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DOSSIÊ CÍRCULO DE BAKHTIN

Diálogos e Aplicações
Coleção ‘O Círculo de Bakhtin em diálogo’

O objetivo da coleção O Círculo de Bakhtin em diálogo é publicar trabalhos


que, de forma heterogênea, permitam estudar, debater e expandir as
ideias do círculo de Bakhtin em diálogo com outros pensadores: Morin,
Freire, Vigotski, dentre outros, pensando questões contemporâneas na
Linguística, na Educação, nas Artes, na Política e nas Relações
Internacionais, dentre outros campos do saber.

Conselho editorial

Prof. Dr. Fábio Marques de Souza (UEPB)


Prof. Dr. Ivo Di Camargo Júnior (SME –Ribeirão Preto)

Comitê científico da obra

Prof. Dr. Afrânio Mendes Catani (USP, Brasil)


Profa. Dra. Cristiane Navarrete Tolomei (UFMA, Brasil)
Prof. Dr. Maged Talaat Mohamed Ahmed Elgebaly (Aswan University,
Egito)
Profa. Dra. María Isabel Pozzo (IRICE-Conicet-UNR, Argentina)
Profa. Dra. Marta Lúcia Cabrera Kfouri-Kaneoya (UNESP, Brasil)
Prof. Dr. Nefatalin Gonçalves Neto (UFRPE, Brasil)
Coleção ‘O Círculo de Bakhtin em diálogo’

Fábio Marques de Souza


Ivo Di Camargo Junior
Manassés Morais Xavier
(Organizadores)

DOSSIÊ CÍRCULO DE BAKHTIN


Diálogos e Aplicações
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Copyright © dos autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida
ou transmitida ou arquivada, desde que levados em conta os direitos dos
autores.

Fábio Marques de Souza; Ivo Di Camargo Junior; Manassés Morais Xavier


[organizadores].

Dossiê Círculo de Bakhtin: diálogos e aplicações. São Paulo,


Mentes Abertas, 2020, 208 p.

ISBN: 978-65-87069-38-8

1. Bakhtin. 2. Alteridade. 3. Dialogismo. 4. Sociedade. I. Título.

CDD 410

Capa: Lucas de França Nário.


Diagramação: Maristela Zeviani.

A Editora Mentes Abertas divulga os trabalhos acadêmicos presentes nessa obra


e não se responsabiliza de maneira alguma por qualquer tipo de plágio, cópia
ou citação indevida por parte de qualquer integrante deste livro e condena
veementemente esta prática. Confiamos na idoneidade moral e intelectual de
nossos autores. Portanto, qualquer responsabilidade legal neste quesito é de
única e integral responsabilidade do autor.

DGP-CNPq-UEPB O Círculo de Bakhtin em diálogo


Este livro é uma produção vinculada ao Grupo de Pesquisa O Círculo de
Bakhtin em diálogo. Liderado pelos Professores Doutores Fábio Marques de
Souza e Ivo Di Camargo Junior, constituído em 2018 e cadastrado no DGP do
CNPq/UEPB, o coletivo busca reunir pesquisadores para, de forma heterogênea,
estudar, debater e expandir as ideias do círculo bakhtiniano em diálogo com
outros pensadores: Morin, Freire, Vigotski, dentre outros, pensando questões
contemporâneas na Linguística, na Educação, nas Artes, na Política e nas
Relações Internacionais, dentre outros campos do saber.
http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1559080456226740

www.mentesabertas.com.br
https://mentesabertas.minhalojanouol.com.br/ A Mentes Abertas é filiada à ABEC
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 7

OS GÊNEROS DO DISCURSO 11
(Re)Visitando conceitos
Aloísio de Medeiros DANTAS
Manassés Morais XAVIER
Patrícia Silva Rosas de ARAÚJO

ÉTICA E ESTÉTICA NA CRIAÇÃO DO TEXTO 27


ACADÊMICO
Os desafios encontrados pelo pesquisador
bakhtiniano
Clara ROHEM

BAKHTIN E SEU CÍRCULO NA EDUCAÇÃO 41


FÍSICA ESCOLAR
Apontamentos para o ato responsável e alteritário
Daniel Batista SANTANA

ESPAÇO URBANO, INFÂNCIA E ESCOLA 57


Algumas reflexões a partir de entrecruzamentos
teóricos de Mikhail Bakhtin e Zigmunt Bauman
Eliane FAZOLO
Andrea BERENBLUM

PSICOLOGIA E A SÉTIMA ARTE 71


Um instrumento de estímulo neurofilosófico
Everton William de Lima SILVA

UMA REFLEXÃO SOBRE A CONVERGÊNCIA 93


DOS CONCEITOS BAKHTINIANOS
Francisco Benedito LEITE
Claudia de Fátima OLIVEIRA
Ricardo Boone WOTCKOSKI
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

UMA ANÁLISE DISCURSIVA DE “GESTOS DE 109


AUTORIA” EM PRODUÇÕES TEXTUAIS DE
ALUNOS INGRESSANTES NO CURSO DE
LETRAS, CÂMPUS GOIÂNIA
Iara OLIVEIRA
Juliana de Souza LOBO
Limerce Ferreira LOPES

POEMA E CANÇÃO EM SALA DE AULA 139


Uma proposta de prática de ensino e aprendizagem
em diálogo com Bakhtin
Ivo DI CAMARGO Jr.
Vanessa PAULINI
Fábio Marques de SOUZA

A ESCRITA DO ALUNO SURDO 153


Relações de sentido em Bakhtin
Josiane Coelho da COSTA

RESENHA: “QUESTÕES DE ESTILÍSTICA NO 173


ENSINO DA LÍNGUA”, DE MIKHAIL BAKHTIN
Lucília Teodora Villela de Leitgeb LOURENÇO

A PRODUÇÃO ESCRITA NOS ANOS INICIAIS 179


Uma proposta de trabalho significativo com foco no
letramento
Milena MORETTO

PARA UM FAZER CIENTÍFICO DE BASES 193


BAKHTINIANAS
Rafael da Silva Marques FERREIRA

SOBRE OS ORGANIZADORES 207


Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Dossiê Círculo de Bakhtin: uma apresentação

Mikhail Bakhtin, em suas conversas com Duvakin 1,


um estudioso da literatura russa, em obra publicada no
Brasil há alguns anos, confidenciou que gostava de ser
considerado mais um filósofo do que um literato. Esse
pensamento de Bakhtin pode ser considerado correto por
muitos pesquisadores, considerando que os seus
pensamentos sempre foram mais filosóficos do que
puramente estéticos. Analisando seus escritos sobre a
poética de Dostoievski, por exemplo, percebemos que seu
olhar ia muito além da mera análise literária.
Como historiador, informo que, nos anos 1920, a
atividade teórica de Bakhtin se mescla com a de seus
amigos e colaboradores, fundando o hoje conhecido
“Círculo de Bakhtin”, criando e confundindo-se os saberes
desse grupo, desenvolvendo uma questão de conceitos
produzidos em conjunto. Posteriormente, tentou-se dar
autores às obras produzidas pelo grupo. No período de
repressão stalinista, quando foi desfeito o Círculo de
Bakhtin, morreram importantes expoentes desse grupo,
inclusive os mais próximos a Bakhtin, como Medvedev ou
Volochinov, mas o pensamento de Bakhtin prosseguiu
forte e intrinsicamente relacionado com o que fora escrito
anteriormente pelo grupo. Mesmo solitariamente, Bakhtin
prosseguiu com a produção do Círculo até 1975, ano de
sua morte, em um diálogo interrompido que, nesta obra,
procuramos evidenciar.
Este livro buscou aprofundar, com seus trabalhos

1BAKHTIN, M.; DUVAKIN, V. Mikhail Bakhtin em diálogo: Conversas em 1973 com Viktor
Duvakin. Trad. Daniela Miotello Mondardo, a partir da edição italiana. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2008, 320p.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

diversificados, o olhar de um Círculo de Bakhtin filosófico,


olhar que buscava a relação entre as vozes das
consciências e dos discursos. São trabalhos que não são de
pesquisadores iniciantes em Bakhtin e seu Círculo, mas
foram pensados para ser lidos tanto por leitores
experientes quanto iniciantes, trazendo as temáticas do
Círculo de Bakhtin atualizadas e na práxis. Por não ser uma
obra feita por autores iniciantes é que o leitor encontrará
um caminho seguro e coerente para poder aprofundar em
seus estudos e realizar um encontro com Bakhtin e seus
companheiros de Círculo, com conceitos que são muito ou
pouco difundidos.
É por meio de diversos conhecedores da obra do
Círculo de Bakhtin que este livro pode ser uma obra que
abraça as teorias dos autores analisados, dialogando com
o pensamento contemporâneo de forma a produzir
encontros que não ocorreram e promover o diálogo sob
óticas e perspectivas diversas, produzindo vozes que vão
se fazer presentes.
Este livro, com seus capítulos, busca dirigir-se aos
leitores não reafirmando ou reproduzindo o já dito por
autores que compõem o diálogo oferecido, mas para
afirmar a sua voz entre as vozes, oferecendo novos
contextos, olhares e matizes para questões que estão sendo
debatidas. É por este motivo que este livro se situa
completamente dentro dos estudos do Círculo de Bakhtin,
com suas contra palavras que não são ecos, não se
repetem, buscam modos de compreensão e abrem novos
caminhos, colocando mais elos nesta cadeia infinita de
enunciados entrelaçados por direções multivariadas.
Considera-se, também, que essa metáfora dos elos de
uma cadeia infinita não nos iluda, sabendo que a direção

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

dos sentidos que se produz nas compreensões das


palavras alheias alimenta a palavra própria, e esta não é
linear. Nos estudos desse livro, perceber-se-á que há
muitos ecos do passado que se unem àqueles que ainda
sequer foram produzidos e que a ressurreição dos sentidos
não se realiza como um retorno previsível e sim como uma
raiz que sustenta algo novo, algo que surge como
alternativa e de maneira aleatória vai ocupando espaços
que não estavam previstos, em realidades distintas e
tempos muito diversos.
Dessa maneira, nesse livro, o leitor vai perceber que a
palavra produzida pelo Círculo de Bakhtin, dialogada
com os estudos nessa obra produzidos, não vai se recolher
ao silêncio do que está impresso nas folhas desse livro.
Essa produção vai fomentar o diálogo que já persiste entre
todos nós que nos preocupamos em pesquisar a
linguagem, os discursos e a cultura, em um diálogo amplo
e franco com a vida.

Márcio Luís de Souza


Mestre em História e Cultura Social
UNESP - Franca
Especialista em Literatura: Teoria e Crítica
UNESP - Araraquara

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

OS GÊNEROS DO DISCURSO
(Re)Visitando conceitos

Aloísio de Medeiros DANTAS1


Manassés Morais XAVIER2
Patrícia Silva Rosas de ARAÚJO3

Palavras iniciais: situando a proposta do trabalho

O Círculo de Bakhtin trouxe uma significativa


contribuição para os estudos da linguagem. Nesse sentido,
podemos destacar uma visão de linguagem constituída
por meio de processos de interações discursivas que
contextualizam o uso de fenômenos linguísticos em
diferentes espaços de comunicação social. Essa postura
teórico-metodológica compreende que o tratamento dado
aos estudos da linguagem precisa considerar a filiação de
enunciados relativamente estáveis – os gêneros do
discurso – a campos ideológicos de circulação de discursos
vários, porém, não quaisquer.
É pensando no conceito de gêneros que o presente
capítulo se ergue. Para tanto, elegemos como objetivo do
trabalho (re)visitar o conceito de gêneros presente na

1 Doutor em Língua Portuguesa e Linguística pela UNESP – Campus de Araraquara.

Professor Associado de Língua Portuguesa e Linguística da Universidade Federal de


Campina Grande. E-mail: alodanta@yahoo.com.br
2 Doutor em Linguística com Estágio de Pós-Doutorado em Linguística pela Universidade

Federal da Paraíba (PROLING/UFPB). Professor de Língua Portuguesa e Linguística da


Universidade Federal de Campina Grande. Professor Permanente do Programa de Pós-
Graduação em Linguagem e Ensino da Universidade Federal de Campina Grande
(PPGLE/UFCG). E-mail: manassesmxavier@yahoo.com.br
3 Doutora em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba (PROLING/UFPB). Pós-

Doutoranda em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande


(PPGLE/UFCG). Professora Efetiva da Rede Estadual da Paraíba. E-mail:
letrasrosas@hotmail.com

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Teoria Dialógica da Linguagem, com o intento de


oportunizar aos leitores do Dossiê Círculo de Bakhtin: ideias
fundantes e desdobramentos um texto que contemple uma
discussão teórica sobre a temática em questão e,
sobretudo, apresente uma proposta de análise de gêneros
do discurso. Desse modo, o capítulo trata a respeito da
noção de enunciado concreto e de gêneros, bem como
oferece uma proposta de abordagem de gêneros a partir
do que conceitualmente foi discutido no trabalho.

O enunciado concreto como a unidade real da


comunicação discursiva

O conceito de enunciado concreto não se encontra


pronto e acabado numa determinada obra ou num
determinado texto. O seu sentido e suas particularidades
vão sendo construídos ao longo do conjunto das obras,
indissociavelmente implicados em outras noções.
Os enunciados, para Bakhtin (2011), são unidades da
comunicação discursiva e elos da cadeia complexa de
outros enunciados; têm relações dialógicas com os
enunciados que os precederam e com os que lhe sucedem
e são voltados para o outro. São sempre heterogêneos, pois
revelam duas posições, a sua e aquela em oposição à qual
ele se constrói. Neles deságuam os discursos e todas as
vozes que constituem cada “eu” apoiado sobre o “nós”.
Segundo Volochinov (1976, p. 1),
é impossível compreender como se constrói qualquer
enunciado que tenha uma aparência autônoma e acabada, se
não se o considera como um ‘momento’, uma simples gota no
rio da comunicação verbal, cujo movimento incessante é o
mesmo que o da vida social e da História.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Dessa maneira, os enunciados estão sempre


interagindo com outros. Por isso, não devem ser
analisados isoladamente, mas na relação que mantêm com
outros em um contexto social mais amplo:
uma análise fecunda das formas do conjunto de enunciações
como unidades reais na cadeia verbal só é possível de uma
perspectiva que encare a enunciação individual como um
fenômeno puramente sociológico. (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
2010, p. 131).

Construídos na corrente do tempo e historicamente


situados, os enunciados são práticas sociais realizadas na
interação entre falantes no curso da vida, portanto
concretos. Assim, o enunciado é o resultado de uma
prática social; e essa prática é a enunciação, cuja estrutura
é determinada pela situação social mais imediata e o meio
social mais amplo a partir do seu próprio interior. Para
Bakhtin (2011), os enunciados refletem as condições
específicas e as finalidades de cada referido campo por seu
conteúdo (temático), pelo estilo e seleção dos recursos da
linguagem, como os lexicais, fraseológicos e gramaticais,
mas, sobretudo, por sua construção composicional, que
seria o delineamento do ato de enunciação.

As particularidades do enunciado concreto

Bakhtin (2011) aponta como determinantes do


enunciado concreto três particularidades: a alternância
dos sujeitos da comunicação; o acabamento específico do
enunciado; e a relação do enunciado com o enunciador e
com os outros parceiros da comunicação.
Em se tratando da alternância dos sujeitos do

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discurso, na comunicação verbal, “[...] o falante termina o


seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar
à sua compreensão ativa responsiva” (BAKHTIN, 2011, p.
275). Isso implica dizer que o enunciado é essencialmente
dialógico. Ninguém escreve/fala para o nada, para o vazio.
Ninguém escreve/fala sem ter um destinatário em mente.
Sempre se escreve/fala para o outro, nem que esse outro
seja você mesmo. Assim, escrever/falar é uma atividade
discursiva que exige um movimento para o outro, é uma
atividade de interação, de intercâmbio verbal.
Segundo Bakhtin (2011), a alternância dos sujeitos do
discurso se dá por meio da alternância das enunciações,
denominada pelo autor de réplica. Desse modo, “[...] cada
réplica, por mais breve e fragmentária que seja, possui
uma conclusibilidade específica ao exprimir certa posição
do falante que suscita resposta, em relação à qual se pode
assumir uma posição responsiva” (BAKHTIN, Op. cit., p.
275).
A noção de acabamento específico do enunciado,
conforme Bakhtin (2011, p. 280), entende que
A conclusibilidade do enunciado é uma espécie de aspecto
interno da alternância dos sujeitos do discurso; essa
alternância pode ocorrer precisamente porque o falante
disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento
ou sob dadas condições [...] alguma conclusibilidade é
necessária para que se possa responder ao enunciado [...] o
primeiro e mais importante critério de conclusibilidade do
enunciado é a possibilidade de responder a ele [...] (grifos do
autor).

Para o teórico russo, o acabamento do enunciado é


determinado por três fatores, os quais estão ligados, de
maneira indissolúvel, ao todo orgânico do enunciado,

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

quais sejam: a) o tratamento exaustivo do tema; b) o


projeto discursivo do locutor; e c) as formas
composicionais do gênero do acabamento. Esses três
fatores serão definidos em função do gênero e da esfera da
comunicação em que circulam.
Na visão de Bakhtin (2011), o enunciado se
caracteriza, acima de tudo, por um determinado conteúdo
semântico-objetal, ou seja, pelo conteúdo do objeto de
sentido do discurso. Assim, a relação valorativa do falante
com o objeto do seu discurso também determina a escolha
dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do
enunciado. Não podemos nos esquecer que a composição
e o estilo do enunciado não são determinados somente
pela relação valorativa do enunciador com o elemento
semântico do seu discurso e com o sistema linguístico, mas
também pela relação do enunciador com os enunciados
dos outros parceiros da comunicação verbal (discursiva).

Os gêneros do discurso

Os gêneros do discurso, sob um olhar bakhtiniano, se


repartem em dois amplos espaços linguageiros: as falas e
textos cotidianos, responsáveis pela motivação e
realização das atividades econômicas; e os textos e
discursos, responsáveis pela construção e determinação
do imaginário social, no âmbito do literário, jurídico,
religioso, político, administrativo. Ora, sabemos, pelas
lições de Mikhail Bakhtin (2016, p. 11), que o emprego
concreto da língua ocorre por meio de enunciados orais e
escritos. Gostaríamos de acrescentar, a esse uso da língua,
os enunciados digitais e sinalizados, de modo que
podemos incluir entre os gêneros primários simples as

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

interações das redes sociais, bem como os diálogos dos


surdos-mudos; tanto essas interações digitais, quanto
esses diálogos sinalizados também são absorvidos pelos
gêneros secundários complexos, como sites e narrativas
ficcionais em língua de sinais.
Como afirma Bakhtin (Op. cit., 15), o surgimento dos
gêneros discursivos secundários em um âmbito cultural
complexo, desenvolvido e organizado faz com que eles
incorporem e reelaborem os gêneros discursivos simples,
surgidos em condições de comunicação discursiva
imediata, e fazem com que estes percam o “[...] vínculo
imediato com a realidade concreta e os enunciados reais
alheios” (Ibid.). Nessa operação de transformação, um
simples contato conversacional, como “Olá! Como vai? “Eu
vou indo. E você, tudo bem?”, adquire uma nova forma e
significados, ao ser incorporado e reelaborado na Letra-
canção de Paulinho da Viola.
A compreensão dessas incorporações e reelaborações
do gênero discursivo primário em gêneros discursivos
complexos envolve o estudo detido dos três elementos: o
conteúdo temático, o estilo e a construção composicional.
O tema, o estilo e a composição ligam-se aos enunciados
relativamente estáveis, em seu campo de comunicação. Na
sequência, discutiremos o papel de cada um desses
elementos no efetivo uso dos gêneros de discurso.
No que toca ao tema, em Volóchinov (2017, p. 228-
229), remetendo aos constituintes do enunciado, o tema é
definido por aspectos extraverbais da situação, bem como
pelos elementos estáveis da significação. É uma ocorrência
única, irrepetível; um fenômeno histórico concreto. Em
outras palavras, é a própria enunciação dialógica da
linguagem e lança mão de “um complexo sistema

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

dinâmico de signos”, adaptado à situação histórica de dois


ou mais interlocutores. Interessa-nos, para nossa
discussão, essa delimitação do tema como uma
enunciação histórica e dialógica, em que se inserem os
falantes/ouvintes/locutores, detentores de signos e
significados linguísticos. Como afirma Cereja (2005, p.
202), “[...] o instável e o inusitado de cada enunciação se
somam à significação, dando origem ao tema, resultado
final e global do processo da construção de sentido.”.
Dessa forma, podemos compreender que os gêneros do
discurso dispõem de uma situação sócio-histórica e
enunciação concreta para sua existência, o que caracteriza
a importância do tema para sua realização.
O estilo, por sua vez, são os recursos linguísticos
usados no gênero discursivo por um falante, explícito ou
implicitamente marcado no texto. No tocante ao estilo, o
primeiro cuidado de Bakhtin (2016, p. 17) é distinguir os
gêneros propícios à individualidade do falante – os
gêneros secundários, como os literários – daqueles menos
propícios à individualidade – aqueles padronizados, como
formulários. O estilo não se distingue do tema e das
unidades composicionais: o modo como o falante/escritor
constrói o texto e sua relação com os ouvintes/leitores já
participam do estilo do enunciado no gênero discursivo
específico (Op. cit., p. 18). Nessa concepção, só estilo
quando houver gênero de discurso. Ainda segundo
Bakhtin (id., p. 20), nenhum fato de linguagem integra o
sistema da língua, se não for experimentado e elaborado
em estilos e gêneros discursivos.
Por essa razão, toda análise estilística pressupõe uma
definição da língua. Na estilística tradicional, a língua é
um sistema unitário de categorias gramaticais abstratas e

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

quem a fala é individualizado. A língua é um sistema


único de normas, sob um imperativo abstrato. Por essa
concepção de língua, a obra literária é um monólogo
fechado e autossuficiente, que não permite outros
enunciados e sem diálogo com outras obras. Por outro
lado, na estilística dialógica, a língua é uma cosmovisão
ideologicamente preenchida e constituída de dialetos e de
linguagens socioideológicas (grupos sociais, profissionais,
gêneros, gerações etc.); os processos de significação da
língua resultam da descentralização (várias línguas,
diferentes sujeitos) e da separação (não mais a unidade e o
indivíduo). Citemos Bakhtin (2015, p. 42):
Cada enunciação concreta do sujeito do discurso é um ponto
de aplicação tanto das forças centrípetas quanto das
centrífugas. Nela se cruzam os processos de centralização e
descentralização, unificação e separação, um basta não só a
sua língua como materialização discursiva individual como
também basta ao heterodiscurso, é seu participante ativo. E
essa comunhão ativa de cada enunciado no heterodiscurso
vivo determina a feição linguística e o estilo do enunciado
em grau não inferior à sua presença ao sistema normativo-
centralizador da língua única.

O romance, em termos estilísticos, deve ser estudado


como pluriestilístico, heterodiscursivo e heterovocal, que
pode ser decomposto como a) a narração direta do autor
(com variedades); b) estilização das formas orais e
cotidianas da narração; c) estilização da escrita cotidiana
(cartas, diário, testemunho etc.); d) diferentes formas de
discurso, não necessariamente literários (juízos morais,
filosóficos, científicos etc.); e) discursos dos personagens
individualizados. Essas unidades estilísticas integram o
romance, subordinados à unidade estilística superior do

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

conjunto: “o estilo do romance reside na combinação de estilos;


a linguagem do romance é um sistema de linguagens” (Op. cit.,
p. 29).
Essa unidade superior do romance determina os
elementos linguísticos (léxico, semântica e sintaxe) das
linguagens em diálogo. Nesse sentido, “[...] o romance é um
heterodiscurso social artisticamente organizado, às vezes uma
diversidade de linguagens e uma dissonância individual” (Ibid.).
O específico do estilo do romance encontra-se no
dialogismo de discursos (heterodiscurso) e das
linguagens:
O discurso do autor, os discursos dos narradores, os gêneros
intercalados e os discursos dos heróis são apenas as
unidades basilares de composição através das quais o
heterodiscurso se introduz no romance; cada uma delas
admite uma diversidade de vozes sociais e uma variedade
de nexos e correlações entre si (sempre dialogadas em maior
ou menor grau). Tais nexos e correlações especiais entre
enunciados e linguagens, esse movimento do tema através
das linguagens, sua fragmentação em filetes e gotas de
heterodiscurso social e sua dialogização constituem a
peculiaridade basilar da estilística romanesca, seu specificum.
(BAKHTIN, 2015, p. 30).

Com essa nova concepção de língua e estilística,


acreditamos que nos aproximaremos com mais
propriedade do tema, da composição e do estilo.
Beth Brait (2014, p. 267-271) defende uma estilística
dialógica, para a qual o discurso é constituído de três
fatores essenciais: autor, herói e ouvinte. O estilo tem mais
dois traços: avaliação e ouvinte. O estilo de um enunciado
está impregnado de entonação avaliativa e da atitude
avaliativa do autor do texto, que não é ideologia de
conteúdo, mas formas expressivas que organizam o

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

material artístico. No tocante ao ouvinte, ele ocupa uma


posição bilateral, que diz respeito tanto ao autor como ao
herói. (objeto do enunciado). Nesse conceito dialógico de
estilo, o texto, enquanto enunciado aberto, só será
compreendido como concreto, na medida em que seus
aspectos interiores, apontando para aspectos exteriores e
sendo vivenciados diferentemente, dependem de
encontros com outros enunciados, na cadeia infinita da
comunicação. Lá onde há texto, há sempre a fissura, a
necessidade de olhar para trás e para diante no universo
impregnado de enunciados. O texto contém o exterior no
sentido de que ele é formado pelos discursos advindos
desse exterior e que só ele, realizado, poderá refratar
quando for acessado. Então, seus três componentes –
autor, herói e ouvinte – estarão em ação, alterados pela
esfera de produção, circulação e recepção: alterados pelo
diálogo movente entre o interior formalizado e o exterior
ativo que o vivifica, tenciona, desloca, que
necessariamente o constitui como discurso social, cultural,
estético etc.
Já a construção composicional implica na construção
dialógica do gênero discursivo que ocorre por uma
atividade e uma compreensão de natureza avaliativa e
responsiva, ou seja, tanto o falante quanto o ouvinte
avaliam e se responsabilizam ativamente em suas
interações, através da alternância e da característica
composicional da conclusibilidade, ou seja, a alternância só
se realiza completamente, quando o falante/escrito disse
tudo o que tinha a dizer, e quando o ouvinte/leitor
compreende essa integralidade do dizer do
falante/escritor. O gênero do discurso está
composicionalmente completo quando se pode responder

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

a ele, possibilidade de compreensão ativa de


conclusibilidade, realizada por três elementos: a) a
exauribilidade semântico-objetal; b) o projeto de discurso
ou vontade de discurso do falante/escritor; c) as formas
típicas da composição e do acabamento do gênero. No
tocante ao terceiro elemento, o linguista russo explica que
essas formas são flexíveis, plásticas, livres e diversas. No
entanto, por essas construções composicionais serem
também estáveis, podemos prever o fim do discurso e seu
acabamento no processo da fala/escrita (BAKHTIN, 2016,
p. 35-39).
Tomando tais princípios, e usando a leitura de Helena
Nagamine Brandão (1997), defendemos que a construção
composicional de um gênero do discurso se caracteriza
pela interação autor/leitor, em duas instâncias: - o nível
pragmático, em que o autor seleciona as estratégias que
possibilitam a comunicação, inserindo o outro no
movimento de produção do texto para orientar sua fala,
em função do leitor, o que leva esta a mobilizar seus
conhecimentos para a compreensão ativa; e - o nível
linguístico-semântico, no qual o outro/leitor persegue as
indicações e pistas linguísticas para a elaboração do
sentido acabado do texto, dando concretude ao gênero de
discurso.
Nessas condições, o outro/leitor expande e filtra os
sentidos dos textos, com o objetivo de aproximar-se da
interpretação permitida para o gênero do discurso. Dessa
forma, o outro/leitor determina o acabamento da
construção composicional do gênero do discurso em uma
dupla conclusibilidade: 1 – orientação do autor para que
escolha as estratégias adequadas ao ato comunicativo; 2 –
interpretação pessoal do outro/leitor, em diálogo com o

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

autor, no domínio do gênero do discurso (BRANDÃO,


1997, p. 286-287).
Pela discussão desses conceitos, podemos afirmar que
os gêneros de discurso ocorrem em diferentes esferas de
atividade econômica, tomando como princípio suas
enunciações dialógicas, caracterizadas como temas, que
vão desde o senso comum até as mais elaboradas teorias
científicas, passando pelas ideologias cotidianas, mitos e
culturas; seus diversos e variados estilos, desde a
individualização da fala pessoal até os poemas mais bem
elaborados, passando por ensaios, sermões e oratória
política; seu acabamento textual, numa interação de
falante/autor e ouvinte/leitor, atravessado por outras
vozes e estratégias de escrita.

Palavras finais: situando a proposta de análise de


gêneros do discurso

Nesse momento, apresentaremos uma proposta de


caminhos para análises de gêneros do discurso, tomando
como referência a reflexão teórica contida nesse capítulo.
Para tanto, vejamos a figura a seguir.

22
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Figura 01 – Possibilidades para a análise de gêneros do discurso à luz


de Bakhtin e o Círculo

Os Gêneros do Discurso

As circunstâncias sociais de Os gêneros tomados como


produção, circulação e recepção conjunto de enunciados
dos gêneros do discurso: concretos:
- Quem enunciou?
- Quando, como e sob quais - Enunciados concretos: unidades
circunstâncias enunciou? da comunicação discursiva e elos
- Para quem enunciou? da cadeia complexa de outros
- Com quais propósitos enunciados.
comunicativos? - A estrutura é determinada pela
- Em que suporte circulou? situação social. Portanto, vincula-
- Que relações dialógicas mantém se ao histórico e ao ideológico.
com outros enunciados - A atividade discursiva exige um
(antecedentes e também previsíveis movimento para o outro.
do ponto de vista das possíveis - Atuam a partir de campos da
respostas a eles)? comunicação discursiva: o
- Quais axiologias são jurídico, o pedagógico, o
possivelmente convocadas por midiático, o religioso, dentre
autor e interlocutores? outros.

Os três elementos dos gêneros do discurso:

TEMA
- Aspectos extraverbais da situação comunicativa.
- Elementos estáveis da significação.
- Fenômeno irrepetível.

ESTILO
- Recursos linguísticos usados no gênero do discurso.
- Formas da língua constitutiva dos enunciados.
- Os modos ou os projetos de dizer/de argumentar/de valorar.
- Entonação avaliativa do autor.

CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL
- Construção dialógica do gênero.
- Composição que admite respostas a partir de: a) exauribilidade semântico-objetal;
b) projeto de discurso; e c) formas relativamente típicas de composição e de
acabamento do gênero.

Fonte: Os Autores

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

A Figura 01 – Possibilidades para a análise de gêneros do


discurso à luz de Bakhtin e o Círculo desenha-se como uma
proposta que abre caminhos para uma abordagem de
gêneros discursivos tendo como horizonte teórico-
metodológico as contribuições advindas da Teoria
Dialógica da Linguagem. Nesse sentido, algumas
observações podem, ainda, ser acrescidas à leitura da
figura. Dentre elas, acentuamos:
- As setas com sentidos duplos sinalizam um trabalho
analítico que está sempre em movimento de alimentação e
de retroalimentação de fluxos discursivos, de busca por
compreensões;
- O olhar específico para as circunstâncias sociais de
produção, de circulação e de recepção dos gêneros
funcionam como um olhar para as questões contextuais
que situam os discursos propagados pelos enunciados que
compõem os gêneros a partir de uma reflexão de
linguagem enquanto fenômeno histórico e ideológico;
- A compreensão dos gêneros associada à noção de
enunciado concreto reforça a assertiva de que a produção,
a circulação e a recepção inserem-se em um projeto de
dizer que marca e demarca processos de interações sociais
que, pelo discurso, promovem cenas de enunciação, isto é,
cenas de construções dialógicas de sentidos; e
- A visão panorâmica dos três elementos que
constituem os gêneros – tema, estilo e construção
composicional (vistos, inclusive, como não estanques) –
auxilia no entendimento de que o uso dos gêneros se
define pela necessidade de o homem interagir, via
linguagem, com e no mundo.
Em suma, esse capítulo funcionou, embora que
timidamente, como forma de ratificar as palavras de

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Bakhtin (2016, p. 68-69), para quem: “[...] a língua como


sistema tem uma imensa reserva de recursos [...]
Entretanto, eles só atingem o direcionamento real na
totalidade de um enunciado concreto”. Só atingem
efetivos usos quando o conjunto de tipos relativamente
estáveis de enunciados – os gêneros do discurso – banha-
se no fluxo discursivo da linguagem em movimento, em
efervescência.

