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FILOSOFIA DA LINGUAGEM

CURSOS DE GRADUAÇÃO – EAD


Filosofia da Linguagem – Prof. Dr. Stefan Vasilev Krastanov

Stefan Vasilev Krastanov é autor do livro Nietzsche: pathos


artístico versus consciência moral. É professor adjunto de
Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul –UFMS.
Possui doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de São
Carlos –UFSCar. Além disso, é graduado, pós-graduado e mestre
em Filosofia pela Universidade de Sofia, na Bulgária. Desde o ano
de 2002, atua como professor universitário, principalmente nas
áreas da História da Filosofia, Estética e Metafísica, além de ser
autor de vários materiais para cursos de Graduação na
modalidade EaD.
E-mail: stefanve@terra.com.br

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Stefan Vasilev Krastanov

FILOSOFIA DA LINGUAGEM
Caderno de Referência de Conteúdo

Batatais
Claretiano
2013
© Ação Educacional Claretiana, 2012 – Batatais (SP)
Versão: dez./2013

149.94 K91f

Krastanov, Stefan Vasilev


Filosofia da linguagem / Stefan Vasilev Krastanov – Batatais, SP : Claretiano, 2013.
180 p.

ISBN: 978-85-67425-59-7

1. A importância do estudo da linguagem na Filosofia. 2. Esclarecimento de termos


centrais na pesquisa filosófica que estão envolvidos com obscuridades e paradoxos,
com base na análise da linguagem. 3. Auxílio da análise da linguagem na dissolução
de pseudoproblemas filosóficos. 4. Exame dos critérios de significatividade. 5. Análise
da relação que se estabelece entre linguagem e metafísica, bem como entre
linguagem e ciência. I. Filosofia da linguagem.

CDD 149.94

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Camila Maria Nardi Matos Felipe Aleixo
Carolina de Andrade Baviera Filipi Andrade de Deus Silveira
Cátia Aparecida Ribeiro Paulo Roberto F. M. Sposati Ortiz
Dandara Louise Vieira Matavelli Rodrigo Ferreira Daverni
Elaine Aparecida de Lima Moraes Sônia Galindo Melo
Josiane Marchiori Martins
Talita Cristina Bartolomeu
Lidiane Maria Magalini
Vanessa Vergani Machado
Luciana A. Mani Adami
Luciana dos Santos Sançana de Melo
Luis Henrique de Souza Projeto gráfico, diagramação e capa
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SUMÁRIO

CADERNO DE REFERÊNCIA DE CONTEÚDO


1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 9
2 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO....................................................................... 12

Unidade 1 – INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA LINGUAGEM


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 31
2 CONTEÚDO........................................................................................................ 31
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 32
4 SOBRE A NATUREZA DA LINGUAGEM.............................................................. 32
5 TEXTO COMPLEMENTAR................................................................................... 38
6 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 42
7 CONSIDERAÇÕES............................................................................................... 45
8 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 46
9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 46

Unidade 2 – PRIMEIROS PROBLEMAS FILOSÓFICOS SOBRE A


LINGUAGEM
1 OBJETIVOS......................................................................................................... 47
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 47
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 48
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 48
5 O SURGIMENTO DO LOGOS.............................................................................. 49
6 O PROBLEMA DA LINGUAGEM EM PLATÃO.................................................... 51
7 TEXTO COMPLEMENTAR................................................................................... 56
8 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 63
9 CONSIDERAÇÕES............................................................................................... 65
10 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 66
11 R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 66

Unidade 3 – ONTOLOGIA E LINGUAGEM NA IDADE MÉDIA


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 67
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 67
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 68
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 68
5 O PROBLEMA DA LINGUAGEM E A QUESTÃO DOS UNIVERSAIS................... 69
6 TEXTO COMPLEMENTAR................................................................................... 79
7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 81
8 CONSIDERAÇÕES............................................................................................... 82
9 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 83
10 R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 83

Unidade 4 – LINGUAGEM EM LOCKE E ROUSSEAU


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 85
2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 85
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 85
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 87
5 LOCKE E A FILOSOFIA DA LINGUAGEM........................................................... 87
6 ROUSSEAU E A LINGUAGEM ROMÂNTICA...................................................... 93
7 TEXTO COMPLEMENTAR................................................................................... 96
8 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 99
9 CONSIDERAÇÕES............................................................................................... 100
10 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 100
11 R EFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS......................................................................... 101

Unidade 5 – FILOSOFIA E LINGUAGEM EM NIETZSCHE E HEIDEGGER


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 103
2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 103
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 104
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 105
5 NIETZSCHE E A CRÍTICA DA METAFÍSICA A PARTIR DA LINGUAGEM ........... 106
6 HEIDEGGER: A LINGUAGEM E A POESIA......................................................... 129
7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 143
8 CONSIDERAÇÕES............................................................................................... 145
9 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 145
10 R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 146

Unidade 6 – A FILOSOFIA DA LINGUAGEM E O PROBLEMA SEMÂNTICO


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 147
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 147
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 148
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 150
5 FREGE E A QUESTÃO SEMÂNTICA.................................................................... 150
6 RUSSELL E A TEORIA DO ATOMISMO LÓGICO................................................ 157
7 WITTGENSTEIN: LINGUAGEM COMO FIGURAÇÃO E COMO
INSTRUMENTO.................................................................................................. 165

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8 GILBERT RYLE E LINGUAGEM COMO FORMA DE DISSOLVER
PSEUDOPROBLEMAS FILOSÓFICOS................................................................. 171
9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 176
10 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 177
11 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 178
12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 179

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Caderno de
Referência de
Conteúdo

CRC

Ementa––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A importância do estudo da linguagem na Filosofia. Esclarecimento de termos cen-
trais na pesquisa filosófica que estão envolvidos com obscuridades e paradoxos,
com base na análise da linguagem. Auxílio da análise da linguagem na dissolução
de pseudoproblemas filosóficos. Exame dos critérios de significatividade. Análise
da relação que se estabelece entre linguagem e metafísica, bem como entre lin-
guagem e ciência.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1. INTRODUÇÃO
A Filosofia enfrenta vários problemas no que se refere ao
uso da linguagem. A Metafísica, por exemplo, vale-se da lingua-
gem para representar objetos ideais, como, por exemplo, o bom
enquanto considerado em-si-mesmo, Deus, a liberdade, o belo
etc. Ludwig Wittgenstein colocava assim a questão:
Se vocês estivessem em meio a uma tribo estrangeira, cuja língua
desconhecessem totalmente, e desejassem saber quais palavras
correspondentes a "bom", "lindo", etc., que é que procurariam?
(1970, p. 15).
10 © Filosofia da Linguagem

Nessas questões, o que está em jogo é a questão do signi-


ficado. Por exemplo, quando digo "Sócrates", estou-me referindo
a um indivíduo ao qual o nome "Sócrates" me remete (o filósofo
Sócrates que viveu na Grécia Antiga). Mas quando digo "liberda-
de", qual é o significante do qual a palavra "liberdade" pretende
ser o significado? Essa não é uma questão clássica da Metafísica
ou da Ética? E se nossa análise for sobre o "belo", não estaríamos
no campo da Estética?
Mas o problema da Filosofia da Linguagem não se encerra
apenas no referente (o belo, o bem, a liberdade). A existência des-
ses referentes é um problema da Metafísica. A Filosofia da Lingua-
gem está envolvida nessas questões, mas não só com elas.
Entretanto, a Filosofia da Linguagem interessa-se e muito
com problemas como esses. Os filósofos do século 20 pretenderam
elucidar esses problemas metafísicos-éticos-estéticos por meio de
uma análise sobre a linguagem. Não só eles, mesmo Nietzsche,
no século 19, já apontava para a solução de alguns paradoxos da
Filosofia por uma análise crítica da linguagem quando analisou os
termos de "bem" e "mal" de um ponto de vista diferente do da
tradição.
O próprio nascimento da Filosofia pode ser analisado do
ponto de vista da linguagem. Até por volta do século 6º a.C., o dis-
curso mitológico dominou por completo as relações humanas; no
entanto, a Grécia experimentou uma profunda mudança na forma
de compreender o mundo pela linguagem e passou do discurso
mitológico ao lógico-conceitual. Conhecemos essa transição na
história da Filosofia como "passagem do mito ao logos".
A linguagem é componente fundamental da atividade de
pensamento humano. A Filosofia, como aquele ramo do saber que
se debruça sobre o próprio pensamento, não poderia deixar de
colocar a análise sobre a linguagem de lado. Confirmamos isso já
com Platão, que, em seu diálogo Crátilo, faz profundas conside-
rações sobre a linguagem e sua capacidade de enunciar as ideias.
© Caderno de Referência de Conteúdo 11

Na modernidade, Locke procura compreender de que ma-


neira se pode obter um uso legítimo e científico para a linguagem.
Mesmo Nietzsche e Heidegger, quando de suas propostas de uma
nova forma de fazer Filosofia, procuraram compreender as estru-
turas da linguagem a fim de encontrar novas possibilidades para a
própria Filosofia.
A Lógica é outro campo da Filosofia que se interessa muito
pela linguagem, visto que trabalha com termos, conjunções, pro-
posições e enunciados. Estes são expressões linguísticas, mas ela
se debruça sobre qual a forma de utilização correta de tais enun-
ciados, termos, proposições etc.
Um dos problemas da Filosofia da Linguagem é a questão de
se uma palavra encerra todo o seu significado em um referente.
Para Frege (1848-1925), por exemplo, ao considerar uma afirmação
como "Fernando Pessoa é Fernando Pessoa", vemos que ela é
imediatamente evidente. Mas considere a afirmação "Fernando
Pessoa é Alberto Caeiro". Essa afirmação é verdadeira, visto que
Alberto Caeiro é um pseudônimo de Fernando Pessoa. No entanto,
não é imediatamente evidente. "[...] se o referente fosse todo o
significado, a verdade desta última sentença deveria ser evidente
por si mesma. [...] Assim deve haver mais no significado" (in
PAPINEAU, p. 57). O que falta então?
A Filosofia da Linguagem apresenta algumas tentativas de
responder a essa questão e de elucidar aqueles problemas levan-
tados anteriormente. Ao longo deste estudo, iremos conhecer es-
ses problemas mais a fundo, e procurar entender como os filóso-
fos procuraram responder a esses paradoxos.
Após essa introdução aos conceitos principais, apresentare-
mos, a seguir, no Tópico Orientações para o estudo, algumas orien-
tações de caráter motivacional, dicas e estratégias de aprendiza-
gem que poderão facilitar o seu estudo.

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12 © Filosofia da Linguagem

2. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO

Abordagem Geral
Neste tópico, apresenta-se uma visão geral do que será es-
tudado neste CRC. Aqui, você entrará em contato com os assuntos
principais deste conteúdo de forma breve e geral e terá a oportu-
nidade de aprofundar essas questões no estudo de cada unidade.
Desse modo, essa Abordagem Geral visa fornecer-lhe o conheci-
mento básico necessário a partir do qual você possa construir um
referencial teórico com base sólida – científica e cultural – para que,
no futuro exercício de sua profissão, você a exerça com competên-
cia cognitiva, ética e responsabilidade social. Vamos começar nossa
aventura pela apresentação das ideias e dos princípios básicos que
fundamentam este CRC.
Nada melhor para começarmos o nosso estudo filosófico
sobre a linguagem que colocar a pergunta: o que é a Filosofia da
Linguagem? Na área da Filosofia, a reflexão analítica sobre a lin-
guagem é ainda bastante obscura. Todavia, temos de deixar bem
claro que, em todos os ramos da Filosofia, a linguagem é aspecto
principal e imprescindível para a transmissão de ideias e conceitos
filosóficos.
Segundo Willian P. Alston (2010), o campo da atuação da Fi-
losofia da Linguagem é de difícil distinção da investigação linguísti-
ca realizada pelas outras ciências, tais como a Filologia, a Psicolo-
gia e a Antropologia.
Falta ainda um critério rigoroso que possa descrever com
propriedade a preocupação filosófica sobre a linguagem. Contudo,
é possível identificar vários pontos da investigação filosófica em
que o problema da linguagem e a sua análise se tornam impres-
cindíveis.
Na metafísica, por exemplo, destacam-se claramente as
questões ligadas à linguagem, uma vez que o seu funcionamento
© Caderno de Referência de Conteúdo 13

discursivo depende exclusivamente de enunciados maximamente


universais, que requerem, por sua vez, uma profunda investiga-
ção filosófica sobre a linguagem. As questões ligadas às catego-
rias, aos universais, entre outros, colocam problemas como o da
correspondência entre as coisas e as palavras, o da possibilidade
de enunciação e o do significado de noções abstratas e universais,
que, fisicamente, não possuem referências.
Desde Platão, colocou-se a importância do caráter univer-
sal da linguagem no fato de um substantivo (seja "homem", seja
"animal") ter a dimensão e o poder de designar vários indivíduos
da mesma espécie ou gênero. Essa constatação levou o filósofo a
conceber a existência de uma natureza geral da qual participam
determinados indivíduos ou coisas (o mundo das ideias). O termo
geral que designa vários indivíduos por meio de um nome gené-
rico, além de possibilitar a comunicação, também protagoniza a
ordenação e a classificação do mundo em seus diversos aspectos.
Uma indagação profunda sobre a natureza da linguagem é encon-
trada, também, em Aristóteles. Em sua obra Metafísica, ele indaga:
Conseqüentemente, poderíamos levantar a questão de se cami-
nhar, estar saudável e sentar significam em cada caso alguma coisa
que é, ou não; e analogamente, no que respeita a quaisquer outros
termos deste tipo, pois nenhum deles, por natureza, possui uma
existência independente ou pode ser dissociado de sua substância
– pelo contrário, se é alguma coisa, é aquilo que caminha, está sen-
tado ou está saudável. Ora, o que torna essas coisas mais verdadei-
ramente existentes é haver algo definido subjacente a elas, isto é, a
substância ou o individual, o que já está implícito numa predicação
desse tipo, uma vez que independentemente dela não podemos
falar do bom ou do sentar. Fica claro, portanto, que é em função da
substância que cada uma dessas categorias existe (ARISTÓTELES,
2006, p. 177).

Evidentemente, para Aristóteles, as palavras que expressam


ações revelam uma ligação intrínseca com sujeitos, que exercem
tais funções ou ações. Trata-se, portanto, de distinguir aquelas par-
tes linguísticas que possuem certa independência (substantivos)
daquelas palavras que expressam ações (verbos). Para as primei-
ras, o estagirita atribui status ontológico; para as segundas, não.

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14 © Filosofia da Linguagem

Para Alston (2010), essa implicação metafísica da linguagem


se torna alvo das investigações filosóficas dos analíticos do
século 20, entre os quais cabe destacar Bertrand Russel e Ludwig
Wittgenstein. O atomismo lógico de Russel explica o simbolismo
linguístico da seguinte maneira:
[...] num simbolismo logicamente correto haverá sempre uma
certa identidade fundamental de estrutura entre um fato e o seu
símbolo respectivo; e... a complexidade do símbolo corresponde
intimamente à complexidade dos fatos por ele simbolizados (apud
ALSTON, 2010).

Evidentemente, para Russel, uma linguagem perfeita consis-


te na correspondência exata entre símbolos linguísticos e coisas ou
situações reais simbolizadas por eles. A ideia básica do atomista
lógico consiste na hipótese de que a linguagem perfeita poderá
auxiliar na descoberta da natureza das relações existentes na reali-
dade entre os fatos que a compõem e seus enunciados linguísticos
adequados.
Mas a Metafísica não é a única área interessada pela análi-
se da linguagem. Um interesse essencial sobre ela possui a Lógica.
Esta se serve de proposições, declarações e premissas para retratar
relações válidas e/ou não válidas. Essas relações dependem exclu-
sivamente do ligamento e da função das palavras nas proposições.
Assim, por exemplo, é possível identificar entre duas proposições
semelhantes que uma é válida e outra não é, conforme o Exemplo 1:

Exemplo 1––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Pedro é motorista do diretor das Casas Bahia.
Pedro compra seus imóveis sempre das Casas Bahia.
Portanto, Pedro não só é motorista do diretor das Casas Bahia, como também é
cliente das Casas Bahia.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O segundo exemplo é bastante semelhante ao primeiro, po-
rém, não tem o mesmo valor de validade que o primeiro. Observe,
a seguir, o Exemplo 2:
© Caderno de Referência de Conteúdo 15

Exemplo 2––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Alguém é motorista do diretor das Casas Bahia.
Alguém compra seus imóveis sempre das Casas Bahia
Portanto, alguém não só é motorista do diretor das Casas Bahia, como também é
cliente das Casas Bahia.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Com base nos exemplos citados, podemos observar que o
Exemplo 1 é logicamente válido, enquanto o Exemplo 2, ao contrá-
rio, é logicamente inválido.
A Epistemologia, junto da Metafísica e da Lógica, também de-
dica atenção especial aos problemas da linguagem, principalmen-
te no que diz respeito ao enunciado de juízos que não provêm da
experiência, com efeito, os juízos a priori. Nesse caso, levanta-se a
seguinte reflexão: se o conhecimento não deriva da experiência, lo-
gicamente não terá nenhuma referência à experiência e, portanto,
nenhuma correspondência entre símbolo linguístico e fatos expe-
rimentais. Assim, a ausência de verificação experimental levanta a
dúvida sobre a veracidade das significações estabelecidas.
Nietzsche, por exemplo, em seu ensaio Sobre verdade e
mentira em um sentido extra-moral, afirma que, entre duas es-
feras totalmente distintas, como é o que ocorre no caso entre o
sujeito e o objeto, não há nenhuma relação causal que comprove a
necessidade absoluta dos enunciados. Segundo Nietzsche, a solidi-
ficação desses conceitos e os conhecimentos enunciados por eles
ocorrem por meio de persuasão. Com efeito, um criador de lingua-
gem cria um determinado conceito e, pela força retórica, convence
os outros a utilizá-lo no mesmo sentido, assim que, retomado pela
tradição e depois de um longo uso, ele parece fixo, vinculativo. Por
esse processo, surge a "verdade". Sobre essa concepção crítica de
Nietzsche, falaremos mais adiante, na Unidade 5.
A análise filosófica sobre a linguagem envolve, também, o
problema da possibilidade de a linguagem comunicar experiên-
cias místicas, intuitivas e transcendentes, que vão para além da
realidade pelos símbolos linguísticos que correspondem a esta.

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16 © Filosofia da Linguagem

Será que a linguagem possui a capacidade de significar tais esta-


dos incomunicáveis? Segundo Pseudo-Dionísio, o conhecimento
de Deus envolve o problema da sua denominação. Nesse caso, a
questão em torno da qual gira a reflexão do teólogo é: como po-
demos chamar Deus?
Para responder a essa questão, ele recorre a duas vias: a via
catafática e a via apofática. A primeira consiste em atribuir a Deus
nomes positivos, tais como "bondade", "justiça", "sabedoria" etc.
A justificativa de denominar Deus por meio de tais nomes consiste
no fato, segundo Pseudo-Dionísio, de que Deus, como criador de
tudo, tenha uma relação íntima com as criaturas e, portanto, ele
pode ser chamado por meio desses nomes. Todavia, essa via posi-
tiva de denominação reduz e equipara Deus às criaturas.
Mas, como criador do mundo, Deus é mais do que as cria-
turas e, por isso, essa denominação se mostra inapropriada. Jus-
tamente por isso, Pseudo-Dionísio tenta corrigir essa falha da lin-
guagem por meio da segunda via de denominação: a via negativa
ou apofática. Se Deus é como princípio do ser, além do ser, então,
segundo o teólogo, é mais apropriado chamá-lo de "não ser". Para
Pseudo-Dionísio, a via negativa parece mais apropriada que a afir-
mativa, na medida em que se exclui qualquer margem de confusão
que uma linguagem criada pode induzir.
As dificuldades com as quais se depara Pseudo-Dionísio estão
constantemente presentes no discurso filosófico. A imperfeição
da linguagem enquanto relacionada às coisas que vão para além
da experiência mostra, grosso modo, a falha ou a impotência da
linguagem, o que, por sua vez, leva os filósofos a ideia de uma
reforma ou correção da linguagem. Não são poucos os filósofos,
como Heidegger e Nietzsche, que veem no discurso filosófico uma
total incapacidade de expressar estados subjetivos, humores e
sentimentos. A linguagem conceitual, uma vez que busca máxima
generalidade, iguala o não igual e, com isso, despoja o sujeito da
sua subjetividade, torna-o inautêntico. Justamente por isso, para
© Caderno de Referência de Conteúdo 17

corrigir essa impotência do conceito, tais filósofos lançam mão da


linguagem figurativa, das metáforas e da poesia, que oferece maior
margem para interpretação, conforme a subjetividade do indivíduo.
Essa ênfase na metáfora, como forma linguística de comuni-
car o incomunicável, aparece com Schelling. Para ele, a metáfora é
símbolo do absoluto, por meio da qual o gênio expõe sensivelmen-
te o absoluto. Em outras palavras, a intuição estética seria, para o
idealista, uma exposição sensível do absoluto.
Surge, assim, a pergunta: será que a arte, por meio das ex-
pressões metafóricas, é capaz de substituir a linguagem conceitual
na tarefa fundamental da Filosofia – a especulação sobre o ser?
Uma pergunta difícil que a Filosofia da Linguagem se coloca como
desafio.
Segundo Alston (2010), outra tarefa da análise filosófica da
linguagem configura-se pela análise conceitual. Em toda a História
da Filosofia, os conceitos básicos da Filosofia são colocados cons-
tantemente à prova. Questões como "o que é causalidade, subs-
tância, acidente etc.?" e "como eles aparecem no mundo e qual
a sua natureza?" deixam os filósofos perplexos. Em grande parte,
podemos constatar que a Filosofia consiste em análise de concei-
tos e na sua correspondência com a realidade.
Partindo desses problemas filosóficos e de sua implicação
linguística, agora, temos já uma indicação prévia para as questões
fundamentais de uma análise filosófica sobre a linguagem. Além
da análise conceitual, a Filosofia da Linguagem busca mergulhar-
-se na investigação das funções linguísticas, na classificação de ter-
mos, na tipologia de metáforas, nas relações entre linguagem e
pensamento, nas formas semânticas etc. Todas essas investigações
exercem um papel fundamental, enriquecendo os debates filosó-
ficos, principalmente na contemporaneidade, em que se configura
a Filosofia Analítica.

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18 © Filosofia da Linguagem

Glossário de Conceitos
O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rápi-
da e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um bom
domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área de conhe-
cimento dos temas tratados neste Caderno de Referência de Conteú-
do Filosofia da Linguagem. Veja, a seguir, a definição dos principais
conceitos:
1) Categorias: segundo Legrand (1983), para Aristóteles, as
categorias representam diferentes classes de seres. Os
"diversos sentidos que podem assumir o sujeito e o atri-
buto de uma proposição lógica" (LEGRAND, 1983, p. 72)
podem ser agrupados em nove categorias: "substância,
quantidade, qualidade, relação, posição, ação, paixão,
lugar e tempo" (LEGRAND, 1983, p. 72).
2) Conceitos: "é, em princípio, o produto da abstracção e
da generalização a partir das imagens ou dos objetos
particulares; exprime-se por uma palavra, geralmente
um nome" (LEGRAND, 1983, p. 86).
3) Discurso: "Encadeamento de conceitos e de noções,
apresentando-se notavelmente sobre a forma de juí-
zos, que constitui a expressão do pensamento racional".
Nesse sentido, pode-se dizer que o discurso é a expres-
são do logos e que ele está de acordo com uma forma de
ver o mundo de maneira organizada que é a do Cosmo,
que se diferencia daquele discurso que fala do mundo
entendido como Caos (desorganizado).
4) Doutrina oficial: um dos nomes dados por Ryle à filoso-
fia cartesiana, dada sua grande aceitação.
5) Eliminativista: o eliminativismo é uma tendência em fi-
losofia da mente que nega a existência dos estados men-
tais e busca somente explicações provenientes dos pro-
cessos neurofisiológicos que ocorrem no cérebro.
6) Essência: "Do latim essentia, termo traduzido por Cícero
para traduzir do grego ousia" (LEGRAND, 1983, p. 152).
Na escolástica, representa uma das divisões do ser a qui-
didade. Para Platão, eram as ideias imutáveis; para Aris-
tóteles, as formas inteligíveis. A essência é aquilo que faz
© Caderno de Referência de Conteúdo 19

que uma coisa seja aquilo que é e não outra. Na querela


dos universais, a essência representa a existência de uma
natureza geral, como, por exemplo, a "humanidade".
7) Etimologia: "Sabe-se que o termo 'etimologia' é ele
próprio um exemplo de sentido não etimológico, pois
ao pé da letra significaria 'estudo da verdadeira signifi-
cação das palavras', ao passo que a ciência etimológica
há muito renunciou a ocupar-se de outra coisa que não
fosse a origem da palavras. Especialmente em filosofia,
importa desconfiar das interpretações dos termos muito
estritamente fundados em aproximações etimológicas
ou filosóficas. Tais aproximações podem ser legítimas,
mas não deveriam de direito transformar, sem outra jus-
tificação, a acepção geralmente recebida de uma noção
ou de um conceito. Os jogos etimológicos de palavras
implicando a indicação de um problema filosófico foram
praticados desde a Antiguidade especialmente por He-
ráclito: tratava-se de dissimular seu pensamento sob a
capa de expressões com duplo sentido. No Crátilo, diá-
logo cujo herói é precisamente um heraclitiano, Platão
utiliza abundantemente o mesmo método, não sem um
sentido de zombaria. O problema que pretende levantar
é o da validade da linguagem" (LEGRAND, 1983, p. 158).
8) Existência: "Como modo de ser determinado ou defini-
do de certo modo, esse costuma ser usado na linguagem
comum e nas diversas áreas científicas. Fala-se, com
efeito, da E. de entes matemáticos e há, em matemática
um 'teorema de E.'. Analogamente, fala-se de E. 'lógi-
ca' ou 'conceitual' ou ainda de E. 'fantástica', do mesmo
modo que os escolásticos falavam da E. 'no intelecto'
ou da E. 'na realidade'; fala-se também de E. 'em si' (da
substância) ou de E. 'em outra coisa' (das qualidades ou
acidentes da substância)" (ABBAGNANO, 1998, p. 398).
9) Filosofia da linguagem em seu sentido ideal: filosofia
que admite que a linguagem natural pode ser reduzida a
uma linguagem formal lógico-matemática.
10) Filosofia Analítica: é um nome dado à filosofia que se
ocupa com a análise da linguagem para lidar com as
mais diversas questões filosóficas.

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20 © Filosofia da Linguagem

11) Gramática: "Segundo uma tradição iniciada por Dió-


genes Laércio (III, 25), Platão foi o primeiro a "teorizar
a possibilidade da G.". [...] é frequente nos textos de
Platão a referência à G., cuja natureza é definida com
precisão no Crátilo. [...] Assim como um artista procu-
ra reproduzir os traços dos objetos com o desenho e as
cores, o gramático procura fazer a mesma coisa com as
sílabas e as letras. Seu objetivo é "imitar a substância das
coisas". Se ele chegou a reproduzir tudo o que pertence
a essa substância, sua imagem será bela, mas, se deixar
alguma coisa fora ou se acrescentar algo não pertinente,
sua imagem não será bela. Nesse aspecto, o gramático é
um 'artífice de nomes, portanto um legislador que pode
ser bom ou mau' (Crat., 142 b SS). Esse é o primeiro con-
ceito de G. formulado, e é normativo porque, segundo
ele, o gramático não descreve, mas prescreve: é um le-
gislador. [...] Foi só com Humboldt que surgiu um novo
conceito de G., no famoso texto Sobre a diversidade da
constituição da linguagem humana (1836), a partir do
qual a G. começou a ser concebida com uma disciplina
não normativa, mas descritiva, sendo seu objetivo inves-
tigar, na língua, as uniformidades que constituem regras
ou leis" (ABBAGANANO, 1998, p. 490).
12) Isomorfismo lógico: ideia segundo a qual uma propo-
sição e o estado de coisas possível que ela afigura pos-
suem em comum uma estrutura lógica definida.
13) Linguagem: "Em geral, o uso de signos intersubjetivos
que possibilitam a comunicação. Por uso entende-se: 1º
possibilidade de escolha (instituição, mutação, correção)
dos signos; 2º possibilidade de combinação de tais signos
de maneiras limitadas e repetíveis. Este segundo aspec-
to diz respeito às estruturas sintáticas da L., enquanto o
primeiro se refere ao dicionário da L. A moderna ciên-
cia da L. tem cada vez mais insistido [...] na importância
das estruturas lingüísticas, ou seja, das possibilidades de
combinações delimitadas pela L. Elementos como 'Só-
crates, 'homem', 'é', 'e', 'todos', 'não' etc. são todos pa-
lavras, isto é, signos intersubjetivos, mas só podem fazer
parte de um discurso com uma função determinada: só
© Caderno de Referência de Conteúdo 21

podem combinar-se com outros signos em modos limi-


tados e reconhecíveis" (ABBAGNANO, 1998, p. 615).
14) Lógica clássica: está praticamente fundada nas obras de
"Aristóteles, cujo grupo de textos, reunidos no Organon,
constitui o primeiro estudo amplo dessa disciplina, falta
a palavra para designá-la. No início de Analíticos, o traba-
lho mais estritamente 'lógico' dessa coleção, Aristóteles
define, sem dar nome, a disciplina que se prepara para
investigar como ciência da demonstração e do saber de-
monstrativo (Na. pr., I, 24 a 10 ss), mas num texto não
muito claro. Seus objetos são relacionados na seqüência
do trecho: a proposição (como enunciado apofântico, in-
serido num discurso demonstrativo), seu termos (sujeito
e predicado) e o silogismo" (ABBAGNANO, 1998, p 624).
15) Lógica simbólica: "representando os termos com símbo-
los genéricos (p. ex. letras do alfabeto: a, b, c,..., x, y, z; X,
Y, Z; e semelhantes) e as operações lógicas com símbo-
los vários (geralmente tomados de empréstimo da arit-
mética: +, ×, =; etc.) é possível tentar desenvolver uma
doutrina matemática do discurso" (ABBAGNANO, 1998,
p. 627).
16) Logos: "A doutrina do L. como substância ou causa do
mundo foi defendida pela primeira vez por Heráclito:
'Os homens são obtusos com relação ao ser do L., tanto
antes quanto depois que ouviram falar dele; e não pare-
cem conhecê-lo, ainda que tudo aconteça segundo o L.'
(Fr. 1. Diels). O L. é concebido por Heráclito como sen-
do a própria lei cósmica [...]. Esta concepção foi tomada
pelos estóicos, que viram na razão o 'princípio ativo' do
mundo, que anima, organiza, e guia seu princípio passi-
vo, que é a matéria. 'O princípio ativo' – diziam – 'é o L.
que está na matéria, é Deus: ele é eterno e, através da
matéria, é artífice de todas as coisas' (DIÓG. L., VII, 134)"
(ABBAGNANO, 1998, p. 630).
17) Metáfora: "Transferência de significado. Aristóteles diz:
'A M. consiste em dar a uma coisa um nome que perten-
ce a outra coisa: transferência que pode realizar-se do
gênero para a espécie, da espécie para o gênero, de uma
espécie para outra ou com base numa analogia' (Poet.,

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22 © Filosofia da Linguagem

21, 1457 b 7). A noção de M. algumas vezes foi emprega-


da para determinar a natureza da linguagem em geral...
Como instrumento lingüístico, hoje sua definição não é
diferente da de Aristóteles. Quanto à mítica dos povos
primitivos, que é substancialmente a identificação da ex-
pressão metafórica com o objeto (cf. Cassirer, Language
and Myth, 1946)" (ABBAGNANO, 1998, p. 667).
18) Mito: é uma tentativa ingênua de explicação do mundo.
Quando não há uma explicação racional sobre os seus
fenômenos, recorre-se aos mitos como forma de expli-
cá-los, pois qualquer explicação, mesmo a mitológica, é
melhor do que a falta de explicação diante do desconhe-
cido. O traço fundamental do mito é que este se utiliza
de representações sobrenaturais, deuses, forças, gigan-
tes, monstros etc. para explicar fenômenos.
19) Nominalismo: "Atitude filosófica que nenhuma subs-
tância metafísica se esconde por trás das palavras: as
pretensas essências não são nada além de palavras ou
signos que representam coisas sempre singulares. Con-
tradiz desse modo o realismo de tipo platônico e o con-
ceitualismo" (DUROZOI; ROUSSEL, 1993, p. 344).
20) Pragmatismo: "A princípio empregado pelo americano
Peirce, o termo designa uma doutrina que se desenvolveu
no final do século XIX e obteve um grande sucesso nos
Estados Unidos. O anti-intelectualismo, que anima os
defensores do pragmatismo, inspira-se principalmente
na atitude de Nietzsche, para o qual 'não existe outro
critério da verdade além do sentimento de crescimento
de poder'. [...] De acordo com os pragmatistas, o critério
da verdade reside no valor prático, no sucesso e na
eficácia. Assim, são as aplicações práticas que constituem
a verdade de uma lei, de uma teoria científica; da
mesma forma, é o poder de reconforto da qual é capaz
que faz a verdade um religião. Em suma, são 'idéias que
valem a pena', de acordo com [...] W. James" (DUROZOI;
ROUSSEL, 1993, p. 376).
21) Primeiro Wittgenstein: nesse caso, refere-se à restrição
do campo de discussão. Significa que a discussão ficará
© Caderno de Referência de Conteúdo 23

em torno das teses contidas na obra Tractatus logico-


-philosophicus.
22) Realismo: "Designa globalmente, na metafísica, qual-
quer doutrina que afirma a existência do ser indepen-
dente do conhecimento que o pensamento dele pode
adquirir. Denomina-se realismo ontológico a tese platô-
nica segundo a qual as idéias são mais reais do que as
coisas sensíveis, que só constituem cópias degradadas
delas; na Idade Média, essa forma particular de idealis-
mo resulta no realismo dos Universais, que admite que
permanece fora do espírito alguma coisa que correspon-
de aos conceitos universais" (DUROZOI; ROUSSEL, 1993,
p. 400-401).
23) Semiótica: "termo usado inicialmente para indicar a ciên-
cia dos sintomas em medicina (cf. GALENO, Op. ed. Kün,
XIV, 689), foi proposto por Locke para indicar a doutrina
dos signos, correspondente à lógica tradicional (Ensaio,
IV, 21, 4); depois empregado por Lambert como título da
terceira parte de seu Novo Organon (1764). Na filosofia
contemporânea, E. Morris utilizou o conceito de S. como
teoria da semiose..., mais do que signo, dividindo a S.
em três partes, que correspondem às três dimensões da
semiose: semântica, que considera a relação dos signos
com os objetos a que se referem; pragmática, que con-
sidera a relação dos signos com os intérpretes; sintática
que considera a relação formal dos símbolos entre si"
(ABBAGNANO, 1998, p. 870).
24) Sense-data: dados sensíveis, recolhidos pelos sentidos.
25) Significado: "Termo introduzido em Lingüística por F.
de Saussure para designar, em sua aliança com o signi-
ficante, o que se chama tradicionalmente de conceito
tal como é enunciado pelo signo ou palavra. A relação
do significado é arbitrária em cada língua" (DUROZOI;
ROUSSEL, 1993, p. 434).
26) Signo: "Percepção que determina uma informação que
concerne qualquer coisa de não diretamente percebida
ou perceptível (por exemplo, a sirene como sinal de
incêndio). Gesto ou atitude que comunica um desejo
ou uma ordem [...]. Vínculo entre uma significação e

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24 © Filosofia da Linguagem

um elemento (fônico ou gráfico) de comunicação [...]"


(DUROZOI; ROUSSEL, 1993, p. 434).
27) Símbolo: "É inicialmente um sinal de reconhecimento
formado pelas duas metades de um objeto quebrado
que se aproximam. Daí, mais geralmente, um signo
que designa outra coisa além dele próprio em virtude
de uma analogia natural ou por decisão convencional.
São desse modo de ordem simbólica o uso da balança
para evocar a justiça, mas igualmente a linguagem em
seu conjunto ou os sinais abstratos da matemática"
(DUROZOI; ROUSSEL, 1993, p. 436).
28) Solipsismo: neste contexto, o termo "solipsismo" remete
somente a possibilidade da existência apenas do "Eu" car-
tesiano e seus conteúdos (literalmente o "Eu" sozinho).
29) Teoria pictorial: teoria que admite que as proposições
da linguagem possam ser comparadas com figuras no
sentido literal da palavra.
30) Teoria semântica: teoria que propõe investigar a nature-
za do significado.
31) Valor de verdade: possibilidade de uma proposição ser
verdadeira ou falsa.
32) Verdade: "(gr. ὰλήθεια; lat. Veritas; in. Truh; fr. Vérité; al.
Wahrheit; it. Verità). Validade ou eficácia dos procedimen-
tos cognoscitivos. Em geral, entende-se por V. a qualidade
em virtude da qual um processo cognoscitivo qualquer
torna-se eficaz ou obtém êxito. Essa caracterização pode
ser aplicada tanto às concepções segundo as quais o co-
nhecimento é um processo mental quanto às que o con-
sideram um processo lingüístico ou semiótico. Ademais,
tem a vantagem de prescindir da distinção entre definição
de V. e critério de V." (ABBAGANANO, 1998, p 994).

Esquema dos Conceitos-chave


Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais
importantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um
Esquema dos Conceitos-chave. O mais aconselhável é que você
mesmo faça o seu esquema de conceitos-chave ou até mesmo o
© Caderno de Referência de Conteúdo 25

seu mapa mental. Esse exercício é uma forma de você construir o


seu conhecimento, ressignificando as informações a partir de suas
próprias percepções.
É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos
Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações en-
tre os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos mais
complexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliar você
na ordenação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de
ensino.
Com base na teoria de aprendizagem significativa, entende-se
que, por meio da organização das ideias e dos princípios em esque-
mas e mapas mentais, o indivíduo pode construir o seu conhecimen-
to de maneira mais produtiva e obter, assim, ganhos pedagógicos
significativos no seu processo de ensino e aprendizagem.
Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem es-
colar (tais como planejamentos de currículo, sistemas e pesquisas
em Educação), o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se, ainda,
na ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel, que es-
tabelece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos
conceitos e de proposições na estrutura cognitiva do aluno. Assim,
novas ideias e informações são aprendidas, uma vez que existem
pontos de ancoragem. 
Tem-se de destacar que "aprendizagem" não significa, ape-
nas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno; é preci-
so, sobretudo, estabelecer modificações para que ela se configure
como uma aprendizagem significativa. Para isso, é importante con-
siderar as entradas de conhecimento e organizar bem os materiais
de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e os novos concei-
tos devem ser potencialmente significativos para o aluno, uma vez
que, ao fixar esses conceitos nas suas já existentes estruturas cog-
nitivas, outros serão também relembrados.
Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é
você o principal agente da construção do próprio conhecimento,

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26 © Filosofia da Linguagem

por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações


internas e externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por
objetivo tornar significativa a sua aprendizagem, transformando
o seu conhecimento sistematizado em conteúdo curricular, ou
seja, estabelecendo uma relação entre aquilo que você acabou
de conhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de
mundo (adaptado do site disponível em: <http://penta2.ufrgs.
br/edutools/mapasconceituais/utilizamapasconceituais.html>.
Acesso em: 11 mar. 2010).

Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave do Caderno de Referência de Conteúdo


Filosofia da Linguagem.

Como você pode observar, esse Esquema dá a você, como


dissemos anteriormente, uma visão geral dos conceitos mais im-
portantes deste estudo. Ao segui-lo, você poderá transitar entre
um e outro conceito deste CRC e descobrir o caminho para cons-
© Caderno de Referência de Conteúdo 27

truir o seu processo de ensino-aprendizagem.


O Esquema dos Conceitos-chave é mais um dos recursos de
aprendizagem que vem se somar àqueles disponíveis no ambiente
virtual, por meio de suas ferramentas interativas, bem como àqueles
relacionados às atividades didático-pedagógicas realizadas presen-
cialmente no polo. Lembre-se de que você, aluno EaD, deve valer-se
da sua autonomia na construção de seu próprio conhecimento.

Questões Autoavaliativas
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais podem ser
de múltipla escolha, abertas objetivas ou abertas dissertativas.
Responder, discutir e comentar essas questões, bem como
relacioná-las com a prática do ensino de Filosofia pode ser uma
forma de você avaliar o seu conhecimento. Assim, mediante a re-
solução de questões pertinentes ao assunto tratado, você estará
se preparando para a avaliação final, que será dissertativa. Além
disso, essa é uma maneira privilegiada de você testar seus conhe-
cimentos e adquirir uma formação sólida para a sua prática profis-
sional.
Você encontrará, ainda, no final de cada unidade, um gabari-
to, que lhe permitirá conferir as suas respostas sobre as questões
autoavaliativas de múltipla escolha.

As questões de múltipla escolha são as que têm como respos-


ta apenas uma alternativa correta. Por sua vez, entendem-se por
questões abertas objetivas as que se referem aos conteúdos
matemáticos ou àqueles que exigem uma resposta determinada,
inalterada. Já as questões abertas dissertativas obtêm por res-
posta uma interpretação pessoal sobre o tema tratado; por isso,
normalmente, não há nada relacionado a elas no item Gabarito.
Você pode comentar suas respostas com o seu tutor ou com seus
colegas de turma.

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28 © Filosofia da Linguagem

Bibliografia Básica
É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus
estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as biblio-
grafias complementares.

Figuras (ilustrações, quadros...)


Neste material instrucional, as ilustrações fazem parte inte-
grante dos conteúdos, ou seja, elas não são meramente ilustra-
tivas, pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no
texto. Não deixe de observar a relação dessas figuras com os con-
teúdos do CRC, pois relacionar aquilo que está no campo visual
com o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual.

Dicas (motivacionais)
O estudo deste CRC convida você a olhar, de forma mais apu-
rada, a Educação como processo de emancipação do ser humano.
É importante que você se atente às explicações teóricas, práticas
e científicas que estão presentes nos meios de comunicação, bem
como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois, ao com-
partilhar com outras pessoas aquilo que você observa, permite-se
descobrir algo que ainda não se conhece, aprendendo a ver e a
notar o que não havia sido percebido antes. Observar é, portanto,
uma capacidade que nos impele à maturidade.
Você, como aluno do curso de Graduação na modalidade
EaD, necessita de uma formação conceitual sólida e consistente.
Para isso, você contará com a ajuda do tutor a distância, do tutor
presencial e, sobretudo, da interação com seus colegas. Sugeri-
mos, pois, que organize bem o seu tempo e realize as atividades
nas datas estipuladas.
É importante, ainda, que você anote as suas reflexões em seu
caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas poderão ser
utilizadas na elaboração de sua monografia ou de produções científicas.
© Caderno de Referência de Conteúdo 29

Leia os livros da bibliografia indicada, para que você amplie


seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático, discuta
a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoaulas.
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões au-
toavaliativas, que são importantes para a sua análise sobre os conteúdos
desenvolvidos e para saber se estes foram significativos para sua forma-
ção. Indague, reflita, conteste e construa resenhas, pois esses procedi-
mentos serão importantes para o seu amadurecimento intelectual.
Lembre-se de que o segredo do sucesso em um curso na
modalidade a distância é participar, ou seja, interagir, procurando
sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores.
Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a
este CRC, entre em contato com seu tutor. Ele estará pronto para
ajudar você.

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30 © Filosofia da Linguagem
EAD
Introdução à Filosofia da
Linguagem

1
1. OBJETIVOS
• Conhecer a problemática fundamental da Filosofia da Lin-
guagem.
• Compreender a importância da linguagem para todas as
esferas da atividade humana em geral e, também, a liga-
ção íntima entre a linguagem e a especulação filosófica
em particular.
• Investigar sobre a natureza, a formação e a essência da
linguagem.

2. CONTEÚDO
• Sobre a natureza da linguagem.
• Texto complementar.
32 © Filosofia da Linguagem

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Não deixe de sanar suas dúvidas. Entre em contato com
seu tutor pelas diversas ferramentas disponíveis, e não
se esqueça: é você quem faz a diferença!
2) Não deixe de consultar as definições básicas dos princi-
pais conceitos do CRC. Para isso, consulte regularmente
o Tópico Glossário de Conceitos.
3) Procure ler os livros indicados nas referências bibliográ-
ficas. Aprofunde seus estudos!
4) Antes de iniciar os estudos desta unidade, pode ser inte-
ressante conhecer um pouco da biografia de Humberto
Eco.

Humberto Eco
Pensador, comunicador e escritor italiano, considerado
como um dos intelectuais mais relevantes da Europa na se-
gunda metade do século 20 e começo do 21. [...]; o mundo
do teatro, da televisão, da banalização midiática, da cultura
popular e outros aspectos serviram de argumento a textos
como Apocalípticos e integrados ante la cultura de ma-
sas, El superhombre de masas, Retórica e ideología en la
novela popular etc. A comunicação, incluído o despertar da
internet, está não só em sua obra escrita, mas, também, em
sua permanente presença pública, em conferências, arti-
gos periódicos, intervenções acadêmicas (INFOAMÉRICA,
Figura 1 Humberto Eco 2011, tradução nossa).

