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,'rl'l'l(' rincípios t57 Trechos que você

O encontrará neste livro:

'Alinguagem é um fe-
Áreas de interesse
Comunicação
Linguística
d«r voturnr.:
!,ilr.rnlrrrrr
Sor.ioklglu
i .Iosé Lruiz Fiorin nômeno extremamente
complexo, que pode ser
estudado de múltiplos
pontos de vista, pois Per-
tence a diferentes domí-
nios. E, ao mesmo tempo,

Linguagem e individual e social, fÍsica,


fisiológica e psíquica."

ideologia 'As visoes de mundo não


se desvinculam da lingua-
gem, porque a ideologia
vista como algo imanente à
realidade é indissociável da
Existem duas maneiras opostas dtr irllorrliu'o li'rrôrrrt'rro lirr- linguagem. As ideias e, por
guístico: uma se preocupa som(!nl.(r clrr irrrirlisirr inlr.r'rrir- conseguinte, os discursos
mente a linguagem, estudando os Íirtos lirrgrríslicos crrr si são expressão da vida real.
A realidade exprime-se pe-
mesmos; outra despreza as partir:ularirlirtlcs rlir Iirrgrrirgcrrr
los discursos."
e busca traçar uma ponte entre os l'atos lirrgrríslicos c ir cs
trutura social. 'A aprendizagem linguísti-
Este liwo mostra que a linguagern podc, iro rncsnro l('rnl)o, ca,queéaaprendizagem
de um discurso, cria uma
gozar de certa autonomia em relação às Íirrrrrirçõr's sociiris consciência verbal, que
e sofrer as determinações da ideologia. Nurrra arriilisc une cada indivíduo aos
abrangente e decisiva, o autor procura apres()ntílr rlrrrr ní membros de seu grupo
veis e dimensões são autônomos e determinatlos. social. Por isso, a apren-
dizagem linguística está
José Luiz Fiorin é professor liure-docente da h-aculdad.c clc estreitamente vinculada à
Filosofia, Letras e Ciências Harnanas da Uniuersidade d.c S(to produção de uma identi-
dade ideológica, que é o
Paulo. Publicou pela Ed.itoraÁilca As astúcias da enunciação papel que o indivíduo
e Introdução ao pensamento de Bakhtin. exerce no interior de uma
formaçáo social."

rsBN 978-85-08-091ól-8

ililililtilililil]ilt
9ll76g5ggllO91ó3811
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etlilora áliaa
IrorcÃo REVTSTAI

I rnrunrznon I
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-
s(i ri() rincípios
O

José Luiz Fiorin


l'r'oli'ssor lilre-doc--enl.e rlo departamento de Linguística da
l,;rlrrlrlarlc de Filosofia, Letlas e Ciências Hurnanas da Liniversidade
rlt São P:rulo, com dorrloratlo em Letras

Linguagem e
ideologia

,,rr*l'ti'§.x''§"

Ilcvista e atualizada

EI
cdilor-a álica
Çá
@ José Luiz Fiorin

Editor-chefe Carlos S. Mcrttlcs llosrr


Editora assistente Tatiana Vicira Âllcgrrt
lvany Picasso llrtislir
Sumário
Coordenadora de revisão
Revisor Mauricio Krlnyrntir

ARlE
Editor Vinicius Rossignol Irclipc
Diagramadora Leslie Morais
Estagiária Gabriela Cesar
I
IMPRf,ssÃo AN'r'ERloR
Diretor editorial: Fcmando Paixão . Editorrs: Marir I)olorcs l'rltrlcs c ( lrtIrs S l\{ctrrlcs l{osa
. Editores assistentes: Leaudro Samatz e Tâtialra (orrúrr l'irttCnlrt' llcrisrio: lvittry l'icrsso
Batista (coord.) . Estagiário: Roberto Moregola . [.]dilorcs (lc iu lc: Sttzrttilt I rtth e l)ittt-
^rtlollio'l
los . Diagramador: claudemir camargo . capa c projclo glilico: llorrrcrrr tlc Me Io & roia I
Design. Editoração eletrônica: Loide Edelwciss Lizukl
1 lntrodução 5
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÀO NA IloN I'Ii
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORIJS I)I' I,IVIt0S. It,I, 2.Marx e Engels dão as primeiras dicas 8
3. As primeiras distinções ro
F553L
8.ed. í 4. Quem detennina o quê? í2
5. Discurso: autonomia e determinação tz
Fiorin. José Luiz 6. Variabilidade na invariabilidade zo
Linguagem e ideología / Jose Luiz Fiorin. - ll cd (rcv c illllillizrr(li!).
- São Paulo : Ática,2007.
7. Duas maneiras de dizer a tnesma coisa 23
87p. - (Princípios ; 137) 8. Que é ideologia? zo
9. Formações ideológicas e fomações discursivas sz
Inclui bibliografi a comentada
10. A consciência é um fato social ss
ISBN 978-85-08-09 I 63-8
ll. A individualidade na linguagem 3z
l. Linguística. 2. Ideologia. I. Título. Il. Scric. 12. Atrapaça discursiva +t
('l)l)r 4 l0 13. Falar ou ser falado? 4a
07-0479.
('l)tl: ttl'l ir 14. Arena de conflitos e palco de acordo 4s
15. Análise não é investigação policial +s
ISBN 978 85 08 09163-8 IMPORTANTE: Ao comprar um livro, você rcmIllcra e reconhece
o trabal ho do autor e o de muitos outros profissionais cnvolvidos
16. O discurso é reflexo da realidade? sz
na produção editorial c na comcrcialização das obras: cditores. 17. Um exemplo: a igualdade burguesa sz
rerisores, diagramadores, ilustradores, gráficos, divulgadores,
distribuidores, livreiros, entre outros. Ajude-nos a combater a 18. Outros exemplost reproduçâo e polêmica 6í
cópia ilegal! Ela gera desemprego, prejudica a difusão da cultura 19. A linguagem faz parte da superestrutura'/ 66
2OO9 e encarece os livros que você cotnpra
8s edição
O marrismo 66
61 impressão As posições de Stálin zo
Impressâo e acabamento: Cromosete Grafica e Editoa Lltla ,t^\ O lugar da linguagem zz
âF*-P..--R
Todos os direitos reseruados pela Editora Ática \ffi"/ rÍ
20. Comunicar é agir te l

P'g!l§ll[xi1$,u,
Av. Otaviano Alves de Lima, 4400 CEP 02909-900 Sio l)arrlo, S[) 21. Conclusão zs
Atendimento ao cliente: 0800-115152 Fax: (l 1) 3990-1176 22. Yocabúitrio crítico zs
wwrv.atica.cont.br- www.atica.com-br/eclucacioltal illctl(lilll(ill1o(Í/lllicll.c()lll.l)r
23. Bibliografia comentadâ s4
t
1 Introdução

ProÍ, José Fiávio da Pal


Reg. MEC. n09700157

Acabou vendo Joan Brossa


que os verbos do catalão
tinham coisas por detrás,
eram só palavras, não.

JoÃo CaeRAr-

A partir do momento em que se constituiu como ciência


autônoma, a linguística passou a estudar internamente a lin-
guagem. A maioria dos linguistas não mais se preocupou com
as relações entre a linguagem e a sociedade, não mais cuidou
das vinculações entre a linguagem e os homens que dela fa-r
zem uso. Sua preocupação básica passou a ser a análise das re-

ela,
últimas décadas, duas situações distintas e até mesmo antagô-
nicas: fastígio e declínio. Numa certa época, foi tomada como
"ciência-piloto" das demais ciências humanas. Lévi-Strauss,
Dumézil, Lacan, Barthes e outros teóricos tomaram os concei-
tos da linguística e transladaram-nos para outros ramos do sa-
ber. Mais tatde, a reação que se operou contra o avassalador
domínio dos conceitos da linguística produziu um comporta-
mento oposto. Passou-se a considerar as aquisições da lin-
6 7

guística estrutural, que, sem dÍlvitla ttlgttttrr. te:ltt.cscltlitltt ttttt des linguísticas consideradas corretas, elegantes etc.; que a nor-
inegável avanço no âmbito dos cslutkls lirrgtrislicos. c()rrlo Llltl ma linguística tÍllizada pelos que detêm o poder transforma-se
conjunto de práticas puralxeÍltc "itlcolrigic:rs". ( )s pl'ohlctttas na "língua" modelar; que as variedades linguísticas usadas pelos
colocados até então pela ciência tlu litrgtrlrgcrn cr':lnr cortsitlc- segmentos sociais subalternos são consideradas erros, transgres-
rados falsos problemas. A linguísticrt cstt'ttlttltl íiri charrtacla sões e seus usuários são, por isso, ridicularizados. Afinal, esses
linguística burguesa. fatos estão à vista de todos. Não é preciso muita reflexão para
Para os linguistas chegou a hrlnt tlc lirzcl Lrrtt cLticlacloso comprovar isso. Basta arrolar alguns exemplos.
balanço do que a linguistica fez, dcixtlu tlc llzcr tttr poilc Íitzcr, Refletir sobre a questão das relações entre a linguagem e
pois vive ela uma crise epistemol(rgicl. Â tirrclrr ú' tlilicil, ;rttr- a ideologia não é também dizer que a linguagem é instrumento
que implica uma reflexão ampla sobrc a littgtttgcrrt. t;ttc lcvc ctt.t de poder e que os segmentos sociais dominantes tentam ridicu-
conta o fato «ie que ela é uma institLrição sociltl, o vcicttltl clas larizar apalavra dos dominados. Isso é velhíssimo. Tácito, his-
ideologias, o instrumento de mediação cntrc os ltorttctts c l lta- toriadorromano,nosAnals (I, 16-17), aonaffar a revolta das le-
tuÍeza, os homcns c os outros hontcns. No crtlrtrtlo, ú' lllcciso giões panônicas, que reivindicavam melhorias em suas condi-
também ter em conta que a linguagem lrão c ttttrt irrsliltriçi\o so- ções de vida, diz que elas eram dirigidas por um certo percênio,
cial igual às outras. Não, ela tem sttits cs1-rcc:il'it'itl;trles. l'crry que tinha sido chefe de uma claque teatral e que, por isso, pos-
Anderson, em seu livro A crise du cri:;c do ttrttt'.ti,rntrt, rliz t;trc a suía uma língua insolente e uma certa habilidade em dirigir
linguagem é singular ent rclação :\s ilrstilrriçires socirtts l)ot'qtlc multidões. Ao colocar essa nota em seu discurso, Tácito des-
-1, as estruturas linguísticas têr.n un.r blixíssinto coclicie ttle tlc ttto- qualifica as reivindicações dos legionários, considerando que
Lbilidade histórica, porqLrc à irrrotrilitlatlc tllt lírrgtnr t'ortto cstl'u- elas eram fruto da manipulação de um indivíduo que desejava
tura corresponde a "volátil libcrtlatlc" tll lllrr. I)()rllrrt. ;t lltrrtlu- conturbar a ordem. Ouvindo as palavras de certas autoridades
ção linguistica não está subrrtclitlir i lci rLt escrtsst'z tt;tlttl'rtl e brasileiras diante de determinadas reivindicações populares, po-
porque o sujeito da fala é axionra(icluncnlc irrtlivitlrrrrl. lrrrrbora demos até concluir que o comportamento dos dominantes não
concordando com Perry Audersou tut itlcirt rlt't1trt' ;r lingttirgcur mudou muito da época dos romanos até hoje.
tem suas especificidades e iie qur: clits 1'rt'ccislttrr sct lotttittllts ot-t1 A nossa intenção é verificar qual é o lugar das determina--1
consideração, cremos que sux ç1r11gg1'rçi1o tlc lirrgtrlrlle rll c Lllrl ções ideológicas neste complexo fenômeno que é a linguagem, /
analisar como a linguagem veicula a ideologia, mosffar o que é
tauto redutora, pois para ele a lingultgcrtr sc rlivitle t'rrr lírtgLta e !
fala. No decorrer do presente ettsltio. lcttl:ttcrtros tttttsltltt t;trc há l que é ideologizado na linguagem. O trabalho é dificil. O queJ
um terceiro elemento que ele não lcvott cttl e ()rrlil, aqui apresentamos é antes um esboço, uma linha de reflexões,-
O objeto cle nosso trabalho c rcllctir solrtc:ts lclrrçt)cs clue que um conjunto acabado de ideias. Se este trabalho se revelar
a linguagem mantém com a ideologiit. Niio Itt'r tttle tt'ssll itl)cttts tão prenhe de equívocos que as hipóteses devam ser totalmente
mo§tiãi qúê ümâpionúncia dc prcstígio ú ittrposlrt t'rtrrr rt littali- rejeitadas, só nos resta exclamar como Jakobson:
dade de discriminar as pessoas; clr.rc () ilccsso rt tlclcltttittittlls po- É maravilhoso! A coisa mais importante de dizer sempre é: eu
sições de destaque está ligado titttrbcrtt à rrtltrisiçrio rlrts vitt'iccla- me enganei.
9

gem sofre determinações sociais e também goza de uma certa


2 Marx e llrrgols tLlo autonomia em relação às formações sociais não é uma contradi-
as primeiras tlic:lts ção. Isso implica, entretanto, distinguir dimensões e níveis au-
tônomos e dimensões e níveis determinados.
O primeiro cuidado é, pois, não considerar a linguagem)
algo totalmente desvinculado da vida social nem perder"d""rit-f
ta sua especificidade, reduzindo-a ao nível ideológico. I
Comecemos, portanto, a distinguir os níveis e as dimen-
sões da linguagem.

+ -PrdJTeo'it .r, .. -)

Marx e Engels, em Á idL'ttltt.tr.itt rrlr'ttrtt. tltzt ttt rltlt' ttlio se * UiLx.l-l-.'7.


podefazer da linguagem unta rc:ltlitlrtrlc rtttlrtltotttrt ,,rttto os l-i-
lósofos idealistas fizeram cottt () l.rctts;ttttt'ttlo Nloslt:trtt os tltlis
autores que nem o pensanlcllto ll('tlt tt ltttl't;;1;', ( orr\llltlclll
* '@^*4,
* r.Côri€rrnf rr,gr
", -$. -,t*1
um domínio autônomo, pois lttttbos s:r() ('\l)r(':;i()(': tl:r vitllt I-cal * ^rÀti"Àt];l
fu. a8e-e0). Fân*rki",
Engels, em carta a Bloclr, tlrtl:ttlrt tlt' .)li()1 I li(X). t'rplica : C1 lrggrrnn/>
que nem todas as alterações cltlc sc tlllo tt;ts ttt"ltlttt(,r,t " r,rt illis
se devem a causas econônticas c err'ttrllltlt(;r ('r;:iir rrÍirrrrltçlto vWV,/rYl\g
).Jr**, de eu*^^y v A7
com a mutação consonânticlt tltl ltllo rtlt'ttt;to" (lu(' ()( ()r r('rr ltor * Í"-.vy'rfng,1õ9
-ç'l;-t';h,\/Vqn*_
razões internas ao sistema íirrroltiltit r, 3 rpe'd;:,,t*
As duas dicas pareccrtt, it 1'rt irrrt'ir:t vlr.l:t. t oltlr:trliltitilts, :*
pois a primeira mostra que a lirrgtltlit'ttt t' tlt'lr'ttttttt:ttlrt pt:lAS *
condições sociais, enquanto a scgtttttlrt rr't't'l:t tltr,' rt ltltlr.ttlttcrr
goza de autonomia em relaçãtl lts lirt lttltç,,r':; ';rtt t;tt:; Atltli co- *
meça o nosso problema. tn"L,lw
A linguagem é um Í-enôrttctlo t'tItt'ttrrtlttt'ltlt' tottt;tlcxo,
que pode ser estudado de múltiplos prtttlos tlt' t tsl,t. x rrs pet letl-
1

ce a diferentes domínios. É, a,, ,,,"r,,',t lt'tttpo. ttrtlivttlttrtl c: st'r-


cial, física, fisiológica e psíc1tricl. I\rt tsso. tltzt't tlur' :r lirrgtra-
! çal*'-rvw -?.; â*'t.- --r-
,."1 i
í1

3 As primeiras clist inçõcs lrrn romeno, o artigo vem depois do substantivo. Em português,
o pronome demonstrativo e o artigo são mutuamente excluden-
tcs. Podemos dizer "este armário" ou "o armário", mas não "o
este armário" ou "este o armário".
Definamos melhor o sistema: ó a rede de relações que se
estabelece entre um conjunio cle elementos linguísticos. Essas
relações um a SIS-
tema e permitem selecionar o ãemenfo apropriado par a f igtr ar
em cada ponto da cadeia da fala e combinar adequadamcnte es-
ses elementos entre si.._O sistema é um conjunto de elementos
com uma
Epreciso, emprimeiro \r\tc-
lrrglr', llrzcr tlislrrrq.r,r ( rrtrr'() Esse sistema virtual, abstrato, que todos os falantes de
ma virtual (a língua) e sua rcalizaçtio corrt r t'trr ( ) :,r:.tt.rnir L' so- uma dada língua conhecem, realiza-se concretamente nos atos
cial no sentido de qüe ele é contr-urr lr lotlos os Í;rl;urlr':; tle rrnta de fala. Na realização concreta do sistema é necessário distin-
,

dadacomunidade linguística. Elc ó urrr lotlo ('rr \r ('( ()nrprecn- gtir o discurso dafala.
de o conjunto dos elementos lcxi«:uis e glrnrrlit rrrs tlut' írrzclr.r O discurso são
parte de uma língua, a organizaçào irrlt:r'rlr (l(':;:r(.:r r'lt.lrrt'lrlos e pe-
suas regras combinatórias. los falantes com o propósito de exprimir seus pensamentos, de
Não podemos pensar quL- r) iiislr: nl:r \L'l;r unrir lrr;l:r tlr. plrlir- faiãr do mundo exterior ou de seu sobre
vras. Saussure comparava-o a un'r.jogo rle r:rtlrt'z l';rrrr, l,rLl;rtl1lr' o mundo. fala é p do
nâo importam, por exemplo, o Íilrrnttlo tllrs p. ç:rs ou ,r rrr;rlcriltI discurso. Ela é rlgoro pols é sempre um eu
de que elas são feitas. O que intltorta ú'tlur'rrs l)(.ç;rr sr.tlislin- quem toma a palavra e o ato de exteiorizar o discurso.
gam de algum modo, pois essa tli Ír:r.ctrcilrçlio I lrt':; t l:r r ;r lor tl i lo-
í
'lt)A-r^l'',,** *
v^YY\N{LCu"{(x
rente, e que elas se movam no tabtrlcilo st'1,,rrrrrl,, rlt'li'r rrrirlrtllrs
regras. * üJé-c_ _ '/V,*a-qY're 1