Referências
BAKHTIN, M. M. A estilística atual e o romance. In.: ______. Teoria do
romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de
Paulo Bezerra. São Paulo: 34, 2015, p 23-45.
______. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e
notas de Paulo Bezerra. São Paulo: 34, 2016.
______; VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico da linguagem.
Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. ed. SP: Hucitec, 2010.
______. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BRAIT, B. A dimensão dialógica do discurso In.: OLIVEIRA, E. G.;
SILVA, S. (Org.). Semântica e estilística: dimensões atuais do
significado e do estilo. Campinas: Pontes, 2014, p. 263-279.
BRANDÃO, H. N. Escrita, leitura, dialogicidade. In.: BRAIT, B. (Org.).
Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas: Editora
da UNICAMP, 1997, p. 281-290.
CEREJA, W. Significação e tema. In.: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin:
conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005, p. 201-220.
VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem.
Trad. Sheila Grilo e Ekaterina V. Américo. São Paulo: 34, 2017.
______. Discurso na vida e na arte: sobre a poética sociológica. 1976.
Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza da edição
inglesa de TITUNIK, I. R. “Discourse in life and discourse in art –
concerning sociological poetics”. In: VOLOCHINOV , V. N.
Freudism. New York, Academic Press.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

ÉTICA E ESTÉTICA NA CRIAÇÃO DO TEXTO


ACADÊMICO
Os desafios encontrados pelo pesquisador bakhtiniano

Clara ROHEM1

O espaço de tempo que habitamos é sempre um lapso


entre o aqui e agora e um devir. Aquilo que somos é
sempre um limiar entre o que pensamos ser e a imagem
construída de nós mesmos socialmente. Neste aqui-agora
sou mulher negra, mãe, professora, pesquisadora,
escritora e leitora que sobrevive (como muitas outras
mulheres) a uma pandemia (talvez) sem precedentes na
história. É importante dizer-me neste lugar porque é
somente nele que pode ocorrer a problematização das
diversas situações que tem implicado diretamente na
feitura de minha pesquisa de doutoramento e, por
conseguinte, na escritura deste artigo em si.
É a partir do entrave entre pesquisa e pesquisadora,
apoiado no olhar de Bakhtin lançado sobre os Problemas
da Poética de Dostoievski, que surge a construção do
Lugar de Fuga, entendido, por hora, como o espaço de
conflito entre os variados papeis sociais que somos
levadas a assumir e as estratégias polifônicas de
(sobre)vivências que vão sendo criadas e registradas no
caminho. Estas estratégias, aqui, são sempre cunhadas na
arte, mais especificamente na literatura.
A arte literária é então um lugar amplo de saber que
pode “borrar” os limites entre a realidade, o tempo e a

1Doutoranda em Educação PPEGeduc – UFRRJ (2018); Mestra em Educação pelo PPEGeduc


– UFRRJ (2016); Pedagoga pela UFRRJ (2013); Professora de Educação Infantil SME Rio de
Janeiro; Rio de Janeiro – RJ. Brasil. clararohem@gmail.com

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

produção capital. Cada sujeito em sua relação com o


mundo e, portanto, com a cultura encontra (mesmo
inconscientemente) seu Lugar de Fuga. Este lugar não
pode, senão, entrelaçar-se a arte, esta a quem, ao longo dos
séculos, vem sendo colocada (principalmente pela
sociedade capitalista) como um excedente do capital, na
medida em que a ela é destinada o lugar do ócio e da
improdutividade.
Não posso deixar de registrar o Brasil no ano de 2020,
onde, parte de nós tenta continuar a vida no meio de uma
pandemia e após um golpe de Estado (que mais cedo ou
mais tarde a História há de reconhecer como tal) e outra
parte de nós regozija-se com o horror e caos implantado
após a sabotagem sofrida naquele fatídico 17 de abril de
2016, quando a presidenta eleita Dilma Rousseff foi
covardemente destituída de seu cargo, num circo de
horror midiático nunca antes visto. A democracia mais
uma vez desmoronou à nossa frente. Para a maioria de
meus companheiros, já no ano de 2019, seguiram-se dias
de luto e luta. Além do mais, vimos horrorizados a notícia
do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco
estampar as manchetes de jornais e ocupar os top trends
das mídias sociais. Tentamos, cada um à sua maneira,
denunciar o que nos passava.
A História também há de demonstrar que não
obtivemos o sucesso desejado: em outubro de 2018, em
meio às turbulentas eleições no país, chega ao poder Jair
Messias Bolsonaro, o presidente democraticamente eleito
mais antidemocrático que o Brasil poderia vislumbrar
subir as rampas do planalto. Chegara ao poder a
representação de tudo o que não queríamos acreditar ser
possível existir como ideologia em pleno século XXI: o país

28
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

retornava a passos largos a tempos fascistas,


escancaradamente homofóbico, racista e anticultural.
Todos nós que entendemos alguma coisa do que
acontecera morremos um pouco e todos nós precisamos
encontrar uma maneira de continuar. Foi necessária uma
reinvenção para que fôssemos capazes de seguir. A busca
por esta reinvenção fez com que em tão pouco tempo
levantássemos muitas bandeiras diferentes, embora todas
estivessem ideologicamente interligadas. Vivemos em
menos de três anos o “não vai ter golpe!”, o “Fora Temer”,
o “Marielle Vive”, o “Ele Não”, o “Quem mandou matar
Marielle?” e por fim (quando o terror já estava
consumado) o “Ninguém solta a mão de ninguém”.
Mais do que slogans de luta, penso que cada frase
anteriormente citada é um lugar de luta, de fala, um lugar
de fuga, mas também a assunção de uma ética discursiva.
Há que se pensar sempre na ética presente nos discursos,
pois,
dentro de cada discurso, disse Bakhtin, há uma luta por
significado, frente a qual o autor pode adotar distintas
atitudes. Pode adotar por abafar ou dar desfecho ao diálogo,
desencorajando qualquer resposta externa e assim
impregnando o discurso monologicamente. Mas pode também
enfatizar a chamada bivocalidade do discurso: exagerando
um dos lados (como na estilização); opondo entre si duas ou
mais vozes enquanto favorece uma delas (como na paródia);
ou aplicando uma categoria especial, bastante sutil, que
Bakhtin chama de “discurso bivocálico ativo”, que implica a
condução do debate no interior de um discurso de modo que
o lado parodiado não aceite a ofensa sem protestar, mas, ao
contrário, lute, resista e tente subverter a situação.
Dostoievski tinha uma excepcional habilidade no trato desse
tipo astucioso de discurso. (EMERSON, 2003, p. 162-163.
Grifos do autor)

29
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

O que Bakhtin inaugura nos estudos da estética e da


ética presente nos romances dostoievskianos é a sensível
percepção de que Dostoiévski foi capaz de contar o
indivíduo como o outro que ele é; de mostrar a
“individualidade do outro, sem torna-la lírica, sem fundir
com ela sua voz e ao mesmo tempo sem reduzi-la a uma
realidade psíquica-objetificada” (BAKHTIN, 2008, p. 11-
12).
Voltando-nos para a pesquisa a discussão que
atravessa todo o texto Problemas da Poética aponta para o
grande desafio de cada pesquisador/pesquisadora: o
registro. Tão importante como decidir o que pesquisar é o
ato de como comunicar o que foi pesquisado. Olhar como
pesquisadora para o problema da poética me transporta
então, diretamente, para a decisão estética e, portanto,
ética, da autoria.
Como pesquisadora, tenho me colocado então como
fugitiva. Olho para o mundo como quem foge. Mas
quando me coloco como uma fugitiva e falo deste lugar
cuido para que esta fuga não seja entendida como a fuga
de ratos desordenados correndo pelos esgotos, mas desejo
que meus pares percebam que falo (e vivo) uma fuga-
enfrentamento, como os romanos, em formação tartaruga:
embora não apresente tanta mobilidade, é um tanto eficaz
em seu caráter defensivo. Estamos em guerra e nestes
tempos, é tão importante defender-se como atacar. É
preciso sobreviver para só então, viver.
Podemos pensar o quão urgente faz-se necessário que
assumamos um arquétipo cada vez mais polifônico em
nossas pesquisas. Em tempos como estes em que vivemos
(e que sempre vivemos) parece-me indissolúvel, antiética
e ingênua a ideia de que realmente é possível realizar uma

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

pesquisa neutra e unívoca: contudo, a não-neutralidade


não pode suplantar a presença da consciência humana
(que existe para além e apesar de mim). Para tanto é
necessário que nos aproximemos da polifonia inaugurada
por Dostoievski e reconhecida por Bakhtin e assim
deixemos de desejar a coroa do saber-poder muitas vezes
ocidentalizado, que centraliza e reclama para si toda a
verdade.
Desta forma, o pesquisador que metodologicamente
procura abordagens bakhtinianas, tal qual como nos
romances polifônicos de Dostoievski, procura a
coexistência entre as palavras, entre herói e autor, entre
sujeito que pesquisa e sujeito pesquisado; este
pesquisador sabe que a pesquisa descrita será coabitada
por uma multiplicidade de pontos de vista e por várias
consciências igualmente significativas. Ao assumir este
risco iminente, o pesquisador dá um passo em direção a
autoria, mas sempre com o compromisso de não suplantar
sua vontade de dizer no lugar daquele ou aquela que
realmente diz. E como foi que aquele pai retornou à escola
depois que tudo o que se passou ao longo daquele feriado?
Quando acordou estava caminhado por aquelas ruas
como se jamais as tivesse visto. Olhou em redor e não viu
viva alma. Escutava meio abafado o som de conversas e o
barulho do vento quente passando pelas poucas árvores
que havia naquele lugar. Olhou para seus pés e viu que
estava descalço. Suas roupas o incomodavam
sobremaneira e uma folha seca voou em sua direção. Sem
saber o que sentia, sem entender o que estava
acontecendo, andou. Andou muito. Sempre em frente.
Ouvia as batidas de seu coração, sua respiração ofegante e
o barulho do vento quente sussurrando coisas

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

incompreensíveis ao seu ouvido. Avistou aquelas grades


que por um segundo lhes pareceram infinitas. Sem sentir
os pés, sem sentir o coração, sem pulsar seu espírito,
caminhou. As vozes das crianças ficavam mais perto a
medida em que se aproximava das grades. Por um
milésimo de segundo sentiu esperança. Correu o mais
rápido que pode buscando alcançar as vozes que vinham
de dentro da grade. Mas ao chegar bem perto não viu
ninguém. Agarrado àquelas grades azuis gritou. Chamou
o Menino o mais alto que pode.
E o Menino respondeu. E seu coração estava
transbordante novamente porque estava lá o menino, o
seu Menino. Ele saia feliz com os colegas para brincar no
pátio da escola. E acenava para o pai, satisfeito, contente,
orgulhoso da beleza do menino! As bochechas rosadas de
tanto correr, o corpinho suado e as mãozinhas pequenas
limpando o suor que escorria pela testa e empretecia o
pequeno rosto. Era mais um dia na vida do Menino. Era
mais um dia na vida do pai.
Todos os dias eram assim. O pai chegava a escola
carregando o Menino preso a sua corcunda. Chagava um
pouquinho antes do horário de entrada para que
pudessem aproveitar juntos o parquinho da escola. E
Conversavam. Riam. Corriam. Algumas vezes o Menino
tropeçava e caia. O pai limpava seus joelhos e fazia caretas
para que o menino deixasse de chorar, e o encorajava a
brincar mais um pouquinho. Enquanto o Menino
brincava, o pai conversava com os professores e os
funcionários. Fazia amizade. Oferecia seus préstimos para
ajudar a escola. Achava importante colaborar para que
tudo fosse bem naquele ambiente que seu filho gostava
tanto de estar.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Era aquela quarta-feira véspera do feriado de Páscoa.


A escola estava feliz e agitada. Tinha cheiro de chocolate e
a expectativa da visita do coelhinho. Os pais estavam
ansiosos pelo sorteio de uma cesta de artigos de chocolate.
As crianças circulavam pela escola mostrando aos pais
suas produções. E o Menino estava lá. O pai também
estava. Ofereceu-se para fazer manutenção nos aparelhos
de ar-condicionado de toda a escola. Deixou que o Menino
entrasse na sala de aula, beijou-lhe a testa e foi buscar suas
ferramentas de trabalho. E o dia transcorreu tranquilo e
feliz.
Naquela sexta-feira Santa a manhã pareceu menos
agradável do que todas as outras manhãs. Pareceu que o
vento gostava de fazer pequenos remoinhos como a poeira
e as poucas folhas espalhadas pela rua; pareceu que cada
poeirinha queria mesmo grudar nas pálpebras da mãe do
Menino e impedi-la de ver o mundo depois do roda–roda
inventado pelo vento.
Aquela era realmente uma manhã estranha. Apesar
do muito azul e das poucas nuvens no céu; apesar do
solzinho agradável para corar qualquer pele; apesar do
som quase silencioso dos bichinhos passeando pelo
pequenino jardim que enfeitava a entrada da casa do
Menino, havia preocupação naquela mãe. A febre que
tomara repentinamente o Menino a impedira de ver a
beleza de seu jardim.
Não que fosse um jardim como aqueles que se vêm
nos filmes norte-americanos, com suas flores muito
pomposas e cercas naturais que dividem uma casa e outra,
como se ninguém se preocupasse com a segurança do lar,
ou como se confiassem extremamente em todos os
moradores do bairro a ponto de achar que jamais seriam

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

roubados, ou que sua grama não seria pisoteada. Não.


Longe disso. Era um jardim suburbano em que as
Cravinas, Hibiscos e Manjeronas precisam brigar com as
Ervas- Daninhas para crescerem e serem vistas. Era um
jardim com muros de tijolos à mostra que abrigavam com
muita satisfação todo lodo acumulado da chuva e muitos
Moluscos preguiçosos em seu rodapé. Era um jardim de
Gente Humilde2 que espalha “pela varanda, flores tristes e
baldias/ Como a alegria que não tem onde encostar”, como
todos os outros daquele bairro ermo e ocre, pobre e
visceral, poético e nostálgico.
Entre os moradores havia quem dissesse que o jardim
da casa do menino era o mais bem cuidado daquela rua. A
mãe do Menino, quase sempre silenciosa, dispensava
cuidados ao filho e as suas flores e participava também da
vida escolar de seu filho. Era o que se podia dizer, uma
mãe zelosa. Preocupou-se então com aquela febre
persistente. Deixando de lado as flores, as ervas daninhas
e seus afazeres domésticos, encaminhou-se como o
Menino ao médico. Foram horas de espera. Horas de
angústia. Via a bochecha do Menino corar e, dessa vez, não
fora tão afortunada quanto pai do Menino: via suas
bochechas rosadas não pela brincadeira, mas pela febre
que avançava sem descanso. Olhou para o lado e viu
outras mães na mesma situação. Sentiu um aperto no peito
e fez força para a lágrima não cair. Olhava para seu
Menino tão indefeso naquele momento... Sentia vontade
de gritar, de brigar, de invadir a sala médica. Mas
resignou-se a espera; resignou-se a reza silenciosa.

2Composição de Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, que recebeu letra póstuma de Vinícius
de Moraes e com uma pequena contribuição de Chico Buarque, alcançando maior sucesso
em 1970.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Enfim o Menino fora atendido e medicado. O coração


da mãe sossegou naquele instante. Retornou a seu lar com
o Menino nos braços sem um diagnóstico preciso sobre o
que lhe acometera. Voltara para sua rotina silenciosa, com
algum alento no coração. Mas a sexta-feira Santa passara e
o Menino piorara muito desde que estivera no hospital. A
mãe santificava em pensamento o fruto de seu ventre.
Rezava. E chorava.
Sábado de Aleluia. A enfermaria lotada. Novamente
a longa espera. Novamente o desespero. Já não estava
resignada. Gritava. Encontrava voz no desespero.
Implorava por um atendimento urgente. A face do menino
não estava mais corada. Empalidecera. Os olhos não mais
abriam. O pai argumentava com os enfermeiros. A mãe
gritava e gritava. Até que houve silêncio. A médica abrira
a porta do consultório e recebera a mãe com o Menino nos
braços. Sentada naquela cadeira gelada, antes que a
médica pudesse examinar o Menino, o pequeno
desfalecera. A médica limitou-se a balançar a cabeça
negativamente. Não havia mais nada que se pudesse
fazer. Não havia explicação. Só havia silencio, dor, e o
rosto pálido do Menino. Só havia seus três anos e a
promessa de um futuro encerrado ali.
O pai julgara ser aquilo tudo um sonho. Cansado de
olhar para seu Menino imóvel; impossibilitado de olhar
nos olhos de sua jovem esposa, voltou-se a si mesmo e em
tudo o que aquele Sábado de Aleluia o transformara para
sempre. Todos os projetos e sonhos; toda véspera feliz de
quinta-feira Santa. Tudo silenciado. Acabado. Prestes a ser
jogado no fundo da terra.
Quando acordou, enfim, estava caminhado por
aquelas ruas como se jamais as tivesse visto. Olhou em

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

redor e não viu viva alma. Escutava meio abafado o som


de conversas e sentia o vento tocar seus cabelos brancos
como fosse um afago. Não via mais seus pés. Sentia-se nu.
Nenhuma folha voava. Nenhuma folha desprendida
rolava pelo chão. Sabia bem a dor que sentia. Era ele, sua
mulher e seu Menino aquela Gente Humilde. Sentindo seu
peito se apertar andava. Andava muito. Sempre em frente,
mesmo que não houvesse mais um caminho certo a seguir.
Ouvia as batidas de seu coração, sua respiração ofegante e
o barulho do sorriso do menino prometendo muita vida
em seus ouvidos. Avistou aquelas grades que por um
segundo lhes pareceram infinitas. Sem sentir os pés, sem
sentir o coração, sem acreditar no milagre da Páscoa,
caminhou. As vozes das crianças ficavam mais silenciosas
na medida em que se aproximava daquelas grades. Não
houve um milésimo de segundo para sentir esperança.
Arrastou-se o quanto pode para chegar aquela escola. E lá
estava ela: fechada, silenciosa, tanto quanto seu Menino.
Sem ter voz para gritar, sentou-se em frente aquele portão
e chorou copiosamente a dor da perda de seu Menino. Era
domingo de Páscoa quando despediu-se do seu eterno
Menino. Era segunda feira pela manhã quando retornou
com sua jovem esposa aquela escola, sem seu menino na
corcunda e narrou, com a voz embargada e muitas
lágrimas nos olhos todas estas coisas para quem quisesse
ouvir.
Depois te tudo o que aquele pai me contou não fiz
outra coisa senão fugir. Volto a dizer que, do lugar que
vejo fugir não é o mesmo que se esconder. Fugir é estar em
constante movimento, é buscar afastar-se das coisas que
nos fazem mal e ir incansavelmente ao encontro de algum
Oásis. É escalar montanhas, arranhar-se em meio ao caos,

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

lançar-se muitas vezes no abismo na (in)certeza que existe


um lugar seguro e feliz, onde as coisas podem acontecer
de forma digna para todos nós. A fuga é o caminho da
Utopia de Galeno; fugir é sair do lugar estabelecido por
outros para si e caminhar tantos passos quanto necessários
para habitar o seu lugar no mundo; fugir é entender que a
consciência é também feita e habitada por sentimento.
Quase tudo o que nos move é afetivo. O ser humano
é um ser de inteligência e com ela cria grandes coisas, mas
arrisco-me a dizer que se não fosse a capacidade que ainda
temos de tocar e sermos tocados com as coisas e por
outros, quase nada haveria sido criado. As melhores coisas
foram criadas por amor ao outro (quero crer), pelo seu
bem estar, pela vontade de estar perto: as vacinas, as curas
para doenças, o cobertor para o frio, a carta, o telefone, os
meios de transporte... maquinas e utensílios que
melhoram a vida das pessoas e que também aproximam
pessoas. As piores coisas criadas também deve ter seu
apelo afetivo (porque afetividade é tudo aquilo que nos
toca e afeta, positiva e negativamente): as bombas, os
materiais bélicos, as narrativas meritocratas, a de racismo
e da xenofobia... tudo criado por grupos que sentiram-se
afetados (neste caso negativamente) por outros grupos;
por pessoas que desejaram se sobrepor a outras e
desejaram o poder para si. Penso no afeto de Espinosa:
aquele que nos interfere de várias formas, mesmo quando
nos tornamos indiferentes.
Eu sou aquela que corre. Corro para longe da
consciência puramente objetiva. Sou A fugitiva. Fujo dos
lugares a mim destinados. Fujo das certezas, das
categorias de análises que insistem em enquadrar as
pessoas como coisas que podem ser vistas como peças de

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

museu; fujo de mim mesma nos momentos em que sou


tomada pelo medo paralisante frente ao desconhecido;
fujo dos estereótipos de mulher, mãe, professora,
pesquisadora (enunciadas no começo deste texto) e tantos
outros papeis sociais que vão sendo a mim impregnados
feitos naftalinas nas velhas roupas das quais não posso me
desfazer. Por que não posso jogar estas roupas fora? Por
que sou obrigada a vestir o velho casaco furibundo da
certeza? Eu quero fugir nua e afrontar as regras da
existência: sentir o frio, o calor e a dor e depois poder
contar tudo o que senti, vivi e vi, enquanto percorria os
caminhos da reinvenção. E eu, que nada sei, só posso me
reinventar na literatura.
Não há nada nessa literatura que possa estar isolada
do mundo. Não pode estar esta literatura isolada neste
mundo tão particular que habita a cada um de nós, mas
que não se encerra em nós: avança sobre as coisas do
mundo e encontra outros, que também vive suas
experiências situadas num espaço-tempo que só pode ser
compreendido quando pensado contextualizadamente.
Este lugar histórico, no entanto, não tem que ver somente
e exatamente com a linha do tempo, com cartografias e
etnografias, mas também com a história de si, com a
história de cada indivíduo e de sua subjetividade (ainda
que a história não seja algo particular, mas algo que, como
um prisma reflete na sociedade na mesma medida em que
a história de dada sociedade reflete no sujeito). Existe uma
implicação pessoal no registro e na busca pela história.
A sensação que tenho é que, muitas vezes somos
levadas a escrever com certa superioridade e indiferença.
Mas uma fugitiva sabe que é difícil estar indiferente
quando percebe que fugir é também um exercício (penoso)

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

de seleção. Selecionar o que levar, o que deixar, o que se


esforçar para não esquecer. As memórias... Ah! E as
memórias? Aumentam mais e doem mais e nos fazem
outra pessoa cotidianamente. Faço força para não
esquecer.
Não quero deixar nenhum rosto pelo qual passei sem
forma. Não quero deixar nenhuma voz a qual ouvi
abafada. Então me esforço mais e mais e mais para
enxergar através do véu do tempo as coisas que se
passaram.
Todas as coisas têm um rosto. Um gosto. Sente?
É manga! Tirada do pé. Não o cheiro da manga em si:
mas do sol, que bate na folha e da seiva que escorre pelo
pequeno talo da manga de vez... Sente o gosto da manga?
Sente o cheiro? Agora tem leite. Manga com leite.
Minha avó disse:
- Menina! Não beba essa coisa porque manga com
leite faz mal!
Acho que ela não sabia que eu estava
demasiadamente acostumada com as coisas que me fazem
mal. O que não mata fortalece. Mas também dói! Corrói. E
a gente faz força para esquecer enquanto foge. Mas já é
tarde! Fiz um pacto para lembrar de todos os rostos de
quem pude ver a alma através dos olhos; agora fujo como
Fausto e esqueci as palavras mágicas do desfazimento das
memórias, mas isto é algo que não importa mais. As coisas
vão adquirindo certa desimportância ao longo da rota de
fuga.
Então, o que é que me afeta em relação ao outro que
me faz necessitar da escrita enquanto fujo? Talvez seja
esta uma pergunta fundamental para quem se pretende
pesquisador a partir dos estudos bakhtinianos. Por mim,

39
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

decido seguir escrevendo como uma fugitiva: anotando


coisinhas em pequenos pedaços de papéis e me esforçando
para contar o que senti ao passar pela Coisa, mais do que
descrever a própria Coisa.
Busco o compromisso inadiável de, a partir das
experiências narradas, dos encontros com os sujeitos
destas experiências, e, a partir da leitura de Bakhtin sobre
a contribuição da literatura de Dostoievski e a partir da
literatura de tantos outros fazer de meu lugar de fuga o
local de transbordarmento para além das fronteiras do Ser,
do Estar e do Saber. A partir deste pressuposto, faz-se
urgente uma postura de autoria frente as pesquisas que
abarque as mais diversas formas de consciência humana
e, paralelamente a isto, uma escrita que valide que “no
mundo ainda não ocorreu nada definitivo, a última
palavra do mundo e sobre o mundo ainda não foi
pronunciada, o mundo é aberto e livre, tudo ainda está por
vir e sempre estará por vir” (BAKHTIN, 2008, p.167).

Referências
SILVA, A. P. Conhecimento e afetividade em Espinosa: da reforma da
inteligência à potência do conhecimento como afeto. Marília:
Universidade Estadual Paulista, 2012, p. 86-90.
BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de
Paulo Bezerra. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p.
11; 167.
EMERSON, C. Os cem primeiros anos de Mikhail Bakhtin. Tradução
de Pedro Jorgesen Jr. 1ª e. Rio de Janeiro: Difel, 2003, p. 162-163.

40
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

BAKHTIN E SEU CÍRCULO NA EDUCAÇÃO FÍSICA


ESCOLAR
Apontamentos para o ato responsável e alteritário

Daniel Batista SANTANA1

A Educação Física escolar, algumas vezes, se volta


para o desenvolvimento do conteúdo esporte de maneira
excessiva. O problema está quando ele não agrega os
objetivos educacionais da instituição escolar, e quando é
orientado pelo desenvolvimento exclusivamente
tecnicista, assim como pela segregação de gêneros para
determinadas práticas corporais, sendo que tal
desenvolvimento conduz a aula a um teor de
esportivização tecnicista e, em consequência, a torna
seletiva.
Estas problemáticas estão apoiadas em uma prática
pedagógica tradicional, onde as finalidades pedagógicas
desta área na escola não dialogam com objetivos de
formação humana e, quando estes objetivos não são claros
“a Educação Física perde seu valor pedagógico e passa a
ser tratada pelos demais professores e pelos gestores
escolares apenas como momento para os aprendentes
extravasarem energia, um momento de laissez-faire, de
deixar fazer” (BETTI; GOMES-DA-SILVA, 2019, p. 37).
Além disso, esta problemática do desenvolvimento
tecnicista, quando analisada mais pormenorizada,
também envolve uma fragilidade do pensar no outro –
alunos e alunas - nas aulas de Educação Física, ou seja,

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores da Universidade


Estadual da Paraíba – PPGFP-UEPB, Montadas, Brasil, danielslid25@outlook.com

41
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

existe uma fragilidade da relação alteritária na relação de


ensino e aprendizagem. E, a problemática da prática
pedagógica tradicional também diz respeito a
responsabilidade docente, muito embora esta discussão é
complexa, pois envolve desde a formação inicial e
continuada às políticas públicas de valorização da
educação básica. Contudo, não se pode omitir a
responsabilidade docente no que diz respeito a sua prática
pedagógica.
Portanto, situados algumas problemáticas na
Educação Física e suas relações com as categorias2 teórica
alteridade e ato responsável. Trata-se agora de situar o
objetivo deste capítulo que objetiva estabelecer
aproximações reflexivas do conceito de alteridade e ato
responsável para a Educação Física escolar. Este texto está
subsidiado metodologicamente pela pesquisa
bibliográfica que, de acordo com Gil (2008), caracteriza-se
pelo tipo de pesquisa que partir da exploração de material
já elaborado. O autor menciona a especificidades de
pesquisas que são exclusivamente bibliográficas, a qual é
o caso desse estudo. Nesse sentido, a fonte primária foi a
obra intitulado “Para uma filosofia do Ato Responsável”
de Bakhtin (2010) a qual foi a analisado duas categorias
teóricas na busca por encaminhar reflexões para a área
pretendida.

Alteridade e Educação Física Escolar

Ao contextualizar, Bakhtin e seu círculo, foram um

2 Essas duas categorias foram escolhidas para facilitar o processo de redação do texto,
contudo cabe bem ressaltar que os conceitos bakhtinianos não são estanques, mas
entrelaçados em um mesmo fio de enfoque: a vida humana. Portanto, em alguns momentos
em específico, outras categorias temáticas de Bakhtin e Seu Círculo são apresentadas.

42
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

grupo de intelectuais advindos de diferentes áreas de


conhecimento - que vai de biólogo até mesmo a pianista.
Eles e elas se reuniam na Rússia com regularidade entre
de 1919 a 1929; tangenciavam discussões sobre as mais
diversas temáticas. Uma das suas contribuições mais
fervorosas é a formulação da Filosofia da Linguagem, a
qual toma como fio condutor de suas reflexões as
seguintes questões: “a) tema da contraposição eu/outro; b)
ao componente axiológico intrínseco ao existir humano e;
c) à questão da unicidade e eventicidade do ser”
(FARACO, 2009, p. 18).
Bakhtin e seu Círculo, desenvolveram uma corrente
teórica que centraliza o humano em seus conceitos
basilares e na compreensão da vida, suas teorias
influenciam práticas alicerçadas no homem enquanto ser
contraditório que depende do outro não para se
complementar, mas para ficar menos incompleto. A
proposta, toma o pressuposto que “o mundo e a sociedade
têm como centro o homem. Esse homem é um EU em
relação a um OUTRO. Essa relação se dará por meios
dialógicos” (DI CAMARGO, 2015, p. 52).
O eu, em Bakhtin, não é um ser egoísta, todavia
compadece da necessidade do outro para atribuir
significado e razão a vida. Em outras palavras, “viver a
partir de si não significa viver para si” (BAKHTIN, 2010,
p. 108). O eu, em Bakhtin, não se assemelha a algum tipo
de individualismo, em vez disso, “o ‘eu’ se torna mais
forte no ‘nós’ na medida em que agimos dialogicamente,
ou seja, na medida em que dialogamos com os outros’’
(MIOTELLO; ARAÚJO; DIAS, 2019, p. 220).
Entendendo que

43
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

nunca se está em uma estrada só, pois a humanidade vive


em encruzilhadas de muitas estradas de possibilidades
diversas, em que nunca nada é só um. Sempre há dois ou
mais. Isso é a base da ALTERIDADE onde um sujeito que
não responde não participará nunca da construção dos
sentidos. (DI CAMARGO, 2015, p. 52).

Antes de falar na alteridade, é necessário retomar a


outro conceito basilar em suas obras; a dialogia, que está
intrinsecamente incrustado no fazer humano, pressupõe o
homem (Eu) na constante relação com o outro, isto é, são
corpos que se encontram em um mesmo espaço e com
diferentes lugares de fala, a qual culmina-se na relação
dialógica, esta, por sua vez, também pode se caracterizar
por conflitos de ideias e pontos de vista antagônico sobre
o objeto (DI CAMARGO; SOUZA, 2019).
Este olhar para o outro, numa perspectiva alteritária
pode contribuir para um processo de reflexão no âmbito
da Educação Física escolar, pois as práticas corporais desta
área, enquanto linguagem banhada no signo – sobretudo
no signo não verbal, envolve compreender os sujeitos em
suas relações dialógicas e interativas com o mundo e com
o outro.
É importante mencionar que o diálogo não acontece
apartado dos processos de interação social, pois é
fundante do processo da relação humana,
compreendendo a mesma como “unidade do fluxo
contínuo da vida comunicativa e verbal [ou não] que se dá
na sociedade; como participante de outras formas de
comunicação, de um processo de interações e de trocas de
formas” (DI CAMARGO; SOUZA, 2019, p. 12). A
interação nunca se caracteriza pelo viés de neutralidade
devido ao componente axiológico/valoração é intrínseco

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

ao homem, pois não existe lugar para um olhar e/ou gesto


desinteressado, o mesmo compõe uma teia de relações
valorativas que é banhada nas águas da ideologia (DI
CAMARGO; SOUZA, 2019)
Nesse sentido, todo processo de diálogo mediado pela
interação enquanto acontecimento está enviesado de
caráter ideológico; atravessado de interesses e
contradições. Dessa forma, chega-se ao conceito de
alteridade, que diz respeito ao horizonte de contemplação
responsiva do “eu-para-mim, eu-para-o-outro e do outro-
para-mim” (BAKHTIN, 2010, p. 23), compreendendo essa
inter-relação partir de diferentes centros valorativos que
confluem para um rico diálogo (BAKHTIN, 2010).
A alteridade diz respeito, grosso modo, a essa
necessitância do outro no processo de interação e
formação humana.
A alteridade dentro do conhecimento do Círculo de Bakhtin
é algo crucial. É na relação com esta que se constituem os
indivíduos e acontece a refração do ser no outro, que vai
refratar-se. Quando um indivíduo se constitui, ele alterar-se-
á instantaneamente, num processo que não vai surgir de sua
consciência, pois é um fenômeno que se dá pelo meio social,
dentro das diversas interações que esse sujeito vive, no uso
de suas palavras e escolha de signos. Como sujeitos, nos
constituímos e sofremos uma transformação por causa do
outro. (DI CAMARGO, 2020, p. 9).

A Educação Física escolar pode refletir sobre esta


necessitância do outro no processo de ensino
aprendizagem, considerando este outro em sua
singularidade, a qual contém um centro valorativo
diferente do “eu” no processo alteritário. Estar atento a
escutar esse outro e, as possíveis problemáticas que o

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

cotidiano escolar apresenta para se logra uma alteridade


centralizada na potencialidade humana, acredita-se que se
caracteriza como um desafio não só para a Educação Física
Escolar, mas para todas as áreas de conhecimentos da
escola, pois de seus lugares singulares, tais áreas tem
autonomia de firmar suas práticas educativas numa
perspectiva alteritária. É pertinente para o momento
também compreender que “a autonomia não significa
necessariamente caminhar sozinho”, como afirma
Imbernón (2016, p. 167).

Ato Responsável e Educação Física Escolar

A obra intitulada “Para uma filosofia do Ato


Responsável” está pautada em uma filosofia com interesse
na moral. Assim, em outras palavras, Bakhtin compreende
o sujeito enquanto singular, e essa singularidade
encaminha ao dever a um ato responsável e responsivo
perante o evento irrepetível da vida (BAKHTIN, 2010;
BRAIT, 2013). Nessa perspectiva o ato é
responsável e assinado: o sujeito que pensa um pensamento
assume que assim pensa face ao outro, o que quer dizer que
ele responde por isso [...]O ato é um gesto ético no qual o
sujeito se revela e se arrisca inteiro. Pode-se mesmo dizer
que ele é constitutivo de integridade. (BRAIT, 2013, p. 22 -
24).

Nesse ínterim, é feito o convite a pensar a linguagem


corporal expressa pelos movimentos dos aprendentes e
pelos professores enquanto um ato responsável e
responsivo, encarando a aula como um evento irrepetível.
Compreender a linguagem corporal dessa forma
encaminha reflexão sobre as singularidades de corpos e o
agir desses corpos sempre serão únicos, essa unicidade

46
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

encaminha o não álibi – sem desculpas- sobre a


eventicidade da aula. Ou seja, existe a necessitância do ato
de se movimentar para existir a vida, todavia esse
movimento é um dever do corpo/sujeito em sua
singularidade, exigindo responsabilidade perante a
existência do outro enquanto corpo.
Sobre o movimento como ato, pode enxergar que
“tudo em mim – cada movimento, cada gesto, cada
experiência vivida, cada pensamento, cada sentimento –
deve ser um ato responsável; é somente sob esta condição
que eu realmente vivo, não me separo das raízes
ontológicas do existir real” (BAKHTIN, 2010, p. 101).
Bakhtin (2010), nessas palavras, deixa claro a
dimensão humana a qual enxerga o homem, como um ser
ativo que age corporalmente no mundo de maneira
responsável e responsiva. Todavia, também existe a
possibilidade do homem negar-se enquanto sua
responsabilidade perante o ato, isso implica em abstrair-
se da responsabilidade que compete ao sujeito único,
gerando um empobrecimento no existir evento e o sujeito
configura-se como um impostor.
Portanto, “compreender um objeto significa
compreender meu dever em relação a ele (a orientação que
preciso assumir em relação a ele), compreendê-lo em
relação a mim na singularidade do existir-evento”
(BAKHTIN, 2010, p. 66). Nesse contexto, pode
intercambiar reflexões para o âmbito da Educação Física,
pois atualmente nota-se algumas proposições de ensino
que superam uma visão cartesiana da área. Essas
proposições pedagógicas apontam para mudanças
significativas na área. Embora que as mesmas por si só não
garantem tais mudanças, pelo motivo que elas só orientam

47
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

as ações pedagógicas dos docentes quando eles o


assumem responsavelmente e responsivamente enquanto
ato. Em outras palavras, “proposição com validade teórica
[...] não são suficientes para fundar meu ato: tenho de
assumi-los do meu interior; tenho de reconhecê-los e opor
minha assinatura a eles. Ou seja, sem a disposição moral
da consciência individual, nada feito”. (FARACO, 2010, p.
155).
Nessas reflexões fica nítido que, mesmo em uma
gama de proposições teóricas e normativas de valores
universais, sem a responsabilidade do sujeito perante essa
gama de abstrações acaba-se por deteriora-se no tempo-
espaço.
Afunilando-se mais uma vez para o contexto escolar
da Educação Física, pode-se compreender a aula como um
evento que envolve considerar que cada minuto da mesma
é como se fosse um grão de areia de uma ampulheta que
se esvai no tempo-espaço. E o movimento corporal que
nela expressos pelos e pelas docentes e alunos e alunas,
estão resguardados aos sujeitos únicos, por conta desse
motivo não existe álibi para negar sua posição responsável
e responsiva enquanto movimento na prática pedagógica.
Propõem-se uma leitura e/ou releitura de Bakhtin
compreendendo que o sujeito que ele tanto menciona é,
acima de tudo, encarnado no mundo, compreendendo
que o pensamento que ele fala depende indubitavelmente
da dimensão corporal do homem, compreendendo que a
valoração também faz-se enquanto corpo,
compreendendo que o ato responsável em Bakhtin (2010)
pressupõe corpos responsáveis e responsivos em
movimentos diante do acontecimento irrepetível, corpos
esses que não podem abdicar-se de suas formas únicas e

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

intransponíveis de ser e está no mundo. Até mesmo o


próprio Bakhtin (2010, p. 49) deixa indícios dessa
compreensão, ao mencionar que“[...] este sujeito teórico
deveria a cada vez encarnar-se em um ser humano real,
efetivo, pensante para incorporar-se, com o mundo todo
do existir que lhe é inerente enquanto objeto de seu
conhecimento, no existir do evento histórico real”.
Neste contexto, reitera-se que
minha posição no mundo, num dado tempo, num dado
lugar, me confere responsabilidade. Sou responsável por
realizar aquilo que é próprio do meu lugar, da minha
condição concreta e única. Aqui, gostaria de sugerir a
seguinte imagem: minha singularidade é como a de uma
árvore que somente pode dar aqueles frutos, e que aqueles
frutos somente podem ser dados por ela. O limite dessa
imagem é que a árvore provavelmente não tem angústia
existencial, já que não é de sua responsabilidade dar ou não
dar seus frutos. (BRAIT, 2013, p. 34).

Esse olhar para a Educação Física escolar tem um


potencial ímpar, haja vista que coloca em xeque o
potencial do corpo como sujeito em desempenhar seu ato
responsável e responsivo. Essas reflexões encaminham
múltiplas e infindáveis formas de se (re)pensar a Educação
Física no contexto atual. Contudo, cabe aqui mais uma
reflexão extremamente pertinente ao contexto. Faraco
(2010), no posfácio à obra de Bakhtin (2010), intitulando-o
de um “posfácio meio impertinente”, traz a reflexão se
realmente é palatável a proposta de Bakhtin, haja vista que
a obra centraliza-se na questão que o sujeito em seu ato
responsável não pode-se abster de sua ação, ou seja, “não
existe desculpas”. O autor problematiza essa questão no
seguinte tocante: “é palatável, neste nosso tempo povoado

49
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

de indiferença e de álibis, uma filosofia moral tão


fortemente inconcessível?” (FARACO, 2010, p. 154).
Para instigar a reflexão sobre essa questão, convido
uma voz que desfruta e saboreia o seu ato responsável a
qual considera muito palatável essa forma de existir no
não-álibi. Esta voz é de grande peso, pois está fincada no
contexto escolar da Educação Física na busca pela
reinvenção da área. Bracht (2019) abre espaço, em sua
obra, para um relato da prática pedagógica da Professora
Alessandra Sabadini Girão Sagredo.
A professora da cidade de Vitória/ES, muito embora,
não tenha citado teorias bakhtinianas, pode-se inferir o seu
ato responsável, a qual relaciona-se com a problemática de
Faraco (2010), sobre o questionamento do vigor de uma
filosofia da moral em tempos de álibis/desculpas. Segue
os dizeres da professora
Durante essa busca [de ir além da prática pela prática]
compreendi a importância do comprometimento político-
pedagógico do professor, ou seja, do desejo pessoal de
comprometer-se com a prática pedagógica, de me colocar
como sujeito do processo de construção do saber e da
política, para uma ação educativa significativa e
transformadora – refiro-me ao ensino associado à
significação humana e social dos alunos e ao oferecimento
de subsídios para a compreensão da realidade social. [...]
Hoje, entendo que o tempo se caracteriza por mudanças que
transformam a prática, que me faz fazer perguntas,
pesquisar, desconstruir, dialogar, avaliar num processo,
muitas vezes, doloroso, pois romper com modelos existentes
nem sempre me parece o caminho mais confortável. Porém,
a sala de aula me faz mudar o rumo porque a angústia de
não saber o “porquê” do que está fazendo ou “pra que” se
está fazendo é bem mais dolorosa que mudar. (BRACHT,
2019, p. 191 – 195).

50
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Esse relato da professora Alessandra responde com


imensa maestria o questionamento de Faraco (2010), é
interessante o quanto que o relato da professora enseja
discussões sobre a ótica Bakhtiniana. Neste momento cabe
humildade acadêmica de compreender que os professores
e professoras de Educação Física para além dos
estereótipos sociais, a professora traz brilhante questões
que permeiam o fazer docente de todas as áreas de
conhecimento, não de maneira ingênua, todavia com um
olhar sensível e bastante incisivo sobre a educação como
potencialização do humano. Além disso, fica evidente o
quanto o ato responsável faz parte do seu relato,
principalmente quando ela atribui ao ato de “fazer
perguntas, pesquisar, desconstruir, dialogar, avaliar”
como elementos responsáveis da profissão docente.
Quando a professora atribui que o mudar é um
caminho necessário para se desvencilhar da angústia de
não saber o “porquê” e o “pra que” no processo
pedagógico de sua prática de ensino, pode-se articular
essa questão a citação anteriormente exposta, de Brait
(2013), sobre a imagem da árvore, a qual a singularidade
do sujeito se relaciona com os frutos únicos dessa árvore,
que outra não pode dar, todavia a limitação dessa
compreensão para com o ato responsável é que a árvore
não tem angústia existencial. A mesma angústia do qual a
professora tenciona seu relato.
Compartilhando do mesmo ato responsável da
professora Alessandra, a obra de Maldonado, Nogueira e
Farias (2019), apresentam pesquisas de diversos
professores e professoras de Educação Física escolar que
procuram um compromisso humano com suas práticas
pedagógicas no enfrentamento de diversas problemáticas

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

que assolam a área e a educação básica, os e as docentes


nesta obra são enxergados como intelectuais de suas ações
didáticas. O ato responsável em Bakhtin (2010), não está
dissociado dos condicionantes sociais concretos de cada
contexto escolar a qual o docente situa-se, haja vista
também a dimensão ideológica a qual permeia-se toda sua
obra. Portanto, não se trata de negar a brutal desigualdade
social que assola o contexto brasileiro.
Nesse sentido, compreende-se que esses docentes são
pessoas que
vivem diariamente com diversas demandas e dificuldades
no seu ambiente de trabalho, não recebem um salário
decente, são covardemente agredidas verbal e fisicamente
quando resolvem lutar por seus direitos, que estão sendo
retirados por governantes fascistas, que possuem no
discurso a valorização das professoras e professores, mas na
prática, estão destruindo a Educação Pública brasileira.
Apesar de tudo, essas pessoas produzem conhecimento
científico e ações pedagógicas no chão da escola que
merecem ser valorizadas. (MALDONADO; NOGUEIRA;
FARIAS, 2019, p. 12).