4. SOBRE A NATUREZA DA LINGUAGEM


O problema da natureza, da formação e da essência da lin-
guagem, da sua estrutura, do seu funcionamento e do seu papel
decisivo para realização das atividades sociopolíticas, culturais e
comunicativas atrai a curiosidade do homem desde a antiguida-
de remota. Naturalmente, no início, esse interesse em torno do
fenômeno linguístico possui um caráter espontâneo e confuso do
ponto de vista de uma ciência. Mas, justamente assim, decorre o
© U1 - Introdução à Filosofia da Linguagem 33

complexo processo de penetração do homem na sua relação mais


íntima, mais profunda e mais complexa: a ligação mútua entre lin-
guagem e pensamento, linguagem e consciência.
Num sentido retrospectivo, pode-se dizer que a especulação
sobre os problemas da linguagem data desde os séculos 5º e 6º
a.C. Como principais protagonistas dessa especulação, podemos
apontar os "sacerdotes da reflexão filosófica" Platão e Aristóteles
e, um século mais tarde, Crisipo. Mais adiante, na aurora da Ida-
de Média, deparamo-nos como Porfírio e Boécio – os introdutores
daquela discussão sobre os universais que dominará por completo
o período medieval, em que a sua principal problemática gira em
tono da linguagem.
Temos de deixar claro, todavia, que a formação de uma me-
todologia científica sobre os problemas da linguagem na antigui-
dade estava intimamente ligada com a formação das diversas rami-
ficações da ciência e, sobretudo, com os problemas da Heurística,
principalmente Filosofia, Matemática, Lógica e, em partes, Linguís-
tica. Entretanto, visto de maneira mais rigorosa, o problema da
natureza da linguagem, da sua estrutura e do seu funcionamento,
que desempenham um papel imprescindível nas relações científi-
cas e sociocomunicativas, chega ao seu verdadeiro status apenas
a partir do século 18. Uma das principais razões da valorização da
análise da linguagem são as crises profundas que assediam a con-
cepção teórica ligada às descobertas dos paradoxos na Filosofia,
na Lógica e nas determinações lógicas da Matemática no final do
século 19. Procura-se, em razão disso, a configuração de uma nova
concepção científica sobre a natureza da linguagem, enfatizando-
-se os dois modos da linguagem – a natural e a científica, e, claro,
a relação entre ambas.
Os problemas referentes à formação e ao desenvolvimento
das concepções contemporâneas da linguagem possuem uma pré-
-história não tão remota que se caracteriza com a sua tendência
fenomenológica. Para explicitarmos melhor essa tendência feno-

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34 © Filosofia da Linguagem

menológica da linguagem, faremos uma citação livre referente a


algumas concepções desse tipo.
Segundo Humboldt (in HEIDERMANN, 2006), a linguagem
é um órgão originado do pensamento. A atividade intelectual –
puramente espiritual, profundamente interna e passando sem
rastros –, mediante o som da fala, materializa-se e torna-se aces-
sível para a percepção sensível. Justamente por isso, a atividade
do pensamento e a linguagem formam uma unidade inseparável.
Para Humbold, a linguagem aparece como manifestação externa
da vida interna dos povos. A linguagem do povo – afirma o filósofo
– é o seu espírito, e este, por sua vez, é a sua linguagem. A lingua-
gem, por si mesma, retrata a atividade ininterrupta do espírito,
que cada vez mais tende a transformar o som em expressão do
pensamento.
Outro pensador em destaque que brilhantemente definiu
semelhante disposição sobre a linguagem é Marx. Para ele, o es-
pírito, desde o começo, é marcado pela maldição de ser carrega-
do com a matéria, que se expressa em camadas moventes de ar,
sons – com uma palavra, em linguagem. A linguagem é o prático
que existe e é utilizado por todos nós. Dito de outra maneira, a
linguagem é a realidade concreta do pensamento. O discurso é a
manifestação empírica do pensamento.
Apesar de serem corretas essas concepções sobre a lingua-
gem, elas apenas giram em torno da linguagem natural, isto é, gi-
ram em torno da tradição comunicativa da linguagem e esta não
é a única versão de linguagem em geral. Aliás, do que estamos
falando?
O desenvolvimento intensivo do conhecimento científico da
modernidade até nossos dias possibilitou, cada vez mais, o desen-
volvimento de novas ciências e de novas teorias. Paralelamente,
com esse surto de ciências e teorias, surge a necessidade, cada vez
mais presente, da construção de correspondentes formas de lin-
guagem, que recebe nome de linguagem científica especializada.
© U1 - Introdução à Filosofia da Linguagem 35

Inicialmente, essa nova linguagem foi construída à base da lingua-


gem natural; todavia, aos poucos, ela abandonou a "naturalidade"
definitivamente por causa da introdução de equivalentes signos
linguísticos, que contemplam a especificidade da ciência ou teoria
científica. Surgem, assim, as linguagens científicas motivadas e es-
timuladas pelas ciências dedutivo-formais. Delas, originam-se, por
sua vez, as linguagens formais da ciência.
Hoje em dia, portanto, a análise sobre a linguagem deve to-
mar como referência essa tripla dimensão da linguagem: natural,
científica e formal. Então, podemos perguntar: onde devemos
procurar a fundamentação e a motivação de uma tipologia da ca-
tegoria "linguagem em geral"? O método tradicional ou fenome-
nológico (que analisamos anteriormente) é bastante carente de
potencial heurístico e construtivo e, portanto, incapaz de dar uma
resposta à questão antes colocada. Uma proposta positiva para
essa questão pode nos levar à Lógica Semiótica. Temos de desta-
car, todavia, numa relação íntima com a adequadamente orien-
tada, isto é, bem definida em relação ontoepistemólogica, deno-
minada aqui de doutrina filosófica que determina o panorama da
lógica contemporânea em geral. Assim entendida, ela, com certa
aproximação, reproduz e representa a quintessência ou a recons-
trução puramente abstrata da complexa e atual arquitetura do Lo-
gos em geral.
Vale aqui perguntarmos: em que se fundamenta o grande
potencial heurístico da semiótica entendida como teoria geral dos
signos e dos sistemas de signos no que diz respeito à questão da
natureza da linguagem e dos signos linguísticos?
A principal noção da categoria da semiótica é o signo. O pro-
cesso mediante o qual algo funciona como signo é denominado
semiosis – relação de designação ou nomeação. Charles Moriz, em
sua obra Fundamentos da teoria dos signos, afirma que, ainda en-
tre os antigos gregos (visando à semiótica dos megárico-estoicos),
havia clara distinção entre quatro aspectos principais no semiosis:

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36 © Filosofia da Linguagem

1) Portador de signo.
2) Designado (objeto designado).
3) Interpretado (a imagem mental do designado).
4) Intérprete (sujeito que utiliza o signo).
A partir dessa distinção, não será difícil esclarecer o caráter
relacional do signo, isto é, que o significado do signo é justamente
a informação fixada pelo designado, que é possível por meio do
sujeito em relação na semiosis e que, por assim dizer, se prende ao
portador do signo. Como resultado disso, o signo assume o esta-
tuto de expressão sintética da unidade dos principais aspectos da
semiosis e, com isso, torna-se o fator principal de cada ato comu-
nicativo. Em outras palavras, o signo objetivado (o nome) adquire
o poder de representar ou substituir o objeto representado no ato
da comunicação. Esta, por sua vez, se realiza somente por meio de
um sistema rigorosamente organizado de signos, de acordo com
determinadas regras. Tais regras são seguintes:
1) Regras sintáticas (formais) – para a formação de cons-
tructos de signos.
2) Regras semânticas (conteúdo) – para a significabilidade
dos signos e de constructos de signos.
3) Regras pragmáticas – para a utilização dos signos e dos
constructos de signos.
Agora, podemos descrever, de modo mais exato e mais bre-
ve, a erística do método semiótico na concepção da natureza e
do funcionamento da linguagem em geral. Antes de tudo, temos
de deixar bem claro que cada linguagem possui o caráter de de-
terminado sistema de signos. Simultaneamente, devemos desta-
car que nem toda aglomeração de signos possui a qualidade de
linguagem. Um aspecto fundamental dessa explicação possui a
noção de interpretação. Por essa noção, podemos fazer a dife-
renciação entre dois grupos de signos: interpretados – aqueles
que possuem sentido, e não interpretados, ou seja, aqueles que
não possuem sentido. Grosso modo, trata-se, por um lado, de
sistemas de signos com sentido e estrutura semânticos e, por ou-
© U1 - Introdução à Filosofia da Linguagem 37

tro, de sistemas de signos sem sentido semântico. Para que haja


estrutura de linguagem, cada sistema de signos deve atender às
seguintes exigências:
1) Ser construído de acordo com os principais componen-
tes da relação semiosis.
2) Possuir sentido.
3) Ter diferenciação entre as dimensões sintáticas, semân-
ticas e pragmáticas dos signos.
4) Essas dimensões devem operar simultaneamente, em
sincronia.
5) O sistema de signos deve ser capaz de revelar efeitos
informativos e comunicativos, ou seja, de realizar a exi-
gência de universalidade.
6) Deve haver clara diferenciação entre linguagem natural,
linguagem científica e linguagem formal. Mas essa dife-
renciação expõe um problema: esses diferentes modos
de linguagem satisfazem às exigências anteriormente
estabelecidas de universalidade do sistema linguístico?
A resposta para essa questão pode ser breve, mas a sua
argumentação, bastante longa. Todavia, podemos dizer
que apenas a linguagem natural possui uma estrutura
universal. Essa universalidade se determina pela sua es-
trutura e funcionamento polissemânticos. Ao contrário,
a linguagem artificial (científica e formal) caracteriza-se
por sua estrutura monossemântica. Em outras palavras,
ela não tem caráter universal. Mas, da peculiaridade dos
seus caracteres, derivam alguns aspectos importantes
para as relações funcionais de cada uma delas.
Pela força do seu caráter monossemântico, a linguagem ar-
tificial expressa a sua rigorosa e não contraditória determinação
ou definição lógica. Inversamente, a linguagem natural não cede
a essa rigorosidade lógica. Ainda mais, ela já é, por si mesma, lo-
gicamente contraditória, e esse seu caráter deriva da sua nature-
za polissemântica. Em compensação, ela é linguagem universal. A
natureza universal da linguagem natural significa, ainda, que nela
sejam traduzíveis todas as outras linguagens.

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38 © Filosofia da Linguagem

A formação da linguagem natural caracteriza-se como es-


pontânea e não planejada; ela é produto de um processo histórico-
-natural na sua qualidade de sistema comunicativo e informativo.
Ela serve como meio universal de codificação, acumulação e vei-
culação de informação semiótica. Como uma realidade empírica,
a linguagem natural realiza-se como uma atividade oral específica.
Na sua qualidade de realidade concreta do pensamento huma-
no, a linguagem natural realiza o ato de modelação semiótica da
comunicação intersubjetiva e da relação do homem com o meio
ambiente. Cabe destacar que essa linguagem é bastante variável
e flexível nas suas expressões linguísticas, embora conserve e de-
senvolva as principais formas de memorização e acumulação da
experiência sociocultural da humanidade e, também, a transmis-
são dessa experiência.
Em conclusão, podemos afirmar que, em decorrência de
uma história milenária de formação e desenvolvimento, o estudo
sobre a origem da linguagem fica cada vez mais atual e mais pre-
sente nas discussões filosóficas sobre a linguagem.
O texto complementar que se segue tem o propósito não
apenas de enriquecer a nossa discussão sobre a importância da
linguagem, mas também de destacar o importante vínculo entre
o ser – o objeto privilegiado da especulação filosófica – e o modo
da sua revelação pela linguagem. Propomos, para tal fim, a intro-
dução do livro Semiótica e a filosofia da linguagem, de Humberto
Eco.

5. TEXTO COMPLEMENTAR

Semiótica e Filosofia da Linguagem –––––––––––––––––––––


Interrogar-se sobre as relações entre semiótica e filosofia da linguagem requer,
antes de mais nada, uma distinção entre semióticas específicas e semiótica geral.
Uma semiótica específica é uma gramática de um determinado sistema de signos.
Há gramáticas de linguagem gestual dos surdos-mudos americanos, gramáticas
do inglês e gramáticas dos sinais de trânsito.
© U1 - Introdução à Filosofia da Linguagem 39

Tomo o termo "gramática" no seu sentido mais lato, a ponto de incluir, ao lado de
uma sintática e uma semântica, também uma série de regras pragmáticas. Não
pretendo interrogar-me, neste momento, sobre a possibilidade e os limites de uma
ciência humana, mas parece-me que as semióticas específicas mais maduras
podem aspirar a um estatuto científico, incluindo-se aí a capacidade de prever
os comportamentos semióticos "médios" e a possibilidade de enunciar hipóteses
falsificáveis. É óbvio que estamos diante de um campo muito vasto de fenômenos
semióticos, e que existem sensíveis diferenças entre um sistema fonológico, que
se organizou por sucessivas acomodações estruturais e que é realizado pelos fa-
lantes de acordo com uma competência não explicitada, e um sistema de sinais,
imposto por convenção explícita, e cujas regras de competência são claras para
seus executores. As mesmas diferenças, entretanto, poderiam ser encontradas no
continuum das ciências naturais e todos nós sabemos o quanto a capacidade de
predizer da física é diferente daquela da meteorologia, como já dizia Stuart Mill.
Estou falando de semióticas específicas e não de semiótica aplicada: a semiótica
aplicada representa um campo de limites vagos, e neste caso falaria de práticas
interpretativo-descritivas, como acontece com a crítica literária de cunho ou de
inspiração semiótica, para a qual, creio eu, é necessário colocar problemas não de
caráter científico, mas de persuasão retórica, de utilidade para fins de compreen-
são de um texto, de capacidade de tornar o discurso sobre um determinado texto
intersubjetivamente controlável.
De 1978 em diante, havia-se estabelecido um debate cordial entre mim e Emilio
Garroni (desde Ricognizione della semiotica, de sua autoria, até sua recente parti-
cipação no livro de entrevistas organizado por Marin Mincu, La semiotica letteraria
in Italia), no qual podia parecer que ambas as posições eram muito rígidas. De um
lado, Garroni, que, desconfiando das várias aventuras das semióticas específicas,
conclamava ao dever de uma fundação filosófica; de outro, eu, que convidava
aos riscos da exploração empírica, adiando para mais tarde o problema filosófico.
Segundo o que estou afirmando, a oposição devia parecer mais nuançada. Estou
convencido de que às semióticas específicas devem colocar-se as mesmas ques-
tões epistemológicas internas, isto é, reconhecer e denunciar as próprias metafísi-
cas implícitas, visto que, por exemplo, não podemos delinear em qualquer sistema
(ou texto) traços "pertinentes", sem colocarmos o problema epistemológico de uma
definição de pertinência. Mas este é um problema comum a toda ciência, e não
creio que seja irresponsável afirmar que, às vezes, uma investigação científica
pode avançar muito nas próprias explorações sem interrogar-se sobre os próprios
fundamentos filosóficos. A interrogação poderá ser colocada justamente pelo fi-
lósofo, ou pelo cientista mesmo ao filosofar sobre o próprio procedimento, mas
não são raros os casos de investigações filosoficamente ingênuas que, todavia,
revelaram fenômenos e projetos de leis que outros depois sistematizaram de forma
mais rigorosa.
O caso de uma semiótica geral é diferente. A meu ver, ela é de natureza filosófica,
porque não estuda um determinado sistema, mas estabelece categorias gerais à
luz das quais sistemas diferentes podem ser comparados. E para uma semiótica
geral o discurso filosófico não é nem aconselhável nem urgente: é simplesmente
constitutivo.
Como proceder nesta interrogação filosófica? Há pelo menos dois caminhos. Um
é o que tem sido tradicionalmente trilhado pelas filosofias da linguagem (e não
vou dizer por causa disto que atualmente, em muitas universidades americanas,

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40 © Filosofia da Linguagem

chama-se filosofia da linguagem - que, frequentemente é mera, embora útil, exer-


citação sobre um sistema semiótico específico –, por exemplo, a urna semântica
formal dos valores da verdade): a tentativa de deduzir, de alguma forma, um sis-
tema da semiótica, ou seja, a construção de uma filosofia do homem como animal
simbólico.
O outro poderia ser caracterizado como uma "arqueologia" dos conceitos semió-
ticos. Não vou recorrer a Foucault, mas seguir o modelo de arqueologia proposto
por Aristóteles em A metafísica. Uma vez estabelecido que é necessário localizar
antes um objeto da filosofia e que este objeto é o ser, vai-se verificar depois o que
disseram a seu respeito os que o antecederam. Todos falaram do mesmo modo?
E se não o fizeram, por que este objeto de um saber antigo, sempre diferente, foi,
de algum modo, sentido sempre como o mesmo?
Se Aristóteles tivesse tido que se comportar como alguns filósofos da linguagem,
a solução teria sido muito simples. Estes filósofos percebem, justamente, que é di-
ferente falar do significado de uma palavra, de um fenômeno atmosférico, de uma
experiência perceptiva, e decidem que todos estes problemas serão enfrentados
separadamente e por disciplinas diferentes. O filósofo da linguagem, portanto, se
ocupará das frases, possivelmente só das bem formuladas, e deixará ao psicólogo
da percepção a pergunta de por que alguns riscos numa folha de papel me lem-
bram um coelho. Assim fica salvo o critério de especialização, indispensável para
evitar conflitos na distribuição dos cargos acadêmicos e na divisão das verbas
públicas e privadas.
Aristóteles fez o contrário, não só ao inspecionar os discursos filosóficos do passa-
do, mas ao entrar no cerne dos próprios usos lingüísticos, percebendo que o ser é
expresso de muitos modos. Mas decide que, logo por isto, vale a pena interrogar-
-se se não nos podemos colocar do ponto de vista da identidade profunda, que
regula estas discrepâncias.
E onde o filósofo encontra a identidade profunda, visto que na superfície ela não
aparece? Finge talvez encontrá-la, como Parmênides, mas de fato a estabelece.
Estabelece as próprias condições do discurso que permite enfrentar fenômenos
diferentes de um ponto de vista unitário.
Veja-se o ato de coragem filosófica - e semiótica - que torna possível A metafísica.
O que é o ser, visto que é expresso de muitos modos? É exatamente o que é ex-
presso de muitos modos. Ao repensar esta solução, todo o pensamento ocidental
baseia-se num arbítrio. Mas que belo arbítrio!
O filósofo pode provar o que estabelece? Não, se for no sentido do cientista. O
filósofo tenta estabelecer um conceito que permite interpretar de modo global uma
série de fenômenos e que possibilita aos outros fundamentar as próprias interpre-
tações, parciais. O filósofo não descobre a substância, estabelece seu conceito.
No dia em que o cientista descobre que com a dialética substância-acidente não
consegue mais explicar os novos fenômenos que localiza, não falsifica uma hi-
pótese científica, simplesmente muda os conceitos epistemológicos, recusa uma
metafísica influente.
3
Ora, o que uma semiótica geral estabelece pode depender de uma decisão te-
orética ou de uma releitura dos usos lingüísticos das origens. Fazer progredir o
pensamento não significa necessariamente rejeitar o passado: às vezes, signifi-
© U1 - Introdução à Filosofia da Linguagem 41

ca revisitá-lo, não apenas para entender o que efetivamente foi dito, mas o que
poderia ter sido dito, ou, pelo menos, o que se pode dizer atualmente (talvez só
atualmente) ao reler tudo o que havia sido dito antes.
E assim, creio, deve-se fazer com o conceito central de todo pensamento da se-
miose, isto é, o conceito de signo.
Antes de mais nada, deve-se dizer que a semiótica contemporânea parece tomada
de angústia diante de uma alternativa. O próprio conceito fundamental é o signo
ou a semiose? Não é uma diferença pequena e, no fim, a alternativa repropõe a
escolha entre pensamento do έργον (érgon) e pensamento da ενέργεια (enérgeia).
Relendo a história do nascimento do pensamento semiótico deste século, digamos
do estruturalismo genebrês aos anos sessenta, parece que no início a semiótica se
apresenta como pensamento do signo; depois, cada vez mais, o conceito entra em
crise, dissolve-se, e o interesse desloca-se para a geração de textos, para a sua
interpretação, e para a variação das interpretações, para as pulsões produtivas,
para o próprio prazer da semiose.
Vamos dizer desde já que este livro procura superar a alternativa, voltando exa-
tamente às origens do conceito de signo, para mostrar como a alternativa surgiu
muito tarde e por uma série de fatores que serão discutidos no primeiro capítulo.
Em poucas palavras e para não repetir o que iremos dizer em seguida, trata-se
de redescobrir que a idéia primeira de signo não estava baseada na igualdade,
na correlação fixa estabelecida pelo código, na equivalência entre a expressão e
conteúdo, e sim na inferência, na interpretação, na dinâmica da semiose. O signo
das origens não corresponde ao modelo "a = b", mas ao modelo "se a, então...".
Remetendo-me às afirmações de Peirce, é verdade que a semiose é uma "ac-
ção ou influência, a qual é, ou implica uma cooperação de três sujeitos, o signo,
seu objeto e seu interpretante, de modo que esta influência relativa não pode de
forma alguma resolver-se em ações entre duplas" (CP 5.484). Esta definição de
semiose, no entanto, opõe-se à de signo só se esquecermos que, quando neste
contexto Peirce fala de signo, não o entende em absoluto como entidade biplanar,
mas como expressão, como representamen, e, por objeto, não entende apenas
o objeto dinâmico, ou seja, aquele a que o signo se refere, mas também o objeto
imediato, aquele que o signo expressa, ou seja, seu significado. O signo, portan-
to, acontece só quando uma expressão é imediatamente envolvida numa relação
triádica, na qual o terceiro termo, o interpretante, gera automaticamente uma nova
interpretação, e assim até o infinito. Por isto, para Peirce, o signo não é apenas
alguma coisa que está no lugar de alguma outra coisa, ou seja, está sempre, mas
só sob alguma relação ou capacidade. Na realidade, o signo é aquilo que sempre
nos faz conhecer algo a mais (CP 8.332).
É neste sentido que, nos capítulos deste livro, podemos encontrar o objeto «sig-
no», central em toda especulação semiótica do passado, mas indissoluvelmente
ligado ao processo de interpretação [...].
4
Neste ponto, uma semiótica geral (e aqui temos que assumir, a responsabilidade
de afirmar que eIa se propõe como a forma mais madura de uma filosofia da lin-
guagem, como o foi para Cassirer, Husserl ou Wittgenstein) tem precisamente o
dever de elaborar categorias que lhe permitam ver um único problema lá onde as
aparências encorajam a ver muitos e irredutíveis problemas.

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42 © Filosofia da Linguagem

À objeção comum dos filósofos da linguagem que sofrem de miopia (e alguns de-
les são citados neste livro, mas segundo o critério econômico da parte pelo todo)
de que uma nuvem não significa do mesmo modo como significa uma palavra,
responderemos que uma semiótica geral não parte absolutamente da convicção
de que os dois fenômenos são da mesma natureza. A revisitação histórica do pro-
blema, ao contrário, nos dirá exatamente que foram necessários muitos séculos,
de Platão a Santo Agostinho, para ousar afirmar, sem rodeios, que uma nuvem
(a qual, sob a espécie do índice, significa a chuva) e uma palavra (a qual, sob
a espécie do "símbolo", significa a própria definição) podiam ser reconduzidas à
categoria mais ampla de signo. O problema está exatamente em entender por que
chegamos neste ponto e por que, como veremos, sempre nos afastamos nova-
mente dele, numa dialética contínua de aproximações totalizadoras e fugas parti-
cularizadoras.
É banal dizer que uma nuvem é diferente de uma palavra. Mesmo uma criança
sabe disto. É menos banal perguntar-se, nem que seja apenas a partir de alguns
usos lingüísticos comuns irredutíveis, ou de algumas obstinadas e seculares reite-
rações teóricas, o que é que poderia estabelecer parentesco entre elas. [...] (ECO,
1991, p. 9-14).
........................................................................................................

6. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Sugerimos que você procure responder, discutir e comentar
as questões a seguir, que tratam da temática desenvolvida nesta
unidade, ou seja, da Filosofia da Linguagem como disciplina filo-
sófica, da problemática envolvida entre a linguagem e o discurso
filosófico etc.
A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para
você testar o seu desempenho. Se você encontrar dificuldades em
responder a essas questões, procure revisar os conteúdos estuda-
dos para sanar as suas dúvidas. Esse é o momento ideal para que
você faça uma revisão desta unidade. Lembre-se de que, na Edu-
cação a Distância, a construção do conhecimento ocorre de forma
cooperativa e colaborativa; compartilhe, portanto, as suas desco-
bertas com os seus colegas.
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
© U1 - Introdução à Filosofia da Linguagem 43

1) Quais as questões que determinam o conteúdo da Filosofia da Linguagem?


a) A análise da Filosofia da Linguagem gira em torno de:
I – Discurso metafísico (as referências às noções abstratas e universais,
às categorias, à correspondência entre coisa e palavra).
II – Lógica (declarações, proposições, premissas e as noções de validade
e não validade).
III – Epistemologia (sobre a fundamentação de juízos que não provêm
da experiência, ou seja, juízos a priori).
b) A análise da Filosofia da Linguagem gira em torno de:
I – A possibilidade de uma experiência possível.
II – Epistemologia (sobre a fundamentação de juízos que não provêm da
experiência: juízos a priori).
III – Lógica (declarações, proposições, premissas e as noções de valida-
de e não validade).
c) A análise da Filosofia da Linguagem gira em torno de:
I – Discurso metafísico (as referências às noções abstratas e universais,
às categorias, à correspondência entre coisa e palavra).
II – Epistemologia (sobre a fundamentação de juízos que não provêm da
experiência: juízos a priori).
d) A análise da Filosofia da Linguagem gira em torno de:
I – Discurso metafísico (as referências às noções abstratas e universais,
às categorias, à correspondência entre coisa e palavra).
II – A possibilidade de uma experiência possível.
III – Lógica (declarações, proposições, premissas e as noções de valida-
de e não validade).

2) Qual o entendimento de Russel de linguagem perfeita? Assinale a alterna-


tiva correta.
a) Segundo Russel, a linguagem perfeita é aquela que acessa as coisas por
meio de experiência mística.
b) Segundo Russel, a linguagem perfeita consiste na correspondência exata
entre símbolos linguísticos e coisas ou situações reais simbolizados por
eles.
c) Segundo Russel, a linguagem perfeita é aquela que usa, como meio de
expressar ideias, as metáforas, pois são estas que levam a uma ideia au-
têntica referente ao objeto significado.
d) Segundo Russel, a linguagem perfeita é aquela que revela as coisas em
sua essência.
3) No que consiste a ideia básica do atomismo lógico? Identifique a alternativa
correta.
a) A ideia básica do atomista lógico consiste na hipótese de que a lingua-
gem perfeita poderá auxiliar na descoberta da natureza das relações

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44 © Filosofia da Linguagem

existentes na realidade: entre os fatos que as compõem e seus enuncia-


dos linguísticos adequados.
b) A ideia básica do atomista lógico consiste na hipótese de que a lingua-
gem perfeita poderá auxiliar na descoberta da natureza das relações
existentes na realidade: entre as palavras que as compõem e seus enun-
ciados linguísticos adequados.
c) A ideia básica do atomista lógico consiste na hipótese de que a lingua-
gem perfeita poderá revelar a natureza das relações ocultas entre os fa-
tos e suas condições.
d) A ideia básica do atomista lógico consiste na hipótese de que a lingua-
gem perfeita poderá auxiliar na descoberta da natureza dos pressupos-
tos metafísicos.
4) Segundo Humboldt, a linguagem aparece como manifestação externa da
vida interna dos povos. A linguagem do povo – afirma o filósofo – é o seu
espírito, e este, por sua vez, é a sua linguagem. Qual a tendência dessa afir-
mação? Assinale a alternativa correta.
a) Tendência do atomismo lógico.
b) Tendência ontológica.
c) Tendência fenomenológica.
d) Tendência do senso comum.
e) Tendência sociológica.
5) O desenvolvimento intensivo do conhecimento científico da modernidade
até nossos dias determinou o desenvolvimento de cada vez mais novas ciên-
cias e novas teorias. Paralelamente com esse surto de ciências e teorias, sur-
ge a necessidade cada vez mais presente de construção de correspondentes
formas de linguagem que recebe o nome de linguagem científica especia-
lizada. Inicialmente, essa nova linguagem se constrói à base da linguagem
natural; todavia, aos poucos, ela abandona a "naturalidade" definitivamente
por causa da introdução de equivalentes signos linguísticos que contemplam
a especificidade da ciência ou teoria científica. Surgem, assim, as linguagem
científicas motivadas e estimuladas pelas ciências dedutivo-formais. Delas,
originam-se, por sua vez, as linguagens formais da ciência. Qual o caráter e a
aplicação da linguagem natural? Assinale a alternativa correta.
a) Apenas a linguagem natural possui estrutura universal. Essa universali-
dade se determina por sua estrutura e funcionamento polissemânticos.
A linguagem natural não cede à rigorosidade lógica. Ainda mais, ela já
é, por si mesma, logicamente contraditória, e esse seu caráter deriva da
sua natureza polissemântica. Em compensação disso, ela é linguagem
universal. A natureza universal da linguagem natural significa, ainda, que
nela sejam traduzíveis todas as outras linguagens.
b) Apenas a linguagem natural possui estrutura universal. Essa universali-
dade se determina pela sua estrutura e funcionamento monossemânti-
cos. A linguagem natural é base da rigorosidade lógica. Ainda mais, ela já
é, por si mesma, logicamente contraditória, e esse seu caráter deriva da
sua natureza monossemântica. A natureza universal da linguagem natu-
ral significa, ainda, que nela sejam traduzíveis todas as outras linguagens.
© U1 - Introdução à Filosofia da Linguagem 45

c) Apenas a linguagem natural não possui universalidade porque ela se de-


termina pela sua estrutura e funcionamento monossemânticos. A lingua-
gem natural é base da expressão simbólica. Ainda mais, ela já é, por si
mesma, logicamente contraditória, e esse seu caráter deriva da sua natu-
reza monossemântica. A monossemântica da linguagem natural significa
que nela sejam traduzíveis todas as outras linguagens.
d) Apenas a linguagem natural não possui universalidade porque ela se de-
termina pela sua estrutura e funcionamento polissemânticos. A lingua-
gem natural é base da expressão simbólica. Ainda mais, ela já é, por si
mesma, logicamente contraditória, e esse seu caráter deriva da sua na-
tureza polissemântica. A natureza polissemântica da linguagem natural
significa, ainda, que nela sejam traduzíveis todas as outras linguagens.

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) a.

2) b.

3) a.

4) c.

5) a.

7. CONSIDERAÇÕES
Como você pôde acompanhar, os problemas que a Filoso-
fia da Linguagem enfrenta estão em íntima relação com aspectos
fundamentais da Filosofia, como a Metafísica, a Lógica e a Teoria
do Conhecimento. No entanto, na contemporaneidade, essa disci-
plina vem adquirindo um campo de especulação próprio que, em
seu próprio desenvolvimento, abre caminho para novas especula-
ções filosóficas que ainda não haviam sido tratadas na história da
Filosofia, ou, se foram tratadas, não foram pela mesma perspecti-
va. De maneira geral, nesta unidade, você pôde vislumbrar quais
são os principais problemas da Filosofia da Linguagem, como, por
exemplo, a pretensão da linguagem natural ou científica em ex-
pressar de maneira correta o mundo ao nosso redor.

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46 © Filosofia da Linguagem

Esperamos que você tenha captado o sentido desta nova dis-


ciplina filosófica e que as questões levantadas nesta primeira uni-
dade tenham suscitado o desejo de aprofundar seus estudos sobre
a linguagem na perspectiva filosófica. Bom estudo!

8. E-REFERÊNCIAS
ALSTON, W. P. O que é filosofia da Linguagem? Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.
br/~wfil/alston.htm>. Acesso em: 11 nov. 2010.
INFOAMÉRICA. Humberto Eco: perfil biográfico e acadêmico. Disponível em: <http://
www.infoamerica.org/teoria/eco1.htm>. Acesso em: 1 mar. 2011.

Lista de Figuras
Figura 1 Humbero Eco. Disponível em: <http://www.rochester.edu/news/photos/hi_res/
hi218.jpg>. Acesso em: 01 mar. 2011.

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Metafísica. Bauru: Edipro, 2006.
ECO, H. Semiótica e a filosofia da linguagem. São Paulo: Ática, 1991.
HUMBOLDT, W. von. Sobre a natureza da língua em geral. Tradução de Paulo Oliveira.
In: HEIDERMANN, Werner; WEININGER, Markus J. (Orgs). Wilhem von Humboldt –
Linguagem, Literatura, Bildung. Florianópolis: UFSC, 2006. p. 2-19.
______. Carta a Schiller: Sobre língua e poesia. Tradução de Izabela Maria Furtado
Kestler. In: HEIDERMANN, Werner; WEININGER, Markus J. (Orgs.). Wilhem von Humboldt
– Linguagem, Literatura, Bildung. Florianópolis: UFSC, 2006. p. 180-197.
KRASTANOV, S. Nietzsche: pathos artístico versus consciência moral. Jundiaí: Paco, 2011.
NIETZSCHE, F. Acerca da verdade e da mentira. Tradução de Heloísa de Graça Burati. São
Paulo: Rideel, 2005.
EAD
Primeiros Problemas
Filosóficos Sobre a
Linguagem
2
1. OBJETIVOS
• Compreender a importância da linguagem para a configu-
ração do pensamento e do discurso filosófico.
• Analisar a passagem do mito ao logos, isto é, o surgimen-
to da Filosofia como um problema fundamental diante da
linguagem.
• Estudar as reflexões sobre a linguagem na fase inicial do
pensamento filosófico a partir do diálogo Crátilo.

2. CONTEÚDOS
• Introdução.
• Surgimento do logos.
• O problema da linguagem em Platão.
• Texto complementar.
48 © Filosofia da Linguagem

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Para melhor compreender o conteúdo desta unidade,
é importante que você leia o diálogo Crátilo, de Platão.
Não deixe de pesquisar e aprofundar seus estudos!
2) Ao iniciar seus estudos, é importante que você este-
ja familiarizado com os principais conceitos deste CRC.
Portanto, não deixe de pesquisar em bons dicionários de
Filosofia e, principalmente, no Tópico Glossário de Con-
ceitos nas Orientações para o estudo.
3) Você pode expandir seus horizontes de compreensão
destes conteúdos. Basta pesquisar em sites, livros, revis-
tas e demais fontes. Pesquise sempre!
4) Antes de iniciar os estudos desta unidade, pode ser inte-
ressante conhecer um pouco da biografia de Platão.

Platão (427 – 347 a. C)

Foi um filósofo grego nascido em Atenas, na Grécia, e pro-


fundo admirador de seu mestre Sócrates, o principal per-
sonagem de sua obra, que vem majoritariamente na forma
Figura 1 Platão. de diálogos filosóficos (DUCLÓS, 2011).

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Nesta unidade, você terá a oportunidade de se familiarizar
com os problemas em torno da linguagem em sua fase inicial. Com
efeito, o processo de gradativa passagem da representação mito-
lógica à conceitual coincide com a passagem do mito ao logos e
© U2 - Primeiros Problemas Filosóficos Sobre a Linguagem 49

anuncia o surgimento da Filosofia. Em seguida, você tomará con-


tato com a posição platônica sobre a linguagem a partir do diálogo
Crátilo. Enfim, perceberá que os problemas vinculados à lingua-
gem acompanham a especulação filosófica desde o seu nascimen-
to.

5. O SURGIMENTO DO LOGOS
A verdadeira história do logos incorporado na linguagem
coincide perfeitamente com aquele evento marcante conhecido
como surgimento da Filosofia, ou seja, quando, gradativamente,
o mito cede lugar ao logos, e a representação mitológica, à repre-
sentação conceitual.
Essa é a época em que a linguagem começa a configurar
mais definitivamente a vida dos homens, da sociedade, da econo-
mia, da política e do direito. As palavras como expressões do logos
cada vez mais se materializam como ordem e domínio, como meio
de comunicação e transmissão de saberes e experiências. Para ex-
plicitar devidamente esse fenômeno cultural embasado no logos,
faremos uma breve análise das duas visões dominantes no mundo
antigo: a visão mitológica e sua expressão metafórica e a visão
filosófica e a sua expressão conceitual.
Até o século 6º a.C., a visão mitológica dominou por completo
a consciência humana. As tentativas dos homens de explicar o mun-
do que os circunda e os fenômenos da natureza, cujos efeitos ele so-
fre, resultam em criações de mitos. É bem verdade que a explicação
mitológica é precária e ingênua; todavia, é uma explicação e é bem
melhor do que a falta de explicação. Os primeiros protagonistas des-
se anseio por respostas são Homero e Hesíodo. Os poetas contado-
res de fábulas constroem uma mundividência mitológica habitada
por deuses, monstros, heróis e simples mortais.
A principal ferramenta dessa construção é a metáfora. Seja
oralmente transmitida, seja por meio da escrita, a metáfora é uma

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50 © Filosofia da Linguagem

expressão figurativa da linguagem. Ela apresenta uma fonte ines-


gotável de interpretações. Por um lado, esse caráter da metáfora
exerce um poder mágico sobre a imaginação e estimula a criação
artística, por outro, ela não tem o poder de construir, ordenar e
classificar o mundo em estruturas rígidas, tal como faz o conceito
por meio do logos que reside nele. Como nota Jean-Pierre Vernant
(1990, p. 441),
O pensamento racional tem um registro civil: conhece-se a sua data
e seu lugar de nascimento. Foi no século VI antes da nossa era, nas
cidades gregas da Ásia Menor, que surgiu uma forma de reflexão
nova, inteiramente positiva, sobre a natureza.

Não podemos compreender como a linguagem metafórica,


que é sujeita às mais diversas interpretações e perspectivas, pôde
governar o mundo, tal como o faz o conceito, por tanto tempo.
Uma lei, por exemplo, que deve vigorar para todos do mesmo
modo, portanto, não pode ser expressa por metáforas, mas so-
mente pela linguagem rigorosa do conceito. É nesse sentido que
se pode entender a passagem do mito ao logos, da metáfora ao
conceito.
Pelo poder de suscitar várias interpretações, a metáfora
possibilita o caos, ao contrário do o conceito, que, pelo seu po-
der de designar e significar inequivocamente as coisas, engendra,
em sua utilização, a ordem (cosmos). Vemos, então, a importância
da linguagem e sua função na compreensão e no domínio sobre
o mundo. A passagem da metáfora ao conceito anuncia a com-
preensão racional do mundo e do universo e marca o nascimento
da Filosofia. A partir daí, a linguagem conceitual e seu artífice – a
razão – tornam-se os protagonistas de toda construção cultural,
econômica, política e pedagógica do mundo ocidental.
Platão assume a posição de líder dessa empreitada racional.
Em seu diálogo Crátilo, o filósofo dedica uma atenção especial aos
problemas da linguagem, com os quais você entrará em contato
no tópico a seguir.
© U2 - Primeiros Problemas Filosóficos Sobre a Linguagem 51

6. O PROBLEMA DA LINGUAGEM EM PLATÃO


Como ressaltamos no tópico anterior, Platão foi um dos pri-
meiros filósofos que dedicaram uma atenção especial ao proble-
ma da linguagem. Como já foi dito, é em seu diálogo Crátilo que
ele nos coloca a par do problema da linguagem e da possibilidade
de retratar o conhecimento e representar o mundo pelo logos. Pla-
tão mostra-nos a natureza ambígua da linguagem. Por um lado, as
palavras denotam tanto as imagens das coisas, como também as
coisas mesmas, isto é, as suas ideias. Por outro lado, como você
deve recordar de seus estudos sobre Platão, na teoria das ideias,
as imagens pertencem ao fluxo eterno (sombras) e, portanto, não
podem ser objeto de conhecimento verdadeiro (MONTENEGRO,
2007). Em outras palavras, a verdade não se associaria a tais coisas.
Ela só se aplicaria às coisas mesmas, ou seja, às ideias – somente
essas são verdadeiras. Disso resulta que as mesmas palavras que
significam simultaneamente as imagens e as ideias (as primeiras
não verdadeiras e as segundas – verdadeiras) não podem engen-
drar um critério legítimo e seguro que possa tornar clara a distin-
ção entre verdade e não verdade. Isso, em contrapartida, daria ao
relativismo empregado pelos sofistas um forte argumento contra
a legitimidade do conhecimento.
Mas essa não é única aporia que se pode observar no diálogo:
se os nomes significam as coisas e é por meio deles que temos acesso
a elas, então, como o criador das palavras – o nomoteta – dispunha
dos nomes para denominar as coisas antes do seu conhecimento?
Segundo Montenegro (2007), tentando resolver essa apo-
ria, Platão, pela boca de Sócrates, lança mão da existência de ou-
tros entes modelares que possam mostrar o que, entre o fluxo e a
permanência, é verdadeiro antes da utilização da linguagem. Essa
posição introduzida por Sócrates afirma a possibilidade de o co-
nhecimento preceder a linguagem. Mas, assim, o conhecimento
deixaria de ser expressão do logos. E, se esse for o caso, não seria
isso um reconhecimento do caráter místico do conhecimento?

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52 © Filosofia da Linguagem

Antes de julgarmos precipitadamente, devemos recorrer, por


meio da teoria das ideias de Platão, à ligação íntima entre as ideias
e a alma imortal, por meio da qual se acessam as verdades eternas.
No diálogo Crátilo, essa relação não é explicitamente tratada, todavia,
é possível identificar nesse diálogo alguns momentos indicativos que
nos levam a essa conclusão. No decorrer da obra, podemos observar
uma parte dedicada à origem das palavras, isto é, à sua etimologia.
A análise etimológica destaca não apenas a concepção platônica
de linguagem, mas, também, a possibilidade de uma adequação entre
coisa e palavra. Esta, por sua vez, remete à relação entre as ideias e a
alma. Para retratarmos melhor essas relações subjacentes do diálogo,
faremos uma breve retomada do que se passa no diálogo.
Inicialmente, vale relembrar que a obra especula a legitimi-
dade das palavras. Hermógenes, o interlocutor de Sócrates, pro-
põe a tese, segundo a qual os nomes são produtos de convenções.
Crátilo, por sua vez, afirma que os nomes significam as coisas, mas
estas nada mais são do que fluxo permanente. Sócrates tenta re-
conciliar essa discussão que oscila entre o relativismo de Hermó-
genes e o mobilismo de Crátilo. Sócrates, nesse caso, adota uma
posição intermediária, conforme a qual os nomes retratam as coi-
sas, mas não as imagens das coisas imersas no fluxo permanente,
e, sim, as coisas mesmas, a saber, as ideias.
Mas essa tese sustentada por Sócrates também não satisfaz, uma
vez que os nomes são compostos por letras que não possuem um sig-
nificado próprio, independente dos nomes que compõem. Isso significa
que a linguagem não será capaz de retratar inteiramente as coisas que
significam, muito menos as suas essências. Sem a linguagem, tornar-se-
ia incomunicável o conhecimento e, portanto, o próprio processo peda-
gógico que necessariamente se utiliza da linguagem.
Para sair dessa armadilha, Sócrates aponta para a natureza
ambígua dos nomes. Por um lado, cabe ao nomoteta produzir os
nomes de cada coisa e, por outro, cabe ao dialético a maestria de
mostrar e conduzir à utilização legítima de tais nomes.
© U2 - Primeiros Problemas Filosóficos Sobre a Linguagem 53

A análise etimológica das palavras que Platão propõe no Crá-


tilo ressalta os seguintes pontos indicados por Sócrates como ob-
jeções a Hermógenes:
1) Se existe essa arbitrariedade no ato de formação da lin-
guagem, então, certamente surgiria uma bagunça tal
que não seria possível distinguir se uma palavra se refere
a homem ou a cavalo.
2) A diversidade dos nomes referentes a um mesmo objeto
realmente existe, mas, se desse fato se pensa de modo
universal, então, tudo seria sido misturado, e as noções
opostas, como bem e mal, não poderiam ser distingui-
das. Segundo Sócrates, o nome, respectivamente a lin-
guagem, é uma arma que serve de comunicação e dis-
tinção entre as coisas.
3) A criação dos nomes ocorre a partir do nomoteta, que
cria os nomes conforme o modelo (a ideia).
4) A compreensão dos nomes, tal como a compreensão da
natureza das armas para a realização de determinadas
ações, requer conhecimento. Tal conhecimento cabe à
dialética. Eis porque a atribuição de nomes que ocorre
não de modo arbitrário, mas de acordo com a natureza
objetiva das coisas, é resultado da aplicação da dialética.
5) Rejeitando as opiniões sofísticas e adotando a visão ho-
mérica, os interlocutores do diálogo dividem os nomes
em dois grupos: divinos e humanos. Os primeiros cor-
respondem perfeitamente ao seu objeto, enquanto os
segundos, somente em algum grau.
6) Os nomes dados pelos homens podem ser legítimos
ou ilegítimos; todavia, a ilegitimidade dos nomes não
depende do caráter imperfeito da coisa, uma vez que
este não se pode denominar legitimamente. Do mesmo
modo, a ilegitimidade dos nomes não depende da sua
sonoridade.
7) A legitimidade dos nomes depende da legitimidade da
interpretação do objeto interpretado. Tal interpretação
é chamada por Sócrates de sabedoria, e o seu resultado,
espécie.

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54 © Filosofia da Linguagem

8) Eis porque a legitimidade dos nomes não se reduz a uma


simples imitação sonora. Apesar de as palavras imitarem
as coisas, tal imitação é completamente específica, não
como se dá na música ou na pintura, por exemplo, pois
o nome de cada coisa explicita a essência dessa coisa.
Imitar a voz dos carneiros ou das galinhas não é como
denominar as suas vozes, uma vez que, para a denomi-
nação, é necessário não apenas a imitação, mas a imita-
ção consciente da essência.
A análise etimológica passa a examinar os nomes; ela, con-
forme Sócrates defende no diálogo, não é arbitrária, mas tende a
ressaltar a força do nome de conservar a essência da coisa designa-
da. Entre outros nomes, Sócrates analisa a etimologia dos nomes
divinos. Assim, por exemplo, caso o nome de Hermes signifique
"aquele que preside os discursos", o nome do seu filho, Pan, tam-
bém deveria ter guardado algo de comum. Nesse caso, Sócrates
esforça-se para mostrar que o deus Pan (todas as coisas) teria algo
a ver com os discursos, uma vez que "To pan" significa "discursos".
O significado de Pan remete a um "hybris" (conflito) entre homem
e bode, que, segundo a interpretação de Sócrates, remete aos dis-
cursos mistos (verdadeiros e falsos). Com essa interpretação, Só-
crates parece recuperar a importância da tese convencionalista de
Hermógenes.
Outra análise etimológica que no diálogo assume importân-
cia primordial pelas implicações que dela derivam é a dos nomes
de "Hades" e "Apolo". Segundo Sócrates, esses nomes foram in-
vertidos. Sendo assim, "Hades" não significaria "invisível", mas re-
meteria ao anseio de se alcançar, após a morte, quando a alma
se liberta da sua prisão corporal, o modelo ideal de homem. Essa
posição, encontrada no diálogo Fédon, parece ganhar corpo tam-
bém no diálogo Crátilo ao se fazer a analogia entre o "Hades" e o
filósofo que anseia a morte como libertação da alma imortal.
Apolo, por sua vez, cujo nome tomado em sua raiz etimológi-
ca – applimúo (destruir) –, é invertido por Sócrates em catarse ou
© U2 - Primeiros Problemas Filosóficos Sobre a Linguagem 55

purificação que liberta. Essa ideia é defendida por Dixsaut (2003),


que estabelece uma ligação íntima, nesse caso, entre Crátilo e Fé-
don, que consiste na inversão da ideia da morte por meio da qual
o filósofo se libera do sensível, do mutável e do ilusório. O aban-
dono da "φύσις" (phýsis) pela morte anuncia a vida verdadeira que
o filósofo, por meio da dialética, já encarnava ainda em sua vida
sensível.
As etimologias de alma (psyché) e corpo (soma) também são
submetidas a exame. O sentido tradicional de alma como "aquilo
que refrigera o corpo" é substituído por Sócrates por "natureza do
corpo que vive e circula". O corpo (soma), por sua vez, é reduzido
a sema (prisão).
A análise etimológica operada no diálogo não para por aí.
Ela se estende longamente no decorrer do diálogo. Examinam-se
palavras como "phýsis", "phronesis", "episteme", "nôus", "noesis",
"sophia" etc. Uma importância muito significativa cabe às inter-
pretações das palavras "mobilidade" e "fluxo", o que, certamente,
comprovaria a tese de Crátilo. Logo em seguida, essa tese é obje-
tada por Sócrates, afirmando que vários nomes podem significar
uma mesma coisa. Para sustentar essa ideia, Sócrates recorre à tese
convencionalista de Hermógenes, que, mesmo não sendo uma das
melhores, possui um significado considerável e importante.
Referente à relação entre conhecimento e a linguagem, Só-
crates propõe que seria melhor buscar o conhecimento das coisas
por meio delas e não por intermédio da linguagem. Essa posição,
porém, como vimos anteriormente, coloca a linguagem em uma
posição desfavorável e, com ela, a própria atividade filosófica, uma
vez que o discurso é a principal ferramenta do filósofo. Todavia,
essa não é a posição final do diálogo.
A parte dedicada às etimologias fornece-nos algumas saídas
das dificuldades por meio da dialética. A arte da dialética mostra
que é possível romper com a confusão dos nomes e utilizá-los le-
gitimamente. Se o conhecimento consiste na atividade da alma de

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56 © Filosofia da Linguagem

fixar, registrar e reconhecer nas coisas a sua essência, os nomes,


como representantes do logos, imitam essa fixação e imobilizam,
por assim dizer, o fluxo. Nesse sentido, a linguagem reitera aquilo
que a alma, em sua atividade cognoscente, registra. Assim, a lin-
guagem, na mão do dialético (aquele que deve indicar o uso legí-
timo da linguagem), proporcionaria o conhecimento das essências
das coisas, afastando-se do seu caráter fluído. E é nesse sentido
que a linguagem acessa a verdade. Essa atividade da linguagem
que se desenvolve por meio da dialética tem, como tarefa primor-
dial, o ensinamento. Pois, a essência que a alma reconhece e re-
gistra das coisas só pode ser relatada pela linguagem. Esse relato,
porém, nada mais é do que a reminiscência do que a alma já tinha
contemplado no mundo ideal. Justamente por isso, o relato deve
ser desenvolvido pela dialética que se configura entre o mestre e
o discípulo.
Todas as dificuldades e aporias em torno da linguagem que
o diálogo revela tratam, portanto, de ressaltar a atividade peculiar
do filósofo, enquanto dialético, de separar, ordenar, ensinar e utili-
zar a linguagem em sua função de logos, em sua função de traduzir
a essência das coisas, contemplada antes pela alma.

