinho cor-de-rosa com
verdesfune-bri/hos - o que a menina desejara e que aconteceria por mais um "milagre", o de sua
filhinha em glória, Santa Nhinhinha.
3. A terceira margem do rio
Tema: loucura! sina
Tom: lírico - metafísico
Narrador: la pessoa (o filho)
Protagonista: o pai
Enredo: o pai, homem calado e cumpridor, constrói para si uma canoa e com ela vai viver no
no.
A família, abandonada, nunca o esquece, especialmente o filho, que lhe leva alimentos com a
cumplicidade silenciosa da mãe (Nossa mãe nunca não se demonstrava), e o justifica aos outros e
a si próprio. Sem compreendê-lo mas se identificando, cada vez mais, com sua "sina", o filho
envelhece e um dia grita ao pai, da margem do rio, oferecendo-se para tomar-lhe o lugar. . . O pai
vem da parte de além em sua direção, concordando, e o filho foge num procedimento desatinado.
Entre a culpa cuj o motivo não sabe mas intui e o pedido de perdão, o filho aguarda, após a morte,
o cumprimento do destino . . .
Enredo: um moço muito branco - claro como o olho do sol, espiador de estrelas - sobre
vive a um terremoto e a um temporal ocorridos na comarca de Serro Frio, em Minas Gerais.
Desmemoriado, passa a viver com Hilário Cordeiro. Todos gostam dele, silencioso e branco
como um anjo.
Duarte Dias - um homem mau, perverso - tenta de todas as formas ficar com o moço, o
qual dá sorte e faz milagres: diz blasfêmias a seu respeito; afirma pertencer a sua família e, quan
do o moço toca o seio de sua filha Viviana, tornando-a para sempre alegre - quer forçar o casa
mento. Nenhuma das artimanhas é bem sucedida.
Então, Duarte Dias implora a Hilário Cordeiro a presença do moço, em nome da muita afeição
que lhe tem. O moço o pega pela mão e faz com que ache em sua própria terra - cavando - uma
gupiara de diamantes ou um panelão de dinheiro (depende da tradição dessas antigas estórias).
Após dar a um cego um caroço de árvore que, plantado, transforma-se num azulado pé deflor,
o moço branco desaparece com o preto endoidecido pelas mesmas catástrofes, José Kakende - o
qual diz ter o moço acendido nove fogueiras e outras estranhezas.
Duarte Dias morre de dó e os outros experimentam uma saudade e meia-morte, só de imagi
narem nele. Ele cintilava ausente, aconteceu.
6. Nenhum, nenhuma
Tema: a memória
Tom: lírico-metafisico
Narrador: 3'!. pessoa (espécie de testemunha inconsciente)
Protagonista: o Menino
Enredo: o Menino tenta, através de impressões confusas, evocar um lugar: uma velha casa de
fazenda, o escritório da casa, a escrivaninha vermelha cujo cheiro nunca mais houve.
No escritório, um homem velho sem aspecto, que seria o pai da Moça, linda e misteriosa, a
qual trocava olhares com o Moço, de quem o menino tem ciúmes.
Um quarto escondido uma velha, uma velhinha - de história, de estória - velhíssima, a ina
creditável. Sem saberem seu nome, chamaram-na "Nenha".
A Moça cuida da velhinha, com amor. E pede ao Moço que a espere, até a hora da morte, não
do pai nem da velhinha, mas de ambos, para saberem se era o certo, o único, o amor de ambos. O
Moço, optando pelo viver comum, dá-lhe as costas. O Menino o acompanha, contra tudo o que
sentisse e percebe que se gostasse dele, estaria de alguma forma perto da moça: a mais formosa
criatura que jamais foi vista, que poderia ser a princesa no castelo, na torre.
O Menino chega em casa e desconhece os pais, agredindo-os por eles serem alheios à expe
riência fantástica que vivenciara, sem saber quando, onde, nem porque...
<t:
o
�
z
Comentário
w As seis estórias que escolhemos para finalizar os conjuntos de enredos que criamos, parecem
� nos conter os principais elementos comentados nas demais, além de aprofundá-los.
o
(j Em Soroco, sua mãe, sua filha, a loucura não compreendida mas testemunhada, deflagra a
<t: comunhão entre as pessoas, a solidariedade, que também acontece com os empregados em relação
c: aos patrões (O cavalo que bebia cerveja, Tarantão, meu patrão).
:::>
�c: Em oposição, há a loucura amaldiçoada, renegada, de Mula-Marmelo (A benfazeja), a loucu
ra "cientificamente" provada de O espelho, a loucura satirizada de Darandina.
w Há, ainda, a loucura santificada de A menina de lá, de Um moço muito branco, de Nada e a
f
_J nossa condição. Nestas três estórias os seres hieroglíficos, desmemoriados, transitórios cons
- tituem os agentes da loucura. Uma loucúra que se traduz como acaso, sina, fatalidade, astúcia,
fazendo brotar o amor (Seqüência, Substância, Luas de mel), a justiça (Os irmãos Dagobé,
116
Famigerado, Fatalidade), a fantasia dos "desmedidos momentos" (As margens da alegria, Os
cimos, Pirlimpsiquice, Partida do audaz navegante).
Em A terceira margem do rio, o filho se identifica com a loucura do pai ao mesmo tempo em
que não a entende. Ou, talvez, a intua sem saber dizê-la, por medo, culpa ou, ainda, por ser ela "o
insolitíssimo", o indizível, o infinito representado neste conto pelo rio, pelo fluir das águas nas
quais o pai permanece, sem nunca chegar a nenhuma das duas margens.
E a terceira, onde está? O que representa?
A nosso ver, a terceira margem do rio é a grande metáfora que aproxima todas as estórias
de que falamos: da sua pluralidade, da aparente diversidade de enredos, vem se delineando um uni
verso sem contornos, um universo ancestral, mitopoético, que nos parece estar concentrado - de
forma especial - no conto Nenhum, nenhuma.
Povoado por Nenha - a velhinha de história, de estória - velhíssima, a inacreditável, pela
Moça que é a maisformosa criatura que jamais foi vista, que poderia ser a princesa no castelo,
na torre, o conto faz a metalinguagem de todo o livro: a busca da memória não individual mas
coletiva, a procura, através do não-saber, da sabedoria mítica, metafisica, poética.
Esta sabedoria é a única que torna possível entender, ou melhor, pressentir em que sentido um rio
pode ter uma terceira margem, em que sentido um velho fazendeiro, como o tio Man' Antônio, pode
virar alguém que podia ter sido o velho rei ou o príncipe mais moço, nasfUturas estórias defada.
Personagens
Você já percebeu que os personagens de Primeiras estórias são as crianças, os loucos, os ve
lhos, os seres rústicos e "em disponibilidade", na expressão de Walnice Nogueira Galvão. Por
estarem à margem do processo produtivo, por não possuírem o que chamamos de "civilização" ou
"cultura", por pertencerem a universos primitivos, alógicos, estes seres podem ceder ao encanto,
à iluminação que transcende os conflitos, na opinião de Alfredo Bosi.
Este encanto, esta iluminação, na opinião de Benedito Nunes, faz com que
não haja de um lado o mundo e de outro o homem que o atravessa. Além de viajante, o homem
- como você testemunhou ao longo das estórias - é a
viagem - objeto e sujeito da travessia, em
cujo processo o mundo se faz.
Um mundo reinventado. Um mundo onde reina a poesia dos contos de fadas, a magia do sertão
sem fim, a maldade do Demo e a santidade dos desvalidos, dos esquecidos, dos que por não
saberem o que se considera o saber tomam-se videntes.
