Você está na página 1de 298

Todos os direitos desta edição reservados a Pontes Editores Ltda.

Proibida a reprodução total ou parcial em qualquer mídia


sem a autorização escrita da Editora.
Os infratores estão sujeitos às penas da lei.
A Editora não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta publicação.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo–SP)

B813d Brahim, Adriana Cristina Sambugaro de Mattos (org.) et al.


Decolonialidade e Linguística Aplicada /
Organizadoras: Adriana Cristina Sambugaro de Mattos Brahim, Ana
Paula Marques Beato-Canato, Clarissa Menezes Jordão e Danielle do
Rêgo Monteiro.
1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2023;
figs.; gráfs.; quadros; fotografias.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-654-7.
1. Formação de Professores. 2. Linguística Aplicada. 3. Prática Pedagógica.
I. Título. II. Assunto. III. Organizadoras.
Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:


1. Formação de professores – Estágios. 370.71
2. Didática - Métodos de ensino instrução e estudo– Pedagogia. 371.3
3. Linguagem, Línguas – Estudo e ensino. 418.007
4. Linguística aplicada. 468
Copyright © 2023 – Dos organizadores representantes dos autores
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Revisão: Antonio Henrique Coutelo de Moraes
Editoração: Vinnie Graciano
Capa: Acessa Design

CONSELHO EDITORIAL:
Angela B. Kleiman
(Unicamp – Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR – Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA – Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
(Unicamp – Campinas)
Glaís Sales Cordeiro
(Université de Genève – Suisse)
José Carlos Paes de Almeida Filho
(UNB – Brasília)
Maria Luisa Ortiz Alvarez
(UNB – Brasília)
Rogério Tilio
(UFRJ – Rio de Janeiro)
Suzete Silva
(UEL – Londrina)
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
(UFMG – Belo Horizonte)

PONTES EDITORES
Rua Dr. Miguel Penteado, 1038 – Jd. Chapadão
Campinas – SP – 13070-118
Fone 19 3252.6011
ponteseditores@ponteseditores.com.br
www.ponteseditores.com.br

Impresso no Brasil   2023


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO DE DOIS LIVROS IRMÃOS – Comissão Organizadora DELA-2021 7

A COMISSÃO 11

PENSAR E FAZER LINGUAGENS COM OS NINGUÉNS: PENSAMENTO DECOLONIAL,


EPISTEMOLOGIAS DO SUL E LINGUÍSTICAS APLICADAS ANTICOLONIAIS 15
Marcia Lisboa Costa de Oliveira

ENVOLVER A EDUCAÇÃO SUPERIOR EM DIÁLOGOS DECOLONIAIS: APRENDER, DESAPRENDER E


REAPRENDER 35
Juliana Zeggio Martinez

IDEOLOGIAS LINGUÍSTICAS E OS TERMOS DA CONVERSA: EM QUE LÍNGUA(S) FALAMOS SOBRE (DE)


COLONIALIDADE? 45
Luís Frederico Dornelas Conti

NEOLIBERALISMO COMO UMA FACE DO NEOCOLONIALISMO E UMA CAMADA DE DOMINAÇÃO AO


LADO DA COLONIALIDADE 55
Raphael Barreto Vaz

SOBRE (DE)COLONIALIDADE NA FORMAÇÃO DOCENTE BRASILEIRA NA ÁREA DE LÍNGUAS E


LINGUAGENS 91
Walkyria Monte Mór

DECOLONIALITY AND CRITICALITY IN ELT FIELD: STRUGGLES, UNCERTAINTIES, AND POSSIBILITIES


WITH/FOR STUDENTS AT A PUBLIC SCHOOL 109
Miguel Martinez

EXPERIMENTS IN IMAGINING EDUCATION OTHERWISE AT “THE END OF THE WORLD AS WE KNOW IT” 123
Sharon Stein
PROBLEMATIZANDO A AVALIAÇÃO NO ENSINO DE LÍNGUA INGLESA: UMA TRANSCRIAÇÃO 141
Camila Haus

DECOLONIAL: SER, ESTAR OU FAZER? 165


Lynn Mario Menezes de Souza

SULEAR: UM CONVITE PARA REVERMOS QUEM SOMOS E NOSSAS FORMAS DE SER COM O MUNDO 183
Ana Paula Marques Beato-Canato
Gabriela Veronelli

O JAMAICAN BLUE MOUNTAIN E CONJECTURAS PARA DECOLONIZAR A AVALIAÇÃO EM LÍNGUA


INGLESA 207
Zelir Maria Bieski Franco

DECOLONIALIDADE E PERSPECTIVA SURDA 237


Lídia da Silva
Clóvis Batista de Souza

“NÃO É PORQUE ESTOU NO NORTE QUE FALO A PARTIR DO NORTE”: LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO E
ESSENCIALIZAÇÃO DE IDENTIDADES 243
Jhuliane Evelyn da Silva
Liane von Mühlen

MULTILETRAMENTOS E DECOLONIALIDADE:
REFLEXÕES SOBRE AVALIAÇÃO E AGÊNCIA DOCENTE 265
Alessandra Coutinho Fernandes
Isabel Cristina Vollet Marson

SOBRE OS AUTORES E AS AUTORAS 291


APRESENTAÇÃO DE DOIS LIVROS IRMÃOS1
Comissão Organizadora DELA-2021

Este é um de dois livros que nasceram de um evento chamado DELA – Decolonialidade


e Linguística Aplicada – cuja comissão organizadora foi formada pelas mesmas pessoas que agora
organizam os livros. Somos uma comissão de oito pessoas diferentes, com experiências de vida
e acadêmicas bastante diversas, mas com algumas coisas em comum: nosso interesse pela lin-
guagem e nosso ideal por um mundo em que caibam mais cores e sabores, com uma educação
crítica que contribua para sua construção. Outro ponto de interseção entre nós é que, quando
idealizamos o DELA, a maioria de nós estava iniciando estudos sobre decolonialidade e estava
inquieta com diversas questões. Isso se revelou no DELA, bem como em muitas outras de nos-
sas ações, e ilustra o quanto acreditamos que estamos sendo no e com o mundo e, portanto,
em constante processo de (des)aprendizagem.
O DELA, que aconteceu em uma semana de setembro e outra semana de outubro
de 2021, surgiu da necessidade sentida por dois grupos de pesquisa irmãos (Identidade e Leitura
e Educação Linguística) dos quais participam es2 membres da comissão: problematizar pers-
pectivas decoloniais de dentro da Linguística Aplicada, olhando para as relações possíveis e im-
possíveis entre o pensamento decolonial e práticas de linguagem.
Para tanto, reunimos no evento online pesquisadorus que, em suas diferentes trajetórias,
nos trouxeram entendimentos diversos sobre decolonialidade e sobre linguagem para debate-
rem questões teórico-práticas, vivências e pesquisas em andamento, dentre outros assuntos.
Durante as duas semanas em que nossos encontros virtuais aconteceram, conversamos sobre
o pensar/fazer decolonial e como ele nos possibilita repensar a Linguística Aplicada e o ensi-
no-aprendizagem de línguas. Esses encontros estão linkados no site do evento (dela.ufpr.br)

1 A apresentação está reproduzida no livro “Tempos para (Re)existir e Decolonizar na Linguística Aplicada” pois, como
livros-irmãos, os dois fazem parte de uma mesma ação desenvolvida pela Comissão Organizadora do evento que deu
origem a ambos os livros, como explicamos no decorrer do texto.
2 Optamos por utilizar linguagem não-binária num exercício de alteridade e empatia. Embora saibamos que essa escolha
pode causar estranhamento em algumes leitorus, preferimos arriscar causar tal estranhamento a reforçar a invisibilidade
conferida a pessoas que não se identificam com os gêneros masculino e/ou feminino. Conscientes da polêmica em torno
do gênero gramatical masculino ser um gênero vazio (e portanto alegadamente neutro), preferimos reforçar, com o
uso da linguagem não-binária nesta Apresentação, que mais nos importa a percepção sociocultural da linguagem em sua
performatividade do que questões “puramente linguísticas”, até porque a linguagem, sendo sempre política, não pode
ficar dissociada das pessoas que lhe dão existência.

7
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

e disponíveis no canal do YouTube do Programa de Pós-graduação em Letras da UFPR, que se-


diou remotamente o evento. Recomendamos que assistam e estabeleçam também seus diálogos
com nosses convidades.
Uma das características que intencionamos imprimir ao DELA, e que seguimos buscan-
do nos dois livros inspirados por ele, é trazer algumas das pessoas mais conhecidas no cenário
acadêmico para debaterem as pesquisas/inquietações desenvolvidas por membres dos nossos
grupos de pesquisa. Desse modo, acreditamos ter desafiado a hierarquia de saberes determina-
da por titulação ou mesmo por experiência vivida – buscamos demonstrar assim que saberes
são saberes, independentemente da idade, da titulação, da posição acadêmica ou social de quem
os compartilha.
Outro traço inovador do evento foi a forma de apresentar as pessoas que convidamos:
sugerimos a elas que trouxessem algum elemento artístico como pinturas, músicas, poemas,
em forma de apresentação em slides ou vídeos, que as representassem em alguma medida.
Assim, substituímos as tradicionais leituras do texto introdutório dos currículos Lattes por ele-
mentos estéticos que aludissem, na visão das próprias pessoas convidadas, a suas experiências,
vivências, conhecimentos de mundo. Infelizmente, por respeito aos direitos autorais do mate-
rial escolhido para tais apresentações (músicas, colagens de fotos, vídeos, poemas e outros),
essa parte do evento não foi gravada: funcionou como uma espécie de diferencial para quem
nos assistia ao vivo, em tempo real. Também por questões de direitos autorais não reproduzire-
mos nesse livro o material apresentado, apesar da grande repercussão positiva que essa forma
de apresentação teve com o público e com as pessoas convidadas.
As conversas online no DELA nos deixaram com aquele gostinho de quero mais que eventos
muitas vezes costumam ter. Então resolvemos convidar es palestrantes a traduzirem para o for-
mato escrito suas falas, suas inquietações, suas corpo-políticas, a fim de podermos compartilhar
tudo isso de outra forma, atingindo ainda mais pessoas. Foi desse desejo que surgiram os dois
livros-irmãos que apresentamos simultaneamente, intitulados “Decolonialidade e Linguística
Aplicada” e “Tempos para (re)existir e decolonizar a Linguística Aplicada”.
Ambos vêm, no entanto, com acréscimos: convidamos também as pessoas que integram
os dois grupos de pesquisa que apoiaram o DELA, e que participaram ativamente nos chats
durante as transmissões ao vivo, para submeterem textos em conversa com os debates que ti-
vemos durante o evento. Deste modo, temos ao final de cada livro uma seção com os textos
que não fizeram parte da programação do DELA, mas que estabelecem diálogos absolutamen-
te pertinentes com as discussões no evento. Em ambos os casos, embora tenhamos enviado
sugestões e comentários aos textos submetidos, como é de praxe uma comissão organizadora
fazer, procuramos respeitar ao máximo a estrutura escolhida pelus autorus, assim como suas
perspectivas sobre como deveria ser um capítulo para a obra a que se destinava. Neste senti-
do, os textos que compõem o livro se apresentam com estruturas variadas: alguns referenciam

8
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

seu diálogo com as apresentações e discussões no evento de forma mais explícita do que outros;
certos capítulos se debruçam mais em questões teóricas, outros ressaltam experiências vividas;
há textos que refletem diretamente a perspectiva do evento sobre as relações (im)possíveis entre
a Linguística Aplicada e a (de)colonialidade, enquanto outros nem tanto, mas cabem neste livro
mesmo assim, pois não queremos silenciar a diversidade de olhares sobre campos tão diver-
sos e complexos quanto esses. Além disso, os capítulos também são diferentes entre si quanto
ao seu formato: alguns são textos escritos em moldes mais facilmente identificados com a es-
crita acadêmica, enquanto outros são transcrições das falas do DELA ou, ainda, slides comen-
tados.. Cremos que essa diversidade ajuda a reforçar o que pensamos sobre uma academia
que busca desenvolver ações, iniciativas e projetos decoloniais – uma vez que, como defendido
por Mignolo (2021), por exemplo, não seria possível decolonizar de todo a academia, já que
ela se constitui como produto da modernidade/colonialidade e assim, uma vez decolonizada,
seria inteiramente outra coisa, perdendo seu caráter de academia como a conhecemos.
Enquanto organizadorus, nos dividimos apenas pro forma nos dois livros, pois trabalha-
mos em conjunto comentando todos os textos, independentemente do livro em que apareceriam.
Também tomamos as nossas decisões em conjunto sobre como organizar os textos nas obras:
optamos por apresentá-los conforme a ordem cronológica das apresentações no DELA, mesmo
considerando que nem todas as pessoas convidadas e que efetivamente participaram do DELA
conseguiram enviar seus textos para publicação. Nossa sugestão a todes foi de que, nos casos
em que a revisão dos textos apresentados ou a transposição de suas falas para a escrita não fosse
possível, realizássemos nós mesmes uma transcrição de suas falas no evento para publicar aqui,
e assim o fizemos em alguns casos: quando pertinente, portanto, acrescentamos essa informa-
ção no início de cada um dos capítulos.
Outra observação que nos parece pertinente fazer nessa apresentação é sobre as introdu-
ções a cada um dos livros. Elas foram escritas por convidades, conforme sugestão da comissão
organizadora durante o processo de organização, por serem pesquisadorus que têm tensionado
a Linguística Aplicada à luz de suas experiências e entendimentos de (de)colonialidade, justa-
mente um dos propósitos desses livros. Tal tensionamento, nos parece, ficou bastante evidente
nos textos que produziram para os livros do DELA.
A penúltima observação a fazer é sobre essa apresentação, que vai reproduzida nos dois
livros, uma vez que as diretrizes seguidas pela comissão para organizar ambos foram as mesmas
e, portanto, nos pareceu natural repeti-la.
Como resultado disso tudo, temos dois livros com capítulos em formatos variados e com
enfoques também variados. Esperamos que gostem.

9
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

10
A COMISSÃO

Vamos finalizar essa apresentação com nossos loci de enunciação. Sabemos da impor-
tância de conhecer elementos que, em nossas vidas pessoais e acadêmicas (cuja distinção talvez
não seja tão fácil quanto parece), ajudam a entender de onde falamos e de onde viemos (não
necessariamente para onde vamos). É por isso que trazemos a seguir os textos que escrevemos,
cada membro da comissão, para nos apresentarmos no DELA em 2021. Eles têm uma proposta
de hibridizar o pessoal e o público, o particular e o profissional.

11
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Adriana Cristina Sambugaro de Mattos Brahim


(Doutora em Letras, UFPR)

Sou professora/orientadora em cursos de graduação e na pós-graduação em letras da UFPR. Sou mãe/


amiga da Giuliana e da Giovana, e esposa/amiga do Giuliano. Amo ser educadora linguística na área
da linguística aplicada e, como Paulo Freire amava, também amo estar e aprender com as gentes. Por isso
o DELA 2021 foi a realização de um sonho: o sonho de estar com pessoas que admiro e com as quais
(des)aprendo todos os dias.

Ana Paula M. Beato-Canato


(Doutora em Letras, docente e pesquisadora na UFPR)

Sou uma professora-pesquisadora-linguista aplicada-colega-mãe-amiga-filha-etc. que deseja estar


em eterna (des)construção, em processos de (des)aprendizagens. Por isso, sou muito feliz em ser professora
do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas e do Programa de Pós-Graduação em Letras (UFPR).
Tenho interesses na área de formação docente, educação linguística e questões identitárias.

Clarissa Menezes Jordão


(Doutora em Letras, docente e pesquisadora na UFPR; professora visitante na UERJ)

Solteira, numa parceria estável há mais de 20 anos; tutora de três gatos – dois felinos e um humano,
todos apaixonantes; tem estudado música e canto lírico para enlouquecer um pouco mais depois
de aposentada. Continua lecionando, pesquisando e orientando na área de linguística aplicada dentro
da pós-graduação em letras na UFPR, com interesse especial em pós estruturalismo, inglês como língua
franca/internacional e práxis decolonial

Danielle do Rêgo Monteiro


(Doutoranda em Letras, docente e pesquisadora na UFPR)

É doutoranda em Letras (Estudos Linguísticos) pela UFPR, mestre em Letras (Literatura) pela UESPI
e professora de língua inglesa no Colégio Técnico de Floriano (UFPI). Em Linguística Aplicada, seus
interesses atuais permeiam temas como letramento crítico, letramento racial crítico, questões de identidade,
interculturalidade e " educação como prática de liberdade". Uma mente em processo de decolonização.

Denise A. Hibarino
(Doutora em Linguística Aplicada, docente e pesquisadora na UFPR)

Sou aquilo que faço e acredito. Observo e analiso mais do que falo. Entrego, confio, dou uma surtada
e agradeço – nem sempre nessa ordem 😊

12
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Eduardo Henrique Diniz de Figueiredo


(Doutor em Letras, docente e pesquisador na UFPR)

Filho, pai, esposo, irmão, tio, tocador de violão e percussão, amante de viagens e de música (cervejas
e vinhos aos fins de semana). Professor (e sempre estudante) de linguística aplicada.

Phelipe Cerdeira
(Doutor em Letras, docente e pesquisador na UERJ)

Entre literatura e história, sou também o outro atravessado pelo entrelugar, escrito e falado com a língua
castelhana. Invadido pela curiosidade, vivo a descoberta contínua da sala de aula, escuto o hallazgo
do coração.

Marcos Nogas
(Licenciado em Letras-Polonês na UFPR)

Curitibano, aspirante a polímata, perpétuo antifronemófobos, continuamente tentando ser melhor


que no dia anterior.

13
PENSAR E FAZER LINGUAGENS COM OS NINGUÉNS:
PENSAMENTO DECOLONIAL, EPISTEMOLOGIAS DO SUL
E LINGUÍSTICAS APLICADAS ANTICOLONIAIS

Marcia Lisboa Costa de Oliveira


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

[...] Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.


Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos,
morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número
Que não aparecem na história universal,
aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.
(GALEANO, 2002, p. xx)

Introdução

Com o poema de Eduardo Galeano em epígrafe, trago para meu texto1 aqueles a quem di-
ficilmente esse escrito chegará, os ninguéns cujas experiências são cortadas pelas linhas abissais
modernas e cujos sofrimentos acirraram-se brutalmente durante a pandemia de Covid 19.

1 Este texto foi redigido com apoio do Programa PROCIÊNCIA (DEPESQ /UERJ) e se inscreve em pesquisa de pós-
doutoramento desenvolvida no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, sob a supervisão do professor
Doutor Boaventura de Souza Santos.

15
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

As linhas abissais constituem metáforas da exclusão radical. Elas “dividem a realidade so-
cial em dois universos distintos: o “deste lado da linha” e o “do outro lado da linha” (SANTOS,
2007, p. 72). Do outro lado dessas linhas, estão os Ninguéns. Eles estão nas ruas, em calça-
das de edifícios resplandecentes e sob viadutos nas grandes cidades, estão nos recantos, estão
nos becos, estão nos morros, mares, rios e campos. Estão. Mas não são.
Desumanizados, ninguéns não estudam em universidades, talvez nem mesmo em escolas
públicas. Ninguéns sobrevivem, quando conseguem. Eles não pertencem ao mundo metropoli-
tano em que circulam linguistas aplicades.
Sua exclusão é muitas vezes reforçada nas universidades brasileiras, que tendem a assu-
mir modelos ocidentais euronortecentrados e, apesar de periféricas, nem sempre são capazes
de enxergar o contexto de extremas desigualdades em que se situam. Assim, repensar em chave
de(s)colonial a Linguística Aplicada (LA) significa problematizar não só seu papel, mas também
o lugar daquelus que a ela se dedicam.
Um grande desafio para a LA emerge dessa constatação: como construir alternativas
de pesquisa e de ação que colaborem para a transformação do paradigma colonial/capitalista/
heteropatriarcal?
Os grupos de pesquisa que organizaram a edição 2021 do encontro “Decolonialidade
e Linguística Aplicada”, bem como seus convidades, tomaram esse desafio como ponto de parti-
da para um mosaico de reflexões pluridiversas. O formato inovador do evento permitiu que tan-
to nas intervenções quanto nos debates por elas estimulados, fossem colocadas em diálogo di-
ferentes olhares anticoloniais.
Neste texto, dialogando com as ideias apresentadas no evento, sigo uma proposta de com-
preensão da “família” do pensamento anticolonial elaborada por Boaventura de Sousa Santos
(2022a), para pensar em caminhos possíveis nessa chave.
Na primeira seção, partindo de escritos do Frei Bartolomé de Las Casas, refletirei so-
bre o anticolonialismo tradicional (CASTRO-GOMÉS; MENDIETA, 1998) e teorias pós-co-
loniais. Na segunda, buscarei traçar percursos conceituais do Pensamento Decolonial e das
Epistemologias do Sul, baseando-me na afirmação de Santos (2022a) segundo a qual o que
une essas abordagens é mais do que aquilo que as divide. Sendo assim, destacarei a revisão
do pós-colonial(ismo) como uma interseção entre esses ramos da família anticolonial. Nas con-
siderações finais, buscarei entrelaçar as convergências entre essas vertentes e a proposição
de Linguísticas Aplicadas Anticoloniais.

Pensamento anticolonial e pós-colonial(ismo)

O pensamento anticolonial precede em muitos séculos os estudos pós-coloniais, subalter-


nos, decoloniais e as Epistemologias do Sul. Tecerei, nessa seção, algumas considerações sobre

16
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

o pensamento anticolonial de Frei Bartolomé de Las Casas e as teorias pós-coloniais, com foco
nos Estudos Subalternos e no Grupo Latinoamericano de Estudos Subalternos, do qual, em cer-
ta medida, deriva o Grupo Modernidade/Colonialidade.
No esboço visual a seguir, tentei organizar uma rede de pensamento anticolonial, na estei-
ra das ideias de Santos (2022a):

Figura 1 – Famílias teóricas do pensamento crítico anticolonial

Fonte: A autora.

Nesse gráfico, procurei construir uma possível genealogia. O termo pensamento anti-
colonial é empregado como um rótulo mais abrangente, mas também como um antecedente
dos pós-colonial/pós-colonialismo.
Considerando a oscilação entre os termos pós-colonial e pós-colonialismo, que, algumas
vezes, traduz diferenças teóricas, optei por empregar no título e em menções de caráter mais
geral a justaposição pós-colonial/pós-colonialismo, reservando o uso isolado de cada termo
para contextos teóricos específicos.
Seguindo o gráfico, apresentarei a seguir a família anticolonial.

17
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Antecedentes anticoloniais

O trecho destacado a seguir pertence ao sermão do Frei Antonio de Montesinos proferido


em 1511, o qual teria sido um dos primeiros escritos anticoloniais nas colônias espanholas:

Com que direito haveis desencadeado uma guerra atroz contra essas gentes que viviam pacifica-
mente em seu próprio país? Por que os deixais em semelhante estado de extenuação? Os matais
a exigir que vos tragam diariamente seu ouro. Acaso não são eles homens? Acaso não possuem
razão e alma? Não é vossa obrigação amá-los como a vós próprios? (MONTESINOS apud
BUENO, 1984, p. 13).

Esse sermão é muito importante, não só por sua característica inaugural, mas, sobretudo,
por ter sido o móvel da mudança de perspectiva do Frei Bartolomé de Las Casas em relação
ao colonialismo espanhol.
Impactado pelo discurso de Montesinos e pelos massacres que testemunhou, Las Casas,
que havia se ordenado padre alguns anos antes, decidiu abandonar a posição de colonizador/
conquistador/encomiendero. Resolveu, então, como afirma Eduardo Bueno, “abandonar suas
posses, seus lotes de escravos e consagrar sua vida à defesa dos indígenas do Novo Mundo”
(BUENO, 1984, p. 15).
Na América Latina, a obra e os atos indignados de Las Casas tornaram-se um marco
na luta anticolonial, com sua detalhada denúncia do macabro genocídio indígena aqui perpetra-
do. Sua Brevíssima Relação da Destruição das Índias Ocidentais, de 1552, inicia-se com uma terna
descrição das gentes que habitavam as terras conquistadas e segue com a denúncia das atroci-
dades contra elas cometidas.
Nessa obra, ele inverte a perspectiva hegemônica, tratando os colonizadores como bár-
baros e avaros, em oposição às gentes “mui humildes, mui pacíficas e amantes da paz”, cujo
entendimento era, a seu ver, “mui nítido e mui vivo” (LAS CASAS, 2008, p. 26-27). Na retórica
cristã que se tece em seu texto, os nativos são os cordeiros, trucidados pelos lobos, leões e ti-
gres cruéis:

A causa pela qual os espanhóis destruíram uma tal infinidade de almas foi unicamente não te-
rem outra finalidade última senão o ouro, para enriquecer em pouco tempo, subindo de um
salto a posições que absolutamente não convinham a suas pessoas; enfim, não foi senão sua ava-
reza que causou a perda desses povos, que por serem tão dóceis e tão benignos foram tão fáceis
de subjugar; e quando os índios acreditaram encontrar algum acolhimento favorável entre esses
bárbaros, viram-se tratados pior que animais e como se fossem menos ainda que o excremen-
to nas ruas; e assim morreram, sem Fé e sem Sacramentos, tantos milhões de pessoas (LAS
CASAS, 2008, p. 29. Ênfase adicionada).

18
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

A indignação de Las Casas o leva a lançar imprecações contra a Espanha e os reis ca-
tólicos, o que lhe valeu a pecha de traidor. Em sua retórica irada e ciente da própria finitude,
volta-se contra a coroa espanhola, não hesitando em invocar forças divinas e humanas em seu
protesto:

[...] E pois, que não podemos viver muito tempo apelo para o testemunho de Deus, para todas
as hierarquias e ordens dos Anjos, para todos os santos da corte celeste e para todos os homens
do mundo, principalmente para os que viverem ainda por muito tempo, que certifiquem o que
digo e que sejam testemunhos do desencargo que faço da minha consciência. Porque se Sua
Majestade permitir aos espanhóis todos os diabólicos processos referidos e as tiranias, quais-
quer que sejam as leis e os estatutos que se queiram fazer, todas as Índias estarão despovoadas
e desertas, como deserta está agora a ilha Espanhola, outrora mui feliz e mui fértil, e, assim
como ela, no mesmo estado jazem as outras ilhas e os países de mais de três mil léguas, além
da ilha Espanhola e dos países que lhe são distantes ou próximos. E por todos esses pecados
(como bem sei pela Santa Escritura) Deus castigará horrivelmente e é possível mesmo que des-
trua inteiramente a Espanha. No ano de mil quinhentos e quarenta e dois. (LAS CASAS, 2008,
p. 153-4.).

Os escritos do Frei Bartolomeu de Las Casas, muito difundidos na Europa de seu tempo,
embora não tenham sido capazes de deter a sanha colonial espanhola, foram fundamentais
na difusão de notícias sobre a perversidade e a perversão coloniais, contribuindo para o co-
nhecimento sobre os horrores da colonização. Por isso, a atualidade de seus textos reafirmada
por diferentes estudiosos.
Nos séculos que se seguiram, muitos brados se somaram à luta anticolonial. Avançando
para a segunda metade do século XIX, podemos destacar o indiano Mahatma Gandhi (1869-
1948); o peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930); o senegalês Léopold Senghor (1906-
2001); os antilhanos Aimé Césaire (1913-2008) e Frantz Fanon (1925-1961), a jamaicana Sylvia
Wynter (1928) como algumas dessas vozes.

Pós-colonial/pós-colonialismo

Meu propósito nessa seção é mapear concepções acerca do Pós-colonial/pós-colonialismo,


sem pretensão de abranger as inúmeras concepções e discussões que provocam. Objetivo aqui
encaminhar a discussão de alguns aspectos que serão retomados no levantamento dos argu-
mentos que sustentam a resistência aos estudos que se inscrevem sobre essas denominações
por parte do Pensamento Decolonial e das Epistemologias do Sul.
Os estudos pós-coloniais emergem no final dos anos 70 do século XX, no contexto acadê-
mico anglo-saxão, mais especificamente nos campos cultural e literário (MEZZADRA, 2008).
Essa abordagem, preocupada com as relações centro-periferia, questiona as dimensões políticas

19
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

e ideológicas do pensamento ocidental e ganha impulso com a publicação de O orientalismo,


por Edward Said (2007[1978]). No final da década de 80, com a publicação do livro The em-
pire writes back: theory and practice in post-colonial literatures, por Bill Ashcroft, Gareth Griffiths
e Helen Tiffin (1989), o pós-colonial(ismo) consolida-se como campo de estudos.
Essa ampliação e consolidação é problematizada por Ella Shohat (2005), para quem
um dos elementos que levaram à ascensão desse campo foram as ambiguidades teóricas e po-
líticas do termo. Sobre a dimensão política, a professora universitária, que se identifica como
árabe-judaica em deslocamento cultural, afirma que, “Apesar de sua vertiginosa multiplicidade
de posições, a teoria pós-colonial curiosamente falhou em abordar a política situacional do pró-
prio termo “pós-colonial” (SHOHAT, 2005, p. 103. Tradução livre.)2
O olhar diaspórico de Shohat, deslocada cultural e territorialmente, lhe permite obser-
var que os setores mais conservadores das universidades angloestadunidenses exploraram
a possibilidade de despolitizar o termo e, com seu uso, afastar o vocabulário identificado como
“esquerdista”, que associavam às teorias críticas advindas do “Terceiro Mundo”. O processo
de institucionalização desse campo de estudos, transposto em disciplina que passou a figurar
nos currículos acadêmicos, foi, para a pesquisadora, favorecido pelas ambiguidades teórico-po-
líticas nele latentes.
Shohat identifica deslocamentos de sentido nos usos do termo pós-colonial no contexto
supracitado, nomeadamente seu emprego em perspectiva a-histórica, universalizante, que con-
tribuiu para o silenciamento de termos mais marcados ideologicamente e associados às posturas
críticas terceiromundistas (SOHAT, 2005).
Na análise da formação e do percurso do termo, aponta, num primeiro momento,
a passagem do substantivo pós-colonialismo para o adjetivo pós-colonial. Distingue também
a substantivação do termo associada à queda do hífen, bem como o surgimento do substantivo
pós-colonialidade.
Sobre o prefixo pós-, ela diferencia seu emprego em termos como pós-estruturalismo,
que se referem à ultrapassagem de teorias e afirma que, em pós-colonial, este sublinha a ques-
tão temporal e indica o fim de um período, sendo este um traço que acentua sua ambivalência.
Trata-se de um termo cujas territorialidade e temporalidade, ambas muito problemáticas, per-
mitem empregos muito vagos, que misturam e desidentificam diferentes condições, experiên-
cias e percursos coloniais, bem como permanecem alheias aos processos neocoloniais (2005).
Alfred J. López (2001) e Inocência da Mata (2014) apresentam definições do pós-colo-
nial que procuram se situar ao sul e, nesse sentido, são atravessadas pela perspectiva política
da condição colonial, cuja diluição foi criticada por Shohat (2005). Para López, o pós-colonial

2 No original: A pesar de su mareante multiplicidad de posicionalidades, curiosamente, la teoría postcolonial no ha


abordado la política de situación del propio término «postcolonial».

20
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

inclui textos, práticas e condições psicológicas, assim como processos históricos complexos.
Para o estudioso,

O que estabelece o pós-colonial como unidade ou título, ainda que tênue ou provisório, não é
um método específico, uma tese ou um objeto de análise, mas uma condição; isto é, o discurso
coletivamente conhecido como ‘pós-colonial’ compartilha, se não uma história comum de co-
lonização, então uma condição ou estado de ter sido ou estar sendo colonizado, bem como
o problema de como melhor pensar e conviver com essa condição. […] O pós-colonial é, nesse
sentido, certamente uma resposta aos violentos fatos da colonização; mas, além disso, também
representa uma análise de sua própria relação com o colonialismo, um acerto de contas ou um
acordo com o que aconteceu (e está acontecendo) sob a bandeira do colonial.3 (LÓPEZ, 2001,
p. 4-5. Tradução livre.).

Mais adiante, López argumenta que os estudos pós-coloniais, em uma fase posterior, ul-
trapassaram o binarismo colonizador/colonizado, deixando a chave essencializadora para pers-
pectivar categorias, papéis e representações e para questionar o lugar ambivalente da linguagem
na disseminação e na resistência aos discursos coloniais (LÓPEZ, 2001), referindo-se aos estu-
dos de Gayatri Spivak e Homi K. Bhabha, entre outros.
Como obra-em-construção, o pós-colonial configura, para ele, uma condição sociocultu-
ralmente situada e diaspórica, que se caracteriza tanto como um momento ontológico coleti-
vo–voltado para o futuro, mas assombrado pelo passado colonial – quanto um momento feno-
menológico que sinaliza ruptura com tal passado. As tarefas pós-coloniais que se colocam são,
pois, o reconhecimento do passado colonial, a análise ou articulação das diásporas coloniais,
assim como atravessamentos e tensões relacionadas à agência e ao sujeito subalterno, aos hibri-
dismos pós-coloniais e à crítica da hegemonia (LÓPEZ, 2001, p. 5-12. Tradução livre).
Inocência Mata apresenta uma definição bastante ampla desse campo heteróclito
de estudos:

[...] não se pode dizer que exista  uma  teoria pós-colonial. Em todo o caso, vale dizer que o
que parece aproximar as várias percepções, perspectivas e insights deste campo de estudos é a
construção de epistemologias que apontam para outros paradigmas metodológicos – que poten-
ciam outras formas de racionalidade, racionalidades alternativas, outras epistemologias, do Sul,
por exemplo – diferentes dos “clássicos” na análise cultural e literária. Decorre desta reflexão
a consideração de que porventura a mais importante mudança a assinalar é a atenção à análise
das relações de poder, nas diversas áreas da atividade social caracterizada pela diferença: étnica,
de raça, de classe, de gênero, de orientação sexual… (MATA, 2014, p. 30-31).

3 No original: What establishes the post-colonial as unity or heading, however tenuously or provisionally, is not a specific
method, thesis, or object of analysis but a condition; that is, the discourse collectively known as ‘postcolonial’ share, if not
a common history of colonization, then a condition or state of having been or presently been colonized, as well as the
problem of how best to think of and live with that condition. […] The postcolonial is, in this sense, certainly a response
to the brute facts of colonization; but beyond that it also represents ana analysis of its own relation to colonialism,
a reckoning or coming-to-terms with what has happened (and is happening) under the banner of the colonial.

21
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Observamos que Matta (2014) mescla termos que caracterizam a terminologia desenvol-
vida pelo Pensamento Decolonial a outros ligados às Epistemologias do Sul. Ela pensa o pós-co-
lonial como ideologia, focalizando a necessidade de descolonização teórica, sobretudo no caso
dos estudos das literaturas de países periferizados e ex-colonizados. A pesquisadora assinala
que a persistência da “colonização invisível”, inconscientemente permitida, dificulta a resistência
e acaba por permitir que conceitos e perspectivas que reforçam a hegemonia ocidentalocêntrica
invadam as análises dessas literaturas (MATA, 2014, p. 32). Daí a relevância do questionamento
das relações de poder neocoloniais.
Constituindo um ramo teórico pós-colonial, os Estudos Subalternos Asiáticos (ESA), fo-
ram desenvolvidos por um grupo de historiadores indianos reunidos em torno de Ranajit Guha,
os quais buscaram pensar relações ente identidades e poder, para além das circunscrições geo-
gráficas. O grupo incorporou o termo subalterno, de origem gramsciana, “como forma de firmar
um posicionamento teórico e político contrário às interpretações elitistas do contexto indiano,
de caráter colonialista e/ou nacionalista” (AGUIAR, 2016, p. 274).
Concepções críticas avançadas pelo grupo de Guha impulsionaram discussões sobre
os processos de descolonização na América Latina, pautadas na antítese colônia-metrópole e na
problematização da ideia de “libertação nacional”, a partir da constatação de que os estados e os
sujeitos subalternos estavam atravessados por redes globais e por exclusões não circunscritas
ao local, à nação (CASTRO-GOMÉS; MENDIETA, 1998).
Ao refletirem sobre assimetrias entre local e global, a tensão globalização / glocalização,
os sentidos das migrações globais e deslocamentos discursivos por elas provocados, intelectuais
de países do “terceiro mundo” radicados nos Estados Unidos passaram também a questionar
a sua dupla condição hegemônica. Essa dupla posição ocorre por atuarem em prestigiadas uni-
versidades norte-americanas e dominarem saberes altamente valorizados, estando, portanto,
em posição de hegemonia tanto em relação aos seus países e comunidades de origem, quanto
aos demais migrantes. Como afirmam Castro-Goméz e Mendieta, “Tal situação força a rever
o papel que as narrativas anticoloniais e do Terceiro Mundo haviam atribuído ao “intelectual crí-
tico” e a buscar novas formas de conceber a relação entre teoria e práxis” (CASTRO-GOMÉS;
MENDIETA, 1998, p. 11)4.
As teorias pós-coloniais, segundo esses autores, nascem precisamente de tais problemas
e tensões, assim, diferenciam-se das críticas ao colonialismo tecidas pelo Frei Bartolomé de Las
Casas e outros autores em dois aspectos: não partem da autenticidade das identidades locais
tradicionais como eixo da resistência ideológica, tampouco delegam a intelectuais críticos o pa-
pel de denúncia do invasor. Assim,

4 No original: Tal situación obliga a revisar el papel que las narrativas anticolonialistas y tercermundistas habían asignado
al “intelectual crítico” y a buscar nuevas formas de concebir la relación entre teoría y praxis.”

22
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

As teorias pós-coloniais são articuladas, em vez disso, em contextos de ação pós-tradicionais,


ou seja, em localidades onde os sujeitos sociais configuram sua identidade interagindo com pro-
cessos de racionalização global e onde, pela mesma razão, as fronteiras culturais começam a se
confundir. (CASTRO-GOMÉS; MENDIETA, 1998, p. 12. Tradução livre).5

Eles identificam o parentesco das teorias pós-coloniais com a crítica da metafísica ociden-
tal desenvolvida pelos mestres da suspeita6, com a qual compartilham a compreensão do ociden-
te como o desejo de poder, mas afirmam ultrapassar essa percepção ao reconhecerem o ocidente
e a metafísica moderna como cúmplices do colonialismo europeu.
Dados os limites desse texto, não aprofundarei a análise da crítica à metafísica do ocidente
que se tece nas teorias pós-coloniais, mas valeria a pena pensar no aspecto ontológico da colo-
nização, ou seja, pela instauração do outro como seu fundamento, assim como no atravessamen-
to de categorias emancipadoras pelo ímpeto universalista que caracteriza a metafísica ocidental.
Nos anos 90 do século XX, quando os estudos pós-coloniais e subalternos estavam em evi-
dência, emergiram intensos debates sobre os estudos pós-coloniais na América Latina. De um
lado, intelectuais latinoamericanos viam nas teorias pós-coloniais a possibilidade de funda-
rem seus estudos em concepções, argumentos e pontos de vista não-europeus, ancorando-se
em obras de Gayati Spivak, Eduardo Said e Homi Bhabha. De outro, surgiam vozes, como a de
Walter Mignolo, que defendiam a diferença entre a colonização britânica e a ibérica na América
Latina, e, dessa diferença, derivavam a necessidade de categorias do pensamento nela ancorado.
Na década de 90 do século XX, no calor desse debate, foi criado o Grupo Latino-
Americano de Estudos Subalternos (GLAES), que se filiava conceitualmente aos intelectu-
ais indianos dos Estudos Subalternos, mas pretendia desenvolver uma alternativa ao projeto
dos Estudos Culturais. Em contraponto à dominância da concepção de hibridismo, que identi-
ficam nos Estudos Culturais, pretendiam retomar as categorias políticas classe, nação e gênero.
Os intelectuais ligados ao GLAES partiam do pressuposto de que a colonização ocidental
se transforma constantemente e, por isso, o subalterno o desenvolve estratégias de negocia-
ção com o poder. Dessa maneira, “o subalterno não é, então, um sujeito passivo, “hibridizado”
por uma lógica cultural imposta de fora, mas sim um sujeito negociador, ativo, capaz de elabo-
rar estratégias culturais de resistência e até de conquistar hegemonia.” (CASTRO-GOMÉS;
MENDIETA, 1998, p. 12. Tradução livre). 7

5 No original: Las teorías poscoloniales se articulan, en cambio, al interior de contextos postradicionales de acción,
es decir, en localidades donde los sujetos sociales configuran su identidad interactuando con procesos de racionalización
global y en donde, por lo mismo, las fronteras culturales empiezan a volverse borrosas.
6 “Desenvolvida por Nietzsche, Weber, Heidegger, Freud, Lacan, Vattimo, Foucault, Deleuze y Derida” (CASTRO-
GOMÉS; MENDIETA, 1998, p.12).
7 No original: El subalterno no es, pues, un sujeto pasivo, “hibridizado” por una lógica cultural que se le impone desde
afuera, sino un sujeto negociante, activo, capaz de elaborar estrategias culturales de resistencia y de acceder incluso a la
hegemonía.

23
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

O manifesto inaugural do grupo, traduzido por Santiago Casto-Gómez para publicação


em castelhano (GRUPO LATINOAMERICANO DE ESTUDIOS SUBALTERNOS, 1998), ar-
ticula a análise do cenário político latino-americano após a derrocada dos regimes autoritários
associada ao deslocamento de projetos revolucionários à viragem epistêmica nas ciências so-
ciais e humanas pautada pelo pluralismo.
O grupo retoma nesse texto ideias de Ranajit Guha acerca do papel ativo do subalterno,
que relacionam à emergência do GLAES, e historiam a configuração desse conceito na América
Latina, identificando três etapas em cuja compreensão entretecem aspectos políticos, culturais
e teóricos. Nesse esforço cronológico-conceitual, situam o GLAES no campo dos estudos cultu-
rais latino-americanos e anunciam seu projeto:

O que estabelece as diretrizes do nosso trabalho é, principalmente, o consenso sobre a necessi-


dade de construir um mundo democrático. Acreditamos que a natureza ética e epistemológica
desse consenso e o destino dos processos de democratização na América Latina estão unidos
de tal forma que impõem novos desafios e demandas ao nosso trabalho como acadêmicos e edu-
cadores. Isso implica, por um lado, uma maior sensibilidade à complexidade das diferenças
sociais e, por outro, a criação de uma plataforma plural, ainda que limitada, de pesquisa e dis-
cussão em que todos possam participar.8 (GRUPO LATINOAMERICANO DE ESTUDIOS
SUBALTERNOS, 1998).

Finalizando o manifesto, problematizam a proposta de estudar o subalterno a partir do re-


conhecimento da posição hegemônica de seis membros, todos investigadores em universidades
norte-americanas de elite, e da assunção de seu estatuto letrado, abre-se ao estabelecimento
de novas relações com aqueles que tomaram como objeto de estudo.
O GLAES, no entanto, não sobreviveu às divergências conceituais que eclodiram entre
seus componentes. Gustavo Verdesio, em texto retrospectivo, destaca a importância desse gru-
po para a América Latina e revela algumas tensões que levaram ao fim do projeto. Ele menciona
controvérsias, resistências enfrentadas e até mesmo insultos trocados entre intelectuais atuantes
em universidades norte-americanas e aqueles baseados ao sul (VERDESIO, 2005).
O artigo de Verdesio, com o qual o pesquisador uruguaio introduz a coletânea “póstuma”
por ele organizada, parece-me ser uma referência fundamental, pois, a partir de uma visão
‘de dentro’, mapeia de forma crítica o percurso do GLAES, indicando, ainda, a complexidade
das discussões travadas. Destaco, especialmente, a reflexão sobre as relações desiguais estabele-
cidas com os estudiosos asiáticos da subalternidade, cujo desinteresse pelos trabalhos do grupo
latinoamericano é sinalizado também em outros textos da coletânea.
8 No original: Lo que establece las pautas de nuestro trabajo es, principalmente, el consenso respecto a la necesidad
de construir un mundo democrático. Creemos que la naturaleza ética y epistemológica de este consenso y el destino
de los procesos de democratización en Latinoamérica están unidos de tal forma, que imponen nuevos retos y exigencias
a nuestra labor como académicos y educadores. Esto implica, por un lado, una mayor sensibilidad frente a la complejidad
de las diferencias sociales y, por el otro, la creación de una plataforma plural, aunque limitada, de investigación
y discusión en la que todos puedan tomar parte.

24
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Verdesio discute a inação política concreta do grupo e questiona o conhecimento unívoco


produzido na universidade, ao defender a democratização das relações desta com os grupos
não-hegemônicos. Ele retoma o Manifesto do GLAES para acentuar a necessidade de articula-
ção das teorias ao desenvolvimento de ações solidárias e dialógicas com os subalternos. A res-
peito do necessário impacto social das pesquisas, formula a seguinte proposição:

Minha opinião é que precisamos desenvolver uma agenda para a atuação de estudiosos dos es-
tudos latino-americanos que vá além dos limites da academia. Tal agenda exige, em minha opi-
nião, uma inflexão subalternista. No entanto, é importante, em primeiro lugar, rever algumas
das limitações do projeto de estudos subalternos. Uma delas é a falta de estratégias ou planos
políticos concretos que tem caracterizado a Atividades do Grupo Latinoamericano de Estudos
Subalternos. (VERDESIO, 2005, p. 26. Tradução livre).

Dessa forma, longe de redigir um necrológio do coletivo, então já extinto, a análise


de Verdesio aponta reverberações do GLAES, para além de sua curta existência, e termina
com uma exortação: “Vida longa ao pensamento crítico que busca a libertação dos pobres e dos
oprimidos” (VERDESIO, 2005, p.36. Tradução livre).9

Pensamento Decolonial e Epistemologias do Sul: caminhos e convergências

A organização que busquei explicitar no gráfico apresentado na seção “Pensamento an-


ticolonial e pós-colonial(ismo)” torna visível uma diferença interessante entre o Pensamento
Decolonial, elaborado pelo Grupo Modernidade/Colonialidade (doravante PD), e as
Epistemologias do Sul (doravante ES). Enquanto o PD foi formulado por um coletivo de intelec-
tuais e, de certa maneira, “descende” de outros coletivos, as ES foram concebidas por Boaventura
de Souza Santos ao longo de sua trajetória como intelectual-ativista.
Assim, seguindo a ramificação à esquerda do gráfico nas sínteses sobre teorias pós-colo-
niais e estudos subalternos, tanto asiáticos quanto latinoamericanos – uma vertente da família
anticolonial que desaguou no Pensamento Decolonial.
Após a ruptura com o Grupo Latinoamericano de Estudos Subalternos, Walter Mignolo,
Enrique Dussel, Aníbal Quijano e um conjunto diverso de intelectuais de origem latino-ame-
ricana iniciaram discussões conceituais em torno de um projeto de giro epistêmico decolonial.
O Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), formado no bojo dos debates sobre o pós-colo-
nial, buscou radicalizar a ruptura com o pensamento eurocentrista a partir de um olhar latino-
-americano. Walter Mignolo assim define a transformação epistêmica pretendida:

o giro decolonial é a abertura e a liberdade de pensamento e de formas de vida-outras (econo-


mias-outras, teorias políticas-outras); a limpeza da colonialidade do ser e do saber; o despren-

9 No original: Long live critical thinking that seeks the liberation of the poor and the oppressed.

25
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

dimento da retórica da modernidade e de seu imaginário imperial. (MIGNOLO In: CASTRO-


GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p.29. Tradução livre).10

A diferenciação entre o colonialismo e a colonialidade proposta por Aníbal Quijano (2007)


e retomada por Nelson Maldonado Torres (2007) é axial no conjunto teórico do Pensamento
Decolonial. Eles empregam o termo colonialismo para denominar o tipo imperial de relação
de dominação exercida política e economicamente por uma nação sobre outra. Já o conceito
de colonialidade refere-se ao poder exercido sobre seres e saberes e às formas como este afeta
relações intersubjetivas.
A compreensão da colonialidade como uma matriz de poder que se instalou no processo
histórico de colonização e permanece entranhada nas estruturas sociais, exercendo controle
e oprimindo os corpos racializados e sexualizados está no cerne do Pensamento Decolonial
(MIGNOLO, 2017).
Por esse viés, A diferença colonial latino-americana marca-se, entre outros elementos,
pelo uso da concepção de raça como legitimação discursiva da inferiorização/desumanização
de indígenas e negros escravizados e, consequentemente, pilar da conquista e da dominação
exercida, (QUIJANO, 2005; MIGNOLO, 2017).
O M/C, em uma primeira fase, enfocou a colonialidade, buscando analisar a opressão
de corpos e conhecimentos sob seu jugo. Mais tarde, passou a enfatizar a transformação das re-
lações coloniais de poder que caracterizam a episteme moderna e cuja permanência contribui
para o agravamento das desigualdades nas sociedades contemporâneas. A concepção de deco-
lonialidade ganha força, na medida em que propõe a ruptura da episteme capitalista-moderna-
-ocidental e mira a libertação de estruturas, sujeitos e saberes, sujeitos e subjetividades por ela
oprimidos. (MIGNOLO; WALSH, 2018). Assim, desenha um projeto alternativo de futuro
que pretende produzir fissuras na narrativa moderna, impulsionando a criação de outras formas
de viver, saber, sentir e conviver.
Vejamos, agora, brevemente, como as Epistemologias do Sul foram se constituindo nos es-
critos de Boaventura de Sousa Santos, retomando o gráfico com o esboço de genealogia da fa-
mília anticolonial.
Na ramificação à direita da imagem, posicionei uma sequência conceitual que se inicia-se
em 1995, com o aparecimento do Sul–junto à Fronteira e ao Barroco–três metáforas para pensar
a subjetividade individual e coletiva que emergirá na transição epistêmica. O termo Sul, nessa
formulação, é dissociado de seu sentido geográfico para representar a dominação e o sofrimento
causados pelo pensamento moderno e pela tríade capitalismo / colonialismo / patriarcado.

10 No original: El giro decolonial es la apertura y la libertad del pensamiento y de formas de vida-otras (economías-
otras, teorías políticas-otras); la limpieza de la colonialidad del ser y del saber; el desprendimiento de la retórica de la
modernidad y de su imaginario imperial.

26
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

O conceito de Sul–qualificado como um “espaço-tempo epistemológico, político, so-


cial e cultural” (SANTOS, 2021, p. 48)–ganhou corpo na obra de Santos com a concepção
de Epistemologias do Sul. Santos afirma em diferentes obras e apresentações públicas que estas
não constituem um programa acadêmico, mas um programa de ação. Como tal, aporta dimen-
sões políticas, epistêmicas e éticas indissociáveis.
Na dimensão política, destaca-se o caráter emancipatório das Epistemologias do Sul,
que se alinham aos grupos sociais na luta contraestruturas opressivas, para a “construção de um
Sul anti-imperial sólido, consistente e competente.” (SANTOS, 2018, p. 277).
Ele identifica três momentos no embate entre opressor/colonizador e oprimido/coloniza-
do: momento de rebelião, momento de sofrimento humano e momento de continuidade vítima-agres-
sor. O primeiro indica o momento em que o oprimido toma a história em suas mãos. Em suas
palavras,

O questionamento da ordem constituída e o primeiro impulso para as epistemologias do Sul,


permitindo às energias emancipadoras reconhecerem-se como tal. Assim, o momento da rebe-
lião é um momento de suspensão que transforma o Norte imperial num poder alienatório e o
Sul imperial numa (im)potência alienatória (SANTOS, 2018, p. 280).

Com relação à análise de momentos de rebelião históricos, Santos destaca os trabalhos so-
bre a sociedade indiana desenvolvidos por Ranajit Guha, nos Estudos Subalternos, e indica
a falta de ferramentas das Ciências Sociais conservadoras para a análise desses momentos.
O momento de sofrimento humano diz respeito à desnaturalização das dores provocadas
pela tríade colonialismo-capitalismo-patriarcado, que demanda o reconhecimento do contraste
entre a vida dos sujeitos por ela desumanizados e o que caracteriza uma vida digna. Já o momen-
to de continuidade vítima-agressor coloca em questão a polarização opressor/oprimido elaborado
no discurso colonial e coloca em questão a complexidade dessa relação.
Santos entende que a luta pela libertação movida pelas energias emancipadoras
das Epistemologias do Sul nasce da indignação diante do sofrimento injusto e da vontade/ne-
cessidade de resistir ao sofrimento injusto. Citando Gandhi, afirma que luta libertadora, embora
não descarte momentos de violência, não brutaliza opressores nem oprimidos, pois, na medida
em que promove a libertação das vítimas, liberta também o opressor do papel desumanizador
que exerce. Esse resultado só pode ser alcançado pela luta emancipadora da vítima.
Na dimensão epistêmica, não se trata de abandonar ou silenciar os conhecimentos produ-
zidos no norte global, mas não os tomar como universais e, principalmente de dar espaço para
a pluriversalidade do mundo. O sociólogo português afirma que:

27
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

As epistemologias do Sul pretendem mostrar que aquilo que são os critérios dominantes do co-
nhecimento válido na modernidade ocidental, ao não reconhecerem como válidos outros tipos
de conhecimentos para além daqueles produzidos pela ciência moderna, deram origem a um
epistemicídio massivo, ou seja, à destruição de uma imensa variedade de saberes que preva-
lecem sobretudo do outro lado da linha abissal – nas sociedades e sociabilidades coloniais.
(SANTOS, 2019, p. 27).

Pensar o sul como episteme não significa negar todos os conhecimentos produzidos
ao norte e científicos, mas des-hierarquizar as relações entre conhecimentos tidos como uni-
versalmente válidos e conhecimentos ancestrais, populares, de movimentos sociais e outros
saberes até então invisibilizados, promovendo ecologias de saberes.
A dimensão ética, imbricada às anteriores, traz valores associados à coletividade, ao res-
peito, à pluriversidade e ao Bem viver/Buen vivir e está relacionada à busca de justiça cognitiva,
social e ecológica (SANTOS, 2022).
A proposta das Epistemologias do Sul está ligada à ultrapassagem do pensamento abissal,
que configura um modo de ver o Outro marcado pela exclusão radical. As linhas abissais pro-
duzidas pelo pensamento moderno e suas instituições colocam em cena a tensão entre sociabi-
lidades/subjetividades metropolitanas, posicionadas do lado de cá das linhas, e sociabilidades/
subjetividades coloniais, situadas do lado de lá, e, portanto, destituídas de humanidade. Essas
linhas de exclusão radical e desumanização são produzidas pela lei, pela religião, pela ciência,
pela tecnologia, pelo conhecimento, sendo traçadas pelo pensamento moderno. O desfazimento
dessas linhas não é tarefa simples e depende da transição do pensamento abissal para o pós-a-
bissal configura um “horizonte utópico” (SANTOS, 2019, p. 203).
Santos pensa o conhecimento pós-abissal como um conhecimento para a luta, produzido
pela desaprendizagem e inscrito em fissuras produzidas no pensamento moderno. Nesse sen-
tido, afirma que será “construído através de mingas epistêmicas, ou seja, através do trabalho
coletivo (a cocriação do conhecimento) por um bem considerado comum (o fortalecimento
da resistência e das lutas conta a dominação” (SANTOS, 2019, p. 227)
O fato de as Epistemologias do Sul constituírem uma concepção autoral não significa,
no entanto, que constituam um projeto individual, mesmo porque seu empreendimento te-
órico entrelaça (re)leituras da tradição crítica europeia com um amplo arco de perspectivas.
Arrisco-me a afirmar que, para além do denso repertório de leituras acadêmicas que revela
em suas obras, que inclui numerosas referências às correntes que ele insere na família anti-
colonial, discussões e ações vivenciadas por Santos, seja na academia ou fora dela, sobretudo
aquelas articuladas com os movimentos sociais, estão no cerne da pluridiversidade proposta
nas Epistemologias do Sul.

28
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Encontros

O encontro do Grupo Modernidade/Colonialidade com Boaventura de Sousa Santos


se fez em torno da crítica ao pós-colonial. Santiago Castro-Gómez e Ramón Grosfoguel (2007)
situam esse encontro por ocasião da quarta reunião dos integrantes do M/C, em 2004.
O volume temático From Postcolonial Studies to Decolonial Studies: Decolonizing Postcolonial
Studies (2006) foi um dos frutos desse encontro do M/C, aberto a convidados. Neste volume,
que apresenta apenas três artigos, encontramos a crítica aos estudos pós-coloniais, que identi-
ficamos, além da crítica ao pensamento moderno, como um ponto de contato entre Santos e o
M/C.
Em texto posterior, Castro-Gómez e Grosfoguel reiteram seu afastamento em relação
aos estudos pós-coloniais, termo que, para eles, pressupõe a ideia de que o mundo estaria des-
colonizado. Eles reagem a essa ideia ao trazerem as concepções de decolonialidade e coloniali-
dade do poder, eixos de sua proposta, anunciando seu pressuposto crítico:

Em vez disso, partimos do pressuposto de que a divisão internacional do trabalho entre centros
e periferias, bem como a hierarquização étnico-racial das populações, formada durante vários
séculos de expansão colonial europeia, não se alterou significativamente com o fim do colo-
nialismo e a formação de Estados-nação na periferia. Ao contrário, estamos testemunhando
uma transição do colonialismo moderno para a colonialidade global, um processo que certa-
mente transformou as formas de dominação implantadas pela modernidade, mas não a estru-
tura das relações centro-periferia em escala mundial (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL,
2007, p.13. Tradução livre).11

Afirmam, então, a permanência das estruturas de dominação formadas nos séculos XVI e
XVII, fundadas em hierarquias de diferentes ordens que, ressignificadas pelo capitalismo global,
perpetuam exclusões. Tecem, a seguir considerações sobre a teoria do sistema mundo e os estu-
dos pós-coloniais anglo-saxões, com os quais reconhecem aproximações, mas dos quais se dis-
tanciam em termos temáticos e epistêmicos, ao assumirem a perspectiva decolonial. Santos opta
pelo termo pós-colonialismo, que assim define:

Entendo por pós-colonialismo um conjunto de correntes teóricas e analíticas, com forte im-
plantação nos estudos culturais, mas hoje presentes em todas as ciências sociais, que têm em co-
mum darem primazia teórica e política às relações desiguais entre o Norte e o sul na explicação
ou na compreensão do mundo contemporâneo (SANTOS, 2022, p. 55).

11 No original: Nosotros partimos, en cambio, del supuesto de que la división internacional del trabajo entre centros
y periferias, así como la jerarquización étnico-racial de las poblaciones, formada durante varios siglos de expansión
colonial europea, no se transformó significativamente con el fin del colonialismo y la formación de los Estados-nación
en la periferia. Asistimos, más bien, a una transición del colonialismo moderno a la colonialidad global, proceso
que ciertamente ha transformado las formas de dominación desplegadas por la modernidad, pero no la estructura de las
relaciones centro-periferia a escala mundial.

29
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Ele sinaliza o “caráter oposicional” (SANTOS, 2022, p. 67) de sua visão do pós-colo-
nialismo, que se assenta em três conflitos: o viés culturalista; a articulação entre colonialismo
e capitalismo; a provincialização da Europa. Com relação ao primeiro conflito, argumenta que a
excessiva ênfase na cultura pode levar a um esquecimento da materialidade das relações so-
ciais. Destaca, o risco implicado na predominância de referências eurocêntricas nesses estudos.
Assim, ecoa considerações de Gustavo Verdesio (2005).
Acerca do segundo conflito, acentua sua discordância com respeito ao centramento
nas concepções de colonialidade/colonialismo ou na modernidade ocidental, em detrimento
do capitalismo, pois entende a complexidade das relações de poder, mesmo em sociedades pós-
-coloniais, escapa a tais dominâncias analíticas. Quanto à provincialização da Europa, sua opo-
sição reside na essencialização e no caráter monolítico das análises pós-coloniais que desconsi-
deram as diferenças entre os diferentes colonialismos europeus.
Santos conclui suas ponderações sobre o pós-colonialismo de oposição que advoga afir-
mando que este

Convida a uma compreensão não ocidental do mundo em toda a sua complexidade e na qual
há de caber a tão indispensável quanto inevitável compreensão ocidental do mundo ocidental
e não-ocidental. Essa abrangência e essa complexidade são o lastro histórico, cultural e político
de onde emerge a globalização contra-hegemônica como a alternativa construída pelo Sul em
sua extrema diversidade! (SANTOS, 2022, P. 71).

Linguísticas Aplicadas Anticoloniais: utopias concretas?

O DELA 2021 pensou os ninguéns ao problematizar concepções, pesquisas e práticas


de ensino e (des) aprendizagem de línguas e, assim, movimentou-se em direção à produção
de Linguísticas Aplicadas Anticoloniais, posicionando-as ao Sul epistêmico. Nesse sentido,
apontou para um horizonte utópico que será alcançado com uma transformação paradigmática
da sociedade desigual e injusta, estruturalmente, e dialogou com o mosaico conceitual constru-
ído no presente artigo
Uso o plural para nomear o campo das Linguísticas Aplicadas, entendendo que essa estra-
tégia faz parte da transição do pensamento unívoco e euronortecentrado que caracteriza a uni-
versidade ocidental, em direção à pluriversidade. Já que precisamos desmontar as armadilhas
da linguagem que nos levam a reafirmar aquilo contra que pretendemos nos sublevar e nomear
no singular pode controlar a disciplina que se quer indisciplinar, o plural é uma alternativa.
Retomando o poema de Eduardo Galeano citado em epígrafe, observo que, ao voltar
seu olhar para aqueles que, produzidos como inexistentes em sociedades marcadas por opres-

30
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

sões enraizadas na tríade capitalismo-colonialismo-patriarcado (SANTOS, 2019) – os nin-


guéns–linguistas aplicades são desafiados a repensar seus modos de pensar e fazer linguagens.
Nesse sentido, as Linguísticas Aplicadas Decoloniais que foram colocadas em cena
no DELA 2021 configuram utopias reais, na medida em que propõem a busca de alternati-
vas e contemplam modos de produzir conhecimento nascidos da luta por direitos, assim
como os saberes situados do outro lado das linhas abissais que ainda dividem os humanos
dos sub-humanos.
Os estudos anticoloniais desenvolvidos tanto pelo Pensamento Decolonial quanto pelas
Epistemologias do Sul combatem a hierarquização de corpos e de saberes centrada no modelo
eurocêntrico, que contribui para a marginalização de grupos sociais não-hegemônicos e reforça
a injustiça cognitiva (SANTOS, 2019)
Nesse sentido, pensar e praticar Linguísticas Aplicadas Anticoloniais, revela compromis-
so com a educação pública democrática, dialógica, solidária e equitativa. Isso é fundamental, es-
pecialmente tendo em vista a necessidade de resistirmos ao conservadorismo que tomou a cena
política, bem como aos discursos racistas, sexistas, homofóbicos, transfóbicos e xenófobos, en-
tre outras hierarquizações das diferenças, que emergem e são legitimados nesse cenário.

Referências

AGUIAR, J. D. N. Teoria pós-colonial, estudos subalternos e América Latina: uma guinada epistemológica?
Estudos de Sociologia, v. 21, n. 41, 2016. Recuperado de https://periodicos.fclar.unesp.br/estudos/
article/view/8659
ASHCROFT, B. et al. The empire writes back: theory and practice in post-colonial literatures. Londres:
Routledge, 1989.
BUENO, E. Apresentação. O genocídio de ontem e hoje. In: LAS CASAS, F. B. de. O paraíso destruído.
A sangrenta história da conquista da América Espanhola. Trad. Heraldo Barbuy. 2. ed. Porto alegre:
L&PM, 2008. p 9-25.
CASTRO-GOMÉZ, S.; MENDIETA, E. Introducción: La translocalización discursiva de Latinoamérica
en tiempos de la globalización. In: CASTRO-GOMÉZ, S.; MENDIETA, E. (ed.). Teoria sin disciplina.
Latinoamericanismo, postcolonialidad, y globalizazión em debate. São Diego: University of San
Diego, 1998.
CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad
epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central,
Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007.
GRUPO LATINOAMERICANO DE ESTUDIOS SUBALTERNOS. Manifiesto Inaugural. Trad.
Santiago Castro-Gómez. In: CASTRO-GOMÉZ, S.; MENDIETA, E. (ed.). Teoria sin disciplina.

31
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Latinoamericanismo, postcolonialidad, y globalizazión em debate. São Diego: University of San


Diego, 1998.
LATIN AMERICAN SUBALTERN STUDIES GROUP. Founding Statement. Boundary 2, Durhan, v.
20, no. 3, p. 110–121, 1993.
LÓPEZ, A. J. Posts and pasts. A theory of postcolonialism. Albany, NY: State University of New York
Press, 2001. (Sunny Series, Exploration on Postcolonial Studies)
MALDONADO-TORRES, N. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un
concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (comps.). El giro decolonial. Reflexiones
para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto
Pensar/ Universidad Centraliesco/ Siglo del Hombre Editores, 2007.
MATTA, I. Estudos pós-coloniais: desconstruindo genealogias eurocêntricas. Civitas–Revista
de Ciências Sociais, v. 14, n. 1, p. 27-42, 2014. Disponível em: <https://doi.org/10.15448/1984-
7289.2014.1.16185>. Acesso em: 15 ago. 2022.
MEZZADRA, S. (Org.)  Estudios postcoloniales. Ensayos fundamentales. Madri: Traficantes
de sueños, 2008.
MIGNOLO, W. D. Colonialidade; o lado mais escuro da modernidade. Introdução de The darker
side of western modernity: global futures, decolonial options. Tradução de Marco Oliveira. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, junho, 2017.
MIGNOLO, W. D; WALSH, C. E. On decoloniality. Durhan e Londres: Duke University Press, 2018.
QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: QUIJANO, A.
A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos
Aires: CLACSO, 2005. p. 117-142.
QUIJANO, A. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL,
R. (comps.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo
global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar/ Universidad Centraliesco/ Siglo del Hombre
Editores, 2007.
SAID, E. O Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. 3. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.
SANTOS, B. S. Towards a new common sense. Law, science and politics in paradigmatic transition.
Londres: Routledge, 1995.
SANTOS, B. S. Renovar a teoria crítica e reinventar a participação social. São Paulo. Boitempo, 2007.
SANTOS, B. S. Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia Essencial. Volume I: Para
um pensamento alternativo de alternativas. Org. e apresentação: Maria Paula Meneses, João Arriscado
Nunes et al. Buenos Aires: CLACSO, 2018.

32
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

SANTOS, B. S. O fim do império cognitivo. A afirmação das epistemologias do sul. Belo Horizonte:
Autêntica, 2019.
SANTOS, B. S. O futuro começa agora: da pandemia à utopia. São Paulo: Boitempo, 2021.
SANTOS, B. S. Pós-colonialismo, descolonialidade e epistemologias do sul. Coimbra: Centro
de Estudos Sociais–Universidade de Coimbra, 2022a. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=5MNXFVkIHa4&ab_channel=CentrodeEstudosSociaisdaUniversidadedeCoimbra. Acesso
em: 23 mar. 2022.
SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 4. ed. atualizada e ampliada.
Belo Horizonte: Autêntica, 2022b.
SPIVAK, G. C. Estudios de la Subalternidad. In: MEZZADRA, S. (comp.). Estudios postcoloniales.
Ensayos fundamentales. Madri: Traficantes de Sueños, 2008.
SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
VERDESIO, G. Introduction: Latin American Subaltern Studies Revisited: Is There Life After
the Demise of The Group?. Dispositio, v. 25, n. 52, p. 5–42, 2005. Disponível em: http://www.jstor.org/
stable/41491785. Acesso em: 01 ago. 2022.

33
ENVOLVER A EDUCAÇÃO SUPERIOR EM DIÁLOGOS
DECOLONIAIS: APRENDER, DESAPRENDER E REAPRENDER 1

Juliana Zeggio Martinez


Universidade Federal do Paraná
Tradução: Natália Bittencourt Junghans e Thais Luisa Deschamps Moreira
Centro de Assessoria de Publicação Acadêmica da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Olá a todos e todas. Boa tarde, bom dia, ou boa noite – não sei de onde vocês estão acom-
panhando este evento. Gostaria de começar agradecendo à comissão organizadora pelo convite.
É uma grande honra e um grande prazer estar aqui hoje; uma oportunidade de aprendizagem,
de compartilhar experiências de pesquisa e de reflexões muito significativas. Também agradeço
a vocês pelo esforço em planejar e tornar este evento possível, pois vi o quanto vocês trabalha-
ram e seguem trabalhando para que hoje pudéssemos estar aqui. Portanto, muito obrigada.
Professor Walter Mignolo, é uma honra e um privilégio tê-lo aqui hoje, juntamente
com muitos outros pesquisadores e pesquisadoras engajadas e comprometidas com as on-
to-epistemologias do Sul. Seu trabalho inspirou e tem inspirado nossos estudos decoloniais
no Brasil, por isso também lhe agradeço muito por ter gentilmente aceito este convite e por
juntar-se a nós neste formato diferente de conversa e discussão.
Minha intenção com as fotos que compartilhei na apresentação inicial, que vocês aca-
baram de ver, não era apenas para realizar uma introdução em caráter mais multimodal; essas
fotos são também uma forma de enfatizar duas dimensões da minha vida acadêmica que eu
acho que estão ligadas a esta conversa de hoje. Primeiramente, as fotos reforçam explicitamen-
te que nunca estamos sozinhos e sozinhas. Talvez, em certas práticas, devido à racionalidade
cartesiana neoliberal, tendamos a acreditar que o trabalho acadêmico é individual e solitário;
que nos trancamos em nossos escritórios e escrevemos artigos e preparamos aulas; mas, na ver-
dade, não é assim que funciona a vida acadêmica. Tudo o que fazemos é colaborativo, coletivo.

1 Este texto foi, inicialmente, transcrito a partir da apresentação realizada durante o evento Decolonialidade e Linguística
Aplicada – DELA 2021 e, em seguida, traduzido para a língua portuguesa pela equipe do CAPA (Centro de Assessoria
de Publicação Acadêmica) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). No evento, a apresentação realizada em inglês
foi intitulada: Engaging Higher Education in decolonial conversations: learning, unlearning, and relearning e encontra-
se disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=kbX0-L2EOfg>. Acesso em: 13 set. 2022.

35
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Um artigo escrito, por exemplo, está muito ligado ao trabalho que fazemos em grupo. Ele rever-
bera outras vozes e comunidades, aulas que ministramos, alunos e alunas, debates que vivencia-
mos; por isso também agradeço muito por todos os grupos de estudo em que estou participando
no momento e pelos que participei no passado, porque todos esses grupos nutriram, e ainda
nutrem, meus estudos e entendimentos decoloniais.
Em uma segunda dimensão, essas fotos também denunciam algo: denunciam a branqui-
tude nos espaços acadêmicos em que venho circulando. Tenho certeza de que foi divertido para
vocês verem as fotos, mas não foi difícil perceber que a maioria das pessoas nelas são brancas.
Infelizmente, a branquitude, aqui pensando tanto em termos de representação quanto em as-
pectos epistêmicos, é quase sempre estabelecida como natural nos espaços acadêmicos brasilei-
ros, em muitas das universidades brasileiras. A professora Aparecida de Jesus Ferreira, linguista
aplicada brasileira e educadora de professores e professoras de línguas, em suas pesquisas so-
bre identidades raciais, antirracismo e letramento racial crítico, explica que, embora a maioria
da população no Brasil não seja branca, os corpos negros são invisibilizados sob o mito de uma
democracia racial.
Essas fotos, portanto, estão simbolicamente ligadas à conversa que escolhi ter com vo-
cês hoje, com o objetivo de problematizar o papel da universidade no século XXI, atentando
às mudanças e às novas demandas emergentes no mundo e que impactam a educação superior.
Desta forma, o que eu trouxe hoje faz parte dos meus estudos, faz parte da minha pesquisa,
mas também são pensamentos e perguntas – aquilo que me preocupa, que causa desconforto
e que me faz refletir. Portanto, a questão central para esta conversa hoje é nos perguntarmos se é
possível ou impossível descolonizar a universidade. Tem sido muito comum ouvir a pergunta:
como descolonizar a universidade? Ou, às vezes, não é nem uma pergunta; é simplesmente
uma afirmação.
Do meu ponto de vista, pelo menos dois pressupostos significativos e imbricados consti-
tuem essa proposta de descolonizar a universidade. Em primeiro lugar, assume-se que a univer-
sidade é um produto da modernidade/colonialidade; como consequência, uma reivindicação
decolonial torna-se essencial. Em segundo lugar, a reivindicação decolonial parece ser baseada
em uma espécie de desejo e certeza de que a universidade pode e deva ser decolonial. Essas
duas questões – uma assumindo e tornando visível a colonialidade ou o novo colonialismo
na educação superior, e a outra almejando um projeto decolonial ou uma opção decolonial para
universidade – são questões sobre o que estou interessada em estudar e aprender mais, e hoje
tenho o privilégio de conversar sobre elas com vocês e com o professor Mignolo.
Esta é, portanto, uma conversa sobre possibilidades e impossibilidades de descolonizar
a universidade – para problematizar, e não romantizar, a educação superior. É por isso que o
exercício de analisar limites e restrições se mostra muito significativo para mim. Sei que esta
conversa poderia se concentrar em práticas contra-hegemônicas, mas por hoje optei por me

36
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

concentrar em questões mais ligadas à globalização hegemônica. Mesmo que algumas pessoas
possam dizer que às vezes pareço pessimista, concordo com Silvia Rivera Cusicanqui, profes-
sora aimará boliviana feminista, socióloga, historiadora e ativista, quando ela diz que nada seria
possível se não desejássemos o impossível; por isso meu ceticismo se baseia apenas naquilo
que é dado como certo.
Mas, antes de começarmos a examinar os limites e as possibilidades, deixem-me explicar
o que quero dizer por universidade e onde eu estou situada. Como vocês ouviram na apresen-
tação inicial, estou geograficamente localizada no sul do Brasil em uma universidade pública
federal. Então, usar a palavra “universidade” faz sentido para mim porque ela reverbera o local
onde estou situada, e o fato de ser uma universidade pública significa para mim a insepara-
bilidade entre pesquisa, ensino e extensão. Esse é o meu contexto. Ao mesmo tempo, sei que
é um desafio usar esse vocabulário, porque o ensino superior brasileiro é muito complexo;
é um país enorme com muita diversidade, e muita desigualdade. Existem instituições públicas
e privadas, diferentes tipos de públicas, diferentes tipos de privadas. Algumas são consideradas
universidades; outras, institutos de pesquisa; outras são majoritariamente instituições de ensi-
no. Há vários nomes nesta diversidade da educação superior. Algumas dessas instituições estão
em áreas urbanas, outras estão em comunidades rurais. Há muitas características que podería-
mos mencionar.
No entanto, meu objetivo aqui não é descrever ou homogeneizar o ensino superior brasi-
leiro. Ao mesmo tempo, eu entendo que quando usamos a palavra “universidade” ou “educação
superior” criamos uma espécie de comunidade imaginada, e minha intenção é levantar questões
relacionadas a essa comunidade imaginada que está conectada aos nossos lugares, contextos,
experiências e práticas locais, e que faz parte da matriz colonial de poder – aspecto central para
as reflexões que proponho aqui.
Achille Mbembe, filósofo camaronês, professor, pesquisador em História e Política
na África do Sul, ao discutir o futuro da universidade na África, explica que os apelos à descolo-
nização não são novos, no sentido de que encontramos na história inúmeros exemplos de lutas
pela democratização do acesso à educação e à universidade baseadas na ideia de que uma re-
distribuição mais equitativa dos recursos e serviços nas sociedades traria melhores condições
de vida para a população. No caso do Brasil, quando pensamos em educação, encontramos
inúmeros exemplos de lutas na criação de escolas para os/as trabalhadores/as e não apenas
para as elites; como as lutas relacionadas à Educação Popular, Educação do Campo, Educação
Indígena, Educação de Jovens e Adultos (se hoje celebramos Paulo Freire, sabemos do que esta-
mos falando); ou mesmo a luta pela educação pública que deve estar disponível a todos e todas,
bem como a compreensão de que todas as crianças devem ir à escola, por exemplo.
Neste sentido, podemos considerar que a descolonização da educação ou a descoloni-
zação da universidade são um projeto ao mesmo tempo antigo e novo. Mas, então, podemos

37
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

perguntar: o que é antigo e o que é novo? Minha intenção aqui não é separá-los; em vez disso,
a proposta é conectá-los. Essa conexão entre colonialidade/modernidade, ou colonialismo, e ca-
pitalismo global e neoliberalismo reverbera outra questão que Achille Mbembe levanta quando
pergunta: quais são os limites colocados ao projeto decolonial pelas forças do neoliberalismo?
Como tais forças neoliberais estão afetando o futuro da universidade? Segundo Boaventura
de Sousa Santos, sociólogo português que escreveu e publicou extensivamente sobre questões
relacionadas à globalização, colonialismo e epistemologias do Sul, a universidade tem sido mol-
dada por dois movimentos aparentemente contraditórios: um que ele descreve como sendo
um movimento de baixo para cima, e outro de cima para baixo. É sobre esses dois movimentos
que vou discorrer, a fim de levantar algumas reflexões e perguntas para nós.
Comecemos, então, com o movimento de baixo para cima. Sousa Santos explica que esse
movimento tem a ver com as lutas sociais pelo direito à educação universitária, de forma seme-
lhante ao que Achille Mbembe menciona em relação à democratização do acesso à educação.
Sousa Santos explica ainda que o elitismo da universidade, que por tanto tempo reforçou a dis-
criminação de classe, raça e gênero na sociedade e na cultura, foi desmascarado, e agora não po-
demos mais fechar os olhos e fingir que não estamos diante dessas questões. Ele também diz que
as lutas pela democratização da universidade têm sido bem-sucedidas de muitas maneiras, pois
vemos que o acesso à educação superior aumentou e novos grupos sociais agora conseguem en-
trar no ensino superior público; além disso, essas mudanças estão ampliando a heterogeneidade
social e a diversidade cultural do corpo estudantil nas universidades.
No caso do Brasil, podemos conectar este movimento de baixo para cima com as ações
afirmativas das últimas décadas. Em relação aos exames de ingresso na universidade, por exem-
plo, tivemos mudanças; os exames antes eram controlados exclusivamente pelos vestibulares,
e agora encontramos diferentes formatos e possibilidades de entrada na educação superior,
tais como o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Também tem havido iniciativas para
implementar o sistema de cotas nas universidades públicas, para garantir acesso a estudantes
que foram historicamente excluídos do ensino superior público do país.
Essas mudanças, entretanto, não trouxeram soluções para as desigualdades e hierarquias
sociais e culturais que encontramos na educação superior. Sousa Santos menciona que o acesso
à educação também trouxe frustração de muitas maneiras para diversas pessoas; tal insatisfação
com a universidade por parte de grupos sociais que só recentemente tiveram acesso ao ensino
superior pode levar a novas lutas sociais pelo direito à educação e pelo direito a uma educação
alternativa. Assim, ainda temos um longo caminho a percorrer, pois não se trata apenas de abrir
portas, mas de criar políticas educacionais e condições dignas para que as pessoas permaneçam
e lutem suas lutas.
De maneira similar, Achille Mbembe ressalta que, quando se fala em acesso, não se está
simplesmente pensando em termos demográficos (embora estes sejam cruciais). Segundo ele,

38
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

quando dizemos acesso, estamos também falando da possibilidade de habitar um espaço a pon-
to de se poder dizer que “esta é minha casa; não sou estrangeiro, eu pertenço aqui. Eu não
sou um hóspede e isso não é caridade”. Essas ideias estão diretamente relacionadas com a des-
colonização da universidade e em como nós, professores e professoras, acadêmicos e acadê-
micas, estudantes, técnicas e técnicos administrativos estamos implicados e implicadas nestas
transformações sociais e institucionais. Podemos nos perguntar, por exemplo: qual é a relação
entre a necessidade de ampliar o acesso à educação e as crescentes demandas por práticas antir-
racistas? Não deveria ocorrer o oposto, ou seja, se há mais redistribuição de recursos e serviços,
se há mais acesso e oportunidades, por que seguimos enfrentando casos de racismo? Por que es-
tudantes, por exemplo, se sentem frustrados/as, deslocados/as, desconectados/as em suas expe-
riências na educação superior? Essas questões me fazem pensar que neste movimento de baixo
para cima, pela democratização do acesso à educação, encontramos muita tensão emaranhada
à constituição da universidade, ao conhecimento acadêmico e científico na civilização ocidental.
Achille Mbembe explica que as universidades são ocidentalizadas no sentido de que
são instâncias locais de um modelo acadêmico dominante, baseado em um cânone epistêmico
eurocêntrico o qual atribui a verdade apenas à forma ocidental de produção do conhecimento
e desconsidera outras tradições epistêmicas; o autor segue explicando que as tradições epistê-
micas ocidentais são tradições que reivindicam a separação entre o que é conhecido e aquele
que conhece. Um pouco mais adiante, em seu texto, ele explica que na tradição ocidental o su-
jeito conhecedor é capaz de conhecer o mundo sem fazer parte desse mundo, e que ele ou ela é
plenamente capaz de produzir conhecimento que supostamente seria universal e independente
do contexto.
O problema – porque Mbembe enfatiza que de fato há um problema – com essa tradição
é que ela se tornou hegemônica. Essa noção hegemônica de produção de conhecimento pro-
duziu práticas científicas discursivas e estabeleceu padrões interpretativos que tornam difícil
pensar de forma distinta dessa lógica. Sua crítica está bastante ligada ao que muitos estudio-
sos latino-americanos que pesquisam modernidade, colonialidade, decolonialidade, incluindo
o professor Walter Mignolo, também ressaltam. Eles dizem que os conhecimentos em ciências
humanas são o resultado da modernidade ocidental; campos de estudo como sociologia, antro-
pologia, história, geografia, filosofia e linguagem ecoam racionalidades produzidas por ideias
e pensadores europeus e eurocêntricos. Como consequência, a estrutura acadêmica ocidental,
historicamente construída e consolidada desqualifica os conhecimentos de quase toda a popu-
lação do planeta e constrói teorias a partir de um conjunto teórico muito limitador.
É por esta razão que diferentes culturas foram e têm sido compreendidas em comparação
com a cultura europeia, e fundadas nas dicotomias europeia versus não europeia, branca versus
não branca; contudo, tais dicotomias não só negam a violência, o epistemicídio e os genocídios
que produziram, mas também negam a simultaneidade onto-epistêmica, a coexistência de tem-

39
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

pos diferentes em espaços diferentes. Assim, ao longo dos últimos 500 anos, temos sido into-
xicados por essas ideias de que o progresso e o desenvolvimento da modernidade são benéfi-
cos; o sofrimento causado aos colonizados, aos subdesenvolvidos, aos não brancos é entendido
como um sacrifício necessário para a modernização.
Vamos agora examinar os cursos, as políticas e as práticas que encontramos em nossas ins-
tituições, nas universidades. Se concordamos que houve certa democratização do acesso à edu-
cação, como tem sido valorizado esse corpo discente heterogêneo que agora integra a educação
superior? Como essa heterogeneidade desestabilizou o ensino e a pesquisa na universidade?
Essa heterogeneidade tem sido considerada benéfica? De que forma? Por que ainda encontra-
mos práticas de exclusão em discursos de inclusão? As políticas e práticas institucionais têm re-
produzido ou interrompido a colonialidade/modernidade? Como o eurocentrismo tem sido
reproduzido ou como nós temos resistido a ele em nossas instituições? Essa lista de perguntas
poderia continuar por horas, mas meu ponto aqui é dizer que, sem analisar profundamente
e reformular com seriedade os entendimentos que temos de justiça social, que circulam entre
nós e em nossas instituições, não há decolonialidade, porque, do meu ponto de vista, não há
nenhum projeto decolonial desconectado de antirracismo, de anticapitalismo, de anticolonia-
lismo, de antipatriarcado; neste sentido, para descolonizar a universidade temos que enfrentar
o colonialismo interno que nos habita e que também segue enraizado em nosso ensino, pesquisa
e práticas institucionais.
Com isso quero dizer que mesmo com a democratização do acesso ocorrendo de muitas
maneiras, a discriminação de classe, raça e gênero segue sendo reproduzida à medida que dis-
cursos de democracia e de justiça social são utilizados dentro de lógicas histórico-sociais consti-
tuídas pela colonialidade/modernidade. É por isso que Sousa Santos destaca que não há justiça
social sem justiça cognitiva, e é por isso que o professor Lynn Mario Menezes de Souza, este
conhecido pesquisador da Universidade de São Paulo que tem feito inúmeras contribuições
fundamentais aos estudos decoloniais no Brasil, reafirma constantemente que um projeto de-
colonial requer identificar, interrogar e interromper a colonialidade tanto em nós mesmos/as
quanto nas instituições.
Passemos ao segundo movimento mencionado por Sousa Santos. Como apontei ante-
riormente, o primeiro foi o movimento de baixo para cima; agora, vamos ver o que acontece
no movimento de cima para baixo. De acordo com o autor, o movimento de cima para baixo
diz respeito à crescente pressão global sobre a universidade para que ela se ajuste e se submeta
aos critérios de relevância e eficácia do capitalismo global. Para piorar a situação, junto a essa
pressão global, o atual cenário educacional também conta com quase nenhum recurso finan-
ceiro. Desse modo, Sousa Santos explica que o processo de descapitalização da universida-
de, intensificado pela pesquisa em inovação tecnológica e competitividade na economia global
do conhecimento, resultou na criação de um mercado acadêmico internacional que serve como

40
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

uma alternativa para sustentar a crise financeira da educação. Em suas palavras, ele afirma que
“há um impacto desconcertante na educação superior; a universidade, de criadora de condições
de concorrência e sucesso no mercado, gradualmente transformou-se ela própria em objeto
de competitividade, em um mercado”.
Como consequência desses dois processos – a descapitalização da educação nacional,
por um lado, e o aumento do mercado transnacional da educação, por outro –, a educação in-
ternacional acaba reforçando e aumentando as desigualdades e as hierarquias entre a educação
superior no Sul global e no Norte global. Neste contexto, a internacionalização tem sido fre-
quentemente definida a partir de discursos multiculturais acríticos e liberais, que celebram a in-
terconexão entre diferentes países, culturas, universidades, pessoas, línguas. Além disso, a in-
ternacionalização tem se justificado como uma forma de responder às demandas globais e como
uma maneira de superar a descapitalização da educação. Isso significa que a internacionalização
é vista como uma alternativa muito lucrativa para que as instituições de ensino superior respon-
dam às demandas globais. Infelizmente, muito pouco tem se questionado sobre essas mudanças
que reforçam o racismo epistêmico, a globalização hegemônica, os fluxos desiguais de mobilida-
de acadêmica, as práticas de recrutamento de estudantes e pesquisadores, os rankings educacio-
nais, a indústria editorial, a insegurança de estudantes no exterior, os mecanismos de controle
do conhecimento por meio da indexação de periódicos acadêmicos, o monolinguismo do inglês
em ambientes acadêmicos, o fato de que a educação internacional é exportada como uma mer-
cadoria, o reforço dos valores ocidentais como superiores a outras formas de vida e existência,
e tantas outras características que poderiam ser mencionadas.
O professor Eduardo Restrepo, antropólogo colombiano que trabalha com teoria social
crítica e estudos culturais, argumenta que houve profundas mudanças na educação superior
nas últimas décadas; ele esclarece que a universidade tem sido orientada por um modelo de ne-
gócios no qual aspectos como produtividade, qualidade de educação e internacionalização sur-
giram sem muito questionamento e foram facilmente naturalizados. Junto com esse modelo em-
presarial, Restrepo explica que houve o estabelecimento de práticas e de pesquisas acadêmicas
baseadas no hipervalor da produtividade e da publicação, principalmente em revistas indexadas
e em inglês. Assim, ele levanta preocupações sobre as consequências dessa lógica que sustenta
a rentabilidade acadêmica, transforma estudantes em clientes e não resolve a insegurança e as
carreiras precárias de muitos pesquisadores e muitas pesquisadoras independentes.
Restrepo também menciona que todo esse sistema impõe novos procedimentos de con-
trole e que as práticas de pesquisa acadêmica estão se tornando muito mais controladas e deli-
mitadas. Segundo ele, a internacionalização se torna uma política educacional agressiva que nor-
maliza as práticas acadêmicas nacionais. Deste modo, diferente do movimento de baixo para
cima que, em muitos aspectos, é informado a partir de lutas sociais e causas democráticas, esse
segundo movimento, o de cima para baixo, expressa forças globais que não carregam as mes-

41
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

mas intenções e desejos sociais. Entretanto, ambos reproduzem a colonialidade/modernidade.


