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ESTUDOS DO DISCURSO:

NAS TESSITURAS DO DIZER

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ESTUDOS DO DISCURSO:
NAS TESSITURAS DO DIZER
Fabíola Nóbrega Silva
Manassés Morais Xavier
Maria de Fátima Almeida
Patrícia Silva Rosas de Araújo
Organizadores

3
Copyright © dos autores
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser re-
produzida, transmitida ou arquivada, desde que levados em conta os
direitos dos autores.

Capa
NOME

Diagramação
Déborah Letícia Ferreira de Sousa

Conselho Editorial
NOME
NOME
NOME
NOME

FICHA BIBLIOGRÁFICA

4
À memória da pesquisadora bakhtiniana,
Rivaldete Maria Oliveira da Silva!
Saudades eternas!

5
6
SUMÁRIO

PREFÁCIO 11
Acir Mário Karwoski

AS CONCEPÇÕES DE LÍNGUA EM ANÁLISE DE 17


DISCURSO: UM ESTUDO DAS PERSPECTIVAS
ANGLO-SAXÔNICA, RUSSA E FRANCESA
Aloísio de Medeiros Dantas

A RESPONSIVIDADE NA ESCRITA DO ALUNO DE 33


ENSINO MÉDIO: AS VOZES DIALÓGICAS QUE
COMPÕEM O DISCURSO
Symone Nayara Calixto Bezerra Almeida
Maria de Fátima Almeida

A SOCIOLINGUÍSTICA INTERACIONAL E A TEORIA 51


BAKHTINIANA: UM DIALÓGO POSSÍVEL
PARA PENSAR A SALA DE AULA
Luciene Maria Patriota

AUTORIA EM SERMÃO RELIGIOSO: 65


UM ESTUDO DIALÓGICO-DISCURSIVO
Michel Pratini Bernardo da Silva

DIALOGISMO, ENUNCIADO E ESTILO EM UMA 81


ARENA DE ENCONTROS DIALÓGICOS: (RE)LENDO
MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM
Ana Karla Alves de Menezes
José Luciano Marculino Leal
Raniere Marques de Melo

7
EDITORIAL DA REVISTA CLAUDIA: 97
OS EFEITOS DE SENTIDO DOS DISCURSOS
SOBRE O SUJEITO FEMININO DIANTE DO
PADRÃO DE BELEZA IMPOSTO SOCIALMENTE
Diana Barbosa de Freitas

ENTRE A MESQUITA E O ESTADO: 113


A MULHER IRANIANA E A SUA CONSTITUIÇÃO
NA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA
Quezia Fideles Ferreira

GRAMÁTICA, DISCURSO E ENSINO: 127


O QUE É POSSÍVEL ENUNCIAR?
Fabíola Nóbrega
Manassés Morais Xavier
Maria de Fátima Almeida
Patrícia Silva Rosas de Araújo

LEITURA CRÍTICO-SOCIAL DO GÊNERO 139


ANIMAÇÃO NO ENSINO MÉDIO
Ewerton Lucas de Mélo Marques
Manassés Morais Xavier
Robéria Nádia Araújo Nascimento

MEMES: POSSIBILIDADES DE LEITURAS 157


DIALÓGICAS SOBRE A CONSTRUÇÃO
DO FAZER DOCENTE
Maria Dnalda Pereira da Silva

8
O DIALOGISMO EM CHARGES QUE TEMATIZAM A 173
TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO
Ana Karla Alves Menezes
Maria de Fátima Almeida

O CARÁTER SINGULAR DA LINGUA(GEM) 187


NA ANÁLISE DO DISCURSO CRÍTICA:
UM BREVE PERCURSO TEÓRICO
Nilmara Milena da Silva Gomes
Alexandra Bittencourt de Carvalho

O DIALOGISMO EM NOTÍCIAS SOBRE AS 201


QUEIMADAS NA AMAZÔNIA
Alixandra Guedes Rodrigues de Medeiros e Oliveira
Maria de Fátima Almeida

O EFEITO DO DISCURSO OBSCENO NOS 215


SONETOS LUXURIOSOS,
DE PIETRO ARETINO
Clara Mayara de Almeida Vasconcelos
Rafael Francisco Braz

O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA BASE 233


NACIONAL COMUM CURRICULAR: DAS DISPUTAS
IDEOLÓGICAS AO CONCEITO DE GÊNERO
E CAMPO DE ATUAÇÃO
Patrícia Silva Rosas de Araújo

9
PADRE ANTÔNIO VIEIRA E O PERÍODO BARROCO: 249
UMA ANÁLISE SEMÂNTICO-DISCURSIVA DO
CAPÍTULO IV DO SERMÃO DA SEXAGÉSIMA
Jeniffer de Oliveira Barbosa
Maria Estela Souto da Silva
Manassés Morais Xavier

RELAÇÕES DIALÓGICAS E TONALIDADES 265


VALORATIVAS NO GÊNERO MEME
Raniere Marques de Melo

SOBRE O ENUNCIADO CONCRETO: 279


AS BASES FILOSÓFICAS DA CATEGORIA
EM PARA UMA FILOSOFIA DO ATO
Ludmila Kemiac

UMA ANÁLISE BIBLIOGRÁFICA SOBRE OS 293


EIXOS LINGUÍSTICOS E O ENSINO DE
LÍNGUA NAS REDES SOCIAIS DIGITAIS
Fábio Alves Prado de Barros Lima
Manassés Morais Xavier

SOBRE OS AUTORES 309

SOBRE OS ORGANIZADORES/AUTORES 321

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PREFÁCIO
Acir Mário Karwoski

11
12
O
ser humano adentrou, mesmo sem querer, numa nova
era da história evolutiva em que as constantes e rápidas
mudanças surgem como uma consequência dominante
que conduz a humanidade a um processo que pode culminar
na consumação ou destruição dos muitos paradigmas em vi-
gor. Quando me refiro a paradigmas, quero dizer o conjunto de
ideologias que modelam nossas práticas sociais do dia a dia.
Modelos que podem ser considerados modismos se não forem
tratados pela consciência crítica dialógica.
Escrever o prefácio da obra é, além de um privilégio, tam-
bém desafio e responsabilidade. Como leitor em primeira mão
do material organizado em torno das tessituras do dizer nos es-
tudos do discurso, cabe a missão de humildemente apresentar
a obra e, por que não, ousar apontar algumas reflexões ao leitor.
Wooton (2017) afirma que não podemos simplesmente
optar por ignorar a distinção entre a boa e a má ciência porque,
se o fizermos, não iremos reparar numa das características
específicas da ciência que é a de gerar o progresso.
Em suas últimas aulas no Collège de France, Benveniste (1969,
p. 127) afirmou: “vivemos na civilização do livro, do livro lido,
do livro escrito, da escrita e da leitura. Nosso pensamento está,
em qualquer nível, constantemente informado pela escrita.”
Assim, o livro que se apresenta ao leitor está recheado de
assuntos da escrita. Os enfoques teóricos da análise dialógica
do discurso, sustentados no circulo de Bakhtin, bem como o
referencial da análise tridimensional do discurso proposta por
Fairclough (2001), em sua teoria social do discurso, são as bases
conceituais mais representativas que constituem o livro.
Quanto aos gêneros textuais / discursivos, aparecem análises

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de redações escolares, sermão religioso, editorial, escrita
autobiográfica, animação, memes, charges, notícias, sonetos,
dentre outros. Ou seja, é possível constatar que há gêneros que
circulam em diversos campos da vida do particular pessoal até
o social, de militância solitária ou coletiva; de resistência; de
denúncia; de crítica velada ou explícita; de contextos múltiplos
que configuram uma sociedade plural.
O leitor encontrará análises que retratam assuntos da Ama-
zônia, da realidade nordestina a respeito da transposição do
Rio São Francisco, de escritas autobiográficas em obras que tra-
tam do islamismo, bem como análises de sermões que abarcam
temáticas do cristianismo neopentecostal. Uma obra plural, tal
como é a sociedade em suas múltiplas esferas de circulação de
discursos tecidos pelos textos.
Os campos midiático e literário aparecem sustentando aná-
lises de temáticas importantes para o contexto social brasilei-
ro: editorial de revista direcionada a público feminino; anima-
ção com assuntos críticos de política e contexto social; memes
que tratam de assuntos da atualidade e, muitas vezes, buscam
apagar a memória do povo com o desejo de impor a língua das
máquinas lógicas, da robotização e viralização em larga escala
como, por exemplo, as viralizações a respeito do papel do pro-
fessor no atual contexto brasileiro de desvalorização dos cursos
de licenciaturas e sucateamento das escolas quanto aos recur-
sos tecnológicos e ou as condições mais dignas de trabalho dos
professores.
Do campo artístico e literário aparecem trabalhos com so-
netos e escrita autobiográfica, com foco em temáticas atuais e
pertinentes para serem tratadas na educação básica. Levar os
textos, oportunizar aos leitores, promover o debate, permitir a
fruição estética e focar a discussão de maneira ética dos textos
é o primordial papel do professor diante dos alunos em sala
de aula. Transformar alunos leitores em cidadãos leitores cons-
cientes e críticos das suas responsabilidades numa sociedade
em constante transformação. Cidadãos com pensamentos não-

14
-indiferentes. Sociedade em que bravatas, transgressões, inter-
pretações de leis são discutíveis e provocam atravessamentos
de vários discursos, muito aquém de selarem apenas o entorno
jurídico sem o viés político.
Não existe sujeito sem a dimensão social. Somos porque
interagimos por meio de uma língua materializada em textos
que provocam significações que vão muito além do estado
do dicionário. Sobral (2019, p. 77) afirma que somente um
sujeito ocupa seu lugar no mundo. “Mas esse sujeito não é
transcendental; é situado, concreto, limitado em sua percepção,
ainda que não dominado pelo coletivo, (...) mediador entre o
socialmente possível e o realizável e realizado contextualmente.”
Assim, no atual contexto em que os colégios de cientistas
no Brasil e no mundo discutem critérios de avaliação dos pro-
gramas de pós-graduação e critérios de mensuração do impac-
to das publicações que deles emanam, é salutar destacar que a
grande área de Linguística e Literatura – alocadas distintamen-
te na Capes e no CNPq – sempre contribuiu para a geração do
progresso cientifico e novos conhecimentos.
A área de ciências humanas e sociais é imprescindível para
a sociedade e para a Universidade. Analisar os diversos gêneros
de textos e de discursos, adotando perspectivas teóricas susten-
tadas no dialogismo e em perspectivas sociais é garantir que os
diversos e diferentes discursos sejam mostrados em seus múlti-
plos e complexos atravessamentos ideológicos, sem imposição
de uma hegemonia que contribua para a segregação social ou
preconceito de qualquer natureza. Uma sociedade sempre foi,
é e será plural.
Daqui a algumas décadas os estudiosos da linguística
podem ler o que se produziu nas primeiras duas décadas do
atual século e analisar as contribuições. Quem sabe concordem,
discordem ou ignorem o que se produziu. Assim como fazemos
atualmente com os escritos do Círculo de Bakhtin há mais de
um século. Cada pesquisador apropria-se da escrita bakhtiniana
para sustentar suas análises a partir do que pensa. E, assim, na

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pluralidade, continuam a surgir as diferenças que identificam
grupos e legitimam diversas interações por meio da leitura e da
escrita, ou seja, pelos novos letramentos em diversas práticas
sociais.
A presente obra vem cumprir um importante papel no
contexto das polític-as públicas de formação de professores no
Brasil que é o de socializar os conhecimentos produzidos nos
ambientes universitários, prioritariamente em programas de
pós-graduação de universidades públicas brasileiras, responsá-
veis pela maioria da formação dos mestres e doutores.

REFERÊNCIAS

BENVENISTE, Émile. Últimas aulas no Collége de France. São Paulo: Editora


Unesp, 2014.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora da UnB,
2001.
SOBRAL, Adail. A filosofia primeira de Bakhtin: roteiro de leitura comentada.
Campinas: Mercado de Letras, 2019.
WOOTON, David. A invenção da ciência: nova história da revolução científica.
Lisboa: Temas e debates – Círculo de leitores, 2017.

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AS CONCEPÇÕES DE LÍNGUA
EM ANÁLISE DE DISCURSO:
UM ESTUDO DAS PERSPECTIVAS
ANGLO-SAXÔNICA, RUSSA
E FRANCESA
Aloísio de Medeiros Dantas

17
18
E
ste artigo discute, teoricamente, como três procedimen-
tos distintos de analisar o discurso postulam a definição
e/ou concepção da língua, haja vista ser esta uma realida-
de com que todo analista se depara, e que serve de sustentação
para a pesquisa. O trabalho parte da pergunta: qual a língua
que materializa ou enforma o discurso? Sem uma resposta a
essa questão, o estudioso do discurso se perde em miríades de
caminhos, o que pode vir a confundir a análise. No fim do ar-
tigo, articulamos uma hipótese de trabalho que envolva esses
três modos de percepção da língua enquanto enunciação, texto
e equívoco.

A concepção de língua na Análise de Discurso Russa

O Círculo de Mikhail Bakhtin, além das preocupações com


a literatura, trouxe importantes reflexões sobre a língua, que
retrataremos abaixo.
Volochínov (2013) defende que há leis linguísticas que não
podem ser infringidas, o que tornaria a compreensão impos-
sível. São elas: a linguagem é o produto da atividade humana
coletiva e reflete em todos os seus elementos aspectos políti-
co-econômicos da sociedade; a linguagem é sígnica, ou seja, a
compreensão se dá por signos; a linguagem se materializa na
comunicação social por estabelecimento de classes e respon-
sáveis pela compreensão ou língua; a linguagem – palavras, ex-
pressões – se realiza por um ato de consciência; a linguagem
só tem realidade sociológica e histórica na dependência de cir-
cunstâncias concretas, através do material ideológico; todas as
realizações linguísticas refratam a realidade social exterior por

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meio da ideologia (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 131-156).
Ainda segundo Volochínov, a linguagem humana é um fe-
nômeno de duas faces: a enunciação de um falante, dirigida a
um ouvinte. Toda enunciação é orientada para o outro. Por sua
vez, a língua não é imóvel, fixada por regras e exceções gra-
maticais; a língua se move continuamente e seu desenvolvi-
mento acompanha a vida social; este movimento progressivo
da língua se realiza no processo da relação produtiva e verbal
entre homem e homem. Na comunicação verbal, elabora-se a
enunciação. A essência efetiva da linguagem está no fato social
da interação verbal, realizada por uma ou mais enunciações.
Cada enunciação da vida cotidiana compreende, além da parte
verbal expressa, uma parte extra verbal – situação e auditório
(protagonistas, falante e ouvinte) – sem cuja compreensão não
é possível entender a enunciação. O diálogo – o intercâmbio
verbal – representa a forma mais natural da linguagem. To-
das as enunciações, em termos de semântica e estilística, são
dialógicas, na medida em que cada enunciação está dirigida
a um ouvinte (sua compreensão e sua resposta, concordância
ou discordância), em suma, à escuta avaliativa do ouvinte, do
auditório. Todo discurso é dialógico, dirigido a outra pessoa, à
sua compreensão e à sua efetiva resposta potencial; essa orien-
tação a um ouvinte pressupõe a correlação sócio-hierárquica
entre ambos os interlocutores.
A orientação social da enunciação remete a esta depen-
dência do peso sócio-hierárquico do auditório. Essa orientação
social estará sempre presente em toda enunciação do homem,
seja verbal ou gestual. Cada enunciação, além desta orienta-
ção social, contém um significado, um conteúdo, pois, privada
dele, a enunciação será um encadeamento de sons sem sentido
e perde seu caráter de interação verbal. Não se compreende-
rá o significado de uma enunciação se não se conhecem todas
as condições em que foi pronunciada; em condições e situa-
ções distintas, a enunciação terá significados distintos. Há duas
situações em que um enunciado adquire significado: a situa-

20
ção ou condição imediata que gerou a significação e a condi-
ção geral do intercâmbio comunicativo verbal. Por outro lado,
a enunciação se compõe de enunciação verbal e enunciação
não-verbal. São as situações diferentes que determinam a dife-
rença dos sentidos de uma mesma expressão verbal, portanto,
a expressão verbal, a enunciação representa a solução da situa-
ção, torna-se sua conclusão valorativa e seu desenvolvimento
ideológico. É a palavra que faz da enunciação um fenômeno
puramente ideológico. Toda realidade objetiva da palavra con-
siste na sua destinação de ser um signo ideológico. A palavra
torna-se palavra somente no intercâmbio comunicativo social,
na enunciação, compreendida e avaliada pelo falante e seu au-
ditório (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 156-196).
Nas palavras do próprio Volochínov, a língua, no campo da
enunciação, é assim compreendida:

A realidade objetiva histórica e natural torna-se tema


de nossas palavras enquanto signos ideológicos. A pa-
lavra, como qualquer signo ideológico, não reflete sim-
plesmente a realidade, mas a interpreta no intercâmbio
comunicativo social vivo, na interação verbal viva. Isto
ocorre porque as relações de classe, refratando-se nas
palavras, impõem-lhe certo sombreamento do signifi-
cado, incluindo nela certo ponto de vista e dando-lhe
certa avaliação. Com isso, as relações de classe entram
na enunciação inteira como um fator, uma força obje-
tiva com influência determinante sobre sua estrutura
estilística. (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 200).

Dessa forma, a língua, com a palavra ideológica e vivencia-


da em intercâmbios sociais, não escapa das forças ideológicas
que incidem sobre sua forma e seu significado.
Ao pensar de modo ideológico a língua, Volóchinov e o
grupo de Bakhtin decidem que a língua é um fluxo de forma-
ção ininterrupo, ou seja, para um falante, a forma linguística é

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um signo mutável e flexível, enquanto o ouvinte a compreende
em seu contexto concreto, pertencente a uma coletividade. A
compreensão do falante e do ouvinte, a palavra, na prática viva,
resulta de variações dos enunciados multiformes. A palavra é
dada ao falante apenas no contexto de certos enunciados e em
um determinado contexto ideológico; a palavra está sempre re-
pleta de conteúdo e de significação ideológica ou do cotidiano.
A língua no processo de sua realização prática não pode ser
separada do seu conteúdo ideológico ou cotidiano. Por sua vez,
a compreensão da língua é direcionada para a compreensão da
sua nova significação contextual. A concretização da palavra só
é possível por meio da sua inclusão no contexto histórico real
da sua realização inicial; o sentido da palavra é inteiramente
determinado pelo seu contexto.
Como processo de formação ininterrupto, os indivíduos
não recebem a língua pronta, mas no interior desse fluxo de
comunicação discursiva (VOLÓCHINOV, 2017, p. 173-200). A
língua se realiza em enunciados, que se forma entre dois indi-
víduos socialmente organizados, ou seja, a palavra é orientada
para o interlocutor (real, imaginário ou representação de um
grupo social).
A palavra é um ato bilateral, é determinada tanto por aque-
le de quem ela procede, quanto por aquele para quem ela se
dirige. A palavra é o produto das inter-relações entre falante
e ouvinte. A realidade efetiva da linguagem é o acontecimento
social da interação discursiva que ocorre por meio de um ou
vários enunciados; a interação discursiva é a realidade funda-
mental da língua (Id., p. 204-219). Em suma, a concepção de
língua de Volóchinov (Id., p. 224-225) apresenta os seguintes
princípios: a língua é um processo ininterrupto de formação,
realizado por meio da interação sociodiscursiva dos falantes;
as leis de formação da língua são leis sociológicas, a língua é
uma interação social; a criação da língua se prende a sentidos e
valores ideológicos que constituem suas palavras; o enunciado
é social de realização entre falantes e ouvinte.

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No tocante ao romance, Bakhtin tem algumas reflexões so-
bre a língua. Segundo o autor, a língua entra na obra literária
como uma construção híbrida do enunciado, que, por seus tra-
ços gramaticais e composicionais, pertence a um falante e mes-
cla dois enunciados, dois estilos, duas linguagens, sem qualquer
limite formal, a divisão de vozes e linguagens ocorre no âmbito
de um conjunto sintático (oração simples, palavra), em que há
dois sentidos heterodiscursivos, dois acentos. No enunciado é
inserida uma variedade de linguagens e horizontes verboideo-
lógicos (gêneros, profissões, grupos, tendências de ambiente).
Na obra literária, o discurso do narrador é sempre um dis-
curso do outro, na linguagem do outro. Essa citação do discur-
so do outro, na estrutura sintática, ocorre em três modelos:
discurso direto, discurso indireto e discurso direto impessoal,
com diferentes combinações (BAKHTIN, 2015, p. 84-107). O he-
terodiscurso social e as línguas se integram ao romance como
impessoais, por imagens de falantes, estilização de gêneros,
profissões. O romancista não conhece uma língua única, mas
uma língua estratificada e heterodiscursiva (as variedades lin-
guísticas em diferentes discursos), (Id., p. 123). A representação
da língua no romance se prende a três categorias: hibridização
das linguagens, interação dialogada das linguagens e diálogos
puros de linguagens. A confrontação dialógica das línguas pu-
ras delineia os limites das linguagens, principalmente através
do diálogo, que está prenhe de contraposições dialógicas e te-
mático-pragmáticas, no processo de formação socioideológica
das linguagens e da sociedade (Id., p. 156-163).
Bakhtin defende o romance como uma forma de conhecer
a língua:

O romance não só não dispensa a necessidade de um


conhecimento profundo e sutil da linguagem literária
como ainda exige, além disso, o conhecimento também
das linguagens do heterodiscurso. O romance requer a
ampliação e o aprofundamento do horizonte linguísti-

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co, o aprimoramento de nossa percepção dos matizes e
das diferenciações sociolinguísticas. (BAKHTIN, 2015,
p. 166).

Nessa concepção de língua do Círculo de Bakhtin, os pes-


quisadores defendem que não há separação entre linguística e
literatura; ambos os campos de conhecimento podem contri-
buir para a compreensão da língua usada em qualquer socie-
dade.

A concepção de língua na Análise de Discurso Anglo-Saxônica

Na elaboração epistemológica da hoje conhecida Análise de


Discurso Crítica, Norman Fairclough defende uma concepção
de língua que associa discurso e texto, como podemos perceber
de sua leitura. Ao criticar a abordagem saussureana de “fala”
como atividade individual, fora do sistema, o autor, depois de
concordar com os sociolinguistas de que a fala é sistemática,
parte para uma definição de “discurso” como uso da linguagem,
numa conceptualização de língua como a linguagem – soma de
língua e fala – que é uma forma de prática social (FAIRCLOUGH,
2001, p. 89-90). Essa concepção de língua, denominada de dis-
curso, apresenta três características: é um modo de ação, está
em relação dialética com a estrutura social e é moldado pelas
relações sociais. Além dessas características, devem-se consi-
derar três aspectos constitutivos da língua/linguagem/discurso:
a construção das identidades sociais dos falantes, constrói as
relações sociais entre as pessoas e contribui para construção
de sistemas de conhecimento e crença. Essa visão da língua,
em termos sociais, conduz o pesquisador a transformar a dis-
tinção saussureana língua/fala, numa distinção discurso/texto,
que será operacionalizada, recorrendo às funções de Halliday,
para quem a linguagem tem as funções – identitária, relacional
e ideacional –, chamando a atenção para função textual:

24
Diz respeito a como as informações são trazidas ao
primeiro plano ou relegadas a um plano secundário,
tomadas como dado ou apresentadas como novas, se-
lecionadas como “tópico” ou “tema”, e como partes de
um texto se ligam a partes precedentes e seguintes do
texto, e à situação social ‘fora’ do texto. (Op. cit., 92).

Quando percebemos a transformação da dicotomia língua/


fala em linguagem e uma necessidade de demonstrar a função
textual da língua, podemos concluir que estamos diante de
uma epistemologia da elaboração de um novo conceito, no qual
a língua passa a ser concebida por uma nova dicotomia a de
discurso/texto, em que discurso é o que entendemos por língua
em Saussure e texto, o que entendemos por fala. Em síntese,
a língua é uma dicotomia de discurso/texto e será o objeto de
estudo da Análise de Discurso Crítica.
Como já descrevemos a concepção de língua como discur-
so, vejamos como o autor concebe a língua no quadro do texto.
Ele traz o conceito de texto para o campo da significação –
uma análise de signos, palavras ou sequências mais longas de
texto com significado – e mostra que o significado potencial de
uma forma é heterogêneo, o que pode conduzir a diversidades,
sobreposições, contradições e ambiguidades. Uma análise tex-
tual deve ser composta, em escala ascendente, do estudo de vo-
cabulário, gramática, coesão e estrutura textual. Além desses
aspectos, o estudo do texto deve reconhecer a força dos enun-
ciados e atos de fala, a coerência e a intertextualidade (Id., p.
102-104).
A concepção de língua/linguagem na dicotomia discurso/
texto tem a intenção de fazer do texto o verdadeiro objeto de
estudo da Análise de Discurso Crítica (ADC). Na apresentação
das “noções preliminares” da ADC, as autoras afirmam algo
semelhante: “A teoria e análise linguística, por sua vez, auxi-
liam a prática interpretativa e explanatória tanto a respeito de

25
constrangimentos sociais sobre o texto como de efeitos sociais
desencadeados por sentidos de textos” (RESENDE; RAMALHO,
2006, p. 23). Nessa afirmação, encontramos a dicotomia discur-
so/texto numa concepção de “teoria e análise linguística”.