7. TEXTO COMPLEMENTAR
A fim de que você possa aprofundar seu conhecimento sobre
os problemas da linguagem no diálogo Crátilo, de Platão, apresen-
tamos, a seguir, um artigo a respeito da posição platônica sobre a
linguagem.

Linguagem e realidade: uma análise do Crátilo de Platão––––


Este artigo visa esclarecer a concepção da linguagem, particularmente do nome,
que Platão apresenta em seu diálogo Crátilo. [...]
Entretanto, julgamos que uma de suas características mais importantes, ou seja,
seu estilo paródico, talvez ainda não tenha sido suficientemente explicitada. Essa
característica estilística, por sua vez, tem profundas implicações para a correta
leitura do texto e a clara compreensão do pensamento lingüístico platônico antes
© U2 - Primeiros Problemas Filosóficos Sobre a Linguagem 57

do diálogo O Sofista. Sem essa clareza, o texto pode levar, como de fato levou, a
interpretações diferentes e até mesmo contraditórias de seu conteúdo.
Pode-se estabelecer, no Crátilo, uma primeira análise, em duas partes, de acordo
com o interlocutor de Sócrates. São dois: Hermógenes, um discípulo seu, e Crátilo,
pensador de vertente heraclitiana. O primeiro participa com Sócrates na maior par-
te do diálogo (Crat., 383a-427d) e o segundo apenas no quarto final (Crat., 427d-
440e). É possível também subdividir a parte inicial em três seções.
Primeiramente temos uma introdução (Crat., 383a-384e) onde Hermógenes expõe
a Sócrates resumidamente as posições que se confrontam quanto à questão do
fundamento da linguagem. Em resumo, para Crátilo "cada coisa tem por natureza
um nome apropriado, e que não se trata da denominação que alguns homens
convencionaram dar-lhes" (Crat., 383a), o que está de acordo com a teoria na-
turalista dos nomes, segundo a qual as palavras têm sentido certo e sempre o
mesmo. Para Hermógenes, ao contrário, os nomes das coisas são estabelecidos
por convenção humana. Essa questão tomou em geral o nome de controvérsia
physis-nomos ou physis-thesis. Colocado diante dessas duas posições, Sócrates
aceita examiná-las.
Começa primeiramente pela tese admitida por Hermógenes e a parte 384e-387d
do diálogo será a sua crítica, uma vez que a sua conseqüência mais imediata seria
a total impossibilidade de conhecimento através da linguagem, devido ao seu ca-
ráter completamente arbitrário, dando nesse caso razão aos sofistas, para os quais
basta falar para dizer a "verdade".
Sócrates procura reduzir essa arbitrariedade, primeiramente ressaltando o caráter
coletivo da convenção, que se opõe ao particular subjetivo. Em seguida, já que
Hermógenes, como seu discípulo fiel, aceita que a relação entre Linguagem e
Mundo possa ser verdadeira ou falsa, e que, portanto, os nomes, enquanto par-
tes de proposições verdadeiras, devem ser necessariamente verdadeiros, limita a
convenção a convencionar o verdadeiro. Esta conclusão favorece o afastamento
de Sócrates, na obra, de posições sofísticas.
Finalmente, como Hermógenes ainda resiste, Sócrates critica a tese de Protágoras
da não-existência nas próprias coisas de uma essência de algum modo permanen-
te, sendo a verdade, o real, a opinião de cada um segundo as coisas lhe pareçam.
Para Protágoras não há essência, só aparência, não há verdade absoluta, todo o
conhecimento é pessoal e particular. Refuta também a tese de Eutidemo, segundo
a qual "as coisas são semelhantes e sempre para todo o mundo" (Crat., 386a).
Para Sócrates "as coisas devem ser em si mesmas de essência permanente, não
estão em relação conosco, nem na nossa dependência, nem podem ser desloca-
das em todos os sentidos por nossa fantasia, porém existem por si mesmas, de
acordo com sua essência natural" (Crat., 386d-e).
Assim, o Mundo, sejam os objetos, sejam as ações, tem uma organização per-
manente. A diferença necessária entre o bom e o mau, o judicioso e o insensato,
a razão e a sem-razão, diferença esta herdada por Platão do socratismo puro,
implica nisso.
Da mesma forma que a natureza de um corte depende da natureza do objeto
cortante e da natureza do objeto cortado, o dizer humano deve procurar recortar o
Mundo segundo a natureza desse mesmo Mundo. Toda técnica humana, techne,
se apóia na physis e age conforme sua própria natureza.

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58 © Filosofia da Linguagem

Exemplificando: se uma tesoura corta uma folha de papel, é porque a folha é "cor-
tável", isso faz parte de sua natureza. O Mundo também, "se é recortado" pela
linguagem, o é devido a sua natureza, da qual faz parte ser recortável assim, ou
dizendo o mesmo de outro modo, "conjuntizável" assim, já que o que existe é uma
única operação: separar-reunir. Mas isso não significa que o seja de qualquer ma-
neira. O Mundo não admite qualquer sentido.
Neste século, as análises semânticas de línguas de povos indígenas, com concep-
ções radicalmente diferentes das categorias européias tradicionais, favoreceram
a noção de um certo relativismo de base lingüística, para o qual não haveria um
Mundo, mas sim vários, tantos quantas fossem as estruturas lingüísticas existen-
tes. O exemplo da diversidade de organização do campo semântico das cores foi
repetido várias vezes como um paradigma incontestável. De fato, temos línguas
em que o que nós discernimos pelos nomes de amarelo e verde, são represen-
tados por apenas um nome. Ou, ao contrário, o que nós chamamos de azul, seja
claro ou escuro, para certas línguas tem dois nomes diferentes e não são encara-
das como sendo a mesma cor. Mas o que é esquecido nesses casos é que se são
apresentadas várias organizações possíveis é porque há um substrato físico que
as permite, mas não a todas as organizações ou recortes. Assim, por exemplo, não
há línguas que agrupem sob um mesmo nome o branco e o preto.
É o continuum físico, real, do espectro luminoso, que orienta a diversidade de pos-
sibilidades de se dar nomes às cores.
Para Platão, da mesma forma, essa ordem fundamental do Mundo impõe um limite à
arbitrariedade da linguagem. Essa arbitrariedade só se manifesta no que chamaría-
mos hoje de significante do signo lingüístico. O onoma, geralmente traduzido por nome
em Platão, antes do diálogo O Sofista, é instrumento para informar a respeito das coi-
sas e para separá-las de acordo com sua natureza, pois só enquanto de alguma forma
ligada ao Mundo, a linguagem, sendo uma techne, poderá operar sobre ele.
Quem tem o conhecimento para julgar a adequação dos nomes criados é o dia-
lético, que os usa para interrogar e responder. A justeza (orthotes) do instrumento
só patentear-se-á no contato com o Mundo, para o qual e a partir do qual foi feito.
Esse o motivo de Platão criticar a teoria convencionalista na sua versão mais radi-
cal, pois dessa forma estaria excluída, por sua total arbitrariedade, qualquer utiliza-
ção filosófica da linguagem. "Privarmo-nos disso", isto é, do discurso, "com efeito,
seria desde logo — perda suprema — privar-nos da filosofia" (Sof., 260a).
Na terceira parte do diálogo Crátilo (387d-427a), Hermógenes apresenta uma certa
resistência à crítica de Sócrates e pede uma demonstração da natural exatidão dos
nomes. Sócrates corrige essa formulação dizendo que os nomes não são exatos,
mas que têm uma "certa" correção (physei te tina orthoteta echon — Crat., 391a-b).
Assim, concluindo que há algo de certo no que Crátilo diz, ou seja, que "os nomes
das coisas derivam da sua natureza" e que "nem todo homem é demiurgo de no-
mes", pergunta-se que orthotes, que justeza é esta, a dos nomes.
Paradoxalmente, o que Sócrates irá demonstrar nessa parte central do diálogo,
pela aplicação da posição de Crátilo a aproximadamente 140 nomes, é que o mé-
todo etimológico é apenas uma engenhosidade humana, com um caráter muitas
vezes derrisório. O que mais propriamente faz é parodiar o método etimológico,
expondo suas falhas e levantando conexões com doutrinas filosóficas certamente
criticáveis para Platão. Essa exposição clara do método, levando-o até o seu fun-
damento que é, como veremos, a imitação da essência das coisas por meio de
© U2 - Primeiros Problemas Filosóficos Sobre a Linguagem 59

sons e sílabas, assumida pelo próprio Sócrates, e que ocupa uma grande parte do
diálogo, é fundamental para problematizar o naturalismo lingüístico. Ao que pare-
ce, Crátilo, assim como Heráclito, é um tanto obscuro na expressão (bem no início
do diálogo, Hermógenes pedira a Sócrates para "interpretar o oráculo de Crátilo").
Sem essa "exposição", esse "desvelamento" do procedimento etimológico, não
seria possível criticá-lo de uma maneira completa.
Assim, Sócrates começa mandando Hermógenes procurar um sofista para apren-
der com ele a exatidão dos nomes, mas como seu discípulo não tem dinheiro para
pagar as aulas indica-lhe o exame de Homero, como se este fosse uma espécie de
"sofista dos pobres". Nos poemas homéricos distingüem-se nomes dados por deu-
ses e dados por homens, como no caso do rio Xanto Escamandro, ou diferentes
nomes dados ao mesmo referente, como por exemplo Astianax-Escamandrio para
o filho de Heitor. Nesse exame etimológico, Sócrates propõe o princípio diretor de
que é certo dar o mesmo nome ao pai e ao filho.
Novo sinal de que durante essa parte do diálogo as coisas não são como parecem,
o que não impediu alguns comentaristas da obra de tomarem a sério as palavras
de Platão, é o pequeno aviso que Sócrates dá a Hermógenes e indiretamente o
autor desse diálogo dá aos seus leitores: "Mas, acautela-te, para que eu não faça
alguma tramóia contigo". Ao dizer isto, e neste contexto, de que o gerador e o ge-
rado devem ter o mesmo nome, Sócrates brinca com o nome de Hermógenes, o
qual logo no início do diálogo confessou-se intrigado porque Crátilo lhe havia dito
que, conforme a sua teoria, os nomes Sócrates e Crátilo, que por sinal têm em
comum a palavra kratos (poder, força), eram naturais, mas o de Hermógenes não.
Como Crátilo guardasse para si o sentido irônico dessa afirmação, Hermógenes
pede a ajuda de Sócrates, que diz tratar-se de uma brincadeira de Crátilo, "talvez
com isso queira insinuar que desejarias ser rico, porém nunca chegas a adquirir
fortuna, por não ser de fato filho de Hermes", como seu nome sugeriria e muda de
assunto. O sentido, no entanto, parece ser outro. De fato, Hermes é por excelência
o "fornecedor de bens", mas outra característica sua é ser, como o chama Mircea
Eliade, um trickster, isto é, um trapaceiro, um velhaco, caracterizado por sua as-
túcia. É nesse sentido que Hermógenes não é Hermógenes, pois é, ao contrário,
ingênuo. Será, entretanto, o próprio Sócrates que assumirá temporariamente esse
parentesco com Hermes.
Hermógenes terá um papel útil, a partir daqui, no diálogo, que visa, sobretudo Crá-
tilo — diríamos um "inocente útil" no confronto agônico entre duas "forças".
Útil porque acompanhará e concordará com Sócrates em qualquer ponto, fazendo
o movimento dialético fluir, mesmo sendo previamente avisado de que será des-
viado do caminho correto.
Platão enfatiza o caráter excepcional dessa incursão etimológica. Hermógenes
será finalmente útil no final do diálogo, como exemplo vivo e presente de que o
método etimológico é falho. É através do próprio ser do seu interlocutor, seja sua
docilidade, seja sua insubmissão, seja o seu próprio nome, que Sócrates conduz
o método dialético.
Essa tramóia de Sócrates, assumindo aqui uma postura que critica, não é simples,
não se dá pela simples dicção do falso no lugar do verdadeiro. Há, na verdade,
uma mescla. Por entre as 140 etimologias, encontram-se críticas a Heráclito, cuja
doutrina Platão aprendeu do próprio Crátilo na juventude. Mas, mesmo no caráter
falho desse método, alguma verdade se manifesta. Assim, desde a primeira eti-

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60 © Filosofia da Linguagem

mologia que associa theoi (deuses) a thein (correr), é o mobilismo heraclitiano que
entra em cena. Esse mobilismo não é negado por Platão de uma forma total, já que
em O Sofista o movimento é considerado como um dos gêneros fundamentais,
mas juntamente com o repouso. Caso contrário, nenhum conhecimento verdadeiro
seria possível, já que o Mundo seria apenas um fluxo permanente, onde nenhum
objeto estabilizar-se-ia o suficiente para ser conhecido ou mesmo denominado.
O que Platão evidencia nessas etimologias é a incongruência do método, já que um
mesmo onoma pode, por natureza, nos levar à idéia do movimento e do repouso (como
a palavra episteme, por exemplo), sendo que para Platão esses dois gêneros podem
estar em comunhão com os seres, mas não entre si, pois isto significaria o aniquilamen-
to de ambos. Já para Heráclito, ao contrário, justamente o fato de episteme levar tanto
ao repouso como ao movimento seria uma evidência de que os nomes existem "por
natureza", pois manisfestar-se-ia nesse nome o princípio da unidade dos opostos.
Voltando ao texto: Sócrates começa a aplicar o princípio de que cada ser deve receber
o nome do gênero a que pertence para que seja correto, justo. Sendo assim, começa a
escalar uma linha genealógica ascendente, evidentemente patrilinear, que vai de filho
a pai, de heróis a deuses, apresentando o sentido etimológico de cada nome próprio:
Orestes = caráter feroz e selvagem, asperezas das montanhas
Agamêmnon = admirável em persistência
Atreu = obstinado, intemerato, funesto
Pélops = só vê o que se encontra próximo
Tântalo = o mais infeliz dos homens
Zeus = causa da vida
Cronos = pureza, limpidez de entendimento
Urano = que olha para cima
Hermógenes mostra-se admirado por essa ascensão ao mundo divino que o méto-
do proporciona. Sócrates diz ser um conhecimento que caiu sobre ele não se sabe
de onde, como uma espécie de inspiração, provavelmente influência da conversa
pela manhã com o advinho Eutífron. Diz ele: "É bem possível que seu entusiasmo
não somente me tivesse deixado os ouvidos cheios com sua sabedoria, como tam-
bém apoderou-se de minha alma" — e em seguida, "aproveitemos neste resto de
dia essa influência para concluirmos o que falta dizer sobre os nomes".
Essa referência a Eutífron só pode ser interpretada como pura ironia socrática,
já que no diálogo homônimo ele é apresentado como um fanático religioso que
considerava ser piedoso acusar o próprio pai do assassinato de um escravo, es-
cravo este que era assassino por sua vez, sem contar o fato de o pai de Eutífron
tê-lo matado por descuido. A aproximação do método etimológico com a inspiração
divinatória evidencia a falsa postura de Sócrates e o caráter insuficiente da teoria
naturalista dos nomes. Quanto à influência de Eutífron, ela será transitória, como
podemos observar logo em seguida: "mas amanhã, caso estejas de acordo, expul-
semo-la por meio de esconjuros e purifiquemo-nos, se por ventura encontrarmos
alguém que entenda de purificação, quer seja sacerdote ou sofista".
Como os nomes de heróis e de homens em geral propiciam o engano, a inves-
tigação recairá sobre nomes relacionados com as coisas eternas (aei ontá) e a
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natureza. Assim dada, a explicação etimológica é prolifera e ao mesmo tempo de-


cepcionante. Muitos nomes são explicados pelo recurso ao sensível. Assim theoi,
de thein, "por ter observado que todos eles se movem perpetuamente em seu
curso". Aqui os deuses (theoi) são associados aos astros que percorrem (thein)
o céu. Outros têm quatro significados possíveis, como o nome do deus Apolo, e
outros ainda são mesmo humorísticos, como selene (lua), que derivaria de selae-
noneoaeia, termo forjado ao que parece por Platão, composto de selas (luz), neos
(nova), enos (precedente) e aei (sempre). Hermógenes chega a dizer que lhe soa
este nome como um ditirambo, tipo de verso que é usado algumas vezes em invec-
tivas cômicas. E quando não é mais possível lançar mão de nenhuma explicação
melhor, utiliza-se o expediente de que é uma expressão bárbara.
Note-se que esta primeira etapa do método, que procura uma definição no onoma
("tal nome, Zeus, vale por um logos" — Crat., 396a), só é possível devido ao ca-
ráter tipológico sintético do grego, no qual os morfemas componentes, em alguns
casos, são facilmente identificáveis.
Todas essas derivações são entremeadas com repetidas expressões de ironia por
parte de Sócrates, como estas: "há bastante probabilidade, se não tomar cuidado,
de hoje mesmo vir a ficar mais sábio do que seria razoável", "descobri, meu caro,
um colmeal de sabedoria", "como são excelentes os cavalos de Eutífton" (que o
conduzem pelo método etimológico), "penso que me adiantei bastante no terreno
da sabedoria", "vesti a pele do leão" (como o herói Héracles, que também tinha
traços cômicos). Todas essas expressões devem nos acautelar sobre a firmeza da
defesa que Platão faz do método etimológico que trata de expor.
Como já dissemos antes, a maior parte das etimologias é explicada por termos
de movimento e suas nuances. Contra esse mobilismo de fundo heraclitiano,
Platão se coloca claramente na seguinte passagem, onde diz em uma bela com-
paração, com forte ironia:
(...) parece (...) que os homens de antigamente quando estabeleceram os nomes,
se encontravam em situação idêntica a da maioria dos sábios do nosso tempo,
os quais, à força de andar à roda para investigar a natureza das coisas, acabam
tomados de vertigem, acreditando que são as próprias coisas que giram e que tudo
o mais ao redor deles é pelo mesmo teor. Não atribuem a culpa dessa maneira de
pensar ao que se passa em seu íntimo, mas imaginam que decorre das próprias
coisas, que nada é estável e permanente, e que tudo passa e se movimenta, e se
encontra em permanente estado de modificação e geração. (Crat., 411b-c)
Desse modo, uma série de termos do vocabulário do conhecimento encontra tam-
bém uma origem etimológica no movimento. O mais curioso dentre esses talvez
seja noesis, a prestigiada ação intelectual, que Platão "explica" etimologicamente
por neou hesis, ou seja, nada mais nada menos que desejo de novidade.
Mas o verdadeiro limite da investigação etimológica encontra-se nos nomes primi-
tivos, já que não são compostos de outras palavras e, portanto, nem explicáveis
por nenhum outro nome. Para estudar o seu exato significado, deve-se empregar
algum método novo, no qual os nomes primitivos serão a mimesis vocal da coisa
imitada. A partir desse momento, o nome não será visto mais como instrumento
natural, mas como imagem, mais ou menos imperfeita, de um eidos, de uma For-
ma. E Platão lança mão de novas comparações: "do mesmo modo que o pintor
reproduziu uma figura por meio da pintura, aqui também, criaremos a linguagem
por meio da arte do nome ou do falar".

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62 © Filosofia da Linguagem

Todo o problema reside agora em verificar se as palavras primitivas foram forma-


das como convém, pois se elas são o fundamento das derivadas, toda a investi-
gação poderá ficar comprometida com um erro aqui, como ficará patenteado mais
tarde. Ao final dessa parte, Sócrates parece retornar a si mesmo e acaba por dizer:
"Afiguram-se sobremodo impertinentes e ridículas as reflexões que tenho formula-
do acerca dos nomes primitivos" (Crat., 426b).
A quarta e última parte do Crátilo (427d-440e) começa com Sócrates não se res-
ponsabilizando por nada que dissera, enquanto que Crátilo parece ter se deliciado
com tantas etimologias em certa medida fantasiosas.
Desse modo Platão fará aqui uma crítica explícita da teoria naturalista, a partir de
uma revisão geral de tudo o que foi dito, pois "não há nada pior do que enganar
alguém a si próprio" (Crat., 428d). São, portanto, retomadas as teses da teoria
naturalista para melhor refutá-las. São elas:
1) "a correta aplicação dos nomes consiste em mostrar como é constituída a coisa".
Tanto a criação dos nomes primitivos como a dos derivados implica em erros de
julgamento, o que introduz a falsidade entre as palavras. Como os nomes não são
uma reprodução exata, uma verdadeira duplicação, mas a sua natureza é a de
apresentar semelhanças parciais e modificáveis, já que a representação não deixa
de ser representação, por acréscimo ou subtração, pois o que ela representa é um
typos, um conjunto de traços fundamentais, há uma necessidade de encontrar-se
um critério de verdade para as imagens ou representações que podem ser ou fal-
sas ou verdadeiras. Não como dizia Hermógenes, nem falsas nem verdadeiras e
também não como em Crátilo, para o qual eram sempre verdadeiras.
Assim, para Platão, um objeto seria bem nomeado se todos os traços essenciais
estivessem presentes no onoma. Como nos nomes ocorrem também letras desse-
melhantes, que transmitem outro sentido, a comunicação só é possível desde que
haja também um certo grau de convenção, já que por ela a representação se firma
tanto no semelhante quanto no dessemelhante. A convenção é um expediente ine-
vitável, que completa a relação parcialmente natural com a coisa nomeada.
2) "a enunciação dos nomes tem por finalidade a instrução sendo seu único mé-
todo verdadeiro".
Isso, para Platão, não poderia ser de forma alguma verdadeiro, primeiro porque, como
vimos, os nomes podem ter embutidos em si um elemento convencional arbitrário; em
segundo lugar, porque se houve um erro inicial na denominação, todo o desenvolvi-
mento posterior ficará comprometido; e, em terceiro, se é afirmado que só é possível
conhecer as coisas pelos nomes, como os primeiros "fazedores de nomes" conhece-
ram as coisas, uma vez que os nomes primitivos não tinham ainda sido fixados? Uma
possível explicação sobre-humana, divina, é rapidamente descartada.
Neste diálogo, Platão considera suficiente chegar-se à conclusão de que não é por
meio de seus nomes que devemos procurar conhecer ou estudar as coisas, mas,
de preferência, por meio delas mesmas. O conhecimento direto do auto, da própria
coisa, é anterior e superior a seus nomes.
No entanto, essa conclusão não exclui, de forma total, por si só, qualquer utilização
dialética da linguagem. No final de sua vida, na Carta VII, distingue Platão três
elementos intermediários entre este auto tão fundamental e o seu conhecimento, a
episteme, que reside na alma, a psyche. São eles o onoma, o logos e o eidolon, ou
seja: o nome, a definição e a imagem. Se é inegável que os elementos mais impor-
© U2 - Primeiros Problemas Filosóficos Sobre a Linguagem 63

tantes são o objeto real e conhecível (to auto) e o conhecimento psíquico (lie epis-
teme) e que nome, definição e imagem apresentam variabilidade e contradição,
é sem dúvida por meio do penoso contato com esses elementos auxiliares, em
certas condições favoráveis, que pode o filósofo alçar-se até o inteligível. A imper-
feição dos onomata, enquanto participantes da natureza da mimesis, não permite
o seu desvinculamento da questão da verdade, como defende a tese convencio-
nalista, nem o seu vínculo necessário com o eidos, a Forma, enquanto instrumento
de uma techne (técnica) justa, que o identifica plenamente com a physis e o torna
o único método verdadeiro de conhecimento, segundo a tese naturalista.
Concluindo, a posição de Platão nessa controvérsia contrapõe-se, assim, a uma os-
cilação entre dois extremos que as teorias gregas da linguagem manifestam: ou uma
extrema confiança em que o nome diz a verdade (Heráclito e as primeiras tragédias),
ou uma extrema desconfiança, em que os nomes são nada mais do que nomes (Par-
mênides, Demócrito e sofistas), identificando linguagem, opinião e verdade.
Para Platão, o discurso é de "natureza híbrida, verdadeira e falsa ao mesmo tem-
po" (Crat., 408c) como Pan, não por acaso filho de Hermes: "o que nele há de
verdadeiro é macio e divino e reside no alto com os deuses, por outro lado, o que
há de falso mora em baixo, com a multidão dos homens". Na visão platônica da
palavra, na sua função de representação do inteligível, mesmo que um tanto de-
gradada, as duas teses contrárias convergem e são superadas, tendo ambas algo
do verdadeiro eidos do onoma.
Desse modo, a linguagem, enquanto instrumento, tem o seu papel no aprimora-
mento do intelecto e é um meio na busca do conhecimento da essência, nesse ir e
vir entre onoma, logos, eidolon e to auto, mas devido a sua imperfeição enquanto
imitação é ao mesmo tempo um obstáculo à intuição pura das Formas Eternas
pela alma imortal, que não admitiria nenhuma mediação.
Em geral as interpretações dos historiadores da Lingüística sobre o Crátilo apresentam
uma abordagem ingênua em relação ao texto. Sem dar ouvidos aos avisos que Platão
tantas vezes, como vimos acima, coloca na boca de Sócrates, levam a sério seu longo
exercício etimológico, que nada mais é do que a desmontagem desse método, e con-
cluem que o autor ao final não toma qualquer partido na controvérsia physis-nomos.
Discordamos, portanto, que este diálogo em particular tenha um caráter aporéti-
co como os primeiros, de simples negação de teses opostas, demonstrando sim-
plesmente a sua imperfeição. Há algo positivo sendo enunciado: os nomes são
simultaneamente por natureza e por convenção. Sendo os nomes, nessa fase do
pensamento lingüístico de Platão, a essência do dizer, da linguagem, esse é o
pressuposto necessário implicado pelo dogma platônico de que o conhecimento
humano é possível e de que a linguagem tem propriedades que permitem ao mes-
mo tempo a enunciação do verdadeiro e do falso (PIQUÉ, 1996, p. 139-157).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:

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64 © Filosofia da Linguagem

1) Qual o evento que determina o surgimento do logos? Assinale a alternativa


correta.
a) O surgimento do logos na linguagem, por meio do qual esta adquire ca-
ráter rigoroso e exato, começa a partir dos ciclos épicos.
b) O surgimento do logos incorporado na linguagem coincide perfeitamen-
te com aquele evento marcante conhecido como surgimento da Filoso-
fia, ou seja, quando gradativamente o mito cede lugar ao logos, e a re-
presentação mitológica, ao termo. Essa é a época em que a linguagem
começa a configurar mais definitivamente a vida dos homens, da socie-
dade, da economia, da política e do direito.
c) O surgimento do logos na linguagem, por meio do qual esta adquire ca-
ráter rigoroso e universal, começa a partir da construção dualista da on-
tologia platônica.
d) O surgimento do logos na linguagem, por meio do qual esta adquire ca-
ráter rigoroso e universal, começa a partir dos tratados lógicos de Aris-
tóteles.
2) Como podemos definir a metáfora? Assinale a alternativa correta.
a) A metáfora é uma expressão figurativa da linguagem. Ela apresenta uma
fonte inesgotável de interpretações.
b) A metáfora é uma expressão figurativa da linguagem cuja função é orde-
nar e classificar o mundo em estruturas rígidas.
c) A metáfora é uma expressão figurativa da linguagem cuja função é orde-
nar e classificar o mundo em estruturas universais.
d) A metáfora é uma expressão figurativa da linguagem cuja função consis-
te em interpretação do mundo em estruturas universais.
3) Em que sentido a linguagem se torna problema na Filosofia de Platão? Assi-
nale a alternativa correta.
a) Platão mostra-nos a natureza ambígua da linguagem: por um lado, as
palavras são tanto conceitos, como também metáforas. Por outro lado,
as metáforas são interpretações e figuras da linguagem diferentes para
cada indivíduo. Nesse caso, não será possível nem a comunicação ade-
quada, nem a verdade.
b) Platão mostra-nos a natureza ambígua da linguagem, uma vez que as
palavras se confundem com as coisas. Conforme sabemos, na teoria das
ideias, as coisas pertencem ao físico e, portanto, não se podem conhecer
verdadeiramente. A verdade só é aplicada às ideias. Somente essas são
verdadeiras. Disso resulta que as mesmas palavras, sendo criações físi-
cas, não podem expressar a verdade em si.
c) Platão mostra-nos a natureza ambígua da linguagem: as palavras deno-
tam tanto figuras de linguagens, como também figuras de coisas. Mas,
entre ambas (figuras de linguagem e figuras de coisas), existe um abismo
ontológico e, portanto, as palavras são contraditórias e incapazes de ex-
pressar ambas as coisas.
d) Platão mostra-nos a natureza ambígua da linguagem: as palavras denotam
tanto as imagens das coisas, como também suas ideias. Todavia, as ima-
© U2 - Primeiros Problemas Filosóficos Sobre a Linguagem 65

gens pertencem ao fluxo e, portanto, não se podem conhecer verdadeira-


mente. Em outras palavras, a verdade não se associaria a tais coisas. Esta
só é aplicada às ideias. Somente elas são verdadeiras. Disso resulta que as
mesmas palavras que significam simultaneamente as imagens e as ideias
(as primeiras não verdadeiras e as segundas – verdadeiras) não se podem
nortear por um critério legítimo que possa fazer clara distinção entre a
verdade e a não verdade. Isso, em contrapartida, daria ao relativismo dos
sofistas forte argumento contra a legitimidade do conhecimento.
4) Todas as dificuldades e aporias em torno da linguagem que o diálogo Crátilo
revela tratam de ressaltar qual aspecto da atividade do filosofo?
a) Atividade dialética, isto é, de separar, ordenar, ensinar e utilizar a lin-
guagem em sua função de logos, ou seja, em sua função de traduzir a
essência das coisas, contemplada antes pela alma.
b) Atividade moral, isto é, estabelecer e conservar os conceitos que nor-
teiam as regras morais.
c) Atividade política, pois a linguagem é meio de comunicação de ideias
políticas. Com efeito, sem a linguagem, a política, tão importante para a
sociedade grega, se torna impossível.
d) Atividade retórica, isto é, o domínio da arte de falar bem.

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) b.

2) a.

3) d.

4) a.

9. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você pôde acompanhar como a questão lin-
guística acompanha a Filosofia desde seu nascimento na Grécia
Antiga no século 6º a.C. Viu, também, que, com Platão, a investi-
gação racional da qual ele é o grande defensor, naquele período,
exigiu uma profunda investigação sobre a natureza da linguagem e
sua capacidade de comunicar a "verdade" expressa pelo logos em
seu diálogo Crátilo.

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66 © Filosofia da Linguagem

Esperamos que você tenha compreendido como a lingua-


gem se configurou como um problema fundamental para a Filo-
sofia desde seus primórdios e que este estudo tenha contribuído
com sua formação filosófica.

10. E-REFERÊNCIAS
DUCLÓS, M. Platão: bigrafia e pensamentos. Disponível em: <http://www.consciencia.
org/platao.shtml>. Acesso em: 1 mar. 2011.

Lista de figuras
Figura 1 – Platão: disponível em: <http://www.consciencia.org/platao.shtml>. Acesso
em: 1 mar. 2011.

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


DIXAUT, M. La Natura Filosofica: saggio sui dialoghi di Platone. Napoli: Lofredo, 2003.
KRASTANOV, S. Nietzsche: pathos artístico versus consciência moral. Jundiaí: Paco,
2011.
MONTENEGRO, M. A. P. Linguagem e conhecimento no Crátilo de Platão. Kriterion, Belo
Horizonte, n. 116, p. 367-377, dez. 2007.
PLATÃO. Crátilo. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. 
PIQUÉ, J. F. Linguagem e realidade: uma análise do Crátilo de Platão. Letras, Curitiba, n.
46, p. 139-157, 1996.
VERNANT, J-P. A formação do pensamento positivo na Grécia Arcaica. In: Mito e
Pensamento entre os Gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
EAD
Ontologia e Linguagem na
Idade Média

3
1. OBJETIVOS
• Estudar o problema da linguagem durante a Idade Média
a partir da discussão dos universais.
• Compreender os argumentos das partes antagônicas des-
sa discussão: realistas e nominalistas.
• Analisar as soluções teóricas dos pensadores mais fluen-
tes dessa discussão, tais como Porfírio, Boécio, Abelardo
e William de Occam, entre os outros.
• Entender a importância da discussão sobre a linguagem e
suas implicações ontoteológicas.

2. CONTEÚDOS
• O problema da linguagem e a discussão medieval dos uni-
versais.
• Boécio e o problema dos universais.
68 © Filosofia da Linguagem

• Realismo versus nominalismo e a posição de Abelardo.


• Conceitualismo de Abelardo.
• Nominalismo extremo de William de Occam.
• Texto complementar.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Faça uma revisão de seus estudos sobre o problema dos
universais, principalmente sobre as posições de Porfírio,
Boécio e Willian de Occam (também conhecido como
Guilherme de Occam). Para isso, recomendamos que
pesquise a obra de Etienne Gilson, A Filosofia na Idade
Média (a referência completa consta no Tópico Referên-
cias Bibliográficas).
2) Antes de iniciar os estudos desta unidade, pode ser inte-
ressante conhecer um pouco da biografia de Aristóteles.

Aristóteles (384-322 a.C.)


Foi um filósofo grego nascido na cidade de Estagira, na
Calcídica, Macedônia, distante 320 quilômetros de Atenas.
Essa cidade foi por muito tempo colonizada pelos jônicos,
e, em virtude disto, ali se falava um dialeto jônico. O nome
do pai de Aristóteles era Nicômaco, um médico. Aristóte-
les foi criado junto com um grupo de médicos, amigos de
seu pai. Nicômaco chegou a servir a corte macedônica,
a serviço do rei Amintas, pai de Felipe, futuro rei. Na sua
juventude, teria jogado fora seu patrimônio e, aos dezoito
anos, foi para Atenas, a fim de aperfeiçoar sua espirituali-
dade, e lá ingressou na Academia, onde se tornou discípu-
lo de Platão, o que marcaria profundamente sua biografia
Figura 1 Aristóteles. (DUCLÓS, 2011). 

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na unidade anterior, vimos como foram tratadas as questões
que giram em torno da linguagem na Antiguidade, dando ênfase
© U3 - Ontologia e Linguagem na Idade Média 69

à concepção platônica exposta no diálogo Crátilo. Nesta unidade,


você aprofundará seus conhecimentos sobre a principal discussão
intelectual que se estende durante toda a Idade Média, conhecida
como a questão dos universais. Essa discussão, além de contribuir
bastante com a especulação filosófica sobre a linguagem, destaca,
também, a importante relação entre o domínio lógico e o domínio
ontológico junto às suas implicações epistemológicas e teológicas.
No escopo desta unidade, colocam-se as concepções filosóficas
dos realistas e dos nominalistas.

5. O PROBLEMA DA LINGUAGEM E A QUESTÃO DOS


UNIVERSAIS
O problema vinculado à linguagem durante a Idade Média
pode-se resumir na discussão medieval dos universais. Essa dis-
cussão ,iniciada por Boécio a partir dos seus comentários sobre a
obra Isagoge, de Porfírio, domina por completo o cenário da espe-
culação filosófica ao longo de toda a época medieval. Essa discus-
são possui não apenas implicações lógicas, metafísicas e episte-
mológicas, mas, também, implicações teológicas. Justamente por
isso, essa discussão assume papel de principal protagonista nos
debates intelectuais da época.
Porfírio, na sua introdução às Categorias de Aristóteles
(Isagoge), levanta a seguinte interrogação referente aos predicados:
Antes de mais, no que tange aos gêneros e às espécies, acerca da
questão de saber (1) se são realidades subsistentes em si mesmas
ou se consistem apenas em simples conceitos mentais, (2) ou, ad-
mitindo que sejam realidades subsistentes, se são corpóreas ou in-
corpóreas, e, (3) neste último caso, se são separadas ou se existem
nas coisas sensíveis e dependem delas (PORFÍRIO apud SANTOS,
2011, p. 17).

Desse trecho, podem-se extrair três questões fundamentais


no que se refere aos termos gerais ou universais, a saber:

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70 © Filosofia da Linguagem

1) Os gêneros e as espécies, isto é, os universais, são entes


realmente existentes ou são apenas nomes e concep-
ções do intelecto?
2) Caso sejam entes reais, são corporais ou incorporais?
3) Caso sejam incorporais, estão dentro ou fora das coisas?
A primeira questão, como se pode observar, coloca duas al-
ternativas:
1) os universais são entes reais;
2) são apenas nomes e noções do intelecto.
Como você pode perceber, a segunda questão parte do pres-
suposto de que os universais são entes reais. Nesse caso, trata-se
de saber se são corporais ou incorporais.
A terceira questão colocada por Porfírio especula sobre o lu-
gar dos universais, a saber: se eles estão fora das coisas (ante rem)
ou dentro das coisas (in re). Esse problema envolve a velha discus-
são entre Platão e Aristóteles.
Conforme a teoria das ideais de Platão, os universais são
transcendentes às coisas sensíveis e existem independentemente
delas, fora do tempo e do espaço (ante rem). Com isso, Platão afir-
ma o status ontológico dos universais.
Aristóteles, por sua vez, diferentemente do seu mestre, consi-
dera os universais como imanentes às coisas sensíveis (in re). Sendo
assim, os universais são sujeitos às mudanças espaço-temporais. Vale
observar que a posição aristotélica oscila entre o status lógico e onto-
lógico dos universais.
Para que você possa compreender melhor a natureza dos
universais, tais como Aristóteles os concebeu, vale retomar alguns
aspectos importantes da sua obra Categorias, tais como a distin-
ção entre substância primeira e substância segunda. Substância
primeira, segundo Aristóteles, é substância no sentido pleno da
palavra. Com essa noção, o filósofo designa o indivíduo concreto,
que é produto da união da matéria e forma. Como tal, a substância
© U3 - Ontologia e Linguagem na Idade Média 71

primeira é o suporte de toda predicação, mas ela não se predica


a nada. Sócrates, por exemplo, é uma substância primeira. A ela
podem ser predicadas várias características, tais como homem, ra-
cional etc.
A substância segunda, no entendimento de Aristóteles, está
contida – in re – na substância primeira como predicado. Esse tipo
de substância se predica a vários sujeitos ou substâncias primeiras.
"Homem", assim como "mortal" e "racional", é substância segun-
da que se aplica a Sócrates, Platão, Aristóteles, enfim, a todos os
homens. Por essa razão, a substância segunda é universal.
Feitas essas explicações sobre a natureza dos universais, vale
observar que eles implicam dois aspectos: lógico e ontológico. O
aspecto lógico caracteriza-se pela predicabilidade, ao passo que
o aspecto ontológico se caracteriza pela comunidade. Aristóteles
define o universal como sendo "o que é apto por natureza a ser
predicado de vários" (De Interpretatione, 7, 17b). Mas essa defini-
ção se refere ao seu aspecto lógico, isto é, de ser predicado a várias
coisas. Em sua obra Metafísica, Aristóteles afirma:
Há coisas universais e coisas particulares, e denomino universal isso
cuja natureza é a de ser afirmada de vários sujeitos, e de particular
o que não pode tal, por exemplo, homem é um termo universal, e
Cálias um termo singular (VIII, 13, 1038b).

O universal, como se pode observar, constitui a natureza co-


mum e como tal é imanente a muitos seres. Esse é seu aspecto
ontológico de comunidade.
Com isso, pode-se concluir que, quando Aristóteles se refere
aos universais, ele os pensa em duplo sentido – como concepções
do intelecto (palavras) e como coisas. Mas esse duplo sentido dos
universais engendra várias dificuldades entre os quais cabe desta-
car a seguinte: existem palavras singulares cuja função é signifi-
car algo determinado. Mas algo determinado pode ser significado
por meio de nomes próprios (como "Sócrates", por exemplo). Em
contrapartida, existem termos gerais cuja função é serem predi-

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72 © Filosofia da Linguagem

cados de várias coisas. Se as palavras, como afirma Aristóteles,


são exteriorizações das noções que se encontram na mente, en-
tão, os termos gerais são símbolos externos das noções geradas
no intelecto.
Mas será que existe uma realidade para além do intelecto,
um res universale que corresponde aos termos gerais, tais como o
nome "Sócrates" corresponde ao indivíduo Sócrates, isto é, pode-
mos apontar esse res universale, tal como podemos apontar Sócra-
tes quando ouvimos o seu nome? Em outras palavras, existe algo
como racionalidade no mundo tal como existe um Sócrates?
Além dessa dificuldade, Aristóteles envolve-nos em outra
problemática. Ela consiste no seguinte: se há coisas universais,
como elas se predicam a várias outras coisas? Isso significa que
existem coisas universais predicáveis às próprias coisas? Nesse
caso, a noção de predicação deve sofrer uma alteração significa-
tiva que passa do domínio lógico para o domínio ontológico. Em
outras palavras, será possível fazer do universal um objeto da on-
tologia?
Essa herança aristotélica sobre os problemas em torno dos
universais dominou por completo as especulações medievais. Bo-
écio foi o primeiro a retomar a velha discussão a partir dos seus
comentários sobre as Categorias de Aristóteles.
Para tentar resolver essa difícil aporia, Boécio parte do as-
pecto "comunidade" dos universais. Justamente essa noção per-
mite a Boécio tratar os universais em sua dimensão ontológica. Isso
significa que, se os indivíduos de uma espécie, como, por exemplo,
os homens, possuem algo em comum mediante o qual se definem
como tais, então, esse algo em comum deve estar contido simul-
taneamente em todos os indivíduos da mesma espécie. É isso que
torna possíveis as proposições "Sócrates é homem", "Platão é ho-
mem", "Aristóteles é homem" etc.
Mais do que na Antiguidade, na Idade Média, o problema
dos universais é crucial do ponto de vista ontológico, uma vez que
© U3 - Ontologia e Linguagem na Idade Média 73

ele também envolve problemas teológicos, tais como a da natu-


reza dupla de Cristo, o pecado original, ou seja, dogmas que, caso
os universais não possuíssem a dimensão ontológica, ficariam sem
sentido e deixariam na incerteza os dogmas fundamentais que
sustentam a religião cristã.
O que seria do dogma do pecado original se os universais
não existissem realmente? O que seria de Cristo se não existisse
nele, ao mesmo tempo, a natureza humana e divina? Eis porque a
questão dos universais na Idade Média e a sua adesão à dimensão
ontológica é fundamental.
Mas que tipo de universais deve existir como entidades reais
ou como ideias platônicas? Vejamos o exemplo a seguir:

Figura 2 Concepção de substância aristotélica.

Veja que, na Figura 2, a substância segunda é sempre um predi-


cado: "animal", "racional", "homem", "grego" e "filósofo". Entretanto,
qual desses predicados é essencial a Sócrates? Por exemplo: dizemos
que ser "filósofo" é essencial a Sócrates, ou Sócrates poderia não ser
filósofo? E, no caso do predicado "animal", será que Sócrates poderia
não ser animal? E "racional"? E "homem"? E "grego"?
Algumas dessas características parecem mais essenciais que
outras. Ser animal, racional e homem parece que é mais essen-
cial a Sócrates do que ser filósofo e grego. Nesse sentido, para os
cristãos realistas, por exemplo, animal, racional e homem fariam
parte da essência de Sócrates, enquanto filósofo e grego seriam
apenas acidentes, os quais Sócrates poderia não ser.

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74 © Filosofia da Linguagem

O problema na questão dos predicados, que caracteriza a


questão dos universais, fica evidente a partir do momento em que
se faz necessário distinguir aqueles predicados que se referem a
um ser ontológico, como as ideias de Platão, e aqueles que se re-
ferem apenas a acidentes da substância primeira, como aquelas
características que pertencem a um determinado contexto, como,
por exemplo, ser filósofo.
Vamos verificar como os filósofos medievais encararam es-
ses paradoxos da linguagem?

Boécio e o problema dos universais


Como você pôde acompanhar, Boécio é o primeiro pensador
no contexto medieval que retoma com todo vigor o problema dos
universais. A primeira questão formulada por Porfírio, a saber, se
os universais são entes reais ou somente nomes, Boécio não vacila
a responder que os universais são entes reais. Negar isso, confor-
me ele, destituiria o pensamento e a linguagem de objetos reais,
o que não apenas deixaria sem sentido os universais, como, tam-
bém, desestruturaria por completo o nosso pensamento.
Na segunda questão levantada por Porfírio ("caso os univer-
sais sejam entes reais, são corporais ou incorporais?"), Boécio res-
ponde que os universais, devido ao seu aspecto de comunidade,
isto é, de serem comuns a vários entes, não podem ser corporais
e, portanto, são incorporais.
A terceira questão que coloca no escopo o topos ou o lugar
dos universais, ou seja, se eles estão fora das coisas (ante rem) ou
dentro das coisas (in re), retomando, assim, a velha discussão en-
tre Platão e Aristóteles, Boécio parece inclinar ao peripatetismo.
Segundo ele, realmente existentes são os objetos concretos, nos
quais estão contidos os universais. Evidentemente, segundo o fi-
lósofo, os universais não se podem separar realmente dos objetos
concretos, sem destruí-los, mas podemos, sim, mentalmente, por
meio de abstração, acessar os universais. Nesse caso, os universais
© U3 - Ontologia e Linguagem na Idade Média 75

assumem, para Boécio, a importância de essências reais imanen-


tes aos objetos concretos, permanecendo, assim, de acordo com a
posição aristotélica.
Todavia, essa posição de Boécio não é a única. Ela deriva, se-
gundo ele, do fato de que se trata da análise e de comentários da
obra Categorias, de Aristóteles. Isso é comprovado pelo livro V da
sua obra Consolação da Filosofia. Nessa obra, encontramos uma
concepção puramente platônica sobre os universais.
De acordo com essa concepção, os universais nada mais são
do que as ideias de Deus que, enquanto tais, existem realmente
fora das coisas e são, conforme isso, transcendentes ao mundo
criado.
Com essa nova posição, Boécio praticamente deixa a ques-
tão dos universais em aberto.

Realismo versus nominalismo e a posição de Abelardo


O forte crescimento da dialética e da lógica durante o século
11 coloca em destaque o problema dos universais. A discussão,
vale lembrar, gira acerca do lugar da sua existência, ou seja: são
eles puras formações mentais (palavras e termos) ou são coisas
realmente existentes.
Aqueles, para os quais os universais são apenas nomes,
como você deve lembrar de seus estudos de História da Filosofia
Medieval, são chamados de nominalistas. Já aqueles que afirmam
a existência real dos universais são denominados realistas. Para
esses últimos, os universais, para terem sentido, devem existir re-
almente, pois, se a verdade, como ensina Aristóteles, é adequação
do conhecimento com a coisa, então, a verdade seria aquela que
indica algo realmente existente. Portanto, os termos gerais exis-
tem realmente fora do nosso pensamento, como substâncias reais
diante das quais os indivíduos possuem somente uma existência
acidental.

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76 © Filosofia da Linguagem

Na sua disputa acirrada com Guilherme de Champeaux, Abe-


lardo obrigou seu mestre a mudar de posição com relação a seu re-
alismo extremo. Segundo Abelardo, se existe realmente uma subs-
tância humana, então, ela deveria estar presente inteiramente em
Sócrates e, também, em Platão. Disso resulta que, por substância,
ambos são idênticos – o que é realmente absurdo.
Por sua vez, o nominalismo extremo reconhece como real-
mente existente apenas o indivíduo, ou a coisa concreta, enquanto
os universais são reduzidos apenas a nomes, ou melhor, a emis-
sões de voz (meras produções sonoras). Defensor dessa posição
era o outro mestre de Abelardo – Roscelino. Este negava qualquer
realidade dos termos gerais, reduzindo-os a puros nomes. Para
ele, o universal não significava nenhum ente real. As palavras são
apenas materialidade sonora (flatus vocis) e elas significam as coi-
sas a que se referem. Não há, portanto, nenhuma realidade que
subjaz por trás dos universais.
A discussão dos universais é essencialmente teórica, todavia,
como vimos anteriormente, ela envolve implicações teológicas.
Caso sejam realmente existentes somente os indivíduos, e os ter-
mos gerais são somente nomes vazios, então, a cristandade teria
problemas para manter o dogma da trindade divina, da natureza
dupla de Cristo, do pecado original etc.