É aqui, então, que podemos ver que o novo e o antigo estão imbricados; emaranhados na globa-
lização neoliberal que reproduz e sustenta a colonialidade/modernidade.
Como explica Sousa Santos, a crise financeira da educação superior acaba funcionando
como uma desculpa perfeita para forçar a universidade a se ajustar e se submeter a critérios
globais de controle e funcionamento. Por sua vez, tal pressão global tende a acentuar o elitismo
da universidade, baseado não apenas na discriminação socioeconômica, mas também na discri-
minação racial, etnocultural, epistêmica e de gênero; assim, no fim das contas, a universidade
se entrelaça cada vez mais com o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado e, em nome de uma
suposta educação superior de qualidade, reproduz constantemente a violência simbólica e o
racismo epistêmico.
Para encerrar, retomo a pergunta inicial: é possível ou impossível descolonizar a univer-
sidade com todos esses elementos que estou considerando aqui? Levantar questões e anali-
sar implicações e complicações tem sido, para mim, uma forma de visualizar os desafios para
descolonizar a educação superior. Da forma como vejo, não há projeto decolonial sem que
se leve seriamente em consideração a complexidade que reside no capitalismo, no colonialismo
e no patriarcado, como esses elementos constituem a produção hegemônica do conhecimen-
to e a colonialidade do ser; ou seja, como nossas subjetividades acadêmicas são constituídas
no eurocentrismo.
Há algumas semanas, eu estava assistindo a uma entrevista com Vandana Shiva, ecofe-
minista indiana, ativista ambiental e escritora antiglobalização; e ela explicava por que há ur-
gência em construir movimentos agroecológicos e como é importante apoiar esses movimentos
que estão desenvolvendo a agroecologia. Ela fez uma analogia pedagógica, dizendo que, da mes-
ma forma que Colombo chegou às Américas com o discurso de que ele descobriu o Novo con-
tinente enquanto ia para a Índia, as corporações agroquímicas e de biotecnologia agrícola estão
produzindo discursos muito semelhantes, discursos sobre si mesmas de que são elas que des-
cobrem informações genéticas sobre sementes, a fim de forçar o controle de patentes e conhe-
cimentos. Segundo Shiva, o que ocorre realmente é a concentração de tecnologia da informação
e da biotecnologia na mão de pessoas que controlam o poder e os recursos financeiros, e assim,
roubam conhecimentos locais das comunidades agrícolas, transformam esses conhecimentos
em um conhecimento monocultural e enriquecem com o mito da tecnologia, do progresso,
do desenvolvimento, da globalização.
Como esse exemplo se relaciona à descolonização da educação superior? Quem está pro-
duzindo a convergência entre tecnologia da informação e biotecnologia? Quem se beneficia
desse tipo de pesquisa? Quem se beneficia da nossa pesquisa? Achille Mbembe explica que há,
no processo de descolonização da universidade, uma condição prévia para entender a pro-
moção dessas associações intensivas entre a indústria transnacional e a universidade. Segundo

42
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

ele, a universidade foi refundada com o objetivo de produzir conhecimento para os mercados
globais em uma economia baseada no conhecimento, em tempos de competição global. A con-
sequência, explica Mbembe, é que a educação superior é considerada como uma chave central
para o desenvolvimento, o crescimento e o paradigma do progresso.
Sousa Santos, de maneira semelhante, explica que, por haver esse interesse mútuo e essa
interligação entre capitalismo e colonialismo, os conflitos se tornarão mais intensos daqui para
frente. Segundo ele, não será possível descolonizar a universidade sem desmercantilizar a edu-
cação, sem lutar contra a racionalidade neoliberal imbricada na educação. Sua proposta, então,
é trabalhar contra o capitalismo e o colonialismo acadêmico, por meio de um movimento basea-
do na pluriversidade e na subversidade, o que ele entende como uma prática contra-hegemônica
e subversiva. Para que isso funcione, diz ele, a universidade precisará refletir sobre seus pró-
prios muros, divisões, isolamento e controle disciplinar, reinventando conexões, articulações,
relacionamentos, produção de conhecimento, autoria, e ser capaz de lutar contra todos os tipos
de monocultura e exclusões. Finalmente, ele ressalta que este processo não será fácil; será ne-
cessária a tradução intercultural e um projeto baseado em pedagogias de conflito. Portanto,
para descolonizar a educação superior, é preciso implementar uma educação que recuse a todos
os tipos de sofrimento e opressão.
Muito obrigada por me ouvirem. Essas foram as ideias que eu trouxe hoje para esta con-
versa. Agora, será um prazer ouvir o professor Mignolo e também as perguntas e comentários
que os e as colegas do bate-papo puderem compartilhar conosco.

Referências

CASTRO-GÓMEZ, S. Decolonizar la universidad. La hybris del punto cero y el diálogo de saberes.


In: CASTRO-GOMÉZ, S.; GROSFOGUEL, R. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad
epistémica más allá del capitalismo global (compiladores). Bogotá: Siglo del Hombre Editores,
Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana,
Instituto Pensar, 2007. p. 79-92.
CUSICANQUI, S. R. Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores.
Buenos Aires: Tinta Limón, 2010.
CUSICANQUI, S. R. “Nada sería posible si la gente no deseara lo imposible”. Entrevista com Silvia
Rivera Cusicanqui por Ana Cacopardo. Andamios, v. 15, n. 37, p. 179-193, 2018.
FERREIRA, A. J. A (in)visibilidade do corpo negro. TED-UEPG, 17 set. 2020. Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=31HOWSPtvN0&t=11s>. Acesso em: 13 set. 2022.
GROSFOGUEL, R. The structure of knowledge in westernized universities: epistemic racism/sexism
and the four genocides/epistemicides of the long 16th century. Human Architecture: Journal of the
Sociology of Self-Knowledge, v. 11, p. 73-90, 2013.

43
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

MARTINEZ, J. Z. Entre fios, pistas e rastros: os sentidos emaranhados da internacionalização


da Educação Superior. 2017. 213f. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
MBEMBE, A. J. Decolonizing the university: new directions. Arts & Humanities in Higher Education,
v. 15, n. 1, p. 29-45, 2016.
MENEZES DE SOUZA, L. M.; MARTINEZ, J. Z.; DINIZ DE FIGUEIREDO, E. Eu só posso
me responsabilizar pelas minhas leituras, não pelas teorias que eu cito: entrevista com Lynn Mario
Trindade Menezes de Souza (USP). Revista X, v. 14, p. 05-21, 2019.
NDLOVU-GATSHENI, S. J. Provisional Notes on Decolonizing Research Methodology and Undoing
Its Dirty History: A Provocation. Journal of Developing Societies, p. 1-12, 2019.
RESTREPO, E. Decolonizar la universidad. In: BARBOSA, J. L.; PEREIRA, L. Investigación cualitativa
emergente: reflexiones y casos. Colombia, 2018. p. 9-23.
SEGATO, R. Brechas Descoloniales para una Universidad Nuestroamericana. In: PALERMO, Z.
(comp.). Des/decolonizar la universidad. Buenos Aires: Ediciones Del Signo, 2015. p. 121-144.
SHIVA, V. Who really feeds the world? The failures of agrobusiness and the promise of agroecology.
Berkeley: North Atlantic Books, 2016.
SOUSA SANTOS, B. A Universidade no Século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória
da Universidade. 3ed. São Paulo: Cortez, 2011.
SOUSA SANTOS, B. The end of the cognitive empire: the coming of age of the epistemologies of the
South. Durham e Londres: Duke University Press, 2018.

44
IDEOLOGIAS LINGUÍSTICAS E OS TERMOS DA CONVERSA:
EM QUE LÍNGUA(S) FALAMOS SOBRE (DE)COLONIALIDADE?

Luís Frederico Dornelas Conti


Universidade de São Paulo

No dia 20 de setembro de 2021, durante a primeira tarde de palestras e debates do primei-


ro ciclo do DELA, com a professora Juliana Martinez e o professor Walter Mignolo, uma discus-
são teve início na seção de comentários. Alguns participantes do evento questionaram, em suas
mensagens enviadas no chat em tempo real, a escolha feita pela professora e pelo professor
de terem a sua conversa em língua inglesa. Uma parte das pessoas se manifestou contra a pre-
sença do inglês em um evento sobre decolonialidade, inferindo que haveria uma contradição en-
tre o tema das palestras e a escolha da língua por parte dos palestrantes, e a favor do português
ou do espanhol para as apresentações e os debates. Tendo sido o teor dessas críticas entendido
como pertinente, e que Walter e Juliana poderiam se interessar em respondê-las, os questio-
namentos feitos pelos participantes na caixa de bate-papo foram levantados pela organização
do evento para serem respondidos pelos dois palestrantes.
Dada a relevância dessa problemática para a área da linguística aplicada e para todos
que a pensam com vistas à decolonialidade, e a forma com que essa problemática atravessa
questões de destaque em um evento como o DELA, pretendo, aqui, regressar aos diferentes
posicionamentos expressos naquela tarde, na caixa do chat e pelos palestrantes. A partir desses
posicionamentos, e com a ajuda da perspectiva semiótica sobre ideologias linguísticas de Irvine
e Gal (2000) e Gal e Irvine (2019), teço reflexões sobre alguns dos argumentos propostos.
Os comentários enviados no chat não foram copiados aqui ipsis litteris. A fim de preservar o ano-
nimato dos participantes que as escreveram, as mensagens foram parafraseadas. Vale também
salientar que as interpretações que elaboro sobre elas, neste trabalho, não expressam necessa-
riamente as opiniões das/os organizadoras/es do DELA. Refletindo sobre os posicionamentos
que emergem dentre os comentários (publicados por escrito ou emitidos por Juliana e Walter),
meu objetivo é o de traçar relações entre eles e de me perguntar, igualmente, sobre as ideologias
linguísticas que podem lhes estar subjacentes.

45
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

O trabalho semiótico realizado por Susan Gal e Judith T. Irvine no campo da antropo-
logia linguística tem muito a contribuir com essas reflexões. Ele se aproxima aprazivelmente
da crítica decolonial que autores como Castro-Gómez (2005, 2007) e Quijano (1992) constro-
em acerca da arrogância da filosofia ocidental; da separação, nessa filosofia, do “material” e do
“ideacional”; e de sua presunção da viabilidade de uma “observação inobservada”, supostamen-
te feita por um sujeito imparcial. Segundo as autoras, ideologias são formas de organizar e se
orientar em relação ao mundo, ou, em outras palavras, “quadros local e historicamente específi-
cos, impregnados pelos interesses políticos e morais das posições sociais e dos projetos em que
se inserem” (GAL; IRVINE, 2019, p. 2)1. Elas são visões parciais da realidade, no duplo sentido
deste termo: parciais porque sempre e necessariamente interessadas, bem como incompletas.
Por serem organizações semióticas, ideologias não se limitam aos conhecidos “ismos”,
doutrinas ou programas que seriam passíveis, nessa acepção, de ser julgados como “certos” ou
“errados”, “verdadeiros” ou “falsos”, em relação aos quais um indivíduo poderia se situar e dos
quais poderia, porventura, se abster. Como afirmam as duas autoras, “os atores sociais, quando
tomam algo enquanto um signo, têm sempre projetos, interesses, motivações. Eles têm sem-
pre um panorama de conhecimentos, experiências, pressupostos, formas de atenção, expectati-
vas; em suma, ideologias” (GAL; IRVINE, 2019, p. 16, ênfase minha)2. Nesse sentido, a “húbris
do ponto zero” (CASTRO-GÓMEZ, 2005, 2007) é também semioticamente impossível. “Não
há uma ‘perspectiva a partir de lugar nenhum’, um olhar que não seja posicionado”, como afir-
mam Irvine e Gal (2000, p. 36)3.
Em seus textos, as autoras se debruçam especialmente sobre as formas com que as pessoas
se posicionam em relação à língua, e como esses posicionamentos influem sobre determinadas
concepções de descrição linguística, sobre mudanças linguísticas e sobre políticas imaginadas,
pleiteadas e exercidas pela e em torno da língua. Como elas afirmam, “declarações sobre língua/
gem nunca são meras declarações. Elas envolvem posições ideológicas [...] e têm consequências
abrangentes no mundo material” (GAL; IRVINE, 2019, p. 1)4. Ideologias linguísticas são, por-
tanto, esquemas conceituais situados em um certo campo sociolinguístico e marcados pelas po-
sições sociais dos sujeitos desse campo, encharcados em seus valores locais e históricos, em suas
práticas interpretativas e nas possibilidades percebidas (ou não) para se negociar, contestar
e ressignificar essas práticas.

1 Tradução minha. Original: “locally and historically specific framings, suffused with the political and moral interests
of the social positions and projects in which they are embedded” (GAL; IRVINE, 2019, p. 2).
2 Tradução minha. Original: “social actors, in taking something as a sign, always have projects, interests, motivations.
They always already have background knowledge, experiences, assumptions, forms of attention, expectations; in short,
ideologies” (GAL; IRVINE, 2019, p. 16, ênfase minha).
3 Tradução minha. Original: “There is no ‘view from nowhere’, no gaze that is not positioned” (IRVINE; GAL, 2000, p. 36).
4 Tradução minha. Original: “statements about language are never merely statements. They entail ideological positions
[...] and they have wide-ranging consequences in the material world” (GAL; IRVINE, 2019, p. 1).

46
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Tendo isso em vista, vejamos a seguir alguns dos posicionamentos sobre língua manifes-
tados durante o referido momento do DELA. Eles estão organizados em duas seções em função
dos dois questionamentos centrais levantados no chat. Em um primeiro momento, estão aqueles
que aludem à suspeita de haver uma “contradição” na opção feita pela língua inglesa em eventos
acadêmicos sobre decolonialidade. Em seguida, estão os argumentos em defesa, ao invés do in-
glês, do português ou do espanhol, opção que não seria então entendida como contraditória
nesse contexto. Em cada uma das duas seções, refiro-me tanto aos posicionamentos de algumas
das mensagens5 do chat quanto às réplicas dos palestrantes. Por fim, concluo com algumas pon-
derações relacionadas à perspectiva de uma escolha (ética?) de uma língua (correta? melhor?)
para debates sobre decolonialidade, almejando adicionar a essa conversa.

Inglês e decolonialidade?

A discussão sobre a presença da língua inglesa durante as apresentações e os debates


do primeiro dia, por parte dos palestrantes, originou no chat pouco antes do intervalo, logo
que Juliana concluiu a sua fala, intitulada Engaging higher education in decolonial conversations:
learning, unlearning, and relearning, e que teve início a sua conversa com Walter, no primeiro
dos dois momentos previstos para a interlocução direta entre os palestrantes. Alguns dos pri-
meiros comentários a esse respeito, redigidos e enviados na caixa de bate-papo, pontuaram
o que seus autores perceberam ser uma incongruência: refletir sobre decolonialidade em inglês.
Essa incongruência se daria, segundo eles, porque nenhum dos dois palestrantes teria o inglês
como “língua materna” e, assim sendo, a escolha especificamente dessa língua seria um sinal
da continuidade, no meio acadêmico, de práticas coloniais e excludentes contra as quais os pa-
lestrantes deveriam tomar partido. Alguns dos comentários sugeriram ainda que a continuidade
de tais práticas poderia não resultar de escolhas conscientes, mas do modo com que elas se im-
pregnam e se reproduzem nesse meio.
A associação feita, no entanto, entre a língua inglesa e a continuidade de práticas coloniais
acadêmicas parece partir de uma concepção bastante particular do que se caracterizaria como
colonial. O inglês é colocado em oposição ao português e ao espanhol, as “línguas maternas”
dos palestrantes, adotando-se assim uma oposição entre “anglicidade” e “latinidade”. Essa é uma
distinção que opera dentro do quadro de categorias herdadas da própria modernidade/colonia-
lidade (MIGNOLO, 2005). Nesse sentido, Juliana nos chama a atenção6 para como “um lugar
5 Ressalto que um número grande de mensagens foi enviado e consequentemente posicionamentos ideológicos variados
sobre língua emergiram dentre elas. Uma parte considerável das mensagens, por exemplo, não criticava o fato das pales-
tras e interlocuções serem em inglês e, como um debate acabou irrompendo na seção de comentários, muitas mensagens
se manifestaram contrária ou diversamente àquelas que contestaram a opção por essa língua. No entanto, pelo escopo
deste trabalho, concentro-me sobre aquelas que se dedicaram a questionar a escolha do inglês e/ou a propor que o
debate deveria ser em português ou espanhol.
6 Este e os demais momentos citados se encontram no mesmo vídeo do YouTube. Fonte: DELA–Ciclo 1: Juliana
e Mignolo (20 de setembro de 2021), disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kbX0-L2EOfg>. Acesso
em: 19 fev. 2022.

47
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

fora da colonialidade [...] não existe” ( Juliana: 1:26:46)7. As oposições pelas quais nos orienta-
mos, mesmo que busquem inversões ontológicas, e mesmo que mudem o “conteúdo” da conver-
sa, podem acabar por reproduzir os seus “termos”, isto é, podem manter ilesos os seus pressu-
postos epistemológicos, como nos ensina Mignolo (2018)8. Momentos depois de Juliana, Walter
assinala que o português e o espanhol são, como o inglês, línguas imperiais, “porém são línguas
imperiais de segunda classe” (Walter: 1:28:18)9. O português e o espanhol, por si só, não se
consolidariam tampouco como as alternativas desejadas para a resistência às práticas coloniais.
O posicionamento que assume uma oposição entre o “anglo” e o “latino”, e que coloca o in-
glês do lado do colonial (diferentemente, nessa acepção, do “latino”), assume por consequência
uma série de outras oposições recebidas e transmitidas desde o Iluminismo. Mignolo (2005)
reforça que a latinidade foi inventada, enquanto identidade que remetesse a um suposto legado
do império romano, por um grupo específico de pessoas em um determinado momento histó-
rico: os eurodescendentes do continente americano, durante os movimentos independentistas
da primeira onda de descolonização, no fim do século 18 e na primeira metade do século 19.
Desde a sua concepção, a latinidade foi tomada como uma forma de apagar e excluir as popula-
ções indígenas e negras das lutas por independência, e garantir que estas fossem empreendidas
segundo uma idealização eurocentrada de Estado-Nação. Quando pensadores europeus bus-
caram, então, explicar o que viam como o “atraso” dos países “latinos” em relação aos “anglos”,
eles transportaram para o continente americano a mesma relação hierárquica que enxergavam
entre os países do norte e do sul europeu. A concepção de colonial/imperial com que Juliana
e Walter trabalham, nos dois excertos acima, demonstra, assim, uma preocupação com os ter-
mos que mantemos em nossas conversas. Retorno a essa questão adiante. Antes disso, um outro
aspecto do questionamento levantado por alguns participantes do evento, sobre a escolha do in-
glês pelos palestrantes, merece ser destacado.
Quando a escolha de uma língua é contestada sem que se faça uma crítica às práticas
exercidas nessa língua, ao que com ela se diz, como e com que finalidade, tem-se a impressão
de que do ponto de vista dessa desaprovação o que é dito, de que maneira e com que propósito
importam menos do que a escolha da língua em si. Juliana aponta para esse problema quando
enfatiza que, no que se refere às práticas de linguagem em questão (e à sua crítica), essa proble-
mática “não depende da língua que usamos, depende do que dizemos, de por que e como usa-
mos a língua” ( Juliana: 1:27:01)10. Walter tece um comentário em linhas similares, reiterando:
“O inglês não é a minha língua; eu estou apenas usando-o. E eu uso-o politicamente” (Walter:

7 Tradução minha. Original: “a place outside coloniality [...] doesn’t exist” ( Juliana: 1:26:46).
8 Mignolo (2018) critica a ficção moderna/colonial de que a epistemologia serviria apenas para “representar” uma onto-
logia previamente dada. Decolonialmente, o ser e o saber não se desvinculam, como pretendiam os iluministas, e um
não precede o outro.
9 Tradução minha. Original: “except that they are second-class imperial languages” (Walter: 1:28:18).
10 Tradução minha. Original: “it doesn’t depend on the language that we use, it depends on what we say, and why and how
we use the language” ( Juliana: 1:27:01)

48
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

1:29:49)11. Os aspectos sócio-históricos que cercam uma língua têm importância, e ter ciência
deles, como das relações desiguais de poder em que a modernidade/colonialidade ordena as lín-
guas do mundo, é necessário; porém, por si só, é insuficiente. Isso deriva de como a colonialida-
de atuou e atua não apenas para apagar e excluir as línguas dos povos colonizados, mas também
para se sobrepor às suas ontoepistemologias. Por isso é perfeitamente possível, por exemplo,
que se use uma língua indígena para repercutir ideais modernos/coloniais (são emblemáticas
as missões evangelizadoras que, até hoje, tão comumente o fazem).
Pensar nas fronteiras, decolonialmente, se refere ao uso estrategicamente político do inglês
que Walter propõe. Tem a ver com produzir inclusive em língua inglesa discursos outros, assim
como tem a ver com a pergunta que Walter nos oferece logo em seguida: “Como podemos usar
a universidade sabendo que a universidade está nos usando?” (Walter: 1:30:20)12. Nesse senti-
do, impõe-se similarmente a mim a questão sobre de que maneira e com que propósito eu es-
tou, agora mesmo, escrevendo em português, ainda que eu saiba da longa história de opressão
dessa língua, de seu passado e de seu presente coloniais. Ou então: como e com que fins escrevo
este trabalho acadêmico, seguindo preceitos próprios deste gênero textual (também marcado
pela modernidade/colonialidade), e estando ao mesmo tempo consciente das exclusões e dos
apagamentos referentes à universidade brasileira? Seria desejável o abandono da tentativa?
Esses são questionamentos que me parecem bastante alinhados com o desejo de se questionar
a continuidade, dentro da academia, de práticas coloniais. São questionamentos que me levam
a perguntar, enfim, como podemos colaborar, “em termos da [nossa] própria práxis, [...] para
abrir rachaduras decoloniais e fraturar e fissurar o controle da modernidade/colonialidade so-
bre o saber, pensar, e aprender na universidade” (WALSH, 2018, p. 28)13.

O português, o espanhol e a América Invertida

O segundo grupo de questionamentos levantados acerca da escolha da língua inglesa pelos


palestrantes foi um pouco além da crítica à mera presença desse idioma em um evento sobre de-
colonialidade, e advogou, em seu lugar, pelo português e pelo espanhol. Alguns dos comentários
enviados e que se dedicaram à indagar por que Juliana e Walter não estavam se comunicando
nessas duas línguas, ao invés de em inglês, se reuniram ao redor de três argumentos principais:
o português e o espanhol seriam mais “democráticos” e abraçariam um número maior de par-
ticipantes do evento; essas línguas comungariam de muitas similaridades, por seu parentesco
latino, gozando por isso da vantagem da “intercompreensão natural” entre seus falantes; e essas
línguas seriam, respectivamente, as “línguas maternas” de Juliana e Walter.

11 Tradução minha. Original: “English is not my language, as I am just using it. And I use it politically” (Walter: 1:29:49).
12 Tradução minha. Original: “How can we use the university knowing that the university is using us?” (Walter: 1:30:20).
13 Tradução minha. Original: “in terms of [our] praxis itself, [...] in opening decolonial cracks and fracturing and fissuring
modernity/coloniality’s hold on knowledge, thinking, and learning within university” (WALSH, 2018, p. 28).

49
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Assim como com a ideia de “anglicidade”, que estaria em oposição à “latinidade”, esses três
argumentos pressupõem uma série de categorizações homogeneizantes. De início, a concepção
de “língua materna”, de que partem, não é incontroversa. Esse conceito se avizinha da compre-
ensão de que línguas seriam entidades discretas e monolíticas, visão esta que apaga a imensidão
de variedades tanto do português quanto do espanhol. Presumir que falantes de um necessaria-
mente “entendem” os falantes do outro pode acabar por obscurecer essa diversidade. Ao mesmo
tempo, essas são conjecturas que ecoam aquelas, dentre as críticas à opção pela língua inglesa,
que me levam a interrogar quais falantes de cada uma das três línguas esses comentários esta-
riam entrevendo. Como Walter faz questão de nos recordar, “o inglês é uma língua caribenha.
É uma língua afro-caribenha. E é a língua da Nigéria. [...] É a língua da Índia” (Walter: 1:28:48)14.
A quem pertence uma língua? Como com o português e o espanhol, o inglês é falado também
por multidões de corpos concretos, plurais e complexos que foram colocados do lado de cá da li-
nha colonial. Enfocando a língua inglesa e construindo uma argumentação que pode se esten-
der a outras línguas nomeadas, Makoni e Pennycook (2006), sustentam que se abandonarmos
o positivismo linguístico e tomarmos as línguas como invenções, desinventáveis e reinventáveis,
podemos ir além de sua essencialização (fixando-as em características predeterminadas) e nos
interessarmos mais a respeito das mobilizações que se perfazem nas práticas com essas línguas.
Além do mais, mesmo se adotássemos uma ideologia linguística na qual línguas sejam
entendidas como objetos contáveis, e tomando apenas o Brasil como exemplo (e aqui somen-
te as línguas dos povos indígenas), é importante lembrar que nesse país são faladas centenas
de línguas15. Pelo menos cinco delas contam com mais de 10 mil falantes cada. A complexidade
aumenta se incluímos nessa conta as multidões de outros corpos que estão nesse país e que fa-
lam outras línguas do mundo, e aumenta ainda mais se considerarmos que o DELA, um evento
online, não se endereçava exclusivamente aos corpos que estão fisicamente situados no Brasil.
Afinal, quem consegue ouvir as semelhanças supostas entre o português e o espanhol? Quem
tem acesso à intercompreensão assumida entre eles, e o que as naturalizações que estimamos
sobre um ou o outro, e sobre as pessoas que os falam, podem dizer sobre o lugar de onde
falamos?
Ainda no que concerne às concepções sobre Estado-nação recebidas da modernidade/co-
lonialidade, cabe questionar que posicionamentos aparecem na formulação, elaborada em uma
parte das mensagens do chat, dos motivos pelos quais, naquele contexto, “dever-se-ia” falar
em português e espanhol. A visão de democracia que vigora na defesa desse argumento acaba
por recair naquela que se legitima através do Estado: a da democracia liberal (ou a democracia
da maioria numérica absoluta, uma maioria cujas heterogeneidades precisam se dissimular).

14 Tradução minha. Original: “English is a Caribbean language. It’s an Afro-Caribbean language. And it’s the language
of Nigeria. [...] It is the language of India” (Walter: 1:28:48).
15 “Os resultados do Censo 2010 apontam para 274 línguas indígenas faladas por indivíduos pertencentes a 305 etnias
diferentes”. Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2010.

50
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

De igual modo, o posicionamento que se apropria de uma concepção de “língua materna”, su-
bentendida enquanto aquela com status de “oficial” no país em que se nasce, é também o po-
sicionamento que imagina, desde o Iluminismo, haver uma relação direta, retilínea e simétrica
entre uma língua, uma nação e um Estado (IRVINE; GAL, 2000). O português e o espanhol
seriam, dentro dessa ideologia, as línguas próprias aos países ao sul dos Estados Unidos e, por-
tanto, uma inversão (ética) da escolha linguística se faria imperiosa.
O posicionamento a partir do qual se enxerga um abismo entre a anglofonia e a hispano-
-lusofonia, e que ao enxergar esse abismo (ao longo do Río Bravo) defende uma inversão dos po-
los, é um posicionamento comparável àquele do artista montevideano Joaquín Torres-García
quando desenhou a célebre América Invertida. Nas palavras de Mignolo (2005, p. 149), “a in-
versão da visão naturalizada das Américas, com o Sul no topo, é, de fato, um passo importante,
mas longe de ser suficiente. Ela muda o conteúdo, não os termos da conversa” (MIGNOLO,
2005, p. 149)16. A essa cartografia invertida faltam perspectivas outras sobre desenhar a terra,
perspectivas silenciadas pela modernidade/colonialidade: “cartografias afro e indígenas”, como
Mignolo (2005, p. 149) sustenta, e também cartografias neurodivergentes e de pessoas “com
deficiência”, cartografias travestis, transfeministas e intersexo, cartografias de pessoas refugia-
das e de imigrantes “ilegais”, para mencionar apenas algumas. Ao projeto de inversão dos polos,
principalmente àquele que se acaba na sua inversão, faltam o pensamento fronteiriço (uma
abertura para mobilizações através das rachaduras) e a lembrança de que os Nortes têm mais
que um Sul e de que os Suis não têm um só Norte.

Reflexões finais: para escapar de inversões unívocas

Todo tiene un sur. El lenguaje tiene un sur. La música tiene un sur. El cuerpo tiene un sur.
Tú mismo tienes un sur. Gira la cabeza. Cómete el mapa. Hackea la línea vertical. Devuelve
la soberanía a tus pies y baila. Deja que tu sur decida (PRECIADO, 2019, p. 277)17.

Como a escolha de uma língua pode ser justificada? Será possível, ou desejável, o projeto
de se estabelecer para tais escolhas uma fundamentação ético-normativa18? Que outros proje-

16 Tradução minha. Original: “inverting the naturalized view of the Americas, with the South on top, is indeed one im-
portant step, but far from being sufficient. It changes the content, not the terms of the conversation” (MIGNOLO,
2005, p. 149).
17 “Tudo tem um sul. A linguagem tem um sul. A música tem um sul. O corpo tem um sul. Você mesmo tem um sul. Vire
a cabeça. Coma o mapa. Hackeie a linha vertical. Devolva a soberania aos seus pés e dance. Deixe que o seu sul decida”
(PRECIADO, 2019, p. 277).
18 Penso o conceito de normatividade ética em consonância com Allen (2016), para quem a ideia racionalista e linear
de progresso histórico pode “contaminar” tanto os fundamentos normativos orientados pelo transcendentalismo (cons-
trutivismo metafísico/idealista) quanto parte dos que se assentam no materialismo (reconstrutivismo crítico/imanen-
te): naqueles primeiros, pelo racismo evidente em sua concepção universal, a-histórica, etnocêntrica de verdade, nestes
últimos pelo risco de recaírem nos primeiros e partirem de pressupostos eurocêntricos acerca do desenvolvimento
histórico e da aprendizagem sociocultural.

51
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

tos se integram a esse? Que ecos podem-se escutar em meio à proclamação de uma (ou mais)
língua(s) como a(s) correta(s), como a(s) única(s) que se deve(m) falar em determinados con-
textos? E, além disso, que corpos podem ou não escolher entre uma ou outra língua? Que re-
presentações são feitas sobre eles e sobre as línguas que falam? Uma língua é, aliás, sempre
uma questão de escolha? Que línguas contam como línguas? Que línguas, enfim, são tidas como
opções viáveis; e o que essas respostas podem nos dizer sobre nós mesmas/es/os? Essas são al-
gumas perguntas que, tendo em vista os comentários analisados acima e o que ensinam Gal e
Irvine (2000, 2019) sobre ideologias linguísticas, impeliram-me a escrever este trabalho.
A univocidade epistêmica, ainda que invertida por um determinado imperativo ético,
não deixa de ser unívoca. Ao defender a troca dos sinais das grandezas de uma dada relação, suas
regras e condições (seus termos) são, não obstante, retidas. Fixam-se os que nela se implicam
em uma eterna cadeia de ação e reação oscilando sobre um eixo só: um eixo a priori. Entender
como se constituem os desnivelamentos de poder (investigar, por exemplo, o que tem levado
a academia a se tornar tão anglófona) é crucial. Fazer outros tipos de perguntas, ontoepistemi-
camente desobedientes, perguntas abertas, nos termos de Icaza e Vázquez (2013), também é.
Perguntas que se elaborem enquanto aberturas para concepções não lineares do espaço e do
tempo, não sendo “adequadamente entendidas através da mesma racionalidade que sublinha
os processos com que estão rompendo” (ICAZA; VÁZQUEZ, 2013, p. 689)19. Ir além também é.
Em torno de que ponto gira o mapa da América Invertida? O ponto que se imagina,
um ponto zero (CASTRO-GÓMEZ, 2005, 2007), “fora” de toda cartografia, propõe, afinal,
uma inversão univetorial: uma inversão que pode vir a orientar, como em parte dos posiciona-
mentos explorados aqui, um desejo de normatização linguística — já que não é a normatização
em si que é colocada em jogo. O mapa que se inverte mantém a pretensão universal do mapa
original ao não colocar em pauta a epistemologia por trás das ontologias que, reviradas ou não,
ele preserva. Por isso críticas à modernidade que não a exponham como anverso da coloniali-
dade (à qual é necessária), ou críticas ao neoimperialismo que se concentrem sobre e se limi-
tem ao prefixo “neo”, desanexando-o genealogicamente de sua epistemologia moderna/colonial,
colaboram à sobrevivência de categorias herdadas do eurocentrismo. Essas ontologias inertes
bloqueiam o potencial radicalmente criativo e próprio das interações Sul-Sul. Espaços de con-
fluência entre geo-corpo-historiografias heterogêneas podem se abrir, no entanto, e cartogra-
fias diversas podem acrescentar produtivamente aos desenhos umas das outras se a percepção
de seus apagamentos nos impelir também a ir além e a investigarmos, por exemplo, o que ante-
cede e ultrapassa a própria ficção da linha vertical “Norte-Sul”.

19 Tradução minha. Original: “adequately understood through the same rationality that underlies the processes that they
are breaking with” (ICAZA; VÁZQUEZ, 2013, p. 689).

52
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Referências

ALLEN, A. The end of progress: decolonizing the normative foundations of critical theory. Nova York:
Columbia University Press, 2016.
CASTRO-GÓMEZ, S. La hybris del punto cero: Ciencia, raza e ilustración en la Nueva Granada
(1750-1816). Bogotá: Editorial Pontificia Universidad Javeriana, 2005.
CASTRO-GÓMEZ, S. Decolonizar la universidad. La hybris del punto cero y el diálogo de saberes.
In: CASTRO-GÓMEZ, S; GROSFOGUEL, R. (Comps.). El giro decolonial: Reflexiones para
una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre, 2007. p. 79-92.
DELA–Ciclo 1: Juliana e Mignolo, 20 set. 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=kbX0-L2EOfg>. Acesso em: 19 fev. 2022.
GAL, S.; IRVINE, J. T. Signs of difference: Language and ideology in social life. Cambridge: Cambridge
University, 2019.
IBGE–INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, Censo Demográfico 2010.
2010. Disponível em: <https://indigenas.ibge.gov.br/estudos-especiais-3/o-brasil-indigena/lingua-
falada>. Acesso em: 27 mar. 2022.
ICAZA, R.; VÁZQUEZ, R. Social struggles as epistemic struggles. Development and change, v. 44, n.
3, p. 683–704, 2013.
IRVINE, J. T.; GAL, S. Language ideology and linguistic differentiation. In: KROSKRITY, P. V. (Ed.).
Regimes of language: Ideologies, polities and identities. Santa Fe: School of American Research, 2000.
p. 35-84.
MIGNOLO, W. The idea of Latin America. Oxford: Blackwell, 2005.
MIGNOLO, W. The decolonial option. In: MIGNOLO, W.; WALSH, C. On decoloniality: Concepts,
analytics, praxis. Durham: Duke University, 2018. p. 103-244.
PRECIADO, P. Un apartamento en Urano: crónicas del cruce. Barcelona: Editorial Anagrama, 2019.
QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena, v. 13, n. 29, 1992. p. 11-20.
WALSH, C. Decoloniality in/as praxis. In: MIGNOLO, W.; WALSH, C. On decoloniality: concepts,
analytics, praxis. Durham: Duke University, 2018. p. 13-102.

53
NEOLIBERALISMO COMO UMA FACE DO NEOCOLONIALISMO E
UMA CAMADA DE DOMINAÇÃO AO LADO DA COLONIALIDADE

Raphael Barreto Vaz


Universidade Federal do Paraná1

A Linguística Aplicada (LA) brasileira (MENEZES DE SOUZA; DUBOC, 2020;


ALBUQUERQUE; HAUS, 2020, entre outros) tem estabelecido um significativo diálogo com os
Estudos Decoloniais (GROSFOGUEL, 2018; MIGNOLO, 2003; MIGNOLO; WALSH, 2018;
QUIJANO, 2000; SOUSA SANTOS, 2019)2. Nessa toada dialógica, de acordo com as conside-
rações que serão propostas ao longo deste capítulo, uma Educação Linguística Crítica que in-
clua questões sobre (de)colonialidade e neocolonialismo pode contribuir para uma formação pro-
blematizadora num contexto de miséria neoliberal (CASARA, 2021).
Em seu livro Educação crítica em língua inglesa: neoliberalismo, globalização e novos letra-
mentos, Ferraz (2015) tece relações entre temas-chave para as reflexões que apresento aqui.
Segundo o autor, preocupações atuais “sugerem o desenvolvimento da criticidade como algo
essencial para a educação de cidadãos em sociedades digitais e globalizadas” (FERRAZ, 2015,
p. 14) e acrescenta que “as humanidades têm a função de interligar todas as áreas do conheci-
mento pela linguagem” (FERRAZ, 2015, p. 15). Sendo eu um linguista aplicado e um professor
de inglês, estou deveras preocupado com o que aponta Ferraz (2015, p. 71-72–ênfase minha):

o ensino de línguas estrangeiras pode colaborar para a formação de cidadãos críticos e deveria
estar preocupado com aspectos linguísticos […] e com os culturais e identitários (saber uma lín-
gua estrangeira para entender o outro e a si mesmo e as razões pelas quais estuda determinada
língua e não outra. […] A língua inglesa é vista como um imaginário social pelos alunos e pro-
fessores […]. [Nesse sentido], trata-se de um imaginário social fundamental para as relações
capitalistas neoliberais uma vez que, ao imaginar a língua inglesa como global e essencial, gera-se,
por exemplo, um discurso coletivo de necessidade/obrigatoriedade que leva as pessoas a estu-
darem a língua.

1 Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Federal do Paraná. Contato: raphavazz@gmail.com.


2 Cf. https://dela.de.curitiba.br/?O=pri

55
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Em preocupações que podem ser aproximadas, Kress (2010, p. 19–ênfase minha) destaca
que “the English language has acted as a vector for the spread of relevant ideologies: neoliberal/
neoconservative3 conceptions of market, state, family and the individual.”4 Logo, investigar o pen-
samento neoliberal se torna demasiadamente relevante para uma educação linguística crítica,
pois faz parte de considerações ontológicas sobre as alunas, os alunos e as/os profissionais
de educação.
Dito isso, vale ressaltar que línguas e linguagem não existem sem suas/seus falantes,
se manifestando em uma prática social localizada temporal, geográfica e geopoliticamente.
Consequentemente, questões sociais, econômicas, políticas etc. justam-se numa leitura de mun-
do que, como destaca Ferraz (2015), podem contribuir para um discurso anti-hegemônico
na educação linguística crítica. Finalmente, com fins anti-hegemônicos, podem-se incluir ques-
tionamentos sobre o poder capitalista principal, o hegemon, da contemporaneidade em nossas
análises, algo que farei à frente.
As reflexões que se seguirão foram originalmente apresentadas na minha dissertação
de mestrado na Universidade Federal do Paraná (BARRETO VAZ, 2022) e aqui serão apresen-
tadas de forma resumida, focando apenas em uma das faces, a saber, o neoliberalismo5, do que
tenho chamado de neocolonialismo contemporâneo e que detalharei mais a frente.
Antes, porém, acredito que seja oportuno tratar brevemente dos dois pontos basilares
das minhas considerações, a saber, LA indisciplinar e Estudos Decoloniais.
Primeiramente, entendo indisciplina como definida por Moita Lopes (2006, p. 27–ênfase
minha):

a possibilidade política de que a pesquisa contemple outras histórias sobre quem somos ou ou-
tras formas de sociabilidade que tragam para o centro de atenção vidas marginalizadas […],
[buscando] apresentar alternativas para entender o mundo contemporâneo como também cola-
borar na construção de uma agenda anti-hegemônica em um mundo globalizado, ao mesmo tempo
em que reescreve a vida social e as formas de conhecê-la.

Segundo o autor, indisciplina seria uma forma de superarmos a excessiva departamentali-


zação disciplinar herdada do positivismo europeu, ligada a especializações que podem não dar
conta de entender o contexto de forma mais ampla, apagando as relações entre aspectos distin-
tos da vida. A indisciplina possibilita desrespeitar padrões de pensamento que limitam a cons-
trução de conhecimentos, nos permitindo criar novos caminhos, novas narrativas.
3 Cooper (2017) faz um relevante estudo sobre a união do pensamento neoliberal e do pensamento neo-conservador
na atualidade.
4 “A língua inglesa tem atuado como vetor de disseminação de ideologias relevantes: concepções neoliberais/neo-
conservadoras de mercado, estado, família e indivíduo.”–tradução minha.
5 Trato especificamente dessa face do neocolonialismo por ter sido o foco da minha intervenção durante o DELA: cf.
https://youtu.be/RUsYB9I9ThM

56
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Por outro lado, na empreitada de buscar entender as forças coloniais que determinaram
a história mundial desde a modernidade e suas consequências até a contemporaneidade, muitos
pesquisadores daqui, Brasil, e de toda América Latina (e até do Norte Global) têm se envere-
dado nos Estudos Decoloniais.
Os Estudos Decoloniais se preocupam em entender a hierarquia entre Sul Global e Norte
Global, sendo estes não lugares geográficos, mas uma metáfora que busca explicar as opressões
que foram promovidas pelo projeto colonial da modernidade europeia (MIGNOLO, 2003)
por meio de um olhar contra-hegemônico (SOUSA SANTOS, 2019).
Para minha linha de pensamento, considero fundamentais os conceitos de colonialismo
e colonialidade como entendidos por Mignolo (2003). O primeiro, segundo o autor, se refere
ao período histórico de dominação colonial pelos impérios europeus durante a modernidade,
quando estes exerciam completo controle sobre suas colônias mais marcadamente entre os sé-
culos XVI e XIX. Já o segundo, defende Mignolo, se refere às consequências históricas do mo-
delo colonial que perduram até a contemporaneidade.
Ainda, a decolonialidade busca, entre outras preocupações, entender como a categoria
de raça foi criada na modernidade para estabelecer a colonialidade do ser: “and such an idea
was not meant to explain just the external or physiognomic differences between dominan-
ts and dominated, but also the mental and cultural differences.”6 7 (QUIJANO, 2019, p. 126).
Assim, construir entendimentos sobre como se formam/se estabelecem estruturas de domina-
ção se mostra essencial para, em seguida, podermos superá-las.
De acordo com Mignolo (2011, p. 273-274),

decoloniality has its historical grounding in the Bandung Conference of 1955 in which 29 coun-
tries from Asia and Africa gathered. […] From then to now and from now to the future, it will
be decoloniality all the way down–not as a new universal that presents itself as the right one that
supersedes all the previous and existing ones, but as an option […, where] border thinking is the
epistemic singularity of any decolonial project.8

6 “e tal ideia não pretendia explicar apenas as diferenças externas ou fisionômicas entre dominantes e dominados,
mas também as diferenças mentais e culturais.”–tradução minha.
7 No que tange as citações em outras línguas, que não o português, incorporadas no texto, priorizarei por citar a versão
original, seguida pela tradução. Quando a citação não for destacada e aparecer no corpo do texto, usarei a versão
original e mencionarei a tradução em nota de rodapé. Assim faço para dar destaque ao texto original, deixando a minha
tradução/adaptação em segundo plano.
8 “a decolonialidade tem seu fundamento histórico na Conferência de Bandung de 1955, na qual 29 países da Ásia e da
África se reuniram. […] Desde então até agora e de agora para o futuro, será decolonialidade até o fim–não como
um novo universal que se apresenta como o certo que suplanta todos os anteriores e existentes, mas como uma opção
[…onde] pensamento fronteiriço é a singularidade epistêmica de qualquer projeto decolonial”- tradução minha.

57
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Num processo dialógico, a decolonialidade não almeja apenas adaptar teorias à realidade
local, do Sul Global, mas sim desenvolver aprofundamentos baseados em conhecimentos pré-
vios e, também criar novas teorias e novos entendimentos nossos, estando interessada:

in relationality. That is, in the ways that different local histories and embodied conceptions
and practices of decoloniality, including our own, can enter into conversations and build un-
derstandings that both cross geopolitical locations and colonial differences, and contest the tota-
lizing claims and political epistemic violence of modernity (MIGNOLO; WALSH, 2018, p. 1)9.

Isso deve-se ao entendimento de que “verdades” são sempre incompletas e em constante


amadurecimento e transformação, visando superar “the Eurocentric legacies incarnated in U.S.-
centrism and perpetuated in the Western geopolitics of knowledge.”10 (MIGNOLO; WALSH,
2018, p. 2–ênfase minha)–algo que deve, a meu ver, ser incluído em uma educação linguística
crítica, especialmente em inglês (FERRAZ, 2015), questionando e problematizando seu papel
de língua hegemônica na atualidade (BONILLA, 2021).
Nesse sentindo, análogo à LA indisciplinar, o projeto decolonial desafia não apenas
os preceitos científicos modernos e positivistas de distanciamento, neutralidade e objetividade,
mas, também, toda a estrutura do pensamento moderno em relação à teoria, ao conhecimento,
à pesquisa e ao pensamento acadêmico, buscando desmontar as paredes disciplinares e uma ex-
trema especialização que perde de vista o todo/a totalidade (the big picture). Para tanto, práticas,
posturas e processos que transgridem, intervém e são insurgentes fazem parte da construção
decolonial, o que Walsh (2018) chama de insurgência decolonial, uma vivência simultaneamen-
te política, epistêmica e existencial que provém de baixo pra cima e das margens, formando
um pensar/sentir/viver outro, a saber, anticapitalista, ao que eu acrescentaria um pensar/sentir/
viver anti-imperialista.
Dito isso, a partir daqui, este capÍtulo se organiza da seguinte forma: primeiramente, de-
fino o neocolonialismo como um modelo de dominação global e contemporâneo; em seguida,
abordo o neoliberalismo como uma luta de classes, no contexto estadunidense e mais detida-
mente no contexto brasileiro, para em seguida ampliar a discussão conceituando o neolibera-
lismo como fase atual do capitalismo; depois, me detenho em caracterizar a razão neoliberal
e a construção do neosujeito (DARDOT; LAVAL, 2016) e, então, esboço considerações sobre
o desenvolvimento de uma leitura de mundo globalista pelos neoliberais (SLOBODIAN, 2018);
parto, em seguida, para o conceito de neoliberalismo progressista (FRASER, 2019) e para o con-
texto da universidades brasileiras onde o neoliberalismo tem afetado seu modus operandi; finalizo
9 “na relacionalidade. Ou seja, nas maneiras como diferentes histórias locais e concepções e práticas incorporadas
de decolonialidade, incluindo a nossa, podem entrar em diálogo e construir entendimentos que atravessam localizações
geopolíticas e diferenças coloniais e contestam as reivindicações totalizantes e a violência epistêmica política
da modernidade MIGNOLO; WALSH, 2018, p. 1).”
10 “os legados euro-cêntricos encarnados no centrismo norte-americano e perpetuados na geopolítica ocidental
do conhecimento”.–tradução minha.

58
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

com minhas últimas reflexões nas quais defendo que o neoliberalismo e o neocolonialismo podem
fazer parte de uma educação linguística crítica ao lado do entendimento de colonialidade.

Neocolonialismo

Como mencionei anteriormente, Mignolo (2003) define colonialidade como as conse-


quências históricas do colonialismo europeu que perduram na atualidade. Em contrapartida,
a hipótese que eu defendo neste capítulo é a de que, além das consequências históricas do do-
mínio europeu, o mundo experiencia um outro modelo de expropriação, espoliação e explora-
ção que pode ser entendido como neocolonial. Em outras palavras, macro-estruturas distintas
de dominação foram criadas para avançar os interesses do Norte Global, porém, desta vez sob
controle do império estadunidense, cujas práticas se espalharam ao redor do mundo, especial-
mente desde a Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos da América (EUA) emer-
giram como império hegemônico do mundo capitalista.
Portanto, tenho buscado construir sentidos sobre essa nova matriz de poder a partir
de quatro aspectos, ou quatro faces, que determinam o modelo neocolonial, cuja

diferença mais marcante em relação ao imperialismo europeu anterior é a recusa do exercí-


cio de um imperialismo formalizado pela submissão política e militar explícita […], fundado
na exploração econômica dos recursos e das riquezas de outras nações a partir dos próprios
mecanismos de mercado […por meio de] um arcabouço de legitimação simbólica e ideológica
da nova dominação americana no mundo periférico, sobretudo no que se chama hoje em dia
de Sul Global. (SOUZA, 2021, p. 154-155).

O termo “neocolonialismo”, porém, não é novo nem sequer recente. Vladimir Ilyich
Ulyanov, por exemplo, mais conhecido como Lênin (2012), já abordou o tema no início do sé-
culo XX, assim como o fez Kwame Nkrumah (1965) em meados do mesmo século. Para os au-
tores (LÊNIN, 2012; NKRUMAH, 1965), o termo poderia ser aproximado do conceito de “im-
perialismo”, sendo que Nkrumah chamava de neocolonialismo o “[…] imperialism in its final
and perhaps most dangerous stage […]”11 (NKRUMAH, 1965, p. ix), enquanto Lênin definiu
imperialismo como fase superior do capitalismo (LÊNIN, 2012), sua fase monopolista que pre-
dominou a partir do século XIX e tem se caracterizado por uma concentração e acumulação
de capital marcadamente mais intensa (PHILLIPS, 2018). Ademais, o termo foi usado para
contrapor o modo de colonização utilizado entre os séculos XVI e XVIII, baseado no capitalis-
mo comercial, mercantil e de extração (associado ao processo de invasão e apropriação de Abya

11 “imperialismo em seu estágio final e talvez mais perigoso”–tradução minha.

59
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Yala12), com um novo modelo colonial decorrente da Segunda Revolução Industrial ao longo
do século XIX e início do XX, que visava garantir mão-de-obra barata, mercados consumidores
e matérias-primas (associado ao processo de invasão e apropriação na África e Ásia).
Para minhas reflexões, me aproprio do termo neocolonialismo, atualizando-o, para trazê-lo
ao contexto da LA indisciplinar, transgressiva e crítica, contrapondo aos conceitos de colonia-
lismo e modernidade/colonialidade como estabelecidos nos estudos decoloniais (MIGNOLO,
2003, entre outros). Assim faço porque estou convencido de que podemos complexizar os en-
tendimentos construídos sobre modernidade/colonialidade e como eles impactam nossa vida
e a construção da nossa própria subjetividade: os processos de dominação e exploração atu-
ais diferem em pontos fundamentais do descrito amplamente nos estudos decoloniais focados
na modernidade, ou seja, com distintas macroestruturas.
Na leitura deste pesquisador, não estamos num mundo eurocêntrico. Essa fase foi supe-
rada. Trabalho com a hipótese de que vivemos e pensamos, majoritariamente, como os esta-
dunidenses (o líder do Norte Global), afinal o pensamento neoliberal imposto pelo hegemon
atual parece dominar quase todos os aspectos da nossa vida, consumimos suas culturas, suas
músicas, seus livros, suas academias, suas tecnologias e vivemos no mundo virtual (bem dife-
rente do real) criado por eles (Instagram, Facebook e WhatsApp, por exemplo). Nossas riquezas
são constantemente espoliadas majoritariamente pelos EUA (CHOMSKY, 2017; LOSURDO,
2020), e se não entendermos como esse sistema neocolonial funciona, estaremos cada vez mais
(neo)colonizados, primordialmente nas mentes (pois nem sequer o poder das armas se mos-
tra primordial para seu domínio sobre o Brasil, por exemplo, marcadamente de forma distinta
da modernidade quando o poder bélico era o mais determinante), sem nem termos plena cons-
ciência do que estamos sofrendo.
Ao longo dos últimos anos, na empreitada de apreender ditas macroestruturas, alicerça-
do em vários pensadores, muitos dos quais são mencionados ao longo deste capítulo, sintetizo
quatro distintas faces da dominação/exploração que, a meu ver, se mostram como basilares
e podem ser apresentadas de forma resumida da seguinte forma:

1. O imperialismo estadunidense, domínio planetário gerenciado pelos EUA mas que favore-
ce outras classes dominantes internacionais do Norte Global, faz uso de ferramentas/armas
econômicas, militares (quando há desafio explícito à ordem imposta), midiáticas, linguís-
ticas, (pseudo) científicas e culturais para promover os interesses da classe dominante/
exploradora estadunidense, através de expropriações de commodities primárias e maté-
rias-primas das neocolônias (ou seja, países que se dizem autônomos e soberanos, po-
12 “na língua do povo Kuna, significa Terra madura, Terra Viva ou Terra em florescimento […]. O povo Kuna é originário
da Serra Nevada, no norte da Colômbia, tendo habitado a região do Golfo de Urabá e das montanhas de Darien e vive
atualmente na costa caribenha do Panamá na Comarca de Kuna Yala (San Blas). Abya Yala vem sendo usado como
uma autodesignação dos povos originários do continente como contraponto a América (PORTO-GONÇALVES, 2019,
s. p.).”

60
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

rém que sofrem espoliação neocolonial), concomitantemente, as usando como mercados


consumidores de produtos mais sofisticados, impondo o modelo neocolonial ao redor
do mundo;
2. O neoliberalismo é o projeto civilizatório que virou hegemônico em resposta à perda rela-
tiva de poder da classe dominante estadunidense nos anos 1970 (TAVARES, 1985). Se nos
anos 1950, os EUA detinham cerca de 50% da riqueza mundial, em meados da década
de 1970, sua parcela estava reduzida para algo em torno de 25%, devido ao crescimento
de outras potências (ascendência do Japão e reestruturação da Europa que havia sido
dizimada durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo). Esse foi um projeto bem su-
cedido já que na década de 2010 os EUA voltaram a deter a mesma parcela de riqueza
do pós-Segunda Guerra Mundial (CHOMSKY, 2017). Além disso, o neoliberalismo é uma
guerra de classes interna e externa que concentra a renda e a riqueza em frações do 1%
mais rico (PHILLIPS, 2018), que se estabeleceu em resposta ao relativo fortalecimento
da classe trabalhadora durante o período fordista e seus ganhos salariais, de direitos e de
bem-estar social. Práticas como liberalização de mercados de capital, privatizações de es-
tatais e de direitos (como de saúde e educação), precarização do trabalho, espalhamen-
to de multinacionais monopolistas, desindustrialização em certos lugares, criação de um
exército trabalhador de reserva (aumento do desemprego, sub-emprego e/ou emprego
informal) etc. são utilizadas;
3. O racismo cultural, que no Brasil tem uma de suas manifestações no complexo de vira-latas,
é uma construção social com fins de legitimar as diferenças/desigualdades entre nações,
uma forma de justificativa moral para a desigualdade, exploração e dominação (sugerin-
do que existem, por nascença, povos mais honestos, trabalhadores e menos corruptos),
porém, diferentemente da modernidade, buscando apagar questões de raça e cor de pele
que eram predominantes durante o período colonial europeu. Esse discurso racista rede-
senhado focado na cultura (pois o racismo científico da modernidade, que diferenciava
marcadamente por cor de pele, não pode ser mais defendido abertamente) se iniciou,
como demonstra Souza (2015; 2021), nas ciências sociais estadunidenses, pela teoria
da modernização (PARSONS, 1967) que auxiliou na construção do paradigma Norte/
Sul Global, e influencia, até hoje, toda a academia mundial, sendo ela progressista ou con-
servadora, trazendo consequências sociais devastadoras, principalmente para o chamado
Sul Global, um locus associado discursivamente a ideias de subdesenvolvimento, corrup-
ção endêmica e atraso, construções associadas ao colonialismo e à colonialidade, cau-
sando um silenciamento ou uma desvalorização do conhecimento vindo do Sul Global
( JORDÃO; FIGUEIREDO; MARTINEZ, 2020)
4. A globalização pode ser entendida como o discurso, ou propaganda (no sentido de manipu-
lação discursiva), que se diz em favor da aproximação entre povos e em favor da multicul-

61
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

turalidade, mas que funciona como um modelo substituto para a colonização como enten-
dida na modernidade, ou seja, é um modelo neocolonial que busca atingir todo o planeta;
o inglês é apresentado como a língua franca desse processo, sendo difundido ao redor
do mundo; um discurso aparentemente inclusivo é usado (aceitação, por exemplo, de que
“inglês não tem dono”, “é daquele quem o usa, com suas peculiaridades”), mesmo que no
final da contas, o inglês seja usado para ganhos do império, seja para o consumo de sua
indústria cultural, seja para consumo de tecnologias (como a internet), seja para prover
mão-de-obra barata para multinacionais, ou ainda para facilitar a comunicação dos fa-
lantes nativos de inglês ao redor do mundo, imprimindo interesses imperiais/neocoloni-
zadores e disseminando a ideologia neoliberal (KRESS, 2010). Através da globalização,
o Norte Global, especialmente a classe dominante/exploradora dos EUA, extraiu e extrai
imensurável quantidade de riquezas do Sul Global, ou seja, “el reconocimiento y el respeto
a la diversidad cultural se convierten en una nueva estrategia de dominación!”13 (WALSH,
2010, p. 78).

Com mencionei anteriormente, este capítulo tem como foco apenas aquela que tenho
denominado como segunda face do neocolonialismo, um modelo “que mantém a autonomia po-
lítica de fachada das novas colônias economicamente subordinadas, [um imperialismo que] sig-
nifica um novo impacto e uma nova força relativa para os mecanismo de soft power” (SOUZA,
2021, p. 164), primordialmente dos EUA. Dessa forma, passo a descrever os principais traços
do neoliberalismo.

Neoliberalismo como uma luta de classes

Estou convencido de que uma definição possível de neoliberalismo é de que ele se trata
de uma luta de classes (BLOCK; GRAY; HOLBOROW, 2013). Uma luta de classes porque,
na década de 1970, a classe exploradora burguesa se deparou com uma queda nas suas taxas
de lucros por um fortalecimento da classe trabalhadora por conquistas sindicais durante o perí-
odo fordista, acarretando uma resposta à altura dos donos dos meios de produção (COOPER,
2017). Já na década de 197014, Douglas Fraser compartilhou de uma leitura similar:

In July of 1978, Douglas Fraser, President of the United Auto Workers, resigned from John
Dunlop’s Labor-Management Group in a flurry of publicity. The committee had been set up un-
der the Nixon administration to seek out cooperative solutions to labor-management problems
and to pass advice along to the White House. […] ‹I believe leaders of the business commu-
nity, with few exceptions, have chosen to wage a one-sided class war today in this country—a
war against working people, the unemployed, the poor, the minorities, the very young and the

13 “o reconhecimento e o respeito à diversidade cultural tornam-se uma nova estratégia de dominação”–tradução minha.
14 Para uma abordagem mais detalhada, veja Cowie (2003): https://library.fes.de/libalt/journals/swetsfulltext/18650600.
pdf, disponível em 15/12/2021.

62
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

very old, and even many in the middle class of our society,’ he declared. ‘The leaders of industry,
commerce and finance in the United States have broken and discarded the fragile, unwritten
compact previously existing during a past period of growth and progress. […] I would rather
sit with the rural poor, the desperate children of urban blight, the victims of racism, and working
people seeking a better life than with those whose religion is the status quo, whose goal is profit
and whose hearts are cold’ (COWIE, 2003, p. 307).15

Como enfatizado por Fraser acima, o neoliberalismo é um capitalismo selvagem. É um


modelo civilizatório encabeçado pelo imperialismo estadunidense que, mesmo depois de ter
causado várias crises ao redor do mundo, ainda permanece como a força determinante no Brasil
de Bolsonaro e Paulo Guedes, como pretendo demonstrar nesta seção, iniciando por uma con-
textualização jornalística.
André Esteves, dono do maior banco de investimentos do Brasil, BTG Pactual (onde
trabalhava Paulo Guedes antes de assumir o chamado superministério no governo de Jair
Bolsonaro) e uma das pessoas mais ricas do país, foi gravado numa reunião com investidores,
no dia 21/10/2021, contanto histórias de suas interlocuções diretas com os poderes da república
brasileira. O áudio, obtido pelo site Brasil 24716, revela os bastidores do poder no Brasil.
No áudio, o banqueiro narra uma ligação que acabara de ter recebido de Arthur Lira, de-
putado federal pelo estado de Alagoas e então presidente da Câmara de Deputados, perguntan-
do sua opinião sobre o recente pedido de demissão de vários secretários do ministério de Paulo
Guedes. Na mesma gravação, ele narra como precisou “educar” ministros do Supremo Tribunal
Federal sobre a importância da autonomia17 do Banco Central, conversa que deu resultado, pois
a votação do tema no Supremo pela autonomia do Banco Central venceu por 8 votos a 2. Ainda,
Esteves conta como foi procurado pelo presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos
Neto, sobre o que o banqueiro pensava sobre a taxa básica de juros estabelecida pela instituição,
um dos determinantes financeiros mais importantes da economia.

15 “Em julho de 1978, Douglas Fraser, presidente da United Auto Workers, renunciou ao Labor-Management Group
de John Dunlop em uma enxurrada de publicidade. O comitê havia sido criado sob a administração Nixon para buscar
soluções cooperativas para problemas de gestão trabalhista e dar conselhos à Casa Branca. […] ‹ Acredito que os líderes
da comunidade empresarial, com poucas exceções, optaram por travar uma guerra de classes unilateral hoje neste país –
uma guerra contra os trabalhadores, os desempregados, os pobres, as minorias, os muito jovens e os muito velhos, e até
mesmo muitos da classe média da nossa sociedade’, declarou. ‹Os líderes da indústria, comércio e finanças nos Estados
Unidos quebraram e descartaram o frágil e tácito pacto que existia anteriormente durante um período que experienciou
crescimento e progresso. […] Prefiro sentar-me com os pobres rurais, os filhos desesperados da praga urbana, as vítimas
do racismo e os trabalhadores que procuram uma vida melhor do que com aqueles cuja religião é o status quo, cujo
objetivo é o lucro e cujos corações são frios’ (COWIE, 2003, p. 307)”–tradução minha.
16 https://www.brasil247.com/economia/exclusivo-vaza-audio-do-banqueiro-andre-esteves-que-revela-como-ele-influi-
na-camara-e-no-banco-central-assista. Muitas matérias sobre o vazamento podem ser encontradas em diversos veículos,
contendo mais detalhes e análises da fala do banqueiro. Escolhi disponibilizar esse link aqui por ser o responsável
pelo emblemático furo jornalístico. A gravação possui mais de uma hora de duração e ouvi-lo integralmente fornece
uma oportunidade ímpar de entender profundamente como pensam os detentores do poder no neoliberalismo e, ainda,
como se materializa sua influência no governo nacional.
17 Relevante ressaltar que a autonomia do Banco Central é um claro projeto neoliberal. Sua intenção é dar autonomia para
a instituição em relação aos governos eleitos democraticamente, fato que ficará mais claro ao longo desta seção.

63
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

No mesmo áudio vazado, Esteves fala do problema da demarcação de terras indígenas para
investimentos; na sua opinião, temos muito mais em comum com os Estados Unidos do que
com qualquer país da América Latina. Em sua fala, faz uso de frases e termos em inglês o tem-
po todo, sugerindo um tipo de status associado à língua inglesa aqui no Brasil; ainda, compara
o golpe de 1964 com o golpe de 2016, dizendo que ambos foram momentos análogos de corre-
ção histórica na direção do país.
Esse áudio confirma a teoria que será explorada nesta parte do texto. Ou seja, ele mos-
tra quem é o “mercado”, tanto falado nos jornais, como se fosse uma entidade responsável pela
saúde econômica do país, mas que tem, na verdade, corpo, nome, localização e uma quantidade
obscena de capital. O neoliberalismo é o mercado financeiro no comando do governo. Nem se
eu inventasse um exemplo anedótico seria tão feliz em mostrar como o neoliberalismo impera
no nosso país atualmente.
Segundo Marx e Engels (1998, p. 12), “o poder executivo do Estado moderno não passa
de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia.”, porém, que se apre-
senta de forma ainda mais determinante no neoliberalismo. Se o áudio acima citado não con-
firma a opinião dos autores, vou me contentar em citar apenas mais dois argumentos: a cada
ano, o programa Bolsa Família, que ajuda 13,5 milhões de famílias em todo o Brasil, não chega
ao custo de 30 bilhões de reais (dados de 201918), enquanto as renúncias fiscais dadas às empre-
sas privadas, com argumento de incentivo à economia, chegam a mais de 350 bilhões de reais
(dados de 201719) ao ano.
Escolhi começar a discussão sobre o neoliberalismo com os dados ilustrativos menciona-
dos acima para contextualizar a discussão. Ainda, importante destacar que o projeto neolibe-
ral só se impôs pelo poderio imperial e militar estadunidense, outra face do neocolonialismo.
Como espero deixar claro a seguir, o capitalismo teve uma virada entre os anos 1970 e 1980,
quando, pela liderança dos EUA, o modelo de acumulação capitalista passou do fordismo para
o neoliberalismo. Esse novo modus-operandi se estabeleceu quando o modelo soviético entrou
em decadência e a nova ordem mundial se tornou unipolar, concedendo ao império estaduni-
dense o imperativo de “dar todas as cartas do jogo” e, até, redefinir as suas regras.
Na próxima seção, me debruçarei na literatura que me ajudou a criar sentidos sobre esse
novo momento histórico. A ordem dos elementos que serão elencados não se pretende linear
ou cronológica; a sequência reflete o processo de construção de minha pesquisa de mestrado,
ou seja, a ordem de como eu me familiarizei com os conceitos/entendimentos apresentados.

18 https://br.financas.yahoo.com/noticias/bolsa-familia-gastos-governo-070036578.html, disponível em 04/11/2021.


19 https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-06/brasil-deixou-de-arrecadar-r-3547-bi-com-renuncias-
fiscais-em-2017, disponível em 04/11/2021.

64
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Neoliberalismo como fase atual do Capitalismo

O termo neoliberalismo tem sido usado abundantemente no discurso contra-hege-


mônico crítico na LA e nos Estudos Decoloniais (BLOCK; GRAY; HOLBOROW, 2013;
ALBUQUERQUE; HAUS, 2020; PENNYCOOK, 2020; BORELLI; SILVESTRE; PESSOA,
2020; MIGNOLO, 2003; WALSH, 2013, apenas para citar alguns exemplos). Por vezes, parece
ser usado como um termo-amuleto, ou seja, um termo que parece quase obrigatório nas discus-
sões contemporâneas. Tem, por vezes, sido usado com significados amplos e/ou imprecisos, di-
ficultando um diagnóstico do real problema que enfrentamos e, consequentemente, dificultando
encontrar respostas apropriadas à miséria neoliberal20.
Muitas vezes, a título de exemplo, o neoliberalismo é entendido como algo “anti-Estado”
ou, ainda, como defensor do estado mínimo. Tais perspectivas podem se mostrar falaciosas.
Para Foucault (2020), por exemplo, trata-se de uma nova articulação entre o público e o pri-
vado, redefinindo (e não eliminando) o papel estatal, que visa a um governo dos indivíduos
por um estado forte, autoritário e, por vezes, violento (CASARA, 2021).
O neoliberalismo, como demonstra Casara, é uma entidade sublinhada de plasticidade
e com propriedades altamente adaptativas aos diversos contextos nos quais busca criar raízes.
Num processo de constante autorreinvenção, ele se apresenta como resposta e/ou alternativa
aos males causados por “velhos neoliberalismos”. Isso pode ser claramente percebido na grave
crise de 2008-2009, de seu feitio, e seu acirramento na década seguinte ao redor do mundo.
Ademais, podemos destacar sua incompatibilidade com a democracia, questionada e ame-
açada abertamente há décadas, por exemplo, através de Margaret Thatcher e seu infame discur-
so de que não existe sociedade, mas apenas indivíduos e interesses (THATCHER, 1993), além
de um dos precursores do neoliberalismo, Friedrich Hayek, e seus esforços para “consertar”
os efeitos disruptivos da democracia nas atividades do mercado (HAYEK, 1973).
A intencional má compreensão do funcionamento da nossa sociedade é um proje-
to dos poderes político e econômico, os quais apresentam fatos e informações isoladamente,
na tentativa de fragmentar a realidade para torná-la incompreensível (CASARA, 2021), tornan-
do vital uma busca por uma nova narrativa anti-hegemônica para construção de sentidos sobre
suas macro-estruturas.
Antes de me aprofundar nas caracterizações do neoliberalismo, gostaria de dar um passo
atrás e discorrer sobre outros termos que podem auxiliar na construção de entendimentos sobre
a fase atual do capitalismo e suas implicações que, muito mais do que apenas econômicas, são a
base para uma nova razão civilizatória (DARDOT; LAVAL, 2016; MIGNOLO, 2003).

20 Durante a hegemonia do neoliberalismo (1990-2020), ocorreu tanto o crescimento da desigualdade e do endividamento


da população quanto causou menos crescimento econômico que em etapas capitalistas anteriores (CASARA, 2021).

65
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Razão neoliberal

No dia 21 de janeiro de 1981, Ronald Reagan assumiu a presidência dos EUA. Em seu dis-
curso inaugural, o mandatário propagou uma ideia, ou dogma, que tem eco até os dias de hoje:
Government is not the solution to our problem; government is the problem21 (REAGAN, 1981,
sem p.). A partir de então, o imaginário neoliberal começou a ser criado, ao se tornar o discurso
oficial do império estadunidense, justificando contínuas reformas em favor do capital: o projeto
de colocar o Estado em cheque se tornou manifesto; o bem comum passou a ser constantemente
atacado.
Paralelamente, Margaret Thatcher, uma das representantes da classe dominante
da Inglaterra, o hegemon capitalista anterior aos EUA, porém, que ainda detém certa influên-
cia global, foi outra proeminente porta-voz do discurso neoliberal. Em uma entrevista no ano
de 1987, ela pronunciou uma sentença, ou dogma, ou até um mantra neoliberal, que deve fi-
car por muito tempo marcada nos anais da história: não existe sociedade, apenas indivíduos
(THATCHER, 1993)–“there’s no such thing as society, only individual men and women”. O neolibe-
ralismo, inferindo de sua fala, pode ser definido com uma tentativa de acabar com a ideia de que
vivemos numa sociedade: o individualismo é colocado como uma doxa da contemporaneidade.
A pandemia de COVID-19, entretanto, pode ser/ter sido um dos contra-argumentos mais
explícitos no que tange o discurso neoliberal. Um bom governo, que pensasse a sociedade como
um todo ao invés de dividi-la, poderia ter feito com que a pandemia tivesse ceifado um número
muito menor de vidas, algo explicitado pela má gerência da pandemia pelo governo Bolsonaro.
Há várias faces da nossa vida que gritam alguma das falácias–ou mentiras?–do discurso
neoliberal. As duas falas citadas acima reverberam até hoje. Estou convencido de que se não
usarmos esse momento histórico–de crise do capital em conjunto com as crises sanitária e edu-
cacional–como um instrumento educativo, poderemos ter perdido a oportunidade de uma gera-
ção de transformar o mundo, como eu desejo, muito inspirado pelas obras Freiriana, Marxiana,
e tantas outras que acreditam que as coisas como estão não precisam continuar assim: podemos
ser sujeitos ativos e propositivos da nossa história.
Para tanto, é relevante ressaltar que o neoliberalismo vai muito além de ser uma ideologia
ou uma política econômica. “É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo
inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e todas as esferas da vida.”
(DARDORT; LAVAL, 2016). Em seu livro A Nova Razão do Mundo: um ensaio sobre a sociedade
neoliberal, Pierre Dardot e Christial Laval fazem uma das mais apuradas análises sobre a fase
contemporânea do capitalismo e sua racionalidade. A partir daqui, utilizo suas reflexões como
guia para minhas ponderações.

21 “O governo não é a solução para o nosso problema; o governo é o problema”–tradução minha.

66
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Segundo os autores, o neoliberalismo tem acarretado a transição para uma era pós-de-
mocrática. Um projeto iniciado nos anos 1930, após a falência da sociedade liberal pela crise
de 1929, o sistema neoliberal visa dificultar ações coletivas, levando indivíduos a concorrer
em todos os níveis, buscando minar qualquer capacidade de (re)ação contra ele. Compreender
como esse fenômeno ocorre é, ao ver desses estudiosos, uma “questão estratégica universal”,
em outras palavras, uma razão para entendermos suas macro-estruturas.
Mesmo tendo seu momento seminal nos anos 1930 e 1940, sua proeminência vai se
dar apenas na década de 1970. O capitalismo, por influência mais determinante de John Maynard
Keynes, viveu o que muitos chamam de sua época de ouro entre a Segunda Grande Guerra
e 1975, quando o economista se propôs a “salvar o capitalismo dos capitalistas”. Denominados
Trinta Anos Gloriosos (1945-1975), o capitalismo viveu seus momentos de maior crescimento,
distribuição de renda, criação do Estado de Bem-Estar Social, com forte interferência e planeja-
mento estatais. Com a crise dos anos 1970, o neoliberalismo finalmente começou a ser revisita-
do, mesmo que sem o uso do nome “neoliberalismo” pelos seus defensores ou idealistas, quando
o termo passou a ser usado majoritariamente por seus críticos (ANDRADE, 2021).
Entendido estritamente como uma ideologia ou política econômica anti-estado ou a favor
de Estado mínimo, esse erro de diagnóstico aproxima o neoliberalismo do liberalismo clássico,
ou laissez-faire, impedindo a compreensão mais ampla e precisa de que, na verdade, a fase con-
temporânea do capitalismo é uma redefinição do papel do Estado, e não um apagamento dele.
Ouvindo apenas o discurso dos neoliberais, podemos acreditar que seu maior interesse é ape-
nas privatizar os bens públicos e deixar o mercado agir livremente. Todavia, essa é uma falácia
que apenas limita nossa compreensão do contexto em que estamos vivendo. A meu ver, trata-se
de uma forma de neocolonialismo que pode ser ainda mais eficaz que as anteriores, pois, além
das apropriações materiais, é, majoritariamente um colonialismo das mentes, buscando esconder
o poderio das armas tanto quanto possível, algo que se mostrava mais desafiador em outros mo-
mentos históricos quando as armas tinham um papel mais explícito, pois, o controle das mentes
ainda não conhecia o poderio midiático atual e sua indústria cultural de alcance mundial (SOUZA,
2020; 2021).
Além disso, Dardot e Laval afirmam que o neoliberalismo não é apenas uma reestrutura-
ção das formas sociais, ele redefine a forma da nossa existência, produzindo novas subjetividades.
Faz isso em quatro aspectos diferentes: aspecto político (conquista do poder estatal), aspecto
econômico (globalização do capitalismo financeiro a todos os cantos do mundo), aspecto social
(individualização das relações sociais, aumentando as desigualdades e defendendo a meritocra-
cia (SANDEL, 2020)) e aspecto subjetivo (criação de um novo sujeito e de novas patologias
psíquicas), em outras palavras, uma nova racionalidade: o neoliberalismo organiza tanto a ação
dos governantes quanto a conduta dos governados.

67
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Poderíamos dizer que o neoliberalismo é “o conjunto de discursos, práticas e disposi-


tivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal
da concorrência (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 17).” Segundo Michel Foucault (2008, p. 324),
“trata-se não da instituição ‘governo’, mas da atividade que consiste em reger a conduta dos ho-
mens no interior de um quadro e com instrumento de Estado.”. Ademais, Foucault introduziu
o termo “governamentabilidade”, significando diversas formas pelas quais homens, pertencendo
ou não a um governo, tentam conduzir a conduta de outros homens (DARDOT; LAVAL, 2016),
e mais, “chamo de governamentabilidade o encontro entre as técnicas de dominação exercidas
sobre os outros e as técnicas de si […] (FOUCAULT, 2008, p. 1604)”, ou seja, a disciplina de um
autogoverno do indivíduo pelo imaginário neoliberal (CASARA, 2021) e sua lógica de concorrência,
seu modelo de empresa para o estado e para o indivíduo, destacando o caráter transversal dos modos
de poder exercidos no interior de uma sociedade numa mesma época (DARDOT; LAVAL, 2016).
Essencial ressaltar, mais uma vez, que o modelo neoliberal não é a tomada do poder pelo
mercado em detrimento do Estado, afinal, o Estado é uma instituição capitalista, “o mercado
moderno não atua sozinho: ele sempre foi amparado pelo Estado” (DARDOT; LAVAL, 2016,
p. 19), algo facilmente perceptível em cada crise econômica, quando o Estado sempre sai em
socorro da economia com injeção de gigantescos auxílios emergenciais, os quais sempre se con-
centram nas mãos de instituições financeiras e não da população (HUDSON, 2018). Um outro
exemplo que pode ser destacado é o limitado e inadequado auxílio emergencial dado às famílias
durante a pandemia do COVID-19 enquanto bancos receberam, literalmente, auxílio que che-
gou 1 trilhão de reais22, possibilitando lucros recordes mesmo nessa época23.
O neoliberalismo é “uma resposta a uma crise de governamentabilidade” (DARDOT;
LAVAL, 2016, p. 26) que deu certo, afinal, nos últimos 40 anos de hegemonia neoliberal. Apenas
nos Estados Unidos, a luta de classes que acarretou a transferência de renda dos 90% mais po-
bres para o 1% mais rico foi de cerca de 50 trilhões de dólares (PRICE; EDWARDS, 2020)
e a fatia estadunidense da riqueza mundial que havia caído para 25% em 1970, voltou ao pa-
tamar de 50% com o projeto neoliberal encabeçado pelo império neocolonial estadunidense
(CHOMSKY, 2017), mesmo nível de 1945, pós Segunda Guerra Mundial, quando os EUA assu-
miram o papel de hegemonia no capitalismo e redefiniram a ordem mundial através do Acordo
de Bretton Woods, em 1944, que estabeleceu o dólar como base de indexação das outras moe-
das, estabelecendo a plenitude do neocolonialismo.

22 Veja: https://www.gov.br/pt-br/noticias/financas-impostos-e-gestao-publica/2020/03/banco-central-anuncia-
conjunto-de-medidas-que-liberam-r-1-2-trilhao-para-a-economia. Disponível em: 06 dez. 2022.
23 https://www.brasildefato.com.br/2022/02/17/bancos-brasileiros-tem-lucro-recorde-em-pior-ano-da-pandemia.
Disponível em: 06 dez. 2022.

68
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Em busca de uma governamentabilidade eficaz, as principais cabeças do neoliberalismo


estão interessadas na sujeição das/dos trabalhadoras/es por meio da precarização do trabalho24
e seu endividamento crônico, os deixando, pela insegurança e pelo medo, sem forças pra lutar
pelos seus interesses.
Essa condução da economia, montada na precarização (ANTUNES, 2018), nem sequer
toma corpo em segredo, como poderia se pensar. Em um artigo no New York Times25, Alan
Greenspan, presidente do Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos (Federal Reserve)
de 1987 a 2006–entidade responsável pela injeção de dinheiro da economia em tempos de crise
no Estados Unidos -, atribui, durante um depoimento ao Congresso Americano, à insegurança
trabalhista o papel de maior responsável pelo bom andamento da economia americana. Nesse
sentido:

A corrosão progressiva dos direitos ligados ao status de trabalhador, a insegurança instilada


pouco a pouco em todos os assalariados pelas “novas formas de emprego” precárias, provisórias
e temporárias, as facilidades cada vez maiores para demitir e a diminuição do poder de compra
até o empobrecimento de frações inteiras das classes populares são elementos que produziram
um aumento considerável do grau de dependência dos trabalhadores com relação aos emprega-
dores. Foi esse contexto de medo social que facilitou a implantação da neogestão nas empresas.
Nesse sentido, a “naturalização” do risco no discurso neoliberal e a exposição cada vez mais
direta dos assalariados às flutuações do mercado, pela diminuição das proteções e das solida-
riedades coletivas, são apenas duas faces de uma mesma moeda. Transferindo os riscos para
os assalariados, produzindo o aumento da sensação de risco, as empresas puderam exigir deles
disponibilidade e comprometimento muito maiores. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 329).

Se a falácia presente no discurso midiático é de que o mercado deve ser livre e o Estado
mínimo, a realidade mostra o Estado como protetor dos mercados: sua função é de garantidor
das leis, dos contratos, da propriedade privada (algo intrínseco ao capitalismo), outrossim, re-
gulador dos mercados de forma a garantir a concorrência, protegendo os investimentos capita-
listas. O Estado muda de papel, de garantidor do bem-estar social para garantidor dos merca-
dos construídos. Essa é uma clara diferença entre liberalismo e neoliberalismo. Se o primeiro
defendia os mercados como naturais, o segundo pode até dizer que está interessado no mesmo,
quando, na verdade, os mais importantes pensadores neoliberais acreditam que os mercados
não são naturais como se defendia no século XIX, são, ao invés, criados e precisam ser mantidos
com a mão forte do Estado (SLOBODIAN, 2018).
O Estado deve, então, se reformar para seguir o modelo da empresa e da concorrência.
Todas as esferas da vida precisam virar mercadoria e entrar no mercado, até a educação e a saú-
24 A implantação de reformas neoliberais é acompanhada de encarceramento em massa (BORGES, 2019), no Brasil
e EUA, usando a guerra às drogas como desculpa para uma sociedade sem oportunidades para todos.
25 Artigo publicado pelo New York Times:https://www.nytimes.com/1997/02/27/business/job-insecurity-of-workers-is-
a-big-factor-in-fed-policy.html. Disponível em: 03 set. 2021.

69
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

de. O empreendedorismo entra aqui: todas/os precisam investir em si mesmo. Investimentos


no capital humano devem ser constantes e de responsabilidade individual. Sempre ressaltan-
do a concorrência entre todas/os. Cada indivíduo é encorajado a se ver como uma empresa,
que precisa de constantes investimentos, ou seja, torna-se empreendedor de si mesmo (HAN,
2015). As pessoas se vendem nas redes sociais, criando imagens de si mesmas, passam a ver suas
amizades como networking, criar filhas/os passa a ser visto como um investimento: preparação
para o mercado. Coaching (estratégias gerenciais para a vida pessoal, com metas pessoais etc.)
se torna parte do senso comum. O sucateamento dos serviços públicos é intencional, encora-
jando privatizações de bens públicos (usando como desculpa, também, a corrupção), e precari-
zação trabalhista, ainda, acarreta-se o endividamento da população para enfraquecer seu poder
de luta trabalhista (DARDOT; LAVAL, 2016).
Além disso, “alguns jogos televisivos, os chamados ‘reality TV’, também ilustram essa ‘luta
pela vida’, em que apenas os mais espertos e, com frequência, os mais cínicos conseguem ‘sobre-
viver’” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 354). O programa de TV Big Brother Brasil, por exemplo,
é tanto a exemplificação do neoliberalismo, no qual um/a vence e leva quase tudo e a maioria
das/os participantes leva quase nada, quanto um dos difusores da nova racionalidade de for-
ma naturalizada. Esse reality show, como tantos outros, ajuda a moldar tudo: nossa subjetivi-
dade, nossa visão de mundo, nossos valores, nossas relações umas/uns com as/os outras/os,
as instituições. Essa sociedade de mercado gera eleitoras/es preocupadas/os em votar apenas
com interesses egoístas e em benefício próprio: lembrando Thatcher, não há sociedade, apenas
indivíduos.
O Estado tem um papel extremamente ativo26: agir politicamente para moldar a sociedade
inteira através do modelo de mercado, o qual é idealizado, colocado em contradição ao Estado,
que é descrito como corrompido. Diretoras/es de escolas viram gestoras/es, em outras palavras,
a escola vira um negócio como outro qualquer. A/O governante ideal precisa ter experiência
empresarial, dita mais eficiente. “Numa sociedade guiada pela concorrência, todo mundo preci-
sa correr pra ficar no mesmo lugar”27 (ANDRADE, 2021); ficar parada/o, sem autoinvestimen-
to, é na prática ficar pra trás. Assim, as pessoas precisam se esforçar para não progredir. O tra-
balho no mundo empresarial, cada vez mais, possui gestão por projetos (DARDOT; LAVAL,
2016); num discurso de liberdade, motoristas de Uber se veem como chefes de si mesmas/os,
quando na verdade são exploradas/os e vigiadas/os constantemente (ANTUNES, 2018). O/A
“colaborador/a” deve sempre se mostrar positiva/o, cooperativa/o e satisfeita/o, para que en-

26 Podemos ressaltar aqui a PEC dos gastos, desenvolvida para “controlar” as contas públicas e garantir o pagamento
da dívida pública, detida pela fração mais rica da sociedade, em detrimentos de serviços sociais. Outro exemplo:
as reformas trabalhista, e sua precarização do trabalho, e da previdência, e seu corte de benefícios equalizadores
de renda e o incentivo da ampliação do mercado de planos previdenciários privados.
27 Muitos das considerações deste trecho são baseadas na fala do professor Daniel Andrade, Neoliberalismo e suas
definições no Brasil: https://youtu.be/A_xODsioGZg, disponível em 03/09/2021, que também pode ser acessada pelo
QR code acima.

70
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

tregue bom desempenho constantemente, respondendo às demandas. Se metas são atingidas,


novas metas são imediatamente criadas. Repete-se, constantemente, que autoestima e trabalho
duro são o caminho para o sucesso, sempre ligados exclusivamente à performance de cada
um/a. Assim, quando alguém se vê bem-sucedida/o, alimenta seu ego, quando mal-sucedida/o,
se vê como única/o responsável pelo seu fracasso (HAN, 2015).
O/A trabalhador/a é levado/a a acreditar que risco e ganhos altos estão sempre ligados.
Quando, na verdade, grandes investidoras/es privatizam os lucros e socializam os prejuízos
em tempos de crise, usando o Estado como garantidor de risco quase zero (HUDSON, 2018).
Os/as esportistas são vistas/os como ““encarnações perfeitas do empreendedor de si,
que não hesitam um instante sequer em se vender a quem pagar mais, sem muitas considerações
a respeito da lealdade e da fidelidade […]” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 354), trazendo como
símbolo da nossa sociedade o hino We are the champions (Nós somos as/os campeãs/ões) , onde
No time for losers (Não há tempo para perdedoras/es).
O neoliberalismo, “com suas doses maciças de intervenção estatal no campo político
e social, aparece como uma engenharia social.” (SAFATLE; JUNIOR; DUNKER, 2021, p. 25).
Uma das consequências desse processo é o grande aumento nos casos de depressão:

É notório que o diagnóstico de “depressão” se multiplicou por sete de 1979 a 1996, uma ver-
dadeira doença de ‘fin-de-siècle’, como foi a ‘neurastenia’. A depressão é, na verdade, o outro
lado do desempenho, uma resposta do sujeito à injunção de se realizar e ser responsável por si
mesmo, de se superar cada vez mais na aventura empresarial. O indivíduo é confrontado mais
com uma patologia da insuficiência do que com uma doença da falta, mais com o universo
da disfunção do que com o da lei: o depressivo é um homem em pane. (DARDOT; LAVAL,
2016, p. 366).