A concepção de língua na Análise de Discurso Francesa

A linguística trata o seu objeto, a língua, de modo contra-


ditório: unidade e diversidade. No entanto, há um impossível
que sempre retorna – o real da língua – um impossível que é
ensurdecido. Uma das razões é que a linguística não quer saber
de sua história. Temerá a linguística que esse recalcado retor-
ne, do interior de suas teorias, na forma de pontos em que a
linguística se trai? Em contraste a uma língua da lógica, a lin-
guística contemporânea descobre uma língua contraditória: a
língua do paradoxo e do absurdo e a língua das certezas lógicas.
Nesse contexto, a língua de madeira (formal e administrati-
va) do direito e da política se enrosca com a língua de vento (insi-
nuante, com sentido subliminar) da propaganda e da publicida-
de. Em todos os contextos de construção da língua (na linguística
ou na sociedade), o mito da língua universal tenta impor ao uni-
verso uma língua dominante, que se caracteriza por ser uma
língua universal lógico-matemática, também sem memória.
As máquinas lógicas fabricam, hoje em dia, suas próprias
memórias para melhor apagarem as dos povos, e para melhor
administrarem os complexos industriais, administrativos e mi-
litares que vão tomar as decisões no lugar delas. É uma língua
lógica, língua metálica, sem aspecto exterior. Em toda língua
falada por seres humanos, os traços significantes, as “marcas”
linguísticas não se estruturam segundo a ordem lógico-mate-
mática. A dificuldade do estudo das línguas naturais provém
do fato de que suas marcas sintáticas nelas são essencialmente
capazes de deslocamentos, de transgressões, de reorganiza-
ções. É também a razão pela qual as línguas naturais são ca-
pazes de política. A língua do direito representa, na língua, a

26
maneira política de denegar a política: espaço do artifício e da
dupla linguagem, linguagem de classe dotada de senha e na
qual para “bom entendedor” meia palavra basta.
A língua do direito é uma língua de madeira. A língua de
vento consiste em reforçar as marcas pelo jogo interno de sua
diferença, pelo logro publicitário da linguagem comercial e
política: a “língua de vento” permite à classe no poder exercer
sua mestria, sem mestre aparente. Ela não serve tampouco a
seu mestre. O imperialismo fala hoje uma língua de ferro, mas
aprendeu a torná-la tão ligeira quanto o vento.
A questão de um real da língua inscreve-se na disjunção
maior entre a noção de uma ordem própria à língua, imanen-
te à estrutura de seus efeitos, e a de uma ordem exterior, que
remete a uma dominação a conservar, a reestabelecer ou a in-
verter. Para quem entende que a língua tem uma ordem pró-
pria, o real da língua reside naquilo que nela faz Um, a assegura
no Mesmo e no Idêntico e a opõe a tudo que da linguagem cai
para fora dela, nesse inferno inintelígivel que os Antigos desig-
navam pelo termo de “barbarismo”: o campo do interdito na
linguagem é, assim, estruturalmente produzido pela língua,
do interior dela mesma. O barbarismo constitui a designação
arcaica, ao mesmo tempo linguística e política, do exterior da
língua. Ele é o sintoma, pela relação com o nada, da primeira
percepção do impossível. É por esse viés que uma reflexão gra-
matical autônoma começa a se constituir. Toda língua é afetada
por uma divisão (figurada no correto/incorreto) que se sustenta
pela existência de um impossível, inscrito na própria ordem da
língua.
Há uma ordem da língua (e a divisão que dela resulta) e as
“moedagens imaginárias” dessa divisão. Ele separa o correto
(trabalho da língua)/incorreto (trabalho da não-língua) como
real das construções imaginárias de correto como a forma ade-
quada e incorreto como a forma inadequada. O impossível da
língua é o encontro da língua com o inconsciente. Esse impos-
sível é denominado de alíngua (o real da língua, seu impossí-

27
vel). Toda alíngua não pode ser dita, em qualquer língua que
seja. Na alíngua se fala do que não se pode falar. O trabalho do
gramático e do linguista consiste em construir a rede desse real
(o real da língua, o impossível), de maneira que essa rede faça
Um, não como efeito de decisões que viriam arbitrariamente
rasgar essa unidade em um fluxo, mas por um reconhecimen-
to desse Um enquanto real, ou seja, como causa de si e da sua
própria ordem. Fazer linguística é supor que o real da língua
é representável, que ele guarda em si o repetível, e que esse
repetível forma uma rede que autoriza a construção de regras
(GADET, F.; PÊCHEUX, M., 2004, p. 19-71).
Em um artigo, Françoise Gadet defende que a língua é um
espaço de jogo, ou seja, concebe-se a regra como comportan-
do em seu princípio um espaço de jogo, no sentido de jogo da
criança e da sociedade, mas também de músculo ou mecanis-
mo. A autora afirma que entre a miragem de uma língua sem
regras e o fantasma de uma língua regrada de maneira estável
e categórica, o jogo é uma dimensão de cada regra, operante
no funcionamento geral da língua, na aprendizagem da língua
pela criança, no uso cotidiano de todo locutor e no uso da lín-
gua para fins literários e políticos (GADET, 2016, p. 198).
François Gadet, numa resenha sobre A língua inatingível,
em conjunto com Michel Pêcheux, defende que os processos
ideológicos entram na língua pela sintaxe, já que as regras lin-
guísticas não são categóricas, mas possibilitam os jogos ideoló-
gicos e as latitudes discursivas; pensar sintaticamente sobre um
enunciado revela um pouco mais sobre seu significado, porque
se relaciona a outros enunciados por meio de jogos sintáticos.
Desse modo, há somente trabalho na língua, em que o signifi-
cado é definido em relação ao que não faz sentido, o sem-senti-
do (GADET, F. PÊCHEUX, M., 2011, p. 102-103). Na mesma obra,
Pêcheux defende que a língua é a base sobre a qual os proces-
sos discursivos se constroem, em que a língua é uma realidade
relativamente autônoma (PÊCHEUX, 2011, p. 128).
Eni Orlandi (1999, p. 36-37) afirma que a linguagem (língua)

28
resulta da oposição entre os processos parafrásticos e polissê-
micos, onde a paráfrase é responsável pelo repetível e memó-
ria, enquanto a polissemia produz deslocamentos e joga com
o equívoco. Como a incompletude é a condição da linguagem,
a língua está constantemente sujeita ao equívoco e à ruptura.
Portanto, é nesse jogo entre o repetível e a ruptura, a memória
e o equívoco que a língua sobrevive discursivamente.

Articulação dos conceitos de língua: enunciação, texto e equí-


voco

Num artigo, publicado em 1999, cheguei a pensar a lingua-


gem numa articulação de três conceitos – o código, a enuncia-
ção e o discurso –, a partir de que defendia que o discurso legi-
tima um código, que enforma a enunciação textual (DANTAS,
1999, p. 106). Após as leituras realizadas sobre as concepções de
língua em três vertentes de Análise de Discurso, repensamos
essa articulação. A noção de língua no discurso transita, hete-
rogeneamente, e de modo fronteiriço, entre enunciação, texto
e equívoco.
Em termos de enunciação, Mikhail Bakhtin e seu Círculo
pensam a língua no trabalho interacional do dialogismo, ou
seja, não há língua, sem que sua enunciação se dê entre diálo-
go, seja de sujeitos, seja de discursos outros.
Em termos de texto, a língua é o campo da significação,
que se manifesta nas textualidades, dentro da perspectiva de
Norman Fairclough, ou seja, a língua são textos que circulam e
permitem enunciações.
Em termos de equívoco, o campo da análise de discurso de
Michel Pêcheux pensa o impossível da língua, aquelas trans-
gressões e deslocamentos do sistema, a possibilidade de que o
sentido sempre pode ser outro, ou seja, uma língua que falha.
Como podemos perceber, as três concepções de língua se
articulam, na medida em que, ao interagir enunciativamente,
produzimos textos, sem que tenhamos segurança de qual lín-

29
gua estamos efetivamente utilizando, porque os sentidos sem-
pre nos escapam. Vejamos um exemplo:
Durante a pandemia da COVID-19, Manaus teve um certo
número de mortos, que foram empilhados em valas comuns.
Sobre esse fato, um parente de morto faz a seguinte afirmação,
conforme notícia do site g1, de 27 de abril de 2020: “Disseram que
vão enterrar um em cima do outro e que nós devemos aceitar. Isso não é
digno. Somos cidadãos que pagaram impostos, temos direitos de enterrar
nossos entes dignamente. Isso é desumano.” Analisemos, em termos
linguístico-discursivos, como se realizam os termos digno e digna-
mente. Enunciativamente, é uma interação com as autoridades sa-
nitárias de Manaus. Nesse contexto, enterrar nossos entes dignamente
caracteriza-se como uma acusação. No entanto, essa acusação por
si só ela não teria efeito, o seu campo de significação é completa-
do pelos recursos textuais: a citação indeterminada (disseram), a
descrição (vão enterrar um em cima do outro), o viés político da fala
(somos cidadãos que pagaram impostos), as garantias jurídicas (temos
direitos de enterrar). Por sua vez, o adjetivo digno que significa literal-
mente merecedor, apropriado, escapa a essa literalidade e ganha os
sentidos, desestabilizando o dicionário, de acusação indeterminada
e descrita com força política e jurídica. Ou seja, quando articulamos,
discursivamente, as concepções linguísticas de enunciação, texto e
equívoco, conseguimos extrair um novo significado para o adjetivo
digno, que extrapola o uso de dicionário.

Palavras finais

Com esse breve artigo, defendemos, pelo menos, três ma-


neiras de pensar a língua em Análise de Discurso:

a) A língua não se realiza sem sujeitos, o que torna im-


produtivo sua descrição, através de exemplos soltos,
fora da interação e do dialogismo;
b) A língua é o resultado de um enquadramento tex-
tual, intertextual e é com os mecanismos textuais que

30
ela ganha materialidade e efetivo uso;
c) Finalmente, a língua não é um sistema fechado, ou
multissistemas, mas impossíveis sentidos que falham,
que se desestabilizam constantemente, de modo que
nunca temos um significado em estado de dicionário.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: a estilística. São Paulo: Editora 34,


2015, tradução de Paulo Bezerra.
DANTAS, Aloísio. A inscrição da língua no discurso In Graphos: Revista da Pós-
-Graduação em Letras, volume IV, número 2. João Pessoa: Ideia, 1999, p.
103-109.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universi-
dade de Brasília, 2001.
GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível. In PÊCHEUX, Mi-
chel, Análise de Discurso. São Paulo; Pontes, 2011, p. 93-105.
GADET, Françoise. Trapacear a língua In CONEIN, Bernard et al. Materialidades
discursivas. Campinas: Editora da Unicamp, 2016, p. 185-199.
GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível. Campinas: Pontes,
2004, tradução de Bethania Mariani e Maria Elizabeth C. de Mello.
ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas:
Pontes, 1999.
PÊCHEUX, Michel. Língua,“linguagens”, discurso In PÊCHEUX, Michel, Análise
de Discurso. São Paulo; Pontes, 2011, p. 121-129.
RESENDE, Viviane de Melo; RAMALHO, Viviane. Análise de discurso crítica.
São Paulo: Contexto, 2006.
VOLÓCHINOV, Valentin N. A construção da enunciação e outros ensaios. São
Carlos; Pedro e João Editores, 2013.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas funda-
mentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Editora
34, 2017, tradução de Sheila Grilo e Ekaterina V. Américo.

31
32
A RESPONSIVIDADE NA ESCRITA
DO ALUNO DE ENSINO MÉDIO: AS
VOZES DIALÓGICAS QUE COMPÕEM
O DISCURSO
Symone Nayara Calixto Bezerra Almeida
Maria de Fátima Almeida

33
34
U
tilizar a linguagem e desenvolver a competência comu-
nicativa só é possível a partir do envolvimento do indi-
víduo em uma prática social crítica e atuante, pois este
é o meio pelo qual o homem se define perante à sociedade. No
entanto, nem sempre a linguagem foi vista dessa forma. A es-
crita, por exemplo, por muito tempo, devido à hegemonia da
oralidade, foi vista como algo não muito importante no proces-
so de comunicação verbal do ser humano. Sautchuk (2003) nos
mostra que até o século XX a escrita não foi prioridade. Só a
partir de estudos mais avançados da Linguística Textual, e ain-
da obedecendo à regras bem peculiares, foi que a linguagem
escrita passou a ser reconhecida como um processo de pro-
dução e paulatinamente foi perdendo a característica de mera
transcrição de códigos e assumindo a ideia de que a intenção
comunicativa poderia se realizar para além do discurso.
O grande desafio atual dos docentes de língua materna é
rever prescritivas concepções de linguagem, cuja principal ca-
racterística da produção textual consistia em um uso exacer-
bado de transcrições e regras gramaticais. Precisamos de uma
postura pedagógica de ensino de língua que possibilite o apren-
diz a mobilizar os mais diversos saberes e competências com o
intuito de participar de maneira funcional e interativa de uma
sociedade dominada por mudanças culturais, sociais, científi-
cas e econômicas. Ao considerar que a comunicação se realiza
sob a forma de textos, cabe à instituição de ensino, na figura do
professor, desenvolver as competências de seus alunos relacio-
nadas às habilidades de ler, escrever textos orais, escritos e/ou
verbo-visuais.
Para tanto, contamos com a utilização dos mais diversos

35
gêneros discursivos em sala de aula, que permitem ao aluno
entendê-los como estáveis e mutáveis. Segundo Sobral (2009),
o gênero discursivo é estável porque possui características que
o identificam como tal e mutável por estar em constante trans-
formação. Sempre que precisa ser empregado, altera-se para
atender a uma determinada situação social que, muitas vezes,
necessita que um determinado gênero se transforme em outro.
O Círculo o define como “formas relativamente estáveis e nor-
mativas do enunciado” (BAKHTIN, 2003, p. 286).
Entender o ensino de língua materna numa perspectiva
dialógica é privilegiar a interação professor-aluno como forma
de construção do conhecimento em que o professor coloca em
movimento aspectos constitutivos da relação sujeito/lingua-
gem, comunicação/expressividade, leitura/produção/ autoria.
Nesse sentido, este trabalho é um recorte de minha tese1 e
está voltado, numa perspectiva enunciativa, para a relação en-
tre sujeito e linguagem. Pretendemos, aqui, observar esta rela-
ção estabelecida no processo de produção de texto, ou seja, de
enunciado; verificando a constituição de um sujeito autor con-
siderando a posição sócio-histórica e as vozes que constituem
seu discurso.
Na pesquisa que fundamenta esse texto, com base no
pensamento de Bakhtin e o Círculo, analisamos o processo
de ensino da escrita que ocorre a partir de ações didáticas
pautadas na teoria dialógica do discurso e promovemos ações
didáticas de incentivo à escrita de textos com finalidades
específicas de formação de sujeitos críticos reflexivos. Nesse
caso, as ações didáticas foram pautadas na produção de um
blog que serviu de subsídio para realizar discussões sobre o
momento político vivenciado nas eleições para governador da
Paraíba e presidente da República, em 2014. Nessa ocasião, sob
nossa orientação, os alunos produziam comentários que foram
publicados no blog, como também artigos de opinião, nas aulas
1
O título da tese é “A contribuição da análise dialógica do discurso para o ensino da escrita
escolar: do blog ao artigo de opinião” e foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação
em Linguística da Universidade Federal da Paraíba (PROLING/UFPB) em 2018.

36
de língua portuguesa.
A escolha por um projeto em que o aluno lê e produz tex-
tos no blog, bem como em sala, partiu da necessidade de apro-
veitar todo esse acesso à tecnologia como instrumento para
a educação. Como sabemos, a tecnologia é uma realidade na
escola e acreditamos que associar o uso dessas novas tecno-
logias à oportunidade de refletir sobre política, já que política
não é uma disciplina curricular no Ensino Médio, mas é um
tema transversal proposto pelos documentos oficiais, poderia
ser atrativo. Nossa expectativa era a de que a construção do po-
sicionamento axiológico em produções textuais escolares de
alunos de Ensino Médio ocorresse a partir do processo de en-
sino mediado por um Planejamento Didático Dialógico (PDD)2,
cujo trajeto de leitura e discussão em sala de aula passasse por
vários gêneros discursivos, criando uma grande rede dialógica
de conhecimento que culminaria em um produto final que par-
tiria do gênero discursivo comentário online e se materializaria
no gênero artigo de opinião.
Trouxemos, então, a oportunidade de trabalhar política,
pois os alunos do Ensino Médio do nosso Estado não dispõem
desse componente curricular e naquele momento estávamos
vivendo um momento importante da política estadual e nacio-
nal. Acreditávamos que o trabalho com o tema política nas au-
las de língua portuguesa poderia contribuir para a formação
crítico-reflexiva deles, além de ajudá-los a compreender e argu-
mentar sobre as questões políticas de nosso país.
Para propiciar essas situações, criamos um blog intitulado
Leituras da mídia política: você faz?3, no qual os alunos po-
diam ler sobre política e ser estimulados a assumir um posi-
cionamento, construir argumentos, defender uma opinião com
vistas a posteriormente também discutir essas situações-pro-
blema e posições ideológicas para, consequentemente, produ-
2
Para melhor entendimento acerca do conceito de Planejamento Didático Dialógico
(PDD), ler a Tese Almeida (2018), conforme citado na nota de rodapé anterior.
3
A caracterização do blog será apresentada mais detalhadamente no capítulo de meto-
dologia.

37
zir textos formais, mais próximos aos exigidos nos exames de
avaliação deste nível de escolaridade, a exemplo do Exame Na-
cional do Ensino Médio (ENEM).
Nosso objetivo geral nesta pesquisa foi analisar a construção
do posicionamento axiológico em produções textuais escolares
de alunos do Ensino Médio de uma escola da cidade de Campina
Grande-PB a partir do processo de ensino de escrita mediado
por um Planejamento Didático Dialógico (PDD), cujo trajeto de
leitura, discussão e escrita em sala de aula passou por vários
gêneros discursivos e formou uma grande rede dialógica.
No entanto, nesse artigo, nosso objetivo foi estabelecer as
relações dialógicas entre os textos discutidos e aqueles produ-
zidos pelos alunos no blog, verificando as vozes dialógicas que
compõem o discurso a partir da observação da utilização da
responsividade marcada e da responsividade velada.

A geração de dados

Desenvolvemos a presente pesquisa norteadas pela neces-


sidade de, a partir da perspectiva dialógica no processo de ensi-
no, promover uma reflexão crítica por parte dos alunos partici-
pantes, com base em situações reais de uso da língua (utilização
de gêneros).
Por acreditar que a combinação Discurso e Sociedade é vá-
lida e contribui com práticas de ensino que visam a estudar fe-
nômenos linguísticos-discursivos de comunicação e interação
envolvendo o uso efetivo da língua, viabilizamos, com a ajuda
de uma escola parceira, a utilização e mobilização de formas
específicas de interação denominadas de gêneros do discurso4,
que, como já foi dito anteriormente, visavam à formação de um
sujeito reflexivo diante das práticas sociais, às quais esse indiví-
duo é exposto diariamente em suas atividades que ocorrem na
4
Segundo Bakhtin (2010, p. 285), “ao falante não são dadas apenas as formas da língua na-
cional obrigatórias para ele, mas também as formas de enunciado para ele obrigatórias,
isto é, gêneros do discurso”. Para Marcuschi (2005), os gêneros não são definidos apenas
como textos sem contexto, mas por constituírem atividades discursivas determinadas por
aspectos sociais e funcionais.

38
linguagem e pela linguagem.
A pesquisa-ação realizada foi caracterizada de base predo-
minantemente qualitativa e interpretativista, porquanto visou,
através das interpretações dadas ao corpus de análise, com-
preender as razões pelas quais os fatos que se desejam inves-
tigar aconteceram, a maneira como os eventos em que esses
fatos aconteceram estavam organizados e os significados que
tiveram para seus participantes (CHIZZOTTI, 2006).
Os sujeitos participantes da pesquisa foram 16 alunos, entre
16 e 17 anos, que estavam cursando o 2º ano do Ensino Médio
em uma escola pública de Campina Grande-PB, Escola Estadual
de Ensino Fundamental e Médio Nenzinha Cunha Lima. Para a
realização deste trabalho, foi elaborado um Planejamento Di-
dático Dialógico (PDD) de 18 aulas que ocorreram entre os dias
10 de setembro de 2014 e 11 de dezembro de 2014, cujo objetivo
foi promover atividades de leitura, discussão e produção escri-
ta. Esta última foi realizada tanto no próprio blog pedagógico
quanto por meio de orientações para a produção de artigos de
opinião.
A construção do blog pedagógico Leituras da mídia polí-
tica: você faz? foi essencial para o desenvolvimento das aulas
e foi um instrumento bastante relevante para a elaboração de
conhecimento, pois serviu tanto de aparato dinâmico e hiper-
textual do discurso eletrônico, atuando como suporte para pos-
tagens das matérias extraídas dos mais diversos meios, como
também foi o espaço utilizado para o primeiro momento de uso
da escrita.
Nesse espaço, foi possível perceber o posicionamento dos
aprendizes desde o início da geração de dados e, inclusive, rea-
lizar comparações do posicionamento ideológico destes ao tér-
mino da aplicação dessas estratégias decorrentes do trabalho.
Os encontros contaram com atividades de leitura, discussão de
diversos gêneros discursivos, produção e postagem de comen-
tários no blog, assim como escrita e reescritura de artigos de
opinião. A atividade de produção escrita foi elaborada tendo

39
em vista as discussões realizadas em sala e os textos produzidos
e publicados no blog.

As vozes dialógicas que compõem o discurso: responsividade


marcada e responsividade velada

Como já foi dito anteriormente, este artigo faz um recorte


da pesquisa e para atender ao objetivo de estabelecer as rela-
ções dialógicas entre os textos discutidos e aqueles produzidos
pelos alunos, verificando as vozes dialógicas que compõem o
discurso a partir da observação da utilização da responsividade
marcada e da responsividade velada, utilizamos uma postagem
feita no blog, que serviu de texto motivador para a orientação
de uma produção textual que fazia parte do PDD.
Para explicarmos o conceito dessas vozes, partiremos da
seguinte reflexão de Bakhtin:

A língua, como o meio concreto vivo habitado pela cons-


ciência do artista da palavra, nunca é única. Só é única como
sistema gramatical abstrato de formas normativas, desviada
das assimilações ideológicas concretas que a preenchem e
da contínua formação histórica da língua viva. A vida social
viva e a formação histórica criam no âmbito de uma língua
nacional abstratamente única uma pluralidade de universos
concretos, de horizontes verboideológicos sociais e fecha-
dos. Os elementos fechados e abstratos da língua no inte-
rior desses diferentes horizontes são completados por con-
teúdos semânticos e axiológicos e soam de modo diferente.
(BAKHTIN, 2015, p. 63).

Partimos da concepção de que a essência da língua é a inte-


ração verbal entre os falantes, pois é a interação que constitui
a realidade da língua materializando-a em gêneros discursivos.
Bakhtin (2010) afirma ser impossível a produção de um discur-
so que não dialogue com outro.

40
Vale salientar que, ao longo das produções, as vozes que
constituem o discurso produzem o que chamamos de discor-
dância ou concordância. Norteadas pela teoria de Authier Re-
vuz (2004) e em Bakhtin, na obra Marxismo e Filosofia da Lingua-
gem, em que o estudioso teoriza sobre modos de apropriação do
dizer, criamos os termos responsividade marcada (RM) e respon-
sividade velada (RV). Para nós, esta é uma relação dialógica em
que o discurso de concordância é construído de forma criativa,
ou seja, é possível perceber a concordância, mas o sujeito faz
uso de estratégias que velam essa relação direta. É possível per-
ceber que há uma relação de campo semântico com o já-dito,
mas não conseguimos detectar o mesmo exemplo, as mesmas
palavras ou o mesmo enunciado, de modo que o sujeito, utili-
zando-se de seu conhecimento, busca elementos, exemplos e
possibilidades componentes do mesmo campo semântico para
produzir seu discurso.
Já a responsividade marcada faz uso de um discurso direto
que reproduz de maneira muito clara a opinião do outro. Ela
pode fazer uso do enunciado completo ou até apenas de palavras,
mas a identificação dessa relação é facilmente comprovada.
Sendo assim, ele esclarece que uma boa maneira de se pen-
sar isso é aliar responsabilidade e, consequentemente, respon-
sividade, pois ao mesmo tempo em que sou responsável pelo
que faço e digo, também faço e digo em resposta a uma série de
elementos presentes em minha vida com signos.
De modo geral, ao produzirmos um texto, dialogamos com
diversas vozes e mobilizamos diversos saberes (BEZERRA,
2007)5 a fim de atender a um interlocutor outro que busca inte-
ragir. De fato, o que ocorre é um movimento de vozes que nem
sempre são harmônicas, ou seja, nem sempre estão de acordo,
mas que constroem um enunciado que atende à uma enuncia-
ção específica e, por conseguinte, à construção de um determi-
nado gênero.

5
Para maiores informações, acessar a dissertação de mestrado intitulada Saberes linguísticos
sobre escrita mobilizados por professores e alunos em processo de reescrita textual, de Bezerra (2007).

41
O que os textos revelam?

Diante de um leque de opções, e conscientes de que as vo-


zes que constituem a produção dos enunciados emanam de
locais semelhantes, devido ao cunho social, idade e formação
cultural desses sujeitos, precisamos “escolher” com quais tex-
tos trabalhar. Sendo assim, nossos dados foram selecionados a
partir de alguns critérios que consideramos lícitos e funcionais.
O primeiro deles foi analisar as postagens que tinham como
textos motivadores os mesmos textos que também norteavam
as orientações para produção escrita. Pela ordem cronológica
de hospedagem, são eles: Chico fala tudo, Antônio Fagundes fala
sobre política (29 de setembro de 2014); Marina Silva, descansa
em paz! (15 de outubro de 2014) e a capa da Revista Isto é Você
aceita isso? (20 de outubro de 2014). Além dessas postagens,
analisamos os comentários referentes a algumas postagens que
mais geraram discussão em sala de aula e, posteriormente, ela-
boramos enunciados para orientar a produção textual de um
artigo de opinião.
No entanto, para esse trabalho iremos nos deter aos textos
(comentários) que foram feitos pelos alunos, no Blog, sobre a
postagem do dia 29 de setembro de 2014 “Chico fala tudo”.
Partimos da ideia de que estávamos diante de um sujeito
social que é escritor. Escreve nas mais diversas situações so-
ciais e tem capacidade de realizar uma leitura crítica e se mani-
festar utilizando uma linguagem dialógica discursiva. Ao reali-
zar a pergunta “Como você lê as postagens aqui apresentadas?”,
os alunos, assumindo uma atitude responsiva de compreensão,
manifestaram, por meio da escrita, através das relações dialó-
gicas suscitadas, sua compreensão. Não podemos, enquanto
pesquisadoras, esquecer que

As relações dialógicas tanto podem ser contratuais ou polê-


micas, de divergência ou de convergência, de aceitação ou
de recusa, de acordo ou de desacordo, de entendimento ou

42
de desinteligência, de avença ou de desavença, de concilia-
ção ou de luta, de concerto ou desconcerto. (FIORIN, 2016,
p. 28).

Eis alguns exemplos de como se dá a construção de uma


postura ideológica acerca de política durante a utilização do
blog:

Figura 1 - Postagem no blog do texto Chico fala tudo

Fonte: <http://leiturasdamidiapolitica.blogspot.com.br>.
Acesso em: 13 fev. 2018.

Vejamos os comentários escritos pelos alunos:

43
Figura 2 - Comentários escritos acerca da Figura 1
6 comentários6:

1. Gael 8 de outubro de 2014 07:09

Maldita Gení!

2. Natanael 8 de outubro de 2014 13:43

É de grande valor a opinião de uma pessoa que viveu na época da ditadura,


com toda a dificuldade de expor a sua voz e o seu direito

3. Josafá 8 de outubro de 2014 14:58

Concordo com o pensamento de Chico Buarque, no período da ditadura o bra-


sil não tinha voz, ou seja não poderia opinar, os brasileiros eram pau mandado, so
após o enfraqueçimento da ditadura, e um começo de uma verdadeira democracia
que o País começou a se organizar.

4. Renato 8 de outubro de 2014 21:08

Também concordo a mídia esconde muitos acontecimentos, distorce como


é uma grande ferramenta de informação também pode ser uma ferramenta de
“cabresto”.

5. Sophia 14 de outubro de 2014 11:40

Tbm concordo com Chico Buarque pq na época da ditadura as pessoas não


tinha direito a nada e de lá pra cá já mudou muitas coisas sei que o país que vi-
vemos não estar lá essas coisas mas já melhorou bastante, agora as pessoas tem
o direito de falar o que pensa e da maneira que lhe convêm... Então da época da
ditadura para os tempos de hoje já mudou muitas coisas ;)

6. Clara 15 de outubro de 2014 04:44


Eu concordo em partes com o Chico Buarque pois o PT teve bastante parti-
cipação no crescimento do nosso pais, porém também acredito que esse partido
perdeu a sua essência.

Fonte: <http://leiturasdamidiapolitica.blogspot.com.br>.
Acesso em: 13 fev. 2018.

O que encontramos como contexto norteador é um texto


produzido por Chico Buarque, cujo objetivo é defender o Par-
tido dos Trabalhadores (PT). Nele, Buarque, que viveu e sofreu
6
Optamos por manter a grafia original dos comentários feitos no blog.