Na língua ocorre mais ou ntcn()s il nt\'snt;l r'r,r:;lt llrrr r:ler- * JrÔ*nfU,o' fi.,t'.t",*"t &r, I Ilfl-l
mento tem scr d ilclcrr (c tle t r rrlro, prrrtr ,;rrt' clc
-l
Au^anq* .1.. t"
P
/§-0-
um valor. o / I / lcrrr (lu(' :rr'r tli Ít'r t'rrltt â 'ú@rit.ât '
do ltl,para quepossamos operar utrrl tlislinç:ro srr,,rrrlr( irlrvir cn- * I

tre, por exemplo, ruala e malu.. Altn rlisso, os t'lr'rrrr'rrlos lin-


guísticos não se combinam aloatolilrrrrcrrlc. rrr:rs st'l,rrrrrlo rltul J .or,Çá) t!'d,,
-l-À
, h,8-,
+
série de regras. Em portuguôs, por cxLrnl)lo. t, ;rr lrJ,(, \ ( nr \cnr-
pre antes do substantivo. Dizornos "o rurirrlrl" e rriro "rrrrinurl o".
' Ccwd;+.!-ldJhm\cld!
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4
* 7Na
,à 9(
I í3

sonantal acarretou uma série de consequências. Havia uma


4 Quem determina o quô'/
oposição do tipo atta vs. atq vs. adq. Desfazendo-se a oposição
geminada vs. simples, a série acima mencionada tornou-se qtq
vs. ata vs. ada. Seria então preciso refazeÍ a oposição para que
os dois primeiros elementos não se confundissem. Por isso, a
surda intervocálica do segundo termo da série sonoriza-se (t,
no caso, passa a d) e a sonora do terceiro termo cai. Refaz-se,
assim, a série: atq vs. adq vs. aa (Cf . guttq > gota; latu > lado
e nudu> nu).
Um outro exemplo do sistema fonológico. O latim possuía
as oposiçõesp/b, t/d, k/g, que se distinguem pela sonoridade au'
A fala, em si mesma, não solic cprrltprcl rlr-'lt'r.rrrrrr;rçrio so-
sente no primeiro elemento do par e presente no segundo.
cial, pois ela é a simples exterio.rizaçIo tlo tlis,'rrrso. l, o :rlo ctln-
Tinha, ao mesmo tempo, as consoantes isoladas surdas lsl e lfl .
creto, momentâneo e individual tlc rnlrrrill'slrrçrro tlr lrrrl'rlrgctn.
Aparecem, então, os fonemas lzl e lvl como extensão da oposi-
O sistema, por sua vez, goz.ít tlc ccll;r :rrrlrtrrolrri:r t'rrr rcla-
' çao às formações sociais. Isso purccc cvirlcrrtt.. Nir() sc l)o(lc ção existente em pares correlatos. Nesses dois casos, são fato-
I atribuir arazões encontráveis na cslrulrrlr sot'irrlo l;rlo tlc t;rrc o res internos do sistema que acaÍÍetam as alterações. No primei-
' lkl latino que precede a vogal /itl. conro t'tt ( (tlttlt" lt'rrlur-ss ro, o desaparecimento de uma oposição produziu uma série de
modificações; no segundo, aparecem novos fonemas, porque o
mantido em português (Cf. c:abnr) c lcrrllr st. lrrrrslirr nr;rtlo cn1
sistema tem uma certa tendência à simetria.
/§i no francês (Cf. chàvre). Não hli cxplic;rç;ro sot ro«'r'onirnicll
para o fato de a forma latina lut'tclnr) ler rl:rrkr /í.i/r,(.nt l)()t'tu- Tomemos agoraum exemplo do âmbito do vocabulário. O
guês, leche em espanhol , lait cnl lilrrrccs, ltr, lt cnr l)r()\'('nçal, latimfazia uma distinção entre homo e vir. Homo significa o ser
latte em italiano e lapte em rontono. () sistclrr:r. t.rrr 1't.rrl.;rllc- humano e vir, o ser humano do sexo masculino. O desapareci-
ra-se devido a causas internas tkl prripl'io srslr'rrur. mento do termo vir prodttzitt em português, uma extensão do
sentido do termo homem, que passou a significar tanto o ser hu-
Que são essas causas intcrruts'/'lirrrrr'rrros lltr ('\('nrl)lo (lc
alteração no sistema fonológico. ( ) sisle rrr:r lrrlrrro tlrslirrgrrc mano em geral quanto o indivíduo do sexo masculino'
consoantes simples (ex.: t/n/l) c corrsolrnlt's 1,.t'nrrrr:rtl:rs (cx.: O latim possuía três gêneros: o masculino, o feminino e o
Itlnnlll). Assim, duas palavras igulis crrr lrrtkr nr('n()s rro llrlo clc neutro. As principais línguas românicas (provenientes do latim)
que uma possui uma consoanlo sirnplcs c it ()lrlÍ;t. lun:t ('on- têm, em geral, apenas dois gêneros: o masculino e o feminino.
soante geminada significam coisirs tlili'r't'trlt's. l'or t.xt.rrrplo, os O desaparecimento do neutro deve-se também a causas absolu-
paresmittis/mitis, annus/anus a s/clltr/.r'/r,irr sililriÍit'lrtrr. t*il)oc- t tamente internas do sistema. A queda das consoantes finais e a
tivamente, envias/doce, ano/vclhu lciticcirrr c t.slrt'lrr/t olunlt or- identidade de tratamento da maioria das vogais finais contribuí-
namental de túmulos. O desaparccinrcrrlo rlcsslr oposiçrlo con- ram para o nivelamento das diferenças entre palavras masculi-
14 O,*l,lvrr wrí\/árYYvJ - (h r[-4 )c I
frT
.-^"
\-ít íh( 4/-,x, úbru/'.J' * §nnna, 15
t,
À.o.,q"() / U Cr'V.-.Ú>rrn*)
nas e neutras e, com o tempo, isso octtsiorrorr o rlt.slrlllccitnen- masculino do feminino em a) eram femininos, porque a frvore é
to do neutro. reprodutora, gera o fruto. Já o nome do fruto era neutro (Cf. ma-
A_qn1!ogla é outro fator intcrrro rlrrc prorlrrz ;rlle rrrçircs lin- lus macietra, malum maçã).
guísticas. Ela funciona a partir clc urrr nrorlclo. t on\ r.rlt'rrtlo íbr-
- -
Talvez o fato de o masculino ser, numa série de línguas, o
mas "irregulares" em formas "rogulllt:s" ( ) rrrotlt.lo i.t.orrslituí- genérico, isto é, o termo que indica conjuntamente nomes mas-
do por formas produtivas, ou sc-jlt, rruris lrlrriurl,(.lrl(.\ orr rrtris culinos e femininos, deva-se ao prestígio do homem nas socie-
bem integradas ao sistema e, prlrlirrrlo. ( irl)ir,/(':r rlt' t'lirrrrrutr lts dades patriarcais. É possível que o surgimento de um número
formasnãoprodutivas. Em porlugui's.;r lirr rurr prorlrrlivlr tlc ltri- muito grande de pronomes de tratamento, como, por exemplo,
meira pessoa do singular do prc(crilo pe r lt'ltorlo rrrrlit;rlivo cla Vossa Excelência, Vossa Majestade, Vossa Alteza, no período
segunda conjugação é em i (('Í. ltt,lti. tlt,,:, r. r'sr ri r r) No e rrtan- do absolutismo monárquico, esteja ligado ao aparecimento de
to, certos verbos fazem a Plilrrcir':r l)t:s\(),1 rltr ;rrlrrlru' tlcsse uma sociedade rigorosamente hierarquizada e governada por um
tempo de maneira irregular: lt'ou.\t'. f i. , ,lt.s.s,. (.)rurrrtlo rnla protocolo muito rígido. Os esquimós, para quem a neve é
criança dizJazi,trazi,dizi, cstii ocorrcntlo lri , ,r'.,,, rl;r rrrurlogia, um elemento vital, não possuem um nome para designar aquilo
que é um jogo de uniformização plnr lircililrrr o rr:;o No cxernt- que chamamos "neve"; têm, entretanto, toda uma série de no-
plo citado, a criação infantiló clilrrirrirrlrr n() ( urs() tlrr rrlrrt'rrtliza- mes para indicar os diferentes estados da neve, considerados
gem linguística. No entanto, cnt ntuilos (:t:i()rr. :r :rq;ro rlrr ;rrurlo- elementos distintos.
giaproduz alterações. Por cxontplo, (:nl l)()tlu1,lr(.. o:i n()ntt: s cnl Pode ser que o surgimento de uma categoria, como o gê-l
o fazemo feminino em a. Por isso, rrorrrt's nl() l(.rrrrrrr;rtl,rs cnl í.r, nero, a distinção nome e verbo etc. seja determinado por fatores)
que eram uniformes, passam taltrlrcrrr lr lt.r urrr lt rrrrrrrno en] rr. sociais. Comprovar uma hipótese dessa natuÍeza a respeito de)
Assim, temos infante/infantu, ,tt'trlrrtt,i,s'r'rrlr()t tt cl( ( '()nro ol-n uma categoria partioular, no entanto, é extremamente difícili
português, emprincípio, os lt()nlcs enr(, sir() nr;r:j( ulrr():j. ()s rto- pois as categorias presentes nas línguas modernas são herança
mes de árvores em o, como chttLtlto. ltittlttt. rtlttttt, t1tt.r.r'lun Í'e- das línguas de que provieram. O português tem os modos indi-
mininos em latim, tofnaram-sc ntasctrlirros cnr l)or lrr1,rrt.s. cativo, subjuntivo e imperativo, porque eles já existiam no la-
Todos esses exemplos mostrarrr (luc, ('n r 1,,t.rrl, rr:; ;rltr.rrrçõcs tim. A mesma coisa acontece com os números singular e plural
no sistema são motivadas por lat«trcs cslter'ilit:rrrrt.rrlt. lrrrl'rrisli- e com o fato de que o plural é indicado por um s. Fatores
.cos. se quer com i§§ôtffic;Cú;Em;qire õ sürgimonto cle urrã- devem ter determinado o aparecimento de uma categoria lin-
categoria gramatical ou semântica rriio sc tlcvlr il titl()('s (.n( ()t)tÍ'1t- guística. No entanto, as categorias perderam qualquer relaçãcl
veis na estrutura socioeconômica dc urrur tlclcrrrrirr:rtlrr sot rç1111,1a. com as causas que lhes deram origem e ganharam autonomia. A
não dependa de fatores sociais. Os gôncros rrrirse rrlirro, Ít.rrrirrirrcr história do sistema passa a ser uma história relativamente autô-
e neutro do latim correspondiam a ulra l,isllrr rrrrlitrr (r iilrtri)l)()- noma em relação às formações sociais em que ele está presen-
mórfica do mundo. Eram neutros os nontcs rlc coisrrs t'orrsitlcra- Í te. Passa e1a a ser uma história do próprio sistema.
das inertes, passivas ou produtos. Os nonrcs tlc rilvores lcr rrrinu- F,m Ave, palavra, Guimarães Rosa narra que, um dia, vi-
dos em zs (terminação que servia, ntr,ritus vc,/rs, l)ilr.ir rlislirrgtrir cl sitando uma aldeia de índios no Mato Grosso, observou que, na
16

língua falada pelos seus habitantcs, ()s ll()nrt.s rlc corcs cram to-
dos terminados em i 7i. Pensou c1r"rc i ii sigrril'icirssc "cor" e que
5 Discurso: autonomia
fosse, portanto, um substantivo clr.ro sc lonurllr Lrrrr srrl'ixo. Um e determinação
informante disse-lhe que i'ti signil'icuvl "s:ur!',u("'. Ai clc curne-
çou a imaginar que, como o in«lígcnir crrle rrrlr:r (luc () siurllr-lc era
o elemento vital, porque para elc a nrortc csllrv:r ;rssocirrtlrr ao cs- I
vair-se em sangue, talvez vissc il cor conr() () firr)1,,u(' (o clcrncn-
to vital) de certas coisas. Assim, o vcrrle st'r'irr o siurltuc tla Íirlha
(a folha morta perde a cor vcrtlc); o aztrl, () sirrl'u('rkr cóu; o
amarelo, o sangue do sol e assitr l.lot tlirrrrlt'. l'r'ocrrrorr, cntão,
saber o significado original dos tr«rrrrcs rlc t'ort's. No r'rrlirrrlo, ne-
nhum dos falantes foí capaz dc irrlirrrrui-lo l', rri tliz ( irrirrrlrrães
Rosa, "toda língua são rastros tlc vcllros rrrisl('r'ros". Âs nrzões
_49jpalg-c-lglento-das categorias lilrgtristietts t'ttslt'nlcs rrirs lin- Assim como a frase não é um amontoado de palavras, mas
guas modernas perderam-se u0 lorrrp0. e uma cadeia construída segundo certas regras, o discurso não é
Procurar estabelecer as clclcrrrr i rurçot's t l
r rr' rr rt' ir l i n r rrr, r-rnr um amontoado de frases. O discurso tem uma estrutura. Diante
dia, sobre os elementos do sislcrrrlr llotlcr.:i rt'srrllrrr t'rn cstudos de um texto absolutamente "Isso não significa
fragmentários, de interesse porrlulrl, t;rurrrtlo nrio crrr Í;rrrlrrsilrs. E, nada. É um samba do crioulo doido". Sabemos distinguir um
no nível do discurso que dcvctttos,;'rtlis, cslttrl;r :r\ r'()r'rç()cs so- I texto de um não texto. Porque o discurso é estruturado, temos
'
ciais que determinam a lingLrallonl. I que diferençar no seu interior uma sintaxe e uma semânticA.
A sintaxe discursiva compreende os de estrutu-
ração do discurso. Assim, pertence a ela um como
a introdução ou não da primeira pessoa no discurso (por exem-
plo, Eu acho que Pedro foi ao cinema e Pedro foi ao cinema). O
uso da primeira pessoa cria um efeito de sentido de "subjetivida-
de", enquanto sua não úllização produz um efeito de sentido de
"objetividade". Se um cientista dissesse o'Eu afirmo que a Terra
é redonda", isso poderia ser entendido como um ponto de vista
pessoal. Entretanto, quando ele diz 'A Têrra é redonda", é como
se o próprio fato se narrasse a si mesmo. Nesse caso, temos a im-
í pressão de que uma verdade objetiva se estabeleceu.
Outro procedimento pertencente à sintaxe discursiva é o
mecanismo do discurso direto, indireto e indireto livre. Tome-
ía 19

mos um exemplo. O discurso dircto caraclel izrt sc ltclu prcser- longo da aprendizagem linguística, :utilizar seus procedimentos
vação integral do discurso relatado. Nclc o rlu.r'lrtkrr. tlh voz à de maneira inconsciente.
personagem que parece falar de manL-i|ll urrliittonlit. l\rt'cxem- O campo das de __
plo: "O lobo disse: Vou matá-lo, cot'dcittt. l)()r'(luc vocô cstá discursiva, pois o conjunto de elementos semânticos habitual-
-
sujando a água que eu estou bebenclo". O tlisctuso rlirclo cria mente usado nos discursos de uma dada época constitui a ma-
um efeito de sentido de "verdaclc", pois o rrrrnrrlol l)ilrccc rcpc- neira de ver o mundo numa dada formação social. Esses ele-
tir palavra por palavra o discurso rlo orrlnr li conro so a pr(lpria mentos surgem a partir de outros discursos já construídos, cris-
personagem estivesse falanckr. talizados e cujas condições de produção foram apagadas. Esses
elementos semânticos, assimilados individualmente pelo ho-
A semântica discursiva lblrrclr os conteúdos que são in-
mem ao longo de sua educação, constituem a consciência e, por
vestidos nos moldes S exernplo, o meca-
conseguinte, sua maneira de pensar o mundo. Por isso, certos
nlsmo discurso tlir.clo, cnr (lr.rc um nnrrador clelega a
temas são recorrentes na maioria dos discursos: os homens são
palavra a uma personagcnr prlnr t;rro crlu lllc. c sinlhtico. A per-
desiguais pot natweza; na vida, rrencem os mais fortes; o di-
sonagem a quem se delega v()2. o (luc cla tliz ctc. pcrlcltoetn à nheiro náotraz a felicidade etc. A semântica discursiva é o cam-
semântica. po da ideológica propriamente dita. Embora esta
A sintaxe discursiva goza ccrta atrtorrorrrirr e:nr rclação seJ a ser
às formações sociais, enquanto a scnrântica tlcpc nllt ts Inúmeras questões devcm ser ainda explicadas. Vamos de-
snr()s (oll)o, por vagar a cada uma delas.
o receber e veioular quaisquer
conteúdos, mas estes são clctcrnrinltrlos pr:llt t'slrrrlru r sociltl * d,ln>utjlJ>g:
,/\ J/t *rurfu"rço;
Há no discurso, ctrtã«r, o ciul)p() rlr ttt:tttiptt c()nsclen- ,/\
eo a@1k,.4 sintaxc discürsiva eo
./\
Jg
campo da manipulação oonscicnlc. Nr:slr'. o lrrlrrnlr' lrrrrçu mão
de estratégias argun'tcnlal i rru s tr plot't'tl i rrrt'rrlos tla sin-
M.b*d* j

taxe discursiva para criar clcitos tlc serrlitlo tlt' r't'rrl:ttlc ou de


realidade com vistas a convcnccr sctt ittlctlocttlot. ( ) llrllrtrlc or-
gatiza sua estratégia discursiva cttt lirttçio tlt' ttttt iol,o rlc it'na-
gens: a imagem que ele faz clo inlcrlt)cu{()r'. rr t;rre clr' l)cr)sil clue