Linguagem
<(
o
�
z
w
�
o
u b) Os elementos que demonstram a intencional elabo
<( ração de linguagem no primeiro período transcrito,
a: podem ser as marcas de oralidade, a presença de uma
::>
El
a) A terceira margem do rio é a metáfora da " loucura " que fala que resgata o universo da cultura popular e a busca
�
a:
faz um homem afastar-se da família e ir viver dentro de
uma canoa, no rio. Trata-se de uma metáfora que alude
da sonoridade poética, através da qual percebemos a
linguagem de João Guimarães Rosa num momento
w à dimensão mística, metafísica, mitopoética da existên estratégico de elaboração intencional: Cê vai, ocê fique,
1-
cia humana, tematizada em especial neste, mas tam você nunca volte! As três expressões grifadas indicam
:J
---,
bém em outros contos de Primeiras estórias. de João o processo de fusão da linguagem popular, oral, regio
Guimarães Rosa. nalista com a l i nguagem erudita, universal.
118
CLARICE LISPECTOR
Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzivel,
é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocante.
"
LAÇOS DE FAMIUA
A violência represada dos sentimentos primários que, de repente,
explodem é um traço comum nos personagens de Clarice
Lispector. (Berta Waldman - Clarice Lispector).
Narrador
Laços de família é o primeiro livro de contos de Clarice Lispector. Oito dos treze
contos (Devaneio e embriaguez de uma rapariga [conto de abertura], Amor, A imitação
da rosa, Os laços de família, Feliz aniversário, Preciosidade, Mistério em São
Cristóvão e O Búfalo) tratam da condição feminina no contexto familiar.
Nos quatro contos restantes ( Uma galinha, A menor mulher do mundo, Começos de
uma fortuna e O crime do professor de matemática), a escrita continua presa ao univer
so familiar, privilegiando outros membros da família.
Nos doze contos em terceira pessoa, o foco narrativo caracteriza-se pela onisciên
cia do narrador, que desvenda a interioridade dos personagens através de um movi
mento ora de cumplicidade, ora de distanciamento em relação a eles.
A cumplicidade, ou adesão, ocorre por intermédio do discurso indireto livre, da
apresentação do fluxo de consciência dos personagens femininos, como veremos no
exemplo abaixo.
Ai, palavras, palavras, objetos do quarto alinhados em ordem de palavras a
formarem aquelas frases turvas e maçantes, que quem souber ler lerá.
Aborrecimento, aborrecimento, ai que chatura. Que maçada. Enfim, ai de mim,
seja lá o que Deus bem quiser. Que é que se havia defazer. Ai, é uma tal coisa que
se me dá que nem bem sei dizer. Enfim, seja lá bem o que Deus quiser. E dizer que
se divertira tanto esta noite! E dizer que fora tão bom, e a gosto seu o restaurante,
ela sentada fina à mesa! Mesa! gritou-lhe o mundo. Mas ela nem sequer a respon
der-lhe, a alçar os ombros com um muxoxo amuado, importunada, que não me
venhas a maçar com carinhos; desiludida, resignada, empanturrada, casada, con
tente, a vaga náusea. (Devaneio e embriaguez de uma rapariga).
Observe que o narrador contrapõe a terceira (. . . e dizer que se divertira tanto esta
noite) à primeira pessoa (Ai, é uma coisa que se me dá que nem bem sei dizer), aproxi
mando-se da personagem sem explicar-lhe os sentimentos, mas expondo-os tal como \li! ascida em Tchetchelnik, aldeia da
surgem, confusos, repetitivos, calados... Lllll Ucrânia, em 1 925, e morta no Rio de
Este procedimento distingue os textos de Clarice dos romances de análise intros Janeiro, em 1 977, Clarice Lispector, brasilei
pectiva, já que nos de Clarice o olhar de míope se cola aos personagens, desvenda-os ra naturalizada, passou a infância no Recife,
mudando·se para o Rio de Janeiro entre os
com a minúcia, com o apego ao detalhe sensível, que segundo Gilda de Mello e Souza
1 2 e 13 anos.
caracterizam o universo feminino, um universo de lembrança ou de espera, como mos Em 1 944, com apenas 19 anos, publicou
tra o exemplo transcrito, revelado com luminosa nitidez de contornos. Perto do coração selvagem, romance que
causou estranheza à crítica, peias novidades
O feminino é assim femininamente representado, por empatia e não por esforço ê5
que traz1a: a sondagem d o mundo mtenor, as l
racionalizador, embora, nos momentos de distanciamento, o narrador traduza o silêncio
profundezas do subconsciente relativizando o U
deste universo, e também as suas atribuições socialmente definidas. enredo, a ação, como em Virginia Woolf,
James Joyce e Mareei Proust.
�
cn
A i, que cousa que se me dá! Pensou desesperada. Teria comido demais? A i, que Além de outros romances, como A paixão ::J
causa que se me dá, minha santa mãe! segundo G.H., A maçã no escuro e Água w
Era a tristeza. viva, Clarice publicou alguns livros de U
Acordou com o dia atrasado, as batatas por descascar, os miúdos que volta contos, sendo o primeiro Laços de família, a:
riam à tarde das titias, ai que até me faltei ao respeito!, o dia de lavar roupa e cer um verdadeiro mergulho nos bastidores do
universo familiar, e em especial na "doce
:::S
zir as peúgas, ai que vagabunda que me saíste!, censurou-se curiosa e satisfeita, ir u
náusea" da condição feminina dentro deste -
às compras, não esquecer o peixe, o dia atrasado, a manhã pressurosa de sol.
umverso. O
(Devaneio e embriaguez de uma rapariga)
;;;;;; 119
No segundo parágrafo, o narrador, com a frase Era a tristeza,
Não será difícil apontar na literatura femini
verbaliza a indizível sensação da personagem expressa no primeiro
na a vocação da minúcia, o apego ao
detalhe sensível na transcrição do real (. . . ). parágrafo. No terceiro parágrafo, o mesmo narrador informa a per
Ligada aos objetos e deles dependendo, sonagem das batatas por descascar, das crianças por cuidar, da
presa ao tempo, em cujo ritmo se sabe fisio roupa por lavar e das peúgas (meias) por cerzir.
logicamente inscrita, a mulher desenvolve As compras, o peixe, o dia atrasado, quer dizer, as obrigações
um temperamento concreto e terreno, domésticas que precisam ser cumpridas, constituem os elementos
movendo-se como coisa num universo de que reprimem a embriaguez, fazendo com que a personagem retor
coisas, como tração de tempo num univer ne à rotina . . . Assim, mesmo indo além da percepção confusa da per
so temporal (. . .). O universo feminino é um sonagem, mesmo traduzindo-a, o narrador não se afasta do imaginá
universo de lembrança ou de espera (. . . ). E rio da personagem mais que o suficiente para denunciar a estreiteza
como não lhe permitem a paisagem que se de seu universo doméstico, denunciar uma prisão incompatível com
desdobra para lá da janela aberta, (. . .) a a autodescoberta, com o processo de reconhecimento da individua
visão que constrói é uma visão de míope, e
lidade, que ocorre ao longo dos enredos em forma de expressão de
no terreno que o olhar baixo abrange, as
sentimentos primários, em forma de manifestação de um interesse
coisas muito próximas adquirem uma lumi
apaixonado pela existência que momentaneamente transgride as
nosa nitidez de contornos.
limitações do papel social da mulher, sem transformá-lo, entretanto.
(Gilda de Mello e Souza É o que veremos, estudando os enredos desta obra.