Essas considerações reforçam a tônica de que o ato


responsável docente é necessário para vislumbrar uma
reconfiguração da área que, como foi possível notar, nos
dois casos acima citados, o eu se encontra no outro e, ao
mesmo tempo, se fortalece no nós, no sentido que essa
busca por repensar a área não é isolada em si, mas apoia-
se em um coletivo alteritário. Portanto, Bakhtin e seu
Círculo, tem muito a contribuir para uma prática de ensino
mais humanizada na Educação Física escolar, haja vista
que a “primeira questão que Bakhtin certamente tem como
forte no seu trabalho é pensar que a vida, a vida humana,
qualquer vida, deve estar no centro. A vida é o importante.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

A vida é o sinal mais claro daquilo que ele colocaria como


eixo central que é a dialogia” (MIOTELLO; ARAÚJO;
DIAS, 2019, p. 223).
Esta consideração é extremamente pertinente ao
contexto contemporâneo, pois o sistema social vigente não
opera nesta lógica. E os conceitos bakhtinianos podem
contribuir para que sejam freadas práticas de opressão,
injustiças e exploração.

Considerações transitórias

Nesse sentido, pode-se perceber o quanto é profícuo


estabelecer aproximações teóricas-reflexivas de Bakhtin e
Seu Círculo para a Educação Física escolar. Estas
aproximações tiveram como fio condutor a categoria
alteridade e ato responsável. Com relação a alteridade, é
possível notar que existe a necessitância de refletir sobre o
outro no processo de ensino aprendizagem, considerando
este outro em sua singularidade, compreendendo que este
contém um centro valorativo diferente do “eu”, mesmo
assim, esse “eu” se relaciona a partir de interações que
procuram no movimento do outro os laços de sua
humanidade.
O ato responsável, por sua vez, implica considerar
que o sujeito é encarnado no mundo, compreendendo que
a valoração também faz-se enquanto corpo e o ato
responsável pressupõe corpos – tanto docentes como
discentes - responsáveis e responsivos em movimentos
diante do acontecimento irrepetível, corpos esses que não
podem abdicar-se de suas formas únicas e intransponíveis
de ser e está no mundo.

53
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Nesse meio, o aporte teórico de Bakhtin e seus


colaboradores permitiu alargar as reflexões sobre a
possibilidade pedagogia da obra cinematográfica nas
aulas de Educação Física, compreendendo as entrelinhas
dos enunciados e dos processos de interação. Nesse
sentido, os objetivos de apresentar e refletir alguns juízos
de valores e processos de interações ocorridos durante a
apreciação da obra cinematográfica foram alcançados.
Em uma sociedade em que a vida é secundarizada,
ceifada, e ameaçado por políticas desumanizadoras e um
sistema opressor. Acredita-se que os preceitos vivenciais –
e não apenas teóricos, de Bakhtin e seu Círculo tem muito
a contribuir para a Educação Física; pois os sujeitos que
leem suas obras agem sobre a vida, potencializando o
humano. Afinal, ser professor ou professora de Educação
Física também envolve, como bem pontua Barbosa (2014,
p. 169) “fazer parte da humanidade. E compartilhar dessa
humanidade pressupõe a necessidade de comover-se com
o drama alheio, colocar-se no lugar do outro na tentativa
de melhor entender suas limitações e dificuldade”.

Referências
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Pedro & João
Ed., 2010.
BARBOSA, C. L. de A. Educação Física e Didática: Um Diálogo Possível
e Necessário. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
BETTI, M.; GOMES-DA-SILVA, P. N. Corporeidade, Jogo, Linguagem:
a Educação Física nos anos iniciais do ensino fundamental. 1. ed.
São Paulo: Cortez, 2019. v. 1. 237p.
BRACHT, V. A Educação Física Escolar no Brasil: O que ela vem sendo
e o que pode ser (Elementos de uma teoria pedagógica para a
Educação Física. Ijuí: Unijuí. 2019.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

BRAIT, B. Bakhtin dialogismo e polifonia. 1. Ed. São Paulo: Contexto,


2009.
DI CAMARGO JÚNIOR, I. “Utilizando Pensamentos de Bakhtin para
Repensar as Ciências Humanas no Século XXI”. Revista Eletrônica
Diálogos Acadêmicos. I. v. 08, nº 1, p. 48-59, JUN-JUL, 2015.
FARACO, C. A. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do círculo
de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
FARACO, C. A. “Um posfácio Meio Impertinente”. BAKHTIN, M. Para
uma filosofia do ato responsável. Pedro & João Ed., 2010.
GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. Editora Atlas
SA, 2008.
IMBERNÓN. F. Qualidade do ensino e formação do professorado:
uma mudança necessária. Tradução de Silvana Cobucci Leite. São
Paulo: Cortez. 2016.
MALDONADO, D. T.; NOGUEIRA, V. A.; FARIAS, U. de S. (Orgs). Os
professores como intelectuais: novas perspectivas didático-
pedagógicas na Educação Física Escolar brasileira. Curitiba, PR:
CRV, 2018.
MIOTELLO, V.; ARAÚJO, M. P. M.; DIAS, I. R. “Entrevista com o
professor Valdemir Miotello sobre Bakhtin e as perspectivas para
as pesquisas na área da educação”. TEXTURA-Revista de
Educação e Letras, v. 21, n. 46, 2019.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

ESPAÇO URBANO, INFÂNCIA E ESCOLA


Algumas reflexões a partir de entrecruzamentos
teóricos de Mikhail Bakhtin e Zigmunt Bauman

Eliane FAZOLO1
Andrea BERENBLUM2

O presente artigo se origina em diálogos e


preocupações compartilhadas de duas professoras de uma
instituição pública de educação superior. Assim, as
reflexões que desenvolvemos neste trabalho foram
surgindo a partir de buscarmos dar sentido a alguns
destes questionamentos iniciais: a escola funciona como
mediadora entre a cultura que nela se produz e a
construída fora dela? Os professores das turmas de
Educação Infantil se sentem parte dessas culturas? E as
crianças? Suas produções são levadas em conta pelos
professores? De que formas? São concebidas como
produções culturais? A diversidade cultural produzida
nas cidades pode contribuir para a formação desse sujeito-
criança no contexto escolar, uma vez que a maior parte do
seu dia ele passa dentro da escola?
Buscando transitar por entre as “franjas das
palavras”, como sinalizou Bakhtin, fomos entrelaçando
questões relativas às problemáticas da infância, da cidade
e da cultura, a fim de construirmos um texto circular, que
nos permitisse tecer relações entre duas situações urbanas

1 Professora do Departamento de Teoria e Planejamento de Ensino do Instituto de Educação


da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Seropédica, Brasil. E-mail:
elifazolo@gmail.com
2 Professora do Departamento de Teoria e Planejamento de Ensino do Instituto de Educação

da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Seropédica, Brasil. E-mail:


andyblum@uol.com.br

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

vividas que remetem à cultura infantil, a nossas


experiências como professoras e moradoras em espaços
urbanos e alguns conceitos teóricos, principalmente
desenvolvidos pelos autores Zygmunt Bauman e Mikhail
Bakhtin. Como se estivéssemos dando voltas em torno de
uma praça, vamos olhando a paisagem, nos apropriando
dela e, assim, a transformando.

As contradições da Cidade: espaço de isolamento e


socialização

Na sociedade moderna, a violência urbana, o


desemprego, a falta de políticas sociais vêm afastando
cada vez mais o ser humano da sua cidade. Dessa forma,
é difícil andar pela cidade sem sobressaltos; os encontros
se dão em espaços privados, deixando os espaços públicos
mais vazios. A vida noturna está tomando características
mais caseiras. Os usos da cidade e dos espaços que ela
oferece estão ficando em algum lugar da memória.
Como símbolo dessa conjuntura foram construídos
condomínios fechados, preenchendo o espaço antes
ocupado pela cidade. Altas grades guardam a privacidade
dos moradores e os afasta da convivência urbana.
Infraestrutura básica é organizada para melhorar a vida de
quem lá, atrás das grades, mora. Escolas, pequenos
comércios, academias, clínicas, praças, pistas de corrida,
playgrounds e, para garantir uma maior segurança dos
moradores, circuito interno de TV, seguranças
especializadas, porteiro eletrônico, cerca elétrica.
Bauman cita o arquiteto inglês George Hazeldon que,
estabelecido na África do Sul, sonhava com uma cidade
com o formato descrito acima.

58
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Heritage Park, a cidade que Hazeldon está para construir em


500 acres de terra não muito longe da Cidade do Cabo, deve
diferenciar-se das outras cidades por seu autocercamento:
cercas elétricas de alta voltagem, vigilância eletrônica das
vias de acesso, barreiras por todo o caminho e guardas
fortemente armados (BAUMAN, 2001, p. 107)

O autor afirma que quem tiver as condições de


adquirir uma casa em Heritage Park poderá passar boa
parte da vida afastado dos perigos e dos riscos da
“turbulenta, hostil e assustadora selva que começa logo
que terminam os portões da cidade” (Idem).
Heritage Park terá suas próprias lojas, igrejas, restaurantes,
teatros, áreas de lazer, florestas, um parque central, lagos
com salmões, playgrounds, pistas de corrida, campos de
esportes e quadras de tênis – e área livre suficiente para se
acrescentar o que quer que a moda de uma vida decente
possa demandar no futuro (Idem, p. 108).

Assim, condomínios desenhados com a lógica


segregacionista de Heritage Park são capazes de garantir
segurança e tranquilidade. Tudo é vigiado por câmeras,
seguranças farão rondas diárias – inclusive noturnas – e
denunciarão quaisquer anormalidades.
Este tipo de “limpeza urbana”, acarretada pela
“política do medo cotidiano” (Idem, p. 110), mantém as
pessoas longe dos espaços públicos e acaba por afastá-las
da “busca da arte e das habilidades necessárias para
compartilhar a vida pública” (Ibidem). Há uma crescente
compartimentação das áreas públicas, com acessos
seletivos. “Há uma separação no lugar da vida em comum
– principal dimensão da evolução corrente da vida
urbana” (Idem, p. 111). Em cenário como os descritos as
pessoas acabam por se isolar e os encontros vão

59
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

escasseando, tornando-se fugidios, entre trajetos rápidos,


sem compromissos, sem tempo. É como se máscaras nos
afastassem dos sentimentos dos outros, mas nos
permitissem agir com cordialidade. Bauman (op. cit.)
descreve, de forma minuciosa, os espaços públicos dos
centros urbanos contemporâneos. Dentre eles, chama a
atenção de espaços que se apresentam como monumentos
onde a hospitalidade não é vista ou sentida pelo visitante
ou pelo transeunte. Nesses lugares, tudo inspira respeito e
a não permanência; são monumentos para serem
admirados e não visitados, “imponentes e inacessíveis aos
olhos – imponentes porque inacessíveis. Estas duas
qualidades se complementam e reforçam mutuamente”
(p. 113).

Cena urbana 1:
Joaquim: ei, moça, paga uma coca pra mim?3
Pesquisadoras: tudo bem, pode pegar. Onde está sua mãe?
Joaquim: trabalhando.
Pesquisadoras: Por que você não está com ela?
Joaquim: Eu vim pra escola, mas daí a professora faltou.
Então eu vou esperar ela por aqui mesmo.
Pesquisadoras: você vai ficar o dia inteiro na cidade? Por que
não fica na escola?
Joaquim: na escola é chato. Por aqui eu me divirto. Vou a
muitos lugares. Sabe aquele prédio do Banco do Brasil, lá na
Primeiro de Março? Então, lá tem um segurança que arruma
lanche.
Pesquisadoras: onde é a sua escola?
Joaquim: fica lá perto da Praça Mauá.
Pesquisadoras: você não tem medo de ficar na rua, sozinho?

3Encontramos Joaquim no centro da cidade. Essa conversa aconteceu próximo à estação do


Metrô Uruguaiana, enquanto tomávamos um refrigerante e o observávamos andando por
ali. Ele se aproximou, espontaneamente, pedindo um refrigerante e puxando conversa.

60
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Joaquim: tem vez que tenho. Se o bicho pega eu me escondo


dentro de uma igreja. Aqui é muito sinistro, acontece cada
coisa! Mas se a gente sabe aonde ir, tem coisa muito legal pra
fazer. Tem cada prédio, cada castelo, você conhece os
castelos que têm aqui na cidade?
Pesquisadoras: acho que não. Onde eles ficam?
Joaquim: só na Cinelândia tem três. É só chegar lá e olhar:
são altos, grandes pra caramba, tem muita torre alta, e
escadaria. Tem também muita janela e não é qualquer um
que pode entrar. Eu e você, “babau”, não pode entrar! É só
passar na porta e olhe lá! (Joaquim, 12 anos, Rua
Uruguaiana).

Quando Joaquim, ao se referir aos castelos da cidade,


não se reconhece como cidadão de direitos para usufruir
prédios históricos da cidade, ele está se referindo a
monumentos que existem para serem admirados, que não
acolhem os transeuntes convidando-os a entrar, não são
hospitaleiros. O espaço urbano é repleto destes espaços
públicos, batizados pelo autor de “não civis”.
Monumentos, prédios, praças, calçadões que se estendem,
proliferam, homenageiam personalidades, mas que não se
dão ao público, ao sujeito que circula pela cidade.
Outro espaço urbano abordado pelo autor remete a
locais que se destinam a transformar o habitante em
consumidor, espaços que favorecem a ação e não a
interação. São pontos turísticos, salas de exibição ou de
concertos, shopping centers, cafés, ou seja, lugares onde a
interação se dá apenas entre as pessoas que estão juntas, já
chegaram juntas e vão embora juntas.
Onde, então, ocorrem o envolvimento, o
comprometimento, a troca, a responsabilidade, a
experiência, a cumplicidade com o/os outro/s? Certamente

61
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

não acontecem nesses espaços não-lugares4, assim definidos


na modernidade líquida, etapa caracterizada pelo autor de
forma angustiante. O lugar é necessariamente histórico,
pois conjuga identidade e relação, que os indivíduos, ao
longo de sua vida e da sua história, vão construindo e
reconstruindo. Os lugares que ocupamos na vida
cotidiana nos diferenciam uns dos outros e a necessidade
de ocupar vários lugares vai transformando a vida em
uma constante correria, em uma constante busca por algo
melhor, diferente, mais seguro.
Abordar a categoria lugar envolve, também, pensar o
espaço e o tempo. Para Certeau (1994), o espaço é um lugar
praticado, sendo que esses conceitos se encontram
transmutados dos sentidos que tradicionalmente
carregavam. O hoje é apenas uma premonição do amanhã
– o que realmente importa. Aquilo que é – agora –
rapidamente é cancelado pelo que virá.
Essa impossibilidade da permanência fixa marca,
segundo Bauman (1998), a modernidade, mas o estágio
seguinte diz respeito a outro momento da história
considerado mais leve. As formas de organização do
espaço e do tempo ficaram mais soltas, se adequando aos
fluxos mais maleáveis da vida moderna. A mudança que
está em jogo é a irrelevância do espaço em relação a um
tempo que tem a velocidade da luz.
Mas, como lugar, temos, também, o espaço ocupado e o
não lugar. Espaços públicos e privados, espalhados pela
cidade, abertos ao público, fechados ao público,
monumentos que enfeitam logradouros, ruas que muitas

4 Tomamos o conceito de “não lugar” desenvolvido por Augé Marc na obra – Não lugares:

introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Editora Papirus, 4ª edição, 2004.

62
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

vezes nem percebemos existirem. Lugares de acolhimento


e de afastamento.
Estas reflexões nos suscitam alguns questionamentos:
a criança, além dos direitos por ela conquistados, não
precisaria ter direito a uma cidade favorável a ela? Não
teria direito à cultura nela produzida? Não seria desejável
que as políticas públicas de Educação procurassem
promover oportunidades para que as crianças, já a partir
da primeira infância, tivessem acesso constante e irrestrito
a bibliotecas públicas, cinemas, museus, centros culturais,
aos “palácios da cidade”?
O ser humano se constitui nos intercâmbios de
linguagem com o outro, com o diferente, que é igualmente
constituído pela linguagem. Esse exercício de combinação
de experiências define o sujeito histórico, que constrói
determinados pertencimentos às comunidades e, dessa
forma, portanto, se constitui como sujeito social e cultural.

Bakhtin e o conceito de cultura

A partir de alguns conceitos abordados por Bakhtin


como dialogismo, interação verbal, ideologia, consciência,
polifonia, exotopia, pode-se perceber a relevância das suas
contribuições para a análise da produção cultural e das
Ciências Humanas em geral.
Assim, para o autor, a noção de dialogismo pressupõe
a existência de uma cultura fundamentalmente não-
unitária, na qual diferentes discursos existem em relações
de trocas constantes. O pensamento de Bakhtin revelado
em sua obra, apesar de plural, tem uma enorme coerência,
que se fundamenta, principalmente, na centralidade da
linguagem, sendo o dialogismo o princípio constitutivo da

63
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

linguagem, o que significa dizer que toda a linguagem, em


qualquer campo, está impregnada de relações dialógicas.
Esta concepção contém a ideia de relativização da autoria
individual e, consequentemente, o destaque do caráter
coletivo e social da produção de ideias e de textos. O
próprio ser humano é um intertexto, pois ele não existe
isolado, sua experiência de vida se tece, se entrecruza e
interpenetra com o/s outro/s. Pensar a relação dialógica é
remeter a outro princípio fundamental, o de não
autonomia do discurso. Dessa forma, as palavras do
falante estão sempre e inevitavelmente atravessadas pelas
palavras do/s outro/s: o discurso elaborado pelo falante se
constitui também do discurso do/s outro/s que o atravessa,
condicionando o discurso do eu. Em linguagem
bakhtiniana, a noção do eu nunca é individual, mas social.
Assim, a cultura atravessa a forma de viver do sujeito que
fala e do sujeito que com ele interage, uma vez que ambos
estão sendo constituídos pelos discursos e experiências do
outro.
O mundo que se revela ao ser humano se organiza
através dos discursos que ele assimila, formando seu
repertório de vida. O fato de a consciência ser determinada
socialmente não significa que o ser humano seja um ser
meramente reprodutivo, sendo que pretendemos
ressaltar, portanto, a criatividade constitutiva do sujeito:
ele é influenciado pelo meio, mas se volta sobre ele para
transformá-lo. Sob forma de signos a atividade mental se
expressa exterior e internamente para o próprio indivíduo,
de forma que sem os signos a atividade interior não
existiria. A palavra não é apenas um meio, uma
ferramenta de comunicação, mas também conteúdo da
própria atividade psíquica.

64
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

O diálogo, além de significar o ato de fala entre duas


ou mais pessoas, envolve, em seu sentido amplo, qualquer
tipo de comunicação verbal, oral ou escrita, exterior ou
interior, manifestada ou não. À ideia de diálogo soma-se
outro elemento que não se refere apenas à fala em voz alta
de duas pessoas, mas a um discurso interior, do qual
emanam as várias e inesgotáveis enunciações
determinadas pela situação de sua enunciação e pelo seu
auditório.
O conceito de dialogismo é central na teoria de
Bakhtin e vital para a compreensão das questões
referentes à linguagem como constitutiva da experiência
humana e seu papel ativo no pensamento, no
conhecimento e na cultura. A complexidade desse
conceito também se evidencia na característica dele
implicar outros, como a noção de interação verbal, de
intertextualidade e de polifonia. A compreensão desses
termos no contexto da obra de Bakhtin nos possibilita
abandonar a arrogância e a onipotência do discurso
monológico. O ser social nasce, portanto, com o exercício
da linguagem.
Linguagem, alteridade, exercício ético e cognitivo da
exotopia, que na teoria bakhtiniana nomeia o movimento
em que o outro dá o acabamento necessário ao eu, por
meio do seu excedente de visão, do seu lugar único,
situado fora do eu, afastar para entender, diferença entre
dois olhares, são algumas das contribuições do autor que
contribuem para a compreensão do universo de
significação da cultura.
Assim, consideramos que o direito da criança à
cultura deveria ser o eixo fundamental na sua formação
integral. Como na caminhada em torno da praça, veem-se

65
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

as mesmas paisagens, mas sob ângulos diversos. A cada


passagem pelo ponto de partida, uma imagem nova surge,
diferente, desconhecida, porém sendo sempre a mesma–
paradoxo incontestável. Exercício de descoberta, de busca
do desconhecido. Como garantir o direito de todas as
crianças às produções e manifestações culturais que a
cidade em que ela vive oferece? De que práticas políticas,
das esferas mais restritas às mais amplas, espera-se ações,
determinações e regulamentações que possibilitem o
reconhecimento de um aspecto tão fundamental na
formação do cidadão em sua completude?

Escola: balcão baixo para alcançar o prato

Quem anda pela cidade, caminha por suas ruas, olha


e observa, sabe que a cidade acolhe de maneira exemplar
o adulto saudável. Roletas, campainhas e degraus de
ônibus, balcões de lanchonetes, placas de sinalização,
lixeiras, todos esses componentes estão a serviço do
indivíduo adulto “normal”, que interage com a cidade
sem problemas.
No entanto, os espaços urbanos geralmente não são
apropriados para as crianças. Há uma tendência
fragmentadora dos espaços para os sujeitos diferentes,
dentre eles, as crianças. Acostumadas a observarem o
mundo de um lugar que não lhes atende integralmente, a
criança aprende a centrar seu olhar de baixo para cima e,
assim, enxerga o que está a sua volta. O adulto que lida
com ela, na maioria das vezes, só a olha de cima para
baixo, obrigando-a a levantar a cabeça para poder ouvir
melhor, entender de maneira mais clara, ver o que lhe
mostram.

66
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

As crianças têm um modo peculiar de habitar o


mundo, elas se constroem nas relações sociais, nos
processos de aprendizagem e de produção de
conhecimento, desde muito pequenas. Sua inserção no
mundo acontece a partir de observações das atividades
dos adultos e com esses elementos elas elaboram suas
hipóteses, expressões, reflexões, julgamentos. É pelo e com
o adulto, na grande maioria das vezes, que a criança
estabelece com o espaço urbano uma relação de
aprendizagem, percebendo que muitos dos seus
elementos não foram feitos para elas, logo as ignoram – ou
desconhecem.
A partir do que foi discutido até aqui, cabe
perguntarmos até que ponto as crianças participam de
forma comprometida do que acontece no seu entorno
familiar? De que forma conseguem interagir nesse
entorno? É possível pensar alternativas para que elas
possam participar dele de uma forma plena? A escola
poderia se tornar um agente facilitador dessa
transformação?

Cena urbana 2
Refeitório. Chegamos ao refeitório para o almoço. As
crianças estão muito animadas hoje. Parou de chover depois
de quase uma semana e elas estão eufóricas, pois hoje foram
ao parque brincar. A professora estendeu um pouco o
horário para satisfazê-las. Falam alto, conversam comigo,
com a merendeira que serve o prato, com os colegas. Até
cantaram alto a música da oração religiosa. O balcão onde a
merendeira coloca os pratos com o almoço é muito alto.
Algumas mal conseguem atingi-lo mesmo na ponta dos pés.
Ela parece não perceber e chega até a reclamar quando
alguma criança demora a pegar seu prato. Vez por outra a
professora ajuda, outra merendeira também. Eu, sempre que

67
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

posso, fico perto do balcão e pego os pratos para entregá-los


às crianças. Elas não falam nada, mas me olham. Talvez por
estarem muito excitadas, Fernando destrava a língua e
reclama, bem alto, depois de alguma luta para pegar seu
almoço: “essa escola nem que pensa na gente”!5.

O desabafo de Fernando nos permite refletir sobre o


papel que a escola tem – ou deveria ter – nas interações
estabelecidas entre as crianças e os espaços onde circulam,
seja dentro da escola ou em espaços urbanos nas cidades e
bairros onde moram. Escolas de educação infantil
deveriam ter balcões baixos que facilitassem o acesso das
crianças ao almoço, canecas de leite, sobremesas. Mas
estas condições não existem em muitas escolas. A escola
propõe um modelo de socialização baseado naquilo
considerado como "A" cultura, "A grande cultura" ou “A
alta cultura" (Barbosa 2003) ou a “cultura adulta”. A alta
cultura supõe a existência de uma baixa, ou seja, uma
cultura popular. Esta hierarquização de culturas somente
pode existir na medida em que acreditarmos na
importância ou superioridade de certas atividades e
manifestações ou bens culturais em detrimento de outros.
A escola é uma instituição muito poderosa, já que,
afinal, ela ainda é a instituição que as crianças e jovens
frequentam – tanto em nome da sua proteção como da sua
segregação (Qvortrup, 2001) – para aprenderem a cultura
considerada legítima. Além disso, ela é, também, o lugar
onde múltiplos modos de socialização e formações
culturais se confrontam. Portanto, as práticas culturais
oferecidas às crianças na escola são fundamentais, mas é

5 Situação registrada em uma escola pública de educação infantil, localizada no centro do


Rio de Janeiro, durante as observações de uma pesquisa realizada por uma das autoras deste
texto.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

importante contextualizá-las, relacioná-las com as práticas


culturais dos meios sociais de origem. Em contextos
urbanos contemporâneos, globalizados e interligados por
diversas redes virtuais, torna-se obsoleto acreditarmos na
legitimidade e na superioridade de uma única cultura,
assim como na pertinência de oposições simbólicas entre
cultura e subculturas, artes maiores e artes menores. No
entanto, é possível observar que certos produtos e
atividades culturais dispõem de poderosos meios de
imposição de sua legitimidade, sendo permanentemente
atualizados na manutenção de distinções (Barbosa, op.
cit.).
Quanto menos massificada a cultura escolar, maior
será a capacidade da escola de criar espaços para a
interlocução entre culturas infantis, famílias, culturas do
bairro e da vizinhança. A escola tem possibilidades e
competência para contribuir, seja na produção de novas
culturas, seja no questionamento de culturas já existentes,
para propiciar condições de efetiva formação nas crianças.
O excedente de visão, ou a exotopia a que nos
referimos antes (Bakhtin, 2003), possibilita que o sujeito
veja algo do outro nele mesmo que não conseguia
enxergar devido ao foco no seu ponto de vista. A exotopia,
esse desdobramento de olhares, só é possível a partir da
visão de um lugar que está fora do sujeito. Assim, nessa
teia imbricada de olhares vamos construindo nosso espaço
na cidade, no bairro e na escola.
Os lugares que frequentamos, as escolas e as
interações nelas construídas, a cidade que habitamos e
usufruímos, a linguagem que nos utilizamos vão nos
constituindo cidadãos culturais, construtores e
protagonistas de uma história que nos pertence e que, ao

69
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

mesmo tempo, pertence ao outro que habita e usufrui


desses mesmos lugares e espaços. Nessa dinâmica, adultos
e crianças, cidadãos e cidadãs de todas as idades e gêneros,
vindos e vindas de todas as esferas sociais são
responsáveis, a partir das relações sociais estabelecidas,
pela construção de uma sociedade que deveria atender a
todos e todas, sem distinções ou exclusões. Assim,
repensar a cidade, a escola, as crianças e os lugares e
espaços frequentados e habitados no cotidiano da vida
urbana se faz urgente e necessário, visto que, felizmente,
não somos ilhas.

Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. S. P.: Hucitec, 1992.
______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes. 4ª edição,
2003.
______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São
Paulo: Editora Unesp. 4ª edição, 1998.
BARBOSA, M. C. S. A Cidade. Porto Alegre, Mimeo, 2003.
BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. R. J; Zahar, 1998.
______. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Rio de
Janeiro: Vozes, 1994.
QVORTRUP, J. O trabalho escolar infantil tem valor? A colonização das
crianças pelo trabalho escolar. In: CASTRO, L. R. (Org.). Crianças
e jovens na construção da cultura. R. J.: NAU, FAPERJ, 2001.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

PSICOLOGIA E A SÉTIMA ARTE


Um instrumento de estímulo neuro-filosófico

Everton William de Lima SILVA1

O cinema é um instrumento pedagógico educacional e


filosófico que serve para iluminar o pensamento dos
leitores da academia, sejam eles professores catedráticos
ou alunos das séries iniciais. Nunca somos os mesmos
depois de expostos a conteúdos que despertam o nosso
fascínio enquanto curiosos espectadores. Transmitir o
realismo de contextos históricos, que marcaram gerações
mundo afora, e que são apresentados de forma intrigante,
através da releitura simbólica dos acontecimentos, é uma
responsabilidade que se integra na prática de leitura e
pesquisa para poder gerar obras fidedignas da
cinematografia (REINA, 2013). Para além da imagética,
quando paramos para esmiunçar a riqueza de detalhes
que uma película nos apresenta, percebemos a pluralidade
que existe nos diversos tipos de linguagem e que estão
imbuídas nas vozes inconscientes dos sujeitos que
dialogam, para recontar o passado no presente, através da
memória de futuro, de uma visão Bakhtiniana (DI
CAMARGO, 2020) e que indissociavelmente se
personifica o poder da psicologia, como recurso cognitivo,
que está presente em todos os contextos do cinema,
através do script, representações, gerência e fotografia,

1Psicólogo pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca UNIFAVIP DERVRY BRASIL


WYDEN - Caruaru-PE, Pós-Graduado em Programa de Saúde da Família pelo Centro
Universitário MAURÍCIO DE NASSAU-PE. MESTRE pelo Programa de Pós-graduação em
Formação de Professores - Mestrado Profissional - PPGFP - Universidade Estadual da
Paraíba – UEPB. E-mail: psic.williamlima@hotmail.com

71
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

que são pensados previamente, para eclodir nos


espectadores, sentimentos através de estímulos
audiovisuais.
Sendo estes mecanismos táticos, introduzidos de
forma sutil, através das metodologias cinéfilas, que são
executadas sobre as colorações, efeitos sonoros, e situações
apresentadas, que despertam alterações mentais positivas,
contraproducentes, ou um mix de sentimentos de forma
geral, dependendo da proposta dos idealizadores
(GALVÃO, 2016). É interessante notar a influência direta,
como à posição que tomamos de identificação ou rejeição,
com os personagens, o qual projetamos o nosso eu
inconscientemente, perante a história do outro, e das
contribuições de significados que atribuímos, à
determinadas situações.
Quando um grupo se reúne pela relação do seu
interesse em comum, mesmo sem estes terem o contato
proximal entre eles, acaba-se vivenciando um momento
singular de uma aglomeração, com diferentes tipos de
pessoas, que se constituem nos seus saberes e formas de
interpretar a sua leitura de mundo, através de uma
identidade única de subjetividade dos indivíduos, que foi
forjada através do seu ciclo educacional. Todos nós somos
distintos, entretanto após a leitura de uma sinopse ou
textos, que devotamos a nossa atenção quanto leitores, por
nossa predileção de gênero textual, seja de revistas
científicas, HQs ou redes sociais. Acabamos construindo
uma voz uníssona, pela linguagem de coletividade social,
que traz a comunicação com os demais sujeitos daquele
grupo, mesmo que estejam em silêncio no recinto (SILVA,
2019).

72
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

É claro que cada receptor interpreta o conteúdo de


forma específica, não se determinando que o
entendimento de “todos” seja o mesmo, diante do que foi
apresentado, mais trazendo novas possibilidades de
significados para cada sujeito, que vai maturar suas ideias
de acordo, com seu acervo de conhecimento sobre os
conteúdos, que aprendeu ao logo de sua vida. Onde se
estabelece como um reflexo inseparável, da sua estrutura
psicossocial, quanto sujeito e do seu discurso e
reverberação, durante o seu processo singular de
aquisição de novos saberes (PEREIRA, 2010). Diante de
uma biografia apresentada pelas figuras de um longa-
metragem e que nos tempos modernos observamos tanto
em iphone como nas telas tradicionais, essas imagens,
lançam no pensamento dos expectadores, inúmeras
possiblidades mentais.
Podemos deduzir, por conseguinte, que durante o processo
de transformação das imagens mentais em imagens
psicodramáticas, as emoções plasmadas nas imagens
iluminam o campo da psicoterapia para além das mimeses,
culminando na descoberta de novos sentidos atribuídos às
imagens psicodramáticas, cujos significados encobertos são
potencialmente capazes de modificar o comportamento do
indivíduo em determinada situação de conflito”
(GUIMARÃES, 2011, p. 02).

É interessante destacarmos que quando determinados


ápices ocorrem nos longas-metragens, uma comoção se
estende à ponto de manifestar uma euforia coletiva,
através de uma simbiose-mental, que resultam em
inúmeros comportamentos humanos, tais como aplausos
e assovios, em determinado triunfo do personagem
principal, ou como diríamos, o mocinho de uma obra

73
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

fictícia. E o mesmo tipo de emoção-satisfatória, construída


na “justiça da punição” pelo fracasso do vilão, que foi
odiado durante o mesmo filme. Por que tomamos partido?
Quando foi que aquela história se tornou parte integrante
da nossa vida, a ponto de mergulhamos no contexto de um
roteiro escrito por um escritor desconhecido, que desejava
propositalmente nos emocionar com sua obra sedutora.
Que discussões travamos com o nosso eu
inconsciente, diante de obras cinematográficas, que
apresentam textos e situações provocativas, que nos
permite o atrevimento dissimulado e sem pudor, de
experimentar imaginativamente, os nossos desejos
secretos, sobre à pele do outro, na história do personagem.
Esses são questionamentos que fazemos de forma mental
e filosófica, quando alcançamos o nível de criticidade,
diante dos experimentos que estamos expostos dos
artefatos culturais da sociedade e ciência moderna. Pois
Oliveira (2006) já discutia sobre a junção da ciência com a
sétima arte que
A vinculação entre cinema e ciência é antiga. Antes mesmo
de os irmãos Lumière encantarem o público parisiense, em
1895, com a projeção de cenas impressionantes que
inauguraram o cinema como uma fabulosa forma de
entretenimento, as técnicas de criar imagens em movimento
com sequência de fotografias serviram a propósitos
científicos. (OLIVEIRA, 2006, p. 01).

Além disto notou-se que diversas obras literárias


escritas e publicadas em grandes volumes, acabaram
sendo adaptadas na sétima arte e transformadas em
grandes sucessos de bilheterias, o que resultou de maneira
impensável para os escritores e suas respectivas editoras,
o crescimento exponencial de vendas de livros. O que

74
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

indiscutivelmente favorece de forma dual no crescimento


cultural e intelectual dos consumidores, que em um breve
momento se distraem com a película cinematográfica que
é exposta por tempo determinado de minutos e que após
se identificarem com aquela história, se conectam com os
livros por tempo indeterminado, formando novos leitores
(BÉNICA, 2016). Massificando a influência que este
instrumento pedagógico detém sobre as massas
populacionais, pois além de servir para pesquisas
observacionais de inúmeras áreas acadêmicas, o cinema
contribui para o despertar de novos leitores, contribuindo
para o desenvolvimento do acesso da linguagem culta.
Quando analisamos o discurso que é apresentado em
longas-metragens, compreendemos que existe uma
relação mental, entre o escritor diretor e seus
expectadores, que estão para além do espaço e tempo.
Mencionar sobre filmes interessantes e que nos marcaram
é uma tarefa prazerosa porque a ficção cinematográfica é
o reflexo do que vivemos em nossas experiências
subjetivas. Muitos dos filmes que impactaram uma visão
enquanto sujeito, trouxeram uma íntima relação dialógica,
sem que se percebesse diante deste construto universal e
biopsicossocial.
O poder de tocar os espectadores que o cinema possui pode
explicitar sua vinculação extremamente comum com a
psicanálise. O alcance da arte para fascinar, surpreender,
interrogar e também angustiar só se concebe a partir da
audiência cativa de outrem. A obra cinematográfica só
ganha vida desde que olhada, assistida e consumida por seu
público. (CATHARIN, BOCCHI, CAMPOS, 2017, p. 01).

Entre as películas interessantes, recordamos


inicialmente de “Contatos de 4.º Grau”, que foi lançado em

75
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

2009 e teve como diretores Olatunder Osunssanmi e Terry


Robbin. Foi uma experiência antológica assistir este filme,
porque foi uma atividade acadêmica da graduação de
psicologia, requisitada para a disciplina de saúde mental,
e como se trata de um filme e documentário relacionado
com Terapia e Hipnose (também usada por Freud na
psicanálise), além de abdução alienígena, acabamos
desconstruindo a nossa visão em relação ao que
compreendemos como único, e abrimos a nossa
interpretação para as novas possibilidades que permeiam
a nossa realidade alternativa.
Nesse sentido, não é por acaso que os dois elementos
essenciais dos filmes são ao mesmo tempo os mais
imateriais: a luz e o som. Eles devem penetrar nossos
sentidos instantaneamente, sem resguardo, para tomar de
uma só vez completamente o espectador, penetrar de uma
só vez em seu corpo e em seu espírito. (MENEZES, 1996, p.
87).