O conceitualismo de Abelardo
Segundo Abelardo, os termos gerais não podem ser coisas
(res), porque a sua função lógica é serem predicados da proposi-
ção, isto é, que se referem a muitas coisas individuais. Portanto,
os universais são palavras ou nomes. Colocando-se na posição do
nominalismo, Abelardo, todavia, distingue-se completamente do
verbalismo de Roscelino, afirmando que tais nomes não são sim-
plesmente palavras, mas noções – portadoras de significado lógi-
co. Tais noções constituem o conteúdo do nosso pensamento. Elas
se formam pela abstração.
© U3 - Ontologia e Linguagem na Idade Média 77

A teoria da abstração de Abelardo inclui necessariamente a


presença de algo geral na realidade. Nesse caso, é possível a abs-
tração de uma qualidade de muitos diferentes objetos, justamente
porque tal qualidade se encontra realmente neles. Com isso, Abe-
lardo aproxima-se da posição aristotélica, segundo a qual o geral é a
forma imanente nas coisas. Em outras palavras, o conceitualismo de
Abelardo requer uma ontologia imanentista de tipo peripatético.
Todavia, em sua doutrina ontológica, Abelardo segue não
Aristóteles, mas Platão, segundo o qual as ideias gerais são trans-
cendentes às coisas sensíveis. Esse impacto entre uma lógica do
tipo peripatético e uma ontologia do tipo platônica Abelardo tenta
reconciliar a partir da sua teoria do status.
O status, segundo Abelardo, é a determinação da própria
coisa (assim como é a forma aristotélica). Todavia, o lugar real do
status é o intelecto de Deus. Assim o status praticamente assume
a característica de ideia de Deus da coisa concreta, existente, po-
rém, fora da coisa.
A partir da teoria do status, fica claro que é possível formar
mentalmente a noção geral de muitos objetos diferentes, justa-
mente porque eles têm um status igual, estão num degrau da
hierarquia do ser. A noção universal de homem, por exemplo, é
possível porque Deus ordenou todos os homens em um degrau
ontológico.

O nominalismo extremo de William de Occam


A discussão sobre os universais após Abelardo é retomada
por William de Occam. Este se coloca em plena defesa do nomi-
nalismo. Segundo Occam, os universais não possuem existência
real. A existência dos universais, segundo ele, leva inevitavelmen-
te ao absurdo, pois, se o universal existisse, ele deveria ser tratado
como particular e, nesse caso, ele deveria ser uno. Mas não se
pode explicar como poderá estar presente em muitas coisas, sen-
do uno. Essas considerações levam Occam à conclusão de que os

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78 © Filosofia da Linguagem

universais não possuem realidade fora do intelecto. Sendo assim,


Occam interroga-se sobre a realidade do universal no interior do
intelecto. Para o nominalista, os universais não passam de criações
mentais cujas funções consistem em significar, ou seja, constituir
as proposições por meio das quais as ciências operam.
As proposições são compostas por termos que cumprem a
função de substituir os objetos – suppositio. Segundo Occam, exis-
tem três tipos de suppositio:
• Suppositio materialis – quando o termo significa a palavra
que o constitui. Por exemplo: "homem é uma palavra".
Nesse caso a palavra "homem" é considerada em sua pró-
pria materialidade.
• Suppositio personalis – nesse caso, o termo exerce a fun-
ção de significar coisas reais. Por exemplo: "o homem
canta". O termo "homem", nesse caso, designa uma pes-
soa individual.
• Suppositio simplex: o termo significa algo comum. Por
exemplo: "o homem é uma espécie". Aqui, o "homem"
não significa um indivíduo, mas uma comunidade.
Ate agora, a questão dos universais era do poder da lógica. A
metafísica, segundo Occam, começa quando se coloca a questão:
o que corresponde como realidade a esse universal e o que o ter-
mo de uma proposição designa num caso de suppositio simplex?
Como vimos, os adeptos do realismo insistiram na existência
dos universais como entes reais, ao passo que os adeptos do no-
minalismo insistiram que os universais não passam de nomes ou
concepções do intelecto.
A posição de Occam a esse respeito é bastante categórica. O
que existe na realidade, isto é, para além do pensamento, segundo
o filosofo, é apenas a coisa particular. Nesse caso, evidentemente,
os universais que se referem a várias coisas particulares não pos-
suem existência real fora do pensamento.
© U3 - Ontologia e Linguagem na Idade Média 79

Em contrapartida, os indivíduos, enquanto objetos do conhe-


cimento, podem ser classificados por meio dos universais (gêneros
e espécies). Sendo assim, podemos concluir que, para Occam, os
universais são apenas substitutos das coisas no discurso e, como
tais, não existem na realidade.
Com essa sua posição, Occam atesta a sua adesão integral ao
nominalismo.
Realmente, a Idade Média, por meio das discussões sobre os
universais, contribuiu imensamente sobre a especulação filosófica
sobre a linguagem.

6. TEXTO COMPLEMENTAR
O texto a seguir tem o propósito não apenas de enriquecer o
seu estudo sobre a Filosofia da Linguagem, mas também de enfati-
zar a sua importância no contexto filosófico da Idade Média.

Os universais–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A Idade Média parte de uma posição extrema, o realismo, e termina na outra so-
lução extrema e oposta, o nominalismo. O nominalismo é decerto antigo, quase
tanto quanto o realismo, e a história de ambos apresenta várias complicações e
distintos matizes; mas a linha geral do processo histórico é a que acabamos de
indicar. O realismo, que está em pleno vigor até o século XII, afirma que os univer-
sais são res, coisas. A forma extrema do realismo considera que estão presentes
em todos os indivíduos que neles se incluem e, portanto, não há uma diferença
essencial entre eles, diferem apenas por seus acidentes; são anteriores às coi-
sas individuais (ante rem). Em essência haveria apenas um homem, e a distinção
entre os indivíduos seria puramente acidental. Isso corresponde à negação da
existência individual e beira perigosamente o panteísmo. Por outro lado, a solução
realista era de grande simplicidade, e além disso prestava-se à interpretação de
vários dogmas, por exemplo o do pecado original; se em essência existe apenas
um único homem, o pecado de Adão afeta, naturalmente, a essência humana, e
portanto todos os homens posteriores. O realismo está representado por Santo
Anselmo e, em forma extrema, por Guilherme de Champeaux (séculos XI-XII).
Mas logo surgem adversários da tese realista. A partir do século XI aparece o
que se chamou nominalismo, principalmente com Roscelino de Compiègne. O que
existe são os indivíduos; não existe nada na natureza que seja universal; este exis-
te apenas na mente, como algo posterior às coisas (post rem), e sua expressão
é a palavra; Roscelino chega a uma pura interpretação verbalista dos universais:
nada mais são senão sopros da voz, flatus vocis. Mas essa teoria é também muito

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80 © Filosofia da Linguagem

perigosa; se o realismo exagerado ameaçava levar ao panteísmo, o nominalismo,


aplicado à Trindade, nos conduz ao triteísmo: se existem três pessoas, existem
três deuses. A encarnação também se torna de difícil compreensão dentro das
idéias de Roscelino. As duas primeiras soluções são, portanto, imperfeitas e não
resolvem a questão. Um longo e paciente trabalho mental, desenvolvido por uma
parcela não desprezível de judeus e árabes, leva a fórmulas mais maduras e sutis
no século XIII, especialmente em Santo Tomás.
O século XIII traz para o problema dos universais soluções próprias: trata-se de
um realismo moderado. Reconhece-se que a verdadeira substância é o indivíduo,
como afirmava Aristóteles, a quem invocam Santo Alberto Magno e Santo Tomás.
O indivíduo é a substância primeira, próte ousía. Mas não se trata tampouco de
um nominalismo; o indivíduo é verdadeira realidade, mas é indivíduo de uma es-
pécie e surge dela por individuação; portanto, para explicar a realidade individual,
faz-se necessário um princípio de individuação, principium individuationis. Santo
Tomás diz que os universais são formaliter produtos do espírito, mas fundamenta-
liter estão fundados no real extra-mental. Os universais, considerados formalmen-
te, ou seja, enquanto tais, são produtos da mente; não existem aí sem mais nem
menos, são algo que a mente faz, mas têm um fundamento in re, na realidade. O
universal tem uma existência, mas não como uma coisa separada, e sim como
um momento das coisas; não é res, como queriam os realistas extremados, mas
tampouco é uma palavra, é in re.
Trata-se agora de encontrar um princípio de individuação. Ou seja, o que é que faz
com que este seja este e nãoaquele outro? Santo Tomás diz que um indivíduo é
apenas matéria signata quantitate. A matéria quantificada é, portanto, o princípio
de individuação; uma certa quantidade de matéria é o que individualiza a forma
universal que a informa. Mas não esqueçamos que há uma hierarquia dos entes
que vai da matéria-prima ao ato puro (Deus). A matéria-prima não pode existir
atualmente, porque é pura possibilidade, mas a matéria informada pode ser forma
ou matéria, conforme a consideremos; por exemplo, a madeira é uma certa forma,
mas matéria de uma mesa; há, portanto, uma série de formas hierárquicas num
mesmo ente, e há formas essenciais e formas acidentais. Esse princípio de indi-
viduação coloca para Santo Tomás um grave problema: e os anjos? Os anjos não
têm matéria; como é possível neles a individuação? De nenhum modo, segundo a
solução tomista; Santo Tomás diz que os anjos não são indivíduos, mas espécies;
a unidade angélica não é individual, mas específica, e cada espécie se esgota em
cada anjo.
No período final da Idade Média, o problema dos universais sofre uma evolução
profunda. Já em mãos de João Duns Escoto, o grande franciscano inglês, e sobre-
tudo nas de Guilherme de Ockham, volta-se à formulação nominalista da questão.
Duns Escoto faz muitas distinções: a distinctio realis, a distinctio formalis e a dis-
tinctio formalis a parte rei. A distinção real é a existente entre as várias coisas;
por exemplo, entre um elefante e uma mesa; a distinção de razão é a que eu
estabeleço ao considerar a coisa em seus diversos aspectos, e pode ser efetiva
ou puramente nominal; é efetiva se distingo, por exemplo, um jarro como reci-
piente de água ou como objeto de adorno; a distinção nominal não corresponde à
realidade da coisa, apenas à sua mera denominação. A distinctio formalis a parte
rei é também formal, mas não a parte intellectus, e sim a parte rei; isto é, não se
trata de coisas numericamente distintas, mas não é o pensamento quem coloca a
distinção, e sim a própria coisa. Assim, para Duns Escoto, um homem tem várias
formas: uma forma humana ou humanitas, mas, além desta, uma forma que o
© U3 - Ontologia e Linguagem na Idade Média 81

distingue dos demais homens; isso é uma distinção formal a parte rei, o que Duns
Escoto denomina, com um termo próprio, haecceitas ou "hecceidade". A haeccei-
tas consiste em ser haec res, esta coisa. Em Pedro e em Paulo está toda a essên-
cia humana; mas em Pedro há uma formalitas a mais, que é a petreidade, e em
Paulo, apaulidade. Esse é o princípio da individuação em Duns Escoto, que não é
apenas material, como na metafísica tomista, mas também formal.
A posição de Duns Escoto abre caminho para o nominalismo. A partir de então, e
em especial no século XIV, vão se multiplicar as distinções e vai-se afirmar cada
vez mais a existência dos indivíduos. Já em Duns Escoto, sem excluir a forma es-
pecífica, são formalitates. Ockham dá um passo a mais e nega totalmente a exis-
tência dos universais na natureza. São exclusivamente criações do espírito, da
mente; são termos (daí o nome de terminismo dado também a essa linha). E os
termos são simplesmente signos das coisas: substituem na mente a multiplicidade
das coisas. Não são convenções, mas signos naturais. As coisas são conheci-
das mediante seus conceitos, e esses são universais; para conhecer um indivíduo
preciso do universal, da idéia: quando, com Ockham, os universais passam a ser
entendidos como meros signos, o conhecimento passa a ser simbólico. Ockham é
o artífice de uma grande renúncia: o homem vai renunciar a ter coisas e se resig-
nará a ficar só com seus símbolos. Será isso que tornará possível o conhecimento
simbólico matemático e a física moderna, que nasce nas escolas nominalistas, so-
bretudo de Paris. A física aristotélica e a medieval queriam conhecer o movimento,
as causas mesmas; a física moderna se contenta com signos matemáticos de tudo
isso; segundo Galileu, o livro da natureza está escrito com signos matemáticos; te-
remos uma física que mede variações de movimento, mas renuncia a saber o que
o movimento é. Vemos como a dialética interna do problema dos universais, assim
como a da criação, leva o homem do século XV a voltar os olhos para o mundo e
fazer uma ciência da natureza. A terceira grande questão da filosofia medieval, o
problema da razão, centrará definitivamente o homem nesse novo tema que é o
mundo (MARÍAS, 2004, p. 143-147).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Referente à discussão dos universais, no que diz respeito aos gêneros e às
espécies, podemos definir a sua problemática assim:
a) A questão é saber se os universais são realidades em si mesmas ou ape-
nas simples concepções do intelecto, e, admitindo que sejam realidades
substanciais, se são corpóreas ou incorpóreas, se, enfim, são separadas
ou se apenas subsistem nos sensíveis e segundo estes.
b) A questão é saber se os universais são realidades em si mesmas ou ape-
nas simples concepções do intelecto, e, admitindo que sejam simples
concepções do intelecto, se são corpóreas ou incorpóreas, se, enfim, são
separadas ou se apenas subsistem nos sensíveis e segundo estes.

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82 © Filosofia da Linguagem

c) A questão é saber se os universais são realidades em si mesmas ou ape-


nas simples concepções do intelecto, e, admitindo que sejam simples
concepções do intelecto, se são corpóreas ou incorpóreas, se, enfim, são
separadas ou se apenas subsistem no intelecto humano
d) A questão é saber se os universais são abstrações concretas ou apenas
simples concepções do intelecto, e, admitindo que sejam abstrações
concretas, se são corpóreas ou incorpóreas, se, enfim, são separadas ou
se apenas subsistem nos sensíveis e segundo estes.
2) O que afirma o nominalismo extremo? Assinale a alternativa correta.
a) Os universais são termos gerais.
b) Os universais são coisas abstratas.
c) Os universais são apenas nomes.
d) Os universais são termos universais

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) a.

2) c.

8. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você teve a oportunidade de conhecer como
o problema da linguagem suscitou grande interesse por parte dos
filósofos e teólogos medievais. A discussão sobre os gêneros e as
espécies, ou melhor, sobre os universais, foi a grande questão das
discussões filosóficas da Idade Média. Apesar de não se tratar de
uma Filosofia da Linguagem, como a entendemos contemporane-
amente, temos de estar atentos para o fato de que é a linguagem
que, como pano de fundo de uma discussão ontoteológica, faz sur-
gir as grandes questões que causaram perplexidade aos espíritos
mais eruditos do período medieval.
Assim, a proposta foi conhecer o problema da linguagem du-
rante a Idade Média a partir da discussão dos universais. Para isso,
tivemos de compreender os argumentos das partes antagônicas
© U3 - Ontologia e Linguagem na Idade Média 83

dessa discussão, a saber, realistas e nominalistas, além de analisar as


soluções teóricas dos pensadores mais fluentes dessa discussão, tais
como Porfírio, Boécio, Abelardo e William de Occam. Dessa forma,
foi possível entender a importância da discussão sobre a linguagem
e suas implicações ontoteológicas no período medieval.
Esperamos que você tenha aproveitado bem os conteúdos
aqui apresentados. Na próxima unidade, você irá conhecer os pro-
blemas que a linguagem suscitou durante a época moderna. Para
isso, o estudo proposto gira em torno de dois grandes filósofos: o
inglês John Locke e o francês Jean-Jaques Rousseau. Vamos lá?

9. E-REFERÊNCIAS
DUCLÓS, M. Aristóteles: biografia e pensamentos. Disponível em: <http://www.
consciencia.org/aristoteles.shtml>. Acesso em: 1 mar. 2011.
MARÍAS, J. Os grandes temas da Idade Média (I): Os universais. Disponível em: <http://
sumateologica.wordpress.com/2010/04/14/os-grandes-temas-da-idade-media-i-os-
universais/>. Acesso em: 12 jan. 2011.
SANTOS, B. S. Antologia de textos. Disponível em: <http://www.bentosilvasantos.com/
cms/index.php?Dep._de_Filosofia:Projetos_de_Pesquisa>. Acesso em: 23 fev. 2011.

Lista de Figuras
Figura 1 Aristóteles. Disponível em: <http://www.consciencia.org/aristoteles.shtml>.
Acesso em: 1 mar. 2011.

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ARISTÓTELES. Categorías, De interpretatione. Editado por Alfonso García Suárez. Madrid:
Tecnos, 1999.
______. Metafísica. Belo Horizonte: Loyola, 2002. 3.v.
GILSON, E. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
KRASTANOV, S. Nietzsche: pathos artístico versus consciência moral. Jundiaí: Paco,
2011.
MARÍAS, J. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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EAD
Linguagem em Locke e
Rousseau

4
1. OBJETIVOS
• Compreender as preocupações dos filósofos modernos, em
especial de Locke, em busca de uma linguagem legítima e
adequada.
• Conhecer a crítica russeauniana sobre a linguagem con-
ceitual e as suas implicações para a vida humana.

2. CONTEÚDOS
• Locke e a Filosofia da Linguagem.
• Rousseau e a linguagem romântica.
• Texto complementar.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
86 © Filosofia da Linguagem

1) Para aprofundar seus estudos, não deixe de pesquisar as


obras a seguir:
• LOCKE, J. Ensaio sobre o entendimento humano. São
Paulo: Abril, 1973. (Os Pensadores).
• ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre o entendi-
mento das línguas. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural,
1978. (Os Pensadores).
2) Antes de iniciar os estudos desta unidade, pode ser in-
teressante conhecer um pouco da biografia dos pensa-
dores cujo pensamento norteia o estudo desta unidade.
Para saber mais, acesse os sites indicados.

John Locke (1632 – 1704)


Locke aponta duas fontes para o conhecimento empírico:
ele é derivado da experiência sensível ou da reflexão. As
idéias estão no intelecto, e no mundo objetivo existe algo
que tem o poder de fazer o intelecto entendê-las como
tal. Um corpo tem qualidades primárias, como a exten-
são, a solidez, a figura. E secundárias como a cor, o odor
e o sabor. As secundárias são variações das primárias,
são subjetivas, parecem como são para os sentidos. As
idéias simples forçam uma passividade por parte do su-
jeito, que pode operar sob diversos modos sob os dados
dos sentidos e sob a reflexão, formando, assim, as idéias
complexas. As idéias se conservam depois de percebi-
Figura 1 John Locke. das (DUCLÓS, 2011).

Jean-Jaques Rousseau (1712 – 1778)

Nasceu em 28/07/1712, em Genebra, Suíça, numa famí-


lia de origem francesa e protestante. [...] À medida que
triunfava de seus contraditores, Rousseau sentia firmar
sua convicção de que a inadaptação permanente de que
sofria não vinha de uma fraqueza pessoal, de um vício
de constituição, mas de uma lenta corrupção das socieda-
des. Traça um quadro acrescido de um histórico das so-
ciedades humanas, demonstrando que as desigualdades
são frutos da civilização. Suas convicções são ditadas por
um sentimento profundo, pois cita as inúmeras misérias
que encontrava em sua vida aventurosa (PIROLA, 2011).
Figura 2 Jean-Jaques Rousseau.
© U4 - Linguagem em Locke e Rousseau 87

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na unidade anterior, você teve a oportunidade de estudar as
principais concepções dos realistas e nominalistas que configuram
a grandiosa discussão dos universais. Nesta unidade, você estudará
algumas concepções sobre a linguagem a partir da modernidade,
entre as quais cabe destaque as concepções de Locke e Rousseau.
A modernidade, em busca de uma rigorosidade científica, influen-
ciada pelo significativo progresso das ciências modernas, coloca
o problema da linguagem como um dos aspectos fundamentais
desse anseio de rigor. Todavia, entre a busca desenfreada de ri-
gor linguístico, encontram-se posições opostas, tal como é a de
Rousseau, que inclina a um retorno ao romantismo linguístico que
possa acessar as paixões dos ouvintes.

5. LOCKE E A FILOSOFIA DA LINGUAGEM


A especulação sobre a linguagem na modernidade teve sua
origem com a obra fundamental de Locke – Ensaio acerca do en-
tendimento humano – de 1690, em que o empirista inglês vincula
o estudo sobre os signos linguísticos em relação à sua epistemolo-
gia. Segundo Coxito (1995), diferentemente dos escolásticos para
os quais a linguagem se associava, sobretudo com a lógica e a gra-
mática, para Locke, a linguagem apresenta um problema episte-
mológico, uma vez que, por meio dela, é que o conhecimento vem
à tona e se comunica. Nesse sentido, Locke afirma:
Existe uma tão intima relação entre idéias e palavras e as nossas
idéias abstratas e as palavras gerais tem uma relação tão constante
entre si que é impossível falar clara e distintamente sobre o nosso
conhecimento – todo ele constituído por proposições – sem consi-
derar em primeiro lugar a natureza, o uso e a significação da lingua-
gem (apud COXITO, 1995).

A partir desse trecho, fica evidente a necessidade de uma


análise pormenorizada sobre os signos linguísticos, a fim de tornar
mais compreensível a sua concepção epistemológica.

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88 © Filosofia da Linguagem

Inicialmente, você deve notar que a especulação de Locke


sobre a linguagem visa, antes de tudo, fixar a utilização legítima da
linguagem, uma vez que é por meio dela que o nosso conhecimen-
to se comunica. A respeito da função comunicativa da linguagem,
Locke afirma:
Visto que Deus criou o homem para viver em sociedade e a socie-
dade humana não pode subsistir se os homens não expressarem
claramente entre si o que pensam, foi necessário instituir um meio
pelo qual as percepções da mente saíssem, por assim dizer, do seu
domicilio e se manifestassem aos outros. Por via disso, /Deus/ não
pôde encontrar outra coisa mais adequada e excelente do que unir
os nossos pensamentos à linguagem humana, de modo que, ouvi-
da esta, pudéssemos perceber com clareza o que os outros conce-
bem no seu espírito (apud COXITO, 1995, p. 285).

O trecho citado não deixa dúvidas da importância da análise


da linguagem para a constituição não somente do fenômeno social
e moral, mas também das questões diretamente relacionadas à
ciência.
Em sua análise sobre a linguagem, Locke aponta para sua ori-
gem convencionalista, ou seja, aponta para o fato de que os signos
linguísticos são constituídos arbitrariamente, a fim de designar as
coisas. Caso contrário, afirma Locke, "existiria apenas uma única
linguagem para todos os homens" (apud COXITO, 1995, p. 286).
A origem convencionalista da linguagem, por sua vez, mostra
que os signos linguísticos não possuem origem natural, ou seja,
não há uma relação natural entre signo e objeto significado. Não
há, portanto, uma correspondência necessária entre lógico (lin-
guístico) e ontológico. Caso não exista tal correspondência, os no-
mes que designam as coisas por convenções não serão capaz de se
pronunciarem sobre as essências das coisas significadas e, portan-
to, serão incapazes de se referir sobre o conhecimento destas.
Todavia, apesar de não haver uma correspondência exata e
necessária entre o objeto e a palavra que o significa, para Locke,
as palavras exteriorizam as ideias, que se encontram no espírito
no ato comunicativo. Diz ele: "as palavras, na sua significação pri-
© U4 - Linguagem em Locke e Rousseau 89

mária ou imediata, estão apenas no lugar das idéias presentes no


espírito de quem as usa" (apud COXITO, 1995, p. 290). Mas, vale
observar, as palavras correspondem às ideias que o indivíduo for-
ma na sua relação com objetos, de tal modo que, para diferentes
indivíduos, haverá diferentes ideias.
Segundo Locke, a palavra "ouro", por exemplo, corresponde-
rá para à ideia de "amarelo" e, para outro, à ideia de peso, malea-
bilidade etc. Isso significa que a ideia formada pela experiência não
possui um caráter objetivo e universalmente válido, mas subjetivo
e relativo. Nesse caso, as palavras estabelecidas por convenções
aplicam-se às ideias particulares formadas pela experiência sub-
jetiva – o que significa que não pode haver uma correspondência
exata entre o sinal linguístico e a ideia. É o que Locke nos diz:
[...] é evidente que qualquer pessoa pode aplicar /tal palavra/
apenas а sua própria idéia, não podendo fazer com que ela esteja,
como sinal, no lugar duma idéia complexa diferente da que efetiva-
mente possui (apud COXITO, 1995, p. 291).

Esse trecho evidentemente destaca o fato de que uma e mes-


ma palavra pode significar ideias diferentes para diferentes indiví-
duos. Se as palavras significam ideias, então, não se pode utilizar
as palavras sem ter ideias que correspondam a elas. A ideia, nesse
caso, deve ser compreendida na sua conotação empírica, como o
conteúdo da consciência ou como material do conhecimento.
A concepção da linguagem exposta por Locke certamente re-
cusa o nexo necessário entre a linguagem e a realidade; com efei-
to, a linguagem não será capaz de espelhar a natureza das coisas,
ou seja, da realidade.
A posição de Locke, assim entendida, aparece como contra-
ponto da concepção escolástica da linguagem, na sua versão re-
alista que afirmava a identidade entre universal e essencial. Em
outras palavras, para a tradição escolástica, definir uma coisa por
meio dos universais é dizer a sua essência. Para essa tradição, as
propriedades peculiares de cada objeto não são essenciais, e o

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90 © Filosofia da Linguagem

conhecimento se dá como adequação da mente com a essência,


necessariamente ideal da espécie. Com o empirismo, porém, essa
concepção metafísica é colocada à prova, uma vez que a experiên-
cia do mundo objetivo ocorre a partir de coisas concretas, e não
de suas espécies ideais. Isso significa que a essência da coisa não
se pode mais identificar com a sua definição, pois o escopo do
empirismo não é a espécie da coisa, mas a coisa mesma junto às
suas peculiaridades. Com Locke, temos uma redução da essência
metafísica tal como é sustentada pelos realistas, a essência físi-
ca que compreende a constituição concreta da coisa. Com isso, o
empirista inglês recusa a concepção metafísica do conhecimento
da essência e firma o primado da experiência, que toma contato
direto com a coisa concreta.
Justamente por isso, Locke enfatiza as definições nomina-
listas e recusa as definições realistas. Pode-se concluir disso que,
devido ao caráter subjetivo da experiência e da definição nominal
derivante dela, o caráter objetivo do conhecimento é colocado na
incerteza. As ideias que temos das coisas dependem exclusiva-
mente da nossa experiência. Nesse caso, a linguagem que utili-
zamos para significar as coisas depende de nossa capacidade de
experimentar e conhecer. Ao que parece, para Locke, não há cor-
respondência entre a essência da coisa, metafisicamente pensada,
e a ideia que dela se forma para ser exteriorizada, em seguida,
pela linguagem. Com efeito, não há uma relação necessária entre
coisa e palavra. Caso assim seja, o filósofo aponta para o caráter
precário e deficiente da linguagem no ato comunicativo. Diz ele a
esse respeito:
[...] as palavras não desempenham adequadamente esse objectivo,
quer no discurso 'civil', quer no filosófico, todas as vezes que uma
palavra não provoca no ouvinte a mesma ideia em cujo lugar está
no espírito de quem fala (LOCKE apud COXITO, 1995, p. 295).

Todavia, nota Locke, as diferentes palavras possuem diferen-


tes graus de perfeição ao significar as coisas. Assim, por exemplo,
as palavras que significam substâncias materiais são mais exatas
© U4 - Linguagem em Locke e Rousseau 91

do que aquelas que significam atos ou estados morais, devido ao


seu caráter não experimental. Palavras como justiça, honra etc. pa-
recem ter sido arbitrariamente introduzidas, uma vez que não ofe-
recem um análogo na experiência. De acordo com essa sua con-
cepção epistemológica, conforme a qual as ideias mais certas são
as simples, fica claro que as palavras que correspondem às ideias
simples estão menos sujeitas à confusão.
De qualquer modo, Locke procura meios para superar as li-
mitações da linguagem. Em razão disso, ele apela para a intersub-
jetividade, que possibilita que as ideias sejam compartilhadas no
ato de comunicação estabelecendo o uso legítimo da linguagem.
Para tal fim, o filósofo vê-se obrigado a conciliar duas questões
contraditórias, a saber: a da subjetividade, sempre da experiência,
sempre relativa, e a da comunicação, afirmando que o nexo entre
palavra e ideia está em conexão constante.
Essa posição implica uma concepção psicologista de comu-
nicação ao supor que as ideias que se expressam por meio das
palavras se pensam identificadas no espírito de quem as transmite
e de quem as recebe, acreditando-se que, no discurso, substituem
as coisas tais como elas são. Mas essa posição implica, por sua
vez, uma retomada da posição realista sobre as noções gerais, caso
elas sejam idênticas no espírito de quem as comunica e de quem
as recebe por um lado e por outro, caso representem as coisas tais
como elas são, isto é, como essências metafísicas.
Em favor da construção e transmissão dos resultados da
ciência experimental e da ciência moral, Locke insiste na signifi-
cação constante, defendendo, assim, a concepção universalista
das ideias. Para remediar o caráter subjetivo das significações e
possibilitar o ato comunicativo, Locke introduz algumas regras. A
primeira regra estabelece que o uso legítimo das palavras requer
que haja uma significação determinada, ou seja, requer-se conhe-
cimento sobre as ideias correspondentes das palavras. Mas essa
correspondência ainda não constitui a legitimidade da comunica-

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92 © Filosofia da Linguagem

ção intersubjetiva, uma vez que o transmissor pode possuir, para


as mesmas palavras, ideias diferentes das do receptor.
Essa regra, vista por outro ângulo, serve para preservar a co-
municação do abuso das palavras que fogem da vigência empírica.
A metafísica, por vezes, serve-se de noções abstratas que não se re-
ferem às ideias no pensamento e, portanto, não tem um análogo na
experiência. Exemplos dessas significações metafísicas que não têm
correspondentes na experiência são palavras tais como: "enteléquia",
"matéria", "forma", "ideias eternas", "espécies inteligíveis" etc.
Para corrigir a falha da primeira regra, Locke adota várias
outras cujo critério consiste na valorização do uso das palavras in
concrecto, isto é, as palavras são vinculadas diretamente à situa-
ção real em razão da qual se usam.
Locke ainda estabelece uma distinção entre o uso comum da
linguagem, tal como se dá na comunicação ordinária e no uso filosófi-
co. No primeiro caso, temos uma linguagem eficiente, instituída pelas
convenções. Apenas no uso filosófico da linguagem é que se pode fa-
lar de "noções precisas" por meio de proposições corretas. Em ambos
os casos, Locke aponta para função descritiva das palavras.
Nesse caso, trata-se de descobrir as características mais sig-
nificativas das coisas, ou seja, que são iguais para todos e que, por
sua vez, permitiriam a adequação das ideias do transmissor e do
receptor. Essa adequação, segundo Locke, depende da observação
experimental que deve fixar as qualidades que melhor determi-
nam uma natureza de tal modo, que não possa ocorrer qualquer
confusão. Essa é, para Locke, a função do uso filosófico da lingua-
gem. Em razão disso, o filósofo propõe a elaboração de dicionários
nos quais se fixam as características mais exatas das coisas inves-
tigadas. Diz ele:
[...] um vocabulário construído deste modo ensinaria talvez com mais
facilidade e em menos tempo a verdadeira significação de numerosos
termos [...] e fixaria no espírito dos homens idéias mais verdadeiras
de numerosas coisas [...] do que fazem vastos e laboriosos comentá-
rios de críticos muito instruídos (apud COXITO, 1995, p. 304).
© U4 - Linguagem em Locke e Rousseau 93

Evidentemente, como já foi dito, o objetivo de Locke resume-


se na construção de uma linguagem exata e legítima do ponto de
vista empírico e experimental, ou seja, do ponto de vista científico,
que estabelece vínculos constantes entre palavras, ideias e coisas
significadas. Dessa exigência de uma linguagem rigorosa que retra-
ta a realidade existente, deriva a sua condenação à retórica. A esse
respeito, ele afirma:
Confesso que nos discursos em que procuramos acima de tudo agra-
dar ou divertir e não instruir e aperfeiçoar o juízo, raramente podem
considerar-se como uma falta essa espécie de ornamentos proporcio-
nados pelas figuras. Mas, se pretendermos falar das coisas como elas
são, é necessário reconhecer que, excetuando a ordem e a elegância,
toda a arte da retórica, todos esses empregos artificiais e figurados das
palavras, segundo as regras que a eloqüência inventou, não servem
para outra coisa senão para insinuar falsas idéias, mover as paixões e,
por conseqüência, viciar os nossos juízos; de maneira que são efetiva-
mente perfeitos embustes. Por essa razão é preciso evitá-los absoluta-
mente em todos os discursos que se proponham informar ou instruir.
E não podemos considerá-los senão como grandes defeitos ou na lin-
guagem ou nas pessoas que se servem deles, onde quer que a verdade
e o conhecimento estejam em causa (apud COXITO, 1995, p. 307).

As palavras de Locke não deixam dúvida a respeito da sua


reprova à linguagem figurada da retórica. Mas, justamente aqui, o
filósofo empirista distancia-se de seu empirismo, pois a linguagem
figurada é mais próxima e mais adequada às percepções sensíveis
das quais as ideias derivam.

6. ROUSSEAU E A LINGUAGEM ROMÂNTICA


Rousseau apresenta-nos uma concepção evolucionista sobre
a linguagem cujo desenvolvimento vai das necessidades naturais
de comunicar sentimentos, emoções, dores, pedir socorro etc., até
a necessidade de expressar conceitos e ideias abstratas. Sendo as-
sim, o grito, segundo Rousseau, é a primeira forma de expressão
linguística ou pré-linguística.
O grito constitui, para o filósofo, um fenômeno instintivo
que desaparece com o surgimento da vida comunal, em que a ne-

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94 © Filosofia da Linguagem

cessidade de comunicação força a criação de uma linguagem mais


sofisticada. Essa nova linguagem, afirma Rousseau, surge:
[...] quando as ideias dos homens começaram a estender-se e a
multiplicar-se, e se estabeleceu entre eles uma comunicação mais
íntima, procuraram sinais mais numerosos e uma língua mais ex-
tensa; multiplicaram as inflexões de voz e juntaram-lhes gestos
que, por sua natureza, são mais expressivos e cujo sentido depende
menos de uma determinação anterior (ROUSSEAU, 1999, p. 71).

A principal obra de Rousseau que especula a linguagem é En-


saio sobre a origem das línguas, de 1781. Nessa obra, o autor pro-
põe-se a mostrar a origem e a gênese da linguagem e o seu vínculo
íntimo com o pensamento em oposição às linguagens modernas.
Como vimos, para Rousseau, o surgimento da língua resulta como
produto das paixões que ele chama de necessidades morais e possui
a mesma sonoridade que a música (ROUSSEAU, 1978, p. 117).
Nesse sentido, Bento Prado Jr. (1998, p. 61) salienta que,
para Rousseau, a língua e a música possuem a mesma raiz e a mes-
ma genealogia. Ao que parece, o pensador de Genebra adota a
música como modelo de línguas – uma originalidade sem par, que
vai na contramão das concepções lógico-formais e gramaticais so-
bre a linguagem.
Diferentemente dos racionalistas modernos, entre os quais
cabe menção a Leibniz, para os quais a linguagem deve espelhar as
ideias da razão como correspondência direta entre coisa e palavra,
para Rousseau, essa linguagem que carrega o selo da modernidade
engendra mais indiferença e empobrece a comunicação, porque
perdeu o elo sensível com a vida e a natureza. Perdeu, ainda, a sua
musicalidade. Portanto, podemos dizer que o pensador genebri-
no propõe o retorno à linguagem musical que acessa diretamente
as almas das pessoas. Nesse sentido, lemos o seguinte trecho de
Rousseau:
Toda a natureza pode estar adormecida, mas aquele que a contem-
pla não dorme e a arte do músico consiste em substituir a imagem
insensível do objeto, a dos movimentos que sua presença excita no
coração do contemplador. Ela não somente agitará o mar, animará
© U4 - Linguagem em Locke e Rousseau 95

as chamas de um incêndio, fará correr os regatos, cair a chuva e


engrossar as torrentes, mas pintará o horror de um deserto me-
donho, enegrecerá os muros de uma prisão subterrânea, acalma-
rá a tempestade, tornará o ar tranqüilo e sereno, e da orquestra
derramará um frescor novo sobre o arvoredo. Ele não representará
diretamente essas coisas, mas excitará na alma os mesmos senti-
mentos que experimentamos ao vê-las (1978, p. 66).

Vimos, portanto, que, diferentemente da linguagem direta


e do discurso rigoroso, a linguagem musical é capaz de acessar e
comunicar sentimentos e paixões tocando a alma do interlocutor.
A esse respeito, Rousseau afirma:
A melodia, ao imitar as inflexões da voz, exprime os lamentos, os
gritos de dor ou de alegria, as ameaças, os gemidos; todos os sinais
vocais das paixões são de sua alçada (1978, p. 169).

A passagem da linguagem musical para a linguagem discur-


siva, isto é, para a linguagem ordenada e regrada, ocorre, segundo
Rousseau, por meio de um processo de ordenação e normatização
da linguagem, oriundo dos acontecimentos históricos que influem
na vida social. Essas mudanças, segundo o autor, causaram uma
ruptura definitiva, embora estivessem até então intimamente li-
gadas, entre melodia e palavra por meio da escrita, em que o pa-
thos musical da linguagem se perdeu e, com ele, a capacidade de
acessar as paixões. A escrita, dito de outra maneira, mortificou e
silenciou a sonoridade expressiva da linguagem falada, impondo
a esta uma estrutura e uma logicidade, que, segundo o filósofo,
são puras ilusões, uma vez que o signo linguístico não é capaz de
expressar a coisa significada em sua verdade ontológica. Vale ob-
servar que a crítica que Rousseau dirige à linguagem "correta" põe
em suspense, também, a questão da verdade do ponto de vista
epistemológico, isto é, a capacidade da linguagem de comunicar a
verdade. Todavia, não se trata de ceticismo, como se pode pensar,
a partir da ruptura operada por Rousseau entre coisa e palavra,
mas, antes, de um deslocamento da questão da verdade para o
campo da retórica (retórica não como persuasão, mas como elo-
quência que suscita determinados afetos no ouvinte, capazes de

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96 © Filosofia da Linguagem

tocar a sua alma e suscitar suas emoções). Nesse sentindo, Bento


Prado Jr. ressalta que:
Pelo fato de relativizar, na linguagem, a relação vertical do signo
com a coisa significada e a relação horizontal da transmissão da
informação, definindo o bom uso da língua como a ação indireta
de uma alma sobre uma outra, através dos movimentos dos senti-
mentos e das paixões, Rousseau dá uma definição essencialmente
retórica da linguagem (1998, p. 87).

Com base no trecho citado, pode-se extrair a ideia de que não


é mais a adequação entre palavra e coisa que deve dominar o con-
ceito da verdade, mas o poder retórico da linguagem de despertar
determinadas emoções e paixões no ouvinte em rito oratório.
Com essa sua posição crítica ao discurso moderno, que,
como vimos, perdeu o vínculo com a sua musicalidade (aquela que
na sua base retórica é capaz de suscitar emoções e paixões no ou-
vinte), Rousseau parece ter indicado a arma daquela crítica total
sobre a verdade e sobre o conceito que a enuncia, que se iniciam
com Nietzsche.
Mas, antes de analisarmos a concepção nietzschiana da lin-
guagem, é interessante que você enriqueça o seu estudo sobre as
reflexões de Rousseau sobre a linguagem lendo, no tópico a seguir,
o artigo A linguagem em Rousseau: sua origem e sua finalidade
como expressão da liberdade humana, escrito por Bruno Viana
Campos (2011).

7. TEXTO COMPLEMENTAR

A linguagem em Rousseau –––––––––––––––––––––––––––––


A capacidade racional do homem é o principal elemento que o diferencia dos de-
mais animais. A linguagem, que é uma das dimensões da racionalidade, desenvol-
veu-se e se aprimorou ao longo do processo evolutivo humano. Por isso, inúmeros
estudos foram feitos sobre ela, tendo como enforque sua origem, seu desenvol-
vimento e sua relação com a sociedade. Alguns autores se destacaram nessas
reflexões, como, por exemplo, o filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) em
seu livro Ensaio sobre a origem das línguas (1759).
© U4 - Linguagem em Locke e Rousseau 97

Rousseau relata, na referida obra, que é a linguagem que diferencia os homens dos
animais [1]. Ela, além de ser expressão do pensamento humano, pode dividir-se ba-
sicamente em duas formas: através dos gestos (artes pictóricas, símbolos, gesticula-
ções etc.) ou da articulação de diferentes sons (a voz). Ambos – os gestos e os sons
– podem ser detectados também nos animais, mas estes seguem uma determinação
natural, pois a linguagem dentro de uma espécie, aparentemente, não muda.
Os homens, por outro lado, desenvolveram o que Rousseau chama de linguagem
de convenção [2] (gestos e palavras), que, embora sirva muitas vezes de empe-
cilho para a sua comunicação, possibilita que haja progresso na língua, já que a
mesma não está delimitada pela predeterminação natural, mas é desenvolvida e
aprimorada ao longo dos tempos. Por conseguinte, Rousseau passou a especular
sobre o motivo pelo qual o homem desenvolveu a sua linguagem de convenção, já
que ela é unicamente dele.
Com efeito, tanto os animais quanto os homens possuem praticamente as mes-
mas necessidades físicas. Por isso, estas não poderiam ser a causa determinante
da linguagem de convenção. Rousseau, contudo, apresenta uma faculdade que
é, de certa forma, própria do homem: os sentimentos [3]. Estes possibilitaram o
desenvolvimento daquela linguagem, pois as primeiras línguas certamente tinham
o intuito de falarem de sentimentos, como os usados no ato de expulsar um intruso,
de repelir uma injusta acusação, ou seja, de expressar os anseios de qualquer con-
vívio social. As necessidades físicas repeliam os homens (fome, frio, sede, etc.),
mas os sentimentos os reuniam, pois era necessário um convívio social para supe-
rar as dificuldades da natureza [4].
Além disso, Rousseau observava uma diferença entre as línguas do hemisfério
norte e as do sul: estas eram pronunciadas por homens que não enfrentavam co-
mumente as dificuldades da natureza e, por causa disso, elas teriam uma sonorida-
de macia, melodiosa, calma e amigável; já os homens que habitavam o hemisfério
norte, enfrentavam pesadas intempéries naturais (frio, gelo, rigorosos invernos) e,
por isso, tinham uma linguagem mais áspera e maior necessidade de convívio so-
cial. Consequentemente, as línguas do norte tenderiam a se desenvolverem mais
eficazmente para serem mais exatas e atenderem as exigências da comunicação
que aumentavam de acordo com a expansão do convívio social [5].
Do mesmo modo, Rousseau acreditava que, no princípio da humanidade, foi ne-
cessário que o homem reconhecesse o seu semelhante para ter sentimentos de
empatia e criar vínculos afetivos que fossem além dos familiares [6]. Por isso,
quando os homens tiveram consciência dos seus semelhantes, puderam racio-
cinar sobre o convívio social (o outro com os mesmos sentimentos que eu) e se
associarem para superarem as adversidades da natureza [7]. Foi desse modo,
enfim, que a língua falada se desenvolveu até ser inventada a língua escrita, criada
para facilitar a comunicação, tornando-a mais objetiva e clara (aperfeiçoamento
da gramática e da lógica, pois se fala de sentimentos, mas se escrevem idéias).
Observa-se ainda que tanto a escrita quanto a fala estão em constante mudança,
já que ambas têm o escopo de atender à comunicação, que é dinâmica [8].
Tendo em vista toda a trajetória feita pela linguagem, Rousseau conclui que o
progresso dessa se deu sobretudo de acordo com as necessidades ligadas aos
sentimentos do homem [9], além da mesma nascer com a liberdade dos homens
em se expressarem, visto que os mesmos eram livres para se comunicarem. Não
obstante, Rousseau, no último capítulo da referida obra, decidiu analisar qual a
relação entre a linguagem, sociedade e governo.

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98 © Filosofia da Linguagem

De fato, segundo Rousseau, num estado tirânico, não há espaço para a liberdade.
A linguagem que se originou na forma de um instrumento para a livre comunicação,
foi substituída pela força repressiva e pela corrupção. O homem se tornou alienado
e sua língua passa a ser apenas "sussurro dos sofás" [10] e estranha para si e para
os seus próprios concidadãos.
Nos estados despóticos, a única linguagem que prevalece é a repressiva e alienante,
uma vez que o discurso que pode ser dito é o sermão, ou melhor, os discursos autoritá-
rios. Desse modo, um orador pode proclamar a sua fala durante horas, mas a maioria
das pessoas ali presentes não sabe a respeito do que foi dito, pois as suas palavras
eram vazias de conteúdo, não expressavam o verdadeiro sentimento que havia no
povo reprimido: a ânsia por liberdade. Por isso, quando as línguas são ditas de forma li-
vre, multidões ouvem atentamente os oradores. Porém, em um contexto de repressão,
as palavras dos déspotas se tornam infrutíferas e inaudíveis pelo povo [11].
Portanto, Rousseau encontra uma relação entre costumes e atitudes de um povo
com a sua respectiva língua, relação essa que se origina na condição livre do
homem. A linguagem expressa, enfim, a liberdade: se o homem for reprimido de
forma autoritária, a sua linguagem será vazia, monótona, própria de alguém que
tem medo de exprimir a sua opinião; por outro lado, se o homem tiver condições de
se expressar sem receios, ele certamente terá uma linguagem aberta e eloqüente,
própria do ser humano livre e responsável pelo seu pensar e seu agir [12]".
Referências
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: vol. II, de Spinoza a
Kant. São Paulo: Paulus, 2005.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre o entendimento das línguas. 2.ed. São
Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores).
1 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 159.
2 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 163.
3 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 163.
4 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 180.
5 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 184-185.
6 No início da humanidade, a organização social se limitava ao círculo fami-
liar. Não havia a idéia de nação ou tribo formada por diferentes famílias.Cf.
ROUSSEAU,1978, p. 183.
7 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 181.
8 Houve uma passagem do homem caçador para pastor e deste para agricultor
(deixou de ser nômade). Ao mesmo tempo, o homem desenvolveu sua capacidade
de comunicação, passando de uma linguagem simplesmente sonora para uma
mais complexa, perpassando pela criação de uma linguagem escrita e lógica. Da
relação entre diferentes povos, as línguas primitivas se fundiram com o objetivo
de se aprimorarem e se tornarem mais claras e abrangentes dentro de um círculo
social. Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 170-171.
9 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 198.
10 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 199.
© U4 - Linguagem em Locke e Rousseau 99

11 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 199.