Nessa conjuntura, afirmam os autores (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 367), “o sujeito


que não aguenta a concorrência pela qual pode entrar em contato com os outros é um ser fraco,
dependente, que se suspeita não estar ‘à altura do desafio’”. Concomitantemente, “o discurso
da ‘realização de si mesmo’ e do ‘sucesso de vida” leva a uma estigmatização dos ‘fracassados’,
dos ‘perdidos’ e dos infelizes, isto é, dos incapazes de aquiescer à norma social de felicidade”
(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 367).
Em consonância, Han (2017, p. 23) aponta que vivemos em uma “sociedade do desempe-
nho” que, em contraste com um momento anterior de uma “sociedade disciplinar”, é formada
por “academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e labo-
ratórios de genética” onde as/os habitantes “não são mais ‘sujeitos da obediência’, mas sujeitos
de desempenho e produção. São empresários de si mesmo”. Prosseguindo em sua análise, o au-
tor e filósofo afirma que essa sociedade “produz depressivos e fracassados” (HAN, 2017, p. 25),
uma vez que na contemporaneidade “o que causa a depressão do esgotamento não é o impera-

71
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

tivo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão do desempenho […], a depressão se expande
ali onde os mandatos e as proibições da sociedade disciplinar dão lugar à responsabilidade
própria e à iniciativa” (HAN, 2017, p. 27).
Analisando esse neosujeito, termo usado em seu livro, Dardot e Laval (2016) buscam deli-
near uma nova racionalidade. Nessa toada, eles destacam quatro traços determinantes da razão
neoliberal:

Quadro 1–Razão Neoliberal

RAZAO NEOLIBERAL
Ao contrário da visão compartilhada por economistas clássicos, o mercado não é um dado na-
1 tural, mas uma realidade construída que, como tal, requer a intervenção ativa do Estado, assim
como um sistema de direito específico.
A essência da ordem de mercado não reside na troca, mas na concorrência, definida como rela-
2 ção de desigualdade entre diferentes unidades de produção ou “empresas”, sendo ela a norma
geral das práticas econômicas e o Estado como garantidor do quadro geral.
O Estado, além de ser a quem compete construir o mercado, é obrigado a se ver a si mesmo
como uma empresa, construindo-se de acordo com as normas de mercado, e acarretando
3 a primazia absoluta do direito privado e um esvaziamento progressivo de todas as catego-
rias de direito público, porém, não através de uma ab-rogação formal destas últimas, mas de
uma desativação de sua validade operatória (sucateamento).
A exigência de uma universalização da norma de concorrência ultrapassa largamente as fron-
teiras do Estado, atingindo até os indivíduos em suas relações consigo mesmo. A “governa-
mentabilidade empresarial” prolonga-se ao governo de si do “indivíduo-empresa”, ou, mais
4
exatamente, o Estado empreendedor deve, com os autores privados da “governança”, conduzir
indiretamente os indivíduos a conduzir-se como empreendedores: cada indivíduo é uma em-
presa que deve se gerir e um capital que deve se multiplicar.
Fonte: Dardot e Laval (2016, p. 377-378).

Em outras palavras, além de usar-se a empresa como modelo ideal de governança para
o Estado, até mesmo o neosujeito deveria usar o mesmo modelo para gerenciar seu capital hu-
mano. Nessa racionalidade, “a única questão autorizada no debate público é a da capacidade
de levar a cabo ‘reformas’ cujo sentido não é explicitado, sem que se saiba muito bem quais
resultados se tenta obter por essa ação sobre a sociedade” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 380).
Ademais, se a democracia faz uso de eleições pelo voto da maioria, o neoliberalismo preocupa-
-se com uma limitação do poder (ainda que seja o da maioria); como defendia Hayek, o neoli-

72
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

beralismo, seja democrático ou autoritário, é sempre preferível à “tirania da maioria”28, tornan-


do-o, essencialmente, em um antidemocratismo (DARDOT; LAVAL, 2016, p.380).
Segundo os autores, “a esquerda não pode contentar-se em defender a democracia liberal,
como tende a fazer […]” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 389), “a esquerda não pode ignorar essa
realidade [neoliberal]; ao contrário, deve reconhecê-la para melhor enfrentá-la” (DARDOT;
LAVAL, 2016, p. 395). Para superar, todavia, o neoliberalismo, a esquerda precisa de uma nova
governamentabilidade, que ainda precisa ser inventada (FOUCAULT, 2008), algo que poderá
ser alcançado apenas por meio de um projeto comunal e por várias mãos.

Uma Nova Narrativa do século XXI pelo olhar neoliberal: Globalistas

Para Hardt e Negri (2001), uma nova forma de império através da globalização havia
substituído o colonialismo. Para Slobodian (2018), imperialismo deu lugar ao neoliberalismo.
Há, ainda, quem perceba imperialismo como o estágio superior do capitalismo (LENIN, 2012).
Para mim, estamos numa época de neocolonialismo, uma nova forma de dominação através
do neoliberalismo, do imperialismo estadunidense e do imperialismo das finanças, uma evo-
lução do colonialismo que, quando possível, não faz uso de armas, ou seja, um colonialismo
das mentes pela elite financeira como representação de sua luta de classes.
Nesta seção, busco trazer algumas reflexões sobre o nascimento do neoliberalismo e al-
guns de seus dogmas que têm consequências pontuais ilustradas nas seções anteriores. O li-
vro que guia minhas discussões aqui é o estudo essencial escrito por Quinn Slobodian chama-
do Globalists: The End of Empire and the Birth of Neoliberalism (Globalistas: O Fim do Império
e o Nascimento do Neoliberalismo). Antes de prosseguir, importante ressaltar que, como pode
ser percebido já no nome do livro acima mencionado, minha conclusão de que imperialismo
e colonialismo ainda vivem plenamente na contemporaneidade, apenas reformulados, difere
da formulação de Slobodian. Porém, creio que seja apenas uma discordância de termos; nossas
considerações são muito próximas, mesmo que demos nomes diferentes aos mesmos fenômenos.

28 A fala de Hayek faz alusão ao seu apoio à ditadura de Pinochet no Chile, onde os Chicago Boys (economistas
neoliberais da Universidade de Chicago, cujo maior expoente foi Milton Friedman) ajudaram na implantação
de medidas que fizeram o país o primeiro a adotar amplamente o neoliberalismo. Augusto Pinochet chegou ao poder
através de um golpe que é chamado de “o primeiro 11 de setembro”, quando, em 1973, “os Estados Unidos tiveram êxito
em seus esforços para derrubar o governo democrático de Salvador Allende […]. O objetivo do golpe, nas palavras
da administração Nixon, era matar o ‘vírus’ que poderia encorajar a todos esses ‘estrangeiros’ [que] estão a fim de foder
com a gente’- foder com a gente era tentar assumir o controle de seus próprios recursos e, em termos mais gerais, aplicar
uma política de desenvolvimento independente, numa diretriz que causava repulsa a Washington. Em segundo plano,
apoiando a decisão do golpe, estava a conclusão do Conselho de Segurança Nacional (National Security Council–
NSC, na sigla em inglês) de Nixon de que, se os EUA não eram capazes de controlar a América Latina, não se poderia
esperar que conseguissem ‘realizar a sua ordem auspiciosa em qualquer outro lugar do mundo’. A ‘credibilidade’
de Washington seria solapada” (CHOMSKY, 2017, p. 29-30). Vale ressaltar que Paulo Guedes, um Chicago Boy,
foi para o Chile na década de 1980 para entender como o processo se dava por lá, e, hoje, tem aplicado os mesmos
preceitos que culminaram nas graves crises sociais chilenas nos últimos anos, resultados de privatização e eliminação
de programas sociais a partir da década de 1970. Para maiores detalhes sobre como isso se passou, confira: https://
brasil.elpais.com/brasil/2018/10/30/politica/1540925012_110097.html. Acesso em: 08 set. 2021.

73
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Voltemos aos anos 1930. Depois da crise de 1929, um grupo de pensadores começou a se
reunir para redefinir a ordem global (SLOBODIAN, 2018). A história deixou evidente que os
mercados não conseguem se autorregular. O neoliberalismo nasceu da aspiração de criar for-
mas de salvaguardar o capitalismo ao redor de todo o mundo. Num momento histórico quando
o princípio democrático estava se espalhando fortemente, tornou-se essencial que se criasse
uma estrutura para conter as ameaças impostas pela democracia e pela soberania de Estados.
Para tal fim, em 1938, cunhou-se o termo neoliberalismo durante o Colóquio Walter Lippmann
que aconteceu em Paris (SLOBODIAN, 2018), visando renovar o liberalismo (AUDIER, 2012);
logo, neoliberalismo pode ser entendido como “an organized group of individuals exchanging ide-
as within a common intellectual framework”29 (DEAN, 2012), buscando superar desafios que o
século XX trazia de novo e em contraposição ao domínio do mundo pelo voto popular que co-
meçava a se estabelecer.
Para chegar ao seu objetivo, um grupo de pensadores uniu esforços para proteger
o mercado de pressões democráticas através de instituições tais como FMI (Fundo Monetário
Internacional), Banco Mundial (World Bank), bancos centrais ao redor do mundo, Organização
Mundial do Comércio (World Trade Organization, em inglês), Câmara Internacional
do Comércio (ICC, sigla em inglês) e Liga das Nações, apenas para citar algumas, de forma
que capitais internacionais fossem protegidos, provendo um sistema legal internacional que ga-
ranta que investidoras/es estejam asseguradas/os contra apropriações e não estejam sujeitas/
os a leis nacionais soberanas que visem políticas de taxação ou redistribuição (SLOBODIAN,
2018).
Segundo os estudos de Slobodian, o processo de descolonização, acelerado depois
da Primeira Guerra Mundial, foi “central to the emergence of the neoliberal model of world gover-
nance”30 (SLOBODIAN, 2018, p. 5), num processo complexo de redução dos poderes estatais
em certos aspectos, e seu ganho de poder em outros, sendo capaz de impor leis de interesse
do grande capital, com foco não “on the market per se but on redesigning states, laws, and other
institutions to protect the market.” (SLOBODIAN, 2018, p. 6). Sendo assim, o prefixo “neo”
foi adicionado ao termo “liberalismo” para estabelecer o papel do Estado de uma outra forma
(SLOBODIAN, 2018). Hayek (1973), um dos mais importantes pensadores neoliberais, inclu-
sive, repudiou que advogasse por um “estado mínimo”, uma mera simplificação de muitos crí-
ticos do neoliberalismo, ou seja, não é uma questão de “quanto” Estado, mas sim de “qual tipo”
de Estado.
É interessante ressaltar que o pensamento neoliberal teve origem na Europa, apenas
posteriormente migrando para os EUA. Uma proeminente escola do pensamento neoliberal,
Geneva School, evidenciou a importância para a Europa de uma nova ordem internacional, afi-

29 «um grupo organizado de indivíduos trocando ideias dentro de uma estrutura intelectual comum”–tradução minha.
30 “central para o surgimento do modelo neoliberal de governança mundial”–tradução minha.

74
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

nal, depois do processo de descolonização política no final do século XIX e início do XX, seus
países se viram limitados territorial e populacionalmente, sem mencionar em termos de rique-
zas naturais e fontes de matérias-prima: “it made sense that Central European neoliberals were
precocious theorists of world order. Their countries did not enjoy a vast domestic market like that
of the United States […]”31 (SLOBODIAN, 2018, p. 9), consequentemente, foram levados a pen-
sar em uma outra forma de dominação quando seus impérios estavam em processo decadente
e a hegemonia global estava sendo deslocada para outro continente.
Como narrado por Slobodian (2018) em seu livro, foi a vertente neoliberal da Geneva
School que elaborou que não viveríamos em um mundo, mas em dois, baseados nas formulações
de Carl Schmitt: um mundo dividido em Estados territoriais, com fronteiras e governo local,
chamado de mundo do imperium, usando o termo romano; o outro seria o mundo da proprie-
dade, onde pessoas possuíram coisas, dinheiro e terra, espalhados ao redor do mundo: o mundo
do dominium (SCHMITT, 2006, p. 235):

over, under, and beside the state-political borders of what appeared to be a purely political
international law between states spread a free, i.e., non-state sphere of economy permeating
everything: a global economy. […] This minimum standard consisted of the freedom–the sepa-
ration–of the state-public sphere from the private sphere, above all, from the non-state sphere
of property, trade, and economy.32

Nesses termos, podemos perceber as raízes do pensamento neoliberal. Segundo Schmitt,


mais importante do que a diferença entre estrangeiro ou doméstico, está a diferença acima de-
talhada, entre nação e propriedade privada. Essa divisão prática do mundo começou a ser cons-
truída no século XIX quando o capital foi se espalhando pelo mundo através de investimentos
por proprietárias/os que nem sequer tinham pisado em países onde investiam. Nesse modelo,
contratos eram esforçados por códigos de conduta de negócios, às vezes escritos e outras vezes
não. De acordo com Slobodian, mesmo invasões militares não interferiam nessas propriedades.
O interesse dos neoliberais era criar um sistema análogo, porém que respondesse à nova con-
juntura do século XX, garantido pelas instituições que viriam a ser criadas.
É essencial apontar que na visão de Schmitt isso era um problema para o exercício da sobe-
rania nacional: “Schmitt meant the doubled world as something negative, an impingement on the full
exercise of national sovereignty. But neoliberals felt he had offered the best description of the world they

31 “Fazia sentido que os neoliberais da Europa Central fossem teóricos precoces da ordem mundial. Seus países
não desfrutavam de um vasto mercado doméstico como o dos Estados Unidos […]”–tradução minha.
32 “sobre, sob e ao lado das fronteiras político-estatais do que parecia ser uma lei internacional puramente política entre
os estados espalhava-se uma esfera de economia livre, isto é, não-estatal, permeando tudo: uma economia global.
[…] Esse padrão mínimo consistia na liberdade–a separação–da esfera pública-estatal da esfera privada, sobretudo,
da esfera não-estatal da propriedade, comércio e economia.”

75
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

wanted to conserve.”33 (SLOBODIAN, 2018, p. 10). Em consonância, Wilhelm Röpke, professor


em Genebra por quase trinta anos, acreditava que essa seria a fórmula ideal para um mundo ne-
oliberal, com duas esferas globais através de uma lei internacional executória, com a separação
entre esfera pública e o domínio privado: “to diminish national sovereignty is most emphatically
one of the urgent needs of our time”34 (RÖPKE, 1955), afirmou o autor.
Em 1947, a sociedade Mont Pelerin foi criada em Vevey, Switzerland. Segundo Mirowski
e Plehwe (2015), ela foi formada por pensadores multinacionais como Friedrich Hayek, Milton
Friedman, George Stigler, Karl Popper, Michael Polanyi e Luigi Einaudi e se tornou um dos mais
importante think tanks do pensamento neoliberal–quiçá o mais importante. Ao longo do tempo,
continuam os autores, suas ideias foram se espalhando pelo mundo todo, sendo responsáveis,
por exemplo, pelas plataformas políticas de Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Além disso,
teve grande influência no Consenso de Washington, um grupo de medidas tomadas em 1989
quando os EUA não eram apenas a mais importante potência mundial, algo que se materializou
depois da Segunda Guerra Mundial, mas estavam se tornando a única superpotência do mundo
com o esvaziamento da União Soviética.
Nesta seção, busquei construir entendimentos sobre o nascimento da razão neoliberal
que busca se disseminar por todas as partes da sociedade, sem limitações, a fim de absor-
ver para o meio de produção capitalista áreas que outrora não faziam parte da exploração.
Na próxima seção, busco descrever como o pensamento neoliberal, a nova razão do mundo
(DARDOT; LAVAL, 2016), pode permear até a ideologia daqueles que se dizem progressistas
ou de esquerda para, a partir dessa percepção, desafiarmos constantemente ideias/percepções
que podem parecer quase naturais.

Neoliberalismo Progressista

Em seu livro The Old is Dying and the New Cannot Be Born (O velho está morrendo mas o
novo não consegue nascer), Nancy Fraser (2019) faz uma análise profunda do bloco no poder
nos EUA (que teve um hiato quando Donald Trump esteve no governo mas que está de volta
com a presidência de Joe Biden) nas últimas décadas. Segundo Fraser (2019), essa conjuntura
de poder implicou:

the metastasis of finance; the proliferation of precarious service-sector McJobs; ballooning


consumer debt to enable the purchase of cheap stuff produced elsewhere; conjoint increas-
es in carbon emissions, extreme weather, and climate denialism; racialized mass incarceration
and systemic police violence; and mounting stresses on family and community life, thanks

33 “Schmitt percebeu o mundo duplo como algo negativo, um impacto no pleno exercício da soberania nacional. Mas os
neoliberais sentiram que ele havia oferecido a melhor descrição do mundo que eles queriam preservar.”–tradução
minha.
34 “Diminuir a soberania nacional é uma das necessidades mais urgentes do nosso tempo”–tradução minha.

76
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

in part to lengthened working hours and diminished social supports. Together, these forces
have been grinding away at our social order for quite some time without producing a political
earthquake. (FRASER, 2019, p. 9).35

O bloco hegemônico no império estadunidense durante a maior parte da fase neolibe-


ral é denominado por Fraser como “neoliberalismo progressista”. Segundo a autora (FRASER,
2019), o bloco que domina/dominou a política estadunidense seria formado por uma aliança
de dois inesperados companheiros:

on the one hand, mainstream liberal currents of the new social movements (feminism, anti-
racism, multiculturalism, environmentalism, and LGBTQ+ rights); on the other hand, the most
dynamic, high-end, “symbolic”, and financial sectors of the US economy (Wall Street, Silicon
Valley, and Hollywood). What held this odd couple together was a distinctive combination
of views about distribution and recognition” (FRASER, 2019, p. 11–ênfase minha).36

Para Fraser, indispensável para entendermos o conceito de hegemonia, precisamos voltar


a Antonio Gramsci: “Hegemony is his term for the process by which a ruling class makes its domi-
nation appear natural by installing the presuppositions of its own worldview as the common sense
of society as a whole.”37 (FRASER, 2019, p. 9). Para estabelecer seu domínio, a classe domi-
nante precisa estabelecer o que é certo e justo e o que não é. Para tal fim, explica a autora,
a hegemonia capitalista tem se alicerçado em dois aspectos: um focado em distribuição e outro
em reconhecimento.
Nas últimas décadas, podemos associar o modelo distributivo com as políticas neoliberais
e o de reconhecimento com as questões progressistas38 sobre feminismo, anti-racismo, multicul-
turalismo, ambientalismo e direitos LGBTQ+: “only when decked out as progressive could a deeply
regressive political economy become the dynamic center of a new hegemonic bloc”39 (FRASER, 2019,
p. 13). Assim, podemos entender como o neoliberalismo se manteve no bloco de poder durante

35 a metástase das finanças; a proliferação de McJobs precários do setor de serviços; aumento da dívida do consumidor
para permitir a compra de coisas baratas produzidas em outros lugares; aumentos conjuntos nas emissões de carbono,
condições climáticas extremas e negacionismo climático; encarceramento em massa racializado e violência policial
sistêmica; e tensões crescentes na vida familiar e comunitária, em parte graças ao aumento das horas de trabalho
e à diminuição das assistências sociais. Juntas, essas forças vêm esgarçando nossa ordem social há algum tempo
sem produzir um terremoto político–tradução minha.
36 de um lado, correntes liberais dominantes dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo,
ambientalismo e direitos LGBTQ+); do outro lado, os setores mais dinâmicos, sofisticados, “simbólicos” e financeiros
da economia norte-americana (Wall Street, Vale do Silício e Hollywood). O que mantinha esse estranho casal unido
era uma combinação distinta de visões sobre distribuição e reconhecimento” (FRASER, 2019, p. 11–ênfase e tradução
minhas).
37 “Hegemonia é o seu termo para o processo pelo qual uma classe dominante faz sua dominação parecer natural ao instalar
os pressupostos de sua própria visão de mundo como o senso comum da sociedade como um todo.”–tradução minha.
38 Para uma discussão mais detalhada sobre como questões progressistas, todas justas e necessárias, foram e ainda
são apropriadas pelo neoliberalismo de forma deturpada, veja Fraser (2019).
39 “Somente quando enfeitada como progressista, uma economia política profundamente regressiva pôde se tornar
o centro dinâmico de um novo bloco hegemônico”–tradução minha.

77
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

os anos Trump, pois as questões de reconhecimento mudaram para perspectivas racistas (whi-
te-supremacist), anti-imigrantes, anti-islâmicas e religiosas conservadoras, enquanto o aspecto
distributivo permaneceu o mesmo.
Além disso, como apontou Casara (2021) e abordei anteriormente, o neoliberalismo é um
projeto com muita plasticidade, que se adapta a contextos diversos, se unindo, como abordado
por Cooper (2017), aos preceitos de família como determinados por um viés religioso (neo)
conservador na guinada da extrema-direita nos últimos anos. Além disso, uma contribuição
enriquecedora de Fraser (2019, p. 42) é, corroborada pelos exemplos acima, de que:

a key realization for me, which came in a flash, was the idea that neoliberalism is not a total
worldview. Many people believe it is, but in fact it is a political-economic project that can arti-
culate with several different and even competing projects of recognition—including progressive
ones.40 41 (FRASER, 2019, p. 42).

Em consonância, importante ressaltar que, apesar de o início do projeto neoliberal ser as-
sociado nos EUA com Ronald Reagan, o presidente que fez as reformas mais relevantes envol-
vendo, por exemplo, precarização do trabalho, cortes em programas sociais e encarceramento
em massa (principalmente de negros) foi Bill Clinton (FRASER, 2019; SOUZA, 2020). Assim
como foi o presidente Barack Obama quem esbanjou imensuráveis quantias de dinheiro público
para salvar os bancos durante a crise de 2008/2009, enquanto assistiu 10 milhões de estaduni-
denses perderem suas casas, “the overwhelming thrust of his presidency was to maintain the progres-
sive-neoliberal status quo, despite its declining popularity”42 (FRASER, 2019, p. 20), cujas práticas
ajudaram na eleição de Trump em 2016.
Em outras palavras, mesmo que com aspectos diferentes no que tange o reconhecimento,
“on the big questions of political economy, reactionary neoliberalism did not substantially differ from
its progressive-neoliberal rival”43 (FRASER, 2019, p. 17). Ambos apoiaram a desregulamentação
do mercado financeiro, baixos impostos para grandes corporações, precarização trabalhista,
primazia dos interesses dos acionistas em detrimento dos trabalhadores, compensações altís-
simas para pequenas frações do 1% mais ricos da sociedade, imperialismo econômico/militar/
cultural etc.

40 uma constatação fundamental para mim, que veio em um piscar de olhos, foi a ideia de que o neoliberalismo
não é uma visão de mundo total. Muitas pessoas acreditam que sim, mas na verdade é um projeto político-econômico
que pode se articular com vários projetos de reconhecimento diferentes e até concorrentes – inclusive progressistas–
tradução minha.
41 Um outro claro exemplo encontramos no governo de Fernando Henrique Cardoso, que se autoclassifica de esquerda
(cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Posições_pol%C3%ADticas_de_Fernando_Henrique_Cardoso, porém, implantou
o projeto neoliberal no Brasil na década de 1990 (RIBEIRO JUNIOR, 2013).
42 “o objetivo determinante de sua presidência foi manter o status quo neoliberal progressista, apesar de sua popularidade
em declínio”–tradução minha.
43 “nas grandes questões da economia política, o neoliberalismo reacionário não difere substancialmente de seu rival
neoliberal progressista”–tradução minha.

78
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Nessa conjuntura, Fraser (2019, p. 33) advoga por um bloco popular progressista:

Let me be clear. I am not suggesting that a progressive-populist bloc should mute pressing
concerns about racism, sexism, homophobia, Islamophobia, and transphobia. On the contrary,
fighting these harms must be central to a progressive-populist bloc. But it is counterproductive
to address them through moralizing condescension, in the mode of progressive neoliberalism.
That approach assumes a shallow and inadequate view of these injustices, grossly exaggerating
the extent to which the trouble is inside people’s heads and missing the depth of the structur-
al-institutional forces that undergird them.44 (FRASER, 2019, p. 33)

Como aponta a autora, não conseguiremos superar questões misóginas, racistas e homo-
fóbicas, por exemplo, sem enfrentarmos questões de classe e numa perspectiva anti-capitalista.
Questões essas que frequentemente são deixadas de lado no discurso hegemônico do Norte
global, uma vez que seu discurso busca trocar questões de classe por questões de identidade
como se precisássemos escolher entre elas: elas só serão superadas quando tratadas em conjunto.
Afinal, como sugere Fraser (2019), questões raciais, machistas etc. não se resolverão simples-
mente com a leitura de um livro pelos reacionários; apenas transformações/revoluções sociais,
não apenas pequenas reformas, poderão superar as classes e a subjugação da maioria da popu-
lação pela ínfima minoria, pois não são questões apenas morais: “the structural bases of racism
have as much to do with class and political economy as with status and (mis)recognition”45 (FRASER,
2019, p. 35). Ainda:

Especially important, [progressive populism] must highlight the shared roots of class and status
injustices in financialized capitalism. Conceiving of that system as a single, integrated social
totality, it must link the harms suffered by women, immigrants, people of color, and LGBTQ+
people to those experienced by the working-class strata now drawn to right-wing populism.
In that way, it can lay the foundation for a powerful new coalition among all those now being
betrayed by Trump and his counterparts46 — , not just the immigrants, feminists, and people
of color who already oppose his hyperreactionary neoliberalism, but also the white working-
-class strata47 who have so far supported it. Rallying major segments of the entire working class,
this strategy could conceivably win. Unlike every other option considered here, progressive

44 Deixe-me ser clara. Não estou sugerindo que um bloco populista progressista deva silenciar preocupações urgentes
sobre racismo, sexismo, homofobia, islamofobia e transfobia. Pelo contrário, combater essas violências deve ser central
para um bloco populista progressista. Mas é contraproducente abordá-las por meio de condescendência moralizante,
à maneira do neoliberalismo progressista. Essa abordagem assume uma visão superficial e inadequada dessas injustiças,
exagerando grosseiramente a extensão em que o problema está dentro da cabeça das pessoas e perdendo de vista
a profundidade das forças estruturais-institucionais que as sustentam.–tradução minha.
45 “as bases estruturais do racismo tem tanto a ver com classe e economia política quanto com status e (des)reconhecimento.
(FRASER, 2019)” (Minha tradução)
46 Jair Bolsonaro, por exemplo, pode ser considerado um deles.
47 Podemos perceber uma clara correlação entre os Brasil e os EUA nesse aspecto, afinal, aqui, os eleitores de Bolsonaro
que saem às ruas são maioritariamente a classe média branca e o sul do país (também majoritariamente branco),
que foram traídos por Bolsonaro, mesmo que muitos ainda não o tenham aceitado.

79
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

populism has the potential, at least in principle, to become a relatively stable counterhegemonic
bloc in the future (FRASER, 2019, p. 35-36)48.

Ao desenvolver esse novo bloco progressista, podemos estar desenvolvendo o que


Foucault (2008) chamou de uma nova governamentalidade anti-neoliberal. Para isso, contu-
do, estou convencido de que há a necessidade de que aqueles que se vêem como progressistas,
como eu, questionem a governamentalidade neoliberal que se espalha como erva daninha, pois,
“o longo sucesso do neoliberalismo foi assegurado não apenas pela adesão das grandes forma-
ções políticas de direita a um novo projeto político de concorrência mundial, mas também pela
porosidade da ‘esquerda moderna’ nos grandes temas neoliberais” (DORDOT; LAVAL, 2016,
p. 233); além disso, me parece que a governamentabilidade neoliberal se tornou uma força
dominante até mesmo dentro da universidade pública, como busco abordar na próxima seção.

Neoliberalismo nas Universidades Públicas Brasileiras

Outra análise que corrobora a leitura de Fraser (2019) explorada na seção anterior,
ou seja, que demonstra que o neoliberalismo está em todas as partes e mentes, pode ser encon-
trada num artigo da revista Piauí e assinado pelo pseudônimo Benamê Kamu Almudras, porém
tratando da realidade universitária pública brasileira.
No artigo, Almudas (2021) descreve várias experiências vividas em sala de aula, por vá-
rias/os professoras/es, que ilustram como muitas/os universitárias/os têm, às vezes, atitudes
que demonstram o neoliberalismo como “forma cultural, em que o mercado, a ética individuali-
zante e o espírito do consumismo são erigidos como o modelo cognitivo e normativo da vida so-
cial” (ALMUDRAS, 2021, s. p.). De acordo com seus relatos, alunos, muitas vezes, exigem que:

a universidade [seja] como um supermercado ou um restaurante, onde quem


decide o que consome (que textos ler), quanto consome (quantos textos ler),
por quanto tempo consome (quantas aulas ter) e como consome (como as au-
las devem ser) são os consumidores. Subjacente [está] a ideia de que o pro-
fessor tem função parecida à de um gerente de hotel ou um alfaiate: servir
ao cliente e satisfazer seus desejos. E o cliente, sabemos, tem sempre razão!
(ALMUDRAS, 2021, s.p.).

48 Especialmente importante, [o populismo progressivo] deve destacar as raízes compartilhadas das injustiças de classe
e status no capitalismo financeirizado. Concebendo esse sistema como uma totalidade social única e integrada, ele deve
vincular as violências sofridas por mulheres, imigrantes, pessoas de cor e pessoas LGBTQ+ àquelas experimentadas
pelas camadas da classe trabalhadora agora atraídas pelo populismo de direita. Dessa forma, [o populismo progressivo]
pode lançar as bases para uma nova e poderosa coalizão entre todos aqueles que agora estão sendo traídos por Trump
e seus colegas – não apenas os imigrantes, feministas e pessoas de cor que já se opõem ao seu neoliberalismo hiper-
reacionário, mas também os estratos de classe de trabalhadores brancos que até agora o apoiaram. Reunindo grandes
segmentos de toda a classe trabalhadora, essa estratégia poderia vencer. Diferentemente de todas as outras opções
aqui consideradas, o populismo progressista tem potencial, pelo menos em princípio, para se tornar um bloco contra-
hegemônico relativamente estável no futuro (FRASER, 2019, p. 35-36).

80
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Presente nos relatos, termos como garantias–termo tipicamente mercantil–de aprova-


ção, retorno pelo tempo investido–um termo-fetiche do neoliberalismo–e exigências sobre o quê
e quanto ler são constantes nas exigências dos alunos em relação às aulas, às/aos professoras/es
e à universidade, vendo esta última como uma prestadora de serviços e as/os alunas/os como as/
os consumidoras/es. Ele continua:

Quando a coletividade política se transforma em um conjunto de indivíduos-consumidores


competindo no mercado, perde-se a ideia de que o professor é um servidor público dedicado
a formar cidadãos instruídos e qualificados. Mesmo na educação pública, e entre aqueles que fa-
lam em seu nome, cresce o desejo de que ela passe a servir, de modo neoliberal, a esse consu-
midor autocentrado e oportunista que busca minimizar custos e maximizar benefícios. Assim,
o professor universitário é tratado cada vez menos como um servidor público e cada vez mais
como um prestador de serviços a indivíduos – um serviçal privado (ALMUDRAS, 2021, s. p.).

Hoje, “a força do neoliberalismo como fenômeno cultural se revela até nos ambientes mais
progressistas, entre pessoas identificadas (por elas mesmas e por outras) como sendo de es-
querda e que dizem estar lutando contra injustiças sociais” (ALMUDRAS, 2021, s. p.), o que
autor chama de neoliberalismo de esquerda.
Essa influência do neoliberalismo nas universidades pode ser constatada de outras for-
mas. Em seu livro chamado Neoliberalismo e sofrimento psíquico: o mal-estar nas universidades,
Maia (2022) faz uma análise detalhada de como o neoliberalismo afeta professoras/es, alu-
nas/os e servidoras/es universitárias/os, porém vai além, dita o modus operandi das instituições
em certos aspectos.
Como destaca Mota, a educação, mais especificamente pela sua vertente pública, ainda
não é totalmente mercantilizada, o que, como aponta Dunker (2017, p. 118), se mostra como
“um obstáculo para o novo espírito do neoliberalismo ao advogar que cada um/a de nós é uma
espécie de livre empresa que deve escolher livremente suas/seus fornecedoras/es e aplicar
seus investimentos segundo os princípios de otimização de resultados.”. Sendo assim, enquanto
o mercado não domina por completo a educação, a razão neoliberal (DARDOT; LAVAL; 2016)
é introjetada nas escolas e universidades, primeiramente por um convencimento social e discur-
sivo de que a empresa deve ser o modelo de todas as instituições, mesmo as públicas, que de-
veriam ter o bem comum como alvo maior, e, em segundo lugar, com reformas institucionais
mediadas por governos neoliberais, como detalha Maia.
Segundo o autor, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, durante a pri-
meira onda neoliberal no Brasil, uma reengenharia institucional tomou corpo pela criação
do Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado (MARE), tendo como um dos
seus objetivos “alterar a relação do Estado com os serviços não exclusivos ao Estado, em espe-
cial as escolas técnicas e as universidades.” (MAIA, 2022, p. 112-113). Nessa toada, Júnior Silva

81
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

(2021, p. 269) detalha: “Nos anos FHC, por exemplo, pudemos testemunhar esse princípio
se transmutar em novas políticas públicas da educação superior brasileira. Políticas construídas
pela redefinição da função da formação universitária a partir da ideia de habilidades e compe-
tências […]”. Em consequência, estabeleceu-se o modelo concorrencial/empresarial como guia
das práticas administrativas ao trazer as leis do mercado e seus processos de gestão e avaliação
para a educação superior pública (MAIA, 2022).
Mas não acabou por aí; o projeto reformista, que vigorou até durante os primeiros anos
do governo Lula, foi além de apenas implementar práticas de gestão empresarial e neoliberal;
iniciou-se um processo de desinvestimento proporcional e de defasagem no salário docente e da
equipe administrativa, além da subcontratação de profissionais durante um aumento de número
de vagas e de cursos, sobrecarregando profissionais e causando estresse e esgotamento pelas
novas condições de trabalho, além de, como destaca Maia, piorar as condições de estudo e per-
manência discente. Elencarei abaixo alguns dados-chave, resultados das reformas neoliberais,
que aparecem com mais detalhe no trabalho de Maia:

Quadro 2–Universidades Federais e as medidas neoliberais (1995-2005)

Número de matrículas Aumento de 136,6%


Contratação de técnicas/os administrativas/os Aumento de 14,1%
Contratação de professoras/es Aumento de 10%
Repasse de verbas Redução de 29%
Verbas para pessoal (ativas/os e inativas/os) Redução de 26%
Verbas para pessoal (apenas ativas/os) Redução de 33%
Valores parar o funcionamento dos campi Redução de 26%
Salário de professor/a doutor/a Perda salarial de 21,19%
Salário de professor/a com dedicação exclusiva Perda salarial de 27,56%
Produtividade ligada a gratificações Aumento de 134% (média de 2,4 “produtos” para
3,68 per capita)
Fonte: Maia (2022).

Como podemos notar,

o Brasil impôs à universidade uma gestão neoliberal (empresarial), que alia ar-
rocho fiscal, expansão quantitativa, precarização e aumento de produtividade.
[…] Criou-se as condições de um ambiente sufocante em termos de pressão
física e mental, afinal, se por um lado mais campus (SIC) foram construídos,
aumentando muito as matrículas e, consequentemente, o número de estudan-
tes, por outro o número de professores, técnicos e, especialmente, de verbas
pouco cresceram ou até mesmo diminuíram. Todo esse processo foi acom-
panhado, também, por um redesenho da cultura acadêmica que faz eco com

82
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

o novo ethos do capitalismo que pariu a “sociedade do desempenho” (MAIA,


2022, p. 121).

Se focarmos na produção acadêmica, continua Maia, uma lógica quantitativa se converte


em reconhecimento social por meio do “modelo Capes de avaliação” em conjunto com o geren-
ciamento de si mesmo pelo “lattes” de cada pesquisador/a, uma vez que esses orientam “obriga-
ções” tácitas, detalhadas por Sguissardi e Silva Junior (2018, p. 37-38):

a) produzir e publicar determinada média anual de “produtos” científi-


cos em periódicos, classificados pela Agência, ou em editoras de renome;
b) dar aulas na pós-graduação e na graduação; c) ter pesquisa financiada
por agências de fomento que gozem de prestígio acadêmico; e d) prestar as-
sessorias e consultorias científicas. É de grande importância, ainda, seja para
as atividades de pesquisa e intercâmbio do professor pesquisador, seja para o
“bom nome” do programa, que ele obtenha algum tipo de bolsa, em especial
a de produtividade do CNPq e que profira amiúde palestras e conferências
e participe de eventos nacionais e internacionais; sabendo-se que tudo isso
se dará em contexto de crescente individualismo e competitividade em face
da também crescente competição por publicação e financiamento, este sempre
abaixo da demanda.

Ou seja, as/os professoras/es/pesquisadoras/es vivem num ambiente “de constante pres-


são, onde tudo que é feito é medido, quantificado e registrado e será usado futuramente para
fins avaliativos, [conduzindo] à ansiedade, às doenças e às tensões […]”, em outras palavras, isso
quer dizer “[…] que o tempo da educação, da formação de futuros pesquisadores, dos processos
educativos, da pesquisa e do conhecimento foi colonizado pelo tempo da economia neoliberal.”
(MAIA, 2022, p. 128).
Quando o neoliberalismo não está apenas atacando a educação pública de fora, mas faz
parte da ideologia de alunas/os e docentes de universidades públicas, colonizando até mesmo
os progressistas ou de esquerda–pois precisamos nos adequar ao sistema para avançar academi-
camente -, ressignificando a educação em termos do mercado, precisamos considerar que ape-
nas uma revolução em favor do bem comum pode nos livrar da miséria neoliberal (CASARA,
2021).

Neoliberalismo, Neocolonialismo e EUA ao lado da Colonialidade

A área da LA proporciona a construção de sentidos de uma forma ampla, complexa


e diversificada. Por sua natureza trans/multi/inter/in-disciplinar (MOITA LOPES, 2006), A/o
professor/a/pesquisador/a pode se enveredar por caminhos que auxiliem numa educação lin-

83
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

guística que contribua para a formação de estudantes por um viés crítico e problematizador.
Mesmo assim, concordo com Block, Gray e Holborow (2013, p. I) quando afirmam que:

while applied linguistics has become more interdisciplinary in orientation, it has ignored
or downplayed the role of political economy, namely the way in which social, political and eco-
nomic factors relate to one another within the context of a capitalist economy. The authors [of
this book] take the view that engagement with political economy is central to any fully round-
ed analysis of language and language-related issues in the world today49 (BLOCK; GRAY;
HOLBOROW, 2013, p. i).

Corroborando a observação acima citada, julguei plausível investigar a razão neolibe-


ral (DARDOT; LAVAL, 2016) como uma possível prática de desenvolvimento da criticidade
na sala de aula com fins de pensar realidades alternativas da qual estamos vivenciando na era
neoliberal (FERRAZ, 2015), trazendo questões de economia política para nossas preocupações
educacionais, de forma similar à que Cusicanqui (2018, p. 114), nos estudos decoloniais, nos in-
cita: “I propose the task of undertaking a ‘political economy’ of knowledge […] in order to analyze
the economic strategies and material mechanisms that operate behind discourses.”50.
Nesse sentido que, alicerçado na LA indisciplinar e nos Estudos Decoloniais, propus
uma investigação das macro-estruturas do modelo neocolonial contemporâneo que tem como
uma das suas mais importantes características o neoliberalismo, o qual me detive a analisar
neste capítulo. Partindo do conceito de colonialidade, busquei apontar sua relevância, porém,
ao mesmo tempo, destacar sua insuficiência para apreendermos a contemporaneidade, dessa
forma, ressignificando o conceito de neocolonialismo numa tentativa de complexizar as discus-
sões sobre decolonialidade.
Concordo com Bloch (1986) quando ele argumenta em favor de uma visão tempo-
ral multi-camadas, ou seja, várias camadas concomitantes que juntas constroem a realidade
em determinado momento histórico. Em outras palavras, “the world history has more staircases
than rooms”51 (BLOCH, 1986, p. 214). Consequentemente, uma das camadas que guia nosso
momento histórico pode ser entendida como a colonialidade e suas consequências históricas
do imperialismo europeu. Ao mesmo tempo, um outro poder, que pode ser chamado de neo-
colonial e tem o neoliberalismo como uma de suas manifestações, se espalha pelo mundo a fim
de domínio, exploração e espoliação.

49 “embora a linguística aplicada tenha se tornado mais interdisciplinar em orientação, ela ignorou ou minimizou o papel
da economia política, ou seja, a maneira pela qual os fatores sociais, políticos e econômicos se relacionam entre si no
contexto de uma economia capitalista. Os autores [deste livro] consideram que o envolvimento com a economia política
é central para qualquer análise completa da linguagem e das questões relacionadas à linguagem no mundo de hoje”
(BLOCK; GRAY; HOLBOROW, 2013, p. I–tradução minha).
50 “proponho a tarefa de empreender uma “economia política” do conhecimento […] de forma a analisar as estratégias
econômicas e os mecanismos materiais que operam por trás dos discursos.” (tradução minha).
51 “a história mundial tem mais escadas do que quartos”–tradução minha.

84
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

É verdade que outros países ainda mantêm certas influências ao redor do globo como
resquício de sua fase imperial e colonizadora. Aqui, todavia, me concentrei em enfatizar o papel
dos EUA por este ser o país e o (neo)império que mais se beneficiou da fase neoliberal do ca-
pitalismo (CHOMSKY, 2017), se apropriando de maior quantidade de riqueza provinda do Sul
Global por seu papel de hegemon no capitalismo contemporâneo:

Os Estados Unidos encarnam o imperialismo em sua máxima expressão–e não apenas pelo
poder acumulado nas dimensões econômicas, políticas, militares e culturais desde o final
da Segunda Guerra Mundial. O grau de hegemonia alcançado foi inédito, considerando o do-
mínio material e simbólico, bem como sobre as estruturas hegemônicas de poder, instituições
internacionais e corporações. […] Na condição de hegemon de que gozam os EUA, os órgãos
multilaterais não foram arquitetados para partilhar poder nem são impeditivos à sua atuação in-
ternacional; ao contrário, foram construídos para ampliar sua capacidade de governança global,
legitimando e estabilizando o status de superpotência. (PAUTASSO, 2022, p. 63 e 70).

Para a construção dessa dominação sem adversários à mesma altura, questões culturais,
econômicas e políticas se mergem por meio do neoliberalismo:

Esto forma parte de lo que varios autores han definido como “la nueva lógica multicultural
del capitalismo global”, una lógica que reconoce la diferencia, sustentando su producción y ad-
ministración dentro del orden nacional, neutralizándola y vaciándola de su significado efectivo,
volviéndola funcional a este orden y, a la vez, a los dictámenes del sistema-mundo y la expan-
sión del neoliberalismo. En este sentido, el reconocimiento y el respeto a la diversidad cultural
se convierten en una nueva estrategia de dominación, que apunta no a la creación de socie-
dades más equitativas e igualitarias, sino al control del conflicto étnico y la conservación de la
estabilidad social con el fin de impulsar los imperativos económicos del modelo (neoliberalizado)
de acumulación capitalista.52 (WALSH, 2010, p. 78).

Nessa toada, defendi ao longo destas páginas que o modelo neoliberal, encabeçado pelos
EUA, num modelo de dominação neocolonial pode ser trazido ao lado do conceito de coloniali-
dade para auxiliar na compreensão das formas das quais o capitalismo faz uso para a acumula-
ção de capital, pois “o país representa a fase superior do imperialismo, porque logrou sofisticar
sua atuação.” (PAUTASSO, 2022, p. 76).
A fim de imaginar outros possíveis futuros, precisamos desafiar a ideologia meritocrática
neoliberal: “A meritocracia, a crença de que qualquer pessoa pode enriquecer em razão das suas

52 “Isso faz parte do que vários autores definiram como “a nova lógica multicultural do capitalismo global”, uma lógica
que reconhece a diferença, sustentando sua produção e administração dentro da ordem nacional, neutralizando-a
e esvaziando-a de seu significado eficaz, tornando-o funcional a essa ordem e, ao mesmo tempo, aos ditames do sistema-
mundo e da expansão do neoliberalismo. Nesse sentido, o reconhecimento e o respeito à diversidade cultural tornam-se
uma nova estratégia de dominação, que visa não a criação de sociedades mais equitativas e igualitárias, mas ao controle
do conflito étnico e preservação da estabilidade social, a fim de promover os imperativos econômicos do modelo
(neoliberalizado) de acumulação capitalista.”–tradução e ênfases minhas.

85
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

atitudes, é fundamental para o imaginário neoliberal” (CASARA, 2021, p. 313). Precisamos


desafiar essa falácia para, em contrapartida, pensarmos um mundo centrado no bem comum
(DARDOT; LAVAL, 2016; CASARA, 2021) e na revalorização do local em detrimento do glo-
bal (NORBERG-HODGE, 2019).
Mas “ao mesmo tempo que devemos problematizar esses discursos se desejamos pro-
mover uma educação crítica de línguas, não podemos diminuir a fato de que o neoliberalismo
constitui a base das nossas práticas sociais e, por isso, uma lógica naturalizada e difícil de ser
questionada. (FERRRAZ, 2015, p. 64). Sendo assim, entendimentos sobre o neoliberalismo
se mostram essenciais.
Para encerrar, resgato Freire (2020), pois ele defendia que a educação pode servir para
sermos mais. Busquei neste capítulo enfatizar a relevância dos conceitos de neoliberalismo e ne-
ocolonialismo como complementares à colonialidade para uma educação linguística crítica para
que possamos questionar as formas de poder que ajudam a manter o Sul Global num locus
que tem sido intencionalmente rebaixado pelo Norte Global, nos impedindo de sermos mais.

Referências

ALBUQUERQUE, M. L. V. de; HAUS, C. Decolonialidade e inglês como língua franca: diálogos


com professores brasileiros. Cadernos do IL, n. 61, p. 181-208, 2020.
ALMUDRAS, B. K. Parece revolução mas é só neoliberalismo:  professor universitário em meio
às cruzadas autoritárias da direita e da esquerda. Revista Piauí, 2021. Disponível em: <https://piaui.
folha.uol.com.br/materia/parece-revolucao-mas-e-so-neoliberalismo/>. Acesso em: 5 jan. 2022.
ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro, RJ: Graal, 1985.
ANDRADE, D. Neoliberalismo e suas definições no Brasil. YouTube, 30. Mar. 2021. Disponível em:
<https://youtu.be/A_xODsioG>. Acesso em: 15 jun. 2022.
ANTUNES, R. O Privilégio Da Servidão: o novo proletariado de serviços da era digital. Impulso,
Piracicaba, v. 28, n. 73, p. 137-141, set.-dez. 2018.
AUDIER, S. Le Colloque Walter Lippman: Aux origines du “néo-libéralisme”. Texte intégral précédé
de Penser le “néo-libéralisme.” Lormont: Editions Le Bord de l’eau, 2012.
BARRETO VAZ, R. Neocolonialismo: Letramento Crítico, Decolonialidade e Educação Linguistica
Crítica tensionados Numa Autoetnografia. 2022. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2022.
BECKER, G. S. A Treatise on the Family. Nova York: Harvard University Press, 2009.
BLOCH, E. The Principle of Hope. Nova York: The MIT Press, 1986.

86
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

BLOCK, D.; GRAY, J.; HOLBOROW, M. Neoliberalism and Applied Linguistics. Londres:
Routledge, 2013.
BONILLA, J. M. H. Em 95% dos artigos científicos, inglês cria ‘ditadura da língua’. Apenas 1% está
em português e espanhol. El País Brasil, 28. Jul. 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/
ciencia/2021-07-28/em-95-dos-artigos-cientificos-ingles-cria-ditadura-da-lingua-apenas-1-esta-em-
portugues-e-espanhol.html>. Acesso em: 30 dez. 2021.
BORELLI, J. D. V. P.; SILVESTRE, V. P. V.; PESSOA, R. R. Towards a Decolonial Language Teacher
Education. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 20, n. 2, p. 301-324, 2020.
BROWN, W. Défaire de démos. Le néolibéralisme, une révolution furtive. Paris: Éditions
Amsterdam, 2019.
CASARA, R. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.
CHOMSKY, N. Quem Manda no Mundo? São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2017.
COOPER, M. Family Values: Between Neoliberalism and the New Social Conservatism. Nova York:
Princeton University Press, 2017.
COWIE, J. “A One-Sided Class War”: Rethinking Doug Fraser’s 1978 Resignation from the Labor-
Management Group. Labor History, v. 44, n. 3, p. 307–314, 2003. Acesso em: 15 dez. 2021.
CUSICANQUI, S. R. Ch’ixinakax utxiwa: A Reflection on the Practices and Discourses of Decolonization.
In: BEIGEL, Fernanda.  (ed.). Key Texts for Latin American Sociology. Nova York: SAGE Publications
Ltda., 2019. p. 290-306. Disponível em: http://dx.doi.org/10.4135/9781526492692.n20. Acesso em:
26 out. 2021.
DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.
DEAN, M. Rethinking neoliberalism. Journal of Sociology, v. 50, n. 2, p. 150-163, 2012..
DUNKER, C. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. Cidade: Ubu Editora, 2017.
FERRAZ, D. de M. Educação crítica em língua inglesa: neoliberalismo, globalização e novos
letramentos. Curitiba: CRV, 2015.
FOUCAULT, M. História da sexualidade: As confissões da carne. Cidade: Editora Paz e Terra, 2020.
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1977-1978). Cidade:
Martins Martins Fontes, 2008.
FRASER, N. The Old Is Dying and the New Cannot Be Born. Verso, 2019.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 74. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2020

87
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

FRIEDMAN, F. Milton Friedman Speaks: Lecture 1 —What is America? (New York: Harcourt Brace
Jovanovich, 1978). Video. 1:07:14-1:09:09. Available online at http://www.freetochoose.tv/program.
php?id=mfs_1&series=mfs
GROSFOGUEL, R. La compleja relación entre modernidad y capitalismo: una visión descolonial.
Pléyade, Santiago, n. 21, p. 29-47, 2018.
HAYEK, F. A. Law, Legislation and Liberty: The Political Order of a Free People. Chicago: University
of Chicago Press, 1973.
HAN, B.-C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2015.
HARDT, M.; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.
HUDSON, M. ...and Forgive Them Their Debts: Lending, Foreclosure and Redemption from Bronze
Age Finance to the Jubilee Year. ISLET, 2018.
JORDÃO, C. M.; FIGUEIREDO, E. H. D. DE; MARTINEZ, J. Z. Trickstering Applied Linguistics with
Pennycook and Makoni: Transglobalizing North and South. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 59,
n. 1, p. 834–843, 2020.
JÚNIOR SILVA, N. O brasil da barbárie à desumanização neoliberal: do “Pacto Edípico, pacto social”,
de Helio Pellegrino, ao “E daí”, de Jair Bolsonaro. In: SAFATLE, V.; JUNIOR, N. DA S.; DUNKER, C.
Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Cidade: Autêntica Editora, 2021.
KRESS, G. R. Multimodality: A Social Semiotic Approach to Contemporary Communication. Cidade:
Routlegde , 2010.
LENIN, V. I. O imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
LOSURDO, D. Colonialismo e luta anticolonial: Desafios da revolução no século XXI. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2020.
MAIA, H. Neoliberalismo e sofrimento psíquico: o mal-estar nas universidades. Recife, PE:
Ruptura, 2022.
MARX, K; ENGELS, F. O manifesto do partido comunista. São Paulo: Cortez, 1998.
MENEZES DE SOUZA, L. M. T.; DUBOC, A. P. M. De-universalizing the decolonial: between
parentheses and falling skies. Gragoatá, v. 26, p. 56, p. 876-911, 2021.
MIGNOLO, W. D. Geopolitics of sensing and knowing: on (de)coloniality, border thinking and epistemic
disobedience. Postcolonial Studies, v. 14, n. 3, p. 273–283, 2011.
MIGNOLO, W. D. Histórias locais–Projetos globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento
liminar. Cidade: Editora UFMG, 2003.

88
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

MIGNOLO, W. D.; WALSH, C. E. On Decoloniality: Concepts, Analytics, Praxis. Cidade: Duke


University Press, 2018.
MIROWSKI, P.; PLEHWE, D. The Road from Mont Pèlerin: The Making of the Neoliberal Thought
Collective. Cidade: Harvard University Press, 2015.
MOITA LOPES, L. P. da. Por uma lingüística aplicada indisciplinar. Cidade: Parabola Books, 2006.
NORBERG-HODGE, H. Local Is Our Future: Steps to an Economics of Happiness. Local Futures, 2019.
PARSONS, T. Structure of Social Action. 2. ed. v. 1. Cidade: Free Press, 1967.
PAUTASSO, D. Imperialismo. Ainda faz sentido na era da globalização? São Paulo: Cultura, 2022.
PENNYCOOK, A. Translingual entanglements of English. World Englishes, v. 39, n. 2, p. 222-235, 2020.
PIKETTY, T. Capital e Ideologia. Cidade: Intrínseca, 2019.
PHILLIPS, P. Giants: The Global Power Elite. Cidade: Seven Stories Press, 2018.
PORTO-GONÇALVES, W. Abya Yala. Disponível em: <https://iela.ufsc.br/povos-originários/abya-
yala>. Acesso em: 10/9/2022.
PRICE, C.; EDWARDS, K. Trends in Income From 1975 to 2018. Cidade: RAND Corporation, 2020.
QUIJANO, A. Coloniality of Power and Eurocentrism in Latin America. International Sociology, v. 15,
n. 2, p. 215-232, 2000.
REAGAN, R. Inaugural Address, 1981. Disponível em: <https://www.reaganfoundation.org/ronald-
reagan/reagan-quotes-speeches/inaugural-address-2/>. Acesso em: 23 mar. 2022.
RÖPKE, W. Economic Order and International Law. Leiden: A. W. Sijthoff, 1955.
SANDEL, M. J. A tirania do mérito: O que aconteceu com o bem comum? Cidade: Editora José
Olympio, 2020.
SAFATLE, V.; JUNIOR, N. da S.; DUNKER, C. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico.
Cidade: Autêntica Editora, 2021.
SCHMITT, C. The Nomos of the Earth in the International Law of the Jus Publicum Europaeum.
Cidade: Telos Press Publishing, 2006.
SGUISSARDI, V.; SILVA JÚNIOR, J. R. Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação
e produtivismo acadêmico. Cidade: Navegando Publicações, 2018.
SLOBODIAN, Q. Globalists: The End of Empire and the Birth of Neoliberalism. Cidade: Harvard
University Press, 2018.
SOUSA SANTOS, B. de. O fim do império cognitivo: A afirmação das epistemologias do Sul. Cidade:
Autêntica, 2019.

89
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

SOUZA, J. A Guerra Contra O Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2020.


SOUZA, J. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. Rio de
Janeiro: editora, 2015.
SOUZA, J. Como o racismo criou o Brasil. Estação Brasil, 2021.
STREECK, W. Flexible Employment, Flexible Families, and the Socialization of Reproduction. MPIfG
Working Paper, n. 09/13, 2009.
TAVARES, M. da C. A retomada da hegemonia norte-americana. Brazilian Journal of Political
Economy, [S. l.], v. 5, n. 2, 1985.
THATCHER, M. The Downing Street years. Cidade: Harpercollins, 1993.
WALSH, C. Interculturalidad crítica y educación intercultural. Construyendo Interculturalidad
Crítica. Cidade: Instituto Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello, 2010.
WALSH, C. Pedagogías decoloniales: Prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Cidade:
Editorial Abya–Yala, 2013.

90
SOBRE (DE)COLONIALIDADE NA FORMAÇÃO DOCENTE
BRASILEIRA NA ÁREA DE LÍNGUAS E LINGUAGENS1

Walkyria Monte Mór


Universidade de São Paulo

Obrigada a toda comissão organizadora pelo convite e pela oportunidade de diálogo


com o Raphael. Eu sempre gosto de ter esse tipo de diálogo com os jovens que estão fazendo
seus mestrados e doutorados. É uma interlocução necessária para mim, porque renova o meu
jeito de pensar, me dá oportunidades de rever formas de pensar às vezes mais cristalizadas, re-
ver as teorias e ações que a gente acaba consolidando.
Então, eu escolhi falar dessa temática hoje com vocês e depois de nossa discussão com o
Raphael já fiquei querendo alterar os slides que eu mandei, mas depois, se for o caso, eu busco
outras informações para mostrar.
Em um determinado momento, depois que foi lançado o livro Perspectivas críticas de edu-
cação linguística no Brasil (slide 1) organizado por Rosane Rocha Pessoa, Viviane Silvestre e por
mim (2018), cheguei a fazer um levantamento de uma das questões de que esse livro trata, por-
que fiquei super curiosa para ver como os colegas trabalharam a pergunta: “Em que momento
de seu percurso escolar-acadêmico houve aproximação com uma proposta crítica de educação?”.
Em 2018, no CBLA, em Vitória, fiz uma análise sobre esse levantamento. Organizei a análise
em forma de pizza (slide 2) e logo volto a falar disso.
Na aproximação com as autonarrativas sobre educação crítica naquele livro, achei muito
interessante o retorno das pessoas. Vi que onde houve menor aproximação com a educação
crítica foi exatamente na Educação Básica dos narradores. É onde, hoje em dia, a gente está ba-
talhando para ampliar o espaço da crítica. Vi que o momento, por exemplo, onde existe maior
aproximação com a crítica é quando a pessoa entra no mestrado e, em segundo lugar, na gra-
duação. No doutorado, a pessoa já deve possivelmente ter maior percepção do processo críti-
co uma vez que ela teve um contato maior com leituras e discussões do mestrado. Há outros

1 Transcrição livre da fala realizada no primeiro ciclo do evento Decolonialidade e Linguística Aplicada.

91
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

momentos, não necessariamente acadêmicos, em que as pessoas reconheceram aproximação


crítica fora da universidade ao longo de sua vida.

Slide 1

Fonte: a autora.
Slide 2

Fonte: a autora.

92
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Desde aquele levantamento e respectiva análise, fiquei pensando: não teria sempre havido
todo um interesse na formação colonial em nosso processo de escolarização?
A partir dessas reflexões e outras, acabei dando continuidade a essa ideia, aproximando-a
de dois focos: 1- meu interesse em Paulo Freire, já que a educação crítica vem muito de seus
estudos; 2- meu interesse nos letramentos, que, por sua vez, emergem da educação crítica frei-
reana e da compreensão desse processo de colonialidade/decolonialidade que foi integrado
aos grupos que vêm estudando os letramentos.
Dando continuidade (slide 3), preciso dizer que, agora, não pretendo fazer uma abor-
dagem da colonialidade em um processo aprofundado até porque eu já estou num meio onde
as pessoas trabalham essa temática de forma bastante aprofundada. Trago aqui só o que eu acho
que seria relevante para essa análise que apresento. Então, essa análise da colonialidade como
um processo de visão colonial do mundo ocidental, que obedece ao modelo epistêmico implan-
tado pela modernidade ocidental que é chamada de hubris do ponto zero ou arrogância do pon-
to zero (CASTRO-GOMEZ, 2005) é de enorme interesse para mim. Aí vejo associação entre
aquele interesse que eu já mencionei hoje no diálogo com Raphael [letramentos críticos, o que
é crítica]. Esse tema já vinha despertando interesse em mim desde outras décadas, quando que-
ria entender qual é a filosofia presente na sociedade em que eu vivo. Então, querendo entender
por que a escola se construiu dessa forma, querendo entender por que eu, com dez anos, queria
estudar inglês para ir para Nova York, querendo entender por que as pessoas achavam que estu-
dar inglês daria status, melhor oportunidade de trabalho, melhor salário, enfim... Acho que essa
visão, para uma jovem de 10 anos, representava estar ligada ao mundo importante, ao mundo
em que a jovem poderia ter importância social, né? Saliento que antes eu havia estudado francês
na escola pública. Hoje analiso que, naquela idade, mesmo que de forma inconsciente, achava
que saber idiomas representava ‘uma chave para o mundo’. Vejam, na formação escolar, o idio-
ma francês já havia ocupado esse mesmo espaço que veio a ser do inglês. Por que isso ocorreu?
O que tinha mudado? Só mais tarde vim a compreender essa ‘mudança’.

93
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Slide 3

Fonte: a autora.

Muito bem, para compreender a colonialidade/decolonialidade, resolvi ler também o que


a Wikipedia fala sobre esse tema, sobre o pensamento colonial (slide 4). Há ali uma construção
coletiva, uma forma generalizada, portanto problemática, de falar da decolonialidade.

Slide 4

Fonte: a autora.

94
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Ali fala de um conceito que [também] está correto: “a decolonialidade ou o pensamento


colonial é uma escola de pensamento utilizada essencialmente pelo movimento latino-america-
no emergente que tem como objetivo libertar a produção de conhecimento da episteme euro-
cêntrica” e “crítica a suposta universalidade atribuída ao conhecimento ocidental e o predomí-
nio da cultura ocidental. As perspectivas decoloniais veem essa hegemonia como sendo a base
do imperialismo ocidental.” (trechos copiados da Wikipedia). Mas, raciocino: “ok, mas como
essa colonialidade se impôs em cada localidade? Não foi tudo igual, não é?” Tenho a lista dos la-
tino-americanos que vêm se dedicando a esse estudo no slide 5.

Slide 5

Fonte: a autora.

Penso muito nas questões que li, segundo os autores que li (slide 5), seguindo Castro-
Gómez e Grosfoguel (2007) e os autores que têm se dedicado a essa área nesse grupo latino-
-americano, incluindo a Walsh. Fico pensando até que ponto a decolonialidade que é discutida
por eles já se tornou “universal” na visão desses estudiosos. Estou acompanhando os estudiosos
brasileiros [que vêm focalizando esse tema] (logicamente aqui no Brasil temos estudos muito
interessantes) para entender até que ponto nós estamos propondo uma decolonialidade, le-
vando em conta a perspectiva histórica e onto-epistemológica brasileira. O núcleo paranaense,
por exemplo, se destaca em várias produções a esse respeito, mas não só. Outros também se des-
tacam e acho que nós temos que começar a enumerar esses também, juntando-nos aos estudio-
sos do tema, ao nos referirmos à colonialidade/decolonialidade aqui no Brasil. Bem, aí destaco
o meu interesse e reflexão. Creio que por ter estudado Educação, Filosofia da Educação, ter tido

95
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

aulas com Freire e todos os outros filósofos e educadores na década de 80, durante o mestrado,
comecei a entender... não, comecei a me preocupar com certas questões educacionais no ensino
de línguas e formação de professores. Atualizando essas reflexões, hoje penso: até que ponto
Freire não teria sido um dos pioneiros a pensar nessa questão da colonialidade/decolonialidade,
embora sem usar esses termos, né? Será que é isso? Será que eu posso começar a entender por aí
também? Quero dizer, posso entender essa questão dessa forma aqui no Brasil?
Aí começo a fazer associações a essa ideia de colonialidade no Brasil. Lógico, como vários,
comecei meus estudos pelos estrangeiros, mas logo em seguida me pus a refletir a respeito dessa
temática no Brasil, com as tais associações feitas até então. Pensei no que Mignolo (2008) falou
sobre a colonialidade, a influência do eurocentrismo, quando chama atenção para a classificação
“primeiro, segundo mundo...” onde se vê o binômio hierárquico “sabedoria e ciência”, e a ques-
tão do Iluminismo que eu vi também nos estudos da pesquisadora maori Tuhiwai Smith (1999).
Ela também chama a atenção para essa ideia de modernidade e colonialidade em que vê a influ-
ência do Iluminismo. Essa conjunção representa também o meu modo de entender o processo
modernista, iluminista e liberal no ‘projeto colonialidade’. O Iluminismo tido como modernida-
de... e a nossa ilusão pela modernidade, que vê o estímulo para a Revolução Industrial, a filosofia
do liberalismo, o desenvolvimento de disciplinas nas ciências e o desenvolvimento da educação
pública, sem avaliar “os efeitos colaterais”. Esse processo não exclui todo o pensamento positi-
vista, que junto com o liberalismo, privilegiou linearidades, hierarquias, binarismos... a questão
da segmentação é uma das características do positivismo também da educação.
O pensador mexicano Hernandez-Zamora (2010) fala de escolarização como colonia-
lidade, uma experiência cultural, política e ideológica de adotar e assimilar-se a uma língua,
que possui culturas e ideologias de um outro dominante. Essa preocupação dele é também a mi-
nha. Eu não a localizava numa questão terminológica desde a década de 80, quando me interes-
sei por entender a questão das ideologias; eu queria entender a questão do domínio.
E aí como é que na modernidade/colonialidade isso transpareceu e como também trans-
parece no estudo de línguas (slide 6)?

96
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Slide 6

Fonte: a autora.

Então, quando a gente começa a passar a ideia para os alunos e para os professores em for-
mação de que existe um mundo desenvolvido, que o mundo é hierarquizado social, cultural,
educacional e economicamente, e que nós hoje não somos chamados mais de “terceiro mundo”,
mas de “país em desenvolvimento” (se bem que no governo atual nós deveríamos abrir mão da
designação “país em desenvolvimento”...rsrsrss...), quais quesitos tivemos no passado, e deixa-
mos de ter, por termos “evoluído” para “país em desenvolvimento”? Mas essa seria uma outra
discussão.
Bem, na formação docente, faltaria perguntar quem define o que é desenvolvido. A mesma
coisa sobre o Iluminismo. Ou seja, quando as pessoas defendiam o Iluminismo como a filoso-
fia das luzes, a filosofia que era mais adiantada...muita coisa precisaria ser relativizada... o que
é “ser mais adiantado”? Porque aqui, na nossa formação, na nossa educação, estava presente
uma filosofia colonial.
Dando continuidade na reflexão, retomo aquele resultado de trabalho de professores
em que respondem sobre o percurso profissional deles, no aprendizado de línguas e na forma-
ção docente, levando em conta a aproximação com o processo crítico.
Quatro narrativas chamaram muita atenção (slide 7).

97
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Slide 7

Fonte: a autora.

Primeiro, uma que se referia ao “querer falar como um nativo” que pode nos levar à dis-
cussão sobre nativespeakerism, relação de poder, domínio. Uma segunda foi a ideia do “adorar
inglês”, a ideia de que alguém estuda porque “adora inglês... esse “adorar” vem de onde? Mais
uma terceira que acha que inglês “tem glamour”. Saber inglês tem, sim, um status diferenciado,
mas essa noção foi socialmente construída. Por que foi construída assim? E a quarta narrativa
traz a ideia de que o inglês é “o idioma da comunicação universal” e, portanto, estaria certo
o fato de ele ter sido escolhido como o mais importante – ou mesmo o único – para Educação
Básica. Essa última visão deveria deixar explícito que há interesses outros quanto ao haver mais
espaço na grade escolar para a língua inglesa e talvez nenhum espaço para outros aprendizados
de idiomas na Educação Básica. Uma visão cultural e ideologicamente estreita e que desconsi-
dera as pluralizações, as diversidades, a educação para o(s)/a(s) outro(s)/outra(s).
Bem, no meu entendimento crítico, coloquei-me a refletir se tal perspectiva também
era característica das línguas estrangeiras “modernas”. Exatamente por serem chamadas de mo-
dernas já estavam refletindo valores da modernidade, portanto, valores da colonialidade? Então,
se ao mesmo tempo elas refletiam isso, que em certa publicação eu tinha chamado de “confor-
midade”, seus princípios privilegiam o “agir de acordo com os conformes”? Com essa defini-
ção, refiro-me a uma educação que se volta para “estar incluído no pensamento generalizado,
padrão, enquadrado no universal”. E questiono: até que ponto é “natural” que se pense assim,
ou seja, essa ideia é uma naturalização do pensamento eurocêntrico, da sociedade colonialista,

98
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

ou seja, de que uma hierarquia existe, existe uma superioridade, existe mesmo um centro e o
fato de existir esse centro desperta desejo e interesse de que as pessoas venham a pertencer
a esse centro, porque a importância estaria ali, não nas margens. Então, integrar o processo
de decolonialidade das mentes no trabalho educacional tem a ver com ativar o interesse / a per-
cepção das pessoas de que há visões outras – plurais, diversas, divergentes, heterogêneas etc.
– de sociedade e de sujeito, conforme o Rafael menciona no capítulo anterior.
Continuando ainda as minhas reflexões, nesse próximo slide (slide 8) trago os estudos
de Luke (2004) acentuando, como citei também durante o diálogo com o Rafael, que para esse
autor “a escolarização e o ensino são tecnologias de uma nação”.

Slide 8

Fonte: a autora.

Ou seja, a ideia de que existe um conceito de nação por trás de todo o nosso trabalho
de desenvolver o ler e o escrever. E nesse processo, o projeto e o construto de nação não são
falados nem são visibilizados, mas são poderosos, e isso me faz pensar sobre a nossa responsa-
bilidade como professores da área de línguas e da formação docente na área de línguas, a impor-
tância de perceber que nós estamos ensinando segundo uma concepção conservadora. E que
esse modo convencional está ligado ao projeto de modernidade, a um projeto de colonialidade,
que busca levar à conservação desses poderes e dessa visão, via a escolarização que aí está. É o
que focalizo nos meus escritos sobre “a sociedade da escrita e a sociedade digital”.

99
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Bem, esse projeto de sociedade Modernista e Iluminista viabilizado pelo projeto da disse-
minação do ler e escrever é que está por trás desse tipo de sociedade que a gente vive. O apren-
dizado do ler e escrever subscreve um projeto colonial de sociedade e de sujeito, que leva a mui-
tas ideias de privilégio, por exemplo, de desejo pelo centro, que leva as pessoas a acharem que é
natural se pensar dessa forma.
Acho interessante o pós-método que Kumaravadivelu defende. Embora eu faça um pouco
de crítica a outras ideias dele, em sua publicação de 2014, achei que se redimiu quando ele fala
assim: “por conta da ‘violência epistêmica colonial perpetrada contra as margens, a construção do dis-
curso intelectual disponível e seguida pelos subalternos intelectuais é eurocêntrica. Como consequência,
estes [acham que] não têm escolha a não ser se conformar com os modos de saber da linguagem oci-
dental [...], acabam por não exercitar sua posição de sujeitos” (KUMARAVADIVELU, 2014, p.283).
Aí ele chama a atenção para esse tipo de discurso e de ensino, que convencionalmente se dis-
seminou, fazendo com que a gente quisesse se aproximar do nativo, fazendo com que a gente
quisesse ter a perfeição da língua inglesa enquanto estudantes de uma língua estrangeira. E aí,
ao chamar atenção por essas noções, eu faço a análise de que foi também naturalizada essa
ideia de que há mesmo seres mais desenvolvidos e outros menos desenvolvidos, o que é uma
premissa do binarismo presente na sociedade modernista e colonial, e o binarismo atua no de-
sejo de pertencimento: ao privilegiar um dos dois polos, coloca o polo privilegiado em um
“centro de relevância”. Esse centro gera o desejo de inclusão, sem que, muitas vezes, as pessoas
se perguntem quem define qual é o centro, por que tal lado é considerado “o melhor” ou “o mais
certo”; qual lado é o desenvolvido e por quê; qual lado é o melhor e quem / com que critérios
o definiu assim; qual lado representa o incluído e qual lado representa a exclusão.
Nesse mesmo raciocínio, o desenvolvimento intelectual está definido desde o nascimento
e essa é uma outra premissa que eu vejo que parte desse tipo de pensamento da modernidade
e da colonialidade. É um pensamento que vem da premissa liberal em que o sistema social não é
responsável pelas diferenças, o sujeito nasce já definido desde o nascimento com o seu desen-
volvimento intelectual. Logo, a sociedade não pode ser culpada das desigualdades. Durante
muito tempo, essa premissa prevaleceu nesse pensamento de modernidade e colonialidade,
ou seja, permaneceu na nossa sociedade, levando as pessoas a pensarem “eu não nasci para fa-
lar inglês bem”, “eu não nasci para determinada coisa”, porque, na premissa liberal, os dons para
a aprendizagem vêm definidos desde o nascimento. Tal acepção contribuiu para: o conformis-
mo diante da noção de que “existem/iam alguns sujeitos que são/eram mesmo mais – ou menos
– privilegiados que outros”; e para a manutenção do modelo “o que é falar bem um idioma”, este
geralmente reforçando o nativo como modelo, como se todos os nativos, como tal, seguissem
o tal modelo “correto”/ soubessem “bem” o próprio idioma, dentro do que se entende por “saber
bem”; ou o que significa “saber algo”, como este saber é avaliado.

100
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

O que leva a esse tipo de visão? Então, eu tenho responsabilizado a sociedade modernis-
ta/colonialista por toda a intolerância às diferenças.
Para ilustrar esse meu pensamento, focalizo uma notícia que na época me chocou muito
(slide 9); foi em janeiro de 2000, em que fiquei sabendo pelo New York Times sobre um fato
ocorrido em 1906: um jovem africano foi levado para um zoológico de Nova York, no bairro
de Bronx e ficou exposto/ exibido para que as pessoas pudessem ver como era um “pigmeu
africano” (termo pelo qual o jovem foi identificado na reportagem). Eu fui atrás da história
dessa pessoa, o nome dele era Otta Benga. Isso aconteceu quando ele tinha 23 anos de idade e,
na reportagem, mencionam a altura dele: 4 pés e 11 inches (o que o caracterizou como um pig-
meu). Foi exibido como uma figura diferenciada, enfim, exótica, ou seja lá o que for, mas com
toda a ideia de que existem os inferiores na sociedade e esses inferiores já nasciam inferiores,
por exemplo, como previsto na ideia da modernidade, a ideia do pensamento liberal. Fui atrás
da informação para entender como foi o ocorrido, o que aconteceu depois daquela exibição.
Fiquei sabendo que, depois, Otta foi levado de volta para o Congo belga, de onde ele tinha vin-
do, e, depois de um certo tempo, ele se suicidou.

Slide 9

Fonte: a autora.

Bem, fiquei muito deprimida e impressionada. Como vemos no slide 10, uma outra notícia
aconteceu mais recentemente, em 2020, e foi publicada aqui por Notícias UOL, portanto, Folha
de São Paulo e UOL, dando uma notícia internacional sobre aquele fato acontecido em 1906,

101
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

depois de 114 anos: o Zoológico dos Estados Unidos se desculpa por exibir jovem negro em jau-
la de macacos quando quiseram exibir como era um pigmeu negro africano.
Eu penso: o que faz uma pessoa achar que é natural que outra pessoa seja “inferior” e que
possa ser humilhada, ao ponto de exibi-la como um objeto excêntrico por uma sociedade bran-
ca, que não é só branca, como todos nós sabemos. Enfim, acho que esse tipo de pensamento
foi muito construído eurocentricamente; foi construído, sim, seguindo um processo de mo-
dernidade e de colonialidade e a gente até hoje traz essas marcas. A linguagem pode trabalhar
muito a favor de certas visões, se a gente não trabalhar dentro de uma concepção crítica. Aí vem
o nosso interesse pelo letramento crítico, pela educação crítica.

Slide 10

Fonte: a autora.

Vejo a educação crítica numa aproximação entre o conceito de opressor e oprimido frei-
riano e as ideias de colonialidade. Nesse sentido, encontrei vários colegas brasileiros que rei-
teram essas noções e aqui eu extraio teorizações e exemplificações dos trabalhos desses vários
colegas.
Aqui, estou me referindo a Penna (2014) e dos Santos (2008), quando eles chamam atenção
para esses elementos cognitivos que são internalizados pelos oprimidos. Segundo esses autores,
a perspectiva hierárquica do saber fez com que muitas pessoas achassem que existe um superior
e existe um inferior; que a autoridade desse superior fosse inquestionável. Portanto, nessa vi-

102
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

são, a desigualdade social seria uma estrutura imutável, não tendo o que fazer em relação a ela;
durante muito tempo foi isso o que prevaleceu. Nessa “logica”, a situação de miséria que muitos
vivem (e que agora a gente está vendo novamente, evidenciada no noticiário, ou seja, a miséria
que tem voltado aqui no Brasil tem tido visibilidade maior) era tida muito mais como fatalidade
do que como injustiça; algumas pessoas achavam que nasceram para a vida miserável mesmo.
O pensamento liberal ajudou a construir, a “naturalizar” essa visão colonial. Nela, o fato de al-
guém ser bem-sucedido(a) era porque essa pessoa nasceu já com potencial para ser bem-suce-
dido(a) – “por acaso”, as pessoas de melhor condição social-econômica – e a responsabilidade
não poderia recair sobre a sociedade. A pessoa “desprivilegiada” se via, então, em um processo
de desvalia.
Essa contradição existia então num processo de repulsa e crítica a esse “patrão” superior,
ao mesmo tempo em que havia um processo de admiração ao superior, fazendo com que as pes-
soas almejassem chegar ao posto “de mando”. Essa também é a descrição dada por Freire quan-
do ele fala sobre o opressor e o oprimido. Bem, Penna (2014) e dos Santos (2008) vão reforçar
essa visão de que há um processo de “colonização cognitiva” ou “colonização do ser”, que é le-
vado a pensar e a ver o mundo a partir de categorias. Ou seja, na posição do oprimido, ele acre-
dita que é assim mesmo, que é natural pensar assim, que é natural que haja alguém superior
e que ele, o oprimido, deva mesmo ser o inferior nessa classificação binária. Sempre o processo
de colonialidade se interessou pela “homogeneidade de visão de mundo” ou pela convergência
no pensar e ver; isso foi muito disseminado e, com certeza, o aprender a ler e escrever de forma
não crítica levou, desenvolveu e priorizou a percepção convergente de mundo.
Portanto, é importante focalizar a “escolarização de uma nação do aprender a ler e es-
crever segundo a tecnologia analógica”, a escrita, no caso aqui, conforme salientado por Luke
(2004). Essa escolarização internalizou nas pessoas as ideias prevalentes de uma sociedade
da escrita: o desejo / necessidade de aprender a ler e escrever. Todos querem (ou uma grande
parte quer) participar desse centro do saber ler e escrever. No entanto, as epistemologias do ler
e escrever se voltam para desenvolver um pensamento homogêneo, convergente, que introjeta
nas pessoas a naturalização das desigualdades. A naturalização da hierarquia vertical, do con-
formismo das desigualdades sociais como premissa liberal. Essa é uma análise na qual o sistema
social não é visto como responsável pelas diferenças, conforme já salientei.
Continuando ainda essas reflexões, agora vou me referir a Freire, segundo os estudos
dos referidos colegas brasileiros; estes salientam a superação da colonização do ser. Entendo
esse processo como o que se chama de decolonialidade, assim como eles também o chamam.
Acho que seria por meio dela que se promove uma educação libertadora.

103
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

E o que seria essa educação libertadora? Seria esse tipo de pensamento, de visão crítica,
que a gente tem tentado levar para dentro das escolas e universidades. Seria esse dialogismo edu-
cador-educando em que tanto o mestre quanto o aluno são as duas coisas, tanto são aprendizes
quanto professores. Aí estaria a ideia de que devemos levar o sujeito a ser questionador e não
apenas uma pessoa “conformista”, devendo passar a desconfiar do que “está dado/estabelecido”.
Bem, Penna (2014) faz essa observação sobre a Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1987), propõe
formas de desconstruir o mito da estrutura opressora e essa perspectiva pós-colonial assinala
diferentes estratégias para a desconstrução do mito do eurocentrismo, entendendo  a aproxi-
mação da Pedagogia do Oprimido com a ideia de decolonialidade. Já Netto e Santiago (2016),
a partir do raciocínio dialético e dialógico, encontram um ponto de convergência entre a obra
de Freire e a literatura pós-colonial e decolonial latino-americana. Essa ideia reitera que não
há um que só ensina e outro que só aprende, o conhecimento estaria distribuído entre as pes-
soas, segundo uma relação eu-outro, a qual tenho enfatizado durante muito tempo (isso me faz
falar sobre a importância, então, de se aprender línguas e, no caso, estou falando das línguas
estrangeiras). Diferentemente, os professores viam o ensino de línguas como aquele que pode
aproximar alunos da globalização, aquele que pode proporcionar a oportunidade do trabalho
melhor, aquele por meio do qual se pode ter uma condição social mais reconhecida. Vejo de ou-
tra forma; vejo como seria importante que esse aprendizado acontecesse muito mais, e desde
o início, referindo-me à compreensão do eu e do outro, ou seja, entendendo que existe esse ou-
tro, a sua linguagem e a sua cultura, de maneira diferenciada, e como esse modo de ver poderia
ampliar perspectivas. Isso se daria realmente através daquele núcleo freiriano de que o aprendi-
zado deveria partir do contexto sociocultural... acho que esse é um chamamento de humildade
(no que se refere a olhar os outros que são diferentes, falam outras línguas e linguajares, têm ou-
tras culturas) que a gente deveria ter quando a gente fala nas línguas estrangeiras.
Bem, então, essa “tomada de consciência”, que era uma das defesas do Freire (obs. o termo
conscientização foi muito questionado na década de 80; depois a gente pode conversar sobre
isso, se for o caso), é a ideia de ruptura com a visão colonial ou colonizada, aquela que se de-
signa pela máxima de que “o que é melhor é o que vem de fora”. Aí está a Walkyria aos 10 anos
de idade sonhando em ir para Nova York porque, lógico, Nova York era melhor. Naquele tempo,
o que eu ouvia falar ou via do lugar estrangeiro era muito melhor (principalmente lá nos/dos
Estados Unidos) do que o que eu sabia/via ao meu redor. Enfim, para romper esse tipo de visão,
em muito contribui a perspectiva freiriana de uma educação mais crítica, possível de proporcio-
nar isso que os estudiosos do tema identificam também como decolonialidade.
Continuando, eu trago ainda a fala desses quatro autores últimos que mencionei (PENNA,
2014; DOS SANTOS, 2008; NETTO; SANTIAGO, 2016), que afirmam que Freire aborda
a possibilidade de formar no brasileiro hábitos e disposição democráticos por meio de proces-

104
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

sos educativos escolares. Ou seja, infiro que, para eles, o ideário de Freire volta-se para buscar
subverter os princípios que estavam dentro dessa “sociedade da escrita”, construída por meio
da escolarização, por meio deste projeto invisível de nação conforme Luke (2004) mencio-
nou. Então, para eles, Freire via na escolarização um processo praticamente de antítese, a ideia
de que você pode aprender a ler e escrever mas não precisa alienar-se do que isso represen-
ta, do que está por trás desse ler e escrever, ou seja, da formação do sujeito e sua identida-
de na construção do ler e do escrever. Irwin (2012), um estudioso da obra de Freire, salienta
a ideia que eu acho mais importante, mais próxima do que a gente tem desejado, que seria esse
processo de humanização, não na acepção Iluminista Modernista da existência de um homem
idealizado para a sociedade, mas como seres humanos, pessoas em constante formação, portan-
to, contraditórias e sempre inacabadas. Então, conforme o próprio Freire fala na obra de 1996,
p.26, referindo-se às lutas-chave: “A luta pela humanização, pela emancipação do trabalho,
pela superação da alienação, pela afirmação dos seres humanos como pessoas”. Então, entendo
esse processo de humanização como muito próximo ao que a gente tem defendido nos estudos
de Letramentos, principalmente nesse período de pandemia quando estamos todos a pensar
sobre o que é “ir para a escola”, que escola é essa, que sujeito é esse que nós estamos formando,
indagando: afinal de contas, é preciso ir para a escola todo dia? O que a pandemia nos provo-
cou a pensar e a repensar sobre esse processo de escolarização e a estrutura que leva as pessoas
a essa sistematização... que nós todos vivemos o empreendimento Colonial Modernista que é
esse processo educacional, como ele se apresenta na concepção convencional.
Aí eu entro com a pergunta: Qual é a aproximação entre “colonialidade/decolonialida-
de” e a nossa educação linguística? E a nossa formação de professores em línguas-linguagens?
Como nós, dentro da área de línguas, nos situamos? Percebemos que fazemos parte dessa en-
grenagem? Que ao ensinar uma língua exclusivamente segundo as suas convenções nós estamos
contribuindo para a manutenção de um processo modernista de sociedade, desse processo con-
servador de sociedade? Nós que falamos tanto em tentar sair da caixa, nós que falamos tanto
em processo político, até que ponto nós conseguimos fazer isso sem questionar a própria estru-
tura do que nós mesmos fazemos? E o que quero interrogar nesses questionamentos? A nor-
matividade é a questão mais importante? Mesmo? Ou seja, todo esse pensamento que é usado
como empreendedor do ler e do escrever, digo, ler e escrever em língua “materna” (“materna”
sempre entre aspas), em línguas estrangeiras, enfim, nas línguas e linguagens, o que significa
isso? Como é que eu posso romper com essa ideia de colonialidade presente nesse empreen-
dimento convencional, que é o ler e escrever na tecnologia analógica, ao longo de toda a nossa
vida. Como é que eu posso, digamos, criticar, pensar e repensar aquilo que o Kumaravadivelu
(2014) fala do discurso intelectual, ou do fato de que a gente é levado a empreender uma disser-
tação ou tese segundo um parâmetro o qual, subjacentemente, visa a nos encaixar, nos colocar

105
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

dentro de caixinhas na forma de escrever, ver e analisar, por meio do que se chama gênero dis-
cursivo tese/dissertação.
Então, acho que essas reflexões estão presentes naquelas perguntas que apresentei; pri-
meiramente, em termos de crítica, depois passei a associá-las também a um projeto de colo-
nialidade. O quanto de colonialidade está presente nesse desejo de querer falar inglês como
um nativo que nós herdamos de antigos conceitos ou de outras gerações? E essa história de “eu
adoro inglês”, de onde vem esse adorar? Por que eu gosto mais de um idioma do que de ou-
tro? Por que eu gosto mais de uma cultura do que de outra? Aí nós teríamos todo o estudo
do Bourdieu nos explicando sobre o nosso gosto, o quanto que o nosso gosto é muito associado
com o processo social e ideológico do quadradinho no qual a gente interage. Podemos conversar
mais sobre isso. Então, essa questão de eu gostar mais de um determinado objeto ou língua, ou o
tipo de sotaque, seja lá o que for, tem um processo de conformidade, de colonialidade. O quanto
essa ideia de glamour não imprime um desejo colonial de que a gente represente o eurocêntrico?
Interessante que, muitas vezes, a ideia de glamour não se refere ao latino-americano, ou não
se aproxima do que está às margens das culturas e das línguas, ou das culturas e línguas tidas
como aquelas que estão às margens... por que uma pessoa não acha que há glamour na lingua-
gem indígena ou africana? E quando é que nós vamos nos abrir mais para ceder espaço para
outros idiomas nas escolas? Acho que muitos de nós estamos abertos a isso, mas não sei se
é a maioria... acho que algumas pessoas ainda estariam defendendo o seu espaço de trabalho.
Acho que nós precisamos estar mais abertos e mais solidários à participação de outros idiomas
na Educação Básica brasileira e isso é uma conversa que podemos continuar a ter, reforçar, etc.
No passado eu já falei disso; algumas pessoas estranharam, achando que eu estava, digamos,
prejudicando a profissão dos colegas da área de inglês, por exemplo.
Essas são, então, as questões que integrariam a visão de colonialidade e que são, ain-
da, por incrível que pareça, muito presentes nas falas de professores. Não estou me referindo
aos professores que já estão lendo e refletindo sobre várias das questões focalizadas e buscando
ver o outro de forma diferente, nada disso. Mas, dependendo de como a formação docente é tra-
balhada em nossa área, por exemplo, muito da concepção iluminista, modernista, colonial pode
ficar presente. E aí, já indo para uma parte final, justamente porque vi que isso é parte do ca-
pítulo anterior, escrito pelo Rafael, eu faço aqui uma fala bem simplificada, para a gente refletir
a respeito das diferenças do liberalismo e do neoliberalismo (slide 11), principalmente quando
se trata da construção desses dois pensamentos junto à modernidade e junto à colonialidade.