Acreditamos que as obras de Mikhail Bakhtin,


trouxeram um divisor investigativo para os estudos da
linguagem, e contribuições significativas, para a forma
que percebemos a mesma, no processo da comunicação e
interação social. Examinar as conversas e ter um olhar
criterioso sobre as peculiaridades que dão existência ao
fenômeno da linguagem, nas camadas da literatura, arte,
filosofia, dentre outras foi uma forma de trazer outros
significados para estes estudos, que compõem o Círculo
de Bakhtin. A linguagem durante nossa vida vai sendo
escrita nessa folha e experimentada pela interação
dialógica que proporciona ao locutor e interlocutor,
decodificação, acomodação, assimilação em processos

76
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

mentais de aprendizagem não percebidos pelos sujeitos


durante esse processo de informações.
Não estudar apenas a gramática, mais como somos
constituídos sujeitos de linguagem, em nosso dia-dia. Na
classificação dos gêneros é importante elencar os discursos
primários e secundários, ambos examinados de acordo
com o proposito discutido para cada situação específica do
diálogo de múltiplas vozes que constituem o ser.
A relação histórica projetiva do longa-metragem
“Blade Runner – o caçador de Androides”, sobre as
hipóteses do futuro para meados de 2019, foram
precisamente assertivas em muitas das suposições fictícias
criadas para a época de 1982, pois era impensável que
robôs humanoides fossem criados, com inteligência
artificial que simularia emoções humanas substituindo-
nos em atividades laborais ou mesmo que seres humanos
reais pudessem se relacionar com essas versões de nós
mesmos feitos, melhoradas, porque não adoecem e na
composição de silicone, fibra e manta sintética. Sendo
diferente da narrativa do filme, o que está ocorrendo na
Ásia Oriental e em outros países desenvolvidos em
tecnologia de ponta é que a mão de obra humana está
sendo trocada por robôs com inteligência artificial, que
não adoecem, não faltam e são mais produtivos, custando
menos para as empresas.
A Huawei abriu uma loja nova na China. Mas não é um
estabelecimento qualquer: o espaço não tem nenhum
funcionário humano, contando apenas com robôs para
entregar produtos para consumidores. (JUNQUEIRA, 2020,
p. 01).

Em relação as questões afetivas que são elencadas no

77
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

filme (Blade Runner) onde os robôs experimentam e


aprendem rapidamente o significado das emoções
humanas em suas peles artificiais ou simulam sentimentos
que foram implantados pelos seus criadores em seus
corpos robóticos do sistema cibernético, o cinema continua
surpreendendo em suas previsões. Ou as obras
cinematográficas têm inspirando os cientistas dos mais
variados seguimentos do mundo para trazerem na
existência do mundo real, as projeções fantasiosas dando
existência ao que parecia fantasia. No mercado
pornográfico por exemplo, acabou de ser lançado as
bonecas sexuais realistas com inteligência artificial.
Matt McMullen, criador da RealDoll, que dirige a Abyss,
fábrica das mais famosas bonecas sexuais hiper-realistas do
planeta, deu um passo adiante no já agitado mercado de
bonecas para fins de sexo. Um novo modelo de Harmony, o
carro-chefe da empresa, virá com inteligência artificial. O
realismo de sempre - no visual e no tato - terá a companhia
de uma cabeça que deverá custar o equivalente a R$ 27 mil e
que poderá ser acoplada a qualquer corpo de RealDoll. Com
ajuda de dispositivos móveis, a nova Harmony vai
conversar e se adaptar aos poucos aos gostos do dono. Em
outras palavras: vai desenvolver uma "personalidade"
(MOREIRA, 2018, p. 01).

Na Europa, os prostíbulos com bonecas sexuais têm


aumentando o crescimento da clientela e muitos acabaram
comprando suas próprias versões das Sex Doll para
manter em suas casas uma companhia robótica que
sempre está disponível, de bom humor, sem riscos de
doenças DST ou risco de troca de parceiros (Traições).
Sendo novos contextos de demonstrar erotismo e explorar
outras possibilidades da sexualidade, onde em muitos

78
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

relatos, os clientes declaram ter se apaixonado por bonecas


sexuais (BETTIZA, 2019).
Na interação social e na construção dos sentidos da
linguagem e das emoções dos humanos sobre as máquinas
robóticas, percebemos o discurso filosófico imbuído de
Mikhail Bakhtin que faz interação com as experiências e
diálogos que se constroem entre os sujeitos, iluminado a
memória do futuro no cinema.
As contextualizações do filme com nossas tecnologias
digitais da atualidade são em algumas das construções das
nossas realidades existentes em nossa sociedade como já
foi citado. A personagem Rachel simplesmente descontrói
o condicionamento do caçador, porque ele se impressiona
com ela desde o início, em sua comunicação e sua
semelhança, e por ter salvado ele de outro androide que
queria vingar-se por ter exterminado um dos robôs
(Zhora).
A morte deste robô humanoide, Zhora, foi um
processo automático realizado pelo caçador, pois sem
remorso o mesmo foi buscar a finitude dela e depois
colocou-se a analisar seu corpo debruçado ensanguentado
e ao mesmo tempo refletindo ao contexto dos nossos
corpos, que sentem dor, luto, arrependimentos e processos
de reprogramação mental que fazemos inconscientemente
diante de situações diversas da nossa vida.
Ele passou de caçador a ser caçado por outros robôs
que queriam vigar-se por ter dado fim a existência de
Zhora e porque suas vidas ainda são curtas, porque só
vivem 4 anos. Estar no lugar de ser perseguido para ser
executado, muda o quadro e percepção do sujeito.
Quando o robô procura seu criador, na expectativa de ter
melhorada sua estrutura cibernética e ter uma possível

79
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

vida prologada, há a esperança de uma possibilidade de


durabilidade, ao depara-se com a impossibilidade de viver
suas ambições de vida, gera-se no mesmo raiva, ódio a
ponto de assassinar o seu criador e desta decepção
procurar livra-se também do caçador que terminou de
exterminar seus outros companheiros robôs. Esses
processos se repetem na sociedade, onde as pessoas se
tratam com aspereza, sem respeito ou ética em diversos
seguimentos do cotidiano. A frase “Penso logo existo”, de
René Descartes (2005), representa a consistência de uma
consciência humana, forjada em memórias que
construímos, pela sistematicidade do que vivemos na
leitura de mundo, que estão fixadas em nossa memória
orgânica ou somos máquinas e não percebemos ainda
nossa realidade alternativa e condicionamento robótico.
Embora tenha se tornado uma forma de entretenimento e
galgado o status de um gênero artístico próprio, a sétima
arte, o registro cinematográfico continuou a servir como
instrumento científico. Uma ferramenta que possibilitava
vários tipos de experimentos e o registro de ocorrências em
condições inóspitas ou não discerníveis a olho nu,
permitindo observações repetidas e análises detalhadas,
com a separação de instantes. (OLIVEIRA, 2006, p.02).

Consideramos muito interessante analisar em ambas


as películas cinematográficas “Blade Runner” e “Filhos da
Esperança” o olhar pelo dialogismo que essas obras
trazem para o nosso contexto biopsicossocial de
quarentena, de forma atemporal. Quando assistimos uma
obra de ficção científica, inconscientemente escolhemos
personagens que se encaixam em nossas
representatividades existências e torcemos para que o
protagonista do filme tenha um final feliz; mais quando o

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

roteiro nos apresenta um termino sombrio sem


expectativa de vida, nos deparamos com a nossa própria
finitude humana e somos incomodados pela "Pulsão de
morte".
A introdução da linguagem cria uma separação entre as
palavras e as coisas, num movimento que em termos
lacanianos pode ser definido como uma transposição de
registro. Por intermédio da simbolização, algo morre no real,
onde a rigor tinha apenas existência (termo que Lacan toma
por empréstimo a Heidegger), e emerge no simbólico, onde
passa a fazer parte da realidade (que em Lacan difere do real
enquanto registro). Já em Freud o ato fundador da ordem
simbólica está ligado à morte: o assassinato do pai da horda
primordial e seu reaparecimento subsequente como totem
representa paradigmaticamente a morte da coisa que dá
ensejo ao significante. (CASTRO, 2011, p. 01).

Diante desta citação percebemos o futuro sujo que


tanto em "Blade Runner" como em "Filhos da Esperança" os
filmes apresentam vários acontecimentos que estão
ocorrendo silenciosamente diante dos nossos olhos, e que
não temos controle.
Uma disparidade social, o desenvolvimento da
tecnologia androide, uma guerra biológica (coronavírus) a
que vivemos, em comparação com a guerra em Londres
com soldados que seguem diretrizes do governo opressor
exterminado direitos humanos aos "imigrantes ilegais que
estão sendo capturados, torturados e eliminados". As
questões da infertilidade, crise-socioeconômica sendo
discutida e a preocupação com o extermínio da raça
humana que está sem esperança de uma continuidade,
devido as mortes prematuras de crianças, ou pela
(gravidez que não se sustenta por abortos espontâneos) e

81
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

em hipótese eu menciono talvez pelo ecossistema,


radiação, poluição e alimentação com agrotóxicos.
As frases de reflexão que são introduzidas naquela
sociedade em 2027 "Ministério da Energia-Economize
água para salvar vidas", "Em 100 anos não terá ninguém
para ver isto, o que motiva continuar? E o personagem
confrontado pelo Theo, responde: " Não penso nisto, estou
vivendo o agora" ou "Informe qualquer atividade
suspeita", onde existe uma semelhança com a história
mundial devido a Pandemia, e citamos como exemplo no
Brasil, onde o Governo de São Paulo proibiu a livre
circulação da população se fundamentando nas
orientações da OMS (Organização Mundial de Saúde).
Onde se resolveu que deambular seja proibido entre os
dias de quarentena, justificando-se por questões de
segurança para Saúde Pública, e qualquer
descumprimento das mesmas sejam punidas com
restrições Jurídicas.
Se estivéssemos no lugar do (Theo ou Julian) a que
grupo pertenceríamos, ao Governo ou grupo dos
"terroristas" Peixes? O nosso condicionamento é baseando
no grupo em que estamos inseridos. Elliot Aroson (1972)
afirma que pessoas que fazem loucuras não são
necessariamente loucas e justamente o que traz o nosso
posicionamento frente a determinadas situações são as
circunstâncias sociais que provocam certas práticas de
histeria coletiva.
Quando ocorreu o nascimento da recém-nascida em
mais de uma década, aquela situação demudou o cenário
da guerra mesmo que momentaneamente, pois houve
uma reverência de ambos os grupos em saudação para a
mãe, a filha, e o "pai", mesmo não sendo biologicamente,

82
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Theo traz uma representação simbólica dos três como


família. Lembrando até de Maria, José e Jesus, fugindo
para o Egito para sobreviverem à guerra do governo
(Herodes) que ordenou extermino de todas as crianças
recém-nascidas, conforme a bíblia em Mateus, 50: 02).
Já no barco e navegando, Theo começa a entrar em um
processo de hipóxia, que é a falta de oxigenação no corpo,
ocasionada pelo ferimento de arma de fogo e causou perda
de sangue e desajuste de sua pressão arterial. E nos seus
últimos momentos de lucidez recomenda para que a mãe
tome conta de sua filha, lhe dando acima de tudo
"esperança" verbalizando "mantenha junto de você,
porque tudo vai dar certo" e logo o barco com a palavra
em inglês "Tomorrow", que em tradução significa amanhã,
resgata mãe e filha. Existe um provérbio popular que diz:
"Não deixe para amanhã, o que se pode fazer hoje" e temos
certeza que nesse momento que estamos experimentando
o isolamento social, esse ditado já reverberou bastante em
nossa reflexão como seres humanos. O amanhã nos traz
esperança, amanhã nos eleva para projeções de sonhos do
que viemos no hoje, do que gostaríamos de viver no
futuro, e do que viemos no agora, sem direito de ir e vir
pelo covid-19.
Durante a leitura dos trechos apresentados em suas
diferentes nuances provocativas para reflexão coletiva,
percebemos a interação que as obras cinematográficas
fazem com as interpretações de Mikhail Bakhtin a partir
deste contexto de futuro limpo representados pela
linguagem audiovisual e do nosso olhar crítico e analítico
a partir destes contextos de cinema e leitura, e da simbiose
existente entre dois elementos tão distintos que produzem
comunicação e linguagem. No filme “Inteligência

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Artificial”, o esforço da tecnologia moderno foi de projetar


algo tão perfeito que pudesse eternizar a estrutura
humana, forjada em um corpo robótico incluindo emoções
genuínas da humanidade, mais de fato focamos apenas
em David que é o protagonismo do filme.
No entanto, o engenheiro do robô, que é o criador de
David, não é visto como alguém tão relevante na narrativa
do filme, e quando analisamos a personalidade do robô, se
faz uma leitura nas entrelinhas, onde se percebi a
necessidade do engenheiro-(homem) em projetar suas
próprias subjetividades, necessidades no desejo
inconsciente de se eternizar, mesmo quando o mundo
acabar e só sobrar seu androide com sua memória-chip no
cérebro robótico.
Desde as antigas civilizações a projeção do futuro de
se eternizar, já faz parte da construção social dos humanos
e fazemos uma ponte entre os filmes, os textos do círculo
de Bakhtin e a história propriamente dita, onde os
registros hieróglifos revelam na cultura esse desejo de dar
continuidade na "vida eterna" através dos imponentes
monumentos arquitetônicos como a pirâmides de Gizé,
que na verdade são túmulos dos Faraós e para além da
estrutura megalomaníaca dos reis do Egito, a preocupação
destes era a permanência de sua existência no passado,
presente e futuro (DOBERSTEIN, 2010).
O tempo passou e em pelo século XXI o desejo humano
por se eternizar só avançou, a morte fisiológica ainda é
realidade por hora, entretanto alguns milionários da elite
global, já investem em pesquisas de tecnologia (não tão
divulgadas) que possam concretizar a sua ambição de
eternidade.

84
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

O empresário Elon Musk, por exemplo está trabalhando em


um projeto para conectar o cérebro humano a um
computador. A ideia é libertar o cérebro do corpo, quando
estiver envelhecido e abrir a porta para uma vida digital
eterna. Trata-se de usar a tecnologia para aprimorar nosso
estado intelectual, físico e psicológico por meio do chamado
"mind-upload" expressão criada na filosofia para se referir a
transferência da mente humana para um computador. (BBC
BRASIL, 2018, p. 01).

Algo que os cientistas já afirmaram ser possível nos


próximos anos, quando conseguirem decifrar o cerebelo
por completo tendo em conta sua alta complexidade de
conexões neurais. Sobre outros temas atuais elencamos
também a substituição da água como produto natural, por
energéticos, refrigerantes e outras bebidas que fazem
parte da grande indústria obscura alimentícia, onde é cada
vez mais comum a inserção de comidas rápidas e bebidas
industrializadas no cardápio das sociedades modernas
que fazem parte da alimentação essencial dos
consumidores que alegam não ter tempo para escolhas
mais saudáveis e por isso optam por ingerir o que já está
pronto nas franquias. O que essas empresas do ramo da
alimentação não informam aos consumidores é que seus
alimentos existe um aminoácido viciante chamado de
fenilalanina, que é responsável por sensação de prazer e
desta forma você se torna dependente químico com
alimentos como chocolate, refrigerantes, entre outros, e
após anos de consumo dos produtos você vai desenvolver
doenças e comorbidades como hipertensão e diabetes
dentre outras, e será um novo consumidor do mercado
farmacêutico, que assim como os alimentos não curam,
pois as medicações só aliviam sintomas, e estas comidas

85
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

não nutrem seu corpo só aliviam a fome, e tudo está


conectado com o governo (OLIVEIRA, FREITAS, 2008).
A Agência nacional de vigilância sanitária (ANVISA)
sabe das tabelas nutricionais dos alimentos e dos
benefícios e malefícios a longo prazo em relação ao
consumo dos alimentos, porém quem comanda esta
agência é o governo, e assim como nos filmes os interesses
dos empresários são outros e quando estamos inseridos
em um sistema de condicionamento capitalista, somos
consumidores ativos e meros números estatísticos.
Recomendamos aos colegas leitores um
documentário excelente que acredito que vai contribuir
para todos terem um novo olhar sobre essas questões
sobre nossa alimentação e associação das doenças
ocasionados pelas mesmas, o documentário se chama
WHAT THE HEALTH (2017) e que está disponível na
Netflix e no Youtube dublado, valendo a pena se permitir
fazer uma audiência sobre os temas abordados.
Em relação a identidade digital não é mais novidade
que tudo está caminhado para termos apenas um único
documento que forneça dados específicos ao nosso
respeito. Hoje no Brasil nos temos RG, CPF, Carteira de
reservista, carteira de trabalho, carteira de motorista,
passaporte, dentre outros. Não seria muito mais práticos
termos em um único documento todos estes dados. E esta
proposta que já tramitava na Câmara dos deputados foi
discutindo em detalhes para se fazer a carteira de
habilitação digital e composta com chip e que pode ser
apresentada pelo celular, que conterá todos os
documentos mencionados em território nacional e já
entrou em vigor no Brasil e estamos no processo de
transição da mesma (SERPRO, 2018).

86
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Para finalizar e falando sobre obras de ficção científica


do cinema, nunca nos esquecemos dos filmes da trilogia
"De volta para o Futuro", que apresentava uma narrativa
do presente com aspecto futurista onde a era possível
voltar no passado e mergulhar no futuro, em ambos os
tempos percebemos uma interação com o tempo e
episódios que podem demudar nossas escolhas por outro
olhar do desejo científico dialogando com nossas
projeções, assim com o desenho “The Jetsons”, que
ousadamente nos apresentava essa tecnologia
revolucionário e convivência de humanos e robôs e o
avanço da humanidade com carros que voam.
Assistimos ao filme "Eu sou a lenda" e rememoramos
com a obra cinematográfica os ambientes reais da cidade
de Nova Iorque, que conhecemos recentemente pelas
férias vivenciadas na última semana de janeiro de 2020. E
nos colocamos no lugar do Robert Neville, o protagonista,
por transferência inconsciente pelo seu olhar, pois
andamos nos mesmos lugares da ilha de Manhattan, como
Times Square, ponte do Brooklyn e até o Metropolitan
Museum of Art, onde fomos ao "Templo de Dendur"
(Egípcio) onde ele tentava pescar. A história pós-
apocalíptica implica em um recomeço na vida do
personagem, pois quando vivemos em sociedade com
todos os processos da rotina planejada e de repente, uma
catástrofe nos tira de nossa zona de conforto, essa
transição leva um tempo para nossa adaptação.
Quando refletimos sobre a frase "Nada aconteceu
como deveria ter acontecido" imediatamente invocamos
nossos diálogos bakhtinianos pelos sonhos, frustrações,
projeções e nos deparamos com a história de Robert, sobre
a perspectiva da nossa vida, onde somos os únicos

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

sobreviventes a viver na cidade de Campina Grande-PB


(mentalize sua cidade). Quando nos comunicamos será
que nosso discurso está sendo ouvindo? A transmissão
com a mensagem chegou em algum destino? "Se alguém
estiver a ouvir... Por favor... (Responda).
Ao término das nossas férias, que foram 15 dias
intensos de exploração nos principais pontos turísticos,
chegamos ao Brasil onde a manifestação da Covid-19
(coronavírus) em apenas uma semana de diferença entre
nossa partida se instalou de forma instantânea na cidade
de Nova Iorque e como no filme "Eu sou a Lenda", as
principais cidades do mundo estão vivendo um fenômeno
apocalíptico, pela morte de milhões, contágio de tantos
outros milhões e para nós que estamos nessa rotina, um
isolamento social do qual aprendemos perceber a imersão
que vivemos do futuro limpo e sujo do cinema como
prática social.
O perigo real seria o tédio, o vício, comprometer nossa
saúde mental? As perguntas que fazemos, porque as
pessoas estão morrendo de Covid-19? Robert se
perguntou por que as pessoas viram vampiros? As
respostas buscamos como Neville na Biblioteca, ao uso de
novas práticas de tecnologias educacionais e tentando
buscar um planejamento de matar o vírus (matar
vampiros). Para sobrevivermos a essa situação global e
percebermos que não estamos sozinhos.

Considerações finais

Acreditamos que ficou em desuso o pensamento


crítico e primitivo que restringia o cinema apenas para o
processo de entretenimento, pois em muitas das

88
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

produções cinematográficas, compreendemos os filmes


como instrumento pedagógico que nos auxiliam como
professores em sala de aula.
Para além da leitura de um texto, histórico, podemos
usar essa ferramenta como complemento de uma reflexão
de uma determinada discussão, que pode nos trazer
diálogo profícuo entre os alunos, ou colegas docentes.
Nesse momento contemporâneo, onde estamos
vivenciando um pânico coletivo acerca da pandemia da
Covid-19 (coronavírus), não podemos deixar de
mencionar o filme dramático que foi exibido no ano de
1995 (EPIDEMIA) do diretor Wolfgang Petersen, que
narra a história de um vírus mortal contagioso e
percebemos que o cinema já discutia um tema atemporal
o que é a Saúde Pública. Colocando definitivamente o
cinema como uma prática social, que nos faz pensar além
da bolha que estamos condicionados, e traz uma
desconstrução para nossa educação.
Quando ampliamos a nossa observação, para o campo
da sétima arte, onde uma diversidade de pessoas se
encontra em um mesmo ambiente, como sala de cinema,
por um objetivo em comum, que é o filme. Percebemos
que existe uma “comunicação” mesmo que silenciosa, que
se dá a ponto de sermos abduzidos, pelas representações
de uma linguagem audiovisual da tela de cinema. Que
nos conecta, com as reproduções cénicas, e as inferências
que construímos diante da ficção, com a nossa vida
pessoal, logo todos naquele recinto estão dialogando, e
trazendo uma conexão mental.
Lembramos que após a última película do “Harry
Potter e as relíquias da morte - parte II”, bateu uma
saudade, pelo fim de um mundo de fantasia que estava

89
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

sendo finalizado, naquele compilado de oito filmes, e que


crescemos lendo livros e assistindo sua adaptação para as
grandes telas. Dez anos depois, quando saiu o primeiro
filme de uma nova franquia do mesmo universo em
“Animais fantásticos e onde Habitam” ao iniciar a trilha
sonora da Pedra filosofal, um frenesi dos espectadores,
inclusive este autor, foi de tal forma avassaladora que
todos começaram a aplaudir, bater palmas de forma tão
vibrante que o entusiasmo, arrepio, lágrimas, gritos, foram
as reações provocadas naquele momento. O dialogismo
Bakhtiniano estava inserido naquele momento de
elevação fílmica, diante da reflexão neurofilosófica que
criamos naquele espaço.

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92
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

UMA REFLEXÃO SOBRE A CONVERGÊNCIA DOS


CONCEITOS BAKHTINIANOS

Francisco Benedito LEITE1


Claudia de Fátima OLIVEIRA 2
Ricardo Boone WOTCKOSKI 3

O presente texto contém uma reflexão sobre alguns


conceitos fundamentais desenvolvidos pelo estudioso
russo Mikhail Mikhailovich Bakhtin (Oriol, 1895 –
Moscou, 1970). A proposta é, em primeiro lugar,
apresentar uma explicação elementar sobre cada um deles,
utilizando-se sempre das referências encontradas na obra
do próprio autor; em segundo lugar, mas não
separadamente do procedimento anterior, propomo-nos a
apontar como esses conceitos mencionados estão
interligados para realização de estudos e procedimentos
analíticos relacionados com o domínio do saber das
ciências da linguagem.
No que se refere aos conceitos propriamente ditos,
trataremos do “dialogismo”, dos “gêneros do discurso”,

1 Doutor em Letras (Filologia e Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo. Mestre
em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Bacharel em Letras
(Português-Grego) pela Universidade de São Paulo; Licenciado em Letras (Português) pela
Universidade Cruzeiro do Sul. Bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Professor de Teologia na Faculdade da Igreja Messiânica Mundial do Brasil. E-
mail: ethnosfran@hotmail.com.
2 Doutoranda em Linguística pela Universidade de Franca. Mestre em Linguística e

Especialista em Direito do Trabalho pela mesma Universidade. Bacharel em Direito pela


Faculdade de Direito de Franca. Graduada em Letras pela Universidade de Franca.
Professora de Redação no Ensino Médio e em cursos pré-vestibulares. Proprietária do
Palavrizar, Unidade Franca, SP. E-mail: claudia.oliveira.morais19@gmail.com.
3 Doutorando em Linguística pela Universidade de Franca. Mestre em Ciências da Religião

pela Universidade Metodista de São Paulo. Graduado em Letras, Pedagogia e Teologia.


Docente na FATEC Mococa, SP e no Claretiano – Centro Universitário de Batatais, SP. E-
mail: rwotckoski@gmail.com.

93
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

da “carnavalização”, da “história do romance” e dos


“gêneros baixos” e indicaremos que há uma conexão entre
eles, independentemente do momento histórico em que
foram forjados. Ainda que indiretamente, isso significa
que há um projeto por detrás das reflexões e teorias
convergentes de Bakhtin, o que ele mesmo nomeou de
socioideologia e, em outro aspecto, também está
relacionado com a proposta da metalinguística.
A importância do conteúdo indicado por meio dos
argumentos deste artigo é apontada pelo que assinalamos
na obra de Bakhtin, ao citar diretamente seus conceitos e,
assim, valorizar seu pensamento, sem a associação do
conteúdo de sua reflexão com a Análise do Discurso, a
Psicanálise, os Estudos Culturais etc., que foram relações
criadas posteriormente. Não desprezamos a importância
de Bakhtin para essas áreas de estudo, nem a
plausibilidade da utilização de suas teorias desenvolvidas
nos âmbitos destes domínios; mas afirmamos
reiteradamente a necessidade de sempre retomar seus
conceitos fundamentais para não correr o risco de
substituir o legado do intelectual russo por interpretações
posteriores, que apesar da validade, acabam por se
sobrepor às suas teorias em sua proposta original.

Dialogismo

Dialogismo é o conceito bakhtiniano que mais


reverberou nos domínios de estudos da linguagem e
também em outras áreas das Ciências Humanas.
Fundamentalmente o dialogismo tem a ver com diálogo e
dialética. Como “diálogo” tem relação com um conceito
que está enraizado na história da filosofia ocidental, desde
o pensamento de Sócrates, que se baseava no diálogo

94
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

concreto, propriamente dito, conhecido no vocabulário


filosófico como “maiêutica”, o qual tratava de chegar ao
conhecimento da verdade por meio do diálogo com
pessoas normais em situações cotidianas. De modo que
pelo diálogo o ser humano dava conta de sua ignorância
(“conhece-te a ti mesmo”) e desconstruía as supostas
verdades infundadas.
Além disso, o dialogismo também está relacionado
com a “dialética”, de modo específico, com o modo como
a utilizou o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich
Hegel (1770-1830), que tratou do movimento teleológico
da História que se desenvolve num processo crescente e
progressivo. Como se supõe, era uma visão idealista e em
certo aspecto otimista da realidade, de acordo com a qual
a grande narrativa universal tem uma meta a realizar e até
que se chegue a esse ponto, a história se movimenta
dialeticamente através de teses e antíteses que geram
sínteses.
Essa fundamentação filosófica dos conceitos
bakhtinianos pode ser compreendida quando se leva em
conta que na primeira etapa de sua trajetória intelectual,
Bakhtin refletia sobre assuntos do domínio da Filosofia.
Nessa época estava fortemente influenciado pela filosofia
alemã do neokantismo, de modo mais específico, pela obra
de Cassirer, que foi importante para realizar as reflexões
que seriam desenvolvidas futuramente. A fase filosófica
do pensamento de Bakhtin, no qual a influência da
filosofia alemã é mais intensa pode ser indicada, por
exemplo, por meio do livro Para uma Filosofia do Ato Ético
(1997).
Além desses dois importantes conceitos filosóficos –
“diálogo” e “dialética” – que estão intrinsicamente

95
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

presentes na concepção do dialogismo, também


influenciaram Bakhtin, ideias de seu contexto intelectual
especifico, derivadas tanto de pensadores do contexto
alemão como o caso de Wilhem Von Humboldt (1767-
1835), que é citado por Bakhtin reiteradas vezes; mas
também de intelectuais da União Soviética do fim do
século XIX e do começo século XX, que postularam teorias
sobre o funcionamento da linguagem a partir da
concepção materialista, como podemos mencionar
Nicholas Marr (1865-1910) e Lev Jakubinskij, do qual
temos a obra traduzida para a língua portuguesa: Sobre a
Fala Dialógica (2015).
A partir do conhecimento de que o conceito
dialogismo está fundamentado tanto na filosofia idealista
alemã quanto na linguística materialista soviética,
entendemos que o diálogo pressuposto pelo termo é tanto
ideal quanto concreto. Assim Bakhtin propõe que todo
discurso está inserido em uma corrente comunicativa
(dialógica) universal que se estende ao longo da história
da humanidade, desde épocas antiquíssimas até um
futuro indeterminado. Existe uma história do enunciado
que se realiza ao longo da trajetória realizada por ele,
desde seu surgimento, primeiro como enunciado da
comunicação direta em gêneros primários que se efetivam
de forma espontânea e livre, e posteriormente desenvolve-
se em gêneros discursivos secundários como os que se
fixam em formas cristalizadas, como os gêneros da
retórica ou os gêneros literários, por exemplo, que não são
formas espontâneas de comunicação, ao invés disso
apresentam padrões. Então o diálogo é compreendido
pela comunicação direta, mas também por uma história
idealizada da comunicação humana.

96
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Em qualquer que seja de suas formas, todo enunciado


sempre e necessariamente está ligado aos demais
discursos existentes numa dinâmica dialógica de
perguntas e respostas que leva seu sentido ao
desenvolvimento e também o leva a adquirir novos
significados, de acordo com os contextos renovados nos
quais são enunciados. Todo enunciado é uma resposta a
outro enunciado e produz respostas a outros enunciados
que o questionam. Assim a História é a linha contínua na
qual acontece a comunicação e também é a grande
geradora de discursos, por isso, podemos dizer que a
História na qual se desenvolve esse grande diálogo é
sinônima de “cultura”.
Em termos populares, podemos dizer que o
dialogismo também pode ser exemplificado por meio
daquela conhecida brincadeira de telefone-sem-fio, na
qual surge um enunciado, e a ideia pronunciada evolui ao
longo do exercício de sua comunicação realizada boca a
boca, efetivada entre os indivíduos, sujeitos do enunciado,
até que, ao chegar do último da fila dessa corrente
comunicativa, o enunciado já se transformou parcial ou
completamente. Se isso acontece de modo tão fácil de se
observar na realidade concreta do cotidiano, no “longo
tempo” – termo utilizado por Bakhtin para tratar de
elementos da cultura humana que se realizam ao longo da
História – acontece a mesma coisa, mas ao invés de
indivíduos concretos que se comunicam, o que ocupa o
espaço central são as culturas que se desenvolvem em
contato umas com as outras, conduzindo o
desenvolvimento de elementos culturais comunicativos
como a literatura, o imaginário, a religião, a filosofia, as
artes etc, os quais são composições discursivas.

97
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Na obra de Bakhtin, o conceito dialogismo e os termos


correlacionados ou que fazem alusões a ele estão
espalhados por textos escritos em diversos momentos
diferentes de sua trajetória intelectual e também na obra
Marxismo e Filosofia da Linguagem (VOLÓCHINOV, 2017),
que apesar de em momentos passados da história de sua
recepção, sua autoria ter sido atribuída a Bakhtin, em
momentos mais recentes voltou-se a considerá-la como
sendo da autoria de Valentin Volóchinov (São Petesburgo,
1895 – São Petesburgo, 1936), membro do mesmo círculo
de intelectuais ao qual pertenceu Bakhtin e Pavel
Medvedev (São Petesburgo, 1892 – Leningrado, 1938), que
também tem textos com autoria disputada com Bakhtin.
Na melhor das hipóteses, Bakhtin seria coautor, ou uma
influência significativa, no processo de elaboração desses
textos em disputa, mas não o autor, porque se verifica uma
considerável diferença teórica entre as obras cuja autoria
esteve em disputa e os demais textos de autoria não
questionada.
Como afirmamos ser nossa proposta,
permaneceremos atrelados à obra de Bakhtin. Para
continuar alcançar nossos objetivos de refletir sobre o
conceito mencionado, verifiquemos como o próprio
pensador russo, em um texto de autoria não disputada,
explica o conceito que estamos discutindo:
Dois enunciados distantes um do outro, tanto no tempo
quanto no espaço, que nada sabem um sobre o outro, no
confronto dos sentidos revelam relações dialógicas se entre
eles há ao menos alguma convergência de sentidos (ainda
que seja uma identidade particular do tema, do ponto de
vista, etc.) (2010, p.331).

Nota-se que as relações dialógicas, conforme essa

98
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

referência, vão além de perspectivas de literatura


comparada ou história da recepção, pois o diálogo que
acontece entre os enunciados que estão nas obras
literárias, nas obras de arte e em outros fenômenos da
cultura não é necessariamente uma relação de derivação
ou contato direto, mas a convergência existente entre os
enunciados que se manifestam em determinados
fenômenos culturais que estão distanciados pode vir de
um enraizamento histórico antigo a perder-se de vista ou,
independentemente disso, ambos os enunciados
encontram-se em diálogo no momento em que são
relacionados, uma vez que nessa concepção, o sentido da
comunicação é desenvolvido no diálogo.
Esse processo comunicativo que desenvolve o
significado dos enunciados que estão inseridos nos
discursos – concebidos nesse sentido como fenômenos
comunicativos da cultura humana – no meio de diálogos,
concretos ou não, que se realizam ao longo da história da
humanidade, produz a instabilidade dos sentidos
justamente porque estão sendo sempre renovados e
reproduzidos, apesar de significativas manifestações
diferenciadas registradas em discursos do passado. Sobre
essa instabilidade dos sentidos, Bakhtin afirma:
Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites
para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem
limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do passado,
isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, podem
jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por
todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo
de desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo. Em
qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem
massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em
determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do

99
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

diálogo, em seu curso, tais sentidos serão relembrados e


reviverão em forma renovada (em novo contexto). Não
existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa
de renovação. Questão do grande tempo (2010, p.410).

Além da evolução dos sentidos existente na


comunicação humana, Bakhtin também ressalta no
excerto citado que existe “renovação dos sentidos”, ou
seja, os sentidos do passado não foram absolutamente
esquecidos de uma vez por todas, antes estão
adormecidos, aguardando até que sejam relembrados e
revivam num momento futuro, que aparentemente é
escatológico, o que combina bem com a matriz idealista
hegeliana do pensamento bakhtiniano.

Os gêneros do discurso

De acordo com Bakhtin, a grande corrente dialógica


que envolve o mundo, a começar pelos sujeitos concretos
da comunicação verbal, até influenciar o movimento da
História, também em formas não verbais (como, por
exemplo, as discussões filosóficas, as tendências das artes
plásticas, os dogmas religiosos e o que quer que
compreendamos como componente da cultura humana),
dá-se por meio de gêneros do discurso, que corresponde a
uma concepção significativamente diferente das
tradicionais classificações que se tinha dos gêneros, sejam
literários, poéticos, retóricos, etc.
Nesse caso, os gêneros “estabilizam” – para
mencionar o termo utilizado pro Bakhtin – os enunciados.
Isso quer dizer que a linguagem humana e as múltiplas
possibilidades significativas que os enunciados podem
adquirir em meio à comunicação humana concreta, que,
nessa interação social, adquire a condição de “discurso”

100
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

específico, de acordo com seu gênero e assim altera ou


define o significado de seus conteúdos.
Na formulação de Bakhtin que se tornou clássica,
lemos:
Todos os diversos campos da atividade humana estão
ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente
que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes
quanto os campos da atividade humana (...) O emprego da
língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos),
concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou
daquele campo da atividade humana. Esses enunciados
refletem as condições específicas e as finalidades de cada
referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo
estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos
lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de
tudo, por sua construção composicional (...) Evidentemente,
cada enunciado particular é individual, mas cada campo da
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso (2010,
p. 261-262).

A riqueza das perspectivas de estudos possibilitada


pelo desenvolvimento dessa concepção dos gêneros do
discurso foi incalculável para o desenvolvimento das
ciências da linguagem. Apesar disso, apontaremos como
essa noção se relaciona com outra concepção de Bakhtin, a
do carnaval e sua manifestação na cultura e na literatura,
a carnavalização.