12 Tal reflexão de Rousseau deixa transparecer os ideais de liberdade – sobretudo
social – que se difundiam largamente na época da Ilustração e posteriormente
(CAMPOS, 2011).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Qual das afirmações que se seguem é de Locke? Assinale a alternativa cor-
reta.
a) Não existe íntima relação entre ideias e palavras. As nossas ideias abstra-
tas e as palavras gerais não tem relação entre si e não é impossível falar
clara e distintamente sobre o nosso conhecimento – todo ele constituído
por proposições – sem considerar, em primeiro lugar, a natureza, o uso e
a significação da linguagem.
b) Existe uma tão íntima relação entre ideias e palavras As nossas ideias
abstratas e as palavras gerais tem uma relação tão constante entre si
que é impossível falar clara e distintamente sobre o nosso conhecimen-
to – todo ele constituído por proposições – sem considerar, em primeiro
lugar, a natureza, o uso e a significação da linguagem.
c) Existe uma correspondência fictícia entre ideias e palavras. As nossas
ideias abstratas e as palavras gerais tem uma relação tão inconstante
entre si que é impossível falar clara e distintamente sobre a nossa cons-
ciência – toda ela constituída por ideias simples – sem considerar, em
primeiro lugar, a natureza, o uso e a significação da linguagem.
d) Existe uma tão íntima relação entre ideias e palavra. As nossas ideias
abstratas e as palavras gerais tem uma relação tão constante entre si que
é impossível falar clara e distintamente sobre o nosso conhecimento –
todo ele constituído por ideias complexas – sem considerar, em primeiro
lugar, a natureza, o uso e a significação da linguagem.
2) Rousseau apresenta-nos uma concepção evolucionista sobre a linguagem,
conforme a qual:
a) O desenvolvimento da linguagem vai das necessidades teóricas às neces-
sidades tecnológicas.
b) O desenvolvimento da linguagem vai das necessidades de acordo entre
as pessoas para acabar com a guerra de todos contra todos.
c) O desenvolvimento da linguagem vai das necessidades de sobrevivências
às necessidades de entretenimento.
d) O desenvolvimento da linguagem vai das necessidades naturais de co-
municar sentimentos, emoções, dores e pedir socorro até a necessidade
de expressar conceitos e ideias abstratas.

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100 © Filosofia da Linguagem

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) b.
2) d.

9. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, foi proposto um estudo sobre os problemas
da linguagem na modernidade, em que foi uma preocupação cons-
tante dos filósofos a busca por uma linguagem científica. Nesse
sentido, você pôde compreender as preocupações dos filósofos
modernos, em especial de Locke, em busca de uma linguagem le-
gítima e adequada. Além de conhecer a questão da linguagem de
Locke, conheceu, também, a crítica rousseauniana sobre a lingua-
gem conceitual e as suas implicações para a vida humana.
Na próxima unidade, você irá conhecer a crítica de Nietzsche à
linguagem conceitual e o retorno à linguagem poética que a compre-
ensão heideggeriana da metafísica tradicional suscitou. Acompanhe!

10. E-REFERÊNCIAS
CAMPOS, B. V. A linguagem em Rousseau: sua origem e sua finalidade como expressão
da liberdade humana. Disponível em: <http://pensamentoextemporaneo.wordpress.
com/2009/06/20/a-linguagem-em-rousseau-sua-origem-e-sua-finalidade-como-
expressao-da-liberdade-humana/>. Acesso em: 4 fev. 2011.
DUCLÓS, M. John Locke: biografia e pensamentos. Disponível em: <http://www.
consciencia.org/locke.shtml>. Acesso em: 2 mar. 2011.
PIROLA, da G. R. ... um pouco de Jean-Jaques Rousseau. Disponível em: <http://www.
unicamp.br/~jmarques/cursos/rousseau2001/mgrp.htm>. Acesso em: 2 mar. 2011.

Lista de figuras
Figura 1 John Locke. Disponível em: <http://www.constitution.org/img/john_locke.jpg>.
Acesso em: 2 mar. 2011.
Figura 2 Jean-Jaques Rousseau. Disponível em: <http://faculty.isi.org/media/images/
originals/JeanJacques_Rousseau.jpg>. Acesso em: 2 mar. 2011.
© U4 - Linguagem em Locke e Rousseau 101

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS


COXITO, A. A. Luis A. Vernei e J. Locke: linguagem e comunicação. Revista Filosófica de
Coimbra, Coimbra, n. 8, p. 283-312, 2005.
LOCKE, J. Ensaio sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril, 1973. (Os
Pensadores).
PRADO JR., B. A retórica de Rousseau. Organização de Franklin de Matos. São Paulo:
Cosac Naify, 2008.
ROUSSEAU, J-J. Ensaio sobre o entendimento das línguas. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural,
1978. (Os Pensadores).
______. Discurso sobre a origem da desigualdade; Discurso sobre as ciências e as
artes. Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1999. v. 2. (Os
Pensadores)

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EAD
Filosofia e Linguagem
em Nietzsche e
Heidegger
5
1. OBJETIVOS
• Compreender como a Filosofia contemporânea, a partir de
Nietzsche e Heidegger, se configura como crítica total da me-
tafísica tradicional e entender como o problema da lingua-
gem assume uma importância fundamental nessa crítica.
• Estudar a relação entre metáfora e conceito e a sua impli-
cação para Filosofia ocidental.
• Compreender que o novo "discurso" filosófico a partir da
arte, da música e da poesia se constitui como contrapon-
to ao discurso metafísico, inaugurando, assim, um novo
projeto e desafio diante do pensamento filosófico.

2. CONTEÚDOS
• Nietzsche e a crítica da metafísica a partir da linguagem.
• Linguagem e poesia: Heidegger.
104 © Filosofia da Linguagem

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Com relação à análise de Nietzsche sobre a linguagem,
assista ao vídeo O essencial de Nietzsche, do profes-
sor Paulo Ghiraldelli Jr. Disponível em: <http://www.
youtube.com/watch?v=NT01YEihoXE>. Acesso em: 24
mar. 2011. Assista, também, ao vídeo do Café Filosófico
da TV Cultura, disponível na internet, do Prof. Oswal-
do Giacóia Jr. e da Profª. Viviane Mosé. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=XGvAc42-K9Q&
feature=BF&list=PLAD82553316B97A14&index=1>.
Acesso em: 24 mar. 2011.
2) Sobre Heidegger, recomendamos que assista ao vídeo
do Ministério da Educação Ciência e Tecnologia da Ar-
gentina sobre Heidegger: Encuentro 1: Heidegger, "Ser
y Tiempo" ¿Por qué Heidegger es el filósofo más impor-
tante del Siglo XX? Programa "Filosofía Aquí & Ahora",
2ª Temporada, realizado por José Pablo Feinmann no
Canal Encuentro del Ministerio de Educación, Ciencia y
Tecnología da Argentina. Disponível em: <http://www.
youtube.com/watch?v=xWX1jneb3Kw>. Acesso em: 24
mar. 2011.
3) Existem, ainda, outros vídeos interessantes sobre
Heidegger e Nietzsche. Procure aqueles de professores
renomados. Não deixe de pesquisar em todas as mídias
possíveis, pois existem informações confiáveis nelas.
Cabe a você filtrar as fontes confiáveis!
4) Antes de iniciar os estudos desta unidade, pode ser inte-
ressante conhecer um pouco da biografia dos pensado-
res cujo pensamento norteia o estudo deste CRC. Para
saber mais, acesse os sites indicados.
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 105

Friedrich Nietzsche (1844 – 1900)


O nome de Nietzsche é talvez hoje, para nós no ocidente,
o nome de alguém que (com as possíveis exceções de
Freud e, de um modo diferente, Kierkegaard) foi único
no tratamento da Filosofia e da vida, da ciência e da Fi-
losofia da vida com seu nome e em seu nome. Ele talvez
tenha sido único a pôr seu nome – seus nomes – e suas
biografias na linha, correndo, assim, todos os riscos a
que isso leva: para "ele", para "eles", para suas vidas,
seus nomes e seu futuro, e particularmente para o futuro
político do que ele deixou para ser assinado (DERRIDA
apud HADDOCK-LOBO, 2011, p. 17).
Figura 1 Friedrich Nietsche.

Martin Heidegger (1889 – 1976)

Foi o último a conferir à Filosofia um papel exclusivo na


interpretação crítica do presente e da própria história
ocidental, colocando-se, assim, na esteira de Hegel e
Nietzsche. Por outro lado, entretanto, ao pensar grande,
ele também se expôs ao risco de errar na mesma propor-
ção: se ele foi capaz de enxergar a violência metafísica
implicada nos dilemas tecnológicos do presente, também
houve momentos em que seu pensamento foi acometido
por uma peculiar cegueira, como no caso de seu breve
envolvimento com o movimento nacional-socialista (DU-
Figura 2 Martin Heidegger. ARTE, 2001, p. 187).

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na unidade anterior, você tomou conhecimento sobre os
anseios modernos de uma linguagem legítima e exata a partir de
Locke. Viu, também, a concepção oposta a esse anseio que rein-
troduz o romantismo da linguagem a partir de Rousseau.
Nesta unidade, você terá a oportunidade de estudar a po-
sição crítica referente à linguagem metafísica e científica a partir
de Nietzsche e Heidegger. Com Nietzsche, você apreenderá que
há um vínculo estreito entre conceito, verdade e moral, por um
lado, e entre metáfora e arte, por outro. Heidegger, por sua vez,
com sua crítica à metafísica, mostrará que nem a linguagem lógica,

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106 © Filosofia da Linguagem

nem a linguagem metafísica serão capazes de dar conta da princi-


pal questão filosófica – a pergunta pelo sentido do ser. Apenas por
meio da arte e da poesia é que a Filosofia ocidental pode reapren-
der a interrogar-se ontologicamente.
No tópico a seguir, você estudará a crítica que Nietzsche
desferiu à metafísica tradicional utilizando uma reflexão minuciosa
sobre a linguagem. Seu conteúdo foi extraído e adaptado da tese
de doutoramento do autor deste material intitulada Nietzsche:
pathos artístico versus consciência moral.

5. NIETZSCHE E A CRÍTICA DA METAFÍSICA A PARTIR


DA LINGUAGEM
Com Nietzsche, começa uma nova forma de analisar a lin-
guagem que deriva da sua crítica radical dos pressupostos ontote-
ológicos. Em seu ensaio, escrito em 1873, intitulado Sobre a verda-
de e a mentira no sentido extramoral, o filósofo tenta rastrear por
via linguística o surgimento do niilismo e seu sustentáculo mais
poderoso – o impulso à verdade () e suas implicações para a vida
efetiva do homem. A análise sobre o impulso à verdade (Trieb zur
Warheit) terá a importância de tema central do ensaio.
A originalidade de Nietzsche consiste na tentativa de detec-
tar, a partir da análise filológica, um anseio metafísico-moral que
constrói seus artefatos teóricos por meio da linguagem conceitual.
Como supostos representantes da verdade, os conceitos cumprem
função regulativa e constitutiva, devendo resgatar e conduzir o
homem para além das contradições de uma vida efetiva, ordenar
e conservar o mundo de acordo com o critério "segurança". Tal
critério, conforme o filósofo, nada mais é do que um mecanismo
de fuga da contingência existencial, fuga da terrível transitorieda-
de que a efetividade da vida necessariamente implica por meio
de convencimentos metafísicos configurados a partir da forçada
passagem do lógico para o ontológico, ensaiada desde os primei-
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 107

ros filósofos metafísicos. Essa passagem, por sua vez, anuncia o


reinado da razão, da concepção teórica norteada pela soberba lei
da não contradição, que tenta imobilizar o movimento impondo-
lhe as correntes da fixidez. A partir dos conceitos – esses artifícios
humanos –, a vontade de conservação encontra sua realização, re-
duzindo ao mínimo os riscos na vida tendo como preço, segundo
Nietzsche, a própria vida.
Podemos verificar como Nietzsche entende essa passagem
claramente a partir do momento em que ocorre inversão da oposi-
ção consciência crítica e instintos criativos para a consciência criati-
va e instintos críticos. Diz Nietzsche em O nascimento da tragédia:
Enquanto, em todos os homens produtivos, o instinto é exatamen-
te uma força afirmativa e criadora, e a consciência uma força crítica
e desanimadora, em Sócrates, é o instinto que se revela crítico e a
razão que se manifesta criadora (2003, p. 115).

Com essa inversão, o intelecto, aliado ao critério da não


contradição, adquire o poder de se legislar sobre o que realmente
existe e o que é ilusão. A crença de uma vida isenta de movimento,
isto é, de uma vida eterna e segura, que deve dar esperança a um
ser em constante transformação, mostra que, por trás do otimis-
mo teórico, se esconde uma razão infinitamente mais poderosa, a
saber: uma razão moral.
O próprio título da obra – Sobre a verdade e a mentira no sen-
tido extramoral – já nos coloca diante de uma perspectiva inédita.
Trata-se de submeter as noções da verdade e mentira a um exame
extramoral. De imediato, engendra-se a pergunta sobre o valor de
tais noções se desvinculadas do sentido moral. Nesse caso, a dis-
cussão sobre a posição em que Nietzsche se coloca ao falar sobre
tais noções para além do sentido moral parece imprescindível.
Segundo Nietzsche (1991), pensar extramoralmente, ob-
viamente, requer o abandono da posição em que se pensa mo-
ralmente. O discurso moral que começa com Sócrates, indepen-
dentemente das suas variações ao longo do tempo, revela certos

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108 © Filosofia da Linguagem

anseios metafísicos expressos em termos de imutabilidade, felici-


dade, imperturbabilidade, dignidade e negação da vida. A verdade,
nesse caso, não concretiza uma aspiração puramente intelectual,
mas serve primordialmente à vontade de conservação; com efeito,
revela-se como meio de se escapar da transitoriedade, como fun-
damento imóvel para o refúgio em meio à turbulência da vida.
Como você pôde acompanhar, Nietzsche acusa Sócrates de
ser o primeiro protagonista desse anseio metafísico, que oculta,
por detrás dos seus disfarces conceituais, uma poderosa razão mo-
ral, que, em última instância, tende a imobilizar a vida. A posição
que Nietzsche assume para falar desses anseios metafísicos é a po-
sição da arte. Com ela, Nietzsche opera um deslocamento de uma
a outra dimensão em que se valoriza a metáfora em detrimento
do conceito.
Segundo Maria Cristina Franco Ferraz, o ensaio nietzschiano
visa a uma reabilitação da metáfora contra o processo de forma-
ção de conceitos, subjacente à vontade de verdade:
Nietzsche valoriza a metáfora em detrimento do conceito como
uma estratégia para solapar a vontade de verdade própria ao ho-
mem, especialmente ao homem moderno, bem como a atribuição
a um caráter supostamente metafísico, histórico ao próprio conhe-
cimento (FERRAZ, 2008, p. 37-38).

Mas essa estratégia de valorizar a metáfora em detrimen-


to do conceito não é apenas mera inversão da concepção teórica,
cuja finalidade é destruir os pressupostos metafísicos e o conheci-
mento que os constrói. Ela, antes de tudo, valoriza o poder criati-
vo do homem, enfatizando o seu caráter essencialmente artístico
de irradiar perspectivas. Esse poder criador, que origina, inclusive,
toda atividade teórica, força a verdade, antes pensada como valor
por si, de se reconhecer na sua verdadeira face, na invenção. As
primeiras palavras do ensaio nietzschiano são bastante significati-
vas a esse respeito.
No desvio de algum rincão do universo inundado pelo fogo de
inumeráveis sistemas solares, houve uma vez um planeta no qual
os animais inteligentes inventaram o conhecimento. Este foi o
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 109

minuto mais soberbo e mais mentiroso da história universal, mas


foi apenas um minuto. Depois de alguns suspiros da natureza, o
planeta congelou-se e os animais inteligentes tiveram de morrer
(NIETZSCHE, 1991, p. 53).

O tom irônico a partir do qual o autor enuncia um "conhe-


cimento inventado" (referência à frase: "[...] animais inteligentes
inventaram o conhecimento"), põe em xeque qualquer pretensão
de verdade. Deslocado para além do sentido moral, Nietzsche vê
o conhecimento e a sua meta suprema – a verdade – como inven-
ções, que, enquanto esquecidas como tais, romperam laços com
a sua origem artística, tornando-se servidores dos pressupostos
metafísicos: "[...] justamente por esse esquecimento, chega (o ho-
mem) ao sentimento da verdade" (NIETZSCHE, 1991, p. 57).
O conceito comunica a verdade por meio da linguagem con-
ceitual, mas ele, segundo Nietzsche, não passa de metáfora oriun-
da do poder artístico no interior do indivíduo por uma tensão, to-
talmente arbitrária e não causal entre interno e externo, que, só
por um esquecimento, passa a valer objetivamente.
A análise da relação metáfora – conceito e da sua gênese
idiomática operada por Nietzsche revela não apenas os meca-
nismos da fixação da linguagem e sua função comunicativa, mas,
primordialmente, o seu significado para a construção da dimen-
são moral. Mas essa busca pela origem da linguagem para além
do sentido moral só será possível pelo abandono desse sentido.
Abandono em que, inversamente a toda concepção teórica, se va-
loriza a metáfora em detrimento do conceito.
Conforme Sarah Kofman (1983), Nietzsche, contra toda tra-
dição metafísica, atesta a preeminência da metáfora sobre o con-
ceito. Para Aristóteles – especula Kofman, reiterando a definição
aristotélica –, a metáfora é:
[...] o transporte para alguma coisa de um nome que designa outra,
transporte do gênero à espécie ou da espécie ao gênero, ou da es-
pécie para a espécie ou segundo a relação de analogia (KOFMAN,
1983, p. 27).

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110 © Filosofia da Linguagem

Disso, pode-se concluir que Aristóteles pensa a metáfora


como sendo derivante do conceito – uma espécie de veículo fi-
gurativo, servindo de apoio à compreensão do texto. Por conse-
quência, os conceitos devem preceder a metáfora, uma vez que
ela realiza o trânsito entre eles. As noções de gênero e espécie
pensadas em sua universalidade conceitual e, portanto, como con-
ceitos – termos carregados com determinado sentido lógico – são
produtos, como Nietzsche vai dizer, de uma forçada igualização do
que não é igual (referência à frase de Nietzsche: "igualização do
não igual" – "Gleichsetzen dês Nichtgleichen") – o que comprova,
contra Aristóteles, que tais universais se formam posteriormente
ao não igual, ao individual, à metáfora, a partir da qual ele designa
as coisas de acordo com sua própria estimulação nervosa.
Só depois, por uma generalização, nasce o conceito.
Nietzsche, portanto, inverte a posição aristotélica. Para ele, não há
dúvida que a metáfora origina o conceito, mais ainda, o conceito
não passa de metáfora gasta, sem carne e osso, um fantasma
uniforme e rígido sem vitalidade alguma. A esse respeito o filósofo
afirma:
[...] como se na natureza, além das folhas, houvesse algo, que fosse
"folha", uma espécie de folha primordial, segundo a qual todas as
folhas fossem tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas,
pintadas, mas por mãos inábeis, de tal modo que nenhum exem-
plar tivesse saído correto e fidedigno como cópia fiel da forma pri-
mordial (NIETZSCHE, 1991, p. 56, gifo nosso).

O certo tom irônico não deixa dúvida de que Nietzsche re-


prova qualquer tipo de essencialidade que transcenda os produtos
naturais e que seja sua causa ou essência.
O ensaio nietzschiano começa com uma fábula que revela,
em tom irônico, a visão nietzschiana sobre a pretendida verdade:
Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em
um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em
que animais inteligentes inventaram o conhecimento (NIETZSCHE,
1991, p. 53).
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 111

Nesse trecho, Nietzsche coloca em clara oposição a ideia da


dimensão infinita do universo, por um lado, e a dimensão tempo-
ral e fugidia da realidade humana, por outro, como se quisesse
mostrar a incomensurabilidade entre ambas as dimensões, como
se quisesse frisar o caráter transitório de quaisquer pretensões an-
tropomórficas – como a do conhecimento expresso por meio da
linguagem conceitual.
Ao caráter temporário de "uma invenção uma vez, num as-
tro", Nietzsche apõe a grandeza infinita do "universo cintilante".
Para Nietzsche, um conhecimento inventado conduz diretamente a
uma verdade inventada, visto que esta naturalmente deve ser meta
suprema daquele. Mas que verdade seria uma verdade inventada?
A possível especulação sobre a questão daria outra cono-
tação, que exclui automaticamente a concepção teórica sobre a
questão da verdade. Nesse ponto, Nietzsche não nega a verdade,
uma vez que ela aparece como fator constitutivo do artefato mo-
ral, apenas a reduz à invenção – o que equivale dizer que ela não
corresponde mais à sua essência epistemológica. Revela-se, nesse
caso, como algo oposto a si mesmo.
Não seria a verdade, nesse caso, um produto do poder criativo
e inventivo do homem, que almeja, a partir dela, se conservar, trans-
cendendo a vida? Não seria, nesse caso, um fenômeno essencial-
mente moral? Tudo se passa como se o intelecto empreendesse a
grandiosa construção piramidal de artefatos metafísicos cuja missão
suprema é, com apoio da onipotente verdade, imobilizar o devir.
Analisando mais de perto, o ensaio revela-nos, talvez, o
primeiro questionamento acerca do impulso da verdade: "De
onde neste mundo viria, nesta constelação, o impulso à verdade!"
(NIETZSCHE, 1991, p. 54). Esse instinto teórico, por assim dizer,
surge como meio de se obter paz e segurança, meio de fortalecer a
crença de que, se há verdade, há, também, esperança de se escapar
da transitoriedade. No trecho a seguir, Nietzsche revela claramente
essa tendência que reduz a vida em sentido de segurança:

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112 © Filosofia da Linguagem

Enquanto o indivíduo, em contraposição a outros indivíduos, quer


conservar-se, ele usa o intelecto, em um estado natural das coisas,
no mais das vezes somente para a representação: mas, porque o
homem, ao mesmo tempo por necessidade e tédio, quer existir
socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se
esforça para pelo menos a máxima bellum omniumcontra omnes
desapareça do seu mundo. Esse tratado de paz traz consigo algo
que parece ser o primeiro passo para alcançar aquele enigmático
impulso à verdade (NIETZSCHE, 1991, p. 54).

A citação não deixa dúvida de que a origem do impulso à ver-


dade surge como anseio de conservação, tanto em dimensão indi-
vidual, como também em dimensão social. Nesse caso, o impulso à
verdade aparece como meio para realização de um anseio maior – o
de conservação. Para tal fim, é necessário que se evitem os efeitos
nocivos de uma guerra de todos contra todos. É necessário, portan-
to, que as coisas recebam nomes fixos a fim de se evitar qualquer ar-
bitrariedade. Surge, assim, o contraste entre a verdade e a mentira:
Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser a 'verdade',
isto é, é descoberta uma designação uniformemente valida e obriga-
tória das coisas, e a legislação da linguagem dá também as primeiras
leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez o contraste entre
verdade e mentira (NIETZSCHE, 1991, p. 54).

Percebe-se que só depois de se constituir a designação vá-


lida e obrigatória surge o contraste entre verdade e mentira. Por-
tanto, a imposição de que se trata aqui, evidentemente de cunho
moral, uma vez que pressupõe uma obrigatoriedade para todos,
revela que o impulso à verdade só pode resultar após o "suposto
acordo", o que, em última análise, quer dizer que o impulso de
verdade cumpre, primordialmente, uma exigência moral.
Certamente, Nietzsche não condena a designação das coisas
que permite a comunicação, mas a intenção que se oculta por trás
dessa designação. A linguagem fixa o sentido rigoroso das palavras
por meio dos conceitos a ponto de imobilizar qualquer perspecti-
va diferente, principalmente no âmbito teórico, em que a verdade
reside e reina soberanamente. A verdade outorga os nomes das
coisas impedindo qualquer interpretação, forçando o indivíduo a
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 113

reconhecer que o ser da coisa está em seu nome. É o que Lebrun


sublinha em sua obra O avesso da dialética:
Nomear não é impor imperiosamente uma marca à coisa sensível:
é declarar que o ser dessa coisa está em seu nome, é futilizar seu
conteúdo imediato – e, assim, abdicar a condição de sujeito singu-
lar, para não ser mais que um si universal, que um representante do
logos (LEBRUN, 1988, p. 72).

Nesse caso, a linguagem domina e condiciona os indivíduos,


obriga-os a renunciar a seu si-individual em prol de um si-impesso-
al e social, obriga-os a participar do "rebanho".
Não será difícil enxergar essa tendência lógico-formal a par-
tir do percurso da concepção teórica: a representação mitológica (a
metáfora) cede lugar ao logos (termo portador de determinado sig-
nificado), e ela, por sua vez, no terreno da ciência, vira signo, restrin-
gindo por completo a possibilidade de interpretação. Aos olhos de
Nietzsche, essa pretensão teórica de imobilizar o devir por meio de
palavras ou signos portadores de determinado significado fixo reve-
la a verdadeira intenção moral forjada pela tradição de não permitir
que o impulso criativo rasgue a "teia da conservação".
O impulso criativo deve ser banido do sistema, uma vez que toda
criação pressupõe destruição, por oferecer novas condições que rom-
pem com a ordem estabelecida. Nesse caso, o criador será reduzido a
criminoso e mentiroso, por metaforizar, isto é, por utilizar as palavras
fixas de maneira não convencional, isto é, de maneira indevida. A men-
tira, portanto, do ponto de vista moral, será o uso ilegítimo e não tradi-
cional da linguagem, em contraste com a correlação estabelecida pela
tradição e engendrada pelo impulso de verdade, que, no fundo, revela
uma poderosa vontade de conservação. O mentiroso transgride esse
ímpeto de conservação e é por isso que é odiado, não pelo engano, mas
pelas consequências impactantes que do engano derivam – o rompi-
mento da teia das verdades que embasa o sentido da segurança:
Os homens, nisso, não procuram tanto evitar serem enganados,
quanto serem prejudicados pelo engano: o que odeiam, mesmo
nesse nível, no fundo não é a ilusão, mas as conseqüências nocivas,
hostis, de certas espécies de ilusões. É também em um sentido res-

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114 © Filosofia da Linguagem

trito semelhante que o homem quer somente a verdade: deseja as


conseqüências da verdade que são agradáveis e conservam a vida
(NIETZSCHE, 1991, p. 55).

Nietzsche novamente destaca, neste trecho, que a oposição


verdade x mentira não possui tanto uma conotação epistemoló-
gica, mas, sim, uma conotação moral. À verdade não se opõe o
erro, como se deve esperar de uma atitude epistemológica, mas a
mentira – o que possibilita a avaliação no eixo bem x mal.
Retomando a relação metáfora – conceito, vimos que a so-
breposição do conceito sobre a metáfora operada pela concepção
teórica, a partir de Aristóteles, visa estabelecer um sentido rigoro-
so que deve nortear a linguagem figurada da metáfora. A essa altu-
ra, a metáfora segue a trajetória prescrita pelo conceito, sempre se
referindo a ele. Nesse caso, a metáfora é reduzida em explicação
figurativa sem autonomia própria e sem poder de interpretação;
ela apenas elucida o sentido pretendido pelo conceito.
A valorização da metáfora que Nietzsche opera nesse en-
saio é um convite para nos aventurarmos no caminho avesso da
concepção teórica, para além do discurso filosófico conceitual, ou
seja, o caminho que conduz do logos ao mito – o reino das metáfo-
ras e da produção artística; ou, para dizer de modo mais acertado,
do conceito à metáfora.
Nesse caminho, é possível desvelar a origem da produção
artística, as possibilidades de uma imaginação criativa de irradiar
metáforas. Para entendermos melhor essa posição nietzschiana,
vale remeter a um escrito anterior a Sobre a verdade e a mentira:
o Curso de retórica. Nesse escrito, podemos encontrar subsídios
dessa crítica radical sobre a concepção da verdade não apenas
como um produto epistemológico, mas, antes, como um produto
moral. Vale observar que a crítica nietzschiana sobre a verdade se
configura em dois aspectos:
1) Crítica da verdade enquanto adequação entre coisa e in-
telecto.
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 115

2) Crítica da verdade enquanto produto de convenções.


Para fundamentar essa dupla crítica, Nietzsche recorre, no
Curso de retórica, à definição aristotélica de retórica, segundo a
qual "[...] a retórica é a força (Kraft) de considerar teoricamen-
te o que, em cada caso, é o mais conveniente para persuadir"
(NIETZSCHE, 2001).
Parece que a força retórica consiste no impacto que a pa-
lavra pode provocar no ouvinte, de modo tal que o discurso mais
sedutor soa mais verdadeiro. E o que é mais sedutor do que a con-
servação! Portanto, o que importa não é a verdade, mas o que
impressiona e o que é eficaz para uma determinada espécie de
viventes. Evidentemente, para Nietzsche, a formação da lingua-
gem remete a esse poder retórico, poético e antropológico. Nesse
sentido, a linguagem é uma criação do gênio criador do homem.
Nietzsche não condena esse artefato antropológico, mas pelo con-
trário, admira-o como produto do "gênio construtor" que fabrica,
a partir de si mesmo, igual à aranha, sua teia antropomórfica de
conceitos.
Todavia, o problema para Nietzsche surge quando as "metá-
foras gastas", quando tomadas a sério, abandonam, por meio de
esquecimento, a sua origem artística e enredam o homem, igual
a uma mosca, em suas teias morais, de tal modo que a sua imagi-
nação geradora de imagens se encontre imobilizada nas redes da
verdade.
Partindo da definição aristotélica, Nietzsche conclui que a re-
tórica é uma ocupação teórica, um estudo regrado e ordenado que
visa ao alcance de um telos determinado, uma arte que tende "em
cada caso" à concretização de persuasão, não se tratando, portan-
to, de um dom natural ou talento nato do orador. Uma vez que a
finalidade da retórica é a persuasão, o seu estudo será centrado
nos mecanismos que suscitam determinadas paixões e sentimen-
tos e que devem auxiliar na persuasão.

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116 © Filosofia da Linguagem

O domínio da arte retórica requer uma instrução e, portan-


to, possui caráter necessariamente consciente. Para Nietzsche,
toda linguagem é retórica, porém, seus tijolinhos conceituais, as
palavras, surgem por um processo inconsciente. Disso, podemos
concluir que a finalidade da retórica (a persuasão) não se encontra
na sua origem (produção de figuras da linguagem), mas configura-
-se só mais tarde como artifício teórico. Segundo Nietzsche, cada
palavra é um tropo. Sendo assim, ela apenas enfatiza uma caracte-
rística que se destaca na imagem da coisa, e isso conforme meca-
nismos puramente subjetivos.
A palavra surge, segundo Nietzsche, a partir da "afiguração
de um estímulo nervoso em sons" (NIETZSCHE, 1991, p. 55), frisan-
do que se trata de um ato completamente subjetivo: "um estímu-
lo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira
metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda
metáfora" (NIETZSCHE, 1991, p. 55). Nesse caso, a questão é sa-
ber como essa apresentação sonora de um estímulo nervoso que
se forma no interior da subjetividade humana adquire status de
conceito universal. Com efeito, ele não serve apenas ao sujeito e
à sua experiência individual da qual deriva originariamente, mas
estende-se a todo gênero humano.
Nos escritos póstumos do período 1872-1875, podemos ob-
servar que Nietzsche considera dois modos de pensar: por imagens,
por meio da imaginação, e por conceitos, por meio da razão. O pri-
meiro modo, fundamental e básico, é, ao mesmo tempo, origem e
suporte do segundo: "Ao conceito corresponde primeiramente a
imagem, as imagens são pensamentos originais, isto é, as superfí-
cies das coisas concentradas no espelho do olho" (NIETZSCHE, 2007,
p. 29). Disso se pode concluir que, para Nietzsche, todo pensamen-
to nasce com as metáforas e só mais tarde configura-se o pensa-
mento racional por conceitos. "Ao pensar já se deve ter aquilo que
se procura, graças à imaginação – a reflexão só pode julgar depois"
(NIETZSCHE, 2007, § 63, p. 32). Isso significa que o pensamento ra-
cional só se efetiva a partir da matéria advinda das imagens.
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 117

Todavia, a imagem é imagem para o sujeito. Sendo assim,


como ela passa a ser um conceito? Como ela se transforma em
portador de um significado universalmente válido?
A imaginação – diz Nietzsche – consiste em ver rapidamente as se-
melhanças. A reflexão avalia em seguida conceito a conceito e veri-
fica. A semelhança deve ser substituída pela causalidade (NIETZSCHE,
2007, § 60, p. 31).

Mas essa substituição é totalmente arbitrária, uma vez que:


[...] entre duas esferas absolutamente distintas, como entre sujeito e
objeto, não existe nenhuma causalidade, nenhuma correção, nenhu-
ma expressão, mas quando muito uma relação estética [...] para o
que, em todo o caso, é necessária uma esfera intermediária e um po-
der intermediário livremente poético e inventivo (NIETZSCHE, 2005,
p. 17).

Caso não haja uma relação causal entre os dois polos do conhe-
cimento, então o conceito não passa de uma criação arbitrária que,
por meio do esquecimento do homem "enquanto sujeito criador", por
meio da renúncia à sua natureza poética e inventiva, a validez univer-
sal do conceito vem à tona. Mas para que serve essa universalidade e
que função ela cumpre? Ordenar, classificar, calcular e dominar a vida
conforme o critério da "segurança" revela a intenção mais íntima do
impulso ao conceito (impulso ao conceito alude impulso à verdade
uma, vez que o conceito enuncia a verdade). O seu artífice é o intelec-
to, que "desdobra suas forças mestras no disfarce" (NIETZSCHE, 1991,
p. 53) e cuja missão suprema é produzir a consciência moral.
Pressupondo que toda linguagem é retórica e composta por
tropos, Nietzsche recusa a possibilidade de uma linguagem exata
e pura, isto é, uma linguagem natural que retrate as coisas. Isso
não é possível porque o homem não apreende coisas, apenas estí-
mulos nervosos provocados por tais coisas. Seus nomes, portanto,
nada mais são do que produtos dessa irritação nervosa, logo, algo
puramente subjetivo e arbitrário, embora a diferença entre os es-
tímulos nervosos subjetivos e as suas causas (coisas) seja insupe-
rável. O estímulo nervoso exterioriza-se a partir de uma imagem
sonora e, portanto, não é cabível atribuir a ela uma correspondên-

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118 © Filosofia da Linguagem

cia à causa que a produziu.


Esses argumentos em favor da nomeação arbitrária das coisas
implica, consequentemente, outra consideração: sendo a produção
da palavra decorrente da esfera subjetiva, não seria, portanto, pos-
sível a tradução exata para outra esfera igualmente subjetiva, como
se dá na comunicação. Caso entre as duas esferas subjetivas haja
acordo, não será este um produto da verdade, mas da persuasão
que ocorre por um ato de imposição. Mas a persuasão, a essa altura,
revela outra face: a retórica como arte de persuasão deve ensinar
os passos a partir dos quais o orador suscite as mesmas emoções e
paixões no ouvinte para que este seja persuadido. É um mecanismo,
então, que impõe ao ouvinte renunciar a sua subjetividade no ato
de persuasão, renunciar, portanto, a seu poder criador de metáfo-
ras, como ressaltamos anteriormente. Tudo se passa como se, no
ato de persuasão, um criador de metáforas impusesse a outro cria-
dor de metáforas renunciar à sua aptidão artística e pronunciar as
metáforas conforme o sentido imposto na persuasão. Isso tudo con-
forme a força retórica. Mas o que levou o homem teórico, segundo
Nietzsche, a rotular a retórica como uso ilegítimo da linguagem e
contrapor a ela um discurso puro foi o trabalho teórico e a profunda
convicção de que a adequação entre res e intelectus pode advir so-
mente por uma atitude epistemológica.
Encontra-se, na concepção antiga da linguagem, uma diferen-
ciação de discurso puro, resultante da atitude teórica pela qual se
crê que se comunicam as coisas mesmas, e de discurso retórico,
entendido em termos de linguagem ilegítima. Seria interessante ob-
servar como se instaurou, segundo Nietzsche, a diferenciação entre
puro e retórico, uma vez que, para ele, toda linguagem é retórica.
Na Retórica, Nietzsche explica a origem da linguagem nos seguintes
termos: a linguagem é criação individual, um artefato que se im-
põe à coletividade por um ato de persuasão ou por coibição: "Estes
poucos (criadores de linguagem), quando não conseguem impor as
suas figuras (retóricas) à maioria, apelam contra ela ao uso e falam
de barbarismo" (NIETZSCHE, 1992, p. 300, tradução nossa).
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 119

Assim, restringe-se a possibilidade de novas criações linguís-


ticas a partir da censura que o "mais antigo", o "legítimo" exer-
ce sobre o novo. Discurso "puro", então, será o discurso corrente
e tradicional, aquele que não surpreende: "[...] o puro se define
como não surpreendente". Podemos identificar nesse trecho que
a preocupação com a conservação do sistema vigente está intima-
mente ligada com a linguagem e sua função conservadora. Nesse
caso, destacam-se dois aspectos fundamentais que configuram o
sistema como uma unidade fechada e impenetrável, isto é, o im-
pulso artístico criador de tropos, por um lado, e a conservação
desses tropos, por outro. A conservação ocorre na medida em
que o sentido pretendido pelo criador for imposto à coletividade e
usado por ela em casos semelhantes. Desse modo, configura-se a
concepção da verdade.
Vale observar que, tanto na versão correspondente da ver-
dade, como também na versão convencional, o esquecimento de-
sempenha um papel fundamental: "Somente por esquecimento
pode o homem alguma vez chegar a supor que possui uma verda-
de [...]" (NIETZSCHE, 1991, p. 55). Em ambas as versões, o esque-
cimento realiza "a desconsideração do individual e do efetivo" em
prol do universal, permitindo, assim, o surgimento do conceito:
Toda palavra torna-se logo conceito justamente quando não deve
servir, como recordação, para a vivência primitiva, completamente
individualizada e única à qual deve seu surgimento, mas ao mesmo
tempo tem de convir a um sem número de casos, mais ou menos
semelhantes, isto é, tomados rigorosamente, nunca iguais, portan-
to, a casos claramente desiguais. Todo conceito nasce por igualação
do não igual (NIETZSCHE, 1991, p. 56).

A verdade como adequação e a verdade como convenção


surgem dessa igualação do não igual. No primeiro caso, como ge-
neralização de casos relativamente semelhantes; no segundo caso,
porém, trata-se de uma objetivação do sujeito, é claro, a partir do
esquecimento.
É importante destacar que a crítica radical sobre a verdade
não tange tanto à versão epistemológica entendida como adequa-

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120 © Filosofia da Linguagem

ção (caso contrário, a crítica seria apenas cética, que argumenta


contra a possibilidade do conhecimento, o que, para Nietzsche, é
apenas consequência), mas à desmistificação do acordo comum e
à descoberta do seu caráter coercitivo. Com efeito, se a pergunta
pela verdade se refere, sobretudo, à correspondência e esta, por
sua vez, é forçada e imposta, justamente essa imposição desloca o
questionamento para o âmbito moral.
Na comunicação, a linguagem ganha legitimidade e, com
isso, a possibilidade da concepção da verdade como adequação.
A gênese da linguagem, vista por esse ângulo, segue as seguintes
etapas: o criador cria figuras de linguagem que ele impõe a partir
de uma força retórica à coletividade. Essa imposição torna possí-
vel a legitimação do discurso, assinalado, nesse caso, como "puro".
Apenas nessa altura já é possível surgir a correspondência entre
coisa e palavra, isto é, é possível a verdade como adequação: "[...]
a veracidade (e a metáfora) produziu a propensão para a verdade.
Assim um fenômeno moral esteticamente generalizado dá o im-
pulso intelectual" (NIETZSCHE, 1922, p. 49, tradução nossa).
Com base nesse trecho, podemos concluir que a crítica à
adequação não é o pressuposto, mas a consequência de uma críti-
ca mais radical e fundamental, ou seja, a crítica extramoral.
Retomando Sobre a verdade e a mentira..., observa-se que
Nietzsche considera dois tipos de metáforas que, em última análi-
se, revelam duas tendências de vida – a racional e a intuitiva. A pri-
meira tendência dá-se na transformação da metáfora em conceito,
promovida pela concepção teórica desde o momento em que o
mito passa ao logos, a metáfora ao conceito – uma tendência que
busca fixar rigorosamente o sentido, restringindo a possibilidade
interpretativa uma vez que a verdade não pode ser múltipla. Com
efeito, trata-se de congelar as possíveis perspectivas que a metáfo-
ra engendra, evaporando toda a sua imagem figurada, engendrada
pelo poder artístico. Isso se torna possível graças à tradição e à
repetição em que a verdade aos poucos se cria e se solidifica:
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 121

Que então é verdade – pergunta Nietzsche – [...] um batalhão imó-


vel de metáforas, metonímias e antropomorfismos, enfim, uma
soma de relações humanas que foram enfatizadas poética e reto-
ricamente, transpostas, enfeitadas e que, depois de um longo uso,
parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades
são ilusões das quais se esqueceu que o são, metáforas que se
tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua
efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais
como moedas (NIETZSCHE, 1991, p. 57).

Para Nietzsche, não há duvida, a verdade aparece junto à


configuração das relações humanas, quando a moral entra em
cena. Então, segundo o filósofo, as designações das coisas inven-
tadas pelos criadores "foram intensificadas" pela força retórica e
ao serem impostas à coletividade, engendraram o uso tradicional
dessas invenções chamadas, pela tradição, de verdades. O proces-
so da formação da verdade acompanha o processo de formação
do sentido moral. A verdade deve fixar o que deve valer para a
conservação do sistema vigente. Nesse caso, as verdades, que o
sistema propaga, nada mais são do que códigos morais que garan-
tem o sistema – uma espécie de guardiãs que não permitem que o
criador penetre no sistema, uma vez que criar é, ao mesmo tempo,
destruir.
Todavia, existe outra tendência – afirma Nietzsche – mais
original e básica – o impulso de formação de metáforas:
[...] esse impulso à formação de metáforas, esse impulso funda-
mental do homem, que não se pode deixar de levar em conta nem
por um instante, porque com isso o homem mesmo não seria leva-
do em conta, quando se constrói para ele, a partir das suas criatu-
ras liquefeitas, os conceitos, um novo mundo regular e rígido como
uma fortaleza, nem por isso, na verdade, ele é subjugado e mal é
refreado. Ele procura um novo território para sua atuação e um ou-
tro leito de rio, e o encontra no mito e, em geral, na arte (NIETZSCHE,
1991, p. 58-59).

A tradução de "Zwingburg" com "praça forte" feita por Rubens Ro-


drigues Torres Filho em Os Pensadores foi substituída pela "for-
taleza", pensando que assim se traduz mais fielmente o sentido
pretendido.

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122 © Filosofia da Linguagem

Não há dúvida de que, para Nietzsche, o impulso criativo de


formação de metáforas é um aspecto fundamental e básico do ho-
mem, sem o qual ele não "seria levado em conta" e, apesar de
ser refreado pelos seus próprios produtos – os conceitos –, esse
impulso não é de modo algum extinto. A sua irrupção poética e
inventiva necessita de novo âmbito e encontra-o na arte.

Texto complementar
Devido ao fato de que a nossa análise sobre a crítica nietzs-
chiana da linguagem conceitual gira em torno do ensaio Sobre ver-
dade e mentira num sentido extra-moral, achamos indispensável,
para o seu estudo mais consistente, a inserção dessa breve obra
na íntegra.

Para que você tenha acesso às notas de rodapé desse texto, con-
fira-o na íntegra no site disponível em: <http://operigodobelo.files.
wordpress.com/2008/03/nietzsche-verdade-e-mentira.pdf>. Aces-
so em: 13 jan. 2011.

Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral –––––––––


Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho
No desvio de algum rincão do universo inundado pelo fogo de inumeráveis siste-
mas solares, houve uma vez um planeta no qual os animais inteligentes inventa-
ram o conhecimento. Este foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da "história
universal", mas foi apenas um minuto. Depois de alguns suspiros da natureza, o
planeta congelou-se e os animais inteligentes tiveram de morrer.
Esta é a fábula que se poderia inventar, sem com isso chegar a iluminar suficiente-
mente o aspecto lamentável, frágil e fugidio, o aspecto vão e arbitrário dessa exce-
ção que constitui o intelecto humano no seio da natureza. Eternidades passaram
sem que ele existisse; e se ele desaparecesse novamente, nada se teria passado;
pois não há para tal intelecto uma missão que ultrapasse o quadro de uma vida
humana. Ao contrário, ele é humano e somente seu possuidor e criador o trata
com tanta paixão, como se ele fosse o eixo em torno do qual girasse o mundo. Se
pudéssemos entender a mosca, perceberíamos que ela navega no ar animada
por essa mesma paixão e sentindo em si que voar é o centro do mundo. Nada há
de tão desprezível e de tão insignificante na natureza que não transborde como
um odre ao menor sopro dessa força do conhecer, e assim como todo carregador
quer também ter o seu admirador, o homem mais arrogante, o filósofo, imagina ter
também os olhos do universo focalizados, como um telescópio, sobre suas obras
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 123

e seus pensamentos.
É admirável que o intelecto seja responsável por esta situação, ele a quem todavia
não foi dado senão servir precisamente como auxiliar dos seres mais desfavoreci-
dos, mas vulneráveis e mais efêmeros, a fim de mantê-los na vida pelo espaço de
um minuto — existência da qual eles teriam todo o direito de fugir, tão rapidamente
como o filho de Lessing, não fosse esta ajuda recebida. Este orgulho ligado ao
conhecimento e à percepção, névoa que cega o olhar e os sentidos do homem,
engana-os sobre o valor da existência, exatamente quando vem acompanhada da
avaliação mais lisonjeira possível com relação ao conhecimento. O seu efeito mais
comum é a ilusão; mas seus efeitos mais particulares implicam também qualquer
coisa da mesma ordem.
O intelecto, enquanto meio de conservação do indivíduo, desenvolve o essencial
de suas forças na dissimulação, pois esta é o meio de conservação dos indivíduos
mais fracos e menos robustos, na medida em que lhe é impossível enfrentar uma
luta pela existência munidos de chifres ou das poderosas mandíbulas dos animais
carnívoros. É no homem que esta arte da dissimulação atinge o seu ponto culmi-
nante: a ilusão, a lisonja, a mentira e o engano, a calúnia, a ostentação, o fato de
desviar a vida por um brilho emprestado e de usar máscaras, o véu da convenção,
o fato de brincar de comediante diante dos outros e de si mesmo, em suma, o
gracejo perpétuo que em todo lugar goza unicamente com o amor da vaidade,
são nele a tal ponto a regra e a lei, que quase nada é mais inconcebível do que o
aparecimento, nos homens, de um instinto de verdade honesto e puro. Eles estão
profundamente mergulhados nas ilusões e nos sonhos, seu olhar somente desliza
sobre a superfície das coisas e vê apenas as "formas", sua percepção não leva
de maneira nenhuma à verdade, mas se limita a receber as excitações e a andar
como que às cegas no dorso das coisas. Além disso, durante a vida toda, o ho-
mem se deixa enganar à noite pelos sonhos, sem que jamais o seu sentido moral
procure impedi-lo disso, embora deva haver homens que, por força da vontade,
tiveram sucesso em se livrar do ronco. Mas o que sabe o homem, na verdade, de
si mesmo? E ainda, seria ele sequer capaz de se perceber a si próprio, totalmente
de boa-fé, como se estivesse exposto numa vitrine iluminada? A natureza não lhe
dissimula a maior parte das coisas, mesmo no que concerne a seu próprio corpo,
a fim de mantê-lo prisioneiro de uma consciência soberba e enganadora, afastado
das tortuosidades dos intestinos, afastado do curso precipitado do sangue nas
veias e do complexo jogo de vibrações das fibras? Ela atirou fora a chave; e infeliz
da curiosidade fatal que chegar um dia a entrever por uma fresta o que há fora
desta cela que é a consciência e aquilo sobre o que ela está assentada, e desco-
brir então que o homem repousa, a despeito da sua ignorância, sobre um fundo
impiedoso, ávido, insaciável e mortífero, agarrado a seus sonhos assim como ao
dorso de um tigre. Nessas condições, haveria no mundo um lugar de onde pudes-
se surgir o instinto de verdade?
No estado de natureza, na medida em que o indivíduo quer conservar-se diante
dos outros indivíduos, ele não utiliza sua inteligência o mais das vezes senão com
fins de dissimulação. Mas, na medida em que o homem, ao mesmo tempo por
necessidade e por tédio, quer viver em sociedade e no rebanho, necessário lhe é
concluir a paz e, de acordo com este tratado, fazer de modo tal que pelo menos o
aspecto mais brutal do bellum omnium contra omnes desapareça do seu mundo.
Ora, este tratado de paz fornece algo como um primeiro passo em vista de tal enig-
mático instinto de verdade. De fato, aquilo que daqui em diante deve ser a "verda-
de" é então fixado, quer dizer, é descoberta uma designação uniformemente válida

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124 © Filosofia da Linguagem

e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem vai agora fornecer também


as primeiras leis da verdade, pois, nesta ocasião e pela primeira vez, aparece uma
oposição entre verdade e mentira. O mentiroso utiliza as designações pertinentes,
as palavras, para fazer parecer real o que é irreal; ele diz por exemplo: "eu sou
rico", ainda que, para qualificar sua condição, fosse justamente a palavra "pobre" a
designação mais correta. Ele mede as convenções estabelecidas, operando subs-
tituições arbitrárias ou mesmo invertendo os nomes. Se age assim de maneira
interessada e demasiadamente prejudicial, a sociedade não lhe dará mais crédito
e, por causa disso, o excluirá. Nesse caso, os homens fogem menos da mentira
do que do prejuízo provocado por uma mentira. Fundamentalmente, não detestam
tanto as ilusões, mas as consequências deploráveis e nefastas de certos tipos de
ilusão. É apenas nesse sentido restrito que o homem quer a verdade. Deseja os
resultados favoráveis da verdade, aqueles que conservam a vida; mas é indiferen-
te diante do conhecimento puro e sem consequência, e é mesmo hostil para com
as verdades que podem ser prejudiciais e destrutivas. Mas, por outro lado, o que
são as convenções da linguagem? São produtos eventuais do conhecimento e do
sentido da verdade? Coincidem as coisas e suas designações? É a linguagem a
expressão adequada de toda e qualquer realidade?
Somente graças à sua capacidade de esquecimento é que o homem pode chegar
a imaginar que possui uma verdade no grau que nós queremos justamente indicar.
Se ele recusa contentar-se com uma verdade na forma de tautologia, quer dizer,
como cascas vazias, ele tomará eternamente ilusões por verdades. O que é uma
palavra? A transposição sonora de uma excitação nervosa. Mas, concluir a partir de
uma excitação nervosa uma causa primeira exterior a nós, isso é já até onde chega
uma aplicação falsa e injustificável do princípio da razão. Se a verdade tivesse sido
o único fator determinante na gênese da linguagem e se o ponto de vista da certeza
o fosse quanto às designações, como teríamos então o direito de dizer, por exem-
plo, que "esta pedra é dura", como se conhecêssemos o sentido de "duro" de outro
modo que não fosse apenas uma excitação totalmente subjetiva? Classificamos as
coisas segundo os gêneros, designamos l'arbre como masculino e a planta como
feminino: que transposições arbitrárias! A que ponto estamos afastados do cânone
da certeza! Falamos de uma serpente: a designação alcança somente o fato de se
contorcer, o que poderia convir igualmente ao verme. Que delimitações arbitrárias,
que parcialidade é preferir ora uma ora outra propriedade de uma coisa! As diferen-
tes línguas, quando comparadas, mostram que as palavras nunca alcançam a ver-
dade, nem uma expressão adequada; se fosse assim, não haveria efetivamente um
número tão grande de línguas. A "coisa em si" [como sendo precisamente a verdade
pura e sem conseqüência], enquanto objeto para aquele que cria uma linguagem,
permanece totalmente incompreensível e absolutamente indigna de seus esforços.
Esta designa somente as relações entre os homens e as coisas e para exprimi-las
ela pede o auxílio das metáforas mais audaciosas. Transpor uma excitação nervo-
sa numa imagem! Primeira metáfora. A imagem por sua vez é transformada num
som! Segunda metáfora. A cada vez, um salto completo de uma esfera para outra
completamente diferente e nova. Imaginemos um homem que seja totalmente surdo
e que jamais tenha percebido o som e a música: da mesma maneira que ele sem
dúvida se espanta com as figuras acústicas de Chladni feitas de areia e descobre
sua causa na vibração das cordas, jurará então por esta descoberta que não poderá
ignorar daí por diante o que os homens chamam de som, assim como ocorre com
todos nós no que concerne à linguagem. Acreditamos possuir algum saber sobre
as coisas propriamente, quando falamos de árvores, cores, neve e flores, mas não
temos entretanto aí mais do que metáforas das coisas, as quais não correspondem
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 125

absolutamente às entidades originais. Assim como o som enquanto figura de areia,


também o x enigmático da coisa em si é primeiramente captada como excitação
nervosa, depois como imagem, afinal como som articulado. A gênese da linguagem
não segue em todos os casos uma via lógica, e o conjunto de materiais que é por
conseguinte aquilo sobre o que e com a ajuda de quem o homem da verdade, o
pesquisador, o filósofo, trabalha e constrói, se não provém de Sírius, jamais provém
em todo caso da essência das coisas.
Pensemos ainda uma vez, particularmente, na formação dos conceitos: toda pala-
vra se torna imediatamente conceito, não na medida em que ela tem necessaria-
mente de dar de algum modo a idéia da experiência original única e absolutamente
singular a que deve o seu surgimento, mas quando lhe é necessário aplicar-se si-
multaneamente a um sem-número de casos mais ou menos semelhantes, ou seja,
a casos que jamais são idênticos estritamente falando, portanto a casos totalmen-
te diferentes. Todo conceito surge da postulação da identidade do não-idêntico.
Assim como é evidente que uma folha não é nunca completamente idêntica à
outra, é também bastante evidente que o conceito de folha foi formado a partir do
abandono arbitrário destas características particulares e do esquecimento daquilo
que diferencia um objeto de outro. O conceito faz nascer a idéia de que haveria
na natureza, independentemente das folhas particulares, algo como a "folha", algo
como uma forma primordial, segundo a qual todas as folhas teriam sido tecidas,
desenhadas, cortadas, coloridas, pregueadas, pintadas, mas por mãos tão inábeis
que nenhum exemplar teria saído tão adequado ou fiel, de modo a ser uma cópia
em conformidade com o original. Dizemos de um homem que ele é honesto; per-
guntamos a nós mesmos porque ele agiu hoje tão honestamente. Respondemos
geralmente que foi por causa da sua honestidade. Honestidade! Isto significa nova-
mente dizer que a folha é a causa das folhas. Não sabemos mesmo absolutamente
nada de uma qualidade essencial chamada honestidade, no entanto conhecemos
inumeráveis ações individualizadas e por conseguinte dessemelhantes, mas que
postulamos como idênticas ao deixarmos de lado o que as torna diferentes; assim,
designamos as ações honestas a partir das quais afinal formulamos uma qualitas
occulta com o termo: a honestidade.
A omissão do particular e do real nos dá o conceito, assim como nos dá a forma,
contrariamente ao que revela a natureza, que não conhece formas ou conceitos e
portanto nenhum gênero, mas somente um x para nós inacessível e indefinível. Pois
a oposição que introduzimos entre o indivíduo e a espécie é também antropomórfica
e não provém da essência das coisas, mesmo quando ousamos dizer que esta opo-
sição não corresponde à essência das coisas; pois isto seria de fato uma afirmação
dogmática e, enquanto tal, tão indemonstrável quanto a afirmação contrária.
O que é portanto a verdade? Uma multidão móvel de metáforas, metonímias e
antropomorfismos; em resumo, uma soma de relações humanas que foram realça-
das, transpostas e ornamentadas pela poesia e pela retórica e que, depois de um
longo uso, pareceram estáveis, canônicas e obrigatórias aos olhos de um povo: as
verdades são ilusões das quais se esqueceu que são, metáforas gastas que per-
deram a sua força sensível, moeda que perdeu sua efígie e que não é considerada
mais como tal, mas apenas como metal.
Não sabemos ainda todavia de onde provém o instinto de verdade, pois até agora
só temos falado do constrangimento que a sociedade impõe como condição da
existência: é necessário ser verídico, quer dizer, empregar metáforas usuais; por-
tanto, nos termos da moral, só temos falado da obrigação de mentir segundo uma

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126 © Filosofia da Linguagem

convenção estabelecida, mentir como rebanho e num estilo obrigatório para todos.
Na verdade, o homem esquece que é assim que se passam as coisas. Ele men-
te portanto inconscientemente, tal como indicamos, conformando-se a costumes
seculares... e é mesmo por intermédio dessa inconsciência, desse esquecimento,
que ele chega ao sentimento da verdade. Ao experimentar o sentimento de estar
obrigado a designar uma coisa como vermelha, outra como fria, uma terceira como
muda, ele é seduzido por um impulso moral que o orienta para a verdade e, em
oposição ao mentiroso a que ninguém dá crédito e que todos excluem, o homem
é persuadido da dignidade, da confiança e da utilidade da verdade. Enquanto ser
racional, deve agora submeter seu comportamento ao poder das abstrações; não
suporta mais ser levado pelas impressões súbitas e pelas intuições, mas genera-
liza em primeiro lugar todas as impressões em conceitos mais frios e mais exan-
gües, a fim de atrelar neles a condução da sua vida e do seu agir. Tudo o que eleva
o homem acima do animal depende dessa capacidade de fazer desaparecer as
metáforas intuitivas num esquema ou, em outras palavras, dissolver uma imagem
num conceito. Sob o domínio desses esquemas, é possível ser bem sucedido em
relação àquilo que jamais se alcançaria submetido às primeiras impressões intuiti-
vas: edificar uma pirâmide lógica ordenada segundo divisões e graus, instaurar um
novo mundo de leis, privilégios, subordinações e delimitações, que se opõe desde
logo ao outro mundo, o mundo intuitivo das primeiras impressões, como sendo
aquele melhor estabelecido, mais geral, melhor conhecido, mais humano e, por
esta razão, como uma instância reguladora e imperativa. Enquanto toda metáfora
da intuição é particular e sem igual, escapando sempre portanto à qualquer clas-
sificação, o grande edifício dos conceitos apresenta a estrita regularidade de um
columbário romano, edifício de onde emana aquele rigor e frieza da lógica que são
próprios das matemáticas. Aquele que estivesse impregnado desta frieza hesitaria
em crer que mesmo o conceito — duro como o osso e cúbico como um dado e
como ele intercambiável — acabasse por ser somente o resíduo de uma metáfora
e que a ilusão própria a uma transposição estética de uma excitação nervosa em
imagens, se não era a mãe, era entretanto a avó de tal conceito. Mas nesse jogo
de dados dos conceitos, chama-se "verdade" o fato de se utilizar cada dado segun-
do a sua designação, de computar exatamente seus pontos, de formular rubricas
corretas e de jamais pecar contra o ordenamento das divisões ou contra a série
ordenada das classificações. Assim como os romanos e os etruscos dividiram o
céu segundo linhas matemáticas estritas e destinaram este espaço assim delimita-
do para templum de um deus, assim também todo povo possui um céu conceitual
semelhante a que está adstrito; a exigência da verdade significa então para ele que
todo conceito, a exemplo de um deus, somente deve ser procurado na sua própria
esfera. Bem poderíamos, a respeito disso, admirar o homem pelo fato de ser ele
um poderoso gênio da arquitetura: ele conseguiu erigir uma catedral conceitual
infinitamente complicada sobre fundações movediças, de qualquer maneira sobre
água corrente. Na verdade, para encontrar um ponto de apoio em tais fundações,
precisa-se de uma construção semelhante às teias de aranha, tão fina que possa
seguir a corrente da onda que a empurra, tão resistente que não se deixe despe-
daçar à mercê dos ventos. Enquanto gênio da arquitetura, o homem supera em
muito a abelha: esta constrói com a cera que recolhe da natureza, o homem o faz
com a matéria bem mais frágil dos conceitos que é obrigado a fabricar com seus
próprios meios. Nisso, o homem é bem digno de ser admirado — mas não por seu
instinto de verdade ou pelo conhecimento puro das coisas. Se alguém esconde
algo atrás de uma moita e depois a procura exatamente nesse lugar acabando por
encontrá-la aí, não há nenhum motivo para a glorificação dessa procura e dessa
descoberta. Mas é todavia isso o que ocorre com a procura e a descoberta da
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 127

"verdade" no domínio que concerne à razão. Quando dou a definição de mamífero


e quando, depois de ter examinado um camelo, declaro: eis aqui um mamífero,
isto é certamente uma verdade que vem à luz, mas o seu valor é limitado; quero
dizer com isso que ela é em tudo uma definição antropomórfica e que não contém
qualquer coisa que seja "verdade em si", real e universal, independentemente do
homem. Aquele que se põe à busca de tais verdades, no fundo procura somente
a metamorfose do mundo no homem; luta para alcançar uma compreensão do
mundo enquanto coisa humana e conquista no melhor dos casos o sentimento
de uma assimilação. Semelhante a um astrólogo, aos olhos de quem as estrelas
estão a serviço dos homens e relacionadas com sua felicidade ou infelicidade, um
tal pesquisador considera o mundo inteiro como estando ligado aos homens, como
o eco sempre deformado de uma voz primordial do homem, como a cópia multipli-
cada e diversificada de uma imagem primordial do homem. Seu método consiste
no seguinte: considerar o homem como medida de todas as coisas; porém, assim
fazendo, parte do erro que consiste em acreditar que as coisas lhe seriam dadas
imediatamente enquanto puros objetos. Ele esquece portanto que as metáforas
originais da intuição são já metáforas, e as toma pelas coisas mesmas.
Foi somente o esquecimento desse mundo primitivo das metáforas, foi apenas a
cristalização e a esclerose de um mar de imagens que surgiu originariamente como
uma torrente escaldante da capacidade original da imaginação humana, foi unica-
mente a crença invencível em que este sol, esta janela, esta mesa são verdades
em si, em suma, foi exclusivamente pelo fato de que o homem esqueceu que ele
próprio é um sujeito e certamente um sujeito atuante criador e artista, foi isto que lhe
permitiu viver beneficiado com alguma paz, com alguma segurança e com alguma
lógica. Se ele pudesse por um instante transpor os muros desta crença que o aprisio-
na, adquiriria imediatamente a "consciência de si". Já lhe custa bastante reconhecer
até que ponto o inseto ou o pássaro percebem o mundo de uma maneira totalmente
diferente do homem, e confessar que a questão de saber qual das duas percepções
é a mais justa é completamente absurda, já que para respondê-la precisaria em
primeiro lugar que se as medisse segundo o critério da percepção justa, quer dizer,
segundo um critério do qual não se dispõe. Mas me parece sobretudo que a percep-
ção justa — que significaria a expressão adequada de um objeto num sujeito — é
um absurdo pleno de contradições: pois, entre duas esferas absolutamente distintas
como são o sujeito e o objeto, não há qualquer laço de causalidade, qualquer exati-
dão, qualquer expressão possíveis, mas, antes de mais nada, uma relação estética,
quer dizer, no sentido que dou, uma transposição aproximativa, uma tradução bal-
buciante numa língua totalmente estranha. Contudo, isto exigiria em todo caso uma
esfera intermediária e uma força auxiliar onde a criação e a descoberta pudessem
operar livremente. A palavra fenômeno esconde muitas seduções; eis porque eu
evito empregá-la o mais que posso, pois não é verdade que a essência das coisas
se manifeste no mundo empírico. Um pintor que fosse maneta e quisesse exprimir
pelo canto o quadro que ele projeta pintar dirá sempre mais, passando de uma es-
fera a outra, do que revela o mundo empírico sobre a essência das coisas. A própria
relação entre uma excitação nervosa e a imagem produzida não é em si nada de
necessário; mas se precisamente esta mesma imagem for reproduzida milhões de
vezes e se inúmeras gerações de homens deixam-na de herança, enfim, sobretudo
se ela aparece ao conjunto da humanidade sempre nas mesmas circunstâncias, ela
acaba por adquirir, para o homem, a mesma significação como se ela fosse a única
imagem necessária e como se esta relação entre a excitação nervosa de origem
e a imagem produzida fosse uma relação de estrita causalidade. Assim também,
um sonho eternamente repetido seria experimentado e julgado como absolutamente

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128 © Filosofia da Linguagem

real. Mas a cristalização e a esclerose de uma metáfora não daria nenhuma garantia
quanto à necessidade e à legitimidade exclusiva desta metáfora.
Todo homem familiarizado com tais considerações experimentou evidentemente
uma desconfiança profunda a respeito de todo idealismo desse tipo, a cada vez
que se mostrou claramente persuadido pela lógica, pela universalidade e pela infa-
libilidade eternas das leis da natureza, e disso tirou a seguinte conclusão: aí tudo é
certo, elaborado, infinito, regrado, desprovido de falha até onde pode levar o nosso
olhar — graças ao telescópio apontado para as alturas do mundo e graças ao mi-
croscópio dirigido para as suas profundezas. A ciência terá sempre material para
explorar com êxito este poço e tudo quanto ela puder encontrar concordará sem se
contradizer. Quão pouco se assemelha isto a um produto da imaginação, pois, se
assim o fosse, seria todavia necessário que algo da ilusão e da irrealidade que lhe
são próprias se revelasse. Ao contrário, é preciso dizer primeiramente o seguinte:
se tivéssemos em cada parte nossa uma percepção sensível de natureza diferen-
te, poderíamos perceber ora como um pássaro, ora como um verme de terra, ora
como uma planta; ou, se um de nós percebesse uma excitação visual como ver-
melha, se outro a percebesse como azul ou se, para um terceiro, fosse uma exci-
tação auditiva, ninguém diria que a natureza é regida por leis, mas contrariamente
a conceberíamos somente como uma construção altamente subjetiva. Assim: o
que é então para nós uma lei da natureza? Ela não nos é conhecida em si, mas
apenas nos seus efeitos, ou seja, nas suas relações com outras leis da natureza
que, por sua vez, somente são conhecidas enquanto relações. Portanto todas as
relações nada fazem senão remeter-se umas às outras e nos são absolutamente
incompreensíveis quanto à sua essência. Unicamente o que aí colocamos, o tem-
po e o espaço, quer dizer, as relações de sucessão e os números, nos é realmente
conhecido. Mas tudo o que precisamente nos surpreende nas leis da natureza, que
reclama nossa análise e que poderia nos levar à desconfiança do idealismo, reside
de fato e unicamente no rigor matemático, unicamente na inviolabilidade das re-
presentações do tempo e do espaço, e não em outro lugar. Ora, produzimo-las em
nós e projetamo-las fora de nós segundo a mesma necessidade que leva a abelha
a tecer sua teia. Se somos obrigados a conceber todas as coisas apenas sob tais
formas, então não há nada de admirável em captar sob estas mesmas formas o
que verdadeiramente procuramos nas coisas. De fato, todas elas necessariamente
se referem às leis do número, e o número é justamente o que há de mais surpre-
endente nas coisas. Toda presença das leis que se nos impõe sobre o curso dos
astros e sobre os processos químicos coincide no fundo com aquelas proprieda-
des que acrescentamos às coisas para assim darmo-nos respeito a nós mesmos.
Disso resulta, sem dúvida nenhuma, que esta criação artística de metáforas que
marca em nós a origem de toda percepção pressupõe já aquelas formas nas quais,
por via de conseqüência, ela se efetua. É apenas a persistência invariável dessas
formas originais que explica a possibilidade que permite assim construir um edifício
conceitual apoiado novamente sobre as próprias metáforas. Este edifício é com
efeito uma réplica das relações de tempo, espaço e número, reconstruído sobre a
base das metáforas (NIETZSCHE, 2010).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Depois de ter acompanhado os problemas referentes à lin-
guagem na filosofia de Nietzsche, você irá acompanhar, no tópico
a seguir, como o ilustre filósofo alemão Heidegger, encontrou na
linguagem poética uma forma mais adequada de linguagem, em
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 129

outras palavras, como a linguagem poética assume, na filosofia de


Heidegger, o estatuto de linguagem autêntica.

6. HEIDEGGER: A LINGUAGEM E A POESIA


Heidegger é um dos filósofos modernos que mais dedicou
uma atenção especial sobre o problema da linguagem em vista do
seu alcance ontológico-fundamental. Ele se perguntava se seria
possível, por meio da linguagem, alcançar a dimensão ontológi-
ca, uma vez que a sua conotação universal diverge da disposição
fundamental de sentimento da situação originária em que o ser se
desvela. Ou, então, perguntava que tipo de linguagem é capaz de
"des-velar" o ser, uma vez que a linguagem é a "mansão do ser" e
o homem tem acesso ao ser por meio da linguagem. A seguir, você
irá conhecer algumas das contribuições de Heidegger para resol-
ver esses dilemas.

O discurso filosófico metafísico e o esquecimento do ser


Por um lado, Heidegger acusa o discurso filosófico da tra-
dição metafísica pelo fato de este ter velado, por meio dos con-
ceitos, o sentido do ser. Se a Filosofia essencialmente surge como
pergunta pelo sentido do ser, então, nela essencialmente se oculta
a possibilidade da sua resposta. Uma dessas possibilidades foi a
da razão. Esta se configurou como uma espécie de enteléquia que
tendeu ininterruptamente para a realização das suas potências. Na
direção da sua realização, a metafísica tradicional, para Heidegger,
revela-se como história do esquecimento do ser. Mas por que a
concepção teórica, com a sua linguagem lógico-formal, não foi ca-
paz, segundo Heidegger, de desvelar o ser? A resposta heidegge-
riana faz referência a três aspectos fundamentais da concepção
teórica que levaram ao esquecimento do ser: a razão, o conceito
e a verdade.

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130 © Filosofia da Linguagem

Esses aspectos foram impotentes para manter em aberto a


pergunta pelo sentido do ser. Pois, movidos por uma tendência de-
finidora, eles tentaram definir aquilo que naturalmente prescinde
de definição, embora seja a base fundamental de toda definição.
O onipotente conceito, segundo Heidegger, não foi capaz de
"de-finir" o Ser, pois o conceito de Ser – diz-nos o filósofo – é in-
definível. Mas por que é que o conceito é incapaz de definir o ser?
Se nos atentarmos à palavra "de-finição", constataremos que ela
remete a fim ou limites. Nesse caso, o conceito "de-fine", isto é,
põe limites, descreve algo. Todavia, essa definição operada pelo
conceito referente a um ente qualquer do mundo opera num âm-
bito no qual cada coisa ou ente se destaca. Se esse âmbito é a base
de toda definição, evidentemente, ele prescinde de definição, tal
como o olho que vê, mas que não consegue ver-se a si mesmo.
Esse âmbito absolutamente fundador e condição própria de toda
definição conceitual que a antecede e a torna possível é o próprio
ser. Eis porque a concepção teórica falhou na tarefa de definir o
ser, pois, o conceito fecha, ao tentar de-finir o ser.
Para entendermos melhor essa posição anticonceitual de
Heidegger, vale observar qual o seu entendimento do ser. Em Ser e
tempo, Heidegger compreende a noção de Ser, em três aspectos:
'Ser' é conceito mais universal [...] (uma compreensão do ser já está
sempre incluída em tudo que se apreende no ente). A "universalidade"
do "ser", porém, não é a do gê­nero. A "universalidade" do ser trans-
cende toda "universalidade genérica" (HEIDEGGER, 2000, p. 28-46).

A partir dessa constatação, vê-se que existe uma clara distin-


ção entre o ser e o ente. Não é legítimo, segundo o filósofo que o
"ser" se confunda com o "ente". Justamente essa confusão consti-
tui aquele erro ontológico que Heidegger denomina de "esqueci-
mento do ser". E esse esquecimento se origina da impotência da
linguagem em "de-finir" o ser.
O conceito de "ser" é indefinível. Essa é a conclusão tirada da má-
xima universalidade. De fato, o "ser" não pode ser concebido como
ente. [...] o "ser" não pode ser determi­nado, acrescentando-lhe
um ente. Não se pode derivar o ser no sentido de uma defini­ção a
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 131

partir de conceitos superiores nem explicá-lo através de conceitos


inferiores. Daí pode-se apenas concluir que o "ser" não é um ente.
Por isso, o modo de determinação do ente, legítimo dentro de cer-
tos limites – como a definição da lógica tradicional que tem seus
fundamentos na antiga ontologia – não pode ser aplicado ao ser
(HEIDEGGER, 2000, p. 29).

A partir desse trecho, evidencia-se que a definição do ente


requer necessariamente o âmbito do ser como seu horizonte con-
ceitual. Justamente como tal, a conclusão de Heidegger julga-o in-
definível. Todavia, nem por isso ele deve ser abandonado. Cabe ao
filósofo manter-se nesse horizonte conceitual e ser a "clareira do
ser". Nesse sentido, para Heidegger, surge a necessidade de colo-
car em pauta novamente a pergunta pelo sentido do ser.
O "ser" é o conceito evidente por si mesmo. Em todo conhecimen-
to, proposição ou comportamento com o ente e em todo relacio-
namento consigo mesmo, faz-se uso do "ser" e, nesse uso, compre-
ende-se a palavra "sem mais". Todo mundo compreende: "o céu é
azul", "eu sou feliz". Mas a essa compreensão comum demonstra
apenas a incompreensão. Revela que um enigma já está sempre
inserido a priori em todo ater-se e ser para o ente, como ente. Esse
fato de vivermos sempre numa compreensão do ser e o sentido do
ser estar, ao mesmo tempo, envolto em obscuridade, demonstra
a necessidade de se repetir a questão sobre o sentido do ser
(HEIDEGGER, 2000, p. 29-30).

Por um lado, Heidegger atribui ao filósofo a tarefa de man-


ter o sentido do ser, mas, por outro, denuncia a impotência do
conceito e do discurso filosófico de desvelar o ser. Nesse caso, evi-
dentemente o filósofo requer troca das ferramentas vigentes da
Filosofia; com efeito, troca a linguagem conceitual pela linguagem
metafórica, que, ao contrário do conceito, não fecha, mas abre
para múltiplos sentidos, não permitindo, assim, a sua "de-finição".
Para o acesso ao ser, Heidegger elege a linguagem poética, por
meio da qual, numa disposição fundamental de humor (pathos), o
homem se conecta ao ser.

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A poesia como linguagem autêntica


A interpretação também se origina da preocupação diante
das possibilidades do dasein (Ser-aí). O projeto por meio do qual
tentamos antecipar o futuro requer a interpretação e esta toma
forma de linguagem mediante a qual atribuímos sentidos e sig-
nificados às nossas possibilidades. Mas, segun­do Heidegger, nem
toda linguagem é autêntica. Somente é autêntica aquela que aces-
sa e diz respei­to às possibilidades próprias de dasein. Linguagem
autêntica seria a da poesia, da arte e, até mesmo, a do silêncio,
pois ele, segundo o filósofo, faria parte da expressão mais autên-
tica do ser.
O critério heideggeriano de linguagem autêntica deriva da sua
possibilidade de acessar o dasein, de falar apenas a ele. Tal possibili-
dade é vista na linguagem poética, por exemplo, porque, ao utilizar
a expressão metafórica, atenta aos possíveis sentidos, não os fecha,
como a linguagem científica. Assim, várias pessoas podem ler a mes-
ma poesia, mas as experiências de cada um com tais versos serão to-
talmente únicas, o que não ocorre com a linguagem científica, que
fixa, por meio dos conceitos e dos números, significados rigorosos.
Uma frase poética do tipo: "O sol mergulhou no mar" não diz nada
para os cientistas, sendo uma frase sem sentido, pois o sentido e o
significado não se correspondem. Contudo, para alguém que teve
ou, melhor, que pressentiu que terá no futuro uma de­cepção amo-
rosa, a frase poética é perfeitamente compreensível.
Na década de 1950, isto é, após a "virada", Heidegger colo-
cou a especulação sobre linguagem no primeiro plano, explicitan-
do a seguinte dúvida: existe algo que está "por trás", "em" ou "aci-
ma da" linguagem, algo para além dos seus limites? Essa questão,
assim colocada, torna possível a compreensão de que a nossa pró-
pria presença ocorre não no mundo, mas na linguagem. Mas esse
lugar "u-tópico", permanece, ele mesmo, improvável – seus topos
temporais não permitem uma fixação inequívoca, determinação
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 133

rigorosa ou qualquer tipo de unidade. A linguagem é o caráter de


escrita, e, antes de toda fala, ela já está presente como texto. Mas
ele é de tal natureza, que, antes de ser escrito, não teria existido
como original no pensamento, texto não original, não concebido,
apenas desejado. Texto que se escreve no momento da sua leitura
e que não possui ser fora dessa leitura.
Todavia, a compreensão não é algo que ocorre no âmbito
abstrato, para além dos símbolos linguísticos. A linguagem não se
pode fixar em uma unidade de símbolos, porém, ela é um "ges-
to corporal". Isso significa que a escrita se realiza em e sobre a
linguagem. Ela, a linguagem, é um além e aquém, aquilo que vai
para além do nome, testemunhando que ele permanece. A escrita
é sempre para "depois", "meta". O que vem depois da escrita é
post-scriptum, o signo. Nada há mais misterioso do que um signo
que não remete para além de si, enquanto signo do nada, todavia,
sem conteúdo, porque é somente referência.
Desde a época dos antigos gregos, o homem é aquele que se
define no âmbito do ser, por meio da linguagem, isto é, do logos.
O fato é que o homem fala, mas apenas por meio da linguagem é
possível "co-municar" algo e, portanto, dizer. O homem é aquele
que fala e, enquanto fala, ele diz. A linguagem também fala. Mas o
que a linguagem diz? Em sua fala, a linguagem se cala. Em outras
palavras, a fala da linguagem revela-se como imersa nos caminhos
do silêncio. Nessa fala, está ausente a personalização da voz; o que
nela ressoa é apenas o som.
Desde o início da nossa interrogação, somos envolvidos com
a ambiguidade da linguagem, pois, para falar sobre a linguagem,
é preciso utilizar ela mesma. Trata-se, grosso modo, daquelas ca-
racterísticas da linguagem que a determinam como horizonte. As
palavras não têm uma importância própria; são apenas rugas na
superfície do discurso.

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Como é de praxe, daremos a você, caro aluno, a oportu-


nidade de aprofundar o seu estudo sobre a concepção heideg-
geriana da linguagem, em que Heidegger introduz um novo pa-
radigma no discurso filosófico que é capaz de acessar o ser por
meio da poesia, a partir do artigo de Chimena M. S. de Barros,
intitulado A poesia na filosofia heideggeriana: uma breve inves-
tigação rumo a crítica.

Texto complementar

A poesia na filosofia heideggeriana:


uma breve investigação rumo à crítica –––––––––––––––––––
I- INSTAURAÇÃO DA TRADIÇÃO: O INÍCIO DA RELAÇÃO "POESIA E FILOSOFIA".
Poesia e Filosofia, uma relação de "amor e ódio", laços que ora se apertam, ora se
afrouxam. Nos cursos de Letras, o estudo da literatura inicia-se com a historinha
do filósofo grego que expulsou os poetas de sua "República Ideal". É nas palavras
de Platão que a relação tem sua origem; seus argumentos: o discurso da poesia
é fantasioso, não obedece à lógica do pensamento, não instrui, e a poesia está
em demasia afastada da Verdade (a Verdade de Platão; o "conceito verdade" que
habita o Mundo das Idéias e ao qual apenas os "sábios" têm acesso).
Para o filósofo grego, a poesia afasta-se da Verdade; com efeito, o poeta é alguém
sem uma grandiosa função na sociedade. No final do Fedro, Platão provoca:
falar a Homero e a qualquer outro autor de poesias que se desti-
nam ou não a ser cantadas; [...] Devemos dizer-lhes o seguinte: se
eles estão certos de possuir a verdade e capazes de a defender, se
podem com as suas palavras ir além dos seus escritos, não devem
chamar-se retóricos, que devem tomar a sua denominação da ciên-
cia a que se dedicam. (1954: 261)
E diante da curiosa indagação de seu discípulo, continua: "Chamá-los sábios, Fe-
dro, me parece excessivo e só aplicável a um deus; mas o nome de filósofo ou um
epíteto semelhante lhes caberia melhor e seria mais apropriado" (Platão 1954: 261,
grifo nosso). Assim, o pensador lutou com as armas que tinha, suas proposições
eram adequadas ao pensamento filosófico da época e os filósofos ganhavam o
estatuto de semi-deuses, a filosofia, de semi-devoção e a poesia, de grande inútil.
A poesia foi ainda abordada em diversas reflexões de todos os tempos; como arte
que é, esteve sempre entre as preocupações de filósofos, por diferentes aborda-
gens e diversos motivos. Milênios depois da condenação de Platão, a situação
inverteu-se: "A verdade como clareira e ocultação do ente acontece na medida em
que se poetiza" (Heidegger 1990: 58, itálico nosso), sentenciou o filósofo alemão
Martin Heidegger, em A Origem da Obra de Arte. Outro tempo, outra visão de mun-
do junta novamente a idéia de poesia à de verdade e à filosofia. Evidentemente,
trata-se de uma nova verdade, um novo modo de pensá-la que está em uma refle-
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 135

xão moderna, que se pretende afastada da metafísica e retoma questões antigas


com uma abordagem bastante diferente.
Em seu pensamento sobre o ser e o ente, Heidegger passou pela verdade e che-
gou à obra de arte e à poesia, "Toda a arte, [...], é na sua essência poesia" (1990:
58, itálico do autor). Ora visto como um existencialista (denominação por ele re-
negada), ora como um fenomenologista, e sempre como um representante nato
da hermenêutica, o filósofo conduziu suas reflexões ontológicas para o universo
da linguagem, não sem antes ter passado por uma revisão da "tradição" e o que
podemos ver como uma precursora "desconstrução" dela em Ser e Tempo.
Na concepção do filósofo alemão, a herança de Platão, renegada ou reafirmada,
é transmitida erroneamente, a tradição é uma das formas do ser perder-se de si,
porquanto ela transmite o esquecimento do que ela própria fora primeiro. Heidegger
então vai propor uma filosofia futura que irá olhar adiante para seu passado e
regojizar-se em sua infindável novidade. (Rée 1999: 22). A herança aqui citada não
diz respeito apenas ao pensamento sobre a poesia e os poetas, é uma visão que
fundou a filosofia e que tratou os temas a que Heidegger dedicou-se em toda a sua
obra: o problema do ser, seu sentido, sua verdade.
A partir dele, o filósofo segue com sua reflexão utilizando uma linguagem caracte-
rizada como "obscura" por muitos estudiosos. Suas considerações sobre o ser en-
contram na língua alemã o meio de expressão ideal pela opção que ela oferece na
formação de palavras; assim, para um pensamento novo, uma nova visão do ser e
da metafísica, o filósofo cria neologismos ou usa palavras gregas empregadas em
um novo sentido. Tal qual um poeta, Heidegger faz da linguagem o acontecimento
fundamental de sua obra.

II- O PENSAMENTO HEIDEGGERIANO DO DASEIN À VERDADE


Para chegar à poesia, Martin Heidegger antes correu seu pensamento pelo ser,
pelos conceitos "mundo" e "terra", pela verdade e pela obra de arte. Mas tais con-
ceitos não são para o filósofo o que foram para a tradição filosófica metafísica.
Para ele, a herança metafísica estaria chegando ao fim, em seu texto.O fim da filo-
sofia, ele iguala filosofia à metafísica, e ambas ao platonismo: "Filosofia é metafísi-
ca. Esta pensa o ente em sua totalidade . o mundo, o homem, Deus . sob o ponto
de vista do ser, sob o ponto de vista da recíproca imbricação do ser". (Heidegger
1979b: 71). Ainda segundo Heidegger, o filósofo deveria partir da existência huma-
na para formular suas reflexões, e não fazer pressuposições sobre sua natureza
ou trabalhar com conceitos abstratos: "Heidegger acha que as pressuposições,
formadas por séculos de metafísica, distanciaram a filosofia do verdadeiro conhe-
cimento do ser" (Chauí 1979: viii).
Começando pelo ser, devemos apontar sua bordagem até o aparecimento da fi-
losofia heideggeriana, em que essa visão metafísica vai se desfazendo. Em seu
lugar, um ser existencial, mais que isso, um ser não idealizado, um ser no mundo,
do mundo e com o mundo, não o homem, mas um ser que habita o homem: o
Dasein.
Antes de Heidegger, a questão do ser tinha uma valoração subjetiva em confronto
com uma objetiva. O ser era então visto como uma personalidade, uma individua-
lidade independente do outro, o qual seria uma projeção do "eu".

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O ser era o eu, o "eu" tornava-se um "rei" das pressuposições filosóficas, a medida
de todas as coisas. O filósofo alemão refutou a coroação do eu e procurou o ser
essencial, que não é o eu nem o outro, mas somos nós, e nós "não somos de fato
eus cartesianos auto-encerrados e autocentrados, mas aberturas receptivas volta-
das para o mundo" (Rée 1999: 45)
O ser heideggeriano só pode ser encontrado pelo Dasein e no Dasein ou "ser-
aí": "O Dasein é o ente que compreende o ser, o que significa entendê-lo em sua
existência e entender a existência como possibilidade sua, de ser ou de não ser si
mesmo, com a qual está concernido" (Nunes 2002: 12).
Por Dasein devemos entender nós mesmos quando estamos à procura do ser,
mas não nos enganemos: "nós mesmos" significa a existência humana, o homem
enquanto tentado a revelar-se a si mesmo, não uma consciência subjetiva, um
raciocínio ou um corpo humano: "mas como Daseins não somos nada além de
nossas compreensões e incompreensões do mundo e do lugar que nele ocupa-
mos, e de nossas mais ou menos claras compreensões e incompreensões dessas
próprias compreensões, e assim por diante, interminavelmente. (Rée 1999: 16).
Apenas partindo do "ser-aí" (Dasein) é que nos é possível chegar à descoberta do
ser, visto que o primeiro compreende o segundo. Mas o "ser-aí" não é uma entida-
de virtual, um exemplo do ser que só existe para ilustrar a filosofia heideggeriana:
ele é o ser vinculado ao mundo. E mundo para o filósofo não é o que sempre
entendemos como tal (Universo, globo terrestre, espaço), ele abrange muito, é
geografia, sociedade, economia, e principalmente história.
Afonso de Castro, estudioso da poesia de Manoel de Barros, analisou a obra do
poeta à luz da filosofia de Heidegger no livro A Poética de Manoel de Barros. Sua
definição do mundo heideggeriano pareceu-nos bastante adequada e elucidativa.
Castro escreveu que mundo, para Heidegger, é a totalidade em que o ser humano
está imerso.
Ele pré-existe a qualquer noção de sujeito objeto. O mundo é algo pressuposto, já
dado. O mundo sendo algo já dado, englobante, está sempre presente e resiste a
qualquer tentativa de objetivação.
O mundo dá-se a perceber somente junto com as entidades que surgem nele. A
compreensão ocorre através do mundo. Segundo Heidegger, mundo e compreen-
são são partes inseparáveis da constituição do Dasein. (1992: 85)
O mundo é com o Dasein, quando Afonso de Castro aponta que o mundo permite a
compreensão, quer dizer que ele se abre no Dasein, por isso não há uma objetiva-
ção, mas uma figuralidade do mundo, ele acontece como. Ao contrário da filosofia
platônica, em que o mundo existia "antes", como essência, na filosofia heidegge-
riana, o mundo existe sempre sendo e acontecendo.
Quando dissemos que o ser não é tratado como uma subjetividade, abrimos já
uma fenda para falar do .ser-aí. e do mundo: o ser no mundo é um "ser-com", pois
sua totalidade só se dá na convivência com outros seres. O Dasein não é o homem
sozinho, e para entendermos o ser, devemos enxergá-lo no mundo compartilhado.
Mas enquanto o ser se revela no "ser-com" como um ser no mundo, ele principia o
seu encobrimento, a sua ocultação, pois a relação com os outros leva o homem à
vida cotidiana, que por sua vez, o leva à inautenticidade.
É importante que entendamos a inautenticidade para que cheguemos à verdade, à
obra de arte e à poesia. Ela é o homem afastado de tornar-se si mesmo e de reco-
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nhecer o ser primordial dentro de si. Na sua vivência cotidiana, o homem acostu-
ma-se com o mundo e vive em um profundo estado de esquecimento. Ele encobre
o Dasein, tornando-o oculto e não se dá conta do seu esquecimento, procura ser
autêntico e "dono de si", na trivialidade da vida. O esquecimento promovido pela
vida cotidiana é o mesmo proporcionado pela tradição filosófica, ele não deixa que
o ser e o ente sejam o que eles realmente são, Heidegger fala dele em A Origem
da Obra de Arte: "O que nos parece natural é unicamente o habitual do há mui-
to adquirido, que fez esquecer o inabitual, donde provém. Este inabitual, todavia,
surpreendeu um dia o homem como algo de estranho, e levou o pensamento ao
espanto" (Heidegger 1990: 17).
E a respeito da força que o cotidiano tem em trazer o esquecimento e a ocultação
do ser do ente, o filósofo escreve em "Sobre a essência da verdade": O homem se
limita à realidade corrente e passível de ser dominada, mesmo ali onde se decide
o que é fundamental. E se ele se decide alargar, transformar, se apropriar e as-
segurar o caráter revelado do ente nos domínios mais variados de sua atividade,
ele, contudo, procura as diretivas para tal nos estreitos limites de seus projetos e
necessidades correntes. (Heidegger 1979c: 142)
É também de "Sobre a essência da verdade", que tiramos as considerações do filó-
sofo alemão a respeito da verdade do ser e do ente. Os filósofos gregos deixaram
uma herança de pensamento sobre a verdade desde Platão, que a considerava
imutável e eterna como parte da essência do ser, e Aristóteles, que a pensou como
uma correspondência entre juízos e objetos. Sendo pensada assim, na relação
sujeito/ objeto, a verdade, segundo Heidegger, perdeu seu sentido original. Ele vai
pensá-la enquanto relacionada à existência do ser.
A concepção de verdade heideggerina inverte as idéias tradicionais de "adequa-
tio" da enunciação, não é porque um enunciado está adequado ao ente que ele
é uma verdade, mas o ente já trazia essa verdade, ela já se encontrava em seu
comportamento. Assim, a verdade tem uma estrutura de evento; a verdade, para
Heidegger, acontece. O acontecimento da verdade dá-se no "deixar-ser" do ente,
que, por sua vez, só é possível pela liberdade. Heidegger vai dizer que a essência
da verdade é a liberdade, pois ela permite que cada ente seja o ente que é e que
assim, a verdade aconteça, e usa então a palavra grega "alétheia", que tem seu
sentido mais puro em "desvelamento", para definir a verdade: A liberdade assim
compreendida, como deixar-ser do ente, realiza e efetua a essência da verdade
sob a forma do desvelamento do ente. A "verdade" não é uma característica de
uma proposição conforme, enunciada por um "sujeito" relativamente a u "objeto" e
que então "vale" não se sabe em que âmbito; a verdade é o desvelamento do ente
ao qual se realiza uma abertura (Heidegger 1979c: 139)
O Dasein velado, esquecido e escondido só pode existir como abertura. É a verdade
acontecendo entre o ente e o ser-aí, que abre a clareira em que os dois podem acon-
tecer e se revelar. A clareira, segundo Heidegeer, é essa abertura do Dasein ao ser.
Como já dissemos, o Dasein caiu no esquecimento e na inautenticidade e só através
do acontecimento da verdade é que ele volta à sua origem, ou seja, ao seu ser.
Todas as reflexões sobre a verdade como desvelamento do ser e do ente Heide-
gger vai retomar em "A origem da obra de arte", texto que, aliado a "Hölderlin y
la esencia de la poesía", nos oferecerá o verdadeiro caminho de nosso trabalho,
aquele que nos levará à questão da poesia na filosofia heideggeriana.

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138 © Filosofia da Linguagem

III . A OBRA DE ARTE: UM CAMINHO PARA A POESIA


Na mesma linha de pensamento em que a filosofia tradicionalmente enxergou a
questão do ser a partir da dicotomia sujeito/objeto (com a prevalência do primeiro
sobre o segundo), a estética tratou permanentemente a obra de arte como o objeto
da prática de uma subjetividade. Por outro lado, assim como Heidegger repensou
toda a tradição do pensamento filosófico, ele iniciou uma reflexão diferente a res-
peito da obra de arte, tratando-a como um ente.
Mais uma vez o filósofo alemão nega a metafísica, mudando um de seus pressu-
postos: a obra surge através da atividade do artista. Logo no início do texto. A ori-
gem da obra de arte., o pensador afirma essa proposição, mas ao mesmo tempo a
inverte: "O artista é a origem da obra". A obra é a origem do artista. Nenhum é sem
o outro. (Heidegger 1990: 11). Atentemos para o verbo: "Nenhum é sem o outro",
novamente o ser está em foco, o ser obra da obra e o ser artista do artista, sobre
os quais Heidegger vai discorrer para que possamos tentar conhecê-los.
Para chegar ao conceito de obra de arte, passamos pelos de coisa e apetrecho, e
pela distinção desses elementos. A coisa repousa em si, tem características pró-
prias (cor, cheiro, forma) e é matéria; o apetrecho é a versão utilitária da coisa, ele
é construído pelo homem e seu caráter é principalmente utilitário.
Segundo Heidegger, na ânsia pelo conhecimento de tudo, o homem sempre con-
fundiu obra de arte, coisa e apetrecho, sem atentar para o ser obra da obra. A
confusão deu-se porque a obra possui um pouco de cada um dos outros dois:
assim como a coisa, ela repousa em si e assim como o apetrecho, ela é feita pelo
homem, mas ela não é simples matéria como a coisa mesma, e sobretudo, não é
utilitária como o apetrecho (ao menos não deve ser), além do que, criar uma obra
não é o mesmo que manufaturar algo. A grande obra de arte é essa: autosuficiente
e não utilitária e foi pensando a seu respeito que Heidegger colocou suas refle-
xões, rejeitando a definição de arte como coisa (definição da Estética).
Segundo o filósofo, a grande obra copia qualquer coisa, pois ela não é uma re-
produção de entes, mas a reprodução de suas essências. O ente é o tangível, a
realidade palpável, o ser é um algo "outro" que não pode ser reduzido ao ente.
A obra de arte permite que o ser do ente se desvele, conseqüentemente, ela permi-
te a "alétheia". A obra de arte é um dos modos da verdade acontecer, nas palavras
de Heidegger: "A obra abre à sua maneira o ser do ente. [...] Na obra de arte, a
verdade do ente pôs-se em obra na obra . A arte é o pôr-se-em-obra da verdade"
(1990: 30). Todos os elementos que compõem a obra de arte são eles mesmos, ela
deixa que eles sejam assim, por isso a obra é o lugar do "acontecer da verdade",
ela é revelação, nela, mundo e terra se instauram.
A terra heideggeriana é o que os gregos chamavam de physis, ela é natureza,
onde o homem instalou-se e instalou seu mundo. A terra é mistério, o mundo tenta
lhe dar lógica e é aí que ocorre seu velamento. Cotidianamente, a terra só acon-
tece como dissimulação, como conseqüência da lógica e da historicidade do ser
no mundo. O utilitarismo faz com que a terra seja desvalorizada, assim, o caráter
utilitário do apetrecho não deixa que ela se mostre como realmente é. Na obra de
arte, a questão é diferente. A obra traz a terra à luz, nela, os materiais brilham, a
cor utilizada pelo pintor, a palavra do poeta, tudo volta ao seu ser original, a obra
deixa que eles venham ao aberto.
Segundo Heidegger: "A obra deixa que a terra seja terra" (1990: 36, itálico do autor).
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 139

Entretanto, a obra também revela o mundo, que é, em sua essência, diferente de


terra. E apesar das diferenças, mundo e terra precisam um do outro, são insepará-
veis, na opinião de Heidegger. A terra guarda o mundo, mas este a oculta. Na re-
lação dos dois, o filósofo vê um combate, uma necessidade de auto-afirmação de
ambos. A obra de arte realiza o combate entre mundo e terra, por isso ela repousa
em si mesma. Ela esconde algo de "outro", esse "outro" é o combate entre mundo
e terra que está em obra e que só se mostra porque a obra é auto-subsistente. A
unidade entre mundo e terra acontece através do combate e assim, no desvela-
mento e na ocultação, no combate, a verdade insere-se em obra.
Afonso de Castro, ao explicar o método hermenêutico heideggeriano de análise
poética em seu livro A Poética de Manoel de Barros, resume a concepção do filó-
sofo a respeito da obra de arte da seguinte forma:
"Para Heidegger, uma obra de arte, quando se impõe por sua gran-
deza, fala e, quando isso ocorre, instaura um mundo. E, neste ato
de dizer, acontece a verdade como desocultação. [...] Heidegger
considera toda arte como intrinsecamente poética, como um meio
de forçar o ser dos seres a desocultar-se e como um meio de trans-
formar a verdade num acontecimento histórico, concreto. Para ele, a
situação poética apresenta-se como tensão intrínseca entre a terra
e o mundo. A terra é a mãe inexaurível, o fundamento primordial de
tudo. A obra de arte é a concretização numa forma dessa tensão
terra/ mundo, trazendo-a para essa luta, para o domínio dos seres"
(CASTRO 1992: 89, grifo nosso)
Além de confirmar algumas considerações expostas até agora, a afirmação de Afon-
so de Castro adiantou-nos o ponto da filosofia de Heidegger aonde queríamos che-
gar: "Heidegger considera toda arte como intrinsecamente poética". Finalmente reto-
mamos a primeira citação heideggeriana desse trabalho: "A verdade como clareira e
ocultação do ente acontece na medida em que se poetiza" (Heidegger 1990: 58), ou
seja, só quando há poesia é que a obra de arte é ela mesma e a verdade acontece.
O filósofo não pensa apenas na poesia da literatura. Qualquer obra de arte (es-
cultura, música, pintura) pode ser poética, pois ao fazer erigir mundo e terra, ao
abrir o acontecimento da verdade, ela é um evento inaugural. Para Heidegger,
esse é o sentido de Poesia: evento inaugural, e o filósofo distingue em seu texto a
poesia-literatura, da Poesia-evento inaugural, pelo uso da maiúscula na segunda.
Ao tentar interpretar uma obra de arte, o homem pode recuperar o evento original,
ele tem a possibilidade de desocultá-la. Mas como a poesia literária tem em seu
âmago a linguagem, ela é duplamente poética, pois, segundo o filósofo: "A própria
linguagem é Poesia em seu sentido essencial" (Heidegger 1990: 58).