44
toda a repressão da Ditadura Militar e acompanhou o processo
econômico do país, faz um discurso de apoio ao PT. Para rea-
lizar esse apoio, ele se vale de enunciados, tais como: “tira a
nossa coleira dos USA, dá um pé no traseiro do FMI, [...] tira
50 milhões da pobreza, cria uma nova classe média”; “mas a
mídia conservadora e recalcada sabota e cria um clima de que
estamos ‘à beira do abismo’ e tem gente que vai na onda e não
lembra de nosso passado medíocre”. O que observamos é um
discurso que, além de defender o PT, acusa a mídia de “cegar” a
população diante dos benefícios trazidos pelo Partido dos Tra-
balhadores.
As postagens realizadas pelos alunos trazem uma sequência
de comentários caracterizados por uma responsividade marca-
da. Os alunos produzem seus textos a partir do que foi dito pelo
artista. Ora fazendo uso de uma voz histórica, como podemos
ver nos textos de Natanael, Josafá e Sophia; ora usando vozes
que partem de uma estrutura política e social, em que a mídia
se torna responsável por uma divulgação de um discurso que
destrói o trabalho do PT.
No entanto, dois comentários nos chamam a atenção: o pri-
meiro, que diz “Maldita Gení”, e o último, “Eu concordo em par-
tes com o Chico Buarque pois o PT teve bastante participação
no crescimento do nosso pais, porém também acredito que esse
partido perdeu a sua essência”. Esse texto traz consigo uma res-
ponsividade velada. Clara, a autora do texto, parece “aceitar” o
posicionamento de Buarque enquanto artista e “conhecedor”
do cenário político. Ela também concorda que a mídia cria um
cenário negativo do partido, mas deixa claro a sua insatisfação
em relação ao PT, quando revela que, para ela, o partido teria
“perdido sua essência”.
Já no que se refere à primeira postagem, é preciso dedicar-
mos mais atenção e contextualizarmos o que se trata de uma
“rica” produção de enunciados! Talvez para aquele que desco-
nhece a produção de Chico Buarque durante a Ditadura, o texto
não faça sentido. Entretanto, esse enunciado foi construído a

45
partir de uma relação dialógica de vozes que emanam de um
dialogismo bíblico, metafórico, e que constitui um tom valora-
tivo de ironia.
Quando iniciamos o projeto, essa turma estava trabalhando
em um projeto interdisciplinar para uma amostra cultural da
instituição, cujo tema era Chico Buarque e suas obras. Assim,
podemos dizer que Gael estabeleceu uma relação de sentido
com uma das obras do artista, Geni e o Zepelim, uma canção do
final da década de 1970 que, inclusive, estava sendo encenada
pela turma. Como é de nosso conhecimento, essa canção relata
a história da personagem “Geni”, da peça A ópera do malandro,
que tem por nome Genivaldo.
Por ser uma figura masculina com comportamento femi-
nino, ou seja, um travesti, Geni, que também se prostitui, sofre
com o desprezo e a hostilidade da população da cidade: “joga
pedra na Geni / Ela é feita pra apanhar/ ela é boa de cuspir/ Ela
dá pra qualquer um! / Maldita Geni!” - os moradores sugerem.
Observemos que essa canção já estabelece uma relação dialó-
gica com uma passagem bíblica (João 8), que tem como enredo
o apedrejamento de uma mulher adúltera. Segundo o enredo
da canção, Geni, que “atende aos desejos” de todos, nega-se a
atender ao pedido do viajante.
Não seria, na leitura de Gael, Geni o PT se negando a aten-
der à mídia brasileira? Não seria o PT a adúltera que fez tan-
ta coisa pelo Brasil, mas que, ao cometer um erro, merece ser
apedrejada? Podemos, sim, dizer que há uma responsividade
ativa velada pelo dialogismo metafórico que usa Geni no lugar
do PT. Há um dialogismo religioso que oferece um lugar de víti-
ma ao PT e o coloca como maldito. E há ainda um tom de ironia
- “Maldita Geni” – que, de maneira figurativa, traz um teor de
“coitado do PT... fez tanto pela população e agora está na posi-
ção de réu”.
Também podemos perceber um tom de sarcasmo na pos-
tagem 4, na qual o aluno afirma: “Também concordo a mídia
esconde muitos acontecimentos, distorce como é uma grande

46
ferramenta de informação também pode ser uma ferramen-
ta de ‘cabresto’”. Notemos que, neste texto, o autor estabelece
uma relação de interação direta com os comentaristas anterio-
res, numa atitude responsiva marcada ao afirmar: “Também
concordo...”. Sua argumentação é realizada a partir da confir-
mação da opinião de outrem. Além disso, ao utilizar a palavra
“cabresto”, o aluno deixa clara a sua posição ideológica sobre
política: certamente a de que nós, enquanto sociedade, perce-
bemos a política como troca de favores.
A escolha desse termo dialoga diretamente com o termo
“coleira”, utilizado por Chico Buarque. Afinal, “cabresto” e “co-
leira” são usados por animais diferentes, mas para a mesma fi-
nalidade: controle. Dessa forma, podemos dizer, também, que
esses textos dialogam numa relação de troca de vozes numa ati-
vidade de produção. Tais observações constroem e comprovam
que há uma rede dialógica que se forma ao estarmos em condi-
ção de interação.

Palavras finais

Situado numa perspectiva dialógico-discursiva, oriunda


dos estudos do Círculo de Bakhtin, este artigo empreendeu
uma investigação sobre a constituição de vozes dialógicas na
produção de gêneros escritos no universo escolar, mais preci-
samente comentários de blog.
Apesar de considerarmos o blog um gênero discursivo, so-
mos conscientes de que ele pode, a depender do contexto em
questão, funcionar como suporte de divulgação de outros gêne-
ros. Sendo assim, ele funcionou no sentido de proporcionar aos
alunos uma oportunidade de desenvolver suas competências
de leitura escrita em um evento real de produção, haja vista que
eles podiam expressar sua opinião, enquanto cidadãos sociais,
sobretudo a partir da produção de comentários no blog, como
também, mais adiante, produzindo artigos de opinião. Bakhtin
afirmava que “qualquer conversa é repleta de transmissões e in-

47
terpretações das palavras dos outros, ou seja, novas consciên-
cias que participam da comunicação e interagem”. Logo, “co-
municar-se com as consciências só é possível dialogicamente”.
Nossos dados revelam exatamente isso. Diante dos textos
motivadores propostos por nós, pesquisadoras, os alunos pen-
savam sobre o discurso e conversavam com o texto para estabe-
lecer sentido entre os enunciados e, finalmente, produzir seus
textos. Podemos confirmar que essa posição axiológica preten-
dida pelos alunos ocorreu por meio de processos responsivos
que ocorriam a partir da interação de vozes dialógicas marca-
das e/ou veladas que ofereciam um tom valorativo motivado
por um dialogismo bíblico, metafórico e/ ou irônico, que cons-
tituem a rede dialógica de conhecimento.
Vimos alunos de Ensino Médio se posicionando de forma
crítica a partir de atos responsáveis que mobilizavam vozes que
emanavam das mais diversas esferas e geravam tons valorati-
vos com base em processos dialógicos diversos.
No que diz respeito ao professor – pesquisador, acredita-
mos que essa foi uma excelente oportunidade de elaborar prá-
ticas discursivas que compõem um Plano Didático Dialógico, e
colocá-las em prática a fim de desenvolver métodos de ensino
de língua funcionais, ajudar a comunidade estudantil de nos-
sa cidade e também aperfeiçoar nossa performance enquanto
professoras.

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49
50
A SOCIOLINGUÍSTICA
INTERACIONAL E A TEORIA
BAKHTINIANA: UM DIALÓGO
POSSÍVEL PARA PENSAR
A SALA DE AULA

Luciene Maria Patriota

51
52
N
os debates sobre o estudo da linguagem, o conceito de
interação está presente desde as primeiras décadas do
século XX. No Brasil, esse conceito nos chega através de
nomes como Gardier, na Filosofia; Shütz, na Sociologia; Read,
Vygotsky e Piaget, na Psicologia; na Linguística, ele está pre-
sente desde a década de 20, com as contribuições de Bakhtin e
seu Círculo (1922). Seu campo de estudo, portanto, é bastante
variado e sua definição vai desde a Sociologia, passando pela
Análise da Conversação, Sociolinguística Interacional, a Etno-
grafia, até a Teoria Bakhtiniana.
Sendo assim, falar de sala de aula e de Bakhtin leva,
indiscutivelmente, a pensar em interação, em língua como
um meio essencialmente voltado para a troca de experiências.
E relacionar esse autor com o ambiente escolar torna-se algo
perfeitamente possível. E isso através de conceitos oriundos
também da Sociolinguística Interacional revela-se um diálogo
possível e muito profícuo para entendermos nossas relações
com e neste auditório social.
O primeiro ponto onde essas duas teorias se encontram é
no conceito de interação. Para isso, faz-se necessário tomar a
sala de aula como um ambiente no qual se pode estabelecer
a chamada “dinâmica da interação” (BRAIT, 1995). Afinal,
conscientes ou não, os interactantes deste ambiente operam,
em qualquer situação de interação, segundo preocupações
básicas:
1) quem é o outro a que o projeto de fala se dirige?
2) quais são as intenções do falante com a sua fala, com a
maneira de organizar as sequências dessa fala?
3) que estratégias utilizar para se fazer compreender, com-

53
preender o outro e encaminhar a conversa de forma mais ade-
quada?
4) como levar o outro a cooperar no processo?
Pensando na sala de aula, essa dinâmica ocorre no momen-
to em que professores e alunos, visando ao bom andamento da
aula e a aprendizagem dos conteúdos, estabelecem verdadeiras
negociações em busca do desenrolar favorável da interação.
Isso se revela nas brincadeiras, na linguagem usada, que pode
perfeitamente sair da formalidade como condição de um atin-
gir o outro, retornando ao formal no momento propício. Enfim,
é a mobilização de mecanismos vários que permitem a melhor
interação possível.
Como, portanto, essa dinâmica ocorre na sala de aula?
Inicialmente, é importante ressaltar que a escola é, em síntese,
a instituição social politicamente responsável pela transmissão
de saberes institucionalizados historicamente pela sociedade.
Nela, professores e alunos, através da linguagem, constroem
o conhecimento e dão sentido ao mundo que os cerca. É na
sociedade que o individual e o social se articulam, levando os
sujeitos a um permanente processo de negociação através do
discurso (SILVA, 2002).
Faz-se necessário, dessa forma, conceber as salas de aula
como ambientes propícios à interação. Tradicionalmente, salas
de aula são ambientes aparentemente similares. Apresentam
uma organização física constituída de um local no qual são
distribuídas carteiras, em geral enfileiradas (para garantir a
ordem!), com um quadro-negro no centro da parede central, um
birô disponível para o professor, janelas, portas. Enfim, iguais
em qualquer lugar no qual forem observadas. Completando o
quadro, encontram-se, nesse ambiente, cerca de, no mínimo,
30-40 alunos, atendidos por um só professor (ERICKSON, 2001;
MORAIS, 1988).
Porém, como ressalta Erickson, essa “aparente similaridade”
é enganadora, pois o que de fato ocorre em uma sala de aula,
difere, e muito, de uma sala para outra. São várias as nuances

54
que provocam essas diferenças e a interação ocorrida entre
os participantes desse ambiente varia tanto entre eles, como
também na maneira como interagem com os materiais
educacionais.
Pode-se observar esse fato na própria dinâmica da sala de
aula. Enquanto em uma situação o professor apenas expõe o
conteúdo e os alunos o recebem, noutra a dinâmica da interação
pode ser a do diálogo, da troca entre professor e aluno. As
reações dos alunos também podem variar da boa aceitação
para receber os conteúdos ministrados pelo professor, como
pode ser de recusa. Revelando nessa dinâmica o conceito de
Footing “o alinhamento, a postura dos participantes em uma
dada situação interacional” (OLIVEIRA; PEREIRA, 2016, p. 112).
Conceito este tão caro para a Sociolinguística Interacioanal.
Ressalte-se, ainda, que esta variação também atinge o nível
da aprendizagem. Enquanto uns se apropriam com facilidade
dos conteúdos, outros apresentam dificuldades em graus
bastante variáveis e, querendo ou não, toda esta dinâmica passa
pela interação. Ainda segundo Erickon (2001, p. 12),

[...] a linguagem e o discurso do cotidiano da sala de aula


são um meio importante para essa interação. Práticas dis-
cursivas diferentes, aparentemente, oferecem aos alunos
diferentes situações de envolvimento com a aprendizagem
como também fazem a diferença na prática pedagógica.

Diante disso, faz-se necessário observar quais são os papéis


atribuídos aos interactantes da sala de aula e como esses papéis
funcionam na prática pedagógica. Inicialmente, a tradição
escolar apresenta como envolvidos diretos da interação na
sala de aula o professor e o aluno. Ambos têm papéis sociais
bem específicos e definidos a partir de normas sócio-culturais
estabelecidas na tradição, daí serem, perfeitamente, assimilados
pela sociedade (SILVA, 2002; CAJAL, 2001; DETTONI, 1995;
DELAMONT, 1987).

55
Segundo esses autores, o professor é aquele que, na sala de
aula, é o responsável pela transmissão dos conhecimentos, do
saber. De acordo com o senso comum, ele é a autoridade má-
xima da sala de aula, estipulando ordens, dando informações,
enfim, comandando a turma. Ele é o que tem o saber e está
na instituição escolar para transmiti-lo. A própria escola dota-o
deste poder.
A partir daí, algumas características passam a marcar o pa-
pel desse profissional em sala de aula: duas delas são os concei-
tos de proximidade (ou imediação) e autonomia do professor.
Segundo Delamont (1987), a proximidade é o que faz com que
a maioria das decisões do professor tenham de ser tomadas de
imediato, é a urgência do aqui-e-agora. Há pouco tempo para
refletir e nenhum para trocar opiniões. Vemos aqui claramen-
te o conceito de Enquadre, “a organização da experiência que
os indivíduos têm em qualquer momento da sua vida social”
(OLIVEIRA; PEREIRA, 2016, p. 112). São esses enquadres que
revelam as escolhas linguísticas para cada interação e dão um
caráter concreto ao Footing.
Em consequência dessa proximidade, tem-se a autonomia
do professor, ele está só e domina a situação, sendo assim tem
poder ou autoridade para interferir sobre muitos aspectos da
vida do aluno, sendo o domínio do saber o maior desses pode-
res.
Além desses aspectos, Delamont afirma, ainda, que o pro-
fessor tem, também, poder sobre vários outros aspectos da vida
do aluno: o que ele vai aprender, seu comportamento em sala
e, até mesmo, o que vai falar. Um papel, portanto, difuso que se
desdobra em vários outros papéis.
O aluno, por sua vez, é aquele que supostamente não tem o
saber e vai para a escola adquiri-lo. O senso comum o vê como
aquele que deve, obedientemente, acatar e respeitar os coman-
dos do professor, aprender o que está sendo transmitido, apre-
sentando um bom comportamento, esperado pelo professor e
pela própria sociedade. Nas palavras de Dettoni (1995, p.19), “o

56
conjunto de direitos e deveres socialmente legitimado e reco-
nhecido para o aluno resume-se em seguir o comando do pro-
fessor, compreender as regras do jogo e acatá-las”.
De acordo com as ideias de Delamont (1987), o aluno
também exerce, no contexto escolar, um papel oposto ao do
professor no que se refere à noção de poder. Enquanto o papel
do professor é o de um domínio social e culturalmente aceito –
legítimo, no caso –, o do aluno será um papel de subserviência.
Qualquer poder exercido pelo aluno será socialmente ilegítimo.
Nas palavras dessa autora (p. 120), “o papel tradicional do aluno
é um papel subserviente, no qual os deveres mais importantes
consistem em seguir a orientação dada pelo professor”.
Em síntese, para ser considerado um bom aluno, ele
necessita apreender as regras próprias da cultura escolar.
Aprendê-las e segui-las serão pré-requisito indispensável caso o
aluno queira conduzir uma carreira de aprendiz bem sucedida.
Diante do exposto, percebe-se, portanto, que entre os
interactantes do processo interacional escolar é estabelecida
uma relação clara de assimetria – situação na qual “um dos
envolvidos na interação detém o poder da palavra e a distribui
de acordo com sua vontade” (KOCH, 2004, p. 80).
Por isso, nem sempre há um envolvimento total do aluno
no processo de aprendizagem. Como mostra Silva (2002, p.
181), “os relacionamentos podem ser marcados, de um lado,
por momentos de realizações, satisfação pessoal, e, de outro,
por oposições, conflitos e mal entendidos”.
No entanto, apesar de os papéis serem distintos, os direitos
e deveres divergirem, a relação ser, a princípio, assimétrica,
isso não significa que a interação não é possível no meio
escolar. Ainda de acordo com Silva (2002), em todo processo
de interação há a possibilidade de ajustes entre as motivações
individuais, coletivas e institucionais.
A linguagem, principal ferramenta dessa interação que
ocorre no meio escolar, é uma “forma de ação que coloca em
jogo diversas maneiras de compreensão que precisam ser

57
negociadas” (SILVA, 2002, p. 182). Isso quer dizer que, em sala
de aula, professores e alunos, mesmo ocupando lugares e
posições opostas, estão sempre se influenciando mutuamente,
em um jogo bem descrito por Cajal (2001, p. 128) quando diz
que:

[...] na sala de aula, alunos e professores constroem uma


dinâmica própria, marcada pelo conjunto das ações do
professor, pelas reações dos alunos às reações do professor,
pelo conjunto das ações dos alunos, das reações do professor
às ações e reações dos alunos, pelo conjunto das ações
e reações dos alunos entre si, cada um interpretando e
reinterpretando os atos próprios e os dos outros.

Isso quer dizer que, ao interagirem, os interactantes


envolvidos na situação de sala de aula utilizam seus
conhecimentos prévios sobre o evento do qual estão
participando, como forma de saberem se comportar e agir
respeitando sistemas de práticas, convenções e regras que
possibilitam o fluxo da interação. É no interior de toda essa
dinâmica, nesse contexto de constante interação que é a
sala de aula, que podemos vislumbrar Bakhtin e muitos
conceitos defendidos por ele dialogando com a sociolinguística
interacional, aqui representada pelos conceitos de Footing,
Enquadre e Pistas de Contextualização..
Primeiramente, toda teoria bakhtiniana e também a
sociolinguística interacinal (RIBEIRO; GARCEZ, 2002) baseiam-
se na concepção de língua como interação. Na obra “Marxismo
e Filosofia da Linguagem” ([1929]1995, p. 127), isso se revela
através dos seguintes posionamentos:
1- A língua como sistema estável de formas normativamente
idênticas é apenas uma abstração científica que não dá conta
de maneira adequada da realidade concreta da língua;
2- A língua constitui um processo de evolução ininterrupto;
3- As leis da evolução linguística são essencialmente leis

58
sociológicas;
4- A criatividade da língua não pode ser compreendida
independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que a
ela se ligam; e
5- A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente
social.
Isto é, “prender” a língua em uma teia de regras pré-
definidas é algo inconcebível, uma vez que ela, segundo Bakhtin,
está intimamente relacionada ao social, sendo esse processo
constante, visto que o mundo e a sociedade em si evoluem
ininterruptamente. Isolar a língua de todo esse movimento
é criar uma abstração que não condiz com as necessidades
dos falantes que se revelam no componente social, político
e ideológico de cada um. De acordo com as proposições
apresentadas por esse autor, é impossível compreender a língua
independente dos falantes que a usam e da estrutura social
na qual ela se manifesta. É o que vemos também em Oliveira
e Pereira (2016, p. 111) quando dizem que “a preocupação de
estudiosos com a linguagem em uso na vida cotidiana trouxe a
vez do social e da interacão”.
Em síntese, o caráter interativo da linguagem é a base de
todos os conceitos defendidos por Bakhtin e também pela
Sociolinguística Interacional e não possibilita, sequer, tentar
compreender a língua fora dessa natureza sócio-histórica, uma
vez que para Bakhtin; Volochínov ([1929]1985, p. 124): “a língua
vive e evolui na comunicação verbal concreta, não no sistema
linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo
individual dos falantes”.
Diante dessa realidade interativa e enunciativa, o diálogo
tem, para essas duas teorias, lugar essencial. Não diálogo em
sua concepção geral de duas pessoas face a face, trocando
turnos, mas diálogo como um processo de interação ativa, tanto
de um quanto de outro, sem o qual a interação não acontece.
É o diálogo, portanto, que sustenta a base da concepção de
linguagem de Bakhtin: a interação verbal, uma vez que para ele

59
([1929]1985:123):

A verdadeira substância da língua não é constituída por um


sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação
monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua
produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação ou das enunciações. A
interação verbal constitui assim a realidade fundamental da
língua.

Na concepção de Bakhtin, diálogo é uma espécie de encontro


entre vozes, pois toda e qualquer enunciação só é compreendida
em sua totalidade na relação com outras enunciações, são elos,
plenos de ecos e vozes, que se encontram em um dado espaço
e tempo sócio-históricos. Nenhuma enunciação, portanto, é
isolada, mas se encontra “amarrada” no interior da cadeia da
interação verbal e social. Cadeia esta aqui representada pela
dinâmica interacional da sala de aula mostrada anteriormente.
O princípio dialógico de Bakhtin parte, portanto, de acordo
com Barros (2005, p. 29), dos seguintes aspectos básicos:
a) A interação entre interlocutores é o princípio fundador
da linguagem;
b) O sentido do texto e das palavras depende da relação
entre sujeitos;
c) A intersubjetividade é anterior à subjetividade, pois os
sujeitos estão em constante construção; e
d) Os sujeitos se relacionam a partir de dois tipos de
sociabilidade: entre os interlocutores que interagem e entre
sujeitos e sociedade.
Isto quer dizer que a linguagem existe não apenas para
garantir a comunicação em si, mas para que os falantes possam
interagir entre si, daí todos os sentidos, tanto do texto quanto da
palavra, serem interdependentes dessa relação intersubjetiva –
falante/linguagem/sociedade.
Vem daí a importância essencial do social para a teoria

60
enunciativa bakhtiniana e para a sociolinguística interacional,
uma vez que qualquer que seja a manifestação da enunciação
ela será condicionada basicamente pela situação social imediata
na qual se concretizar. Isso quer dizer que a enunciação é a
manifestação de dois indivíduos socialmente situados no que
Bakhtin/Volochínov ([1929]1985) chamou de auditório social e
no que a sociolinguistica interacional chama de comunidade de
fala. É nesse auditório que falantes, mutuamente, “constroem
suas deduções interiores, suas motivações, apreciações etc”
(p.113).
É a situação na qual ela se concretiza que lhe dá forma,
manifestando-se de uma maneira e não de outra: exigindo,
solicitando, afirmando, exigindo direitos, realizando preces,
usando um estilo rebuscado ou simples, com segurança ou
timidez. Revelando os alinhamentos da fala e os enquadres
nos quais esses alinhamentos se manifestam concretamente.
Nas palavras de Bakhtin/Volochínov ([1929]1985, p.114), “a
situação e os participantes mais imediatos determinam a forma
e o estilo ocasionais da enunciação”. Aqui vemos as Pistas de
Contextualização, muitas delas são usadas irrefletidamente,
mas sinalizam qual atividade está ocorrendo, em um dado
auditório social.
Pensando esses conceitos na sala de aula, pode-se perceber o
jogo dialógico da linguagem na própria relação professor/aluno.
Ambos têm, como já se viu, seus papéis pré-determinados na e
pela sociedade, seus discursos são previamente estabelecidos.
No entanto, ao encontrarem-se na sala de aula – auditório
social comum aos dois – as circunstâncias e nuances próprias
da realidade escolar muitas vezes forçam, e até mesmo
exigem, a justaposição desses discursos, desses falares, um
adaptando-se ao outro em prol do andamento propício daquela
situação comunicativa. É um encontro de vozes “potenciais e
intercambiáveis” (MACHADO, 2005, p. 157). Citando Dahlet
(2005, p. 57): “Quando falamos, não estamos agindo sós. Todo
locutor deve incluir em seu projeto de ação uma previsão

61
possível de seu interlocutor e adaptar constantemente seus
meios às reações percebidas do outro”.
Mais uma vez nos reportando à sala de aula, uma relação
que a princípio é tida como assimétrica, a do professor/aluno,
encontra na palavra o espaço propício para trocas. O outro – no
caso dessa relação, o aluno – abre espaço para que o professor
interponha sua voz à do aluno, saindo, muitas vezes, de seu
lugar pré-determinado socialmente, para encontrar-se com o
mundo do seu interlocutor direto. E é a palavra que permite
essa troca, esse encontro de vozes.
É a palavra – sempre vista como uma moeda de duas faces
– que se constitui como o produto da interação. As duas faces
representam, justamente, a capacidade de a palavra estar entre
um e outro no processo dialógico. É a ponte entre um lado e o
outro da enunciação. No dizer de Costa (1997, p. 124), “a palavra
se concretiza como signo ideológico, que sofre transformações
e adquire novos/diferentes significados, conforme o contexto
em que ela é usada”. Pode-se dizer que a palavra é o fio condutor
comum que une/liga locutor e interlocutor, sendo capaz de
manifestar toda e qualquer mudança social.

Palavras finais

Em suma, de acordo com Bakhtin/Voloshínov ([1929]1985,


p. 41),

[...] a palavra penetra literalmente em todas as relações


entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base
ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas
relações de caráter político etc. As palavras são tecidas a
partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de
trama a todas as relações sociais em todos os domínios.

E esta palavra encontra-se, de igual modo, na escola, nos


estilos usados em sala de aula por alunos e professores, poden-

62
do manifestar-se das mais variadas formas, nos mais variados
enquadres: rebuscadas, formais, informais, bruscas, suaves,
grosseiras, simpáticas, enfim, obedecendo a todas as nuances
próprias do ambiente escolar, revelando as mais variadas emo-
ções que se vive nesse local por seus principais protagonistas
– professor/aluno.
Sendo assim, tendo por base a teoria dialógica de Bakhtin
e também alguns conceitos oriundos da Sociolinguística Inte-
racional, a linguagem como discurso e enunciação e, portanto,
como interação, não é apenas um instrumento de comunicação
ou representação do pensamento. Ela é, antes de tudo, intera-
ção verbal, um modo de produção social. Não é neutra – nem o
poderia ser, visto ser histórica –, mas um lugar privilegiado de
manifestação, de conflito, de trocas, de diálogo, de vozes que se
entrecruzam, cujo estudo não pode ser desvinculado das suas
reais e efetivas condições de produção e é assim que se realiza,
também, em sala de aula.

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64
AUTORIA EM SERMÃO RELIGIOSO:
UM ESTUDO DIALÓGICO-DISCURSIVO

Michel Pratini Bernardo da Silva

65
66
N
este capítulo, apresentaremos investigações desenvolvi-
das no âmbito do Grupo de Pesquisa em Linguagem, Enun-
ciação e Interação – GPLEI/UFPB, especialmente durante
a elaboração da pesquisa de mestrado de Silva (2017). No estu-
do, considerando a dimensão dialógica da linguagem postulada
no pensamento de Bakhtin e o Círculo, analisamos a constitui-
ção da autoria no sermão religioso Sem fé é Impossível agradar a
Deus1, de Ed. René Kivitz, pastor da Igreja Batista de Água Bran-
ca – IBAB, em São Paulo. Para isso, descrevemos, analisamos e
interpretamos mecanismos linguísticos, enunciativos e discur-
sivos que revelaram autoria no sermão supracitado.
Convém ressaltar que o sermão selecionado vincula-se à
linha teológica reformada, um segmento religioso que surgiu da
Reforma Protestante no século XVI e vem sendo representado
na atualidade por igrejas cristãs luteranas, presbiterianas,
congregacionais, batistas e metodistas. Encabeçado por
Martinho Lutero, o movimento tinha por finalidade “recuperar”
a doutrina da igreja católica que, na ótica dos reformadores,
havia se desviado dos princípios do evangelho cristão.
De acordo com Proença (SD p.3)2, o teólogo afixou 95
teses na porta da igreja de Wittemberg, na Alemanha, que
apontavam desvios teológicos, doutrinários e institucionais
cometidos pela igreja católica. Vale ressaltar que optamos por
essa vertente religiosa porque já existem trabalhos, no âmbito
do grupo de pesquisa citado, acerca da autoria em outras
perspectivas teológicas, a saber, o estudo de Silva (2015), que

1
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=by1ptczsM3E. Acesso em: Janeiro
2016.
2
SD- Sem data

67
investiga o fenômeno a partir de instituições que têm por base
o neopentecostalismo3.
Conforme exposto, a pesquisa teve como pano de fundo a
Teoria Dialógica da Linguagem. O corpus de análise foi coletado
no site Youtube, em julho de 2015. Após esse procedimento,
realizamos a transcrição dos dados de acordo com as regras
do Projeto Norma Urbana Culta – NURC/Recife e, em seguida,
procedemos à descrição, à análise e à interpretação do sermão.
Dado o exposto, faremos a exposição do estudo, abordando,
inicialmente, aspectos teóricos que fundamentam nossa
concepção de autoria e, seguidamente, apresentaremos a
leitura dos dados.

Autoria na Teoria Dialógica da Linguagem

A língua é um fenômeno social que resulta do processo de


interação discursiva entre os interlocutores que participam
de práticas efetivas de usos da linguagem. Nas palavras de
Volóchinov, “ela movimenta-se ininterruptamente, seguindo em
seu desenvolvimento a vida social. Esse movimento progressivo
da língua realiza-se no processo da comunicação do homem
com o homem, comunicação esta que não é só produtiva, mas
também discursiva” (VOLOCHÍNOV, [1930] 2019, p. 267).
Em virtude disso, a língua não se constitui um conjunto de
regras petrificadas, nem tampouco é resultado do psiquismo
idealista do sujeito. Nesse sentido,

3
O neopentecostalismo é um movimento religioso cristão protestante que surgiu na déca-
da de 1970 no Brasil. Ramificação do Pentecostalismo Clássico (movimento que tem como
ênfase a relação direta e pessoal com a divindade do cristianismo através do batismo com
o Espírito Santo, uma das manifestações divinas que forma a trindade, princípio defendi-
do pelo cristianismo), esse movimento é ligado à teologia da prosperidade, uma vez que
surge como alternativa com propostas de soluções mais rápidas mediadas por fenômenos
sobrenaturais. O neopentecostalismo defende que o fiel vive em constante abundância,
bem como que a figura do “Diabo”, personagem bíblico cristão, é o culpado por toda mi-
séria, enfermidade etc. Para saber mais, consultar: http://www.ufjf.br/graduacaocien-
ciassociais/files/2010/11/ASPECTOS-DO-NEOPENTECOSTALISMO-NA-IGREJA-MUNDIAL-
-DO-PODER-DE-DEUS-Aron-%C3%89dson-Nogueira-Giffoni-Barbosa.pdf.