* r,CorâOrnú.rt-Y 1 l,-yn à,\L rl*oxÁJ I


o interlocutor tem dele, a que elc clcsc'.jlr lnrrrsrrrilir rro irrlcr'locu-
tor etc. É emrazão desse complexo.jogo tlc inrrr,,r'tts tltrc o Íà- I { a$w,OvrA-
lante usa certos procedimentos argutrcttlrtlit,os t'trio otttros. JOI',&S /flql/aX-ld-Â/
Embora consideremos que a sintaxr- se-.ia r, ç;111v;11r tllr rtruripula-
I
ção consciente, pode-se, em virtuclo clc hlibilos ltltltriritlos ao
2l

colÍlo "não exploração", que poderia ser a forma de um partido


6 Yariabilidade operário entender a liberdade.
na invariabilidade Analisando, cuidadosamente, a maneira como um ele-
mento semântico da estrutura profunda se concretiza, não va-
mos confundir dois ou três discursos distintos só porque todos
eles falam em liberdade. É importante verificar em cada um
deles o que é que "liberdade" significa, isto é, como é que ela é
concretizada.
Cada um dos níveis não tem apenas uma semântica, tem
também uma sintaxe própria. Não interessa, porém, neste traba-
lho, expor todos os elementos da sintaxe do nível profundo e do
nível superficial, pois estamos fazendo todas essas distinções
com a finalidade de precisar o nível em que a linguagem sofre
Uma pergunta que se poderia fazer é a seguinte: se discur-
determinações sociais.
sos de nattreza muito diferente utilizam-se dos mesmos ele-
Podemos agora determinar com maior precisão o compo-
mentos semânticos, como, por exemplo, liberdade, felicidade,
nente da linguagem em que percebemos com toda a nitidez a
justiça, de que maneira se pode distingui-los?
determinação ideológica. Dissemos anteriormente que era a se-
C É preciso estabelecer uma diferença entre um nível pro-
\, mântica discursiva que mostrava, com clareza, uma maneira de
\ fundo e um nível de superfície. Por exemplo, numa história de ver o mundo de uma dada sociedade numa determinada época.
fadas, o príncipe necessita sempre de um objeto mágico para Isso, a nosso ver, está correto, pois não é indistinto falar da "li-
venÇer seu oponente e ficar com a princesa. Numa história, é berdade" ou da "ordem", da "riqueza" ou do "amor ao próxi-
um anel mágico; noutra, c utrra cspada magica e assilrt por dian- mo". No entanto, estudar as coerções ideológicas só com os
te. Os elementos semânticos quc aparccorll nit supcríicie (um elementos da estrutura profunda pode, como já mostramos, fal-
objeto mágico determinado) são variaçõos c;ttc cottcrctizam sear a análise. É no nível superficial, isto é, na concretizaçáo ,

um elemento semântico invariantc, mais al-rslritto o ltrais profun- dos elementos semânticos da estrutura profunda, que se reve- rL
do, o poder-vencer. lam, com plenitude, as determinações ideológicas. Os discursos \
A liberdade pode ser concretizada, por oxctl)plo, como que consideram a liberdade como "direito à diferença" ou como
"evasão espacial" (ida para uma ilha no Pacíl'ico Sul, icla para "não exploração da força de trabalho" pertencem a universos
um lugar perdido na floresta amazõnica) oLr c()rllo "cvitsãtt tetn- ideológicos distintos.
poral" (volta à infância). O discurso de muitos l.toclits ronrânti- Além disso, dois discursos podem trabalhar com os mes-
cos concretiza assim a liberdade. No entar.rto, a lihctrlltlc pode- mos elementos semânticos e revelar duas visões de mundo com-
ria ainda aparecer na superficie como "dircito l\ tlilcrcrrça, à pletamente diferentes, porque o falante pode dar valores distin-
singularidade" (observe-se o discurso de ccrt:ts rrtitrorias) ou tos aos elementos semânticos que utiliza. Alguns são considera-
r
22 ,,Ur1.re{, * t,j_l-,4g..t
üt,n-Lc.-e- .q- -y^Id)
- ÀgúLj-lo§*
dos eufóricos, isto e, são valorizados l.losilrr:urrt rrlt'. oulnrs, dis-
fóricos, ou seja, são valorizados negativ:urrt'rrlt' ( ) t orrlo "A ga-
7 Duas maneiras de dizer
ta borralheira" e o romançe Justina. ckr Mrrrtlrrr'.; ,lt' S:rtlc, colo- a mesma coisa
cam em jogo praticamente as mcsnltri ()l)()sr\'()('ir se rnlirrticas:
submissão, humildade, amor ao prrixirrro. lrorrtl;rtlc rr. prcpotên-
cia, orgulho, maldade, cinismo. N«r prirrre rro tlos lt'rlos. sào eu-
<:LaC"x- J* lut-
nmg\o,A- d.O- &"rãf rrlÁ{}r lx,*.
fóricas as virtudes da submissão c tLr lrrrrrriltl:rtlc. t;rrc siro re-
compensadas, e disfóricos o ot'gullto t' ;r prt'polrirrcitr, tltro são
castigados. No segundo tex1o, crrliilicos sito os clcrrrcltlos valo-
rizados negativamente no prirrrcirr» le rlo t' rlisÍiiricos, os valori-
zados positivamente.

Observemos os textos que seguem:

Texto A
Um cavalo, quase morto de fome e de sede, caminhava em
busca de água e de comida. De repente, deparou com um
campo de feno, ao lado do qual corria um regato de águas cris-
talinas. O cavalo, não sabendo se primeiro bebia da água ou
comia do feno. morreu de fome e de sede.

Texto B ,í) '.. r.; .

Há pessoas táo indecisas que são incapazes de realizar qual-


quer escolha e acabam perdendo muitas oportunidades na vida.

Os dois textos querem dizer praticamente a mesma coisa.


Qual é a diferença que existe, então, entre eles?
O segundo é mais abstrato, expõe ideias que explicam um
fato observável no mundo. O prirreiro é mais concreto. Ao ex-
por o fato, utiliza-se de conteúdos que indicam elementos do
mundo natural: cavalo, água, feno, riacho etc. O segundo fala de
elementos semânticos que indicam coisas que em si não exis-
tem no mundo natural: escolha, incapacidade, indecisão. Fala
de çoisas que não têm existência própria.
24 25

O primeiro texto é figurativo, euquanto o scgunclo e temá- Nos textos não figurativos, a ideologia manifesta-se, com
tico, não figurativo. O componente básico dos tcxkrs Í'igLrrativos toda a claÍeza, no nível dos temas. Nos textos figurativos, essa
é a figura, enquanto o dos não figurativos são os lcr.uus. Tcrras e n-ranifestação ocorre na relação temas-figuras. Os temas do dis-
figuras são dois níveis de concretização dos clerncntos sernânti- curso político oficial pós-64 são reveladores de uma dada ideolo-
cos da estrutura profunda. Assim, podemos concrct izar o clcmen- gia: Ocorre, no mundo, uma luta entre a civilização cristã ociden-
to semântico "liberdade" como "não traballro". conro "lazer". tal e o comunismo ateu. Essa guerra é psicológica, pois ocorre no
E,ste é um primeiro nível de concretização. Poclcnros ooncretizar coração e nas mentes dos homens. Por isso, elaétravada no inte-
o "não trabalho" como "balançar-sc nr.rlla rctlc lrolas a Íio", co- rior de cada país. As fronteiras não são, então, externas. pois o
mo um "passeio pelo campo". A publiciclaclc cprr: tliz "Liberdade inimigo se acha entrincheirado dentro do país. São inimigos os
e uma calça velha, aztl e desbolaclir" tlsA cssc con junto de temas que renegaram a sua condição de brasileiros, aqueles que vão
e de figuras. Assim con.ro diÍorcntos lonlas poclcnr ct-lncretizar o contra os ditames da alma nacional, que repele as ideologias exó-
mesmo elemento semântico cla cstrutura prolunda, o n.rcsmo tema ticas, que tentam insuflar a luta de classes no seio de um povo or-
pode ser figurativizado dc nranciras clivcrsas. deiro e pacífico. Os inimigos estão ocultos, travestem-se de libe-
rais, de defensores dos direitos humanos. Atuam pela contestação
Definamos, de rlancira precisa, o que é tema e o que é fi-
ao governo, que encarna os valores da brasilidade, procurando
gura._Jema é o elemento semântico que designa um elemento
realizar os objetivos nacionais permanentes. Por isso, justifica-se
não presentê nô mundo natural, mas que exerce o papel de cate-
a repressão aos que querem conturbar a ordem. Esta é a harmo-
goria ordenadora dos fatos observáveis. São temas, por exernplo,
nia do capital e do trabalho, quejuntos concorrem para a grande-
amor, paixão, lealdade, alegria. Figura é o elemento semântico
za do país. Qualquer reivindicação operária por melhores condi-
..,-gug remete a um elemento do mundo natural: casa, mesa, mulher,
ções de trabalho ou por melhores salários constitui conturbação
rosa etc. A distinçào entre ambos é. pois, de maior ou menor grau
da ordem, pois quem fara a riqueza dos operários será a mão in-
de concretude. Temos que entender, no entanto, que nem sempre
visível do mercado. Esses temas servem de justificativa de uma
essa distinção é fácil de ser feita, pois concreto c ahslralo são dois
ordem política que, ao reprimir com violência o movimento ope-
polos de uma escala que conrporta locla csl.rccic tlc graclação.
rário, favorece uma acumulação mais râpida de capital.
O discurso figurutivo ó a cottcrclização tlc rrrrr tliscurso te-
Num texto figurativo que narre a vida de uma família pobre,
mático. Para cntendcr urn discurso figurativo ó prociso, pois, mas Í'eliz, cujo pai sai cedo para o trabalho e volta à noite para fi-
antes de mais nada, apreender o discurso tcn-rli(ico tltro sLrbjaz a
car com a família e cuia mãe realiza os trabalhos domésticos; que
ele. Ir das-flgurasao-tema-'e o que fazcu.ros r;tuuttlo pcrgunta- passa por muitas privações, mas vive com um sorriso nos lábios,
mos: qual e o tema deste texto; de que trata clc'? os temas são: o dinheiro não traz felicidade, pois esta se encontra
Quando falamos em textos figurativos «ru nàtl l'isrrrirtivos, es- no íntimo de cada indivíduo; o espaço da mulher é o lar e o do ho-
tamos falando em predominância e não em cxclrrsivitlltlc. Não mem, o do trabalho não doméstico. Essa relação temas-figuras re-
_çXlSJem textos exclusivamente figurativos ou ler rrii I icos. [ .I rn texto vela um universo ideológico que considera a família a célula bási-
figurativo é aquele construído predominantcrrrcrrlc corrr l'iguras, ca da sociedade, que vê os papéis sociais como algo natural, que
enquanto um texto temático é organizado basiourncrrlc conr tornas. prescreve que cada um deve contentar-se com o que tem.
27

8 Que é ideolo gia? operário quc trabalha oito horas por dia, não recebe, ao final, to-
do o valor que produziu, mas recebe apenas uma parte dele. Se
ele produziu cem e recebe como pagamento apenas vinte, ele
não vendeu o seu trabalho, mas sua força de trabalho. Há, des-
sa forma, um tempo de trabalho necessário, aquele tempo da
jornada de trabalho em que o operário produz para pagar o seu
salário, e um tempo de trabalho excedente não pago, ou seja,
aquele tempo em que o operário produz um sobrevalor de que o
capitalista se apropria. Se o salário não é a retribuição do traba-
lho, mas da força de trabalho, então ele é, em geral, o mínimo
historicamente indispensável para a reprodução da mão de
Até agora temos falaclo crn itlcokrgitr, crrr lirtrlrcs sociais obra, ou seja, o mínimo necessário para que o trabalhador so-
que determinam a semânlica discursivlr. Mus t;trc ó rcalmente breviva e continue a produzir.
ideologia?
O salário, ao aparecer como o pagamento do trabalho e
Numa formação social, tcnros clclis nívois dc rcalidade: . não da força de trabalho, apaga a distinção entre tempo de tra-
um de essência e um dc aparência, ou srja.irrrr pr.«rlirndu.r- balho necessário e tempo não pago, fazendo das relações de
superficial, um não visível e um fenor,ônic.. l)lr'r clrlcnder a trabalho, no nível aparente, uma troca igualitária. Isso mostra'
existência desses dois níveis, vamos acomparrh.r'. rruilise que
Marxfaz do salário. No nível da aparênci.,. sirLir.i.,,1rr"r"niu_
que o capitalismo engendra formas que mascaram sua essência,
pois, se não houvesse apropriação do valor gerado pelo trabalho
i
-se como o pagamento de um trabalho rcalizlrrlo. Ncssc nível. a
não pago, não haveria capital.
relação de trabalho é uma troca cntrc irtlivítlrr.s livrcs c iguais.
Tudo isso denota que, no nível fenomênico, a realidade
Fles são livres, porque não cstão sujcil.s rr.rrrr«rs rr.nrc,s por
põe-se invertida. O que no nível profundo são relações de ex-
laços de dependência pcssoal, col)ro ,o rr.tkr t[: pr,ltlução es_
ploração (apropriação do valor gerado por um trabalho não pa-
cravagista, mas podenr vc,rlcr scrr l*rb.llr. ll (l,cr)t r;triserem.
go) aparece como troca; a opressão, como igualdade; a sujeição,
São iguais, pois todos são d.n.s dc urrr. lrrcr.clrrkrr.ilr c, portan_
to, podem estabelecer uma troca: ulrs vclrrlcrn strrr lr.lbltlho e ou- como liberdade. As relações que, no nível de superfície, apre-
tros o compram. sentam-se como relações entre indivíduos são, no nível de es-
sência, uma relação entre classes sociais, uma que se apropria
No entanto, se sairmos do nívcl tllr t:irctrltrçiio tlc bens
(aparência) e passarmos para o da proclLrçiro (cssôrrcilr), vcremos do valor produzido pelo trabalho não pago e outra que vende
que nã'o há uma troca igualitária e que o .pc'iri. r,l. v,rcle seu sua força de trabalho e é espoliada. As relações igualitárias de1
trabalho, mas sua força de trabalho. Conr cÍcilo. o lr.rrbirlho é o troca existem apenas no nível fenomênico. lsso quer dizer que\
dispêndio da força de trabalho, o ato de prorltrzir., crrtpranto a há uma troca de equivalentes, isto é, igualdade na troca. No en- (
força de trabalho é a capacidade de trabalh.r, tlc: p*rtlrzir. O tanto, ela ocorre apenas no nível da circulação. Isso significa \
que ela, ao mesmo tempo, é afirmada e negada. É afirmada no /
2A
29

nível fenomênico e negada no nível pro[uncl<1, or11 qltc não há rada a partir das formas fenomênicas da realidade, que ocultam a
equivalência, nem troca, mas simples apropriaçl-kr.
cssência da ordem social, a ideologia é "falsa consciência".
Somente o nível da aparência se clá a pcr.c.:[icr inrcdiata_ !.
E preciso explicitar bem esse ponto. Se há inversão da rea-
mente para nós. Ele apresenta-se co,,lo a to(ulitl.tlc da
realida- lidade, a ideologia está contida no objeto, no social, não poden-
de, o que denota que, no modo de prodr-rção capilalisla,
aapa_ do, portanto, ser reduzida à consciência. Ela existe independen-
rência é vista como a totalidade da realidadc.
temente da consciência dos agentes sociais. É uma forma feno-
Outras categorias poderiam ser analisadus para mostrar mênica da realidade, que oculta as relações mais profundas e ex-
que há dois níveis de realidade e que o nívol rl:r
aparôncia é a in_ pressa-as de um modo invertido. A inversão da realidade é ideo-
versão do nível da essência.
logia. Por isso, é preciso muito c"iõãããiü. aê*pfêssãõ "fal-
A partir do nível fenomênioo cla rcaliclaclo, c.nstroem_se sa consciência". Ela indica apenas que as ideias dominantes são
as ideias dominantes numa cjada funração social. Essas elaboradas a partir de formas fenomênicas da realidade, não
ideias
são racionalizações que explicarr c.justiÍ'icam a rcalidade.
Na apreendendo, portanto, as relações sociais mais profundas. Essas
sociedade capitalista, a partir clo nívcl aparcnte, constroem_se ideias são, por conseguinte, ideologia sobre ideologia. A repre-
os conceitos de individuaridade, de liberdade cor.,o
algo indivi- sentação pode ser invertida, porque a realidade se põe invertida.
dual etc. Aparecem as ideias da desigualdade natural dos
ho_ Mas é preciso avançar um pouco mais nessa reflexão. Por
mens, uma vez que uns são mais inteligentes ou mais
espertos que determinadas ciências, como a Economia Política clássica,
que os outros. Daí se deduz que as desigualdades
sociais ,áo ru_ não chegam à essência da realidade e pairam apenas na aparên-
turais. Outras ideias pias, presas às formas fenomênicas
da rea_ cia? Porque ela se identifica com os interesses da burguesia.
lidade, vão construindo-se: ariqueza é fruto do trabalho (só
se Podemosentãoafirmarquenãoháumcoúecimentoneutro,pois
omite que é fruto do trabalho dos outros); pobres e ricos vão
ele sempre expressa o pontõãdvlSía'de uma classe a respeito da i-
sempre existir; apobreza é uma bênção, pois a riqueza
só traz realidade. Todo coúecimento está comprometido com os inte- ":
preocupações.
resses sociais. Esse fato dá uma dimensão mais ampla ao concei-
Demos até agora exemplos de idcias muito amplas, que ,-
to de ideologia; ela é uma "visãqlg _qyndo", ou seja, o ponto de ' :\
fazem parte das crenças da maioria cla popLrlação. Há, porem,
vistadeumac1assesocia1arespeitodaiõàliãade,amaneiraco-<
outras ideias que ganham estatuto de verdades cienlíficas
e, não mo uma classe ordena, justifica e explica a ordem social. Daí po-
obstante, estão vinculadas às formas aparentes cla realidade.
Eo demos deduzir que há tantas visões de mundo numa dada forma-
caso, por exemplo, das teorias antropológicas segultclo
as quais ção social quantas forem as classes sociais. Há visões de mundo
havia raças inferiores e superiores e que estas clcveriarn
civiiizar presas às formas fenomênicas da realidade e outras que a ultra-
aquelas. Essas teorias serviram para justificar o colonialismo.
passam, indo até a essência.§em toda ideologia é, portanto, "fal-
A esse conjunto de ideias, a essas representaçõcs que ser_ sa consciência". Numa perspectiva histórica, há aquelas que são
vem para justificar e explicar a ordem social, as conclições
de consciência invertida da realidade e aquelas que não o são. Dessa
*. vida do homem e as relações que ele mantém com os outros ho_
forma" verificamos que-gàg_!á., como queriam muitos autores.
mens é o que comumente se chama ideologia. Como
ela c clabo_ uma separação entre ciência e ideologia, pois esta, mesmo toma-
3t
30

justiça eter-
da no sentido de "falsa consciência", constrrii-sc a partir da rea- cada vez mais clara que adquirem da verdade e da
produçáo e de troca; é mis-
de suas formas fenomêniôas. ('utllr rrrrlr tlus visões nas, mas nas variações da forma de
ter procurar tais causas, náo na filosofia, mas na economia de
de mundo apresenta-se num discurso próprio
cada época.
A- ideologia é constituída pela realiclatlc c c«rrrstitr"rinte da
que o modo
realidade. Não é um conjunto de ideias quc surgo tlo nacla ou da
-
D-§19rrqi!?§ã9 em última instância significa
mente privilegiada de alguns pensadoros. l\rl isso, cliz-se que de determina as ideias e os comportamentos dos ho-
mens e não o contrário. É preciso, no entanto, cabe
rePetir, não
ela é determinada, em última instância, pclo lrívcl oconômico.
pois
Dizer que as ideias de uma clacla cl.roca siio rlolcrrninadas, ver o nível ideológico como simples reflexo do econômico,
em última instância, pelo nível cconônrico rríio signií'ica que a ele tem seu conteúdo PróPrio e suas próprias leis de funciona-
de-
ideologia seja mero reflexo do nívcl econôrnico. Os teóricos do mento e de desenvolvimento Isso significa que não existe
terminação direta e mecânica da economia, mas uma determi-
materialismo histórico rrostranrrrr rluc ocorrcnr clcÍasagens en-
tre os diferentes níveis da cslrLrlura social, o cluc t.tão acontece- nação complexa.
ria se a determinação sc cxorccssc por ulna causaliciade mecâni- Há ainda uma coisa muito importante que não devemos
esquecer. Embora haja, numa formação social, tantas
visões de
ca. Engels, em carta a []loch, datada dc 2llL)11890, diz que "o
elemento determinarrls ila história, em última instância, é a pro- mundo quantas forem as classes sociais, a ideologia dominante
é a ideologia da classe dominante' No modo de
produção capi-
dução e a reprodução da vida real". Mostra, no entanto, que
tãlista, á ideologia dominante ó a ideologia burguesa'
nem ele nem Marx disseram que o elemento econômico e o úni-
co determinante, pois as formas políticas da luta de classes e os
seus resultados, as formas jurídicas, as teorias políticas, jurídi- + '^r'nrlmdg L1h.v^rrürlnd"y d,oh
cas, filosóficas e as concepções religiosas exerccrn tambem in- jdrs.,a,r
fluência nas lutas históricas e podem até detcrmirrar sua Íbrma.
Apesar de o elemento econômico não scr o tlctcrrrrinantc único
. ü,!.rpou,,a., ds- o$r.:uowq,
U
das lutas históricas, é o determinante cm úllinra irrstância.
Que significa determinar em últirna instârrcia'/ lrngcls dá
a seguinte explicação no Anli-Diihring'.