106
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Slide 11

Fonte: a autora.

Começo pelo “indivíduo”, conforme a ideia de “individualismo” no liberalismo, de uma


construção idealizada de sujeito, um sujeito que já nascia com seu potencial, um sujeito que,
portanto, entende que há valores intrínsecos a si mesmo, ou seja, valores morais, relativos à dig-
nidade, honestidade, valores especiais para a sociedade, o que se aproxima muito das ideias
conservadoras. No liberalismo, o indivíduo é o pilar central. Ao ser ressignificado no neolibe-
ralismo, o sujeito praticamente se desvalorizou, porque o papel dele foi agregado à ideia de so-
ciedade e a ideia de sociedade agregada à ideia de mercado. Ou seja, o liberalismo se sustenta
por cinco pilares, sendo que o mais forte se refere ao individualismo, ao indivíduo e seu valor
para a sociedade, valor moral, valor cívico, por exemplo. Num processo neoliberal, a ideia de in-
divíduo se agrega ao valor de uma sociedade que, então, é representada pelo mercado. No ne-
oliberalismo, o mercado é o pilar central. Ou seja, na concepção neoliberal, o sujeito vale por-
que tem um cartão de crédito – logo, interage com o mercado –, não necessariamente porque
tem um RG. A certidão de identidade pode ser deixada em casa, mas o cartão de crédito não,
né? Vejo, enfim, esses outros valores neoliberais atuando muito ainda como processos coloniais
e neocoloniais nos influenciando na sociedade, como o Rafael bem colocou. Acho que prin-
cipalmente nós que trabalhamos com línguas deveríamos ter uma formação que nos levasse,
que nos aproximasse de certos conceitos, para que a gente pudesse rever e repensar as con-
venções com as quais nós lidamos no passado. Quero crer que essa minha fala agora já esteja
até desatualizada, que isso nem aconteça mais (rsrsrsss...ironia minha) e que, na verdade, hoje
em dia as pessoas já estão muito mais conscientes dessas questões aqui postas, principalmente
tão bem apresentadas pelo Rafael.

107
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Enfim, essas são as reflexões que eu trouxe para a gente conversar um pouco, se é que va-
mos ter esse tempo. Muito obrigada, aqui eu paro ... e respiro.

Referências

CASTRO-GÓMEZ, S. La hybris del punto cero. Ciencia, raza e Ilustración en la Nueva Granada
(1750-1816). Bogotá: Instituto Pensar, Pontificia Universidad Javeriana, 2005.
CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. El giro decolonial: refl exiones para una diversidad
epistémica más allá del capitalismo global / compiladores. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Instituto
Pensar, Pontificia Universidad Javeriana, 2007.
HERNANDEZ-ZAMORA, G. Decolonizing Literacy: Mexican Lives in the Era of Global Capitalism.
Bristol, Buffalo, Toronto: Multilingual Matters, 2010.
IRWIN, J. Paulo Freire’s Philosophy of Education. Origins, Developments, Impacts and Legacies.
Londres, Nova York: Continuum, 2012.
LUKE, A. Two takes on the Critical. In: NORTON, B.; TOOHEY, K. Critical Pedagogies and Language
Learning. Cambridge, Nova York: Cambridge University Press, 2004. p 21-29.
MIGNOLO, W. D. Epistemic Disobedience and the Decolonial Option: A Manifesto. Subaltern Studies:
An Interdisciplinary Study of Media and Communication, v. 2, fev. 2008.
MONTE MÓR, W. Sobre rupturas e expansão na visão de mundo: seguindo as pegadas e os rastros
da formação crítica. In: PESSOA, S.; MONTE MÓR, W. (orgs). Perspectivas críticas de Educação
Linguística no Brasil. Trajetórias e práticas de professoras/es universitárias/os de inglês. São Paulo:
Pá de Palavra, 2018. p. 265-278.
MONTE MÓR, W. Linguagem e construção da realidade: outros olhos e outras vozes. 1999. 286 p.
Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.
NETTO, J. B.; SANTIAGO, E. Contribuições de Paulo Freire para o Pensamento Educacional Latino-
Americano. Interritórios–Revista de Educação Universidade Federal de Pernambuco, Caruaru, v.
2, n. 2, 2016.
PENNA, C. Paulo Freire no pensamento decolonial: um olhar pedagógico sobre a teoria pós-colonial
latino-americana. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 8, n. 2, 2014.
PESSOA, R. R.; SILVESTRE, V.; MONTE MOR, W. (orgs). Perspectivas críticas de Educação
Linguística no Brasil. Trajetórias e práticas de professoras/es universitárias/os de inglês. São Paulo:
Pá de Palavra, 2018.
SMITH, L. T. Decolonizing Methodologies: Research and Indigenous People. Londres, Nova York:
Zed Books, 1999.
WALSH, C. (De)construir la interculturalidad. Consideraciones críticas desde la política, la colonialidad
y los movimientos indígenas y negros en el Ecuador. In: FULLER, N. (ed.). Interculturalidad y política:
desafíos y posibilidades. Lima: Red de Apoyo de las Ciencias Sociales, 2002. p. 115-142.

108
DECOLONIALITY AND CRITICALITY IN ELT FIELD:
STRUGGLES, UNCERTAINTIES, AND POSSIBILITIES
WITH/FOR STUDENTS AT A PUBLIC SCHOOL 1

Miguel Martinez
Universidad Distrital Francisco José de Caldas

Introduction

This paper is a reflection about the struggles, uncertainties, and possibilities in a public
school in Colombia, South America, involved with a decolonial/critical option in the English
Language Teaching (ELT) field.
The information of this text evidence a presentation that took place at the DELA,
Decoloniality and Applied Linguistics Congress, 2021. In this participation I had the oppor-
tunity to present a reality in my country that concerns the teaching of English as a foreign lan-
guage, the resistance faced by these processes and the realities that happen inside and outside
the classroom. My position emerges from the local, authentic, and unexpected situations in the
school where I work as an ELT Educator. The decolonial project has been manifested during
my teaching/learning practices, as well as the critical position within the ELT field.
This research is running nowadays and there are some uncertain aspects, such as method-
ology, analysis, and results; however, its first step is presenting an open panorama about the re-
alities of the context and some variety of struggles. This first step will be presented here, con-
cerning the problem statements, main issues and possibilities within/for the target population.
The following document shows the presentation with the slides I included in the Congress
(with their respective explanation). The invitation to the reader is to walk next to me during
the presentation titled Decolonial/Critical option in ELT: struggles, uncertainties, and possibilities
with/for students at a public school.

1 Transcrição livre da fala realizada no primeiro ciclo do evento Decolonialidade e Linguística Aplicada.

109
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Slide 1

Fonte: o autor

The title of my presentation (slide 1) is A Decolonial/Critical option in ELT: struggles,


uncertainties, and possibilities with/for students at a public school, here in Bogota, Colombia.
I am an ELT educator and I want to thank you once more for this chance to present our reality,
our context, and our uncertainties here in my country, Colombia.
Slide 2

Fonte: o autor

Mine is not a very straightforward agenda (slide 2)–of course, this is not a structuralist
presentation, so I would like to tell you something about myself as an introduction. I would
like to say something from a very starting point, then also some perspectives and a reflection,
a theory that I use to analyze my context based on some local assumptions, and finally I would
like to get a group discussion, I mean, here, together. The idea of this presentation is to try to

110
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

create a great atmosphere. I think this is a good chance to interact with the participants of the
conference, to learn together and finally to have some conclusions or some reflections.

Slide 3

Fonte: o autor

Let’s start with this short introduction (slide 3): that’s me, Miguel Martinez, but I´m also,
Luciana’s daddy, my daughter is a marvelous girl, so intelligent, and I´m more than happy to be
in her life, I really appreciate this opportunity to be dad in my life.

Also, I am a student – well, currently I am conducting my Ph.D. studies in education;


I am a Ph.D. candidate in education, and my major is ELT education. I work as an ELT educa-
tor in Bogota, Colombia, in a public school. The school is in the south of the city. It is a public
school–too many realities here from students, I tend to say this is the real context an educator
should be faced with, I mean, should be involved in. The school in total has more than 1,200
students and they represent, not privileged strata here in Bogota. It means, that here in Bogota
we have different strata: from one to six. Most of my students and the community are in the first,
lower, let’s say lower, not privileged one. Students at school have really hard conditions, es-
pecially in terms of poverty, and insecurity, for example, they are going to be mugged maybe
tomorrow, maybe this afternoon, because the violence in this specific place is so hard. On the
same token, their families represent what we need to learn from, and when what we need to be
involved with. Well, this is the school where I am… the place where I belong.

111
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Theoretical Background

Slide 4

Fonte: o autor

The name of this talk is Decoloniality and Criticality in the ELT field, but first I would
like to do an exercise about the ABC of decoloniality and criticality (slide 4), and I would like
to share your ideas in a Padlet. So, there are two questions: which are no direct questions or top-
down process questions, but I would like to know something about the decolonial project, what
you know about the decolonial project and some ideas about criticality or critical stance… well,
not just in education, but in general.

Slide 5

Fonte: o autor

Here (slide 5) it can be seen the insights during the participation,


“Both are about envisioning other ways of being, making meaning”, “being in touch
and bringing to the educational context the epistemologies of the global south”, “it is about ques-
tions, isn’t it?” “Identifying, interrogating and interrupting the colonial project”

112
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

We can see here personal, political, and social opinions. In terms of decoloniality
and criticality, the reflection relies on reflecting upon the sociopolitical impact in education.
Decoloniality as a theory of life invites all of us to “learn to discover new questions to encounter
new answers” (DUSSEL, 2011, p. xviii). The Decolonial project is founded on the will to live
not the will to power.
Another purpose of this presentation grounds on analyzing our assumptions, our feelings
and our desires, and our thoughts about decoloniality and criticality.
Something personal about the decolonial project deals with the path we have walked
through. It has been a painful process, especially because I am an English as a Foreign Language
teacher, so it means teaching lessons in a colonial, Eurocentric/north one-way, and an oppressed
system. But also, I am learning with my students from this language.
Some aspects of this pain and these hard situations are not easy to handle, and I have
some scars on my skin, in my soul, and my learning process.

Slide 6

Fonte: o autor

Having it in mind, we can observe some perspectives about criticality and decoloniality
(slide 6). Criticality deals with aspects such as social transformations, inequalities, and pow-
er issues, among other aspects but this is just in terms of education. Now, in the lands of the
ELT field, teachers should keep in mind those outcomes, those contexts. Decoloniality is against
all fundamentalisms and egoisms. The principles are based on racial inclusivity and equality
within the whole community.
Criticality (in education). A disposition for purposeful thinking and acting guided by cri-
teria that are contextually appropriate and that are expected to result in positive outcomes relat-
ed to the purpose. (RAE Dictionary)

113
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Decoloniality. An emerging movement from Latin America that focuses on understand-


ing modernity in the context of a form of critical theory applied to ethnic studies. It has been
described as consisting of “analytical and practical options that confront and disengage from
the [...] colonial matrix of power”; it has also been referred to as a kind of “radical exteriority
thinking” (LANDER, 1997)
From my position, I am – “mestizo”, it is the name of a combination between indigenous
people and white Spanish, I also work as an ELT educator, and I would like to say that because
it is a need to know our ancestors and especially to reflect upon the decolonial project. We need
to believe in our epistemologies, and our ways of acting are ways of learning,–our ways of doing
something remarkable, and meaningful. I tend to say that it is a beautiful opportunity to keep
in mind the educational contexts in this decolonial/critical project.

Criticality and Decoloniality in ELT

Slide 7

Fonte: o autor

In addition, I got information from the critical option and decolonial project, but in
the ELT field.
From a personal experience, here in the school where I work, I realize students pay special
attention to the pronunciation of the English language teacher and, there are some ways of rac-
ism when the teacher is not speaking “accurately”, what accuracy means is like what is the appro-
priate English spoken. This is one of my concerns when researching the ELT teaching/learning
possibilities in a decolonial project.
I make many mistakes when I´m speaking English, especially because I am a human,
and second because I think we need to be very humble, as Stein stated, “I need to be so humble
with the learning process because this is not an authority about learning a language, this is not

114
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

a vertical option”. Learning a language should be a horizontal way, and I think this special part
in pronunciation plays a relevant role in the decolonial project, especially in the ELT field.
In the middle of the previous slide, we have some critical options in the ELT field. The first
one is from Pennycook, “in a reflexive turn which acknowledges the socio-historical reality
of English and ELT, that is, their colonial past” (1998; 2001) It has been said before the socio-his-
torical realities from a critical perspective. The second one, Phillipson states, “their neo-colo-
nial presence realized in relatively sophisticated forms of linguistic imperialism” (2009). And it
is important to add something to this quote, not only imperialism but also neoliberal ideas,
the neoliberalism movement.
Kumaravadivelu also states “the development of post-method pedagogies” (2006). It can
be inferred that we are not talking just about one pedagogy, one truth–there are many which
are rounded our local practices.
Guerrero (2010) argues that teacher identity in official educational discourses is relevant
in the ELT field. She states the importance of official education policies in ELT, and we should
criticize those policies and keep in mind some ideas related to the identities of teachers.
The slide shows relevant stances on the ELT field joined with the decolonial project;
In fact, this ongoing research persuades the options and possibilities the ELT educators have
at the time of teaching English as a Foreign Language (EFL) in a public school (within lo-
cal and constant realities). For example, in Brazil, Rodriguez, Albuquerque, and Miller (2019)
put on the table that indigenous teachers can be in power as the primary decision makers in the
development of the ELT curricula and instructions in their roles as experts on local knowledge
and practices in their indigenous contexts, and thus the possibility that subaltern indigenous
learners of English can be heard becomes more tangible.
Related to the last quotation, (RODRIGUES; ALBUQUERQUE; MILLER, 2009) I should
say that I have six indigenous students here in the school and there is something remarkable
about the learning/teaching practices – in terms of local realities while fixing Decoloniality
in the ELT field.
Some time ago, one of the indigenous students asked me “Miguel, why do I need to know
English? What is the need of learning English?” The student does not know the purpose of learn-
ing this language and it is totally valid… I was scared of replying something because, I am not in
his position. I have never been in an indigenous community with his cosmovision, with his way
of understanding ideas and assuming some knowledges… and I was in panic, and I replied with
another question, “Why do you think that so?” And he said: “Oh, because everybody speaks

115
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

this language and everybody understands it” and I was like, “Yeah! That’s true, all right?” But he
learns English not just as a power issue, because English may be seen as a possibility for his life.
Package of concerns are done in my daily teaching/learning practices, and I enjoy that
because it is the local experience, it is my local reality, and it is the reality in a public school
and especially with indigenous students.
From a personal reflection, I have the chance to see/analyze the role of experts in edu-
cation and the ELT field. Despite that, the indigenous language offers a high variety of options
and they should be seen as experts in the language and should be positioned as an authority
on that because they can offer us too many meaningful aspects not just in education but in
the ELT field.

Realities and challenges when teaching EFL

Slide 8

Fonte: o autor

Moreover, the presentation goes into the local realities while teaching EFL. During this
part, I allow to state the importance of critical and social aspects at time of carrying out English
language classes. In Canagarajah’s (2005) words, “local knowledge has to be veritably recon-
structed through an ongoing process of critical reinterpretation, counter discursive negotiation,
and imaginative application” (p. 12).
Slide 8 proposes some key aspects to put on the table.
There are four statements which need to be discussed.

116
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

- Poverty and violence are struggles and challenges of the real world. Students at school
face daily different situation which could affect their learning process, but they are aware
of these issues since it is part of the country’s socio-political mediation.
- Linguistic racism is seen as an ELT teaching practice because of the neoliberalism and cap-
italism construction of the “beautiful” view of doing teaching. Elitism perpetuated in the
ELT field (SIQUEIRA, 2021).

Students at my school, teachers, the community, my community, are facing linguistic rac-
ism, poverty, violence, but especially there are some difficulties, struggles and, challenges in the
real world.
I also realize some of my colleagues, other ELT teachers feel superior when they are teach-
ing lessons in English just because they speak this language, they can talk accurately in a differ-
ent language. I have observed an elitism perpetuated in the ELT field and this is something that
I would like to bear in mind in the future because I think there is too much to analyze and to
co-construct within the whole community.
The other aspects related to local realities while teaching EFL deal with the language
proficiency inequalities and connectivity with the government. The previous ones are issues
in Colombia but are very similar to South American countries.
As an English Language teacher, you are moved into a specific level, if you are C1 (English
proficiency level- Common European Framework Reference), B2, B1, so on; and people pay spe-
cial attention to the level, but there are too many inequalities. For instance, here in the school
some students can interpret the language, let’s say English, in a good way. But there are others,
that I cannot give a specific, “brand” for the student, like you are an A1, B1, or B2…
There exist many inequalities in terms of language proficiency and the government is an
obstacle in the process because the government does not give us support, especially in terms
of connectivity, with all the requirements and we do not have here many possibilities to teach
a class.
It is a must to raise our voices, they should be heard, and the government needs to know
the difficulties schools are faced day by day. Many ELT educators have great ideas to do some-
thing incredible, but someone does not pay attention to the local community, they pay more
attention to other perspectives (foreign ones), and this is the time for considering the knowledge
base of local ELT Educators.

117
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Possibilities and Options

Slide 9

Fonte: o autor

The last slide of the presentation (slide 9) evidences the conclusion of the struggles, un-
certainties, and possibilities with/for students at a public school in a decolonial view.
Here it can be seen the options and possibilities from a local perspective.
Number one is that learning a language, French, Italian, Japanese…etc., should be seen as a
possibility, not a power issue. From a very critical stand, a Foreign Language should be learned
as a possibility in the future. If they learn a language to travel, to get a job, or simply to have fun,
I consider it important to respect that and offer them options to do it.
Second, I think it necessary to include activities within local contexts; teachers could con-
nect the global opportunities with local issues. So then, it is important to think globally but act
locally. Setting up activities with local contexts but not just talking about the local context, from
a very intercultural possibility, to explore more about our local contexts in English.
The third one is about paying attention to students´ likes and dislikes. As a decolonial pos-
sibility we need to learn with the students and from the students, also, teachers would be humble
when we are giving lessons because we can learn a lot from them. This is a horizontal situation
when we are giving lessons here in class.
Last but not the least, we, ELT educators, have our own way to carry out classes. There
is a perpetuated structure in the ELT field that we prepare the classes with a presentation-prac-
tice and production structure. A reflection in this part emerges and it is about, why do we still
follow the structures/guidelines? Several paths to bringing a class are seen in different contexts,
so, we may continue our own way to carry out the classes, to give the lessons, it is import-

118
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

ant to keep in mind our epistemologies. In the ELT field, we follow the structure. How about
our own way to carry out the classes, or the horizontality in the EFL classes?
As an English Language teacher, you are moved into a specific level, if you are C1 (English
proficiency level- Common European Framework Reference), B2, B1, so on; and people pay spe-
cial attention to the level, but there are too many inequalities. For instance, here in the school
some students can interpret the language, let’s say English, in a good way. But there are others,
that I cannot give a specific, “brand” for the student, like you are an A1, B1, or B2…
There exist many inequalities in terms of language proficiency and the government is an
obstacle in the process because the government does not give us support, especially in terms
of connectivity, with all the requirements and we do not have here many possibilities to teach
a class.
It is a must to raise our voices, they should be heard, and the government needs to know
the difficulties schools are facing day by day. Many ELT educators have great ideas to do some-
thing incredible, but someone does not pay attention to the local community, they pay more
attention to other perspectives (foreign ones), and this is the time for considering the knowledge
base of local ELT Educators.

Discussion and Conclusion


Slide 10

Fonte: o autor

This presentation is grounded around some questions, are the common or traditional
methods helping us, ELT educators, teach our classes? How could we bring out our classes from
a decolonial project/critical view?
To conclude, it is important to reflect on provincial/local/authentic practices in EFL teach-
ing. The possibilities and opportunities in a public school are claiming with and for the students

119
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

(from a horizontal movement), providing different ways of thinking and acting, and finally,
the teachers should listen to the thoughts of the students in their classrooms.
The Decolonial/Critical option in ELT is nothing more than pedagogical and critical tools
that question the knowledge that has been imposed on us through history, it is the process
of emancipation of different social aspects such as love, and learning a foreign language, or is-
sues that Eurocentrism has dominated. The ELT educator who teaches EFL has a concept that
is linked to coloniality/modernity; however, it is the time of visibility of knowledge not pro-
posed by others... but of our own, of our community... our knowledge. The students in a public
school in South America realize the importance of the learning, unlearning, and relearning
needed to direct the decolonization when getting an EFL class, in the ELT field.

References

ANDREOTTI, V. Actionable Postcolonial Theory in Education. New York: Palgrave Macmillan, 2011.
CANAGARAJAH, A. S. Introduction. In: CANAGARAJAH, A. S. Reclaiming the Local in Language
Policy and Practice. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 2005.
FREIRE, P. Pedagogia del oprimido (36A. eD.). Mexico: siglo xxi, 1987.
GROSFOGUEL, R. The structure of knowledge in Westernized universities epistemic Racism/Sexism
and the four genocides/epistemicides of the long 16th century. Human Architecture: Journal of the
Sociology of Self-Knowledge, v. 11, n. 1, p. 73–90, 2013.
KUMARAVADIVELU, B. The Decolonial Option in English Teaching: can the subaltern act? TESOL
Quarterly, online, v. 50, n. 1, p. 66-85, 2016.
LANDER, E. Colonialidad, modernidad, postmodernidad. Anuario Mariateguiano, v. IX, n. 9, 1997.
MCLAREN, P. Critical educators support for the Bolivarian revolution. Venezuelanalysis, August, 2017.

120
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

MALDONADO-TORRES, N. Thinking through the decolonial turn: post-continental interventions


in theory, philosophy, and critique–An introduction. Transmodernity: Journal of Peripheral Cultural
Production of the Luso-Hispanic World, v. 1, n. 2, p. 1-15, 2011.
MIGNOLO, W.D. Epistemic disobedience, independent thought and decolonial freedom. Theory,
Culture & Society (SAGE, Los Angeles, London, New Delhi, and Singapore), v. 26, n. 7-8, p. 159-
181, 2009.
PENNYCOOK, A. English and the Discourses of Colonialism (The politics of language). London,
New York: Routledge, 1998.
PEREIRA, V.; ROCHA PESSOA. Towards a Decolonial Language Teacher Education. Rev. bras.
linguist. apl., v. 20, n. 2, 2020.
SPIVAK, G. C. Righting Wrongs. The South Atlantic Quarterly, New York, v. 103, n. 2, p. 523-581, 2004.
UBAQUE, D. Language Pedagogy and Teacher Identity: A Decolonial Lens to English Language Teaching
from a Teacher Educator’s Experience. Profile: Issues in Teachers’ Professional Development, v. 23,
n. 2, p. 199-214, 2021.

121
EXPERIMENTS IN IMAGINING EDUCATION OTHERWISE
AT “THE END OF THE WORLD AS WE KNOW IT”

Sharon Stein
University of British Columbia
Gesturing Towards Decolonial Futures Collective
University of British Columbia

This paper emerges from the work that I do in collaboration with my research and arts
collective, Gesturing Towards Decolonial Futures (GTDF) (decolonialfutures.net). Many
would argue that it is impossible to do decolonial work alone, and that has been true in my
own experience. Before I introduce the GTDF Collective, I will situate myself a bit. I work at the
University of British Columbia, which is located in what is now known as Vancouver, Canada.
This remains the territory of the Musqueam Indigenous people, despite the ongoing settler co-
lonial occupation here, and I support their struggles to have their lands returned to them. In ad-
dition to acknowledging the specific territory where I am located, and my accountabilities to the
Musqueam Nation, it is important for us to consider the colonial conditions (both historical
and ongoing) that allow us to be together, not only in our different physical spaces but also con-
necting technologically as well. For instance, the minerals that go into making the computers
we are speaking to each other across are often mined under highly exploitative and environ-
mentally destructive conditions. The accountabilities that flow from these acknowledgements
is something that I invite us to hold with us and not turn away from.
With all of that context in mind, I am living in what is currently known as Canada, and I
was born in what is currently known as US, but I keep finding myself in these conferences about
Linguistics in Brazil, even though I’m not a linguist or a language teacher, and I don’t speak
Portuguese–although I am learning! The usual explanation I offer when people ask why I am
here is that I’m Lynn Mario Menezes de Souza’s “academic granddaughter,” and that is the best
introduction I can think of. Today I’m going to talk about the work of the GTDF Collective
and some of the educational experiments that we have developed and are always adapting to di-
fferent contexts. I’ll share a bit about what we have been taught by these experiments, becau-
se as I mentioned in my dialogue with Miguel Martinez [available at https://youtu.be/-HGO-

123
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

FmramyE], mistakes in this work are inevitable and failure is impossible to avoid. Rather than
think of that as a problem, we try and think of its generative dimensions, about what our mis-
takes and failures are teaching us.

Introducing and Contextualizing the GTDF Collective

The GTDF Collective is an inter-disciplinary, inter-national, inter-generational group


of researchers, artists, educators, students and Indigenous communities and knowledge kee-
pers. We address questions related to the interface of systemic, historical, and ongoing colonial
violence and ecological unsustainability, which are two concerns that are not often brought to-
gether in mainstream spaces. Although many Indigenous scholars and activists have been saying
this for a long time, for many (especially white) Global Northerners and settlers on Indigenous
land, like myself, it is rather new to be thinking about how these things interrelate. The work
of GTDF is about creating pedagogical practices, containers, and methodologies to support
ourselves and other people to develop stamina for the long-term of decolonial work and the ca-
pacities to be able to confront not only the colonial realities that we’re currently facing, but also
what we see coming toward us, which may be what we call “the end of the world as we know it.”
Now, this is not necessarily the end of the world as such, but the end of the modern colonial sys-
tem that we’ve had for the past five hundred years. This is a context of potential social and ecolo-
gical collapse. We ask: how can we learn to confront this reality without becoming immobilized,
overwhelmed, and without giving into some of our less generative desires? And how can we
move toward healthier possibilities for coexistence, without assuming that we can prescribe
what that’s going to look like or how we will get there? Our sense is that this work is emergent
and when we try to fix a predetermined end at the beginning, we usually short-circuit possibi-
lities that are potentially viable but unimaginable from where we currently stand in our deeply
colonial contexts.
As a Collective, we say that we offer contextually relevant pedagogical containers and tools,
because we are not proposing any kind of universal. There is a dialectical pattern that tends to be
repeated, even in critical and decolonial work, where in order to contest one hegemony one pro-
poses a new hegemony; or to contest a universal you propose a new universal. And we’re trying
to avoid that pothole. So, it’s very important to contextualize what follows, because what makes
sense here in my context is probably not going to make sense for you in your context. But we
are nonetheless interested in how we can share the learnings from our imperfect educational
experiments and learn from others and their experiments as well.
In contextualizing these experiments, it is important to note that our pedagogical mate-
rials, frames, and practices were primarily developed for those in what we call “low-intensity
struggles.” Simplistically speaking, we mean people in the Global North, while also unders-
tanding there is also what we might call the “South of the Global North” and the “North of the

124
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Global South.” When we speak of “low-intensity struggles”, we are seeking of people who may
have faced some difficulties and challenges in their lives, but they are not constantly facing thre-
ats to their lives and livelihoods. Now, we also do a lot of our work with people in “high-inten-
sity struggles,” but a lot of what we do there is translating the shared knowledge that we create
in those collaborations into pedagogical resources for people in low-intensity struggles. We do
this translational work at the request of those in high-intensity struggles, who know that we need
to learn to work together across these different struggles and positionalities in ways that do not
flatten or erase our uneven experiences, vulnerabilities, and complicities. So please keep that
in mind as we proceed, and perhaps situate yourselves in terms of where you think you might
be, and engage the materials presented with that in mind.
Our work is deeply inspired by postcolonial, decolonial, abolitionist, and Indigenous
and Black studies scholarship, but most of all by our work with Indigenous communities here
in Canada, in Brazil, as well as in Peru. Our intention is to avoid reproducing the common pat-
terns of extracting and instrumentalizing knowledge from those communities or romanticizing
the communities. What we try to do is work toward a relational rigor that is grounded in trust,
respect, reciprocity, consent and accountability (WHYTE, 2020). Of course, that is easier said
than done and many of the materials that I present were developed in the wake of our failures
to do this work with adequate rigour. We try to synthesize and integrate this internal learning
into our public pedagogies, so that others might avoid the common potholes that one often en-
counters and reproduces in this kind of work.
Another important dimension of our work is that sometimes, at least here in Canada,
we narrowly think of decolonization as something that primarily happens intellectually (TUCK;
YANG, 2012). What we try to do in our work as a Collective is bring intellectual questions, yes,
but also affective questions that relate to our desires and the embodied responses (which mi-
ght be unconscious) that may emerge when we least expect it and often without even realizing
we are doing it. For instance, we might intellectually agree with difficult information that we are
presented with, such as information about our complicity in colonialism and the true social
and ecological costs of sustaining our comforts and securities; but then something else in our
body says “No, I’m not going to let myself ‘go there’ because I don’t want to give up my sense
of innocence and benevolence, and I certainly don’t want to give up my actual material comforts
and securities.” We want to equip people to identify that gap between our intellectual unders-
tanding and affective, embodied responses, so that we can identify and hopefully work toward
addressing the persistent barriers that keep us from acting in more responsible ways. There
are also the relational questions that I mentioned, which are central to our work. And finally
political and economic and ecological questions, which deeply inform the critique we mobilize
and are responding to. In many ways, we are asking: how can we deepen our intellectual, affecti-

125
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

ve, and relational capacities and responsibilities so that we can imagine and enact new political,
economic, and ecological possibilities?
Again, rather than prescribe a universal pedagogy or pathway forward, we invite people
and ourselves to work with the uncertainties, complexities, complicities, and paradoxes in our-
selves, in the contexts we work and issues we address, and the world at large. One of the hardest
things is to actually stay grounded when things get difficult: it’s relatively easy to do “hard thin-
gs” in the abstract, or when things are going well, with an equilibrium. It is usually when we get
challenged or when there is some kind of conflict that we start to panic, become overwhelmed,
and want to run away or be ‘rescued’. And we say: okay, but that’s actually the most important
time to stay with the difficulty. So, how do we prepare ourselves to stay with it even (or espe-
cially) when it’s uncomfortable, and we’re being challenged to stretch ourselves?
The other thing we encourage people to do is to try and avoid responding to the domi-
nant patterns of pathologization and deficit-theorization of marginalized communities by doing
the opposite, which is romanticizing or idealizing them. This places an unfair burden of per-
fection on these communities, which is almost impossible for them to live up to. We also see in
practice that this is not very sustainable, because if solidarity is enacted because of an idealiza-
tion, then the continuity of that commitment to solidarity is contingent upon the marginalized
communities living up to this impossible standard, and so once some crack shows, perhaps
some inter-community conflict or heterogeneity, then that solidarity is pulled away. Because
of this, we try to remind ourselves: everyone has within us the full, complex range of humanity
within us, and that includes both dominant and marginalized communities. At the same time,
this cannot be an excuse not to address systemic complicity in harm; the need to enact redress
and restitution for our colonial debts to Indigenous and other marginalized communities cannot
be conditional on an idealization.

Frames for Facing “The End of the World As We Know It”

There is a scholar in the U.S., Luis Prádanos (2020), who recently posed this question
about the future of the educational system: “Is it really smart to educate people to technologi-
cally and theoretically refine a system that operates by undermining the conditions of possibility
for our biophysical survival”? Here, he’s talking about the coming impacts of climate change
and asking: Why do we keep tweaking this educational system that we have, which has brought
us to the brink of ecological disaster and even human extinction? Do we really think we can
make this system sustainable and ethical, given where it has brought us thus far?
Indeed, we find that many of the solutions that are proposed to the social and ecological
problems we face today are coming from within the same paradigm that created those problems
in the first place. That’s part of the reason why, in the GTDF Collective, we do not want to pres-

126
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

cribe a new alternative from where we stand, because we know that if we do that, we’re going
to reproduce many elements of our current situation. However, when we critique the system
that we have and we don’t propose immediate solutions, we often get the question: “If you don’t
want the system we have, then what is it that you want? If not this, then what?” Our respon-
se to this challenge as a collective is somewhat counterintuitive; we say: rather than jumping
to these solutions or proposing alternatives to the system, we need to first ask: How did we get
here? Where are we headed? What lessons have we not yet learned that cause us to keep repe-
ating the same mistakes? What do we still need to unlearn? What desires would we need to in-
terrupt in order to actually imagine education differently? And so on.
That is, before we can imagine otherwise, we have to clear out some of that colonial clutter
that we have accumulated and interrupt our colonial projections about some idealized (or ca-
tastrophized) imagined future. Instead of knowing the destination of this journey or the details
of education otherwise in advance, what we can offer instead is a compass: of sobriety, maturity,
discernment and responsibility, or SMDR. These words can mean many different things, so it’s
important to say a bit about what they mean when we use them in GTDF:

• Sobriety is about interrupting the socially conditioned desires, fantasies, delusions, com-
pulsions, and perceived entitlements and exceptionalisms that are harmful to ourselves
and others – basically, to stop ourselves from spinning in colonial circles;
• Maturity is about holding space for what is complex, painful, and uncertain, and instead
of becoming overwhelmed, immobilized, or seeking to be coddled from the difficulty, fa-
cing the reality that our learning, our lives, and livelihoods are sustained at others expen-
se; and saying, with all of this in mind, how can we learn to be “good elders” for current
and future generations? How can we learn to live, age, and die well?;
• Discernment is about being able to read a context and understand that there are many
different histories and layers happening all at once, while also being able to sense which
layer is the most relevant or salient at that moment, and thus, where you need to intervene
and how (without losing your accountability to the other layers);
• Finally, responsibility is about decentering our wants, in order to do what is needed – rather
than just doing what we want to do, which is part of a relational imperative to interrupt
harm and try to mobilize healthier possibilities for co-existence. Guided by this, we can
always ask: What is the next, most responsible, small thing I can do? And discerning
the answer to that in your context is our way of practicing responsibility.

As we walk toward an unknown future, with this SMDR compass, we also imagine that
we are walking on a tightrope, trying to avoid two patterns that we commonly find in this work
of educational and global and social change: desperate hope, and desperate hopelessness. On the
one side, we have the temptation to desperately search for hope. That can be hope that we will

127
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

find the right ideology that’s going to tell us how to do this, that we’re going to find some hero
who’s going to lead us or some group of people or some practice that’s going to show us “this
is what to do!” Or perhaps we romanticize a certain time and place in the past, or we romanti-
cize a time and place in the future. “Desperate hope” is clinging to things that part of us knows
are not really sustainable, or healthy, that are probably part of the problem, but we’re so afraid
of going into the other pole of “desperate hopelessness” that we cling to it anyway. Now, despe-
rate hopelessness is also a problem, because we tend to get into this mode of thinking: “well, if I
can’t change everything right now, or I don’t know exactly how, then what’s the point? There’s
no way we’re going to be able to address this enormous mess, so why don’t I just enjoy myself
while the world burns? Because it’s going to burn whether I do something or not.” Or, instead
of hedonism, we get to this place of nihilism and also the risk of banalization of brutality, just
accepting that this is how it is, what can we really do? We’re trying to avoid both of these poles
and it’s really difficult to walk this line, but for us, that’s the work we are being called to do in this
time of multiple overlapping crises and “wicked problems.”
We also say that, in addition to the compass, there are “4Hs” that can orient our work:
honesty, humility, hyper-self-reflexivity, and humour. Honesty is about dealing with the reality
that we are actually facing and being truthful with ourselves and others about the depth of the
problems, both internally and externally, instead of thinking of how it should be or how we
wish it could be. Humility is about understanding that we are all part of the problem, and we’re
all going to make mistakes. And rather than beating ourselves up about it, or seeking innocence,
asking: how can I move in a way that is always reflecting on my systemic complicity and the
possible mistakes I’m going to make, that is aware of how I’m being read by others, and trying
to do the next most responsible thing? Hyper-self-reflexivity is the idea that, as I said, we are
going to make mistakes, because we are conditioned by these colonial patterns, so how do we
maintain attention on that? Not in an obsessive or self-flagellating way, but in an accountable
way of always asking, how am I potentially reproducing the problem I am trying to address?
How can I be more generative in the approach I am taking? Humor is also a big piece, because
we are dealing with really heavy things and it’s hard to hold that heaviness in a heavy way. It’s
not a sustainable approach in the long-term because we will burn out. Therefore, our ques-
tion is: how do we hold heavy things in a lighter way? And that includes laughing at ourselves
and how totally ridiculous we can be, especially when we’re trying to look good and feel good
and be these ‘great people’ that we imagine that we are or should be. How can we not take our-
selves too seriously, while also ensuring that we are taking seriously the scale of the problem that
we’re facing, and our responsibility for both contributing to it and addressing it?
Finally, the last piece of this metaphor of being on a tightrope between desperate hope
and desperate hopelessness, guided by the SMDR compass and the 4Hs, is that we say there
are two kind of abilities we need to develop in order to keep moving. One ability is being able

128
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

to engage these difficult and painful things without becoming overwhelmed or immobilized,
or numbed to the pain, but actually working with all of it. That is what we call negative capability.
Then generative capability is the ability to actually navigate a world that is volatile, uncertain,
complex, and ambiguous, and within that navigation, negotiating between different sensibilities,
especially between communities with uneven power, and doing this all with integrity and in
generative, sustainable ways. So, it is a big ask to be able to do all of this. And thus, we say that
the most responsible thing to do is assume that we are not doing it yet; but we also feel that
we don’t really have any other choice but to try, given the realities we’re facing.

Methodologies and Metaphors that Invite Movement

Having introduced a bit about our approach to this work, for the remainder of my time
I’m going to share some examples of our educational experiments in trying to walk this path,
which again includes reflecting on the inevitable failures involved.

Four Denials

The first example I will share is in relation to a framing that we sometimes use in order
to distinguish our work from other efforts to engage with social and global change, especially
from a decolonial orientation. We do this not because we believe our way is “better” than others;
we need many different kinds of strategies. Instead, we do this because our approach is some-
what counter-intuitive, so it is important to articulate what we are, and are not, trying to do.
People often think of violence or ecological destruction as a problem of ignorance – some-
thing that happens because people don’t “know better.” We assume that, if people only knew
the truth about where their food came from, where their computers came from, how many forests
are being cut down, the labour conditions under which our products are made, then we would
change our actions. But, as I mentioned before, in many cases this information is available to us,
and part of us already knows these difficult truths, and yet we don’t necessarily change our ac-
tions, we don’t necessarily change our desires. In other words, the information is already there,
but we are denying it, or disavowing it. We emphasize four particular denials:

• The first denial is denial of systemic violence and complicity in harm, or denial of the fact that
the comforts and securities that we enjoy, especially if you are a white settler in a place like
Canada, are subsidized by expropriation and exploitation that are happening somewhere
else that is out of view, whether “at home” or “abroad”;
• The next is denial of the limits of the planet, or denial of the fact that the planet is finite
and yet our political economic systems are premised on and promise infinite growth,
and that’s an equation that just doesn’t add up and has disastrous consequences;

129
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

• Then, there is denial of our entanglement, the fact that we insist on seeing ourselves as se-
parate from each other, and from the land, rather than acknowledging all of the ways that
we are actually interconnected and interdependent, not just with other people but with
other-than-human beings and the Earth itself as a living metabolism;
• Finally, there is denial of the magnitude and complexity of the problem, or denial of the fact
that there is no easy way out of this mess, there’s no silver bullet, there’s no one right action
or theory that’s going to solve the challenges we face; we will need to be able to sit with
and work with the enormity of the scale of the problem we face.

Most educational interventions will try to address one or at most two of these denials.
What we’re trying to do is hold them all together and ask where we are getting stuck in re-
lation to each of them. Because if the primary problem is denial, rather than ignorance, then
we need a very different kind of education than we’ve been offered thus far. What would edu-
cational practices for addressing these denials actually look like? First, they might require us to
go beyond what is socially sanctioned, what is imaginable, what is articulable, what is deemed
“real” in the world that we currently have. They would also require us to consider what we might
be unconsciously repressing or avoiding. We can think of it like this: there’s a visible side of the
moon that we are fairly familiar with; but there’s another side of the moon that we know is there,
even if we can’t always see it. What is there on that invisibilized side, and what else is behind
what is there? What are the traumas, fears, insecurities, fragilities, denials, and assumptions
that we actually need to surface and “compost”, so that we can clear space for something else
to emerge? What generative possibilities might also be hidden there?

The Bus

One of the pedagogical containers we have for doing this is trying to question the modern
assumptions we have that there is univocality within a collective or even within one person;
or that there is coherence, again within a collective or even within one person. We also want
to question the assumption that we are pure, “good” people who are not part of the problem;
and the assumption that we are transparent to ourselves, that we can actually know all of the parts
of “the dark side of the moon” within us. In order to question these assumptions, we would need
to hold space instead for plurivocality, again, both within ourselves and the world, contradiction
within ourselves and the world, our complicity in harm and our complexity.
The way that we practice this in the GTDF Collective is by using this metaphor of the
“bus”: the idea that all of us have an entire bus full of people within us, maybe not even just
people, but also other living beings. And they might disagree with each other at certain times,
and sometimes there might be a struggle over who gets to be the driver. There might be passen-

130
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

gers on the bus that you know really well, they’re usually at the front of the bus, but there also
might be some at the back that you’ve never even seen before, and only come out in a moment
of crisis, often when you least expect it. Our invitation is to try and get to know your bus: Which
are the passengers that usually drive? Which passengers are the “wild cards” that rarely come
out but do so in ways that surprise and maybe frustrate or embarrass you? Where did these dif-
ferent passengers come from (e.g., did they emerge at a particular age or in relation to a particu-
lar experience or trauma in your life or perhaps in your family history?)? We also invite people
to be aware of the surroundings of the bus in any given moment: Where are you headed? What
are the roads like? Is person driving capable of handling the current driving conditions? What
is the weather like, both within the bus and outside it?
We invite people to get to know their bus passengers and pay attention to changes in both
the internal and external conditions of their bus, so that we can learn to respond quickly and with
discernment to conflicts on the bus and to difficult terrain, and to navigate our relationships
in ways that account for the plurivocality, contradiction, complicity, and complexity in oursel-
ves, so that we can also account for the plurivocality, contradiction, complicity, and complexity
in others and the world. All metaphors are partial and limited, and some people don’t like this
metaphor of the bus. You can use whatever metaphor you like–whatever works best for you
to practice holding space for your multi-layered self. I’m going to invite you to use the bus for
the remainder of this paper, but it’s entirely up to you whether or not you want to take me up
on my invitation.

The House Modernity Built

In order to practice using the bus, I’m going to go on to the next example, and while
you are processing this example, I invite you to observe the passengers on your bus and what
they’re thinking, feeling, and saying in response to this next pedagogical experiment. Try to iden-
tify at least three different passengers – perhaps one at the front of the bus (who you know well),
one in the middle (who you are somewhat familiar with), and one at the back (who is more of a
stranger or mystery to you). One of the metaphors we commonly use in the GTDF Collective is
“The House that Modernity Built” (see ANDREOTTI et al., 2018; STEIN et al., 2017). As you
can see in the image, we use this metaphor as a means to synthesize different critiques of the
political system of nation-states, the economic system of global capitalism, the epistemic system
of “universal” Western reason, and the relational system that undergirds each of the other sys-
tems with its fantasy that we are separate and independent from each other and from the earth.

131
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Image 1

Source: the author.

The “house that modernity built” is taking up a lot of space on this planet; it’s actually
exceeding the limits of the planet. We sometimes have students or people in our workshops
take a quiz, which is the “Ecological Footprint Quiz” (http://ecologicalfootprint.com), that asks
about your daily activities and how you live and then tells you approximately how many Earths
we would need if everyone on Earth lived the way you do. Usually when I take the test, I get
around four, so if everyone on Earth lived like me, then we would need four planets. Which tells
me I’m clearly using more than my share in a very unsustainable, unaccountable way.
Now, in addition to taking up more space on the planet than there is, there are also the hi-
dden costs of the house, not just costs to the planet but also to other people: expropriation,
destitution, dispossession, and genocide. These are the processes that allowed the house to be
built in the first place, and that are still keeping it going today. People in the house generally
don’t see those costs because they are invisibilized and naturalized, and yet the costs are there
and those who are paying the costs can see and feel these costs very clearly. And not only does
the house take labour and land from others, it also places its waste on others.
We are now in a moment when the house itself is in crisis: economic instability, political
polarisation, many ecological disasters, and a global mental health crisis, amongst many other
things. What we are starting to see is that, whereas the house had previously exported all of
these problems for the rest of the world in order to sustain itself, now these problems are also

132
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

starting to creep into the house itself, at least into the basement. The house is not as sturdy as it
used to be, and cracks are starting to appear. As those of us inside the house face these crises,
there are many different possible responses. There are some people who say: you know what?
It’s not major, let’s just patch it up, we will put some new paint on it, it’ll be fine. Other people
say: okay, we can see that more challenges are going to come, and we need to protect ourselves
and our comforts, so let’s fence off the house and let’s, for instance, put more and more aggressi-
ve policing at the borders of the house or the nation states that are made up of the house. Some
say: you know what? It’s not really fair that this house is so exclusionary–we need to expand it,
we’re going to remodel it, we’re going to add a room or two onto it, and that will solve our pro-
blems. Others say: maybe this house is actually pretty flawed and instead of trying to fix it or
expand it we should consider just abandoning it and building a new house; or perhaps we will
need to find an entirely new planet instead. And some who suggest we need entirely different
kinds of shelter.
There’s no singular response to what is happening in the house, and it usually depends
on your social position, your personal history, what your analysis of the problem is, and how
severe you think it is. But my invitation to you is, as I said, to observe the passengers in your
bus and how they’re responding to this possibility: not only that this is how the house works,
but also that we might be facing a context of the house crumbling. And in addition to obser-
ving what these passengers on your bus are thinking, feeling, and saying, asking yourself: what
are you learning from observing these passengers’ responses to the metaphor of the house?
Are you finding a passenger or two that you didn’t expect? Is it confirming things that you al-
ready know, that you’re wrestling with, and does it give you more space to look at things that
you might have previously repressed or not considered to be part of this work? I would also ask:
how does it change things to observe your passengers’ multiple responses, rather than thinking
you have to have one coherent response to the house and its condition? Some people might say:
there’s a part of me that was really relieved that the house is being described in this way, becau-
se I know that it’s the case and we never want to talk about it; then there could be a passenger
says: nope, I don’t want to hear it, it’s too real, I can’t handle it, I’m going to have a meltdown if I
see this. What are you learning from observing the passengers and how does it change things
for you? It’s likely that there are at least a few things moving in your bus as part of this invitation.

The +1/-1 Seesaw

The third example that I have of a pedagogical experiment is the metaphor of a seesaw.
This metaphor actually came from Pajé Barbosa, who is from the Pitaguary Indigenous commu-
nity, who has said: We really need to get beyond this “+1/-1” dynamic, and instead, we all need
to work on “getting to zero,” the place at which we acknowledge the intrinsic worth of all beings
without exceptionalizing anything or anyone. My understanding of what he meant – and I have

133
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

to acknowledge that my translation is undoubtedly imperfect and partial – is that usually within
the modern/colonial system we are constantly working within a hierarchical frame. Whether
or not we’re conscious of it, we’re always assuming that something is either amazing or it’s crap
– there’s a binary, and a constant competition. The hegemonic hierarchy maps on to cultural
and racial hierarchies that have been inherited within our white supremacist colonial system,
but there are lots of different adaptations and reversals of this as well.
Interestingly, often when white Western folks like me start to see the reality of our com-
plicity, it interrupts our assumption that we are “+1”: that we are the leaders of humanity, that
we are amazing, that everything is awesome, and that we are moving in the right direction
(which we have been told all our lives and socialized to believe). Instead of a more sober, ma-
ture response, our response is often to panic: oh, my god! I suck! I thought that I was the best,
but actually I’m the worst! And then we might try to reverse the hierarchy, to put marginalized
communities on the pedestal instead of ourselves, and say: okay, they must be the best and I
must be the worst. And the reality that Pajé Barbosa was trying to bring us to face is that we’re
all ordinary, and that we each have the full range of humanity within us.
Now, we have to be careful that this metaphor does not become weaponized to era-
se the deep, enduring systemic divides that we need to address and the colonial debts that
we need redress. The point is that as we move to dismantle these hierarchies and enact restitu-
tion for their impacts, we do so in a way that moves away from both self-celebration, and sel-
f-flagellation, and that moves instead toward deepening our responsibility. In order to work
toward zero (while knowing that it is not a static point of “arrival”, but rather a constant ongoing
practice), we would need to realize that we all have the capacity for the good, the bad, the ugly,
and the messed up. And we would need to move away from engagements that are built on the
+1/-1 dynamic.
To illustrate the difficulty of interrupting this dynamic, I will share that what tends
to happen in mainstream conversations in academia in Canada or the US. Usually, it is white/
European scholars who are deemed to be the exceptional, exalted people (the +1s), and who
are understood to be the most qualified and worthy to address our current problems. However,
once we arrive at more critical or decolonial conversations, this designation often switches,
and people are more likely to say that it is actually Black or Indigenous people who are excep-
tional and exalted (they are the true +1s). And in fact, there are many instances when mobilizing
this dynamic of reversing the +1/-1 positions is important, as it is the only available possibility
for seeking some semblance of equity or redress, especially because this is the language that
our institutions understand. But Pajé Barbosa has also prompted a question for us: Can we have
a politics that doesn’t depend on the seesaw of worth and value? This would be a politics that
keeps the question of systemic complicity in harm against marginalized peoples and the planet
very present, but that does not depend or capitalize on exceptionalizing anyone.

134
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Now is a time where you could stop to ask what’s happening in your bus in relation to this
metaphor as well. How are your passengers responding to Pajé Barbosa’s insight? What are they
resisting? And again, the invitation is not for you to agree or disagree with the metaphor, but ra-
ther ask to what it is bringing up for you, so you can sit with and be taught by what is emerging
that you might not have noticed before the metaphor was put on the table.

The Last Warning/Último Aviso Campaign

The next example is very contextually relevant for you in Brazil, and I actually feel a bit
awkward talking about it as a U.S. citizen, living in Canada, not being as intimate with the con-
text as you are. But nonetheless this is the work that we’re doing and I’m going to share, despite
that uncertainty and the risks involved. The Gesturing Towards Decolonial Futures Collective
is providing support to an educational campaign that is led by the Federation of the Huni
Kui People of Acre. The campaign seeks to: 1) raise global awareness about the coordinated atta-
ck of the Brazilian government on Indigenous peoples and their lands and rights; 2) emphasize
the importance of centering Indigenous rights in climate action; and 3) invite people to consider
how we have all contributed to current social and ecological crises in very uneven ways, and to
try and activate our sense of responsibility (before will [SPIVAK, 2004]) to interrupt harmful
colonial patterns and make space for different possibilities for collective existence to emerge.
The collective was asked to play a supporting role for the campaign by the Federation
of the Huni Kui People of Acre. We had pre-existing collaborations with them and, as the Marco
Temporal case came up, and as there are over twenty bills, I believe, in your Congress right
now that are related to the Amazon and Indigenous rights, they said: We can’t do this alo-
ne, we are doing what we can in Brazil, but we also need global awareness about what is ha-
ppening. In the campaign, which is called “Last Warning” (lastwarning.org) or “Último Aviso”
in Portuguese (ultimoaviso.org), one of the primary messages is: if the Amazon goes, we all go,
and Indigenous peoples first of all, but it’s going to have global impact on climate change. And in
trying to raise awareness about this issue we have faced several interesting challenges.
The first one has been the challenge of interrupting indifference: we find that we have
shared this campaign with many people and usually, at most 5% of the people respond when
we ask for their engagement or their support. We are trying to figure out what is behind that
apparent indifference, and one analysis we have is that part of the indifference or seeming in-
difference to this violence is rooted in denial, as I said in the beginning, and a fear that we are
incapable of holding the pain that is unraveling and has been unraveling for Indigenous peoples
for hundreds of years, and of holding our responsibility in causing that pain. We also know that
what looks like indifference might also just be people being preoccupied with many other very
pressing issues in their lives and around the world. In that case, how do we make the invitation
for engagement available while respecting that people will have different priorities?

135
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

It has also been extremely interesting serving as this international arm of the campaign
and translating things across different contexts. This includes translating from the Global South
to the Global North, but also again the north of the south, and the south of the north, translating
between Indigenous and non-Indigenous contexts, also between Indigenous contexts, trying
to support bridging, for instance, between Indigenous communities in Canada with Indigenous
communities in Brazil, who are asking what they can learn from each other in relation to their
struggles. Another challenge is attending to all of the complexities and heterogeneities and con-
flicts that exist on all sides. Every element of the campaign, every community we were colla-
borating with, in the North and in the South, has their own complexities and we are trying
to respectfully navigate those, while keeping at the fore the question: What is our responsibility
in terms of trying to support this long-term struggle against genocide and ecocide?
We also recognize that all of this work on the campaign has been an extremely rich le-
arning experience, but we also keep very visible that this learning is coming at the expense
of the most marginalized peoples, yet again. What has become very evident in this campaign,
which is something we have been working with for a long time, but the realness of it has be-
come very clear: on the one hand, the only way we can learn is by making mistakes; and on
the other hand, those mistakes and that learning usually come at someone’s expense, usually
the same people who have had things done at their expense for a very long time. We are still
in the midst of synthesizing our learning from this campaign in its first phase, so that we can su-
pport what comes next, which will likely focus on expanding the educational dimensions of the
campaign. This not often something that we are encouraged to do, to take the time to sit with
what worked and what didn’t work, so that we can integrate these learnings and do it differently
next time. But if we don’t do that, then we’re likely going to keep making the same mistakes over
and over again.

The Gifts of Failure

The last example of an experiment that I’m going to share with you is actually a series
of questions for us to sit with. Much like the question I posed before about “what is the next,
most responsible, small thing you can do?”, the questions that I’m going to pose can be applied
in many different contexts and the invitation is open for you if you want to work with them.
This is called The Gifts of Failure (https://decolonialfutures.net/portfolio/the-gifts-of-failure/),
which is made up of questions that we use internally in the GTDF Collective to self- and peer-
-review the experiments that we try so that we can synthesize our learning and learn faster from
our failures so that we can move towards less harmful, more generative directions. The idea
behind these questions is to understand that it is very difficult to avoid colonial patterns entirely,
and rather than assume that we can, we should develop strategies that can support us to identify
these patterns (in ourselves and others) when they emerge and adjust our paths accordingly:

136
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

• The first question is: To what extent are you reproducing what you critique? For instance,
in the Last Warning/Último Aviso campaign, this is something that we can ask ourselves:
we are trying to critique systemic violence, but how might we be reproducing it ourselves,
as well, including in the campaign itself ? You could ask this about a paper that you’re wri-
ting or a pedagogical or professional practice that you’re working with.
• Then, there’s the question: To what extent are you avoiding looking at your own complicities
and denials, and at whose expense? When you don’t look at those complexities and denials,
who pays the cost? And to some extent it’s you who actually pays the cost, because you’re
interrupting and stalling your own un/learning; but it’s also usually the most marginalized
communities who are paying the highest price.
• Then there is a basic question: What are you doing this for, what drives you to do, for instan-
ce, this decolonizing work? Who are you accountable to in this work? And usually that’s multiple
different communities, right? What are those communities? What is your theory of change, what
do you think is going to get us from here to somewhere different? And even if we all agree that
decolonization is necessary, there are many different ideas of what makes up decoloniza-
tion and how it should look and where it should come from. Therefore, it’s important to be
as clear as we possibly can about what our assumptions and investments are (knowing
we are not fully self-transparent), and to understand that there are many different pers-
pectives on how this work should go and where it should lead us. What would you like your
work to move in the world?
• Then there’s a question about audience: as I mentioned at the beginning, our work is not
meant to be universal. For instance, the frameworks that we often present wouldn’t ne-
cessarily be very useful for the Indigenous communities that we work with: they are pri-
marily crafted for people in the Global North, especially those in the north of the north.
So always asking Who is my imagined audience, rather than thinking you’re trying to speak
to some imagined universal. What do you expect from this audience? What compromises have
you had to make in order for your work to be intelligible and relatable to this audience? I know
that there are things that I would like certain audiences to consider, but I also know that
if I bring the critique too fast, and too soon then they’re going to resist and it’s going to ac-
tually fall flat, and then I’m working against myself. So how can I think about the pace
and the order in which I introduce things, understanding that there is a lot of complexity
that needs to be there eventually, but if I started with all that complexity, it wouldn’t work?
What compromises have I had to make in terms of making my argument so that the audience
can hear it? And then, to what extent can these compromises compromise the work itself?
At what point does it become not worthwhile to be intelligible to that audience? And then
conversely, if you’re going to make that compromise, how can you remain accountable
to what you have bracketed, and come back to it later? And also, who are you choosing
not to upset and why? There is a tendency, for some people at least, to try and keep

137
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

the peace, especially with those who have the same or potentially more systemic power
than us. But when we prioritize their feelings, then we may be compromising our accou-
ntability to most marginalized. And in this work, where we are constantly translating
and calibrating for our audiences, how do we do it with integrity, knowing that we’re ne-
ver going to be able to tell the full story at any one time, and that we’re always going to be
making these compromises?
• Then there’s a very grounding question of What and who is this work really about and who
is benefiting most from it? To take my case, I do this decolonizing work for many different
reasons, and I wouldn’t say that my job is the main reason I do it, but it certainly bene-
fits me professionally to be talking about these things, especially because this question
is so important right now in our academic conversations. So, while it’s not what motivates
me to do the work, I also have to admit that it benefits me a lot; even when I’m critiquing
the system, it (often) benefits me nonetheless.
• How wide is the gap between where you think you are and where you’re actually at? This is a
common thing that happens, which is that we are not usually as far along in this process
as we like to think we are. And again, when it’s a calm moment and when things are pe-
aceful, then usually we can kind of keep that illusion that we are in fact where we think
we are, but it’s in the moments of crisis or conflict that we can assess where we really are at
in our learning, because we see how we respond when things start to fall apart, or when
our authority or autonomy is challenged. We can also ask ourselves: how would you be
able to realize where you’re actually at, seeing that gap between when you want to be? Usually
this is by either asking someone or thinking of how you look through someone else’s eyes.
And of course, are we really able to hear it when that critique is brought to us?
• Finally, to what extent can we respond with the four Hs – humility, honesty, hyper self-reflexi-
vity, and humor – when our work or self-image is challenged?

I know that this is a lot. And perhaps I should have included less in order to give you more
space to sit with it all. This is always the challenge! But I’m looking forward to being in conver-
sation with you to unpack these things further and in more depth. Thank you.

References

138
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

ANDREOTTI, V.; STEIN, S.; SUTHERLAND, A.; PASHBY, K. L.; SUSA, R.; AMSLER, S. Mobilising
different conversations about global justice in education: toward alternative futures in uncertain
times. Policy & Practice: A Development Education Review, v. 26, p. 9-41, 2018.
PRÁDANOS, L. How did this class prepare you for extinction? Resilience. 2020. Retrieved from:
https://www.resilience.org/stories/2020-04-21/how-did-this-class-prepare-you-for-extinction/
SPIVAK, G. C. Righting wrongs. The South Atlantic Quarterly, v. 103, n. 2, p. 523-581, 2004.
STEIN, S.; HUNT, D.; SUŠA, R.; OLIVEIRA ANDREOTTI, V. The educational challenge of unraveling
the fantasies of ontological security. Diaspora, Indigenous, and Minority Education, v. 11, n. 2, p. 69-
79, 2017.
TUCK, E.; YANG, K. W. Decolonization is not a metaphor. Decolonization: Indigeneity, Education
& Society, v. 1, n. 1, 2012.
WHYTE, K. Too late for Indigenous climate justice: Ecological and relational tipping points.  Wiley
Interdisciplinary Reviews: Climate Change, v. 11, n. 1, e603, 2020.

139
PROBLEMATIZANDO A AVALIAÇÃO NO ENSINO DE
LÍNGUA INGLESA: UMA TRANSCRIAÇÃO

Camila Haus
Universidade Federal do Paraná

Introdução

Sempre tive muita dificuldade em iniciar textos, e com este não foi diferente. Abri um novo
arquivo e comecei a digitar a palavra transcrição. Minha intenção era primeiro transcrever minha
fala do dia 23/09/2021 no evento do DELA1. Entretanto, quando olhei novamente para a tela,
percebi que havia cometido um erro de digitação: “transcriação”. Naquele momento, dei risada
quando pensei o quanto esse termo parecia refletir o processo pelo qual eu imaginava passar
na escrita deste texto, que seria criar algo expandindo e explorando uma transcrição. Como
eu não sabia se tal palavra existia no dicionário, pesquisei e encontrei a seguinte definição:

“trans·cri·a·ção
sf

Tradução de textos feita com grande criatividade, para que determinada palavra, locução
ou texto tenha a mesma conotação que apresenta na língua original. ” (Dicionário on-line2)
Apesar desse sentido oficializado e legitimado pelo sublime poder do dicionário (espero
que a ironia esteja clara), tomo a liberdade de trazer a minha própria significação. Naquele mo-
mento em que eu estava ansiosa e confusa ao iniciar um processo de escrita, e em que pensava
sobre como iria construir este texto, enxerguei em transcriação a mistura das palavras “trans-
crição” e “criação”.
Neste capítulo, me proponho a fazer uma transcriação (nesse sentido outro) da minha
participação no evento. Em outras palavras, eu pretendo transcrever minha fala fazendo pe-

1 Palestra do DELA do dia 23/09/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ukwf Fona7-A


2 Michaelis Online–Definição de “transcriação”–Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?id=V4Qde. Acesso
em: 12/01/2022

141
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

quenas mudanças e não sendo totalmente fiel às palavras ditas naquele momento. Primeiro,
vou alterar algumas expressões ou marcas mais características da oralidade, as quais eu acredi-
to serem desconfortáveis na leitura. Segundo, vou fazer recortes e não incluir a fala completa,
uma vez que a mesma foi baseada em um artigo já publicado (HAUS, 2021). Por fim, eu gostaria
de transcriar, expandindo o que foi dito e debatido, aprofundando certas ideias, dialogando
e explorando melhor algumas das perguntas respondidas ao final da minha fala3. Talvez os mo-
mentos em que trarei falas de outras pessoas sejam os mais próximos do sentido de transcria-
ção que está no dicionário, já que os sentidos não são transparentes e eu estarei fazendo a minha
tradução e construção do que foi dito por eles e elas.
Antes de iniciar, ressalto que minha apresentação no evento do DELA, bem como a escrita
deste capítulo, fazem parte de meu processo de formação enquanto doutoranda, e se constituem
como um espaço importante de reflexão de meus objetivos e das teorias que tenho estudado.
Desse modo, citarei vários conceitos que não poderei aprofundar/explicar aqui por falta de es-
paço (afinal, essa ainda não é a minha tese), e, por isso, farei escolhas sobre alguns pontos a se-
rem aprofundados. Acredito que, enriquecido pelas interações com os ouvintes e com o convi-
dado externo do encontro, professor Lynn Mario Menezes de Souza, este texto poderá se tornar
uma expansão das minhas inquietações e reflexões apresentadas no evento, e ao mesmo tempo
mais um passo na minha pesquisa de doutoramento, cujo assunto considero tão relevante: ava-
liação no ensino de língua inglesa.
Uma vez que o ato de avaliar é algo extremamente amplo, finalizo esta introdução com algu-
mas palavras a respeito do meu foco de pesquisa. Investigo e problematizo a avaliação enquanto
um instrumento educacional que funciona como uma sistematização de registros e apreciação
de resultados obtidos em relação a metas e critérios estabelecidos a priori. Ou seja, as práticas
que geralmente são mandatórias dentro de instituições (seja na escola ou em cursos de idiomas)
que têm como resultado final a produção de uma nota. Esta, por sua vez, define se um aprendiz
pode (ou deve) seguir para um próximo “nível” de aprendizagem ou não. Em suma, estou fa-
lando de uma perspectiva que percebo como predominante, que se resume à ideia da avaliação
como sinônimo de mensuração e/ou provas e exames.

A avaliação no ensino de língua inglesa: ressignificações através de um olhar


decolonial
Avaliação: uma arena de desconfortos violentos

Avaliação. Quando falamos essa palavra, quando ela vem à nossa mente, o que que a gente
sente, o que que a gente pensa? Bom, eu trouxe aqui alguns memes pra mostrar um pouco do que

3 Os trechos que representam falas do dia do DELA, minha ou dos demais participantes (convidado e ouvintes), estarão
destacadas em itálico.

142
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

eu percebo nos meus alunos, nas minhas vivências, e que são estas emoções de medo, insegurança,
frustração, tensão:

Figura 1 – Slide 2

Fonte: Arquivo pessoal da autora (2021).

No dia da prova, os alunos chegam suando, tensos… Desde que iniciei a minha trajetória enquan-
to professora, minha maior inquietação, meu maior desconforto com a avaliação, era lidar com isso.
Com essas emoções, que eu via como algo violento. E ao mesmo tempo outro desconforto que eu sentia
era a discrepância entre como eu estava olhando para linguagem e ensino, a partir de visões pós-estru-
turalistas por exemplo, e como eu tinha que avaliar nos meus espaços. Isso não combinava e esses eram
os desconfortos que eu sentia e que eu ainda sinto.
Faço já uma pequena interrupção da minha fala no evento para comentar que considero
o desconforto algo extremamente relevante neste texto, uma vez que problematizo a avaliação
enquanto um desconforto violento, mas depois levanto a possibilidade da avaliação enquanto
um desconforto produtivo. Desse modo, por mais que minha intenção ao começar meus estu-
dos sobre avaliação talvez fosse o de anular esse sentimento, neste momento de minhas refle-
xões vejo que não há possibilidade e nem necessidade de apagamento total do incômodo. Além
disso, reconheço que foi minha própria situação desconfortável com a avaliação que me moveu
a agir, a pesquisar, a fazer algo em direção à mudança. Retomarei esse ponto mais adiante.
Mas enfim, de onde eu estou falando? Quem sou eu? Eu falo a partir do meu local enquanto alu-
na na pós-graduação da UFPR, no doutorado. Enquanto uma mulher pesquisadora que tem o privilé-
gio de estar ao redor de muitas outras mulheres incríveis; de participar do grupo Identidade e Leitura,
onde todas as conversas me perpassam, me constituem; de participar também do Grupo de Estudos

143
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Multiletramentos, Multimodalidade e Formação de Professores de Línguas Estrangeiras (GEMPLE)


com a professora Alessandra Coutinho Fernandes. Então tudo isso está aqui, ecoando na minha voz.
Quanto ao meu contexto de trabalho, sou professora na UTFPR Idiomas4, um centro de línguas.
Nessa minha trajetória de olhar para avaliação no ensino de inglês, a minha primeira pergunta
é: Por que ela se caracteriza como essa arena de desconfortos? Eu coloco três pontos aqui para ten-
tar olhar para essa pergunta (como é possível observar no slide a seguir). Não pretendo respondê-la,
mas tentar refletir sobre ela, entender um pouco do porquê dessa arena de desconfortos violentos.

Figura 2 – Slide 5

Fonte: Arquivo pessoal da autora (2021).

Inicio com a ideia de Bourdieu (1996) de poder simbólico. Eu acredito que a avaliação tem esse
poder porque primeiro: a todo momento a gente avalia. A avaliação é intrínseca às relações humanas
em geral. Mas quando ela vai para a escola, ela se torna muito mais sistematizada e institucionalizada,
é claro. E desde que a gente ingressa na vida escolar a gente aprende que depende dos valores que os
outros atribuem a nós e ao que somos capazes de produzir para seguir em frente ou não. Se a gente olha
para a avaliação no ensino de inglês, percebemos o predomínio do uso de testes/provas… as minhas
vivências e várias leituras me trazem esse ponto que a Shohamy coloca de que “testes de língua estão
sendo interpretados como currículo de fato e tendem a ser mais influentes do que resultados de pesqui-
sas sobre o conceito de língua” (SHOHAMY, 2018, p. 585). Então, por mais que a gente reflita, discuta,
debata sobre outros olhares para a língua, a avaliação influencia muito as nossas práticas de sala
de aula. Muita gente aqui já deve ter escutado aquela famosa frase de: “eu preciso ensinar isso aqui
porque vai cair na prova”, não é mesmo?

4 Na palestra do DELA, citei especificamente esse local pois é onde estou desenvolvendo minha pesquisa de doutorado.
Apresentei tal projeto ao final da minha fala, mas não trarei essa parte neste texto por limitações de espaço.

144
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Em suma, essa ideia do poder simbólico é porque a avaliação constitui e estrutura percepções
no mundo social. Ela influencia ações e ela valida ou não os saberes, influencia conceitos de língua.
Entretanto, não acho que tal poder esteja na avaliação em si, mas na estrutura, no conjunto de condi-
ções que sustenta essa autoridade da avaliação e que eu penso que são frutos de epistemologias colo-
niais. Já foi falado aqui no evento por outros participantes, como o professor Mignolo5, dessa questão
do histórico de que a modernidade sistematizou e inventou essa ideia de língua enquanto sistema,
enquanto um símbolo de identidade e unidade nacional, e enquanto mecanismo de poder e controle
(MIGNOLO, 2000; MAKONI; PENNYCOOK, 2007; CANAGARAJAH, 2013). E isso se mantém
até hoje, através da colonialidade.
Por se tratar de um evento cujas palestras tratavam frequentemente de colonialidade,
não me debrucei sobre tal conceito no momento da minha apresentação. Contudo, aproveito
este espaço de escrita para explicar como entendo tal termo, bem como outros aspectos teóricos
com relação à língua em sua perspectiva colonial. Segundo Maldonado-Torres (2007), o sistema
do colonialismo, no qual a soberania de um povo estava nas mãos de outra nação, já foi supe-
rado. Entretanto, o que se originou com a conquista, dominação e colonização dos povos e dos
territórios continua existindo e condicionando muitas pessoas, pensamentos e ações, invisibili-
zando e marginalizando grupos sociais e saberes considerados ignorantes, primitivos e inferio-
res. A colonialidade seria essa predominância e superioridade do sistema-mundo euro-norte-
-americano/capitalista/patriarcal/moderno/colonial (GROSFOGUEL, 2013) que se mantém.
Um dos mecanismos de poder e controle desse sistema foi e é a língua, sistematizada
enquanto símbolo de unidade e identidade nacional pela modernidade. A relação entre uma lín-
gua, uma nação e um local ficou conhecida como tríade herderiana. São várias as consequências
dessa ideia: a) o monolinguismo que separa as línguas umas das outras; b) a língua enquanto
sistema autônomo e ligado a um povo/local específico (e a consequente imposição da língua
do dominador em outra comunidade); e c) a perspectiva do falante nativo enquanto dono e usu-
ário legítimo do idioma, e, portanto, o modelo a ser seguido (CANAGARAJAH, 2013). Cabe
ainda ressaltar que esse nativo é sempre marcado também pela naturalização entre língua e raça
(ROSA; FLORES, 2017), ou seja, o falante nativo visto como modelo não é qualquer sujeito
que tenha determinado idioma como primeira língua, mas aquele que se caracteriza como ho-
mem, branco, heterossexual, cristão.
Na sequência da minha fala do evento, trato da dominação dessa concepção colonial
e moderna de língua no contexto do ensino de língua inglesa.
A visão moderna e colonial de língua fundamentou e fundamenta o que a gente conhece como
Inglês como Língua Estrangeira (ILE), que a gente vê em livros didáticos, em metodologias, em discur-
sos mercadológicos e na avaliação. Desse modo, a avaliação acaba servindo como ferramenta de per-

5 Palestra do DELA do dia 20/09/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/live/kbX0-L2EOfg?feature=share

145
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

petuação dessas ideias, porque os critérios avaliativos muitas vezes são baseados numa perspectiva
normativa, em que o aluno precisa se adequar a um determinado sistema, a uma separação entre
as línguas, a partir de uma visão bem monolíngue. Se o aluno “mistura” as línguas ou desvia dessa
norma do suposto nativo, ele é penalizado.
E por que isso é violento, afinal? Um desconforto violento? Por causa desses impactos materiais
que a gente vê. O sentimento de insuficiência ou impostura dos alunos (a gente ouviu um pouquinho
também na fala do Miguel6 sobre isso), a questão das emoções que eu trouxe no começo, silenciamentos
dos repertórios e sentidos, uma coerção para aculturação ao invés de uma competência intercultural,
uma pressão acadêmica e profissional, preconceito linguístico e racial, enfim.
Para além do conceito de língua, a própria constituição da avaliação enquanto parte da educa-
ção, um instrumento educativo, também pode ser pensada, pode ser questionada. Avaliar pode ser mui-
tas coisas, algo muito amplo, mas estou falando de uma perspectiva que eu vejo como predominante
e que é essa ideia de avaliação como sinônimo de prova, de exame. A avaliação enquanto instrumento
da educação foi pautada em fundamentos positivistas e industriais (DUBOC, 2007). Como exem-
plo de fundamentos positivistas, temos neutralidade, objetividade, racionalidade e uma ideia de que
o saber é externo aos sujeitos (MARTINEZ, 2014). Com relação às influências do setor industrial,
temos a efetividade, eficiência, a ideia de ter que avaliar em larga escala… Essa parte me lembra muito
a fala da prof Walkyria7, pois ela falou sobre a escolarização, sobre a ideia da “sociedade da escrita”
(MONTE MÓR, 2017), que está inserida nesse projeto colonial de sociedade, de sujeito, de pensamen-
to homogêneo, de convergência, de naturalização da desigualdade, enfim. Então essa ideia de escola-
rização fundamenta a avaliação nessa perspectiva que eu estou trazendo, que eu estou tentando olhar
criticamente.
E o predomínio do uso de prova? Por que provas e testes são tão usados? Porque estão em con-
sonância com esses ideais, porque pressupõem um maior nível de neutralidade, de capacidade de men-
surar um conhecimento objetivo. E quando a gente está falando de ensino de inglês, a gente ainda
pode pensar nos testes como TOEFL, IELTS, ou o Quadro Comum Europeu de Referência (CEFR).
São ferramentas que contribuem para perpetuar e impor ainda mais essas ideologias, a tríade da lín-
gua, nação e identidade, o falante nativo, e que também têm pretensões de universalizar, que a gente
sabe que é um objetivo colonial.
Antes de seguir para a próxima seção da palestra, na qual me dedico a pensar em possi-
bilidades outras para a avaliação em uma perspectiva decolonial, é preciso deixar claro como
estou entendendo decolonialidade. A partir de minhas leituras, percebo decolonialidade como
uma estratégia e um movimento para problematizar a narrativa dominante do norte global.

6 Palestra do DELA do dia 22/09/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-HGOFmramyE . Acesso


em: 07 dez. 2022.
7 Palestra do DELA dia 21/09/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RUsYB9I9ThM&t=8662s .
Acesso em: 07 dez. 2022.

146
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Nesta proposta, principalmente a partir de pensadores latino-americanos, histórias considera-


das únicas e globais são questionadas, em busca da construção de um mundo onde coexistam
diferentes saberes, seres, tempos, espiritualidades:

é necessário que sejamos epistemologicamente desobedientes (MIGNOLO, 2008), isto é,


que questionemos e desobedeçamos padrões hegemônicos e eurocêntricos de produção de co-
nhecimento [...]. Sousa Santos (2007) nos apresenta o conceito de ecologia de saberes, que enfa-
tiza a importância da coexistência de diferentes conhecimentos e de suas interações sustentáveis
e dinâmicas. Com isso, não se trata de abdicar ou eliminar os conhecimentos oriundos do norte
global, mas de descentralizar a posição do norte de único detentor de conhecimento e colocá-lo
no mesmo patamar de importância que o sul global (ALBUQUERQUE; HAUS, 2020, p. 186).

Menezes de Souza (em MENEZES DE SOUZA; MARTINEZ; DINIZ DE FIGUEIREDO,


2019) afirma que o ‘fazer decolonial’ assume formas localizadas, considerando o sujeito que está
empreendido nesta tarefa. Desse modo, em meu projeto de doutoramento e nas reflexões apre-
sentadas no evento do DELA, tenho como objetivo observar (a partir do meu ‘lócus de enun-
ciação’, minhas leituras e interpretações) os processos avaliativos no ensino de língua inglesa
a partir de um movimento decolonial de identificar e interrogar (para um dia interromper) a co-
lonialidade e as estruturas potencialmente excludentes desses processos. Na sequência da mi-
nha fala, trago pensamentos a respeito de uma avaliação otherwise. Enquanto um movimento
de desobediência epistêmica, penso em otherwise conforme Silva (2021): uma busca, a partir
de um processo de desaprendizagem, por outros paradigmas para existir, pensar e ser de forma
heterogênea e plural, e que sejam social, epistêmica, relacional e afetivamente justas. Ou seja,
uma avaliação otherwise se caracterizaria como uma prática em sala de aula que se proponha
a alterar/questionar os preceitos predominantes de ILE e dê espaço para outras emoções, sabe-
res e seres no ensino de inglês.

Por uma avaliação crítica otherwise

Como podemos pensar em uma avaliação otherwise? A partir de uma ideia de otherwise como
um fazer decolonial que é localizado, eu, a partir do meu lócus enquanto professora de inglês no Brasil,
mulher, branca, no meu contexto, como que eu estou pensando em um outro avaliar?
Primeiro, questionar o que é dado sobre língua, essa visão colonial, estruturalista.... Existem
muitas possibilidades, a gente tem por exemplo Inglês Língua Franca (ILF) (DUBOC; SIQUEIRA,
2020), Translinguagem (GARCÍA et al.; 2021), a ideia do Inglês Glocal (MENEZES DE SOUZA,
2019). A ideia também de ir para além do diálogo como essa coisa de que todo mundo se entende
e você tem que convergir e ter consenso para que a compreensão aconteça. Claro, como o nosso colega

147
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Rafael8 falou, eu acredito que qualquer teoria, qualquer abordagem pode ser cooptada por discursos
neoliberais ou coloniais. Mas eu acho que todas essas têm potencial para permitir a emergência de ou-
tras formas de ser em inglês (considerando que eu estou falando do ensino de inglês especificamente),
de ser, agir e dizer no mundo. Para resistir aos preconceitos e à ideia do imperialismo. Tudo isso se ca-
racteriza como uma das estratégias decoloniais, a de pensar a comunicação otherwise (MENEZES
DE SOUZA; DUBOC, 2021), de outra forma, com outro olhar. Apresento um resumo dessas possibi-
lidades no slide a seguir:

Figura 3: Slide 11

Fonte: Arquivo pessoal da autora (2021).

Se a avaliação pensar em língua nessas outras formas, a gente não vai mais mensurar um siste-
ma exclusivamente linguístico. Não sei, a gente pode olhar para repertórios, para a capacidade dos nos-
sos alunos de selecionar registros e estilos, a partir do momento em que eles leem seus espaços de forma
crítica também, o quão aberto eles são para a diferença e a negociação…
Claro, não basta só pensar em outras ideias de língua, mas também, a gente precisa perceber
que a avaliação não se resume a isso, a esse sinônimo de mensuração. Existem outras perspectivas
e nós podemos imaginar outras práticas. A gente precisa olhar para a educação de outras formas, e não
como essa escolarização que eu comentei, essa ideia de transmitir conteúdos prontos e que foram esti-
pulados por algum local que se diz global [...]. Mas uma escola que olhe, por exemplo, para as ideias
do Letramento Crítico (MONTE MÓR, 2018; MENEZES DE SOUZA, 2011; JORDÃO, 2013),
dos Multiletramentos (COPE; KALANTZIS, 2015), onde o aluno compreenda como o conhecimento
e o poder se distribuem e se reproduzem na sociedade. Nessas outras ideias de educação, a avaliação

8 Palestra do DELA dia 21/09/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RUsYB9I9ThM&t=8662s.


Acesso em: 07 dez. 2021

148
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

deixa de ser mensuração de conhecimento. O que poderia ser a avaliação? Talvez um processo, um di-
álogo entre professores e alunos, de uma forma mais horizontal, colaborativa, reflexões e observações
de um determinado desenvolvimento.
Não posso dizer aqui quais são os objetivos da avaliação em qualquer espaço, de forma nenhu-
ma. Então eles precisam ser situados, localizados, analisados de acordo com os alunos e a realidade
daquele tempo-espaço. Aqui eu listei alguns objetivos que eu vejo que fazem sentido no meu contexto
e claro, a partir das minhas leituras daquelas teorias que eu apresentei no slide anterior (Figura 3).

Figura 4 – Slide 12

Fonte: Arquivo pessoal da autora (2021).

Outra coisa são os instrumentos avaliativos. Não acho que exista um que seja o ideal, ou que
a prova nunca mais possa ser usada, mas eu acho que todo e qualquer instrumento não pode ser me-
ramente quantitativo, somatório. Ele precisa tender para o colaborativo, para os alunos como parti-
cipantes nesse processo, na tomada de decisões. E que a gente possa olhar pra língua de forma mais
contextualizada, performativa.
Como foi possível observar, nesse ponto de minha fala no evento citei vários conceitos
sem aprofundá-los. Conforme indicado na introdução desse texto, trata-se de um apanhado
das concepções que tenho entrado em contato durante meu processo de doutoramento. Por não
poder aprofundar/explicar todas devido a limitações de espaço e mesmo pelo fato de minhas
construções a respeito da avaliação estarem ainda em construção, opto aqui por exemplificar
a ideia de uma avaliação otherwise a partir da teoria do ILF, de acordo com outro trabalho
que publiquei recentemente (HAUS, 2021).
Em suma, a teoria do ILF pode ser uma forma de problematizar a concepção moder-
na/colonial de língua uma vez que percebe as interações enquanto construções e negociações

149
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

de sentido a partir dos repertórios linguísticos e semióticos de cada falante. Nessas constru-
ções, está também envolvida uma multiplicidade de espaços, corpos, sensações, modalidades,
identidades e ideologias, sendo a inteligibilidade não garantida por um sistema compartilhado,
mas por estratégias empregadas pelos sujeitos para que sentidos sejam negociados e renegocia-
dos com base em seus objetivos e interesses comunicativos. Avaliar com uma atitude de ILF im-
plicaria em mudanças radicais nos objetivos, critérios e instrumentos avaliativos. Precisaríamos
não mensurar língua enquanto sistema compartilhado exclusivamente linguístico, mas observar
o repertório do nosso aluno, analisando sua capacidade de explorar, expandir e selecionar seus
recursos linguísticos e semióticos conforme lê seus espaços e relações. Ademais, prezaríamos
não pela acurácia, mas pela tolerância para a diferença e a abertura para a negociação. Ao trazer
tal atitude de ILF para a avaliação, abriríamos possibilidades para desafiar o monolinguismo,
o espaço privilegiado do modelo de falante nativo, as relações de poder na linguagem, focando
no empoderamento dos demais falantes, na fluidez, na diferença e na translinguagem.
Olhando para a Figura 4 a partir do conceito de ILF, podemos aprofundar um pouco mais
alguns dos objetivos: a) Ampliação de repertórios: analisar a capacidade do aluno de expandir
seus recursos, aprendendo novas formas linguísticas e semióticas; b) Negociação e consciência
retórica: observar estratégias de negociação empreendidas pelo aluno, bem como sua habili-
dade em selecionar os recursos mais adequados em interações situadas; c) Multimodalidade:
considerar a escolha e uso de múltiplos modos (corpo, gestos, sons, imagens, vídeos, cores...)
na construção de sentido. Com relação aos instrumentos utilizados para avaliar, os formatos
alternativos aos testes, como projetos, portfólios, diários, autoavaliação, etc., existem há um
tempo, e não necessariamente implicam em uma prática decolonial ou crítica de avaliação.
Entretanto, acredito que são muito mais abertos e adequados para propostas de avaliação quali-
tativa, colaborativa, contextualizada e performativa. O essencial é ponderar com cuidado os ob-
jetivos e critérios, para que não se tornem apenas outros instrumentos que continuam reprodu-
zindo estruturas e concepções monolíngues, estruturalistas e coloniais.
Por fim, nesse trecho da palestra também comentei sobre a necessidade de pensar avalia-
ção para além de um sinônimo de mensuração, olhando para a possibilidade de avaliação en-
quanto diálogo. Tais questões se alinham muito com um dos comentários que o professor Lynn
Mario fez após minha palestra. Por isso, considerando as liberdades criativas a que me permiti
nesta transcriação, subverto a ordem dos eventos e transcrio aqui tal interação:
LYNN MARIO: Você falou em avaliação como mensuração, né? Mas isso é um aspecto da ava-
liação que eu acho que é o aspecto mais nefasto, criticável, que herdamos do positivismo, da racionali-
dade, do conceito de progresso linear. Mas tem outro aspecto da avaliação que é o feedback, que é es-
sencial para qualquer processo de aprendizagem. A gente tem que saber se estamos fazendo uma coisa
que realmente está rendendo resultados ou não. Mas quando o aspecto de mensuração da avaliação
vem à tona, o aspecto de feedback se perde. Isso porque aprendemos a fazer isso e continuamos. Isso

150
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

se naturalizou na nossa profissão de ensino de língua estrangeira. Mas eu acho que o feedback é abso-
lutamente necessário porque senão, paramos a nossa aprendizagem como se fosse lisa. Então a exterio-
ridade é muito importante. O que é a exterioridade? Aquilo que nós não conhecemos, o desconhecido,
o incompreensível, então o novo é muito importante para sair da simplificação.
CAMILA: Esse ponto que você falou do feedback é essencial, por isso que eu até falei que essa
coisa da mensuração é um olhar para avaliação. E que ele acaba predominando. Mas mesmo se a gen-
te tá pensando no feedback, o que acontece? Eu vou dar um feedback que é baseado em quê? Eu vou
dar um feedback pensando numa norma de falante nativo? Então também dá para problematizar o fe-
edback. Mas é outro olhar, e eu acho que é no feedback que talvez a gente possa pensar em engajamento,
em emoção mais envolvida, em diálogo, isso é possível. Na mensuração já é muito mais difícil, né?
LYNN MARIO: Uma coisa que eu sempre me irritei ao longo da minha carreira de professor
de inglês, era que os colegas adoram aluno nota 10. Quem é o aluno nota 10? É aquele que fala inglês.
Ou seja, aquele que não aprendeu coisa alguma na minha aula. Ele já veio falando, ele sai falando.
Ele não avançou nada. Pra mim aquele sim que eu avalio como zero. Agora outros alunos que entra-
ram com muito menos e avançaram com pouco mais, esses alunos deveriam ser avaliados sim pelos
ganhos que tiveram. Então é esse tipo de feedback que eu valorizo. Isso é muito importante quando
a gente pensa em mensuração. Mensurar o que? Nós estamos mensurando na avaliação o ganho, o pro-
cesso, ou seja, a tirada do lugar de conforto. Então nós estamos avaliando os resultados da violência
de sair do lugar de conforto, ou seja, daquele lugar potencialmente fossilizável.
CAMILA: Eu gostei muito de um aluno meu que falou no final do semestre que foi estranho
no começo… que no começo ele não gostou de não ter prova, mas que foi muito legal quando ele pôde
perceber não o que era ruim, as imperfeições, mas o que ele conseguiu fazer de diferente. Então eu acho
que realmente faz muito mais sentido olhar para o quanto eu andei, o que eu fiz de diferente, do que
ver aquilo como imperfeições, os meus defeitos, na minha língua etc., mas aquilo que eu consegui mu-
dar, fazer diferente, né?
A ideia da avaliação enquanto feedback é muito importante ao tomá-lo enquanto um di-
álogo com o aluno, no qual há um processo de desenvolvimento no encontro com o que não
conhecemos. Nós, professores, trazemos essa exterioridade ao aluno que, a partir desse contato,
se move para a aprendizagem. Da mesma forma, também somos movidos pela exterioridade
que vem do aluno até nós, e que deve sim modificar nosso ensino. Duboc (2019) fala sobre
a necessidade de uma avaliação como aprendizagem, que faz “jus à ideia mesma de movimento,
de dinamismo, de vida!” (DUBOC, 2019, p. 137). No final da palestra, falo sobre a possibilidade
de avaliar com engajamento e emoção, e acredito que o momento de feedback possa ser um
espaço para isso.
Porém, retomo o que disse anteriormente sobre o conceito de língua, uma das bases para
a avaliação enquanto desconforto violento. Mesmo através da prática do feedback, se os crité-

151
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

rios e pressupostos a partir dos quais trago essa exterioridade para o aluno forem as perspecti-
vas modernas e coloniais do monolinguismo, do falante nativo e da normatividade, a violência
se mantém. Por outro lado, se tomarmos por exemplo a atitude de ILF que explicitei anterior-
mente, meu feedback não estaria pautado em apontar os desvios na pronúncia e na estrutura,
mas sim em auxiliar o aluno a perceber seu processo de construção de sentidos. Talvez algu-
mas perguntas poderiam motivar esse feedback enquanto uma autoavaliação: Você está com-
preendendo/sendo compreendido? Como você pode observar isso? Quais são seus objetivos
com determinada construção de linguagem? Que recursos está utilizando para se comunicar?
Por isso a importância de questionarmos não só práticas, como também os preceitos de língua
e os objetivos avaliativos.
Podemos então retornar à palestra, a qual está se encaminhando para seu fim. Nesse mo-
mento, faço algumas considerações sobre como essas problematizações e possibilidades outras
na avaliação poderiam transformá-la em um espaço de desconforto produtivo.