O carnaval bakhtiniano e a composição do romance

Em conexão com o conceito de dialogismo e com a


teoria sobre os gêneros do discurso, verifiquemos, em
primeiro lugar, algo a respeito da obra Cultura Popular na
Idade Média e no Renascimento: O contexto de François
Rabelais (2010). Esse texto foi elaborado primeiramente na

101
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

década de 1940 para ser defendido como tese de


doutorado no Instituto de Literatura Mundial Máximo
Gorki. Por motivos controversos sua tese não foi aprovada
e Bakhtin não obteve o título de doutor, e sua publicação
saiu posteriormente, em 1965, como livro.
Em vista de textos escritos anteriormente, como os
que discutem filosofia, filosofia da linguagem e
linguística, nessa obra há uma notável diferença na
metodologia e na linguagem por dois motivos que
parecem bastante sugestivos: em primeiro lugar, por ter se
tratado de uma tese em sua forma inicial; e, em segundo
lugar, porque aborda temas da literatura mundial.
Assim, entendemos que as características particulares
de Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento
justificam-se porque o texto é um estudo literário
construído sobre certas perspectivas metodológicas do
que na época era a Crítica Literária, mobilizadas para o
empenho de abordar a obra renascentista, escrita em
quatro volumes, Gargantua e Pantagruel (em francês: Les
horribles et épouvantables faits et prouesses du très renommé
Pantagruel Roi des Dipsodes, fils du Grand Géant Gargântua)
do humanista francês François Rabelais (Chinon, 1494 -
Paris, 9 de abril de 1553).
No entanto, Bakhtin foge dos procedimentos
estritamente literários (formais, estilísticos, filológicos,
históricos, etc.) utilizados normalmente para esse tipo de
proposta de estudo na época. Ao invés de utilizar os
recursos metodológicos tradicionais, o pensador russo se
propõe a investigar as fontes culturais da literatura cômica
de Rabelais e, podemos dizer que a escolha desse autor já
era estranha no contexto acadêmico. É oportuno dizer que
o humanista francês, do qual a obra é tema do estudo de

102
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Bakhtin, não era tomado em alta estima na academia pelo


teor cômico de sua obra, que em certos aspectos era
considerada imoral para a população ilustrada da Europa
desde sua escritura, no século XVI.
Bakhtin, porém, coloca Rabelais entre os mais ilustres
escritores da literatura mundial e afirma que “não resta
dúvida de que o lugar histórico que ele ocupa entre os
criadores da nova literatura europeia está
indiscutivelmente ao lado de Dante, Boccaccio,
Shakespeare e Cervantes” (2010, p.4), apesar de sua falta
de popularidade na União Soviética daquele determinado
momento histórico em que vivia.
Mesmo sem utilizar o conceito “dialogismo” ou
termos correlacionados, nessa obra, Bakhtin entende que
a comicidade do livro de Rabelais é a catalização de uma
manifestação milenar da cultura ocidental marginalizada,
os gêneros discursivos baixos, tanto literários (humor,
paródia, sátira, etc.) quanto gestuais (tapas nas costas e na
barriga) e discursivos (conversas de baixo calão, ofensas
jocosas) e que encontrar as fontes dessa comicidade
significaria mostrar a importância do autor francês cuja
obra se constitui como acervo de múltiplas vozes
marginalizadas do passado, as quais estão em diálogo com
a cultura e não podem ser esquecidas, apesar da tentativa
de uma sociedade elitista, acadêmica, ilustrada e agelasta
tentar calá-la, ignorá-la fatidicamente como insignificante.
De acordo com essa compreensão, a obra de Rabelais
mostra a existência de um diálogo milenar entre as
diferentes manifestações da cultura humana. Suas fontes
são indicadas por meio de: “1. As formas dos ritos e
espetáculos; 2. Obras cômicas verbais; 3. Diversas formas e
gêneros do vocabulário familiar” (2010, p.4). Então, como se

103
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

observa, o diálogo de Rabelais não é realizado apenas com


outras formas verbais de gênero baixo – embora também
com elas –, mas com tipos de manifestações culturais
específicas, sumarizadas, mas não reduzidas, pelos
carnavais medievais, festas caracterizadas pelas inversões
em múltiplos aspectos; e com gêneros comunicativos
utilizados entre familiares e amigos íntimos, cuja
realização, apesar de aparentar ofensa, tem seu significado
vulnerabilizado na ocasião de sua performance, dado o
ambiente amistoso e familiar que o proporciona.
A proposta de Bakhtin é que as comicidades, as
narrativas sórdidas, os dizeres de baixo calão e todas as
vulgaridades que estão na obra de Rabelais não podem ser
reduzidas à anedota burguesa, ao invés disso, devem ser
levadas em conta como elo de comunicação da cultura
marginalizada da antiguidade, a qual estava em obras
literárias, mas em celebrações catárticas como as festas
saturnais e os bacanais do mundo antigo e o festejos
carnavalescos do mundo medieval, além de hábitos
cotidianos familiares praticados entre amigos íntimos. Na
verdade, as fontes de Rabelais são importantes porque
apontam para uma concepção da vida, uma cosmovisão
da realidade que antecede à sociedade de classes,
portanto, compartilha algo de essencial do modo como o
ser humano concebeu sua existência no mundo antes
estratificação da sociedade em classes sociais e antes da
concepção filosófica, religiosa e científica da realidade,
que na linguagem de Cassirer, que é a base desse
pensamento, são denominadas de “formas simbólicas”
(2012).
A valorização dos gêneros baixos também é proposta
por Bakhtin no capítulo inserido posteriormente em

104
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Problemas da Poética de Dostoievski, cujo título é


“Peculiaridades do gênero, do enredo e da composição
das obras de Dostoievski”4. Na abordagem realizada nesse
texto, o estudioso russo fala de uma “cosmovisão
carnavalesca”
A cosmovisão carnavalesca é dotada de uma poderosa força
vivificante e transformadora e de uma vitalidade
indestrutível. Por isso, aqueles gêneros que guardam até
mesmo a relação mais distante com as tradições sério-cômico
conservam, mesmo em nossos dias, o fermento carnavalesco
que os distingue acentuadamente entre outros gêneros. Tais
gêneros sempre apresentam uma marca especial pela qual
podemos identificá-los. Um ouvido sensível sempre
adivinha as repercussões, mesmo as mais distantes, da
cosmovisão carnavalesca (2010, p. 122).

Como mencionado no excerto, nesse caso, Bakhtin


não se refere aos gêneros baixos constituídos
historicamente, como os gêneros literários e discursivos,
os festejos e rituais e os vocabulários vulgares de uso
familiar. Enquanto todos esses itens podem ser
referenciados em elementos ou situações concretas e
historicamente situáveis, quando se menciona
“cosmovisão carnavalesca”, passa-se a tratar do
simbolismo carnavalesco em termos metafísicos, como:
“poderosa força vivificante e transformadora e de
vitalidade indestrutível”.
Os gêneros baixos e a história do romance
Além dos aspectos descritos, em Problemas da Poética

4 O livro Problemas da Poética de Dostoievski foi escrito originalmente em 1929, mas,


posteriormente, na década de 1963, foi inserido o capítulo mencionado, surgindo assim uma
nova edição. A edição traduzida para a língua portuguesa contém esse capítulo que foi
inserido posteriormente, o qual retoma as ideias sobre a carnavalização que estavam na tese
doutoral de Bakhtin.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

de Dostoievski, Bakhtin aponta para a cosmovisão


carnavalesca como elemento constitutivo essencial para a
formação do romance ao longo dos séculos, num intenso e
complexo processo histórico que proporcionou o seu
desenvolvimento, entendido como gênero composto pelo
fenômeno dialógico realizado por múltiplas vozes
(heteroglossia), as quais são trazidas das margens das
sociedades em que foram reconhecidas pela primeira vez,
para em épocas posteriores ocuparem lugares
privilegiados para realização da leitura, sobretudo, da
classe burguesa, no conteúdo de romances modernos.
Os artigos Da Pré-História do Discurso Romanesco e Epos
e Romance (Sobre a metodologia do estudo do romance), que na
edição em língua portuguesa fazem parte da coletânea de
textos de Bakhtin intitulada Questões de Literatura e de
Estética (2010), estão inseridos na mesma proposta que o
capítulo mencionado de Problemas da Poética de Dostoiévski,
pois mencionam o fenômeno dialógico complexo que
levou as forças históricas pouco a pouco produzirem o
romance propriamente dito.
Mesmo tendo muitos outros aspectos ricos a serem
explorados, esses textos mostram que a pré-história do
romance está ligada dialogicamente a uma longa evolução
(teleológica) e, nesse processo, dependeu de gêneros
vulgares para o seu desenvolvimento, até que chegasse ao
romance propriamente dito, que é forma discursiva
privilegiadamente dialógica, plurivocal e heteroglótica, no
sentido em que todos esses termos remetem à pluralidade
envolvida em sua produção discursiva.
O estudo de seus conceitos em correlação mostra que
a obra bakhtiniana possui um aspecto arquitetônica que
precisa ser explorado. Ao longo de seus textos, o

106
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

intelectual russo se refere à “metalinguística” para tratar


de aspectos da linguagem que superam o textual, quer
sincrónico quer diacrônico, para abordar a linguagem em
sua interação social, como apontamos ao elucidar as
teorias e os conceitos: “dialogismo”, “gêneros do
discurso”, “carnavalização” e “história do romance”.
Junto com outros membros de seu círculo intelectual,
Bakhtin nomeou essa metodologia de social ou
socioideológica.

Considerações finais

Em nossa reflexão realizamos uma releitura de alguns


dos conceitos fundamentais de Bakhtin, explorando o
significado de cada um deles e, em seguida, propondo-nos
a compreender a correlação existente entre eles na
composição de uma ciência interpretativa que se aplica à
linguagem, compreendida em sentido amplo.
Essa passagem pelos conceitos e teorias bakhtinianas
teve a intenção de acessar novamente seu postulado sem
intermediação de intérpretes não porque diminuamos a
importância das correlações feitas posteriormente dos
aportes teóricos de Bakhtin com propostas que ele não
prescindiu; mas, ao invés disso, revisitar a obra de Bakhtin
significa reafirmar a importância de seu legado e buscar a
renovação da interpretação das obras deixadas por ele.
Igualmente importante é apontar para a
socioideologia proposta por Bakhtin e seu círculo, a qual
se manifestou no legado desses pensadores, mas devido a
eventos históricos específicos, não se implantou em
nenhuma sociedade moderna como pretendiam seus
postulantes. Assim também a interpretação do que seja a

107
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

metalinguística de Bakhtin fica aberta para a discussão, já


que parece que não há clareza quanto ao seu significado.

Referências
BAJTIN, M. M. Hacia una filosofia del acto ético. De los borradores y
otros escritos (Pensamento Crítico Pensamento Utópico; 100. Série
Estudios Culturales). Trad. Tatiana Bubnova. Barcelona:
Anthropos, 1997.
BAKHTIN, M. M. Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: O contexto de François Rabelais. Trad. Yara
Frateschi Vieira. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
______. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5 ed. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
______. Metodologia das Ciências Humanas. In: ______. Estética da
Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5 ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2010, p.393-410.
______. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras
ciências humanas. In: ______. Estética da Criação Verbal. Trad.
Paulo Bezerra. 5 ed. SP.: WMF Martins Fontes, 2010, p.307-336.
______. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 5
ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
______. Questões de Literatura e de Estética: A teoria do romance.
Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. 6 ed. São Paulo Hucitec, 2010
CASSIRER, E. Ensaio sobre o Homem. Introdução a uma filosofia da
cultura humana. Trad. Tomás Rosa Bueno. 2 ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2012.
JAKUBINSKIJ, L. Sobre a Fala Dialogal: Textos editados e
apresentados por Irina Ivanova (Linguagem; 15). Trad. Dóris de
Arruda C. da Cunha e Suzana Leite Cortez. S. P.: Parábola, 2015.
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem.
Trad. Sheila Grillo e Ekaterina V. Américo. S. P.: Editora 34, 2017.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

UMA ANÁLISE DISCURSIVA DE “GESTOS DE


AUTORIA” EM PRODUÇÕES TEXTUAIS DE
ALUNOS INGRESSANTES NO CURSO DE LETRAS,
CÂMPUS GOIÂNIA

Iara OLIVEIRA1
Juliana de Souza LOBO2
Limerce Ferreira LOPES3

A construção de um texto na academia é ainda, muitas


vezes, orientada pela aplicação de fórmulas e noções de
certo e errado, isto é, pela prescrição. Essas noções
referem-se aos fatores internos da língua (gramática),
dada pelo estruturalismo como um sistema fechado e
cujos significados são imanentes. O sujeito, na noção
saussuriana, não é visto como parte essencial na
significação do texto, o que limita a noção de autoria à
ordem da gramática. Contudo, as concepções de
(língua)gem posteriores ao estruturalismo, como a da
análise do discurso (AD) de linha francesa, que tomou o
discurso e o sujeito como objetos de estudo, permitiram
que uma nova noção de texto e discurso surgisse e,
consequentemente, uma nova noção de autoria, ainda
pouco explorada na academia.
A construção de um texto, sob o viés da AD, pressupõe
escolhas linguísticas e negociação entre interlocutores e,
por consequência, resulta em efeitos de sentido

1 Instituto Federal de Goiás/Campus Goiânia/Licenciatura em Letras – PIBIC. E-mail:

olieviara@gmail.com
2 Instituto Federal de Goiás/Campus Goiânia/ Licenciatura em Letras – PIBIC. E-mail:

julianadesouzalobo@gmail.com
3 Professora do Instituto Federal de Goiás/Campus Goiânia. Mestra em Letras e Linguística

(UFG). Orientadora deste projeto de Iniciação Científica (PIBIC). E-mail:


limercelopes@yahoo.com.br

109
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

materializados historicamente por meio da linguagem


(ORLANDI, 2003). Os efeitos de sentido de um texto são
alcançados a partir de um conjunto de fatores, que
envolvem instâncias sócio-históricas e ideológicas, as
chamadas condições de produção.
O significado de um enunciado não é imanente, por
isso, a fim de interpretá-lo e melhor entendê-lo, faz-se
necessário que sua análise considere não somente os
fatores interiores à língua, como elementos de coesão e
coerência, mas também fatores exteriores, como o sujeito
que realiza as “escolhas” linguísticas do texto, inscreve-se
em seu texto e manifesta-se como autor. Ao considerarmos
esse sujeito-autor na significação do texto, não estamos
mais atrelados somente à ordem da gramática, e, portanto,
nossa noção de autoria sofre mudanças. Entender o texto,
dessa forma, mostra-se um processo de estudar o discurso
e as condições de produção que o envolvem; de onde o
sujeito fala, para quem fala, de onde vem e o que sua
posição lhe permite dizer. Os significados, então, não são
mais meras escolhas, mas sim condicionados e regulados
por determinada instituição, que aqui é a universidade.
Este artigo é resultado da pesquisa realizada sob o
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
(PIBIC), entre agosto de 2019 e julho de 2020. O lócus da
pesquisa é o texto, representado pelo gênero acadêmico
diários/registros de aula, e os sujeitos envolvidos nesse
processo são alunos do primeiro período do curso de
licenciatura em Letras-Português do Instituto Federal de
Goiás (IFG), Campus Goiânia. Nesse sentido, o espaço
considerado é a universidade, um “lugar” de formação
acadêmica que possui determinadas condições de
produção dos discursos, na medida em que há regras que

110
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

compõem a produção de gêneros acadêmicos aceitos nesse


lugar.
Sendo assim, busca-se responder às seguintes
perguntas: de que maneira o sujeito se inscreve em suas
produções? É possível identificar gestos de autoria em
textos acadêmicos? Ainda que a escrita tenha condições de
produção específicas e sofra as coerções e regras da
universidade, é possível reconhecer a autoria? Esta pode
ser manifestada do mesmo modo em todos os textos?
Existe uma obrigatoriedade de manifestação de autoria
nas produções acadêmicas? Com base em autores como
Foucault (2004), Orlandi (1996, 1999, 2003) e Possenti
(2009), dentre outros, buscaremos fundamentar as
questões elencadas e, por meio de caminhos teóricos e
analíticos, respondê-las ou ao menos elucidá-las
parcialmente. Buscaremos também contribuir para
redimensionar o modo como a noção de autoria é
concebida no espaço de articulação do saber (a
universidade), bem como compreender de que maneira as
práticas de leitura e escrita, quando bem planejadas,
podem contribuir para a formação de escritores mais
proficientes no âmbito acadêmico.

Discurso e sujeito

A relação entre discurso e sujeito perpassa


fundamentalmente a língua, tendo em vista que é por esse
sistema que os discursos são concretizados. A língua como
fenômeno da linguagem é entendida, na concepção
saussuriana, como um sistema de signos, os quais são, por
sua vez, compreendidos como a relação arbitrária entre
significante e significado (CARDOSO, 2003). Essa
concepção estruturalista preocupa-se apenas com fatores

111
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

internos à língua e não considera os estudos da fala, já que


esta é concebida por Saussure “como ato linguístico
individual, material, concreto, dependente da vontade e
da inteligência do indivíduo (portanto, subjetivo)”
(CARDOSO, 2003, p. 20).
Contudo, com os avanços dos estudos linguísticos, a
linguagem adquiriu características interdisciplinares,
rompendo com os postulados do estruturalismo e
abarcando aspectos exteriores à língua. Nesse ínterim,
surge a Análise do Discurso (AD) para ressignificar a
compreensão de língua e linguagem e colaborar para que
outros elementos sejam inseridos nessa reformulação.
Orlandi (2003) ressalta que a AD entende a linguagem
como prática e mediação entre o homem e os discursos
que são produzidos. Concebe-se discurso, nessa
perspectiva, a partir da relação entre o sujeito que o
produz e o contexto social, histórico, ideológico e psíquico
em que está inserido (CARDOSO, 2003). Sendo assim, não
há possibilidade, na AD, de interpretar um texto e os seus
efeitos de sentido sem levar em consideração o sujeito que
o produziu e suas condições de produção (ORLANDI,
1996). Analisa-se, pois, o texto como uma construção entre
o sujeito – que se constitui através da linguagem – e a
exterioridade. O sujeito, nesse sentido, é constituído
discursivamente, e a produção dos sentidos de um texto é
indissociável dos fatores exteriores à língua.
Por esse motivo, entende-se que os textos aqui
analisados, a saber, registros ou diários de aula
produzidos em determinado lugar e contexto por
determinado sujeito, apresentam uma gama de
oportunidades de se discutir o fenômeno “autoria”.
Assim, pretendemos verificar se é possível identificar

112
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

gestos de autoria nesses textos, considerando-se suas


condições de produção e o papel dos mecanismos de
controle (FOUCAULT, 2004). Buscamos, em primeiro
lugar, apresentar e situar nosso objeto de estudo nesta
pesquisa, partindo da premissa de que a autoria se refere
à inscrição do sujeito no texto, de forma implícita ou
explícita.

Escrita acadêmica

Para compreendermos a análise dos registros de aula


neste artigo, é importante que saibamos dizer a que tipo
de escrita esse gênero textual pertence. Inicialmente,
temos duas hipóteses: a escrita acadêmica e a escrita
científica (SENEM, 2017), que, apesar de serem muitas
vezes tomadas como sinônimos, não o são.
Mesmo que não haja estudos que diferenciem as duas
escritas de forma específica e concreta, devemos entender
que a escrita acadêmica se configura como tal a partir da
junção do discurso científico e do discurso pedagógico
(SENEM, 2017, p. 53), e que isso ocorre por haver um
espaço específico no qual ela é produzida, que é a
universidade. Nesse espaço, questões como “quem
escreve” e “para quem” são de extrema importância,
relacionadas com o que Foucault (2004) apresenta como
mecanismos de controle. A perspectiva de ensino atrelada
à escrita acadêmica aproxima a esfera pedagógica, e esse
fator contribui para a linha tênue que a difere da escrita
científica.
O sujeito-autor escreve de uma posição-sujeito de
aluno universitário, que produz o diário de aula para
determinado fim avaliativo e deve, portanto, utilizar a
norma padrão da língua portuguesa. Tal norma ainda

113
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

denota a ideia de objetividade e neutralidade, o que para


a AD é inconcebível. Diante disso, sabendo-se que os
registros de aula são produzidos na academia, são
mediados por um professor e implicam uma condição de
produção e recepção dessa instituição, entendemos que
esse gênero textual surge como parte da escrita acadêmica.
Karlo-Gomes e Barricelli (2018, p. 10) definem diário de
leitura “como um gênero reflexivo que combina a leitura
estruturadora e crítica de textos com uma escrita dinâmica
e reguladora de sentidos, de conhecimentos, de ações e de
sentimentos”. A produção textual do gênero diário de
leitura condensa o conhecimento de mundo, as leituras
prévias, a intencionalidade daquilo a ser dito, ou seja, a
projeção do sentido que o autor deseja transmitir na
prática de escrita, bem como situa uma condição de
produção.
A prática de escrita de um diário de aula que considera
o sujeito na sua significação e as condições de produção
que o envolvem aborda o texto como produto de uma
situação social, flexível e, portanto, uma prática que
caminha contra o “engessamento” da escrita acadêmica.
Contudo, as práticas de escrita trabalhadas com os alunos,
durante seu percurso escolar, nem sempre partem dessas
concepções de linguagem, de texto e de discurso. Dessa
forma, a ideia de que os alunos têm conhecimento dos
textos acadêmicos por terem sido aprovados no vestibular
mostra um equívoco por parte de alguns professores na
universidade, na medida em que nem sempre “há uma
correspondência entre o letramento do estudante e o
letramento que lhe é exigido na universidade” (FIAD,
2011, p. 362 apud MOTA SILVA; CARDOSO, 2016, p. 245).

114
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Nesse contexto, faz-se necessário que o professor insira


os alunos em práticas de letramento acadêmico, ajudando-
os a atuar nesse novo universo dos gêneros acadêmicos e
dos discursos científicos que integram uma nova
linguagem pertencente a um campo institucionalizado, o
da universidade (MOTA SILVA; CARDOSO, 2016). O
letramento acadêmico, dessa forma, seria concebido como
prática social e, consequentemente, modificaria a forma
como o sujeito se vê diante de seu texto, salientando as
condições de produção que o envolvem, a
institucionalização dos discursos e dos mecanismos de
controle e a complexidade dos fatores requisitados na
produção de um texto, que não se limitam à gramática ou
ao conhecimento linguístico (MOTA SILVA; CARDOSO,
2016). A inserção do alunado nessas novas práticas de
leitura e escrita acadêmica contribuirá, portanto, para que
esses alunos tenham maior familiaridade com elas, assim
aumentando o seu letramento e reduzindo o grau de
dificuldade muitas vezes encontrado em um contato
inicial com textos acadêmicos.
Ainda sobre as condições de produção do aluno
universitário, coagido a escrever de determinada forma
em virtude da posição que ocupa, Foucault (2004, p. 7)
afirma que todo discurso é controlado e que as instituições
detentoras dos discursos “lhes impõe[m] formas
ritualizadas, como para sinalizá-los à distância”. Esse
“controle do discurso” pode ser observado no âmbito
acadêmico e em outros, de três formas possíveis:
procedimentos externos, procedimentos internos e
procedimentos de circunscrição dos falantes. Neste artigo,
propomos a discussão dos dois primeiros, pois

115
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

entendemos que são os mais relevantes para os fins deste


estudo.
Os procedimentos externos são divididos em
interdição, separação e rejeição, e vontade de verdade.
Aqui, discutiremos a interdição e a vontade de verdade.
Para Foucault (2004, p. 9), o discurso tende a ser
controlado e manipulado na intenção de “conjurar seus
poderes e perigos”; o autor cita, como exemplo, a
interdição, que seria a impossibilidade de não se dizer
qualquer coisa em qualquer lugar em função de uma
norma que regularia o que é permitido ou não produzir.
A vontade de verdade, procedimento mais relevante para
este estudo, justifica a oposição entre verdadeiro e falso
em determinado tempo e espaço. Na academia, há um
consenso de que o discurso científico, que afeta
diretamente a definição de discurso acadêmico, não pode
ser pautado e justificado sob argumentos religiosos, como
ocorria na Idade Média, por exemplo. O discurso
acadêmico/científico, para ser considerado verdadeiro, é
interpelado por mecanismos de controle que ditam se algo
é verdadeiro ou não.
Além dos procedimentos externos, Foucault (2004)
apresenta procedimentos internos, que também podem se
manifestar de três formas: através do comentário, da
autoria e da disciplina. O que importa para nós, aqui, é a
autoria. Se em um texto há pelo menos dois textos (o novo
e o do texto-fonte), a relação do sujeito com a escrita
engloba, no mínimo, a presença de dois autores: o autor
do texto-fonte e o autor-comentarista.
Apesar dos mecanismos de controle afetarem todo
sujeito-aluno na academia, é necessário que ele seja
interpelado e coagido por eles. Isto é, mesmo que de forma

116
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

inconsciente, o sujeito-autor obedece a esses mecanismos


ao escrever seus registros de aula. A questão é: mesmo
sofrendo coerções, ele ainda consegue se fazer autor?
Buscamos responder essa questão a seguir.

Autoria

Para analisarmos o conceito de autoria, retomaremos


as discussões apresentadas por Foucault (2004) sobre os
procedimentos internos da escrita. Para o estudioso, a
função-autor é entendida não como “indivíduo falante
que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como
princípio de agrupamento do discurso, como unidade e
origem de suas significações, como foco de sua coerência”
(FOUCAULT, 2004, p. 26). A autoria, sob esse viés, torna-
se restrita, o que nos leva a propor outras discussões que
atendam aos objetivos desta pesquisa. Na AD há espaços
para outras formas de compreensão desse conceito, e estas
serão contempladas a fim de identificarmos o processo de
autoria em produções textuais de gêneros acadêmicos no
ensino superior – que, no presente caso, são os registros de
aula.
Ao chegar à universidade, o aluno precisa apropriar-
se de um conhecimento específico que, de acordo com
Fischer (2008, p. 180 apud SILVA, 2015, p. 1313), consiste
no letramento acadêmico e “refere-se à fluência em formas
particulares de pensar, ser, fazer, ler e escrever, muitas das
quais são peculiares a esse contexto social”. Assim, é
possível notar, nos diários de aula de alunos do primeiro
período do curso de Letras, que a organização textual, a
coesão, a unidade na escrita – aspectos discutidos por
Orlandi (1996) ao referir-se à autoria – requerem um nível
de letramento acadêmico. Dessa maneira, ao

117
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

considerarmos que o sujeito é constituído discursivamente


a partir do contexto sócio-histórico que ocupa, é
importante compreender que os múltiplos letramentos
presentes na academia são necessários porque são práticas
sociais construídas entre alunos, professores e
universidade (SIMÕES; JUCHUM, 2015). Portanto, ao
acessar esses conhecimentos e trocas, os sujeitos-alunos
apropriam-se de determinados aspectos típicos desse
ambiente e, por conseguinte, exercem a função-autor
(ORLANDI, 1999).
Para Orlandi (1999), o sujeito sempre está inscrito de
alguma maneira nos textos que produz, e essa inscrição
ocorre de diferentes modos, que indicam variadas funções
enunciativo-discursivas, tais como a de locutor, de
enunciador e de autor. A função-autor “é a função social
que o ‘eu’ assume enquanto produtor da linguagem”
(ORLANDI, 1999, p. 61) e é a mais atrelada ao contexto
sócio-histórico. Por isso, há uma inscrição do sujeito no
discurso ao mesmo tempo que este se marca naquele.
É possível que ocorra o “apagamento” do sujeito, uma
vez que é nessa função que se exige um modo de escrita
padronizado – de maneira que se cumpram as regras
institucionais – e que se cobra do sujeito a
responsabilidade pelo que é dito. Ao relacionarmos os
diários de aula ao corpus de análise, podemos refletir sobre
esse apagamento do sujeito, tendo em vista a
padronização que se exige que o acadêmico de ensino
superior cumpra ao realizar uma produção escrita com
fins avaliativos, e é nesse âmbito que procuraremos
analisar de que maneira o sujeito se coloca como autor em
seus registros de aula.

118
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Não obstante, para refletirmos sobre o que é preciso


para ser autor, é necessário, segundo Orlandi (1999), que
o sujeito seja considerado dentro do contexto cultural,
histórico e social que ocupa, pois assumir, constituir-se e
mostrar-se como autor é um papel social em que se exige
responsabilidade por parte de quem escreve, em “uma
relação institucional com a linguagem” (1999, p. 80). É,
portanto, nessa relação entre o social e a linguagem que o
sujeito pode, sim, exercer a função-autor, mesmo em meio
a tanta coerção. É possível que isso ocorra, porque, para
Orlandi (1996), a função-autor alinha-se a um sujeito que
precisa organizar e estabelecer sentido no texto, trazendo
unidade para a escrita. Postula, ainda, que tal função “se
realiza toda vez que o produtor da linguagem se
representa na origem, produzindo um texto com unidade,
coerência, progressão, não-contradição e fim” (1996, p. 69).
Para esta autora, portanto, a função-autor ocorre quando
o sujeito produz o que é possível de ser interpretado e ao
mesmo tempo insere-se em determinado contexto
histórico e ligado diretamente à memória.
Outra concepção contemporânea que cabe aqui ser
discutida, pois se alinha também ao nosso corpus de
pesquisa, é a de Possenti (2009), que permite novas
interpretações de autoria para textos escolares. Possenti
concebe “enunciação” como um acontecimento
irrepetível, que evidencia uma posição de singularidade a
partir de marcas pessoais inscritas no discurso; “estilo”
como uma manifestação de subjetividade e de inscrição do
sujeito naquilo que escreve, que perpassa o desvio e a
escolha entre as diversas formas possíveis de se elaborar
uma escrita; “autoria” como sendo inscrita “em domínios
de ‘memória’ que façam sentido” (POSSENTI, 2009, p. 95),

119
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

ou seja, a maneira como o sujeito se inscreve no social e, a


partir disso, enuncia. Por meio dessas redefinições, torna-
se possível ressignificar a autoria e identificá-la em textos
escolares.
Entretanto, Possenti (2009) não se restringe a esses
conceitos e destaca outros que contribuem com a
identificação das marcas de autoria a partir de uma
avaliação dos indícios que surgem nos textos em nível de
discurso (não de gramática); distancia-se, portanto, de
Orlandi (1996). Segundo Possenti (2009, p. 110, grifo no
original), essas marcas são atitudes tomadas de maneira
consciente ou não e podem ser definidas como “dar voz a
outros enunciadores, manter distância em relação ao próprio
texto, evitar a mesmice”. A primeira atitude, “dar voz a
outros enunciadores”, significa atribuir a enunciadores
diferentes pontos de vista daquele que escreve – por
exemplo, ao utilizar uma citação que contribui para a
validação da escrita – ou tomar como suas opiniões que já
circulam socialmente. Além disso, é possível identificar
gestos de autoria nas escolhas discursivas que demandam
do leitor a retomada da memória de outro contexto a partir
de outras vozes. A segunda atitude, “manter distância em
relação ao próprio texto”, corresponde à metaenunciação,
que ocorre quando o autor explica o que disse
anteriormente ou explicita os sentidos atribuídos a
determinadas palavras e expressões. Para Possenti, essa
atitude evidencia singularidade e originalidade. Por fim, a
terceira atitude, “evitar a mesmice”, significa utilizar-se de
variações verbais que anunciam outrem no texto do
próprio autor, mas de maneira significativa, que
demonstre a posição do autor em relação ao discurso do
outro. Ademais, pode ser evidenciada quando o sujeito

120
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

busca o léxico de um campo semântico diferente daquele


de que fala, a fim de melhorar o próprio texto.
Para Possenti (2009), tais atitudes podem indicar traços
de autoria e devem ser valorizadas (sobretudo em textos
escolares), tendo em vista que se parte de uma concepção
que amplia a possibilidade de atribuir autoria para além
daqueles que são fundadores de discurso. Vale, portanto,
compreender como se realizam essas ligações entre o
texto, o discurso e aquele que escreve e procurar trazer à
tona suas manifestações autorais, para que possamos
ampliar essas definições do que significa ser e se colocar
como autor.

Metodologia

Esta pesquisa, de abordagem qualitativa, busca na


técnica de análise documental desvelar alguns aspectos
que se relacionam à questão da autoria em registros de
aula de alunos do primeiro período do curso de Letras do
IFG, Campus Goiânia. A escolha desse método ocorre por
entendermos que ele melhor contempla uma análise de
conteúdo interpretativo que leva em consideração os
sujeitos das produções em análise e o contexto de
produção. De acordo com Holsti (1969 apud LÜDKE;
ANDRÉ, 1986, p. 39), justifica-se o uso da análise
documental “quando o interesse do pesquisador é estudar
o problema a partir da própria expressão dos indivíduos,
ou seja, quando a linguagem dos sujeitos é crucial para a
investigação”.
Para a análise, foram selecionados quatro diários de
aula de alunos matriculados no primeiro período da
licenciatura em Letras do IFG, Câmpus Goiânia. Os textos
foram produzidos para compor uma atividade solicitada

121
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

na disciplina Prática como Componente Curricular


(PCC1), como método avaliativo do primeiro semestre
letivo do referente curso, tendo sido escritos durante o
semestre, a cada aula ministrada. Nas aulas foram tratados
vários temas, embasados por textos teóricos. Após sua
leitura e a frequência nas aulas, os alunos deveriam
registrar suas impressões. A seleção dos diários/registros
de aula para esta pesquisa foi feita de forma aleatória, e,
apesar de corresponderem ao mesmo tema – relacionado
à primeira aula da disciplina, em que se discutiu o que é
letramento –, a percepção, foco e composição desses
registros são distintos.
A fim de evitar que os registros apresentassem uma
mera descrição da aula assistida, foi requisitado pela
professora regente que os alunos, ao longo do semestre,
baseassem suas produções textuais em três principais
fatores: primeiro, uma contextualização sobre a aula;
segundo, um diálogo entre a aula e os textos que a
fundamentavam; terceiro, que se inserissem de forma
explícita em seus textos, em qualquer momento que lhes
fosse oportuno, opinando sobre como aquele
assunto/texto ou aquela aula contribuiriam para sua
formação profissional.
Por fim, buscamos identificar, sob a luz dos teóricos
citados ao longo deste artigo, os gestos de autoria em
textos acadêmicos. É o que observaremos na análise que se
segue. Os diários de aula são apresentados como “diário
1”, “diário 2”, “diário 3” e “diário 4”, a fim de observarmos
como os sujeitos tomam diferentes atitudes ao se
colocarem como autores de seus textos. A diferenciação se
faz necessária para individualizá-los, mas não sugere uma
qualificação em relação ao nível de autoria. Observaremos

122
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

também de que forma os mecanismos de controle afastam


os sujeitos-autores da manifestação de autoria na escrita
acadêmica, entendendo que as verdadeiras marcas de
autoria não estão na ordem da gramática, mas, sim, do
discurso (POSSENTI, 2009).

Análise de dados

Ao se pensar a constituição da autoria em quatro


registros de aula da disciplina de PCC1 (referentes à aula
sobre letramento e alfabetização), podemos retomar os
aspectos anteriormente discutidos na fundamentação
teórica a fim de identificar e aprofundar as questões
relacionadas aos possíveis gestos de autoria.
Com base em Foucault (2004), sabemos que os diários
de aula, que pertencem à escrita acadêmica, possuem suas
condições de produção do discurso e são coagidos pelos
mecanismos de controle da instituição pela qual
respondem (universidade). Esses diários, portanto, ainda
são controlados pela interdição, que também diz respeito
a “como” constituir os sentidos. Ao relacionar um gênero
acadêmico à ideia de neutralidade e objetividade, os
sujeitos-autores veem-se automaticamente coagidos por
esses mecanismos de controle (FOUCAULT, 2004). A
interdição age coibindo-os de se inscrever explicitamente
em suas escritas (ou de terem a consciência de que seu
discurso não é neutro), e o significado de suas palavras é
tido como imanente e neutro (objetivo), como se não
dependessem de uma condição de produção.
Nota-se, com as orientações da professora regente da
disciplina PCC1, que o uso da primeira pessoa do plural e
do singular se fez presente em abundância em todos os
diários, o que resulta em uma certa proximidade destes

123
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

alunos com o gênero textual em questão. A


impessoalidade, contrária ao discurso atravessado pela
ideologia na AD de linha francesa, foi conscientemente
transposta pelos sujeitos-autores dos diários 1, 2, 3 e 4 (o
grifo é nosso):
Uma frase que me marcou falada no filme foi: “A educação é
a chave e nós somos o cadeado”. A educação abre para cada ser
humano uma infinidade de possibilidades, nos permite sonhar.
Saber ler e escrever é apenas o primeiro passo para alcançarmos
a liberdade de construir a nossa história. (diário 1)
Neste filme, pude amplificar esse olhar, sobre o processo
educativo em relação ao indivíduo letrado que não é
necessariamente alfabetizado. A escola é uma instituição
fundamental na vida de um sujeito, mas existem milhares que
não obteve oportunidade de ir à escola, mas que são letrados e
possuem um repertório rico de prática social. (diário 2)
Com certeza a cultura deste indivíduo facilita a intervenção da
alfabetização na vida deste ser levando em conta a sua comunicação
com o mundo e a sua capacidade cognitiva. Preciso enfrentar tais
obstáculos e investir no ensino contextualizado e significativo
para a formação dessas pessoas que já possuem o letramento. Esta
aula com certeza foi muito proveitosa e significativa para
nosso conhecimento profissional e educacional. (diário 3)
As atividades propostas foram interessantes, onde pudemos
analisar em grupos e falar na frente dos colegas partes do filme,
relacionadas a um pequeno texto anteriormente recebido. O filme
abriu uma nova perspectiva aos alunos presentes, uma visão
que irá contribuir para nossa vida docente, ao poder incrementar
o letramento aos nossos futuros alunos. (diário 4)

O uso frequente da primeira pessoa do singular e do


plural e a repetida afirmação de que aprenderam muito
com a aula e seu conteúdo são indícios da inscrição dos
sujeitos. Isso demonstra seu entendimento da importância
do que fazem ali, ou seja, há produção de conhecimento

124
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

na universidade e isto é algo que contribui para sua


formação acadêmica.
A afirmação “A escola é uma instituição fundamental
na vida de um sujeito” é tomada como um fato para o
sujeito-aluno do diário 2, e nela está subentendida a
inscrição do sujeito na escrita acadêmica. Isso pode ser um
indício de autoria da ordem do discurso, bem como a
afirmação “O filme abriu uma nova perspectiva aos alunos
presentes”, em que se subentende que “os alunos
presentes” incluem aquele que escreveu o texto. Logo,
tem-se uma inscrição do sujeito, representada pela
abertura de uma nova perspectiva que o influenciou em
meio aos colegas. Encontramos situação semelhante no
seguinte trecho: “Preciso enfrentar tais obstáculos e
investir no ensino contextualizado e significativo para a
formação dessas pessoas que já possuem o letramento”. A
partir do entendimento das dificuldades que o sujeito
enfrentará como professor, infere-se que ele tem a intenção
de lecionar.
É importante lembrar que, mesmo com a interdição
agindo até mesmo na pessoalidade do texto, esses
registros nunca seriam efetivamente neutros, uma vez que
o discurso não é neutro, seja ele científico ou acadêmico.
Isso não significa, porém, que todos os registros
produzidos apresentaram gestos de autoria somente por
empregarem a primeira pessoa do singular ou do plural,
ou que os textos coesos e gramaticalmente corretos foram
automaticamente autorais (como veremos mais à frente,
na discussão de Possenti). A autoria está relacionada com
a inscrição do sujeito em sua escrita, mas não se limita a
ela, assim como um texto autoral é também coerente, mas,

125
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

sendo somente coerente, ou com uma gramática e


ortografia impecáveis, não é necessariamente autoral.
Para Orlandi (1996), a função-autor é manifestada
quando o sujeito evidencia uma unidade textual, mas
também quando se insere em domínios da memória
relacionados ao interdiscurso. Vejamos o diário 2:
A sala de aula integra um conjunto de aspectos no que se refere à
sua natureza, seja por sua dimensão física, funcional, a temporal e
a relacional. Nesse sentido, pode ser compreendida como espaço
propício em que se realizam ações que possibilitam aos diversos
sujeitos da turma, a possibilidade da aprendizagem, no qual só será
significante, mediante as interações construídas neste espaço.