A concepção materialista da história parte do princípio de que


a produçáo e com ela a troca de produtos constitLri a base de
toda a ordem social; de que, em cada sociedade que a história
apresenta, a repartição dos produtos, e com ela a hierarquia
social de classes e ordens, rege-se segundo a natureza e a
forma da produção e segundo a forma de troca das coisas pro-
duzidas. Por consequência, é necessário procurar as causas
últimas de todas as transformações sociais e de todas as revo-
luçóes políticas, náo na cabeça dos homens, isto é, na ideia
I 33

9 Formações ideologicas e As visões de mundo não se desvinculam da linguagem,


porque a ideologia vista como algo imanente à realidade é indis-
formações discr-r rsivas sociável da linguagem. As ideias e, por conseguinte, os discur-
sos são expressão da vida real. A realidade exprime-se pelos
discursos.
Dizer que não há ideias fora dos quadros da linguagem
implica afirmar que não há pensamento sem linguagem. Engels
dizia que não há realmente um pensamento puro desvinculado
da linguagem. Ao opor-se à ideia de Dühring de que quem não
era capaz de pensar sem o auxílio da linguagem não tinha co-
nhecido o verdadeiro pensamento, afirma, com ironia, que, se
isso fosse verdade, os animais seriam os pensadores mais abs-
tratos e autênticos, porque seu pensamento jamais é perturbado
Uma formação ideológica clcve scl errlcrrrlitllr conto a vi-
pela interferência da linguagem.
são de mundo de uma determinada classc s«rcill, islo c. um con-
junto de representações, de ideias cluc rcvclrrnr ir conrprccnsão Alguns linguistas e psicólogos julgam que existe um pen-
que uma dada classe tem do mundo. ('onro rlio cxislcrtr ideias samento puro pré-linguístico e, ao lado dele, a expressão lin-
fora dos quadros da linguagern, entenclitla t)o scu sclrlirkr amplo guística que the serve de envólucro. Outros afirmam que é im-
de instrumento de comunicação vcrbal orr nllo vc:r'lxrl, r:ssa visão possível pensar fora dos quadros da linguagem.
de mundo não existe desvinculada da lingrurgtrrr. l\r' isso, a ca: O problema começa com o próprio conceito de pensamen-
da formação ideológica corrcspondc urnu Íirrrrurçio tliscursiva, to. Se imaginarmos que pensamento seja a "faculdade de se
-QUêêÍm ô-qnjunto de temas e de figuras t;rrc rn:rtcrializ.a uma orientar no mundo", ou o "reflexo subjetivo da realidade obje-
dada visão de mundo. Essa íirrmação discursiv:r ó crrsirurcla a ca- tiva", ou ainda "a faculdade de resolver problemas", então po-
da um dos membros de uma sociedadc ao lorrgo tlo pnlccsso de demos concluir que há um pensamento verbal e um pré-verbal,
aprendizagem linguística. E com essa Íilrrnirçio tliscrrrsiva assi- pois todos os animais fundam seu comportamento numa certa
milada que o homem constrói seus discurst)s, (luc clc lcage lin- orientação no mundo, num certo reflexo subjetivo da realida-
guisticamente aos acontecimentos. Por isso, o tlisctrlsil c mais o de objetiva ou numa certa capacidade de solucionar proble-
lggq da reprodução que o da criação. Assin.r conro unra forma- mas. Mas, se dissermos que o que caracteriza o pensamento hu-
ção ideológica impõe o que pensar, uma Íbrrnaçiio discursiva mano é seu caráter conceptual, o pensamento não existe fora da
determina o que dizer. Há, numa formação social, tantas forma- linguagem.
ções discursivas quantas forem as formações ideológicas. Não Há processos mentais que escapam ao nível puramente
devemos esquecer-nos de que assim como a idcologia domi- linguístico, mas, a partir de uma certa idade, o pensamento tor-
nante é a da classe dominante, o discurso dorninante ó o da clas- na-se predominantemente conceptual e este não existe sem uma
se dominante. linguagem. O cérebro funciona de maneira muito complexa,
34

mas os estudos de psicologia genctica c rllrs prrtologias linguís-


ticas demonstram que a ausência dc unur lirrgtrrgon, qualquer 10 A consciência é
que ela seja, impossibilita o exercício rkl ;.re:rrslrrrrcnto concep- um fato social
tual. Quando se diz que não há ideias irrtlcltcrrtlcrrtcrncrrlc da lin-
guagem, está-se falando de pensamcnto coltt.cplurrl.
Não há. porém, identidade entrc lingrutgcrrr c pcnsarnento.
O que há é uma indissociabilidadc tlc arrrbos, t;rrc rríio sc apre-
sentam jamais de uma forma pura. I)«l-isso, irs litrrç('lcs cla lin-
guagem e do pensamento não podcnt sct. tlissociarlas c, rnuito
menos, opostas. O pensamcrrto c a linguugcrrr, tliz SchaÍf, são
ó0 1
dois aspectos de um único proccsso: o tkr conhccinrcnto do
1 mundo, da reflexão sobrc cssc c«lnhccinrcrrlo c rlu colnLllticação
trl
.» de seus resultados. Para Vygotsky, a1.lt:slrr. tlc o ;.rcnsarncnto e a
,:; linguagem serem diferentes enr sua origcnr, ao I ongo tlo proces- Marx e Engels afirmam, emA ideologia alemã, que_q--ljL
SO evolutivo, soldant-sc nurn todo iltrlissocilivcl clc lilrrna que, guagep_ Ç _4 qonsciência real". Bakhtin diz que a "consciência
no estágio do pensamento vcrbal, torna-so irrrpossivcl tlissociar constitui um fato socioideológico", pois a realidade da consciên-
cia é a linguagem. Segundo esse último autor, sem linguagem
,ias ideias da linguagem. Pensar.nento e linguagorn são clistintos,
:-mas inseparáveis. não se pode falar em psiquismo humano, mas somente em pro-
Por causa dessa indissociabilidade, poclc-so afirrlar que o cessos fisiológicos ou processos do sistema nervoso. pois o que
discurso materializa as representações ideol(rgicas. As ideias, as define o conteúdo da consciência são fatores sociais, que deter-
representações não existem fora dos quadros linguísticos. por minam a vida concreta dos indivíduos nas condições do meio so-
conseguinte, as formações ideológicas só ganhanr existência cial. O discurso não é, pois, a expressão da consciência, mas
nas lormaçôes di scursivas. consciência é formada pelo conjunto dos discursos interioriza
Surge, porém, um problema: se o pensamento c a lingua- dos pelo indivíduo ao longo de sua vida. O
gem são indissociáveis, onde fica a consciência individual? mo ver o mundo pelos discursos que assimila e, na maior parte
das vezes, reproduz esses discursos em sua fala.
lOÍtn dr'.ttrL§r^,s, O pensamento dominante em nossa sociedade reluta em
-t
r..-}-,\o{ar" aceitar a tese de que a consciência seja social, pois repousa so-
gsrj:fi . \ É.
bre o conceito de individualidade e concebe, assim, a consciên-
^ cia como o lugar da liberdade do ser humano. No âmago de seu
ser, ele estaria livre das coerções sociais. Desses conceitos de-
I rivam as ideias de uma liberdade abstrata de pensamento e ex-
pressão e de uma criatividade, que seria preciso cultivar, pois
ela seria a expressão da subjetividade individual.
36

A confusão dessas ideias radica-sc no prriplio oonoeito


indivíduo, porque o homem não e apenas r-rrr.ur in«lividr.ralidade
de
11 A individualidade
que reside no espírito. É também e prinoipalrrrcrrtc produto de na linguagem
relações sociais ativas e inteligentes, ou sc.jlr. tlrrc clcpendem,
como mostrava Gramsci, do grau maior otr nlcl)()r tlc intcligibi-
lidade que delas tenha o homem individual. ('orrro as rclações
de que o homem participa são, em geral, ncccssrilius, não há a
de existir um homenr livrc rlc lorlas as r:oerções
sociais. Isso nao ocorre nem mesmo intcrior rlo scr humano.
Sabemos que as normas sociais in'rpt)crtr ató rluc rlcsc.jos são ad-
missíveis e que desejos são inaclmissívcis.
O discurso, por sua vez, tanrbórrr ó tlctcrrrrinaclo por coer-
ções ideológicas. Ora, se a consciôncia c constituícla a partir
dos discursos assimilados inclivitlualnrcrltc por. nrcnrbros de um Muitas pessoas dizem que o discurso não pode ser deter-
grupo social e se o homcm e lintitaclo por rcluçõcs sociais, não minado socialmente, porque cada indivíduo expressa suas
la-ma-indiylduali dade de espírito nem unrA indiviclualidade ideias de maneira diferente. A nossa sqciedade,cultua a origina-
va absoluta. lidade de expressão e chega a sancionar negativamente a pura e
simples cópia de algo que alguém já escreveu, pintou etc.
''.Ô:Y:tiuofu .,rt,go^,ô.-(.- Impõe-se para responder a essa objeção uma última dis-
À7 tinção. O signo linguístico é formado por dois coryp9jg"L19-l: .
-
t n*ft*,Í. um çonceito e um suporte do conceito, que serve para expres-
sá-lo, manifestá-lo, veiculá-lo. Ao conceito chama-se signifi- _
' dt,tl o,J G r'*"p,-^rrre. "3cÀ;'"rü' },' ) cado ou conteúdo; ao suporte denomina-se s;ggi!!ggr.1-e*ou ex-

t i"$*r { pressão. O significado é a parte inteligível do signo, enquanto


rly,rÀ,vvors
d&" Éíl"LlLemi.ryu,r_*. _ a expressão éaparte dizivel ou sensível. O signo "árvore", por
» I tj,,plfi
exemplo, tem o significado "vegetal que atinge grandes pro-
porções e que tem o caule lenhoso". Seu significante é a ima-
gem dos sons verbais que serve para dizel para veicular o con-
ceito. Os significantes podem ser de diferentes espécies, ver-
bais, pictóricos, gestuais etc. O signo é a união de um signifi-
cante a um significado.
discurso ao plano do conteúdo. Ele é manifes-
tado por um plano de é, portanto, o
3a 39

encontro de um plano de conteúdo com unr plurro rlc cxpressão, verbal. Na primeira parte do poema "I-Juca-Pirama", de
que pode ter como material qualquer língua nalru'rrl ou um meio Gonçalves Dias, há um esquema acentual, que se repete em to-
não verbal de expressão, como o cinena, a pirrttrr.u, u gcstuali- dos os versos: -'- -l-'- -l-'- -/- r -. Esse esquema indica, por meio
dade, a fotografia etc. Neste nível surge o tcxlo. Irlrr;uanto o dis- da sucessão alternada de tempos fortes e fracos, o ritmo dos
curso pertence exclusivamente ao plano do crlntcÍrrkr, cl texto tambores da festa indígena de que fala o poema:
faz do nível da manifestação
No meio das tabas de amenos verdores,
Há necessidade de clisl i rrçlio crrlrc conteú-
do e expressão, entre imanência e manilcstação, crrlrc rliscurso e
Cercadas de troncos - cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d'altiva nação;
texto? São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Sim, pois o mesmo discurso porlc scr rturrtilcsturlo por di- Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.
ferentes textos e podcm scr col)l de
expressão diversos. Um conteúclo como "ncglçlio" porlc ser tex- No verso "Pedras, pingos pulam de alegria" do poema
tualizado por signos verbais, como "não", "rtri'."rtort", ou pelo "Chuva de pedra", de Augusto Meyer, a aliteração do lpl imita
gesto de mover a cabeça de um lado para oLrlro rlivcrsus vezes. o saltitar das 'ogotas duras". A vibração do raio é mostrada pela
O beijo da mulher-aranha foi maniÍêstado vcrbrrlrrrcntc. num li- aliteraçáo do [r/ nos versos de Raimundo Correia: "E o céu da
vro, e cinematograficamente (união da cxprcsslio visrral, vcrbal Grécia, torvo, carregado,/ Rápido, o çâio, útilo, retalha". A as-
etc.). Se o mesmo conteúdo pode manifcslur-sc por.tlilcrcntes sonância do lil,no verso "Tíbios flautins finíssimos gitavam",
planos de expressão, a distinção entrc irnanôncil c rrraniÍôsta- de Bilac, manifesta o som do flautim.
ção, entre discurso e texto, deve ser feita. Como mostra Dámaso Alonso, no verso de Garcilaso o'ces-
Mas aí poderia alguém objetar: quando urn tlisoLrrso é ex- tillos blancos de purpúreas rosas", o vermelho das rosas ofereci-
presso por dois textos diferentes, ambos rcprorlrrzcnr o scntido das à ninfa morta é destacado certamente pelo contraste com o
básico do discurso, mas cada um apresenta ccr{us poc:uliaridadcs branco dos cestinhos em que eramtrazidas. Esse contraste, po-
significativas. Assim, o filme O beiio da mrrllt,'t'-,u trrlr,r nào é rém, é reforçado pela ordem quiástica das palawas dos dois blo-
exatamente igual ao livro. Tal afirmação está corrcta, 1-xris, no ní- cos, isto é,pela construção em forma de x (substantivo/adjetivo
I vel da manifestação, significados novos agreganl-sc ao cliscurso vs. adjetivo/substantivo), pelo contraste dos timbres a e unos ad-
e outros conteúdos deixam de ser veiculados, clcvido t\s coerções jetivos e pelos acentos colocados sobre essas duas vogais.
do material e aos efeitos estilísticos da exprcssuo. A coerção do material é responsável pelo fato de determi-
Os efeitos estilísticos da expressão estabclcccn.r urra ho- nados aspectos do sentido serem mais bem expressos por um ti-
mologia entre expressão e conteúdo, procurando maniÍbstar o po de manifestação do que por outro. A cor tem uma importân-
conteúdo na expressão e não apenas pela exprcssão. C-or.r.r os cia muito grande no filme Gritos e sussurros, de Ingmar
efeitos estilísticos da expressão, quem, por exer.nplo, escreve Bergman. Há todo um sentido derivado do contraste entÍe os
não apenas fala de um conteúdo, mas recria esse conteúclo no tons escuros e os tons claros e luminosos. Dificilmente esse
plano da expressão. Vejamos como isso funciona na linguagem sentido seria bem revelado por um plano de expressão verbal.
40

Por outro lado, no soneto de Camões'Arnor c lilgo que arde", o 12 A trapaça discursiva
poeta combina figuras, numa tentativa de clcl'inir o ar.nor. Nos
onze primeiros versos, busca essa definição, pitssando por vá-
rias categorias linguísticas. Acaba, no entatrlo, por abandonar
suas tentativas, porque cada uma das delirriçircs crlocrra uma
contradição (exemplo: 'Amor é fogo que artlc scnr so vcr,/ E fe-
rida que dói e não se sente"). No final, o pocla nl()slra sua per-
plexidade numa interrogação e contenta-sc crrr tlualiÍ'icar o
amor com uma simples atribuição ("Mas conlo carlsar pttclc seu
favor/ Nos corações humanos amizade,l Sc tiio conlritrio a si é
o mesmo amor?"). Esses efeitos de sentido tliÍ'icilnrcntc pode-
riam ser manifestados por um plano de cxprcsslio rrão vcrbal, Enquanto o discurso é a materialização das formações
pois aí tem importância capital a estrutura sinlálicl cla tlol'inição ideológicas, sendo, por isso, determinado por elas, o texto é
(sujeito que contém o termo a ser definide 1 vcrbo scr no pre- unicamente__g4r lugar de manipulação consciente, em que o ho-
sente do indicativo + predicativo que encerra a tlcÍ'irrição), que mem organiza, da melhor maneira possível, os elementos de
se repete ao longo dos onze primeiros versos cl<l poctla. expressão que estão a sua disposição para veicular seu discurso.
I
Essa coerção ocorre também quando usilnr()s rtrtta Iíngua O texto é, pois, individual, enquanto o discurso e social. Há um
natural e não outra. Daí a dificuldade da tradtrção tlo lcxto poé- nível grande de liberdade no âmbito da textualização, enquan-
I
tico, que fazlargo uso dos efeitos estilístioos rlc cxprcssão. A to, no nível discursivo, o homem está preso aos temas e às figu-
tradução do texto poético deve ser uma recriaçã«r, pois caso con- I
ras das formações discursivas existentes na formação social em
trário os efeitos estilísticos se perdem. Se traduzir-ruos o verso que está inserido.
virgiliano "Et stetit illa tremens" por "E ela (a cspacla) parou ,