Avaliação: uma arena de desconfortos produtivos

Eu iniciei a apresentação falando sobre a avaliação como essa arena de desconfortos violentos.
E eu acho que pensar numa avaliação otherwise não significa que o desconforto deixe de existir,
mas que ele vai ser um desconforto produtivo. E o que que isso significa? Eu trago aqui umas vo-
zes pra me ajudar nessa ideia. A professora Vanessa Andreotti fala sobre uma educação pro cultivo
da humanidade, e ela fala que é “uma educação que faça com que professores e aprendizes encontrem
conforto no desconforto das incertezas inerentes em viver a pluralidade da existência” (ANDREOTTI,
2013, p. 223). Quem pôde ouvir a professora Sharon Stein9, ela também falou sobre isso, sobre esse
convite de estar na complexidade e nas incertezas. No próprio Letramento Crítico, também a profes-
sora Clarissa Jordão traz essa ideia da “tentativa de preparar para a incerteza do futuro e do presente,
ensinando e aprendendo a “viver confortavelmente no desconforto” (OLIVEIRA, 2012).” (JORDÃO,
2013, p. 84).
Novamente faço uma pausa na transcriação da minha palestra para inserir outro mo-
mento de interação com o professor Lynn Mario, no qual tento deixar claro o que entendo
por desconforto produtivo. Conforme mencionei no início do capítulo, o desconforto é um
dos pontos mais importantes que desejo ressaltar, bem como o fato de que ele não deve deixar
de existir, mas sim se modificar:
LYNN MARIO: Eu me pergunto se o desconforto não faz parte do nosso processo de aprendiza-
gem enquanto crescimento. Crescimento no sentido de sair do lugar de onde nós estamos. Eu questiono
um pouco essa ideia de buscar o conforto no desconforto porque eu acho que o conforto nos mantém

9 Palestra do DELA do dia 22/09/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-HGOFmramyE. Acesso


em: 07 dez. 2022.

152
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

onde nós estamos. Porque nos acolhe. Nós precisamos de um estímulo, um impulso pra ir pra fren-
te. A ideia de problem solving por exemplo né, nós temos um problema diante, tem que resolver.
Se não tivéssemos problemas nós não teríamos que resolver nada. Então são as dificuldades e os nos-
sos problemas que apresentam as situações novas de aprendizagem e nos trazem experiências novas.
Então eu acredito que o desconforto é primordial para a aprendizagem. Pensem numa situação política
de opressão. Se a gente não tivesse desconforto, nós não resistiríamos. Existência é enfrentar a violên-
cia da opressão. Então precisamos desse desconforto, não se trata ao meu ver de tornar o desconforto
confortável, mas sim de aprender a usar esse desconforto de uma forma produtiva.
CAMILA: Concordo! Por isso que eu falei em desconforto produtivo porque, no início da mi-
nha carreira, quando eu via os alunos nessa tensão, eu achava que eu tinha que, enquanto professora,
apagar essas emoções... ele (o aluno) tem que estar se sentindo bem, tem que estar feliz, eu tinha essa
ilusão de que eu poderia fazer com que ele se sentisse de outra forma naquele momento. E quando
fiz algumas experimentações na avaliação, vi que são outros desconfortos. Continuam desconfortos,
mas outros. Por exemplo, o aluno não tem mais medo daquele dia da avaliação, mas não consegue lidar
com o colega com quem ele está fazendo um trabalho colaborativo: ‘ah, o meu colega não me ajuda’,
etc. Ou tem que apresentar e ainda fica nervoso... Então eu acho que o desconforto permanece sim,
e acho que o desconforto produtivo pode ser essa ideia de se mover mesmo, de fazer a gente se deslocar
realmente.
Acredito que o comentário do professor naquele momento complementa e expande a ideia
que eu tentei expor na minha fala. Primeiramente, conforme já mencionei no início, eu tive o de-
sejo de estudar sobre a avaliação justamente porque eu me sentia desconfortável com a discre-
pância entre teorias e práticas e com as emoções que meus alunos demonstravam. Em outras
palavras, o desconforto me moveu à ação. Segundo, estou buscando propor um movimento
que saia da avaliação enquanto desconforto violento para a possibilidade de um desconforto
produtivo, ou seja, não uma tentativa de ficar confortável, mas sim de trazer outras emoções
(menos silenciadoras e opressoras), reconhecendo e concordando com o professor ao afirmar
que os sentimentos desconfortáveis de incômodo e inquietação fazem parte do nosso pro-
cesso de aprendizagem. Volto então à minha fala do evento, que em seguida tratou justamente
de como eu estava pensando na possibilidade do desconforto produtivo:
E o que é esse desconforto produtivo na avaliação? Primeiro é ela se assumir nessas incertezas.
A avaliação deixa de ser essa coisa positivista e objetiva de respostas corretas, critérios que eu estabe-
leço previamente, que me dão essa confiança. Para o professor, é ele assumir que a avaliação precisa
ser feita localmente, que não há garantias nem conhecimentos fixos os quais eu vou poder avaliar e que
sejam universais, e assumir principalmente a subjetividade nesse processo. A subjetividade na avalia-
ção (MARTINEZ, 2014).
E pros alunos também há desconfortos. Eu trouxe aqui a fala de alunos meus no primeiro semes-
tre deste ano (2021), quando eu tentei avaliar de outra forma, trazer outras práticas:

153
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Figura 5 – Slide 15

Fonte: Arquivo pessoal da autora (2021).

Então por mais que tenha um desconforto, que o aluno esteja saindo da zona de conforto, ele sen-
te que aquilo faz um sentido, que desafia, enriquece o aprendizado. São outras emoções… Conversando
com o meu colega João Victor Schmicheck, que vai apresentar no segundo ciclo10, a gente estava falando
sobre essa ideia de avaliar de outras formas. A gente pensou na ideia de ler se lendo do professor Lynn
Mario, quando ele fala sobre essa necessidade de se questionar o tempo todo quando estamos lendo,
do porquê que lemos da forma que lemos, de onde vieram as nossas ideias:

[l]er se lendo, ou seja, ficar consciente o tempo inteiro de como eu estou lendo, como eu estou construin-
do o significado… e não achar que leitura é um processo transparente, o que eu leio é aquilo que está
escrito… Pensar sempre: por que entendi assim? Por que acho isso? De onde vieram as minhas ideias,
as minhas interpretações? (MENEZES DE SOUZA, 2011, p. 296).

A mesma coisa a gente pensa para a avaliação. Então esse avaliar se avaliando também é pos-
sível e necessário. Que é:

ficar consciente o tempo inteiro de como eu estou avaliando, como eu estou construindo meus objetivos
avaliativos (…) e não achar que a avaliação é um processo transparente, o que eu avalio é aquilo que é
válido (…) Pensar sempre: por que avaliei assim? Por que esse feedback? De onde vieram os meus
critérios, os meus instrumentos? (HAUS; SCHMICHECK 2022).

Então essa constante reflexividade também no ato de avaliar.

10 Palestra do DELA do dia 22/10/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Cf HAkvs3KJk. Acesso em:
07 dez. 2022.

154
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Para concluir, eu não trouxe considerações finais, eu trouxe perguntas finais, já que meu objetivo
não era responder nada, mas trazer mais questionamentos. Podemos ver no slide a seguir umas per-
guntas que ainda ficam, que ainda me perpassam sobre avaliação e todas essas ideias:

Figura 6 – Slide 35

Fonte: Arquivo pessoal da autora (2021).

Um ensino otherwise que questiona o conhecimento enquanto mensurável precisa de avaliação?


Precisa continuar com essa ideia de avaliar, se for enquanto esse sinônimo de mensurar? E se não for,
o que que ela é? Faz sentido pensar nela enquanto algo separado do ensino? É possível pensar em ava-
liar sem pressupor uma normatividade de referência, um conhecimento que seja escolhido como o de
referência? É possível pensar em avaliar para dialogar, naquele conceito mais expandido de diálogo?
É possível avaliar com emoção e engajamento? Essa questão surgiu de uma pequena e rápida conversa
com a professora Clarissa Jordão11, que me fez pensar nisso também. Avaliar com emoção e engaja-
mento… Como? O que significa isso?
Com essas perguntas, finalizei minha apresentação no evento do DELA. Na próxima par-
te do texto, trago a transcriação do momento após o término da fala, caracterizado pelo diálogo
com algumas perguntas do chat.

Interações e expansões: perguntas do chat

Ao final da minha palestra e das interações com o professor Lynn Mario, perguntas
do chat foram selecionadas pela monitora. Trago agora algumas dessas questões, juntamente
com a transcriação das minhas respostas no dia do evento.
11 Interação via WhatsApp, 2021.

155
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

PERGUNTA DO CHAT: “Você percebeu mudanças nas formas de avaliar durante o fe-
chamento das escolas, quando os professores tiveram que avaliar de maneira online? ”
CAMILA: Acho uma excelente pergunta e não sei se posso responder, porque eu sou professora
em curso de idiomas, eu não tenho essa vivência da escola no momento. Mas é claro, converso com mui-
tas professoras e percebo que é uma discussão que tem surgido. Critérios que estavam na sala de aula
não são possíveis online. Por exemplo, o aluno não pode mexer no celular, carteiras ficam enfileiradas,
esse tipo de coisa, como que faz isso no online? Então com certeza é um questionamento que surgiu,
e acredito que a distância vai provocar aí algumas questões.
Agora que tive mais tempo para refletir sobre tal questão, observo que a emergência
de trazer a avaliação para o ensino online abala justamente os preceitos da avaliação que são
reflexos do histórico positivista e industrial que comentei na minha palestra. A avaliação que se
coloca como uma forma de verificar conhecimentos externos aos alunos, memorizáveis e pré-
-estabelecidos, exige um certo “controle”. O aluno não pode consultar nenhum material e nem
conversar com seu colega, pois ele precisa provar que adquiriu individualmente aquele conhe-
cimento específico. Como aponta Duboc (2019):

é comum relacionarmos o ato avaliativo com rituais fortemente marcados por uma normati-
zação estabelecida nas seguintes imagens: alunos trabalhando individualmente; alunos senta-
dos enfileirados; proibição de consulta a livros e cadernos; proibição do uso de celular; tempo
de duração da prova estritamente controlado (DUBOC, 2019, p. 135).

A partir do momento em que o ensino online tira esse poder de “controle” que a sala de aula
presencial tem, como avaliar? A pandemia e o ensino remoto trouxeram inúmeras e imensurá-
veis tristezas, incertezas e consequências negativas, mas talvez possamos aprender ou mesmo
desaprender práticas com as quais estávamos acostumados ou até acomodados. Novamente
o desconforto, que foi gerado pela pressão de avaliar online, poderia nos mover para outros
olhares menos “controladores” e mais abertos a uma ideia de construção colaborativa ao invés
de verificação individual de conhecimento. Em minhas próprias práticas, juntamente com al-
guns colegas em meu contexto12, temos apostado em projetos, portfólios e diários para avaliar,
nos afastando de um desejo de verificar se alunos, de forma individual, têm apreendido conteú-
dos (geralmente, estruturas linguísticas) e focado mais no trabalho colaborativo, na negociação
e na construção multimodal de sentidos.
A pergunta que trago em seguida também se relaciona ao início da minha palestra, quan-
do falei dos preceitos que fundamentam a avaliação enquanto instrumento educacional:

12 Em Haus e Schmicheck (2022), trazemos reflexões a respeito de uma dessas práticas avaliativas que desenvolvemos
em nosso contexto de ensino de inglês online.

156
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

PERGUNTA DO CHAT: “Como mudar o foco do conceito “bem-sucedido”, de um tão


“colonial” (capitalista, meritocrático, autocelebratório e hierárquico), para um de satisfação pes-
soal e interativo?”
CAMILA: “Como” é sempre uma pergunta muito difícil, eu acho que não tem como dar respos-
tas sobre o que fazer. É uma lógica muito forte, essa coisa do bem-sucedido, a coisa da meritocracia,
que é o sistema que a gente tá inserido. Acho que é mais sobre: onde eu consigo não reproduzir isso?
O que eu consigo fazer no meu espaço? Eu acho que é um desconforto que, como o Lynn falou, nos move
a agir. Se a gente não está confortável com isso, acho que é um coletivo, precisamos pensar juntos
em como fazer isso. Na questão da avaliação é isso, fazer esses meus movimentos, esses que eu estou
fazendo de tentar avaliar de outra forma, eu estou tentando não reproduzir na minha sala de aula essa
lógica do sucesso, de quem é melhor, da competitividade. Fazendo avaliação de outra forma no meu
espaço eu tô tentando não reproduzir… acho que isso já é um pequeno passo.
LYNN MARIO: Posso dizer uma coisa? Em resposta a essa última pergunta, eu acho muito
importante, como a Camila já começou dizendo na fala dela: de onde eu estou falando? Eu acho que é
uma pergunta que nós como professores avaliadores deveríamos nos fazer quando nós estamos numa
ação avaliativa. Quem sou eu, qual é meu histórico, de onde eu estou falando, estou avaliando o quê.
Ao invés de simplesmente embarcar numa avaliação institucional de uma forma automatizada, repro-
duzindo assim todos os valores da instituição inconscientemente.
CAMILA: Sim, com certeza, eu acho que faz todo o sentido. Por isso essa ideia do avaliar
se avaliando que eu trouxe com meu colega João né, que é essa reflexividade constante sobre o que estou
fazendo, por que que eu estou avaliando desse jeito, o que me levou a isso, né?
Antes de comentar sobre a discussão acima, trago mais uma pergunta do chat que eu acre-
dito conversar com tais reflexões:
PERGUNTA DO CHAT: “Camila, reflexões muito importantes vc traz nesses tempos
de ressignificações de nossas práticas em educação linguística! Precisamos ser coerentes em nos-
sas práticas avaliativas, concorda?”
CAMILA: Sim, é aquele desconforto meu que eu falei, que eu queria não sentir, essa discre-
pância entre como eu tava pensando linguagem, ensino e como eu tinha que avaliar... Aquilo pra mim
não concordava, não fazia sentido e... Isso que me moveu a olhar pra avaliação. Eu lembro que eu tive
uma experiência em que eu agi de uma forma diferente na sala de aula, o jeito que eu ensinei, o jeito
que eu trouxe os conteúdos13. E depois eu apliquei a prova que eu tinha que aplicar e os alunos foram
todos muito mal [risos]. Porque a minha prática não tava correspondendo com a avaliação, podemos
até pensar naquela questão da validade da avaliação. Não tava correspondendo porque era uma prova
de fill the gaps, preencher as lacunas usando gramática fora de contexto, o que não tinha nada a ver
13 Eu trabalhei a partir de uma perspectiva de língua como discurso e prática social, também sob um viés de ILF
e translinguagem. Desse modo, busquei priorizar a comunicação como negociação e construção de sentidos, ao invés
de uma inteligibilidade baseada na língua enquanto um sistema fixo.

157
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

com o que eu fazia. Claro que naquele momento eu tive que escolher como agir, como fazer o feedback
da prova com os alunos, né? Então, com certeza essa coerência entre o que a gente tá falando de língua
e tudo mais tem que, tem que refletir na avaliação, não adianta falar tudo que a gente fala e chegar
na avaliação e... Por exemplo, num texto escrito eu sublinho o que o aluno escreveu e coloco: “influência
do português” e tiro nota. Então não, não condiz com tudo que eu tô pensando sobre língua, né? Então
eu acho que é preciso tentar conversar mais avaliação com a prática, com a perspectiva de língua…
Tanto a pergunta sobre como mudar o foco da avaliação quanto a questão de sermos
coerentes em nossas práticas reforçam a importância da ideia do avaliar se avaliando. Em um
movimento decolonial, e, portanto, local e situado, não posso fazer afirmações universais sobre
como devemos avaliar em todo e qualquer contexto. Entretanto, o que posso e desejo defen-
der é essa necessidade da reflexão constante, do questionar-nos sobre quais são os preceitos
que regem nossas práticas avaliativas, por que, de onde vieram, e quais as consequências e im-
plicações dos mesmos nas nossas salas de aula, nas vidas dos alunos e na sociedade ao nosso
redor. Com esse questionamento constante, é possível tentarmos responder à pergunta de como
mudar o foco na avaliação, de modo consciente e contextualizado. Ademais, podemos também
olhar para eventuais inconsistências e discrepâncias entre teorias sobre língua/ensino e a forma
com que vamos avaliar, reconhecendo a importância do fator validade e sua dimensão social
e política (SCARAMUCCI, 2011).
Seguimos com outra questão do chat, a qual considero muito relevante:
PERGUNTA DO CHAT: “Camila, qual é o seu entendimento sobre avaliação “amorosa”?
Sobre romantizar um processo tão dorsal do ensino-aprendizado. Será que exigir amor dos do-
centes, não é exigir demais?”
CAMILA: Depende muito do conceito de amor, né? O que a gente tá querendo dizer por amor
aqui. Se é essa questão do amor romântico, que a gente tem no discurso dominante… ou se talvez
uma ideia de amor... pensando aqui num Maturana por exemplo. Então é uma pergunta difícil de res-
ponder, e acho que eu não posso exigir nenhum tipo de reação específica do aluno. Acho que eu posso
ter as minhas expectativas, mas como ele vai passar por esse processo tá fora do meu controle.
Gostaria de desenvolver melhor dois aspectos que menciono acima. O primeiro diz res-
peito a qual conceito/definição de amor faria sentido, na minha opinião, evidenciar na sala
de aula. Não acredito que devemos pensar em avaliação amorosa se estivermos falando segun-
do o discurso dominante, ocidental e moderno, ou seja, a partir do sistema patriarcal e cristão
e da separação entre razão-emoção, corpo-mente. De acordo com Maturana (2002), emoções
são disposições para diferentes ações, e o amor seria aquele que “constitui as ações de aceitar
o outro como um legítimo outro na convivência. Portanto, amar é abrir um espaço de interações
recorrentes com o outro, no qual sua presença é legítima, sem exigências” (p. 67). Esse amor
de olhar para o aluno (e para si) enquanto um outro legítimo que tem saberes e ignorâncias,

158
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

se presente na sala de aula e no feedback, possibilitaria uma avaliação verdadeiramente for-


mativa e dialógica. hooks (1994) também fala de amor no ensino, o qual se reflete em permi-
tir manifestações de carinho e de anseio pelo crescimento intelectual e espiritual, sem temer
que emoções irão impedir a construção do conhecimento ou uma consideração objetiva de cada
aluno. Essa consideração objetiva na verdade até mesmo deixa de ser interessante, pois como
já comentei na fala do evento, precisamos reconhecer a impossibilidade de sermos neutros e as-
sumir a subjetividade na avaliação.
Por outro lado, o segundo aspecto que acredito ser relevante é o cuidado em não incorrer
em uma responsabilidade de controlar reações e emoções em sala de aula. Benesch (2012) traz
análises interessantes sobre expectativas a respeito dos professores. São tanto exigências de que
esse profissional esteja sempre feliz (no Brasil ouvimos o discurso de “lecionar por amor”, o que
romantiza a profissão e justifica a não valorização salarial) quanto de que mantenha seus alunos
também contentes e motivados. Essa acepção comum que a autora chama de trabalho emocio-
nal do professor está presente na minha própria narrativa, quando expliquei neste texto sobre
meu desejo inicial de ter certo “controle” sobre os sentimentos de meus alunos. Benesch (2012)
afirma que

teachers in this neoliberal age have been trained to simultaneously pathologize and love their
students [...]. Left out of this equation is any unforeseen, messy outpouring of strong untamed
emotions. In their place is the self-regulated role of teachers as “missionaries” whose job is
to love thinly and wisely (BENESCH, 2012, p. 116).

À vista disso, apesar de estar advogando por uma Pedagogia Engajada (hooks, 1994),
por uma avaliação de desconfortos produtivos, pelo diálogo com o aluno, pela possibilidade
de sentimentos que não sejam de exclusão e silenciamento, ressalto a importância de abraçar
todas as emoções e suas complexidades em sala de aula, sem criarmos ilusões de controle sobre
o que nós e nossos alunos devemos ou não sentir nos processos de ensino-aprendizagem.

O desconforto que me move a partir daqui

Para concluir este texto, trago outra questão que surgiu durante minha interação com o
professor convidado, a qual me trouxe mais desconforto e que, portanto, entendo que deve
me mover em direção a questionamentos, investigações e problematizações futuras (e aqui con-
vido àquelas e aqueles que também se sentirem desconfortáveis a entrar nesse movimento).
Ao transcriar o diálogo a seguir, lanço mão novamente da liberdade de criação que decidi assu-
mir, misturando falas que aconteceram após a minha palestra, mas também outras que vieram
depois da apresentação do professor Lynn Mario, que retomavam o mesmo assunto.

159
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

LYNN MARIO: A última coisa que eu queria comentar, você especificou a sua situação, a sua
área de pesquisa era em grupos de extensão, não é isso? Faz grande diferença se o ensino da língua
estrangeira for colocado como um objeto ou como disciplina. Como quando a gente fala nossas propos-
tas sobre inglês como educação linguística, nós estamos propondo uma disciplina educativa. Que não
é composta por elementos objetivamente quantificáveis. Nós estamos modificando atitudes. Quando
falamos de ensino de língua estrangeira como objeto, aquele inglês que está no livro, no livro texto X,
aquele inglês que representa toda gramática, nós estamos falando de dois tipos de avaliação diferentes.
Uma educação linguística, que tem mais a função de educar sobre o desconhecido, educar sobre o que
eu chamei da exterioridade, aquilo que está fora dos limites do conhecido nosso, isso pode ter uma
avaliação mais subjetiva, interativa, dialogada... enquanto, quando você ensina com o objetivo da aqui-
sição de um objeto, você pode usar até o termo transmissão de um objeto, aí a questão muda de figura,
não tem nada otherwise nesse tipo de sentido, né?
CAMILA: Eu ia perguntar pro professor… porque eu por exemplo, estou no contexto de centro
de línguas, então eu tenho o curso de inglês, o curso de português para estrangeiros, o curso de francês…
Como será vislumbrar outras possibilidades que não essa? A ideia de educação linguística acho que faz
muito sentido, né?
LYNN MARIO: Mas aí, Camila, eu diria o seguinte: Quando você tá nesse contexto, por exem-
plo, de extensão, no instituto de línguas, o seu objetivo não é educar ninguém. O seu objetivo é ensinar
língua. Então você pode coisificar, você está no meio descaradamente neoliberal, as pessoas que procu-
ram esse tipo de coisa são movidas por interesses neoliberais, querem comprar o objeto, se não estão sa-
tisfeitos com o objeto que você está vendendo eles vão pra escola do lado e assim vai. Isso é um fenôme-
no que não nos interessa muito, porque nós estamos falando aqui como educadores, né? A nossa função
é educar, então nossa função não é necessariamente ensinar língua pra ninguém, é educar. E como é que
podemos educar através do ensino de uma língua, sem necessariamente ensinar aquela língua.
CAMILA: É, mas interessante como tenho vontade de resistir mesmo dentro desse meu espaço,
eu tenho que ensinar língua objeto, mas eu não quero, eu quero fazer outra coisa [risos].
A diferença entre o ensino da língua inglesa como uma disciplina ou como um objeto
se faz extremamente relevante, uma vez que as implicações de se tomar um ou outro posicio-
namento são enormes. Alteram-se objetivos, abordagens, e é claro, a avaliação, como destaquei
em minha fala na palestra. O desconforto que senti nesse diálogo está no entendimento de que,
em ambientes como o meu contexto de ensino em centro de idiomas, não se pode questio-
nar os propósitos neoliberais. Pelo contrário, seria plausível e até necessário aceitar tais ideais
e assumir língua enquanto objeto. Consequentemente, institutos de língua não seriam um local
onde a pesquisa em educação linguística se fizesse proveitosa.
Não podemos negar, de forma alguma, o quanto a escola regular e os centros de lín-
guas são contextos distintos. São diferentes sujeitos, objetivos, condições, relações e processos.

160
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Ao olhar para centros de línguas, não devemos ignorar o seu caráter capitalista e neoliberal,
o seu papel enquanto uma das instituições que mais reproduzem ideais coloniais e imperialistas,
e a sua estrutura baseada na divisão entre línguas nomeadas. Entretanto, acredito que seja justa-
mente esse caráter colonial dos institutos de idiomas que deve nos mover a investigar, questio-
nar e problematizar as práticas ali presentes. Além disso, podemos nos perguntar: professores
nesses espaços são educadores? O que é ser um educador? O que é educar?
Sendo pesquisadora e professora de centros de línguas, eu me vejo como educadora.
Entendo a diferença de estar em uma sala de aula de escola regular, no que concerne a respon-
sabilidade na formação integral dos sujeitos. Mas acredito que meu papel vá além de transmitir
conhecimentos sobre língua (enquanto objeto ou não). Seguindo uma perspectiva freireana,
observo meu dever de ser uma desafiadora, de “ensinar a pensar certo” (FREIRE, 1996, p. 14),
de “reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão” (FREIRE,
1996, p. 13), mesmo trabalhando com adultos. Afinal, nossa formação enquanto sujeitos críticos
nunca tem fim, não é mesmo?
Para finalizar, levanto uma série de questionamentos: é possível pensar em alguma for-
ma de educação linguística em centros de língua? Podemos resistir a certos discursos e pensar
no ensino através da complexidade, criticidade e decolonialidade? Posso estar em uma aula
de inglês, enquanto essa língua nomeada, mas buscar ir além de uma simples transmissão de um
objeto? Mesmo com educandos adultos, é importante pensar na formação integral do sujeito?
Quais são os objetivos dos meus alunos nesses espaços? Enquanto professora, devo assumir
essas expectativas e reproduzi-las? Ou posso me ver enquanto educadora e abrir espaços para
questionamentos sobre o que é língua, sobre dinâmicas de relações de poder, sobre como se in-
serir em certos espaços (como reuniões, apresentações, negócios em língua inglesa) desenvol-
vendo minha comunicação para além da pura aquisição de um idioma? Uma avaliação formati-
va, crítica e democrática faz sentido nesse contexto?
Com relação a esses questionamentos, tenho presenciado algumas práticas e publicações
minhas e de meus colegas (HAUS; SCHMICHECK, 2022; SCHMICHECK; SILVA, 2021;
SCHMICHECK; LESSKIU, 2020; GALOR, 2020; ALBUQUERQUE; HAUS, 2020; GALOR;
HAUS, 2019). Observo professores que problematizam o conceito de língua enquanto objeto,
posicionam-se de outras formas, desenvolvem abordagens críticas e resistem a discursos impe-
rialistas/preconceituosos em salas de aula, ainda que as brechas (DUBOC, 2012) em centros
de línguas sejam bastante escassas e estreitas. De qualquer forma, espero que esse descon-
forto nos mova a (re)descobrir o lugar dos professores de institutos de idiomas a partir da e
na Linguística Aplicada, e que possamos vislumbrar outras práticas avaliativas que possibilitem,
mesmo dentro de um contexto tão neoliberal, outras formas de ser, conhecer, agir e sentir.

161
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Referências

ALBUQUERQUE, M. L. V; HAUS, C. Decolonialidade e inglês como língua franca: diálogos


com professores brasileiros. Cadernos do IL, Estudos Linguísticos, n. 61, p. 181-208, set. 2020.
ANDREOTTI, V. Conhecimento, Escolarização, Currículo e a Vontade de “endireitar” a Sociedade
através da Educação. Revista Teias, v. 14, n. 33, p. 215-227, 2013.
BOURDIEU, P. Linguagem e Poder Simbólico. In: BOURDIEU, P. A Economia das Trocas Linguísticas.
São Paulo: EDUSP, 1996. p 79-126.
CANAGARAJAH, S. Translingual Practice: Global Englishes and Cosmopolitan Relations. Nova York:
Routledge, 2013.
COPE, B; KALANTZIS, M. A Pedagogy of Multiliteracies: Learning by Design. Nova York: Palgrave
Macmillan. 2015.
DUBOC, A. P. M. A Questão da Avaliação da Aprendizagem de Língua Inglesa Segundo as Teorias
de Letramentos. 181 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
DUBOC, A. P. M. Atitude Curricular: Letramentos Críticos nas Brechas da Formação de Professores
de Inglês. 258 f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
DUBOC, A. P. M. Avaliação como aprendizagem e a educação linguística crítica. In: FERRAZ, D. M.;
KAWACHI-FURLAN, C. J. (eds.). Bate-papo com educadores linguísticos: letramentos, formação
docente e criticidade. São Paulo: Pimenta Cultural, 2019. p. 129–142.
DUBOC, A. P; SIQUEIRA, S. ELF feito no Brasil: expanding theoretical notions, reframing educational
policies. Status Quaestions, n. 19, p. 297 – 331, 2020.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 25ª ed. São Paulo: Paz e
Terra, Coleção Leitura, 1996.
GALOR, A. L. Crenças, objetivos e usos de inglês de alunos do Celin-UFPR sob uma perspectiva
do Inglês como Língua Franca. 2020, 180 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pós-Graduação
em Letras, Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná. Paraná, 2020.
GALOR, A. L.; HAUS, C. O ensino de Inglês como Língua Franca: um relato de práticas. PERcursos
Linguísticos, v. 9, n. 22, p. 254-274, 2019.
GARCÍA, O.; FLORES, N.; SELTZER, K.; WEI, L.; OTHEGUY, R.; ROSA, J. Rejecting abyssal thinking
in the language and education of racialized bilinguals: A manifesto. Critical Inquiry in Language
Studies, 2021. DOI: 10.1080/15427587.2021.1935957.
GROSFOGUEL, R. Racismo/sexismo epistémico, universidades occidentalizadas y los cuatro
genocídios/epistemicidios del largo siglo XVI. Tabula Rasa, Bogotá, n. 19, p. 31-58, jul-dez, 2013.
HAUS, C. Is it a test of marking ‘x’? Identificando e interrogando a colonialidade na avaliação no ensino
de inglês. Caminhos em Linguística Aplicada, Taubaté, SP. v. 25, n. 2, p. 144-164, 2021.

162
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

HAUS, C; SCHMICHECK, J. V; Learning for or learning with: Avaliar se avaliando for an English
Language Assessment otherwise. Íkala, Revista de Lenguaje y Cultura, v. 7, n. 3, p. 764-782, Medellín,
Colombia, 2022.
HOOKS, B. Teaching to Transgress: Education as the Practice of Freedom. ed. 1, NY/London,
Routledge, 1994.
JORDÃO, C. M. Abordagem Comunicativa, Pedagogia Crítica e Letramento Crítico: farinhas do mesmo
saco? In: ROCHA, C. H; MACIEL, R. F. Língua Estrangeira e Formação Cidadã: Por entre Discursos
e Práticas. Coleção: Novas Perspectivas em Linguística Aplicada, v. 33. São Paulo: Pontes Editores, 2013.
MAKONI, S; PENNYCOOK, A. Disinventing and Reconstituting Languages. In: MAKONI, S;
PENNYCOOK, A. (ed). Disinventing and Reconstituting Languages. Multilingual Matters Ltd, 2007.
p. 1 – 37.
MALDONADO-TORRES, N. Sobre la colonialidad del sur: contribuiciones al desarollo de un concepto.
In: CASTRO-GOMÉZ, S; GROSFOGUEL, R. (org). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad
epistémica más alla del capitalismo global. Bogotá: siglo del Hombre Editores, Universidad Central,
Instituto de Ciencias Sociales Comtemporaneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar,
2007. p. 127-168.
MARTINEZ, J. Z. Uma experiência autoavaliativa no NAP-UFPR: Práticas de avaliação ressignificadas.
In: RETORTA, M. S; MULIK, K. B. (orgs). Avaliação no Ensino Aprendizagem de Línguas
Estrangeiras: Diálogos, Pesquisas e Reflexões. Campinas: Pontes Editores, 2014. p. 227 – 243.
MATURANA, H. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002.
MENEZES DE SOUZA, L. M. T. O professor de inglês e os letramentos do século XXI: métodos
ou ética? In: JORDÃO, C. M; MARTINEZ, J. Z; HALU, R. C. (orgs). Formação “desformatada”
práticas com professores de língua inglesa. Novas Perspectivas em Linguística Aplicada. v. 15. Pontes
Editores: 2011. p. 279 – 303.
MENEZES DE SOUZA, L. M. T. Glocal Languages, coloniality and globalization from below. In:
GUILHERME, M; SOUZA, L. M. T. M. Glocal Languages and Critical Intercultural Awareness –
The South answers back. 1. ed. Nova York: Routledge, 2019. p. 17-41.
MENEZES DE SOUZA, L. M. T; MARTINEZ, J.Z; DINIZ DE FIGUEIREDO, E. H. “Eu só posso
me responsabilizar pelas minhas leituras, não pelas teorias que eu cito”: entrevista com Lynn Mario
Trindade Menezes de Souza (USP). Revista X: Dossiê Especial FICLLA, Curitiba, v. 14, n. 5, p. 05-
21, 2019.
MENEZES DE SOUZA, L. M. T; DUBOC, A. P. M. De-universalizing the decolonial: between
parentheses and falling skies. Gragoatá, v. 26, n. 56, 2021, p. 876–911.
MIGNOLO, W. Local histories/global designs: coloniality, subaltern knowledges, and border thinking.
Princeton: Princeton University Press, 2000.

163
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

MONTE MÓR, W. Sociedade da Escrita e Sociedade Digital: Línguas e Linguagens em Revisão. In:
TAKAKI, N. H; MONTE MOR, W. (orgs). Construções de Sentido e Letramento Digital Crítico
na Área de Línguas/Linguagens. Campinas: Ed. Pontes, 2017. p. 267-286.
MONTE MÓR, W. Letramentos Críticos e Expansão de Perspectivas: Diálogo sobre Práticas. In:
JORDÃO, C. M; MARTINEZ, J. Z; MONTE MOR, W. Letramentos em Prática na Formação Inicial
de Professores de Inglês. Campinas: Ed. Pontes, 2018. p 315-335.
ROSA, J; FLORES, N. Unsettling race and language: Toward a raciolinguistics perspective. Language
in Society, v. 46, n. 5, p. 621–647, 2017.
SCARAMUCCI, M. V. R. Validade e conseqüências sociais das avaliações em contextos de ensino
de línguas. L I N G VA R V M A R E N A, v. 2, p. 103–120, 2011.
SCHMICHECK, J. V; LESSKIU, M. C. Entre seguir e quebrar paradigmas no ensino de idiomas:
um relato de experiência na atividade docente do Celin UFPR. Revista X, v. 15, n. 7, p. 684-708, 2020.
SCHMICHECK, J. V.; SILVA, A. B. Drawing the s(ELF): exploring individual repertories through
autobiographical illustrations within the English as a Lingua Franca perspective. Revista X, v. 16, n. 2,
p. 409-436, 2021.
SHOHAMY, E. ELF and critical language testing. In: JENKINS, J.; BAKER, W.; DEWEY, M. (ed).
The Routledge handbook of English as a Lingua Franca. 1 ed. Nova York: Routledge, 2018. p. 583–593.
SILVA, J. E. Colaboração e formação continuada de professoras: a pedagogia do encontro. 372 f. Tese
(Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2021.

164
DECOLONIAL: SER, ESTAR OU FAZER?1

Lynn Mario Menezes de Souza


Universidade de São Paulo

Agradeço, primeiro, à organização por mais essa oportunidade de compartilhar ideias,


trocar reflexões. Continuarei falando sobre a discussão decolonial e espero que não fique re-
petindo o que eu falei antes, mas eu estou constantemente aprendendo com isso. Eu coloquei
essa abelhinha no meu primeiro slide (slide 1) para acompanhar o meu título justamente para
representar o movimento que é preciso existir. Primeiro, a abelhinha precisa voar, precisa viver,
está atualmente no planeta como um dos serzinhos mais ameaçados. Sabemos que, sem essa
abelha, a gente não poliniza várias coisas, a gente pode ficar sem alimentos por vários ciclos
e redes da natureza. Então, é essa a metáfora que queria estabelecer para essas reflexões de hoje.
Mas eu queria antes começar destacando de onde eu estou falando. Com isso, eu quero
dizer de que local eu estou falando e de que história, porque falo contra a universalização que,
para mim, é o tema principal de todo o pensamento decolonial, contra a universalização signi-
fica também ser contra a individualização. O decolonial surge como uma crítica do marxismo
anterior que enfatizou só a homogeneidade das lutas de classes para algo muito mais complexo,
fazendo as interseccionalidades todas, o que não significa que caímos com o fim do privilégio
do grupo da classe social. Isso não significa que voltamos para a armadilha do pensamento libe-
ral do indivíduo sem amarras sociais.

Slide 1

Fonte: O autor.

1 Transcrição da fala realizada no primeiro ciclo do evento Decolonialidade e Linguística Aplicada.

165
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Falando do Brasil, não dá para universalizar e o homogeneizar o colonizado, o nativo


de Fanon. No Brasil, o efeito derradeiro e persistente da colonização que é a colonialidade,
como dizem os teóricos, é a injustiça que a população continua sofrendo. Falo da injustiça
em um aspecto específico no Brasil. Não são nativos cujas terras foram invadidas com os índios.
Não são brancos pobres que se veem como nativos da terra e, portanto, colonizados. Estou
falando aqui dos negros, dos afro-brasileiros que foram sequestrados e afastados de seus locais
de origem. Nem terras possuem para serem invadidas; não são descendentes de imigrantes,
como boa parte da população branca pobre. São descendentes de seres humanos sequestrados,
coisificados para gerar lucro, que tiveram grandes dificuldades para sobreviver diante das difi-
culdades e crueldades da travessia do Atlântico.
A escravização foi abolida, sim, mas como crime genocida contra os seres humanos nunca
houve reparação. Não afetou o alegado humanismo das humanidades nas academias brasileiras,
uma vez que o continuamos ignorando. Hoje, séculos depois, essa população negra, em sua
grande parte, continua marginalizada apesar de formar 50% da população brasileira ou mais.
Representa, em 2019, segundo os dados do IBGE, 60,7% da população encarcerada no Brasil;
os negros são vítimas em 75% dos casos de morte em ações policiais; a chance de um jovem ne-
gro ser vítima de homicídio no Brasil é duas vezes e meia maior do que da de um jovem branco.
É desse local, desse contexto que eu estou falando e a partir de onde eu penso o decolonial. E,
com isso, eu faço uma ponte com apresentação anterior, da pesquisadora Camila Haus, que fa-
lou na violência e no desconforto, uma vez que acho que são dois elementos muito importantes
que eu pretendo discutir aqui também.
Enfim, eu não vou individualizar aqui as teorias decoloniais porque pressuponho que mui-
tos de vocês já as conhecem; eu mesmo pessoalmente já falei sobre algumas delas em falas an-
teriores. Estou agrupando aqui teorias decoloniais e teorias das epistemologias do sul (slide
2). No momento, não me interessa separar e apontar as especificidades de cada uma, mas sim
alguns dos nomes desses pensadores, tais como Mignolo, Quijano, Grosfoguel, Dussel (se pen-
samos na América do Sul), Santos de Portugal; Mbembe, Fanon, Ngugi da África (Fanon escre-
vendo a partir da África, mas sendo antilhano).
As teorias não são homogêneas e nem universais. Apontam para vários aspectos, dos quais
destacarei dois para essa fala: aspectos analíticos e aspectos programáticos. Os aspectos analíti-
cos, que são os aspectos conceituais, que remetem ao “ser” e “estar” do meu título. Senão, vamos
pensar decolonialidade como ser ou estar, ou decolonialidade como “fazer”. Esse é um aspecto
programático das teorias decoloniais que são aquelas teorias que propõem planos de ações,
o fazer. Então, há teorias que privilegiam a análise e há teorias que propõem planos de ação.
Nós precisamos, como estudiosos da decolonialidade, levar isso em conta; senão, ouvimos mui-
to sobre “fulano é decolonial, o ensino é decolonial, o currículo é decolonial, a geografia deco-

166
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

lonial...”. Afinal, é possível ser decolonial ou decolonial implica em ações e não só em análises
e descrições?
Primeiro, vamos ver os aspectos analíticos que enfatizam o ser colonial e o estar decolo-
nial. De forma geral, todas essas teorias que eu cito, esses e outros pensadores, criticam a uni-
versalidade dos saberes como produto da modernidade europeia, identificam essa modernidade
europeia como produto da colonização. Então, a colonização veio primeiro e a modernida-
de vem a seguir, como resultado da colonização. Identificam a colonização não apenas como
um fato do passado, mas como um fator principal pela imposição da Europa e sua modalidade
na universalidade dos seus valores. Eu falo que a colonização não é apenas um pacto do passa-
do, porque, para muitos pensadores críticos europeus – aqui eu falo de pessoas como Michel
Foucault, Jacques Derrida etc. –, todos eles fazem o mesmo tipo de teoria crítica, criticando,
por isso, a desigualdade e injustiça, mas não criticam a colonização porque, do ponto de vista
de europeus inseridos na modernidade europeia, a colonização é um fato passado para eles.
E, para nós, a colonização continua presente através dos seus efeitos agrupados sobre o termo
colonialidade. Os colonizados não são apenas os dominados e os excluídos: são a razão de ser
da riqueza e do poder e da imagem de superioridade dos europeus. É como se a colonização
não pudesse ser vista simplesmente como um fato do passado, que já passou. Os colonizados
são, portanto, participantes ativos da modernidade europeia, embora relegados à invisibilidade
e à não-existência.

Slide 2

Fonte: o autor.

Então, vamos observar os aspectos programáticos da modernidade (slide 3), isto é, os que
propõem planos de ação. Não se trata apenas de se opor à modernidade e sim também ter re-
conhecidos o papel dos colonizados e a sua participação ativa na modernidade europeia e na

167
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

geração de riquezas. Essa é uma ideia basicamente de Dussel ao dizer que nós estamos na exte-
rioridade da modernidade eurocêntrica (exterioridade no sentido de que eles não nos conside-
ram, não tomam conhecimento da nossa existência). Dussel utiliza o termo transmoderno para
dizer que nós, como exterioridade da modernidade europeia, não só ajudamos a gerar os lucros
e a riqueza que produziu a modernidade europeia, mas continuamos ajudando nessa geração
das riquezas do norte global. Nós fazemos parte dessa modernidade europeia, embora o nosso
papel nessa modernidade não seja reconhecido. A modernidade nos afeta de forma diferentes,
ou seja, nós temos outros tipos de modernidade.

Slide 3

Fonte: o autor.

Como a colonialidade, tal como dito por Mignolo, é o lado sombrio da modernidade,
é imperativo como plano de ação visar à diminuição dos efeitos da colonialidade. Não basta
apontar a colonialidade em tudo: precisamos trabalhar para diminuir seus efeitos. Este é o as-
pecto programático, este é o aspecto do fazer decolonial. Da mesma forma em que a coloniali-
dade discrimina seres e não-seres, para Boaventura de Sousa Santos a linha abissal tem função
semelhante. Como a colonialidade, seus efeitos também precisam ser interrompidos para que a
ecologia de saberes pluriversal seja liberada/des-invisibilizada.
O que fez a modernidade/colonialidade? A imposição de uma universalização do pensa-
mento, dos saberes e das epistemologias eurocêntricas relegou à sombra todos os outros saberes
existentes. O plano de ação decolonial é trazer à tona esses outros saberes que foram inviabi-
lizados pela decolonialidade, foram jogados para o outro lado da linha abissal. Essas outras
modernidades, outras epistemologias, outros saberes dão origem ao que Boaventura de Sousa
Santos chama de ecologia de saberes (o que outros pensadores decoloniais irão chamar de plu-
riversalidade, onde outros mundos são possíveis).

168
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

O fazer decolonial é justamente isso: é não só reclamar, falar mal da colonialidade,


mas contribuir para que esses outros saberes apareçam. Um dos aspectos metodológicos do as-
pecto analítico (slide 4), que eu já tenho falado em outros momentos, é o que eu chamaria
de etapas de uma pedagogia decolonial, a pedagogia não só no sentido de querer ensinar um de-
terminado conteúdo no ambiente escolar acadêmico, mas uma pedagogia no sentido de ensinar
sobre, pensar sobre a problemática decolonial. São três etapas: 1) identificar a colonialidade; 2)
interrogar a colonialidade; e 3) interromper a colonialidade.

Slide 4

Fonte: o autor.

Muitas vezes, ficamos só nas primeiras duas etapas. Mais vezes ainda ficamos só na eta-
pa de identificar. Interrogar a colonialidade é problematizar, desnaturalizar essa colonialidade.
Muitas vezes também, quando a gente fala em crítica, acabamos simplesmente interrogando,
ou seja, desnaturalizando a colonialidade. Mas, de fato, não mudamos nada. O que precisamos
para um fazer decolonial é interromper essa colonialidade. Mas precisamos lembrar que a co-
lonialidade, por ser um processo histórico contínuo, não é suscetível a nenhuma interrupção
imediata ou extinção imediata. A colonialidade é um processo que vem lá de longe, tão interco-
nectada com o capitalismo que não somos nós, hoje, que vamos conseguir interromper a colo-
nialidade de uma vez.
O que podemos fazer, sim, é interromper, diminuir e amenizar os seus efeitos, lembrando
que se trata de um trabalho contínuo. Levando isso em conta, só é possível estar e não ser deco-
lonial. Se nós somos decoloniais, então, isso poderia dar a impressão de que acabou a colonia-
lidade. Estamos decoloniais no sentido de que é um processo contínuo, porém, não basta ficar
no analítico, precisamos de ação.

169
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Um aspecto imprescindível do analítico e que é essencial para o programático é o conceito


de loci de enunciação (slide 5), que a gente tem falado sobre isso quando comentamos, de forma
geral, sobre o decolonial. Mas, aqui, quando eu estou chamando a atenção para a agentividade
para interromper, diminuir e amenizar os efeitos da colonialidade, é imprescindível voltar a esse
conceito de loci de enunciação.

Slide 5

Fonte: o autor.

Como se sabe, Grosfoguel (2007), Boaventura de Sousa Santos (2010; 2018), Castro
Gómez (2007) e outros pensadores, para todos eles, a universalidade colonial resulta da se-
paração de dizeres e enunciados do seu locutor. Quando separamos os dizeres do seu locutor,
estamos também separando os dizeres do seu contexto de enunciação. Isso significa que esses
dizeres ficam sem origem marcada e ganham, aparentemente, é uma ilusão de ótica, mas aca-
bam ganhando, uma vez que isso já foi naturalizado, um valor irrestrito, universal e abstrato.
A ciência moderna europeia já ganhou o status de ser a única forma de ciência do mundo, como
se não existissem ciências e outras culturas em outros continentes. Então, por que isso aconte-
ceu? Justamente por esse desligamento dos dizeres, dos saberes produzidos, dos seus locutores
ou produtores e contexto de origem. Para interromper a colonialidade e passar do aspecto ana-
lítico (ser/estar) para o programático (fazer), Grosfoguel (2007) propôs o conceito de corpo-
-política (Mignolo também fala sobre isso a partir da ideia de body politics). Esse corpo-política
identifica o corpo que produz os saberes e os dizeres; trata-se, assim, de recuperar o corpo
escondido, invisibilizado por trás dos saberes e dizeres coloniais.
Boaventura de Sousa Santos fala disso ao propor a des-universalização da globalização.
Esta é um grande mito, já que nada mais é do que a universalização, ou seja, a transmissão
para além das fronteiras de um local para outros locais. A globalização é um processo local,

170
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

a universalização do local de alguns para cima dos locais de todos os outros. A globalização
é um fenômeno essencialmente local que afeta outros locais. Esse foi o gesto de Boaventura
de Sousa Santos ao dizer que precisamos localizar e identificar o lócus de enunciação da glo-
balização como um fenômeno local. Eu já propus em outros textos meus o conceito de tra-
zer o corpo de volta, de trazer a identificação do locutor e do produtor de saberes. A gente
usa teorias sem levar em conta o fato de que – eu mesmo, ao trazer para o diálogo pensadores
como Foucault e Derrida, por exemplo – são intelectuais europeus. Eles não pensam a coloni-
zação como nós pensamos justamente porque a colonização não os afeta, eles são beneficiados,
são aqueles que receberam os benefícios da colonização e nós não. Trazer o corpo de volta
é muito importante; portanto, não é possível embarcar no aspecto programático, em um plano
de ação ou fazer decolonial, sem situar de onde se fala.
Gostaria de comparar um pouco esse decolonial analítico (slide 6), que foca a análise,
com o decolonial programático, que foca planos de ação, enfatizando as complexidades da cor-
po-política. Grosfoguel (2007) distingue lócus social e lócus epistêmico ao dizer que lócus social
é, por exemplo, a classe social a qual você entende o grupo de gênero a qual você pertence; lócus
epistêmico é o grupo que produz o saber que você mais utiliza. Dessa forma, o saber que de-
terminado falante utiliza não aponta conexão necessária entre o lócus social e lócus epistêmico.
Eu posso ser de uma classe social dominante e acompanhar o lócus epistêmico de justiça social
contra a desigualdade; eu posso ser uma mulher, usando discursos patriarcais contra outras mu-
lheres. Uma primeira complexidade quando pensamos em lócus de fala e local de enunciação
é separar lócus social de lócus epistêmico.
Segundo aspecto: separar o conceito de lócus coletivo do lócus individual. O lócus coletivo
é um pertencimento a um grupo, como classe social, gênero, raça etc., que está implícito no item
citado anteriormente. O lócus individual se destaca do lócus coletivo, sem ser totalmente indi-
vidual. Isso porque nós partimos do conceito do indivíduo enquanto sujeito social, constituído
por discursos sociais. O indivíduo tem apenas aparência de indivíduo, mas ele é constituído
por discursos sociais. Quando falamos em lócus coletivo, por exemplo nas teorias de Bourdieu,
quando ele fala em habitus, ele está supondo que todos que pertencem a um determinado grupo
social tendem a pensar, e fazer, e falar com, da mesma forma. Isso também é o que marca o pen-
samento inicialmente em Freire, quando Freire se referia, por exemplo, às pessoas dos grupos
sociais marginalizados, como o pensamento delas está muito ligado ao concreto e não ao abstra-
to. Nós, professores, supostamente pessoas com pensamentos mais sofisticados, privilegiados,
nós precisamos libertá-los dessa possibilidade de só pensar de uma determinada forma ligada
ao concreto. Nós que precisamos incentivá-los a sair do senso comum e pensar de uma for-
ma mais rigorosamente crítica. O que esses pensadores estão dizendo aqui? Todo grupo social
é homogêneo. Se você é mulher, você é igual a todas as mulheres; se você é negro, você é igual
a todos os negros; se você é de classe X, você é igual a todos os outros de classe X. Isso a gente

171
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

não aceita mais hoje em dia. Herdamos esse pensamento como Bourdieu herdou o conceito
de habitus dele, justamente do pensamento ortodoxo marxista em classe social.

Slide 6

Fonte: o autor.

Enfim, ao trazer o corpo de volta, precisamos lembrar algumas coisas desse corpo.
Primeiro, que o corpo ocupa um espaço, que é localidade; e o corpo tem história, nasceu, cres-
ceu, amadureceu. O corpo foi atravessado pelo tempo, não só tem história, continua sendo atra-
vessado pelo tempo. Se todo o espaço é atravessado pelo tempo, isso significa também que todo
o espaço que constitui um determinado sujeito não é um espaço vazio, é um espaço atravessado
por discursos vários: discursos de classe, de gênero, de raça, de profissão. Enfim, todo espaço
é atravessado por discursos vários que constituem cada um de nós como um sujeito locutor.
O tempo faz com que esses discursos se contaminem e se transformem. Esses discursos correm
paralelos uns aos outros, simultaneamente nos afetam. Mas, em determinados momentos, po-
dem ocorrer curtos-circuitos e esses discursos podem se contaminar.
A maneira em que esses discursos se contaminam em mim, por exemplo, pode ser dife-
rente das maneiras que esses discursos (ainda que sejam os mesmos) contaminam você. Essa
contaminação leva a transformações, os efeitos desses discursos sobre os sujeitos. Além disso,
os discursos, ao longo do tempo, mudam. Cada discurso muda ao longo do tempo e os discursos
que correm paralelos podem se contaminar também ao longo do tempo. Como isso tudo ocorre
de formas diferentes em sujeitos diferentes, isso produz loci de enunciação individuais, porém
situados. Não loci de enunciação totalmente individuais, já que continuamos sendo sujeitos so-
ciais. Portanto, o lócus epistêmico, como o lócus social, predispõe, mas não determina o sujeito.
Quando Freire (2011) diz, por exemplo, “por que pensam e como pensam”, ao promo-
ver os grupos de leitura e de cultura para descobrir quais eram as palavras ou conceitos mais

172
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

importantes para determinar o grupo, para que em cima disso fosse possível construir os ma-
teriais pedagógicos, o objetivo era ver o que pensam, por que pensam, como é que pensam,
para poder modificar esse pensamento. A questão é que ele enfatizava a coletividade de sujeitos
como se não tivesse agentes individuais, para modificarem o seu pensamento sem a intervenção
do professor ou da alfabetização. Imaginem, portanto, como essa perspectiva pode se revelar
sufocante.
Foi isso o que me levou a pensar em um letramento crítico: quando eu falo em “ler se len-
do”, a pergunta muda de figura, não é mais “por que pensam como pensam”, como se a plura-
lidade dos membros de um grupo pensasse de forma igual. Eu individualizei a pergunta: “por
que eu penso o que penso?”. Isso me traz a minha agentividade de volta, porque é a resposta
dessa pergunta, “por que leio o que leio”, que vai me obrigar a refletir sobre os discursos que me
constituem. Refletindo sobre os discursos que me constituem, posso transformar os efeitos des-
ses discursos sobre a minha pessoa e, com isso, esses discursos deixam de ser determinantes:
aí, se transformam.
Enfim, o fazer decolonial, que passa do analítico para o programático, pode promover
esse tipo de ação, contribuindo para mudanças nos loci de sujeitos colonizados. E, aqui, nesse
diagrama apresentado (slide 7), temos dois sujeitos, os dois eu. Faço questão de não colocar o eu
e o outro, porque o outro não é um sujeito, o outro é uma coisa (o conceito do outro é o sujei-
to coisificado, cuja agentividade é negada). A partir desse diagrama, assinalo que no encontro
qualquer, nós temos dois eu. Cada eu é constituído por esses vários discursos que aqui eu sim-
plifico didaticamente em termos de gênero, classe social, raça, profissão, porque será muito
mais complexo que isso. Esses discursos constituem a subjetividade do sujeito, do eu. É bom
lembrar que temos por trás desse discurso a história. Então, aqui vocês podem notar a partir
desses retângulos azuis, um está à esquerda e o outro está à direita, o aspecto de história e o
aspecto de tempo. O tempo vem cronologicamente do passado para o presente, quando a gente
reflete sobre um presente, a gente pode inverter os efeitos do tempo para o sentido contrário,
do presente para o passado. Mas o tempo também tem esse aspecto de aqui e agora, o aspecto
sincrônico. E, nesse aspecto sincrônico, várias coisas também podem ocorrer, não é só através
do aspecto diacrônico.
O que pode ocorrer? Entre cada balão dos discursos sociais que constituem o sujeito,
vocês podem observar duas flechas. Pode haver essa contaminação entre os discursos que com-
põem o sujeito. Quando esse sujeito diz alguma coisa, representado por essa flecha que parece
um relâmpago no meio do diagrama, esse dizer ou conjunto de dizeres, produzido por um su-
jeito que é esse eu, tanto de um lado quanto do outro, pode ter significados diferentes, porque
esses dizeres são formulados por toda essa história de discursos que constituem o seu jeito
e toda a dinâmica de contaminação ou movimentos de transformações e mudanças históricas.
Por isso é que nós não podemos falar em verdades, como discutir verdades, assim como discutir
o formato desse relâmpago do meio, sem saber quem está falando, de onde está falando. Essa é a
importância do lócus de enunciação epistêmico.
173
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Slide 7

Fonte: o autor.

Na caixa verde, eu chamo de corpo-política, trazendo o corpo de volta. E aqui, mencio-


no o conceito delinking, que vem do Quijano, popularizado pelo Mignolo (2007), entenden-
do o delinking como o processo de desnaturalização dos efeitos da colonialidade sobre nós.
Mas esse delinking pode ocorrer em níveis complexos. Cada eu pode simplesmente desnaturali-
zar um discurso que o constrói, por exemplo: o meu discurso de gênero, que foi pela minha ge-
ração hiperpatriarcal, eu posso desnaturalizar esse discurso e, portanto, torná-lo objeto de críti-
ca de reflexão. Dessa forma, eu promovi um delinking com esse discurso; mas também eu posso
promover um delinking entre um discurso que me constitui e sua história. Eu posso dizer que eu
aceito que eu vivo, como diria Butler, eu ajo, eu performatizo um determinado discurso de gê-
nero, mas eu me desvinculo de sua história e de todos os valores que estavam em sua história.
Pode haver esse delinking tanto em um aspecto cronológico, quanto um delinking em termos
de desnaturalização, portanto, um quase abandono de um discurso por completo.
Aqui, eu queria resgatar o que eu falei do lugar de onde falo logo no início, sobre o aspecto
do racismo do negro brasileiro. Nós, que falamos tanto sobre o decolonial nas nossas acade-
mias brasileiras, nós temos medo de falar do racismo partindo da premissa de que “eu não sou
negro, portanto não me atinge, não tem nada a ver comigo”. Tem sim. Você pode ser um sujeito
eu branco, loiro, de olhos azuis, mas você está aí na história de origem de todos os seus discur-
sos, presente em todos os discursos que lhe constituem está a história da escravidão no Brasil
e seus efeitos.
Sendo assim, eu estou sugerindo aqui que é uma tarefa para nós, que pensamos o decolo-
nial no Brasil, pensar o racismo no Brasil. O racismo não é uma questão, uma escolha pessoal,
o racismo é estrutural, está presente em todos os discursos que nos constituem, está presen-
te na nossa história. O negro nunca foi compensado pelo tratamento desumano que recebeu.

174
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Nós continuamos nas áreas das Humanas, como na época do século XVIII também, existiu
o Humanismo, fingindo que a escravidão, ou melhor, a escravização (porque ninguém nasce
escravo, nasce ser humano). A escravização está em nossa história. Então, se queremos iniciar
um fazer decolonial, vamos limpar isso da nossa história, vamos refletir sobre isso na nos-
sa história. Decolonial não é só problematizar em que língua estou falando ou em que língua
vou ensinar. Não é só coisa da língua inglesa. Decolonial está em nós, como cidadãos brasileiros,
faz parte de nossa história. Eu estava numa reunião do meu departamento na semana passada,
quando surgiu de novo a preocupação quando se pensa no sistema de cotas. Aí vem a pergunta
“mas isso não é baixar o nível de exigência, isso não vai afetar a nossa qualidade de ensino?”.
Enfim, precisamos nos decolonizar antes de mais nada.
Eu gostaria de pensar a necessidade associada à decolonialidade como instrumento analí-
tico, a decolonialidade como projeto programático (slide 8), recuperando uma das coisas men-
cionadas pela pesquisadora Camila Haus, ao falar sobre o desconforto e a violência do descon-
forto e a possibilidade de eliminar o desconforto, ou minimizar os efeitos desse desconforto.
Eu queria focalizar no aspecto da violência no decolonial. Como sabemos, o processo colonial
foi um processo violento. Se queremos agir dentro das teorias decoloniais, nós temos que pen-
sar, sim, a violência, tal como feito por Fanon. Em suas análises decoloniais, Fanon (1963)
identificou a presença predominante da violência, porque essa violência está, talvez, mascarada,
a partir de conceitos em ser e não ser da linha abissal; o conceito de hierarquia de seres e sa-
beres na colonialidade. A violência está lá, mas dificilmente se diz, se apresenta. Tal como dito
por Fanon, “a colonização é o encontro de duas forças contrárias, contrárias pela sua natureza
[...] seu encontro inicial foi marcado pela violência, pela coexistência, isto é, a exploração do co-
lonizado pelo colonizador, foi realizada graças a uma grande quantidade de armas” (FANON,
1963, p. 36).

Slide 8

Fonte: o autor.

175
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

A colonização foi um processo violento. Fanon ainda sublinha: “os governos coloniais
trazem violência para dentro das casas e mentes do colonizado” (1963, p. 38); “[...] a violência
é o estado natural de um governo colonial” (1963, p. 61). Em uma situação colonial, você vive
a violência cotidianamente. Fanon identifica e interroga essa violência colonial (slide 9). Ele não
chega a interromper a violência colonial porque ele não viveu o suficiente para ver o fim do
processo colonial. Fanon, ao interrogar essa violência, essa ambiguidade da violência, que inclui
a sua força produtiva e catártica, contribui para a interrupção da colonialidade. A ambiguidade
está ao mesmo tempo em que tem esse aspecto produtivo e catártico, é a violência que mata.
A violência tem esse aspecto programático, porque a violência gera mudança. Fanon, nesse
sentido, apregoa como “a violência [...] liberta o colonizado de seu complexo de inferioridade
e de sua desesperança e inanição; a violência faz com que o colonizado se torne destemido e res-
taura a sua auto-estima” (1963, p. 94). A violência nos leva à resistência. “O colonizado se cura
da neurose colonial expulsando o colonizador com armas” (1963, p. 21).

Slide 9

Fonte: o autor.

A violência colonial à qual o colonizado foi submetido negou sua existência, agora recupe-
rada pela violência decolonial. Mas o temor de Fanon era que essa violência decolonial, usada
de forma programática, resultasse apenas numa inversão e na criação de outro sistema de colo-
nialidade. Óbvio, com a expulsão do colonizador, ele não está pensando no colonizador agora
embaixo, ele está pensando no outro sistema agora, do local, dos nativos, mas ao invés do co-
lonizador branco por cima, infringindo os outros com as injustiças, pode haver agora o nativo
em cima, infringindo as mesmas desigualdades e injustiças. O temor era que a violência parasse
no estar e no ser violento. Continuamos analisando a função da violência usada pelo coloni-
zador, como podemos usá-la. Mas o que seria o depois dessa violência? Quando haveria o fim
dessa violência? A pergunta é como não transformar o fazer decolonial em outra colonialidade.

176
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Um exemplo que pode parecer bobo está ligado ao fato de que alguns criticam a língua
inglesa por sua constituição colonial, mas a pergunta que fica é: podemos reinventar a língua
inglesa porque ela é um elemento de colonialidade? Ou nós precisamos abster dessa violência
e olhar o fato de que a coisa mais importante no fazer decolonial é o lócus de enunciação?
A questão é: quem está usando a língua inglesa, para que fim e em que situação? Como pode-
mos embarcar no fazer decolonial sem criar outras formas de colonialidade? Na continuação,
veremos alguns projetos decoloniais (slide 10).

Slide 10

Fonte: o autor.

Quijano (1992) ressalta que embora toda cultura pressuponha uma totalidade (universa-
lidade) etnocêntrica (toda totalidade é local/provinciana), o imperialismo europeu pretendeu
desmerecer e apagar outras totalidades, tornando universal seu próprio provincialismo. A vio-
lência desse gesto colonial e imperial estava em negar a existência de outros saberes, outros
povos, outras línguas. Assim, Quijano propõe, por exemplo, o conceito de comunicação inter-
cultural, que será mencionado por mim em seguida. Mas como Quijano propõe sair da situação
de domínio da colonialidade? Entendendo primeiro, através do aspecto analítico, que a univer-
salização dos valores, das epistemologias eurocêntricas resulta de um gesto de querer que ape-
nas a totalidade dos europeus, dos colonizadores valesse diante da existência de outras tota-
lidades. A violência desse gesto está em negar a existência de outros saberes, povos e línguas.
O projeto de Fanon consiste em não só analisar a violência colonial, mas também em propor
um programa de ação anticolonial (usar a violência para destruir a colonialidade para que um
novo homem livre pudesse surgir). Nesse contexto, o uso da força é muito importante para
expulsar os colonizadores e para construir o que ele chama de “novo homem livre”. A dúvida
e temor de Fanon, como já relatado, também era a possibilidade de que esse “novo homem livre

177
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

pós-colonial” criasse e impusesse outro sistema de desigualdade, como de fato ocorreu. As ex-
-colônias continuam com sistemas próprios de desigualdade e de injustiça.
As teorias decoloniais, de forma geral, propõem um programa de ação para que esse ris-
co que Fanon temia não ocorresse. Quijano (2007) e Mignolo (2007) propõem o de-linking
(desprendimento) da totalidade colonial imposta para que outras, múltiplas, totalidades pos-
sam aparecer. Quijano sugere que a comunicação intercultural deva prevalecer; assim, para ele,
o plano de ação é a comunicação intercultural. Nessa comunicação haveria uma consciência
de todos de seu desejo pela universalidade e os seus valores e, ao mesmo tempo, uma conscien-
tização de que é impossível que todos tenham esse desejo.
Santos (1996; 1999) propõe um gesto semelhante ao ponderar sobre a des-universaliza-
ção de toda pretensa totalidade e o reconhecimento do problema do não entendimento entre
elas. Santos diz que a primeira coisa que precisamos entender em uma ecologia de saberes
é que não entendemos, precisamos entender que não nos entendemos. Na verdade, isso não é
um problema, isso é o início de uma ação. O que seria esse programa de ação decolonial?

Slide 11

Fonte: o autor.

Segundo Mignolo, “a pluriversalidade como projeto universal apresenta dificuldades (sli-


de 12). Exige que não podemos ter tudo do jeito que queremos. A luta pela decolonialidade
epistêmica exige desprender-se da crença mais fundamental da modernidade: a crença em uni-
versais abstratos, tanto da extrema direita quanto da extrema esquerda.” (MIGNOLO, 2007,
p. 53). Mais recentemente, Mignolo (2018) propõe a estratégia de pôr “entre parênteses” toda
a verdade, para que haja uma pluriversalidade, uma coexistência de verdades “entre parênteses”.
É semelhante ao que o Váttimo propõe, no contexto da Europa, como o processo de enfraquecer

178
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

verdades. Colocar uma verdade “entre parênteses” é reconhecer que essa verdade tem validade
em determinados contextos, para determinados lócus de enunciação.
Boaventura de Souza Santos (1996) propõe uma pedagogia de conflito que desnaturaliza
a universidade hegemônica e facilita o susto e a indignação com a injustiça. Quando naturaliza-
mos tudo, acabamos caindo em uma situação de absoluto conforto e plenitude, quando nós não
tomamos sustos com absolutamente nada. Portanto, a indignação não surge em nós. É impor-
tante desuniversalizar, desnaturalizar as nossas supostas verdades homogêneas para facilitar
o susto e a indignação. Mais recentemente, Santos (2018) também propõe a tradução inter-
cultural, que prioriza a curiosidade com o desconhecido, o reconhecimento da incompletude
de todo o saber e a transformação de pressupostos (inquestionáveis) culturais em argumentos
(questionáveis). O que isso significa? Priorizar a curiosidade com o desconhecido; isso é uma
coisa que a gente precisa aprender a fazer porque quando agimos pensando que as nossas cul-
turas são totalidades que explicam e respeitam a todos, que a nossa cultura é válida para absolu-
tamente todos e tudo, nós perdemos a curiosidade com o desconhecido. A exterioridade, aquilo
que nós não desconhecemos, não nos afeta. Para uma convivência entre diferentes, conforme
Santos, precisamos trazer essa curiosidade pelo desconhecido, precisamos reconhecer a nos-
sa exterioridade, precisamos reconhecer que há coisas que existem apesar de nós; há coisas
que existem com as quais nós somos incapazes de saber e entender. Para isso, a gente precisa
reconhecer a nossa incompletude como sujeitos, como saberes, como línguas, tudo é incomple-
to e em processo de se tornar completo.
Ou seja, nada do jeito que está no momento, nenhuma língua, nenhum sujeito, nenhum
saber basta. Isso nos abre para um desconhecido. Através da percepção de nossa incompletude,
podemos valorizar outras culturas, outros seres, outros saberes como possíveis fontes de ele-
mentos que podem nos completar. E esse aspecto final, a ideia de “transformação de pressupos-
tos em argumentos” é muito importante porque um pressuposto cultural é algo inquestionável.
Exemplo de pressuposto no Brasil: a ideia de que a escravidão já acabou, que é algo do pas-
sado. Por que vamos discutir sobre o racismo se eu não sou negro e não sou racista? Primeiro
porque o pressuposto está errado. O pressuposto de que a escravidão acabou não é inques-
tionável porque os efeitos da escravidão continuam até hoje. É como dizer que a colonização
acabou e pronto. Se nós reconhecemos a colonialidade como os efeitos da colonização que já
acabou podemos reconhecer o racismo estrutural como efeito da escravidão que supostamente
já acabou. Podemos tornar a inexistência de racismo de “pressuposto” em “argumento”. É assim
que passamos a querer discutir o tema e tornar isso, como todo argumento, em objeto de refle-
xão. Isso faz parte de uma ação decolonial.

179
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Slide 12

Fonte: o autor.

Para concluir, eu queria propor algumas coisas que estão no artigo que Ana Paula Duboc
e eu escrevemos e que lá intitulamos como “práxis decolonial performativa”. Primeiro, con-
cluindo porque não há uma conclusão quando se fala em decolonialidade; e segundo porque
não há como dizer “você tem que fazer X, Y ou Z”. O mínimo que podemos dizer é recomendar.
Mesmo assim, precisamos lembrar que toda recomendação deve ser ligada ao lócus de enuncia-
ção de quem recomendou ou propôs essas recomendações.
O que é o fazer decolonial e por que usamos o termo “práxis performativa”? Porque o con-
ceito de performatividade acaba com o conceito de representação, já que a representação pres-
supõe que haja um elemento que tenha a sua representação. Estamos, portanto, falando de duas
coisas: a representação e o elemento representado. A performatividade acaba com essa distin-
ção. Performatividade fala em “coisa representada” e a representação como sendo inseparáveis.
E o exemplo é “como separar o dançarino da dança”. A performatividade não se refere a uma
essência anterior; é algo que surge no fazer e na ação. É nesse sentido que nós pensamos em um
fazer decolonial, uma vez que não existe o conceito fixo de decolonialidade, que vai ser coloca-
do em prática através de um determinado fazer. É através de fazer determinadas coisas que nós
pensamos, através das várias teorias decoloniais que podemos desempenhar a decolonialidade.
Recomenda-se apreciar a violência onto-epistêmica na colonialidade. Nós estamos falan-
do de violências e a colonização foi violenta; a colonialidade e todas as suas injustiças são vio-
lentas. Por isso, para tentar modificar isso, exige-se um determinado grau de violência porque
tirar os privilegiados do seu lugar de privilégio gerará um desconforto e dor por parte deles.
O segundo aspecto que recomendo é des-universalizar o decolonial. Ao longo de minha
fala, citei diversos autores, valorizando que não se trata de algo homogêneo. Vamos pensar nes-

180
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

sas várias teorias e vamos pensar em nosso lócus de enunciação ao ler essas teorias, trazendo
a essas teorias os nossos próprios valores, permitindo que sejam, assim, mais relevantes.
O terceiro aspecto recomendado é não ficar entre identificar e interrogar a colonialidade
sem interrompê-la; corre-se o risco de manter a colonialidade. Nós sabemos que não acabare-
mos com a colonialidade, mas podemos interromper os seus efeitos.
Finalmente, engajar-se na corpo-política, trazendo o corpo de volta, identificando os nos-
sos loci de enunciação próprios e os loci de enunciação dos analisados para interromper a colo-
nialidade e tornar a decolonialidade num fazer programático.
Muito obrigado.

Referências

CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (orgs.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad
epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central,
Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007.
FANON, F. Peau noire, masques blancs. Points: Éditions du Seuil, 1952. Disponível em: chrome-
extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://monoskop.org/images/f/f4/Fanon_Frantz_
Peau_noire_masques_blancs_1952.pdf. Acesso em: 06 dez. 2020.
FANON, F. Concerning violence. In: FANON, F. The wretched of the Earth. Nova York: Grove
Press, 1963.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, [1974] 2011.
GROSFOGUEL, R. Descolonizando los universalismos occidentales: el pluri-versalismo transmoderno
decolonial desde Aimé Césaire hasta los zapatistas. In: CASTRO-GÓMEZ, S. ; GROSFOGUEL, R.
(coords.) El giro decolonial: reflexiones para uma diversidad epistêmica más allá del capitalismo global.
Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos,
Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007.
GROSFOGUEL, R. Decolonizing Post-Colonial Studies and Paradigms of Political-Economy:
Transmodernity, Decolonial Thinking, and Global Coloniality. In: Transmodernity: Journal
of Peripheral Cultural Production of the Luso-Hispanic World, v. 1, School of Social Sciences,
Humanities, and Arts, UC Merced, 2011. Disponível em: https://escholarship.org/uc/item/21k6t3fq.
Acesso em: 05 dez. 2022.
MENEZES DE SOUZA, L. M. T. O professor de inglês e os letramentos do século XXI: métodos
ou ética? In: JORDÃO, C. M; MARTINEZ, J. Z; HALU, R. C. (orgs). Formação “desformatada”:
práticas com professores de língua inglesa. São Paulo: Pontes Editores, 2011. p. 279 – 303.

181
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

MENEZES DE SOUZA, L.T.M. Glocal Languages, Coloniality and Globalization from below. In:
GUILHERME, M; MENEZES DE SOUZA (ed.). Glocal languages and Critical Intercultural
Awareness. Nova Iorque: Routledge, 2019.
MENEZES DE SOUZA, L. M. T.; MARTINEZ, J. Z.; DINIZ DE FIGUEIREDO, E. H. Eu só posso
me responsabilizar pelas minhas leituras, não pelas teorias que eu cito: entrevista com Lynn Mario
Trindade Menezes de Souza (USP). Revista X, v. 14, n. 5, p. 5-21, 2019. Disponível em: https://revistas.
ufpr.br/revistax/article/view/69230. Acesso em: 05 dez. 2022.
MIGNOLO, W. Capitalismo y geopolítica del conocimiento: el eurocentrismo y la filosofía
de la liberación em el debate intelectual contemporáneo. Colección Plural, v. 2. Buenos Aires: Ediciones
del Signo, 2001.
MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona:
Gedisa Editorial, 2007.
MIGNOLO, W. D; WALSH, C. E. On Decoloniality: concepts, analytics, praxis. Durham: Duke
University Press, 2018.
QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/ racionalidade. Perú Indígena, Lima, v. 12, n. 29, p.11-
20, 1992.
QUIJANO, A. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL,
R. (comps.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo
global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar/ Universidad Centraliesco/ Siglo del Hombre
Editores: 2007, p. 26-46.
SANTOS, B. de S. Para uma Pedagogia do Conflito. In: SILVA, L. H. da (Org.) Novos mapas culturais,
novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996.
SANTOS, B de S. O todo é igual a cada uma das partes. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 52/53,
p. 5-14, 1999. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/http://www.
boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/O_todo_e_igual_a_cada_uma_das_partes_RCCS52-53.
PDF. Acesso em: 06 dez. 2022.
SANTOS, B. de S. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes.
Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, p. 3-46, 2007. Disponível em: https://journals.openedition.
org/rccs/753. Acesso em: 05 dez. 2022.
SANTOS, B. de S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In:
SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
SANTOS, B. de S. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do sul. Coimbra:
Almedina, 2018.

182
SULEAR: UM CONVITE PARA REVERMOS QUEM SOMOS
E NOSSAS FORMAS DE SER COM O MUNDO

Ana Paula Marques Beato-Canato


Universidade Federal do Paraná
Gabriela Veronelli
Affiliated Researcher / Investigadora Asociada
Escuela Interdisciplinaria de Altos Estudios Sociales (Escuela IDAES)
Universidad Nacional de San Martín, Argentina
Alumnus
State University at New York, Binghamton

Este capítulo constitui-se da transcrição livre de dois momentos distintos do último dia do
primeiro ciclo do evento Decolonialidade e Linguística Aplicada, evento que procurou reu-
nir estudiosas/os/es para problematizar perspectivas decoloniais dentro de nossa área de in-
vestigação e atuação, buscar relações (im)possíveis entre o pensamento decolonial e práticas
de linguagem e conversar sobre “o pensar/fazer decolonial e como ele nos possibilita repensar
a Linguística Aplicada e o ensino-aprendizagem de línguas” (COMISSÃO DELA, 2021). Sendo
integrante da comissão, eu, Ana Paula, me vi envolvida em uma série de inquietações, apren-
dizagens e mudanças desde a idealização do evento até o período pós sua realização. Parte
desse processo reflexivo, minha fala foi construída a partir de considerações sobre os objetivos
do evento, o espaço-tempo, o público e minha interlocutora direta, Gabriela Veronelli, a quem
faço meus agradecimentos especiais por sua leitura, pelo debate que desenvolvemos naquele
momento e por ter aceitado estar comigo na publicação deste capítulo.
O encontro do dia 24 de setembro foi marcado por emoções e reflexões, trazidas em espa-
nhol, português e inglês, línguas que constituem e atravessam as pessoas envolvidas. A escolha
pelas três línguas se fez a partir de um diálogo entre nós e o entendimento de que seria impor-
tante que cada uma pudesse fazer sua apresentação na língua em que se sentisse mais confortá-
vel, seguidas de uma conversa em uma língua em comum entre nós. Nossa intenção foi construir
um contexto transligue, no qual a fluidez de ideias não fosse interrompida e o adensamen-
to da discussão fosse possível. Neste texto, trazemos a transcrição da fala da primeira autora

183
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

em português, seguida de um diálogo entre nós duas tanto a partir das perguntas da segunda
autora (quem naquele momento tinha o papel social de pesquisadora convidada para debater
o trabalho em construção da primeira autora) quanto das perguntas do chat.
A tarde do dia 24 constituiu-se como o último dia do 1o ciclo do DELA, um momento
em que as pessoas que nos acompanharam estavam com ideias e emoções fervilhando. Eu,
Ana Paula, como parte integrante da comissão, estava bastante ansiosa, pois havia decidido
expor reflexões de um projeto embrionário e tinha grandes expectativas sobre como tais ideias
seriam recebidas por Gabriela e participantes. Também tinha muitas expectativas por sugestões
para adensar o projeto e traçar caminhos frutíferos e coerentes. Ainda trazia comigo inseguran-
ças, por estar ali, em um contexto translingue, no papel social de docente universitária e parte
da comissão organizadora, expondo elucubrações e fragilidades, mas consciente de que esses
são papeis sociais dos quais frequentemente são esperadas certezas, confiança e respostas, em-
bora muitos discursos digam o contrário.
Phelipe Cerdeira fez a abertura, o fechamento e a mediação de forma primorosa, carrega-
da de afeto e entusiasmo. Marcos Nogas, também integrante da comissão, fez um fechamento
belíssimo, resumindo o que vivenciou e aprendeu ao longo do processo. Seu texto também
está publicado no volume 2 desta coletânea. Fechamos o 1o ciclo do DELA com um poema
lido por Phelipe e a música Esperançar por esse chão, uma homenagem a Paulo Freire em rit-
mo de samba. Quem quiser conferir, por favor, pode clicar no link: https://www.youtube.com/
watch?v=OGuhVWN6_Kk
Toda essa atmosfera fez com que o momento de discussão de um projeto de pesquisa
fosse marcado por um emaranhado de sentimentos e muitas reflexões. Abaixo, reproduzimos
a apresentação do projeto, praticamente sem alterações. Em seguida, trazemos o diálogo estabe-
lecido entre nós, com algumas perguntas colocadas por participantes no chat, que, como disse
Phelipe, trouxeram outras cores e outras nuances ao diálogo.

Sulear: um convite para revermos quem somos e nossas formas de ser e estar no e
com o mundo

Nos últimos anos, estudos decoloniais (GROSFOGUEL, 2013; 2015;


WALSH, 2014; 2015; CASTRO-GÓMEZ; MIGNOLO, [2000] 2012; 2015,
WALSH, 2015; QUIJANO, 2015; MALDONADO-TORRES, 2015; MIGNOLO;
WALSH, 2018; VERONELLI, 2019) e anticoloniais (BISPO, 2015) têm se am-
pliado assim como a divulgação de ações de movimentos (sociais) que reivindi-
cam direitos e trazem à tona narrativas outras, que colocam em xeque narrativas
únicas (ADICHIE, 2009).

184
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Slide 1 – América Invertida


Nesse contexto, somos incitadas a ques-
tionar discursos hegemônicos e nos engajar
em práticas decoloniais, que tragam à tona ou-
tras narrativas, promovam ou viabilizem outras
maneiras de sentir, pensar, saber, valorar o on-
tem e agir, como fez Torres-Gárcia, em 1935,
com a obra América Invertida, que pode ser vis-
ta no slide reproduzido ao lado. Somos convida-
das/os/es, assim, a abrir novas janelas, ampliar
as que temos, por vezes, refutar, desaprender, Fonte da imagem: Torres-Gárcia (1935).
aprender e construir diferente.

Concomitantemente a esses estudos e mudanças, atravessamos um período


drástico de crise social, política e sanitária com quase 600.000 mil mortes (nú-
meros de setembro/2021) e discursos que negam a gravidade do vírus, nos divi-
dem, nos classificam, nos afastam e nos fazem recuar e até desesperançar.

Em momentos como esse, Freire adver- Slide 2 – Agir


te que não podemos ser espectadoras/es/us,
mas sujeitas/os/es, na medida em que, perce-
bendo as contradições, podemos nos tornar
criticamente otimistas, descruzar nossos bra-
ços e assumir nossa responsabilidade, capa-
zes de esperançar, no sentido de projetar ou-
tras realidades e participar das transformações
(FREIRE, [1967] 2016, p.72).

Fonte: desenho de Helena Beato Canato para


a publicação.

185
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Inquietações iniciais

Como parte da Comissão organizadora Slide 4 – Freire, presente!


do evento, algumas das primeiras perguntas
que me fiz foram: como Paulo Freire vai estar
presente ao longo do evento? Suas ideias serão
trazidas e ressignificadas, atualizadas ou refu-
tadas em diálogo com outras/os/es pensado-
ras/os/es decoloniais ou não serão considera-
das? Na semana do centenário de nascimento
de Freire, me desafiei a homenageá-lo e espero
que as reflexões façam sentido. Fonte: desenho de Helena Beato Canato (elabora-
do para o evento).

Para homenageá-lo dentro da proposta do evento, retornei a suas obras, com foco em uma
revisão dos conceitos de linguagem e leitura de modo a iniciar uma reflexão sobre como Freire
pode nos ajudar a pensar a linguagem em perspectiva decolonial. A apresentação constituiu-
-se de ideias para uma pesquisa em estágio embrionário, iniciada com a produção do resumo
para o evento. A partir da escrita deste resumo, passei a prestar mais atenção nas menções
a Freire em leituras sobre decolonialidade e noto que suas ideias são trazidas por muitas/os/
es dessas/es/us pesquisadoras/es/us. Contudo, parece que o alerta de Altamirano (2016)
faz sentido; ela afirma que, embora sendo apontado como o precursor das epistemologias
do Sul, Freire continua sendo silenciado, marginalizado e mal-interpretado na academia, tan-
to no Norte quanto no Sul global, em termos de correntes dominantes e marginalizadas.
Com a intenção de dar visibilidade a ele e buscar parentescos intelectuais entre suas
ideias e discussões sobre decolonialidade, revisitei algumas de suas obras, olhando especial-
mente para os conceitos de linguagem, palavra-mundo, leitura e alfabetização/letramento.