Exercícios de leitura)
Enredos
Vamos organizar o nosso trabalho, aproximando os contos pelo modo como abordam a temá
tica dos laços de família, passando em seguida à apresentação sumária dos enredos e comentando
as afinidades entre eles.
Amor
Ana, uma mulher casada e com filhos, bem sucedida na vida familiar, está no bonde voltando
das compras quando vê, numa parada, um cego mascando chicletes. Esta visão a desestabiliza
emocionalmente; ela sente ódio, piedade, prazer, bondade, uma doce náusea da qual costuma fugir
mergulhando no dia-a-dia, em especial quando cai a tarde e não tem o que fazer, e se refugia nos
serviços domésticos.
Sua bolsa de compras cai, alguns ovos quebram, e ela desce no ponto errado. Entra no Jardim
Botânico, observando em êxtase a matéria bruta da vida; as árvores, as flores, a terra. O delírio ao
<(
o qual se entrega, misto de repulsa e fascínio, sedução, é bruscamente cortado pela lembrança dos
�
z
filhos, do jantar que faria aos irmãos com suas famílias.
Ela retoma à casa, o jantar obtém sucesso, e a estranheza do dia se esfumaça ao deitar-se para
w dormir, conduzida pelo marido.
:E
o Uma galinha
u
<( Num domingo em família, a galinha que seria morta para o almoço foge e, após muita persegui
0::: ção, é recuperada pelo chefe da família. De susto, bota um ovo, o que faz com que seja preservada e
::>
�0:::
transformada em rainha da casa até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.
w A imitação da rosa
1- Laura, esposa de Armando, de volta ao lar após um período de internamento numa clínica psi
:::i
......
quiátrica, espera pelo marido para irem jantar, acompanhados por Carlota, amiga antiga, e pelo
marido desta.
180
Ao longo desta espera, obsessivamente procura se prender à sua imperfeição singela de mu
lher afeita à rotina, de coxas baixas e grossas, sem filhos, pouco original e meio chata, desinte
ressante. Ao mesmo tempo a perfeição de umas rosas que comprara na feira de manhã e vai sedu
zindo como se fosse uma das tentações de cristo. No colégio, lera A imitação de Cristo e sentira,
sem entender a obra, que quem o imitasse estaria perdido. Cristo era a pior tentação.
Embora tentasse se defender do abismo ao qual novamente estava se entregando - o abismo
da perfeição de cristo e das rosas, cuj a beleza a transtorna - embora mandasse levar as rosas para
Carlota, a amiga autoritária e prática, que vagamente a despreza, Laura volta ao estado de "tran
se" que fez com que fosse internada. Quando Armando chega encontra a mulher num pedido de
perdão misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita... alerta e tranqüila como num trem.
Quejá partira.
Feliz aniversário
A velha Anita, no dia em que completa 89 anos, é homenageada com uma festa, organizada
pela filha com quem mora: Zilda. Desde a chegada dos convidados, vamos percebendo a medio
cridade, a rivalidade e o egoísmo que fazem das noras, dos genros e dos filhos ratos se acotove
lando em tomo da aniversariante, que fica horrorizada com o que semeara, com a vida que falha
ra. Ela, então, que se mantinha muda e imponente, num determinado momento cospe no chão,
pede vinho e acaba por xingar a todos, com exceção da nora Cordélia (mãe do único neto que real
mente estima), infeliz, mas ainda com uma chance de amar, talvez a última vez. A ela a velha Anita
"diz" em silêncio: É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida
é curta.
A festa termina, todos se vão, e a velha medita sobre o jantar (teria sido substituído pela
festa?). O narrador então nos revela que a morte era o seu mistério.
A menor mulher do mundo
Pequena-Flor é o nome que um explorador francês dá à menor mulher do mundo, de 45 cen
tímetros, escura e peluda como um macaco, descoberta nas profundezas da África. Grávida, ela se
apaixona pelo explorador, que se perturba como só um homem grande se perturba, saindo nos jor
nais e incomodando as famílias: uma mulher se lembra da história de uma antiga cozinheira, que
no orfanato brincava com uma criança morta, outros têm pena, repulsa e indiferença.
O explorador não entende que Pequena-Flor o ame e também à sua bota, pois na umidade da
floresta não há desses refinamentos cruéis - e amor é não ser comido, amor é achar bonita uma
bota, amor é gostar da cor rara de um homem que não é negro, amor é rir de amor a um anel que
brilha.
O jantar
Único conto narrado em primeira pessoa, nele é relatado o jantar de um homem velho por
alguém que de outra mesa do restaurante o observa ora comendo tranqüilo, ora desesperado aper
tando as têmporas com as mãos. O observador através desta imagem mergulha em suas próprias
contradições (o que percebemos pelo discurso indireto livre, também presente neste conto), dolo
rosamente identificando-se com o velho, tomado pelo êxtase da náusea. Quando o velho se retira
do restaurante, o observador sente-se um homem ainda: Não sou ainda esta potência, esta cons
trução, esta ruína. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue.
Preciosidade
Uma adolescente de quinze anos guardava-se da vida com seus sapatos, de ruído feio como
ela, temendo que a olhassem e assim desvendassem o medo secreto que tinha de crescer, de se tor
nar mulher. A preciosidade deste medo era seu maior segredo. No ritual cotidiano de madrugar e a:
pegar um bonde e um ônibus para chegar à escola, um dia dois rapazes a seguem no trajeto a pé. o
Então, quatro mãos erradas de quem não tinha a vocação tocam-na tão inesperadamente que ela t;
w
percebe ser seu medo menor que o deles. Recompõe-se, recolhe do chão os livros e o caderno aber
a..
to, onde viu a letra redonda e graúda que até esta manhã fora sua, chega atrasada à escola e, de CJ)
noite, exige da família sapatos novos, deixando, sem saber por que processo, de ser preciosa. A ::i
esta frase se sucede a seguinte explicação do narrador: Há uma obscura lei quefaz com que se pro
w
u
teja o ovo até que nasça o pinto, pássaro defogo. a:
Os laços defamz1ia :5
u
Catarina leva a mãe à rodoviária, após duas semanas de visita desta à sua família, durante a -
qual mal falara com o genro - Antônio - e estragara o neto, magro e nervoso, com guloseimas.
181
No taxi, em meio a frases rotineiras e convencionais, um solavanco aproxima fisicamente mãe e
filha, numa intimidade de corpo há muito esquecida.
Despedem-se convencionalmente sem que, entretanto, a vertigem daquela revelação de um
afeto reprimido se apague. Catarina volta ao lar, o filho a chama de mãe como nunca o fizera ou
talvez como ela nunca percebera, e ambos saem para um passeio.
Antônio, desconfiado daquela súbita cumplicidade entre a mulher e o filho, fica na expectati
va de que retomem para que o sábado - dia dele, mas com o testemunho da mulher, de que não
pode prescindir - volte ao normal, indo o casal ao cinema depois do jantar.
�
z
não tem remissão.
Ele, então, consciente de que procurava punir-se com um ato de bondade eficar livre de seu
w crime, desenterra o cão anônimo. Assim renova o seu crime para sempre e desce as escarpas em
�u direção ao seio dafamília.