68
A verdadeira substância da língua não é constituída por um
sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação
monológica isolada, nem pelo ato psico-fisiológico de sua
produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação ou das enunciações. A
interação verbal constitui assim a realidade fundamental da
língua. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2009, p. 127).

Conforme observamos, a língua é viva e dinâmica; é,


portanto, parte da nossa realidade social. Nessa perspectiva,
ela se realiza na forma de enunciados concretos, unidades
reais de comunicação discursiva, que se materializam nos
diversos campos de atividade discursiva. Cada enunciado
é, iminentemente, dialógico, ou seja, estabelece relações
de sentido entre si, uma vez que o dialogismo é o modo de
funcionamento real da linguagem. Nenhuma unidade real
de comunicação discursiva é plena, acabada ou completa;
ao contrário, é, apenas, um momento, “uma gota no fluxo da
comunicação discursiva” (VOLÓCHINOV [1930] 2019, p. 267).
Segundo Bakhtin,

Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites


para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem
limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do passa-
do, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, podem
jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por
todas); eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo
de desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo. (BAKH-
TIN, 2016, p. 410).

Assim sendo, nenhum enunciado é autônomo ou acabado;


ele é, na verdade, uma réplica, uma resposta responsiva ativa
do sujeito sobre um dado objeto do discurso. Nessa visão, uma
unidade real de comunicação discursiva se constitui um elo da
complexa e organizada cadeia de enunciados (BAKHTIN, 2016).

69
É indispensável também ressaltarmos que todo enunciado
apresenta um autor, aquele que assume, responsável e
responsivamente, sua autoria. Segundo Faraco (2009, p. 94), a
partir das considerações que Bakhtin realizou em O autor e a
personagem na atividade estética (1924), o autor é uma posição
axiológica, um modo particular de ver o mundo, um princípio
ativo que guia o estético, direcionando o olhar do leitor. É
importante destacarmos que, embora as considerações de
Bakhtin se estendam ao discurso estético, elas também podem
compreender o discurso ético, o discurso do cotidiano da vida.
Para Sobral (2012, p. 130), esse é um ponto importante na obra
do autor: a possibilidade dos apontamentos formulados para o
texto literário abrangerem outros discursos da esfera cotidiana.
Dessa forma, levando em consideração a definição de autor
exposta acima, as reflexões filosóficas de Bakhtin e o Círculo
e o sermão Sem fé é impossível agradar a Deus, Silva (2017)
desenvolveu, em sua dissertação de mestrado, uma noção de
autoria que compreendeu dois princípios, cada um com suas
categorias de análise. Abaixo, apresentaremos a proposta.
1º: Princípio do discurso de outrem – D.O. Os nossos enunciados,
unidades de comunicação discursiva, são atravessados por
discursos de outrem, com os quais estabelecemos relações
de sentido diversas. Segundo Bakhtin (1993), todo discurso
concreto encontra o objeto para o qual está voltado penetrado
de ideias gerais, pontos de vista, discursos alheios. Nesse meio
saturado, ele dialoga com uns, contesta outros, isto é, estabelece
relações diversas de sentidos. Nesse viés, a autoria se estabelece
por uma categoria que designamos de formas de enquadramento
do discurso de outrem – D.O.
Para Bakhtin (2003), embora a palavra de outrem traga con-
sigo sua expressão, nós a assimilamos, reelaboramos e reacentua-
mos mediante nossa intenção, em um determinado momento
enunciativo. Dessa forma, a depender da intenção discursiva
que temos ao produzir um enunciado, podemos transformar o
discurso mais cômico ou alegre em algo profundamente agres-

70
sivo ou triste. Isso é possível devido à forma como enquadra-
mos o discurso de outrem.
2º: Princípio do endereçamento do enunciado concreto. Uma
das características do enunciado concreto é sua orientação
social. Toda unidade de comunicação discursiva apresenta um
destinatário. Conforme Volochínov (2019), esse destinatário
pode ser o participante-interlocutor direto do diálogo,
uma coletividade de especialistas de um campo especial da
comunicação cultural, um povo, um chefe, correligionários
ou, até mesmo, um outro totalmente indefinido. Dessa relação
entre autor e destinatário depende a composição e o estilo do
enunciado, uma vez que, ao falar, sempre levo em consideração
o campo aperceptivo da percepção do meu discurso pelo
destinatário.
Em função disso, nesse princípio, a autoria se revela a
partir das seguintes categorias: (i) as escolhas lexicais – o autor
faz as escolhas lexicais, durante a produção do seu enunciado,
levando em consideração o seu destinatário. Na enunciação,
pensamos “(...) até que ponto ele (o nosso destinatário) está a
par da situação, dispõe dos conhecimentos especiais de um
dado campo cultural da comunicação (...)” (BAKHTIN, 2016,
p. 63). Nesse sentido, levamos em conta suas convicções,
concepções, simpatias, antipatias e preconceitos (do meu ponto
de vista), para, em seguida, realizarmos as escolhas lexicais do
enunciado. (ii) a tonalidade dialógica – para Bakhtin, os nossos
enunciados apresentam tonalidades dialógicas que veiculam
a expressividade do autor. Esse colorido todo especial das
unidades reais de comunicação discursivas só é possível devido
à relação do autor com interlocutor do enunciado, bem como
da relação do autor com o seu próprio objeto do discurso.
Em face da proposta exposta acima, a partir desse momento,
observaremos como essas categorias analíticas se revelaram
no sermão expositivo Sem fé é impossível agradar a Deus, de Ed.
René Kivitz, pastor da Igreja Evangélica Batista de Água Branca,
em São Paulo – SP.

71
Autoria no sermão religioso Sem fé é impossível agradar a Deus

O sermão Sem fé é impossível agradar a Deus, de autoria de


Ed René Kivitz, foi ministrado entre 26 e 28 de junho de 2009,
no Congresso do Instituto Haggai, em Águas de Lindoia, São
Paulo. O Haggai é uma entidade cristã, fundada em 1969 por
John Edmund Haggai, cujo objetivo é o desenvolvimento de
lideranças pastorais cristãs.
O enunciado é endereçado aos diversos líderes religiosos
que conduzem comunidades cristãs protestantes em todo país.
Dessa forma, encontramos, na cena enunciativa, um pregador-
formador falando para líderes religiosos que participam de um
congresso para o aperfeiçoamento da liderança pastoral. Cabe
ressaltar ainda que o sermão apresenta a seguinte estrutura
composicional: saudação inicial, leitura bíblica, introdução,
desenvolvimento (apresentação dos pontos), aplicação e
conclusão.
O sermão tem como base o texto de Hebreus 11. 1- 4, livro
da Bíblia Sagrada que aborda a temática da fé, objeto de discurso
do autor-pregador. Na introdução, o sacerdote religioso afirma
que o texto referenciado não apresenta uma definição precisa,
o que gera margens para diversas formulações acerca da noção
de fé. Em seguida, apresenta conceitos de fé para o senso
comum, os quais descontrói, durante sua enunciação, para
construir o seu ponto de vista a partir do texto base do sermão.
Na introdução do enunciado, o autor, autor-pregador, dirige-se
ao seu auditório social e enuncia:

E também é constrangedor estar aqui depois de tudo quanto


Deus já nos deu hoje à noite já conosco falou... mas pela fé
vejo o invisível (risos do preletor e da plateia)... e imagino
creio que o Senhor pode e ainda quer falar conosco... pela
fé eu submeto os irmãos a esse sacrifício... pela fé tento
compreender esse mistério... (risos do preletor e da plateia).
(Grifo nosso)

72
No fragmento exposto, o pregador introduz o sermão con-
vocando discursos de outrem, a saber, as visões do movimen-
to pentecostal e neopentecostal acerca do objeto do discurso
em questão, o conceito de fé. Convém reiterarmos que, para
Bakhtin ([1895-1975] 1993, p. 86), o objeto de um discurso está
envolto por discursos de outrem, com os quais estabelecemos
diálogos nem sempre pacíficos. Assim, de forma sutil – mas ni-
tidamente clara para seu auditório social – o autor-pregador faz
alusão, com uma tonalidade irônica, aos pontos de vista ado-
tados pelos fiéis pentecostais e neopentecostais. Durante todo
sermão, ele trava um embate com tais vozes, que denomina de
“senso comum”, para que, em suas conclusões, possa estabele-
cer um conceito de acordo com o seu ponto de vista.
A tonalidade irônica do enunciado só é revelada a partir dos
risos do auditório social. Conforme Brait (2008), ao estudar a
ironia que leva em consideração a polifonia e a mobilização de
diferentes vozes, a ironia, como uma estratégia argumentativa,
denuncia um ponto de vista e conta com a participação do
destinatário para concretizar-se como significação. Dessa forma,
compreendemos que o efeito irônico-cômico do fragmento
que apresentamos é bem-sucedido nesse contexto, uma vez
que, ao enunciar, o autor, de seu lugar, leva em consideração
o seu destinatário, ou seja, os conceitos, as ideologias e as
compreensões que o auditório social possui.
Destacamos também, no recorte exposto, a presença de
elementos estilísticos que marcam a autoria do pregador. Como
exemplo, verificamos o uso de palavras que, certamente, são
compreendidas pelo pregador e pelo auditório social como
inerentes ao pensar dos cristãos pentecostais e neopentecostais,
a saber, os termos: “mistério”, muitas vezes compreendido
como algo oculto e guardado por Deus desde a eternidade, e
“invisível”, entendido, às vezes, como as ações que ocorrem no
plano espiritual e que são inacessíveis ao homem. Observamos,
ainda, a presença dos verbos “vejo”, “submeto” e “tento”, todos
no presente do indicativo, que apontam para a concepção que

73
o autor-pregador e o auditório social têm sobre os sujeitos
que aderem ao cristianismo pentecostal e neopentecostal.
Conforme Martins,

O movimento pentecostal clássico se desenvolveu como


um grande agente de mudança social. Pessoas que viviam à
margem da sociedade, por meio do culto do pentecostalismo,
vieram experimentar a ação pneumatológica, anunciada pelo
movimento. Com isto, indivíduos sentiam-se empoderados,
tendo em vista a experiência do Batismo no Espírito Santo,
onde ocorria o êxtase espiritual. Este poder do Espírito
capacitava o marginalizado a vencer as diversidades da vida,
dando a ele a motivação para trabalhar em busca de suas
aspirações. (MARTINS, 2015, p. 03).

Como observamos na citação, o empoderamento do sujeito,


após o batismo pelo Espírito Santo, é algo muito comum entre
os fiéis pentecostais e neopentecostais. Dessa forma, o fiel
que compartilha desse momento ganha certo status, por isso,
lhe convém, por meio de “armas espirituais” como o jejum,
a oração, a consagração e as campanhas de oração, exercer
ações de poder, autorizar graças, chamar a existência coisas
etc. Essas escolhas verbais realizadas pelo autor contribuem
para a construção da crítica, com o tom irônico, a noção de
sujeito empoderado que, por meio da fé, alcança o que desejar
da divindade.
Após a introdução, o autor-pregador começa a desenvolver
o sermão, mostrando que muitos cristãos concebem a fé
como “a alavanca que move o braço de Deus”. Esse tipo de
compreensão, a seu ver, seria equivocada em virtude de 3
aspectos específicos: 1. conceber a fé como algo que move o braço
de Deus é uma prepotência, pois não podemos colocar Deus em
movimento; 2. conceber a fé como algo que move o braço de Deus
é pressupor a passividade da divindade; 3. conceber a fé como
algo que move o braço de Deus é acreditar que o nosso coração é

74
mais comprometido com a realidade do que o coração de Deus.
Dado a curta dimensão deste capítulo, elegemos apenas dois
fragmentos, sobre esses aspectos, para discorrer abaixo.
No primeiro aspecto, o autor afirma que conceber a fé como
algo que move o braço de Deus é uma prepotência, pois não podemos
colocar Deus em movimento. Vejamos:

Primeiro porque é de uma prepotência arrogância sem


precedentes... você imaginar que VOCÊ coloca Deus em
movimento... e que VOCÊ sabe o que Deus tem que fazer...e
que VOCÊ vai dizer a Deus qual a melhor saída... qual a
melhor alternativa para que o nome dele seja glorificado
nas suas circunstâncias... “Deus... minha filha está doente... o
Senhor tem que ir lá na minha casa impor as mãos para que ela
seja curada”... eu acho de uma sabedoria... para não dizer de
uma ironia porque eu não consigo atrelar essa característica
ao Senhor Jesus, mas é quase... que ele cura de costas a
caminho da casa de Jairo... ora eu não preciso ir na sua casa...
eu não preciso impor as mãos você deu o jeito você deu a
receita para Deus você tá pensando que você é quem? (Grifo
nosso).

No fragmento, observamos algumas escolhas lexicais bas-


tante significativas realizadas pelo autor-pregador. Inicialmen-
te, verificamos os termos “prepotência” e “arrogância” que cor-
respondem à apreciação valorativa que o autor faz em relação
aos que concebem a fé como a alavanca que move as mãos de
Deus. Nesse sentido, os que compreendem fé dessa maneira
são considerados, pela instância autoral, pessoas soberbas e
altivas, uma vez que acreditam que podem conseguir o que de-
sejar da divindade.
Constatamos também a recorrência, em um tom mais
enfático, do pronome de tratamento “você”, que, ao mesmo
tempo em que se refere ao interlocutor imediato da enunciação,
convocando-o para uma reflexão, critica os fiéis que concebem

75
que, por meio da fé, colocam Deus em movimento. A expressão
“você” aparece impregnada, no enunciado, de uma tonalidade
valorativa de repreensão. O autor-pregador, nesse momento,
afasta-se um pouco da ironia para censurar, de forma
contundente e sem humor, o pensamento dos fiéis pentecostais
e neopentecostais sobre a fé.
Além das marcas lexicais, verificamos no enunciado
duas simulações de vozes. Na primeira, encontramos um fiel
que dá instruções à divindade acerca do que pode ser feito
para curar sua filha, provavelmente durante um momento de
oração. Na segunda, observamos, de forma indireta e quase
imperceptível, a voz de Deus respondendo ao fiel, encenando,
assim, um diálogo entre a divindade e o fiel. Ainda com um tom
exasperado, constatamos, a partir desses recursos discursivos
mobilizados, que o autor prossegue criticando o conceito de fé
que pressupõe a passividade de Deus e o coloca a serviço do fiel.
Cabe ainda ressaltar que, durante a inserção das simulações,
o autor aborda, brevemente, um discurso bíblico: a narrativa
da cura da filha de Jairo, passagem encontrada no Evangelho de
Lucas, capítulo 8. O discurso é evocado para ressaltar o poder
e a soberania do deus do cristianismo em relação ao fiel. A
instância autoral, então, evidencia superioridade da divindade,
deixando claro que Deus não precisa de coordenadas humanas
para realizar ações que sejam para a sua própria glória.
No fim do fragmento em análise, o autor-pregador, a partir
de simulações de vozes, apresenta uma possível interpretação
acerca das prisões de Paulo em suas viagens missionárias
a partir do ponto de vista do outro, isto é, da visão dos fiéis
pentecostais e neopentecostais. Dessa forma, ele sugere que,
para os religiosos dessas vertentes, as prisões de Paulo teriam
como justificativa a falta de oração, de intercessão, ou seja,
de pessoas que estivessem orando pela causa. Em seguida, o
autor-pregador se refere às prisões de Paulo de forma cômica,
gerando uma leitura engraçada a respeito do acontecimento:
“você sabe que o Paulo não gastava dinheiro com hotel (risos)...

76
chegava na cidade pregava era apedrejado e dormia na cadeia...
era viagem missionária barata... faltava interseção... faltava
interseção...”.
O termo “hotel”, utilizado pelo autor-pregador, refere às
estadias de Paulo nas prisões. Ao afirmar que o apóstolo não
gastava dinheiro com hotel, a instância autoral introduz uma
tonalidade cômica ao enunciado. Aqui, destacamos que, durante
grande parte do sermão, observamos a ironia e o humor cômico
como estratégias discursivas utilizadas pelo autor-pregador na
construção de seu enunciado. Contudo, é a primeira vez em que
ele aborda um fato especificamente bíblico de forma cômica,
provocando o riso do auditório social. O humor-cômico,
nesse trecho, quebra um pouco da formalidade religiosa, do
tom sério que existe em relação ao uso da palavra bíblica,
já que esta é considerada uma revelação divina, portanto,
algo eminentemente sagrado. Dessa forma, no enunciado,
constatamos que o sagrado e o cômico (considerado por séculos
transgressor e profano) se relacionam na enunciação. O autor,
então, deu um colorido ao enunciado, abordando o fato bíblico
de maneira divertida e engraçada, a fim de tornar o diálogo
com seus interlocutores o mais natural possível.
Outro fragmento que apresentaremos está no final do
terceiro aspecto apresentado pelo autor. Ao criticar mais uma
vez os religiosos pentecostais e neopentecostais, ele enuncia:

[...] nós temos que pedir com fé irmãos sem nada desse negócio
de tua vontade... tem que ser com fé pra Deus fazer o que a gente
quer e ver primeiro... imagina? ... Isso é um equívoco é um
equívoco que a bíblia sagrada chama de feitiçaria... isso é
manipulação de poder espiritual... isso é coisa de feiticeiro...
quem manipula poder espiritual é feiticeiro... então isso é uma
oração de feitiço... eu vou orar eu vou fazer uma oração forte
para você e você vai ver... estava naquela igreja lá... você
ficou desempregado quanto tempo? Oito meses?”... “vem
pra minha... aqui minha oração é forte... a gente fala e

77
Deus obedece” (risos do pregador e da plateia)... isso é mais
ou menos dizer assim... aqui a gente sabe manipular poder
espiritual INCLUSIVE o divino... (Grifo nosso).

No recorte acima, observamos que o autor-pregador apre-


senta simulações de vozes de líderes pentecostais e neopente-
costais para ressaltar que, nessas perspectivas, a fé é imaginar
convictamente aquilo que desejamos de Deus, é fazermos com
que Deus realize nossas vontades, conforme observamos na
escolha lexical “obedecer”, empregada, pelo autor, na seguinte
simulação: “estava naquela igreja lá... você ficou desempregado
quanto tempo? Oito meses?... vem pra minha aqui minha ora-
ção é forte... a gente fala e Deus obedece...”. Dessa forma, para
a instância autoral, é como se o sujeito manipulasse o divino.
Mais adiante, o autor-pregador considera esse tipo de
prática como um equívoco, o qual denomina de “feitiçaria”,
de “manipulação de poder espiritual”, de “oração de feitiço”.
Os termos utilizados para caracterizar as ações pentecostais
e neopentecostais são enunciados com uma tonalidade,
inteiramente, de desaprovação, de censura e de rejeição. O
tom proferido, de forma negativa, revela o desprezo do autor-
pregador em relação a esse tipo de interpretação. Na perspectiva
cristã, essa prática é considerada um pecado, uma rebelião
contra Deus. Dessa forma, não é permitido aos israelitas, povo
escolhido por Deus para habitar a terra prometida, procurar
feiticeiros.

Palavras finais

Este capítulo objetivou investigar a constituição da autoria


no sermão religioso Sem fé é impossível agradar a Deus, de Ed.
René Kivitz. A investigação mostrou que a autoria se revelou
a partir de dois princípios e suas, respectivas, categorias, a
saber: 1º O princípio do discurso de outrem O.D. representado
pela categoria As Formas de Enquadramento do DO; 2. O princípio

78
do Endereçamento do Enunciado Concreto, representado pelas
categorias As escolhas lexicais e a tonalidade dialógica.
No sermão, o pregador buscou, a partir do texto sagrado de
Hebreus 11, construir um conceito de fé, estabelecendo diálogo
com duas vozes: o pentecostalismo e o neopentecostalismo.
Sua intenção, ao convocá-las, era “reconstruir” o conceito de
fé a partir da visão dessas perspectivas do cristianismo. Entre
as principais escolhas estilístico-valorativas empregadas
pela instância autoral no sermão, estão os termos “submeto”,
“mistério” e “invisível”, que se referem a conceitos ideológicos
dos cristãos pentecostais e neopentecostais. Encontramos nos
enunciados tonalidades dialógicas de ironia. Constatamos,
também, a presença do termo “feitiçaria”, utilizado para criticar
as ações promovidas pelos líderes religiosos pentecostais e
neopentecostais, a exemplo, as orações de cura milagrosa e
instantânea.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Org., trad., posfácio e notas de Pau-


lo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34,
2016.
BÍBLIA Sagrada. [Traduzida em português por João Ferreira de Almeida,
revista e corrigida.] Ed. 1995. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.
BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica. 2. ed. Campinas: Editora
da Unicamp, 2008.
PROENÇA. Iara. A Reforma Protestante no século XVI: Processos, perso-
nagens e leituras. Disponível em: http://www.ftsa.edu.br/site/index.php/artigos/
331-a-reforma-protestante-do-seculo-xvi Acesso: Outubro de 2015.
VOLOCHÍNOV, M. N. A construção do enunciado. In: ______. A palavra na
vida e palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tra-
dução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo.
São Paulo: Editora 34, 2019.
______. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do

79
método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de
Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo.
São Paulo: Editora 34, 2017, 373p.

80
DIALOGISMO, ENUNCIADO E
ESTILO EM UMA ARENA DE
ENCONTROS DIALÓGICOS:
(RE)LENDO MARXISMO E
FILOSOFIA DA LINGUAGEM

Ana Karla Alves de Menezes


José Luciano Marculino Leal
Raniere Marques de Melo

81
82
E
sse ensaio tem como objetivo pôr em relevo conceitos
fundantes para a Análise Dialógica do Discurso (doravan-
te, ADD), a saber: a noção de dialogismo, a construção
do enunciado e o estilo. Nesse sentido, convocamos como texto
base para essa discussão Volóchinov (2017), como também ou-
tros textos1 que filiam-se a temática posta em evidência.
Cabe destacarmos que a noção de dialogismo resulta
de uma extensa diversidade de conceitos, para além dos
elencados nesse movimento teórico, que se tornaram lugares
comuns – heterogeneidade, responsividade, gêneros do
discurso, alteridade, plurilinguismo, polifonia, etc. – e que
transformaram o panorama dos estudos do discurso.
Dessa feita, façamos um breve itinerário acerca dos
princípios dialógico-discursivos propostos por Volóchinov, em
Marxismo e Filosofia da Linguagem (doravante, MFL), a partir
da tradução direta do russo publicada, no Brasil, em 2017, sob a
assinatura de tradução das professoras Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo.
Essa obra em destaque consiste em situar a natureza ideo-
lógica da linguagem, pensando na relação que há entre lingua-
gem e estruturas que organizam a vida em sociedade. Daí, a sua
relação com os estudos de Karl Marx, de modo específico com
o marxismo teórico. MFL pode ser vista sob três perspectivas:
a primeira diz respeito a sua vinculação à Linha Marxiana do
pensamento filosófico, que trata das relações entre as estratifi-
cações sociais – as superestruturas – e os enunciados que estão
na ordem do discurso, manifestando, para tanto, o que é possí-
1
Tendo em vista a complexidade e abrangência do alcance da concepção em foco, além
da obra constituída como eixo norteador, são tomadas outras leituras que orientam para
o objetivo proposto.

83
vel, ou não, enunciar no âmbito dessas estratificações.
A segunda perspectiva diz respeito a situar a abordagem da
linguagem se contrapondo ao que é pregado pelo objetivismo
abstrato (supremacia da língua enquanto sistema) e subjetivis-
mo individualista (a valorização do pensamento cognitivo como
autônomo). Logo, a concepção de linguagem defendida por Vo-
lóchinov (2017) fundamenta-se na interação discursiva. No que
se refere à terceira perspectiva, ela contempla reflexões consti-
tuídas por uma visão da sintaxe não como autônoma, mas con-
dicionada ao contexto e sempre atravessada, dialogicamente,
pela presença do discurso de outrem, isto é, a palavra que vem
do outro, a palavra outra, que, por sua natureza de incompletu-
de, exige, cobra, uma afirmação responsiva.
Diante do apresentado, é possível afirmarmos que a ADD
possui a concepção de que a língua em uso, compreendida
como atividade social e ideológica, é um meio pelo qual os
indivíduos interagem uns com os outros, já que “o signo surge
apenas no processo de interação entre consciências individuais”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 95 [grifo do autor]).
Dessa forma, a língua não é compreendida, apenas, com um
sistema abstrato/imanente de formas linguísticas – apregoado,
inicialmente por Saussuare – mas, é entendida como um
fenômeno social de interação verbal, realizado por meio de
enunciações, “a língua penetra na vida através dos enunciados
concretos que a realizam” (BAKHTIN, 2011, p. 127).
Nessas condições, embasados teoricamente por Volóchinov
(2017), é possível compreendermos que, para a ADD, a noção de
dialogismo consiste na capacidade de o discurso dialogar com
o já dito e se reportar ao que ainda será dito. Em outras palavras,
trata-se de um princípio constitutivo da linguagem. Partindo
desse posicionamento, a ADD concebe a linguagem em uma
perspectiva histórico-sócio-cultural.

84
Para o Círculo de Bakhtin, o que são dialogismo e enunciado?

De acordo com o princípio dialógico, apregoado pelo Círcu-


lo, o homem não se constitui como um ser individual, mas, em
contrapartida, é considerado como um ser moldado por cons-
tantes relações dialógicas, como afirma Bakhtin (2015, p. 292-
293 [aspas do autor]): “somente na comunicação, na interação
do homem com o homem revela-se o “homem no homem” para
os outros ou para si mesmo [...] ser significa comunicar-se pelo
diálogo”. Portanto, “duas vozes são o mínimo de vida, o mínimo
da existência”.
À luz desse pensamento, o dialogismo constrói a imagem
do sujeito num processo de comunicação interativa, no qual o
eu é visto e reconhecido por meio do outro, na imagem que o
outro faz deste eu. Nesse sentido, o outro se projeta em mim e eu
me projeto no outro, nossa comunicação dialógica requer que
nossos reflexos projetem-se um no outro, e que afirmemos um
para o outro a existência de multiplicidades de eu.
Tendo por base os estudos dialógicos, a ADD compreende
as relações dialógicas como uma forma de comunicação verbal.
Nessa abordagem, o discurso enunciado pelo sujeito convoca
sentidos para além do próprio objeto de seu discurso no processo
de comunicação, como: o modo como enuncia, as escolhas
lexicais atribuídas, o espaço e o tempo do evento, relativamente
emoldurados em campos discursivos da linguagem. Dessa
forma, a produção do discurso implica na mobilização de redes
de relações dialógicas, expressas pela linguagem, convocadas
por meio de um ponto de vista “que passa a refratar e refletir
outra realidade” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 92).
Assim, as atividades humanas – nos mais variados campos
discursivos de uso da linguagem – orquestram as formas de
enunciados, escritos e/ou orais, de forma mais ou menos
estável, dando origem aos gêneros do discurso, como menciona
Bakhtin (2016, p. 12 [grifos do autor]): “[...] cada campo da
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de

85
enunciados, os quais denominamos gêneros discursivos”.
Nesse cenário, os gêneros do discurso, materializados em
forma de enunciados concretos, refletem e refratam as espe-
cificidades e os objetivos do campo discursivo ao qual é filia-
do, “não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo de lingua-
gem [...] mas, acima de tudo, por sua construção composicional”
(BAKHTIN, 2016, p. 11-12, [grifos nossos]). Eis os três elementos
fundamentais que caracterizam as dimensões do gênero –
conteúdo, estilo e composição – que permitem reconhecer um
enunciado e compreender o campo discursivo a que ele per-
tence.
Cabe enfatizarmos que os campos das atividades determi-
nam, internamente, a forma como o sujeito enuncia o discurso,
ou seja, cada campo propõe modos de uso específicos da lin-
guagem. Ainda, cada campo da comunicação, tendo em vista a
sua discursividade – regularidade de uso, forma, estilo dentre
outros aspectos –, é passível de possuir vários gêneros.
Alumiados pelos estudos do Círculo, o enunciado pode
ser definido como a unidade real de comunicação discursiva.
Assim, os enunciados se materializam, em campos discursivos
situados, por meio de elementos verbais (orais e escritos), bem
como por gestos e expressões. Nas palavras de Bakhtin (2011,
p. 289):

[...] a fala só existe, na realidade, na forma concreta dos


enunciados de um indivíduo: do sujeito de um discurso-
fala. O discurso se molda sempre à forma do enunciado
que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora
dessa forma. Quaisquer que sejam o volume, o conteúdo,
a composição, os enunciados sempre possuem, como
unidades da comunicação verbal, características estruturais
que lhes são comuns e, acima de tudo, fronteiras claramente
delimitadas. (...) As fronteiras do enunciado compreendido
como uma unidade da comunicação verbal são determinadas
pela alternância de sujeitos falantes ou de interlocutores.