186
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Slide 5 – Freire, D’Olne e Nita


Parto do convite de Freire ([1992]
2021, s.p.) para rever nossa linguagem,
a maneira como nos expressamos, nos aler-
tando que “mudar a linguagem faz parte
do processo de mudar o mundo. A relação
linguagem-pensamento-mundo é uma re-
lação dialética, processual, contraditória.”
Por isso, além de mudar nosso discurso,
precisamos nos engajar com práticas tam- Fonte: a autora
bém democráticas e antidiscriminatórias. Fonte da imagem 1: http://178.62.201.127/noticia/
origem-do-sulear
Um passo importante para isso seria nos su- Fonte da imagem 2: https://www.hildeangel.com.br/viuva-de-
-paulo-freire-escreve-a-temer-contra-ataques-do-governo-a-memo-
lear, ou seja, rever nossas formas de ser, es- ria-do-grande-educador-brasileiro/
tar, saber no e com o mundo, ideia proposta
No slide, temos uma foto de Freire
por Márcio D’Olne Campos, que será am-
com Márcio D’Olne Campos, físico e ami-
pliada mais adiante. Vejo em tais convites go pessoal de Freire, e outra foto de Freire
um forte parentesco entre as ideias frei- com Nita Freire, sua esposa, historiado-
reanas e as perspectivas decoloniais mais ra, que escreveu as notas do livro Pedagogia
recentes. Nas próximas partes desta fala, da Esperança (FREIRE, 1992) e fez uma exce-
trago conceitos de linguagem encontrados lente nota explicativa sobre o conceito de sule-
em algumas obras de Freire e esboço algu- ar, proposto por Campos.
mas perguntas que podem contribuir para Para saber mais sobre as propostas
nossas reflexões. de Campos, sugiro que visite o site: https://
www.sulear.com.br/

Considerando que sua obra mais conhecida e citada é Pedagogia do Oprimido, pergunto
o que seria oprimido e o que seria opressor? Podemos associar essa ideia a de colonizador/
colonizado? Quem seria quem? Seria esse um parentesco entre Freire e estudos decoloniais?
Para Freire, oprimidos/as/es são aqueles/as/us que tiveram suas existências negadas, seja
por assumirem posição opressora, seja oprimida, pois, em ambos os casos, sua subjetividade
é fortemente marcada por relações desumanizantes. Em boa parte de suas obras, a questão
de classe é colocada como o cerne da questão. Contudo, no livro Alfabetização – Leitura
do mundo, leitura da palavra, por exemplo, lemos a seguinte definição: "oprimidos são seres
humanos proibidos de ser. São explorados, ultrajados, e a eles se nega violentamente o direito
de existir e o direito de expressar-se. Isso é verdadeiro, quer esses dominados representem
todo um povo, um grupo social (como os homossexuais), uma classe social, ou determinado
grupo sexual (como as mulheres) (FREIRE; MACEDO, 1987 [2021], s.p.).

187
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Nessa citação, Freire estaria expandindo sua ideia de oprimido e pensando em diferentes
corpos, diferentes grupos e nos convidando a fazer diferente? Em meu entendimento, sim,
e percebo que Freire, ao longo de suas obras, amplia seu olhar e vai incorporando outras
questões identitárias a seus pensamentos. A influência de Fanon talvez seja uma grande chave
desse processo, bem como de Amílcar Cabral, como ele mesmo afirma em Cartas a Cristina
(FREIRE, [1994] 2021), por exemplo.

Freire defende o papel da educação


Slide 6 – Imagem de aluno com filha no colo
no processo de libertação, mas não dentro soletrando a palavra tijolo.
da escola em moldes tradicionais. Por isso,
fala no caráter educativo da participação
em movimentos sociais, por exemplo,
e propõe Círculos de Cultura para a alfa-
betização de adultos a partir de temas ge-
radores, ou seja, temas relacionados à rea-
lidade do grupo que possam se desdobrar
em outros tantos temas que tenham poten-
cial para provocar novas tarefas a serem
cumpridas, atos-limite em busca de trans- Fonte: slide da autora; fonte da imagem: Instituto
formação da realidade. A procura de temas Paulo Freire
geradores constitui-se como a investiga-
ção da práxis de um grupo, suas relações
com o mundo, a interpenetação de proble-
mas, que deverão ser discutidos no proces- soal, de tornar-se cada vez mais crítico
so de ensino-aprendizagem (FREIRE, 2016 de sua realidade, perceber as contradições
[1968], p. 136-137). No processo dialógico do mundo e não aceitar a acomodação
de aprender a decodificá-las, conjunta- às situações-limite que coisificam, enga-
mente e colaborativamente, o grupo tem a jando-se, então, em ações para a concreti-
oportunidade de tomar maior consciência zação de inéditos viáveis, isto é, realidades
de seu contexto existencial e do significa- possíveis menos desumanizantes, as quais
do das palavras dentro de suas realidades, começam a ser construídas quando temas
possibilitando um encontro de cada pessoa desafiadores da sociedade passam a ser
consigo mesma e com as demais, em um percebidos e nos mobilizamos para agir
processo de humanização em comunhão. em prol dessa nova realidade (FREIRE,
Ou seja, um processo de politização pes- 1992 [2021]).

188
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Slide 7 – Leitura do mundo, leitura da palavra

Fonte: slide da autora; imagem: sulear.com.br.

Paulo Freire, em diálogo com Marcio D’Olne Campo, diz: "Sempre repeti que é impos-
sível conceber a alfabetização como leitura da palavra sem admitir que ela é necessariamente
precedida de uma leitura do mundo. A aprendizagem da leitura e da escrita equivale a uma
"releitura" do mundo. É preciso não esquecer essa evidência: as crianças pequenas, bem antes
de desenharem e traçarem letras, aprendem a falar, a manipular a linguagem oral. Por inter-
médio da família, leem a realidade do mundo antes de poderem escrever. Em seguida, apenas
escrevem o que já aprenderam a dizer. Qualquer processo de alfabetização deve integrar
essa realidade histórica e social, utilizá-la metodicamente para incitar os alunos a exercerem,
tão sistematicamente quanto possível, sua oralidade, que está infalivelmente ligada ao que
chamo de "leitura do mundo".” (FREIRE; CAMPOS, 1991). Para Freire, a educação que consi-
dera essa realidade pode contribuir para desativar a voz colonial e, em seguida, a desenvolver
a voz coletiva do sofrimento e da afirmação silenciada sob o terror e a brutalidade de regimes
despóticos. Esse processo de alfabetização como direito, segundo ele, deve ter início, portan-
to, a partir das leituras do mundo do grupo, ou seja, as experiências e conhecimentos sobre
o tema. É por isso que o autor fala em ler o mundo antes de ler a palavra e traz o conceito
de palavra-mundo (FREIRE, 1991). Ou seja, "Ler a palavra e aprender como escrever a pa-
lavra, de modo que alguém possa lê-la depois, são precedidos do aprender como 'escrever'
o mundo, isto é, ter a experiência de mudar o mundo e de estar em contato com o mundo
(FREIRE; MACEDO, 1987 [2021], p. 83)”, entendendo que a maneira como lemos a palavra
é diretamente relacionada à maneira como entendemos o mundo. Enquanto vivemos, expe-
rienciamos o mundo e, ao fazê-lo, atribuímos sentidos às palavras que aprendemos. Assim
como entendemos os sentidos dos pronomes atrelados diretamente aos substantivos aos quais
se referem, só entendemos os sentidos das palavras diretamente conectadas ao nosso mundo,
às nossas experiências, ou seja, não atribuímos sentidos às palavras de forma neutra; os valo-
res que elas carregam são construídos socialmente em nossas vivências e o compartilhamento

189
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

de leituras do mundo em diálogo possibilita a percepção desse processo. Palavra, portanto,


é diálogo com o mundo e com as pessoas; é lugar de encontro e de reconhecimento de consci-
ências, porque é na relação com o mundo e com outras pessoas que eu me constituo como eu;
é ação; é práxis e práxis "é reflexão sobre o mundo para transformá-lo. (FREIRE, 2016 [1968],
p.52)". Não bastaria, dessa maneira, decodificar FA-VE-LA, mas sim discutir seus sentidos,
a realidade concreta, as razões de ser das coisas.
Em sua insistência para olhar o contexto epocal, Freire não está defendendo a ideia
de que somos individuais e sociais ao mesmo tempo? Eu entendo que sim e uma chave para
essa compreensão é sua afirmação de que a palavra carrega pesos diferentes a partir de vivên-
cias diferentes. No caso de favela, por exemplo, Freire diz que ela pode sair leve de alguém
que não vive naquele contexto enquanto terá um peso bem grande ao ser pronunciada por al-
guém que vive naquela condição.

Slide 8 – natureza ideológica da linguagem

Fonte: a autora.

Mas será que Freire sempre entendeu a linguagem como ideológica? O slide reproduzido
acima ilustra que não, e Freire reconhece isso em diálogo com Shor no livro dialogado Medo
e ousadia (FREIRE; SHOR, 1986, p.29). Freire afirma que, no início de sua carreira docente,
como professor de sintaxe de língua portuguesa, ele estava longe de entender o "condiciona-
mento social da linguagem" e tinha a preocupação com o uso correto da língua, como se isso
existisse, mas foi salvo por leituras de autores como José Lins do Rego e Graciliano Ramos,
os quais não estavam preocupados em seguir a gramática, mas sim com o momento estético.
Essas leituras o recriaram com aproximadamente 20 anos e o possibilitaram compreender
que "a beleza e a criatividade não podiam viver escravas da correção gramatical. [Então, mu-
dou sua prática e só mais tarde compreendeu que] a criatividade na pedagogia está rela-

190
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

cionada com a criatividade na política” (FREIRE; SHOR, 1986, p.31). A partir disso, é que
fez vários questionamentos, como os reproduzidos no slide acima.

O diálogo entre Freire e Shor continua problematizando a maneira como cursos


de Redação, Comunicação e Literatura, por exemplo, são ofertados de forma imponente
e passiva, maneira que silencia, desinteressa e até aliena estudantes, ao focar em exercícios
mecânicos de gramática, sintaxe e retórica (FREIRE; SHOR, 1986). Ao invés disso, ao com-
preender que a categorização da linguagem é ideológica, política e elitista, os autores sugerem
que docentes podem ensinar a linguagem dita padrão, mas sem culpar as pessoas por seus
"erros" na utilização da linguagem padronizada. Ao contrário, devem demonstrar respeito
pela linguagem do povo, enfatizar a beleza das diferentes formas de dizer atreladas às diferen-
tes formas de ser e contribuir para que estudantes acreditem em sua própria fala sem sentir
vergonha de sua linguagem e perceber que sua linguagem também tem uma gramática, regras
e estruturas. Ao fazerem isso, os valores que possibilitam classificar as línguas são problema-
tizados e a própria elite é questionada.
Em outro momento, Freire e Faundez (1985 [2011]) discutem a necessidade de revisar
nossa linguagem como parte do processo de transformação da sociedade, parte da revolução
que entendem ser necessária.
Tentando estabelecer diálogos com estudos decoloniais, trago alguns questionamentos:
com essas discussões, Freire não estaria nos convidando a delink, ou seja, a desnaturali-
zar os efeitos da colonialidade em nós, como propõem Quijano (2007) e Mignolo (2007)?
Não estaria problematizando a universalidade abstrata, que destitui o lócus de enunciação,
como comentado por Lynn Mario (https://www.youtube.com/watch?v=Ukwf Fona7-A)
em sua apresentação durante nosso evento? Freire não estaria nos convidando a recuperar
os corpos escondidos por traz de quem define linguagem padrão x inculta, errada e nos con-
vidando a refletir que corpos realizam práticas de linguagem apontadas como ruins, feias,
etc.? Poderíamos ainda aproximar as reflexões freireanas da proposta de Mignolo (2007)
de colocar entre parênteses, ou seja, entender que algo tem validade em contexto específico?

Em toda a sua obra, Freire chama atenção para a natureza social e ideológica da lingua-
gem e tensiona discursos que valorizam certas formas de se expressar. Discute a divisão entre
linguagem padrão x não padrão, língua e dialeto e propõe a aproximação com os grupos,
entendendo suas formas de se expressar.

191
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Slide 9 – linguagem como forma de ser no mundo

Fonte: a autora/ desenho de Helena Beato Canato, para a publicação.

O autor também enfatiza a amorosidade, a boniteza da vida e a criatividade, por exem-


plo, mas é em Por uma pedagogia da pergunta que ele e Faundez (FREIRE; FAUNDEZ, 1985
[2011]) trazem a ideia de linguagem enquanto movimento do coração, como se pode ob-
servar na citação do slide acima ("que a linguagem é de natureza gestual, corporal, é uma
linguagem de movimento dos olhos, de movimento do coração (FREIRE; FAUNDEZ, 1985
[2011])" e esse movimento, para Freire, pode ser respeitoso, amoroso, inclusivo, ou violento
e desumanizante. Ao falar de linguagem como o movimento do coração, estariam os autores
colocando em xeque a divisão binária entre emoção e razão?

Slide 10 – alfabetização pela sensibilização

Fonte: a autora
Fonte da imagem: www.wikipedia.org

192
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Focando agora na ideia de desumanização, já em Pedagogia do Oprimido, Freire (2016


[1968], p.159) traz exemplos de palavras-mundo violentas, que, segundo ele, são usadas
por pessoas que oprimem para qualificar as pessoas oprimidas como as que desamam, quan-
do elas reagem à violência opressora.

"Essa gente", "essa massa cega e invejosa", "selvagens", "nativos", "subversivos", "violentos",
"bárbaros", "malvados", "ferozes" são alguns dos termos empregados para se referir a pessoas
oprimidas, quando se engajam contra um olhar para elas como se fossem coisas, ou seja,
quando agem por amor, movidas por um "anseio de busca do direito de ser" (FREIRE, 2016
[1968], p. 59). Essa análise de Freire é feita com base na diferença de classes. Nessa linha
de pensamento, o estudioso aponta que "para os opressores, o que vale é ter mais e cada
vez mais, à custa do ter menos ou do nada ter dos oprimidos" (FREIRE, 2016 [1968], p. 59).
Nesse olhar, quem não tem, não é, e quem não é não diz ou não sabe dizer (FREIRE, 2016
[1968], p. 63)." Essa ideologia possibilita a classificação 'naturalizada' entre língua padrão
e não padrão, que serve aos interesses de classe e hierarquizam culturas e coisificam e rebai-
xam o ser a um puro objeto (FREIRE, 1967 [2020], p. 60-61).

Outro exemplo da preocupação de Freire com a imposição de formas de dizer pode


ser vista durante o processo de redemocratização da África e a oficialização da língua por-
tuguesa como língua oficial de instrução. O educador (FREIRE; MACEDO, 1987 [2021])
argumentava não ser possível alfabetizar um povo na língua do colonizador.

Slide 11 – Língua do colonizador

Fonte: a autora
Fonte da imagem: www.iberoamericasocial.com

193
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Uma língua estranha e rejeitada pelas/os/es africanas/os/es durante o período colonial


não deveria ser imposta no momento de democratização. Essa possibilidade que se concreti-
zou, para Freire, é indicativa do quanto o/a/e colonizador/a/e impõe sua forma de ser e “tem
o poder de opacizar as consciências” (FREIRE; FAUNDEZ, 1985 [2011], p.164). A imposição
da língua portuguesa como língua de instrução seria uma contribuição importante para essa
permanência e para o aprofundamento das diferenças entre as classes sociais. O educador
lembra que língua não é mero instrumento de comunicação, mas uma estrutura de pensa-
mento carregada de valores culturais. A oficialização do português reforça a ideologia de que
a língua do grupo colonizador é autônoma e bela enquanto a língua do grupo colonizado,
o crioulo, é "algo inferior, uma 'coisa' feia, pobre, incapaz, por exemplo, de expressar a ciên-
cia, a tecnologia, como se as línguas não se alterassem historicamente, em função do pró-
prio desenvolvimento das forças produtivas, como se as línguas nascessem feitas” (FREIRE;
FAUNDEZ, 1985 [2011], p.198). Nesse sentido, Freire (FREIRE; MACEDO, 1987 [2021], p.
220-221) fala de uma "certa relação entre pensamento e linguagem como expressão do pro-
cesso real de pensar e da concretude da realidade daquele que fala, daquele que pensa e fala
e daquele que fala e pensa. Podia-se até inventar um novo verbo, 'falar-pensar' ou 'pensar-fa-
lar'." Sobre pensamento, Freire afirma: "Jamais pus sentimentos e emoções entre parênteses.
Apenas os reconheço à medida que me expresso." (FREIRE; MACEDO, 1987 [2021], p.228).
Vejo essa denúncia da violência da oficialização da língua do grupo opressor como
um parentesco intelectual com a interpretação de Veronelli (2015) sobre o paradigma da lin-
guagem dos tempos da Conquista, o qual carrega a lógica da colonialidade, porque prescreve
uma relação entre linguagem e poder, território, escrita, religião e civilidade. Segundo a au-
tora, "hay un vínculo entre, por un lado, la desumanización de la poblaciones racializadas
y el concomitante desprecio de sus lenguajes como la expresión simple de su 'naturaleza' in-
feriores, y por el otro, una ideología lingüistica - analizada como monolenguajeo - que oculta
la opresión colonial, dialógica y discursivamente." (VERONELLI, 2015, p.36). Seria isso?

Slide 12 – natureza ideológica da linguagem

No slide, temos
uma conversa entre mi-
nha filha e eu que ilustra
sua percepção da ideo-
logia linguística.

Fonte: a autora.

194
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Outro exemplo que encontramos em Freire a respeito da colonialidade da linguagem


é sua própria postura com relação à sua forma de dizer. Após ter sido fortemente criticado
por sua linguagem machista, Freire compreendeu melhor o quanto a linguagem é ideológica
e chegou a questionar: “como explicar, a não ser ideologicamente, a regra segundo a qual
se há duzentas mulheres numa sala e só um homem devo dizer: ‘Eles são todos trabalhadores
e dedicados?” Isto não é, na verdade, um problema gramatical, mas ideológico (FREIRE, 1992
[2021], p.93). Freire analisa que “a discriminação da mulher, expressada e feita pelo discurso
machista e encarnada em práticas concretas, é uma forma colonial de tratá-la, incompatível,
portanto, com a posição progressista de qualquer pessoa.
A recusa à ideologia machista, que implica necessariamente a recriação da linguagem,
faz parte do sonho possível em favor da mudança do mundo. Por isso mesmo, ao escrever
ou falar uma linguagem não mais colonial, eu o faço não para agradar a mulheres ou desagra-
dar a homens, mas para ser coerente com minha opção por aquele mundo menos malvado
de que falei antes. [...] Não é puro idealismo, acrescente-se, não esperar que o mundo mude
radicalmente para que se vá mudando a linguagem. Mudar a linguagem faz parte do pro-
cesso de mudar o mundo. A relação linguagem-pensamento-mundo é uma relação dialética,
processual, contraditória. É claro que a superação do discurso machista, como a superação
de qualquer discurso autoritário, exige ou nos coloca a necessidade de, concomitantemente
com o novo discurso, democrático, antidiscriminatório, nos engajarmos em práticas também
democráticas.
“O que não é possível é simplesmente fazer o discurso democrático, antidiscriminatório
e ter uma prática colonial”. (FREIRE, 1992 [2021], p.94-95).

Nesse processo de reflexão e transformação, Freire, em obra de 1992 [2021], faz uma
análise de sua própria maneira de lidar com estudantes, trabalhadoras/us/es, operárias/es/
os e, nesse momento, adverte que, embora consciente das diferenças entre ele e essas pes-
soas, acabava quase sempre partindo de seu próprio mundo, como se ele devesse ser o "sul"
que orientaria todos os outros, como se ele fosse capaz de sulear o mundo dos outros. Segundo
Ana Maria Freire, em notas na obra Pedagogia da Esperança, Freire usa o termo sulear ao invés
de nortear para marcar a ideologia da linguagem e a conotação ideológica de termos como
nortear, norteá-los, orientação, orientar-se e outras derivações. Faz isso em alusão à proposta
de Marcio D'Olne Campos, que adverte que a forma como dizemos e nos relacionamos com o
mundo é orientada pelo que chamamos de Primeiro Mundo ou Norte global e que, ao cons-
truirmos sentido e realidade tendo o norte como ponto de partida, acabamos nos identifi-
cando como inferiores, porque partes do sul. Em texto de Freire e Campos (1991), encontra-
mos a proposta de SULear, enquanto verbo, como uma crítica à colonialidade configurada
em diversas formas de dominação de saber e de poder. Estas vêm sendo perpetuadas desde a
“descoberta” (ou inauguração) das Américas e posteriormente reforçadas pela modernização
dos modos de vida, produção e mercantilização. É preciso identificar, denunciar e contribuir
para transformações.

195
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Sulear é, pois, um vocábulo que aponta para um posicionamento crítico sobre as repre-
sentações geradas pelas orientações espaciais e de orientação entre as polaridades do eixo
Norte-Sul e as tensões oriundas dessa relação. Tais representações, porque trazidas de outros
contextos sem as devidas problematizações, prejudicam pontos de vista e saberes locais - dis-
ciplinares ou não - interferindo negativamente em outras percepções e consequentemente,
nas leituras do mundo e da palavra entre populações urbanas e rurais, assim como entre
aquelas de culturas locais distintas (FREIRE; CAMPOS, 1991).
O convite a sulear é, portanto, em minha leitura, um exercício de reflexão social, po-
lítica e cultural sobre quem somos e como somos. Marcio Campos se inspira na gravura
"América Invertida", do artista uruguaio Torres García, que, ao inverter o mapa sul-ameri-
cano nos leva a refletir sobre o território reposicionado do sul para o norte. Estaria ele de
"ponta cabeça" ou seria uma outra forma de olhar o mundo? Sendo a Terra redonda, ha-
veria parte de cima e de baixo? Quem define "civilização" e "cultura", principal/secundário,
superior/inferior, "criador" e "imitador", níveis de inteligência e do poder criador dos homens
e das mulheres atreladas à posição geográfica? Ao olhar o mundo diferentemente, notamos
que nossa linguagem se constitui a partir desse referencial geográfico, que se volta para o nor-
te como o cume, o superior, o ponto mais alto, o lugar onde o conhecimento é elaborado.
A palavra ORIENTAÇÃO, por exemplo, vem de Oriente. Enquanto, no hemisfério Norte,
a Estrela Polar permite o NORTEamento, no Hemisfério Sul, o Cruzeiro do Sul permite o
"SULeamento". (FREITAS, 1992 [2021], p. 297-298). Importante destacar que, embora essa
discussão tenha sido iniciada a partir de reflexões geográficas, as relações de poder é que de-
finem Norte e Sul global e não as posições geográficas.

Slide 13 – Sulear

Fonte: a autora. Imagem: https://sulear.com.br/

196
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Ainda nessa esteira, podemos indicar a divisão entre racional/emocional, que forja
o povo colonizador como o ser pensante, por isso, superior e com linguagem apropriada para
tratar de conhecimentos científicos, racionais, por exemplo, enquanto o grupo colonizado
não teria conseguido se distanciar de suas emoções, por isso, seria inferior, deveria receber
conhecimento produzido pelo ser superior e sua linguagem seria incapaz de expressar racio-
nalidade, como Veronelli propõe em texto de 2015.

Uma questão: Será que podemos encontrar aqui um parentesco entre Freire, Campos
e Ana Maria Freitas com o que Menezes de Souza (na mesma apresentação já citada) propõe
ao nos convidar a trazer o corpo de volta como um gesto político de recusar o cartesianismo
e a supremacia da razão, que classifica seres racionais como superiores e emocionais como
inferiores?
Outra questão: Será que não haveria proximidade entre a proposição de Veronelli (2015)
e a de Freire (1992) no que tange a ideia de desumanização do colonizado e sua suposta in-
capacidade de entender o que o grupo colonizador diz? Freire assume que tentou, muitas ve-
zes, ser o sul de trabalhadoras/us/es e problematiza suas tentativas de simplificação e novas
explicações, com o uso incessante de paráfrases, introduzidas por locuções como “em outras
palavras” e “ou seja.” Embora Freire sempre tenha tentado fazer coisas junto com trabalhado-
ras/us/es, buscando interlocução e tenha diversos exemplos disso, ele mesmo assume as ar-
madilhas do sistema que nos constitui e é testemunho de como é possível nos transformar
caminhando.

Slide 14 – Agradecimento

Fonte: a autora/ desenho produzido por Helena Beato Canato para a apresentação.

197
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

A seguir, trazemos o diálogo que desenvolvemos na tarde de fechamento do 1o ciclo


do DELA. Tanto as perguntas quanto as respostas foram revisadas livremente e alguns acrésci-
mos foram feitos, os quais ilustram que as reflexões continuam em fluxo contínuo.
GABRIELA: Thank you so much, Ana Paula. I enjoyed the presentation very much.
We have been emailing each other and I feel that this is the beginning of a great relationship.
I am looking forward to seeing how this conversation begins to move putting together this line
of thought, practices and goals. So, I have a couple of questions. The first one is just a question
of curiosity, similar to the one that was asked to me when I was writing my doctoral disser-
tation. I was working on an author whom I considered very important in my understanding
of linguistic relationalities in a non-colonial way, and I made an effort to bring this author into
the decolonial conversation. The question that my advisor asked me, and which I want to direct
to you, was why I wanted to put so much effort in making this epistemic conversation happen,
when it might not be needed. So, my question to you is: what is the motivation to create this
relationship between Freire and the decolonial project?  
ANA PAULA: Well, since I have started reading about coloniality and decoloniality, I have
been engendering some important intellectual kinships with Paulo Freire. In some moments,
these kinships are marked, as Catherine Walsh always does either in speeches or in her publi-
cations. In other moments, I notice superficial mentions and even criticisms to Freire, that calls
my attention and I always ask: does it make sense? May we really affirm this based on Freire’s
publication as a whole? Prompted by those kinds of questions, in long and deep dialogs with
Adriana Brahin, I have realized that, although he is frequently mentioned, Freire does not oc-
cupy a significant space in our teacher education either in undergraduate or graduate languages
and literature courses (Letras). As a consequence, the criticisms are restricted to some con-
cepts and especially to a specific work, namely, Pedagogia do Oprimido, which has been revised
by Freire in 1992 in a book called Pedagogia da Esperança–um reencontro com a Pedagogia
do Oprimido. Committed to deepening the studies on Freire, Adriana Brahim and I offered
a graduate discipline with the objective of reading original Freire’s book and establishing dialogs
with Applied Linguistic studies, especially with literacy studies, and decolonial studies, broad-
ening our understanding and refuting ideas, when necessary. In this process, three concepts
called my attention: language, literacy and dialog. With these concepts in mind, I have been
rereading some books and, at the moment, I would like to ask some questions: can’t we establish
relations between the bakhtinian’s idea of language as a social practice and Freires’s discussion
about how language is ideological, as when he mentions that Portuguese is a sexist language?
What are the differences between the idea of reading the world and reading the word in Freire’s
perspective and Menezes de Souza’s (2011)? Concerning your ideas, Gabriela, of coloniality
of language and language as a verb, inspired in Maturana’s work, I wondered if they do not have
kinship relations with Campos and Freire’s invitation to sulear, as a verb, and also to Freire’s

198
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

insistent denunciation of the necessity of decolonizing our minds, especially while he was de-
bating the necessity of not officializing the Portuguese language in Guiné Bissau (FREIRE, 2019
[1977]).
GABRIELA: ok. Let me push the question a little further since you understand there
is an echo, and you think in terms of echoes as I tend to do. The first question you asked was:
does the oppressor-oppressed duality echoes the colonizer-colonized duality? I am glad that
in asking this question you are bringing a wider understanding of what Freire means by the
oppressor-oppressed duality that adds the element of humanization-dehumanization to it. And,
indeed, it seems there is an echo. I always assumed in my reading of Freire that there was an ac-
cent of class and the Marxist traditional classification of people in terms of class. So, I appreciate
that you have brought it up and are trying to move the understanding of colonial oppression
into the realm of human-non-human, which to me is a key way of understanding the duality that
modernity has created. So, the duality conveys the colonizer-colonized split, as well as the hu-
man-non-human split. This is because, from the beginning of the colonization of the Americas,
the question was whether indigenous people were humans where humanity was tightened to the
capacity of rationality. So, I agree with the chain that you followed from Freire to the concept
of sentipensar, which to me offers an understanding of rationality that disturbs modern colonial
rationality. So, I can see how the oppressed of Freire is in your interpretation the non-human
not only in terms of the modernity/coloniality school of thought, but of Fanon and of Dubois.
ANA PAULA: You are right, Gabriela. In my studies, I have realized that Freire’s un-
derstanding of the oppressor-oppressed relations is very deep and complex. He assumes that
we may be oppressed in some contexts and oppressors in others. He also assumes that while in-
volved in this kind of relationship everyone loses the possibility of achieving freedom, since they
will be trapped in dehumanizing social roles. If the oppressed may be dreaming of becoming
the oppressor, the oppressors will be so engaged with the task of oppressing that they may lose
the opportunity of being free. From this perspective, Freire advocates for educational process-
es that opportunize reflections. By developing our consciousness, we get ethically responsible
for our thoughts and actions and we may get involved in actions to denounce and transform
the duality that, actually, dehumanizes everyone that is involved.
GABRIELA:  Well, let me try to go back to my questions and jump to another part of your
talk that has to do with the sulear-se. There tends to be a danger or trap in decolonial thought,
epistemologies of the south, and may-be in sulear-se too, to generalize the geographies and the
histories of dehumanized people. So, how do you see that the term sulear-se and the praxes
it names may or may not pay attention to what is local, and avoid or contest this trap or tenden-
cy to generalize?
ANA PAULA: I agree with you that we have to be careful with the risk of imaging North
and South as geographical points and generalize two different perspectives, in a binary way.

199
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

With this in mind, we have to frequently spread the idea that the duality North-South is a
metaphor used to denounce and denaturalize what was once naturalized as neutral. In Freire’s
examples, we can understand they were talking about relationships. In one of his examples,
he describes a situation in which he was talking to students’ parents in a school meeting and he
realized he was trying to be their South, that is, to give them the right direction.
GABRIELA: I agree and I like the idea of sulear-se as a verb. I like verbs because they
are core to actions and actions are always local, done in a particular time, in a particular space,
within particular companies. So, I think that, because it is a verb, it is a way of thinking local-
ly, to bring to local conversations. I mean, there is nothing wrong with thinking globally from
the South; this is all part of undoing globalization from below. The question that I was bringing
up was that we have to be careful with the tendency to generalize, the tendency to go to what
is common, which we have been trained into by Eurocentered modernity: Does the ques-
tion matter to modernity? Does the question matter to comparative studies? Instead, we need
to think whether our question betrays us by lumping together realities that may have differences
between each other and those differences are important. Let me ask one last question. As I
said, I would like to read the chapter closely and with care to taste your ideas, but I like the idea
of thinking of language as amorosidade, um movimento de coração, that you have found in Freire.
Am I correct?
ANA PAULA: Yes, in Freire and Faundez (2011 [1985]). Before answering your question,
I would like to open a parenthesis to explain that Freire liked to challenge the academy and one
way of doing so was writing letters and publishing transcribed oral recorded conversations.
Medo e ousadia and Por uma Pedagogia da Pergunta are two of those books, in which he discusses
extensively with Macedo, in the first book (FREIRE; MACEDO, 1986), and Faundez, in the
second one (FREIRE; FAUNDEZ, 2011 [1985]), concepts of language and what we nowadays
call linguistic education. In Por uma Pedagogia da Pergunta, Freire and Faundez discussed this
idea of language as something that comes from our heart. Based on this discussion, can’t we say
they are challenging the duality of emotion-rationality? I understand they are and, for me, this
is an innovative idea that puts in check the duality that is commonly attributed to Freire’s ideas.
On the contrary, in my readings, I find him emphasizing that we have to do things with love,
we have to bring things from our heart and that gestures, for instance, are also language. I may
be mistaken, but I understand he emphasizes there is no duality, since emotion and reasoning
are intrinsically interconnected.
GABRIELA: Definitely, I liked the idea of language and loving. In my presentation fol-
lowing yours, I will talk very briefly about translation as love. It particularly called my attention
because the thinking and praxes of love as resistance may not necessarily be found in the au-
thors of modernity/coloniality but in the work by Women of Color in the US. They talk about
love as the opposite, not of hate, but of fragmentation. Somebody like Lugones, whom I will

200
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

talk about in my presentation, says that social fragmentation in classes, genders, and races,
that is, in the modern classification-identification-differentiation of people, splits people into
categories and fragments us. We cannot identify with each other through these categories and,
because we cannot identify with each other, we cannot love each other. So, it is a very simple
but profound idea of what it means to love that is not naive and has nothing to do with intimacy
or body ties, but it is loving as political action. I understand your desire to connect to sentipen-
sar. I have some problems with the term ‘sentipensar,’ because I think it (the term) holds to the
emotion-reason split, to me the gesture to put emotion (sentir) and reason (-pensar) together
in one word does not do enough to overcome the duality; but this is not important here. So, I am
keeping the essence of what you are bringing to the possibility of love from the Freirean idea.
I don’t have any more questions. I am sure the audience has and I will bring more questions
to you when I have the time to read your text carefully.
ANA PAULA: Thank you very much. Gabriela, I would like to add a little bit more to this
conversation and say that Freire brings this idea of love as a political action in his books. For him,
love is an act of courage; the legitimate anger at injustices and the strength to fight against them
are demonstrations of generosity and genuine love. The last words he wrote before dying was on
April 21st, 1997. In a letter, he analyzed the murder of an indigenous man by some middle-class
youths in a bus station in Brasília. When asked by the police why they had committed the crime,
they answered they were just kidding. Astonished, Freire wrote: “What a strange thing to play
of killing people. I keep thinking here, plunged in the abyss of a deep perplexity by the in-
tolerable perversity of these young men in their process of dehumanization” (FREIRE, 2021
[2000], p.75). (em português, desgentificando-se, no ambiente em que decresceram em lugar
de crescer). In a three page letter, Freire demonstrates his indignation and invites us to reflect
about life, love, responsability, ethics, and the intersectionality of class, race, gender, social po-
sition, etc. He also calls us to assume our duty to fight for ethical principles such as the respect
to the life of any human being, the life of other animals, the life of birds, the life of rivers and for-
ests. In his last words, he says: “disrespecting the weaks, cheating the unwaries, offending life,
exploring others, discriminating the indigenous people, the black people, the women, I will
not be helping my sons and daughters to be serious, fair and loving of life and others. [(amoro-
sos da vida e dos outros)]” (FREIRE, 2021 [2000], p.77).
PHELIPE: Muchas gracias, Gabriela e Ana Paula. Seguimos, então, para o momento
do chat.
DANIELLE: Olá, boa tarde! É com muito prazer que estou aqui novamente, dessa vez,
participando desse encontro com as professoras e pesquisadoras Ana Paula e Gabriela, mais
ainda com nossa audiência formada por pessoas que querem aprender e desaprender cada
vez mais, ampliar os horizontes, revisitar suas práticas não só educacionais, mas sociais tam-

201
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

bém. Eu tenho aqui uma pergunta: Ana, achas que há diferenças entre o pensamento de Freire
e o pensamento decolonial? Quais seriam?
ANA PAULA: Yes, I do and I am not bringing Freire to the conversation to say he has
the answers to all the questions we are asking nowadays. What I am trying to do is deep-
en my comprehension of Freire’s ideas and establish kinships between his concerns and what
we are reading and discussing from a decolonial perspective nowadays. First of all, I think that
Freire, in the beginning of his work, was really concerned with class and, during his life, he kept
on including other aspects, such as race, gender, etc, but he has not abandoned the centrality
given to class and this is one difference to decolonial studies.
GABRIELA: I agree with you that the big thing in decolonial studies, in Quijano’s un-
derstanding of modernity/coloniality/decoloniality, is to bring the relationship and articulation
between class and race to the foreground in our analysis of capitalist relations of power. This
is the most important contribution by Quijano and also by Lugones, who brings gender into
the picture and adds to and complicates Quijano’s understanding, in order not to think about
class, race, gender separately but articulated. What I am understanding is that you are saying
that Freire does not work with them in this intersectional and articulated manner, but instead
he tends to add one category to another. 
ANA PAULA: Yes, I think that if he was here today with us he would be talking about
intersectionality in a deeper perspective. Before dying, Freire had written two letters and was
writing another one after the assacination of an indigenous man in Brasília by some medium
class boys, as I mentioned. Writing about this happening, he brought the idea of the perver-
sity of seeing people who are different from us as things, not people. He confesses the feeling
of understanding those guys as human beings who have passed through the process of desgen-
tificar-se, or dehumanizing. In the same book, Pedagogia da Indignação, he emphasizes the in-
tersectionality while saying that different categories work together in the process of dividing
and classifying us. So, we can see he was concerned with different subjectivities. Something
else that I would like to mention is the concepts of liberty, empowerment and conscientization
in Freire in dialog to the process of decolonizing ourselves that we have been discussing at the
moment. Freire advocated for the idea of becoming conscious in contact with others and was
always talking about social contexts and groups but not forgetting the individuality and, be-
cause of that, he was always bringing examples of himself as an individual with values, fails
and achievements. Other aspects that we can talk about are the ideas of emancipation and revo-
lution frequently associated with negative connotations to Freire. In his perspective, emancipa-
tion is a group process and revolution is a consequence of conscientization, that is, a result of a
critical education which develops emotional and intellectual strength and eagerness to construct
a better world. In this sense, education is a political action and love and hope as verbs are part
of the revolutionary process. Revolution will be achieved by conscientization and the engage-

202
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

ment with praxis that denounces injustices and work for a better world, with hope, as explains
Crawford and McLaren in Freire’s Dictionary (2019). So, it is a process triggered by love and ea-
gerness to transform reality. Revolution may also occur in terms of language. In Por uma peda-
gogia da esperança, for instance, Freire and Faundez talk about the necessity of revolutionizing
our language, that is, changing its sexist characteristics to change our sexist society. This exam-
ple illustrates how Freire believes in conscientization as a process of individual and collective
changes. Differently, nowadays, we do not use the term revolution, but we discuss the idea
of decolonizing ourselves and creating conditions for the construction of a decolonial project.
Maybe, the conscientization process as defined by Freire is part of this construction, as is love
and hope, in his terms.
DANIELLE: Ana, falando sobre essa revolução e como você diz “emancipation as a
group” e, por outro lado, como indivíduo, eu tenho me questionado isso. Quando entrei nesse
processo de imersão, de quando a gente percebe que é oprimido, como professor, em alguns
ambientes de trabalho, porque a gente tem ainda padrões de poder, seja os que vem do estado,
do nosso gestor, de alguns pais, das escolas em que a gente trabalha, fico pensando: como supe-
rar os desafios do professor oprimido nesse contexto, como promover uma prática de educação
libertadora, se a gente, muitas vezes, não se sente ainda livre?
ANA PAULA: Dani, as Freire explains we may be oppressed and oppressors in different
circumstances and as educators the situation is not different. We have been more and more
controlled by official laws, unofficial discourses, different kinds of assessments, local documents
and necessities. But, in the process of getting conscious of who we are, where we are, we are able
to ask more and more questions and these are important steps that may not be ignored or di-
minished. So, if we are able to ask a question in class that helps students to understand the pro-
cess of getting into a chain of asking questions, we are giving a very good contribution.  Freire
and Faundez (2011 [1985]) emphasize that, unfortunately, we still have a pedagogy of answers
and not of questions and we have to change this process. By developing a Pedagogy of questions,
we may involve the whole group (teachers and students) in an important process of taking risks
and engaging ourselves with love and hope.
DANIELLE: Quem sabe a gente conquiste a liberdade juntos, então.
[...]
GABRIELA: May I ask a question that just occurs to me? I am sure you are used to being
questioned when using Latin Americans or intellectuals from the Global South, why are you us-
ing them, which is not the case when using, for example, Foucault or other critical authors
from Europe.  Example: Why Foucault? Do you think Foucault is relevant?  How do you think
Foucault is relevant? These questions that have been brought to you right now. I am not judging

203
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

them because they are important questions to think about, but we are never asked the same
way about European authors. Is that your experience?
ANA PAULA: Yes, you have asked me why I have decided to go back to Freire and estab-
lish relations with decolonial studies and this is one of the reasons.
GABRIELA: Actually, you know why, you know the answer.
ANA PAULA: Yes, this is part of our coloniality.
GABRIELA:  I think, when that question comes, it is a good moment to mark the fact
that intellectuals from the South are racialized and localized, in a way that intellectuals from
the North are not. So, we are not replicating universality. It is always an interesting opportunity
to go into the discussion of what is to decolonize and turn the map around. 
ANA PAULA: I couldn’t agree more. Thank you, Gabriela and the audience.

Referências

ALTAMIRANO, A. F.A. Where is Paulo Freire? The International Communication Gazette, v. 78, n.
7, p. 677-683, 2021.
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 47. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020 [1967].
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1968.
FREIRE, P. Cartas à Guiné-Bissau: Registros de uma experiência em processo. 6. ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2019 [1977].
FREIRE, P.; FAUNDEZ, A. Por uma pedagogia da pergunta. Rev. e trad. Antonio Faundez e Heitor
Ferreira da Costa. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011 [1985].
FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e Ousadia – o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Trad. Lólio Lourenço
de Oliveira. 8a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021 [1987].
FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Notas de Ana Maria
Araújo Freire. 28a. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021 [1992].
FREIRE, P. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora
Unesp, 2000.
FREIRE, P. Cartas a Cristina. Reflexões sobre minha vida e minha práxis. 4a. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2021 [2014].
MENEZES DE SOUZA, L. M. T. Para uma redefinição de Letramento Crítico: conflito e produção
de significação. In: MACIEL, R. F.; ARAUJO, V. A. Formação de professores de línguas – ampliando
perspectivas. Jundiaí: Paco Editorial, 2011. p.128-140.

204
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona:
Gedisa Editorial, 2007.
QUIJANO, A. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL,
R. (comps.). In: El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo
global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar/ Universidad Centraliesco/ Siglo del Hombre
Editores: 2007, p. 26-46.
SOUSA SANTOS, B. Por quê as Epistemologias do Sul agora? I Ciclo de Estudos do Pensamento
de Boaventura de Sousa Santos. 16 jun. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=YOBMwuBBIMw. Acesso em: 17 set. 2021.
VERONELLI, G. A. La colonialidad del lenguaje y el monolenguajear como prática lingüística
de racialización. Polifonia, Cuiabá, v. 26, n. 44, p.146-163, out.-dez, 2019.
VERONELLI, G. A. Sobre la colonialidad del lenguaje. Universitas Humanística, Bogotá, no 81, p. 33-
58, jan.-jun, 2015. .

205
O JAMAICAN BLUE MOUNTAIN E CONJECTURAS PARA
DECOLONIZAR A AVALIAÇÃO EM LÍNGUA INGLESA

Zelir Maria Bieski Franco


Instituto Federal do Paraná

E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem
pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso aconteci-
do, não senhor.
- A hora e vez de Augusto Matraga – João Guimarães Rosa -

A estória verdadeira e inventada que você está decidindo se irá ler surgiu de alguns mo-
mentos, um deles foi um certo congresso em que aconteceram conversas que geraram pensamen-
tos que estão ainda formando e rompendo conexões.

Uma nota sobre a dialogia das vozes do texto

O leitor irá perceber que sou um narrador intruso. Essa atitude custou-me bons dias de re-
flexão e exercício no desafio de lidar com as vozes que teimavam em se fundir com a minha.
Foi uma verdadeira “arena of never-ending struggle with other’s words”. Vivi o “the problem of trans-
mitting another’s speech… the assessment of the speech of others, the discourse of another…”1. Nessa
luta, de início batalhei arduamente para cuidar em não misturar o meu discurso com o discurso
do outro. No entanto, vi que, ao contrário das missões de Ethan Hunt2, a tentativa de distin-
guir totalmente as vozes que se cruzam às nossas como se tivessem fronteiras definidas é um
empreendimento realmente impossível. Assim, se por vezes até arrisquei alguns marcos, como
se reportasse literalmente o que ouvia, o que vejo na maioria é o entremeio de eus que se mis-
turam no discurso. Tenho a impressão que fiz mesmo traduções. Translation, like the knowledges
interconnected horizontally in an ecology, rather than signifying a total transference of meaning, implies
incompleteness and ignorance and the need to overcome both… 3
1 BAKHTIN, M. Discourse in the Novel. In: The Dialogic Imagination – Four Essays by M.M. Bakhtin; Ed. by Michael
Holquist. Translated by Caryl Emerson and Michael Holquist. University of Texas. Austin, p.259-422,1992; p.
citadas:349;337.
2 Ethan Hunt: o agente secreto da série de filmes Missão Impossível, lançado pela primeira vez em 1996.
3 MENEZES DE SOUZA, L.M. Glocal Languages, Coloniality and Globalization from Below. In: Glocal Languages
and Critical Intercultural Awareness. The South Answers Back. Edited by Manuela Guilherme and Lynn Mario T.
Menezes de Souza, Nova York: Routledge, 2019. p. 17-41.

207
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Na interação, na escuta, na batalha das vozes, entram no diálogo Camila Haus (H) e Lynn
Mario Menezes de Souza (MS) trazendo epifanias a um momento de precioso descanso de um
certo professor de inglês.

Um pacote de provas, café, conexões e rupturas

O professor de inglês decidiu ir ao Café. A próxima aula seria em duas horas. Tinha apenas
que atravessar a rua e andar uma quadra. Poderia descansar um pouco, rever os planejamentos,
olhar as mensagens, corrigir as provas, sair, enfim, por algum momento, do agitado ambiente
da escola.
Naquela tarde de quinta-feira de final de abril, o ar gelado avisava sobre o inverno que já
estava a caminho. O professor apressou-se e sentiu alívio quando empurrou a porta com o con-
vite “open”. Ao entrar, mirou uma mesa onde pudesse ficar isolado da vista fácil, sentou-se, abriu
a mochila e retirou o computador.
O local estava quase vazio naquela hora do dia. Quatro ou cinco frequentadores espalhados
no espaço que não era reduzido conversavam, riam, entre xícaras fumegantes. Eles pareciam vi-
sivelmente alegres, como se usufruíssem de um pouco de normalidade na rotina quase pós-pan-
demia. As mesas, pequenas e grandes, de madeira aparente e contendo objetos de época, pro-
duziam efeitos nostálgicos na iluminação difusa. O som baixo do jazz e posters dos anos 50 nas
paredes intensificavam a atmosfera tranquila fazendo parecer que a vida podia ser desacelerada,
que era possível viver sem muito barulho.
Serviam ali várias opções para beber e comer. Tinham café de diferentes procedências, sa-
bores, tipos e preços. Sempre que vinha, e era com alguma frequência, o professor bebia um con-
siderado mediano para os padrões locais e comia algo para acompanhar. Mas naquele dia era
seu aniversário, de modo que decidiu que beberia um Jamaican Blue Mountain. Não tinha nenhu-
ma expectativa em celebrar os 47 anos, apenas tomou a data para justificativas intimistas e pediu
o Blue Mountain. Provavelmente iria querer prolongar os sonhos na montanha azul, amava café,
pediria outro quando o primeiro acabasse.
Enquanto esperava o café, olhou para a tela do computador que já estava conectado ao wifi
do local e entrou na página da escola e na planilha de notas. Abriu o pacote de provas e começou
a corrigi-las. Corrigia rápido – tinha experiência e a chave das respostas: True or False– Fill in the
Blanks– Complete the spaces with the correct word– Circle the correct verb form. Tranquilamente
daria tempo de entregar as provas ainda na aula daquele dia. Evitaria as perguntas insistentes:
“corrigiu as provas professor?” / “And the tests, teacher, you correct?” “Our grades are good?”
No final do semestre os estudantes ficavam particularmente ansiosos com as avaliações
parecendo muito preocupados com as notas. Quando começou a ministrar aulas, o professor
costumava contra-atacar essas demonstrações de ansiedade. Argumentava que o objetivo das au-

208
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

las não deveria ser as provas ou as notas, que estas eram apenas uma parte, um desdobramento
do processo de aprendizado, mas ultimamente não fazia mais isso.
O professor bebia lentamente o café e corrigia mecanicamente as provas sentindo o calor
da xícara entre as mãos; pensava nas mudanças intensas na sua vida que vinham acontecendo
em um curto espaço de tempo. Em dias não muito distantes ficaria convencido que tinha feito
um bom trabalho com o ensino da Passive Voice. As notas estavam muito boas. Até aquele mo-
mento, três 10, quatro notas acima de 90, algumas com mais de 80, apenas um 76. M, quem diria,
ficou com 87. A entrega das provas seria um acontecimento feliz.
Ao olhar para a boa nota de M, o professor relembra em como ela enfrentou momentos
épicos nos estudos da Passive Voice. Por que não conseguia entender as explicações? As diferen-
tes técnicas de abordagem empregadas, os esquemas visuais das regras da gramática, as práti-
cas extensivas no livro didático. Todos da turma entendiam, menos ela. Não importava o modo
como as explicações eram repetidas, reformuladas. O professor sentava a seu lado fazendo junto
os exemplos, lendo as definições das regras e trazia exercícios extras. Todas as intervenções adi-
cionais que sempre davam certo pareciam sem efeito com aquela estudante. Sem saber o que
mais fazer, ele passou então a ignorar os comentários, os queixumes; evitava olhar a expressão
de desalento da jovem. Ela também silenciou. Depois de algum tempo não fazia mais referência
às dificuldades com a gramática. Até que um dia o professor a percebeu diferente, mais alegre,
descontraída; parecia participar das aulas. Observou-a sem dizer nada. No final de uma das au-
las, quando os outros já haviam saído, a aluna se aproximou:
— Teacher, você não vai acreditar! Acho que aprendi a Passive Voice e agora estou também
aprendendo o Present Perfect!
— Olha, que bom.... — O professor interagiu, sem corresponder ao entusiasmo dela.
Ela o interrompeu e foi explicando que estava aprendendo com vídeos na internet.
— Encontrei no youtube, teacher, uma pessoa, uma moça, que explica as coisas em inglês,
achei bem legal, ela explica, assim, os assuntos do livro sabe, que a gente estuda. Ela é do Brasil,
mas aprendeu inglês sozinha. Achei bom pra reforço, né teacher?
— Sim, sim, claro! completou o professor, em uma brecha na empolgação da garota.
— Vou deixar o link pra você ver, teacher, esses dois vídeos. Copiei aqui nesse papel, se você
quiser passar para a turma...Disse entregando-lhe um retalho de papel.
O professor lembrou-se que a tinha visto compartilhar o endereço com dois colegas duran-
te a aula. Para finalizar de vez o momento, ele congratulou a aluna e tratou de encerrar o assunto.
Em casa, achou um tempo e assistiu aos dois vídeos, que não eram longos. Ficou emudecido
ao ver como a “professora”, que informou ter dezessete anos e estar finalizando o ensino médio,
explicava de modo claro e envolvente, com a habilidade de desfazer a chatice das regras gramati-
cais da passive voice e do present perfect. Como conseguia aquilo sem nunca ter estudado linguís-

209
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

tica aplicada permaneceu um mistério para o professor. A jovem disse que era aluna da escola
pública, que adorava inglês e queria estudar Letras.
Na aula seguinte o professor teria que dar uma resposta à sugestão da sua aluna. Após
as saudações de rotina, mencionou a contribuição trazida por M sugerindo os vídeos como ma-
terial de revisão. Escreveu os endereços dos vídeos no canto do quadro e tratou de mudar para
o assunto da aula do dia. Na primeira oportunidade de apagar o quadro aproveitou e apagou
também os endereços.
Ao seguir com a aula, o professor tentava esquecer a imagem da garota ensinando inglês
no youtube. Ele tentou retomar o estilo autoconfiante ao lembrar da sua formação em Letras,
dos aprimoramentos do inglês fora do Brasil, dos exames internacionais de proficiência, que ti-
nham assegurado por muito tempo a credibilidade do seu trabalho. Ainda tinha muito orgulho
das marcas do sotaque de Londres no seu inglês. Antes de passar no concurso e começar a lecio-
nar naquela escola pública, ele havia ensinado inglês durante um tempo considerável em um ins-
tituto de idiomas. Naquele tempo viajara e tivera muitos treinamentos. Mesmo depois, com a vida
profissional estável de servidor público, ele mantinha o hábito de estar sempre atualizado sobre
as novidades das técnicas e metodologias no ensino de inglês. Continuava fazendo os cursos pro-
movidos pelos especialistas das editoras internacionais que vendiam os livros didáticos e também
participava de webinars promovidos por instituições renomadas, assim como o British Council.
Tudo estaria harmonioso na vida do professor, não fosse o fato de que, ultimamente, ele es-
tava percebendo que o modelo de curso de línguas que era eficaz no instituto de inglês e que
ele tentava reproduzir parecia não funcionar da mesma forma na escola regular. No contexto
educacional escolar, era desafiador manter a atenção dos alunos para as atividades cronometra-
das do livro didático. Os trabalhos de pair/group work altamente indicados pelo livro na prática
das competências linguísticas também não rendiam – os alunos não se concentravam, desviavam
o assunto das atividades e insistiam em falar português. O ambiente físico da sala de aula repleta
de carteiras também não contribuía. Era trabalhoso e barulhento organizar os alunos em pares
e grupos. Mesmo assim ele insistia, sem entender por que as aulas no curso de idiomas fluíam,
o método funcionava, enquanto ali, na escola, isso não acontecia do mesmo modo. O livro que es-
tavam usando agora, e que ele próprio havia sugerido, era muito conceituado – de Cambridge.
Toda a experiência de estudo e trabalho com a língua inglesa na vida do professor eram, na-
turalmente, associadas ao livro didático. Era o mesmo que o garfo para o prato, o sabão e a toalha
para o banho, o calçado para os pés – ninguém ousa questionar a inseparabilidade desses elemen-
tos. O livro mostrava o caminho aonde se deve chegar com os conteúdos a cada semestre, a cada
ano. Aquele livro didático também era bom porque trazia no resource pack as provas prontas que o
professor utilizava nas avaliações. Aquelas provas eram muito práticas, cobriam todo o conteúdo
trabalhado, eram rápidas para corrigir e, geralmente, nem mesmo precisavam de adaptações.
Ele usava o livro, mas era sensível às características de aprendizado do tempo atual. Estava
atento às preferências dos jovens que viviam grudados na internet e às discussões nos treina-

210
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

mentos sobre o ensino de inglês que alertavam para a necessidade de trabalhar o letramento
digital na educação escolar. Sempre procurava brechas no livro didático para incluir outros tipos
de textos e vídeos nas aulas. Buscava também considerar o componente crítico no aprendizado
de inglês. Embora não fosse formado em pedagogia, ouvia sobre as ideias de Paulo Freire e leu
alguma coisa do autor, de modo que incluía perguntas nas atividades do livro para instigar os alu-
nos a pensarem sobre as autorias e finalidades dos textos. Assim, o professor acreditou por muito
tempo que tinha encontrado um caminho equilibrado e atualizado para seguir nas suas aulas.

Porque os rumos mudam, nem tudo se explica

Contudo, as coisas estavam mudando. Mudavam para além do que parecia ser o tipo de mu-
dança natural, inevitável com o passar do tempo. Na trama dedicadamente tecida de sua vida
de ensinar inglês, linhas inesperadas, estranhas, vinham se conectando e algumas que pareciam
bem amarradas mostravam sinais de ruptura na vida do professor. Essas conexões e rompimen-
tos vinham se intensificando há algum tempo, mais precisamente desde que decidiu ingressar
em um grupo de estudos em uma universidade pública, no objetivo de amadurecer conhecimen-
tos em alguma área de pesquisa para ingressar na pós-graduação.
No começo ele achou tudo muito estranho, diferente, naquele grupo. Os estudos que dis-
cutiam línguas/linguagens em questões educacionais e na perspectiva pós-estruturalista / deco-
lonial4 não pareciam se encaixar no trabalho de ensino de inglês que ele conhecia e desenvolvia.
Os textos que eram discutidos confrontavam as certezas da linguística aplicada, que até ali tinha
dado rumos seguros para o seu trabalho de sala de aula.

4 A aproximação entre concepções pós-estruturalistas e decoloniais de língua/linguagem se mostra plausível. Ao analisar


as visões de língua trazidas pelo estruturalismo saussuriano, os pensamentos de Bakhtin (2005; 2000) e de Volochinov
(1997) observam que nessas visões o sujeito/eu social e individual é abstraído da língua que se torna reificada/
objetificada. Também nessa crítica, Deleuze e Guattari (1987) observam que a gramática no modelo estruturalista
arbóreo de Noam Chomsky não consegue conectar a língua aos valores semânticos da pragmática que formam conexões
coletivas da enunciação no todo micropolítico do campo social e que reverberam no individual. Isso porque, dizem
os filósofos, a lógica binária e bi/uni/vocal, domina os campos da linguística e do estruturalismo; a marca chompskyana
do símbolo S, que domina cada sentença é, mais que um marcador sintático, uma marca de poder. Para construir sentenças
gramaticalmente corretas é preciso dividir cada uma em frase nominal e frase verbal determinando uma língua como
referência para os universais linguísticos, pontuam. Corroborando a crítica à noção de língua como formação homogênea
e fragmentada, assim celebrada pelo estruturalismo, as discussões decoloniais veem como inseparáveis as dimensões
políticas da língua/linguagem como constituinte do sujeito/eu social e individual (MOITA LOPES, 2006). Nessa esteira,
Makoni e Pennycook (2007) expõem que projetos de política coloniais se valem da noção estruturalista de língua única/
homogênea para estabelecer domínios.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de: BEZERRA, P. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora
Forense Universitária, 2005.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Tradução de: GALVÃO, M. E. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. A thousand plateaus: Capitalism and Schizophrenia. Tradução de: MASSUMI, B.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987.
MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. Disinventing and reconstituting languages. In: MAKONI, S.; PENNYCOOK, A.
Disinventing and reconstituting languages. Canada: MPG Books, p. 1-41, 2007.
MOITA LOPES, L.P. (org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais de método sociológico
da linguagem. 7.ed. Editora: Hucitec. São Paulo, 1997.

211
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Apesar da estranheza daquele mundo novo, era interessante e muitas vezes até divertido
ler e discutir aquelas coisas, perceber argumentos que desmantelavam as imposições coloniais
e estruturalistas das “verdades” sobre língua, sobre ensino-aprendizagem de inglês. Conceitos
há muito tempo legitimados de língua, de falante nativo, de gramática, de erro, de correção,
de interlíngua, de fluência, de proficiência linguística, de avaliação, que por décadas sedimen-
tam teorias e ditam rumos no ensino e aprendizagem de inglês, agora, naquelas novas reflexões,
começavam a se diluir; facilmente viravam pó na filosofia da linguagem dialógica. As noções
congeladas, certeiras, sobre ensinar e aprender inglês parecem não mais se sustentar depois
que o professor começou a ver a língua e os processos de formação de sentidos em concepções
de múltiplos letramentos, que consideram o pensamento rizomático, não linear e, muitas vezes,
incontrolável em formações de multiplicidades. As direções que pareciam sólidas nos comandos
do livro didático agora se desinventam com facilidade nos argumentos decoloniais de língua
que expõem as realidades do inglês multifacetado, fluido, como língua franca. Nas vozes com as
quais o professor estava interagindo, as indicações metodológicas de ensino prêt-à-porter já não
convencem de forma tranquila. Ao contrário, tudo é crivado de por ques? mas, poréns, e ses...
Agora o professor se via questionando os saberes e meios que aprendera a ver como alia-
dos incondicionais. Além de rasurar as certezas teóricas sobre o ensino-aprendizagem de in-
glês, o professor agora questiona, sem quase perceber, o tipo de material didático que por anos
ele teve como abrigo de bons modelos da língua, como o chão seguro das explicações metalin-
guísticas que definem exemplos corretos da gramática. Passou a desconfiar das páginas colori-
das, a perceber as estratégias das imagens que complementam os textos fabricados, adaptados
para organizar a língua como em embalagens Tupperware.
Mas essas formas outras de olhar as realidades não provocam no professor apenas sen-
sações de novas descobertas. Os deslumbramentos dos últimos aprendizados que estão mo-
dificando compreensões trazem também uma solidão nova e profunda. Com frequência sente
angústia, um aperto no peito, um vazio. Ele não consegue compartilhar com ninguém que está
se metamorfoseando em outro. Em um mundo kafkiano, o professor está perdendo as refe-
rências do que o constituía: de pessoas, de lugares, das formações sobre o trabalho de ensinar
inglês. Tudo está ficando irreconhecível, mas ao contrário de Gregor Samsa5 todos que o co-
nhecem não o veem diferente. Na escola, com os amigos e com a família, ele parece absoluta-
mente igual – o professor, amigo confiante, familiar prestativo, cheio de certezas, com o sorri-
so em prontidão. Internamente, porém, trava batalhas. Sente-se um ser estranho. Tudo o que
ele havia arduamente estudado na graduação, nos treinamentos, para ser um bom professor
está em xeque. Deveras, ele está ficando sem rumo. Quando está preparando as aulas, ou já
em sala, assim como K6, sente culpa; como se estivesse sendo acusado de algo que não sabe ex-
plicar. Ele que sempre dormiu muito bem, agora quando se deita para descansar demora a pegar

5 Gregor Samsa: personagem de A metamorfose de Franz Kafka- 1915


6 Josef K: personagem de O Processo de Franz Kafka– 1925

212
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

no sono. Na verdade, quase não dorme mais. Em estado de sonho, ou delírio, em sua mente
entrecruzam-se comandos das aulas com os textos que anda lendo:

Our position that languages are inventions is consistent…


It was the metadiscursive regimes of European thought that produced
the histories and the languages of the empire from the materials they found
in the field …
This project of invention needs, therefore, to be seen not merely as part of European attempts to design
the world in their own image, but rather as part of the process of constructing the history of others
for them, which was a cornerstone of European governance and surveillance of the world…
…language use itself is anything but dynamic and changing7

we are now open to norms being co-constructed


intersubjectively in each situated interaction by interlocutors in
global contact zones…
They develop another norm that deviates from native speaker varieties.
According to the emerging orientation, multilingual speakers negotiate English according to their
values, interests, and language repertoires in each interaction.
What accounts for success is not the fact that they share a single Norm. 8

7 MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. Disinventing and reconstituting languages. Canada: MPG Books, p. 1-41, 2007.
8 CANAGARAJAH, S. In Search of a New Paradigm for Teaching English as an International Language. TESOL Journal,
v. 5. n.4, p. 767-785, 2014.

213
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Isso significa que já não basta entender o letramento crítico como um processo de revelar ou desvelar
as verdades de um texto construídas e tendo origem no contexto do autor do texto. Entendemos agora
que o processo é mais amplo e complexo: tanto o autor quanto o leitor estão no mundo e com o mundo9

As implicações da visão pós-estruturalista para os professores de línguas estrangeiras são imensas.


Conceber língua como discurso, dentro desta visão, significa perceber as estruturas de poder que per-
meiam a língua; significa conceber o conhecimento como determinado social e linguisticamente; signi-
fica entender língua e cultura como indissociáveis, ou seja, inseparáveis a língua não é percebida como
um código a ser decifrado, um emaranhado de pistas que devemos investigar.
Ao invés de mediar nossas relações com o mundo, num mundo supostamente transparente e neutro,
a língua constitui nosso mundo, e não apenas o nomeia. Ela constrói discursos, produz efeitos de sen-
tido indissociáveis dos contextos em que se constituem.10

Multiple Literacies Theory’s (MLT) focus is on the nature of literacies as processes. Current theories
on literacies examine literacies as an endpoint, a product.
…an important aspect of MLT is focusing on how literacies intersect in becoming. This is what MLT pro-
duces: becoming, that is, from continuous investments in literacies literate individuals are formed…
A person is a text in continuous becoming…
These transformations occur in a rhizomatic way.
A rhizome has no center or grounding. Its connections grow and intersect. It signals neither
beginnings nor endpoints, only entry and exit points that allow for more connections to be continuou-
sly created… 11
9 MENEZES DE SOUZA, L.M. Para uma redefinição de Letramento Crítico. In: MACIEL, R. F.; ARAÚJO, V. A. (Orgs).
Formação de professores de línguas: ampliando perspectivas. Jundiaí: Paco Editorial, 2011. p. 128-140.
10 JORDÃO, C. M. O ensino de línguas estrangeiras – de código a discurso. In: KARWOSKI, A. M.; BONI, V.F.C. (Orgs.).
Tendências contemporâneas no ensino de línguas. União da Vitória: Kaygangue, 2006. p. 26-32.
11 MASNY, D. Multiple Literacies Theory: how it functions, what it produces. Perspectiva, Florianópolis, v. 28, n. 2, p.
337-352, 2010.

214
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Por que não tentava recuperar a normalidade da vida, o sono, resolvendo esses dilemas
saindo do grupo de estudos? Haveria de ter outros. Poderia seguir com a ideia de pós-graduação
em caminhos mais previsíveis, pegar algum atalho no que já está pavimentado. A área de Letras
é vasta.
Não é fácil explicar. É como se aquelas novas leituras e discussões agissem como um farol
em um oceano até então desconhecido, mas onde agora ele já estava. Desde que foi chamado
a to visit the sea, a luz pulsante atraía. Ia iluminando pontos entre ondas que espumavam outras
perspectivas de conceber as realidades que até bem pouco tempo o professor não imaginava
que existissem:

But no man moved me till the tide


Went past my simple shoe,
And past my apron and my belt,
And past my bodice too12.

É isso. Alguma conexão o colocou em outros lugares, outras águas. O professor foi deixan-
do a maré ir tocando os pés, o avental, o cinto, o corpo todo. Nessas sensações, entrou no outro
barco e começou a navegar por outras linguagens náuticas, outros ventos teóricos, outras formas
de ver, de tentar pensar a sala de aula de inglês – não conseguia resistir à viagem que evidenciava
mares incertos, que ia mostrando belezas e inseguranças nos processos de ensinar-aprender /
performar línguas / linguagens.
Nesses caminhos, é preciso dizer que o professor também experimentava alentos. O per-
curso ia ensinando a olhar para os arranhões, para os furos do barco quando apareciam, de uma
forma diferente. Ao invés de fechar os olhos para as complexidades de seu trabalho, o professor,
agora, estava no exercício de viver a sala de aula e não de apenas estar nela. Estava aprendendo
a não fugir do que era incômodo, de não fazer de conta que as realidades da educação em lín-
guas/linguagens são simples. Nesses aprendizados, ele ia entendendo que não deveria assumir
sozinho a pressão de consertar roturas como se fossem unicamente causa das suas limitações
individuais. Estava compreendendo que nem todas as ranhuras e furos produzidos pela moder-
nidade e colonialidade no universo educativo escolar poderiam ser facilmente, imediatamente,
reparados. No entanto, as avarias, os desconfortos, não deveriam impedir de continuar a na-
vegar e de aportamentos – provisórios – mesmo se o barco não estivesse perfeito, totalmente
pronto. O barco nunca estaria perfeito, seguro. Nunca esteve, como ele tinha, por um longo
tempo, acreditado. Mesmo assim, chegadas poderiam acontecer, de forma temporária – convi-
ver com o inacabado pode ser incômodo e também o impulso da vida.
Os consolos compartilhados ajudavam um pouco, mas as convicções do professor que já
estavam bastante remexidas continuavam sofrendo novas ligações e rupturas. Digo-lhes que às

12 Emily Dickinson: I started early – took my dog, 1862.

215
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

vezes a vida decide que o tratamento deve ser intensivo e, na maior parte do tempo, em treina-
mentos bastante personalizados. Agora o professor também se via questionando as avaliações
que ele costumava aplicar.

Intensificações no tratamento personalizado

Outro 10 do aluno R – O terceiro no semestre! sussurrou o professor.


Ao olhar a prova perfeita, o professor quase se alegrou como fazia instintivamente. No en-
tanto, o sorriso que começou a esboçar foi se diluindo. Que crédito dar a um tipo de avaliação
que pretende medir o desenvolvimento da língua em números? Quais critérios podem afirmar
que a capacidade comunicativa de R é superior a M com 87, ou ao 76 de J?
Estava quase finalizando a correção quando pediu outro café e um croissant. Enquanto
sorvia a quentura frutada do Blue Mountain, ele organizou a distribuição das provas já corrigidas
como um leque sobre a mesa. Conseguia visualizar todas as notas em um único lance de olhar.
Nenhum aluno para recuperação – nenhum chamamento para explicar notas abaixo da média.
Contudo, ao olhar as provas, sente que o brilho daquelas boas notas que deveriam sina-
lizar o sucesso de seu trabalho estava embotado. Em pouco tempo terá que enfrentar ao vivo
o mundo da sala de aula. Entregará as provas, fará comentários positivos para estimular os alu-
nos e seguirá com as aulas de inglês em paradigmas que devem funcionar de Cingapura ao Brasil.
O professor teme nunca mais recuperar o lugar estável de até bem pouco tempo quando sua vida
de trabalho era metódica, organizada, sem conflitos.
Quando ia juntar as provas para colocá-las no saquinho de plástico, para finalmente ter-
minar em paz o que restava do Blue Mountain, foi inundado por lembranças do Congresso
DELA, que tratou de diferentes questões envolvendo língua/linguagem e que havia aconte-
cido durante a pandemia, no modo remoto. Ele havia participado do Congresso por indica-
ção do grupo de estudos. Agora, nesse momento de rara quietude, em velocidade acelerada,
o professor revivia momentos de uma fala sobre avaliação em línguas/linguagens na perspectiva
pós-estruturalista/decolonial empreendida por dois pesquisadores que debateram – debatiam
ainda, para ele – as formas de avaliar o ensino-aprendizagem em língua inglesa. Assim como
acontecia no grupo de estudos, aquela conversa no DELA levantou pontos instigantes. No en-
tanto, ao invés de alimentar reflexões, ao término da conferência o professor evitou pensar
no assunto. Os textos que já vinha lendo e a rotina intensa de trabalho fizeram com que ele de-
sejasse esquecer aquelas discussões sobre avaliação – não tinha energias para pensar sobre mais
esse ponto que liquefazia as certezas da sua vida de English teacher.
Mas, ali no Café, naquele curto e furtivo tempo de sossego, as conversas no DELA vol-
tavam intensas, como se tivessem vida própria. O assunto daquele dia lhe vinha à memória.
Não eram apenas lembranças. Estavam transformando a luz das boas notas das provas corri-
gidas e dispostas na mesa em um fiozinho fraco. O que foi o rompante saudosista, romântico,

216
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

que o levou a participar daquele debate no DELA, que o fez acreditar que poderia obter alguma
resposta fácil, alguma metodologia nova sobre avaliação no ensino-aprendizagem em língua
inglesa na perspectiva pós-estruturalista/decolonial?
Em um impulso localizou a pasta do word com os registros das anotações que tinha feito
sobre o Congresso e o vídeo que tinha gravado. Ao rever o assunto, as traduções que o professor
fez daquelas conversas sobre avaliação empreendidas por H e MS lhe traziam diferentes sen-
timentos. De um lado, congratulou a si mesmo pelo tempo bem empregado. Parecia que tinha
ouvido coisas bastante pertinentes que talvez iriam acrescer entendimentos sobre os seus estu-
dos num futuro breve. De outro lado, aquelas discussões se entrecruzavam com as provas cor-
rigidas à sua vista e denunciavam a sua cumplicidade com os valores estruturalistas / coloniais.
Uma sensação desconfortável de incoerência ia inundando o professor. Como em um quadro
de Picasso, o professor via a sua prática docente disforme – órgãos de faces diferentes, partes
de corpos diversos estavam deslocados de lugar e proporção tentando se organizar em uma
colagem para formar alguma imagem distinta.
No DELA, H apresentou inquietudes na perspectiva pós-estruturalista/decolonial sobre
a avaliação como instrumento educacional. Particularmente, parecia incomodá-la a situação
de desconforto dos alunos diante das avaliações:
As avaliações precisam ser dessa forma, precisam trazer momentos angustiantes para
os alunos?
Ao ouvir as considerações da pesquisadora, o professor de inglês lembrava de cenas
em suas salas de aula. De fato, alguns alunos pareciam mesmo muito desconfortáveis com as si-
tuações de provas, mas ele nunca tinha pensado que deveria se preocupar com isso. Muitos alu-
nos mostravam nervosismo, como se a prova fosse um monstro do qual não se podia fugir e que
devorava a alegria e o ânimo de aprender inglês. O professor lembrou dele próprio, da sua época
de estudante vivendo essas sensações ruins com os momentos de avaliações – de como ficava
nervoso, quase paralisado, desconfortável, mesmo quando estudava bastante para se preparar.
Ele lembrou também de alguns estudantes seus que após frustrações nos resultados das provas
desistiram do curso de inglês.
H pontuou que nada há de errado com a avaliação, uma vez que avaliar é constituti-
vo das práticas humanas. Para o pensamento bakhtiniano o signo/os enunciados se formam
em orientações avaliativas13:
No entanto, nos ideais educativos modernos / positivistas que direcionam a educação cur-
ricular, a avaliação escolar atua como instrumento de perpetuação de ideias. Empregada no âm-
bito educacional, em critérios normativos estruturalistas, a avaliação como sinônimo de prova,
13 BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Tradução de: GALVÃO, M. E. (da tradução em francês). São Paulo:
Editora Martins Fontes, 2000.
VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais de método sociológico
da linguagem. 7.ed. Editora: Hucitec. São Paulo, 1997.

217
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

de exame, está em consonância com os ideais de neutralidade, de objetividade, de racionalidade,


supostamente capazes de mensurar o conhecimento em pretensões de homogeneizar, universa-
lizar o saber. Logo, a avaliação na perspectiva da modernidade é formadora de hábitos, ou for-
mas de ver, de agir, indicados pelas forças dominantes e que priorizam a sociedade da escrita,
do pensamento homogêneo. Nesse modelo de avaliar, o aluno precisa se adequar a um determi-
nado sistema e o desvio das normas é penalizado. Assim, a avaliação funciona como mecanismo
de segregação: separa quem é bom de quem não é, quem pode seguir e quem não...
A pesquisadora seguiu dizendo que a avaliação tem poder simbólico, pois constitui e es-
trutura percepções no mundo social, produz a validação de saberes e influencia conceitos de lín-
gua e práticas de sala de aula:
Os modelos positivistas/coloniais envolvem processos educativos nas formas de ensi-
nar/avaliar que não são apenas excludentes, mas também produzem desconfortos violentos.
São violentos porque trazem impactos materiais: esses modelos de educação silenciam os re-
pertórios e os sentidos dos alunos...
O professor concordou que silenciam mesmo. Quando os estudantes sentem que suas
linguagens e ideias estão aquém dos parâmetros de expressividade pré-estabelecidos eles emu-
decem. Alguns falam sobre as dificuldades na língua inglesa, outros nada dizem em palavras,
mas suas expressões e reações mostram sentimentos de inadequação, de inferioridade.
Ainda, os paradigmas positivistas produzem a coerção para aculturação, ao invés de pro-
mover a competência intercultural e podem gerar pressão acadêmica e profissional e incentivar
o preconceito linguístico e racial.
Ao dizer isso, H observa que a avaliação e concepção de língua estão relacionadas. Os en-
tendimentos de pensadores assim como Mignolo, Makoni e Pennycook, Canagarajah, mostram
que a modernidade/colonialidade inventou e legitimou a ideia de língua enquanto sistema, en-
quanto símbolo de identidade nacional, enquanto mecanismo de poder e de controle. A visão
moderna/positivista/colonial de língua fundamenta a noção que hoje conhecemos como Inglês
como Língua Estrangeira na ideia de língua do falante nativo.
O professor ficou pensando como se tornou fácil empacotar a língua em livros didáticos
e métodos que prescrevem formas de ensinar-aprender e avaliar aprendizados em direções cer-
teiras, que devem valer para quaisquer situações comunicativas como se fossem padronizadas
em qualquer lugar do mundo – a contribuição da educação em línguas para a manutenção
e aprofundamento da linha abissal.
Para H, é fundamental enfrentar as incoerências dos discursos que pregam visões de ensi-
no-aprendizagem de inglês na superação das direções estruturalistas / positivistas, mas que se-
guem nos modelos de avaliação ainda nesses paradigmas gerando desconfortos que paralisam.
Defende que os processos educacionais/avaliativos devem contribuir para superar os descon-
fortos improdutivos das avaliações. Para tanto, é preciso rever o modo de fazer avaliação em lín-

218
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

gua inglesa questionando modelos que pretendem mensurar conhecimentos e aprendizados


em noções universalizadas, em concepções de saber como objeto externo ao sujeito, que rotu-
lam, segregam e geram violência nos processos educativos. Ao ouvir isso outra vez, o professor
passou os olhos pelas provas e tentou pensar no tipo de violência que a sua prática de trabalho
com o ensino de inglês poderia estar causando.
H pensa ser urgente discutir a avaliação em perspectivas otherwise, como o fazer decolo-
nial. Como isso pode acontecer? As respostas não estão prontas. Os caminhos estão abertos,
os sinais que convidam a avançar em uma práxis pós-abissal parecem atraentes.
Esse outro modo – decolonial/pós-abissal – de avaliar instigado por H propõe o confron-
to de verdades coloniais / estruturalistas impostas sobre língua. Ela observa que há diferentes
possibilidades decoloniais / pós-estruturalistas que podem orientar outras formas de ver, de ser,
de dizer na língua, e de resistir às imposições linguísticas nos processos educativos/avaliativos:
O olhar decolonial conta, por exemplo, com a noção de inglês glocal, proposta por Menezes
de Souza14, como forma de recontextualizar o inglês em localidades não hegemônicas.
Dessa forma, ela diz que o local é valorizado no global levando o aluno a compreender
como o conhecimento se produz e se reproduz nas sociedades, em loci específicos. Nessa visão,
a língua/linguagem acontece em ações performativas. A língua/linguagem acontece em cola-
boração e pode envolver processos reflexivos e críticos, ao invés de transmissão de conteúdos
prontos e de estar limitada à mensuração de aprendizados linguísticos.
Ações performativas? Um outro entendimento de ensino-aprendizagem?
MS, entra no diálogo e pontua que o conceito de performatividade acaba com o conceito
de representação.
A representação pressupõe que existe um elemento que tem a sua essência material, sólida
– pressupõe que há duas coisas: a representação e o elemento representado. A performatividade
acaba com essa distinção. Performatividade indica que a coisa representada e a representação
são inseparáveis – assim como não se separa o dançarino da dança. A performatividade, ao con-
trário da representação, não se refere a uma essência anterior, é algo que surge no fazer, na ação.
Humm... então no conceito de performatividade não se ensina-aprende modelos de lín-
gua para serem aplicados em algum suposto contexto comunicativo. Se aprende performando
discursos, a vida, na língua/linguagem – Uau! A performatividade torna gelatinosa a dicotomia
significante/significado.
MS observa que é no sentido de performatividade que também deve se pensar o fazer
decolonial:

14 MENEZES DE SOUZA, L.M. Glocal Languages, Coloniality and Globalization from Below. In: Glocal Languages
and Critical Intercultural Awareness. The South Answers Back. Edited by Manuela Guilherme and Lynn Mario T.
Menezes de Souza, Routledge, New York, p. 17-41, 2019.

219
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Não existe um conceito fixo de decolonialidade a ser colocado em prática através de um


determinado fazer. É ao fazer determinada coisa, no apoio das discussões decoloniais que é
possível desempenhar a decolonialidade.
Um sonoro “Ah!” do professor foi inevitável – na visão decolonial é incoerente pensar lín-
gua na reprodução de modelos, não há receitas de ensinar e de avaliar – cada situação é única...
Sim, sim, mais produtivo que expor conhecimentos de modo cristalino esperando
que sejam compreendidos e reproduzidos são as experiências que se formam nas interações,
em performatividades.
Em tal perspectiva, H pontua que o ensino-aprendizagem de inglês pensado otherwise /
decolonial precisa considerar objetivos e práticas avaliativas desenvolvidos de forma colabo-
rativa, interativa, localizada, contextualizada e performativa, ao invés de mensurável em ins-
trumentos meramente quantitativos, somatórios. Na visão decolonial, estudantes e professora
são parceiros das decisões sobre o que/como/porque avaliar – de forma horizontal.
Nas performatividades decoloniais seria possível resgatar a natureza crítica e política
do inglês no contexto de ensino, diz ela. Nesse objetivo, na visão pós-estruturalista/decolonial,
a noção de ensino-aprendizagem está ligada à comunicação, ao querer e poder dizer. Pressupõe
interações na forma dialógica, de perspectiva bakhtiniana – como arena de conflitos, que prevê
o mutual misunderstanding, e não, necessariamente, de entendimento mútuo, de convergência
de ideias na formação de consenso onde todos devem concordar para o mesmo resultado.
Alguém chamou essas trocas incertas de sentido de tradução intercultural, Boaventura
de Sousa Santos, se bem me lembro.
H acredita que na perspectiva dialógica, os processos avaliativos podem redirecionar
compreensões sobre a língua, sobre a vida social e sobre si mesmo:
Os processos avaliativos são formas de letramento, educam para formas de viver. A ava-
liação pode tanto contribuir para comportamentos acomodados, na forma bancária, ou desa-
fiar os alunos e professores a olharem para os seus contextos de performatividade na língua/
linguagem. Na avaliação pensada otherwise, os desconfortos inerentes aos processos avaliativos
não deixam de existir, mas podem mudar de desconforto violento para desconforto produtivo.
No lado docente, o desconforto produtivo ensina a assumir as incertezas. É onde a profes-
sora aprende a deixar de lado a ideia de que a avaliação deve ser sinônimo de respostas corretas,
de critérios generalizados e decididos unilateralmente, apenas por ela e pelas forças institucio-
nais. É fundamental assumir que a avaliação precisa acontecer localmente, com critérios deci-
didos junto com os aprendizes.
Claríssima. Não há conhecimentos fixos, não há sujeitos iguais, não há aprendizado de for-
ma isolada, sem o outro. Logo, é mister valorizar as subjetividades, a colaboração nos processos
avaliativos.

220
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Para tanto, o caminho proposto por H envolve a prática de “ler se lendo”. É o exercício
que Menezes de Souza 15 chama de escuta atenta, ou de “aprender a se ouvir escutando”, que leva
à reflexão constante sobre os próprios modos de agir, de pensar, de ver o mundo. Para H, essa
atitude deixa a professora consciente sobre a sua práxis – Por que avalio desse modo? Como
o processo está construindo sentidos? Essa atitude ajuda conceber a avaliação, assim como toda
formação de sentidos, como não transparente. De onde vieram os critérios estabelecidos, as in-
terpretações para avaliar? É uma proposta para a prática docente em reflexividade constante,
o que leva a não perder de vista que os critérios do que é considerado válido são legítimos para
determinado contexto social; são legitimados a partir de determinada concepção do que é lín-
gua, sobre o que é sujeito, ou melhor, corpo.
Já para os estudantes, os processos avaliativos otherwise podem redirecionar o descon-
forto paralisante para o desconforto produtivo – como o aprendizado de viver (confortável)
no desconforto. Essa condição, seria favorável às performatividades na língua/linguagem, pois
desenvolve fatores assim como a consciência linguística.
Consciência linguística?
O professor de inglês sabia do que ela estava falando, havia lido sobre isso em Canagarajah.
Os espaços dialógicos decoloniais são favoráveis para desenvolver a consciência retórica –
a atenção crítica sobre os aspectos da gramática, do vocabulário e a percepção sobre o que
precisa de maior investimento de aprendizado. Novamente, a imagem do “ler se lendo” parece
expressiva: “Por que acho que (não) preciso saber/aprender isso? / por que preciso aprender
assim? De que outras formas posso aprender?” / Por que determinada forma gramatical ou vo-
cabulário (não) é apropriada em determinado contexto social de discurso?” “Por que (não)
é relevante considerar questões de pronúncia?”
Então, a visão de repertório prevalece sobre a noção de competência linguística porque
desenvolve a consciência retórica. Situados na ampliação de repertórios, os processos avaliati-
vos promoveriam a práxis valorizando a capacidade dos alunos de selecionar registros, estilos
de expressão, em leituras de seus espaços de comunicação, em que percebam quão abertos
(não) estão para as diferenças, para as negociações nas formações de sentidos, nas trocas co-
municativas. Ao negociar a formação de sentidos, a consciência retórica favorece a expansão
de performatividades criativas, reflexiva-críticas, multimodais, o que também desenvolve a sen-
sibilidade intercultural ajudando a promover a convivência com a diferença e o com o dissenso,
a autonomia, a colaboração.
Como isso acontece, de fato?
Acontece quando a avaliação e o aprendizado da língua não são separados e se fazem
na ação mesma na língua/linguagem. Desse modo, as performatividades na língua/linguagem

15 MENEZES DE SOUZA, L.M. Para uma redefinição de Letramento Crítico. In: MACIEL, R. F.; ARAÚJO, V. A. (Orgs).
Formação de professores de línguas: ampliando perspectivas. Jundiaí: Paco Editorial, 2011. p.128-140.