<( O búfalo
a: Uma mulher rejeitada pelo homem que ama vai ao Jardim Zoológico para aprender o ódio
::>
�a: entre os bichos, mas só consegue encontrar amor. A girafa, o hipopótamo, os macacos, o camelo
e até a vertigem na montanha russa ensinam-lhe mais e mais amor . E ela, que precisava conhecer
w o ódio para não morrer de amor, que se perdoasse mais uma vez estaria perdida, que só sabia res
1-
::J ignar-se, suportar e pedir perdão, finalmente defronta-se com um búfalo, olha nos seus olhos, e
...... encontra o ódio que procurava. Seu corpo tomba, então, no chão, e antes de baquear macio, em tão
Personagens
Não tem pessoas que cosem para fora? Eu coso para dentro. . . Assim respondia Clarice, quan
do perguntavam como escrevia. Assim ela constrói seus personagens, aparentemente descoloridos
e desinteressantes, nas funções que desempenham no universo familiar: a dona-de-casa, o marido,
os filhos, a avó, o genro, a nora, os netos etc.
Entretanto, à medida que desvenda a interioridade destes personagens, sem perscrutá-los inte
lectualmente mas olhando-os, tocando-os, aproximando-se deles, dando voz ao seu silêncio, à sua
solidão, Clarice nos ensina o segredo do indizível. Com ela, pela forma como faz das linhas pre
textos de percepção das entrelinhas, aprendemos a paixão da descoberta do humano, do substrato
inquieto da vida que se esconde atrás dos atores, no vão entre silêncio e linguagem, nos bastido
res das representações de cenas aparentemente banais.
Começando e terminando com a rotina, com aquilo que o hábito lambe até dar-lhe uma apa
rência de suavidade - a expressão é de Júlio Cortázar (Histórias de Cronópios e de Famas)
estes contos interessam, prendem, fascinam quando a ação é estrangulada pela emoção, e neste
momento perplexo, passageiro como se não tivesse existido, exatamente neste momento, defronta
mo-nos com a matéria bruta da vida: seu gosto, seu cheiro, sua textura, a indomável violência da
subjetividade represada.
<( Ao explodirem, ao transcenderem a si próprias, ao perderem os contornos que a repetição tor
o
�
z
nou pálidos, descoloridos, as mulheres destes contos revelam que da materialidade de seu univer
so, um universo tradicionalmente de lembrança e de espera, surge o saber de quem não sabe, o
w dizer de quem não diz: este saber e este dizer talvez possam ser expressos pela palavra pulsação.
� Pulsam os sentimentos, pulsam as emoções, as sensações nos momentos de exceção, de suspen
o
u são, em que é como se apalpássemos os corações batendo, a vida acontecendo, desautomatizada e
<( livre, indomável, por um milésimo de segundo sem espaço, sem tempo, sem coerções... Quando
0::: os contos terminam, e fechamos o livro, o que aprendemos é exatamente o que não conseguimos
::J
Éa percepção de um ritmo interior que nos move subterraneamente, que por detrás do
!;3:
c::
explicar.
que aparentamos constitui o que de mais precioso existe em nossa humanidade.
w Assim, os personagens de Clarice são o avesso dos papéis, das funções que desempenham nos
1-
:J laços de família. E no entanto retornam a estes papéis, como nós, leitores, retornamos da leitura
--. dos contos: preocupados com o que fazer, ameaçados pela iluminada fecundidade do instante que
184 vivemos.
Linguagem
Vamos transcrever algumas passagens do livro de Berta Waldman, escrito para uma coleção
chamada Encanto radical, em que fala da linguagem de Clarice:
(. . .) o mundo de Clarice é vivo e sensual. Erotizado, elepulsa de corpo inteiro. Mundo car
regado de cheiros, frutos podres e adocicados, carne crua e sangrenta, cheiro de cal, de mare
sia, de guardados, de estrebaria, de vacas, de leite e sangue. Carregado deformas gelatinosas
e macilentas, de lama, de pus. De musicalidade que ecoa e vibra suas dissonâncias ao som
agudo da flauta e do violino plangente. De telas e mais telas que pretendem alcançar o bran
co sobre o branco.
A convocação de todos esses elementos e de outros mais são recursos tidos como necessá
rios para captar a vida, a existência. Não a existência abstrata, exemplar, mas aquela que se
entranha na banalidade do cotidiano. E isso Clarice consegue captar, de modo magistral, nos
contos (. . .) .
Quem nos conta todas as histórias é Clarice Lispector que se conta através delas (. . .).
O fracasso é também o estigma que a escritora carrega. Entre a realidade, sua matéria
prima, e a linguagem - o modo como vai buscá-la e não a encontra - o seu esforço huma
no e apaixonado é buscar e voltar com as mãos vazias. Com o indizível. "O indizível só me
poderá ser dado com o fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção é que
obtenho o que ela não conseguiu. "
Enquanto nomeia e designa, a palavra jaz surgir, à sua sombra, a multiplicidade do que
não tem nome. Ela trai no que alcança dizer e éfiel quando silencia. Para contar não osfatos
mas seus ecos e ''sussurros", não os personagens, mas suas vibrações e intimidades, não um
caminho mas instantes privilegiados e fugidios, é preciso lapidar as entrelinhas, golpear a
linha e aumentar o cerco do silêncio que rodeia a palavra. Dilacerada, a linguagem mapeia
o dilaceramento dos personagens, sua dispersão. Dispersa, mutilada, a linguagem espelha o
vazio do sujeito à procura da própria imagem de totalidade perdida no mundo em que vive.
Entre a palavra e o silêncio, entre o que diz e o que está implícito em seu dizer, situa-se o
texto de Clarice.
(Berta Waldman - Clarice Lispector)
Vamos, agora, ler um trecho de Laços de família, e procurar perceber a intensidade e a sen
sualidade de sua linguagem.
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no
bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco
procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam
banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim
espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos
poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que
se quisesse ia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela
plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores.
Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cres
ciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo
de fome, o canto importuno das empregadas do edi.ficio. Ana dava a tudo, tranqüilamente,
sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam
dela. Quando nada mais precisava de suaforça, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sóli
da do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava as blu
sas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vaga
mente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com
o tempo, seu gosto decorativo se desenvolvera, suplantara a íntima desordem. Parecia ter des
coberto que tudo era possível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência a:
harmoniosa; a vida podia serfeita pela mão do homem (. . .). o
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pen tw
sou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se
a..
ela estivesse grávida e abandonada. A moral do jardim era outra. Agora que o cego a guiara CIJ
até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundofascinante, sombrio, onde vitórias-régias ::i
boiavam monstruosas. As pequenasflores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou w
rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada . . . Mas u
todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados a:
pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que :5
sentia o seu cheiro adocicado. . . O jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno. u
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra . Sob os -
pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.
185
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com
uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alame
da. Quase corria - e via o jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu
os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de
não a ter visto.
(Amor)
R
11
Como você explica as frases Agora estou bem certo de O búfalo, conto de Laços de família, de Clarice Lispector,
que não fui eu que tive um cão. Foste tu que tiveste uma liil i nicia-se com a seguinte frase: Mas era primavera. Que
pessoa, presentes no conto O crime do professor de relação existe entre esta frase e a trajetória da protagonis
matemática, de Laços de família, escrito por Clarice ta do conto, no Zoológico?
Lispector?
Em que sentido podemos afirmar que há uma relação
El
( U NICAMP) A certa altura do conto Amor (Laços de famí entre o dizível e indizível na linguagem dos contos de
lia), de Clarice Lispector, a personagem Ana assinala o Laços de família?
papel desempenhado por um cego na sua vida; Um cego
me levou ao pior de mim mesma, pensou. Conte como
ocorreu o encontro entre eles e explique o papel do cego
no desenvolvimento da narrativa.