86
De tal modo, podemos afirmar que o enunciado mobiliza
a interação discursiva entre dois ou mais sujeitos, isto é,
o enunciado concreto, por natureza, tem sua gênese na
comunicação quando o sujeito se apropria de um discurso, já
vivido, e o profere, de forma valorativa, sob seu ponto de vista.
Com isso, concordamos com o pensador russo ao pontuar que

[...] cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros


enunciados com os quais está ligado pela identidade do
campo de comunicação discursiva. Cada enunciado deve
ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados
precedentes [...]. (BAKHTIN, 2011, p. 297 [grifos do autor]).

Depreendemos dessas palavras que não é possível a


existência de um enunciado eremítico. Todavia, o enunciado
sempre está em ligação com outros já existentes: eis uma das
principais características que o define como dialógico, como
esclarece Bakhtin (2011, p. 371 [grifos nossos]): “Não pode
haver enunciado isolado. Ele sempre pressupõe enunciados que o
antecedem e o sucedem. Nenhum enunciado pode ser o primeiro
ou o último. Ele é apenas o elo na cadeia e fora dessa cadeia não
pode ser estudado”.
Nesse sentido, a fim de compreendermos a noção de
enunciado, é relevante acentuarmos que toda a enunciação
dialógica é sempre orientada em direção ao outro, em direção ao
ouvinte, ou seja, o enunciado é, sempre, orientado socialmente,
como elucida Volóchinov (2017, p. 204): “Efetivamente,
o enunciado se forma entre dois indivíduos socialmente
organizados [...]”. Assim sendo, “não importa qual enunciado
consideramos [...] concluímos que sua orientação é inteiramente
social” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 206 [grifos nossos]).
Portanto, para refletirmos acerca do enunciado é fundante
apreendermos a sua orientação social, uma vez que, segundo
Volóchinov (2017), o evento social, concretizado em um ou mais
enunciados, é o âmago da linguagem na interação discursiva.

87
Dessa feita, toda e qualquer situação comunicativa possui um
auditório social situado que admite uma organização bem
definida, uma orientação.
Na visão do pensamento bakhtiniano, se faz necessária a
diferenciação entre unidade da língua e o enunciado concreto.
Para o autor, a unidade da língua (palavra e orações) corresponde
a um elemento estrutural carente de emoção e de juízo de valor.
Enquanto que “só o enunciado tem relação imediata com a
realidade e com a pessoa viva do falante (o sujeito)” (BAKHTIN,
2011, p. 328 [grifos do autor]). Em outras palavras, o enunciado
concreto é prenhe de elementos expressivos e banhado
por sentidos e ideologias, bem como possui uma relação
emocionalmente valorativa quando expresso pelo sujeito.
Conforme Volóchinov (2017), uma vez que a vida é dialógica
por natureza, os enunciados, produzidos em contextos particulares
da comunicação, possuem, para além de filiações ideológicas,
vinculações com outros campos da atividade discursiva e se
desenvolvem em cadeias dialógicas em consonância com as
necessidades específicas da comunicação humana. Dessa
forma, podemos acentuar que os enunciados são frutos de
seleções ideológicas e, intrinsecamente, orientados pelo social,
pelo o extraverbal.
Nessa linha de raciocínio, o enunciado estabelece uma
relação direta com o contexto social de interação discursiva,
com a realidade extraverbal dentro de um campo específico da
atividade e da comunicação humana. Na visão de Volóchinov
(2013, p. 78 [grifos do autor]), esse contexto extraverbal da
enunciação dialógica discursiva constitui-se, especificamente,
em três pontos: “1) um horizonte espacial compartilhado por
ambos os falantes [...]; 2) conhecimento e a compreensão comum da
situação, igualmente compartilhados pelos dois, e, finalmente,
3) a valoração compartilhada pelos dois, desta situação”.
Nessas condições, os enunciados concretos – relativamente
emoldurados no social em auditórios dialógicos – são
embebidos de ideologias e valorações situadas, elencadas em

88
função do propósito comunicativo do sujeito. Sob esse prisma,
vale ressaltarmos que a palavra é concebida por Volóchinov
(2017, p. 98) como “o fenômeno ideológico par excellence”, uma vez
que transita por todos os campos discursivos da linguagem, se
banha de significados revestidos de acentos, valores culturais e
ideológicos, os quais convocam inúmeros sentidos, divergentes
opiniões e contradições sociais. Portanto, pensar na palavra
sob a ótica dialógica é pensar em palco de conflitos, em uma luta
de classes.
Por conseguinte, a escolha de uma palavra, em vivência
dialógica, constitui-se como uma apreciação valorativa que,
cunhada linguisticamente a partir de filiações discursivas, se
propõe a convocar determinados efeitos de sentido no outro, nos
mais variados campos discursivos da linguagem, como apontam
Melo, Xavier e Almeida (2017, p. 198): “quando selecionamos
determinada oração não realizamos tal seleção apenas por uma
questão gramatical, mas consideramos, sobretudo, uma oração
que, no uso social, cumpra o papel de inscrever um ponto de
vista, uma axiologia”.
De tal modo, o enunciado concreto é, essencialmente,
um ponto de vista único e singular sobre o mundo, um ato
responsável e responsivo, tanto do falante que enuncia, quanto
para o ouvinte na interação verbal. Nesse sentido, vale destacar
que, à luz da ADD, a compreensão da enunciação, também,
é de caráter responsivo, como elucida o filósofo russo: “toda
compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza
ativamente responsiva [...] toda compreensão é prenhe de
resposta, e nessa ou naquela forma a gerar obrigatoriamente: o
ouvinte se torna falante” (BAKTHIN, 2016, p. 25).
Por isso, a compreensão da enunciação do outro é sempre
uma reação ao que o outro disse, provocando uma resposta
adequada no contexto correspondente. Em outras palavras, em
conformidade com Bakhtin (2012), não existe álibi na interação
verbal, somos sempre convocados a responder ativamente, ou
seja, não existe neutralidade no discurso. Assim, acentuamos

89
que a noção de compreensão responsiva é fundamental para
entendermos o funcionamento da linguagem e um dos
principais aspectos do enunciado.
Em síntese, tendo por base a discussão aqui apresentada,
ancorados teoricamente nos estudos do Círculo de Bakhtin,
depreendemos que as principais características do enunciado
são: ter contato direto com a realidade (situação extraverbal
– interação), bem como estabelecer a relação com outros
enunciados já existentes, constituir-se por elementos
expressivos e axiológicos, convocar uma atitude responsiva por
parte do outro e ser delimitado pela alternância dos sujeitos do
discurso.

E o estilo, o que é?

Compreendemos, à luz da teoria da ADD, que os sujeitos


se movimentam socialmente em uma esfera saturada de
linguagem, o que implica afirmarmos que o dito sempre faz
menção a um já dito. Todavia, na interação discursiva, quando
nos apropriamos de um já dito, mobilizamos, simultaneamente,
ideologias, valorações, pontos de vista. Assim, convocamos
outra expressividade discursiva, o que traz à cena novos
sentidos. Em outras palavras, o discurso é sempre enunciado
de modo único e irrepetível.
A esse respeito, Bakhtin (2015) elucida que cada autor (su-
jeito que enuncia/falante) possui um estilo próprio que é refleti-
do e refratado na linguagem e determinado pelos campos das
atividades humanas em uma interação discursiva contextuali-
zada.
O conceito em destaque não imputa que o autor constitui
seu discurso, subjetivamente, de maneira individual, mas, em
contrapartida, apregoa que, o estilo do autor é fundamentado
pelas relações dialógicas convocadas por meio do excedente de
visão do outro, o que concebe, dessa forma, o enunciado como:
singular, único e irrepetível.

90
Nessa linha de pensamento, o outro se torna imprescindível
na construção do sujeito eu, como esclarece Sousa (2016, p.
291 [grifos da autora]): “[...] torna-se evidente na formulação
linguística a existência de um eu que se revela possível, dada a
sua necessária relação com o Outro”.
Dentro desse contexto, Bakhtin (2011) pontua que
durante eventos sociais de interação discursiva, o autor
escolhe determinados elementos estilísticos composicionais
– mobilizados discursivamente em gêneros – em consonância
com seu projeto enunciativo, seu destinatário (interlocutor) e o
horizonte social o qual está inserido nessa situação discursiva.
É oportuno enfatizar que, segundo Bakhtin (2011, p. 268),
as escolhas estilísticas do discurso são realizadas em sincronia
com as nuances relativamente estáveis da unidade discursiva
específica de determinados gêneros. Logo, “onde há estilo há
gênero. [...] desse modo, tanto os estilos individuais quanto
os da língua satisfazem os gêneros do discurso”. Dito de outra
forma, o estilo está, visceralmente, ligado ao enunciado e a sua
forma, isto é, ao gênero discursivo.
Portanto, considerando a pluralidade de sentidos da língua,
o entendimento de estilo depreendido por Bakhtin e o Círculo
diz respeito à individualidade do sujeito que fala ou escreve.
Ou seja, está, dessa maneira, ligado à seleção de recursos
linguístico-textuais – semânticos lexicais e gramaticais – que
são escolhidos pelo enunciador/autor/sujeito inserido em um
gênero situado. No sentido de acentuar esse aspecto, Volóchinov
(2013, p. 166 [grifos do autor]) situa o estético da língua como
uma variedade social e esclarece que

[...] todas as enunciações se construirão precisamente com


base em sua visão; suas possíveis opiniões e valorações
determinarão a ressonância interna ou externa da voz – a
entonação – e as escolhas das palavras e sua composição numa
enunciação concreta.

91
Depreendemos dessas palavras que, do ponto de vista
metodológico, o olhar analítico do estudioso do discurso,
ancorado no pensamento da teoria dialógica, não deve apenas
se deter, estruturalmente, sobre as disposições das unidades
da língua, mas, sim, nas nuances que abastecem o enunciado
concreto, como assevera o teórico russo: “as formas gramaticais
não podem ser estudadas sem que se leve em conta seu
significado estilístico. Quando isolada dos aspectos semânticos
e estilísticos da língua, a gramática inevitavelmente degenera
em escolasticismo” (BAKTHIN, 2013, p. 23).
Assim, o sujeito, ao produzir seu arcabouço discursivo, tem
por objetivo atingir um determinado interlocutor, sendo este,
sobretudo, o norte, relativamente estável, de escolhas discursi-
vas, tais como: o modo, o acento, o conteúdo e a maneira dessa
construção estética verbal, como expõe Bakhtin (2011, p. 282):

[...] essa escolha é determinada em função da especificidade


de um dado campo da comunicação discursiva, por
considerações semântico-objetais (temáticas) pela situação
concreta da comunicação discursiva, pela composição
pessoal dos seus participantes.

Nessas condições, ainda que as palavras que enunciamos


já tenham sido habitadas por outras vozes e, assim sendo, já
estejam carregadas de sentidos, ideologias, axiologias de outros,
quando nos mobilizamos, linguisticamente, em um contexto1
sócio-histórico específico, convocamos uma forma estilística
própria: eis a singularidade estética da criação verbal – o estilo.
Ainda, sob esse prisma dialógico, é conveniente lembrarmos
que, alumiados por Bakhtin (2011), o que, de fato, produz
significado ou abastece a vida concreta da palavra ideológica
não é o seu conceito dicionarizado, mas o tempo e o espaço entre
1
Na visão de Volóchinov (2017), os sentidos atribuídos aos enunciados são intrinsecamen-
te determinados por seu contexto na interação discursiva. Assim sendo, a palavra adquire
uma significação em cada contexto situado, fato este que acentua a natureza polissêmica
e dialógica da linguagem.

92
os sujeitos, organizados sócio-historicamente no cronotopo2 real
e vivo, uma vez que cada dia tem seu acento.

Palavras finais

Como já anunciamos no início desse texto, intuíamos trazer


para o cerne dessa breve discussão princípios do dialogismo,
tendo como norte o fio do discurso das contribuições advindas
de MFL. Assim sendo, após refletirmos acerca de alguns
elementos que compõem a teoria dialógica do discurso,
apresentamos, esquematicamente, algumas considerações. Ei-
las:
A concepção do discurso desenvolvida por Volóchinov
(2017) está fundamentada no caráter social e vivo da
linguagem.
A língua existe por meio do enunciado.
O discurso, sob a égide da ADD, é assentado na relação
visceral entre o enunciado e o mundo que o circunda.
Tendo como norte as noções do dialogismo em destaque,
somos cônscios da existência de uma interação permanente
entre os participantes do diálogo e da interdependência
entre discurso e contexto, de forma que um determine e
selecione o outro e vice-versa.
O discurso, segundo o arcabouço teórico de Bakhtin e do
seu Círculo apresentado nesse ensaio, possui uma relação
orgânica com os discursos anteriores e/ou posteriores – daí,
ser dialógico –, além de uma inseparabilidade com a reali-
dade sócio-histórica, dentro do enquadramento específico e
singular de um determinado horizonte ideológico.
A interação discursiva, para além de ser dialógica por na-

2
Destacamos que a noção de cronotopia, de forma geral, para o pensamento bakhtinina-
no, diz respeito à intrínseca relação espaço-tempo circundada na elaboração do discurso,
expresso nos gêneros discursivos. Nesse plano, podemos afirmar que os cronotopos são os
centros (re)organizadores dos gêneros e de suas variações, na interação discursiva. Além
disso, é relevante evocarmos que os estudiosos do Círculo de Bakhtin, ao postularem esse
conceito, se debruçavam sobre o campo discursivo literário, em particular os romances
de Dostoievsky.

93
tureza, é marcada pelas ressonâncias de outros ditos na lin-
guagem – já-ditos e/ou não ditos. Nesses termos, circunscre-
vendo Volóchinov (2017), a palavra, no discurso, se banha
de significados revestidos de entornos, acentos e ideologias
e projeta-se para um interlocutor, estabelecendo-se uma re-
lação social explícita com o sujeito enunciador.

Por fim, acreditamos ter contribuído com uma discussão,


apesar de sua brevidade, sobre a concepção de linguagem
difundida pela ADD, que a vincula ao aparato ideológico que
marca e demarca os discursos mais variados que possam existir
dentro de processos de comunicação discursiva.

REFERÊNCIAS

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mance. 5. ed. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini, José Pereira Júnior, Au-
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tello & Carlos Alberto Faraco. 2.ed. São Carlos: Pedro e João, 2010.
______. Estética da criação verbal. 6. ed. Tradução de Paulo Bezerra. São
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Grillo. São Paulo: 34, 2013.
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guagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar,
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SOBRAL, Adail. Ético e estético na vida, na arte e na pesquisa em Ciências
Humanas. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010,
p. 103-122.
SOUSA, Maria Ester Vieira de. As astúcias do sujeito e o deslocamento dos

94
sentidos. In: Calidoscópio. v. 14, n. 2, p. 288-293, mai/ago 2016.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de
Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: 34, 2017.
______. A palavra na vida e a palavra na poesia: introdução ao problema
da poética sociológica (1926). In.: ______. A construção da enunciação e outros
ensaios. Organização, tradução e notas de João Wanderley Geraldi. São Carlos:
Pedro & João, 2013.

95
96
EDITORIAL DA REVISTA CLAUDIA:
OS EFEITOS DE SENTIDO DOS
DISCURSOS SOBRE O SUJEITO
FEMININO DIANTE DO PADRÃO DE
BELEZA IMPOSTO SOCIALMENTE

Diana Barbosa de Freitas

97
98
uando detemos nosso olhar para o corpo enquanto

Q representação e suporte de símbolos culturalmente


produzidos e historicamente contextualizados, vol-
tamo-nos para os embates de sentidos, dentro da sociedade,
entre o conceito do belo e do feio. Segundo Novaes (2013), ao
refletirmos sobre a beleza, consequentemente, passamos a en-
tender, também, o que se considera por feiura. Sob essa ótica,
percebemos que a feiura “significa não ter o corpo e a estética
aceitos socialmente, ou seja: ser jovem, magro e ser saudável”
(NOVAES, 2013, p. 24).
Aliando as reflexões expostas acima à teoria da Análise
do Discurso (doravante, AD) de linha francesa pecheutiana,
objetivamos, neste trabalho, investigar os efeitos de sentido dos
discursos sobre o sujeito feminino diante do padrão de beleza
imposto socialmente no editorial da revista Claudia. Para tanto,
alicerçamo-nos nos estudos da Análise do Discurso de linha
francesa, principalmente, a partir dos estudos de Pêcheux
(2008), Orlandi (1998), Cazarin (2007), Dantas (2007), Grigoletto
(2006), dentre outros, bem como tomamos como base teórica as
reflexões sociológicas de Giddens (2002), além das contribuições
psicanalíticas de Novaes (2010) e Novaes (2013).
Esta pesquisa configura-se como um recorte da nossa mo-
nografia3, nesse sentido, dos oito editoriais de revistas femini-
nas que analisamos no nosso trabalho de conclusão de curso,
elencamos o da revista Claudia (Nº 11, ano 53, novembro de
2013) para a constituição do corpus deste trabalho, haja vista os
3
Nossa monografia é intitulada “O sujeito feminino e suas identidades: uma análise dis-
cursiva do padrão estético feminino heterogêneo” e foi defendida em setembro de 2017
na Unidade Acadêmica de Letras, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG),
sob orientação do Prof. Dr. Aloísio de Medeiros Dantas.

99
limites para o desenvolvimento do artigo. O estudo desenvol-
veu-se a partir de uma abordagem qualitativa, caracterizando-
-se como uma pesquisa documental, de viés explicativo-inter-
pretativo.

O padrão estético na constituição da identidade feminina

Para entendermos a relação do sujeito feminino com o seu


corpo, recorremos aos estudos de Joana de Vilhena Novaes,
professora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise,
Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, no Rio de
Janeiro, ao escrever o livro intitulado O intolerável peso da feiura:
sobre as mulheres e seus corpos (2013).
Primeiramente, a autora deixa clara sua concepção de corpo
enquanto “representação, suporte de símbolos culturalmente
produzidos e historicamente contextualizados” (NOVAES, 2013,
p. 15). O corpo que parece, a princípio, apenas uma entidade
física que possuímos, não abarca só essa significação. Como
também afirma Giddens (2002), o corpo é “um sistema de ação,
um modo de práxis, e sua imersão prática nas interações da
vida cotidiana é uma parte essencial da manutenção de um
sentido coerente de auto-identidade” (GIDDENS, 2002, p. 95).
Vemos, portanto, que pensar no corpo significa também pensar
na constituição da nossa identidade. Logo, a relação da mulher
com o seu corpo demarca aspectos sociais, culturais e produz
sentidos.
De acordo com Novaes (2013), o corpo ideal está inserido na
noção de corpo da moda. Assim, vemos que o corpo considerado
natural se desnaturaliza para entrar em cena e enquadrar-
se no padrão estético vigente. Mas por que se encaixar nesta
estética corporal que afirma ser necessário estar magra e
jovem, para, assim, ser saudável? Essa busca para se chegar a
tal modelo advém do fato da necessidade de o sujeito se inserir
e se reconhecer como membro de determinado grupo social,
aquele que possui beleza.

100
Se, de um lado, temos a beleza como lugar de prestígio, do
outro, a feiura é concebida como um lugar inferior, menos pri-
vilegiado e que demonstra descuido por parte daqueles consi-
derados feios. Giddens (2002) alega que os regimes corporais,
diretamente ligados aos padrões de sensualidade, são o aspecto
principal pelo qual “a reflexividade institucional da vida social
moderna se centra no cultivo – quase se poderia dizer na cria-
ção – do corpo” (GIDDENS, 2002, p. 96).
Novaes (2013) aponta que o preocupante não é o fato de
os modelos de beleza serem impostos, mas, sim “o fato de se
afirmar, sem cessar, que ela pode ser bela, se assim o quiser”
(NOVAES, 2013, p. 28). O fracasso, portanto, deve-se a uma
incapacidade individual. Isso induz “a uma relação não apenas
de inquietude, como também de inadequação e de impotência.”
(NOVAES, 2013, p. 29).
Assim, a feiura, ao contrário da beleza, constitui-se como
um espaço de exclusão, haja vista que a partir do momento
em que a mulher não se enquadra no padrão estabelecido,
várias ressalvas lhes são feitas socialmente. Exemplos destas
restrições são os ambientes específicos para aqueles que exibem
boa forma. A praia, como cita Novaes (2013), a piscina, as lojas
de roupas femininas, são alguns dos locais nos quais pessoas
caracterizadas a partir da feiura tendem a não frequentar.
Como destaca Giddens (2002), a experiência e o comporta-
mento humano são mediados por diversos fatores. Dentre tais,
a mídia se encontra como um dos meios principais de media-
ção na modernidade. Através de textos impressos, bem como
de sinais eletrônicos, “esses meios são tanto a expressão das
tendências globalizantes, desencaixadoras da modernidade,
como instrumentos dessas tendências” (GIDDENS, 2002, p. 31).
Essa afirmação nos leva a refletir que a mídia ao mesmo tempo
que produz as tendências que estão em destaque no momento
também serve como apresentação de modelos e padrões nor-
matizadores.
Em suma, constatamos que o discurso científico, tecnoló-

101
gico, publicitário e médico associa a ideia de beleza à saúde e
isso leva a uma busca incessante por um padrão ideal. Assim,
a identidade feminina, por vezes, é construída com base nes-
sa procura do corpo perfeito. Nesse preâmbulo, a concepção
de corpo como produto de consumo ganha espaço e engendra
nos meandros constituintes da teia identitária. Neste sentido, o
olhar do outro, como um espelho, para o corpo, incita o dever
de enquadrar-se a um padrão estabelecido.
Ao refletirmos sobre a identidade feminina, buscamos,
pois, enfatizar a regulação e controle das práticas corporais, ao
sublinhar o lugar que a beleza assume como valor social, isto é,
a beleza passa a ser vista como quesito para o lugar do sujeito
na hierarquia de poder na vida em sociedade.

O sujeito discursivo: identificação, contra-identificação e


desidentificação

Ao tratar da escola francesa de Análise do Discurso,


acenamos para o grupo que se reuniu em torno de Michel
Pêcheux, a partir dos anos 1960. A Análise do Discurso estuda,
particularmente, o discurso interpelado pela língua, história
e sujeito. Conscientes desses fatores, segundo Orlandi (1999),
parte-se do pressuposto de que i) o sujeito não é a fonte de
sentido, nem o senhor da língua; ii) o sentido se forma por um
trabalho da rede de memória e iii) sujeito e sentido não são
“naturais”, “transparentes”, mas determinados historicamente
e devem ser pensados em seus processos de constituição (em
sua contradição e espessura).
O discurso nessa perspectiva teórica vem a ser, portanto,
os efeitos de sentido revelados entre interlocutores, ou seja,
o discurso perpassa um lugar de reflexão que se processa
na língua e na história, constituído por sua materialidade
linguística e pela ideologia. Dessa forma, o que prevalece na
AD é a contradição, a tensão, o conflito. Os enunciados estão
permeados de deslocamentos, sempre há a possibilidade de se

102
tornarem outros, de adquirirem novos sentidos, sendo expostos
ao equívoco da língua.
Conforme observamos, o sujeito é constituído por discursos
historicamente produzidos e modificados. Fernandes (2012)
salienta que o sujeito discursivo, então, é compreendido
como um lugar sócio histórico discursivamente produzido,
heterogêneo, plural, sempre em processo de constituição.
Pensando esse sujeito dotado de características em
relação ao discurso, nós passamos a refletir sobre outra noção
estudada por Pêcheux: a formação discursiva (FD). Esse
conceito corresponde a um determinado domínio de saber,
que se constitui por enunciados discursivos, representando
uma forma de se relacionar com a ideologia vigente. Dito de
outro modo, a formação discursiva determina o que pode e o
que deve ser dito. Por essa razão, dissemos anteriormente que
o sujeito tem a ilusão de ser fonte e responsável pelo que diz.
É a partir da forma-sujeito que o sujeito se identifica com a
formação discursiva:

O sujeito do discurso se identifica com a forma-sujeito, vale


dizer, com o sujeito histórico e, por seu viés, com a formação
discursiva cujo dizer é por ela organizado. Pode-se, pois,
afirmar que é a forma-sujeito que regula o que pode e deve
ser dito [..] o que não pode ser dito e também o que pode mas
convém que não seja dito no âmbito de uma determinada
formação discursiva. (INDURSKY, 2000, p. 72).

Cazarin (2007), ao tratar da noção de posição-sujeito,


propõe-se a pensar na heterogeneidade de seus saberes. Logo, a
posição-sujeito é concebida como sendo um constructo teórico
que, no processo discursivo, imaginariamente representa o
lugar em que os sujeitos estão inscritos na estrutura de uma
formação social. Nessas condições, vemos que “o sujeito, ao
mobilizar uns e não outros saberes para enunciar, já o faz
determinado por esse lugar social, capaz de administrar as

103
diferenças internas e, ao mesmo tempo, dar-lhes um efeito de
unidade discursiva” (CAZARIN, 2007, p. 109). Nesse preâmbulo,
podemos dizer que o sujeito pode assumir três modalidades
de posições, a saber: a identificação, a contra-identificação e a
desidentificação.
Na primeira, a identificação, há uma superposição entre o
sujeito do discurso e o sujeito universal, revelando, portanto,
uma identificação total do sujeito do discurso com a forma-
sujeito da FD em que o sujeito está inserido. Logo, quando se
assume essa posição, podemos dizer que há o discurso do bom
sujeito. Na segunda, a contra-identificação, temos o discurso
do mau sujeito, isso porque o sujeito do discurso, por meio de
uma tomada de posição, contrapõe-se ao sujeito universal, isto
é, a forma-sujeito. Na terceira, a desidentificação, o sujeito do
discurso se desidentifica de uma FD e sua forma-sujeito com
o intuito de conduzir sua identificação para outra formação
discursiva diferente da anterior.

A constituição dos sujeitos e de suas identidades no editorial


da revista Claudia

De acordo com Pêcheux (2014, p. 228), a posição


epistemológica da AD condiciona o pensamento acerca da
língua não como um sistema, mas, sim, como um real específico
que forma “o espaço contraditório do desdobramento das
discursividades”. Em vista desse pressuposto, vamos, agora,
deter nosso olhar ao editorial da revista Claudia (Nº 11, ano 53,
novembro de 2013). Claudia foi lançada pela Editora Abril em
1961 com o nome que Victor Civita (fundador da Editora Abril)
e Sylvana Civita (sua esposa) queriam dar a filha que nunca
tiveram. Inicialmente, o foco da revista era a mulher do lar,
pois, na época, o mundo doméstico ganhava grandes novidades.
Mantendo-se há mais de 50 anos no mercado, Claudia teve que
se adaptar às mudanças do tempo e se adequar às exigências
do mercado. Hoje, as editorias de beleza e moda possuem

104
maior quantidade de reportagens, seções e destaque dentre as
chamadas de capa1.
Denominando o editorial de Eu e você, a diretora da redação,
Paula Mageste, propõe um interessante diálogo com as leitoras
a respeito da beleza feminina. Inicialmente, vemos que o sujeito
faz uma apresentação da estação do ano que, em novembro de
2013, estava chegando: o verão:

RT12: O VERÃO NEM COMEÇOU OFICIALMENTE, mas já


estamos prontos para ele, pelo menos no estado de espírito.
A temporada convida à extroversão, à conexão em carne
e osso (lembra como era antes do Facebook?), a aguçar
os sentidos no contato com a natureza. É a estação para
socializar, estar mais com os amigos, sair por aí explorando
o mundo, acreditar em mudanças, dar novas chances para a
vida. (CLAUDIA, 2013, p. 16, grifos da revista).

Dentro do RT1, encontramos uma SD3 que vale destacar


devido ao jogo de ideias feito pelo sujeito enunciador. Vejamos:

SDa: O VERÃO NEM COMEÇOU OFICIALMENTE, mas já


estamos prontos para ele, pelo menos no estado de espírito.