Esse trecho nos permite refletir acerca da construção


do discurso. Há um já-dito que constitui o discurso desse
sujeito, tendo em vista que se trata da refração de outros
discursos (interdiscursos) atravessados nesta construção
discursiva, como, por exemplo, considerar a sala de aula
como um espaço “significante” apenas se houver
“interações construídas”. Essa constatação esclarece uma
posição e uma inscrição do sujeito em seu registro de aula,
assim como permite identificar uma memória discursiva
presente nessa produção, uma vez que se verifica um
discurso segundo o qual a sala de aula é um espaço
construído a partir de trocas e interação.
Sob o prisma de Possenti (2009), que discute aspectos
concernentes à autoria em textos escolares, as marcas de
autoria são percebidas na ordem do discurso e não da
gramática, e podem ser consideradas como tal quando
possuem sentido e historicidade. Evidencia-se isso no
trecho em questão, quando é assumida uma posição da
sala de aula como espaço de trocas:

126
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Nesse sentido, pode ser compreendida como espaço propício em


que se realizam ações [...] mediante as interações construídas
neste espaço. (diário 2)

Ainda nesse trecho, notamos o emprego do conectivo


“[n]esse sentido”, que denota uma organização no tocante
à coesão textual, possibilitando que o sujeito-autor retome
a ideia anterior. Para Orlandi (2009), essa atitude de não
utilizar conectivos de forma vaga e fragmentada, mas sim
de forma apropriada, e relacioná-los com o que já está
posto pode ser considerada um indício de autoria. Como
exemplo dessa coesão textual nos diários de aula, temos os
seguintes excertos nos diários 1 e 2:
A professora [...] ministrou aulas para a turma de Letras –
Português nos dias [...] com conteúdo referente ao Letramento e
Alfabetização. (diário 1)

Primeiro, a professora nos proporcionou uma aula expositiva


sobre o tema “Letramento e Alfabetização”. [...] Continuando
apresentação, ela colocou slides [...] (diário 1)

No dia [...], foi realizada a primeira observação da aula, esta


compôs três momentos: Discussão sobre o conceito de
Letramento através do uso de slides; a correlação do assunto com o
artigo [...]. (diário 2)

Os conectivos utilizados na introdução do registro de


aula seriam, então, aspectos presentes em um texto
autoral, já que, para Orlandi, a unidade textual e a
coerência respeitada nos excertos marcam a inscrição
desse sujeito-autor.
Para Possenti (2009), a coesão textual também é um
indício de autoria importante na constituição de um
“bom” texto, porém não basta. O autor, ao estudar os
gestos de autoria em textos escolares, considera que, para

127
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

que um sujeito seja autor de seu texto, ele precisa tomar


pelo menos três atitudes: dar voz a outros enunciadores,
manter distância em relação ao próprio texto e evitar a
mesmice. A primeira atitude, dar voz a outros
enunciadores, ocorre quando o sujeito-autor apresenta
diferentes pontos de vista ou argumentos, enriquecendo
seu texto com novas informações. Vejamos no exemplo a
seguir, retirado do diário de aula 1:
[...] O sujeito que reconhece esse código escrito, portanto que lê e
escreve é considerado alfabetizado. [...] Por outro lado (1), há
indivíduos que se relacionam com a leitura e a escrita em sua
realidade social, e não conhecem os códigos da sua língua. Isto é,
não leem e nem escrevem, mas compreendem por exemplo: um
rótulo de embalagens ou certas marcas e nomes de empresas e
instituições; fazem bem cálculos mentais e até trabalham com as
cédulas monetárias; dirigem e reconhecem placas de trânsito; entre
outras situações. (diário 1)

O exemplo (1) seria um indício de autoria para


Possenti, pois o sujeito-autor apresenta um conceito (sobre
o que é um indivíduo alfabetizado, dito em outro lugar e
retomado pela memória discursiva), explica-o e expõe
uma nova informação relevante (o conceito de letramento,
também dito por “outro enunciador” e retomado
interdiscursivamente aqui), enriquecendo seu texto com
outro ponto de vista. Este é antecipado pela expressão
“por outro lado”.
Podemos observar, por fim, que não são apenas as
marcas lexicais que identificam indícios de autoria, mas
também o modo como o sujeito elabora seu texto, como
apresenta as informações para o leitor – que precisa ter
conhecimento sobre o que seja ser alfabetizado e letrado.
Em outras palavras, o sujeito antevê seu leitor e explicita

128
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

conceitos, apresentando exemplos corriqueiros, mas


necessários para a compreensão do texto.
Ao refletirmos sobre o gesto de dar voz a outros
enunciadores, remetemos às ideias de Foucault (2004),
principalmente no tocante ao modo como o discurso é
controlado a partir de procedimentos que podem ser
internos ou externos. Os procedimentos externos, que aqui
nos interessam, dizem respeito – entre outros fatores – à
vontade de verdade. Para Foucault, um discurso
acadêmico precisa ser validado pelas vozes de autoridade
da área científica e legitimadas por citações diretas.
Observamos que, em todos os diários de aula, foram
utilizadas citações que contribuíram para que isso
ocorresse, como no seguinte trecho do diário 4:
Primeiramente foi apresentado uma exposição em slides, com
explicações e conceitos sobre letramento, [...] nesses conceitos
apresentados podemos entender que letrar se difere de alfabetizar,
pois primeiro você aprende o significado das palavras, para depois
aprender a escreve-las, que segundo o dicionário Aurélio,
conceitua alfabetização como “ato ou efeito, modo ou
processo de alfabetizar(-se); tempo desse processo”
(Ferreira, 2008, p. 70). (diário 4)

Nesse trecho, a citação foi utilizada para contrapor-se


ao conceito de letramento, para diferenciá-lo do que é
alfabetizar, de acordo com o dicionário Aurélio. Podemos
concluir que há uma inscrição do sujeito-autor quando
apresenta com suas palavras o que é ser letrado e, para
tornar seu discurso “legitimado e verdadeiro”, insere o
conceito de alfabetização conforme o dicionário. Desse
modo, há uma tomada de posição do sujeito ao respaldar
seu discurso na conceituação acadêmica, o que torna sua
escrita, portanto, legitimada.

129
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Além disso, complementando a primeira atitude de


Possenti, a habilidade de apresentar diferentes dados ou
pontos de vista sem se perder, tornando o texto não
somente diverso e carregado de ideias, mas também
organizado, é tomada como um gesto de autoria e é
chamada de “controle do texto” (POSSENTI, 2009, p. 242).
Portanto, o autor do diário 1, além de dar voz a outros
enunciadores, mantém seu texto coerente. Ambas atitudes
são gestos de autoria e se complementam. Um exemplo de
controle do texto pode ser encontrado no diário 3:
Nosso país, também é um exemplo a ser dado, pelo fato de existir
em seu território um grande número de jovens e adolescentes que
não frequentam, nem, visitaram uma escola para serem
alfabetizados, conforme dados comprovados estatisticamente, e
discutidos à posterior em nossa sala de aula. Porém diante de tais
comprovações observamos que estes mesmos jovens são providos
desse letramento, fato que facilitaria na reversão deste quadro
atual. (diário 3)

O conectivo “porém” contradiz a informação anterior


e demonstra a não adesão do sujeito-aluno às ideias
apresentadas. O aluno apresenta novas informações, um
ponto de vista, enriquece seu texto com dados e refuta as
informações anteriores, mantendo o controle do texto a
partir desse conectivo.
A segunda atitude proposta por Possenti (2009),
manter distância em relação ao próprio texto, seria a
metaenunciação, ou seja, a retomada de algo dito
anteriormente no texto a fim de explicar, contrapor,
corrigir etc. Vejamos no seguinte trecho do diário de aula
3:
Concluo, então, que o termo “alfabetização”, é o mesmo que: o
conhecimento dos signos gráficos, adquiridos na escola, em
especial, pois a escola de uma certa forma auxiliará esse sujeito a

130
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

ler e a escrever. E “letramento”, então, seria o conhecimento,


adquirido em nossa vida diária ou seja, o conhecimento de mundo,
que todo e qualquer cidadão possui desde seu nascimento
apresentado por todos e tudo que lhe cerca. (diário 3)

O excerto acima destaca a conjunção “ou seja”, que


atua como uma conjunção explicativa. O sujeito-autor
parafraseia a ideia anterior à conjunção com o intuito de
explicar o conceito de letramento. Trata-se de uma
metaenunciação, um gesto de autoria em textos escolares
que também pode ser identificado nesses registros de aula.
A terceira atitude de Possenti (2009), evitar a mesmice,
corresponde a variações de palavras buscadas em
diferentes campos semânticos com a intenção de
enriquecer o texto, ou, ainda, variações verbais que
valorizem os sentidos do discurso, como observamos no
diário de aula 2:
Educar através do cinema é ensinar a possibilidade em ver
diferente, isto é, educar o olhar. De modo que possibilitará decifrar
os enigmas dos tempos atuais, sob o espaço imaginético propiciado
pelo cinema. Assistir um filme, portanto, requer por parte do
sujeito uma mudança de passagem, entre o espectador passivo para
o espectador crítico.

Há uma diversidade lexical na seleção de palavras do


campo semântico das artes, como o vocábulo
“imaginético”, que torna o texto variado e bem
contextualizado. O “como” dar voz a outros, organizando
o discurso no texto escrito, retomando já-ditos e
mesclando-os com um estilo autoral de forma diversa, é
um gesto de autoria, uma vez que “evita a mesmice”.
Evitar a mesmice também diz respeito às escolhas lexicais
que tornam o texto variado, mas estas precisam “variar
segundo posições enunciativas, segundo a natureza do

131
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

discurso” (POSSENTI, 2009, p. 116), isto é, a partir do


lugar que o sujeito-autor ocupa ao participar de uma aula
e que demonstra sentido para a sua formação acadêmica.
Ao se pensar na elaboração da escrita de um registro
de aula, o sujeito busca, de modo consciente, atentar-se
para a estilística textual. Isso porque, ao considerar o
gênero discursivo (BAKHTIN, 2010), há uma tomada de
posição por parte de quem escreve em relação às
alternativas possíveis de usos da língua escrita e que são
percebidas como uma inscrição do sujeito no discurso
(POSSENTI, 2009). Desse modo, percebemos que, nos
quatro diários de aula analisados, há distintas formas de
se elaborar a estilística do texto desde a estrutura. O autor
do diário 1 divide-o em tópicos:
1. “Apresentação de slides” ou “apresentação PPT” [...]
1.1. Objeto de estudo na “apresentação de slides” [...]
1.2. Objeto de estudo no artigo: “Letramento e alfabetização:
revendo conceitos, discutindo pontos de vista” [...]

O autor do diário 3 apresenta um esboço antes de


escrevê-lo:
Esboço 1ª Aula.
* Apresentação do plano de aula.
* Como elaborar um portfólio.
* Apresentação de um portfólio, produzido por um aluno.
* Como a prática do PCC, pode contribuir aos futuros profissionais
da educação.

Em ambos os diários, observamos uma evidente


relação entre a organização textual e seu significado para
a estrutura do diário de aula. Bakhtin (2010) pontua que o
estilo tem relação com o gênero discursivo, e o gênero em
que se insere o diário de aula requer algumas

132
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

especificidades, tais como a descrição da aula a partir da


relação com o texto teórico e o posicionamento do aluno
ao final de todos os registros. Há, então, uma
padronização solicitada da academia para que ele seja
validado.

Resultados e discussão

Ao longo da pesquisa, as inquietações levantadas


puderam ser respondidas. Entendemos que todos os
autores, ao produzirem os diários de aula, inscreveram-se
discursivamente em suas produções, ainda que de
maneiras distintas. Alguns desses sujeitos inscreveram-se
de forma implícita, outros de forma explícita, seja pelo uso
frequente da primeira pessoa do singular e do plural, na
ordem do texto, seja por demonstrarem a importância e
relevância dos conteúdos a que tiveram acesso, retomando
conceitos e reflexões a partir de seu contexto sócio-
histórico, na ordem do discurso.
Ainda que o diário de aula, como gênero acadêmico e
parte do discurso acadêmico, seja conjurado pelos
mecanismos de controle em função do lugar onde é
produzido (a universidade), foi possível identificar gestos
de autoria nos registros analisados, visto que o sujeito, na
ordem do discurso, não é totalmente apagado por esses
mecanismos. Por trás do discurso, seja ele acadêmico,
científico ou religioso, sempre há uma ideologia.
Entretanto, a autoria não é exercida da mesma forma em
todos os diários de aula. A função-autor foi percebida
interacional, quando os sujeitos apresentaram unidade
textual (por exemplo, ao utilizarem conectivos de maneira
coesa) e, ao mesmo tempo, inscreveram-se em domínios

133
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

da memória, construindo sentidos a partir de um já-dito


anterior, que constitui seus discursos.
De maneira distinta, mas ainda tomando atitudes que
tornam os sujeitos autores, os sujeitos deram voz a outros
enunciadores, tanto a partir da enunciação de um discurso
corriqueiro, conhecido socialmente e tomado como seu,
quanto por meio de uma citação direta que valida o
discurso do sujeito-autor a partir do procedimento externo
“vontade de verdade” (FOUCAULT, 2004). Além disso,
notou-se o controle do texto, uma habilidade importante
que revela indícios de autoria. Evidenciou-se, ainda, a
atitude de manter distância em relação ao próprio texto,
visto que o sujeito-autor, ao demonstrar sua habilidade de
controle do texto, retoma o que foi dito anteriormente a
fim de destacar o sentido do termo que havia utilizado.
A última atitude, evitar a mesmice, também foi
identificada quando o sujeito-autor utilizou um termo de
outro campo semântico para enriquecer seu registro,
demonstrando uma contextualização maior e indo além
do que foi proposto. Por fim, encontraram-se indícios de
autoria no estilo, que, para Possenti (2009), é uma tomada
de posição por parte de quem escreve. Alguns diários
tornaram mais evidentes a elaboração do registro, tanto
por meio de um esboço inicial apresentando o que seria
discutido ao longo do texto, quanto de tópicos.
Assim, reiterando que os sujeitos-alunos, ao escrever,
são instituídos pelos mecanismos de controle e pelas
condições de produção do discurso acadêmico, entende-
se que a autoria deve ser compreendida não como
elemento obrigatório nesses textos, mas como resultado da
refração de gestos de autoria que podem vir a se
manifestar nessas produções textuais.

134
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Considerações finais

Esta pesquisa buscou compreender como a autoria se


dá nas produções textuais da universidade, haja vista a
importância de redimensionar a compreensão dessa noção
e ressignificar as práticas de leitura e escrita da academia.
Se considerarmos a análise aqui apresentada, todos os
sujeitos-autores desses diários estão sob condições dos
mecanismos de controle (FOUCAULT, 2004) impostos
pelo lugar no qual produzem seu discurso, uma vez que
precisam atender à norma padrão culta da língua
portuguesa, respondem a uma interdição e à vontade de
verdade (as regras acadêmicas assim o exigem) e são
regulados pelas condições de produção do discurso
acadêmico.
Sob diversas percepções da noção de autoria da AD de
linha francesa, foi possível observar gestos de autoria na
escrita acadêmica e, portanto, constatar que há diferentes
formas de identificá-los. Vimos que, para Orlandi (1999),
o sujeito sempre está inscrito nos textos que produz e que
a capacidade de organizar seu texto de forma coerente e
coesa já pode ser considerada um gesto de autoria. Todos
os registros de aula corroboram essa noção de autoria.
Além disso, alguns sujeitos-autores elencaram em tópicos
a sequência da aula, o que pode ser compreendido como
uma noção de estilo (POSSENTI, 2009). Essa organização
em tópicos também possibilitou a coesão e coerência da
sequência textual. As três atitudes consideradas como
gestos de autoria por Possenti (2009) foram identificadas
nos diários de aula. Alguns desses diários manifestaram
maior ocorrência da noção de autoria de Orlandi (2003), e
outros, da de Possenti (2009).

135
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Observamos, então, que os sujeitos-alunos se


inscreveram em seus textos de formas distintas, mesmo
que os mecanismos de controle da escrita acadêmica
tenham agido como fatores coercitivos e como fonte do
suposto apagamento do sujeito. Os sujeitos não foram
apagados na sua escrita, pois mesmo que alguns deles não
tenham se inscrito de maneira explícita, ainda estavam
inscritos no seu discurso. Nesta pesquisa, que buscou ver
além do significado supostamente imanente das palavras,
sob os olhos da AD, foi-nos possível interpretar e observar
que os sujeitos-autores se entendem como parte
constitutiva do aprendizado das aulas e que pretendem
levá-lo à prática como futuros professores. Esse efeito de
sentido foi obtido em virtude do contexto sócio-histórico e
ideológico dos autores dos diários de aula, já que o texto
só pode significar a partir dessas condições de produção.
Por fim, questionar qualquer noção de autoria que seja
alheia à constituição do sujeito e sua importância na
significação do texto que produz é o passo a ser tomado
pela universidade e por seus professores. Para formarmos
escritores mais proficientes, é preciso que a noção de
autoria não seja limitada somente à ordem da gramática,
mas ampliada à ordem do discurso.

Referências
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verbal. Tradução: Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes,
[1979] 2010. p. 261-269.
CARDOSO, S. H. B. Discurso e ensino. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2003.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Tradução: Laura Fraga de
Almeida Sampaio. 11. ed. São Paulo: Loyola, 2004.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

KARLO-GOMES, G.; BARRICELLI, E. (org.). O diário de leituras na


escola e na universidade: estudos do gênero e práxis pedagógica.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 2018. (Série Escola e
Universidade).
LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens
qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.
MOTA SILVA, M. F. R.; CARDOSO, C. M. Letramento e
multiletramentos: práticas de textos no ensino superior. RevLet –
Revista Virtual de Letras, v. 8, n. 2, p. 238-252, ago./dez. 2016.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 5.
ed. Campinas, SP: Pontes, 2003.
______. Discurso e leitura. 4. ed. São Paulo: Cortez; Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 1999. (Passando a Limpo).
______. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
POSSENTI, S. Questões para analistas do discurso. São Paulo:
Parábola Editorial, 2009.
SENEM, J. Da inscrição do sujeito na escrita acadêmica. 2017.
Dissertação (Mestrado em Linguística) – Centro de Comunicação e
Expressão, Univ. Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017.
SILVA, L. F. Letramentos acadêmicos: conflitos e tensões. In:
INTERNACIONAL CONGRESS OF CRITICAL APPLIED
LINGUISTICS, 2015, Brasília, DF. Disponível em:
<http://www.uel.br/projetos/iccal/pages/arquivos/ANAIS/PRATI
CA(S)/LETRAMENTOS%20ACADEMICOS%20CONFLITOS%20
E%20TENSOES.pdf>. Acesso em: 2 maio 2020.
SIMÕES, L. J.; JUCHUM, M. A escrita na universidade: uma reflexão a
partir do que os alunos dizem em seus textos. In: SIMPÓSIO
INTERNACIONAL DE ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA,
2014, Uberlândia. Anais... Uberlândia: Edufu, 2014. v. 3, n. 1.
Disponível em: http://www.ileel.ufu.br/anaisdosielp/wp-content/u
ploads/2014/11/201..pdf. Acesso em: 2 maio 2020.

137
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

138
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

POEMA E CANÇÃO EM SALA DE AULA


Uma proposta de prática de ensino e aprendizagem em
diálogo com Bakhtin

Ivo DI CAMARGO Jr.1


Vanessa PAULINI2
Fábio Marques de SOUZA3

O presente capítulo pretende apresentar uma prática


docente fundamentada em pressupostos teóricos, a partir
do poema Cidade/City/Cité, de Augusto de Campos, e da
letra da música “Senhor Cidadão”, do compositor e cantor
Tom Zé. Parte-se do princípio de ensino-aprendizagem
que considera o texto como o ponto de partida, por meio
do qual se analisa e se compreende possíveis
desdobramentos e as diferentes vozes presentes,
considerando aspectos linguístico-discursivos e, como
suporte teórico principal desta reflexão, a sua relação com
o dialogismo em Bakhtin.
Desse modo, a partir da leitura do poema e da letra da
música (e de sua escuta), pretende-se o encontro dialógico
entre esses textos e o sujeito que lê e interpreta, associando
as informações neles apresentadas àquelas trazidas pelo
próprio leitor. É nessa perspectiva que, segundo Kleiman
(1989, p. 17), “a leitura é considerada um processo

1 Formador de Professores de Língua Portuguesa na Secretaria Municipal de Educação de


Ribeirão Preto – SP. Cursa estágio de Pós-Doutorado em Formação de Professores (UEPB).
Doutor e Mestre em Linguística pela UFSCAR. E-mail: side_amaral@hotmail.com
2 Licenciada em Letras pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). Professora de

Língua Portuguesa na Rede Municipal de Ensino de Ribeirão Preto e de Língua Inglesa na


Rede Estadual de São Paulo. E-mail: vpaulini@gmail.com
3 Estágio de Pós-Doutorado em Educação Contemporânea - UFPE. Doutor em Educação -

USP. Professor no DLA e no PPGFP, da UEPB e no PPGLE, da UFCG. E-mail:


fabiohispanista@gmail.com

139
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

interativo, no sentido de que os diversos conhecimentos


do leitor interagem em todo o momento com o que vem
da página para chegar à compreensão”. Assim, por meio
das “pistas” que há no texto de estudo, o leitor mobiliza
seus saberes acumulados em sua vivência diária, suas
experiências, seu conhecimento de mundo, de modo a
interagir com o autor e (re)construir significados.
O trabalho do professor, nessa construção de
significados pelo aluno, é essencial e passa pelo
reconhecimento daquilo que o aprendiz é capaz de
compreender e fazer perante as especificidades de um
determinado gênero textual/discursivo que lhe é
apresentado. Ao analisar o que o aluno já sabe e o que
necessita para ampliar o seu conhecimento, o professor
atua na zona de desenvolvimento proximal (VIGOSTSKI,
2007, p. 97), auxiliando-o quanto à identificação e
compreensão de aspectos interdiscursivos e intertextuais,
bem como os aspectos referentes ao uso da linguagem e as
suas características, ampliando assim a sua capacidade
linguística e discursiva.
Embasados nos estudos de Bakhtin sobre língua e
linguagem, com sua relação destas com o contexto social,
pode-se compreender que a palavra sempre estará
intimamente associada à vida, já que é parte intrínseca de
um processo histórico e cultural em contextos específicos
de comunicação, que compartilham relações axiológicas
de valores que são socialmente construídos.
Assim, pode-se aprender com Bakhtin e seu Círculo
que a língua e a linguagem vão se dar por meio de
abordagens sociais que lhe são próprias, em um
(com)partilhar com o Outro. Nesse olhar, a música pode
instaurar uma relação de um para o outro e se estabelece

140
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

como relação social. Ainda em Bakhtin (2006), a língua se


constitui em processo interacional constante que se dá
sempre através das relações verbais e sociais que
acontecem entre os interlocutores. Assim, a língua não é
um sistema estável de formas estabilizadas e idênticas.
Muito pelo contrário, o que se vai perceber na análise da
letra de música deste texto é que a língua se mostra sempre
de forma heterogênea, evoluindo constantemente,
desenvolvendo novas relações sociais entre os
interlocutores.
Ao se apresentar, então, para o estudo, o poema e a
letra da música – aqui considerada como um tipo de
poesia, a qual tem a melodia como suporte – pretende-se
lapidar a sensibilidade do aluno para a compreensão de si
mesmo e do mundo, e, a partir dessa sensibilização,
ampliar a sua formação crítico-reflexiva. Reconhece-se na
poesia a sua dupla função afirmada por Horácio ao
reconhecê-la como dulce et utile: “a poesia é doce e útil.
Qualquer adjetivo separadamente representa uma
concepção polar errônea no que diz respeito à função da
poesia” (WARREN e WELLEK, 2003, p. 24).
É importante ressaltar que a melodia, como um
suporte, associa-se a características já tão presentes no
gênero poético, já que, segundo as palavras de Valéry
(1999, p. 214), “o valor de um poema reside na
indissolubilidade do som e do sentido”.
Assim, a proposta de prática docente que será
detalhada a seguir, terá como princípios os pressupostos
apresentados acima em consonância com os aspectos
dialógicos presentes em Bakhtin.

141
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Proposta de prática de ensino e aprendizagem em


diálogo com Bakhtin

A proposta a seguir, tomará como base a gravação


realizada em 1972, na qual há, além da canção, uma
introdução feita a partir da declamação de um poema
concreto de Augusto de Campos intitulado
“Cidade/City/Cité” de 1963, o qual estabelece, como se
analisará mais a frente, um diálogo com a letra da canção.
As práticas e interpretações que serão apresentadas a
seguir, tanto do poema quanto da letra da canção, não
esgotam outras possibilidades que certamente surgirão do
encontro dialógico entre as informações e experiências do
professor e aquelas trazidas pelos alunos.
Considerando que a atividade está voltada aos anos
finais do ensino fundamental e ao ensino médio, sugere-
se que a leitura da mesma seja feita pelos alunos,
preferencialmente em voz alta, antes de ouvirem a música.
Segundo Bignotto (2012, p. 20):
é essencial que eles pratiquem a leitura em voz alta, até que
passem a ver essa prática com naturalidade. O exercício é
importante para perceber ritmos e sonoridades, mas também
para desenvolver a capacidade de ouvir o colega que lê,
respeitar a sua leitura, esperar que ele acabe para interferir de
alguma maneira na atividade.

Em relação ao poema concreto que iniciará a prática


de leitura e interpretação, ele é, segundo o próprio autor
Augusto de Campos em apresentação realizada em 1996
no espetáculo Poesia é risco (no 11º Festival Internacional
Videobrasil/SESC Pompéia em São Paulo) , “talvez o mais
curto poema longo ou, quem sabe, o mais longo poema

142
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

curto que já se escreveu sobre esta cidade, 150 letras, uma


só linha”:

atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimultipliorganiperiodiplastipublirapareciprorustisagasimplitenaveloveveravivaunivoracidade
city
cite

“atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualu
brimendimultipliorganiperiodiplastipublirapareciprorust
isagasimplitenaveloveveravivaunivoracidade city cite”.5

Em um primeiro momento na prática em sala de aula,


propõe-se a partir da apresentação e leitura do poema que
se compreenda a relação entre o título e os prefixos – os
mesmos em português, inglês e francês – que aparecem
ordenados alfabeticamente no corpo de uma imensa
palavra composta. Nesse momento, é fundamental que o
aluno reflita sobre as palavras que se compõem pela
aglutinação dos prefixos ao termo cidade e perceba que na
estruturação do poema revela-se uma ordem em meio ao
caos.
Ao se analisar o sentido das palavras que se formam,
encontram-se ideias muito diversas, tais como atrocidade
e felicidade, fugacidade e tenacidade, e, portanto,
diferentes vozes que revelam o caos dos centros urbanos e
a sua “multiplicidade”, palavra que, aliás, também faz
parte do poema. Assim, palavras como atrocidade,
caducidade, causticidade, plasticidade, entre outras, dão

4Disponível em: <https://coleccion.malba.org.ar/cidade-city-cite/>. Acesso em: 31. Jul. 2020.


5Disponível em: <https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa2884/augusto-de-campos>.
Acesso em: 31. Jul. 2020.

143
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

significado a essa cidade, revelando seus aspectos


controversos e múltiplos. A própria forma do poema em
uma só palavra longa que abarca tantas outras revela
como essa cidade se constitui de diferentes vozes
submersas em um ritmo desenfreado, de modo que essa
longa palavra lida de uma só vez, sugere a rapidez e a
confusão moderna dos centros urbanos. Dessa forma, para
se decifrar o poema, é necessário se contrapor por um
momento a esse ritmo frenético, desvendar as palavras
que o compõem e a relação que estabelecem com as
demais, quer seja de semelhança, quer seja de diferença e
oposição.
No caso da canção “Senhor Cidadão” analisada a
seguir, veremos que o Senhor Cidadão e o eu-lírico são
outros e só se constituem em função da discursividade que
este outro carrega em si mesmo, conforme pensado por
Bakhtin (2006). E há a questão das forças. Faraco (2003) ao
analisar os conceitos de forças centrípetas é centrífugas
nas relações sociais e na linguagem, especificou e “aponta
para a existência de jogos de poder entre as vozes que
circulam socialmente” (FARACO, 2003, p. 153). Dessa
maneira o que se percebe na canção analisada é que se não
se pode enunciar o que se deseja quando se pretende, o
dialogismo de Bakhtin, por meio da singularidade do
sujeito dentro das interações sociais existentes, vai
possibilitar a resistência ao processo de força centrípeta.
Conforme Faraco, o dialogismo é “a única forma de
preservar a liberdade do ser humano e do seu
inacabamento" (FARACO, 2003, p.153). Dessa maneira,
como se pode perceber na música de Tom Zé, a
singularidade do sujeito se dá dentro das interações de
várias vozes sociais percebidas durante a canção, e até as

144
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

não percebidas, e por este motivo se concebe uma relação


que é social e singular, simultaneamente.
É importante, antes de se iniciar o estudo da canção,
que se reflita qual o possível diálogo que se estabelecerá
entre as palavras formadas no poema concreto e a letra da
canção. É essencial destacar também a relação com o título
“Senhor cidadão”. O próprio aspecto linguístico da
derivação de cidadão associado ao termo cidade, faz
pensar nesse cidadão como um sujeito que participa do
destino da sociedade, interfere, modifica-a e é por ela
modificado. Está imerso nesse caos, ao mesmo tempo em
que é responsável pelo seu destino e, em certa medida, do
destino daqueles que estão a sua volta.
Parte-se agora para a interpretação a partir da leitura
da letra da canção, associando-a também ao momento
histórico vivido pelo país no período em que foi escrita.
Segundo Cafiero (2010, p. 87), “os textos são marcados
pelo momento histórico em que são escritos, pela cultura
que os gerou, e ter essas informações, no momento da
leitura, contribui para a compreensão”.
Reforça-se, porém, a importância de que essa
contextualização se dê a partir dos versos da canção, com
base nos elementos neles presentes e que são repletos de
significações. Segundo Antunes (2003, p. 67):
nessa busca interpretativa, os elementos gráficos (as
palavras, os sinais, as notações) funcionam como
verdadeiras “instruções” do autor, que não podem ser
desprezadas, para que o leitor descubra significações,
elabore suas hipóteses, tire suas conclusões”. Palavrinhas
que poderiam parecer menos importantes, (...) são pistas
significativas em que devemos nos apoiar para fazer nossos
cálculos interpretativos.

145
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Assim, a partir do encontro com o texto, considerando


não somente o que ele diz, mas de que forma expressa suas
concepções, podemos compreendê-lo em um sentido mais
amplo, contextualizando e o associando às nossas próprias
experiências e a outras leituras.
Partindo dessa concepção de prática, serão
apresentadas a seguir as estrofes da canção6 e, em seguida,
a análise:

Senhor cidadão

Senhor cidadão
Senhor cidadão
Me diga por quê
Me diga por quê
Você anda tão triste?
Tão triste
Não pode ter nenhum amigo
Senhor cidadão
Na briga eterna do teu mundo
Senhor cidadão
Tem que ferir ou ser ferido
Senhor cidadão
O cidadão, que vida amarga
Que vida amarga

Compreende-se logo no título e na repetição em


vários versos, que o vocativo “Senhor cidadão” evidencia
um diálogo iniciado pelo sujeito poético, o qual também
introduzirá, nessa primeira estrofe, alguns adjetivos que
apresentam características desse senhor, pontuando a sua

6 Disponível em: <https://www.letras.mus.br/tom-ze/164912/>. Acesso em: 31. Jul. 2020.

146
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

vida triste e amarga, o que se confirma pelas repetições de


trechos como “tão triste/tão triste, “que vida amarga/que
vida amarga. Infere-se pelos versos da canção que essa
tristeza e amargura surgem em decorrência da sua solidão
e individualismo em meio a essa “briga eterna do teu
mundo”, onde “tem que ferir ou ser ferido”, sobrevivendo
à custa da exploração do outro.

Oh senhor cidadão
Eu quero saber, eu quero saber
Com quantos quilos de medo
Com quantos quilos de medo
Se faz uma tradição?

Oh senhor cidadão,
Eu quero saber, eu quero saber
Com quantas mortes no peito
Com quantas mortes no peito
Se faz a seriedade?

As repetições dos versos “com quantos quilos de


medo” e “com quantas morte no peito”, envoltos por
questionamentos: “se faz uma tradição?”, “se faz a
seriedade?”, destacam seu caráter de protesto velado
perante essa “tradição” militar que se impunha através do
medo, objetivando por meio de ações violentas manter a
“seriedade” e a ordem estabelecidas.

Senhor cidadão
Senhor cidadão
Eu e você
Eu e você
Temos coisas até parecidas

147
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Parecidas
Por exemplo, nossos dentes
Senhor cidadão
Da mesma cor, do mesmo barro
Senhor cidadão
Enquanto os meus guardam sorrisos
Senhor cidadão
Os teus não sabem senão morder
Que vida amarga

Os versos acima revelam as semelhanças e as


diferenças entre o sujeito poético e o senhor cidadão. Em
relação às semelhanças, ao citar que os dentes são “da
mesma cor, do mesmo barro”, ele expressa o quanto eram
(e somos) iguais em direitos e deveres. O princípio da
igualdade, ao considerar que somos todos iguais perante
a lei, abarca o direito a uma participação política ampla e,
portanto, livre de opressão.
Em seguida, o sujeito poético destaca as diferenças
entre eles quanto ao seu posicionamento perante as
circunstâncias impostas pela “tradição”. Ele (o sujeito
poético), apesar das circunstâncias do período, “guarda
sorrisos”, revelando uma alegria em meio ao caos. O que
nos faz pensar no substantivo “felicidade” que, por
aglutinação, está presente no poema concreto analisado,
em meio à outras palavras que o compõem e que
expressam o caos dos centros urbanos: velocidade,
ferocidade, agressividade, etc., sendo essas duas últimas,
por exemplo, caraterísticas que podem ser associadas ao
senhor cidadão: “os teus não sabem senão morder”.
Assim, ao final da estrofe, ao referir-se mais uma vez a

148
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

vida “amarga” do senhor cidadão, o sujeito poético reforça


essa oposição que há entre eles.

Oh, senhor cidadão


Eu quero saber, eu quero saber
Se a tesoura do cabelo
Se a tesoura do cabelo
Também corta a crueldade

Senhor cidadão
Senhor cidadão
Me diga por quê
Me diga por quê
Me diga por quê
Me diga por quê

Outro ponto dialógico para esta canção de força


exuberante foi a sua exibição contínua em uma novela de
grande repercussão da Rede Globo de Televisão. “Oh,
senhor cidadão, eu quero saber, eu quero saber: com
quantos quilos de medo se faz uma tradição?” Versos
como esses, da música, escritos em 1972 embalaram a
novela “Velho Chico”, que de forma contemporânea,
dialogou com a linguagem da telenovela, em seu enredo,
dialogou com a conjuntura política ali discutida e mostrou
aos brasileiros que a atualidade da canção permanece até
hoje, onde os poderosos exploram o povo e a desigualdade
social só aumenta, em uma realidade perceptível em quase
todas as salas de aula da educação pública deste país.
Considerando que em Bakhtin todo signo é ideológico
, ou em suas próprias palavras “tudo que é ideológico é
um signo” (2006, p. 31), se esses signos se quer ser igual
vem ações sujeitas com relações de produção específicas

149
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

dentro de uma estrutura sócio política , há que se


compreender que cada palavra da canção é
ideologicamente determinada. “O domínio do ideológico
coincide com o domínio dos signos: são mutuamente
correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-
se também o ideológico”. (BAKHTIN, 2006, p. 32). Dessa
maneira, em todo o contexto da música, seja cantada por
Tom Zé e outros e ouvida ou sentida dentro do contexto
da novela, há que se apreender que as relações de
produção e a estrutura sociopolítica presente nelas são
fulcrais para a assimilação e compreensão dos fenômenos
humanos existentes, que tratamos anteriormente, em
crítica a relações dominantes de desigualdade social
prolongada. Nesse aspecto, a ideologia estudada por
Bakhtin (2006) revela a tensão das classes sociais, como tão
bem se percebe na letra da música, expondo o jogo entre a
infraestrutura, que está ligada à base da pirâmide social, e
a superestrutura, que relacionada ao Senhor Cidadão
opressor, está ligada a quem oprime e detém os meios de
exploração e de opressão.
É possível analisar nessa parte final da canção a
questão dos valores e comportamentos, ou seja, os bons
costumes da época, talvez fazendo alguma referência aos
cabelos curtos dos homens, já que os cabelos longos
poderiam sugerir um visual subversivo.
Remetendo-nos, mais uma vez, a aspectos relativos à
manutenção da ordem, leva-nos a uma reflexão sobre o
quanto a opressão e a crueldade estavam presentes e
enraizadas no cotidiano dos cidadãos.

150
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Referências
ANTUNES, I. Aula de português: encontro & interação. São Paulo:
Parábola Editorial, 2003.
BIGNOTTO, C. Sabores da leitura. São Paulo: Secretaria do Estado da
Educação, 2012.
CAFIERO, D. Letramento e leitura: formando leitores críticos. In:
RANGEL, Egon de O.; ROJO, Roxane H.R. (Coord.). Língua
portuguesa: ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Básica, 2010. (Coleção Explorando o
Ensino; v. 19).
KLEIMAN, A. Leitura: ensino e pesquisa. Campinas, SP: Pontes, 1989.
VALÉRY, P. Poesia e pensamento abstrato. In: BARBOSA, João
Alexandre (org). Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira. São
Paulo: Iluminuras, 1991, p. 201-218.
VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos
processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
WARREN, A.; WELLEK, R. Teoria da literatura e metodologia dos
estudos literários. Tradução: Luis Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.

151
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

152
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

A ESCRITA DO ALUNO SURDO


Relações de sentido em Bakhtin

Josiane Coelho da COSTA1

Atualmente, no cenário das políticas inclusivas,


muitas discussões envolvem a educação de surdos,
sobretudo, as questões relacionadas à leitura e escrita, que
se dá ainda de forma muito fragilizada. Assim,
considerando que as formas contemporâneas de
sociabilidades, exigem, novas definições de práticas
sociais e a escrita desempenha um papel importantíssimo
para que o surdo esteja integrado em comunidade
majoritária ouvinte, pensa-se que estes sujeitos, enquanto
usuários do Português em modalidade escrita podem, a
partir destas habilidades, tornarem-se mais
independentes e membros atuantes em várias esferas
sociais.
Desse modo, o presente trabalho buscar analisar a
relação de sentido para os surdos a partir dos textos em
que são expostos, analisando ainda a estrutura das frases
escrita com as possibilidades de produção de sentido
baseando-se nas teorias dialógicas de Bakhtin. O estudo
organiza-se inicialmente por pesquisa bibliográfica com
base nos pressupostos de autores como: Bakhtin (2000,
2006), Brait (2013), Koch (2003, 2017), entre outros; e num
segundo momento, por pesquisa de campo com alunos de
nível médio e superior, a partir de entrevista
semiestruturada, individual. Optou-se por abordagem

1 Graduanda do Curso de Letras-Libras da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).


Membro do Grupo de pesquisa Linguagens, culturas e identidade (CNPq/UFMA) E-mail:
josianecoelhocosta@gmail.com.