221
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

podem constituir o próprio momento da avaliação. Então, avaliar e aprender passam a ser acon-
tecimentos naturais e interligados. Assim, o caráter competitivo da avaliação diminui em espa-
ços onde os estudantes produzem discursos que lhes são significativos – onde performam “eus”
na língua/linguagen. Essas produções podem, dessa maneira, ser avaliadas de acordo com cri-
térios negociados colaborativamente, localmente. Deveras, o professor pensou que isso é muito
diferente de avaliar conteúdos aprendidos em modelos de representação, que desejam fazer
acreditar que uma nota alta que avaliou a reprodução de modelos linguísticos é a garantia de su-
cesso nas comunicações da vida.
E isso elimina o desconforto na avaliação?
Parecendo prever a sequência dos pensamentos de quem ouvia, MS interfere observando
o que diz Lacan sobre o desconforto e reitera que não se trata de querer eliminar tal sentimento,
pois esse pode ser produtivo:
O desconforto é necessário nos processos educativos. Enquanto o conforto nos mantém
onde estamos, porque nos acolhe, o desconforto nos põe em movimento produtivo. Precisamos
de estímulos, impulsos para avançar. Para Lacan, há dois aspectos que afetam o nosso desen-
volvimento e podem ser estendidos às questões de aprendizado/performatividade nas lingua-
gens: o aspecto materno e o paterno. No lado maternal está a noção de totalidade, de plenitude
uterina: é o lugar do conforto. Tal condição confortável inibe movimentos e restringe/impede
mudanças e o crescimento. No entanto, no parto somos expulsos violentamente do conforto
para o mundo do pai – o mundo desconfortável, desafiador, que faz sair do lugar; onde regem
as leis e os movimentos necessários para crescer.
São as dificuldades e problemas os gatilhos para o movimento, que apresentam situações
novas de aprendizagem e nos trazem experiências. Nesses movimentos, os saberes vão se tro-
cando – não acumulando – e estimulam o agir para as tarefas que temos à mão, ou pela frente.
Assim, o desconforto é primordial para a aprendizagem. Se não houver desconfortos, não há
resistências. Resistência é enfrentar a violência da opressão. Logo, não se trata de tornar o des-
conforto confortável, mas de usar o desconforto de uma forma produtiva.
Fanon vê tanto o processo colonial quanto o decolonial como violentos. A exploração
do colonizado pelo colonizador foi marcada pela violência em corpos/mentes e se queremos
agir dentro das teorias decoloniais é preciso pensar a violência, uma violência produtiva – a vio-
lência leva à resistência, à reação. A violência colonial negou a existência do colonizado. Para
recuperar essa existência o processo decolonial também é violento, mas é uma violência neces-
sária, a qual liberta o colonizado do complexo de inferioridade, de seus medos, de sua desespe-
rança e inação.
Humm, violência, desconforto para ser produtivo. Vamos lá, MS, diga mais:
O temor de Fanon era o de que ao empreender a violência nas resistências a decoloniali-
dade parasse na violência, sem avançar para a sua superação. No entanto, pensadores que dia-

222
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

logam com Fanon propõem a ação decolonial para amenizar a extensão da violência. Quijano
e Mignolo pensam o delinking (desprendimento) da totalidade decolonial imposta para que ou-
tras, múltiplas totalidades possam aparecer. Quijano sugere que a comunicação intercultural
deve prevalecer. Nessa comunicação haveria uma consciência do desejo pela universalidade
e ao mesmo tempo a percepção de que tal desejo é impossível de se realizar. Por sua vez, Sousa
Santos defende a desuniversalização de toda pretensa totalidade e o reconhecimento do proble-
ma do não entendimento mútuo.
Ah, bem desconfortável e cheio de movimento isso – pensou o professor de inglês. A deco-
lonialidade como uma roda de conversa dialógica, no estilo bakhtiniano... nem tudo se compre-
ende, nem todas as ideias se harmonizam, mas é aí mesmo que as transformações acontecem, in
“this active participation of every utterance in living heteroglossia... the environment in which it lives
and takes shape, is dialogized heteroglossia, anonymous and social as language, but simultaneously
concrete, filled with specific content and accented as an individual utterance.”16
Mas, de que forma a inevitável violência nas conexões coloniais/decoloniais poderia
ser trabalhada de modo produtivo no ensinar/avaliar em língua inglesa? O professor de inglês
quis ouvir mais de MS:
A violência decolonial consiste na retirada do lugar de conforto. É preciso avaliar não de
forma violenta, mas sim os resultados da violência de sair do lugar confortável, do lugar que es-
tava potencialmente fossilizado. Isso é diferente do desconforto violento gerado pela escola ne-
oliberal que prega o “no pain, no gain”.
O desconforto violento que incomoda nas avaliações, possivelmente, vem da prática
de mensurar conhecimentos estáticos na língua. No entanto, a ideia do mensurável é apenas
um aspecto da avaliação, de natureza classificatória e excludente. Há também o aspecto do fee-
dback, que deve ter efeito positivo e é essencial para os processos de aprendizagem. O professor
precisa saber se está fazendo algo que está rendendo resultados ou não, pontua.
Isso parece reiterar que a avaliação produtiva – otherwise – deve se preocupar com o
processo e precisa superar a tendência de celebração ao “bom aluno” que, normalmente, exclui
aqueles que não atingem resultados pré-determinados. MS observa que os professores adoram
alunos nota 10:
Aqueles que já falam inglês são os favoritos. Na verdade, mostram que não avançaram
nada nas aulas e deveriam ser avaliados com zero, porque não houve progresso. Por outro lado,
aqueles que avançaram um pouco que seja deveriam ser avaliados pelos ganhos que tiveram –
É esse o tipo de feedback que deve ser valorizado: “Quanto você acha que aprendeu? Pode citar
as aprendizagens que você teve?” Então, o que se deve mensurar? É preciso mensurar ganhos,
processos, ou seja, a saída do lugar do conforto.

16 BAKHTIN, M. Discourse in the Novel. In: The Dialogic Imagination – Four Essays by M.M. Bakhtin; Ed. by Michael
Holquist. Translated by Caryl Emerson and Michael Holquist. Austin: University of Texas, 1992. p. 259-422.

223
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Dessa forma, o que não deve ser feito na avaliação é cair na armadilha neoliberal da com-
petitividade: aquele com a boa nota recebe os louvores. Não, todos merecem o prêmio, desde
que tenham saído do lugar. Assim, na perspectiva decolonial, é importante pensar a avaliação
em termos dos seus sujeitos, dos seus contextos – contextos que vão além da sala de aula. O con-
texto individual do aluno deve ser considerado. Isso quebra o conceito marxista de habitus pen-
sado por Bourdieu, que é um conceito de formação grupal. Se o conceito de habitus de Bourdieu
fosse verdade, tudo o que se ensina na sala de aula seria aprendido de forma igual pelos alunos.
Isso não acontece porque os históricos de aprendizagem de cada um são diferentes. O fazer
decolonial rejeita a ideia do universal e pensa o local, o individual em relações de complexidade.
MS lembra que a individualidade é fator crucial para as práticas decoloniais. As com-
preensões de Steven Krashen sobre a importância do affective filter no aprendizado de línguas
já alertavam sobre a importância do individual e continuam atuais. O estudante de línguas deve
ser olhado como alguém individual:
Aprender línguas tem a ver com a personalidade, com as constituições individuais.
Os aprendizes introvertidos têm medo de errar, se expõem menos e seus processos de aprendi-
zado, provavelmente, são mais lentos que os dos extrovertidos. Os introvertidos merecem mais
estímulos à aprendizagem. Ao se expor mais, o extrovertido, naturalmente, recebe mais feedba-
ck e se engaja no processo de aprendizagem de forma mais proveitosa. Isso precisa ser levado
em conta nas avaliações. Esse é o aspecto emotivo da avaliação. Quando o professor está aten-
to ao tipo de aprendiz é possível individualizar as formas de avaliar. Isso significa desagrupar
os aprendizes de grupos homogêneos, de perceber o que no histórico do aprendiz afeta o apren-
dizado dele/dela. Aí podem ser encontradas respostas (localizadas, individualizadas) que fazem
a diferença nos processos de aprender/performar na língua/linguagem.

Mas como o fazer decolonial empreende ações?

Parece que reconhecer a colonialidade presente nos seus fatores arraigados é pré-requisi-
to para o fazer decolonial. MS pontua que é importante lembrar que a colonização não passou.
Seus efeitos estão presentes na modernidade. É preciso também ter em mente que é possível
amenizar os efeitos da decolonialidade, não acabar com ela de uma vez:
Só é possível estar decolonial, não ser decolonial. Ser decolonial pode dar a impressão
de que acabou a colonialidade. Estamos decoloniais no sentido de que é um processo contínuo.
Porém não basta ficar no analítico, na constatação, precisamos de ação. Não vamos acabar
com a colonialidade, mas podemos interromper os seus efeitos. O entendimento de que não há
receitas para o fazer decolonial é crucial porque expõe a necessidade de pensar os próprios loci
de enunciação trazendo as teorias relevantes para as nossas situações.
Sem caminhos fáceis, então – o professor de inglês ficou pensando e ouvindo:

224
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

O decolonial reage a noções fundamentalistas, aos universais abstratos, tanto de extrema


direita como de extrema esquerda – sei, sei. Reage tanto às noções da modernidade positivista
como à visão marxista de resistência à opressão que se mostra incapaz de lidar com o com-
plexo que envolve o ser individual. Desse modo, reage também às noções de ativismo, diz MS
e prossegue:
O marxismo enfatizou a homogeneidade da luta de classes valorizando apenas o social
e relegando o corpo individual. A ênfase apenas no social pode levar ao ativismo. O ativismo
parte de certezas absolutas. Um exemplo são as ONGS eurocêntricas que acham que têm a ver-
dade e desejam trazer a verdade para as periferias cósmicas que não conhecem, no argumento
de fazer justiça social. Não dá pra universalizar justiça social. Algumas coisas podem ser injus-
tas para algumas pessoas e justas para outras, por isso é tão importante olhar as relações com-
plexas, o glocal. Logo, é preciso sim o fazer decolonial partindo para ações, mas não sem colocar
o termo ativismo entre parênteses.
Ele observa que o decolonial prevê um tipo de resistência em âmbitos mais complexos.
As complexidades apontam que as teorias decoloniais não são homogêneas e nem universais
e abrangem aspectos que podem ser vistos como analíticos (conceituais) de ser/estar e progra-
máticos (em planos de ação) no fazer. Os aspectos analíticos e programáticos do fazer decolo-
nial atentam para elementos/noções interligados que formam e sustentam a colonialidade. Essas
noções podem ser questionadas nas tendências que têm em sedimentar formações coloniais
de universalidade / modernidade, de colonialidade como fato passado, de formação e naturali-
zação da linha abissal e de colaboração do colonizado na perpetuação de valores do colonizador.
A atenção à tecitura desses elementos/noções que formam e sustentam a colonialidade
é fundamental para as visões decoloniais e envolve algo muito além que o ensino de conteúdos
no ambiente escolar acadêmico. Envolve um tipo de pedagogia para o exercício de pensar e de
agir de forma decolonial. Para tanto, ao considerar as dimensões analíticas e programáticas,
o pensamento decolonial propõe etapas para pedagogias decoloniais. A dimensão analítica deve
identificar e interrogar a colonialidade e a dimensão programática precisa interromper ações/
efeitos coloniais17.
As discussões analíticas no olhar decolonial atentam para formações complexas, de dife-
rentes ramificações; assim como a noção de universalidade de saberes, da colonialidade como
fato passado e de que os colonizados são apenas vítimas inocentes do processo colonial. A de-
colonialidade expõe esses fatores como produto da modernidade europeia:
As análises decoloniais identificam a modernidade europeia como produto da coloniza-
ção, de modo que ser contra as universalizações propostas pela modernidade é o tema principal
do pensamento decolonial. Ser contra universalizações significa também ser contra a existência
individualista. É importante frisar que, para a visão decolonial, criticar o individualismo que se

17 MENEZES DE SOUZA, L.M. Foreword. In: BOCK, Z.; STROUD, C. (Eds.). Reclaiming Voice: Languages
and Decoloniality in Higher Education: reclaiming voices from the South. Londres: Bloomsbury Academic, 2021.

225
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

engendra nas ontologias que promovem o universal é diferente de considerar a individualidade.


A ideia de individualização é formada na modernidade/colonialidade, com influências do libe-
ralismo e promove a noção de sucesso independente, não solidário com os outros eus e com o
planeta. Por sua vez, nos conceitos decoloniais, o ser individual, formado socialmente e único
ao mesmo tempo, que habita localmente, é fator de extrema relevância.
Para além de confrontar as universalizações e o individualismo, os aspectos analíticos
identificam a colonialidade não apenas como fato do passado, mas como fator de imposição
continuada de valores europeus modernos e universais ao mundo. O que engendrou a coloniali-
dade? Ela foi sendo formada na imposição das visões, das epistemologias hegemônicas eurocên-
tricas que criaram e naturalizaram uma separação, uma linha abissal, entre os que estão do lado
de lá – os europeus, como os detentores das vozes do saber – relegando à sombra, à inexistência
os outros saberes do lado de cá da linha.
Ainda, a dimensão analítica também atenta para o fato de que os colonizados não são
apenas os marginalizados e excluídos. Os colonizados são a razão de ser da riqueza do europeu
e são participantes ativos da modernidade europeia; são a razão de ser do poder e da ima-
gem de superioridade do europeu, embora relegados à não visibilidade, a não existência. Assim
como lembra Dussel, nós ajudamos a enriquecer o Norte Global.
MS reitera que da mesma forma que a parte analítica é importante para a compreensão
das ações coloniais também é preciso partir para a ação programática nos processos decoloniais.
Ele pontua que, tal como defendido por Walter Mignolo, e também por Boaventura de Sousa
Santos, não basta apontar a colonialidade, é preciso fazer o decolonial; ou, é preciso interrom-
per os efeitos da linha abissal, conforme lembra também Sousa Santos. Na visão de MS, a di-
mensão programática deve interromper ações/efeitos coloniais.
Na pedagogia de identificar, interrogar e interromper, as dimensões analíticas e progra-
máticas do plano de ação decolonial se valem de conceitos. Inegociável para o fazer decolonial
está o conceito de locus de enunciação que ramifica outros, não menos relevantes, assim como
ecologia de saberes, delinking e corpo-política.
Primordialmente, para de fato acontecer o trabalho de identificar, interrogar e interrom-
per a colonialidade se faz necessário o conceito de locus enunciação. MS enfatiza que não é pos-
sível um fazer decolonial sem situar de onde se fala. Pontua que para Grosfoguel, Sousa Santos,
e Castro Gomez, a universalidade colonial resulta da separação de dizeres/enunciados de seus
locutores e contextos de enunciação. Tal separação gera dizeres sem origem, com valor irrestri-
to, universal e abstrato. Logo, para interromper a colonialidade e passar do analítico (ser/estar)
para o programático (agir/fazer) Grosfoguel propõe a corpo-política, que identifica e situa o cor-
po que produz saberes/dizeres. Por sua vez, Sousa Santos propõe a desuniversalização da glo-
balização, vendo-a como fenômeno local e Menezes de Souza, propõe trazer o corpo de volta.
MS enfatiza ainda que é fundamental não esquecer que o conceito de locus de enuncia-
ção não pode ser simplificado, como se a identificação de quem fala pressupõe apenas detec-

226
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

tar um discurso homogêneo e de formação puramente individual. A corpo-política é comple-


xa. Grosfoguel distingue entre locus social/coletivo (o grupo a que se pertence, classe, gênero,
raça) e locus epistêmico (um saber que um falante utiliza). Não há conexão necessária entre eles.
Por exemplo, mulheres podem reproduzir discursos patriarcais. Grosfoguel também distingue
o locus coletivo (de pertencimento a um grupo – classe, gênero, raça) e locus individual (perten-
cimento a discursos constitutivos). Ainda, é preciso lembrar que ao trazer o corpo de volta,
o corpo ocupa espaço (localidade) e tempo (tem história e é afetado pela história). Todo espaço
é atravessado por discursos vários (classe, gênero, raça etc.), que constituem o sujeito locutor.
O tempo faz com que esses discursos se contaminem e se transformem de formas diferentes,
em sujeitos/corpos diferentes, multifacetados, produzindo loci individuais situados. Portanto,
o locus epistêmico pré-dispõe os loci de enunciação, mas não os determina, observa.
Nesse momento o professor de inglês pensou em como se constituíam os seus loci de enun-
ciação. Pensou em como os seus loci sociais/coletivos, epistêmicos e individuais estavam tentan-
do conviver, mostrando que ele é um ser fragmentado. Ele é um quase alguém: um filho, um pai,
um professor, que faz parte de um grupo de estudos que discute língua em perspectivas pós-
-estruturalistas decoloniais, que pretende seguir com os estudos de sua formação nessa linha,
mas que em sua prática de ensinar e avaliar reproduz visões estruturalistas e coloniais.
Algum alento parece surgir quando MS observa que o conceito de locus de enunciação si-
naliza que é possível individualizar as perguntas e transformações podem acontecer:
Porque eu penso o que penso, ao invés de simplesmente porque pensamos, traz a minha
agentividade de volta. Com as perguntas: quem sou eu que falo? por que leio o que leio, da for-
ma que leio empreendo o exercício que me faz refletir nos discursos que me constituem. Nessas
reflexões posso transformar os efeitos desses discursos sobre a minha pessoa. Assim, esses dis-
cursos deixam de ser determinantes e se transformam em questionamentos. Dessa forma, a no-
ção decolonial de locus de enunciação avança a visão freiriana que propõe questionar o social:
“Por que pensam como pensam?” (na visão de coletividade de sujeitos, sem agência individual).
A visão decolonial traz o corpo individual de volta: “Por que leio o que leio?” (o corpo individu-
al, com agência). Assim, um fazer decolonial que passa do analítico para o programático pode
contribuir para mudanças nos loci dos sujeitos colonizados.
A atenção para o locus de enunciação pode produzir a ação decolonial, pois questiona
as genealogias dos discursos/epistemologias formando espaços para outros saberes que fo-
ram inviabilizados pela colonialidade, que foram jogados para o outro lado da linha abissal.
Boa Ventura de Souza Santos chama isso de ecologia de saberes, da existência no pluriversal,
onde outros mundos são possíveis. É preciso fazer a práxis na pedagogia de fazer pensar.
Ah sim, fazer pensar – ler se lendo– ouvir atentamente, escutando a si mesmo: por que
entendo isso assim, e não de outro modo?

227
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Identificações da colonialidade para pensar o fazer decolonial no trabalho


com línguas/linguagens

MS pontua que no trabalho com línguas a colonialidade aparece de várias formas: na lín-
gua como objeto, na centralidade nos contextos de ensino e nos recursos disponíveis, na ênfase
sobre o conceito de sujeito e de indivíduo.

Colonialidade na concepção de língua

O professor de inglês ouvia quando H e MS apontavam sobre como a colonialidade apa-


rece na noção de língua – materna, ou outra – como objeto. Quem trabalha com línguas/lingua-
gens deve estar sensível ao fato de que a colonialidade aparece na concepção de língua estrangei-
ra que divulga a língua reificada. É a noção de língua como objeto de fronteiras bem delineadas,
bem definidas: a língua é um objeto que pode ser transferido do livro didático para a cabeça
do aprendiz. Essa é uma herança colonial que vem de sociedades monolíngues. O conceito
de língua homogênea não existe em culturas multilíngues.
H comenta que ao ensinar inglês em institutos de língua fica incomodada com o trabalho
na visão de língua objeto. Como poderia reverter isso? MS responde que ali é um contexto des-
caradamente liberal onde é possível trabalhar a língua objeto, sem problemas:
Quando se está atuando como professor em institutos de língua é possível coisificar a lín-
gua, vê-la como produto. Nesses contextos, o objetivo não é educar ninguém, o objetivo é ensi-
nar língua. As pessoas que procuram esses contextos neoliberais para aprender inglês esperam
isso. Elas são movidas pelos desejos de adquirir, de possuir – elas querem encontrar o objeto
(língua) e se não estão satisfeitas com o objeto que se está vendendo vão para o instituto na ou-
tra esquina. Esse é um fenômeno que não interessa para a escola curricular, porque falamos
como educadores. Como educadores, a nossa função é educar, a nossa função não é, necessaria-
mente, ensinar língua para ninguém.
Como educadores, precisamos fazer educação linguística, prossegue MS. À educação lin-
guística interessa trabalhar a exterioridade – o que está fora dos limites do nosso conhecido.
Logo, comporta visões subjetivas, interativas, dialógicas. Essa é a visão decolonial: a educa-
ção linguística implica em trazer para discussão as questões sociais na língua/linguagem, assim
como o racismo, a violência, as desigualdades do mundo. A educação linguística é diferente
da visão de língua como objeto – Claro! a educação linguística confronta a noção do inglês do li-
vro texto X, que aspira representar toda a gramática, que deseja prescrever modelos de língua,
padrões de pronúncia etc., isso o professor estava entendendo bem.
Nessa parte, o professor de inglês se identificou muito com algumas coisas, mas também
ficou confuso com alguns pontos. Ele se identificou ao lembrar do tempo em que trabalha-
va ensinando no instituto de inglês, quando recebiam alunos que já haviam começado vários

228
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

cursos, em diferentes lugares. Essas pessoas tinham a expectativa de adquirir a língua objeto.
Se não aprendiam, a culpa era da instituição, do método, do teacher que não era bom, que fa-
lhavam em entregar o objeto comprado. Se ficavam muito descontentes, iam para outra escola.
O professor teve também uns momentos de nostalgia ao lembrar que no instituto de inglês en-
sinar a língua objeto – tudo arrumadinho em níveis – funcionava dentro das previsões e dava
uma sensação de accomplishment: o Simple Present primeiro, depois o Simple Past.
No entanto, ele ficou com muitas perguntas nesse momento. Ficou sem saber o que pen-
sar ao ouvir que nos contextos de institutos de línguas o objetivo não é o de educar ninguém,
mas tão somente o de ensinar a língua – trabalhar a língua como objeto mesmo. E os professores
formados em Letras que vão trabalhar nesses contextos, como devem agir? Ficou ainda mais
confuso quando ouviu que a função do educador não é ensinar a língua. Isso significa que não
é preciso ensinar a língua na educação curricular? Ainda, educar na e ensinar a língua são coisas
separadas? Como educar na língua sem ensinar a língua? Como ensinar a língua sem educar
na língua? Ao professor, aquilo que tinha ouvido sobre o trabalho com a língua, em especial
no meio escolar, lhe pareceu uma saída simplificada para a questão histórica que forma as de-
sigualdades no Brasil. Ele se perguntou onde os alunos, particularmente os da escola pública,
deveriam aprender inglês então? E de que forma? / Em qual pedagogia? Deve a educação cur-
ricular se eximir da tarefa de preparar os estudantes para se comunicar em inglês nas competi-
tividades do mundo liberal e interconectado?

Colonialidade na visão de contexto e de recurso

O outro aspecto observado por MS da influência colonial no trabalho com línguas/lin-


guagens diz respeito à visão centralizada nos contextos de ensino e nos recursos disponíveis:
A visão de ensino com foco nos contextos e recursos tem muito da herança freiriana,
que enfatiza a análise dos contextos de ensino para verificar as necessidades de determinados
grupos e ver quais os recursos podem ser mobilizados para o ensino da língua nessas situações.
No entanto, enquanto a visão de Freire parecia estar sensível às formações locais, no ensino-
-aprendizagem de língua inglesa a ideia de produtividade com o foco no contexto e recursos
pende para generalizações. Exemplos de noções totalizantes sobre contextos e recursos estão
no ensino de línguas em modalidades, assim como o inglês instrumental e todas as formas de in-
glês para grupos específicos. Isso recorre à colonialidade porque tem suas origens no monolin-
guismo, como se os recursos disponíveis fossem monolíngues. Não se leva em conta que para
a aprendizagem de uma língua nenhuma língua é homogênea, nem a materna, nem qualquer ou-
tra. Não se considera que as línguas são múltiplas, dinâmicas, intercambiáveis. Assim, na visão
de recursos continua-se na colonialidade mesmo com o foco na língua como contexto. É uma
visão de contexto entendido como formação homogênea, na concepção de Bourdieu de habitus
social – todos desse grupo pensam assim, usam a língua assim. Isso não é verdade. Noções de le-
tramento evidenciam que o modo de lidar com os diferentes tipos de textos precisa considerar

229
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

aspectos relacionados à multiplicidade dos gêneros discursivos, que atentam para os contex-
tos como formações localizadas, sociais e individualizadas ao mesmo tempo e não universais.
A criação de significação tem a ver com vários meios disponibilizados de forma diferenciada
e localmente situada evidenciando que a multiplicidade está presente no trabalho com as lín-
guas/linguagens. Sem atentar para as formações contextuais e recursivas específicas de cada
local, de cada ser envolvido, mesmo o foco nos recursos e contextos pode ser colonial.
O professor foi entendendo que para empreender a ação decolonial no trabalho com a lín-
gua inglesa não basta incluir textos nas lições do livro e recursos digitais nas aulas para envolver
os alunos. Isso também pode universalizar contextos e promover a noção de língua homogênea,
como recurso. As ações decoloniais no trabalho com a língua/linguagem precisam atentar para
formações complexas que entrelaçam dimensões macroscópicas, de natureza social, cultural,
política, e microscópicas – infinitesimais – que constituem o ser em singularidades e determi-
nam modos de performar a língua/linguagem. Nessa altura foi inevitável pensar no conceito
de letramento.
O professor lembrou-se de que estava lendo sobre visões de letramento que não são po-
pulares nas práticas escolares de bases modernas/positivistas. Compreensões pós-modernas/
pós-estruturalistas, assim como as de Leander e Boldt18 e de Masny e Cole19, desvinculam a no-
ção de letramento como produto final e como experiência fixa, em aprendizados controlados
por modelos de representação. Esses pensadores compreendem letramento como formação
de conexões de multiplicidade rizomática, que afetam todo o ser/corpo, em elementos huma-
nos e não humanos, reais e virtuais: pessoas, objetos, movimentos, linguagens (oral, escrita,
digital, multimodal, gestual), vivências, memórias, valores, que definem como o ser percebe/
reage ao mundo em processos de leitura. Desse modo, para eles, as formações de letramento
ultrapassam as restrições estabelecidas por pedagogias de controle e em linguagens específicas,
assim como a digital. Os múltiplos elementos que formam conexões/desconexões constantes,
no modo singular de cada ser/corpo em ser tocado/afetado e de afetar outros seres/corpos,
coloca o aprendizado escolar e as linguagens específicas: digitais, escritas, apenas como com-
ponentes de conexões muito mais complexas. Nessa outra ótica, pós-estruturalista, letramen-
tos são entendidos como formações múltiplas e emergentes na constituição social e individual
e corpo e mente não são separados, mas reagem juntos em contínua experiência de transforma-
ção. Assim, letramentos não são aprendizados cumulativos, tampouco formações que priorizam
linguagens, mas constituem o ser/corpo em modos de performar, de reagir, em leituras do mun-
do e de si como textos.

18 LEANDER, K.; BOLDT, G. Rereading “A Pedagogy of Multiliteracies”: Bodies, Texts, and Emergence. Journal
of Literacy Research, v. 45, n. 1, p. 22-46, 2012.
19 MASNY. D; COLE, D. Mapping Multiple Literacies – An Introduction to Deleuzian Literacy Studies. London/New
York: Continuum International Publishing Group, 2012.

230
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Em entendimento similar, Duboc e Menezes de Souza20 também propõem que a decolo-


nialidade conecta letramento à visão de múltiplo que traz o corpo de volta. Para os acadêmicos,
os conceitos decoloniais fazem o delinking da noção de múltiplo que forma a metonímia redu-
cionista de multiletramentos relacionado ao componente digital. Dessa forma, pontuam que a
decolonialidade reposiciona a noção de múltiplo ao trazer o corpo de volta situando o locus
de enunciação de quem fala/ouve no tempo e espaço. O corpo decolonial é localizado, com tudo
o que o afeta historicamente, nas memórias e experiências. Além disso, os autores defendem
que a decolonialidade desvincula a noção de múltiplo das dimensões epistêmicas que escolari-
zam a noção de multiletramentos em universalismos e metodologias.
Nessas visões outras, pós-estruturalistas/decoloniais, o ser/corpo é atravessado por mul-
tiplicidades de conexões que formam letramentos para além dos limites da escolarização formal
e de linguagens específicas. O corpo é afetado em conexões rizomáticas/ecológicas que formam
a existência complexa. Portanto, nas multiplicidades, as formações de letramentos não apenas
ensinam coisas pontuais, mas (trans)formam o eu social/individual / singular que é.

Colonialidade nas noções de sujeito e de indivíduo

MS seguiu observando que a colonialidade no trabalho com línguas também se faz pre-
sente nas noções de sujeito e de indivíduo:
Sujeito vem da herança teórica do discurso da psicanálise, já a noção moderna de indi-
víduo remete ao ser isolado. A noção de sujeito é ligada ao discurso porque o sujeito não tem
substância própria e é constituído por elementos do discurso (elementos culturais, como di-
ria a psicanálise; elementos discursivos, ideológicos como diria a análise do discurso). A vi-
são de sujeito leva a perguntar quem são os meus aprendizes, quais são as necessidades dessa
pessoa, como posso ajudar. Esse é o foco comum, por exemplo de professores que trabalham
com aulas particulares. No entanto, mesmo no foco sobre os sujeitos, há a tendência em uni-
versalizar as necessidades ou o contexto desse sujeito. A visão de sujeito é limitada porque
o sujeito pode mudar. O sujeito pode ter mais necessidades do que ele ou ela podem perceber.
Por sua vez, o conceito moderno/cartesiano de indivíduo remete ao elemento destacado de to-
dos os outros objetos. A noção de indivíduo vem do pensamento liberal, na visão de que o ci-
dadão – indivíduo – é totalmente independente de outros cidadãos. Assim, enquanto a noção
de sujeito resgata o discurso formador, o conceito de indivíduo não tem nada de discursivo,
não é reconhecido como socialmente constituído. Conforme já observado, a visão decolonial
valoriza o ser individual – constituído localmente – mas não a noção individualizada/moderna
de indivíduo.

20 DUBOC, A. P.M.; MENEZES DE SOUZA, L.M. Delinking Multiliteracies and the Reimagining of Literacy Studies
- Desprendimento, multiletramentos e o repensar dos estudos sobre letramento. Rev. Bras. Linguíst. Apl., v. 21, n. 2, p.
547-576, 2021.

231
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Melhor é falar em corpo

No exercício decolonial, não se dialoga com o outro constituído como sujeito ou indi-
víduo, mas com o eu/corpo. Porque a noção de outro não é a de corpo, o outro é uma coisa.
O conceito de outro é o sujeito coisificado, cuja agentividade é negada. Num encontro qualquer
acontece, de fato, a interação de eus, constituídos por vários discursos – os discursos de raça,
gênero etc. – que constituem a subjetividade do eu. É preciso lembrar que por trás desses dis-
cursos tem-se a história e o tempo. O tempo reflete aspectos diacrônicos (do passado para
o presente / do presente para o passado) e também aspectos sincrônicos (do aqui e agora) onde
várias coisas também podem ocorrer – não apenas no tempo diacrônico. Nas interações entre
eus, os discursos sociais que constituem o corpo podem se contaminar. Logo, os dizeres podem
ter significados diferentes porque os eus/corpos são diferentes. Os dizeres são contaminados
pela dinâmica de transformação, nos movimentos históricos dos eus/corpos.
Desse modo, recuperar o corpo / trazer o corpo de volta é um gesto político decolonial
contra o cartesianismo que é a base da modernidade. A modernidade europeia separou a mente
e corpo, o que separa as emoções da inteligência. Nessa concepção, acabou separando as mu-
lheres dos homens. Os homens são vistos como regidos pela mente, as mulheres pelas emoções
– homens são seres pensantes, mulheres seres sensíveis. Também segregou no conceito de raça.
A separação mente/corpo gerou discursos da modernidade de que existem raças superiores
(os mais racionais) e raças inferiores (os mais emotivos, que não pensam com a razão, e por
aí vai...). Logo, trazer o corpo de volta não é só trazer o contexto, a situacionalidade, a significa-
ção. É um gesto político de rejeitar o cartesianismo, a hegemonia da razão.

Pensando o fazer decolonial

Então, como seria uma visão decolonial na situação do trabalho com línguas/lingua-
gens? O foco seria juntar recursos e pessoas/eus em contextos sociais específicos/localizados
e multiconectados. Isso pode trazer a complexidade a partir da qual podem ser iniciadas ações
decoloniais.
Para decolonizar o ensino de línguas é preciso perguntar como eu sei o que eu sei e não
como eles sabem o que sabem. Para decolonizar o ensino de línguas é preciso levar em conta
os múltiplos discursos que nos constituem como eus. Ainda, se faz necessário levar em conta
que a noção de língua nada mais é que um aglomerado de discursos validados e abandonar
a ideia de que eu ensino inglês, ou português. Precisamos recorrer à sociolinguística para per-
ceber a complexidade da língua/linguagens. Para isso acontecer, a educação linguística é um
bom caminho.
Trazer o corpo de volta significa tornar legítimas outras linguagens, outras formas de ver,
de ser; por exemplo, o uso do Funk e do Rap como linguagens nas periferias. Seus praticantes

232
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

estão falando português. O problema não é deles se suas falas, seus discursos causam estra-
nheza; é nosso que não reconhecemos essas linguagens e falas como legítimas do português –
na nossa herança colonial, monolíngue, que não aceita outras linguagens/línguas.
Por isso não é possível discutir verdades sem saber quem está falando, de onde está fa-
lando. Daí a importância do locus de enunciação epistêmico. É preciso pensar a corpo-política,
na ação de trazer o corpo de volta, e o delinking como a desnaturalização dos efeitos dos discur-
sos que constituem o corpo. Mignolo propõe o delinking como a desnaturalização dos efeitos
da colonialidade: a desnaturalização dos discursos que constituem o eu / corpo é a desnaturali-
zação dos efeitos da colonialidade sobre nós.
O fazer decolonial é possível de várias formas, inclusive dentro da academia, não apenas
segurando cartaz na rua. As mudanças ocorrem sempre que dialogamos. Um exemplo é o traba-
lho que se pode fazer entre os orientandos. Quando o professor modifica a exigência acadêmica
de metodologia, ele questiona o conceito acadêmico de ciência – a expectativa de metodologia
X, que vem da visão europeia. Esse é um espaço de ação, de fazer decolonial. O decolonial tem a
ver com a desuniversalização. O nosso espaço decolonial está relacionado ao fazer local.
Para o fazer decolonial é importante que o professor pense de onde está falando. Está
avaliando o que? com quais objetivos? Isso é fundamental para não embarcar no modo automa-
tizado reproduzindo todos os valores da instituição e também para pensar na práxis decolonial
situada. Não há uma problemática decolonial universal. É preciso pensar localmente, a partir
do nosso corpo, da nossa história, de onde estamos, de nossas vivências e do que estamos fa-
zendo no momento. Assim, em uma visão decolonial, mais importante que rejeitar a língua in-
glesa por ser um efeito da colonização é procurar questionar quem está usando a língua inglesa,
em quais situações, em que efeitos.
A recuperação do corpo pode fazer o delinking ocorrer em níveis complexos. Cada eu pode
exercitar a desnaturalização de algum discurso que o constrói. Por exemplo, um discurso de gê-
nero de uma geração patriarcal pode se transformar em objeto de crítica e de reflexão individual
– empreende-se o delinking com esse discurso. Também é possível promover o delinking com o
discurso que me constitui e a sua história. Eu aceito que esse discurso me constitui, eu perfor-
matizo um determinado discurso de gênero, mas eu me desvinculo dos valores que estavam
em sua história. Então pode haver o delinking no aspecto cronológico e o delinking de um quase
abandono de um discurso por completo.
Uma práxis decolonial de grande significação para o trabalho com línguas/linguagens
no Brasil está no exercício de promover delinkings com a história da escravização com os efeitos
dela que nos constituem. Não importa se somos negros, ou brancos de olhos azuis, o discurso
da escravidão nos atravessa. Na história dos discursos que nos constituem está a história da es-
cravização no Brasil. Assim, para quem pensa o decolonial no Brasil deve pensar o racismo.
Não podemos fingir que a escravização não nos afeta. Ela está presente na nossa história. O ne-
gro nunca foi compensado pelo tratamento desumano. Portanto, o decolonial não diz respeito

233
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

apenas à que língua estou falando, ou que língua vou ensinar. O decolonial não é só coisa da lín-
gua inglesa, o decolonial precisa estar em nós como brasileiros, é intrínseco à nossa história.
O professor de inglês conversava consigo mesmo. Era evidente que o processo de delink
para um estar decolonial é complexo, longo e contínuo. Ele ia entendendo que não basta querer
rupturas com a colonialidade, pois ela é estrutural – nos constitui – e interromper seus efeitos
não parece ser um processo simples e rápido. Mesmo assim, no desconforto de sentimentos
de quase impotência, ele pensou em como seria uma sala de aula na visão decolonial; como
seria o trabalho com línguas/linguagens inglesas, portuguesas, ou brasileiras sem nome.

Naquela altura dos diálogos...

Naquela altura, o professor estava com as emoções muito sensibilizadas. Como poderia
voltar à sala de aula, entregar as provas, continuar ensinando, como se tudo estivesse bem, no lu-
gar? Não estava, depois daquele banho de decolonialidade. Enquanto pensava nisso e tentava
se recompor para poder voltar ao trabalho, decidindo se pediria o terceiro café, ou uma água,
o silêncio do local foi quebrado repentinamente por um grupo de cinco estudantes que aden-
traram no recinto e ocuparam uma mesma grande próxima à sua. Tão próxima que o profes-
sor podia observá-los e ouvir o que diziam. Eram jovens iniciando o ciclo universitário, três
rapazes e duas moças. Jogaram em um canto, amontoadas, as mochilas identificadas com a
marca de uma universidade tecnológica pública que ficava próxima dali. Pediram milkshakes
e sanduíches. Conversavam extrapolando alegria, sem qualquer cuidado para não fazer barulho
e olhando os celulares enquanto aguardavam os pedidos. Pareciam não ter notado o professor
ali, tão perto.
Ele decidiu que sairia imediatamente. Não ficaria naquele alvoroço ouvindo assuntos
que não lhe diziam o mínimo respeito. Apressou-se para arrumar tudo e deixar o local. Ia jun-
tando as provas, as coisas e colocando-as na mochila enquanto o computador estava sendo
desligado. Inevitavelmente, prestou atenção na conversa do grupo. Passou os olhos com discri-
ção pela mesa dos jovens e observou que falavam digitando e intercalando goles de milkshakes
e mordidas nos sanduíches.
Olhando fixamente para o telefone celular, um dos rapazes comentou assustado e dirigin-
do-se aos outros dois colegas:
— Galera, prova de inglês amanhã! Estão ligados?
Um deles arregalou os olhos e pronunciou um “Xiii!”. O outro, mais tranquilo, disse que já
tinha estudado toda a matéria da prova.
Foi então que uma das moças entrou na conversa.
— Vocês têm prova de inglês? Nós não temos mais.

234
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

— Como assim? Indagou o rapaz que estava preocupado com a prova, mostrando a boca
cheia de pão.
A outra moça interferiu explicando:
— A nossa professora negociou com a gente e agora fazemos outro tipo de avaliação.
Não fazemos mais provas. Avaliamos as nossas produções semanais, mensais, os textos, vídeos,
podcasts, um monte de coisas que vamos produzindo em inglês. Estamos até fazendo uma peça
de teatro...
— Ah, também não usamos mais o livro. Estudamos com outros textos e vídeos que a
professora traz.
— Nós também trazemos. Observou a amiga, com a voz mansa e quase sem tirar a boca
do copo.
— Ah, sim! Nós também. Concordou a outra:
— Ela traz e a gente também. Colocamos tudo em um banco, um espaço lá na plataforma
digital e vamos decidindo o que queremos usar, estudar.
A outra moça complementou:
— Vamos colocando lá no portfólio, na plataforma online também as nossas produções.
Aí nas aulas a gente tem um tempo para comentar sobre os trabalhos. É legal a gente fala bastan-
te inglês, e não é chato. A professora avalia os trabalhos, o que a gente comenta, os textos que a
gente traz. A gente também se avalia.
Os rapazes se entreolharam, quase sem acreditar.
— Puxx!?” Sussurrou um dos moços com a boca marcada de espuma de chocolate.
— Cara, nunca ouvi falar disso, sem provas! Completou o outro.
A jovem explicou:
— É que a nossa professora estuda umas coisas lá na universidade e trouxe umas ideias,
uns textos sobre uma parada de... (com dificuldade de lembrar)
— Umas paradas de decolonialidade, de língua franca. Ajudou a colega.
A outra prosseguiu:
— É isso. Bem legal. A gente leu uns textos no começo do semestre e discutimos, conver-
samos, e ela chegou com essa proposta de não fazer provas. Claro que a gente topou né...
— Pensamos que seria, assim, mamata, mas que nada. A parada é séria. A gente trabalha
pra caramba pra fazer as produções em inglês, postar tudo nos prazos, participar das aulas,
comentar, em inglês, sobre as produções dos colegas e das nossas mesmas. Muitas vezes temos
que refazer os trabalhos depois dos comentários...

235
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

— Mas é legal. A gente aprende inglês com assuntos que a gente gosta, do jeito que a gente
decide e não se estressa com a prova – tipo, não fica nervosa.
— Sim! É verdade. — Disse a outra moça, aumentando a explicação:
— Também estudamos umas coisas assim, que estão rolando na atualidade, de racismo,
de preconceito, do inglês que é falado no mundo. Eu acho bom. Acho que estou aprendendo
mais – a gente pesquisa sobre o que quer fazer, falar, escrever. Antes eu tinha vergonha de falar
inglês, agora estou perdendo o medo...
Os rapazes escutavam olhando boquiabertos.
Também pensando se estava mesmo ouvindo aquilo, o professor de inglês terminou
de guardar os pertences. Levantou-se sem arrastar a cadeira e olhando o mínimo possível para
o grupo de estudantes dirigiu-se ao caixa. Pagou a conta com pressa de sair. Na rua viu os
transeuntes, os carros, avistou a escola do outro lado, a araucária gigante, de algumas cen-
tenas de anos que sobrevivia em meio aos prédios. Era a mesma imagem que sempre via ao
sair do Café. Tudo parecia normal. Foi andando em direção à escola sentindo o frio pegando
nas costas. Já era tempo de não sair sem agasalho, foi tudo o que conseguiu raciocinar.

236
DECOLONIALIDADE E PERSPECTIVA SURDA

Lídia da Silva
Universidade Federal do Paraná
Clóvis Batista de Souza
Universidade Federal do Paraná

Contextualização inicial

O DELA – Decolonialidade e Linguística Aplicada–foi um evento que ocorreu


na Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2021 e teve o objetivo de problematizar pers-
pectivas decoloniais dentro da Linguística Aplicada1. O evento foi organizado em dois ciclos
com apresentação de falas de vários pesquisadores ao longo de duas semanas. Na programação
do primeiro ciclo houve a participação do professor Lynn Mario Menezes de Souza da USP
(Universidade de São Paulo) discutindo as formas pelas quais as estruturas coloniais colocam
em dúvida a subjetividade humana de grande parte da população, com destaques aos negros
e indígenas. Sua palestra intitulada “Decolonial: ser, estar ou fazer” apresentou as epistemolo-
gias que apoiam o ser e o estar decolonial com ênfase à análise conceitual e às que suportam
o fazer decolonial. Assim, o palestrante mostrou-se favorável a uma epistemologia programática
que busca ser decolonial não só na relação com os negros e os indígenas, mas em relação a todos
os que têm as suas subjetividades e os seus saberes caracterizados como deficientes.
A colonialidade, segundo Mignolo, pode ser entendida como a “construção dessa ima-
gem da civilização ocidental”, a qual se deu “alicerçada em uma matriz de dominação colonial.
Esta refere-se [...], a uma vasta estrutura de poder que se funda no século XVI com a coloniza-
ção, constituindo-se a base das hierarquias sexual, religiosa, epistêmica e linguística subsisten-
tes até hoje” (LEDA, 2014, p. 114). O pensamento decolonial, ao contrário, “é uma pretensão
de transformar a percepção do mundo e da sociedade para além dos conhecimentos enraizados
nas categorias e línguas modernas” (LEDA, 2014, p. 42). Na nossa interpretação, a decolonia-
lidade seria um movimento de identificação, questionamento e desconstrução que abre espaço
para construção de outras perspectivas e realidades e por isso pensamos que a fala do profes-

1 Informações sobre o evento podem ser encontradas em https://dela.de.curitiba.br/

237
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

sor Lynn Mario Menezes de Souza pode ser aplicada à comunidade surda que se caracteriza
como uma minoria colonizada que tem sua subjetividade, muitas vezes, considerada como falha
em relação à “normalidade” ouvinte.
Assim, buscando alinhar-se à epistemologia programática, neste trabalho apresentamos
a perspectiva da pessoa surda sobre a fala do professor Lynn Mario Menezes de Souza e o fa-
zemos através de uma entrevista com um professor surdo, a qual foi produzida em Libras. Este
texto, portanto, rompe com a posição colonizadora do contexto acadêmico que inibe que “gente
sem escrita” (como os surdos que têm uma tensa relação com a língua portuguesa) produza
conhecimento e alternativamente oferece vídeos que podem ser acessados através do escanea-
mento dos QR codes indicados em cada caixa. A entrevista foi traduzida para o português brasi-
leiro, na voz de Sérgio Ferreira, profissional intérprete da UFPR, e visa acessibilizar o conteúdo
para pessoas não falantes de Libras.

O colonialismo e a comunidade surda

Conteúdo em Libras também disponível através do link https://www.youtube.com/watch?v=RhRvKxvFVqk

238
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Loci de enunciação do entrevistado

Conteúdo em Libras também disponível através do link https://www.youtube.com/watch?v=PpWcCCQw7-U

Lugar social dos sujeitos surdos

Conteúdo em Libras também disponível através do link https://www.youtube.com/watch?v=4-6CrN8_0IM

239
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

240
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

PRÁTICA DECOLONIAL E A PESQUISA COM A COMUNIDADE SURDA

Conteúdo em Libras também disponível através do link https://www.youtube.com/watch?v=qy77JBuDcA8

Considerações finais

Trazer a questão surda como centralidade do debate a partir da fala do professor Lynn
Mario Menezes de Souza nos possibilitou compreender a complexidade de como a colonialida-
de ainda atinge nossa sociedade como um todo e, em especial, as minorias. Dizemos isso pois
a resposta dada à pergunta 1 dessa entrevista evidenciou como as formas de violências se deram
no processo de dominação do sujeito surdo e como, infelizmente, em alguma medida, ainda
se fazem presente nos dias atuais. A resposta à pergunta 4, todavia, apontou que o movimento
Surdo vem contribuindo para o desenvolvimento de formas de pensar em ações para uma edu-
cação decolonial que acolhe as distintas identidades surdas.

241
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Com a entrevista, percebemos que o pensamento decolonial possibilita o protagonismo


surdo no contexto acadêmico, colabora com os avanços do reconhecimento da sua existência
e língua e impulsiona que as vozes que saem de suas mãos deixem de reproduzir o sistema
de dominação e combatam o ouvintismo estrutural.
Acreditamos que o fazer decolonial se refletiu nesse trabalho pela publicação em Libras
já que isso representa uma ação que assume pretensão contra o domínio consolidado da escrita
acadêmica, o qual tem contribuído para o apagamento da população surda na produção de co-
nhecimento. Assim, esperamos que a decolonialidade nos estudos da causa surda favoreça ou-
tras ações que levem à possibilidade de que subjetividades dos subalternizados possam ter lugar
no debate acadêmico.

Referências

GESSER, A. LIBRAS?: que língua é essa?: crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da
realidade surda. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
LANE, H. A Máscara da Benevolência. A Comunidade Surda Amordaçada. Lisboa: Editora Instituto
Piaget, 1997.
LEDA, M. C. Teorias pós-coloniais e decoloniais: para repensar a sociologia da modernidade. 2014.
PERLIN, G. Identidades Surdas. In: SKLIAR, C. (org.) A Surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto
Alegre: Editora Mediação, 1998.
SOUZA, L. M. Decolonial: ser, estar ou fazer?. In: DELA–Ciclo 1: Camila Haus e Lynn Mario T.
Menezes de Souza–Pós-graduação em Letras–UFPR. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=Ukwf Fona7-A&t=1803s. Acesso em: 26 nov. 2021.
STROBEL, K. História da Educação de Surdos. Florianópolis: Texto-base do curso de Letras Libras,
UFSC, 2009. Disponível em: https://www.libras.ufsc.br/colecaoLetrasLibras/eixoFormacaoEspecifica/
historiaDaEducacaoDeSurdos/assets/258/TextoBase_HistoriaEducacaoSurdos.pdf
VILHALVA, S. Índios Surdos: mapeamento das línguas de sinais do Mato Grosso do Sul. Petrópolis:
Editora Arara Azul, 2012.

242
“NÃO É PORQUE ESTOU NO NORTE QUE FALO A PARTIR DO NORTE”:
LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO E ESSENCIALIZAÇÃO DE IDENTIDADES

Jhuliane Evelyn da Silva


Universidade Federal do Paraná
Liane von Mühlen
Universidade Federal do Paraná

Introdução

O DELA–Decolonialidade e Linguística Aplicada (DEAL–Decoloniality and Applied


Linguistics, em inglês) foi um evento que teve sua primeira edição em dois ciclos em setembro
e outubro de 2021. A ideia do evento surgiu nos encontros do grupo de pesquisa Identidade
e Leitura, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
do Paraná (UFPR), e a organização envolveu, além do grupo do grupo citado, a UFPR, a Pró-
Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFPR (PRPPG), o Programa de Pós-Graduação
em Letras da UFPR, o Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da UFPR (DELEM),
o Setor de Educação Profissional e Tecnológica da UFPR (SEPT), a Superintendência
de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade (SIPAD), o Grupo de Pesquisa em Educação
Linguística (GPELIN), o Núcleo de Assessoria Pedagógica UFPR (NAP) e o Instituto de Letras
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Segundo os organizadores, o DELA “nasceu da necessidade de problematizarmos pers-
pectivas decoloniais de dentro da Linguística Aplicada, olhando para as relações possíveis e im-
possíveis entre o pensamento decolonial e práticas de linguagem” (DELA, 2021, on-line)1.
Diante dessa proposta, foram convidados pesquisadores e pesquisadoras do Brasil e de
outros países para, em encontros virtuais e a partir da língua de escolha entre os participantes
convidados, debater perspectivas diversas sobre a temática proposta.

1 Site do evento–https://dela.de.curitiba.br.

243
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Neste trabalho, focamos no primeiro encontro do primeiro ciclo2, ocorrido em 20 de se-


tembro de 2021, no qual a professora pesquisadora Juliana Zeggio Martinez, da UFPR, e o pro-
fessor pesquisador Walter Mignolo, da Duke University, dialogaram. As temáticas apresentadas
por Martinez e Mignolo foram, respectivamente, Engaging higher education in decolonial conver-
sations: learning, unlearning, and relearning (Engajando o ensino superior em conversas decolo-
niais: aprendendo, desaprendendo e reaprendendo, tradução nossa) e Language and coloniali-
ty: a decolonial argument (Língua e colonialidade: um argumento decolonial, tradução nossa).
Martinez e Mignolo, em comum acordo, optaram por fazer as apresentações e debate em língua
inglesa, o que repercutiu sobremaneira no chat da sessão. Por este motivo, as reverberações
no chat são objeto de análise neste trabalho.
Neste ensaio, é nosso objetivo explorar as discussões envolvendo o conceito de lócus
de enunciação e de como ele tem sido lido a partir de excertos narrativos anônimos retirados
do chat do dia 1 do evento, bem como dos argumentos utilizados pelos pesquisadores supra-
mencionados. É nosso intento entender as possibilidades e as complexidades que o conceito
de lócus de enunciação permite e restringe, especialmente no que se refere ao entendimento
de língua, de cultura, de território e de modernidade/colonialidade.
Para tanto, apoiar-nos-emos no conceito de lócus de enunciação proposto pelo grupo
latino-americano modernidade/colonialidade em suas conexões com os sentidos atribuídos
por pesquisadores brasileiros, como Menezes de Souza (2019) e Diniz de Figueiredo e Martinez
(2019).
Finalmente, este texto está organizado em duas partes principais. Na primeira, à luz
da metáfora da linha abissal, refletimos sobre o conceito de lócus de enunciação a partir de pers-
pectivas decoloniais latino-americanas. Na segunda, olhamos para o chat do evento em ques-
tão e construímos o argumento deste texto a partir de nossa leitura das respostas ali escritas.
Esperamos, com este trabalho, contribuir para a ampliação da discussão em torno do conceito,
bem como convidar nossos leitores a fazer leituras outras, que considerem a complexidade,
a cumplicidade, os privilégios, as violências e os apagamentos que promovemos com nossos
projetos de vida, especialmente no espaço acadêmico.

Lócus de enunciação: trazendo o corpo para a cena

O conceito de lócus de enunciação não é novo. Já nas teorias críticas de viés pós-moderno
e pós-estruturalista, argumentávamos sobre a relevância de situarmos de onde falamos episte-
micamente para que, cientes de estarmos localizadas em um determinado tempo histórico e em
um determinado espaço e de lermos o mundo a partir de quadros de referência específicos,
2 O primeiro ciclo de debates ocorreu na semana de 20 a 24 de setembro de 2021. Já o segundo ciclo aconteceu de 18 a 22
de outubro de 2022. Cada encontro envolveu dois pesquisadores ou pesquisadoras, sendo um/a da UFPR e outro/a
de outra instituição. Apenas um dos encontros do segundo ciclo teve a presença de duas debatedoras externas à UFPR.

244
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

pudéssemos colocar nossas verdades entre parênteses3 a la Maturana e contribuir para a cons-
trução de saberes em nossos círculos de pesquisa. Nesses termos, o conceito de lócus de enun-
ciação apontava para o lugar teórico de onde o pesquisador/autor partia para fundamentar seus
estudos, para anunciar suas verdades.
Esses estudos críticos, assentados nos estudos da pós-modernidade e fundamentados ge-
ralmente em autores como Bakhtin, Derrida, Lyotard, Foucault e Hall, tinham por objetivo
questionar as narrativas da modernidade. Para isso, se dedicavam a desnaturalizar as gran-
des narrativas modernas, como o sujeito centrado e uno, o conhecimento universal e neutro,
bem como os ideais da modernidade, como positivismo, humanismo e progresso. Ao proble-
matizar tais noções, intentavam enfraquecer verdades tidas como inquestionáveis e absolutas,
porque naturalizadas, complexificar o entendimento de um sujeito que é heterogêneo e múltiplo
e que constrói suas identidades em suas interações e também colocar em dúvida a noção de uma
realidade dada, concreta, fora do sujeito e de suas interpretações.
Apesar de apontar para uma diversidade epistêmica, para uma produção de significação
sempre em processo e para a necessidade de uma hiper-reflexividade constante, esses estudos
críticos questionavam a modernidade a partir de um referencial também moderno, fruto de cos-
mologias hegemônicas, que não levava em consideração a colonização, os privilégios que os
pensadores europeus acumularam por meio desses processos violentos de desapropriação, ge-
nocídio e epistemicídio, e tampouco a lógica moderna/colonial que permeava seus estudos.
Em outros termos, desconsideravam que o sujeito moderno produtor de conhecimento uni-
versal era homem, branco, europeu, ocidental, heterossexual, cristão. Portanto, falava a partir
de um lugar não marcado e imbuído de privilégios, o que não acontecia com corpos racializados
e produzidos como inferiores.
Para explicar essa racialização, ou a diferença colonial, utilizaremos a metáfora da linha
abissal construída pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2007, 2018) a partir
de sua leitura das zonas do ser e do não ser construídas pelo intelectual martinicano Frantz
Fanon (2008). Para Sousa Santos (2007, 2008), há uma linha epistêmica invisível que separa
o mundo em dois lados, o “deste lado” e o “do outro lado”, em norte global e sul global.
“Deste lado” da linha faz referência a toda forma de conhecimento produzida pelo centro,
que determina o que é válido, belo, normal e ideal, a exemplo do conhecimento científico. “Do
outro lado” da linha, consequentemente, indica o que desaparece como realidade e que é pro-

3 O biólogo chileno Humberto Maturana (2002, p. 42) nos apresenta esta noção por meio dos termos objetividade-
entre-parênteses e objetividade-sem-parênteses. Em seu texto, argumenta que, em nosso processo de explicar o mundo,
o primeiro implica a percepção da realidade por meio da nossa subjetividade, sendo inconcebível a existência de uma
realidade divorciada do sujeito e de suas leituras sobre esta. O último parte do entendimento de uma realidade fora
do sujeito, uma a qual teríamos acesso por meio de nossos processos cognitivos, estes livres de qualquer interferência
do nosso mundo interior e exterior. Nessas linhas, colocar nossas verdades entre parênteses torna-se, ao mesmo tempo,
o reconhecimento de nossos corpos e leituras nos dados apresentados neste texto e um convite para a expansão deste
tipo de leitura para outros âmbitos.

245
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

duzido como inexistente ou como exótico, magia, tradição, passível no máximo de ser tomado
como objeto de estudo de quem está “deste lado”. (SOUSA SANTOS, 2007).
Nessas linhas, norte global é “onde há maior convergência entre as epistemologias
do Norte e a cultura dominante eurocêntrica, e onde grupos sociais mais amplos se beneficiam
direta ou indiretamente da dominação patriarcal, colonial e capitalista” (SOUSA SANTOS,
2018, p. 123). O sul global, por sua vez, faz referência aos grupos sociais que experienciam coti-
diana e sistemicamente todo tipo de violência fruto do capitalismo, colonialismo e patriarcado.
Ou seja, esses locais não indicam espaços geográficos, mas ontoepistemologias e experiências
decorrentes da colonização perpetuadas por meio da colonialidade. Isso explicaria a existência
de tantas ontoepistemologias modernas/coloniais no sul geográfico, bem como ontoepistemo-
logias de resistência e luta no norte geográfico.
Como dito em outro lugar, “[a] inexistência daquilo que é projetado para ‘o outro lado
da linha’ implica a impossibilidade de compreensão e legitimidade do Outro por quem faz parte
‘deste lado da linha’” (SILVA, 2021, p. 39), sendo uma das causas de nossa cegueira epistêmica
que nos bloqueia o entendimento de outras formas de conhecer, sentir, existir e nos relacionar
no mundo com o Outro. Ou seja, a separação promovida por essa linha é lida como abissal exa-
tamente por tornar os conhecimentos, corpos e vivências de quem habita “o outro lado da linha”
incompreensíveis e, por isso, inexistentes.
Um exemplo dos efeitos desta linha seria termos por 500 anos aprendido a história
do mundo a partir de uma história local, a da civilização ocidental (MIGNOLO, 2012), ou ain-
da, como questiona Grosfoguel (2016), termos um entendimento de ciência, filosofia e epis-
temologia ocidental definido pelas teorizações de homens de cinco países ocidentais (Itália,
França, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos), sobretudo no que diz respeito às teorizações
produzidas nas humanidades e nas ciências sociais. Ou seja, um centro (norte global) define
o que é ciência e, portanto, conhecimento científico, universal e válido, e rechaça tudo o que
não se enquadra nesses moldes, considerando tradição, superstição e/ou cultura os conheci-
mentos e saberes construídos no sul global (SOUSA SANTOS, 2007). E faz tudo isso assumin-
do um lugar de neutralidade e de objetividade, dentro de um jogo cujas regras foram ditadas
pelos mesmos jogadores que o criaram e que, para sustentá-lo e continuar vencendo, necessitam
promover o apagamento do Outro que é racializado e inferiorizado.
O conceito de lócus de enunciação teorizado a partir da crítica decolonial latino-america-
na, especialmente nos trabalhos do sociólogo porto-riquenho Ramón Grosfoguel (2007, 2011,
2016), por sua vez, não somente trata do lugar epistêmico de onde falamos, mas lança luz às
estruturas de poder sobre as quais nos situamos e pelas quais somos constituídos. Em seus ter-
mos, o lócus indica “o lugar geopolítico e corpo-político do sujeito que fala” (GROSFOGUEL,
2007, p. 213), sugerindo que falamos sempre a partir de um corpo marcado (mas não determi-
nado) em termos de gênero, classe, raça, crença, sexo, língua, história, geografia e experiências,

246
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

para citar algumas. Sugere ainda que esse corpo produz conhecimentos também sempre coleti-
vos e situados, os quais serão hierarquizados de acordo com sua posição na estrutura moderna/
colonial em que vive.
Gloria Anzaldúa (2000) corrobora e complexifica essa visão ao olhar para a identidade
do sujeito como sendo de natureza múltipla, como um processo, algo em constante formação
ou reconfiguração, a depender de com quem nos relacionamos, das interações das quais fa-
zemos parte, do tempo no qual vivemos (presente ou passado), das comunidades das quais
participamos, mesmo que por breves momentos. Neste sentido, nosso lócus de enunciação,
apesar de marcado, seria algo móvel, um espaço em que se constrói sentidos de nossas realida-
des enquanto sujeitos sócio-históricos. Por isso, segundo a autora, a identidade é esse processo
relacional, no qual existimos e nos constituímos nas relações com o Outro.
Este movimento de provincialização/localização de saberes e de não essencialização
de identidades/lóci epistêmicos coloca o paradigma de conhecimento europeu moderno/co-
lonial em questão, uma vez que problematiza a produção de conhecimento separado do corpo
e do lugar sócio-histórico de onde se fala e a consequente pretensão de universalização e neu-
tralidade desse conhecimento, como se viesse de um não lugar (CASTRO GOMEZ, 2007).
Ainda, abre espaço para a contradição que nos habita enquanto seres sempre em formação,
que agem contingencialmente e contingencialmente vão se posicionando no mundo de acordo
com os encontros com o Outro e com as comunidades das quais fazem parte.
Este projeto decolonial aponta, como entendemos, para a existência da linha abissal
e para a colonialidade como constituída pela e constitutiva da modernidade, e nos convida
a buscar pensamentos/modos de viver outros que sejam possíveis no planeta finito em que
habitamos. Em outras palavras, diante da inesgotável diversidade ontoepistêmica do mundo
e das igualmente diversas e locais formas de resistência e reexistência a serem construídas,
as críticas decoloniais nos convidam a identificar, interrogar e interromper a colonialidade
(MENEZES DE SOUZA, 2019) e a cultivar uma ecologia de saberes (SOUSA SANTOS, 2007,
2018) que permita formas outras de existir, pensar, sentir e se relacionar, tudo isso sem qualquer
teor celebratório, acrítico ou a-histórico.
Urge explicitar, contudo, que este projeto amplo e complexo não rejeita os saberes/corpos
do norte global e tampouco luta pela inclusão do sul no norte global como beneficiário das pro-
messas da modernidade, pois se o fizesse estaria somente invertendo a lógica moderna/colonial
e apagando a violência colonial como condição de possibilidade da modernidade (SILVA, 2014).
Voltando essas discussões para o contexto brasileiro, sobretudo no que concerne à edu-
cação linguística, lemos na entrevista com o professor Lynn Mario T. Menezes de Souza et al.
(2019, p. 165) que “o local de fala [...] é um espaço atravessado pelo tempo, porque nunca es-
tamos em uma única dimensão”. Por assim o ser, “é algo móvel porque o local de onde eu estou

247
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

falando hoje pode não ser o mesmo local de onde eu estarei falando amanhã”, pois nossa história
como sujeitos do e no mundo muda, buscando outros e novos pontos de chegada. (MENEZES
DE SOUZA et al., 2019, p. 166).
Neste sentido, como já trazido por Anzaldúa (2000), assumimos identidades de forma es-
tratégica, com vistas a mais produtivamente agirmos sobre os contextos dos quais participamos
a partir das necessidades que emergem. Um exemplo disso pode ser encontrado em Menezes
de Souza (2019). Na publicação, o professor rememora o uso estratégico da língua inglesa como
proposto nas OCEM (um documento oficial de orientações para o ensino na educação bási-
ca lançado em 2006) que centra o ensino da língua em seu aspecto educacional de aprender
a conviver com a diferença, de modo a melhor responder às demandas do sistema escolar local,
ao invés de enfatizar tão somente a competência comunicativa, sobretudo linguística, dos alu-
nos. Outro exemplo consta do ensino de língua portuguesa para falantes indígenas, que a res-
significam para atender suas necessidades e o fazem ao se apropriar desta língua e ao utilizá-la
em seus próprios termos.
Ainda sobre a necessidade de pluralizar narrativas e situar o corpo que enuncia, Diniz
de Figueiredo e Martinez (2019) propõem que os estudiosos explicitem seus próprios lóci
de enunciação visando localizar os conhecimentos que produzem. Para o pesquisador e a
pesquisadora (2019, p. 1, tradução nossa), ao localizar conhecimentos, “os acadêmicos em lin-
guística aplicada e outros campos são capazes de reconhecer os limites de suas reivindicações
e apresentar suas pesquisas de maneiras que possam mudar a universalidade do conhecimento
eurocêntrico branco.”
Respondendo a este chamado e em consonância com as visões propostas, escrevemos
em colaboração e assumimos nosso lócus como sendo enunciado por meio de corpos femininos
branco e não branco, cristãos, heterossexuais, de vivências, histórias e leituras de mundo dis-
tintas. Esses mesmos corpos que falam a partir do espaço liminar possibilitado pelo sul global
se reconhecem enquanto colonizadores e, portanto, cúmplices das violências e desejos mo-
dernos/coloniais (SHOTWELL, 2016), além de estarem cientes de seu privilégio em termos
de acesso a bens simbólicos e materiais que muitos não têm. Ainda assim, somos projetadas
em uma posição assimetricamente inferior quando tomadas em relação às geopolíticas e aos
corpos-política que habitam o norte global.
Esse exercício reflexivo inicial nos auxilia a escutar e a conviver com o Outro diferen-
te de nós e a percebê-lo enredado em suas histórias, experiências e conhecimentos distintos
e igualmente válidos e contribui para que possamos nos abrir a modos outros de produzir co-
nhecimentos e vivências no mundo, para além do que aprendemos ser belo, normal e ideal.
Será, portanto, a partir dele e das complexidades que o implicam que olharemos para as falas
retiradas do chat do DELA e estabeleceremos caminhos argumentativos que, reconhecemos,
complicam o entendimento de lócus de enunciação naquele evento específico.

248
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Sobre “I Am Where I Think”4: a língua inglesa e o lócus de enunciação

Após leitura prolongada das falas do chat, identificamos três grandes fontes de argumento
sobre o uso da língua inglesa no diálogo de abertura do evento: 1) o desconforto com a língua
sendo utilizada no debate que distancia a teoria decolonial de sua efetivação na prática; 2)
o uso estratégico e de resistência da língua (colonial) inglesa; 3) a falta de acesso ao debate de-
vido à utilização desta língua, em detrimento de outra de mais fácil entendimento pelo grande
público.
Para tecermos as falas e nossas leituras, faremos uso de diferentes discussões propostas
por epistemologias do norte e do sul em suas possibilidades e dificuldades. Por centrarmos
na discussão sobre lócus de enunciação e língua, foi nosso entendimento termos de incluir al-
guns debates sobre o tema, especialmente aqueles que pretendem mudar os termos da conversa
e falar a partir de ontoepistemologias para além das ocidentais hegemônicas.
Por questões de ética na pesquisa, retiramos os nomes verdadeiros dos participantes e os
identificamos como debatedores (DEB1 a DEB20), reconhecendo que suas falas serão neste
ensaio representadas pela leitura que nós fizemos delas. Finalmente, suas falas foram aqui trans-
critas como apareceram no evento síncrono5.
Iniciemos com os primeiros registros feitos quando os participantes se depararam com a
professora Juliana e o professor Mignolo apresentando seus trabalhos em inglês:

Quadro 1–Sequência 1

DEB1: Temos imensa dificuldade de romper as amarras da colonização. Somos brasileiros na maio-
ria e por que escrever no chat em inglês?? Isso é manter a subalternidade.
[...]
DEB2: Parece controverso debater colonialidade e escolher o ingles como lingua do debate, as inte-
rações no chat...Se juliana é brasileira e Mignolo latino americano.
DEB1: Passar o texto lido para o professor Mignolo em inglês e a Juliana apresentar em português.
Isso não seria uma prática decolonial? Por que não temos práticas decoloniais com essas ações?
DEB1: O inglês, diferente do português e espanhol, tem uma representação imensamente diferente
na perspectiva da lógica do capital.
[...]

4 Expressão utilizada por Mignolo (2012) para intitular a parte dois do seu livro “Local histories, global designs: The geo-
politics of knowledge and colonial epistemic differences”.
5 Conferir primeiro dia do evento no link que segue: <https://www.youtube.com/watch?v=kbX0-L2EOfg&t=5462s&ab_
channel=P%C3%B3s-Gradua%C3%A7%C3%A3oemLetrasUFPR>. Acesso em 28 maio 2022.

249
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

DEB3: Essa discussão sobre a língua usada aqui me parece a discussão da igreja sobre sexualidade
alheia. Tem gente morrendo de fome e pessoas negras sem acesso a educação. acho que temos mais
a discutir.
DEB1: Comunicar mais em inglês, significa comunicar com quem?? Com quem queremos falar??
DEB4: ​Língua comum de quem? Dos conferencistas?
DEB5: [...] Considerando que o público é majoritariamente latino-americano... não faria sentido
falar português/espanhol?
DEB6: A language of choice. and nothing else.

Fonte: as autoras (2022).

Dentre os questionamentos apresentados, a discussão central parece girar em torno


do uso da língua inglesa, tanto nas apresentações quanto no chat. DEB1, DEB2, DEB4 e DEB5
questionam os motivos das falas em inglês de Martinez e Mignolo e do fato de no chat alguns
participantes estarem escrevendo em inglês, enquanto DEB6 argumenta que é uma questão
de escolha, tão somente. DEB3, por sua vez, acredita que haja assuntos mais relevantes a serem
discutidos do que o uso da língua em questão.
Concernente à escrita em inglês no chat, DEB1 argumenta que, em se adotando tal prática,
estaria sendo mantida a subalternidade. A debatedora chega a sugerir que os apresentadores po-
deriam ter trocado seus textos com antecedência e assim manter as falas em suas línguas “locais”,
o que para ela se configuraria em uma prática decolonial. Cabe aqui interrogar: 1) o que seria
uma prática decolonial?; 2) por que escrever no chat em português seria uma atitude decolo-
nial?; e 3) por que a utilização do inglês não teria espaço em um evento sobre decolonialidade?
Os pesquisadores Sinfree Makoni e Alastair Pennycook (2007) apontam para o fato
de que todas as línguas foram inventadas visando objetivos políticos e de dominação que o co-
lonizador intencionava. Portanto, a escolha de uma língua, segundo Menezes de Souza (2019),
pode ser uma estratégia que se adota para alcançar objetivos. Pensar que esta ou aquela língua
é mais ou menos decolonial é cair na hierarquização linguística, na qual se tem por base as hie-
rarquias sociais.
Outro ponto levantado por DEB1 faz referência ao público-alvo da comunicação em ques-
tão, pois ela questiona com quem se tem o desejo de se comunicar, o que para ela determinaria
a escolha da língua. Isso faz sentido quando pensamos que inevitavelmente nos percebemos
querendo falar com e sermos ouvidos e validados pelo norte global, com base nos seus mol-
des coloniais, quando o que precisamos também é nos articular e resistir junto ao sul global,
que compartilha as cicatrizes coloniais e guarda práticas, sabedorias e sentires outros, para além
do que fomos ensinamos a ver/sentir/conhecer.

250
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Ao mesmo tempo, devemos questionar nosso entendimento do que seja esse norte e esse
sul global, como trouxemos na primeira parte do texto. É porque Mignolo é argentino que de-
veria falar em espanhol e porque Martinez é brasileira que deveria falar em português? Não es-
taríamos assim assumindo um lócus puramente geográfico, essencializando as identidades e as
possibilidades que esses espaços geográficos e epistêmicos têm a oferecer? A língua em que
escolheram dialogar, que faz parte de seus repertórios e de suas histórias enquanto estudiosos
e profissionais, não poderia ser utilizada por ser historicamente uma língua colonial, eurocên-
trica, carregada de exclusões? Como lidamos com as questões políticas e identitárias nesse caso?
Se somos de onde falamos, por falar na língua do colonizador, estaríamos assumindo nossa
subalternidade e mantendo a colonialidade? Ou haveria a possibilidade de interpretação, trans-
gressão e apropriação desta língua, entendendo língua enquanto essa prática que nos posiciona
no mundo?
Quanto à manutenção da subalternidade mencionada por DEB1, pensamos que tem a ver
com o conceito de língua que adotamos. Compreendendo línguas enquanto invenções coloniais
(MAKONI; PENNYCOOK, 2007), impregnadas por movimentos sociais, culturais e políticos,
cabe a pergunta: não seriam o português e o espanhol línguas igualmente coloniais, uma vez
que também são as línguas dos colonizadores? A nós nos parece que a questão com o inglês
é marcadamente mais problemática para DEB1, uma vez que está imbricada, por questões
de poder, à lógica do capital e aos posicionamentos neoliberais.
Já DEB2, encampando as falas de DEB1, considera controversa a condição de um evento
sobre decolonialidade estar sendo apresentado em língua inglesa por uma professora brasileira
e um professor latino-americano. Em assim pontuando, ela parece perpetuar a diferenciação
no sentido de que o Brasil não faça parte da América Latina. Ao nosso ver, o que DEB1 traz aqui
está relacionado a questões de poder e à compreensão do inglês como língua imperial, patriarcal
e dominante. Ainda neste sentido, quando informado que os apresentadores optaram por uma
língua comum para o evento, DEB3 questiona de quem seria essa língua comum, tão somente
dos conferencistas ou também do público que participava do evento. Também DEB4 questio-
na a opção por inglês como língua de comunicação dos conferencistas, uma vez que o público
acompanhando o evento seria majoritariamente latino-americano.
A opção de língua de comunicação feita por Martinez e Mignolo para DEB3 não repre-
senta um ponto crucial, uma vez que, no seu entendimento, questões relativas à fome e à fal-
ta de acesso dos negros à educação, isto é, assuntos outros, deveriam ser prioritárias. DEB6,
por sua vez, compreende que a língua inglesa utilizada pelos conferencistas nada mais é do
que uma escolha, assim como se escolhe a linguagem com a qual queremos nos comunicar.
Nos subtópicos que seguem, essas questões serão retomadas separadamente.
Primeiramente, refletiremos sobre a concepção de língua como defendida pelos debatedores
do chat, depois trataremos da colonialidade que perpassa as línguas problematizadas no deba-

251
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

te e finalizaremos com a questão do acesso, tão enfatizada no debate, principalmente a partir


da segunda metade do evento.

Sobre a decolonialidade e a (im)possibilidade do inglês

Observando o quadro acima e as diversas manifestações nele expressas, complicamos


a conversa agora trazendo contribuições de outros debatedores com foco na (im)possibilidade
de se utilizar a língua inglesa em um evento sobre e com intenções decoloniais. Para tanto, ve-
jamos o Quadro 2 a seguir:

Quadro 2–Sequência 2

DEB7: DEB2, eu creio que é a língua que faz parte do amplo repertório dos dois e que foi escolhi-
da para esta interação. As outras também são coloniais e acho que eles estão se apropriando e a
modificando
DEB8:​ Por outro lado, tb é necessário decolonizar o inglês, legitimando falares dessa língua q não
sejam os do Norte, os dos ditos “falantes nativos”.
DEB1: Como diria Freire: “ É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz,
de tal maneira que num dado momento a tua fala seja a tua prática”
DEB9: ​@DEB2 não estaríamos aqui usando a língua ao nosso favor?
DEB20:​@DEB2 sim, perfeito. A prática pode ser mais pratica do que pensamos. Não precisa
ser grandes ações, podemos começar por respeitar os idiomas maternos.
DEB4: Sugiro a leitura da obra “Descolonizar la mente” de Ngugi Wa Thiong’o para repensar essa
colonização da linguagem que alimentamos ao selecionar o inglês como língua de debate
DEB10: ​E xato. Interagir no chat em inglês para mim é respeitar o acordo explicitado entre os speak-
ers no começo do evento.
DEB12: Entendo que a possiblidade do debate em ingles tambem facilite o acesso para outras nacio-
nalidade participarem. Isso eh so minha impressao...
DEB11: Sem inglês não se sobrevive academicamente, é o que estou descobrindo em minha experi-
ência como aluno de doutorado
DEB12: ​tbm entendo a dificuldade de quem nao fale ingles participar e debater
DEB13: ​uma das estratégias decoloniais é “thinking communication otherwise”... Acho que pensar-
mos as línguas na ideologia nação-língua-identidade é colonial. Concordo que falarmos em inglês
aqui (continua)
DEB11: ​então é de fato muito estranho debater decolonialidade em inglês
DEB13: ​faz parte de um acordo... e estamos glocalizando essa língua, resistindo através dela

252
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

DEB11: ​talvez esse debate tenha que ser feito por uma elite que possa se dar o privilégio de não usar
o inglês.
DEB10: ​If the speakers asked to talk in English and that they feel more comfortable with, it’s more
colonial to try to impose the opposite (in my opinion)
DEB2: I​ ndepende da língua, podemos escolher uma prática menos excludente!
DEB1: Principalmente quando o convidado principal é argentino, me parece uma acordo que pre-
serva a lógica da colonização.
DEB12: l​embrando que falar a lingua de colonizadores tambem nos ajuda a articular inclusao
DEB14: não podemos esquecer, acho, que o inglês nos permite comunicar de forma mais ampla,
para não falar para nos mesmos e não será usado em todas as apresentações
DEB14: ​Decolonizar, para mim, é tbm usar os meios que temos com estratégia, consciência e res-
ponsabilidade, mudando-os na prática de uso, não exclui-lo.

Fonte: as autoras (2022).

Nesta sequência, um elemento é enfatizado: a concepção de língua que fundamenta os argu-


mentos do público que conversa no chat e as apresentações de Martinez e de Mignolo. Parece-
nos que o argumento de DEB1 e DEB2 presentes no Quadro 1 se centram na intrínseca ligação
feita entre língua, território e comunidade e, portanto, de língua sob um viés iluminista: cada
língua pertenceria a uma comunidade estabelecida em determinado território e se constituiria,
assim, em um elemento distintivo de uma comunidade/cultura (CANAGARAJAH, 2013).
Este entendimento traz implicações importantes ao nosso argumento. Se a língua está
intrinsecamente relacionada ao território e a um determinado povo, isso quer dizer, no caso
do inglês, que há um sistema linguístico chamado inglês que é falado por um povo de uma de-
terminada região e que ele e somente ele tem acesso ao “real” da língua. Por deterem o sistema,
também deteriam as possibilidades de língua, de sotaques, de criação de regras e de atribuição
de sentidos possíveis, o que alimenta a ilusão do construto do falante nativo e da visão de norma
padrão ou variante correta da língua. Nessa esteira, os ingleses dos países colonizados por esses
impérios e as outras formas de inglês (re)construídas e modificadas continuamente no mundo
seriam de menor valor, versões impuras do “verdadeiro” inglês.
Contrários a esta concepção, autores como Alastair Pennycook (2007) e Suresh
Canagarajah (2013) e autoras como Ofelia García e Jo Anne Kleifgen (2019) partem do enten-
dimento de língua enquanto uma prática social, política, ideológica (MATURANA; VARELA,
1987; BAKHTIN, 2016; VOLÓSHINOV, 2018) de atribuição de sentidos individuais/sem-
pre coletivos às palavras-mundos. Esta concepção parece ser o que movimenta o argumento
de DEB7, DEB8, DEB9, DEB10, DEB12, DEB13 e DEB14 exposto no Quadro 2. Para DEB7,
as línguas fariam parte do amplo repertório multissemiótico dos interactantes, espaço esse

253
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

de emaranhamento de sentidos, de Es e Ous, de fluxos de afetos e multimodalidade, sendo


impensável “falar” uma língua, como o inglês, fora da interpretação e leitura do que seria essa
língua para os sujeitos da interação ( JORDÃO; MARQUES, 2018).
Como DEB9, DEB13 e DEB14 ressaltam, fundamentadas nesta concepção, a língua ingle-
sa aparece como uma possibilidade de ser, estar e agir no mundo moderno e colonial em que
vivemos. Assim sendo, ela se coloca a serviço dos sujeitos que dela se apropriam para construir
sentidos, inclusive outros, situada e contingencialmente, sem desconsiderar as relações de poder
que permeiam nossas interações com o Outro nesse processo de criação. Em termos de im-
plicações, destacamos a desnaturalização e descentramento do construto do falante nativo e/
ou de um país detentor de alguma norma, língua ou costume específico. Aqui, fazemos uso de
repertórios amplos, heterogêneos, compostos por recursos os mais diversos que são levados
em consideração em nossas interações (não necessariamente harmônicas) com o Outro.
Decolonizar nossas interações e nossas produções acadêmicas em inglês, portanto, passa-
ria por compreender as complexidades que envolvem o uso contraditório e produtivo dessa lín-
gua. Assim, ser argentino ou ser brasileira e falar em um evento brasileiro sobre decolonialidade
em língua inglesa não indica a priori, em nossa visão, alguma atitude de subalternidade ou sub-
serviência à língua imperial que é o inglês. Tampouco significa que falar em português ou em
espanhol seria de fato decolonizar a academia, tendo em vista a colonialidade dessas línguas.
Sobre essa questão, rememoramos que esta língua de escolha ainda foi utilizada em outros
dias do evento por outras pessoas sem maiores repercussões, o que nos leva a pensar em como
o lócus dos pesquisadores, especialmente do professor Walter Mignolo, significa e causa grande
desconforto em quem o escuta. Parece-nos que seu lugar enquanto homem branco, trabalhan-
do em uma universidade de prestígio no norte global, sendo apontado como um dos gran-
des pensadores desta perspectiva e falando/publicando em inglês é, para quem o assiste, fonte
de contradição com relação ao conteúdo dos estudos decoloniais. Fazer esta conexão, contudo,
limita o que temos chamado de lócus ontoepistêmico. Acreditamos que todas essas vivências
aqui descritas devem ser consideradas ao lermos suas produções, porém, como já mencionado,
elas não determinam o conteúdo de suas publicações e não excluem a possibilidade de aliança
na luta de resistência contra a modernidade/colonialidade e seus efeitos.
Considerar o repertório dos pesquisadores e a negociação feita entre eles e os participan-
tes do evento no que concerne à língua parece-nos ser uma possibilidade interessante de utilizar
a língua a nosso favor, com nossos sentidos, sotaques e intenções, como argumentaram DEB7,
DEB8, DEB9, DEB10, DEB12, DEB13 e DEB14. Decolonizar a academia, nos termos de DEB12
e DEB 14, não implica excluir as epistemes e as línguas, por exemplo, do norte global; tem a ver,
sim, com sua utilização estratégica, crítica, ética e criativa, de modo a promover ontoepistemo-
logias e cosmologias outras e, por meio (também) delas, imaginar futuros alternativos, menos

254
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

injustos e violentos (MENEZES DE SOUZA, 2019; ANDREOTTI; MENEZES DE SOUZA,


2016).
Isso não invalida, contudo, as colocações de DEB1, DEB2, DEB4, DEB11 e DEB20. Como
lemos, seus argumentos refletem sua preocupação com a reprodução da colonialidade que nos
constitui, com o aspecto imperial, simbólico e excludente da língua inglesa, sobretudo no Brasil,
onde poucos têm acesso à língua em termos modernos comunicativos, o que dificultaria a par-
ticipação ativa de pessoas que não possuem esta língua em seu repertório linguístico. Ademais,
não podemos esquecer das relações assimétricas de poder que estabelecem hierarquias entre
quem sabe e quem não sabe, portanto, quem produz em inglês e quem é excluído desse debate,
e que acabam por ditar os rumos da produção científica no país.
Como uma prática de resistência, a apropriação e ressignificação do inglês é somente
um passo, dos muitos necessários, para pluralizarmos as discussões, os corpos e as experiên-
cias no espaço colonial da academia. Ao enunciarmos reconhecendo nossa condição complexa
de colonizadores e colonizados, marcados pela colonialidade, mas também lutando contra seus
efeitos, fazemos uso do que nos é possível e está disponível em prol da construção de realidades
alternativas, ainda que inimagináveis para nós neste momento. O dissenso, a reflexividade e a
noção de interdependência nos parecem ser importantes nesta caminhada.

“Todas são línguas coloniais”

Neste ponto, abordamos as falas em torno da colonialidade das línguas, tópico que per-
meou o debate desde o início. Não raras vezes tendemos a nos esquecer do quanto a colonia-
lidade está imbricada nas questões linguísticas. Assim, trazer à tona questões que discutem
o conceito de língua, o uso e a apropriação que fazemos dessa língua são essenciais para que não
caiamos na armadilha de sub ou superestimar essa ou aquela língua. Atentemos para o Quadro 3:

Quadro 3–Sequência 3

DEB15: ​Poderíamos estar debatendo em português, língua de nossos colonizadores. Ou espanhol,


também língua de nossos colonizadores......
DEB16: Isso, @DEB15! Por vezes, nos esquecemos de que o português e o espanhol, assim como
o inglês, tb são línguas coloniais...

Fonte: as autoras (2022).

Makoni e Pennycook (2007) pontuam que, em todas as línguas sendo inventadas e sen-
do partes integrantes fundamentais dos projetos cristãos e nacionalistas, orquestrados pelos
colonizadores, com fins de dominação, não há sequer uma língua que esteja fora ou não sofra

255
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

os efeitos do projeto moderno/colonial. É esse o ponto trazido por DEB15 e DEB16, quando
argumentam que o debate mesmo ocorrendo em português ou espanhol ainda estaria aconte-
cendo em línguas coloniais.
Se todas as línguas que estão em nosso repertório ocidental são coloniais, entendemos
que um movimento potente para resistir e ser/pensar otherwise seria embasar nossas práticas
linguísticas em uma concepção de língua mais aberta, complexa, que lide com pessoas reais
experienciando o mundo da vida, que não se separa de nossas teorizações, dos nossos corpos
ou mesmo dos nossos desejos, ou seja, língua enquanto um agir no mundo (MATURANA;
VARELA, 1987), enquanto repertório, (re)pensando e (re)dimensionando o seu uso e dele
nos apropriando, operando por meio dele.
Concernente a esse debate, trazemos a seguir excertos das falas6 dos próprios conferencis-
tas. Esses excertos constam no vídeo do dia do evento, disponível no site do DELA, conforme
indicado na introdução. Os interlocutores do diálogo são a moderadora Clarissa Jordão e os
professores Juliana Martinez e Walter Mignolo.

Quadro 4–Sequência 4

CLARISSA JORDÃO: [...] como vocês reagiriam a esta ideia de que a escolha do inglês para a confe-
rência sobre decolonialidade ser colonial... bem, minha própria perspectiva é que toda língua pode
ser colonial nesse sentido, ou pelo menos as cinco, vocês sabem, línguas clássicas são coloniais de qual-
quer forma, mas gostaríamos de ouvi-los sobre isso [...]
JULIANA MARTINEZ: Então, só para explicar que estamos usando o inglês porque o inglês é uma
língua comum que tem aqui, então é isso. Sim, poderíamos estar usando outra língua? Sim, poderí-
amos estar usando outra língua. A ideia é encontrar um lugar comum para compartilhar e trocar,
mas o ponto é que quando consideramos a possibilidade de não usar o inglês estamos considerando
usar outra língua que não seja tão diferente. Este é o ponto. Portanto, a ideia de pensar que podería-
mos escolher uma língua que não fosse colonial nos coloca em um lugar que estaríamos fora da colonialida-
de e este lugar não existe porque estamos na matriz do poder colonial, de modo que não depende da língua
que usamos, depende do que dizemos e por quê e como usamos a língua […], isto é, [...] como eu entendo,
mas é claro que também discordo deste movimento do inglês para todos e o acadêmico, que o inglês
tem que estar na vida acadêmica em qualquer lugar. [...]
WALTER MIGNOLO: Ah, sim [...] Há 30 anos que me fazem essa pergunta desde que escrevi
The Darker Side of Western Modernity, mas aí eu gostaria de dizer sim. Acho que concordo que não
devemos usar o inglês, devemos ter essa discussão em Aymara ou Náuatle, ou uma das 30 línguas Maias...
a raiz Maia. Isso seria fantástico! Se não podemos fazer isso em espanhol ou português e o espanhol
e o português são línguas imperiais, exceto que são línguas imperiais de segunda classe e temos
que estar cientes disso. Que o italiano, o espanhol e o português são línguas imperiais, mas de
segunda classe porque no século XIX foi o alemão e o francês, a França e o inglês. E em terceiro
lugar, o inglês é uma língua caribenha, é uma língua afro-caribenha. E é uma língua da Nigéria.
6 Transcrição, tradução e compilação das falas: nossa autoria. Ênfases nossas.

256
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Chimamanda Adichie escreve em inglês. É a língua da Índia, como nós, quero dizer, Chimamanda
Adichie e nós, uma espécie de língua colonial nas colônias, então essa é outro [...] problema, que não
podemos resolver. Se estamos falando espanhol e inglês, temos outro problema para resolver.
Em que momento o espanhol e o inglês se tornaram secundários? E terceiro, se falamos em espa-
nhol e inglês, quero dizer, espanhol e português nós nos atemos ao público espanhol e português.
Se falamos em inglês podemos chegar à China e podemos chegar ao Zimbábue e podemos chegar... então...
porque... porque inglês como o espanhol e o francês são línguas coloniais. E finalmente eu diria
que o inglês não é minha língua. Estou apenas usando-o. E eu a utilizo politicamente.
CLARISSA JORDÃO: E literalmente no sentido da palavra, certo? Estou usando-a para meus pró-
prios fins. [...]

Fonte: as autoras (2022).