Como sabemos, esta estação do ano, o verão, é caracte-


rizada pelo tempo quente, o céu aberto e, em vista disso, no
Brasil, a ida das pessoas à praias e piscinas é eminente nesta
época. Assim, a exibição do corpo é uma prática recorrente na
sociedade contemporânea brasileira que reflete a era de ima-
gens na qual vivemos. Nesta era, o olhar e ser olhado, além de
inevitável, é altamente necessário. Por essa razão, no momento
1
Mais informações sobre a história da revista podem ser encontradas no seguinte endere-
ço eletrônico: Disponível em <http://www.emfechamento.com.br/2012/03/historia-da-re-
vista-claudia.html#.WYhXnhXyvIU> Acesso em: 25 ago. 2017.
2
Denominados por RT, os chamados Recortes Textuais (constituídos como objetos empí-
ricos) são porções de fragmentos textuais que reúnem mais de um enunciado.
3
Denominadas por SD, as chamadas Sequências Discursivas são sequência de enunciados
que marcam a discursividade do sujeito.

105
em que o sujeito enuncia que o verão ainda não iniciou, mas
as pessoas já estão prontas para ele, ao menos espiritualmen-
te, revela-se um discurso que nos permite pensar, levando em
consideração o contexto de produção do texto e o local onde ele
está inserido, que há uma espécie de incompletude ontológica
nesta prontidão do sujeito feminino, uma vez que tal sujeito se
encontra completo apenas em estado de espírito.
Ora, se esse sujeito só está preparado espiritualmente, isso
implica dizer que em outro aspecto ele precisa alcançar essa
prontidão. Que aspecto seria esse? Ao analisarmos as condições
de produção desta materialidade linguística, podemos perceber,
por meio do não-dito, que o enunciador parece apontar para a
dimensão corporal como sendo o outro elemento que deveria
também estar pronto para o verão. Desse modo, averiguamos
que a identidade está relacionada à ideia de inacabamento, na
qual se impõe uma responsabilidade ao sujeito, no tocante ao
gerenciamento do seu corpo.
Assim, no primeiro momento, constatamos que o sujeito
se identifica com uma formação discursiva que defende o culto
ao corpo e a obrigação de se agenciar e disciplinar o corpo em
vista das necessidades sociais e culturais que nos permeiam.
Sobre isso, Ferreira (2009), em um capítulo denominado
Interdiscurso e memória: nas tramas do discurso sobre a mulher,
que se encontra no livro O discurso na contemporaneidade:
materialidades e fronteiras (2009), diz que o sujeito enuncia
por meio de formações imaginárias de seu grupo social.
Neste sentido, o sujeito é afetado pelos inúmeros discursos
que participam de sua constituição e que se constroem no
interior das FDs, invadidas por sentidos advindos de outras
FDs, encontrando-se, portanto, em constante processo de
estabilização e desestabilização.
A afirmação da autora nos possibilita pensar que o indiví-
duo, interpelado em sujeito pela ideologia da estética feminina
contemporânea, tem em sua memória discursos cristalizados
que são evidenciados a partir do dizer, ou seja, através da mate-

106
rialidade linguística, influenciada pelas formações imaginárias
do grupo social onde se insere o sujeito.
Dando continuidade à análise, observemos o próximo RT,
com o intuito de investigar a identidade discursiva do sujeito
feminino na mídia impressa:

RT2: Estou animada; dá para ver, né? Espero contagiá-la. E


convido você a se preparar para entrar no verão com essa
vibração positiva. Nada de fazer loucuras para chapar a
barriga em um mês, de cultivar insatisfação por não ficar
como Gisele dentro do seu biquíni, por não corresponder a
um padrão de beleza. Aliás, nada mais ultrapassado do que
acreditar em padrão. Neste nosso tempo, a idade cronológica
não determina comportamentos (é a era que os americanos
definiram como ageless) e a inovação, a capacidade de romper
com pressupostos ou subvertê-los, está supervalorizada no
mundo dos negócios e na sociedade em geral. (CLAUDIA,
2013, p. 16).

A partir da leitura do objeto empírico alçado acima,


podemos constatar objetos teóricos, ou seja, as discursividades
presentes na materialidade linguística. Vejamos:

SDb: Nada de fazer loucuras para chapar a barriga em um mês,


de cultivar insatisfação por não ficar como Gisele dentro do
seu biquíni, por não corresponder a um padrão de beleza.

Como sabemos, o corpo, em nossa sociedade, é visto como


instrumento simbólico e histórico de produção de sentidos.
Sendo assim, a preocupação com a constituição desse corpo
e com o olhar do outro sobre esse instrumento é eminente
na era da modernidade líquida-moderna. Em vista dessas
considerações, ao determos o olhar à SD acima, verificamos um
discurso de ruptura com a normatização atribuída às práticas
corporais promulgadas social e culturalmente. Observe que o

107
sujeito feminino, no primeiro momento, ao utilizar o termo
nada, explicita que é contrário a tudo que vai de encontro a
loucuras para obter o emagrecimento.
Dentre as loucuras realizadas para se alcançar o corpo
ideal, ou seja, jovem, magro e saudável, estão as dietas
mirabolantes, que, por vezes, são divulgadas em revistas
femininas, assegurando uma perda de peso rápida e eficaz,
o que, como sabemos, é próprio da era da alta velocidade em
que vivemos. Além das dietas, a procura por academias de
ginástica, a ingestão de diversos tipos de medicamentos que
prometem o rápido emagrecimento são práticas recorrentes
dentro do universo cotidiano das mulheres que buscam
alcançar determinado padrão estético.
Entretanto, o que percebemos na SDa é um sujeito feminino
que resiste a tais práticas mencionadas anteriormente. Ao
enunciar a questão de chapar a barriga em um mês, vemos que
chapar tem uma carga semântica de secar, enxugar. Além disso,
ao complementar atribuindo um tempo determinado – um mês
– para isso acontecer, evidenciamos como, na modernidade,
a lógica consumista contribui para que um certo conjunto
de atividades perceptivas e comportamentais, inerentes à
estética, conviva, simultaneamente, com ideologias e valores
extremamente conservadores (NOVAES, 2013).
Outro fator de discursividade pertinente dentro da SDb
é a questão de se negar a necessidade de adotar um modelo
corporal promulgado socialmente, no caso em questão, o
padrão de corpo da Gisele Bündchen4. Gregolin (2011) indica-
nos que

a mídia é o principal dispositivo discursivo por meio do


qual é construída uma “história do presente” como um
acontecimento que tensiona a memória e o esquecimento. É
ela, em grande medida, que formata a historicidade que nos
4
Gisele Caroline Bündchen é uma supermodelo, filantropa e empresária brasileira. Em
2000, Bündchen foi considerada pela revista Rolling Stone a modelo mais bonita do mun-
do. Entre 2004 e 2016, pela revista Forbes, a mais bem paga.

108
atravessa e nos constitui, modelando a identidade histórica
que nos liga ao passado e ao presente. (GREGOLIN, 2011, p.
301).

Sendo assim, quando o sujeito aponta para um modelo de


beleza, presentificado através de uma pessoa que se encontra
na mídia, nós vemos que o discurso em vigor na sociedade
é aquele que torna o corpo objeto de consumo e vitrine
dos seus méritos. Isso implica dizer que há uma espécie de
obrigatoriedade destinada à mulher de disciplinar seu corpo a
fim de almejar a beleza padrão, aquela estampada nas capas de
revista por modelos e atrizes.
Todavia, no momento que detemos nossa atenção à SDa
vemos que o sujeito do editorial da revista diverge deste discurso
de normatização de um padrão estético. Essa afirmativa
igualmente pode ser ratificada na SD abaixo:

SDc: Aliás, nada mais ultrapassado do que acreditar em


padrão.

Como podemos averiguar, a discursividade revelada na SDb


aponta, claramente, para a circulação de discursos que aceitam
a heterogeneidade de corpos. Orlandi (2007) mostra que,
mesmo interpelado por uma ideologia, o sujeito pode resistir
a um total assujeitamento, como pode ser visto na SD abaixo:

SDd: a inovação, a capacidade de romper com pressupostos


ou subvertê-los, está supervalorizada no mundo dos
negócios e na sociedade em geral.

A partir da leitura discursiva da SDd, podemos compreen-


der a relação de sentidos feita por meio dos gestos de interpre-
tação oriundos do objeto teórico, o processo de discursividade,
alçado acima. O sujeito atrela a noção de novidade à ideia de
rompimento e subversão que existe tanto no mundo dos negó-

109
cios quanto na vida em sociedade. Neste sentido, vemos, pois,
que a identidade está pautada na contra-identificação, uma vez
que encontramos o discurso do mau sujeito, ou seja, aquele que
entra em conflito, se contra-identifica com a formação discur-
siva predominante. Inicialmente, vimos, no editorial da revista
Claudia, que a produção de sentidos nos possibilitou interpre-
tar uma identificação com a formação discursiva de normatiza-
ção do corpo. Porém, posteriormente, constatamos a eminên-
cia de um discurso no qual o sujeito se contra-identifica com a
formação discursiva, entrando em uma relação de conflito com
o sujeito universal.
Essa constatação nos permite dizer que vemos sujeitos
sociais e sentidos históricos presentes na materialidade
linguística. Averiguamos a presença de um sujeito fragmentado,
plural e heterogêneo que através da mídia põe em circulação os
discursos de parcelas da sociedade, em determinado momento
da sua história. Logo, comungamos com Gregolin (2011, p.
302), quando a autora assegura que “as identidades são, pois,
construções discursivas”.

Palavras finais

Ao realizarmos o estudo, ancorados na teoria da Análise


do discurso de linha francesa, pudemos averiguar que, de ma-
neira geral, dois grandes discursos sobre a relação da beleza
com o sujeito feminino estão presentes na esfera midiática. O
primeiro relaciona-se com a predominância de um discurso de
normatização da beleza, no qual o culto ao corpo e a responsa-
bilização do sujeito pelo agenciamento de tal corpo ocorre de
forma intensificada e disciplinarizadora. O segundo se refere
à circulação de um discurso que abre espaço para se pensar
na heterogeneidade de corpos, isto é, constatamos na leitura
da mídia impressa um espaço para se pensar a multiplicidade
estética.
Vimos também que a constituição do sujeito ocorre por

110
meio do outro. Neste sentido, é através do olhar do outro que
se constrói a relação com o corpo, uma vez que o outro tende a
detectar as imperfeições contidas no corpo feminino, incitando
o sujeito a corrigir, disciplinar, moldar tal corpo conforme as
normas vigentes. Logo, verificamos, portanto, que a identidade
feminina é construída com base na necessidade de remodelar
sua aparência, com o intuito de alcançar determinada
felicidade e, principalmente, ser aceito pelo olhar do outro.
Assim, embora o sujeito, hoje, esteja emancipado, ou seja,
tenha conquistado determinados aspectos da liberdade, esse
mesmo sujeito, agora, prende-se a outro elemento: o corpo.
Dessa forma, o sentimento de insuficiência e de incapacidade
são alguns dos efeitos de sentido oriundos da imposição de um
padrão de beleza vigente.

REFERÊNCIAS

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REIRA, M. C.; INDURSKY, F. (Orgs). Análise do discurso no Brasil: mapean-
do conceitos, confrontando limites. São Carlos: Claraluz, 2007, p. 109-122.
FERNANDES, C. A. Discurso e sujeito em Michel Foucault. São Paulo: Inter-
meios, 2012.
GIDDENS, A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
INDURSKY, F. A fragmentação do sujeito em análise do discurso. In: ______.
Discurso, memória e identidade. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzato, 2000,
p. 70-81.
NOVAES, J. V. Com que corpo eu vou? Sociabilidade e usos do corpo nas mulhe-
res das camadas altas e populares. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Pallas, 2010.
______. O intolerável peso da feiura: sobre as mulheres e seus corpos. Rio de
Janeiro: Ed, PUC-Rio: Garamond, 2013.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas:
Pontes, 1999.
______. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Univer-
sidade Estadual de Campinas, 1998.

111
______. O sujeito discursivo contemporâneo: um exemplo. In: FERREIRA, M. A.;
INDURSKY, F. (orgs). Análise dos discurso no Brasil: mapeando conceitos;
São Carlos: Charluz, 2007, p. 11-20.
______. Historicidade, indivíduo e sociedade: o sujeito na contemporaneidade.
In: INDURSKY, F; FERREIRA, M. C. L. (orgs). O discurso na contemporanei-
dade: materialidades e fronteiras. São Carlos: Charluz, 2009, p. 13-28.
PÊCHEUX, M. Análise do discurso: Michel Pêcheux. Campinas: Pontes Edito-
res, 2014.

112
ENTRE A MESQUITA E O ESTADO:
A MULHER IRANIANA E A SUA
CONSTITUIÇÃO NA ESCRITA
AUTOBIOGRÁFICA

Quezia Fideles Ferreira

113
114
O
século passado foi um período marcado por importantes
transformações históricas e sociais que resultaram na
eclosão de novas formas de representação do masculino
e do feminino. Nesse cenário, caracterizado pela coexistência
de identidades plurais e, por vezes, rivais, a compreensão do
que é ser mulher ou homem é uma tarefa complexa, pois não
há uma forma fixa, com características claras e previamente
definidas, a qual o indivíduo, para constitui-se como sujeito,
deva adequar-se.
Se o caráter plural do processo de identificação é um fato
do qual já não se pode contestar, pois as pesquisas desenvolvi-
das na seara dos estudos culturais comprovam a mobilidade da
identidade, quando a tarefa é compreender as formas de ser e
viver dos sujeitos imersos em uma cultura diversa daquela na
qual estamos inseridos, deparamo-nos diante das vontades de
verdade reforçadas nos discursos em circulação no social, que,
por vezes, acabam estigmatizando o outro, visto como o dife-
rente.
Inclusa nessa realidade, a mulher oriental é constituída dis-
cursivamente de diferentes formas. Em torno de sua identida-
de, quando elaborada aos olhos ocidentais, há um movimento
de vários elementos, do misticismo, da sacralidade, da sensua-
lidade, da subordinação e da opressão, resultado das relações
de poder e resistência e do conjunto de representações valora-
tivas ratificadas nesse espaço discursivo.
Tendo em vista as implicações da instauração das repre-
sentações valorativas e as suas nuances, nessa pesquisa temos
como objetivo analisar a constituição do sujeito mulher irania-
na, imersa nas relações de poder em circulação, no transcorrer

115
do século XX, marcado por profundas mudanças políticas, so-
ciais e históricas. Para realizar a investigação, elencamos como
objeto o romance autobiográfico O que eu não contei, da autora
iraniana Azar Nafisi, cuja primeira edição foi traduzida para o
português no ano de 2009. Teoricamente, temos como referên-
cia a perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa filia-
da ao pensamento foucaultiano, e as reflexões sobre o concei-
to de identidade advindo de Hall (2014), Bauman (2005) e Silva
(2005), estudiosos filiados aos Estudos Culturais.
No tópico a seguir, percorrendo o recorte histórico traçado
por Azar Nafisi no romance autobiográfico citado, refletiremos
sobre as vontades de verdade instituídas no Irã durante o sécu-
lo XX que influenciaram, de forma decisiva, na constituição dos
sujeitos naquela sociedade oriental.

O outro sagrado e submisso

Constituído historicamente, segundo a analítica foucaultia-


na, o sujeito está, inevitavelmente, imerso nas relações de for-
ça instituídas em determinado espaço discursivo. As relações
de poder elaboram um conjunto de representações valorativas
através das quais o indivíduo se constitui em sujeito no meio
social e histórico em que habita.
No romance em estudo, o sujeito autor apresenta, entre o
exercício do poder e da resistência, a constituição do sujeito
mulher iranianano do século passado. Obedecendo à lógica das
mudanças sociais, históricas e culturais, a autora inicia o ro-
mance refletindo sobre a representação de um sujeito imerso
no regime de verdade monárquico absolutista, em vigência no
espaço discursivo iraniano, no começo do século XX.
Esse sujeito monárquico é na narrativa autobiográfica re-
presentado pela avó da narradora. O sujeito avó vivia em um
período marcado por um regime de governo centrado na figu-
ra de um rei, visto como o legítimo sucessor de Deus na terra.
Nesse universo, a vontade divina era a regra a ser observada

116
nas relações sociais estabelecidas entre os sujeitos.
A “verdade” divina propagada no discurso religioso era,
segundo Demant (2014), formulada a partir de uma rígida se-
paração dos gêneros, posicionando o feminino em um lugar
secundário ao do masculino. A hierarquia entre gêneros resul-
tou na compreensão do sujeito mulher como o outro desigual,
“exposto à violência, à segregação social e ao intenso controle
de sua sexualidade” (BOUHDIBA, 2006, p. 285). Tal condição é
apontada pelo sujeito-autora na sequência discursiva abaixo.

Minha vó nasceu no início do século XX, quando o Irã era


governado por uma monarquia absolutista desestabilizada
e vivia sob rígidas leis religiosas que aprovavam o apedre-
jamento, a poligamia e o casamento de meninas a partir de
nove anos. As mulheres raramente podiam sair de casa, e
quando o faziam era acompanhadas e cobertas da cabeça
aos pés. Não havia escolas para mulheres, embora algumas
famílias aristocratas oferecessem às suas filhas um tutor
particular. (NAFISI, 2009, p. 12).

A partir do que lemos na sequência discursiva, é possível


observar que, através do discurso literário, o sujeito autor de-
nuncia as relações de poder vigentes no começo do século XX.
Tais relações de forças elaboraram e sancionaram a represen-
tação da mulher enquanto um sujeito subalterno, sagrado e ex-
posto a uma série de sanções, tais como o apedrejamento, o
casamento antes da maioridade civil e a segregação social. Essa
representação normatizada no regime de verdade islâmico fun-
damentalista, graças à atuação dos jogos de verdade difundidos
no discurso religioso, encontra fundamento na rígida separa-
ção entre gêneros.
A separação entre os gêneros está ancorada no saber dis-
cursivo de ordem biológica. De acordo com Swain (2006), o co-
nhecimento biológico constrói a diferença entre feminino/mas-
culino, tendo como parâmetro a exterioridade genital. Quando

117
naturalizada no regime de verdade, segundo a autora, as dife-
renças desaparecem da “ordem do discurso e ancora crenças e
tradições que organizam o feminino e o masculino no binômio
inferior/superior, e são instituídas em sistemas de dominação”
(SWAIN, 2006, p. 131).
Essa diferença no regime de verdade islâmico fundamen-
talista é materializada no discurso religioso por meio do mito
adâmico de criação do mundo. Demant (2014) explica em suas
pesquisas que o mito reproduz a vontade de verdade que a mu-
lher foi criada por Deus para ser uma auxiliadora do homem e
para que este não ficasse sozinho.
É referenciado nesse saber discursivo que o sujeito mulher
iraniana no início do século passado era percebido como ou-
tro desigual, entranhado, como afirma Sampaio (2006, p. 77):
“no jogo estratégico do poder”, o sujeito mulher era concebido,
antes de tudo, como corpo envolto por limitações. Essas limi-
tações, para Perrot (2006, p. 67), aprisionava o sujeito “em seus
corpos frágeis, enfermos e histéricos”.
Enquanto lugar estratégico de atuação do poder, o corpo,
como afirma Foucault (1997, p. 132), “em qualquer sociedade
está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe im-
põem limitações, proibições ou obrigações”.
Essas limitações, obrigações e proibições na formação dis-
cursiva islâmica fundamentalista eram impostas no seio do
ambiente familiar. No universo mulçumano, a casa é o espaço
de disciplinamento do corpo do sujeito mulher, que está en-
trelaçado em uma rede de subordinação, de onde, segundo “a
tradição, a mulher só deve se ausentar somente duas vezes na
sua vida adulta: no dia do seu casamento e no do seu enterro -
em ambos os casos completamente coberta” (DEMANT, 2014,
p. 152).
A imposição de certas práticas, a exemplo a proibição da
circulação do sujeito mulher em ambientes públicos ou a veda-
ção a exposição do corpo, é evidenciada na sequência discursiva
através da afirmativa do sujeito-autor: “as mulheres raramente

118
podiam sair de casa, e quando o faziam era acompanhadas e
cobertas da cabeça aos pés”, é resultado da atuação do poder
nesse espaço social.
O poder, de acordo com Sampaio (2006, p. 23), produz va-
riadas formas de dominação e está “intricando em outros de
tipos de relações (de produção, de aliança, de família, de se-
xualidade)”. As relações de poder, movimentadas no espaço do-
méstico onde residiam os sujeitos inscritos em uma formação
discursiva fundamentalista, exercem a dominação dos sujeitos
mulheres mediante o disciplinamento dos seus corpos, buscan-
do, segundo Foucault (1997), enquadrá-los ao modelo de con-
duta normatizado.
O disciplinamento, por sua vez, instaura-se por meio da-
quilo conceituado por Foucault (1997) de olhar hierárquico, ou
seja, o olhar fiscalizador do sujeito homem, expresso na contí-
nua vigilância, que visa adestrar e controlar o comportamen-
to do sujeito mulher. O ato de disciplinar encontra escopo nas
vontades de verdade construídas no discurso religioso.
O discurso religioso, ratificado pelo discurso médico, pau-
tado na vontade de verdade de que o sujeito mulher é o outro
desigual, foi naturalizado na formação discursiva islâmica gra-
ças à obrigatoriedade do ensino religioso, que tem uma das
fontes o Alcorão como disciplina a ser ministrada na escola.
Segundo Swain (2006), a naturalização resulta no estado de do-
minação do sujeito mulher. A naturalização ancora crenças e
tradições que organizam o “feminino e o masculino no binômio
inferior e superior” (SWAIN, 2006, p. 131), instituindo o sistema
de dominação sob a identidade desprestigiada no meio social.
A condição de outro desigual na formação discursiva islâ-
mica fundamentalista foi reproduzida, ainda, no discurso jurí-
dico, legalizando no âmbito legislativo a condição subalterna
do sujeito mulher. A ratificação, na esfera legislativa, foi pos-
sível porque, segundo Altoé (2003), os Estados que adotam o
islamismo como religião sofrem a interferência da religião na
política.

119
A constituição desse outro desigual, sagrado e submisso é
associada no romance autobiográfico também aos elementos
da secularidade e da profanidade, como podemos observar na
análise realizada nas reflexões presentes no tópico a seguir, sen-
do possível perceber, dado ao advento de um intenso processo
de ocidentalização, o movimento de um conjunto de repre-
sentações valorativas, fruto das relações de poder e resistência
vigentes na esfera discursiva que possibilitam a mobilidade,
como esclarece Hall (2014) ou a fluidez , como afirma Bauman
(2009), da identidade feminina.

O outro secular e profano

De acordo com a narrativa, Azar Nafisi, a primeira filha de


Nezhat, teve a sua infância e adolescência marcadas por pro-
fundas mudanças decorrentes do processo de ocidentalização,
que teve como principal consequência a interferência nos usos
e costumes do Irã. Os nascidos nesse período testemunharam a
adoção de práticas, veementemente, condenadas por gerações
passadas, pois iam de encontro aos preceitos religiosos a partir
dos quais o indivíduo se relacionava consigo mesmo e com o so-
cial para se constituir como sujeito histórico e cultural, envolto
nas relações de poder instituídas em seu tempo.
A ocidentalização alterou lentamente a relação entre gê-
neros, estendendo garantias antes de destinação exclusiva ao
masculino para o feminino, a saber: a educação, o sufrágio uni-
versal, a escolha do futuro sócionupcial, a exposição pública
sem o acompanhamento de um parceiro do sexo oposto etc..
O exercício de alguns desses direitos é enfatizado no romance
autobiográfico, quando a narradora rememora a fase em que
era jovem, transcrita na sequência discursiva a seguir.

Quando eu era jovem, nas décadas de 1950 e de 1960, tí-


nhamos como certos nossa educação e nossos livros, assim
como nossas festas e cinemas. Vimos às mulheres se tor-

120
nando ativas em todos os níveis do Parlamento – entre elas,
aliás, a minha própria mãe – e chegando a ocupar ministé-
rios. (NAFISI, 2009, p. 14).

Nas décadas de 1950 e 1960, o sujeito mulher iraniana vi-


venciou, além da já comentada abertura do espaço político, a
propagação do direito à educação para todas as classes sociais
e, não apenas, para aquelas que dispunham de boas condições
financeiras. Essa garantia foi efetivada por meio da construção
de instituições destinadas à regulamentação do ensino em dis-
tintos níveis, inclusive, na modalidade superior, com a criação
de universidades.
Diversamente da antecedente, a geração na qual estava si-
tuava o sujeito filha se distingue por uma maior flexibilidade
quanto à resistência e assimilação às medidas previstas na Re-
volução Branca, que exportou para o Irã os costumes e a cultu-
ra do povo ocidental, segundo Bouhdiba (2006), e as relações de
força modalizadas no discurso secular.
A aceitação evidencia a naturalização do regime de verdade
que fornece para o sujeito ocidental as representações, nas pa-
lavras de Nietzsche (2007), as metáforas habituais necessárias à
valoração do meio social.
Responsável por individualizar as representações, o regime
de verdade seria, para Foucault (2011), a política geral de verda-
de estipulada em determinada sociedade pelo movimento das
relações de força, que sinaliza os modelos de discursos.

[...] que acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os meca-


nismos e as instâncias que permitem distinguir os enuncia-
dos verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns
e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados
para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o
encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOU-
CAULT, 2009, p. 12).

121
Constituído em meio às relações de poder, o sujeito irania-
no adere às normatizações, aos discursos verdadeiros presen-
tes na política geral de verdade ocidental, ou seja, naturaliza
os sentidos permitidos na formação discursiva, espaço onde al-
guns discursos são silenciados para que outros possam ascen-
der, conforme Pêcheux (1998). Nas palavras de Orlandi (2007,
p. 17), seria um “espaço de errância dos sentidos, de itinerância
dos sujeitos e, também, como lugar de instauração do silêncio”.
A incorporação da forma sujeito ocidental resultou das
ações de resistência empreendidas pelo sujeito mulher ira-
niana avessa à perpetuação de um modelo de feminino que se
mostrava inadequado ao atual período histórico e cultural mar-
cado pelas novas relações de poder que estavam no cerne da
secularização do Irã. Enquanto lugar da recusa, a resistência,
segundo Sampaio (2006, p. 76), é uma força que “questiona o
estatuto do indivíduo”, tanto pensado em termos de uma iden-
tidade imposta na relação consigo e com os outros, quanto visto
como algo isolado ou como pura subjetividade. Vista sob essa
ótica, a resistência “e suas lutas não empreendem a adequação
ou respeito ao poder, suas reivindicações não se pautam por
continuar no jogo do poder, e sim por recusá-lo, ou ainda impe-
dir o jogo de ser jogado” (SAMPAIO, 2006, p. 17).
A resistência empreendida pelo sujeito mulher remodela
as práticas sociais e históricas e, tendo em vista o fato da iden-
tidade ser, de modo semelhante, inventada no interior das re-
lações de forças, interfere ainda no processo de identificação,
provocando a eclosão de novas identidades. A recusa à iden-
tidade fundamentalista islâmica significava a rejeição a todos
os mecanismos, instrumentos, discursos e vontades de verdade
instituídos no regime de verdade iraniano para justificar a de-
preciação, a inferiorização e a sujeição do sujeito mulher. Nes-
se sentido, a resistência visava, usando as palavras de Sampaio
(2006), impedir o jogo de ser jogado.
Se, por outro lado, essa resistência não esteve, ou não foi
possível perceber a sua presença, no início do século, as ge-

122
rações posteriores foram marcadas justamente pela sua pre-
sença, fazendo-a também um elemento integrante da identi-
dade do sujeito mulher iraniana. As transformações históricas,
discursivas e ideológicas promoveram o surgimento de novos
modos de representação do feminino, ocasionando o deslize
da identidade do sujeito, bem como a sua movimentação entre
formações discursivas antagônicas, materializadas, no roman-
ce autobiográfico, pela clara valorização ora da sacralidade dos
sujeitos ora da secularização destes.
Mas, apesar da inclusão desse novo elemento, a sacralida-
de, materializada na conservação dos valores e crenças do isla-
mismo não possibilitou a modificação por completo da identi-
dade do sujeito mulher, estando ainda fortemente marcada por
feições religiosas que, ainda no século XXI, têm sido uma ca-
racterística fundante dessa identidade, pois as suas raízes têm
alicerces profundos.