Todos os discursos têm, para usar uma expressão de


tremendo", perderemos o valor sonoro do trcmor, tlado pcla ali-
Edward Lopes, uma "função citativa" em relação a outros dis-
teraçáo do ltl.
cursos. Por isso, ele não é único e irrepetível. Na medida em que
Em síntese, o mesmo discurso pode ser maniítstado por
'I é determinado pelas formações ideológicas, o discurso cita ou-
I diferentes meios de expressão. Nessa manifestação, atuarão as
tros discursos. Os mesmos percursos temáticos e figurativos se
coerções do material e agregar-se-ão os conteúclos engendrados
J á
repetem. O percurso temático da "salvação dapatría" foi usado
l-nelos efeitos estilisticos da expressão. O
ruido do chiar das ro- ü milhares de vezes pelos que falavam a palavra do poder depois
das de uma carroça, que acompanha monotonamente, no filme
de 1964. No imaginário da classe média, o tema do "luxo" e do
Vidas secas, aretirada da família de Fabiano, não aparece nem $
poderia aparecer no livro, cujo plano de manifestação c verbal.
"requinte" é figurativizado por "baixelas de prata, porcelanas,
$
tapetes persas, poltronas de veludo, quadros etc." Porque o dis-
I
curso tem essa função citativa, a liberdade discursiva é muito
pequena, quando não é nula. O enunciador é o suporte da ideo-
42

[o.g1& yale dizer, de discursos, que constitucrn a matéria-prima 13 Falar ou ser falado?
.com que elabora seu discurso. Seu dizer é a rcprodução incôns:-"-
ciente do dizer de seu grupo social. Não ó livrc para dizer, mas
coagido adizer o que seu grupo diz.
JâgJgLtp; individual. O falante organizit sttit tnaneira de
veicular o discurso. A ilusão da liberda«le discursiva tcm sua ori-
I
gem nesse fato. O discurso simula ser indivitlual, porclue aquilo
que, em si, não tem sentido, o plano da cxprcssão, c o campo da
organização individual, é o plano da maniÍcslução pcssoal. No
entanto, deve-se ressaltar que essa indivirlualirlado c objetivada,
umayez que é formada por meio de opcraçõcs rnoclclizantes de
aprendizagem, que incluem a formação linguíslica, rctórica e de O falante, suporte das formações discursivas, ao construir . '
procedimentos de formas de elocução. l'-orrnas clc clizcr o discur- seu discurso, investe nas estruturas sintáticas abstratas temas e
so são aprendidas e estão de acordo corl as tradiçõcs culturais de figuras, que materializam valores, carências, desejos, explica-
uma sociedade. Muitas pessoas buscaram, numa ccrta época, ções, justificativas e racionalizações existentes em sua
forma-
textualizar como Rui e Coelho Neto ou versejar como Bilac. ção social. Esse enunciador não pode, pois, ser considerado
Como o mesmo discurso pode manifestar-se cnr diferen- uma individualidade livre das coerções sociais, não pode ser
tes textos, a liberdade de textualizar é muito grarrdc, estando visto como agente do discurso. Por ser produto de relações S.o- -.
condicionada apenas pelos processos moclclizar.rtcs dc aprendi- ciais, assimila uma ou várias formações discursivas, que exts- .. i:
tem em sua formação social, e as reproduz em seu discurso. E --
t..zagem, ou seja, pela tradição textual. O discurso ó, pois, o lugar
texto é o espaço da "liberdade" nesse sentido que se diz que ele é qupolte de discursos
^, das coerções sociais, enquanto o
,_individual. Como diz Edward Lopes, Se o enunciador é o suporte de um discurso que ele repro-
duz, quem é o agente discursivo? Na medida em que as forma-
combinando uma simulação com uma dissimulação, o discurso é
ções discursivas materializam as formações ideológicas e estas
uma trapaçai ele simula ser meu para dissimular que é do outro.
*- estão relacionadas às classes sociais, os agentes discursivos são
Essa dissimulação ocorre porque um plano de manifesta- as classes e as frações de classe. Tornamos a lembrar que, embo-
ção individual é que veicula um plano de conteúdo social. ra haja diferentes formações discursivas numa formação social,
Assim, o discurso simula ser individual para ocultar que é so- a formação discursiva dominante é a da classe dominante.
cial. Ao realízar essa simulação e essa dissin-rulação, a lingua- O "árbitro" da discursivização não é o indivíduo, mas as
gem serve de apoio para as teses da individualidade clc cada ser classes sociais.- O indivíduo não pensa e não fala o que quer,
humano e da liberdade abstrata de pensamento e dc cxpressão. mas o que a realidade impõe que ele pense e fale.
O homem coagido, determinado, aparece como criatura absolu- Poderiam objetar: essas concepções não são muito restri-
tamente livre de todas as coerções sociais. tivas? Afinal, sendo o homem um "animal racional", organiza

/AI i l,

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, ,'-''-r "
44
I

seu discurso Çomo quer para exprimir o qrrc r;rriscr. Deve-se


contestar essa liberdade absoluta do ser hrrrrrarro, 1-lois, como já 14 Arena de conflitos
mostramos, sendo ele produto de relaçõcs sociuic. rlgc! reage,
pensa e fala, na maior parte das vezes, conl() os rrrcnrlrros de seu
e palco de acordo
grupo social. Além disso, as ideias que tcrrr i) tlisp«rsição para te-
matizar seu discurso são aquelas veiculaclls nir socicclaclc em l

que vive. É claro que, com isso, não sc cxclrri lr possibiliclade de


o homem elaborar um discurso crítico, rliÍcrcrrtc, porlarrto, dos
discursos dominantes. No entanto, cssc rliscurso crílico não sur-
ge do nada, do vazio, mas se constitui a par.lir rkls conÍlitos e
das contradições existentes na realidutlc.
A aprendizagem linguística, quc ó a uprcnrlizuucrn de um
',, discurso, cria uma consc:iêm:iu verbal, quo unc carla ilrclivíduo

iaos membros de seu grupo social. Por isso, a aprcnclizagcnt lin- Se um discurso cita outro discurso, ele não é um sistema
guística está estreitamente vinculada à produção clc urtrit identi- fêchado em si mesmo, mas é uq-.hlg11 de tfgcas enunciativa,s,
dade ideológica, que é o papel que o inclivíduo cxcrcc no inte- em que a história pode inscrever-se, uma vez que é um espaço
rior de uma formação social. conflitual e heterogêneo ou um espaço de reprodução. Um dis-
Na medida em que o homem é suportc dc lorrrraçõcs dis- curso pode aceitar, implícita ou explicitamente, outro discurso,
cursivas, não fala, mas é falado por um disctrrso. pode rejeitá-lo, pode repeti-lo num tom irônico ou reverente.
Por isso é que 9 discurso é o espaço da reprodução, do conflito
ou da heterogeneidade. As relações interdiscursivas podem, as-
sim, ser contratuais ou polêmicas.
Dois discursos que consideram o brasileiro um homem
cordial, pacífico, que cultua a conciliação, mantêm entre si uma
relação contratual. Um tipo de discurso religioso segundo o
qual o homem deve conformar-se com sua situação na Terra
para ganhar o reino de Deus está em relação polêmica com ou-
tro para o qual o reino de Deus deve começar a ser construído
aqui na Têrra pela implantação da justiça e que todos os homens
devem lutar para que isso se efetive.
Um discurso semprc cita di texto
citar outro texto. s entre os textos podem também ser
46
I 47

A "Canção do exílio", de Gonçalves Dias, tornou-se um Vejamos uma parte desse texto
clichê. Aparece até nos seguintes versos do IJino Nacional:
Senhoras:
Do que a terra mais garrida Não pouco vos surpreenderá. por certo, o endereço e a literatu-
Teus risonhos lindos campos têm mais flores. ra desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas
Nossos bosques têm mais vida. de saudade e muito amor, com desagradável nova. É bem ver-
Nossa vida, no teu seio, mais amores. dade que na boa cidade de São Paulo - a maior do universo
no dizer dos seus prolixos habitantes - não sois conhecidas
Neste ponto, o Hino Nacional quer evocar a atitude ufa- por "icamiabas", voz espúria, senão que pelo apelativo de
nista de exaltação à pátria que o texto gonçalvino expressa. Amazonas; e de vós se afirma, cavalgardes ginetes belígeros e
Temos aí uma relação contratual entre os dois textos. No entan- virdes da Hélade clássica; e assim sois chamadas. Muito nos
pesou a nós, lmperator vosso, tais dislates da erudição, porém
to, o clichê pode ser inserido noutro contexto com intenção pa-
heis de convir conosco que, assim, ficais mais heroicas e mais
rodística, como acontece com o mesmo poema de Gonçalves conspícuas, tocadas por essa pátina respeitável da tradiçáo e
Dias, ao ser usado na "Canção do exílio,,, de Murilo Mendes: da pureza antiga. Mas não devemos esperdiçarmos vosso
tempo fero, e muito menos conturbarmos vosso entendimento,
Minha terra tem macieiras da Califórnia com notícias de mau calibre; passemos, pois, imediatamente,
onde cantam gaturamos de Veneza. (...) ao relato dos nossos feitos por cá.
Nossas flores sáo mais bonitas,
Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partíramos,
Nossas frutas, mais gostosas, quando a mais temerosa desdita pesou sobre Nós. Por uma
Mas custam cem mil-réis a dúzia! bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a mui-
Ai. quem me dera chupar uma carambola de verdade raquitá; que outrem grafara muraquitã, e, alguns doutos, ciosos
e ouvir um sabiá com certidáo de idadel de etimologias esdrúxulas, ortografam muyrakitan e, até
mesmo, muraqué-itá, não sorriais! Haveis de saber que esse
Um bom exemplo de polêmica textual é dado pelo texto vocábulo, tão familiar às vossas trompas de Eustáquio, é quase
intitulado "Carta pras icamiabas", que faz parte do livro desconhecido por aqui. Por estas paragens mui civis, os guer
Macunaíma, de Mário de Andrade. Nele o narrador utiliza uma reiros chamam-se polícias, grilos, guardas-cívicas, baxistas,
maneira de textualizar que, pelo preciosismo léxico, por certas legalistas, masorqueiros etc., sendo que alguns desses termos
I
estruturas sintáticas e por determinados maneirismos textuais, sáo neologismos absurdos - bagaço nefando, com que os des-
aproxima-se do modo de textualização dos autores parnasianos leixados e petimetres conspurcam o bom falar lusitano. Mas
l
não nos sobra já vagar para discretearmos "sub tegmine fagi",
ou pré-modernistas. Usa, com ironia, esses procedimentos de
sobre a língua portuguesa, também chamada lusitana. O que
feitura do texto. Cita até mesmo os primeiros versos do episó- vos interessará mais, por sem dúvida. é saberdes que os guer-
dio do Gigante Adamastor de Os lusíadas: reiros de cá não buscam mavórticas damas para o enlace epi-
talâmico; mas antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis
Porém já cinco sóis eram passados Á
por pequenas e voláteis folhas de papel a que o vulgo chama-
Oue dali nos partíramos, cortando rá dinheiro - o "curriculum vitae" da Civilizaçáo, a que hoje
Os mares nunca de outrem navegados... fazemos ponto de honra em pertencermos.
4A

Ao ironizar o texto dos autores do final do século XIX e


começo do século XX, o narrador irontza também as concep-
15 Análise não é
ções desse período, isto é, seu discurso. Quarrdo unr discurso ci- investigaçáo policial
ta outro discurso, os textos que os veiculam não precisam ne-
cessariaurente remeter um ao outro, mas, quando um texto
cita outro texto, os discursos veiculados por eles também
se citam.
Discurso e texto são ambos arena de conflitos e palco de
acordo.
conflitos e acordos são sociais. Só se pode, pois, falar
em contrato e polêmica entre textos e porque expres-
sam conflitos e acordos existentes na realidadc social

Alguns teóricos dizem que não se pode falar na posição


ideológica do enunciador, pois ele pode ocultar sua verdadeira
visão de mundo, construindo um discurso que revele uma outra
ideologia. É evidente que, sendo o falante suporte das várias
formações discursivas presentes numa formação social, pode
construir dirscursos que revelem diferentes visões de mundo.
Saber, entretanto, se o falante revela ou não sua verdadeira vi-
são de mundo, ao enunciar um discurso, não é problema do ana-
lista do discurso, uma vez que a análise não é investigação po-
licial. Preocupa-se ela não com o enunciador real, mas com o
enunciador inscrito no discurso, ou seja, com aquele que no in-
terior do discurso diz eu.
A análise vai mostrar*q.que formação discursiva pertence
determinado discurso. O sujeito inscrito no discurso é um "efei-
to de sentido" produzido pelo próprio discurso, isto é, seus te-
mas e suas figuras é que configuram a "visão de mundo" do su-
jeito. Se, do ponto de vista genético, as formações ideológicas
I materializadas nas formações discursivas é que determinam o
discurso, do ponto de vista da análise, é o discurso que vai re-
velar quem é o sujeito, qual é sua visão de mundo.
50 51

O que importapara o analista é que todo discurso desve- ,r lrorrrcm não é apenas bom ou mau, mas é um ser complexo,
la uma ou várias das visões de mundo existentcs numa forma- unlir vez que é a mistura dos quatro elementos que deram ori-
ção social. O homem não escapa de suas coerções nerl mesmo t,('n) ao mundo. Critica a ideia da liberdade absoluta do ser hu-
quando imagina outros mundos. Na ficção científica, por exem- nulno, segundo a qual o homem age movido por sua consciên-
plo, em que o homem cria outros universos, revela os anseios, cirr, pois Lúcia se figurativizou como "lama" e "laya" porque
os temores, os desejos, as carências e os valores da sociedade stllieu coerções que a fizeram tornar-se, na aparência, um ser
em que vive. rlo elemento terra, quando, na essência, conservava a pureza e
Quando o discurso [em, em seu interior. um único enun-
l paixão divina.
í A análise, em síntese, não se interessa pela "verdadeira'\
lciador, revela apenas uma visão de mundo. Se tornarmos um
discurso pronunciado pelo presidente Médici, veremos que ele posição ideológica do enunciador real, mas pelas visões del
tem um só enunciador e que revela, portanto, uma só ideologia. rnundo dos enunciadores (um ou vários) inscritos no discurso. I
No entanto, num romance, há vários enunciadores de segundo
grau (personagens) a quem o narrador delega voz. Essas perso- § +th^ü ,*rv'ttfr| y
nagens podem manifestar diferentes visões de mundo. Por
exemplo, no romance Germinal, de Zola, proletários opõem-se
a
,u-uw -"tv-
a burgueses. Etienne Lantier, líder dos mineiros, por exemplo,
mostra uma "visão de mundo" proletária, enquanto persona-
gens como M. Grégoire e M. Hennebeau manifestam uma visão
burguesa de mundo.
Além das diferentes visões de mundo apresentadas pelas
personagens, o narrador pode ou não tomar partido por uma
das ideologias reveladas na obra. O narrador de Lucíola, por
exemplo, diz que vai mostrar que o "lírio viceja no lodo" e figu-
rativiza Lúcia como um ser composto da união dos quatro ele-
mentos primordiais, aterra, a água, o fogo e o ar. Com efeito, há
na obra a união da terra e da água, alama ("a lama deste tanque
é o meu corpo"); a reunião do fogo e da terra, a lava ("escaldar-
-me da lava que corria de seu corpo"); o englobamento do ar e
da ágloa ("o meu pensamento, impregnado de desejos lascivos,
se depurava de repente, como o ar se depura com as brisas do
mar que lavam as exalações daierra"); a união do ar e do fogo
("irradiação íntima do fogo divino"). Com suas afirmações e
com o uso dessa configuração discursiva, o narrador mostra que
53

,rrrr:r scgunda que diz ser a_linguagem produto de uma conven-


16Odiscursoéreflexo irrbitrária ou da função simbólica peculiar à psique humana.
r,;r()

da reahdade? Que é que determina, porém, essa imagem do mundo?