Como estamos na matriz colonial do poder, ou seja, como vivemos e somos constituídos
pela colonialidade, as línguas que utilizamos também não escapam dessa estrutura. Como ar-
gumentado na sequência, concordamos que o que vai importar aqui é o propósito que temos
ao utilizar as línguas que compõem nosso repertório, como as utilizamos e em favor de que e de
quem o fazemos.
Enquanto brasileiras que foram ensinadas português como língua materna7, apesar de ha-
ver diversas outras em nosso território que foram, por força de leis, caladas (e com elas, muitos
de seus falantes), como faríamos para nos comunicar, o que teríamos em nosso repertório, caso
quiséssemos tão somente utilizar as línguas que foram ativamente apagadas?
Sem querer fixar nossas experiências de falantes de língua portuguesa em um Brasil supos-
tamente monolíngue, evidenciamos que, vivendo no sul global, habitamos esse espaço liminar
(LUGONES, 2006), onde nos encontramos por meio de nossas diferentes lutas de resistência
contra a colonialidade, o patriarcado e o capitalismo e utilizamos produtiva e colaborativamente
esse espaço para construir possibilidades de ir além das nossas amarras coloniais.
O decolonial para nós é, de fato, o espaço fronteiriço, de possibilidade de desconstrução
e reexistência. Daí não considerarmos que só temos a teoria e estamos muito distantes da prá-
tica decolonial. Não sendo o decolonial um estado de coisas ou um projeto com resultados
predeterminados, imaginamos que nosso engajamento nessas discussões e, esperamos, em uma
prática cotidiana outra com intenções decoloniais (CHIAPPA; MARTINEZ, no prelo) seja
uma estratégia potente, mesmo que inicial, dentro dessas discussões.
A “língua” que utilizamos, seja a inglesa ou a portuguesa (ou as diversas outras que coe-
xistem, se entrelaçam e enriquecem nossa expressão), só tem sentido dentro do mundo que re-
conhece a pluralidade e a heterogeneidade, ou seja, sua impureza constitutiva. Portanto, as falas

7 Embora tenha nascido no Brasil, a língua alemã é a língua materna da autora Liane von Mühlen, vindo a aprender
português somente na escola.

257
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

de Jordão, Martinez e Mignolo vêm ao encontro do que compreendemos como sendo o en-
tendimento de língua como um repertório do qual nos utilizamos para atribuir e validar senti-
dos em determinados contextos para diferentes públicos. Nossa opção por escrever esse texto
em língua portuguesa, ou seria brasileira, por exemplo, se traduz como sendo uma escolha
nossa, sem entrar no mérito de qual público leitor será mais ou menos privilegiado.

“Quem consegue acompanhar?”

Um último ponto que enfatizamos é a questão de quem tem acesso à língua inglesa
no Brasil, algo que foi mencionado de forma rápida no ensaio. Para essa questão, os argumentos
levantados giram em torno do prestígio da língua inglesa e do pouco acesso à essa língua pela
população, da utilização da língua portuguesa e espanhola por serem mais compreensíveis para
o público brasileiro e, por extensão, ao povo latino-americano, e da busca por uma língua neu-
tra de comunicação. Vejamos as falas no Quadro 5:

Quadro 5–Sequência 5

DEB5: Uma questão que pode nortear um pouco melhor essa discussão da língua é: quem consegue
acompanhar uma discussão em inglês no Brasil...
DEB4: A questão, me parece, é que em português ou espanhol, facilitaria para quem não compreen-
de o inglês
DEB5: S ​ endo que seria possível fazer a discussão em português e em espanhol. Falando devagar
e parafraseando, se entende
DEB4: Mas português e espanhol tem a mesma raiz linguística
DEB17: ​Acho que deveríamos estimular o uso do esperanto, por ser uma língua internacional e não
pertencer a um povo específico, a um povo colonizador.
DEB17: ​Além do esperanto ter uma gramática mais simples e ser mais fácil de ser aprendido,
sem perder a capacidade de expressar conceitos complexos.
DEB5: ​Não porque português e espanhol não sejam imperialistas, mas *quem* consegue acompa-
nhar? Quem está realmente sendo impedido de acompanhar?
DEB1: Quem valoriza o bilinguismo dos indígenas?? Mas o inglês se torna a língua de prestígio.
Diferente do espanhol que também é vista como idioma subalterno.
DEB18: Acredito que línguas de uma mesma família linguística facilitaria a compreensão de todos.
Uma conferência com essa importância deveria sim ser mais inclusiva.
DEB18: como falar de descolonização epistémica se a grande parte das pessoas não conseguem
acompanhar.

Fonte: as autoras (2022).

258
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Com relação ao acesso, sabe-se que, historicamente, o ensino de outras línguas (clássicas,
como latim e grego, e modernas, como alemão, francês, espanhol, italiano e inglês) no Brasil es-
teve majoritariamente ligado ao clero, a elites que tinham acesso aos estudos secundários (como
o Colégio D. Pedro II) e ao ensino superior, a professores particulares qualificados no território
nacional, ou ainda a imigrantes que mantinham suas línguas maternas em escolas específicas
dentro de suas colônias (LEFFA, 1999; OLIVEIRA, 2015). Uma política de educação básica
(infantil, fundamental e médio) pública e gratuita para toda a população, registrada na legislação
brasileira8, não ocorreu antes da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, promulgada em 1996,
possibilitada pela Constituição Federal de 1988.
Nesta Lei, fica estabelecido o ensino de ao menos uma língua estrangeira a partir do se-
gundo ciclo do ensino fundamental, com vistas à formação linguística e cidadã dos educandos.
Por questões políticas e econômicas, aliadas ao grande interesse da população pelos Estados
Unidos, sobretudo a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, a língua geralmente escolhida
pelos estados e municípios brasileiros para ser ensinada em seus currículos é a língua inglesa.
Mesmo assim, devido a diversas questões, dentre as quais o número ínfimo de horas des-
tinado a esta disciplina, salas lotadas, poucos recursos disponíveis, questões culturais e afetivas,
baixo investimento na educação, o estatuto da língua dentro do currículo e dificuldades com a
formação inicial e continuada de professores de línguas (BRASIL, 2006), há a crença de que
não se aprende línguas nas escolas públicas.
Em decorrência dessa crença e das problemáticas que certamente povoam a área, não é
raro escutar que os estudantes de escola pública (maioria no Brasil) não se sentem proficientes
ou com um repertório amplo o suficiente que os possibilite participar crítica e ativamente de de-
bates em que o inglês é utilizado. O cenário se complica quando a concepção de língua adotada
nas escolas é de viés estrutural, com foco na memorização e na repetição de formas linguísticas.
Ou seja, nesta perspectiva, o falante nativo é tomado como falante ideal e a capacidade de se
expressar bem na língua passa pela equivalência de quão próximo se está desta abstração.
Olhar para a língua de forma ecológica, envolvendo as imagens, os símbolos, os cheiros,
as modalidades distintas, para citar alguns elementos, encoraja uma atitude mais acolhedora
e produtiva para a interação, e considera todos esses elementos na produção de significação.
Neste sentido, não somente a gramática aprendida nas aulas de língua, mas também os en-
contros que esses sujeitos tiveram com a língua inglesa em suas vidas estudantis e cotidianas,
as experiências com a aprendizagem de outras disciplinas, as músicas, os sons, os filmes, os tex-
tos, tudo faz parte de seu repertório multissemiótico e vai auxiliar na interação com o Outro
por meio da negociação contínua de sentidos.

8 De acordo com Oliveira (2015), a importância do ensino de línguas já era citado mesmo antes da reforma educacional
de Francisco Campos em 1931. Porém, seu amplo acesso a todas as classes sociais e aos diversos tipos de instituições
educacionais só veio a ser estabelecido com a LDB/96.

259
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Como Canagarajah (2013) nos lembra, a utilização de estratégias será de grande apoio
para que nossos objetivos para com a língua sejam atingidos em determinada situação em dado
momento histórico. Uma atitude de abertura ao Outro, de engajamento no diálogo e de cola-
boração são algumas das possibilidades. Pennycook (2012) trata, por exemplo, da nossa dis-
posição em tornar o esperado inesperado, partindo do argumento que, enquanto falantes “não
proficientes” ou “não nativos”, tendemos a esperar não sermos entendidos e por isso utilizamos
das mais diversas estratégias para nos fazermos compreensíveis. Essa postura de se perceber
não “transparente”, necessitando de tradução, colaboração e negociação, parece-nos ser potente
para lidar com o desconhecido e com as imprevisibilidades dos encontros com o Outro, nativo
e não nativo, com repertório mais ou menos amplo.
DEB4 e DEB5 recorrem ao argumento em prol da utilização das línguas portuguesa e es-
panhola, mesmo sendo igualmente coloniais, por causa de sua família linguística e da proximi-
dade geográfica entre o Brasil e países de língua espanhola na América Latina. Sendo línguas
românicas, seria mais fácil para o público brasileiro compreender o que se estava falando na-
quele momento se a professora Juliana e o professor Walter estivessem utilizando português
e espanhol, respectivamente, auxiliando a construção de sentidos no debate.
Embora a intercompreensão de línguas românicas seja uma área rica de estudos e de de-
senvolvimento de pesquisas e pedagogias, percebe-se na fala das debatedoras que há certa bar-
reira para a tão citada “negociação” de sentidos quando o caso é o inglês. Sem negar a existência
de certas semelhanças na estrutura e na sonoridade entre as duas línguas, se não consideramos
a disposição na interação para acolhermos o Outro, não serão essas “semelhanças” o que favo-
recerá a intercompreensão.
Finalmente, um último argumento é trazido em prol de uma língua outra que não o in-
glês, o português ou o espanhol. Como indica a fala de DEB17, o problema estaria na escolha
da língua de comunicação e não nos falantes ou nos aspectos materiais, simbólicos, políticos
e ideológicos que elas trazem consigo quando se engajam em uma interação. Quando trata
do esperanto como uma possibilidade produtiva de estabelecimento de um diálogo, parece-nos
que o debatedor busca uma língua que seja neutra, não ligada a nenhum território ou cultu-
ra específicas; uma língua “mais fácil de ser aprendid[a]”, com gramática simples, mas capaz
de formular “conceitos complexos”.
Como tomamos a língua em contexto, percebemos que ela não é uma entidade no mundo
fora de relações de poder, da história ou mesmo do sujeito que a fala e que é, ao mesmo tempo,
modificado e constituído por ela. Assim, para trazer alguns insights, concordamos que a língua
inglesa ainda é vista como um produto e vendida enquanto tal, dificultando o acesso de certos
corpos marcados a determinados espaços e posições de poder. Contudo, em sua concepção
de prática social e com o objetivo de utilizar os espaços e os repertórios que temos, vemos o in-

260
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

glês como uma língua que continuamente modificamos para atingir nossos propósitos de resis-
tência e reexistência nesse mundo tão colonial.
Ao utilizar a língua de modo “impuro”, com os nossos objetivos e artimanhas, ressignifica-
mos este inglês do norte e ampliamos nossos espaços de participação no sul, com o sul e com o
norte, enquanto imaginamos e nutrimos a pluralização de nossos repertórios, de maneira a não
ser tão distante aprendermos as línguas/conhecimentos/culturas de cosmologias outras para
compartilharmos o mundo e a academia na diferença que nos constitui a todos.

Considerações finais

DEB19: No fundo, acho ótimo nos sentirmos incomodados com a língua escolhida aqui. É uma
forma de percebermos como é ser excluído (é decolonialidade). Olha como isso nos perturba
imensamente!

Iniciamos nossas considerações e finalizamos esse ensaio retomando a fala de DEB19


na epígrafe desta seção. Nosso intento, a partir de críticas decoloniais e pós-estruturalistas,
foi embaçar os contornos claros que tendemos a estabelecer quando tratamos de lócus de enun-
ciação, de identidade e de língua.
Como DEB19 bem ilustrou, se paramos para escrever e refletir sobre isso, é porque o as-
sunto de algum modo nos incomodou e foi esse incômodo que gerou movimento, mudança.
Partimos reconhecidamente de nossos lóci enquanto professoras de inglês e de nossas leituras
críticas e decoloniais sobre o que é língua e como desejamos ser e estar no mundo a partir des-
sas concepções e do que elas nos oferecem.
Na primeira parte, argumentamos sobre o conceito de lócus de enunciação de acordo
com a crítica decolonial latino-americana, com foco nas discussões propostas por Grosfoguel
(2007, 2011) e Anzaldúa (2000) e por professores pesquisadores brasileiros que o leem em seu
entrelaçamento com a educação linguística crítica e com a Linguística Aplicada em geral. Nosso
interesse se deu na complexidade que existe em se falar de geopolítica e corpo-política, sem cair-
mos na armadilha de nos fecharmos em um conceito de identidade fixo ou somente geografica-
mente marcado.
Na segunda parte, olhamos para os diversos sentidos e incômodos propostos no chat
do DELA como reação à utilização da língua inglesa em um evento sobre decolonialidade.
Optamos por dar maior ênfase à concepção de língua expressa por alguns debatedores, à colo-
nialidade que perpassa esses entendimentos e à questão do acesso como um fator primordial
quando se trata de decolonialidade.

261
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

A língua inglesa, ao mesmo tempo que exclui, possibilita; ao mesmo tempo que mata,
gera. Por isso, assentadas neste entendimento complexo e contraditório de língua e nas possi-
bilidades que hoje ela nos abre para construir contra-argumentos, “acessar” outras realidades
e estabelecer contatos, pontuamos a ressignificação do conceito de língua, mesmo inglesa, como
ainda potente para a luta de resistência contra a colonialidade. Como argumentou Sousa Santos
(2007, 2018) e Menezes de Souza (2019), numa ecologia de saberes, consideramos a diversida-
de (onto)epistêmica do mundo e fazemos uso dos nossos recursos para construir um otherwise.
Como o título deste ensaio indica, não é porque nos situamos geograficamente no norte
ou no sul global que reproduzimos as lutas e as opressões desses espaços. Enquanto sujeitos
marcados pela colonialidade, mas também possuidoras de muitos privilégios, buscamos nos es-
forçar em um caminho liminar, de possibilidade, de desconforto, de passagem, mesmo sem ob-
jetivos e caminhos predefinidos. Um caminho onde possamos nos encontrar em nossas diferen-
ças e lutar em prol do coletivo. (LUGONES, 2006).
Tendo em vista o exposto, convidamos o leitor a construir outras leituras a partir dos tre-
chos ilustrados e de nossa leitura deles e assim continuarmos o debate e o amadurecimento des-
sas reflexões. Certamente, nosso olhar para o texto e essa discussão daqui a algum tempo já não
será o mesmo, porque nossos corpos, identidades, experiências, desejos e motivações também
já serão outros.

Referências

ANDREOTTI, V. O.; MENEZES DE SOUZA, L. M. T. Critical education and postcolonialism. In:


PETERS, M. (ed.). Encyclopedia of educational philosophy and theory. Singapore: Springer, 2016.
p. 1-6.
ANZALDÚA, G. E. Writing: A Way of Life – an interview with María Henríquez Betancor (1995).
In: KEATING, A.; ANZALDÚA, G. E. (ed.). Interviews/Entrevistas. Nova York: Routledge
Publishing, 2000.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016.
BRASIL. Orientações curriculares para o ensino médio: linguagens, códigos e suas tecnologias –
conhecimentos de línguas estrangeiras. Brasília: Ministério da Educação / Secretaria de Educação
Básica, 2006.
CANAGARAJAH, S. Translingual practice: global Englishes and cosmopolitan relations. Londres:
Routledge, 2013.
CASTRO-GÓMEZ, S. La Decolonizar la universidad. La hybris del punto cero y el diálogo de saberes.
In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad
epistémica más allá del capitalismo global (compiladores). Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007. p.
79-92.

262
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

CHIAPPA, R. B.; MARTINEZ, J. Z. The pedagogy of decentering: reconceptualizing mobility


in internationalization of higher education (forthcoming).
DINIZ DE FIGUEIREDO, E. H.; MARTINEZ, J. Z. The locus of enunciation as a way to confront
epistemological racism and decolonize scholarly knowledge. Applied Linguistics, Advanced article, p.
1-6, 2019.
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
GARCÍA, O.; KLEIFGEN, J. A. Translanguaging and literacies. Reading Research Quarterly, v. 55, n.
4, p. 553-571, 2019.
GROSFOGUEL, R. The epistemic decolonial turn: Beyond political-economy paradigms. Cultural
Studies, v. 21, n. 2-3, p. 211-223, 2007.
GROSFOGUEL, R. Decolonizing post-colonial studies and paradigms of political economy:
transmodernity, decolonial thinking, and global coloniality. TRANSMODERNITY: Journal
of Peripheral Cultural Production of the Luso-Hispanic World, v. 1, n. 1, 2011. http://dx.doi.
org/10.5070/T411000004.
GROSFOGUEL, R. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo
epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, v.
31, n. 1, p. 25-49, 2016.
JORDÃO, C. M.; MARQUES, A. N. English as a língua franca and critical literacy in teacher education:
shaking off some “good old” habits. In: GIMENEZ, T.; EL KADRI, M. S.; CALVO, L. C. S. (orgs). English
as a lingua franca in teacher education: a Brazilian perspective. Boston: De Gruyter, 2018. p. 53-68.
LEFFA, V. J. O ensino de línguas estrangeiras no contexto nacional. Contexturas, APLIESP, n. 4, p. 13-
24, 1999.
LUGONES, M. On complex communication. Hypatia, v. 21, n. 3, p. 75-85, 2006.
MAKONI, S; PENNYCOOK, A. (ed.). Disinventing and reconstituting languages. Clevedon:
Multilingual Matters, 2007.
MATURANA, H. R.; VARELA, F. J. The tree of knowledge: the biological roots of human understanding.
Tradução de Robert Paolucci. Boston: Shambhala Publications Inc., 1987.
MENEZES DE SOUZA, L. M. T. Glocal languages, coloniality and globalization from below. In:
GUILHERME, M.; MENEZES DE SOUZA, L. M. T. (orgs.). Glocal languages and critical intercultural
awareness: the South answers back. Nova York: Routledge, 2019. p. 17-41.
MENEZES DE SOUZA, L. M. et. al. Parceria acadêmica e esperança equilibrista: uma conversa com Lynn
Mario Trindade Menezes de Souza. Pensares em Revista, São Gonçalo, n. 15, p. 162-172, 2019.
MIGNOLO, W. D. Local histories/global designs: coloniality, subaltern knowledges, and border
thinking. Princeton: Princeton University Press, 2000.

263
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

OLIVEIRA, R. S. Linha do tempo da didática das línguas estrangEiras no Brasil. Non plus, n. 7, p. 27-
38, 2015.
PENNYCOOK, A. The myth of English as an international language. In: MAKONI, S.; PENNYCOOK,
A. (eds.) Disinventing and reconstituting languages. Canada: MPG Books, 2007. p. 90-115.
PENNYCOOK, A. Language and mobility: unexpected places. Bristol: Multilingual Matters, 2012.
SHOTWELL, A. Against purity: living ethically in compromised times. Minnesota: University
of Minnesota Press, 2016.
SILVA, D. F. Toward a black feminist poethics: the quest(ion) of Blackness toward the end of the world.
The Black Scholar, v. 44, p. 81-97, 2014.
SILVA, J. E. da. Colaboração e formação continuada de professoras: a pedagogia do encontro. 2021.
372 f. Tese (Doutorado em Letras) – Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2021.
SOUSA SANTOS, B. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de sabers.
Novos Estudos, v. 79, p. 71-94, 2007.
SOUSA SANTOS, B. The end of the cognitive empire: The coming of age of epistemologies of the
South. Durham: Duke University Press, 2018.
VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais
do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo.
2 ed. São Paulo: Editora 34, 2018.

264
MULTILETRAMENTOS E DECOLONIALIDADE:
REFLEXÕES SOBRE AVALIAÇÃO E AGÊNCIA DOCENTE

Alessandra Coutinho Fernandes


Universidade Federal do Paraná
Isabel Cristina Vollet Marson
Universidade Estadual de Ponta Grossa

265
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

266
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Introdução

Para um leitor mais tradicional, pode parecer pouco convencional iniciar um capítulo
de livro com uma história em quadrinhos, mas acreditamos não ser o caso de nossos leitores
em potencial: pesquisadores e estudiosos de temáticas nos campos da decolonialidade e do en-
sino de línguas. Na verdade, iniciar nosso capítulo com uma história em quadrinhos é uma ma-
neira de já marcarmos um primeiro ponto de enlace com o evento Decolonialidade e Linguística
Aplicada (DELA) – com o qual este texto dialoga. Uma das características marcantes do DELA
foi o caráter multimodal das apresentações pessoais dos palestrantes. Dessa forma, inspiradas
pelas affordances da multimodalidade, decidimos propiciar um vislumbre de nosso capítulo an-
tes mesmo de começarmos a apresentá-lo formalmente nesta introdução. Esperamos que essa
estratégia contribua para aguçar a curiosidade de nossos leitores, engajando-os nas reflexões
que fazemos aqui.
Os estudos decoloniais buscam trazer outras epistemologias, outras formas de ser, pen-
sar, poder, saber e dizer defendidas por autores como Walsh (2013), Mignolo (2007), Quijano
(2005), para contrapor o modelo eurocêntrico. Essa linha de pensamento desconstrói a nar-
rativa do colonizador e propõe alternativas para resistir, (re)existir sob um olhar outro. Nesse
sentido, os estudos decoloniais possibilitam a construção de novos pressupostos a fim de com-
bater as injustiças e violências historicamente perpetuadas, considerando a colonialidade do ser
(LUGONES, 2008), do poder (QUIJANO, 2005) e do saber (LANDER, 2000).
No contexto de pesquisas no âmbito da decolonialidade, o DELA nos presenteou com dis-
cussões de grande relevância no que se refere à maneira como entendemos que a colonialidade
nos afeta nos mais distintos contextos do mundo da vida, do trabalho, da escola/academia.
Pensando em nosso loci de enunciação, como professoras formadoras em instituições de ensino

267
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

superior, cujas pesquisas no âmbito da Linguística Aplicada Indisciplinar (Moita Lopes, 2006)
se aprofundam nas áreas dos multiletramentos e da multimodalidade, por um lado, e dos mul-
tiletramentos e ILF (Inglês como Língua Franca), por outro; e também como pesquisadoras
associadas ao Grupo de Pesquisa Identidade e Leitura1, que tem se dedicado à leitura de autores
decoloniais desde 2019, selecionamos duas das apresentações do DELA, relacionadas aos nos-
sos interesses de pesquisa, para darmos continuidade à discussão inicialmente proposta.
Sendo assim, organizamos este capítulo em duas seções principais. Na primeira delas,
a qual nos dedicamos mais profundamente, dialogamos com a apresentação de Camila Haus,
que faz referência aos multiletramentos. Iniciamos com algumas considerações sobre como
a avaliação de aprendizagem se encaixa em um projeto de escola de cunho colonial. Em se-
guida, tomando como base a perspectiva dos multiletramentos, propomos e comentamos três
movimentos que podem contribuir para decolonizar a avaliação e a escola. Por fim, retomamos
a apresentação de Haus com o objetivo de comentar sobre como a maneira que ela tem pensado
a avaliação, a partir de uma perspectiva decolonial, se relaciona com os três movimentos men-
cionados anteriormente.
Na segunda seção, menos extensa, mas não menos importante, dialogamos com a apre-
sentação de Raphael Barreto Vaz. Primeiramente, mencionamos alguns questionamentos trazi-
dos por ele, tais como: o papel do professor, o que se entende por letramentos, e a importância
de participar ativamente de práticas letradas críticas. Embora Vaz não mencione os multile-
tramentos em sua apresentação, consideramos muito relevantes as reflexões que ele fez acerca
dos temas que acabamos de citar e, por isso, trazemos a fala dele para nossa discussão aqui.
Após esse momento inicial, fazemos algumas considerações acerca de como repensar a agência
docente sob o olhar dos multiletramentos e da decolonialidade.
Em consonância com Walsh (2013), compreendemos a decolonialidade como um projeto
inacabado, em que, diante do reconhecimento do poder colonial, busca-se outras alternativas
para intervir e reagir às condições estabelecidas. Assim, pensar o decolonial na avaliação escolar
e na agência docente implica em olhar para outras epistemologias, outras formas de conceber
o conhecimento e outras formas de aprender e ensinar, levando em conta as práticas socialmen-
te construídas com suas peculiaridades locais, políticas e éticas (MIGNOLO, 2007).

Avaliação a partir de uma perspectiva decolonial: explorando possíveis contribui-


ções dos multiletramentos

Em sua participação no DELA, a doutoranda Camila Haus, orientanda do Prof. Dr. Eduardo
Henrique Diniz de Figueiredo, no programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
1 O DELA (2021) foi organizado por membros de dois grupos de pesquisa: O Identidade e Leitura, coordenado pela
Prof.a Dr.a Clarissa Menezes Jordão e pelo Prof. Dr. Eduardo Diniz de Figueiredo, e o GPELIN, coordenado pela Prof.a
Dr.a Adriana Cristina Sambugaro de Mattos Brahim e pela Prof.a Dr.a Denise Akemi Hibarino.

268
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Federal do Paraná (UFPR), apresentou sua pesquisa em andamento que investiga a avaliação
a partir de uma perspectiva decolonial. O ponto de partida para a definição de seu objeto de es-
tudo foi a percepção de que a avaliação, de forma geral e também nas aulas de língua inglesa,
estava associada a sensações de medo e tensão. Em sua concepção, a avaliação representa des-
confortos violentos. Sendo assim, entendendo que o sentimento de desconforto não é necessa-
riamente negativo e nem deve ser ignorado, ela busca maneiras de ressignificar desconfortos
violentos como desconfortos produtivos.
A trajetória que ela constrói em seu trabalho investigativo passa por uma compreen-
são de língua com base em quatro conceitos principais, a saber: Inglês como Língua Franca
(ILF), entendendo “a natureza crítica e política do inglês no contexto de ensino” (DUBOC;
SIQUEIRA, 2020); Inglês Glocal, recontextualizado localmente, com base nos interesses e ne-
cessidades de falantes não-nativos (MENEZES DE SOUZA, 2019); translinguagem, que com-
preende as relações entre línguas como o repertório linguístico dos falantes; e o que ela denomi-
na de “além do diálogo”, relacionado aos conceitos de mutual misunderstanding (PENNYCOOK,
2018), linguajar (MATURANA; VARELA, 1995) e tradução intercultural (SOUSA SANTOS,
2018).

Figura 1: Captura de tela 1 da apresentação de Camila Haus no DELA

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=UkwfFona7-A

Em diferentes momentos de sua fala, Haus fez referência aos multiletramentos. Por exem-
plo, no slide (Figura 1) em que ela comenta sobre as práticas avaliativas que ela está desenhan-
do, os multiletramentos figuram entre os fundamentos teóricos, juntamente com o Letramento
Crítico e o processo colaborativo de observação e reflexão. Além disso, entre os itens relacio-
nados aos seus objetivos, ela inclui: ampliação de repertórios, diferença e dissenso, autonomia

269
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

e colaboração e multimodalidade – questões relevantes no âmbito da teoria dos multiletramen-


tos (COPE; KALANTZIS, 2015; KALANTZIS; COPE, 2012; ANSTEY; BULL, 2018).

Figura 2: Captura de tela 2 da apresentação de Camila Haus no DELA

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=UkwfFona7-A

O termo ‘multiletramentos’ aparece ainda quando ela apresenta o objetivo de sua pesqui-
sa (Figura 2) e quando ela traz algumas características gerais das práticas avaliativas que tem
criado (Figura 3). Vale notar que entre as características mencionadas, Haus marca o caráter
formativo e processual de suas práticas avaliativas assim como a inclusão dos alunos no proces-
so de avaliação – pontos centrais no entrelaçamento das teorias dos multiletramentos, da Nova
Aprendizagem e das ecologias da aprendizagem online (KALANTZIS; COPE, 2012; COPE;
KALANTZIS, 2017).
A partir desse alinhavado teórico feito por Haus e entendendo que sua pesquisa está sen-
do desenvolvida no âmbito dos estudos decoloniais, nos perguntamos: 1) O que poderia signifi-
car ‘decolonizar a avaliação’? e 2) De que maneira a teoria dos multiletramentos pode contribuir
para um pensar decolonial da avaliação? As respostas a essas perguntas, contudo, precisam
ser construídas a partir de um contexto maior. Nosso argumento é que antes de decolonizar
a avaliação é preciso decolonizar a escola.
A forma como os professores têm avaliado seus alunos desde os tempos que remontam
à institucionalização da escolarização em massa, a partir da segunda metade do século XIX,
tem sido calcada em binarismos dicotômicos (WALSH, 2013), distinguindo o que é construído
como bom, correto e válido do que é construído como ruim, incorreto, inválido. Entendemos
que a avaliação espelha no contexto escolar o jogo colonial em ação no contexto social mais

270
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

amplo. O projeto colonial é um projeto seletivo; parte do ideário do homem branco, europeu
e heterossexual, atribuindo menor poder simbólico e validação aos indivíduos que não se encai-
xam nesse perfil; favorece a poucos e não opera sob a lógica da inclusão.

Figura 3: Captura de tela 3 da apresentação de Camila Haus no DELA

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=UkwfFona7-A

A avaliação escolar formal, enquanto uma das peças do modus operandi da lógica colonial,
serve para mensurar não apenas o conhecimento adquirido pelos alunos em determinada dis-
ciplina ou curso, mas também para identificar/rotular os indivíduos, de acordo com os resul-
tados obtidos. O parâmetro é construído com base em uma média pré-estabelecida de acordo
com a qual os alunos podem receber diferentes classificações: na média, abaixo da média e aci-
ma da média. Essas classificações ocorrem com um forte valor de verdade, uma vez que emba-
sam o discurso institucional do mérito escolar, e acabam apagando diversos níveis e camadas
de diferenças entre os alunos. No projeto escolar colonial, as diferenças constitutivas dos alunos
parecem importar pouco; como também parecem importar pouco eventuais danos às identida-
des daqueles alunos que meramente, ou nem sequer, atingem a média esperada.
A escola de caráter colonial, e cada vez mais submetida à lógica neoliberal, não tem como
objetivo principal promover o desenvolvimento humano integral (atribuindo relevância seme-
lhante aos diferentes níveis – físico, cognitivo, emocional, criativo, crítico – que nos consti-
tuem enquanto seres humanos), mas sim focar nas habilidades e conhecimentos relevantes para
a inserção no mercado de trabalho. A ideia de educação em massa pode até sugerir que todos
têm acesso à educação e que esse acesso é a porta de entrada para conseguir um emprego e todo
o universo de imagens a ele atrelado: melhor qualidade de vida, casa, carro, dinheiro para o la-
zer, e, assim, uma ‘vida feliz’. Entretanto, bem sabemos que ter acesso à educação formal não é

271
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

garantia de entrada e nem de permanência no mundo do trabalho, e muito menos de melhoria


de vida e felicidade. Não podemos perder de vista que em uma ordem neoliberal, que perpetua
a colonialidade, as oportunidades não são para todos; há relações de poder assimétricas envol-
vidas – entre os que têm poder financeiro e simbólico e os que não têm, entre os que têm suas
culturas, práticas e saberes validados e os que não têm (os subalternizados).

Movimentos que contribuem para decolonizar a escola

O que poderia significar, então, decolonizar a escola? Apesar da complexidade da ques-


tão, em nossa concepção, decolonizar a escola passa por ‘desubalternizar’ aquilo que o processo
de escolarização em massa inviabilizou e/ou excluiu: a heterogeneidade constitutiva dos indiví-
duos, os saberes locais, as práticas do mundo da vida, a aprendizagem colaborativa, as manifes-
tações culturais não canônicas, etc.
Propomos, então, três movimentos (Figura 4), baseados na teoria dos multiletramen-
tos, que podem contribuir para decolonizar a escola. Um desses movimentos traz o conceito
de diferença para o centro da instituição escolar, em vez de apagá-lo como tem ocorrido desde
o surgimento da escolarização em massa. Outro movimento desafia a primazia da linguagem
escrita como meio supremo de construção de sentidos, considerando que as sociedades con-
temporâneas são cada vez mais multiculturais e multissemióticas. Um terceiro movimento pro-
move uma abertura para letramentos outros que não apenas os acadêmicos – centrados naquilo
que ideologicamente é representado como a norma, incluindo a variante padrão da língua ma-
terna e de outras línguas. Segundo entendemos, esses movimentos não ocorrem em nenhuma
ordem pré-estabelecida; eles se entrelaçam contínua e simultaneamente.

Figura 4: Movimentos que contribuem para decolonizar a escola

Fonte: as autoras.

272
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Acerca da reflexão de como os multiletramentos podem contribuir para um pensar deco-


lonial da escola, correlacionaremos em nossos comentários a seguir, os três movimentos apre-
sentados na Figura 4, adotando como ponto de partida, apenas para fins acadêmicos, a impor-
tância de valorizar as diferenças constitutivas dos alunos. Partimos da premissa de que essas
diferenças são relevantes para a forma como as pessoas se identificam e se constroem como
seres no e com o mundo, na relação consigo mesmas e com outras pessoas; portanto, não devem
ser apagadas, ignoradas, ou vistas como algo ruim.

• Movimento: Valorizar as diferenças constitutivas dos alunos

Ao investigar o tema das diferenças constitutivas dos alunos e a importância de levá-


-las em consideração nas experiências de letramentos, Kalantzis et al. (2016) argumentam
que os três grandes campos das dimensões demográficas (Quadro 1) por si só não dão conta
das complexidades envolvidas na compreensão das diferenças que os estudantes trazem consi-
go. Embora essas dimensões forneçam várias informações acerca dos alunos, elas não exploram
como as diferenças se intersectam e promovem efeitos nos processos de letramentos; além dis-
so, elas podem facilmente levar a generalizações estereotipadas acerca de quais são os estilos
de aprendizagem de indivíduos de um mesmo sexo, etnia ou raça, por exemplo.

Quadro 1: Dimensões demográficas das diferenças dos estudantes

Classe: acesso a recursos econômicos, moradia, emprego e status


Diferenças materiais social
(acesso a recursos) Local: vizinhanças e regiões com recursos sociais diferenciais
Família: relacionamentos domésticos e coabitação
Idade: desenvolvimento infantil, fases da vida e dinâmicas de pares
Raça: práticas sociais e históricas baseadas nas interpretações de dife-
renças fenotípicas
Diferenças corpóreas Sexo e sexualidade: as realidades corpóreas da masculinidade, femini-
lidade e sexualidades variadas
Habilidades físicas e mentais: espectros das capacidades físicas
e cognitivas
Linguagem: aprendizes de primeira e segunda língua, e diferenças
Diferenças simbólicas no dialeto e na linguagem social
(sentidos humanos) Etnia: nacional, étnica, indígena e identidades diaspóricas
Gendre2: identidades baseadas em identidades sexual e de gênero
Fonte: Kalantzis et al., 2016, p. 467, tradução nossa.
2 Observemos que para os autores o conceito de ‘gendre’ é uma espécie de guarda-chuva, que abriga o conceito de gênero
e outras considerações no campo da sexualidade: “Gênero e ‘gendre’ são áreas chave de diferenças simbólicas que afetam
os resultados dos letramentos dos estudantes. Gênero consiste nos significados culturais atribuídos às diferenças
corpóreas do sexo. Gendre é um conceito mais amplo, que inclui o gênero, mas também inclui aspectos da sexualidade.”
(KALANTZIS et al. 2016, p. 473).

273
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Buscando ampliar e aprofundar a compreensão das diferenças constitutivas dos alunos,


Kalantzis et al. (2016) sugerem também levar em consideração a relação entre o que eles cha-
mam de ‘atributos do mundo da vida’ e a aprendizagem – entendendo como mundo da vida
“o conjunto de hábitos, comportamentos, valores e interesses que é evidente em determinado
contexto” (KALANTZIS et al. 2016, p. 476, tradução nossa).
Como atributos do mundo da vida, os autores (2016) citam: a) narrativa, que diz respeito
às histórias de vida, levando em consideração as culturas familiares e as experiências prévias
das pessoas; b) persona, que diz respeito às identidades (tanto associadas a traços de perso-
nalidade quanto a experiências), levando em consideração estilos pessoais (como as pessoas
se apresentam); c) afinidade que diz respeito aos apegos a grupos e visões de mundo, levan-
do em consideração valores, interesses, orientação política, valores sociais, contatos e redes,
conexões (em qualquer âmbito, do local ao internacional); e d) orientação, que diz respeito
a como as pessoas “se conectam em contextos novos e não-familiares com base em suas formas
preferenciais de conhecer ([...] por imersão nos fatos ou por abstração a partir da big picture),
suas formas de aprendizagem [...], suas formas de falar sobre coisas específicas ([...] discursos
técnicos ou aplicados) e suas formas de se relacionar com as pessoas” (KALANTZIS et al. 2016,
p. 477, tradução nossa), levando em consideração estilos de pensamento e comunicação, dispo-
sição, sensibilidades, conduta e estilo intersubjetivo.
Mais recentemente, Cope, Kalantzis e Lim (prelo) organizaram as diferenças constituti-
vas dos estudantes em um gráfico que reúne dimensões demográficas e dimensões do mundo
da vida. De acordo com essa nova concepção (Figura 5), há três campos amplos que englo-
bam diversos tipos de diferenças, a saber: a) diferenças simbólicas (língua/linguagem, etnici-
dade, afinidade, gênero e episteme); b) diferenças corporificadas (idade, raça, sexo e sexuali-
dade, habilidades físicas e mentais); e c) diferenças materiais (classe, local, família, recursos
de aprendizagem).

Figura 5: Diferenças dos estudantes

Fonte: Cope, Kalantzis e Lim (p. 11, prelo).

274
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Segundo Cope, Kalantzis e Lim (prelo), em vez de produzir uniformidade cultural, a in-
tensificação da globalização acentuou as diferenças do mundo da vida, tornando o cenário ainda
mais desafiador para a educação, uma vez que cada aluno pode trazer consigo diferentes com-
binações dos aspectos que compõem cada uma das áreas de diferenças apresentadas na Figura
5, e nenhum aluno apresentará as mesmas combinações que qualquer outro.

• Movimento: correlacionar letramentos acadêmicos e letramentos do mundo da vida

Essa discussão acerca da influência do mundo da vida nos processos de letramentos


nos remete a um outro movimento que contribui para decolonizar a escola, mencionado ante-
riormente (Figura 4): ‘correlacionar letramentos acadêmicos e letramentos do mundo da vida’.
A relação entre letramentos de diversas ordens promove a inclusão e o acolhimento das di-
ferenças constitutivas dos alunos, servindo também como recurso para que estes construam
e reconstruam seus conhecimentos escolares/acadêmicos, sem perder de vista que os conheci-
mentos advindos de suas comunidades, de suas histórias de vida e de suas experiências prévias
também os constituem. Acerca dessa relação entre letramentos, Anstey e Bull (2018) propõem
o conceito de identidade de letramento, como podemos ver na Figura 6:

Figura 6: Identidade de Letramento

Fonte: Anstey; Bull, 2018, p. 68, tradução e adaptação Liane von Mühlen (prelo).3

3 Essa figura encontra-se no capítulo 5, de autoria de Camila Haus e Liane von Mühlen, intitulado ‘As múltiplas identidades
do leitor: ser e agir através da leitura’ (In: FERNANDES, A. C. et al., prelo).

275
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

De acordo com Anstey e Bull (2018), tanto as experiências do mundo da vida quanto
as experiências do mundo da escola são válidas e devem ser reconhecidas, sem que haja um juízo
de valor acerca de quais experiências são mais ou menos relevantes; juntas elas passam a consti-
tuir “um repertório de recursos [...] que contribui para a identidade de letramento do indivíduo”
(ANSTEY; BULL, 2018, p. 67, tradução nossa). Os autores entendem que “[o] conceito de iden-
tidade de letramento é intrinsecamente ligado a ser multiletrado e a ser letrado criticamente”
(ANSTEY; BULL, 2018, p. 67, tradução nossa). Um ponto interessante que os autores (2018)
acrescentam é que é importante que os professores tenham discussões explícitas com seus alu-
nos sobre suas identidades de letramento e comentem com eles que o que eles aprendem na es-
cola não resume os conhecimentos que eles têm. Os alunos precisam saber não apenas que seus
letramentos do mundo da vida são importantes, mas também como as identidades de letramen-
to são formadas.

• Movimento: incorporar a multimodalidade aos processos pedagógicos e avaliativos

Os multiletramentos propõem uma abertura para multiplicidades: de culturas, de semio-


ses, de letramentos. No que diz respeito às diferenças constitutivas dos alunos, Kalantzis et al.
(2016) afirmam que os multiletramentos constroem cinco práticas de letramentos que acolhem
as diferenças. Como veremos, mais ou menos diretamente, essas práticas estão relacionadas
a um dos três movimentos que contribuem para decolonizar a escola (Figura 4): ‘incorporar
a multimodalidade aos processos pedagógicos e avaliativos’.
A primeira delas é a ideia de design, incluindo diferentes modos de produção de sentidos.
Em contraposição a ideia de um currículo único que busca atingir a uniformidade, o currículo
centrado no conceito de design compreende que os alunos trazem consigo “designs disponíveis”
que são frutos de suas experiências no mundo da vida e de suas experiências de aprendizagem
prévias, sendo que nenhum aluno traz os mesmos designs disponíveis que outro. Na escola, eles
serão apresentados a novos designs, em forma de textos orais, escritos, visuais, multimodais,
e interpretarão e produzirão novos textos que representarão como eles foram capazes de ressig-
nificar os designs que trouxeram consigo e que foram produzidos a partir de suas experiências
no mundo da vida e em contextos de ensino (KALANTZIS et al., 2016). Novamente, nem as
interpretações e nem os novos textos criados/redesigned pelos alunos serão iguais a qualquer
outro. Essas novas interpretações e esses novos textos passarão a constituir designs disponíveis
que poderão ser incorporados por outras pessoas. De acordo com os autores (2016, p. 479),
“[e]ste é um modelo de aprendizagem de letramentos que reconhece a diversidade, a voz e a
mudança constante em vez da uniformidade, da regimentação e da estabilidade forçada”.
A segunda prática de letramentos que acolhe as diferenças é o trabalho com a multimo-
dalidade. Na perspectiva da multimodalidade, diferentes modos semióticos desempenham dife-

276
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

rentes papéis (KRESS, 2010) nos processos de interpretação e produção de sentidos, sendo as-
sim, não há por que manter a crença de que a linguagem verbal, escrita principalmente, é o meio
maior de produção de sentidos. Os modos semióticos são social, cultural e historicamente cons-
truídos. Nesse sentido, promover experiências de aprendizagem e avaliação multimodais é uma
maneira de exercer agência em prol da inclusão das diferenças constitutivas dos alunos. Alguns
alunos encontram mais facilidade em expressar suas ideias e sentimentos por meio de palavras,
outros por meio de desenhos, outros por meio de criações artesanais, outros por meio de ex-
pressões corporais – como a dança. Trabalhar com a multimodalidade em sala de aula não sig-
nifica, entretanto, que os alunos não serão desafiados a saírem de suas zonas de conforto e a
se expressarem também por meio de modos semióticos que não lhe são familiares. Um ponto
chave do trabalho com a multimodalidade é que, ao contrário do que usualmente acontece
no contexto escolar, os alunos poderão explorar suas diferentes habilidades e saberes para cons-
truir conhecimentos e expressar o que aprenderam – o que valoriza maneiras distintas de ser,
existir e se relacionar no mundo.
A terceira prática de letramentos que leva em conta as diferenças envolve a adoção dos pro-
cessos de conhecimento (Figura 7) como um repertório de ações epistêmicas, das quais o pro-
fessor pode dispor como recursos de ensinoaprendizagem4. Na concepção dos multiletramen-
tos, a aprendizagem não é compreendida como um processo puramente cognitivo, mas também
como um processo que se desenvolve a partir de diferentes movimentos epistêmicos; ou seja,
os alunos também aprendem fazendo.
Os processos de conhecimento abraçam a multimodalidade e ampliam consideravelmen-
te as práticas educacionais às quais os alunos são expostos. Além disso, eles proporcionam
um maior equilíbrio entre a agência do professor e dos alunos, superando as aulas centradas
na explicação de conteúdos novos e na figura do professor. A adoção dos processos de conheci-
mento cria oportunidades para que, para além do que Freire (2005) chamou de educação ban-
cária, os alunos também possam: a) se envolver em práticas de conceitualização (seja por teoria
ou por nomeação); b) trazer seus conhecimentos prévios (experimentar o conhecido) como
forma de construir novos conhecimentos (experimentar o novo); c) aplicar o que aprendem
não apenas de forma apropriada (aplicar apropriadamente), em concordância com padrões
pré-estabelecidos, mas também de forma criativa (aplicar criativamente); e analisar não apenas
como as coisas, eventos e processos funcionam (analisar funcionalmente), mas também anali-
sá-los criticamente (analisar criticamente).

4 Ensinoaprendizagem escrito assim mesmo, sem o hífen, entendidos como processos freirianamente indissociáveis;
lembremos que Freire cunhou termos que propunham relações indissociáveis tais como: ‘palavramundo’ (FREIRE,
1981) e ‘DODISCÊNCIA’ (Freire, 2013).

277
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Figura 7: Processos de Conhecimento

Fonte: Cope; Kalantzis, 2015, p. 5, tradução e adaptação de Liane von Mühlen (prelo).5

Os processos de conhecimento não seguem nenhuma sequência e nem há qualquer obri-


gação de usá-los todos em uma mesma aula ou unidade didática; a escolha de quais processos
de conhecimento utilizar e em que ordem deve ser o resultado do planejamento informado
do professor, levando em consideração as diferenças constitutivas de seus alunos.
A quarta prática de letramentos que ressalta as diferenças dos alunos envolve a criação
de caminhos alternativos de aprendizagem em vez de ter todos os alunos na mesma página
ao mesmo tempo. Segundo Kalantzis et al. (2016):

Uma área chave da criação de caminhos de navegação alternativos gira em torno de distinções
de ‘deficiência’. Alguns alunos podem não estar se saindo bem por razões relacionadas a dife-
renças corpóreas: questões cognitivas, deficiência visual ou auditiva, autismo, TDAH, dislexia,
entre outras. A identificação precoce, a intervenção e o monitoramento de progresso ajudarão
esses alunos a alcançar o melhor de suas habilidades. Muitos alunos também estão ficando para
trás devido a uma variedade de razões relacionadas a condições materiais e simbólicas de suas
vidas, não à deficiência. (KALANTZIS et al., 2016, p. 481, tradução nossa)

Com o advento das novas tecnologias e levando em consideração as possibilidades


de ensino híbrido, o professor pode dedicar um olhar mais atencioso às diferenças constituti-

5 Essa figura encontra-se no capítulo 1, de autoria de Alessandra Coutinho Fernandes, Liane von Mühlen e Rayane
Isadora Lenharo, intitulado ‘Multiletramentos: (re)apresentação e reflexões’ (FERNANDES et al., prelo).

278
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

vas de seus alunos e, então, criar experiências de aprendizagem que não apenas atendam seus
objetivos educacionais, mas também acolham as diferenças de seus alunos, oportunizando a es-
tes melhores chances de serem bem-sucedidos no ambiente escolar. Por exemplo, no âmbito
do ensino híbrido, desenvolvido no contexto presencial ou online, o professor pode organizar
um trabalho de Rotação por Estações (BACICH; NETO; TREVISANI, 2015) em que os alu-
nos, organizados em grupos, passam por diferentes estações, desenvolvendo diferentes ativida-
des em cada uma delas. Nesse caso, todos os alunos acabam passando por todas as estações,
mas eles não têm um tempo pré-estipulado para dar conta de cada tarefa. De qualquer for-
ma, o professor também pode optar pela Rotação Individual (BACICH; NETO; TREVISANI,
2015), que permite personalizar diferentes estações para diferentes alunos conforme suas habi-
lidades e necessidades.
Por fim, a quinta prática de letramentos, que Kalantzis et al. (2016) relacionam ao olhar
para a questão das diferenças, propõe criar um ambiente de aprendizagem de diversidade pro-
dutiva. Tal ambiente leva em conta a variedade de mundos da vida dos alunos; como os autores
afirmam, nesse ambiente, “a diversidade de conhecimentos, de experiências e de perspectivas
torna-se um recurso de aprendizagem. Os alunos se beneficiam dos textos variados, muitas
vezes multimodais, que seus colegas trazem para a sala dentre os ‘designs disponíveis’ de suas
vidas. (KALANTZIS et al., 2016, p. 482). Segundo os autores (2016), nesse contexto, as ativi-
dades de aprendizagem valorizam as experiências e conhecimentos variados dos alunos que,
por sua vez, aprendem e se transformam ao serem expostos às diferentes opiniões e pontos
de vista de seus colegas.
Anstey e Bull (2018) relacionam algumas características dos multiletramentos que re-
sumem o que acabamos de apresentar e que estão conectadas com os movimentos para de-
colonizar a escola (Figura 4). Entre tais características, ressaltamos: caráter multimodal (não
apegado à dominância da linguagem verbal), “composto por múltiplos letramentos e múlti-
plas práticas letradas” (ANSTEY; BULL, 2018, p. 27), e constantemente em transformação –
à medida que os contextos locais, globais, culturais e tecnológicos mudam. Essas características
têm implicações pedagógicas; por isso, um trabalho com os multiletramentos envolve os alunos
em trabalhos de cunho colaborativo e cooperativo, que envolvem diferentes habilidades e opor-
tunizam que os alunos aprendam uns com os outros e com os recursos disponíveis e não apenas
com o professor. Além disso, nunca é demais frisar que os alunos são solicitados não apenas
a interpretarem (na posição de consumidores), mas também a construírem (na posição de pro-
dutores) textos de diversos gêneros: escritos, ao vivo e digitais, experimentando as potenciali-
dades da multimodalidade em cada um deles.

279
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Avaliação decolonial: contribuições dos multiletramentos

Não é possível efetiva e profundamente decolonizar a avaliação sem antes, ou simulta-


neamente, efetiva e profundamente decolonizar a escola. Uma avaliação decolonial requereria
uma escola outra; uma escola que operasse sob uma lógica outra, que promovesse práticas,
relações, experiências e saberes outros; precisaríamos de uma transformação radical (WALSH,
2013). A forma como se olha para a avaliação está intrinsecamente associada a como se entende
a função da escola. Nesse sentido, querer mudar a avaliação a partir de uma ótica decolonial,
sem mudar a escola, provavelmente resultaria em descompassos entre a forma como se ensina
e a forma como se avalia, e em frustrações por não ser possível decolonizar a avaliação como
desejado. Isso quer dizer, então, que estamos em um impasse que nos imobiliza?
Considerando que os processos para decolonizar a escola e a avaliação estarão sempre
inacabados, pois o que entendemos por escola, avaliação e decolonizar hoje não permanecerá
imutável, e considerando também que ações para decolonizar tanto a escola quanto a avaliação
representam uma empreitada de longo prazo, propomos nos colocarmos como agentes desses
processos decoloniais em todos os momentos e circunstâncias possíveis. Isso implica aprender
a lidar com o que é circunstancial, instável, por vezes, desfavorável – não há lutas fáceis; as lutas
decoloniais estão aí para serem lutadas por quem se move por valores tais como justiça, res-
peito, inclusão, colaboração, legitimação (de culturas, saberes, práticas e corpos historicamente
subalternizados).
Voltamos, assim, à apresentação de Haus para fazermos algumas considerações acerca
das costuras que ela parece estabelecer no âmbito dos três movimentos mencionados ante-
riormente (Figura 4) ao desenhar uma proposta de avaliação outra, em seu contexto de atu-
ação: o projeto de Extensão UTFPR–Idiomas, iniciado em 2019, por meio de uma parceria
entre o Departamento Acadêmico de Línguas Estrangeiras Modernas (DALEM) e a fundação
de apoio FUNTEF-PR, ambos da Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
Com relação ao movimento de trazer as diferenças dos alunos para o processo de ava-
liação, Haus integra seus objetivos e critérios avaliativos, enquanto professora, aos objetivos
e critérios avaliativos da instituição e, de forma inovadora e decolonial, também aos dos alunos
(Figura 8). Ou seja, de acordo com a perspectiva decolonial na qual ela se embasa para construir
um processo avaliativo que envolva desconfortos produtivos em vez de desconfortos violentos,
Haus entende que os alunos não podem permanecer em uma posição de exterioridade à avalia-
ção; esta deve contemplar, como Haus afirma, as metas, vivências e investimentos dos alunos.
O diálogo aberto com os alunos é um convite à inclusão das diferenças que os constituem no âm-
bito dos campos simbólicos, corporificados e materiais. Como será que as diversas dimensões
de diferenças (Figura 5) se entrelaçam nas falas dos alunos quando eles comentam sobre suas

280
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

metas, vivências e investimentos? Em que medida um espaço de escuta como esse que Haus
propõe contribui para a identidade de letramento (ANSTEY; BULL, 2018) dos alunos?

Figura 8: Captura de tela 4 da apresentação de Camila Haus no DELA

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=UkwfFona7-A

No que diz respeito aos movimentos da inserção da multimodalidade e da correlação en-


tre os letramentos do mundo da vida e do mundo acadêmico, Haus cria (design) uma trajetória
avaliativa que se diferencia da avaliação formal somativa e classificatória da escola de caráter
colonial. Em vez de manter as típicas avaliações de cursos de línguas, focadas em apresentações
orais e testes escritos, como únicas formas de expressão válidas e validadas dos conhecimentos
dos alunos, Haus propõe que os alunos produzam um diário/portfólio multimodal em que eles
registrem suas aprendizagens, seus conhecimentos, insights e sentimentos em relação ao que
estão estudando. Ela também inclui rodas de conversa em que periodicamente os alunos leem
trechos de seus diários/portfólios, uns para os outros, o que pode contribuir para deslocar, de-
safiar e ampliar conhecimentos prévios/naturalizados (sobre a língua inglesa e sobre o mundo)
que os alunos tragam consigo. E como mais um elemento de equilíbrio de agência e abertura
para outras percepções, Haus inclui a autoavaliação dos alunos. Um trabalho como esse, acolhe-
dor de diferenças, permite aos alunos se mostrarem/representarem em várias cores, imagens,
formas, sons e palavras, ressaltando a importância de olharmos para a questão da inclusão
como ainda mais ampla do que o acolhimento de alunos com deficiência.

281
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Figura 9: Captura de tela 4 da apresentação de Camila Haus no DELA

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=UkwfFona7-A

O trabalho decolonial envolvendo a multimodalidade não é uma questão de deixar o texto


mais “bonitinho”, nem de pura e simplesmente permitir que os alunos correlacionem diferentes
modos e letramentos – de forma despropositada e não crítica. Trabalhar com a multimodalida-
de, em consonância com a perspectiva decolonial, é abrir espaços para os indivíduos – com suas
histórias de vida, seus saberes, suas culturas, seus sentimentos – promovendo um ambiente
em que eles tenham ciência de seu valor enquanto seres no e com o mundo, com todas as impli-
cações complexas decorrentes desse processo.

Agência docente na perspectiva decolonial: associações com os multiletramentos

No primeiro ciclo de apresentações do DELA, Raphael Barreto Vaz, mestrando


da Universidade Federal do Paraná, orientando da Profa. Dra. Adriana Cristina Sambugaro
de Mattos Brahim, apresentou o trabalho “Letramento social crítico: o neoliberalismo em todas
as partes”, que foi debatido pela Profa. Dra. Walkyria Monte Mór (USP). Para introduzir seu ob-
jeto de estudo, Vaz faz uma série de questionamentos envolvendo a formação de professores,
a posição que a língua inglesa ocupa no cenário mundial e o contexto de desigualdade que temos
na sala de aula, para procurar entender como o professor pode “estar no mundo e com o mun-
do” (FREIRE, 2000, p. 17).
A fim de delinear os passos de sua pesquisa etnográfica, Raphael desenvolve uma nar-
rativa que tem como base a compreensão dos seguintes conceitos: letramentos, decolonialida-
de e neoliberalismo. Não vamos nos aprofundar nas questões neoliberais, mas nas conexões
que ele faz sobre formação de professores, letramento e decolonialidade.

282
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Em alguns momentos de sua fala, Raphael fez referência ao que entende por letramentos
e sua relação com as práticas sociais, situadas geográfica e temporalmente. Por exemplo, no sli-
de a seguir, ele contextualiza, com base em Monte Mór (2015), a cronologia dos letramentos
no Brasil e suas consequências nas práticas sociais.

Figura 10: Captura de tela 1 da apresentação de Raphael Barreto Vaz no DELA

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=RUsYB9I9ThM

A primeira fase do letramento no Brasil foi influenciada pelas ideias de Freire, que enten-
dia que o processo de alfabetização não poderia se limitar à decodificação grafofônica; era ne-
cessário correlacionar o mundo e a palavra. A segunda fase se estabeleceu a partir da década
de 1980, com publicações de autores, entre os quais Brian Street (1984), que, baseado nas ideias
de Freire, passou a criticar a ideia de letramento autônomo, descontextualizado da realidade
social e cultural dos alunos, ressaltando o componente ideológico das práticas de letramento.
A necessidade de reconceitualizar o letramento aconteceu na terceira fase, para atender as mu-
danças constantes no letramento em virtude da influência das tecnologias digitais de informa-
ção e comunicação (TDICs) e da globalização. Uma concepção ampla de letramento envolven-
do suas ‘multi’ dimensões se fez necessária – multicultural, multilingual e multisemiótica.
Consideramos que é fundamental compreender as mudanças epistemológicas que acon-
teceram no letramento e a expansão do termo para multiletramentos, que se refletem em práti-
cas letradas complexas, situadas e contingentes, envolvendo não só a multiplicidade de possibi-
lidades de comunicação, mas também a diversidade linguística e cultural.
Em um outro momento, Vaz traz sua compreensão do que vem a ser letramentos, como
apresentado na Figura 10. Entendemos que o letramento que ocorre nas práticas em que esta-

283
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

mos envolvidos é dinâmico, em constante transformação e não pode se fixar na lógica tipográfi-
ca, linear, estática. Os significados podem ser construídos a partir de múltiplas semioses, sejam
elas visuais, orais, corporais, sonoras, linguísticas, imagéticas e digitais.

Figura 10: Captura de tela 1 da apresentação de Raphael Barreto Vaz no DELA

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=RUsYB9I9ThM

A partir dessas percepções entendemos que é possível fazer considerações a respei-


to das interseccionalidades que podemos estabelecer entre os conceitos de multiletramentos,
agência docente e decolonialidade.

Agência docente sob a perspectiva dos multiletramentos e da decolonialidade

Como formadoras, acreditamos que um olhar decolonial demanda que os professores


repensem as experiências de aprendizagem que promovem em suas aulas, reconfigurando-as
constantemente num processo de “ação-criação-intervenção” (WALSH, 2013, p. 24). Nesse
contexto, a partir da perspectiva dos multiletramentos, podemos dizer que o professor tem o
papel de “[...] assegurar que todos os alunos experimentem pedagogias transformadoras, que ex-
pandam o seu repertório de significados” (COPE; KALANTZIS, SMITH, 2018, p. 7, tradução
nossa).
Em outras palavras, a prática docente precisa estimular nos alunos a capacidade de ressig-
nificar o mundo a sua volta, de imaginar relações humanas e com o mundo outras, e isso pode
ser alcançado, em certa medida, por meio de um trabalho pedagógico calcado na multimoda-
lidade e desenvolvido com base nos movimentos epistêmicos, propostos por Cope e Kalantzis
(2015): experimentar, conceituar, analisar e aplicar (Figura 7). Esses movimentos estimulam

284
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

a aprendizagem colaborativa, assim como as capacidades criativa e crítica dos alunos, possibili-
tando que eles utilizem seus conhecimentos e repertórios em práticas multiletradas significativas.
Ter um olhar decolonial para a agência de professores de língua inglesa pressupõe o ques-
tionamento de epistemologias pré-estabelecidas, do papel do professor de língua inglesa, e do
papel da avaliação – como vimos anteriormente. Um olhar crítico e decolonial para a prática
docente implica em questionar: a quem essa língua pertence, para que e por que se ensina essa
língua na escola. Assumindo uma postura de curiosidade epistêmica e transformadora, como
Vaz afirma em sua apresentação no DELA, o professor pode questionar “a hegemonia do inglês,
a colonialidade de conhecimento e a colonialidade do poder” para promover uma educação
linguística inclusiva, democrática e intercultural.
Ao nosso ver, a práxis decolonial pode ser vista como um conjunto de práticas que con-
trapõe a lógica colonial, reflete discursos contra hegemônicos e propõe uma “visão outra” (othe-
rwise). Não há dúvidas que há relações assimétricas de poder na sala de aula. No espaço escolar,
o professor normalmente ocupa um lugar de destaque, como aquele que traz o conhecimento
legítimo, científico, para a sala de aula. No entanto, acreditamos que o trabalho com os multile-
tramentos favorece as práticas engajadas, colaborativas e críticas.
Para fazer conexões entre decolonialidade e formação de professores, no debate esta-
belecido com Vaz durante o DELA, Monte Mór sugere o diálogo educador-educando como
prioritário para a superação da colonização do ser. Baseada nos pressupostos de Freire (2005)
e Penna (2014), Monte Mór defende que, através do diálogo, os estudantes podem assumir
uma posição de destaque na sala de aula. Em vez de receptáculos de conteúdos – no contexto
da educação bancária (FREIRE, 2005), os alunos desenvolvem o ‘raciocínio dialógico’ para
questionar os conhecimentos (saberes) que circulam socialmente e as consequências históricas,
políticas e sociais que esses conhecimentos trazem para suas vidas. Essa tomada de consciência
contribui para que eles se fortaleçam para lutar contra os discursos coloniais.
Na visão de Penna (2014) é possível estabelecer relações entre o que Freire (2005) diz,
sobre a estrutura opressora e as características dos oprimidos, com as ideias de autores como
Quijano (2005) e Dussel (2005). Segundo a autora, temas discutidos nos estudos decoloniais
como “[...] o raciocínio dialético, a ideia de “colonização cognitiva”, e o argumento de que a do-
minação se fundamenta em um mito (mito da estrutura opressora ou mito do eurocentrismo)”
(PENNA, 2014, p.183) se alinham aos estudos de Freire (2005), que propõe a discussão crítica
da realidade opressora que circunda o universo do aluno. A esse respeito pode-se dizer que,
“[...] o propósito da educação libertadora é o de superar a visão fatalista da realidade como eter-
na e imutável, passando-se à percepção de que ela é construída pelos homens e passível de ser
transformada” (PENNA, 2004, p. 184).

285
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Quijano (2005) chama atenção ao alcance cognitivo da colonização, ou seja, aquele


que não se encaixa no molde eurocêntrico é rejeitado e invisibilizado. Para lutar contra essa
exclusão/invisibilização, é necessário conhecer a outra face da modernidade, lançar os olhos
aos inferiorizados, aos excluídos, àqueles que são vítimas do processo de dominação (PENNA,
2014). Assim, uma forma alternativa de decolonizar o ser, é trazer a realidade dos alunos para
a escola, escutar suas vozes, não se fixar unicamente em saberes legitimados pelo currículo,
mas deixar emergir o saber que os alunos trazem para a escola.
O olhar decolonial para a agência docente se efetiva na epifania das brechas (DUBOC,
2015) que acontecem na sala de aula, local em que a agência é valorizada e os saberes são acei-
tos. Nesse contexto, a sala de aula se torna o local em que se pode exercer o ativismo sublimi-
nar, que estimula os alunos a agir e a fazer a diferença nas suas práticas locais, como propõe
Pottinger (2017) na obra intitulada “Planting the seeds of a quiet activism”.
Ao promover multiletramentos em suas aulas, o professor pode estimular o protagonismo
de seus dos alunos para que eles participem efetivamente de práticas multiletradas, minimizan-
do diferenças e desigualdades, exercendo a cidadania e lutando contra narrativas hegemônicas.

Considerações ‘finais’

Neste texto, a partir da conversa que tivemos como professoras formadoras, inicialmente
representada multimodalmente como uma história em quadrinhos, buscamos lançar os olhos
às interrelações entre avaliação, formação de professores, multiletramentos e decolonialidade.
Entendemos que o pensamento decolonial não se firma em uma única ação, mas num projeto
a seguir.
A conversa exitosa que tivemos com as apresentações de Camila Haus e Raphael Barreto
Vaz nos permitiu estabelecer relações, repensar epistemologias, práticas e possiblidades de en-
sinoaprendizagem que possibilitem o trabalho colaborativo, a minimização das diferenças e o
envolvimento dos alunos em práticas multiletradas significativas e decoloniais.
Na primeira parte deste artigo, tomando como base a epistemologia dos multiletramen-
tos, fizemos algumas reflexões sobre três movimentos que podem contribuir para decolonizar
a escola e a avaliação de aprendizagem. Por meio desses movimentos, destacamos a importân-
cia de acolher as diferenças constitutivas dos alunos e de promover experiências de multile-
tramentos que sejam significativas para os educandos, valorizando suas identidades e saberes,
fortalecendo assim a luta decolonial.
Na segunda parte, fizemos associações entre a formação de professores, os multiletra-
mentos e a decolonialidade. A apresentação de Vaz nos instigou a pensar no ativismo pedagógi-
co do professor a fim de minimizar as desigualdades e as diferenças, refletir a respeito do inglês

286
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

ensinado nas escolas brasileiras, repensar o ensino da língua associada à cultura local e des-
mistificar a ideia do inglês padrão perfeito, inatingível do falante nativo. Em vez de priorizar
o ensino do inglês imperialista, colonial, o professor pode refletir a respeito da língua e dos
multiletramentos com o propósito de promover a tolerância e engajar os alunos em práticas
multiletradas que façam sentido em suas vidas e em suas comunidades.
Acreditamos que ainda há uma longa trajetória a ser percorrida no processo de promo-
ver uma avaliação escolar e uma formação docente de caráter insurgente em relação ao projeto
colonial nos campos do ser, do poder e do saber, mas ninguém chega a algum destino sem antes
dar os primeiros passos. As marcas de nossos pés já estão visíveis na areia.

Referências

ANSTEY, M.; BULL, G. Foundations of Multiliteracies: Reading, Writing and Talking in the 21st
Century. Nova York: Routledge, 2018.
BACICH, L.; NETO, A. T.; TREVISANI, F. de M. Ensino Híbrido: Personalização e tecnologia
na educação. Porto Alegre: Penso, 2015.
COPE, B.; KALANTZIS, M. Multiliteracies: New literacies, New Learning. Pedagogies: An International
Journal, Nanyang Walk, v. 4, n. 3, pp. 164-195, 2009.
COPE, B.; KALANTZIS, M. The Things You Do to Know: An Introduction to the Pedagogy
of Multiliteracies. In: COPE, B.; KALANTZIS, M. (eds.). A Pedagogy of Multiliteracies: Learning
by Design. New York: Palgrave MacMillan, 2015. p. 1-36.
COPE, B.; KALANTZIS, M. (eds.). E-Learning Ecologies: Principles for New Learning and Assessment.
Nova York: Routledge, 2017.
COPE, B.; KALANTZIS, M.; SMITH, A. Pedagogies and Literacies, disentangling the historical
threads: an interview with Bill Cope and Mary Kalantzis. Theory into Practice, v. 57, Routledge, Taylor
and Francis Group, p. 5-11, 2018.
COPE, B.; KALANTZIS, M.; LIM, F. V. A Collective Intellectual Biography and Literature Review.
Disponível em: https://cgscholar.com/community/community_profiles/new-learning/community_up
dates/151465?fbclid=IwAR04uC7giin0nyqeHj7yvfulSUtjt6EeDnxAETmlbWCB-wf MlYtCArOzgQ8.
Acesso em: 21 mar. 2022.
DUBOC, A. P. Atitude Curricular: Letramentos críticos nas brechas da sala de aula de línguas
estrangeiras. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.
DUBOC, A. P.; SIQUEIRA, S. ELF feito no Brasil: expanding theoretical notions, reframing educational
policies. Status Questions, n. 19, p. 297–331, 2020.

287
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

DUSSEL, E. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, E. A colonialidade do saber:


eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires:
CLACSO, 2005.
FERNANDES, A. C. et al. Multiletramentos na sala de aula: práxis na (e para além da) pandemia.
Curitiba: Pimenta Cultural, no prelo.
FREIRE, P. A importância do ato de ler–em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez Editora
/ Editora Autores Associados, 1981.
FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora
UNESP, 2000.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 47. Ed. Petrópolis: Vozes, 2005 (1970).
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 46. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2013.
KALANTZIS, M.; COPE, B. New Learning: Elements of a Science of Education. 2. ed. Cambridge:
Cambridge University Press, 2012.
KALANTZIS, M. et al. Literacies. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.
KRESS, G. Multimodality: A social semiotic approach to contemporary communication. Nova York:
Routledge, 2010.
LANDER, E. (ed.) La colonialidad del saber. Eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas
latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000.
LUGONES, M. Colonialidade e gênero. Tabula Rasa, Bogotá. n. 9, p.73-101, jul-dez, 2008.
MATURANA, H.; VARELA, F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento
humano. Campinas: Editorial Psy II, 1995.
MENEZES DE SOUZA, L. M. T. Glocal languages, coloniality and globalization from below. In:
GUILHERME, M.; MENEZES DE SOUZA, L. M. T. (orgs.). Glocal languages and critical intercultural
awareness: the South answers back. Nova York: Routledge, 2019. p. 17-41.
MIGNOLO, W. D. Delinking: the rhetoric of modernity, the logic of coloniality and the grammar of de-
coloniality. Cultural Studies, v. 21, n. 2, p. 449-514, 2007.
MOITA LOPES, L. P. de. (org.). Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola
Editorial, 2006.
MONTE MÓR, W. Learning by design: reconstructing knowledge processes in teaching and learning
practices. In: COPE, B.; KALANTZIS, M. (eds.). A pedagogy of multiliteracies. Londres: Palgrave
MacMillan, 2015. p. 186-209.
PENNA, C. Paulo Freire no pensamento decolonial: um olhar pedagógico sobre a teoria pós-colonial
latino-americana. Revista de estudos & pesquisas sobre as Américas, v. 8, n. 2, p. 181-199, 2014.

288
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

PENNYCOOK, A. Posthumanist Applied Linguistics. Nova York: Routledge, 2018.


POTTINGER, L. Planting the seeds of a quiet activism. Area, v. 49, n. 2, p. 215-222, 2017.
QUIJANO, A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, E. (ed.),
La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas.
La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 2005.
SOUSA SANTOS, B. The end of the cognitive empire: the coming of age of epistemologies of the
South. Durham e Londres: Duke University Press, 2018
STREET, B. Literacy in Theory and Practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
WALSH, C. (Ed.) Pedagogías Decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir.
Tomo I. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2013.

289
SOBRE OS AUTORES E AS AUTORAS

Alessandra Coutinho Fernandes é docente no Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas


da Universidade Federal do Paraná. Doutora em Estudos Linguísticos–Análise de Discurso–pela
Universidade Federal do Paraná (2011). Foi Visiting Scholar na University of Illinois em Urbana-
Champaign (agosto/2016 a janeiro/2017) e fez pós-doutorado na USP (fevereiro/2017 a julho/2017),
com foco nos multiletramentos na formação inicial de professores de línguas. Coordena o Grupo
de Estudos Multiletramentos e Multimodalidade na Formação de Professores de Línguas Estrangeiras
(GEMPLE). Participa do grupo de pesquisa Identidade e Leitura, na UFPR. Participa também do grupo
de pesquisa Projeto Nacional de Letramentos: Linguagem, Cultura, Educação e Tecnologia/Ciclo II:
Problematizando o Decolonial. Atualmente, suas áreas de interesse são: novos e multiletramentos,
multimodalidade, letramento crítico, Análise de Discurso Crítica, educação linguística e formação
de professores de línguas estrangeiras.

Ana Paula Marques Beato-Canato é docente do curso de Letras Inglês e do Programa de Pós-
Graduação em Letras na Universidade Federal do Paraná (UFPR). É mestre e doutora em Estudos
da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina e pós-doutora em Linguística Aplicada pelo
Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (UFRJ). É vice-coordenadora
do Núcleo de Assessoria Pedagógica (NAP) e coordenadora do projeto Educação Linguística. Participa
do Grupo de Pesquisa Identidade e Leitura. Atualmente, seus focos de investigação são: discursos sobre
educação e discurso de ódio; materiais didáticos; formação docente e ensino-aprendizagem de línguas;
educação inclusiva; altas habilidades/superdotação.

Camila Haus possui mestrado em Estudos Linguísticos na linha Linguagens, culturas e identidades:
ensino e aprendizagem pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Licenciatura em Português
e Inglês (UFPR), possui também curso técnico em nível médio de Formação de Docentes (Magistério).
Atualmente, é estudante do programa de pós-graduação em Letras da UFPR, tendo concluído o período
de doutorado sanduíche na Pennsylvania State University com o Prof. Suresh Canagarajah. Trabalha
como professora de língua inglesa na Academia de Línguas do Paraná e no UTFPR–idiomas. É integrante
do Grupo de Pesquisa Identidade e Leitura, do Grupo de Estudos Multiletramentos e Multimodalidade
na Formação de Professores de Línguas Estrangeiras (GEMPLE) e do Grupo de Pesquisa em Educação
Linguística (GPELIN).

291
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Clóvis Batista De Souza é professor do Magistério Superior da Universidade Federal do Paraná, Campus
Reitoria em Curitiba do curso licenciatura em Letras Libras. Possui graduação em Letras Libras pela
Universidade Federal de Santa Catarina (2010), Campus Universitário em Florianópolis, e Pedagogia
pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus Cascavel. Especialista
em LIBRAS na Educação à Distância pela Sociedade Educacional de Santa Catarina, polo Cascavel.
É proficiente em ensino de Libras pela PROLIBRAS nível superior MEC/UFSC–2010. Pesquisador
no projeto de pesquisa: O uso das novas tecnologias para Surdos no ensino.

Gabriela Veronelli é professora e pesquisadora de teoria política latino-americana e perspectiva


descolonial, tradutora e jornalista argentina e migrante nos Estados Unidos. É pesquisadora afiliada
à Escola Interdisciplinar de Estudos Sociais Superiores (IDAES, Argentina). É doutora pelo programa
transdisciplinar em Filosofia, Interpretação e Cultura da State University of New York-Binghamton,
e pós-doutora pelo programa Latin American and Caribbean Area Studies da mesma universidade, e do
Center for Global Studies and Humanities da Duke University. A sua reflexão sobre a colonialidade
da linguagem contribuiu para a teorização da raça a partir da perspectiva da modernidade/colonialidade
e levantou novas questões para combater eficazmente o racismo em diferentes domínios linguísticos,
incluindo educação, multilinguismo, legitimidade, cidadania linguística, oralidade, hibridação-
crioulização e justiça epistêmica. Seu trabalho foi publicado em Universitas Humanísticas, Abeache,
Polifonía, Ikala, Hypatia e volumes compilados, entre outros.

Isabel Cristina Vollet Marson é doutora em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras
da Universidade Federal do Paraná (2019). Participou do Programa de Doutorado-Sanduíche no Exterior
(PDSE) da CAPES na Penn State University, University Park, Pennsylvania, nos Estados Unidos
da América (agosto/2018 a fevereiro/2019). Atua como professora efetiva do Departamento de Estudos
da Linguagem na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), bem como Coordenadora do projeto
de pesquisa continuada “Formação de Professores, Multiletramentos e Inglês como Língua Franca”. Seus
interesses de pesquisa são na área de ensino-aprendizagem de Língua Inglesa, formação de professores,
multiletramentos, inglês como língua franca, práticas translíngues, tecnologias de informação
e comunicação, internacionalização das universidades, ambientes virtuais de aprendizagem e educação
a distância.

Juliana Zeggio Martinez é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, onde também realizou
pós-doutorado em estudos decoloniais e internacionalização crítica da Educação Superior. É professora
no Curso de graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná e no Programa de Pós-Graduação
em Letras na mesma instituição. Em projetos de extensão universitária, atua na formação inicial
e continuada de professores de línguas no Núcleo de Assessoria Pedagógica (NAP) da UFPR. Seus
interesses de pesquisa voltam-se para formação inicial e continuada de professores/as de línguas,
formação internacional e intercultural de professores/as, educação linguística, letramento crítico,
interculturalidade, globalização, estudos decoloniais e políticas/práticas linguísticas e educacionais.

292
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Jhuliane Evelyn Da Silva é Professora Adjunta do Curso de Letras–Licenciatura em Língua Inglesa–da


Universidade Federal de Ouro Preto. Doutora em Letras pela Universidade Federal do Paraná, na área
de concentração Estudos Linguísticos, linha de pesquisa Linguagens, culturas e identidades: ensino
e aprendizagem, com estágio sanduíche na Universidade de British Columbia, Canadá. Participou
do Programa Fulbright Language Teacher Assistant no ano 2015-2016 com bolsa Capes/Fulbright
na Brown University, EUA. Atualmente, participa dos Grupos Identidade e Leitura e Formação
de Professores em Línguas Estrangeiras na UFPR, do Projeto Nacional de Letramentos na USP e é co-
chair da Critical Internationalization Studies Network. Possui experiência na área de Linguística Aplicada,
atuando principalmente nos seguintes temas: Letramentos críticos, Formação inicial e continuada
de professores, Colaboração, Educação linguística crítica, Decolonialidade e Internacionalização
do Ensino Superior.

Liane Von Mühlen é doutoranda em Estudos Linguísticos no Departamento de Letras da UFPR (2022-
2025), na linha de pesquisa Linguagens, Culturas e Identidades: ensino e aprendizagem. Mestrado
em Estudos Linguísticos no Departamento de Letras da UFPR (2019-2021), na linha de pesquisa
Linguagens, Culturas e Identidades: ensino e aprendizagem. Membro do grupo de pesquisa Identidade
e Leitura, do grupo de pesquisa Novos e Multiletramentos, Multimodalidade e Formação de Professores
de Línguas (GEMPLE) e do Grupo de Pesquisa em Educação Linguística (GPELIN), todos na UFPR.
Tem interesse na área de Letras/Linguística Aplicada, Formação de Professores, Educação Linguística,
Educação Bi/multilíngue, Processos de Escrita, Práticas Translíngues, Novos e Multiletramentos,
Multimodalidade e Tecnologias.

Lídia Da Silva possui doutorado em Linguística (UFSC, 2018)–área de concentração Linguística


Aplicada. É professora efetiva do Curso de Graduação em Letras Libras da Universidade Federal
do Paraná (UFPR) e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Línguas
da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). É vice-líder do Grupo de Estudo e Pesquisa de Libras
como L2 (GEPELS/CNPq/UTFPR). Atua na liderança da linha de pesquisa Libras como L2 no Grupo
de Pesquisa em Educação Linguística (GPELIN/CNPq/UFPR). Coordena o NEL–Núcleo de Ensino
de Libras–através do qual, pela via da extensão universitária, propaga a Libras à comunidade curitibana.
É membro da Associação Brasileira de Linguística Aplicada (ALAB) e da Associação Brasileira
de Linguística (ABRALIN).

Luís Frederico Dornelas Conti é professor de Língua Estrangeira Moderna–Inglês na Secretaria


de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF). Licenciado em Letras–Inglês pela Universidade
Federal de Goiás (UFG). Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade de Brasília (UnB).
Atualmente, doutorando do Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo (USP),
em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês (início em 2021), e pesquisador visitante na University
of British Columbia (UBC), em Estudos Educacionais. Interessado em letramento crítico, decolonialidade
e formação crítica de professores de línguas.

293
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

Lynn Mario Menezes De Souza possui graduação em Linguística–University of Reading (1977),


mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (1984) e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (1992). Atualmente, é professor titular sênior da Universidade de São Paulo. Tem experiência
na área de Linguística, com ênfase em Linguística Aplicada, atuando principalmente nos seguintes temas:
ensino-aprendizagem, linguística aplicada, língua estrangeira, letramento e teorias críticas.

Marcia Lisboa é doutora em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Atualmente, é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atuando na Faculdade de Formação
de Professores, no Departamento de Letras e no Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística.
Tem experiência em projetos de Letramento Literário e desenvolve pesquisas sobre letramento e inclusão
social. Atua principalmente nos seguintes temas: leitura e formação de leitores, letramento de jovens
e adultos, metodologia do ensino de língua portuguesa e formação de professores.

Miguel Martinez Luengas é professor na Universidad el Minuto, Bogotá, Colombia. Ele tem bacharelado
em Ensino de Inglês e mestrado em Ensino de Inglês como Língua Estrangeira, e está finalizando
seu doutorado no programa Interinstitucional em Educação na Universidad Distrital Francisco José
de Caldas, com ênfase em ensino de inglês. Ele trabalha como educador para o ensino de língua inglesa
no ensino básico e superior há 14 anos. Seus interesses de pesquisa giram em torno de observação de aulas,
desenvolvimento profissional de professores/as, posições de sujeito, decolonialidade e criticalidade.

Raphael Barreto Vaz é formado em Letras–Inglês pela UFPR e Mestre em Linguística Aplicada pela
mesma instituição. É professor de inglês há 20 anos. Participa de dois grupos de estudo: GPELIN
e Identidade e Leitura, além do Projeto Nacional de Letramentos. Seus principais interesses são:
letramentos críticos, estudos decoloniais, estudos sobre o neoliberalismo e neocolonialismo.

Sharon Stein se define como uma “acadêmica colonizadora branca cuja pesquisa examina questões
educacionais na interface da violência colonial sistêmica e da insustentabilidade ecológica” (https://
edst.educ.ubc.ca/stein-sharon/). Sharon fez doutorado na University of British Columbia, mestrado
na Ohio State University e graduação na University of Virginia. Atualmente, é professora assistente
no Departamento de Estudos Educacionais na University of British Columbia. Seus interesses de pesquisa
estão em torno de abordagens críticas e complexas de ética, filosofia e política econômica na educação
e no ensino superior em particular.

Walkyria Maria Monte Mór possui graduação em Letras Inglês-Português, mestrado em Filosofia
da Educação (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e doutorado em Linguagem e Educação
(Universidade de São Paulo). Realizou pesquisa de pós-doutorado na Universidade de Manitoba (Canadá).
É professora Livre-Docente da Universidade de São Paulo e professora Sênior do Programa de Pós-
Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP. Cofundadora do Projeto Nacional de Letramentos: Linguagem, Cultura, Educação
e Tecnologia (2015-2021) e do Projeto Nacional de Formação de Professores “Novos letramentos,

294
DECOLONIALIDADE E LINGUÍSTICA APLICADA

multiletramentos e línguas estrangeiras” (2009-2015), cadastrados no Diretório dos Grupos de Pesquisa


do CNPq. Co-coordena o Projeto Piloto Knowledge Exchange and Research Proposal: Literacies
and Languages in Teacher Education, Universidade de São Paulo, Brasil e Universidade de Illinois,
Urbana-Champaign, EUA–(Projeto Piloto USP-UIUC). Suas pesquisas recentes concentram-se
em Linguagem e Educação, Letramentos (Novos Letramentos, Multiletramentos, Letramentos Críticos,
Letramento Digital), Crítica e Construção de Sentidos, Pedagogia Crítica, Formação de Professores.

Zelir Maria Bieski Franco possui mestrado e doutorado em Letras pela Universidade Federal do Paraná.
Tem experiência na área de Letras, com ênfase em ensino-aprendizado de língua estrangeira.

295
E
ste é um de dois livros que nasceram do evento DELA – Decolonialidade e
Linguística Aplicada, realizado online em 2021 e organizado por professoras e
professores de línguas da Universidade Federal do Paraná, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Piauí. O livro traz reflexões sobre
as formas em que a Linguística Aplicada no Brasil e em outros contextos tem dialogado
com estudos decoloniais e com epistemologias do Sul, para repensar concepções de
língua, cultura, educação e formação docente, etc., a partir de entendimentos plurais que
vão para além dos muros da academia. Em cada um dos capítulos dos dois livros, temas
como a história da colonialidade e dos estudos decoloniais, a racialização dos corpos na
educação, lócus de enunciação e as formas de se fazer ciência para além do Eurocentrismo,
afetividade, educação indígena, multiletramentos, avaliação, dentre tantos outros, são
abordados de forma crítica, localizada e profunda, de modo a promover a constante busca
por uma Linguística Aplicada que olhe para si mesma com o olhar transformador de cada
uma das pessoas que a constituem e com as quais ela dialoga. Tal transformação também
se reflete nas próprias formas em que os textos foram escritos: alguns de modo mais
convencional e outros buscando romper com os gêneros acadêmicos mais tradicionais.
Esperamos, portanto, que esse seja um passo na direção de construirmos uma Linguística
Aplicada renovada, cada vez mais pulsante e plural.
E
ste é um de dois livros que nasceram d
Linguística Aplicada, realizado online em
professores de línguas da Universidade F
Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federa
as formas em que a Linguística Aplicada no Brasi
com estudos decoloniais e com epistemologias
língua, Sambugaro
Adriana Cristina cultura, educação
de MattoseBrahim
formação docente, etc.

NIALIDADE E Clarissa Menezes Jordão


Solteira, numa parceria estável há mais de 20 anos; tutora de
três gatos – dois felinos e um humano, todos apaixonantes;
Sou professora/orientadora em cursos academia.
vão
pós-graduação
para
como a em
Giulianaeducação,
além dos
letrasda
história
e da Giovana, e
muros da
dacolonialidade
de graduação
UFPR. Sou mãe/amiga
esposa/amiga do Giuliano.
Eme na

Amo
cada u
da de
e dos estudos

CA APLICADA
tem estudado música e canto lírico para enlouquecer um lócus de enunciação e as formas de se faz
ser educadora linguística na área da linguística aplicada e,
pouco mais depois de aposentada. Continua lecionando, afetividade,
como Paulo educação
Freire amava, tambémindígena,
amo estarmultiletramentos
e aprender
pesquisando e orientando na área de linguística aplicada na com as abordados
gentes. Por de
issoforma
o DELA 2021 foi a realização
crítica, localizada de
e profunda,
pós-graduação em Letras na UFPR e na UERJ (Campus São um sonho:
por uma Linguística Aplicada que olhe para siemes
o sonho de estar com pessoas que admiro
Gonçalo), com interesse especial em pós estruturalismo, com as quais (des)aprendo todos os dias.
inglês como língua franca/internacional e práxis decolonial. uma das pessoas que a constituem e com as quais
MBUGARO DE MATTOS BRAHIM se reflete nas próprias formas em que os textos
RQUES BEATO-CANATO
MENEZES JORDÃO convencional e outros buscando romper com os
DO RÊGO MONTEIRO Esperamos, portanto, que esse seja um passo na di
GANIZADORAS)
Aplicada renovada, cada vez mais pulsante e plura

Danielle do Rêgo Monteiro Ana Paula Marques Beato-Canato


É doutoranda em linguística aplicada, seus interesses Sou uma professora-pesquisadora-linguista aplicada-
atuais permeiam temas como letramento crítico, colega-mãe-amiga-filha-etc que deseja estar em eterna (des)
raça e interseccionalidade, questões de identidade, construção, em processos de (des)aprendizagens. Por isso,
interculturalidade e “uma educação como prática de sou muito feliz em ser professora do Departamento de Letras
Estrangeiras Modernas e do Programa de Pós-Graduação
liberdade”. em Letras (UFPR). Tenho interesses na área de formação
docente, educação linguística e questões identitárias.

Você também pode gostar