Palavras finais

O desenvolvimento desse estudo contribuiu para a com-


preensão de que a constituição do indivíduo em sujeito é re-
sultado das relações de forças instituídas, historicamente, em
determinada sociedade. Nesse sentido, os modelos de mascu-
lino e feminino naturalizados, em todo e qualquer espaço dis-
cursivo, é uma criação humana, reforçada e ratificada através
dos jogos de verdade.
No Irã, espaço discursivo representado no objeto de análise
dessa pesquisa, no romance autobiográfico, O que eu não contei,
de autoria de Azar Nafisi, as relações de poder movimentadas,
no transcorrer do século passado, interpuseram formas diver-
sas de representação do sujeito.
Especificamente, no tocante à constituição do sujeito mu-
lher iraniana, foco investigativo de nossas reflexões, percebe-
mos que a alternância nas formas de governo e, consequente-
mente, dos regimes de verdade, instituídos pelas relações de

123
poder em movimento, em distintos períodos, resultaram em
uma interferência no processo de identificação. Essa interven-
ção provocou a fluidez da identidade e o surgimento de diferen-
tes formas de representação do feminino.
A instauração das representações, materializadas pelo su-
jeito autora, no romance autobiográfico, demonstram que a
constituição do sujeito mulher iraniana, no desenrolar do sé-
culo XX, teve como alicerce o constante embate entre a sacrali-
dade e a secularização, evidenciado através da conservação das
tradições islâmicas, associada à adoção dos costumes e hábitos
ocidentais.
A celeuma sagrado versus profano, vigente em um espaço
discursivo caracterizado pelo ensino secular da religiosidade,
resultou, se não expressamente, mas tacitamente, na desapro-
vação aos modelos de feminino divergentes do islâmico funda-
mentalista.
Esse sujeito, de acordo com a visão particular de Azar Nafi-
si, apesar das modificações de ordem histórica, social, cultural
e política, sofria muitas restrições que perpetuavam o lugar se-
cundário e subalterno, enfatizado no regime de verdade funda-
mentalista islâmico.

REFERÊNCIAS

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BAUMAN, Z. Vida Líquida. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
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ção: Eni Puccineli Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 1998.
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Foucault. São Paulo: Editora da UNESP, 2006, p. 33-44.

125
126
GRAMÁTICA, DISCURSO E ENSINO:
O QUE É POSSÍVEL ENUNCIAR?

Fabíola Nóbrega
Manassés Morais Xavier
Maria de Fátima Almeida
Patrícia Silva Rosas de Araújo

127
É mais do que necessária a ênfase crítica dos estudos linguísti-
cos e o necessário contato do professor – não só de língua portu-
guesa como os demais – com a língua materna e a proposta da
Linguística, vista como ciência que estuda a linguagem e seus fe-
nômenos. [...] Considerar a gramática como verdadeiramente
da ordem da existência é considerar a existência da ordem
do discurso. (NASCIMENTO; SOUZA, 2018, p. 11, itálicos dos
autores).

128
O
objetivo geral desse artigo é oferecer uma discussão teó-
rica sobre como é possível compreender estudos de des-
crição de Língua Portuguesa à luz de uma perspectiva
dialógico-discursiva advinda do Círculo de Bakhtin. Partimos
do princípio de que o eixo norteador do Círculo recai em consi-
derar as atividades linguísticas de modo contextualizado e em
desconsiderar a abordagem centrada, apenas, na estrutura de
um sistema isolado e sem sentido.
Para tanto, valemo-nos da assertiva de Mikhail Mikhailo-
vich Bakhtin (2013, p. 23) para quem “As formas gramaticais
não podem ser estudadas sem que se leve sempre em conta seu
significado estilístico. Quando isolada dos aspectos semânticos
e estilísticos da língua, a gramática inevitavelmente degenera
em escolasticismo”.
Em outras palavras, o pensamento bakhtiniano nos apre-
senta que o tratamento com a língua deve e precisa estar com-
prometido com as vivências discursivas que preenchem as prá-
ticas sociais de comunicação e de interação nos mais variados
campos de atividade humana. Do contrário, cumpriremos, en-
quanto linguistas, uma descrição prescritiva do objeto língua,
desprezando-o enquanto um fenômeno verboideológico.
No sentido de, brevemente, discutirmos sobre a relação
gramática e seu ensino em perspectiva dialógico-discursiva, o
capítulo está organizado da seguinte forma: esta introdução,
um tópico em que apresentamos a gramática em sintonia com
os princípios da Teoria Dialógica da Linguagem, do Círculo de
Bakhtin, e as palavras finais seguidas da lista de referências bi-
bliográficas.

129
O ensino da gramática sob o olhar dialógico-discursivo da lin-
guagem

O Círculo de Bakhtin investe em uma perspectiva sobre a


língua(gem) a partir da sua vinculação à instâncias de vivencia-
mentos histórico-discursivos, lendo o discurso, portanto, como
sendo a vida verboideológica em movimento ou a prática de
linguagem designando um conjunto de enunciados que se rela-
cionam entre si e que possuem sentidos demarcados.
É dentro desse raciocínio que situamos o olhar para a
gramática e seu consequente ensino. A preocupação com o
ensino de gramática é antiga. Diversos estudos são realizados
com o intento de oportunizar uma aprendizagem da língua que
seja mais funcional, mais atravessada por questões verboideo-
lógicas subjacentes ao uso das estruturas gramaticais em con-
textos específicos de interação humana.
Afinal, de que gramática estamos falando? A literatura da
Linguística nos apresenta diferentes concepções de gramática.
Não é nosso objetivo nesse curto capítulo, para não dizermos
curtíssimo!, realizarmos um levantamento sobre tais concep-
ções. Cabe-nos, portanto, destacarmos que compreendemos
por gramática o estudo de descrição analítica sobre o funciona-
mento da língua em relação aos seus usos dialógico-discursivos
situados em contextos de interações verbo-ideológicas. Dialó-
gico, por estar em constantes diálogos com outros dizeres, por
funcionar como respostas a outros enunciados. Discursivo por
filiar-se à redes ideológicas de construções de sentidos, senti-
dos marcados e demarcados pela natureza sócio-histórica da
linguagem.
No que toca especificamente à concepção de gramática vol-
tada ao funcionamento da língua, chamamos o pensamento de
Neves (2003, p. 37) para quem essa concepção “[...] é dirigida
para a questão da comunicação eficiente, a chamada “compe-
tência comunicativa” dos falantes, [...] é inserida em um mode-
lo de interação verbal [...] é assentada no ponto de vista de que

130
o usuário da língua natural opera não apenas com a “capaci-
dade linguística” mas também com a “capacidade epistêmica”,
“capacidade lógica”, “capacidade perceptual”, e, afinal, “capaci-
dade social”, [...]” (NEVES, 2003, p. 37, aspas da autora).
Para além dessas colocações de Neves (2003), que se fi-
liam aos estudos funcionalistas da linguagem, acrescentamos
a perspectiva que se filia à Teoria Dialógica da Linguagem: uma
concepção de gramática voltada ao funcionamento da língua
alicerçada nos estudos do Círculo de Bakhtin que considera,
por sua vez, a capacidade dialógico-discursiva de falantes inte-
ragirem, valorativamente, por meio de estruturas gramaticais
que potencializam modos de atuação social em diferentes cam-
pos da comunicação discursiva.

[...] para uma compreensão correta da língua e da sua cons-


tituição, os problemas da sintaxe possuem enorme impor-
tância. Pois, de todas as formas da língua, as sintáticas são as
que mais se aproximam das formas concretas do enunciado, isto
é, daquelas dos discursos verbais concretos. [...] Enquanto o
enunciado como um todo permanecer terra incógnita para
o linguista, não se pode falar de uma compreensão real,
concreta e não escolástica das formas sintáticas. (VOLÓCHI-
NOV, 2017, p. 242, itálicos da tradução).

Particularmente no que se refere ao ensino de gramática,


em “Questões de estilística no ensino de língua”, Bakhtin (2013)
acentua apontamentos relevantes sobre o ensino de língua, es-
pecificamente, o trabalho com a gramática nas escolas de Edu-
cação Básica. Isso ocorre a partir da experiência e das práti-
cas pedagógicas de Bakhtin, enquanto professor de escolas na
Rússia. Apesar de essas discussões terem sido engendradas no
século passado, podemos afirmar que elas são bastante con-
temporâneas, pois nos fazem (re)pensar o ensino tradicional
da língua materna tão discutido atualmente.
Conforme Xavier e Bezerra (2014), precisamos voltar o

131
olhar para como o ensino da gramática está sendo realizado na
Educação Básica como um todo, estabelecendo-se uma relação
entre o procedimento metodológico e a perspectiva dialógica
da linguagem, a partir da consideração dos aspectos semânti-
cos e estilísticos da língua.
Tal posicionamento corrobora o posto por Bakhtin (2013)
quando assevera que, enquanto professores e/ou formadores
de professores, devemos evitar o isolamento das formas grama-
ticais em um tratamento que privilegia, unicamente, a intera-
ção da forma pela forma. Bakhtin menciona que não se deve es-
tudar a gramática sem levar em consideração a estilística que,
por sua vez, trata-se do modo de seleção, apropriação e uso das
formas sociais da linguagem.

Toda forma gramatical é, ao mesmo tempo, um meio de re-


presentação. Por isso, todas essas formas podem e devem
ser analisadas do ponto de vista das suas possibilidades de
representação e de expressão, isto é, esclarecidas e avaliadas
de uma perspectiva estilística. No estudo de alguns aspectos
da sintaxe, aliás muito importantes, essa abordagem estilís-
tica é extremamente necessária. Isso ocorre, sobretudo, no
estudo das formas sintáticas paralelas e comutativas, isto é,
quando o falante ou escritor tem a possibilidade de escolher
entre duas ou mais formas sintáticas igualmente corretas do
ponto de vista gramatical. Nesses casos, a escolha é determi-
nada não pela gramática, mas por considerações puramente
estilísticas, isto é, pela eficácia representacional e expressi-
va dessas formas. (BAKHTIN, 2013, p. 24-25).

Como vemos, a abordagem estilística da gramática, pro-


posta por Bakhtin, toma como ponto de reflexão a função es-
tilística que é requerida quando os sujeitos de linguagem são
expostos a reais e efetivas atividades de interações discursivas.
Logo, considerar as formas gramaticais em uso corresponde a
considerar o estilo como requisito fundante para a observação

132
dos fenômenos gramaticais, destacando, nesse sentido, as in-
tenções de quem põe as estruturas da língua em uso nos mais
variados contextos de comunicação, bem como os modos re-
presentacionais de organização sintática, com a finalidade de
cumprir com o exercício dialógico de enunciar e de suscitar
respostas ao que foi concretamente enunciado.
O filósofo russo afirma, também, que muitos professores
de sua época não conseguiam fazer um diálogo entre a estilísti-
ca e o conteúdo gramatical abordado. Como os materiais didá-
ticos pouco ajudavam esses profissionais no processo metodo-
lógico e não conseguiam mostrar, aos aprendizes, objetivo de
se aprender tal conteúdo e suas implicações na materialidade
linguística, Bakhtin criou um projeto metodológico, por meio
de uma questão específica: o período composto por subordina-
ção sem conjunção e obteve sucesso (BEZERRA; XAVIER, 2014).
Seu projeto de ensino de gramática fazia com que os alunos
percebessem em quais as condições, por exemplo, uma oração
subordinada adjetiva pode ser transformada em um particípio
e como tal mudança não é possível. Segundo Bakhtin (2013),
essa forma de se olhar para a estrutura facilita a aprendizagem,
envolve os alunos em atividades de reflexões sobre a gramáti-
ca que privilegiam a vida verboideológica fluindo no ritmo das
interações discursivas: “[...] os estudos e exercícios de estilísti-
ca podem ser apaixonantes. [...] explicam a gramática para os
alunos: ao serem iluminadas pelo seu significado estilístico, as
formas secas gramaticais adquirem novo sentido para os alu-
nos, tornam-se mais compreensíveis e interessantes para eles.”.
(BAKHTIN, 2013, p. 40).
Diante disso, é possível, sim, pensar o ensino da descrição
gramatical por uma perspectiva bakhtiniana. Afinal, em sala
de aula, o professor, ao buscar a aprendizagem do seu aluno
promove uma interação que viabiliza uma troca dialógica de
conhecimento sobre a linguagem. A dialogia, conforme Xavier
e Bezerra (2014), é uma relação de forças. No entanto, nessa
relação não há ganhador ou perdedor. Nessa relação dialógica,

133
as forças convivem e interagem de forma tensa e, muitas vezes,
contraditória a partir de uma luta ideológica em que as duas
forças se transformam de alguma maneira. E Bakhtin acredita
que isso deve ocorrer na sala de aula. Não precisamos ditar os
temas, as ideologias, os gêneros, as éticas e estéticas; precisa-
mos estimular nossos alunos a pensar, a interagir.
Dentro desse cenário, entendemos como oportuno traba-
lhar a descrição gramatical sob a luz de um fenômeno de inte-
ração discursiva, como o resultado de práticas sociais histori-
camente situadas.

Logo, pensar no texto como discurso significa pensar na


ideologia histórica que o instituiu. Isso quer dizer que não
se pode analisar um texto como uma fotografia congelada
de formas gramaticais fixas, que justifiquem o trabalho com
a gramática, como aparece em grande número de livros di-
dáticos. Ao ler uma página publicitária de telefonia celular
com os alunos – suponha de 8ª série –, o professor não pode
utilizar essa situação só para conceituar e trabalhar com os
verbos na forma do modo imperativo. Isso é morte ao dis-
curso! O texto tem intenção – quer vender –, tem interlocu-
tor em que projeta uma reação – classe média consumidora
–, tem situação – uma revista semanal – etc., mas tem, so-
bretudo, ideologia – força de um mercado consumista pau-
tado no louvor à vida digitalizada (moderna para alguns).
(WACHOWICZ, 2012, p. 23).

Essa perspectiva de abordagem sobre a descrição gramati-


cal, no contexto da sala de aula, toma como referência a neces-
sidade de aproximar os alunos das intenções do dizer quando
produzimos e consumidos gêneros do discurso. Dessa forma,
o discurso e, consequentemente, o ideológico ganham fôlego
nas estratégias didático-discursivas do professor ao construir
conhecimentos sobre a língua em uso com seus alunos.
A função da análise linguística, nesse panorama, insere-

134
-se como uma possibilidade de fazer com que o processo en-
sino-aprendizagem de língua seja pautado pelo teor estilístico,
pelas valorações que são estabelecidas em práticas sociais de
linguagem.
Como consequência, temos uma abordagem de descrição
de língua que entende gramática como sendo o exercício de
compreender a organização de elementos fonológicos, morfo-
lógicos, sintáticos e semânticos em prol de gestos de interpre-
tação que acentuam o fator de vida verboideológica dialógico-
-discursivamente estabelecida quando as interações sociais são
realizadas.
Portanto,

A língua, como o meio concreto vivo habitado pela cons-


ciência do artista da palavra, nunca é única. Só é única como
sistema gramatical abstrato de formas normativas, desviada
das assimilações ideológicas concretas que a preenchem e
da contínua formação histórica da língua viva. A vida social
viva e a formação histórica criam no âmbito de uma língua
nacional abstratamente única uma pluralidade de universos
concretos, de horizontes verboideológicos sociais e fecha-
dos. Os elementos fechados e abstratos da língua no inte-
rior desses diferentes horizontes são completados por con-
teúdos semânticos e axiológicos e soam de modo diferente.
(BAKHTIN, 2015, p. 63).

Assim, o tratamento da gramática realizado, unicamente,


com o propósito de reconhecer/identificar estruturas linguísti-
cas convoca uma concepção de linguagem que a entende como
uma abstração, como um emaranhado de estruturas que inde-
pendem do sujeito e dos contextos sociais.

135
Palavras finais

Como pensar em uma abordagem da gramática sob uma


perspectiva dialógico-discursiva? Para tentar responder a esse
questionamento, compreendemos como oportuno chamar as
palavras de Neves (2018) quando retoma os estudos do linguista
John W. Du Bois sobre a correlação de padrões gramaticais e
padrões discursivos, estabelecendo, para tanto, três pontos teó-
ricos de ligação entre gramática e discurso:
a) Os falantes exploram a estrutura gramatical disponível
para realizar seus propósitos de fala;
b) A soma daquilo que os falantes fazem no discurso exibe
um padrão recorrente que ultrapassa o que é predito pelas re-
gras gramaticais; e
c) A estrutura gramatical tende a desenvolver-se ao longo
de linhas formuladas pelo padrão discursivo.
No que tange ao apresentado nessa sequência de três apon-
tamentos teóricos, podemos depreender que, na primeira
questão, vemos que o uso das estruturas gramaticais não está,
unicamente, a serviço de processos de relações internas de um
sistema linguístico. Para além dessa realidade de se organizar
enquanto um sistema interno, há os propósitos ou as intenções
do dizer. Com esse fito, é preciso reconhecer a interferência do
individual e do social em uma abordagem sobre a descrição da
língua que se presta a desenvolver uma reflexão humanizada
sobre a linguagem.
Em b), o apontamento teórico estabelecido por Du Bois
(apud NEVES, 2018) considera que o discurso, enquanto instân-
cia de uso, de ocorrência linguística, torna-se recorrente, pa-
dronizando usos que ultrapassam os limites prescritivos das re-
gras gramaticais. Em outras palavras, as situações discursivas
de atividades de linguagem acomodam padrões relativamente
estabilizados que fazem as regras da normatividade gramatical
flutuarem e, com essa flutuação, imprimirem diferentes possi-
bilidades que cumprem eficazmente com processos de comu-

136
nicação e de interações sociais. A gramaticalização, por exem-
plo, demonstra essas possibilidades, uma vez que “[...] é um
fenômeno relacionado a essa necessidade de se refazer que toda
gramática apresenta.” (CUNHA, 2008, p. 173, itálicos da autora).
Por fim, não menos importante, podemos entender que em
c) o autor nos apresenta o caráter sistêmico do discurso influen-
ciando os parâmetros da estrutura gramatical. Segundo Du
Bois, a partir do escrito por Neves (2018, p. 136), “[...] podemos
reconhecer o caráter sistêmico do discurso apreciando tanto
sua natureza distintiva quanto seu impacto sobre a gramática.
Discurso e gramática reclamam cada um seu tipo distintivo de
padronização, não se reduzem um ao outro, entretanto intera-
gem e interinfluenciam-se profundamente em todos os níveis,
[...]”.
E essa condição afeta, significativamente, o ensino de gra-
mática. Como nos sinaliza a epígrafe desse capítulo, a gramá-
tica está na ordem do existir e o existir na ordem do discurso.
Acreditamos que está, portanto, na ordem do ensino de gramá-
tica a existência do discurso como uma proposta dialógica para
se considerar os sentidos e seus efeitos como norte para a des-
crição analítica dos fenômenos que envolvem o funcionamen-
to da linguagem: o olhar dialógico-discursivo para a gramática
pode cumprir com esse intento, o de acentuar a perspectiva que
está atenta ao funcionamento gramatical da vida verboideoló-
gica da linguagem inserida em eventos efetivos de produção e
de consumo de enunciados concretos.
Em suma, trabalhar a gramática sob uma concepção dialó-
gico-discursiva corresponde, então, a considerar os usos fun-
cionais das estruturas gramáticas a partir de um olhar enun-
ciativo, voltado para os acontecimentos que motivaram aquele
comportamento gramatical e não outro em determinados con-
textos de interação humana. Considerar, portanto, a natureza
de vida concreta e efetiva da linguagem que o Círculo de Bakh-
tin tanto prega. E isso precisa, também, alcançar o ensino. É
por essa razão que propusemos, embora que de forma tímida,

137
enunciar sobre a relação mais que necessária entre gramática,
discurso e ensino.

REFERÊNCIAS

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posfácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: 34, 2015.
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do. (Org.). Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2008, p. 157-176.
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Letras: 2018, p. 09-13.
NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática Funcional: interação, discurso e
texto. São Paulo: Contexto, 2018.
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São Paulo: Contexto, 2003.
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problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tra-
dução,
notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: 34,
2017.
WACHOWICZ, Teresa Cristina. Análise linguística nos gêneros textuais. Curiti-
ba: Intersaberes, 2012.
XAVIER, Manassés Morais; BEZERRA, Symone Nayara Calixto. Questões de esti-
lística no ensino de língua: contribuições da Análise Dialógica do Discurso
no Livro Didático do Ensino Médio. In: 25ª Jornada Nacional do Grupo de
Estudos Linguísticos do Nordeste (GELNE), 2014, Natal. 25ª Jornada Nacio-
nal do Grupo de Estudos Linguísticos e Literários do Nordeste (GELNE). Na-
tal: EDUFRN, 2014.

138
LEITURA CRÍTICO-SOCIAL DO
GÊNERO ANIMAÇÃO NO
ENSINO MÉDIO

Ewerton Lucas de Mélo Marques


Manassés Morais Xavier
Robéria Nádia Araújo Nascimento

139
140
C
om o advento da Pedagogia dos Multiletramentos, a par-
tir do Grupo de Nova Londres, tornou-se nítido o fato
de que a sociedade está cada vez mais emersa nos usos
variados da linguagem. Esses usos ficam em evidência quando
observamos o contato das pessoas com os diversos gêneros do
discurso, incluindo os de âmbito digital. Estes, em sua maioria,
são gêneros de natureza multimodal e multissemiótica, como é
o caso da animação – um gênero do discurso que, dependendo
da sua produção dialógico-discursiva, pode refratar fenômenos
sociais diversos que permeiam a sociedade, tornando-se um
bom recurso para as aulas de leitura no componente curricular
de Língua Portuguesa (doravante, LP).
Considerando a necessidade de conhecer de forma mais
aprofundada o gênero animação e as possibilidades de situar a
relação entre este gênero e o ensino de LP, questionamos nes-
te capítulo: qual o impacto da intervenção didática-pedagógica
de incentivo à leitura de animações na formação dos alunos?
Em resposta, objetivamos analisar a percepção e pontos de vis-
ta dos alunos do Ensino Médio (EM), na construção de leituras
produzidas a partir animações.
Os dados apresentados nesse estudo são oriundos de uma
intervenção extensionista (PROBEX/UFCG/2019) realizada em
uma escola pública de EM localizada em um município parai-
bano, tendo como objetivo estimular atividades de leituras crí-
ticas do gênero discursivo animação.
Este trabalho caracteriza-se como uma pesquisa-ação, pois
visamos “[...] intervir na situação, com vista a modificá-la” (SE-
VERINO, 2007, p. 120). Este capítulo está organizado em três
tópicos, além das considerações iniciais e finais. No primei-

141
ro tópico “Discussões teóricas”, discutiremos a partir de dois
subtópicos: (1) Pedagogia dos Multiletramentos e (2) uma pers-
pectiva bakhtiniana para o estudo do gênero animação. No se-
gundo tópico, “Discussões metodológicas”, apresentaremos o
trabalho realizado com um projeto de extensão – PROBEX; e no
terceiro tópico “Discussões analíticas”, destacaremos os avan-
ços nas leituras dos alunos na experiência do PROBEX.

Discussões teóricas

- Pedagogia dos Multiletramentos

O conhecimento ao longo dos últimos anos tem ocorrido


de maneira veloz e com o advento da globalização – que possui
como suporte as Tecnologias Digitais de Informação e Comuni-
cação (TDICs) – tivemos que ressignificar o modo de interagir
com o mundo e com as práticas da leitura e da escrita, pois esta-
mos imersos em um sistema no qual a hipermídia modificou as
nossas práticas de letramento, que para Kleiman (2008, p. 20),
é um fenômeno que “[...] extrapola o mundo da escrita tal qual
ele é concebido pelas instituições que se encarregam de intro-
duzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita”.
Após as TDICs, os nossos letramentos necessitaram passar
por ressignificações e adaptações para as novas práticas multi-
letradas – precisamos ‘extrapolar’ as tradições de ensino para
conseguir um resultado produtivo na vida dos estudantes, em
especial os do EM. Por isso, a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), em sua competência 7 da área de linguagens, orienta-
-nos a,

Mobilizar práticas de linguagem no universo digital, consi-


derando as dimensões técnicas, críticas, criativas, éticas e
estéticas, para expandir as formas de produzir sentidos, de
engajar-se em práticas autorais e coletivas, e de aprender a
aprender nos campos da ciência, cultura, trabalho, informa-

142
ção e vida pessoal e coletiva. (BRASIL, 2018, p. 490).

Acreditamos que uma forma de atender a esta orientação


da BNCC para o EM seria por meio da Pedagogia dos Multile-
tramentos. Pedagogia esta que surgiu no ano de 1996, a partir
da reunião do Grupo de Nova Londres (GNL), quando este se
reuniu com o objetivo de discutir défices e disparidades em re-
sultados educacionais que não estavam alcançando resultados
satisfatórios nos EUA, Austrália e Reino Unido.
A partir das discussões do Grupo, observou-se a necessi-
dade de implementação de uma nova pedagogia que atribuís-
se sentido aos discentes e aos docentes para trabalhar com os
multiletramentos, tendo em vista que o uso das TDICs estava
em eminências de inclusão nas práticas pedagógicas futuras,
tal como atualmente o uso dos grupos WhatsApp tornou-se um
instrumento pedagógico possível para o ensino de LP em insti-
tuições de ensino (cf. XAVIER; SERAFIM, 2020).
A Pedagogia dos Multiletramentos forneceu uma nova me-
talinguagem para as aulas de LP. A partir de uma perspectiva
em que as práticas sociais e multiletradas podem ser inseridas
no letramento escolar e, consequentemente, no ensino de gê-
neros do discurso (BAKHTIN, 2011). Para um ensino considera-
do significativo, o GNL (1996) dispõe seis elementos de design
os quais podem ser utilizados para ao ensino da língua e da lei-
tura. Estes elementos são: 1) o sentido linguístico, 2) o sentido
visual, 3) o sentido auditivo, 4) o sentido gestual, 5) o sentido
espacial e 6) o sentido multimodal.
Todos os elementos de design são importantes para o ensino
nos moldes orientados pelo GNL. No entanto, destacamos
o sentido multimodal, porquanto este dialoga com todos os
demais elementos de design, além de ele ter ligação com dire-
ta com o gênero animação, que será discutido posteriormente.
Para compreendermos a importância do elemento seis – o sen-
tido multimodal –, se faz necessário fazer algumas considera-
ções sobre a multimodalidade e a multissemiótica.

143
Por meio das contribuições de Rojo (2013b), observamos
que os multiletramentos são necessários para compreender
gêneros do discurso, que possuem peculiaridades multimodais
e multissemióticas, como é caso do gênero animação. Para a
autora, as

[...] práticas de trato com os textos multimodais ou multisse-


mióticos contemporâneos – majoritariamente digitais, mas
também digitais impressos – que incluem procedimentos
(como gestos para ler, por exemplo) e capacidades de leitura
e produção que vão muito além da compreensão e produção de
textos escritos, pois incorporem a leitura e (re)produção de ima-
gens e fotos, diagramas, gráficos e infográficos, vídeos, áudio etc.
(ROJO, 2013b, p. 21, grifos nossos).

Observa-se em Rojo (2013a; 2013b) que a multimodalidade


e a multissemiótica são particularidades de textos/enuncia-
dos, que incluem outras semioses, como imagens, sons, fotos,
vídeos, entre outros, as quais fazem parte do universo que in-
tegram os multiletramentos. Por isso, podemos utilizar esses
recursos para o ensino de língua e leitura como é o caso das
animações – um gênero pode levar os alunos produzirem co-
mentários e discussões sobre temas variados, os quais eles pre-
cisarão fazer relações dialógicas para atribuir sentido ao texto
e as discussões dos temas propostos, além de evocarem seus
(multi)letramentos.
Para atribuir sentido aos textos que possuem particulari-
dades multimodais e multissemióticos, precisamos recorrer ao
elemento de design seis do GNL (1996), o sentido multimodal,
por ele compreender a amplitude dos signos multiletradas. Por
isso, consideramos importante que o professor considere os
construtos teóricos das contribuições de Bakhtin e do Círculo.
Desta forma, ele poderá obter maior rendimento ao trabalhar a
materialidade da língua, visto que

144
[...] o Círculo de Bakhtin apresenta uma rica e profunda produ-
ção [...] de maneira transdisciplinar, buscando dotar de uma
unidade complexa os vários construtos teóricos de diferen-
tes disciplinas que se voltaram para o estudo dos textos, discur-
sos e culturas nos multiletramentos. (ROJO, 2013b, p. 19, grifos
nossos).