153
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

qualitativa, que segundo Marconi e Lakatos (2017)


pressupõe uma investigação e interpretação de aspectos
mais aprofundados da complexidade dos sujeitos, em
sociedade.
A pesquisa justifica-se pela relevância para a
comunidade acadêmica e profissionais da área, sobretudo,
pelas atuações cada vez mais ativas de surdos nos espaços
educacionais, demandando dos docentes conhecimentos
acerca das especificidades da escrita destes alunos. Os
resultados obtidos mostraram que, embora a estrutura das
frases de alunos surdos seja construída com algumas
dificuldades, na modalidade escrita, mas é possível
entender o sentido dos textos os quais estes alunos são
expostos. E um dos aspectos influenciadores nessa
construção de sentidos é o processo interacional do
professor, enquanto intermediador em sala de aula, numa
concepção dialógica com o estudante surdo.
Importa destacar que a prática docente é para além do
papel, para além do que diz a legislação vigente, no
contexto da educação inclusiva. É imprescindível atentar
para as singularidades educacionais dos surdos e torna-se
urgente repensar a prática, disponibilizar acesso aos
conteúdos de forma que estes estudantes possam ter um
processo de ensino e de aprendizagem, que os
possibilitem ter autonomia para o exercício da cidadania.

A escrita enquanto aspecto precípuo para sociabilidades


contemporâneas

A língua não é um simples sistema de regras e


códigos, mas é fundamentalmente um fenômeno
sociocultural que se determina nas relações interativas

154
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

entre os sujeitos, conforme aponta Bakhtin (2006). O seu


uso assume um lugar importantíssimo, pois além de
contribuir de maneira decisiva para a criação de novas
sociedades e para nos tornar definitivamente humanos, se
elimina o risco de transformá-la em simples instrumento
de transmissão de informações, como pontua Marcuschi
(2010).
No tocante à língua, em sua modalidade escrita, ainda
que criada tardiamente pelo homem, comparada à
oralidade, é encontrada em quase todas as práticas dos
povos em que penetrou. Sob a influência da
contemporaneidade, seu uso se tornou quase
indispensável para enfrentar o dia a dia, seja em área
urbana ou rural, em ambientes de atividades complexas
ou mais básicas, bem como destaca Marcuschi (2007).
Nos últimos anos, com as disposições dos dispositivos
legais que narram sobre os direitos dos surdos, a presença
destes sujeitos em atividades sociais cresceu
significativamente. E nestas atividades, a escrita constitui-
se elemento essencial, haja vista, a Libras ser uma língua
ainda pouca utilizada por pessoas ouvintes no Brasil e sua
legitimação ser, relativamente recente, ou seja, somente
em 2002, pela Lei 10. 436 foi reconhecida como meio de
comunicação da comunidade surda do País e
posteriormente regulamentada pelo Decreto 5.626/2005.
No que tange aos direitos educacionais, dispostos
pelo Decreto 5.626/2005, o uso do Português, em
modalidade escrita, para o surdo, tem sido grande entrave
para efetivação da escolarização destes estudantes. A
aprendizagem da sua modalidade escrita tem sido
bastante dificultada por diversas questões, que variam do
desconhecimento da identidade surda, como vem

155
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

destacando, em seus estudos, Skliar (2016), até a ausência


de metodologias no sistema educacional de alunos surdos
e deficientes auditivos, como evidenciado por Falcão
(2015):
Ao permanecer alheio e na superficialidade dos saberes
comum do discurso simplista e retórico, com pouca
maturidade intelectual, muita ingenuidade e até certo ponto,
na mediocridade mental produzida pela sociedade de
surdos e ouvintes que não exploram a capacidade do
potencial cognitivo de cada sujeito. Segue-se a escolarização
na inoperância do discurso que surdos aprendem igual aos
ouvintes e que eles aprenderam o contexto. Se alguém
duvidar eles respondem com o sinal “entender” e todos se
calam. Ninguém segue a pergunta: “entender o que”?
“Explique o que entendeu”. “De que forma”? “Por que”?
(FALCÃO, 2015, p. 394).

A crítica exposta pelo autor é apenas uma das


dificuldades na educação de alunos surdos, pois para além
de fragilidades na estruturação de políticas educacionais e
as formas como estes alunos são acolhidos, não só na sala
de aula física, mas, sobretudo, no que se refere o acesso aos
conhecimentos e recursos que os façam alcançar o
processo de ensino e de aprendizagem eficazmente, estão
as dificuldades do professor frente a um aluno com
necessidades específicas educacionais.
Seguindo as orientações vigentes, dispostas pelo
Decreto 5.626/2005, no que se referem as questões
inclusivas na esfera escolar, muitas instituições vêm
aproximando-se, de tais direcionamentos, entretanto, há
uma necessidade de reformulações das políticas
educativas e práticas docentes que permitam a
acessibilidade dos alunos surdos ao conhecimento integral
no processo de ensino e de aprendizagem, considerando a

156
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

relevância da Libras, mas ressaltando que o Português na


modalidade escrita para estes sujeitos assume um papel
importante no processo de socialização, propiciando uma
vivência em comunidade mais independente, segundo
destaca Salles (2004).

Produções textuais de surdos: algumas pesquisas

Com o crescimento do interesse pelas pesquisas na


área da surdez, principalmente entre linguistas,
educadores, psicólogos e estudantes da área, muitos
estudos chamam atenção para a construção dos aspectos
coesivos dos enunciados desses sujeitos. Silva (1999)
desenvolveu uma pesquisa, realizada em uma escola de
rede municipal de Belo Horizonte, na qual destacou a
importância do interlocutor, o meio social que o autor está
inserido, a situacionalidade e o contexto de produção do
texto como responsáveis pela inteligibilidade das
produções de alunos surdos.
Analisando os textos dos surdos a autora identificou
a ausência de conectores, estrutura desordenada, uso
inadequado da forma verbal, o que pode muitas vezes,
impedir um entendimento acerca do sentido do texto
exposto por alunos surdos em classes comuns de ensino.
Todavia, Koch (2003) demarca que o texto se constitui de
um conjunto de pistas destinadas a orientar o leitor na
construção do sentido e para fazer essa construção, o leitor
deve preencher lacunas, formular hipóteses, testá-las,
encontrar alternativas, ou seja, inferir.
Essa inferência demanda conhecimentos prévios.
Assim, em uma sala de aula, é importante que se perceba
nos textos dos estudantes surdos, como as significações

157
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

foram formuladas, a partir de quais visões de mundo o


aluno materializa graficamente tal texto. Corroborando à
assertiva silva (1999, p.93) pontua que “[...] È importante
perceber nos textos dos surdos, elementos que permitam
reconhecer os sentidos no processo de construção de
escrita”.
Nessa acepção, a interação entre autor e interlocutor
pode dar sentindo ao texto, ainda que aspectos coesivos se
façam ausentes, muitas vezes. Sob essa perspectiva,
Pereira (2009), em uma de suas pesquisas, investigou
produções textuais de alunos surdos com participação de
professores coordenadores de oficinas na área da língua
Portuguesa e professores que atendem alunos surdos em
salas de recursos, no Estado de São Paulo.
Durante a pesquisa, um número significativo de
atividades dos alunos foi analisado, sendo notado
fragilidades estruturais da escrita, mas percebeu-se
também demonstrações de conhecimentos sobre o
sentindo dos textos. Todos apresentavam estruturas
frasais simples e desordenadas, ausência de elementos de
ligações como preposição e conjunção, flexão verbal
descontextualizada, mas com a interação em sala,
professor e aluno, possibilitou-se identificar as
construções de sentidos acerca do que havia sido escrito
pelos alunos surdos.
Nessa mesma direção, Alves (2014) desenvolveu um
estudo que mostrou análises de textos produzidos por seis
alunos surdos e seis alunos ouvintes, em uma escola do
estado de Pernambuco, sendo inferido nos textos dos
alunos ouvintes algumas falhas de acentuação gráfica,
carência de um pensamento mais complexo na elaboração
dos textos, mas no geral mostraram coerência, coesão, boa

158
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

estruturação das frases, já nos textos dos alunos surdos, a


autora percebeu-se um estágio de interlíngua na estrutura
frasal e semelhança da escrita do português com a forma
da Libras sinalizada.
Nessa perspectiva, o estudo apontou para a
capacidade de compreensão da produção textual dos
surdos, desde que haja qualificação profissional, boas
condições que favoreçam o processo de ensino e de
aprendizagem destes alunos, pois segundo destaca
Vygotsky (1989) os problemas dos sujeitos com deficiência
não são de cunho biológico, mas social. E este é um ponto
crucial que as instituições precisam voltar seus olhares,
pois segundo afirma Salles (2004, p. 132), é urgente que se
desenvolva “[...] um amplo intercâmbio de informações e
experiências entre profissionais e interessados nessa
questão”.
Para alunos ouvintes o início da alfabetização é o
momento no qual a língua oral passa a ser representada
graficamente, o momento no qual a escola direciona e
ensina regras sobre o uso da relação escrita com a fala. No
contexto do aluno surdo, este entra na escola com uma
língua em uma modalidade totalmente diferente, visual-
espacial, tornando bem mais complexo o processo de
aquisição de conhecimentos escolares. Desse modo, é
essencial buscar uma metodologia educacional com a
especificidade da comunidade linguística destes
indivíduos, uma vez que, o processo de ensino não segue
a mesma característica dos ouvintes, sendo esta temática
escolhida a ser discutida, aqui neste estudo, pelas
possibilidades dialógicas e discursivas que as teorias
Bakhtiniana apresentam para a área da educação,
linguística, letras, entre outras.

159
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Entrelaçando Bakhtin, surdez e produções de sentidos

Para Bakhtin (2000) o sujeito se define, sobretudo,


pelas suas relações com os outros sujeitos, sendo estas
interações, construções que implicam num processo
multifacetado, inesgotável e aberto, no qual a palavra dita
não se constitui como inflexível, pois as questões a estas
relacionadas estão intrinsecamente ligadas aos
enunciados e ao discurso numa concepção dialógica. Para
melhor compreender a questão aqui proposta, quer seja a
construção de sentidos dos textos de alunos surdos,
considerando-se as fragilidades já destacadas, entendeu-
se pertinente discorrer sobre a concepção dialógica da
língua para Bakhtin.
Assim, tem-se que a linguagem, os aspectos
comunicativos é uma prática social que a partir da língua
se concretiza, a língua não pode ser entendida apenas
como um conjunto de signos, mas segundo afirma Bakhtin
(2006), é um fenômeno social de interação verbal,
realizada pela enunciação, que é sua essência. Nessa ótica,
contextualizando a temática, aqui proposta, aproxima-se
da perspectiva de que o sujeito assume destaque nas
situações interacionais. Nessa lógica, nossa voz é sempre
também a voz do outro e os enunciados se constroem e se
reconstroem pelo outro.
Pensando em uma produção textual, no qual os
pensamentos concretizados pelos códigos gráficos de um
aluno surdo se apresentam ao professor, em estruturação
muitas vezes confusa, poderão ser compreendidas pela
reconstrução de significados que aquele enunciado
apresenta, antes mesmo de se materializar no papel. Desse
modo, seguindo as colocações de Bakhtin (2006) o sentido

160
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

é amplo, para além da palavra, podendo assim por dizer,


que toda produção textual de alunos surdos carrega
consigo, uma carga de significações. Á luz dessas
considerações, tem-se que:
A consciência subjetiva do locutor não se utiliza da língua
como de um sistema de formas normativas. Tal sistema é
uma mera abstração, produzida com dificuldades por
procedimentos cognitivos bem-determinados. O sistema
linguístico é o produto de uma reflexão sobre a língua,
reflexão que não procede da consciência do locutor nativo e
que não serve aos propósitos imediatos da comunidade. [...].
Trata-se para ele, de utilizar as formas normativas num dado
contexto concreto. Para ele o centro de gravidade da língua
não reside na conformidade à norma da forma utilizada, mas
na nova significação que essa forma adquire no contexto.
(BAKHTIN, 2006, p. 95-96).

Nessa acepção, o sujeito concebido não é autônomo,


pois perpassa por diferentes esferas resultante dessa
relação intrínseca entre locutor e interlocutor no território
que é a palavra. E para melhor se compreender que a
escrita como produto da enunciação, não poderá, nos
ambientes educacionais de salas inclusivas, ser
considerado como individual, pensa-se a partir de
Bakhtin (2006, p. 113) que “a enunciação é de natureza
social. Como visualizar-se-á no tópico a seguir.

Delineamentos da pesquisa

A parte inicial da pesquisa, que como já mencionado,


organizou-se em ampliação ao tema pelas bibliografias de
Bakhtin (2000, 2006), Brait (2013), Koch (2017), Marcuschi
(2007, 2010) entre outros; parte num segundo momento,
para uma pesquisa de campo, com objetivos exploratórios,

161
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

que segundo Marconi e Lakatos (2017) permite ao


pesquisador maior familiarização com os sujeitos
investigados.
Nesta etapa de campo, participaram da pesquisa, dois
surdos da cidade de São Luís, Maranhão, em dois níveis
diferentes de escolaridade: Ensino Médio e Ensino
Superior. A pesquisa caracteriza-se por abordagem
qualitativa que segundo Minayo (2001), preocupa-se com
a realidade do universo estudado sem quantificar.
A fim de coletar os dados, foi apresentado o texto
impresso da literatura infantil A lebre e a tartaruga2, sendo
inicialmente sinalizado pelo intérprete/tradutor de Libras
e posteriormente lido pelo aluno surdo. Em um segundo
momento foi solicitado que respondessem perguntas
sobre o texto, para que pudesse ser mensurado a dimensão
da compreensão da leitura; e por fim, foi pedido que
reescrevessem o mesmo texto para que minuciosamente
pudesse ser analisado.
A pesquisa foi concedida e devidamente autorizada
através do termo de consentimento livre e esclarecido e
cabe destacar que não usaremos os nomes reais neste
estudo, atribuindo então o termo de entrevistado a cada um
dos participantes, objetivando manter a discrição dos
informantes da pesquisa.

Reconstruindo o sentido do texto a partir de Bakhtin

Sob algumas perspectivas, entre estas, a da linguística


textual determinados elementos tornam-se essenciais para

2 O texto utilizado foi retirado e adaptado pela pesquisadora do livro da editora Ciranda
Cultura. (a fábula de a lebre e a tartaruga). O texto encontra-se disponível nos anexos deste
trabalho.

162
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

inteligibilidade dos textos, segundo Koch (2003), são estes:


a intencionalidade, aceitabilidade, informalidade,
situacionalidade e intertextualidade. A partir destes, nessa
concepção mais gramaticista, é possível julgar se um texto
possui ou não comunicabilidade. Todavia, o que se propõe
neste trabalho, é entender além da estrutura da norma
culta da Língua Portuguesa. Nesse sentido, diante da
história de A lebre a tartaruga, apresentada aos alunos
surdos, sinalizada pelo profissional intérprete de libras e
posteriormente coletada a produção textual, obteve-se
como resultado o exposto em figura 1, a seguir:

Figura 1: Produção textual do aluno surdo com escolaridade Ensino


Médio - entrevistado 1

Fonte: Arquivos pessoais da autora em abril de 2019

Diante da produção do aluno surdo do nível médio,


ilustrado em figura 1, é perceptível a ausência de muitos
conectores: preposições, conjunções, flexões verbais
corretas; e nota-se uma ordem singular da estrutura frasal,
que para os profissionais que vêm trabalhando com o
contexto da surdez não é mais tão incomum. Sendo assim,
a partir da entrevista e diálogo com aluno, durante a
pesquisa, foi possível elencar no quadro 1 as possíveis
interpretações da citada produção textual. Vejamos:

163
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Quadro 1: Interpretações a partir da interação com o aluno e tradutor


de Libras

COMPOSIÇÃO FRASAL INTERPRETAÇÃO

Lebre que lebre corrida A lebre estava na corrida e era rápida


rápido
Longe chegar corrida boa Estava longe da chegada, na corrida, mas
mais ela era muito boa
A tartaruga é habitualmente lenta, mas
Habitual gosto longe chegar
vai chegar
Lentos vencidos é corrido A tartaruga mesmo lenta venceu a corrida
Fonte: Arquivos pessoais da autora em abril de 2019

Considerando o processo de interação, no momento


em que a pesquisadora, que aqui escreve, esteve em
contato com o informante, foi possível perceber que o
texto só vive em contato com outro texto e conforme
aponta Bakhtin (2000, p. 404) “somente em seu ponto de
contato é que surge a luz que aclara [...] fazendo com que
o texto participe de um diálogo”. Á vista disso,
compreendeu-se a expressão da escrita que o entrevistado
1 expôs, como demonstrada no quadro 1.
A fim de ratificar a interpretação recebida, foi
perguntado ao entrevistado 1 o que estavam fazendo a
Lebre e a tartaruga, dando a ele três opções: se divertindo,
se desafiando ou dividindo o prêmio, obteve-se como
resposta que as personagens estavam se divertindo. Num
primeiro momento considerou-se a resposta
taxativamente errada, pois a mencionada fábula é contada
por gerações como uma disputa, um desafio. Então,
posteriormente, analisando a resposta, achou-se
pertinente o pensamento do aluno surdo, pois a disputa
pode ser considerada sim, antes de qualquer coisa, uma
brincadeira.

164
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Chama-se assim, à reflexão da relevância em


considerar que a história é recontada pela visão do aluno,
com outras significações, e mesmo que de forma
fragilizada é exposta em modalidade escrita, mas na
situação interacional: pesquisadora e aluno, foi possível
ser reconstruída. Inferiu-se ainda que as possibilidades e
estratégias pedagógicas são essenciais para desenvolver o
processo escolar destes alunos, como evidenciado por
Koch (2017) quando assevera que todo e qualquer
processo de compreensão pressupõe atividades de um
ouvinte/leitor, caracterizando-se em um ato ativo e
contínuo.
Pensando-se sob esta ótica, nesse cenário de educação
inclusiva, destaca-se as proposições Bakhtinianas que
demarcam o dialogismo como fator primordial a se
considerar, no qual o sujeito não deve querer uma
interação que a compreensão seja sempre passiva, mas que
possa se obter respostas contrárias, objeções, nessa
construção de um diálogo pelo diálogo do outro.
(BAKHTIN, 2000).
Outro questionamento, acerca da narrativa,
apresentado ao aluno foi sobre por que a Lebre perdeu a
corrida. Se havia sido traída pelo excesso de confiança em
si mesma; traída pela tartaruga ou pelo sono. O
entrevistado 1 respondeu que foi pelo sono. O que chamou
atenção para a significação apresentada pelo aluno, pois
todos que conhecem a fábula de A lebre a tartaruga sabem
que o excesso de confiança foi o motivo da personagem
perder a corrida, pelo menos era o que se contava desde a
infância de muitos, num desfecho que trazia como moral
da história o erro da prepotência.
Nessa acepção compreende-se que as produções de

165
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

alunos surdos podem ser olhadas por um viés mais


singular, em comparação aos demais alunos ouvintes, sem
superficialidades, como destacado por Falcão (2015).
Torna-se essencial discutir a linguagem escrita, de
estudantes surdos, sob pressupostos sócio-interacionais,
dialógicos, atentando-se às interpretações que estes têm
diante do que lhes são dispostos, na esfera escolar, a fim
de que se possa alcançar desenvolvimento eficaz no
processo educacional destes sujeitos.
No tocante ao entrevistado 2, um aluno surdo do nível
superior, obteve-se a produção textual ilustrada em figura
2:
Figura 2: Produção textual do aluno surdo com escolaridade Ensino
Médio – entrevistado 2

Fonte: Arquivos pessoais da autora em abril de 2019

Neste texto, a considerar um nível maior de


escolaridade, a produção deste aluno, apresentou algumas
frases escritas de forma mais organizada, nota-se o uso de
algumas pontuações gráficas, mas ainda assim percebe-se

166
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

peculiaridades na produção, que como já se discutiu, neste


trabalho, são resultantes, também, de uma educação
básica fragilizada, de acordo com Skliar (2016).
É importante destacar que a limitação lexical nada
tem a ver com limitação cognitiva, nesse sentindo, Silva
(1999) afirma que os processos de ensino e de
aprendizagem dos alunos surdos dependem, via de regra,
também dos processos educacionais das instituições e que
as dificuldades dos surdos na escrita estão relacionadas às
estruturas linguísticas pouco desenvolvidas, repercutindo
de modo geral na educação. Para melhor visualizar a
estrutura das frases do entrevistado 2 acerca do tema,
elencou-se em quadro 2 as seguintes interpretações:
Quadro 2: Interpretações a partir da interação com o aluno e tradutor
de Libras

COMPOSIÇÃO FRASAL INTERPRETAÇÃO

A lebre e a tartaruga parece estão A lebre e a tartaruga estão em um


desafiada na corrida que a lebre desafio, uma corrida, proposta pela
querer a tartaruga lebre

A lebre pensava vou ganhar na A Lebre pensava que iria ganhar a


corrida rápida corrida por ser rápida
E a tartaruga aceitou para a corrida E a tartaruga aceitou a corrida
A corrida começou com tiro, a A corrida começou com um tiro, a
lebre correu rápida e a tartaruga lebre correu rápido e a tartaruga
correu bem devagar com lenta bem devagar
A lebre correu em longe na A lebre correu longe no caminho.
caminhar, ele pensou estão longe a ela pensou: a tartaruga está bem
tartaruga esta atrás em longe atrás, distante
Depois ele deitado na árvore
Então ela deitou na árvore e dormiu
dormiu
A tartaruga estava correndo
a tartaruga está correndo devagar
devagar
porque a tartaruga venceu está A tartaruga está feliz porque
feliz para desafio com lebre venceu o desafio com a lebre
Fonte: Arquivos pessoais da autora em abril de 2019

167
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Como observado no quadro 2, os diálogos com os


alunos surdos apontaram para compreensão significativa
acerca do enredo da história apresentada. Para as
interpretações realizadas a partir das produções textuais
dos entrevistados tornou-se relevante demarcar as
pontuações de Kleiman (2016) quando ressalta a
relevância do conhecimento prévio às leituras, nessa
relação autor/leitor. Os sujeitos surdos possuem
capacidades e habilidades de realizar produções escritas
com sentido, desde que estes sejam acolhidos
metodologicamente.
Nessa direção, os alunos tornam-se seres em via de
recebimentos, sujeitos situados, como bem dispõe Brait
(2013). Partindo, pois, destes pressupostos, ao perguntar
para o entrevistado 2 o que as personagens estavam
fazendo na história dando-lhes as três opções: se
divertindo, se desafiando ou dividindo o prêmio, este
entrevistado respondeu de forma diferenciada do
primeiro, disse que estavam se desafiando. O que
demonstra uma percepção diferente do outro aluno,
corroborando das proposições de Brait (2013, p.23) de que
“o mundo humano é um mundo de sentido”.
Á luz dessas considerações, Falcão (2015) discorre que
a surdez não deve ser empecilho para aprendizagem de
linguagem escrita pelos surdos e que suas potencialidades
de interpretações devem ser instigadas nas interações,
sobretudo, nos espaços educacionais.
Ainda no que concerne a relação de diálogo com o
entrevistado 2, durante a pesquisa, quando perguntado por
que a Lebre perdeu a corrida, a resposta foi semelhante ao
entrevistado 1, pelo sono. Nesta interpretação, que cabe
destacar, faz-se coerente, haja vista, na história a lebre de

168
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

fato ter adormecido, reflete-se acerca da proximidade com


as palavras de Brait (2013) quando explana sobre o círculo
de Bakhtin não tratar o sujeito como um fantoche nas
relações sociais, mas como um agente responsável pelos
seus atos, com concepções transcendentais.
Enfatiza-se assim que, como a experiência na
pesquisa, na qual foi utilizada estratégias de leituras
individuais, sinalizações com o auxílio dos profissionais
intérpretes e mais a perspectiva obtida pela produção
textual do aluno, com diálogos no contexto do conteúdo,
foi possível inferir a dimensão de receptividade dos textos.
Sendo assim, pode-se repensar muitas práticas docentes
nas instituições, que se adaptam com decretos e leis de
inclusão colocando o aluno em sala comum, mas que
ainda não desenvolvem recursos e métodos que
materialize o processo de forma eficiente.

Considerações finais

Diante do percurso aqui explanado, pode-se


compreender que o trabalho a ser desenvolvido no
contexto da surdez vem, ao longo dos anos, destacando
que as fragilidades são múltiplas; e tanto para o docente
que, muitas vezes, se depara com um aluno com
necessidades especiais sem experiências para atuar, como
para o aluno que estando em uma espacialidade dita
inclusiva, não adquire muitos conteúdos que são
primordiais à construção do seu processo de ensino e de
aprendizagem.
Nessa direção, pretende-se despertar, com este
estudo, reflexões acerca da relevância das relações
dialógicas bakhtinianas na esfera da sala de aula e de como
um olhar mais singular para as especificidades do aluno

169
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

surdo pode ser determinante na eficiência da educação de


surdos. Ainda que sejam criados Decretos, leis e políticas
inclusivas dispondo sobre os direitos de alunos com
necessidades educacionais especializadas, ainda assim,
estes elementos não serão suficientes para tornar
exequível a educação integral destes estudantes. Torna-se
urgente repensar a prática docente nos espaços
educacionais inclusivos.

Referências
ALVES, S. M. L. Textos escritos por surdos e ouvintes sob o olhar da
linguística textual. 2012. Dissertação de Mestrado. Recife, 2012.
BAKHTIN. M. Estética da criação verbal. 3ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. 512p.
______. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais
do método sociológico da linguagem. 12. ed. SP: Hucitec, 2006.
376p.
BRAIT, B. Bakhtin: conceitos-chaves. 5ª ed. SP: Contexto, 2013. 264p.
BRASIL, Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua
Brasileira de Sinais Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/c
civil_03/leis/2002/l10436.htm>. Acesso em: 5 de jul. 2020.
______Decreto-Lei nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta
a Lei nº 10.436. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_
03/_Ato2004-2006/2005/Decreto/D5626.htm>. Acesso em: 05.jul.20.
FALCÃO, L. A. B. Educação de surdos: comportamentos, escolarização
e o mercado de trabalho. 2ª ed. Recife: Ed do autor, 2015.526p.
MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. Fundamentos de metodologia
científica. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2017. 368p.
MINAYO, M. C. S. (org.). Pesquisa Social. Teoria, método e
criatividade. 18 ed. Petrópolis: Vozes, 2001. 96p.
KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 16ª. Ed.
São Paulo: Pontes Editora, 2016. 82p.
KOCH, I. V. O texto e a construção dos sentidos. 10ª ed. São Paulo:
Editora Contexto, 2003. 168p.
______. Ler e compreende os sentidos dos textos. 3ª ed. São Paulo:
Contexto, 2017. 216p.

170
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

MARCUSCH, L. A. Da fala para a escrita: atividades de


retextualização. São Paulo: Cortez, 2010. p. 136.
______. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 10ª ed. São
Paulo: Cortez, 2007.
PEREIRA, M. C. C. Leitura, escrita e surdez. 2ª ed. São Paulo: Secretaria
do Estado de São Paulo, 2009. p. 104.
SALLES, H. M. M. L Ensino de Língua Portuguesa para surdos:
caminhos para a prática pedagógica. 2ª ed. Brasília: MEC. SEESP,
2004. 207p.
SILVA, M. P. M. A construção de sentidos na escrita do sujeito surdo.
Dissertação de Mestrado. Univ. Estadual de Campinas, 1999.
SK LIAR, C. A Surdez: um olhar sobre as diferenças. 8ª. ed. Porto
Alegre: Mediação, 2016.190p.

Anexos
Anexo 1 - Texto usado na leitura e produção textual dos
pesquisados, adaptado do livro da Editora Ciranda
Cultural.

A Lebre e a Tartaruga

Era uma vez uma tartaruga e uma lebre...


A Lebre ao sair pela manhã em sua corrida habitual encontrou a
Tartaruga em sua lentidão normal. Só para tirar uma onda olhou
para a tartaruga vendo suas pernas curtas e quis pregar uma partida
à tartaruga: -Vamos fazer uma corrida? – Disse a lebre. A tartaruga
aceitou o desafio. A lebre como era mais rápida do que a tartaruga
pensava que ia chegar primeiro. Ao sinal para partir a lebre em
disparada saiu muito entusiasmada enquanto a tartaruga seguia
calma e descansada. Movida pela vaidade, também cheia de
maldade, a lebre, achando-se a tal deitou-se na beira da estrada
numa grama bem fresquinha. O cochilo foi maior do que ela
esperava e quando abriu seus olhos...A tartaruga com passos lentos
ultrapassava a linha de chegada vencendo a corrida.

171
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

172
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

RESENHA: “QUESTÕES DE ESTILÍSTICA NO


ENSINO DA LÍNGUA”, DE MIKHAIL BAKHTIN

Lucília Teodora Villela de Leitgeb LOURENÇO1

Como professora de Língua e Literaturas de língua


inglesa, com meu trabalho na Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul (UEMS), ofereço a leitura desta obra
de Mikhail Bakhtin resenhada, com o intuito de promover
diálogos com os pares pesquisadores e estudiosos do
assunto. O texto “Questões de estilística no ensino da
língua” foi traduzido diretamente do russo para o
português no trabalho desenvolvido Editora 34,
capitaneado pelas professoras Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo, tendo a sua primeira edição lançada em
nosso país no ano de 2013.
A saber, Bakhtin é um dos pensadores mais relevantes
para as Ciências Humanas do século XX, tendo
desenvolvido estudos de filosofia, linguagem, estudos
literários, entre muitos outros, em especial junto a seu
Círculo, grupo de intelectuais que publicavam com o
mestre russo. Seu conceito primordial é o do dialogismo e
para esses pensadores, a relação humana é
necessariamente dialógica, construindo uma prática sócio-
histórica e cultural que se dá por meio da alteridade e
ocorre na forma dos discursos.
A professora da PUC/SP, Beth Brait, explica um pouco
do texto em seu trabalho que abre o livro, chamado
“Lições de gramática do professor Mikhail M. Bakhtin” e

1Professora da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, UEMS e Pós-Doutora pela


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS. E-mail: luciliadeleitgeb@hotmail.com

173
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

este texto faz todo o sentido na obra, pois neste trabalho


do mestre russo podemos perceber o seu olhar de
pesquisador das línguas e compreender um pouco do
período histórico em que ele atuou como professor de
russo, no que é considerado ensino médio russo, no
período compreendido entre 1937 e 1945.
A Prof. Dra. Beth Brait nos mostra as intempéries que
Bakhtin aponta no seu trabalho, em relação ao ensino de
língua e que mantém uma atualidade assombrosa, em
especial no ensino de gramática. Para o professor Bakhtin,
ensinar gramática pode ser considerado o ponto fraco de
um professor de língua, mas que com empenho e
dedicação, aliados ao ensino de escrita, leitura e
contextualizando sentidos, é possível vencer esse desafio,
não considerando a língua como algo abstrato e sim como
parte da vida de quem aprende.
Conforme lemos o trabalho de Bakhtin, percebemos a
sua intimidade com o assunto. No caso da língua inglesa,
língua que leciono junto com sua literatura, podemos
entender que é preciso tratar sua gramática como parte da
vida de quem aprende. Bakhtin afirma que ““As formas
gramaticais não podem ser estudadas sem que se leve
em conta seu significado estilístico” (p. 23).
Contextualizando esse pensamento bakhtiniano,
podemos compreender que o autor russo promove síntese
de seu estudo.
O mestre russo critica nesta obra a separação
realizada por muitos de sua época, que consistia em tratar
a gramática e a estilística de modo separado, considerando
ele essa ruptura como algo artificialmente feito e perigosa.
Para Bakhtin, ensinar gramática, leitura literária e regras

174
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

de pronúncia ou o que ele chama de bem falar, devem ser


tratados como diálogos constantes e inseparáveis.
Bakhtin evidencia que essa separação artificial
promovida é nociva e que se analisarmos, ela ainda é
atualíssima, pois estudantes hodiernos de línguas, seja ela
materna ou lingua estrangeira ainda passam por esses
problemas, não contextualizando a língua como algo vivo,
parte do ser humano e de sua constituição sócio-histórica.
Ensinar uma gramática sem contextualização é algo
recriminado por Bakhtin, que afirma que dessa maneira o
ensino de língua deixa de ser algo importante e parte do
aluno, tornando-se frio e distante, sem atrativos. O que se
apreende dessa obra de Bakhtin é que não se trata somente
de ensinar uma gramática para que se atinja bons
conceitos de fala ou escrita e mesmo ser bem avaliado em
provas, seleções. O que é necessário objetiva um trabalho
estilístico maior, onde os estudantes possam desenvolver
a sua criatividade por meio da língua, buscar alçar desejos
maiores, dinamizar o que aprenderam. Isso é
extremamente necessário, quando contextualizo, por
exemplo, para o ensino de língua inglesa no Brasil.
Bakhtin nos oferece um trabalho de fôlego para que
possamos promover observações em produções textuais
discentes, compreendendo nelas os traços de autoria e
podendo perceber se a metodologia de ensino é capaz ou
não de se obter os resultados esperados. Bakhtin, como
professor, nos mostra que as relações dialógicas
promovem um sujeito inserido na linguagem, e que com
esse método é possível ter comunicação mais abrangente,
expressividade mais clara, com ideias de leitura, produção
de textos e autoria mais eficazes e prazerosas aos
estudante.

175
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

O trabalho de Bakhtin nesta obra é uma junção de


apresentação de resultados com uma metodologia de
trabalho eficaz, que faz com que o ensino da gramática de
língua siga planejamentos realizáveis, que façam com que
o ensino gramatical se dê de forma integrada com a vida,
dialogicamente, contextualizando também o ensino de
literatura, promovendo a união desses saberes em prol do
aluno. Uma atividade que realizo sempre em minhas aulas
na universidade.
Neste trabalho de Bakhtin publicado pela Editora 34,
há um texto intitulado “Sobre o texto de Bakhtin”, de
Liudmila Gogotichíli, produzido colaborativamente com
Svtlana Savtchuk, que expõe como se deu a produção
desses trabalhos de Bakhtin, sendo que eram anotações de
aulas do mestre russo e outro pode até ser ditado dele para
seus alunos. Há também o pósfácio intitulado “Bakhtin,
Vinográddov e a estilística”, de autoria das tradutoras do
trabalho. Este trabalho das tradutoras possibilita uma
apreensão maior do entendimentode Bakhtin e o porquê
do título original do trabalho em russo, intitulado
“Questões de estilística nas aulas de língua russa no
ensino médio”.
De acordo com as tradutoras que produziram o texto,
esse título refere-se a uma metodologia de
ensino/aprendizagem de língua materna feita por Bakhtin
para qualquer fase de aprendizado do estudante, pois
tinha por objetivo fazer com que os estudantes partissem
para uma reflexão acerca dos efeitos da língua, seu estilo,
sintaxe, utilizando isto em suas vidas cotidianas. Um
pensamento bem relacionado ao que desenvolveu Paulo
Freire no sertão do Nordeste brasileiro, não é mesmo? O
mesmo buscamos em nossos trabalhos e aulas na relação

176
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

com a língua inglesa e sua literatura. Contextualizar para


fazer sentido.
Mesmo que se trate no texto de exemplificações a
partir do ensino de russo, Bakhtin nos mostra que a prática
docente é atemporal e que podemos muito aprender com
ele. Mostra uma preocupação latente como o ensino e com
a aprendizagem por parte dos alunos, com integração dos
saberes que levam a um ensino eficaz e efetivo, onde o
estudante possa ter empatia e assimilação do que é
transmitido.
Bakhtin nos oferece uma visão de língua viva, com
nuances próprias, variações constantes, que necessitam de
diálogo para um ensino eficaz e prazeroso. Reforçamos
nosso saber docente com o autor, inclusive, quando ele
afirma que a literatura pode ser utilizada para melhorar
aulas de gramática, em nosso caso de língua inglesa, eis
uma obra que muito tem a ensinar a profissonais da
educação, do ensino de línguas e para o professor em
particular.

Referências
BAKHTIN, M. Questões de estilística no ensino da língua.
Tradução, posfácio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova
Américo; apresentação de Beth Brait; organização e notas da edição
russa de Serguei Botcharov e Liudmila Gogotichvíli. São Paulo:
Editora 34, 2013. 120p

177
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

178
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

A PRODUÇÃO ESCRITA NOS ANOS INICIAIS


Uma proposta de trabalho significativo com foco no
letramento

Milena MORETTO1

A motivação para organizar uma pesquisa sobre o


tema letramento surgiu em um contexto de formação
continuada oferecido a uma escola privada do interior de
São Paulo em que fui convidada a oferecer um trabalho de
assessoria. Por isto é, os alunos não escreviam para serem
lidos, mas para serem avaliados. Todavia, uma das
propostas chamou-me a atenção pelo fato de a escola se
transformar em um espaço de interlocução em que a
produção de textos, além do ensino, se tornou significativa
a alunos e professores. Tratava-se da organização de uma
feira literária. Propostas significativas de leitura e escrita
são importantes para que os estudantes se reconheçam
como falantes da língua e percebam o quanto tais práticas
se assemelham aos contextos sociais dos quais participam.
Nesse sentido, a escola se torna um espaço privilegiado
para o desenvolvimento de práticas que possibilitem o
letramento dos alunos.
Considerando esse contexto, a pergunta de
investigação que norteia o respectivo capítulo é: de que
forma práticas significativas escolares de trabalho com a
leitura e escrita, que tenham como foco a interlocução,
podem contribuir para o letramento de estudantes dos
anos iniciais? Nesse sentido, o objetivo do presente texto é

1Doutora em Educação pela Universidade São Francisco. Professora do Programa de Pós-


Graduação Stricto Sensu em Educação da USF. E-mail: milena.moretto@yahoo.com.br

179
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

analisar de que forma outros interlocutores, para além do


professor, podem contribuir para que os alunos
compreendam, ainda que mais no âmbito do uso do que
da reflexão, a propriedade intrínseca da língua – a
dialogicidade – como também compreender como essa
proposta de trabalho com a língua viva pode auxiliar no
processo de letramento. Temos, ainda como objetivos
específicos: 1) compreender que recursos linguísticos são
mobilizados pelos estudantes considerando que os textos
apresentados serão lidos por outros interlocutores, além
do professor; 2) analisar se a organização de uma feira
literária pode possibilitar práticas de letramento? e, 3)
analisar as contribuições de práticas significativas de
leitura e escrita para o letramento dos estudantes.
Para atingir tais objetivos e responder a nossa questão
de investigação, propomo-nos a analisar as produções do
gênero carta pessoal que foram trocadas entre alunos do
3º ano da respectiva escola em que prestava assessoria e
alunos da Educação de Jovens e Adultos de uma escola
pública da rede municipal de uma cidade do interior de
São Paulo. Após o diálogo entre os estudantes, essas
produções culminaram em um livro que foi produzido
para ser entregue aos estudantes na feira literária
promovida pela instituição.
Partindo desses propósitos, o presente texto está
organizado da seguinte forma: inicialmente,
apresentamos os pressupostos teóricos que nos pautamos.
A seguir, discorremos sobre os procedimentos
metodológicos de escolha e análise do corpus;
posteriormente, apresentamos nossas análises sobre a
produção escrita dos estudantes. Por fim, exporemos
nossas considerações finais.