I)izcr que a linguagem, que contém essa imagem do mundo, é
;rroduto de uma convenção arbitrínia é utílizar, para a explica-
çrio da gênese da linguagem, um axioma impossível de provar e
rplc, por isso, é colocado na categoria dos elementos teóricos in-
tlor.nonstráveis. A tese da linguagem como resultado de uma
convenção arbitrâria é a aplicaçáo para as línguas naturais do
princípio de constituição dos sistemas simbólicos especiais, co-
nro, por exemplo, os sinais de trânsito ou os símbolos matemá-
ticos. Afirmar, por outro lado, que a linguagem é uma das for-
mas de simbolização particular à psique humana é deixar o pro-
Os filósofos idealistas sempre afirmaram que a lingua- blema sem solução, pois o que queremos saber não é se a lin-
gem cria uma imagem do mundo. Que querem dizer esses filó-
guagem forma ou não uma imagem do mundo. mas o que é que
sofos com essa afirmação? A linguagem contém uma visão de determinou essa visão contida na linguagem. Foram fatores bio-
mundo, que determina nossa maneira de perceber e conceber a lógicos? Foi uma força superior? Foram outros fatores? Quais?
realidade, e impõe-nos essa visão. A,*linguagem é como um Segundo Schaff, onde param os filósofos idealistas que consi-
molde, que ordena o caos, que é a realidade em si. Como a lin- deram a linguagem produto da função simbólica começa o ver-
guagem dá forma a esse caos, determinando o que é uma coisa, dadeiro problema da filosofia da linguagem.
um acontecimento etc., cria uma imagem ordenada do mundo. Só há uma resposta para esse problema: a linguagem cri\
Cada língua ordena o mundo à sua maneira. Assim, por exem- a imagem do mundo, mas é também produto social e histórico.f r.
plo, o português categoriza como duas cores distintas o verde e Assim, a linguagem "criadorade uma imagem do mundo e tam-\
o azul, enquanto o japonês considera-as matizes de uma só cor, bém criação desse mundo". A linguagem formou-se, no decor-J
designando-as por aoi. Isso não significa que os japoneses não rer da evolução filogenética, constituindo um produto e um ele-
percebam a diferença real que existe entre o verde e o azul, mas mento da atividade prática do homem. À medida que os siste-
que tais diferenças são colocadas na categoria dos matizes de mas linguísticos se vão constituindo, vão ganhando certa auto-
uma mesma cor. Os exemplos poderiam ser multiplicados. nomia em relação às formações ideológicas. Entretanto, o com-
I O fundamental a ressaltar nas teorias idealistas, no entan- ponente semântico do discurso continua sendo determinado por
to, é que a ljnguagem tem um papel ativo no processo de aqui- fatores sociais. É esse componente que contém a visão de mun-
I siçào do conhecimento. Essa tese. como mostra Adam Schaff. do veiculada pela linguagem. Por isso, essa visão de mundo não
constitui o elemento raôional das teorias idealistas. Entretanto, é arbitrârra, mas resulta de fatores sociais, não podendo, por
essa primeira tese está associada, implícita ou explicitamente, a conseguinte, scr alterada em razã,o de uma escolha arbitráxía.
54 55

Assim, o que está na consciência é provocado por algo exterior Quando Wilhelm Stock traduzia Antero de Quental para o
a ela e independente dela. ,rlr:nrão, escreveu ao poeta português, mostrando a dificuldade
Os filósofos materialistas dizem que a linguagem é refle- tlc verter para o alemão o soneto "Mors-Amor", porque o poe-
xo da realidade. O termo "reflexo" é uma metál'ora c, por isso, rrrir joga com a oposição masculino/feminino em função das
prestou-se a toda sorte de confusões. O componcntc semântico tlrras figuras alegóricas o Amor e a Morte - e essas duas pala-

sofre determinações sociais, mas tem um papel ativo no proces- vras têm gêneros opostos em português e em alemão (Die Liebe
so de aquisição do conhecimento. Isso significa que a linguagem c Der Tod). Em sua resposta, Antero diz que os falantes das lín-
condensa, cristaliza e reflete as práticas sociais, ou scja, é gover- guas neolatinas figurativizam a morte como mulher e conclui
nada por formações ideológicas. Ao mesmo tempo, porem, em lulirmando que
' " qrr" é determinada é determinante, pois ela "cria" uma visão de a imaginação (e por conseguinte o pensamento) ainda onde
I mundo na medida em que impõe ao indivíduo uma certa manei- parece ser tão espontânea, é escrava de acidentes linguísticos
\ra de ver a realidade, constituindo sua consciência. como aqueles que fizeram que a palavra mors, há inúmeros
É preciso considerar, quando se diz que a linguagem refle- anos, quando se formou em latim, fosse do gênero feminino.

te a realidade (seja seu nível aparente, seja seu nível de essên- Carolina Michaelis de Vasconcelos, a propósito do mes-
cia), que o espírito humano não é passivo e que sua função não nro assunto, comenta que os falantes do alemão representam a
consiste apenas em refletir a realidade. Isso significa que o dis- morte como um cavaleiro esquelético, montado em fogosíssimo
curso não reflete uma representação sensível do mundo, mas corcel.
*, urnâ categorizaçáo do mundo, ou seja, uma abstração efetuada
A linguagem tem influência também sobre os comporta-
r pela prática social. A percepção pura não existe. Pelo contrário, mentos do homem. O discurso transmitido contém em si, como
certos dados da psicologia autorizam adizer que a percepção é parte da visão de mundo que veicula, um sistema de valores, is-
guiada pela linguagem. Porque o homem age e transforma a to é, estereótipos dos comportamentos humanos que são valori-
realidade, não a apreende passivamente. A forma de apreensão zados positiva ou negativamente. Ele veicula os tabus compor--
depende do sujeito cognoscente, isto é, do gênero de práÍica, tamentais. A sociedade transmite aos indivíduos com a lin-
acumulada na filogênese e na ontogênese, de que dispõe. E por -
guagem e graças a ela- certos estereótipos, que determinam
I

isso que uma mesma realidade pode ser apreendida diversamen- certos comportamentos. Esses estereótipos entranham-se de tal
te por homens distintos. modo na consciência que acabam por ser considerados naturais.
A consciência humana depende, pois, da linguagem assi- Figuras como "negro", "comuÍlista", "puta" têm um conteúdo
milada. Não só os elementos semânticos, diretamente determi- cheio de preconceitos, aversões e hostilidades, ao passo que ou-
nados pelas formações ideológicas, mas também as categorias tras como "branco", "esposa" estão impregnadas de sentimen-
linguísticas que gozam de uma certa autonomia em relação tos positivos. Não devemos esquecer que os estereótipos só es-
às formações sociais exercem um papel ativo na percepção tão na linguagem porque representam a condensação de uma
do mundo. prática social.
56

Para mostrar como o conteúdo de um vclcábulo está reple- 17 IJm exemplo: a


to de valores negativos, tomemos alguns trechos dc uma enque-
terealizadapelo jornal Repórter, ne 30, jun. l9tt0, a rcspeito do
I

I
igualdade burguesa
significado da palavra "comunismo":
I
Comunista é um ateu cheio de complexos contra a rl
rl

democracia. Anda insuflando a desarmonia e defendendo seus


'l
pontos de vista.
Comunismo é um tipo de bagunça, uma cambada de
desordeiros.
Sou contra o comunismo, interferem na liberdade do
povo, tomam toda proprledade do indivíduo, é um roubo qua-
lificado e descarado.
Comunismo é algo de ruim para o país. Acontece que
ocorre o seguinte: o patráo faz você de escravo, você não tem No caso dos textos não figurativos, as coerções ideológi-
direito de almoçar, de ter um tempinho pro café. E só trabalho,
cas manifestam-se, com toda nitidez, no nível dos temas.
trabalho, assim náo dá.
Tomemos um texto para ilustrar essa afirmação. O texto esco-
Pode-se concluir que o discurso é, ao mcsltto tcn-rpo, prá- lhido é um trecho de uma circular ao séiviço público da França
tica social cristalizada e modelador de uma visão dc tnundo. revolucionária, datado de maio de 1794.
* Ü alg .ií.r- ,ô* O funcionário público, acima de tudo, deve desfazer-se
h'"U"*-
F da roupagem antiga e abandonar a polidez forçada, tão incon-
sistente com a postura de homens livres, e que é uma relíquia
do tempo em que alguns homens eram ministros e os outros,
seus escravos. Sabemos que as velhas formas de governo já
. desapareceram: devemos até mesmo esquecer como eram. As
maneiras simples e naturais devem substituir a dignidade arti-
I
ficial que frequentemente constituía a única virtude de um
chefe de departamento ou outro funcionário graduado. Decên-
cia e genuína seriedade são os requisitos exigidos de homens
dedicados à coisa pública. A qualidade essencial do Homem na
I

Natureza consiste em ficar de pé. O jargáo ininteligível dos


velhos ministérios deve dar lugar a um estilo simples, claro,
conciso, isento de expressoes de servilismo, de formas obse-
quiosas, indiretas e pedantes, ou de qualquer insinuação no
sentido de que existe autoridade superior à razáo e à ordem
estabelecida pelas leis - um estilo que adote atitude natural
58 59
I
em relaçáo às autoridades subalternas. Não deve haver Írases urn jargão ininteligível, um estilo empoladoprolixo, um texto
e
convencionais, nem desperdício de palavras (Apud Lasswell, rcpleto de expressões de servilismo, de formas obsequiosas, in-
Harold & Knplnru, Abraham. A linguagem da política. Brasília,
rliretas e pedantes, de frases convencionais, Esse discurso sem-
EUB, 1979. p.43).
pre insinua que há uma autoridade que se coloca acima darazáo
O texto trata das atitudes que deve ter o funcionário públi- c da ordem estabelecida pelas leis, ou seja, que existem autori-
co da França revolucionária. Opõe o serviço público do novo re- rlades por direito divino ou que ocupam sua posição em virtude
gime ao do antigo. Ao fazer essa oposição, aparecem sob o tex- cle seu nascimento. A dignidade artificial vigente no serviço
to dois discursos: o que mostra como eram os funcionários pú- público do antigo regime engendra um discurso ininteligível,
:blicos do antigo regime e o que explica como devem ser os do pedante, convencional e prolixo, enquanto o servilismo gera a
\.novo. Assim, o discurso propõe um_dever-fazer e obsequiosidade. A uma ordem social baseada nos princípios de
um não-dever-
-fazer. Esses discursos dividem-se em duas partes: uma que dis- igualdade e de liberdade correlacionam-se um estilo claro, sim-
cute as atitudes dos funcionários e uma que trata do problema ples e conciso, um texto despido de expressões de servilismo,
do discurso utilizado nas repartições. de formas obsequiosas, indiretas e pedantes, em que não há des-
No que concerne às atitudes, a polidez forçada e a digni- perdício de palavras nem frases convencionais. Esse discurso
dade artificial devem ser substituídas por maneiras simples e deixa patente que não há autoridade superior àrazào e à ordem
naturais e pela decência e genuína seriedade. O servilismo, fru- estabelecida pelas leis.
to da divisão entre ministros e escravos, deve desaparecer. O Aparecem no texto três temas básicos da ideologia burgue-
funcionário não pode ser servil aos ministros, porque o homem sa:_a liberdade, a igualdade e a naturalidade das relações sociais.
nanatvreza fica em pé, numa atitude digna, e não curvado dian- As relações sociais, fundadas na liberdade e na igualdade,
te dos outros. No antigo regime, os funcionários graduados ti- são naturais porque decorrem de um fator biológico. Do ponto de
nham uma dignidade artificial, enquanto os subalternos eram vista da natureza humana, os homens são livres e iguais, uma vez
servis. Como todos os homens são, por natvÍeza,livres e iguais, que são "animais racionais". O homem subordina-se apenas à ra-
os funcionários do novo regime devem cultivar apenas a decên-
cia e a seriedade. A referência a ministros e escravos opõe te-
I zão e à ordem estabelecida pelas leis. Ambas fazem suas coer-
ções incidirem sobre todos os homens, não podendo ninguém
mas que definem cada um dos dois regimes: liberdade vs. não furtar-se a elas. A igualdade é, então, formal: todos são iguais pe-
liberdade e igualdade ys. não igualdade. Ao explicar que o ho- ranie a lei. Por outro lado, ao colocar no texto o vocábulo "escra-
mem na natureza fica em pé e não curvado e ao considerar esse vo", o enunciador mostra que a liberdade é individual, ou seja,
traço um elemento definitório do homem, o texto mostra que to- nenhum homem está sujeito a outros por laços de dependência
dos os homens são iguais e que essa igualdade está radicada pessoal, mas somente à autoridade darazáo e das leis.
num fator biológico, sendo, portanto, natural. Os homens são Pelo que vimos no capítulo dedicado ao conceito de ideo-
iguais porque eles são seres humanos. logia, os temas deste texto constroem-se a partir de formas apa-
. O texto afirma que o discurso reflete as relações sociais. rentes da realidade. Não está em questão, porque não o está na
A uma ordem social fundada na desigualdade correspondem ideologia burguesa, o problema não formal da igualdade e da li-
60

berdade. O discurso, refletindo o nível da aparência darealida-


_, de, consideraarazão como um fato que independe das coerções
18 Outros exemplos: reprodução
sociais e a lei como algo vinculado a um suposto ..interesse ge- e polêmica
(I ral". Não vê, assim, a desigualdade presente na sociedade
bur-
guesa e a subordinação de uma classe à outra. Ao dizer que o
funcionário público está sujeito à lei e à razão, mostra um
Estado que parece decorrer da "vontade coletiva,, que se encar-
rega da promoção do bem comum.
O nível temático, que concretiza o dever-fazer e o não-de-
ver-fazer presentes na estrutura profunda do texto, revela uma
dada visão de mundo determinada, em última instância, pela
infraestrutura econômica.
t t-i-t-"rr}- af * Tomemos agora exemplos de textos figurativos. O primei-
í t'arÊre
ro é de um autor naturalista chamado Inglês de Sousa. Pertence
. /Jj:''l iro romance O misstonário, que conta a história de Pe. Antônio
tlc Morais. Do pai o padre herdara um caráter indolente, como-
clista e sensual. Na infância, fora criado de maneira muito livre,
a saciar

o apetite sem peias nem precauçóes nas goiabas verdes, nos


araçás silvestres, nos taperebás vermelhos. sentindo a acidez
irritante da fruta umedecer-lhe a boca e banhá-la em ondas de
uma voluptuosidade bruta.

Quando jovem, foi enviado pelo padrinho a um seminário


onde devia ilustrar-se. A educação severa deu-lhe uma camada
de virtudes. Depois de ordenado, é mandado para Silves como
vigário. Diante da monotonia de suas tarefas resolve partir em
missão catequizando índios qual um novo Anchieta. Na selva,
conhece Clarinha com quem vive um tempo de prazer.
O texto escolhido é exemplar no sentido de revelar temas
e figuras de uma dada formação discursiva:

Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda rapariga


que lhe ocupara o coração. A sua natureza ardente e apaixonada,
extremamente sensual. mal contida até entáo pela disciplina do

!--
62
r 63

Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a crença na sua predes-


nam. Na segunda metade do século XIX, ocorre um grande pro-
tinação, quisera saciar-se do gozo por muito tempo desejado, e
gresso científico. O interesse da burguesia era dominar a nature-
sempre impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de Morais, o
devasso fazendeiro do lgarapé-mirim, se o seu cérebro não fosse za, otr seja, conhecer seus segredos com a finalidade de poder
dominado por instintos egoísticos, que a privação dos prazeres manipulá-la, colocando-a a serviço da produção. O conhecimen-
açulava e que uma educação superficial não soubera subjugar. E to científico deve resultar numa técnica que racionalize o ffaba-
como os senhores Padres do Seminário haviam pretendido des- lho e aumente a produção. Os fenômenos sociais, no bojo do pro-
truir ou, ao menos, regular e conter a açâo determinante da here-
cesso de naturalizaçáo da ordem social, devem ser explicados pe-
ditariedade psicofisiológica sobre o cérebro do Seminarista?
Dando-lhe uma grande cultura de espírito, mas sob um ponto de lo método científico, que se quer totalmente objetivo. Temos, en-
vista acanhado e restrito, que lhe excitara o instinto da própria tão, o primado do dado, do fato, da observação sobre a especula-
conservação, o interesse individual, pondo-lhe diante dos olhos, ção. O positivismo torna-se a explicação do progresso social.
como supremo bem, a salvação da alma, e como meio único, o
Todos os fatos sociais são explicados por determinações
cuidado dessa mesma salvação. Oue acontecera? No momento
dado, impotente o freio moral para conter a rebelião dos apeti- mecânicas, por uma série de leis similares às que regem os fe-
tes,o instinto mais forte, o menos nobre, assenhoreara-se nômenos naturais. O homem é visto como um ser condicionado
daquele temperamento de matuto, disfarçado em padre de mecanicamente pelo meio, a hereditariedade e o momento.
S. Sulpício. Em outras circunstâncias, colocado em meio diverso, Taine diz que "a virtude e o vício são.produtos da nafixeza co-
talvez que Padre Antônio de Morais viesse a ser um santo, no mo o açúcar e o vitríolo". Com essas explicações, instaura-se
sentido puramente católico da palavra, talvez que viesse a reali-
uma concepção fatalista da história.
zar a aspiraçáo da sua mocidade, deslumbrando o mundo com o
fulgor das suas virtudes ascéticas e dos seus sacrifícios inaudi- As ciências humanas são invadidas por concepções e prin-
tos. Mas nos sertôes do Amazonas, numa sociedade quase rudi- cípios retirados das ciências naturais. Difundem-se pela linguís-
mentar, sem moral, sem educação... vivendo no meio da mais tica, por exemplo, as concepções darwinianas sobre a origem
completa liberdade de costumes, sem a coação da opinião públi-
das espécies, a seleção natural e a luta pela vida. A língua era
ca, sem a disciplina duma autoridade espiritual fortemente cons-
tituída... sem estímulos e sem apoio... devia cair na regra geral considerada um organismo vivo, que nasce, cresce, reproduz-se
dos seus colegas de sacerdócio, sob a influência enervante e cor- e morre. Assim como o homem era submetido a determinações
ruptora do isolamento, e entregara-se ao vício e à depravação, mecânicas, também as línguas evoluíam de acordo com leis que
I
perdendo o senso moral e rebaixando-se ao nível dos indivíduos não admitiam exceção.
que fora chamado a dirigir (Rio de Janeiro, Edições de Ouro,
Esses são alguns dos temas dominantes do discurso da se-
1967. p. 383-4).
gunda metade do século XIX. Refletem uma determinada for-
C O tema mais evidente no texto é que o homem é determi- mação ideológica. A literatura não fica imune a esses temas. O
nado pelo meio. aJretçditariedade e o momento.*Esse tema pro-
I naturalismo, que incorpora elementos das ciências naturais,
(vém do+gsitivisms--e, mais particularmente, da obra de_ Taine.- I torna-se dominante. As obras naturalistas manifestam a objeti-
Tendo a burguesia, depois da Revolução Francesa, assumi- vidade, que é o ideal científico da época. Diz Zola no prefácio
do a hegemonia, suas ideias e seus ideais revolucionários decli- à 2i edição de Théràse Raquin:
T 65
64

Começa-se, espero, a compreender que minha finalidade foi, A oposição entre os mistérios gozosos e dolorosos serve de
antes de tudo, uma finalidade científica. (...) Apenas fiz sobre gronto de partida para a construção de um belo jogo de antíteses,
dois corpos vivos o trabalho analítico que os cirurgióes fazem i'..urro bàsico de estruturação do texto, por meio do qual Vieira
sobre os cadáveres. pirc em destaque a perversidade do sistema escravagista'
A obra de Inglês de Sousa é um "romance de tese", ou se- O trabalho dos escravos a quem Vieira pregava era doce,
ja, Antônio de Morais serve de ilustra-
a história da vida do Pe. porque eles eram trabalhadores de um engeúo e, portanto, produ-
ção das ideias dominantes na época. A personagem está subme- tiam açucar. No entanto, e aí está a candente denúncia contra o
tida ao fatalismo da queda, umayez postas as condições que a sistema escravista, o produto do trabalho dos escravos pertence in-
determinavam. O texto escolhido reproduz, com nitidez, os ele- tcgralmente aos senhores, que exploram, sem sequer o disfarce de
mentos da ideologia burguesa do século XlX. uÃa troca igu alitâiade trabalho por salário, sua força de trabalho'
O texto de Vieira, embora não manifeste a visão de mun-
Enquanto Inglês de Sousa reproduz o discurso dominante,
do dominante, revela uma das visões de mundo presentes na
o Pe. Antônio Vieira, opondo-se ao discurso escravagista de sua
lbrmaçào social em que vivia.
época, faz uma candente denúncia do modo de produção
Num ensaio intitulado "MPB: uma análise ideológica",
escravista:
que aparece no livro Saco de gatos,Walnice Nogueira Galvão
Os dolorosos (ouçam-me agora todos), os dolorosos são analisa canções de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico
os que vos pertencem a vós, como os gozosos aos que deven- Buarque, Edu Lobo e Vandré, para mostrar que uma denúncia de
do-vos tratar como irmãos, se chamam vossos senhores. Eles uma realidade feia, existente nas músicas desses compositores
mandam e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descan- no final da década de 1960 e início da de 70, não corresponde a
sam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos,
nenhuma proposta de ação, a não ser cantal Destinam-se essas
e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há tra-
músicas íum público privilegiado que, diante da realidade que
balhos mais doces que os das vossas oficinas; mas toda essa
conhece bem, busca ansioso uma mitologia, proposta pelos ver-
.. .doçura
para quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o "par-
sos, que não o leve a agir. Por isso, essas canções chamadas
) poeta: Sic vos non vobis mellificatis apes (Assim como as abe- ticipántes" são escapistas e consoladoras, pois encobrem um
1-- lhas, vós produzis o mel, mas náo para vós) (Sermóes. Porto,