11
Estas frases mostram a relação do professor de matemá Esta frase mostra que o mundo interior, a subjetividade
tica com José, o cão que por ser livre, por ser apenas um represada pelas obrigações, pelos laços de família, cons
cão, ensinou-o a amar com liberdade, com um desprendi titui a dimensão mais importante da construção dos per
mento de amor verdadeiro que se tornou insuportável ao sonagens de Clarice Lispector e de toda a sua literatura,
professor, incompatível com o seu cotidiano reprimido e voltada, como sabemos, para o desvendamento da
alienado. Assim, o professor abandona o seu cão, José, e essência humana que se esconde atrás dos papéis soci
para se perdoar deste crime enterra outro cão, anônimo, ais assumidos pelas pessoas.
que encontra. No entanto, ao perceber não ter remissão
I
o seu crime, o professor desenterra o cão anônimo e A conjunção adversativa mas chama a atenção dos leito
volta para casa, para os laços de família que o impediam res para uma situação anterior ao início do conto, que se
<( de conviver com José, o qual o teve, em vez de ser tido contrapõe à primavera. Depois ficamos sabendo que se
o
�
por ele, por lhe ensinar o que não conseguiu aprender. trata da rejeição que sofre uma mulher, da parte do
homem que ama. Então ela vai ao Zoológico para apren
z O encontro entre Ana e o cego ocorreu quando esta vol der o ódio, para se l ibertar da clausura de amor e de per
w
�
El tava das compras, de ônibus, e viu o cego parado num
ponto. Ele mascava chicletes e esta imagem causou um
dão que a impede de reagir, de manifestar os seus verda
deiros sentimentos. Mas era primavera e os bichos do
o transtorno, um desequilíbrio emocional em Ana, que pas Zoológico só lhe ensinam o amor do qual ela tenta fugir,
u
sou a sentir ao mesmo tempo simpatia, piedade, repulsa, até que finalmente um búfalo lhe transmite o ódio que
<( náusea e amor pelo cego. O papel deste personagem na buscava. A mulher desmaia, na vertigem desta sensação.
a:
:::J narrativa é fundamental: através dele, há uma quebra,
Enredo
Publicada pela primeira vez em 1 954 e encenada com grande sucesso em inúmeros
palcos do Brasil e de outros países, esta obra, de João Cabral de Melo Neto, estrutura
se na forma de auto, peça teatral de origem medieval e popular.
Além da grande sonoridade provocada pela predominância de versos em redondi
lha maior (verso de 7 sílabas poéticas, também pertencentes à tradição medieval), de
rimas sem um esquema regular, mas constantes, de repetições de palavras e de versos
inteiros, Morte e vida severina prende a atenção do leitor-ouvinte por combinar simpli
cidade e concentração, fortes imagens visuais e auditivas com uma linguagem muito
próxima do registro oral.
Nela, o autor tematiza o itinerário do retirante nordestino, que parte do sertão parai
bano em direção ao litoral, em busca de sobrevivência, devido à seca e às precárias, se
não insustentáveis, condições de vida, para a esmagadora maioria da população.
A obra possui 1 8 trechos ao longo dos quais Severino, o retirante, primeiro apre
senta-se ao leitor para em seguida ir relatando, com o auxílio de outras vozes, outros
personagens encontrados na travessia, as etapas de que ela se compõe até chegar no João Cabral de Melo Neto nasceu em
N Recife. Pernambuco. em 1 920. Morte e
Recife, onde o rio se encontra com o mar. . . Ora dialogando individualmente com ele,
vida severina. auto de Natal pernambucano
ora funcionando como um coro, tais vozes dão mobilidade aos trechos e ressoam de publicado em 1 965 e encenado no mesmo
modo a contagiar os que seguem as pegadas do protagonista, explicitadas por títulos que ano, com enorme sucesso, no Teatro da
resumem os seus movimentos principais, de forma semelhante às titulações dos capítu Universidade Católica de São Paulo, é o
los dos romances medievais. texto mais conhecido de João Cabral de
Para facilitar o entendimento do enredo de Morte e vida severina, vamos dividi-lo Melo Neto.
Em poesias metalingüísticas de grande
em duas partes: a primeira compreendendo dos trechos 1 ao 9, e que consiste na via
importância como Rios sem discurso.
gem da Paraíba ao Recife; e a segunda compreendendo dos trechos 10 ao 18, nos Psicologia da composição, A educação peta
quais aparecem as experiências vividas pelo retirante na cidade grande. pedra, João Cabral desvenda poeticamente,
com estilo seco e despojado de verbalismos,
]'!: Parte: Do interior da Paralba ao Recife: a o caráter essencial de sua obra: a procura
da palavra·homem, a palavra-coisa, a O
busca da vida x a sucessão de mortes palavra·pedra. que, como queria Drummond
em A procura da poesia. elite sujeito e
tü
Antes de narrar a história de sua vida, Severino, cujo nome de próprio se tomou z
objeto. Dizendo melhor, os poemas de João
comum (elemento que estudaremos na seção Personagens), identifica-se ao leitor no O
Cabral se reúnem numa só entidade, ...J
trecho 1 - "O retirante explica ao leitor quem é e a que vai" - como personificação aparentemente objetivista. impessoal, mas, W
de um tipo humano e brasileiro: o oprimido socialmente, o retirante cuja vida é deter se os lermos bem, são reveladores do mar e :2:
minada pelas condições atmosféricas devido à omissão, ao descaso, às desigualdades do canavial. do l itoral e do sertão. da morte w
econômicas que se mantêm irreparáveis. em vida e da vida que explode, mesmo na O
morte - Morte e vida Severina. ...J
Mas para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
Diplomata de carreira desde 1 945, serviu à
representação do Brasil na Inglaterra,
�
IJl
e melhor possam seguir França, Suíça e Espanha. Membro da <(
a h istória de minha vida, Academia Brasileira de Letras desde 1 969. U
passo a ser o Severino Entre outras obras, João Cabral de Melo O
que em vossa presença emigra Neto escreveu: Pedra do sono; O engenheiro; •<(
Nas etapas desta emigração, o que vemos, através de seus sonhos, é sempre a morte
Psicologia da composição; O cão sem
plumas; A educação peta pedra; Museu de
Q
-
interrompendo a vida. tudo· D
========== 181
No 2� trecho, por exemplo, intitulado Encontra dois homens carregando um defunto numa
rede, aos gritos de: "o irmão das almas! Irmãos das almas! Não fui eu que matei não ", há um
diálogo entre o Severino-retirante e os carregadores daquele corpo, o corpo do Severino-lavrador.
Aqui se alternam quartetos de versos com 7 e 4 sílabas poéticas, e se repetem no 2° verso de
cada quarteto as expressões irmãos das almas (quando a fala é de Severino) e irmão das almas
(quando a fala é dos carregadores de corpo), formando uma espécie de refrão, de ladainha, de
coro, que fortalecem a dramaticidade e o lirismo de muitas partes do texto.
O diálogo nos informa que Severino-lavrador morreu de morte matata, assassinado a bala,
numa emboscada, por Ter uns hectares de terra. ..Ide pedra e areia lavada/que cultivava. As per
guntas de Severino-retirante sobre quem o emboscou e que roças ele podia plantar/na pedra
avara, e também sobre por que o fizeram, as respostas são: - Ali é dificil dizer/irmão das
almas./Sempre há uma bala voando/desocupada "; "- Nos magros lábios de areia/irmão das
almas, dos intervalos das pedras/plantava palha " e "- Queria mais espalhar-se/irmão das
almas,lqueria voar mais livre/essa ave-bala.
Vemos, assim, nas imagens da "ave-bala" e dos "magros lábios de areia", tanto a impunidade
do crime quanto a estreiteza do pedaço de terra que o deflagra: "- Tinha somente dez qua
dras/irmão das almas,/todas nos ombros da serra, nenhuma várzea" ...