180
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Linguagem e interação na escola: práticas voltadas para


o letramento

A concepção de linguagem que assumimos nesse


trabalho e que embasa nossos estudos está centrada nas
perspectivas histórico-cultural e enunciativo-discursiva
que consideram o signo como social por natureza.
Em relação à primeira, que tem como principal
representante, Lev Vigotski, a linguagem tem um lugar
privilegiado, uma vez que, longe de ser considerada um
sistema abstrato, ela adquire um aspecto funcional e
psicológico. Essa concepção possibilita observarmos a
linguagem como constituidora do desenvolvimento
humano, do sujeito e da relação com o pensamento.
Para Vigotski (2007), o desenvolvimento das funções
psíquicas superiores – o que o autor denomina de
internalização – sempre ocorre de fora para dentro, isto é,
do social para o individual. Todavia, é preciso considerar
que todo indivíduo não se apropria do que é social e
cultural de forma direta, mas todo esse processo é
mediado por signos e instrumentos. A diferença mais
essencial entre os signos e instrumentos, de acordo com
Vigotski, consiste na forma como orientam o
comportamento humano, isto é,
a função do instrumento é servir como um condutor da
influência humana sobre o objeto da atividade; ele é
orientado externamente; deve necessariamente levar a
mudanças nos objetos. Constitui um meio pelo qual a
atividade humana externa é dirigida para controle e
domínio da natureza. O signo, por outro lado, não modifica
em nada o objeto da operação psicológica. Constitui um
meio da atividade interna dirigido para controle do próprio

181
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

indivíduo; o signo é orientado internamente (VIGOTSKI,


2007, p. 55).

É a partir de signos e instrumentos que o homem cria


suas condições materiais de existência e, de forma
dialética, ao mesmo tempo em que modifica o meio em
que vive, se modifica. E nesse movimento, os signos
artificiais, isto é, aqueles criados pelo homem, tem uma
propriedade reversível, ou seja, “a de significar tanto para
quem o recebe quanto para quem o emite” (PINO, 2000, p.
59).
A internalização do conhecimento, do social, da
cultura, nesse sentido, sempre será uma reconstrução
interna de uma operação externa e consiste em uma série
de transformações, dentre elas, a que ocorre socialmente:
o processo interpessoal é transformado em um processo
intrapessoal, isto é, primeiro ocorre na relação entre as
pessoas – interpsicológica para depois se tornar
intrapsicológica.
Nesse processo de internalização, mediado pelo signo
e pelo outro, é que a significação ocorre. Bakhtin e
Volochínov (2010) acrescentam que essa significação
ocorre na relação eu-outro e, dessa forma, todo signo é
ideológico por natureza. De acordo com os autores, “tudo
que é ideológico é um signo. Sem signos não existe
ideologia” (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2010, p. 31).
Vale ressaltar que os signos, também para a
perspectiva enunciativo-discursiva, apenas emergem em
um processo de interação entre uma consciência
individual e outra e não pode ser explicado a partir de
raízes supra ou infra-humanas, mas a partir das condições

182
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

sociais de sua produção. No entanto, é preciso considerar


que
não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer
para que os signos se constituam. É fundamental que esses
dois indivíduos estejam socialmente organizados, que
formem um grupo (uma unidade social): só assim um
sistema de signos pode constituir-se. A consciência
individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário,
deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e
social (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2010, p. 35).

Considerando que a palavra é o signo ideológico por


excelência, ela é também, de acordo com os autores, o
modo mais puro e sensível de relação social. Nesse
sentido, toda enunciação é de natureza social e só pode ser
explicada a partir da situação social mais imediata em que
é enunciada.
Se considerarmos que todas as esferas da atividade
humana estão ligadas ao uso da linguagem e que o
emprego da língua efetua-se por meio de enunciados
concretos, sociais e ideológicos, proferidos pelos
integrantes dessas esferas; logo, é preciso reconhecer que
esses enunciados refletem as condições específicas dessas
esferas não só por seu conteúdo temático, estilo de
linguagem, mas por sua construção composicional. De
acordo com Bakhtin (2010, p. 262), “todos esses três
elementos [...] estão indissoluvelmente ligados no todo do
enunciado e são igualmente determinados pela
especificidade de um determinado campo da
comunicação”. Assim, cada campo da atividade humana
elabora seus “tipos relativamente estáveis de enunciados” que
o autor denominou de gêneros do discurso.

183
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Os gêneros são heterogêneos e infinitos dadas as


inesgotáveis possibilidades e diversidade da atividade
humana e também porque em cada esfera circulam
gêneros que crescem e se diferenciam à medida que esta
se desenvolve. Ao participar de quaisquer que sejam essas
esferas, o ouvinte “[...] ao compreender o significado
(linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em
relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou
discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-
o, prepara-se para usá-lo, etc.” (BAKHTIN, 2010, p. 271).
Essa posição responsiva é formada ao longo de todo
processo de interlocução desde, às vezes, da primeira
palavra dita pelo locutor. Dessa forma, “[...] toda
compreensão é prenhe de resposta e, nessa ou naquela
forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante”
(BAKHTIN, 2010, p. 271).
Cabe ressaltar ainda que, em quaisquer situações de
interação verbal, a intencionalidade comunicativa está
presente, uma vez que, de acordo com Bakhtin (2010, p.
302),
ao construir meu enunciado, procuro defini-lo de maneira
ativa; por outro lado, procuro antecipá-lo, e essa resposta
antecipável exerce, por sua vez, uma ativa influência sobre o
meu enunciado (dou resposta pronta às objeções que
prevejo, apelo para toda sorte de subterfúgios, etc.). Ao falar,
sempre levo em conta o fundo aperceptível da percepção do
meu discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a par
da situação, dispõe de conhecimentos especiais de um dado
campo cultural da comunicação; levo em conta as suas
concepções e convicções, os seus preconceitos (do meu
ponto de vista), as suas simpatias e antipatias – tudo isso irá
determinar também a escolha do gênero do enunciado e a
escolha dos procedimentos composicionais e, por último,
dos meios linguísticos, isto é, o estilo do enunciado.

184
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Dessa forma, o trabalho com os gêneros nas


instituições escolares torna-se imprescindível e totalmente
relevante, uma vez que pode auxiliar os estudantes a
sentirem-se inseridos e saberem agir em diversas esferas
da atividade humana. Apenas o ensino sobre o domínio
da língua é insuficiente para esse agir, visto que, conforme
Bakhtin (2010, p. 284) nos apresenta: “muitas pessoas que
dominam magnificamente uma língua sentem amiúde
impotência em alguns campos da comunicação
precisamente porque não dominam na prática as formas
de gêneros de dadas esferas”.
Essa afirmação nos dá indícios da necessidade de
adotarmos os gêneros como objeto de ensino para que
possamos oferecer aos estudantes condições de
letramento, que não se refere e não se limita à capacidade
de o indivíduo saber ler e escrever, mas, sobretudo, em
saber utilizar a língua enquanto prática social em
determinados contextos como afirma Kleiman (1995). E,
essas práticas pressupõem o uso de diferentes gêneros
textuais. Street (2014) esclarece ainda que há letramentos
múltiplos, uma vez que, nas práticas, os sujeitos mantêm
relação com uma diversidade de papéis sociais que eles
representam nos diferentes contextos sócio-históricos de
uso da linguagem.
Kleiman, Vianna e De Grande (2013) também
apontam que os estudos do letramento consideram que a
utilização da escrita é uma prática social, o que pressupõe
que não requer apenas um conjunto de habilidades do
indivíduo, mas sua percepção de como situá-la em
diferentes tempos e lugares. Diante dessas considerações,
a concepção aqui assumida é a de que as práticas de

185
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

letramento são práticas sociais que têm caráter situado e


dependem do grupo social e das instituições envolvidas.
Assumindo tais pressupostos, explicaremos na
próxima seção, os procedimentos metodológicos que
utilizamos para a produção dos dados da pesquisa.

A produção dos dados da pesquisa

Para a realização dessa pesquisa, direcionei nosso o


para os textos produzidos que seriam apresentados em
uma feira literária organizada pela escola em que atuei
como assessora de Língua Portuguesa. Antes, porém,
houve todo um trabalho em sala de aula das professoras
explicitando o contexto de produção dos textos dos
alunos. A feira foi organizada pelos alunos da educação
infantil e ensino fundamental I. Nesse capítulo, relatamos
e trazemos a análise da experiência vivida pelos
estudantes do 3º ano. O trabalho foi organizado da
seguinte forma: adotando a carta pessoal como gênero
textual a ser trabalhado, os estudantes foram convidados,
após um intenso trabalho de leitura e compreensão de
modelos de cartas disponíveis no material didático, a
escreverem cartas a outros estudantes. Tratava-se de
interlocutores reais, alunos da Educação de Jovens e
Adultos de uma outra escola da cidade. Para além da troca
de cartas, os textos iam ser publicados em uma coletânea
a ser apresentada na feira literária da escola. Durante a
feira, houve uma tarde de autógrafos e a distribuição dos
livros produzidos aos pais e aos estudantes que
contribuíram com esse projeto – os alunos da EJA. Nesse
texto, porém, apresentamos a troca de cartas de uma
estudante a outro a fim de exemplificar de que forma o

186
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

trabalho com esse gênero, nessas condições, contribuíram


para o letramento.

A troca de cartas e a exposição das produções na feira


literária: ressignificando a escrita

O trabalho com o gênero textual Carta surgiu,


primeiramente, a fim de colocar os estudantes em
interação com outros sujeitos além do professor. Esse
movimento se deu para mobilizar práticas sociais de
escrita que extrapolassem as paredes da escola. Após o
trabalho com as especificidades e características do
gênero, as crianças do 3º ano fizeram a leitura do livro
paradidático intitulado “Tenho mais monstros na barriga”
de Tonia Casarin. Houve uma mobilização para que os
alunos discutissem, a partir da leitura, que monstros
possuíam na barriga. E, após essa discussão, uma
problematização: será que os monstros dos adultos são os
mesmos do das crianças? Que tal descobrir escrevendo
cartas a alunos do 3º ano da Educação de Jovens e
Adultos? A proposta foi sistematizada e, ao final,
culminou em um livro que foi apresentado na feira
literária da escola no final do ano letivo:

187
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Figura 1: Livro produzido pelos estudantes

Fonte: Arquivo da pesquisadora

Abaixo apresento uma troca de carta entre Giovana e


Antonio que falam sobre os monstros que os perseguem
como exemplificação do trabalho desenvolvido.
Figura 2: Troca de cartas entre Giovana e Antonio.

Fonte: Arquivo da pesquisadora

188
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Na produção, percebe-se que a aluna parece se


apropriar do gênero carta em relação à temática
apresentada, às características estruturais do texto e o
estilo adequado à situação de produção a que se
encontrava. Percebe-se, que, para dar início à conversa
com alguém que não conhecia, Giovana contextualiza
Antonio sobre a história dos monstrinhos lida em sala de
aula pela professora. Em seguida, traz sobre seus
sentimentos em diferentes situações vivenciadas no dia a
dia que marcam suas experiências de vida: enuncia sobre
seus sentimentos humanizando o monstrinho do amor, da
saudade, da culpa, da vergonha.
É interessante o significado que o signo “monstro”
ganha no percurso do diálogo e das interações. Ao invés
de obter um sentido pejorativo, de mau, de ruim, que a
princípio os alunos conheciam, o tal “monstrinho” é
ressignificado e traz sentimentos bons também: o do amor,
o da saudade... E essa construção ideológica é partilhada,
correspondida e respondida por Antonio que também
apresenta o sentimento do amor e da saudade no seu texto.
A troca dialógica entre eles parece mobilizar a escrita
entre Giovana e Antonio de como se eles estivessem
participando de práticas reais de produção. Assim, a
produção escrita ganha significado ao se escrever para o
outro, mesmo que dentro de um ambiente escolar com fins
pedagógicos, de ensino. O outro mobiliza também uma
reflexão sobre os recursos linguísticos utilizados como
vimos ocorrer com os sentidos da palavra monstro. E essa
significação surge na interação, tanto que se materializa
também na linguagem não verbal: Giovana apresenta o
monstrinho em forma de coração e os monstrinhos de
Antonio parecem estar sorrindo.

189
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Essa interação, diálogo, contribui para o letramento


dos alunos, uma vez que estes precisam refletir como
escrever de acordo com os parâmetros contextuais da
situação em que se encontram. E, para isso, mobilizaram o
conhecimento acerca dos gêneros que circulam nas esferas
da atividade humana para atingirem seus interlocutores:
o interlocutor mais imediato (a dialética entre Giovana e
Antonio) e o interlocutor mais distante (os pais,
professores e demais convidados que participariam da
feira literária). Tudo isso contribui significativamente para
a reflexão de como os estudantes devem agir em práticas
sociais que envolvem a escrita.

Considerações finais

Nesse texto, buscamos analisar de que forma outros


interlocutores, para além do professor, podem contribuir
para que os alunos compreendam, ainda que mais no
âmbito do uso do que da reflexão, a propriedade
intrínseca da língua – a dialogicidade – bem como
compreender como essa proposta de trabalho com a
língua viva pode auxiliar no processo de letramento.
Notamos que na troca de cartas e produção da coletânea
para a feira literária, os estudantes trabalharam com a
língua viva, dialógica que representa as práticas sociais
das quais eles participam. Assim, a escola, deixa de ser um
espaço de mecanização da escrita e apropriação do código,
para possibilitar práticas de letramento que se pautam na
interação com o(s) outro(s) cuja produção escrita tem
outros objetivos para além do ensino. A escola se torna,
então, não um espaço de preparação para a vida para se
tornar a própria vida como já dizia Dewey (1979).

190
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Referências
BAKHTIN, M.; VOLOCHÍNOV, V. Marxismo e Filosofia da
linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da
linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. A estética da
criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 5.ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2010, p.261-306.
DEWEY, J. Experiência e educação. 3 Ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1979.
GERALDI, J. W. Portos de Passagem. 4ed. S. P.: Martins Fontes, 1997.
KLEIMAN, A. Os significados do letramento: uma nova perspectiva
sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado da Letras,
1995.
KLEIMAN, A.; VIANNA, C.; DE GRANDE, P. A iniciação científica
como prática social: desvendando os “mistérios” do letramento
acadêmico na licenciatura. 2013. Disponível em <http://www.letra
mento.iel.unicamp.br>. Acesso em 10 de mai. 2014.
PINO, A. O social e o cultural na obra de Lev S. Vigotski In: Educação
e Sociedade. Número especial. 2000, p. 45-78.
STREET, B. V. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento
no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de
Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.
VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos
processos psicológicos superiores. 7 ed. S. P.: Martins Fontes, 2007.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

PARA UM FAZER CIENTÍFICO DE BASES


BAKHTINIANAS1

Rafael da Silva Marques FERREIRA2

Em O problema do texto na Linguística, na Filologia e em


outras Ciências Humanas (2011), Bakhtin reflete acerca das
questões relativas à especificidade do conhecimento
produzido pelas ciências humanas e suas implicações na
tarefa do pesquisador. Apesar de não terem sido
totalmente finalizadas com o acabamento que mereciam,
as ideias contidas no texto nos ajudam a compreender
como uma pesquisa em ciências humanas com orientação
sociológica deve ser pensada e, consequentemente,
executada.
Sem a pretensão de esgotar a discussão, a reflexão por
mim aqui proposta tem como objetivo principal, assentada
tanto no pensamento bakhtiniano quanto na de outros
teóricos que pensam o fazer científico em humanidades,
apresentar olhares, ideias e possibilidades de
entendimento das práticas do pesquisador em ciências
humanas com vistas a ajudar àqueles que se propõem a tal
empreitada a estabelecer posturas epistemológicas
condizentes com o pensamento dialógico e com o método
sociológico do Círculo.
Na prática do fazer científico, o ser humano pode ser
estudado por dois diferentes vieses: como coisa ou como

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
2 Docente do Instituto Federal do Espírito Santo campus Avançado Viana; Doutor em

Linguística pela Universidade Federal do Espírito Santo; Vitória, Espírito Santo, Brasil.
rafael.ferreira@ifes.edu.br

193
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

sujeito; a depender da maneira como percebe seu objeto


de interesse, o pesquisador estará inserido no campo das
ciências naturais ou das ciências humanas; enquanto, nas
ciências naturais, há uma relação sujeito-objeto (este
desprovido de interioridade, fazendo com que tal objeto
possa se revelar por um ato unilateral do sujeito
pesquisador e, portanto, tal conhecimento é da ordem do
interesse prático); nas ciências humanas, há uma relação
sujeito-sujeito (já que o pesquisador é um ser pensante e o
seu objeto de pesquisa é também assim considerado). As
ciências naturais entendem o homem como um ser mudo,
composto por material orgânico; em contrapartida, as
ciências humanas buscam acessar os pensamentos do
sujeito, e o fazem a partir da sua expressão, ou seja, do seu
texto: “Onde não há texto não há objeto de pesquisa e
pensamento” (BAKHTIN, 2011, p. 307).
Assim, o texto é o objeto de pesquisa das ciências
humanas de tal maneira que todo estudo do humano que
não se baseia no texto produzido por ele em situações de
interação social é produto de outra categoria científica:
anatomia, fisiologia, morfologia humana... Cabe aqui uma
explicação do entendimento bakhtiniano para o termo:
diferentemente da acepção que costumamos atribuir, o
autor define “texto” fora dos limites fraseológicos,
circunscrito a formas verbais. No contexto do filósofo, o
objeto das ciências humanas é percebido de modo amplo
como “qualquer conjunto coerente de signos” (BAKHTIN,
2011, p. 307) de tal maneira que, além dos enunciados
verbais, são também consideradas textos: as músicas
(mesmo as instrumentais), pinturas, esculturas, a dança...
Ainda que todo texto pressuponha um sistema de
signos, estes não devem ser vistos pelo pesquisador como

194
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

o principal elemento a ser considerado em uma pesquisa


em ciências humanas já que não é na linguagem em si que
residem os sentidos dos textos, a que Bakhtin chama de a
sua “verdadeira essência” (BAKHTIN, 2011, p. 31).
Contrariando a visão formalista, na qual o sentido é
entendido como um elemento imanente e circunscrito aos
limites concretos do texto, o autor vai sempre considerar
todo conjunto coerente de signos enquanto um enunciado
específico, portanto, seu sentido estará fundamentado
exclusivamente em seu caráter individual, singular e
irrepetível; sendo a linguagem, ou seja, tudo aquilo que
suscetível de repetição e de reprodução, simplesmente
“material e meio” (BAKHTIN, 2011, p. 310) para o que
realmente importa: a construção de sentido inédito e
incapaz de repetição, encarnado no momento em que se
enuncia dado texto. Embora um signo (uma palavra, por
exemplo) ou um conjunto deles seja repitado milhões de
vezes, em cada uma dessas vezes, surgirá um enunciado
concreto particular; por conseguinte, a perspectiva
científica proposta por Bakhtin é exatamente esta: a ciência
do enunciado, a ciência do particular.
Não existe uma extensão definida para um enunciado
concreto. No caso do enunciado verbal, ele pode ser
constituído de apenas uma palavra ou das muitas páginas,
como as que compõem este estudo, ou ainda de vários
tomos reunidos, como a Bíblia, por exemplo. O que marca
as fronteiras do enunciado não é a quantidade de palavras
empregadas para sua construção, mas é a unidade de
sentido que existe em seu conjunto, já que Bakhtin o define
“como um todo individual singular e historicamente
único” (BAKHTIN, 2011, p. 334) produzido por um
determinado sujeito (autor) em condições sócio históricas

195
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

específicas. Todo enunciado concreto, obrigatoriamente,


faz remissão a uma dada esfera da atividade humana
porque nossos enunciados são produzidos sempre a partir
de um campo sócio histórico e cultural.
Ainda que único, todo enunciado respeita certas
características que são comuns a todos aqueles do seu tipo,
de modo que todos os enunciados concretos que
refletirem, em suas características, as mesmas condições
específicas e finalidades comunicacionais de um dado
campo da atividade humana pertencerão a um mesmo
conjunto. A cada um desses grupos de enunciados que
guardam entre si características comuns Bakhtin
denomina gênero do discurso: “Evidentemente, cada
enunciado particular é individual, mas cada campo de
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis
de enunciado, os quais denominamos gêneros do discurso”
(BAKHTIN, 2011, p. 262, grifos do autor). Desse modo,
qualquer pesquisa em ciências humanas deve partir do
texto produzido pelo sujeito sempre em relação ao gênero
do qual é representante, pois a compreensão efetiva de um
enunciado está sempre condicionada à compreensão do
gênero discursivo a partir do qual toma forma.
Num dado contexto, as condições específicas de
produção e de recepção responsáveis pelo acabamento do
enunciado em um gênero do discurso são também peça
fundamental na construção de seu caráter semântico
irrepetível. A essência singular do enunciado não está
atrelada aos signos que o materializam ou em seu autor,
especificamente, nem ainda naquele para quem é
direcionado; o sentido é sempre uma construção única,
produto das relações dialógicas que ocorrem no momento
da enunciação: “A relação com o sentido é sempre

196
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

dialógica. A própria compreensão já é dialógica”.


(BAKHTIN, 2011, p. 327), diálogo esse que ocorre “na
fronteira de duas consciências, de dois sujeitos”
(BAKHTIN, 2011, p. 311). Sobre a nossa consciência,
Bakhtin/Volochínov (1981), explicam que só se realiza em
um material determinado, ou seja, em alguma forma de
linguagem, então, nossa consciência somente toma forma
ao produzir textos; logo, o sentido de cada enunciado será
formulado a partir das relações de diálogo que ele
estabelece com outros enunciados, de tal maneira que para
se compreender um enunciado é sempre necessário (ainda
que inconscientemente) relacioná-lo a outro(s).
Mesmo sendo um atributo inerente a qualquer
enunciado, o sentido “só se revela numa situação e na
cadeia dos textos. Esse polo não está vinculado aos
elementos (repetíveis) do sistema da língua (signos), mas
a outros textos, a relações dialógicas peculiares”
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1981, p. 310). A partir desta
constatação, entende-se que os processos de interpretação
e de análises de textos são basicamente percepções dos
diálogos que este estabelece com outros textos, a que
enunciados responde e em quais discursos anteriores
encontra embasamento e quais busca refutar ou
corroborar. Nas palavras de João Wanderley Geraldi
(2012, p. 33), interpretar um texto significa dar contextos a
ele, ou seja, “cotejá-lo com outros textos recuperando
parcialmente a cadeia infinita de enunciados a que o texto
responde” mesmo que a sua origem tenha sido esquecida.
Noção basilar à teoria do Círculo, o diálogo representa o
centro para o entendimento de todas as outas concepções
discutidas. Para Bakhtin, todo enunciado está ligado a
outros, aqueles proferidos anteriormente e aqueles que, a

197
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

partir desse, formar-se-ão. As relações entre enunciados


criam uma espiral de ligações entre eles, ininterrupta,
sempre em processo, ampliando-se.
Tal constatação evidencia como, na teoria do Círculo,
o dialogismo é a ideia mestra, segundo a qual todo ato
humano de linguagem envolve, necessariamente, a
relação com vários outros atos, dado que nenhum sujeito
falante é a fonte da linguagem, ainda que dele partam os
enunciados concretos: “A vida é dialógica por natureza.
Viver significa participar do diálogo” (BAKHTIN, 2011, p.
348. O conceito de dialogismo, indissoluvelmente
vinculado com o de interação, é a base do processo de
produção da própria linguagem. A concepção bakhtiniana
de linguagem entende que os sentidos são produzidos no
intercâmbio verbal, ou seja, nas situações concretas de
exercício linguístico, entre consciências de sujeitos reais.
O objetivo de quem se ocupa em fazer ciências
humanas, de acordo com as concepções do Círculo, é
sempre compreender “outra consciência, a consciência de
outro mundo, isto é, outro sujeito” (BAKHTIN, 2011, p.
316). Enquanto as ciências naturais buscam a explicação de
um fato, as ciências humanas objetivam a compreensão de
um sujeito. Enquanto explicação é fruto da relação entre um
único sujeito (consciência) que se debruça sobre um objeto
mudo; a compreensão nasce da relação sujeito-sujeito, em
que duas consciências entram em processo de diálogo:
“Não pode haver relação dialógica com objeto, por isso a
explicação é desprovida de elementos dialógicos”
(BAKHTIN, 2011, p. 316). Sobre as relações dialógicas,
Bakhtin revela que são de uma índole bastante específica,
pois não podem ser reduzidas a relações meramente
lógicas nem simplesmente linguísticas já que são possíveis

198
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

apenas “entre enunciados integrais de diferentes sujeitos”


(BAKHTIN, 2011, 323). Segundo o filósofo russo, as
relações dialógicas dos enunciados extrapolam de tal
forma os limites temporais e espaciais nos quais são
produzidos e veiculados que um nem sequer necessita
fazer referência ao outro já que as relações de diálogo estão
no nível do sentido: “Dois enunciados distantes um do
outro, tanto no tempo quanto no espaço que nada sabem
um do outro, no confronto dos sentidos revelam relações
dialógicas se entre eles há ao menos uma convergência de
sentidos” (BAKHTIN, 2011, p. 331).
Entretanto, a dialogicidade não é um fenômeno
exclusivo de algumas situações comunicativas, mas, de
acordo com Ponzio (2010, p. 37), “é a dimensão
constitutiva de qualquer ato de palavra, de discurso”, pois
cada enunciado próprio se realiza numa relação dialógica
e recupera os sentidos do enunciado alheio; “é sempre
réplica de um diálogo explícito ou implícito, e não
pertence nunca a uma só consciência, a uma só voz”,
continua o autor. Assim, todo enunciado possui um
caráter responsivo e ainda carrega em si o germe da
réplica que faz dele um elo no que Bakhtin chama de cadeia
da comunicação discursiva, composta por todos os
enunciados já produzidos, e na qual cada enunciado novo
representa mais um elo.
Assim sendo, o trabalho do pesquisador em ciências
humanas é o de participar desse diálogo entre os
enunciados, ainda que seja em um nível especial:
enquanto entendedor, atuando como o que Bakhtin chama
de “o terceiro no diálogo” (2011, p. 332). Para o autor, em
toda situação de interação verbal, há três participantes
(não no sentido numérico, literal, tendo em vista as

199
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

diferentes possibilidades comunicativas que a vida em


sociedade nos oferece): aquele que enuncia é considerado
o primeiro do diálogo; o segundo, aquele para quem,
diretamente, destina-se o enunciado; e o entendedor
(incluindo aqui o pesquisador), o terceiro no diálogo
aquele que, apesar de não ser o foco do enunciador, é
sempre levado em consideração.
Vale destacar que o pesquisador, enquanto terceiro
que se coloca no diálogo, apesar de ser um observador,
não tem uma posição fora do mundo observado de tal
maneira que a “sua observação integra como componente
o objeto observado” (BAKHTIN, 2011, 332), essa
integração define o material de análise das ciências
humanas – o enunciado total – como algo criado pelo olhar
do pesquisador e nunca previamente dado pela realidade,
mesmo que sua criação seja (e sempre é) a partir de algo já
existente:
O enunciado nunca é apenas um reflexo, uma expressão de
algo já existente fora dele, dado e acabado. Ele sempre cria
algo que não existia antes dele, absolutamente novo e
singular (...). Contudo, alguma coisa criada é sempre criada
a partir de algo dado. (BAKHTIN, 2011, 326).

Por conseguinte, uma visão epistemológica embasada


nos preceitos bakhtinianos opõe-se frontalmente ao
modelo positivista de neutralidade nas pesquisas
científicas, isso porque, ao estudar o humano enquanto
sujeito, os objetivos a serem analisados tornam-se sociais,
intrínsecos, portanto, ao pesquisador (já que este também
é um sujeito social que constrói a sociedade e é constituído
por ela). Por conseguinte, (inter)relacionam-se
pesquisador, objeto e processo de pesquisa, em um
movimento dialógico de compreensão dos fenômenos, e

200
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

que atribui a esses últimos os efeitos de sentido que lhe são


possíveis.
Retorno, dessa vez para melhor desenvolver o ponto,
à ideia de que a visão de ciência que Bakhtin propõe tem
como marca principal a singularidade: singularidade que
aparece tanto em seu objeto de estudo (o homem enquanto
ser social) quanto em seu material de análise por meio do
qual o objeto é alcançado (o enunciado concreto). Quanto
ao primeiro, além de não existir padrão algum capaz de
igualar inteiramente dois sujeitos (visto que todo ser
apresenta traços específicos), até mesmo um único
indivíduo, devido a sua extrema complexidade, comporta
atributos e características muito diferentes uns dos outros
em si mesmo, o que garante uma rica fonte de investigação
à ciência: “O objeto das ciências humanas é o ser expressivo
e falante. Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso
é inesgotável em seu sentido e significado” (BAKHTIN,
2017, p. 59, destaques no original). Quanto ao enunciado
concreto, concluo que a ciência proposta por Bakhtin é a
ciência do particular uma vez que nela todo dizer e todo
dito dialogam com o passado e abrem possibilidades de
respostas no futuro, mas reconhecem a unicidade dos
enunciados produzidos em cada evento de linguagem.
Portanto, adotar essa visão implica em abandonar a
posição epistemológica que somente admite como
cientificamente verdadeiro o que se refere ao repetível e
imutável, que compreende particularidades e
singularidades como verdadeiros desvios. Em
consonância com essa proposição, Geraldi (2012) defende
que assumir a posição bakhtiniana frente ao fazer
científico significa não definir de antemão os pontos de
chegada da pesquisa, evitando um método de descoberta

201
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

composto por um conjunto de regras a serem


rigorosamente seguidas e, ainda, não delimitar
previamente o objeto de estudo, isolando-o, limitando
seus pontos de diálogo com a realidade sócio histórica da
qual se origina.
Em Para uma filosofia do ato responsável (2012), Bakhtin
diferencia duas noções que, apesar de ambas serem
traduzidas como “verdade”, representam aspectos
diferentes do termo: istina e pravda. Compreender as
especificidades de cada uma é um ponto central na
compreensão de um fazer metodológico de raiz
bakhtiniana. A verdade-istina é aquela que se obtém por
sucessivas abstrações; são verdades construídas no
interior de uma teoria (científica ou não), em que se
elabora um modelo abstrato de um objeto. Em
contrapartida, verdade-pravda é aquela do mundo da
vida, relativa ao acontecimento em si e às percepções que
dele fazem os sujeitos envolvidos. Não resulta da
abstração que exclui singularidades, mas ao contrário, da
adição continuada de elementos de tal modo que a
verdade-pravda pode ser uma num momento, e outra
noutro momento posterior.
Com a defesa de uma ciência do particular, Bakhtin
advoga em favor da construção, em cada pesquisa em
ciências humanas, de uma pravda particular que, apesar de
cientificamente legítima, não esgota, conclui ou encerra a
discussão do assunto em questão; rejeitando, assim, a
concepção bastante arraigada e aceita à sua época (e ainda
latente em muitas áreas do saber científico na atualidade),
da verdade como composta de momentos gerais,
universais, como algo reiterável e constante, separado e
contraposto ao singular e ao subjetivo.

202
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Considerações finais

A maneira como Bakhtin compreende as ciências


humanas revela muito acerca da metodologia que o autor
sugere às pesquisas nessa área do conhecimento. Ao
estudar o humano enquanto ser social que se expressa
linguisticamente, o pesquisador busca compreender
dialogicamente o texto do falante, mas não se trata do
texto em suas fronteiras puramente frasais ou linguístico-
textuais, como um artefato material; trata-se do texto vivo,
expressão comunicativa humana, a manifestação
discursiva de um sujeito real, expressão do seu
pensamento e de sua consciência socialmente
constituídos.
Nessa perspectiva, os textos são tidos como
enunciados concretos totais, portanto, irreprodutíveis,
moldados em um dado gênero do discurso e ligados entre
si por relações dialógicas; por meio dessas mesmas
relações, o pesquisador construirá uma compreensão do
enunciado (verdade-pravda) em questão que, por sua vez,
também será um novo enunciado, por isso, as ciências
humanas são definidas por Bakhtin como “pensamentos
sobre pensamento, vivências sobre vivências, palavras
sobre palavras, textos sobre textos” (2011, p. 307).
Um pesquisador em ciências humanas, portanto, ao se
deparar com o texto, em vez de enxergar apenas
significações monológicas e relações puramente
intralinguísticas, deve compreender sujeitos em interação
verbal, estabelecendo relações dialógicas. Assim sendo, as
ciências humanas não devem apenas dar explicações e
descrever estruturas, adotando uma metodologia
monológica e passiva de pesquisa, mas, ao contrário,

203
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

adotando a orientação bakhtiniana, dialogar com seu


objeto no sentido de serem estabelecidas as compreensões.
Tal postura é que determina se o humano será estudado
como sujeito ou como coisa.
A importância de se estudar o humano em seu viés
natural é inegável, mas percebê-lo acima desse nível é
primordial, pois somos muito mais do que simplesmente
pele, ossos, músculos... somos seres de comportamentos,
pensamentos, expressões linguísticas e sentimentos tão
complexos e específicos que, por mais profundas e
minuciosas que sejam as pesquisas que nos explicam como
entes da matéria, elas sempre estarão muito aquém do
completo entendimento daquilo que verdadeiramente
somos.
O estudo específico do homem enquanto organismo
vivo é redutor, limitado e incompleto, já que entender o
homem é um dever do próprio homem: “A configuração
do objeto da imagem do homem não é mera
materialidade. Pode-se amá-lo, ter compaixão dele etc. e, o
mais importante, pode-se (e deve-se) entendê-lo” (BAKHITIN,
2011, p. 318, grifo meu). Todos aqueles que se dispõem a
tal tarefa encontram na metodologia sociológica de base
bakhtiniana noções e caminhos epistemológicos profícuos
para a construção de uma reflexão verdadeiramente digna
da categoria das ciências do humano.

Referências
BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciência humanas.
Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. 1ª ed.
São Paulo: Editora 34, 2017.
______. Estética de Criação Verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6ª.ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2011.

204
Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

______. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir


Miotello e Carlos Alberto Faraco. Organizado por Augusto Ponzio
e Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGE-UFSCar. 2ª
ed. São Carlos: Pedro e João, 2012.
BAKHTIN M.; VOLOCHÍNOV V. Marxismo e filosofia da linguagem.
2ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1981.
GERALDI, J. W. Heterocientificidade nos estudos linguísticos. In.:
Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe – UFSCar.
Palavras e contrapalavras: enfrentando questões da metodologia
bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012, p. 19-39.
PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2010.

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

SOBRE OS ORGANIZADORES

Fábio Marques de Souza

Professor no Departamento de Letras e Artes da


Universidade Estadual da Paraíba. Credenciado no
PPGFP (UEPB) e no PPGLE (UFCG). Cursou estágio de
pós-doutorado no PPGEduC, da UFPE, com pesquisa a
respeito da mediação, com o apoio das Tecnologias
Digitais da Informação e Comunicação, do complexo
processo de ensino-aprendizagem de línguas adicionais.
Mestre (UNESP) e Doutor (USP) em Educação. Licenciado
em Letras (Português, Inglês, Espanhol e suas literaturas)
e em Pedagogia. É líder do Grupo de Pesquisa “O Círculo
de Bakhtin em Diálogo” (DGP/CNPq/UEPB).
 fabiohispanista@gmail.com

Ivo Di Camargo Junior

Cursa Estágio de Pós-Doutorado no PPGFP-UEPB. Mestre


e Doutor em Linguística pela UFSCar. Professor Formador
de Língua Portuguesa da SME de Ribeirão Preto-SP.
Desenvolve pesquisas sobre Mikhail Bakhtin com a
linguagem cinematográfica e outras mídias e linguagens.
Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional
pela Faculdade Metropolitana, em Educação Infantil pela
UFU, em Ensino de Filosofia no Ensino Médio pela UnB,
em Educação Empreendedora pela UFSJ e cursa
Licenciatura em Filosofia pela mesma instituição. É vice-
líder do Grupo de Pesquisa “O Círculo de Bakhtin em
Diálogo” (DGP/CNPq/UEPB).
 side_amaral@hotmail.com

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Dossiê Círculo de Bakhtin: Diálogos e Aplicações

Manassés Morais Xavier

Possui Doutorado e Pós-Doutorado em Linguística pela


Universidade Federal da Paraíba (2018 e 2020,
respectivamente); Mestrado em Linguagem e Ensino pela
Universidade Federal de Campina Grande (2009);
Especialização em Tecnologias Digitais na Educação
(2019), Bacharelado em Comunicação Social - Jornalismo
(2011) e Licenciatura em Letras - Língua Portuguesa (2007)
pela Universidade Estadual da Paraíba. Atua como
Professor Adjunto I de Língua Portuguesa e Linguística da
Unidade Acadêmica de Letras, Centro de Humanidades,
da Universidade Federal de Campina Grande
(UAL/CH/UFCG) e Professor Permanente do Programa de
Pós-Graduação em Linguagem e Ensino da Universidade
Federal de Campina Grande (PPGLE/UFCG).
 manassesmxavier@yahoo.com.br

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