A LINGUAGEM
Por que a própria linguagem é Poesia? Aqui, nos deparamos com um outro ele-
mento importante da filosofia heideggeriana e por isso teremos que nos dedicar a
ele: a relação entre o ser e a linguagem. Ela é o início, a possibilidade maior de
algo ser e existir, ela mostra algo, através dela, o ser se manifesta. Nas palavras
do próprio Heidegger: "A linguagem não é apenas e não é em primeiro lugar uma
expressão oral e escrita do que importa comunicar. Não transporta apenas em
palavras e frases o patente e o latente visado como tal, mas a linguagem é o que
primeiro traz ao aberto o ente enquanto ente" (Heidegger 1990: 59).

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140 © Filosofia da Linguagem

As ciências e a tecnologia não manifestam a linguagem em seu sentido mais puro,


pois suas "falas" são impregnadas de um raciocínio lógico baseado no objeto; já o
"falar cotidiano" é um ato do "ser- com", do inautêntico, fruto do esquecimento, não
é a linguagem a que Heidegger se referiu, é o discurso.
Samuel Ramos, em seu prólogo à Arte y Poesía ao retomar as idéias de Heidegger,
escreveu: "Con la palabra se puede llegar a lo más puro y lo más oculto así como
también a lo ambiguo y lo común" (1958: 24); portanto, para o filósofo alemão, a
linguagem, que é essencialmente poesia, está nessa possibilidade da palavra de
ser pura e oculta.
Também na filosofia heideggeriana, a linguagem não tem a obrigação mimética
que tinha na filosofia de Platão, muito pelo contrário: a linguagem tratada por
Heidegger está afastada de qualquer concepção mimética. Platão, em A República,
condenou a poesia (e a pintura, ou seja, as artes em geral) exatamente pelo seu
afastamento da verdade, concluindo que ela não cumpre o seu papel de mimesis.
Para o filósofo grego, a poesia era portadora de uma "má linguagem", enquanto a
"boa linguagem" só o dizer filosófico sabia comportar. Através da filosofia heideggeriana,
compreendemos que não há uma boa ou uma má linguagem, mas uma linguagem
que não está a serviço do pensamento e é fundadora: a Poesia com "p" maiúsculo,
o evento original que as obras de arte revelam e que está na criação do poeta e
pode também estar na filosofia, desde que ela não esteja apegada ao pensamento
metafísico. Parmênides, que segundo Heidegger foi o primeiro grego a meditar
sobre o ser e o ente, poderia ter chegado à Poesia. Mas toda a tradição que se
formou posteriormente (sempre a metafísica!) delimitou a filosofia ao logos e
esqueceu-se do ser, mesmo que pensando sobre ele.
Dissemos que a Poesia pode ser filosofia, e isso acontece à medida que nela
encontramos a palavra original, "pura" e "oculta", como devem ser as palavras
poéticas. A própria filosofia heideggeriana se constrói dessa maneira: ao tentar
dizer o ser do ente, ela traz uma linguagem obscura e enormemente valorizada
pelo filósofo, que tem o pensamento originado dessa linguagem. Em "Que é isto .
a filosofia?", ele aponta e relação entre a verdadeira "philosophía" e a linguagem:
"Philosophía é a correspondência propriamente exercida, que fala na medida
em que é dócil ao apelo do ser do ente. O corresponder escuta a voz do apelo"
(Heidegger 1979a: 20). Enquanto correspondência, a philosophía é um falar,
isso explica a inversão da idéia de que a linguagem veio do pensamento, o que
Heidegger ainda explicita posteriormente:
"Este co-responder é um falar. Está a serviço da linguagem. O que
isto significa é de difícil compreensão para nós hoje, pois nossa
representação comum da linguagem passou por um estranho pro-
cesso de transformações. Como conseqüência disso a linguagem
aparece como um instrumento de expressão. De acordo com isso,
tem-se por mais acertado dizer que a linguagem está a serviço do
pensamento em vez de: o pensamento como co-respondência está
a serviço da linguagem" (1979a: 23)
Na fenomenologia da linguagem heideggeriana, a "linguagem fala", ela compreen-
de a consciência e o homem e, porque é Poesia, a linguagem permite a realiza-
ção do Dasein e a ocorrência da verdade como acontecimento. O poético então
é a própria possibilidade da linguagem, dessa linguagem que possibilita o ser e o
existir. Só através da linguagem o mundo é compreendido, ela deixa que as coisas
sejam. Mas atentemos para o fato de que a compreensão do mundo pela lingua-
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 141

gem não é possibilitada pelo científico ou pelo usual que acabam embaciando a
verdadeira linguagem original: a Poesia.

IV . O ENCONTRO COM A POESIA: UMA NOVA POSSIBILIDADE PARA ANÁLI-


SE DE POEMAS
Pensemos então na poesia do poema, aquela a que Heidegger dedicou-se em
!Hölderlin y la esencia de la poesia!: há uma armadilha perigosa em que podemos
cair quando falamos do sentido de Poesia para Heidegger como fundação, prin-
cípio, evento original, pois não foi ele o primeiro a refletir sobre a poesia nessas
condições. Fácil é, para um estudante de literatura que não esteja atento à filoso-
fia, ligar imediatamente o pensamento de Heidegger ao de Vico, o filósofo italiano
da Idade Média que também vê na poesia um "princípio de Algo". Muito há de
comum nos dois pensamentos, eles podem ser comparados sem problema, mas é
preciso sempre estar atento para a diferença fundamental entre os dois filósofos:
a metafísica.
Para o pensador italiano, houve uma época em que os deuses eram o centro de
tudo e o homem, selvagem e primitivo, vivia com medo da fúria divina.
Vico chamou esse tempo de Idade Divina. Os homens da Idade Divina, irracionais,
foram os fundadores da humanidade e todas as suas idéias nasciam da
imaginação. A imaginação revelou o poder de criação dos homens, chamados de
"poetas" pelo pensador medieval que retomou os gregos: "poeta" em grego quer
dizer criador. Mas a poesia inaugurada por esses homens foi vista por Vico como
uma sabedoria, uma forma de relação entre aqueles seres primitivos e as coisas
do mundo, o que ele chamou de .sabedoria poética.. Ainda que o filósofo tenha
proposto que a origem da linguagem está no irracional, no obscuro e no primitivo
(o que Heidegger também pensa), ele vai abordou-a ao modo metafísico, como
a conseqüência da dicotomia sujeito/objeto: "Temos portanto que a sabedoria
poética [...] precisou começar de uma metafísica" (Vico 1979: 75).
Devemos então saber diferenciar o conceito de Poesia em Heidegger daquele de
Vico, que fora inúmeras vezes utilizado pelos estudos literários. Por tudo que já
colocamos a respeito da filosofia heideggeriana, é importante deixar claro que a
Poesia em Heidegger é muito mais do que uma possibilidade de nomeação, é a
instauração do ser pela "fala", ou linguagem: "Poetizar es el dar nombre original
a los dioses. Pero a la palabra poética no le tocaria su fuerza nominativa, si los
dioses mismos no nos dieran el habla" (Heidegger 1958: 111, grifo nosso). Além
disso, o pensador alemão criticava a questão do ser na filosofia medieval, pois
ela partia de uma visão religiosa, onde a dicotomia Deus / homem corresponderia
a sujeito/ objeto, e, no lugar de uma ontologia, haveria então uma "onteologia",
segundo Heidegger.
O ser heideggeriano habita a linguagem poética. Só a Poesia é capaz de trazer
novamente o mistério da terra e, sobretudo, a procura do ser que ficara esquecido
por culpa da inautenticidade ou da lógica metafísica ao tentar explicá-lo, pois a Po-
esia não se origina do habitual, do cotidiano, do constante, ela é um "trazer à luz"
(1990: 61), nas palavras do próprio Heidegger. A Poesia traz o novo ao homem,
com efeito, ela permite o acontecimento da alétheia.
Ao deixar a linguagem brilhar, vir à luz e resplandecer, a poesia permite que a terra
se revele, pois no poema o seu uso não está a serviço de um utilitarismo, ela não
é a matéria de um "equipamento" chamado comunicação. A linguagem no poema

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142 © Filosofia da Linguagem

é o poetizar de si mesma.
No texto "Hölderlin y la esencia de la poesia", Heidegger ainda nos mostra que a
poesia erige um mundo:
La poesia no es un adorno que acompaña la existencia humana, ni sólo una pa-
sajera exaltación ni un acaloramiento y diversión. La poesía es el fundamento que
soporta la historia, y por ello, no es tampoco una manifestación de la cultura, y
menos aún la mera "expresión" del .alma de La cultura. (1958: 108).
Como fundamento da história, a poesia cria um mundo; tratada desse modo, ela se
afasta das definições estéticas que a vêem como o expoente de uma cultura, pois
tal visão inverte a definição heideggeriana: produto de uma cultura, a poesia seria
então conseqüência do mundo.
Mundo e terra revelam-se na poesia por meio da linguagem e só no olhar atento
sobre cada palavra de um poema é que podemos descobrir o ser profundo e es-
quecido de cada ente. Na análise que Heidegger faz sobe a obra de Höderlin, cada
palavra, uma a uma, traz à luz uma verdade; o olhar sobre cada palavra desoculta
algo que só tendo em mente a filosofia heideggeriana (elementos como Dasein,
mundo, terra e alétheia), seríamos capazes de pensar.
Segundo Afonso de Castro, há três etapas a serem cumpridas na análise de um
poema ao modo heideggeriano: a primeira constitui a procura de um sentido atra-
vés do edifício das palavras (tal sentido revelaria o ser do poema), a segunda
etapa é a de verificação da .área que o poema abriu. (1992: 89), acontecimento
que o autor não explica de maneira abrangente, mas pensamos ser essa área o
lugar onde o mundo se revela; finalmente, a análise proposta busca aquilo que
está mais escondido no poema, a origem do que se oculta e se desoculta em todo
o poema.
Para uma análise como essa, o conhecimento da filosofia heidegerriana é impres-
cindível, assim como é importante que se tenha em mente o papel da linguagem
nessa corrente de pensamento. Outra corrente de pensamento sobre a literatura.
O estruturalismo - também viu no trabalho com a linguagem o caminho para se es-
tudar um poema, porém a linguagem focada nos trabalhos estruturalistas não tem
o mesmo sentido que a heideggeriana. Neles, a linguagem é uma matéria, o rigor
científico e a obediência à lógica devem ser o meio de analisá-la. Não por acaso,
em grande parte desses trabalhos, gráficos e tabelas são utilizados. Pensar a lin-
guagem para Heidegger é livrar-se de conceitos pré- estabelecidos e deixar que
novas verdades aconteçam. É por isso que o método de análise proposto pelo filó-
sofo alemão é como um filosofar, nele, poetar e filosofar se confundem, enquanto
a linguagem é ao mesmo tempo (no pensamento tradicional) "sujeito" e o "objeto"
da análise, em uma fusão em que não existem sujeito e objeto, não há metafísica
e a compreensão existencial tem a possibilidade maior de acontecer.
Enfim, com o pensamento de Martin Heidegger, poesia e filosofia travam uma re-
lação em que são quase indissociáveis, uma precisa da outra. A poesia pensada
pelo filósofo não poderia ser visitada pelos Estudos Literários sem o conhecimento
da ontologia do Dasein e todos os elementos que a envolvem.
Usando tal reflexão, a análise literária ganha muito, pois ela pede um pensamento
apurado sobre as palavras no poema e sua relação com a existência do poético.
Em uma análise heideggeriana, ao edificarmos as palavras do poema, estamos
procurando a palavra original, aquela que se desdobrou em todas as metáforas do
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 143

texto e impulsionou a criação poética, que é o ponto de partida e de chegada do


poeta, a palavra que possibilitou a existência da obra de arte e que será a revela-
ção da verdade. A filosofia também se enriqueceu com a abordagem heideggeria-
na da poesia, pois o filósofo iluminou a importância da linguagem para se pensar
no homem; suas reflexões abriram caminho para outros pensamentos, encarando
a existência do ser vinculada com sua capacidade de linguagem. A nova "tradição"
criada por Heidegger é a que mais aproxima poesia e filosofia e ambas são traba-
lhadas como Poesia.
Tendo "desconstruído" a tradição filosófica com seu pensamento, Heidegger des-
construiu também o momento primeiro em que se pensou em poesia, aquele em
que Platão condenou os poetas e suas obras; o filósofo alemão voltou à questão
para lhe dar novo enfoque, encará-la de uma maneira mais justa e ao avesso do
modo platônico. Para Heidegger, a poesia não está afastada da verdade, mas tam-
bém não está em seu âmago, ela está antes, é antes, possibilita a verdade.
Enquanto o grego definia o pensamento filosófico como um bem para alma e pensava
na filosofia como uma prática da "boa linguagem", em detrimento da poesia, o filósofo
alemão, séculos depois, veio vingar a palavra poética, e para demonstrá-lo, nada mais
será preciso do que essas palavras, retiradas de "Que é isto . a filosofia?":
Mas pelo fato de a poesia, em comparação com o pensamento, estar de modo
diverso e privilegiado a serviço da linguagem, nosso encontro que medita sobre a
filosofia é necessariamente levado a discutir a relação entre pensar e poetar. Entre
ambos, pensar e poetar, impera um oculto parentesco porque ambos, a serviço da
linguagem, intervêm por ela e por ela se sacrificam. Entre ambos, entretanto, se
abre ao mesmo tempo um abismo, pois "moram nas montanhas mais separadas".
(Heidegger 1979a: 23, aspas do autor).
Fonte: Barros (2005, p. 2-16).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Após essa exposição dos problemas que Heidegger e
Nietzsche encontram na linguagem conceitual, é recomendável
que você procure fazer as questões autoavaliativas do tópico a se-
guir. Caso sinta dificuldades na resolução dos exercícios propostos,
retome os conteúdos estudados para que o conteúdo seja com-
preendido da maneira mais consistente e clara possível.

7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Leia a frase:
Enquanto o indivíduo, em contraposição a outros indivíduos, quer
conservar-se, ele usa o intelecto, em um estado natural das coisas,

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144 © Filosofia da Linguagem

no mais das vezes somente para a representação: mas, porque o


homem, ao mesmo tempo por necessidade e tédio, quer existir
socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se
esforça para pelo menos a máxima bellum omnium contra omnes
desapareça do seu mundo. Esse tratado de paz traz consigo algo
que parece ser o primeiro passo para alcançar aquele enigmático
impulso à verdade (NIETZSCHE, 1991, p. 54).
A frase em extraída do ensaio nietzschiano Sobre a verdade e mentira num
sentido extra moral descobre que:
a) A origem do impulso à verdade surge como anseio de conservação, tan-
to em dimensão individual, como também em dimensão social. Nesse
caso, o impulso à verdade aparece como meio para realização de um
anseio maior – o de conservação. Para tal fim, é necessário que se evitem
os efeitos nocivos de uma guerra de todos contra todos. É necessário,
portanto, que as coisas recebam nomes fixos a fim de se evitar qualquer
arbitrariedade. Surge, assim, o contraste entre a verdade e a mentira.
b) A origem do impulso à verdade surge como anseio de saber teórico, tanto em
dimensão individual, como também em dimensão social. Nesse caso, o impul-
so à verdade aparece como meio de progresso no conhecimento científico.
c) A citação não deixa dúvida de que a origem do impulso à verdade surge
como anseio de saber prático, tanto em dimensão individual, como tam-
bém em dimensão social. Nesse caso, o impulso à verdade aparece como
meio para realização completa da natureza humana em aspecto moral.
d) A citação não deixa dúvida de que a origem do impulso à verdade sur-
ge como anseio de poder político, tanto em dimensão individual, como
também em dimensão social. Nesse caso, o impulso à verdade aparece
como meio para realização completa do ideal político.
2) Segundo Heidegger, que tipo de linguagem é capaz de desvelar o sentido do
ser e por quê? Assinale a alternativa correta.
a) A linguagem científica é capaz de acessar a verdade do ser, porque é a
única em que o sentido corresponde perfeitamente ao significado.
b) A linguagem cotidiana é mais próxima ao sentido do ser por que o ser se
desvela na ocupação cotidiana.
c) A linguagem poética é capaz de acessar a verdade do ser, porque, ao
utilizar a expressão metafórica, atenta-se aos possíveis sentidos, não
os fecha, como a linguagem científica, e, assim, desvela-os. Somente a
linguagem poética é autêntica, pois fala para cada indivíduo de modo
próprio e singular.
d) A linguagem poética é capaz de acessar a verdade do ser, porque, ao utili-
zar a expressão conceitual, atenta-se aos possíveis sentidos, não os fecha,
como a linguagem científica, e, assim, desvela-os. Somente a linguagem
poética é autêntica, pois fala para cada indivíduo de modo universal.
© Filosofia e Linguagem em Nietzsche e Heidegger 145

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) a.
2) c.

8. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você conheceu as posições dos filósofos con-
temporâneos Nietzsche e Heidegger sobre a linguagem. Há algo
comum na análise desses filósofos sobre a linguagem, uma vez que
ambos criticam a linguagem conceitual como forma de apresenta-
ção da "verdade" e veem na metáfora, na linguagem poética e no
mito presente, também presente no pensamento pré-socrático,
uma experiência linguística mais autêntica à condição do homem.
Nesse sentido, foi preciso compreender como a Filosofia contem-
porânea, a partir de Nietzsche e Heidegger, se configura como crí-
tica total da metafísica tradicional e como nessa crítica o problema
da linguagem assume uma importância fundamental. Na próxima
unidade, você irá estudar os problemas que a linguagem suscitou
aos lógicos contemporâneos. Vamos lá?

9. E-REFERÊNCIAS
DUARTE, A. Rüdiger Safranski 2000: Heidegger – um mestre da Alemanha entre o bem
e o mal. Natureza Humana, São Paulo, jan-jun. 2001. Disponível em: <http://pepsic.
homolog.bvsalud.org/pdf/nh/v3n1/v3n1a07.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2011.
HADDOCK-LOBO, R. Otobiografias de Nietzsche em Derrida. Disponível em: <http://
revistaitaca.org/versoes/vers13-09/8-27.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2011.
NIETZSCHE, F. Sobre a verdade e a mentira num sentido extramoral. Disponível em:
<http://operigodobelo.files.wordpress.com/2008/03/nietzsche-verdade-e-mentira.
pdf>. Acesso em: 13 jan. 2011.

Lista de figuras
Figura 1 Friedrcih Nietzsche. Disponível em: <http://static.newworldencyclopedia.
org/2/23/Nietzsche1882.jpg>. Acesso em: 3 mar. 2011

Claretiano - Centro Universitário


146 © Filosofia da Linguagem

Figura 2 Martin Heidegger. Disponível em: <http://static.newworldencyclopedia.


org/6/66/Heidegger.jpeg>. Acesso em: 3 mar. 2011.

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ARISTÓTELES. De interpretation. Tradução de J Tricot. Paris: Vrin, 1969. v. 1.
BARROS, C. M. S. A poesia na filosofia heideggeriana: uma breve investigação ruma à
crítica. Terra roxa e outras terras. Revista de Estudos Literários, Londrina, v. 5, p. 2-16,
2005.
FERAZ, M. C. Da valorização estratégica da metáfora em Nietzsche. In:______. Nove
variações sobre temas nietzschianos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
HEIDEGGER, M. Arte y Poesía. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1979.
______. Que é Isto - a Filosofia? Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril
Cultural 1979.
______. O fim da Filosofia e a tarefa do pensamento. Conferências e escritos filosóficos.
São Paulo: Abril Cultural, 1979.
______. Sobre a essência da verdade. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril
Cultural. 1990.
______. A origem da obra de arte. Tradução de Maria da Conceição Costa. Lisboa: Edições
70, 2005.
______. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2000. v. 1.
KOFMAN, S. Nietzsche et la métaphore. Paris: Galilée, 1983.
KRASTANOV, S. Nietzsche: pathos artístico versus consciência moral. Jundiaí: Paco,
2011.
LEBRUN, G. O avesso da dialética. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.
NIETZSCHE, F. Acerca da verdade e da mentira. Tradução de Heloísa de Graça Burati. São
Paulo: Rideel, 2005.
______. Der Letzte Philosoph. In:______. Vorarbeiten zu einer Schrift ueber den
Philosophen (1872/73 – 1872). Munique: Musarion, 1922. v. 6.
______. Sobre a verdade e a mentira. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores).
______. O Livro do Filósofo. 5. ed. São Paulo: Escala, 2007. (Grandes Obras do Pensamento
Universal).
______. Curso de Retórica. Tradução de Telma Lessa da Fonseca. São Paulo: Discurso,
2001.
______. Gesammelte Werke. Munique: Mussarion, 1922. v. 5.
______.  O nascimento da tragedia ou helenismo e pessimismo. 2 ed. Sao Paulo:
Companhia das Letras, 2003. (OBRAS DE NIETZSCHE)
REDYSON, D. Sobre o conceito de verdade em martin heidegger. Studia Diversa, CCAE-
João Pessoa, v. 1, n. 1, out. 2007, p. 6-22.
EAD
A Filosofia da Linguagem
e o Problema
Semântico
6
1. OBJETIVOS
• Compreender a importância da linguagem para a análise
filosófica.
• Compreender as teorias contemporâneas sobre o significado.
• Aplicar o método de análise da linguagem em uma ques-
tão clássica da Filosofia.

2. CONTEÚDOS
• A linguagem como problema filosófico.
• Frege e a questão semântica.
• Russell e a teoria do atomismo lógico.
• Wittgenstein: linguagem como figuração e como instru-
mento.
• Gilbert Ryle e linguagem como forma de dissolver pseu-
doproblemas filosóficos.
148 © Filosofia da Linguagem

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Tenha sempre à mão o significado dos conceitos expli-
citados no Glossário e suas ligações pelo Esquema de
Conceitos-chave para o estudo de todas as unidades
deste CRC. Isso poderá facilitar sua aprendizagem e seu
desempenho.
2) Há, na internet, vídeos muito interessantes sobre os au-
tores que você irá conhecer nesta unidade. Indicamos os
do Prof. Paulo Ghiraldelli sobre Wittgenstein. Russell é
um dos poucos grandes filósofos a que podemos assistir
em vídeos, e a internet contém algumas de suas entre-
vistas. Pesquise, leia artigos e assista a vídeos que sejam
confiáveis. Na Educação à Distância, é sempre você que
constrói o seu conhecimento!
3) Antes de iniciar o estudo desta unidade, pode ser inte-
ressante conhecer um pouco da biografia dos pensado-
res cujo pensamento norteia o estudo deste CRC. Para
saber mais, acesse os sites indicados.

Gottlob Frege
Nasceu a 8 de novembro de 1848 em Wismar, Merklenberg
Schwerin (actualmente Alemanha). Estudou na Universidade
de Jena (1869-1871) e na Universidade de Gottingen (1871-
1873), dedicando-se à Matemática, à Física e à Química.
Ensinou na Universidade de Jena no departamento de Ma-
temática onde permaneceu o resto da sua vida profissional.
Inicialmente, ensinava qualquer ramo da matemática, mas
as suas publicações eram fundamentalmente no campo da
lógica.
Os seus estudos em Filosofia da Lógica, Filosofia da Mate-
mática e Filosofia da Linguagem fazem de Frege  um dos
Figura 1 Gottlob Frege. maiores matemáticos, lógicos e filósofos de sempre.
Frege queria mostrar que a aritmética era idêntica à lógica e pode-se dizer que
recriou a disciplina da lógica ao construir o primeiro «cálculo de predicados». Um
cálculo de predicados é um sistema formal constituído por duas componentes:
a linguagem formal e a lógica (disponível em: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/
opombo/seminario/fregerussel/biografia_frege.htm>. Acesso em: 15 mar. 2011).
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 149

Bertrand Russell
A vida de Bertrand Russell abrange um período enorme,
quase um século, estendendo-se da  Inglaterra Vitoriana à
era Espacial. Como o próprio Bertrand Russell costumava
dizer, ele é uma espécie de relíquia vitoriana... Mas não é
nossa intenção considerá-lo como tal nesta página.
O fascínio que Russell exerceu sobre o público dependeu
de numerosos factores. Para além da sua longevidade,
há muitas outras facetas que o tornam único. Grande
matemático e filósofo, apóstolo da paz e discutida figura
política, Bertrand Russel alcançou um enorme prestígio
mundial. Era o nonagenário que cativava os mais novos
e inspirava os mais velhos; o aristocrata que desprezava
Figura 2 Bertand Russell.
a Câmara dos Lordes e se arriscava a ser preso;  o anar-
quista por temperamento que desafiava o poder constituído; o ateu que traçou armas
contra o dogma religioso e a moral convencional; o matemático e lógico cujas equa-
ções destronaram Euclides; o filósofo que procurou tornar a filosofia acessível aos
leigos; finalmente, o galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, cuja elegância
de estilo, agudeza de ironia e destreza mental remontam a uma época em que se
cultivava a arte de conversar e de escrever cartas (disponível em: <http://www.educ.
fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/russell/index.htm>. Acesso em: 15 mar. 2011).

Ludwig Wittgenstein
Jovem prodígio austríaco, muda-se para a Inglaterra
para estudar. Após passar pela faculdade de Engenharia,
decide dedicar-se à Filosofia. Em Cambridge, conhece o
filósofo Bertrand Russell, que, admirado com as teorias
originais do jovem, o proclama o mais talentoso pensador
de sua geração. Depois de lutar como voluntário na
Primeira Guerra Mundial, Ludwig retorna a Cambridge,
agora como professor (disponível em: <http://www.
dignow.org/post/menino-de-15-anos-far%C3%A1-
faculdade-de-matem%C3%A1tica-na-universidade-de-
Figura 3 Ludwig Wittgenstein cambridge-229794-54698.html>. Acesso em: 15 mar.
2011).

Gilbert Ryle
Gilbert Ryle é conhecido principalmente pela sua crítica do dualismo cartesiano (es-
tabelecido por René Descartes e Christian Von Wolff, é o sistema filosófico que admi-
te como explicação primeira do mundo e da vida, a existência de dois princípios, de
duas substâncias ou duas realidades irredutíveis entre si, inconciliáveis, incapazes
de síntese final ou de recíproca subordinação). Ryle mostra que a tarefa da Filosofia
seria trazer a clarificação. Existem expressões enganadoras. Os enigmas filosóficos
surgem quando a substituição de termos não resulta em um absurdo óbvio, neces-
sitando de uma análise. Seus estudos vão chegar à análise dos conceitos mentais,
combatendo o mito cartesiano (consiste em aceitar apenas aquilo que é certo e irre-

Claretiano - Centro Universitário


150 © Filosofia da Linguagem

futável e consequentemente eliminar todo o conhecimento inseguro ou sujeito à con-


trovérsia) do fantasma da máquina expressão a qual Ryle cunhou a frase "the ghost
in the machine". Para o filósofo, há mais de uma forma de descrever as coisas, não
se pode impor apenas uma descrição (disponível em: <http://filosofandoalinguagem.
blogspot.com/2010/03/gilbert-ryle.html>. Acesso em: 15 mar. 2011).

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
O papel da Filosofia da Linguagem no âmbito próprio da Filo-
sofia pode ser duplamente caracterizado: a Filosofia da Linguagem
auxilia nas questões em torno das áreas clássica da Filosofia, como,
por exemplo, a Teoria do Conhecimento, a Ética e a Lógica, bem como
oferece um tratamento filosófico às questões relacionadas à própria
natureza da linguagem, investigando questões como o problema do
significado, os critérios de significatividade, entre outras questões.
Nesta unidade, vamos nos concentrar em analisar a Filosofia
da Linguagem como área que deseja pensar os problemas advin-
dos da própria ordem linguística. Admitindo que a linguagem se
apresente como fundamento para toda a produtividade humana,
seja sob a forma verbalizada ou artística, está presente a carga sim-
bólica que justifica o estudo da linguagem por parte da Filosofia.
A investigação dessa carga simbólica pode ser pensada, portanto,
como a estrutura necessária para a construção de todo conheci-
mento humano, requerendo uma análise filosófica apropriada.
Você iniciará seu percurso conhecendo as teses centrais acer-
ca da linguagem do alemão Gottlob Frege (1848-1925); em seguida,
conhecerá a Filosofia do atomismo lógico de Bertrand Russell (1872-
1970); depois, analisará a teoria pictorial da linguagem presente na
primeira Filosofia do austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951);
por fim, aprenderá como a análise da linguagem pode ser emprega-
da para dissolver clássicas questões filosóficas. Acompanhe!

5. FREGE E A QUESTÃO SEMÂNTICA


O início das discussões em Filosofia da Linguagem pode ser
datado no começo do século 20 com o matemático, lógico e filó-
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 151

sofo Frege, que foi um grande expoente da Filosofia da Linguagem


em seu sentido ideal e que ganhou muito destaque na era contem-
porânea, sobretudo, por suas discussões em torno da Lógica.
Frege é considerado o sistematizador da moderna Lógica
Matemática, que, refletindo os fundamentos da aritmética, tenta
encadeá-los na Lógica. Ele foi muito admirado e estudado por pen-
sadores como Russell e Wittgenstein, que procuraram, cada um à
sua maneira, responder às questões legadas por Frege acerca da
linguagem natural e de sua relação com as linguagens formais.
Uma das principais contribuições de Frege para o estudo da lin-
guagem consiste em sua tentativa de elaborar uma teoria semântica.
É importante, inicialmente, pensar como a palavra, "significado" é uti-
lizada em sua teoria.
Para compreender a natureza do significado e, consequen-
temente, da noção de identidade, Frege expõe uma teoria que es-
tabelece a discussão sobre o que ele chama de sentido e sobre o
que chama de referência. Podemos perceber que a teoria desse
estudioso se baseia na possibilidade da diferenciação dentre o sig-
nificado (sentido) e a sua respectiva referência linguística.
Frege começa analisando as chamadas identidades do tipo
A=A. Mas o que significa afirmar isso? Em última instância, quem afir-
ma A=A não está afirmando A? Onde encontramos identidades dessa
natureza? Para ele, somente no campo da Lógica e, portanto, da lin-
guagem formal, seria possível assumir uma identidade dessa forma.
A questão é que a linguagem natural carrega uma série de iden-
tidades que não podem ser reduzidas ao formalismo anterior. Como
poderíamos interpretar expressões do tipo: "energia é igual ao inten-
so movimento das moléculas?". Temos, nesse caso, uma afirmação de
identidade, mas não se trata de A=A, mas, sim, de algo como: A=B.
Frege pergunta-se: que tipo de identidade é essa que afirma
A=B? Como podemos explicar tal relação que não é meramente
tautológica? Para elucidar essa questão é que ele desenvolve sua

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152 © Filosofia da Linguagem

distinção entre sentido e referência. Acompanhe seu raciocínio!


Segundo Frege, a expressão "A estrela da manhã é a estrela
da tarde" é um típico caso de A=B. A fim de compreender tal afir-
mação, devemos explicitar que tipo de relação o lógico-matemáti-
co alemão vislumbra nessa expressão.
Para Frege, existe uma identidade entre as expressões "es-
trela da manhã" e "estrela da tarde" que é garantida pelo obje-
to. Ou seja, a expressão "estrela da manhã" refere-se ao plane-
ta Vênus, assim como a expressão "estrela da tarde" se refere ao
mesmo planeta. Dessa forma, a identidade dessas expressões está
garantida pelo referente, no caso, o planeta Vênus.
Resta a questão: as expressões "estrela da manhã" e "estrela
da tarde" possuem o mesmo significado? A resposta é "não", afinal,
alguém poderia conhecer o planeta Vênus como aquela estrela que
brilha todas as manhãs sem associá-la ao brilho da estrela da tarde,
ou vice-versa. Quando essa pessoa obtém tal informação, não se trata
de algo como A=A, e, sim, A (estrela da manhã) A=B (estrela da tarde).
A = (ou identidade) é garantida pelo referente: planeta Vênus.
Assim, você já está apto a conhecer as principais definições
dadas por Frege:
A designação de um objeto singular pode também consistir em
várias palavras ou sinais. Para sermos breves, chamaremos cada
uma destas designações de nome próprio toda designação desse
gênero (2009, p. 132).

Dado o entendimento do que é um nome próprio, chega-se


à conclusão de que, para Frege, as descrições definidas, que são as
combinações de palavras ou sinais, também são nomes próprios, vis-
to que se referem a apenas um objeto. Nesse sentido, é importante
conhecer o significado dos principais conceitos utilizados por Frege:
• Por "sinal", Frege entende qualquer nome, combinação
de palavras ou letra.
• Por "referência", aquilo que pelo sinal é designado, ou
seja, aquilo a que o sinal se refere.
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 153

• Por "sentido do sinal", o modo de apresentação do objeto.


A distinção elaborada por Frege entre sentido e referência é
resultado da análise das expressões de identidade da forma A=A e
A=B. Você consegue perceber que Frege está questionando sobre
que identidade o conjunto de tal expressão afirma? Tal questão
pode ser abastecida por meio de duas perspectivas:
• pela própria relação de identidade entre os objetos;
• pela própria relação para com o nome dos objetos.
Nesse caso, pode-se facilmente identificar que os presen-
tes objetos se referem ao mesmo objeto; em uma linguagem ma-
temática, temos a seguinte expressão: "B=C". Trata-se, assim, de
uma relação expressiva, ou seja, de um objeto identificado consigo
mesmo.
Porém, é importante pensar que essa expressão pode tor-
nar-se problemática quando a pessoa desconhece o referente do
respectivo objeto, ou seja, se a afirmação é dada da seguinte ma-
neira: "a estrela da manhã é Vênus" – esta pode ser incompreendi-
da pelo desconhecimento de seu respectivo receptor. Ainda mais
problemático seria afirmar que: "a estrela da manhã é a estrela da
tarde", que, pela sua incompreensão, demonstraria contradição.
Diante da relação de identidade entre os nomes dos objetos,
reflete-se diretamente uma relação iminente de sinais idênticos,
mas com formas e estruturas diferentes; a saída, portanto, encon-
tra-se no sentido, ou seja, no modo de se dar do objeto. Assim,
podemos pensar na seguinte expressão "a estrela da manhã", in-
dicando um objeto: o planeta Vênus.
Paralelamente à forma, pode-se pensar que "a estrela da
tarde" indica o planeta que pode ser visto também nesse período
do dia. Essa segunda referência "é o planeta Vênus" indica a pró-
pria nominação significada pelo ser humano, a saber, a estrela que
também brilha à tarde. Desse modo, é importante notar que, refle-
tidos isoladamente, esses termos ganham em sua particularidade

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154 © Filosofia da Linguagem

ou em referência relacional.
Dentro dessa temática, é importante informar que Frege não
tratou somente da distinção entre o sentido e a referência dos no-
mes, mas estendeu sua reflexão para o universo da Lógica, em que
reflete sobre os elementos constituintes da linguagem, a saber, os
próprios predicados e as frases expressivas.
Frege entende que o sentido de uma frase se deve modifi-
car quando as suas partes são substituídas por outras partes com
sentido diverso. Em consonância a essa realidade, é importante
elencar que, embora modificados, devem ainda adquirir a mesma
referência. Assim, podemos pensar a expressão "a estrela da ma-
nhã é a estrela da tarde" como a ser subentendida pelo próprio
pensamento que é expresso, ou seja, a ideia que é admitida como
verdade ao seu significado indicativo.
Para bem entender essa reflexão, é importante elencar que,
quando Frege se utiliza da palavra "pensamento", quer afirmar
essa palavra como referente, preposição ou enunciado. Conse-
quentemente, é o pensamento o grande portador da verdade e da
mentira, isso porque, quando indicamos uma determinada expres-
são como verdadeira ou falsa, na verdade, não indicamos inicial-
mente a frase ou a sua referência, mas o seu próprio sentido, isto
é, o pensamento que indica, desse modo, a presente análise dessa
expressão passa sobre o campo do sentido para o campo objetivo
no que tange à sua referência.
Para você aprofundar seu estudo sobre o problema semânti-
co em Frege, leia, atentamente, o texto do Professor Abílio Rodri-
gues Filho, exposto no tópico a seguir.

Texto Complementar

Frege e a filosofia da linguagem –––––––––––––––––––––––––


1 Introdução
Não resta dúvida de que Frege contribuiu imensamente para a filosofia da lingua-
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 155

gem, tal como ela foi feita no século XX e ainda hoje. Isso, entretanto, não torna
Frege um filósofo da linguagem no sentido de alguém preocupado em resolver
problemas relativos à estrutura e ao funcionamento da linguagem em geral. Para
Frege ser considerado um filósofo da linguagem, é necessário que os problemas
que ocuparam e ocupam aqueles que fazem o que chamamos de filosofia da lin-
guagem sejam os mesmos problemas que ocuparam Frege.
A filosofia da linguagem agrupa um tipo de investigação filosófica que vai desde
investigações acerca da linguagem propriamente dita até investigações filosóficas
em geral que utilizam a análise da linguagem como ferramenta. Mas o ponto
a ser enfatizado aqui é que o problema do significado é sempre central para a
filosofia da linguagem. E esse problema ou inclui a linguagem natural como um
todo, ou procura delimitar e formalizar um fragmento da linguagem natural com
o objetivo de eliminar problemas como vagueza e ambiguidade. Em ambas as
alternativas está em questão de que modo a linguagem que usamos para falar do
mundo se conecta com o mundo. E é precisamente esse o ponto que estava fora
dos interesses de Frege.
A distinção de Frege entre o sentido e a referência, tema do artigo "Sobre o sentido
e a referência" (SSR) de 1892 é considerada uma importante contribuição para
uma teoria do significado em sentido amplo, que inclui a linguagem natural. É certo
que um sem-número de importantes investigações acerca do funcionamento da
linguagem foram motivadas pela distinção sentido/referência. Mas será que essa
era a intenção de Frege? Vou argumentar aqui que a resposta a essa pergunta é
negativa. Pretendo mostrar que os interesses de Frege eram muito diferentes da-
queles que motivaram as investigações sobre a linguagem, realizadas, sobretudo
no decorrer do século XX. Mais especificamente, Frege não estava interessado no
funcionamento da linguagem natural e no modo pelo qual as expressões linguís-
ticas se conectam com o mundo. Em outras palavras, Frege não tinha o menor
interesse em construir uma teoria semântica aplicável à linguagem natural. Por
essa razão, Frege não foi um filósofo da linguagem.
Mas se isso é verdade, por que há quem considere Frege um filósofo da lingua-
gem? SSR contém de fato importantes análises da linguagem natural. Mas se
lermos SSR tendo em perspectiva o seu lugar na obra de Frege como um todo,
percebemos que as análises ali apresentadas, antes de terem a estrutura e o fun-
cionamento da linguagem como foco, têm antes o objetivo de justificar modifica-
ções na linguagem formal de Frege a ser utilizada na realização do projeto ao qual
Frege dedicou praticamente toda a sua carreira acadêmica, a saber, provar que a
aritmética é um ramo da lógica. Mais especificamente, em SSR, Frege tinha dois
problemas a resolver: o funcionamento do signo de identidade de conteúdo e o va-
lor semântico de sentenças. Tanto o problema da identidade que abre SSR como
também a tese de que a referência de uma sentença é o seu valor de verdade têm
origem em problemas técnicos da linguagem formal que Frege apresentou na obra
Conceitografia (CG), de 1879.
Meu objetivo aqui é mostrar como os problemas do signo da identidade de con-
teúdo e da noção de conteúdo conceitual, tais como foram apresentados em CG,
determinaram as alterações na linguagem formal de Frege, motivando a introdução
da distinção entre o sentido e a referência, o abandono do signo de identidade de
conteúdo, da noção de conteúdo conceitual e, sobretudo, a tese segundo a qual a
referência de uma sentença é o seu valor de verdade. Esse objetivo será alcançado
por meio de uma análise do caminho que começa em 1879 na CG e termina na

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156 © Filosofia da Linguagem

distinção sentido/referência, tendo como pano de fundo o projeto de Frege como um


todo. Veremos como os problemas que Frege trata em SSR têm origem em 1879.
Este texto se divide em três partes principais. Na seção 2, apresentarei brevemen-
te o projeto de Frege e as suas principais obras, relacionadas à realização desse
projeto. Na seção 3, veremos os problemas da noção de conteúdo conceitual, que
na CG cumpria o papel do valor semântico de sentenças, e do signo de identidade
de conteúdo. Na seção 4, dedicada ao artigo SSR, veremos como esses proble-
mas determinaram uma nova leitura do signo da identidade e também a tese de
que a referência de uma sentença é o seu valor de verdade.
2 O Projeto de Frege
Frege foi um matemático que dedicou praticamente toda a sua obra à realização
de um projeto: provar que a aritmética é um ramo da lógica, isto é, provar que os
axiomas da aritmética podem ser obtidos a partir de um conjunto de axiomas, de-
finições e regras de inferência de caráter estritamente lógico. Estava em questão,
portanto, a justificativa das proposições da aritmética. O projeto de Frege tinha um
caráter epistemológico e pode ser compreendido como uma tentativa de aperfeiço-
ar as teses kantianas acerca da justificação do conhecimento matemático.
Para Kant, verdades matemáticas, tanto da aritmética quanto da geometria, eram a
priori, posto que são universais e necessárias, mas eram também sintéticas, pois,
contrariamente às proposições da lógica, dependeriam de um recurso à intuição.
Frege concordava com Kant no que diz respeito à geometria, que esta depende do
recurso à intuição do espaço, mas discordava em relação à aritmética. Para Fre-
ge, a aritmética é constituída por proposições analíticas no sentido anteriormente
exposto de proposições que podem ser obtidas por meios estritamente lógicos e
sem nenhum recurso a qualquer tipo de intuição. Provar essa tese, denominada
logicismo, foi o objetivo principal de Frege até meados de 1906. Frege fracassou.
Em 1902, quando o segundo volume da obra Leis básicas da aritmética (LBA), em
que Frege apresentava o que seria a prova da tese logicista estava para ser im-
presso, Frege recebeu uma carta de Russell mostrando que um de seus axiomas
dava origem a uma contradição, o chamado paradoxo de Russell. Grosso modo,
o sistema de Frege permitia que se definisse um conjunto a partir da propriedade
ser um conjunto que não pertence a si mesmo, isto é, um conjunto R = {x : x ∉ x}.
É fácil perceber que R ∈ R se, e somente se, R ∉ R. O sistema de Frege, portanto,
era inconsistente, e nele poder-se-ia provar qualquer coisa, como por exemplo 0 =
1 ou 2 + 2 = 5. Frege publicou em 1903 o segundo volume de LBA com um aden-
do em que tentava (sem sucesso) evitar a contradição. Por volta de 1906, Frege
abandonou de vez a tese logicista.
As principais obras de Frege de 1879 a 1903 foram todas designadas com o obje-
tivo de provar a tese logicista. Para a execução de seu projeto, Frege precisava de
uma linguagem formal capaz de explicitar todos os passos realizados nas provas
com precisão e sem ambiguidade. Frege apresentou sua linguagem formal em
um pequeno livro de 1879, já mencionado aqui, denominado Conceitografia (CG).
Ao criar tal linguagem, ele criou nada menos do que a lógica moderna. Na CG,
considerada por muitos a mais importante obra de lógica desde Aristóteles, encon-
tramos um sistema completo de lógica proposicional e de predicados, essencial-
mente o mesmo que encontramos nos livros modernos de lógica. Apesar disso, a
obra CG foi praticamente ignorada pelos contemporâneos de Frege.
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 157

Em 1884, Frege lançou Fundamentos da aritmética (FA) (1980), em que são apre-
sentados de maneira informal, os argumentos em defesa da tese logicista. Ao con-
trário de CG, FA não é um livro predominantemente técnico, mas, sim, de caráter
explicitamente filosófico. Entretanto, embora em FA encontremos indicações me-
todológicas que vão ao encontro do modo de se fazer filosofia característico da
filosofia da linguagem contemporânea, FA trata de um problema que pertence à
filosofia da matemática.
Entre 1891 e 1892, Frege lançou três artigos: "Função e conceito" (FC), "Sobre o
sentido e a referência" (SSR) e "Sobre o conceito e o objeto" (SCO). Esses textos
não são predominantemente técnicos. Pelo contrário, são considerados, junto com
FA, os textos de Frege de caráter mais filosófico. Neles, encontramos importantes
reflexões sobre a linguagem. Mas o ponto que precisa ser enfatizado aqui é que
a função principal desses textos no projeto de Frege, especialmente FC e SSR, é
consertar a linguagem formal de Frege, evitando os problemas da CG já mencio-
nados, e também apresentar de modo informal, na forma de elucidações, noções
centrais necessárias para a realização do seu projeto. Tais elucidações não per-
tencem à teoria propriamente dita, mas têm caráter propedêutico. Nelas, Frege
frequentemente faz uso de exemplos da linguagem natural, como na apresentação
da distinção sentido/referência. Entretanto, o ponto de tais explicações informais
não é uma análise da linguagem natural, mas, sim, explicar, de fora do sistema,
noções técnicas do sistema de Frege.
Em 1893, logo após a publicação desses artigos mencionados, Frege lançou o
primeiro volume das Leis básicas da aritmética (LBA) (1964), obra que deveria ser
o ponto culminante de toda uma carreira acadêmica. Mais uma vez, o livro não foi
muito bem recebido pelos contemporâneos de Frege, o que atrasou a publicação
do segundo volume, lançado dez anos depois, em 1903. Mas, como já foi mencio-
nado, o sistema de LBA era inconsistente e o projeto de Frege fracassou.
É importante aqui observar que o projeto de Frege era, sem dúvida, um projeto filo-
sófico não apenas por ter um caráter epistemológico, mas também por se colocar
em uma postura crítica e em relação aos fundamentos da aritmética. Entretanto,
trata-se claramente de uma investigação restrita à filosofia da matemática (RODRI-
GUES FILHO, 2011).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Como você pôde perceber, Frege foi um pioneiro nas questões
da Filosofia da Linguagem. Entretanto, algumas de suas teses eram
controversas. Coube a outros filósofos, como Russell, por exemplo,
que estudaremos a seguir, procurar resolver os problemas que as
teses desse filósofo apresentavam. Vamos conhecê-los!