Severino-retirante se oferece para ajudar a levar o morto, o que permite que um dos conduto
res possa voltar para casa. Uma fala final deste trecho exemplifica a ironia com que é retratada a
morte, de forma crescente à medida que aumenta o número de cadáveres: " Mais sorte tem o
-
No 3° trecho - O retirante tem medo de se extraviar porque seu guia, o rio Capibaribe, cor
tou com o verão - as imagens das vilas e cidades por onde Severino-retirante vai passar como
um rosário, e da estrada como uma linha, enriquecem-se com a imagem do Capibaribe. O rio
guia, identificado com o homem do nordeste, tem uma sina a cumprir, mas no verão a seca o inter
rompe, e ele se transforma em ''pernas que não caminham... "
Entretanto, o som de uma cantoria orienta o viajante, que encontra, ao segui-la, o segundo
defunto - trecho 4: Na casa a que o retirante chega estão cantando as excelências para um
defunto, enquanto um homem, ao lado de fora, vai parodiando as palavras dos cantores.
Nos trechos 5 e 6, e nos trechos 7 e 8, mais duas interrupções ocorrem na travessia do retiran
te. A primeira (referente aos trechos 5 - Cansado da viagem o retirante pensa interrompê-la por
uns instantes e procurar trabalho onde se encontra - e 6 - Dirige-se à mulher na janela que
depois descobre tratar-se de quem se saberá) decorre do cansaço de Severino. Perante a sucessão
de mortes que testemunha tem vontade de, como o rio, "interromper sua linha", permanecer onde
está.
Vê, então, uma mulher na janela, que lhe parece "remediada" e resolve perguntar-lhe por tra
balho. O diálogo entre o protagonista e a mulher faz com que o primeiro, respondendo às pergun
tas dela, enumere os oficios que já teve (lavrador, vaqueiro, moedor de cana em engenhos, "supor
tar o sol" e, "havendo ou não (trabalho) trabalhar"), enquanto a mulher indaga se sabe "benditos
rezar, cantar excelências, defuntos encomendar. . . " Trata-se de uma encomendadora de mortos,
que "se soubesse rezar ou mesmo cantar " lhe proporia sociedade, "que a freguesia bem dá".
O diálogo então se inverte, Severino quer saber "como a senhora, comadre, pode manter o seu
lar" e ela, rezadora titular de toda a região, responde-lhe: "- Como aqui a morte é tanta,/só é pos
sível trabalhar/nessas profissões que fazem/da morte oficio ou bazar". Enumera por sua vez os
<( ''profissionais da morte" - farmacêuticos, coveiros, "doutor de anel no anular" - denominando
o os "retirantes às avessas", isto é, pessoas que sobem do mar para o ser
�
z
Morte e vida severina é wna das peças tão e cultivam os "roçados da morte", os quais ironicamente "nem é pre
w mais modelares que até hoje foram ciso esperar/pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear... "
� lavradas em língua portuguesa, pelo Nos trechos 7- O retirante chega à zona da mata, que o faz pen
8 plano da construção, pela emoção
concentrada, pela riqueza imagística,
sar, outra vez, em interromper a viagem - e 8 - Assiste ao enterro de
um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que o
<( pela carga afetiva, pelos efeitos
a: levam ao cemitério - a chegada a uma terra "mais fácil, doce e rica"
::J plásticos, pela solidariedade hwnana
enche de esperanças o coração do retirante.
�a: com que se consegue penetrar o
ouvinte.
Mas, em vez de gente ele vê apenas, numa várzea, um bangüê velho
w em ruína, o que o leva a conclusões apressadas: "Por onde andará a
t Antonio Houaiss gente/ que tantas canas cultiva?I Feriando: que nesta terra/ tãofácil, tão
::i
doce e rica,/ não é preciso trabalhar/ todas as horas do dia,/ os dias
.......
Drwnmond, mais seis poetas e
um problema todos do mês,/ os meses todos da vida... "
188
Tais conclusões são desmentidas no trecho 8, um dos mais conhecidos do texto, no qual o coro
dos amigos do morto é uma forma de condenar, agora mais concentradamente, o que já vinha
sendo denunciado desde o início: a desigualdade social, o extremo desamparo dos pobres perante
o latifúndio, o coronelismo, as grandes oligarquias.
Os versos dirigem-se ao morto, cuja cova "é a parte que te cabe/ neste latifúndio, é a terra
que querias/ ver dividida", é onde "estarás mais ancho/ que estavas no mundo", é onde "mais que
no mundo/ te sentirás largo... "
Assim, o trabalho exercido com justiça e dignidade associa-se com a terra de que, "além de
senhor/ será homem de eito e trator ( . . .). Serás semente, adubo, colheita" numa terra que "Também
te briga e te veste:/ embora com o brim do nordeste".
Esta enumeração de imagens acaba por identificar o homem morto com a terra onde deveria
"-Se abre o caixão e te abri
trabalhar, de onde precisaria tirar o seu sustento, mas que agora. . .
ga,/ lençol que não tiveste em vida; - Se abre o chão e te fecha,/ dando-te agora cama e cober
ta;/ - Se abre o chão e te envolve,/ como mulher com que se dorme".
No trecho 9 - O retirante resolve apressar os passos para chegar logo ao Recife - nova
mente Severino fala com o leitor, por um lado afirmando não ter sentido diferença "entre o Agreste
e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui a Mata" e, por outro lado, identificando-se mais com o
rio ( "vive a fugir de remansos,/ a que a paisagem o convida,/ com medo de se deter,/ grande que
seja a fadiga ''), chegar logo "ao fim dessa ladainha", ao Recife, "derradeira ave-maria do rosá
rio, derradeira invocação da ladainha,/ Recife, onde o rio some/ e essa minha viagem se finda...
um muro alto e caiado e ouve, sem ser notado, a conversa de dois coveiros - Severino inicia seu
trajeto pela cidade grande.
Dois coveiros - um do bairro de Casa Amarela e outro do bairro de Santo Amaro - conver
sam, o primeiro querendo deixar o seu cemitério, cujo vaivém de mortos compara com ''paradas
de ônibus, com filas de mais de cem", e o segundo comparando o setor do cemitério onde trabalha
com "a estação de trens: diversas vezes por dia chega o comboio de alguém".
Enquanto isso, afirma o coveiro de Santo Amaro, "As avenidas do centro/ onde se enterram
os ricos,/ são como o porto do mar:/ não é ali muito e serviço: no máximo um transatlântico/
chega ali cada dia/ com muita pompa, protocolo/ e ainda mais cenografia". A estes bairros (den
tro do cemitério) de usineiros, políticos, banqueiros, industriais, etc., contrapõem-se, continua o
coveiro de Santo Amaro, os bairros dos funcionários, dos jornalistas, dos escritores, dos artistas,
dos bancários, etc . . .
O coveiro de casa Amarela reconhece um bairro dessa gente n o cemitério do qual quer sair:
"Raras as letras douradas,/ raras também as gorjetas", e conta ao amigo que conseguiu do admi
nistrador mudar de bairro, não de cemitério.
Então, o interlocutor comenta: "Passa para o dos operários,/ deixas o dos pobre vários;/ me
lhor, não são tão contagiosos,/ e são muito menos numerosos".