Lello, 1959. p. 315. v. Xl). "afàgo ao privilégio". A relação do tema da "mudança" com as
rl figuias "o dia que virá" (sozinho, evidentemente), "o tempo da
E,sse texto é um fragmento de um sermão pregado na alãgria", "a manhã que se anuncia","acanção" (que consola, en-
Bahia à irmandade dos pretos de um engenho, no ano de 1633. qu*to o dia não vem; anuncia o dia que virá, farâ o dia vir, so-
É um sermão sobre o rosário. O enunciador começa dizendo luciona os males do mundo) revela o universo ideológico de uma
que os mistérios dolorosos do rosário, que falam da paixão e certa faixa da classe média intelectualizada que lastima o que
morte de Cristo, pertencem aos escravos, pois eles têm uma vi- acontece e embala-se na certeza da mudança, nada fazendo
para
da de sofrimentos, enquanto os mistérios gozosos, que falam do que a situação mude. Deplorar a situação e constatar que nada
nascimento e da inffincia, concernem aos senhores, pois eles le- pode se, feito redunda num fatalismo conservador, bem próprio
vam uma vida de deleites. de certas camadas médias da população.
67

19 A linguagem faz parte Marr determina os quatro elementos básicos, que deram
origem à linguagem, a partir de um método que denominou
da superestrutura? "paieontologia lúguística". Esse método baseia-se em aproxi-
,,iações semânticas e comparações fonéticas de vocábulos
de

tliÍ-erentes línguas.
Um dos pontos básicos do marrismo é que a língua teria
origem rro d91e:o de uma classe social dominar outra'
Para Mari eiiste tta língua, como em todos os fenômenos
sociais, a passagem do quantitativo (acumulação de
transforma-
(aparecimento de uma nova lín-
ções menores) ao qualitativo
gua). Por isso, não fàla ele em evolução linguística' mas em sal-
t"os íinguísticos que são verdadeiras revoluções'
A partir da tese

do desenvolvimento linguístico em saltos, desenvolve


o lin-
Quando se estudam as determinações ideológicas que in-
cidem sobre a linguagem, pergunta-se se elafaz parte da supe- guista soviético a ideia dos estádios linguísticos' A concepção
das línguas
restrutura. Marr respondeu afirmativamente a essa questão, en- [ue subjaz a essa ideia é de que o desenvolvimento
e purul"io às mudanças das formações socioeconômicas'
Âuma
,quanto Stálin deu a ela uma resposta negativa. Analisemos o
estádio
problema com vagar. dáda formação social corresponderia um determinado
cle língua. O progresso linguístico seria, então,
paralelo ao pro-
grupos:
gresso social. As línguas são classificadas em quatro
O marrismo a) gstádio primário: o chinês e algumas línguas africanas;

b) estadio secundário: o turco, o mongol e as línguas


fino-
Nicolau Yakovlevitch Marr, linguista soviético, procura,
depois da Revolução de 1917, aplicar à linguística princípios -ugrianas;
marxistas. Desenvolve, então, a teoria damo:rogênese da lin- c) estádio terciário: línguas camíticas e caucasianas;
guagem. Para ele, na comunidade primitiva, os homens em ge- d) estádio quaternário: línguas semíticas e indo-europeias'
Marr afirma que, quando uma comunidade se afasta da
I
ràItõiú-unicavam-se por gestos, mas os feiticeiros emitiam cer-
dis-
tos grunhidos para convocar sua reunião. Esses sinais são qua- corrente do progresso getal, alíngua sofre idêntico desvio'
tro: sal, ber, yôn, roch. Os feiticeiros, aos poucos, vão utilizan- tanciando-se do grupo a que pertencia' A partir desse momen-
que a co-
do sons como símbolos de ideias com a finalidade de manter to, as alterações que ocorreram perÍnanecem, mesmo
seu domínio sobre os outros homens. Esses sinais vão combi- munidade se integre novamente na corrente do progresso'
mudan-
nando-se em construções dissilábicas e em seguida vão consti- Se as transformações na infraestrutura produzem
tuindo construções mais complexas. Com a variação livre dos ças no sistema linguístico,
ele é um elemento da superestrutura'
sons, os quatro elementos primitivos vão aumentando. Daí se pode deduzir que as línguas têm um caráter de classe'

I
69
6a

Esses elementos da teoria marrista aqui apresentados não rlc isolante a flexivo. Não se pode justificar esse fato dizendo
provocam hoje senão sorrisos, pois são inteiramente fantasio- (luc ulr sistema linguístico retrocede, quando a comunidade
sos. A tese da monogênese da linguagem é uma hipótese total- t;uc o utiliza se afasta da corrente do progresso mundial, mas
. mente inverificável. Não se pode também comprovar a ideia de
nrio volta a progredir, mesmo que a comunidade volte a inte-
que os elementos primordiais sejam quatro e de que sejam
grar-se à corrente do progresso, pois aí entramos novamente no
aqueles quatro descritos por Marr. Isso tudo fica no reino da es-
lorreno da pura especulação. Se um sistema regride, por que
peculação e da fantasia. Mas há outros equívocos mais sérios
rrão progride?
nas teses marristas.
Em primeiro lugar, Marr, em sua tese da monogênese da A ideia de progresso linguístico, por outro lado, pode in-
linguagem, supõe que houvesse luta de classes na sociedade troduzir no âmbito da linguística certos julgamentos de valor
relação às diferentes línguas, que poderiam levar a teses

primitiva. No entanto, segundo os clássicos do marxismo, a so- crn
ciedade primitiva era uma sociedade sem classes e, portanto, banidas há muito tempo. Lembremo-nos de que, durante sécu-
não poderia haver luta de classes onde não havia classes. Por is- Ios, vigorou a ideia de que língua e raça estavam intimamente
1 so, a linguagem não pode ser uma invenção de uma classe para relacionadas, o que levava a postular a existência de línguas su-
\garantir sua dominação. periores e inferiores homólogas às raças que também eram clas-
Em segundo lugar, Marr admite a existência de uma cons- sificadas em superiores e inferiores. Essa concepção era um dos
ciência e de um pensamento anteriores à linguagem. Afirma
clementos que servia para justificar a "missão civilizatória" dos
que a linguagem surge de uma trama de feiticeiros. Marx e
povos colonialistas. A linguística eskutural, ao demonstrar que'
entretanto, dizemque "a linguagem é tão antiga quanto
\fEngels,
(a consciência". Engels, num texto intitulado "O papel do traba- todos os sistemas'1ingüísticos são equivalentes e que qualquer
lho na transformação do macaco em homem", enfatiza que o língua pode expressar qualquer conteúdo, baniu essas teses ra-
trabalho é a categoria fundadora da história e que, a partir do cistas do âmbito da ciência da linguagem. Embora Marr não fa-
processo de trabalho, estabelecem-se relações sociais que estão le em vinculação da língua àtaça, sua tese do progresso linguís-
na base da origem da linguagem. Esta surge da necessidade de tico leva à concepção de línguas superiores e inferiores'
comunicação. Trabalho e linguagem estão, por sua vez, associa- Haveria outros argumentos para combater as teses marris-
dos no desenvolvimento da capacidade de pensar, que, por seu que
tas apresentadas, mas esses são suficientes para demonstrar
turno, aperfeiçoou a linguagem e os processos de trabalho.
elas não estavam sequer de acordo com certos postulados basi-
Como se observa, Marr nem sequer conhecia muito bem os prin-
lares do marxismo. Há que ressaltar, no entanto, que as concep-
cípios do marxismo, que pretende aplicar à linguística.
ções de Marr têm o mérito de apontar para a necessidade de re-
A tese dos estádios linguísticos pode também ser consi-
derada fantasiosa, pois, por exemplo, o sistema gramatical do fletir sobre as relações entre linguagem e formação social' A fa- ',

chinês continua, depois da Revolução, idêntico ao que era an- lha maior da teoria marrista é buscar as relações entre lingua-;'
tes. Não passou do estádio primário ao quaternário, não mudou gem e história no nível do sistema e não do discurso'
70
I 71

As posições de Stálin rápida de uma língua. Assim, não se preocupa corn o fato de que,
por exemplo, os idiomas românicos surgem no bojo de um pro-
Em 1950, o Pravda abre um debate sobre as teses de
cesso de desagregação do latim, que ocorre quando soçobram as
Marr. Durante três meses, partidários e adversários do marris-
bases econômicas do Império Romano. O fator econômico atua
mo participam da polêmica. No dia 20 de junho, Stálin publica
no sentido de favorecer uma mais rápida mudança do latim, mas
um artigo intitulado'A propósito do marxismo em linguística".
não determina como vão dar-se as transformações de sons, cate-
As duas teses centrais desse artigo são: a língua não é um gorias morfológicas e estruturas sintáticas. Por isso, esse fator
fenômeno de superestrutura; ela não tem caríúer de classe.
não determina diretamente o sistema linguístico, mas acelera as
Para fazer essas afirmações, Stálin considera a língua uma mudanças devidas a causas internas ao proprio sistema.
gramática e um fundo léxics e A ideia da homogeneidade linguística não permite apreen-
.#
fõçãõãs teses stalinistas. Diz ele que a língua difere radicalmen- der a multifacetada realidade da linguagem, pois descarta a im-
te da superestrutura. Comprova essa afirmação com o exemplo portância da variação dialetal, das diferentes normas existentes.
da sociedade russa e da língua russa. Com a Revolução, a base Stálin não se preocupa com a distinção entre o sistema linguísti-'
econômica capitalista da Rússia foi liquidada e, em seu lugar, co, relativamente autônomo em relação às formações sociais, e
foi erigida uma base econômica nova, socialista. Em conse- a norma única ensinada na escola, produto de uma legitimação
quência, a superestrutura (instituições políticas, jurídicas etc.) social que faz que determinados usos'sejam vistos como a única
correspondente à base capitalista foi substituída por outra, ade- maneira correta e elegante de falar. Para Stálin, a língua é um
quada à base socialista. Apesar dessas mudanças, a língua rus-
dos elementos determinantes da nacionalidade, devendo, por-
sa permanece idêntica ao que era antes da Revolução. Stálin tanto, ser combatido tudo o que contrariar a unidade linguística,
afirma ainda que não há línguas de classe, mas línguas nacio- pois assim se lutará contra a desagregação nacional. A concep-
nais comuns atodo umpovo. Se houvesse línguas de classe, ha-
ção de língua nacional aparece com o surgimento dos Estados
veria, por exemplo, uma gramática burguesa e uma gramática modernos. Foi depois da Revolução Francesa que os dialetos re-
proletaria, o que evidentemente não existe. gionais foram substituídos pelo dialeto de Paris e que o francês,
Se é verdade que a língua não tem çarâter de classe nem é dialeto da região de lle-de-France, passou a ser considerado lín-
um fenômeno de superestrutura, as posições de Stálin não esgo- gua nacional. É certo que a unificação linguística daFtança ját
tam o problema das relações entre linguagem e história. Nas havia começado no período dos monarcas absolutistas por meio
análises desse fenômeno, Stálin leva em conta apenas a língua, da administração e do exército. Cabe lembrar, no entanto, que a
o sistema. Ora, sabemos que a língua não é o único elemento da unificação tem início quando começa a ruir o modo de produ-

complexa realidade do fenômeno linguístico. ção feudal. AÍtâlia só termina seu processo de unificação polí-
(- Statin não leva em consideração fatos históricos que não tica em 1870 e apenas então aparece aí uma língua nacional, que
d intervêm diretamente na determinação de categorias do sistema I teve como frrndamento o dialeto florentino (toscano). Está vin-
/ linguístico, mas que interferem seja no uso que se faz de deter- culado a essas razões o fato de que a Reforma Protestante pro-
I minados aspectos da linguagem, seja na evolução mais ou menos porcionou a tradução da Bíblia para os diferentes idiomas mo-
72 73

dernos, o que chegou afazer que línguas como o retico e o rome- l'.rrtrctanto, essa transformação não provoca uma mudança con-
no passassem a ter escrita. t onritante no sistema linguístico, pois este é apenas o instru-
," A concepção homogeneizadora da língua e a tese de que nrcrrto de materialização das visões de mundo.
-.-o idioma é um dos elementos constitutivos da nacionalidade de- É preciso não entender as formações ideológicas e, por-
rivam dos ideais do nacionalismo burguês. Data do início da he- liurlo. as formações discursivas como mero reflexo das relações Ç

gemonia burguesa a preocupação com o que Marcellesi e sociais. Todos os principais teóricos do materialismo procura-
Gardin chamam "discurso moral" sobre a língua. Stálin utiliza- r.lnr afastar essa visão mecanicista. Entretanto, como o discur,
-se desse discur§õ,]úúão faiá êm "enriquecimento" dos idio- so ó um produto histórico e social, as transformações na estru- - ,

mas nacionais, para transformá-los em línguas de cultura, e em Itrra social podem açarreÍar mudanças discursivas.
.-"homogeneizaçáo do idioma com vistas à unificação nacional".-_- Não existem representações ideológicas senão materiali-
A política linguística do Estado espanhol, durante o governo de zaclas na linguagem. Por isso, excetuadas as formações discur-
Franco, quando proibia o ensino e o uso oficial do basco, do ca- sivas, a linguagem náo faz parte da superestrutura, mas é o seu
talão e do galego, tinha como objetivo promover a unificação suporte, é o instrumento que permite que as representações ga-
nacional, de que falava Stálin. nhem materialidade.
Como Stálin vê o problema da linguagem de maneira mui- Se entendermos que a linguagem, ao mesmo tempo que
to restrita, :umavez que leva em conta apenas a dimensão sistê- permeia toda a superestrutura, constitui formações discursivas
mica (a língua), não se ocupando do discurso, não pode perceber que pertencem à ordem superestrutural, não incidiremos no
as determinações históricas que atuam sobre a linguagem. cquívoco de dar uma resposta exclusivamente afirmativa, como
Marr, ou unicamente negativa, como Stálin, à questão das rela-
ções entre linguagem e formações sociais. A primeira função da
O lugar da linguagem linguagem não é ser representação do pensamento ou instru-
A língua em si não é um fenômeno que tenha um çarâter mento de comunicação, mas expressão da vida real.
de classe, üma yez que ela existia nas sociedades sem classes, Nos domínios da linguagem, parece não existirem afirma-
existe nas formações sociais com classe e continuará existindo ções apenas positivas ou só negativas, mas afirmações comple-
quando as classes forem abolidas. No entanto, as classes usam xas, simultaneamente positivas e negativas. Quando nos interro-
a linguagem para transmitir suas representações ideológica§. gamos sobre as relações que a linguagem mantém com a histó-
Ela também não é propriamente um fenômeno de superestrutu- ria, não encontramos o sim ou o não, mas antes o sim e o não.
ra, mas é o veículo das representações ideológicas. No entanto,
as formações discursivas, na medida em que constifuem a ma-
terialização das formações ideológicas, são fenômenos de supe-
restrutura. Por isso, a uma alteração das relações sociais de pro-
dução pode açabar por corresponder uma mudança nas forma-
ções ideológicas e, por conseguinte, nas formações discursivas.
75

20 Comunicar é agtr a) as formações discursivas, constituidas por um conjunto


de temas e de figuras, matrrializamas formações ideológicas;
b) essas formações discursivas são fenômenos de superes-
trutura, embora a linguagem em geral e a língua em particular
sejam apenas o instrumento de materialização das representa-
ções ideológicas;
c) o uso de um determinado discurso é, de certa forma,
uma ação no mundo.
Parece-nos que essas três ideias estão subjacentes à pri-
meira página de O l8 Brumário de Luís Bonaparte, de Marx:

Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revo-


Quando um enunciador comunica alguma coisa, tem em lução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a República
vista agir no mundo. Ao exercer seu fazer informativo, produz Romana e o lmpério Romano, e a Revolução de 1848 não soube
um sentido com a finalidade de influir sobre os outros. Deseja fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradiçáo
que o enunciatârio creia no que ele lhe diz, faça alguma coisa, revolucionária de 1793-1795. (...) Camille Desmoulins, Danton,
mude de comportamento ou de opinião etc. Ao comunicar, age Robespierre, Saínt-Just, Napoleão, os'heróis, os partidos e as
massas da velha Revolução Francesa desempenharam a tarefa
no sentido de fazer-fazer. Entretanto, mesmo que não pretenda de sua época, a tarefa de libertar e instaurar a moderna socie-
que o destinatério aja, ao fazê-lo saber alguma coisa, realiza dade burgues4 em trajes romanos e com frases romanas. (...)
uma ação, pois torna o outro detentor de um certo saber. E nas tradiçôes classicamente ausleras da República Romana,
Comunicar é também agir num sentido mais amplo. seus gladiadores encontraram os ideais e as formas de arte,
as ilusôes de que necessitavam para esconder de si mesmos as
Quando um enunciador reproduz em seu discurso elementos da limitações burguesas do conteúdo de suas lutas e manterem
formação discursiva dominante, de certa forma, contribui para seu entusiasmo no alto nível da grande tragédia histórica. Do
reforçar as estruturas de dominação. Se se vale de outras forma- mesmo modo, em outro estágio do desenvolvimento, um sécu-
ções discursivas, ajuda a colocar em xeque as estruturas sociais. lo antes, Cromwell e o povo inglês haviam tomado emprestado
a linguagem, as paixôes e as ilusóes do Velho Testamento para
No entanto, pode-se estar em oposição às estruturas econômico-
sua revoluçáo burguesa. Uma vez alcançado o objetivo real,
-sociais de uma maneira reacionária, em que se sonha fazer vol-
uma vez realizada a transformação burguesa, Lock suplantou
tar um mundo que não mais existe, ou de uma maneira progres- Habacuc.
sista, em que se deseja criar um mundo novo. Sem pretender
que o discurso possa transformar o mundo, pode-se dizer que_ e.-
ser instrumento de libertação ou de
@ de mudança ou de conservação.
Nas últimas páginas, expusemos as seguintes ideias:

,rE
77

2l Conclusão A análise do discurso vai, ii rncclida que estuda os elemen-


tos discursivos, montando por inícrôncia a visão de mundo dos
sr-rjeitos inscritos no discurso. Dcpois. rlrostra que é que deter-
rlinou aquela visão nele revelada.
Tito Lívio, na sua Históri.a romunu (1t,32,3-12), conta
que, numa revolta da plebe, no seculo I a. C., Menênio Agripa
procurava pacificar os revoltosos, mostrando que a sociedade
precisa ser solidária como os órgãos do corpo humano, pois o
estômago precisa das mãos, da boca e dos dentes, assim como
estes necessitam daquele. Dizia o tribuno da plebe que, um dia,
as mãos e a boca se rebelaram e resolveram não mais alimentar
A linguagem é, ao mesmo tempo, autônoma em relação às o estômago e, assim, todo o corpo ficou doente. Concluía afir-
formações sociais e determinada por fatores ideológicos. Por is- mando que os órgãos devem ser solidários, cada um deles deve
so, o linguista deve distinguir níveis e dimensões em que existe executar a função que a natureza lhe reservou, senão todo o cor-
relativa autonomia e níveis e dimensões que sofrem coerções po frcará arruinado. Diante desse texto, a análise não pode sim-
ideológicas. Em nosso ponto de vista, a determinação ideológi- plesmente anotar a metáfora retirada da fisiologia para explicar
ca revela-se, em toda sua plenitude, no componente semântico a ordem social, mas deve revelar que essa metáfora traduz uma
do discurso. As formações ideológicas presentes numa dada concepção funcionalista da sociedade que, ao naturalizar a or-
formação social determinam formações discursivas. Estas ma- dem social, serve à dominação da plebe pelo patriciado.
terializam aquelas. Estabelecem um conjunto de temas e de fi- A concepção do discurso como fenômeno, ao mesmo
guras com que o "indivíduo" fala do mundo exterior e interior. tempo autônomo e determinado, obriga a análise a voltar-se pa-
As coerções ideológicas constituem, assim, um elemento ra dentro e para fora, para o texto e para o contexto, para os me-
pré-semântico que determina o componente semântico. O lin- canismos internos de agenciamento de sentido e para a forma-
guista que vê a linguagem como um fenômeno totalmente autô- ção discursiva que governa o texto. A análise, embora não ne-
I nomo em relação às formações sociais apega-se a um formalis- gue a relativa autonomia do discurso, não o vê como uma autar-
mo que não percebe arazão últirna dos significados discursivos. cia, pois a chave para sua inteligibilidade últirna não está nele
O estudioso da linguagem que só se preocupa em tomar os sig- mesmo, mas na formação ideológica que o governa. As deter-
nificados e relacionáJos com este ou aquele aspecto da realida- minações últimas do texto estão nas relações de produção.
de social, sem considerar a relativa autonomia da linguagem, O itinerário pelo discurso não se esgota no interior do pró-
aferra-se a um ideologismo, que desconhece as especificidades prio discurso, mas se projeta na história. É preciso levar em

.L
do fenômeno a ser analisado. Os estudos linguísticos devem fu- conta o intertexto para ler o texto.
gir de duas ilusões: atotal autonomia da linguagem e sua redu- A análise do discurso deve desfazer a ilusão idealista de
ção à ideologia. quc o homem é senhor absoluto dc seu discurso. Ele e antes ser-

t
78

vo da palavra, uma vez que temas, figuras, valores, juízos etc. 22 Yocabulário crítico
provêm das visões de mundo existentes na formação social.
Talveznão sejam apenas as coerções ideológicas que.dê-
terminam o discurso. Afinal, a linguagem é um fenômeno ex-
tremamente complexo e multifacetado. E possível pensar que
outras coerções pré-semânticas incidem sobre os elementos da
semântica discursiva: coerções pulsionais, arquétipos míticos
etc. É evidente que todas essas determinações recaem sobre os
sujeitos inscritos no discurso. Não podemos, por exemplo,
quando falamos em coerções pulsionais, voltar a certas análises
psicológicas ingênuas facilmente contestáveis' Tudo isso, po-
rém, é matéria de outros trabalhos. Aliteração: é a recorrência do mesmo fonema consonântico ou
de fonemas consonânticos que possuem o mesmo traço fôni-
A reflexão sobre a linguagem desafia os homens há milê-
co (por exemplo, a oclusividade).
nios, porque dela se pode dizer o que dizia Riobaldo, no Grande
sertão: veredas: "No ar ceúleo da tarde, (...) Jfuíamfumos diii,fanos/rndin-
do-se no espaço nevoado." (Coelho Neto)
Todos estáo loucos, neste mundo? Porque a cabeça da
gente é uma só, e as coisas que há e que estáo para haver são
Assonância: é a recorrência do mesmo fonema
vocálico.
demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de "Bqtem pausadamente as patas compassadas." (Olavo
necessitar de aumentar a cabeça para o total. Bilac)
Conteúdo: é o plano do significado veiculado por um plano de
expressão. O conceito "vegetal de grande porte com caule
lenhoso" é o conteúdo manifestado pelo plano de expressão
"âÍvore".
Discurso'. é um dos patamares da constituição do significado,
em que um enunciador reveste formas mais abstratas com
conteúdos mais concretos. Por exemplo, nas fotonovelas há
sempre a mesma estrutura abstrata: X ama Y, Z é obstáculo
ao amor de X e Y, X e Y vencem o obstáculo etc. O nível
discursivo é que reveste, de maneira diferente, essa estrutu-
ra: X é uma doméstica que trabalha na casa de Y, filho de um
rico industrial; a posição social de ambos é o obstáculo ao
seu amor etc. O discurso varia, enquanto a estrutura profun-
da permanece inalterada nas fotonovelas. O discurso é a
ao 8í

aítalização de uma competência discursiva do falante, isto é, Formação discursiva: é um conjunto de temas e figuras que
de uma capacidáde de estruturar discursos. A nosso ver, é no materializarn uma dada formação ideológica presente numa
discurso que se manifestam, com toda a plenitude, as coer- determinada formação social.
ções ideológicas que incidem sobre a linguagem. Formação ideológica: é uma visão de mundo, um conjunto de
Enunciação: é o ato por meio do qual o falante produz enun- representações que explicam as condições de existência.
Como as visões de mundo estão vinculadas às classes so-
ciados.
ciais, há, em princípio, numa formação social, tantas visões
Enunciado: é toda combinaÍóna de elementos linguísticos, pro-
de mundo quantas forem as classes aí existentes. No entan-
vida de sentido. to, a visão de mundo dominante é a da classe dominante.
Enunciador: é o destinador da enunciação (o falante). Pode ele Imanência: é, em oposição ao plano de manifestação, o plano
estar implícito no enunciado ("À noite, todos os gatos são de conteúdo de um discurso.
pardos") ou inscrito em seu interior (Eu acho que todos os Infraestrutura: éa estrutura econômica da sociedade.
gatos, à noite, são pardos). Compreende as forças produtivas e as relações sociais de
Enunciatário: é o destinatário da enunciação (o ouvinte). produção, isto é, as relações que se estabelecem entre os
Também ele pode ou não estar inscrito no enunciado. proprietários dos meios de produção e os produtores diretos.
Expressão: é o veículo do significado, seu suporte, o elemento Intertexto: é o conjunto de discursos a qüe um discurso remete
"sensível" que o manifesta. Assim, por exemplo, a imagem e no interior do qual ele ganha seu significado pleno.
acústica "descer" veicula o significado "movimento com Lexemq: é o elemento linguístico provido de um significado ex-
deslocamento para baixo". terno, ou seja, dado pelo dicionário e não pela graméúica.
,qala: é a atividade psico-fisico-fisiológica individual de atuali-
Assim, mesa é um lexema. O lexema não se confunde, po-
rém, com apalavra, pois, num vocábulo verbal como "mer-
zaçáo do discurso.
gulhássemos", temos quatro elementos linguísticos dotados
Figura: é um elemento do plano discursivo que remete a um da-
de significado: mos indica a primeira pessoa do plural; sse,
do elemento do mundo nattral, criando, assim, no discurso, o pretérito imperfeito do subjuntivo; q, a primeira conjuga-
uma ilusão referencial, ou seja, uma simulação do mundo
ção; mergulh, o movimento que se faznaágua com desloca-
natural (exemplos: lobo, cordeiro, regato). mento para baixo, Só o último elemento ó um lexema, pois
Fonema'. é um som dafalaque tem uma função distintiva, ou se- o significado dos outros três é dado pela gramática. O lexe-
ja, em oposição a outro som colocado em idêntico ponto da ma fala do mundo extralinguístico, isto é, das coisas, dos
cadeia da fala serve para distinguir significados. Os sons acontecimentos, das sensações, das volições etc.
lml e lsl são dois fonemas porque eles opõem significados Léxico: é o corg'unto dos lexemas de uma língua, ou seja, seu di-
como'omanha" e "sanha". O nível fonológico é o nível em cionário.
que se dá a combinação dos fonemas para formar unidades Manifestação: é auniào de um plano de conteúdo com um pla-
significativas. no de expressão. O plano de expressão pode ser de natureza
a3
a2

vaiada: verbal ou não verbal (pictórico, gestual etc.). A ma- dades cada vez mais complexas. No nível morfológico, por
nifestação é a veiculação de um discurso por meio de um exemplo, o morfema adverbial de modo "mente" só se com-
plano de expressão. bina com formas adjetivas femininas (Cf. redondamente).
Morfologia: embora se negue um estatuto teórico à morfologia, Semântica; é o investimento de conteúdo que preenche o con-
pode-se dizer que, para uma língua como o português, ela é
junto de relações sintáticas abstratas. Por exemplo, a uma es-

o nível em que as unidades linguísticas mínimas dotadas de trutura sintática tal que artigo + nome + verbo + artigo + no-
significado (gramemas, que são unidades linguísticas provi- me podem corresponder investimentos semânticos como a
das de significação gramatical, como gênero, número, tem-
menina rcga a planta, o jardineiro colhe a rosa'
po etc., ou lexemas (ver acima)) se combinam para formar Sintaxe: é o conjunto de princípios que presidem à combinató-
palavras. ria dos elementos linguísticos com vistas à construção da
frase ou à combinação das frases com a finalidade de produ-
Norma: é um conjunto de realizações linguísticas constantes e
repetidas, de caráter sociocultural. Em São Paulo, por exem-
zir o discurso. A sintaxe é de natureza conceptual, ou seja,
produz também significados.
plo, a preposição em coloca-se entre o verbo ser e um nume-
ral cardinal. Diz-se "somos em cinco" e não "somos cinco", Sistema: é o conjunto de elementos linguísticos que possui um
como se diz no norte do país. O uso dessa preposição é um arranjo interno subordinado a uma série de princípios, ou se-
ja, uma estrutura. Esta determina a organização dos elemen-
italianismo que passou a fazer parte da norma popular de
tos do sistema e suas combinações possíveis.
São Paulo. A norma é, entáo, aquilo que na fala correspon-
de a um uso geral numa dada região, num determinado seg- Superestrutura: é o conjunto de instituições jurídico-políticas
mento da população. (Estado, direito etc.) e as "formas de consciência social" que
correspondem a uma dada infraestrutura. É preciso lembrar,
Percurso figurativo: é um encadeamento de figuras que mani-
no entanto, que essa correspondência não é mecânica, mas a
festa um dado tema. Se num discurso fôssemos manifestar o
superestrutura tem uma relativa autonomia em relação à in-
tema do "bucolismo", poderíamos usat por exemplo, as fi-
fraestrutura.
guras "carneiros", "regato de límpidas águas", "relva verde"
Tema: é um elemento da semântica discursiva que não corres-
etc. Esse conjunto encadeado de figuras correlato a um cer-
ponde a nenhum elemento do mundo natural, mas antes a ca-
to tema é o percurso figurativo.
tegorias que o ordenam. Por exemplo, solidariedade, honra,
Percurso temático: é um encadeamento de temas que podem
vulgaridade, exploração.
ser resumidos num tema mais geral. No discurso político
Texto: é a manifestação de um discurso por meio de um plano
oficial pos-64, toda a história do movimento militar de 1964
de expressão.
é um encadeamento de temas (reordenar, reorganizar, repor
nos trilhos, afastar a ameaça comunista) que podem ser resu-
midos no tema mais geral "salvação dapáút'ra".
Regras combinatórias: são princípios que comandam a combi-
natória dos elementos linguísticos entre si para formar uni-
a5

23 Bibl rografra comentada O autor, ao pretender elaborar uma filosofia da cultura,


discute, do ponto de vista do idealismo filosófico, num
dos capítulos, o papel ativo da linguagem na constituição
de uma imagem do mundo.
FIoRtN, José Luiz. O regime de 64: discurso e ideologia. Sáo
Paulo, Atual, 1987.
É um estudo do discurso político do regime implantado no
país após o golpe de 1964, em que se mostra a vinculação
dos seus temas e de suas figuras à formação ideológica de
um certo segmento da classe média, atrelado ao projeto
político da burguesia.
Embora a bibliografia disponível em língua estrangeira
GNERRE, Maurizio. Linguagem e poder. In: Subsídios à propos-
seja um pouco mais vasta, vamo-nos limitar a indicar alguns tí-
ta curricular de língua portuguesa para o 29 grau: varia'
tulos em português.
BAKHTTN, Mikhail (Voloshinov). Marxismo e filosofia da lin- ção linguística e norma pedagógica. São Paulo, SE/
CENP/IJnicamp,1978.
guagem. São Paulo, Huçitec,1979.
O texto analisa o papel da linguageril como instrumento de
O autor busca desenvolver uma filosofia da linguagem de
poder, mostrando que uma variedade linguística "vale" o
base marxista. Criticando ao mesmo tempo as duas orien-
que "valem" na sociedade seus usuários. A partir daí, o
tações do pensamento linguístico contemporâneo, o sub-
jetivismo idealista e o objetivismo abstrato, Bakhtin mos- autor analisa o processo histórico de legitimação de uma
norma.
tra o carâter ideológico do signo, que reflete e refrata a
realidade. GREItues, A. J. & CounrÉs, J. Dicionário de semiótica. Sào
Para o autoE o signo tem um caráter dialético, pois nele se Paulo, Cultrix, 1983.
confrontam significados de valor contraditório. Ele é uma Embora os autores não tratem do problema abordado nes-
"arer.a onde se desenvolve a luta de classes". Desenvolve te ensaio, apresentam uma teoria do engendramento do
Bakhtin a tese de que a consciênçia é social e não indivi- sentido. Segundo eles, o discurso constitui-se por meio de
dual, uma yez quie é constituída pelo discurso. Na última um percurso gerativo que vai do mais abstrato e geral ao
parte do livro, estudando o problema do discurso direto, mais concreto e particular. Cada um dos patamares do per-
indireto e indireto livre, esboça os princípios para uma his- curso contém um componente sintático e um semântico.
tória das formas de enunciação. Trata-se de um liwo de difícil leitura, pois é construído sob
CASSIRER, Etnst. Antropologia filosófica: ensaio sobre o ho- a forma de um dicionário.
mem: introdução a umafilosofia da cultura humana. 2. ed. LrreevRE, Henri. A linguagem e a sociedade. Lisboa, Ulis-
São Paulo, Mestre JoV 1977. seia, s.d.
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Discute o problema da linguagem de um ponto de vista ma- guagem como língua. Isso tem importantes consequências,
terialista, mostrando sua complexidade e seus paradoxos. pois afasta da reflexão o discurso, o que leva à impossibi-
MeRcsttssI, J. B. & GeRDrN, B. Introdução à sociolinguística. lidade de explicar determinadas categorias linguísticas'
Lisboa, Aster, 1975. Por outro lado, considerar a linguagem como língua impli-
Trata-se de um manual que resenha a obra dos principais ca não perceber as relações entre linguagem e classes so-
autores da sociolinguística de inspiração marxista ou não. ciais, pois a língua é um sistema comum a todos os falan-
O interessante, neste livro, é que o autor expõe as concep- tes e as covariações sociais não estão no âmbito sistêmico.
ções dos principais clássicos do marxismo sobre a lingua-
É por isso que o filósofo não trata das relações entre lin-
gem. A exposição é sucinta e, muitas vezes, incompleta, guagem e ideologia.
mas permite que se tenha uma certa visão do que pensa- SEIxas, Cid. O espelho de Narciso: linguagem, cultura e ideo-
vam autores como Marx, Lenin e Engels a respeito da lin- logia no idealismo e no marxisruo. Rio de Janeiro,
guagem. Civllizaçáo Brasileira, 1 98 1.
RoBIN, Régine. HisÍória e linguística. São Paulo, Cultrix, 1977. O livro analisa como diferentes autores idealistas e marxis-
Percorrendo o trabalho de alguns historiadores e uma série tas concebem a linguagem, a cultura e a ideologia.
de métodos de abordagem de texto, a autora discute os pro- Vycotsry, Lev Semenov ich. Pens amento e linguagem. Lisboa,
blemas da relação História/Linguística, mostrando o des- Antídoto, 1979.
compasso conceitual entre essas duas disciplinas e os pon- O autor analisa as relações entre linguagem e pensamento.
tos de encontro possíveis. Mostra que o desenvolvimento do pensamento, entendido
Scuenr, Adam. Linguagem e conhecimento. Coimbra, como "orientação no mundo", é anterior ao desenvolvi-
Almedina, 1974. mento da linguagem, tanto na filogênese quanto na onto-
O autor discute, de um ponto de vista marxista, as relações gênese. O pensamento e a linguagem desenvolvem-se se-
gundo trajetórias distintas, mas em certo ponto do desen-
entre linguagem e pensamento, linguagem e consciência,
linguagem e realidade. Mostra que a linguagem é determi- volvimento filogenético e ontogenético as duas linhas se
nada pela práúíca social e, depois de constituída, exerce encontram e o pensamento torna-se verbal e a linguagem,
racional. Com isso, o autor filia-se à tese marxista clássi-
um papel ativo na determinação da visão de mundo de ca-
ca do monismo da linguagem e do pensamento.
da homem pertencente a uma dada comunidade. No entan-
to, embora o livro tenha reflexões extremamente interes-
santes, não hierarquiza os elementos que exercem determi-
nação sobre a linguagem, não estabelecendo, por conse-
guinte, as sucessivas mediações entre a prâtica social e a
língua, Dessa forma, não se estabelece o que determina a
linguagem em última instância. Além disso, conquanto fa-
le sempre em linguagem, o filósofo polonês entende a lin-

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