6. RUSSELL E A TEORIA DO ATOMISMO LÓGICO.


Um dos pensadores que mais foram influenciados pelas
ideias de Frege foi Bertrand Russell, pensador que deu à Filoso-
fia da Linguagem uma contribuição inestimável, especialmente no
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158 © Filosofia da Linguagem

tocante à teoria da descrição. Russell destaca duas espécies de


conhecimento, a saber, aqueles conhecimentos adquiridos por fa-
miliaridade e aqueles adquiridos por descrição. É importante pen-
sar que ambas as formas de conhecimento estão inteiramente en-
trelaçadas, pois o conhecimento por familiaridade é uma condição
necessária para o desenvolvimento do conhecimento descritivo.
Russell denominou o conhecimento por familiaridade como
aquele que adquirimos quando somos imediatamente expostos
a um objeto. Esse tipo de conhecimento pode ser compreendido
quando imediatamente somos expostos ao contato sensorial de um
objeto e nos defrontamos com categorias como cor, forma e odor.
Russell denomina, também, esse conhecimento de sense-data.
É interessante notar que, quando nomeamos um objeto, re-
tiramos toda a espessura do conhecimento por familiaridade para
um conhecimento específico e elaborado, o conhecimento por
descrição. Esse último é plausível de discussão no que se refere à
sua veracidade ou à sua falsidade; já o conhecimento por familia-
ridade não admite valor de verdade, isso porque seus dados são
imediatos e, portanto, logo memorizados pelo intelecto humano.
Porém, o conhecimento por descrição é desenvolvido pelas
próprias aderências recebidas por um conhecimento primário (por
familiaridade); sua constituição permite ao sujeito estabelecer va-
lores e juízos, que são expressos por meio de frases e conceitos.
Russell, nesse aspecto, segue pontos relevantes do empirismo,
pois caracteriza essas categorias como construções lógicas que se-
riam meras ficções simbólicas, que outrora foram estruturadas em
um encadeamento de entidades por familiaridade.
Russell passa a propor todo um conjunto metafísico acerca da
linguagem e do mundo, mais especificamente de suas próprias rela-
ções, e denominou essa teoria como atomismo lógico. Segundo essa
definição, todos os nossos juízos formulados em forma de sentenças
devem se apresentar como sentenças atômicas, que, por sua vez, se
referem aos elementos simples da realidade. Esses elementos últi-
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 159

mos seriam aquilo que delimitamos ser um conhecimento por fami-


liaridade, pois remontam à compreensão simples dos objetos.
Segundo Russell, nosso intelecto seria moldado de forma a
tratar, inicialmente, dos elementos básicos que constitui o mundo
ou os próprios objetos. Desse modo, relembramos todas as cate-
gorias básicas que o constituem, a saber, a sua cor, a espessura,
e assim por diante, características essas que podem designar um
fato atômico.
A compreensão que Russell faz acerca do significado é di-
ferente da que Frege admitia. Para Russell, o significado é justa-
mente aquilo a que ele se refere; de outro modo, a palavra lápis
significa justamente aquele objeto usado para escrever ou pintar.
Assim, a dedução final da significação segundo o filósofo é a de
que os nomes somente adquirem significados porque se referem
para determinados objetos que a nós se relacionam diretamente
por familiaridade.
Consequentemente, a ideia de que os nomes possuem sig-
nificado justamente por indicar um determinado objeto específico
traz, em sua etimologia, inúmeras dificuldades, a saber, se, ao de-
limitar um nome, se supõe que um objeto existe, o seu significado
pode ser apreendido por familiaridade. Entretanto, contrariamen-
te, e se o objeto referido por essa nominação não existe?
Como exemplo, podemos elencar o caso da "mula sem cabe-
ça". Podemos ser levados à atração de não considerar palavras des-
se tipo como sendo nomes específicos, podendo ela ser substituída
pela expressão de "criatura pertencente ao folclore brasileiro".
Para Russell, todo conhecimento que adquirimos a partir da
formulação de um nome próprio já não o é mais um conhecimento
de familiaridade, mas, sim, um conhecimento por descrição – em
seu próprio contexto, a palavra "Kaiser" pode significar imperador,
como também está relacionada a uma marca de cerveja ou a um
grande jogador da seleção de futebol da Alemanha que disputou
as copas de 70 e 74; portanto, é uma atribuição de sense-data.

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160 © Filosofia da Linguagem

Contudo, todas as reflexões ainda não são suficientemente


capazes de expressar toda a dificuldade de querer preencher a fra-
gilidade da teoria de Russell, isso porque envolve a mesma proble-
mática da existência que se repete como no exemplo: "o atual rei
da França é calvo" – como atualmente não existe rei da França, o
enunciado parece ser falso, pois o objeto referido não existe; desse
modo, o enunciado de que ele é calvo não deveria ter significado
algum. Mas, mesmo assim, Russel afirma que é significativo.
Russell questionou-se muito sobre essa proposição, pois, afi-
nal, como é possível que tal significação aconteça? A partir desses
questionamentos, ele desenvolveu toda a base da teoria da descri-
ção, que consiste na seguinte tese:

Para que a proposição "o atual rei da França é calvo" se torne


compreensível, dentro de uma analise lógica, é preciso remover
"o rei da França" da posição de sujeito.

Desse modo, o enunciado "o atual rei da França é calvo" pas-


sa a ser constituído de três outros significados, a saber:
• O enunciado de existência: no caso "o atual rei da França".
• O enunciado de unicidade: "uma única coisa, o atual rei
da França".
• O predicativo do enunciado: "esta coisa a que se refere é
calva".
Desse modo, o que constitui tal expressão é a existência de
algo que necessariamente pode não ser o atual rei da França.
Assim, podemos nos questionar diante dessa reflexão: é real-
mente existente um nome? Essa pergunta talvez o próprio Russell te-
nha feito a si, pois, em seu próprio sentido lógico, a palavra "nome"
somente poderá ser real na medida em que ele se posiciona como um
pronome demonstrativo, como é o caso do uso temático do "isso" e
do "aquilo", em que o falante direciona para um determinado objeto
pelo qual quer demonstrar em uma determinada situação.
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 161

Seguindo os passos de nosso questionamento, é interessan-


te notar que o pronome demonstrativo "isso" de forma alguma
poderia ser aplicado a qualquer objeto físico, pois torna-se espe-
cialmente compreensível que, quando utilizado, ele pode não es-
pecificar um objeto que esteja presente no momento em que é
referenciado; desse modo, o nome ficará no vácuo, deixando de
ter sua função.
É por esse motivo que Russell caracteriza o uso do pronome
ao sense-data, em que o falante, no momento real, reconhece o
objeto pela familiaridade. Conforme é de se esperar, surge outra
questão referente à linguagem: como, então, podemos proferir as
expressões além da subjetividade? Como no processo dinâmico
das palavras, podemos saber que várias pessoas estão se referindo
a um mesmo objeto refletido e associado em sense-data?

Texto Complementar
Para que você se aprofunde em seus estudos, não deixe de
ler o texto a seguir.

A teoria das descrições ––––––––––––––––––––––––––––––––


Frases descritivas
Há dois tipos de frases descritivas: (1) as descrições indefinidas, que são expres-
sões da forma "um(a) assim e assim" e (2) as descrições definidas, que são ex-
pressões da forma "o(a) assim e assim", sempre no singular. À primeira categoria
pertencem expressões como "um aluno de filosofia", "uma menina bonita", en-
quanto que à segunda pertencem "o mestre de Platão", Teoria das Descrições "o
atual rei da França", "o maior número primo". (Uma exposição informal do assunto
é feita por Russell no capítulo 16 de seu livro Introdução à Filosofia Matemática).
Como vimos anteriormente, sentenças como "O atual rei da França é careca" nos
trazem problemas, pois aparentemente, ao asseverá-la, estamos nos comprome-
tendo com a "existência" do atual rei da França, que sabemos não existir. Segundo
Russell, a forma gramatical de enunciados como "O atual rei da França é careca"
nos engana, e sua forma lógica é na verdade outra. Para ele, enunciados como
"o atual rei da França", "a montanha de ouro", "o quadrado redondo" são descri-
ções definidas, e nem sempre podem ser tomados como nomes de entidades:
as descrições (definidas) não são logicamente equivalentes a nomes próprios.
Estes designam objetos "existentes", como Sócrates, Julio Cesar, Henri Poinca-
ré, aquelas descrevem entidades. "Nomes" aplicados a entidades não existentes,
como Pégaso, Sací Pererê, para ele na verdade não são nomes, mas "descrições

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162 © Filosofia da Linguagem

abreviadas". Certas expressões (nomes), no entanto, podem eventualmente ser


usadas como descrições, como veremos.
Frases descritivas como "o autor de Methods of Logic", para Russell, devem ser
parafraseadas de modo que as referências designativas desapareçam. Inicialmen-
te, ele encontra um modo de Teoria das Descrições escrever a forma lógica de "o
F", introduzindo um operador: em símbolos, escreve
ιxF(x),
sendo ι é o operador de descrição, ou descritor. A expressão acima se lê "o (único)
x tal que F(x)", e é na verdade uma representação simbólica para a frase seguinte,
escrita na linguagem da lógica de primeira ordem com igualdade: "Existe um único
x que tem a propriedade F". Por meio desse artifício, ou seja, vertendo a descrição
para uma expressão da linguagem da lógica usual, Russell consegue eliminar a
descrição por meio de uma definição contextual, como veremos depois. Explique-
mos um pouco o que se passa.
Russell introduz então o símbolo ι, chamado descritor, ou operador de descrição.
Assim, coisas como "x é o autor de Methods of Logic" ficam assim:
ιx(x é o autor de Methods of Logic),
que se lê "o único x tal que x é autor de Methods of Logic". Ou seja, se F(x) diz que
x é o autor de Methods of Logic, então ιxF(x) expressa "o (único) objeto que é o
autor de Methods of Logic". A descrição definida, importante dizer, indica um único
objeto que tem a propriedade F, se existe esse objeto (no caso, trata-se de W. V.
Quine). Se há mais de um ou se não existe tal objeto, para Russell a descrição é
falsa, e já veremos porque.
Formalmente, o descritor funciona do seguinte modo: ele é "um operador que liga
uma variável a uma fórmula para formar um termo" (é um v.b.t.o. Em inglês, 'varia-
ble binding term operator'). Ou seja, se considerarmos uma linguagem de primeira
ordem, da qual F é um predicado unário, então F(x) é uma fórmula , e ιxF(x) é um
termo, que designa o único objeto que satisfaz F, se existir. Caso não exista um
objeto que tenha a propriedade F ou se há mais de um, há algumas alternativas,
como simplesmente postular que nenhum objeto é designado por ιxF(x) ou fazer
com que todas as descrições definidas impróprias denotem o mesmo objeto, es-
colhido arbitrariamente (como sugeriu Frege), ou ainda, atribuímos a cada uma
delas um objeto, não necessariamente o mesmo. A solução de Russell, no entanto,
é considerar que nesses casos a descrição é falsa. Isso se deve ao fato de que
a descrição "o autor de Methods of Logic" deve ser parafraseada em algo como
"existe um x que é o autor de Methods of Logic, e para todo y, se y é autor de
Methods of Logic, então y é idêntico a x". Em símbolos, se denotarmos por M(x) o
predicado "x é o autor de Methods ofLogic", temos
∃x(M(x) ∧ ∀y (M(y) → y=x)).
Assim, se não há nenhum autor de Methods of Logic, ou se há mais de um (como
ocorre com os Principia Mathematica), a descrição é falsa.
Na teoria de Russell, uma descrição definida não tem sentido por si mesma, mas
unicamente dentro de um contexto. Um nome, por outro lado, denota ou designa
um particular indivíduo, e uso adequado do ε, podemos mostrar que a sentença
que expressa o chamado Axioma da Escolha em teorias de conjuntos como Zer-
melo-Fraenkel (da qual falaremos oportunamente) pode ser demonstrada como
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 163

teorema dessa teoria. No entanto, tal proposição é independente dos demais axio-
mas (supostos consistentes), como mais tarde se demonstrou. Assim, o uso do
ε confina a matemática a determinados desenvolvimentos somente (consoantes
com o Axioma da Escolha), impedindo a consideração de vários outros campos
da matemática atual. Teoria das Descrições significa esse indivíduo, ou seja, para
Russell, um nome tem um significado, a saber, o próprio objeto que designa. (Ele
mudou de idéia por um tempo, mas depois voltou a sustentar essa posição, que
assumiremos). Uma descrição definida, no entanto, não é um nome, algo que
denota diretamente um objeto. Pensemos na frase "Hilbert é careca." A palavra
(nome próprio) "Hilbert" designa um particular indivíduo, e tem uma função lógica
diferente da descrição "o grande matemático alemão que escreveu Grundlagen
der Geometrie", que descreve Hilbert. Suponha entretanto que alguém descubra
que não foi Hilbert quem escreveu os Grundlagen, mas outra pessoa. Neste caso,
a descrição e o nome não mencionariam o mesmo indivíduo. Logo, eles não têm a
mesma função lógica. Com efeito, tomemos a expressão
Hilbert = o grande matemático alemão que escreveu Grundlagen der Geometrie.
Neste caso, o nome "Hilbert" é, como diz Russell, um objeto simples, significando
o indivíduo que nomeia (no caso, Hilbert), designando esse indivíduo diretamente.
Quando as descrições são usadas como nomes, elas podem ser intersubstituídas
de forma a se preservar as regras da lógica clássica. No entanto, quando usa-
das não como nomes, mas como descrições estrito senso, é outra. Para entender
isso, lembremos que as propriedades fundamentais (postulados) da identidade (ou
igualdade, simbolizada por "="), são os seguintes:
(Refl) (Lei Reflexiva da Identidade, ou Princípio da Identidade)
∀x(x=x).
Informalmente, "Todo objeto é idêntico a ele mesmo".
(Subst) (Lei da Substitutividade, ou Princípio da Indiscernibilidade dos Idênticos)
∀x∀y(x=y → (A(x) → A(y))),
onde A(x) é uma fórmula que tem x como variável livre, A(y) é a fórmula que resulta
de A(x) pela substituição de x por y em algumas das ocorrências (livres) de x, sen-
do y uma variável distinta de x.
Informalmente, Subst. diz que "coisas iguais" podem ser substituídas em qualquer
contexto (aqui, fórmula) preservando-se a verdade (ou salva veritate, como dizia
Leibniz). A lei Subst. é por muitos chamada de Lei de Leibniz. Por exemplo, em
2+3=5, podemos substituir 2 por 1+1 "salva veritate", obtendo (1+1)+3=5. Será
que isso vale quando há descrições envolvidas? Para ver isso, vamos usar um
exemplo do próprio Russell.
Sabemos hoje que o novelista escocês Sir Walter Scott (também autor de Ivanhoé,
Rob Roy e de uma vasta obra) era o autor das novelas Waverley, mas este fato
não era conhecido à época em que George IV era o rei a Inglaterra (de 1820 a
1830). Então, se "Sir Walter" e "Scott" (que são nomes da mesma pessoa) são usa-
das como nomes, isto é, fazendo referência direta ao célebre novelista escocês, a
lei Subst. pode ser usada. Assim, usando a partícula "é" no sentido de identidade
(mais abaixo veremos o seu uso como existência), então
Scott é Scott

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164 © Filosofia da Linguagem

é a mesma proposição que


Scott é Sir Walter.
Isso se deve ao fato de que os nomes, para Russell, denotam entidades existentes
(em algum momento do espaço-tempo – assim, para ele, "Pégaso" não é um nome
mas, como veremos, uma "descrição disfarçada"). Em uma expressão contendo
uma descrição, se substituirmos um nome por uma descrição, mesmo que ela des-
creva o mesmo objeto nomeado (pelo nome), obtemos uma proposição diferente
da original. O exemplo de Russell é tomarmos
Scott é Scott
e substituirmos o "autor de Waverley" na segunda ocorrência do nome, obtendo
Scott é o autor de Waverley, que não é equivalente à anterior, posto que agora
a descrição, por hipótese, não está sendo usada como um nome de Sir Walter,
mas descrevendo o autor das famosas novelas. Com efeito, suponha que fosse
descoberto que o autor de Waverley não é Scott, mas o Sr. X (distinto de Scott).
Neste caso, a segunda proposição seria falsa, ao passo que a primeira é, como diz
Russell, um "truísmo trivial". Como diz o próprio Russell,
"Uma proposição contendo uma descrição não é idêntica ao que
aquela proposição se torna quando o nome é substituído, até mes-
mo se o nome nomeia o mesmo objeto que a descrição descreve.
"Scott é o autor de averley" é, obviamente, uma proposição dife-
rente de "Scott é Scott": a primeira é um fato na história literária e a
segunda é um truísmo trivial. E se colocarmos qualquer outro que
não Scott no lugar de "o autor de Waverley", nossa proposição se
torna falsa, portanto, não mais sendo, certamente, a mesma pro-
posição." (Russell, Introdução à Filosofia Matemática, Rio, Zahar,
1974, pp.166-7).
Constatamos então que "Scott é Scott" e "Scott é o autor de Waverley" são proposições
distintas não somente no seu aspecto sintático. A primeira é um fato lógico, uma tauto-
logia, ao passo que a segunda não é trivial, mas uma descoberta histórica (mais abaixo,
voltaremos a essas questões). Russell explicou este fato, e a maioria dos filósofos (mas
não todos) aceita a solução de Russell, que pode ser colocada na forma seguinte:
(1) Scott é Scott, e isso é um fato trivial.
(2) Scott é o autor de Waverley é um feito da história da literatura.
(3) Se colocarmos qualquer outra pessoa no lugar de "o autor de Waverley" na
sentença (2), a proposição se torna falsa.
[...]

O mundo das ficções


Seriam então criaturas como Pégaso, Sherlock Homes e o Sací Pererê criaturas
da ficção, que "existiriam" unicamente nesses contextos? Se os enunciados acer-
ca de objetos fictícios não têm valor-verdade, porque esses objetos não existem,
como podem ter sentido? Podemos simplesmente dizer que eles não têm critérios
de aceitabilidade (por nós) e que asserção são distintas de suas condições de
verdade. Mas, neste caso, como saber se as leis da lógica clássica permanecem
válidas? Com efeito, em um enunciado da forma A∨B, se a e b não têm valor de
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 165

verdade, como dizer que A∨B tem um? Da mesma forma, se A não tem valor de
verdade, como pode ¬A ter um? Assim, alguns filósofos defendem que a lógica dos
objetos fictícios deve ser não clássica (ver mais abaixo).
Um terceiro tipo de análise é possível. A expressão "denotar aquilo que não existe"
tem pelo menos dois sentidos: (1) significa não ter qualquer referência e não deno-
tar nada, e (2) denotar uma entidade não existente. Se optarmos por (2), podemos
relegar todo o discurso sobre entidades fictícias como dependentes de um opera-
dor "dentro da ficção" (como apontado por Engel no seu artigo supra citado). Des-
se modo, podemos dizer (dentro da ficção): "O Saci Pererê é um moleque que pula
em uma perna só." Esses enunciados podem então ser verdadeiros ou falsos, mas
somente 'dentro da ficção'. Porém, se interpretarmos o mundo das ficções como
sendo efetivamente um mundo de entidades, voltamos a uma espécie de concep-
ção meinonguiana. A mesma estratégia é adotada quanto aos objetos possíveis:
dizemos que certos enunciados são verdadeiros em certos mundos possíveis, mas
não em outros, o que nos reporta a considerar as modalidades (necessário e pos-
sível) e a semântica dos mundos possíveis (de Saul Kripke).
Porém, seria unicamente a referência a "em um mundo possível" suficiente para
nos fazer aceitar enunciados cujos sujeitos são unicamente possíveis? A semân-
tica da lógica modal de Kripke fornece condições de verdade para enunciados
envolvendo as modalidades 'necessário' e 'possível', mas não resolve o proble-
ma ontológico acerca da natureza dos objetos possíveis. Mesmo quando filósofos
como David Lewis sustentam que existem os mundos possíveis contendo os ob-
jetos possíveis e que eles são tão reais como é o mundo real relativamente aos
objetos reais, mostra-se aí uma nova volta aos objetos não existentes de Meinong
(KRAUSE, 2011, p. 24-36).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Como você pôde verificar, a Filosofia da Linguagem lida com
problemas não só lógicos, mas, também, ontológicos. Nesse senti-
do, ela se preocupa não só com o valor de verdade de uma propo-
sição, mas com a existência em um mundo real daquilo que está se
afirmando – como no exemplo do "atual rei da frança é calvo".
No tópico a seguir, você irá conhecer as propostas do grande
e importantíssimo filósofo Ludwig Wittgenstein. Vamos lá?

7. WITTGENSTEIN: LINGUAGEM COMO FIGURAÇÃO


E COMO INSTRUMENTO
Ludwig Wittgenstein é conhecido como um dos maiores filo-
sófos do século 20. Ele nasceu na cidade de Viena e veio a falecer
na cidade de Cambridge, onde desenvolveu grande parte de suas
teses acerca da linguagem. Sua trajetória intelectual pode ser di-

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166 © Filosofia da Linguagem

vidida em duas fases distintas. A primeira foi marcada pela obra


Tractatus Lógico-Philosophicus (1921), em que podemos notar
grande influência de Frege e Russell.
O segundo período vivido por Wittgenstein foi curiosamente
elaborado após um grande intervalo, pois o pensador abandonou os
escritos e as reflexões filosóficas para se dedicar às dimensões que ele
mesmo considerava serem realmente úteis; essa dimensão se referia
a ser mestre de escolas interioranas e aprendiz de jardinagem. Para-
lelamente a esse tempo, a segunda fase caracteriza-se pela descrição
da linguagem ordinária, ou seja, aquelas situações nas quais expres-
samos nossas experiências, vontades, desejos. A principal obra desse
período é a póstuma Investigações Filosóficas (1953).
No Tractatus Lógico-Philosophicus, Wittgenstein procura re-
fletir sobre a linguagem representativa e factual. Ele pretende ex-
plicar questões fundamentais:
1) Como passamos a compreender o mundo por meio da
linguagem?
2) Como a linguagem se torna significativa?
3) Como o pensamento se relaciona com a linguagem?
Ao elencar tais questões, Wittgenstein acreditava ter identi-
ficado toda a busca relevante dentro da história da Filosofia desde
o seu nascimento. Em sua perspectiva, o conjunto de respostas a
essas questões resolveria os principais problemas filosóficos.
Partindo da linguagem como ponto central de suas reflexões,
o primeiro Wittgenstein elaborou uma perspectiva da linguagem e
do mundo que foi por ele chamada de teoria pictorial da frase. De
acordo com essa teoria, somente podemos elaborar conexões pe-
las frases declarativas, que, por si, são concebidas imediatamente
por figurações e quadros acerca do contexto expressado. Desse
modo, essas figurações podem muito bem ser resumidas a um mo-
delo da realidade que é sobreposto ao crivo da linguagem.
Wittgenstein adquiriu essa imagem acerca da linguagem no
ano de 1914, depois de ter visto em uma revista da época o relato
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 167

de um acidente de trânsito, em que estava impressa uma imagem


em miniatura acompanhada por expressões linguísticas para descre-
ver a cena. A partir daí, ele teria cogitado que as frases da linguagem
poderiam ser pensadas como representações da realidade.
Entretanto, essa ideia da frase como sendo uma represen-
tação intuitiva da realidade está associada à linguagem natural
como possibilidade figurativa. Essa concepção da linguagem como
figuração foi devidamente explicada por Erik Stenius, que chamou
a atenção para a necessidade de existir uma correspondência ou
certo isomorfismo estrutural que obedece a uma certa estrutura
lógica de regras e convenções, pois, somente assim, é possível a
relação figurante e a figuração.
Para ilustrar tal relação, podemos pensar no que está em
jogo quando afirmamos que um determinado livro está sobre a
mesa. De acordo com a teoria pictorial proposta por Wittgenstein,
não se faz necessário que exista uma figura que demonstre um
livro sobre a mesa, mas segue-se somente a importância de afir-
mar a expressão biunívoca dentre a relação existente entre livro e
mesa e sua própria condição, a saber, estar sobre a mesa.
A estrutura pictorial não é expressa nos sinais, mas no con-
teúdo, ou seja, naquilo que deduzimos ou pensamos; essa mobi-
lidade do pensamento é desenvolvida no que Wittgenstein deno-
minou de frase elementar como sendo a reflexão do pensamento
e manifestada por meio das expressões explícitas e analisadas.
Consequentemente, a maioria das pessoas não percebe que a fal-
ta de percepção das frases determinam a falta de análise de sua
conjuntura.
Assim, é importante pensar que não é a frase ordinária uma
representação da realidade, mas deve esta se espelhar na realida-
de e deduzir o que realmente é pensado por meio dela, seja pela
sua forma lógica, seja pela sua possibilidade lógica de assegurar a
semelhança dentre as sentenças.

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168 © Filosofia da Linguagem

Consequentemente, Wittgenstein não chegou a demonstrar


especificamente como isso acontece, ou seja, de que maneira as
expressões ordinárias podem ser analisadas em deduções elemen-
tares cuja lógica assegura em qualquer situação que estas se afi-
guram.
Para bem compreender essa reflexão e a relação entre as
frases naturais e as frases elementares, fica-nos a evidência de que
a frase deve sempre ter uma figuração; portanto, ela passa a ser
suplementada pela própria linguagem natural e, ao ser analisada,
especifica os elementos fundamentais para que, assim, possa ser
suficientemente capaz de refletir pictoricamente o mundo.
Com base nessa dedução, encontramos uma autêntica meta-
física da linguagem, pois as expressões de linguagem natural, quan-
do analisadas como parte constitutiva das expressões elementares,
passam a significar, representar e refletir o mundo real. Já as frases
elementares e suas nominações especificam objetos simples, crian-
do uma relação de correspondência que constitui uma condição
fundamental para que possam ser consideradas verdadeiras.
Desse modo, quando analisadas, as expressões verbais pas-
sam automaticamente a revelar nominalmente os objetos e o mun-
do com toda a sua expressividade simbólica. Sendo analisadas, as
frases linguísticas passam a se constituir de nomes; configuram-se,
assim, os objetos que significados passam a tocar a realidade.
Em uma frase não elementar, quando constituída verdadei-
ra, estrutura-se sobre a sua análise uma estruturação combinativa
entre a própria configuração elementar; dessa última, compreen-
de-se o próprio modelo de algo realmente existente. Porém, já as
frases falsas constituem-se como parte das expressões elementa-
res, ao contrário das verdadeiras; as falsas apenas indicam uma
possível combinação lógica que não apresenta fatos da realidade.
Diante desses dados, é interessante constatar que a teoria
pictorial complementa sua evolução para com a teoria do significa-
do. Assim, conclui-se que o significado de um signo ou de um res-
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 169

pectivo nome deve sempre direcionar para a complexidade de um


objeto simples. Desse modo, se um nome tem significado, o objeto
consequentemente a ser nomeado deve existir em sua essência.
Para Wittgenstein, os limites da linguagem significativa po-
dem ser compreendidos por meio dos próprios limites que são
conectados às frases elementares de modo simples; esses limites
correspondem ao próprio limite da realidade do mundo tal como
refletimos.
É interessante notar até aqui que todo o processo da lingua-
gem deve constituir dentre a combinação do objeto real para com
o nome ou expressão a ser indicada, deste modo, para que exista
certa consonância faz-se preciso uma estabilidade lógica dentre
as relações, é por este motivo que a lógica é tratada no Tractatus
Logico-Philosophicus. Paralelamente, tudo o que seja necessário
para que se estabeleça dentre o objeto e a fala constitui em uma
estrutura lógica dentre o compartilhamento de ambos, esta estru-
turação Wittgenstein denominou de forma lógica, ou seja, toda
figura tem relações compartilhadas como uma mesma forma lógi-
ca tem para com a realidade, pois, é somente obedecendo a tais
regras que pode haver o processo de representação.
Anos mais tarde do término do Tratado, Wittgenstein voltan-
do para a cidade de Cambridge no ano de 1929, concluiu que todo
o esforço estruturado em sua obra, a saber, de edificar uma lin-
guagem referente ao mundo a partir de uma óptica dos elementos
atômicos é falha. A falha se localiza justamente pelo descaso para
como a própria linguagem funcional. O fato é que o filósofo havia
criado uma teoria metafísica sobre a linguagem, deixando de levar
em consideração seu funcionamento ordinário.
Por essa razão é que Wittgenstein vê a linguagem como ne-
bulosa constituída de inúmeras sublinguagens, que podem estar
supostamente relacionadas entre si. Para uma apropriada compre-
ensão é necessário se lançar nesta diversidade.

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170 © Filosofia da Linguagem

Wittgenstein tem como proposição, o fato de que toda lin-


guagem tem como problema central a sua própria significação, ou
seja, o simples fato ou processo de como esta mesma, e, determi-
nada proposição adquiriu um determinado significado.
Vejamos o que o Prof. José Oscar de Almeida Marques tem a
nos informar sobre a proposta de Ludwig Wittgenstein.
Em minha interpretação de como, no Tractatus, as proposições ad-
quirem seu sentido procurei criticar a introdução do pensamento
como algo que estabelece a conexão entre os elementos do signo
proposicional e os aspectos da realidade a que eles se referem, in-
sistindo em que o significado de um signo está determinado ex-
clusivamente pelas regras sintáticas que governam seu emprego
na linguagem, e que nenhuma associação factual com o objeto é
necessária e nem mesmo possível. Isto leva-me, para finalizar, a
uma observação sobre tentativas recentes de avançar nesta linha
de raciocínio até o ponto de expurgar do Tractatus a própria noção
de uma realidade extra-lingüística. Nessa concepção, o significado
dos nomes se esgota totalmente no interior da própria linguagem,
e não se supõe que eles estejam "no lugar" de alguma coisa, que
sejam representantes de entidades exteriores à linguagem.
Por engenhosa que possa ser, na medida em que consegue dar
conta de muitas questões ainda problemáticas na interpretação
do Tractatus, essa posição não me parece sustentável e não deve
ser tomada como uma conseqüência do que estou propondo aqui.
O principal problema é como dar conta, nesse caso, da questão da
verdade de uma proposição, que Wittgenstein insiste ser deter-
minada pela comparação com a realidade, isto é por referência a
uma instância não-lingüística. É verdade que o desvendamento da
essência da proposição foi considerado por Wittgenstein, na passa-
gem datada de janeiro de 1915 que citei no início, como constituin-
do "toda a sua tarefa", mas é relevante notar que ele complementa
imediatamente essa afirmação dizendo que essa tarefa se identifica
à de especificar a essência de todos os fatos dos quais a proposição
é uma figura, a essência de todo o ser. E ainda, que poucos meses
depois ele tenha registrado em seus cadernos de notas as seguintes
palavras: "O grande problema em torno do qual gira tudo o que es-
crevo é: Há uma ordem a priori no mundo e, se houver, qual é ela?"
(MARQUES, 2011, P. 10-11).

Outro importante autor da Filosofia da Linguagem é Gilbert


Ryle. Vamos conhecer suas propostas no tópico a seguir.
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 171

8. GILBERT RYLE E LINGUAGEM COMO FORMA DE


DISSOLVER PSEUDOPROBLEMAS FILOSÓFICOS
O filósofo analítico Gilbert Ryle (1900-1976), em seu trabalho
The Concept of Mind (1949), fez uso da linguagem como forma de dis-
solver um clássico problema filosófico: dualismo mente/corpo. Ryle
procura, por meio de uma análise dos argumentos empregados por
Descartes nas Meditações, empreender a dissolução do dualismo, o
que não implica uma postura eliminativista dos estados mentais.
Ryle não negará os fenômenos mentais, apenas, como ele
avisa no prefácio de The Concept of Mind, determinará a exata "ge-
ografia lógica" das proposições desses fenômenos. Em outros ter-
mos, ele pretende, por meio de uma severa análise da linguagem,
demonstrar que o problema mente/corpo é um pseudoproblema,
resultado de confusões lógico-linguísticas que Descartes e os car-
tesianos cometeram.
Essa tentativa de dissolver o problema mente/corpo, por
meio de uma severa análise da linguagem, é muitas vezes conheci-
da como behaviorismo lógico. Ryle, entretanto, recusa insistente-
mente tal classificação para a sua análise.
Ele afirma que não pretende apresentar um novo conceito de
mente, mas apenas caracterizá-lo precisamente. Para ele, o senso
comum sabe muito bem manejar esse conceito; as confusões con-
ceituais ocorrem apenas no domínio filosófico da análise. Foram
os filósofos que cometeram deslizes terminológicos e acabaram
obscurecendo esse conceito. Ciente de estar indo contra toda uma
tradição filosófica, ele adverte:
Talvez os conforte saber que as posições contra as quais mostro
mais calor são posições de que eu próprio fui vítima. Só secundaria-
mente espero ajudar outros teóricos a reconhecer a nossa doença
e a beneficiar-se da minha receita (RYLE, 1949, p. 9).

Sabendo que sua tentativa será recebida com muitas restri-


ções e preconceitos, Ryle procura deixar claro o ponto contra o
qual ele se volta, assumindo que, muitas vezes, esboça a teoria

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172 © Filosofia da Linguagem

cartesiana com certos exageros. Tais exageros têm como finalida-


de chamar a atenção para os pontos confusos da doutrina carte-
siana a ser combatida.
Dada a grande aceitação da Filosofia cartesiana, Ryle cha-
ma-a de "Doutrina Oficial" e resume-a na hipótese que todo ser
humano possui uma mente e um corpo, ambos de naturezas dis-
tintas e características particulares, que podem ser resumidas por
meio das seguintes proposições:
1. Todo corpo existe no espaço e no tempo. As mentes apenas no
tempo.
2. O corpo é constituído por matéria, a mente por consciência ou
funções da consciência.
3. O corpo, por ser algo material é sujeito às leis físicas, porém as
mentes, sendo imateriais, não sofrem tal sujeição.
4. Os acontecimentos corporais são observáveis por todos, por
isso carregam o estatuto de serem públicos. Os acontecimentos
mentais ocorreram na própria mente e por isso são chamados
privados (RYLE, 1949, p. 11-12).

Esses quatros pontos sintetizam, grosso modo, a caracterização


que a "Doutrina Oficial" apresenta, segundo Ryle, acerca da natureza
da mente e do corpo. Tal caracterização irá legar ao ser humano a exis-
tência de "dois mundos": o primeiro é o mundo físico, habitado pelos
corpos e do qual temos apenas um conhecimento parcial; o segundo é
o mundo mental, em que a mente se situa e que, graças à consciência,
autoconsciência e introspecção, pode ser passível de conhecimento.
A consciência, a autoconsciência e a introspecção nos re-
velam-nos, segundo a doutrina cartesiana, tudo o que ocorre no
mundo mental ou interior. Porém, devemos saber que a expres-
são "mundo mental" diz respeito apenas ao mundo mental de
cada indivíduo. A introspecção permite ao ser humano ter acesso
apenas ao seu próprio mundo mental. Para os críticos, a doutrina
cartesiana leva-nos à seguinte situação: nenhum ser humano pode
conhecer o que se passa no interior da mente do outro.
No limite, a consequência do solipsismo, que se instaura na
doutrina cartesiana, leva a um resultado anti-intuitivo: nenhum
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 173

comentário a respeito do comportamento de outrem é completa-


mente seguro. Contudo, afirma Ryle:
Pelo fato de que todos nós fazemos diariamente comentários ou
damos palpites a respeito do que se passa na mente das pessoas é
que resolvi refletir acerca da geografia lógica dos conceitos de com-
portamento mental, buscando, assim, demonstrar que a geografia
lógica praticada oficialmente está incorreta (1949, p. 13).

O caráter anti-intuitivo de que se reveste a Doutrina Oficial


leva Ryle a examinar seus fundamentos. Para ele, esta se assenta
sobre um falso princípio, o qual provém de um erro de gênero es-
pecial chamado de erro categorial. O erro categorial, por sua vez,
consiste em considerar fatos da vida mental como pertencentes a
uma determinada categoria lógica, quando, na verdade, perten-
cem à outra. A intenção de Ryle não é, como já afirmamos, negar
a existência de fenômenos mentais, e, sim, demonstrar que a pos-
tulação de uma entidade abstrata como sede desses fatos decorre
de um engano lógico.
A argumentação de Ryle será voltada à descoberta de erros
categoriais na Doutrina Oficial, para, então, retificá-los. Para ele, a
origem desse erro está na tentativa que Descartes e os cartesianos
fizeram para explicar a mente e os fenômenos mentais em uma
linguagem extraída das ciências naturais.
Ryle sugere que Descartes talvez tivesse raciocinado da se-
guinte maneira: se os fenômenos físicos e fisiológicos são descri-
tos por uma linguagem científica precisa e exclusiva da Física e da
Fisiologia, os fenômenos mentais também deveriam ser descritos
por uma linguagem que fosse igualmente precisa e científica mas
que, em contrapartida, fosse adequada para explicar unicamente
os fenômenos que ocorrem na substância mental.
Guiados por esse raciocínio, os cartesianos, segundo Ryle,
formularam uma linguagem para-mecânica para descrever a men-
te, ou seja, a mente sendo algo imaterial, privado e não sujeito
às leis físicas, deveria ser descrita por uma linguagem que fosse a
negação da descrição dos fenômenos físicos. Por exemplo, os cor-

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174 © Filosofia da Linguagem

pos ocupam lugar no espaço, a mente não ocupa lugar no espaço,


e assim por diante.
Tal esforço, segundo Ryle, criou a seguinte situação:
[...] o corpo humano, tal como qualquer outra parte da matéria, é
um campo de causas e efeitos, também a mente deve ser um outro
campo de causas e efeitos ainda que (Deus seja louvado) causas e
efeitos não mecânicos (1949, p. 18-19).

Para dissolver essa situação sobre a qual se estrutura a Dou-


trina Oficial, Ryle procura caracterizar os estados mentais sem cair
no idealismo, isto é, sem afirmar que só existem os fenômenos
mentais. Porém, ele procura evitar, também, o materialismo, ou
seja, afirmar que os estados mentais devem ser reduzidos aos ce-
rebrais. Ambas as tentativas, materialista e idealista, segundo Ryle,
são respostas a uma pergunta inadequada.
Tanto o idealismo, diz Ryle, ao negar a relevância do físico na
caracterização do mental, como o materialismo, ao tentar reduzir
o mental ao físico, no fundo aceitam que existe o problema da re-
lação dualista entre mente e corpo. Na sua concepção, é o "proble-
ma" que deve ser rejeitado na sua formulação mesma. Ele insiste
que não há problema algum em afirmar que existem mentes e que
existem corpos. O problema está em sustentar que a mente e o
corpo são substâncias distintas que possuem formas diferentes de
existência.
A análise de Ryle enfocará os estados mentais por meio, prin-
cipalmente, da ação. Sua proposta consiste em explorar uma par-
cela do conhecimento que a tradição filosófica relega a um segun-
do plano, qual seja, "o saber como" fazer algo. O olhar atento ao
"saber como" pode revelar muito sobre os fenômenos mentais.
Negando o postulado cartesiano segundo o qual a atuação
inteligente pressupõe a observância de regras e a aplicação de
normas metodológicas, ele procura demonstrar que o atributo
"inteligente" deve ser dado às pessoas que aplicam critérios de re-
levância prática para a condução da própria ação, e não para quem
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 175

teoriza antes de agir.


Será no próprio "processo de fazer algo" que podemos notar
os critérios que possibilitam a atuação inteligente. Como exemplos
desses critérios, podemos citar: a crítica que uma determinada
pessoa faz ao nosso trabalho, a atenção na prática de alguma tare-
fa, a prática de retirar do erro uma lição para cada vez agir melhor
etc. Faz-se necessário ressaltar que Ryle não vê nesses critérios
regras que precederiam a ação, e, sim, atualizações de estados
"disposicionais" do organismo.
A grande contribuição de Ryle ao estudo dos estados mentais
parece ser a sua insistência em chamar a atenção para a importân-
cia das disposições ou formas de agir. Porém, foi dessa insistência
que surgiram as mais fortes objeções à sua teoria: se o ser humano
age por disposições, podemos dizer que seu comportamento será
muitas vezes determinado. Basta apenas saber como será a atu-
alização e será possível, em princípio, prever o comportamento.
Quanto a essa crítica, Ryle responde que as disposições humanas
são disposições complexas, que possuem muitas formas de atua-
lização. Ter uma disposição complexa não é o mesmo que afirmar
uma lei. Ter uma disposição é:
Não estar em um estado particular ou sofrer uma mudança particu-
lar, é estar sujeito ou ter a possibilidade de estar em um estado par-
ticular ou de sofrer uma mudança particular (RYLE, 1949, p. 42).

A pretensão de Ryle, ao criticar o dualismo cartesiano, foi


retificar o conceito de mente presente nessa doutrina e mostrar
que, ao falar dessa substância, não estamos nos referindo a uma
entidade fantasma que comanda nosso corpo, mas, sim, a uma
disposição físico-biológica.
Para fixarmos melhor as teses apresentadas nesta unidade,
elaboramos uma série de atividades que destacam as ideias cen-
trais de cada autor para que você possa conhecer com mais pro-
fundidade os temas concernentes à Filosofia da Linguagem apre-
sentados.

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176 © Filosofia da Linguagem

9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Frege é considerado o sistematizador da moderna lógica matemática. Ao re-
fletir sobre os fundamentos da aritmética, ele tenta encadeá-los à lógica. Ele
foi muito admirado e estudado por pensadores como Russell e Wittgenstein,
que procuraram, cada um à sua maneira, responder às questões legadas por
Frege acerca da linguagem natural e de sua relação com as linguagens for-
mais. Uma das principais contribuições de Frege para o estudo da linguagem
consiste em sua tentativa de elaborar uma teoria semântica. Queremos sa-
ber: quais as categorias fundamentais que são apresentadas por Frege para
lidar com o problema semântico?
a) Objeto e referente.
b) Sentido e referente.
c) Mundo e signo.
d) Signo e significado.
2) A compreensão que Russell faz acerca do significado é diferente da que Fre-
ge admitia. Para Russell, o significado é justamente aquilo a que ele se refe-
re. De outro modo, o significado de um termo está relacionado, em última
instância, ao objeto a que o termo se refere. Para que essa teoria semântica
funcione, Russel elabora a chamada Filosofia do:
a) Idealismo Semântico.
b) Reducionismo Semântico.
c) Formalismo Semântico.
d) Atomismo Lógico.
3) Segundo alguns críticos, a teoria da linguagem, presente na primeira filoso-
fia de Wittgenstein, pressupõe uma autêntica metafísica da linguagem, pois
as expressões de linguagem natural, quando analisadas como parte consti-
tutiva das expressões elementares, passam a significar, representar e refletir
o mundo real. Para bem compreender essa relação entre as expressões da
linguagem natural e o mundo, Wittgenstein propõe uma:
a) Teoria matemática da linguagem.
b) Teoria referencial da linguagem.
c) Teoria pictorial da linguagem.
d) Teoria ordinária da linguagem.
4) O filósofo Ryle, em seu trabalho The Concept of Mind, fez uso da linguagem
como forma de dissolver um clássico problema filosófico: dualismo mente/
corpo. Ele procura, por intermédio de uma análise dos argumentos empre-
gados por Descartes nas Meditações, empreender a dissolução do dualismo.
Sua pretensão com essa estratégia é:
a) Estabelecer uma teoria funcionalista acerca do mental.
b) Propor uma teoria eliminativista.
© A Filosofia da Linguagem e o Problema Semântico 177

c) Estabelecer a correta geografia lógica dos conceitos sobre a mente e os


estados mentais.
d) Fundamentar filosoficamente o idealismo como perspectiva apropriada
em Filosofia da mente.
5) A grande contribuição de Ryle ao estudo dos estados mentais parece ser a
sua insistência em chamar a atenção para a importância das disposições ou
formas de agir. Porém, uma forte objeção pode ser feita quando associamos
a conduta humana a estados disposicionais. Se o comportamento humano
é resultado de atualizações disposicionais, então nossa conduta pode ser
descrita como:
a) Determinada.
b) Indeterminada.
c) Aleatória.
d) Causal.

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) b.

2) d.

3) c.

4) c.

5) a.

10. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Nossa percurso sobre a relação entre a linguagem e a Filo-
sofia, ou, da linguagem como problema filosófico, termina com as
contribuições dos autores estudados nesta unidade. Neste percur-
so, pudemos analisar a linguagem desde sua relação com o nas-
cimento do pensamento filosófico, como passagem do mito ao
logos até a reflexão semântica e a tentativa dos filósofos do sécu-
lo 20 em se utilizar da linguagem para resolver pseudoproblemas
filosóficos.
Você pôde conhecer de que maneira a reflexão sobre a lin-

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178 © Filosofia da Linguagem

guagem que se inicia com Platão têm uma íntima relação com a
preocupação de essa linguagem, o discurso racional, significar cor-
retamente o mundo. Essa preocupação no período medieval se
torna uma preocupação de ordem teológica e, na modernidade,
com Locke, um problema do conhecimento humano.
Analisando as propostas de Nietzsche e Heidegger, você
pôde fazer um contraponto entre a linguagem conceitual e discur-
siva e a linguagem metafórica e poética como expressão fidedigna
em relação ao Ser.
Esperamos que você tenha gostado das reflexões aqui apre-
sentadas e que os conteúdos deste Caderno de Referência de Con-
teúdo tenham despertado em você o interesse de aplicar suas re-
flexões filosóficas nos problemas da linguagem.
Desejamos a você um bom curso e boa sorte!

11. E-REFERÊNCIAS
KRAUSE, D. Tópicos em ontologia analítica. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.
br/~dkrause/pg/cursos/2010/Topicos(LaTeX)Rosto.pdf>. Acesso em: 4 fev. 2011.
MARQUES, J. O. A. Pensar o sentido de uma proposição. Disponível em: <http://www.
unicamp.br/~jmarques/pesq/Pensar_o_sentido_de_uma_proposicao.pdf>. Acesso em:
4 fev. 2011.
RODRIGUES FILHO, A. Frege e a filosofia da linguagem. Disponível em: <http://www.ufsj.
edu.br/portal2-repositorio/File/vertentes/Vertentes_33/abilio_rodrigues.pdf>. Acesso
em: 4 fev. 2011.

Lista de figuras
Figura 1 Gottlob Frege. Disponível em: <http://www.nyu.edu/gsas/dept/philo/courses/
language04/>. Acesso em: 15 mar. 2011.
Figura 2 Bertand Russell. Disponível em: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/
seminario/russell/index.htm>. Acesso em: 15 mar. 2011.
Figura 3 Ludwig Wittgenstein. Disponível em: <http://www.ufpi.br/eticaepistemologia/
materias/index/mostrar/id/4100>. Acesso em: 15 mar. 2011.
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12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ALCOFORADO, P. Introdução. In: Lógica e Filosofia da linguagem. São Paulo: Universidade
de São Paulo, 2009.
FREGE, G. Sobre o sentido e a Referência. In: Lógica e Filosofia da linguagem. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2009.
______. Função e conceito. In: Lógica e Filosofia da linguagem. São Paulo: Universidade
de São Paulo, 2009.
GRAYLING, A. C. Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 2002.
PINTO, P. R. M. Iniciação ao silêncio: análise do Tractatus de Wittgenstein. São Paulo:
Loyola, 1998.
RUSSELL, B. Lógica e conhecimento. São Paulo: Abril cultural, 1978. (Os Pensadores).
______. Os Problemas da Filosofia. Lisboa: Edições 70, 2008.
RYLE, G. The concept of mind. Chicago: The University of Chicago Press, 1949.
THORNTON, T. Wittgenstein sobre linguagem e pensamento. São Paulo: Loyola, 2007.
WITTGENSTEIN, L. Tractatus lógico-philoshopicus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1999.

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