A conversa prossegue com ambos os coveiros falando dos indigentes, "da gente retirante/ que o
1-
vem do sertão de longe... Não podem continuar,/pois tem pela frente o mar./ Não tem onde tra w
z
balhar/ e muito menos onde morar... essa gente do sertão/ que desce para o litoral, sem razão,
o
fica vivendo no meio da lama,/ comendo os siris que apanha;/ Pois bem: quando sua morte chega/ ...J
temos que enterrá-los em terra seca.. . " com a sugestão de que morressem no rio, facilitando o tra w
�
balho deles. Enfim, a conclusão a que chegam é de que o erro dos sertanejos é virem seguindo "seu
w
próprio enterro". c
Severino, após ouvir tais palavras, aprende que "nessa viagem que eu fazia,/ sem saber desde ...J
o Sertão,/ meu próprio enterro eu seguia. . . " e encontra como solução apressar a própria morte,
<(
a:
como o coveiro a descrevera/ jogar-se no Capibaribe "que o rio, aqui no Recife,/ não seca, vai toda co
a vida. . . " (trecho 1 1 - O retirante aproxima-se de um dos cais do Capibaribe).
<(
u
Do trecho 12 ao 13 ocorre o encontro de Severino com Seu José, um mestre carpina que defen o
de a vida, "mesmo que em retalhos, a vida de cada dia, que cada dia deve ser conquistada". Após t<(
o trecho 1 2 (Aproxima-se do retirante um morador de um dos mocambos que existem entre o cais
o
...,
e a água do rio) há a notícia do nascomento de uma criança, filha do carpinteiro (trecho 1 3 - Uma -
mulher, da porta de onde saiu o homem, anuncia-lhe o que se verá), e nos trechos 1 4 (Aparecem
189
e se aproximam da casa do homem vizinhos, amigos, duas ciganas, etc.), 15 (Começam a chegar
pessoas trazendo presentes para o recém-nascido), 1 6 (Falam as duas ciganas que tinham apare
cido com os vizinhos) e 1 7 (Falam os vizinhos, amigos, pessoas que vieram com presentes, etc.) a
celebração do evento transcorre.
Os presentes humildes dos amigos, os prognósticos das ciganas vindas dos "Egitos" (a primei
ra vendo a criança como um futuro pescador e a segunda, como um operário, alguém de condição
e de moradia melhores), as falas dos presentes, reconhecendo que "o menino magro/ de muito peso
não é, mas tem peso de homem, de obra de ventre de mulher' e poeticamente o descrevendo ("é
belo como o coqueiro/ que vence a areia marinha... ", "é tão belo como um sim/ numa sala nega
tiva ", ... "belo porque corrompe/ com sangue o novo a anemia... ") criam a atmosfera do trecho 1 8,
que finaliza o poema.
Nele - O carpina fala com o retirante que esteve fora, sem tomarparte em nada - o pai do
menino recém-nascido mostra o filho como fato-exemplo de que a vida deve ser celebrada ela pró
pria, que a sua explosão - que assemelha ao nascimento de mais um pobre o renascimento da
existência - pode inverter a seqüência de sombras em que mergulhara o retirante, e com ele o lei
tor, e substituí-lo por outra resposta: "E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida:/ vê-la
desfiar seu fio,/ que também se chama vida,/ ver a fábrica que ela mesma,/ teimosamente, se fabri
ca,/ vê-la brotar como há pouco/ em nova vida explodida;/ mesmo quando é assim pequena/ a
explosão, como a ocorrida;/ mesmo quando é a explosão/ corno a de há pouco, franzina;/ mesmo
quando é a explosão/ de uma vida severina".
Personagens
Além do mestre carpinteiro que representa a possibilidade de esperança na vida através da
própria vida se fazendo e refazendo, o protagonista da obra, seu personagem modelar de quem o
mestre constitui a "outra face", é o retirante personificado por Severino. Vamos, então, analisá-lo.
No primeiro trecho, ele se apresenta aos leitores - pessoas letradas e pertencentes ao mundo
urbano - chamando-os de "Vossas Senhorias" e inicialmente procurando distinguir-se enquanto
indivíduo.
Para fazê-lo, detalha ao máximo o seu nome - "é o Severino/ da Maria do Zacarias,/ lá da
Serra da Costela,/ limites da Paraíba". Entretanto, isso ainda diz pouco: "Se ao menos mais cinco
havia/ com o nome de Severino/filhos de tantas Marias/ Mulheres de outros tantos,/já finados,
Zacarias,l vivendo na mesma Serra/ magra e ossuda em que eu vivia".
Neste trecho que inicia o auto, um de seus eixos temáticos fundamentais pose ser notado com
facilidade: o anonimato de uma gente cuja vida só tem a morte como horizonte - "E se somos
Severinos/ iguais em tudo na vida,/ morremos de morte igual,/ mesma morte severina,/ que é a
morte de quem se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ defome um
pouco por dia/ de fraqueza e de doença! é que a morte severina/ ataca em qualquer idade/ e até
a gente não nascida".
Repare que a pluralização do nome próprio Severino transforma-o em nome comum, nome
que simboliza a violência e a miséria de vidas tão iguais quanto as mortes .. . "esta morte severina".
Agora, a palavra torna-se um adjetivo que caracteriza a precariedade da existência dos seres
oprimidos pela seca e pelo conservadorismo de um sistema socio-econômico-político opressor, de
estrutura anacronicamente reacionária (os severinos como descendentes do coronel Zacarias, o
<(
o "mais antigo senhor desta sesmaria", e de mães chamadas Marias... ).
z
� A sina, o destino, a fatalidade de "abrandar pedras", de "tentar despertar terra sempre mais
extinta", constitui outro elemento temático que persiste ao longo de todo o texto, cujo conteúdo de
w
denúncia social fica nítido no enredo, na caracterização do personagem principal e modelar
::2:
o do livro, Severino, e, como veremos, no tempo/ espaço e na linguagem da obra.
u
<(
a:
:::> Tempo/espaço
!;:(
a: Morte e vida severina entrelaçam-se a características da
Os aspectos temporais e espaciais de
w Enquanto o tempo é inde
obra estudadas em seu enredo e através de seu protagonista, Severino.
1-
::J terminado cronologicamente, dando-nos a situação da seca como único marcador, que pare
....... ce eternizá-lo, o espaço possui um movimento de deslocamento mais simbólico que real,
embora aconteça de fato.
190
Isto porque a travessia do retirante do Agreste para a Caatinga, da Caatinga para a Zona da
Mata, da Zona da Mata para o Recife, não apenas não muda as suas perspectivas de vida, mas, ao
contrário, apenas intensifica o acúmulo de mortes que o leva a pensar em jogar-se no rio e apres
sar a própria morte.
Assim, tanto o tempo quanto o espaço intensificam o caráter de denúncia social do texto, o qual,
pela simbologia da vida representada via nascimento de uma criança, e via significado desse nasci
mento de acordo com as palavras do mestre carpina, conjuga a denúncia de que se reveste com um
lirismo que não chega nem pretende chegar a seu redentor, reconfortante, mas que colore de tons
substantivamente poéticos a possibilidade de esperanças presente em Morte e vida severina.
Linguagem
Conhecido como o "engenheiro da palavra" por sua poesia precisa, substantiva, elíptica, mais
plástica que musical, João Cabral de Melo Neto surpreendeu alguns críticos ao conseguir conju
gar tais características, que mantem na obra que lemos, com outros recursos que o tornam mais
"legível" e conseqüentemente menos "hermético". Tais recursos estão vivos na linguagem conci
sa mas fluida e permeada de expressões e musicalidade popular de Morte e vida severina, na sedu
ção de sua leitura pelos fortes traços orais, pelas rimas e repetições que não enfraquecem, mas, ao
no lirismo que soletra a vida e a
contrário, intensificam a tensão dramática, e principalmente
celebra, ao mesmo tempo em que denuncia de forma implacável os fatores que a impedem
de expandir-se: a seca e os arbítrios, os desmandos, os responsáveis por ela e por suas con
seqüências.
Vamos terminar este trabalho com a opinião de um estudioso e mais um fragmento do texto,
para lermos, relermos e reconhecermos sua intensidade enquanto texto literário e enquanto peça
teatral.
- Severino, retirante,
A visão plástica (. . .) é tão predominante em João Cabral de Melo Neto
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta que acarreta o quase amortecimento do lado musical (. . . ). Dessa forma,
da pergunta que jazia, sua poesia pode parecer - ante uma tradição que tem timbrado em
se não vale mais saltar requintar ao lado musical (ejou rítmico ejou tônico) - algumas vezes
fora da ponta e da vida; "dura· aos menos avisados ou mesmo aos pseudo-avisados (. . .). E não
nem conheço essa resposta, estranhará que tenha sido a consciência disso que o tenha levado,
se quer mesmo que lhe diga. quando quer obter efeitos rítmicos mais definidos, aos metros tradicionais
É difícil defender, da redondilha e do romance. Mas a sua repulsa aos apoios fonéticos
só com palavras, a vida, não necessários à sua visão poética é tal, que raríssimos são os casos de
ainda mais quando ela é rimas, salvo as toantes, e estas são freqüentes sobretudo como "molde"
esta que vê, severina; ou "fôrma" para a obtenção de uma certa fixidez poemática (, . . ). Chega
mas se responder não pude à situação de um sábio que esgotou toda a teoria neutra de sua ciência,
à pergunta que jazia, viu que por sua pretensa neutralidade era uma ciência a serviço, viu
ela, a vida, a respondeu mais - que a serviço de uma causa que não era a da ciência mesma
com sua presença viva.
e se perguntou qual seria, pois, aquela ciência sincera, que se pudesse
pôr a serviço do homem . . .
(Trecho 18 - A empina fala
com o retirante que esteve de Antônio Houaiss, obra citada
fora sem tomar parte em o
t
w
nada).
z
o
....J
w
1
As questões de números e 2 referem-se ao seguinte tre a) O trecho possui a predominância de versos em redondilha
�
W
cho de Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto: maior, e de rimas bem marcadas, que embora sem regu- 0
Vejo agora: não é fácil/ seguir essa ladainha;/ entre uma laridade fixam em versos que se alternam uma forte ....J
conta e outra conta,/ entre uma e outra ave-maria,/ há certas semelhança sonora. <(
paragens brancas,/ de planta e bicho vazias,/ vazias até de b) O trecho apresenta uma cadência melódica musical, que a:
donos,/ e onde o pé se descaminha./ Não desejo emaranhar/
o fio de minha linha/ nem que se enrede no pêlo/ hirsuto se por fortes imagens auditivas e visuais.
�
lembra poemas da tradição medieval, a lém de caracteriza-
U
desta caatinga./ Pensei que seguindo o rio/ eu jamais me c) Nos versos 1 a 1 2 as imagens referem-se ao sertão e pos-
suem elementos religiosos (imagens auditivas), que se t<(
O
perderia./ ele é o caminho mais certo,/ de todos o melhor
guia./ Mas como segui-/o agora/ que interrompeu a descida ? combinam com os elementos cromáticos e espaciais (ima- 0
gens visuais), também utilizados como metáforas da caa- ....,
tinga. -
11
E. A combinação entre a dissertatividade e a expressividade E. Esta a lternativa revela, com maior abrangência, pela plu
poética do trecho é um dos grandes fatores de sua qualida ralização e adjetivação do nome Severino, a dimensão de
de artística. seu anonimato.
A. Apenas nesta alternativa se encontram os elementos C. Nesta alternativa estão a disciplina e a concisão da nossa
mais significativos para uma compreensão correta dos enre poesia contemporânea, cujo centro de influência encontra
dos do trecho. se em João Cabral.
C. Esta é a alternativa mais completa enquanto síntese do B. Nesta alternativa estão concentradas as características da
enredo de Morte e vida severiana . poesia de João Cabral, que aparecem no trecho do poema
dado.
LITERATURA
• O culto do contraste • Tom altamente poético
• Pessimismo • Çonhecimento intuitivo e não lógico
• Human ização do sobrenatural • Enfase na imagi nação e na fantasia
• Tendência para a descrição • Desprezo à natureza em troca do místico e do sobrenatura l
• Cu lto da sol idão • Pouco interesse pelo enredo e ação na narrativa
• Retorno ao equilíbrio e à simpl icidade dos modelos greco-romanos • Valorização dos estados de alma e das emoções
• Culto da teoria aristotélica da arte como imitação da natu reza • Interpretação da natureza
• Imposição de uma disciplina literária naciona l • Quanto à linguagem, o impressionismo se caracteriza por:
• O poeta é pi ntor de situações e não de emoções 1 . abandono da estrutura regular da frase, da ordem lógica;
• Condenação da rima 2. uso acentuado da metáfora e do símile;
• Simplicidade, mas nobreza de li nguagem 3 . liberdade de expressão, riqueza de i magens.
• Busca de motivos bucólicos Movimento literário espan hol e hispano-americano do fim do século
• Defesa de uma fu nção social da l iteratura
XIX. No Brasil, o Modernismo teve como marco inicial a Semana de
• Caráter didático e doutrinário
Arte Moderna ( 1 922), em São Paulo.
• Sub j etivismo • Fé • Liberdade criadora Principais objetivos: romper com as tradições acadêmicas; atualizar a
• Senso do mistério • i lo g ismo • Sen ti me nta lis mo literatura brasileira em relação aos movimentos de vanguarda
• Con sci ê n cia da • Culto da natureza • Ânsia de glória europeus e encontrar uma linguagem autenticamente nacional.
solidão • Retorno ao passado • Gosto pelas ruínas o Modernismo no Brasil
• •
�
Reformismo Gosto pelo pitoresco Gosto pelo noturno cn 3a fase (de 1 945 até os dias de hoje)
•
-
• Sonho • Exa g ero • Idealização da mu lher z 1 a fase ( 1 922· 1 930) Romance e Conto:
a=
..... Manuel Bandeira ( 1 886- 1 968) João Guimarães Rosa ( 1 908- 1 967)
Q Mário de Andrade ( 1 893- 1 945) Clarice Lispector ( 1 925- 1 977)
• Preocupação com observação e anál ise da realidade o Oswald de Andrade ( 1 890- 1 954)
• O escritor real ista encara a vida com objetividade � Poesia Contemporânea
• A forma de expressão se caracteriza por: 2a fase ( 1 930· 1 945) João Cabral de Melo Neto ( 1 920- 1 999)
Graciliano Ramos ( 1 892-1 953) Ferreira Gullar ( 1 930)
1 . clareza, equilíbrio e harmonia na composição; Carlos Drummond
2. correção gramatical; preocupação com a perfeição formal; de Andrade ( 1 902- 1 987)
Teatro Contemporâneo
3. retrato fiel dos personagens, por meio de uma linguagem simples; Nelson Rodri g ues ( 1 91 2- 1 980)
José Lins do Rego ( 1 901 - 1 975)
Gianfrancesco Guarnieri ( 1 934)
4. li nguagem próxima da realidade, sem rebuscamentos, natural; Rubem Brag a ( 1 91 3- 1 990)
Chico Buarque ( 1 944)
ESTI LOS DE E POCA NA LITE RATURA
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Purismo
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integração
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