Após compreendermos a necessidade de uma pedagogia


dos multiletramentos, apresentaremos no próximo subtópico
uma perspectiva bakhtiniana para o estudo do gênero anima-
ção. Neste, discutiremos como as contribuições bakhtinianas
podem atribuir sentido as aulas de LP a partir do ensino dos
gêneros do discurso para um ensino de leitura dialógico-dis-
cursiva.

- Uma perspectiva bakhtiniana para o estudo do gênero ani-


mação

Nesse tópico, partimos da concepção bakhtiniana de gêne-


ros do discurso, para quem o trato do uso da língua nas ativi-
dades humanas está emerso nestes gêneros – por esta razão o
russo defende que em

Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas


que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da
língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos des-
sa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da
atividade humana [...] A utilização da língua efetua-se em
forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos,
que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da ativi-
dade humana. O enunciado reflete as condições específicas
e as finalidades de cada uma dessas esferas [...] cada esfera
de utilização da língua elabora seus tipos relativamente es-
táveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros
do discurso. (BAKHTIN, 2011, p. 261-262).

145
Percebemos que Bakhtin elenca três conceitos principais
para a construção de sentido nas atividades humanas: a língua,
o enunciado e os gêneros do discurso. Para o linguista, estes es-
tão relacionadas com o funcionamento da interação discursiva.
Observamos que o dinamismo das interações humanas resulta
na possibilidade de surgimento/criação para vários gêneros do
discurso, que para Bakhtin (2011) são formas ou padrões “relati-
vamente estáveis de um enunciado sócio historicamente cons-
truído”. Para Bakhtin, nos comunicamos, falamos, dialogamos
e interagimos por meio dos gêneros do discurso (com o advento
das TDICs, essa comunicação aplica-se também aos meios digi-
tais de comunicação). Em conformidade Bakhtin (2011, p. 284)
temos:

Cada esfera conhece seus gêneros, apropriados à sua


especificidade, aos quais correspondem determinados
estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica,
oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada
uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado
gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente
estável do ponto de vista temático, composicional e
estilístico.

Dada as funções científicas, técnicas, ideológicas e cotidia-


nas dos gêneros do discurso (Op. Cit), podemos fazer uma re-
lação das contribuições bakhtinianas com o gênero animação.
Por meio deste gênero, podemos constatar as contribuições de
Bakhtin, pois as animações são criações que incentivam o pen-
samento crítico-político e a reflexão de temas variados, “[...] as
animações conquistaram um espaço respeitado entre os mais
variados públicos, constituindo, hoje, um gênero importante
como qualquer um outro” (FOSSATTI, 2009, p. 01). A animação
é um gênero do discurso que “[...] sustenta-se pelas leis do me-
tamorfismo universal, a partir das quais tudo pode ser criado e
transformado, independentemente de normativas físicas [...]”

146
(FOSSATTI, 2009, p. 01).
Por meio da arte das animações, podemos refratar a reali-
dade em contextos de interação discursiva, incluindo a repre-
sentação de discursos de pessoas anônimas e famosas, além de
críticas diversas, a exemplo de questões étnico-raciais, ambien-
tais, políticas, religiosas etc. Por isso, as animações, como qual-
quer outro gênero do discurso,

[...] surgem dentro de algumas tradições com as quais se


relacionam de algum modo, permitindo a reconstrução da
imagem espaço-temporal da representação estética que
orienta o uso da linguagem: ‘o gênero vive do presente mas
recorda o seu passado, o seu começo’ [...] se constituem a
partir de situações cronotópicas particulares e também re-
correntes por isso são tão antigos quanto as organizações
sociais. (MACHADO, 2008, p. 158-159)

As animações (em especial aquelas que refratam fenôme-


nos sócio-políticos) abrem um espaço pedagógico para o en-
sino de leitura-dialógica, permitindo a reconstrução da imagem
espaço-temporal da representação estética que orienta o uso da lin-
guagem, conforme observa-se em Machado (2008). O uso des-
te gênero em sala de aula permite ao professor sensibilizar e
aguçar a criticidade do aluno-leitor, devido as particularidades
multimodais, multissemióticas e riquezas dialógico-discursivas
presentes no gênero.
Para que haja um resultado satisfatório no ensino, o profes-
sor necessita evocar os multiletramentos dos seus alunos a par-
tir de leituras de temas variados como política, gênero, violên-
cia, direitos humanos, meio ambiente, dentre outros. Por essa
razão, as contribuições de Bakhtin e do Círculo são relevantes
para uma maior exploração do gênero animação nas aulas de
LP (cf. MARQUES; XAVIER, 2019).

147
Discussões metodológicas

A universidade pública é uma instituição de desenvolvi-


mento da ciência e do conhecimento que os compartilham
com a sociedade através dos cursos de extensão. Partindo deste
princípio, realizamos uma extensão universitária com o apoio
do Programa de Bolsas de Extensão (PROBEX/UFCG/2019) para
incentivar a prática de leitura e aguçar a criticidade de jovens
da 2ª série do EM de uma escola pública de um município da
Paraíba – desenvolvemos o projeto intitulado A leitura de ani-
mações na sala de aula de Língua Portuguesa: aguçando a critici-
dade com realização de 20 de maio a 30 de dezembro de 2019.
O objetivo deste projeto foi trabalhar com textos multimo-
dais e multissemióticos no EM através do gênero animação. Ob-
servamos a possiblidade deste gênero aguçar a criticidade dos
jovens a partir de temáticas diversas. Na extensão, trabalhamos
com cinco temas distintos e em todos eles, realizamos leituras
de animações, a saber: política, meio ambiente, cultura nor-
destina, consumismo, e impacto das tecnologias na sociedade.
Em todos estes temas, os discentes se posicionaram criti-
camente nas discussões mediadas pelo professor da extensão.
Por meio de questionários em material impresso, discutimos
as animações trabalhadas e observamos que os discentes expu-
seram suas considerações sobre o trabalho com os textos mul-
timodais/multissemióticos, evocando seus (multi)letramentos
e conhecimentos de mundo para fazer as relações dialógicas
com cada tema trabalhado. No tópico de “Discussões analíti-
cas”, destacaremos os avanços nas leituras dos alunos na expe-
riência do PROBEX.

Discussões analíticas

Reconhecemos a importância de Bakhtin e do Círculo pelas


contribuições acerca dos gêneros do discurso e reconhecemos,
também, que a leitura é uma atividade cognitiva que eleva os

148
sujeitos de um estado de inércia cultural para um estágio críti-
co-cultural. Partindo deste princípio, propomos trabalhar com
a leitura sob uma perspectiva diferente, uma perspectiva dia-
lógico-discursiva. Para tanto, utilizamos textos multimodais e
multissemióticos a partir do gênero do discurso animação.
No curso de extensão, conforme já situamos neste capítu-
lo, trabalhamos temas diversos para aguçar a criticidade dos
discentes. No entanto, discutiremos nesta análise apenas os
temas política e tecnologia e sociedade. Justificamos a nossa es-
colha, pelo fato de que a nossa metodologia foi praticamente a
mesma em todos os demais temas (leitura, discussão, análise
de relações dialógicas e atividades escrita).
Descrição analítica (1): o trabalho com a série As aventuras
de Bolsomini – estas animações são críticas com efeito de hu-
mor (que não desrespeita o presidente, mas ironiza muitos dos
seus discursos). Na aula da extensão nº 5, realizamos a leitura
do episódio 9 da série. Neste episódio, o personagem Bolsona-
ro, adulto, narra para os seus filhos (os personagens Carlinhos,
Flavinho e Duduzinho) e para deputada Joice Hasselmann (Joi-
cezinha) sobre suas experiências como líder representante de
sua turma na escola – fazendo uma relação dialógica com o seu
mandato presidencial a partir de janeiro de 2019 até o momen-
to. Após reproduzirmos a animação, discutimos as relações dia-
lógicas e trabalhamos com a atividade 1.

149
Enunciado 1

Fonte: Acervo particular dos pesquisadores

Nesta aula, os discentes conseguiram perceber caracterís-


ticas marcantes das animações, como o efeito de humor, crí-
ticas e as relações dialógicas presentes, conforme é possível
verificar na resposta selecionada de uma discente. Na resposta
minuciosa da estudante, lemos elementos que dialogam com
aspectos do governo de Bolsonaro. Vejamos as relações que fi-
zemos entre a resposta da discente e algumas matérias do G1,
R7 e UOL – vejamos a refração e relações dialógicas, a partir de
discursos e elementos que dialogam com o governo.

150
Análise 1: Construindo relações dialógicas
RESPOSTA DA ALUNA RELAÇÕES DIALÓGICAS 1
(1) Bolsonaro convoca ministros para cerimônia de
hasteamento da bandeira antes de reunião (Fonte
G1 – disponível em: https://g1.globo.com/politica/
noticia/2019/04/23/bolsonaro-convoca-ministros-a-
-cerimonia-de-hasteamento-da-bandeira-antes-de-
-reuniao.ghtml.

Acesso em 09.02.2020)

(2) Bolsonaro diz que vai governar o Brasil com a


Bíblia e a Constituição (Fonte R7 -Disponível em:
https://noticias.r7.com/eleicoes-2018/bolsonaro-di-
z-que-vai-governar-o-brasil-com-a-biblia-e-a-cons-
tituicao-29102018.

Acesso em 10.02.2020)

(3) Bolsonaro assinou a posse com caneta “tipo


Bic” brasileira (Fonte G1 – Disponível em: https://
noticias.r7.com/prisma/r7-planalto/bolsonaro-
-assinou-a-posse-com-caneta-tipo-bic-brasilei-
ra-26042019.
Transcrição da resposta
Acesso em 10.02.2020)
Os filhos do Presidente, (1) a bandeira bra-
sileira, (2) à constituição brasileira, (3) a (4) Bolsonaro discrimina Nordeste, diz governador
caneta bic com a qual foi assinado o termo do Maranhão... – (Fonte UOL – Disponível em : ht-
de posse do atual governo, um livro que pa- tps://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-
rece ser (2) a bíblia em menção a religião do -estado/2019/08/07/bolsonaro-discrimina-nordes-
presidente e o (4) pote de barro, lembrando te-afirma-dino.htm.
a fala de discriminatória do presidente, com
relação ao Nordeste. (5) A deputada Joice Acesso em 11.02.2020)
Hasselmann que defende o governo e líder do
governo na Câmara Federal. (5) Bolsonaro escolhe deputada Joice Hasselmann
como líder do governo no Congresso (Fonte G1
– Disponível em: https://g1.globo.com/politica/
noticia/2019/02/26/bolsonaro-escolhe-deputada-
-joice-hasselamnn-como-lider-do-governo-no-con-
gresso.ghtml.

Acesso em 11.02.2020)
Fonte: Acervo particular dos pesquisadores

Algo é sempre criado a partir de outro algo dado, conta-


-nos Bakhtin (2011, p. 326). Para o filósofo, o sujeito se constitui
na interação com o ‘outro’, inserido em uma realidade na qual
perpassam diferentes vozes sociais em constantes e múltiplas
inter-relações dialógicas. Vemos isso na resposta desta aluna,
pois não consiste em uma leitura superficial/simples, mas em
uma leitura crítica e dialógico-discursiva, perpassada por co-
nhecimentos prévios que ela já possuía.
151
Para esta resposta, a discente evocou conhecimentos polí-
ticos e reconheceu elementos multissemióticos (de outras se-
mioses) – a exemplo da representação da Constituição, da Bí-
blia, da caneta de marca bic e de um pote de barro. Conforme
observa-se nas relações dialógicas 1, a aluna respondeu a ques-
tão tendo a percepção dialógica de referências aos discursos
proferidos por Bolsonaro em outras situações reais, uma refra-
ção. Essas semioses foram essenciais para dar vida e sentido a
animação – o sujeito leitor apenas atribui sentido a animação
se evocar seus multiletramentos junto aos conhecimentos dia-
lógicos em uma relação de texto-leitor.
Esta arte gráfico-computadorizada refrata fenômenos e
discursos reais proferidos por Bolsonaro, como uma forma de
representação discursiva. Por isso, os multiletramentos da alu-
na foram essenciais para compreensão dos elementos multi-
modais e multissemióticos do texto. O fenômeno do dialogismo
que observamos a partir da resposta da aluna mostra relações
dialógicas com notícias que ela, possivelmente, leu ou assistiu
pela TV. Em nossas aulas, mostramos aos discentes que na lín-
gua e no texto, seja ele multimodal ou não, não há imparciali-
dade, pois os textos sempre estão repletos de intencionalidade,
incluindo nas linguagens verbal e não verbal.
Descrição analítica (2): nas aulas 7 e 8 do curso de ex-
tensão, trabalhamos o tema tecnologia e sociedade. Nestas au-
las, trabalhamos com alguns impactos negativos causados à so-
ciedade pelo uso excessivo das tecnologias – em especial mau
uso dos smartphones. Trabalhamos com as animações Escravos
da Tecnologia5 e Uso do excessivo do celular6.

5
Animação disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Qx8JIoNOz0Y>
Acesso em 10/09/2019.
6
Animação disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YLkqY5e9518&featu-
re=youtu.be> Acesso em 10/09/2019.

152
Enunciado 2

Fonte: Acervo particular dos pesquisadores

A partir do enunciado 2, selecionamos uma resposta de


uma discente, na qual ela expõe considerações sobre o uso
excessivo das tecnologias e dos celulares, bem como as con-
sequências que estes trouxeram à sociedade. Nesta resposta, é
possível lermos algumas relações dialógicas. Vejamos.

Análise 2: Refração da imagem da sociedade excessivamente


tecnológica
RESPOSTA DA ALUNA

Na contemporaneidade, o excesso da tecnologia está adoecendo a nossa sociedade (1) .


Sem perceber as pessas se aprisionam em um mundo egocêntrico e desumano.

A tecnologia nos trouxe benifícios, facilidades, enfim, meios de se comunicar e re-


solver problemas de uma forma rápidae eficaz. Mas, infelizmente, a humanidade se prendeu
por ter um instrumento poderoso em suas mãos (2). Ao invés de remeter esse dispositivo
ao seu benifício, se prende a futilidade que não acrescenta nada à vida (3). .

É lamentável ver a decadência de uma humanidade que tem tuto nas mãos, para
crescer, evoluir e compartilhar sentimentos comunicações e laços sociais, mas está cada vez
mais indo para o abismo social (4).
Fonte: Acervo particular dos pesquisadores

Relações dialógicas – a discente referiu-se às tecnologias


como nocivas à sociedade. As críticas e posicionamentos dela

153
justificam-se pelo fato de que as animações que trabalhamos
tinham como finalidade social refratar o uso exagerado das tec-
nologias dos smartphones na sociedade e o fato de elas esta-
rem levando as pessoas para um abismo social (conforme voz
da aluna), resulto do uso descontrolado das tecnologias. Em
pesquisas na web, observamos que a resposta da aluna susten-
ta-se por conhecimentos prévios que já epossui. Vejamos as
relações dialógicas 2.

RELAÇÕES DIALÓGICAS 2

Na contemporaneidade, o excesso da tec- Nomofobia: uso excessivo de celular


nologia está adoecendo a nossa sociedade pode levar à ansiedade, tremor e até de-
pressão. Fonte R7 -Disponível em: https://
(1) noticias.r7.com/saude/nomofobia-uso-
-excessivo-de-celular-pode-levar-a-ansie-
dade-tremor-e-ate-depressao-19072015.
Acesso em 04.05.2020
A tecnologia nos trouxe benifícios [...] Celular rouba a atenção e oferece ris-
Mas, infelizmente, a humanidade se pren- cos para quem vive digitando. Fonte
G1 - Disponível em http://g1.globo.com/
deu por ter um instrumento poderoso em jornal-nacional/noticia/2015/09/celular-
suas mãos (2) -rouba-atencao-e-oferece-riscos-para-
-quem-vive-digitando.html. Acesso em
04.05.2020
Ao invés de remeter esse dispositivo ao seu Somos cada vez menos felizes e produti-
benifício , se prende a futilidade que não vos porque estamos viciados na tecnolo-
gia. Fonte BBC News Brasil. - Disponível
acrescenta nada à vida (3). em: https://www.bbc.com/portuguese/ge-
ral-51409523. Acesso em 04.05.2020
É lamentável ver a decadência de uma 1 em cada 4 adolescentes brasileiros
humanidade que [...] está cada vez mais é dependente de internet. Fonte R7 -
indo para o abismo social (4). Disponível em: https://noticias.r7.com/
tecnologia-e-ciencia/1-em-cada-4-ado-
lescentes-brasileiros-e-dependente-de-in-
ternet-13102019. Acesso em 04.05.2020

Conforme verifica-se nesta análise, a aluna fez suas críticas,


de acordo com cohecimnetos prévios e de casos. No quadro de
análise, ela faz afirmações e apresenta uma opinião crítica ao
final do texto. Essa resposta dialoga com os fatos representados
nas animações outrora assistidas e discutidas. Nas animações,
há a presença de todos os elementos da crítica que a discente
expôs. Ou seja, a sua resposta é uma representação dialógico-

154
discursiva do que ela assistiu e discutiu nas animações Escravos
da Tecnologia e Uso do excessivo do celular.

Palavras finais

Sem sombra de dúvidas, no âmbito específico do EM da


Educação Básica, possiblitar aprendizagens que estejam em
sintonia com um olhar dialógico-discursivo para os mais va-
riados campos da comunicação ergue-se como um campinho
pedagógico capaz de proporcionar emancipação de sujeitos,
aflora o argumento, o posicionamento.
Foi com esse intento que as atividades de extensão apresen-
tadas neste capítulo foram pensadas e postas em ação, a partir
da intervenção social nela estabelecida. Tendo como suporte o
gênero discursivo animação e como horizonte formativo aulas
de leituras, o projeto consistiu em oferecer vivências de ensino
e de aprendizagens que aguçassem o senso crítico dos alunos
com a leitura de animações cujas temáticas incidiam em assun-
tos atuais, do contidiano dos alunos.
O recorte dos dados aqui apresentados sinalizam para o
investimento em ações didáticas que se aproximem de uma
concepção de linguagem fortemente inflenciada por aspectos
dialógicos e discursivos, que estudam a língua e seus efeitos de
sentidos, que tragam para o centro das discussões práticas mul-
tiletradas, que facam os alunos, de fato, pensarem sobre o seu
lugar no mundo – o trabalho com animações sugere essa pers-
pectiva crítica de educação.

REFERÊNCIAS

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Fontes, 2011, p. 261-306.
______. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências

155
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russo de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 307-336.
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Disponível em <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/e-noticias/vii-en-
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tir do gênero animação. In: Anais do III CONEPI. João Pessoa: UFPB, 2019.
Disponível em <https://contatosempreendimentos.com.br/site/anais-2019-cone-
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tures. Harvard Educational Review, v. 66, n. 1, p. 60-92, 1996.
XAVIER, M. M.; SERAFIM, M. L. O WhatsApp impactando novas possibilida-
des de ensinar e de aprender no contexto acadêmico. São Paulo: Mentes
Abertas, 2020.

156
MEMES: POSSIBILIDADES DE
LEITURAS DIALÓGICAS SOBRE A
CONSTRUÇÃO DO FAZER DOCENTE

Maria Dnalda Pereira da Silva

157
158
P
artindo da concepção de Bakhtin/Volochínov (2017), para
quem a linguagem é compreendida como lugar de inte-
ração, isto é, concretizada na vida verbal em contextos
específicos de comunicação discursiva, consideramos que as
reflexões sobre a linguagem contemplam, não apenas, o signo
linguístico, mas o signo ideológico, marcado pelas relações so-
ciossubjetivas (XAVIER, 2018).
Para os estudos do círculo bakhtiniano, a realidade da
língua diz respeito à interação verbal, à concepção enunciativa
e dialógica da linguagem, tendo em vista que, na enunciação,
os sujeitos não adotam as formas prontas da língua de um
sistema sígnico abstrato, pois eles estão situados em contextos
socioideológicos, com lugares e posições ideologicamente mar-
cados. Nesse sentido, a linguagem não é neutra e está cheia das
intenções dos sujeitos falantes, refletindo na língua que se con-
figura socialmente concreta, viva e real, em constante processo
de uso e interação.
Bakhtin e o Círculo concebem as relações dialógicas como
constitutivas do discurso, de modo que o discurso passa a ter
uma orientação dialógica, considerando que sempre os dizeres
estão marcados dos dizeres de outros, retomando-os de algum
modo, trazendo à tona os já ditos que, a partir do momento que
são proferidos, adquirem uma nova historicidade discursiva, o
que é justificado, pois a essência do discurso é o diálogo, que
pode ser entendido como uma resposta orientada e com uma
finalidade marcada, o que aponta para a importância de con-
siderar que a cada novo uso da linguagem surgem novos sen-
tidos, entonações e valorações, novas orientações ideológicas
são evocadas. Assim, os discursos são atravessados pelos dis-

159
cursos de outros, cheios de valoração e apreciação, apontando
para a ideia de que “todo discurso é orientado para a resposta e
ele não pode esquivar-se à influência profunda do discurso da
resposta antecipada” (BAKHTIN, 2016, p. 89).
Diante disso, compreendemos que as vozes sociais dos su-
jeitos estão sempre marcadas por relações dialógicas que po-
dem evidenciar as manifestações discursivas. Assim, conceber
a linguagem, a partir do enfoque dialógico, implica em recusar
qualquer forma estanque de concepção de língua, uma vez que
o próprio dialogismo implica na interação entre as diferentes
vozes. Desse modo, o discurso está marcado por uma “dialogi-
cidade interna”, uma vez que não é apenas a forma composi-
cional externa que vai determinar o teor dialógico (BAKHTIN,
2016).
No que diz respeito ao enunciado, destacamos que se cons-
titui em um complexo processo interacional, uma vez que
enunciação não é vista como um processo único, monológico
e unicamente individual, pois a própria concepção de intera-
ção verbal está voltada à compreensão de enunciação como
dialógica, flexível, mutável, situada em um contexto que a tor-
na viva, refletindo os modos e as configurações dos sujeitos/
falantes que a utiliza. Em Bakhtin, “a concepção de enunciado
está para a vida verboideológica da linguagem, para as escolhas
não aleatórias das palavras, gerando dialogicamente discursos”
(XAVIER, 2018, p. 45).
Assim sendo, a palavra é sempre “orientada”, direcionada
ao interlocutor, porque está ligada ao tempo e ao espaço, com
suas características e peculiaridades, tendo o diálogo como
marca imprescindível, sendo ele a pura manifestação da lin-
guagem, que, por sua vez, manifesta-se dentro das mais diver-
sas atividades humanas por meio do que o Círculo de Bakhtin
chama de enunciado concreto, pois se revela em situações reais
de uso, repletos de materialidades (VOLÓCHINOV, 2017).
Ainda pensando a noção de dialogismo, destacamos o po-
sicionamento de Fiorin (2006, p. 30) que aponta três conceitos

160
presentes na obra de Bakhtin: o primeiro conceito diz respeito
ao modo de funcionamento real da linguagem, que está para
a noção de que todo enunciado se constitui a partir de outros
enunciados; o segundo está relacionado à noção do enunciador
que se insere, incorpora a voz do outro no enunciado, o que
pode ser feito por meio de uma citação aberta, separando-o do
discurso alheio ou citando, sem que haja essa separação; a re-
lação do sujeito com os outros é tratado no terceiro conceito,
considerando que o indivíduo se constitui a partir da relação
com o outro, mostrando o dialogismo como princípio básico
dessa relação.
As relações dialógicas, portanto, podem se configurar a
partir do contato com discursos já ditos, ecoando vozes diver-
sas, que podem gerar tensões, polêmicas, discordâncias, acei-
tação, recusa, tendo em vista que o próprio discurso pode ser
visto como a configuração de tensões dialógicas e de vozes so-
ciais, como possiblidade de reação-resposta a um enunciado
proferido anteriormente, como uma atitude responsiva.

Memes: possibilidades de leituras dialógicas

Com a propagação de textos e gêneros em redes sociais que


são lidos e compartilhados, como os que são publicados em
redes sociais, observamos a facilidade e agilidade no que diz
respeito à divulgação e circulação de informações, o que vem
afetando, consideravelmente, as relações interpessoais e so-
cias, bem como as práticas de interações comunicativas entre
os indivíduos. Isso indica que há de se considerar o surgimento
de novos gêneros que influenciam decididamente na interação
social e comunicativa, tendo em vista que é por meio das novas
formas de interação materializadas no espaço virtual que sur-
gem e se institucionalizam as diversas práticas discursivas, ca-
racterizando um novo contexto, no qual a interação é marcada
pelo “ressoar de vozes no ciberespaço” (SOUZA, 2013).
Nesse sentido, destacamos o meme como um gênero discur-

161
sivo essencialmente polifônico, marcado por múltiplas vozes
que se manifestam e contribuem para a construção dos efeitos
de sentidos intencionalmente produzidos e que vem ganhando
espaço no ambiente virtual, concretizando-se por meio de ima-
gens, figuras, fotografias, frases, palavras-chave, com conteúdo
irônico e/ou humorístico.
Na era digital, o meme surge como uma forma de comuni-
cação típica das redes sociais que, para Recuero (2007, p. 23),
pode ser considerada como um neologismo que surgiu a partir
dos estudos de Richard Dawkins. A autora destaca estudiosos
que compreendem o meme desde como um padrão cognitivo,
que influenciam no comportamento dos indivíduos para gerar
replicação, até como um gênero discursivo. Atualmente, o ter-
mo é usado para designar o fenômeno que ocorre na internet
e que se propaga rapidamente, chegando a viralizar, que ao ser
disseminado pode permanecer intacto ou ser modificado, de-
pendendo das situações de uso, desempenhando, assim, impor-
tante papel enquanto força poderosa que molda nossa evolução
cultural através de ideias copiadas de indivíduo para indivíduo.
De acordo com Melo (2018), trata-se de um gênero que pos-
sui uma estrutura com apresentação de elementos verbais e
não-verbais, com palavras, imagens que serve como uma for-
ma de “autorizar” o desenvolvimento da captação de sentidos.
Para tanto, é necessário levar em consideração o contexto, pois
a linguagem é desenvolvida dentro de uma situação histórico-
-social.
Recuero (2009) busca fazer uma classificação dos memes,
partindo de estudiosos que defendiam alguns parâmetros para
a categorização de tal gênero. Assim, são elencados alguns
critérios, tendo a seguinte classificação: a fidelidade de cópia,
que são os replicadores com reduzida variação e alta fidelidade;
a longevidade, que diz respeito ao tempo que os memes per-
manecem sendo replicados; fecundidade, quando são catego-
rizados como epidêmicos, espalhando-se amplamente; e, por
fim, o alcance, que está relacionado à noção de abrangência,

162
podendo ser local ou global.
Outro aspecto importante do meme, para Melo (2018), é a
função social, que pode ser o divertimento, a disseminação, de
forma humorística, da realidade social que nos cerca, apresen-
tando frases curtas, desenhos, imagens, estando em constante
circulação e uso na sociedade, uso esse que ocorre por meio da
linguagem. Assim, concordamos com o autor ao destacar que,
de acordo com as contribuições de Bakhtin, o meme pode ser
considerado um gênero discursivo porque está relacionado ao
uso da linguagem em um dado campo da atividade humana,
apresentando-se como enunciados relativamente estáveis, com
conteúdo, estilo e composição estrutural. Além disso, incorpo-
ra enunciados, valores, vozes sociais que se concretizam em
enunciado vivo, histórico e ideológico, ou seja, materializa-se
em enunciado-concreto.
É partindo da concepção de meme enquanto gênero discur-
sivo e dos conceitos bakhtinianos sobre linguagem, que lan-
çamos mão de memes retirados de páginas de Facebook que
têm por objetivo tratar de assuntos relacionados ao trabalho
do professor. O primeiro meme analisado consiste na junção de
uma fotografia com o enunciado que faz uma relação entre dois
aspectos da sociedade brasileira: educação e futebol. Notamos
claramente uma crítica ao país onde o professor nem ao menos
é chamado pelo termo que designa sua profissão, mas, por um
termo, muitas vezes, considerado simplório e até mesmo ofen-
sivo: tio. Aqui a educação é posta em segundo plano; no país
do futebol, mais vale o técnico de uma seleção ser chamado de
professor do que o próprio docente.
Neste meme, temos um traço dos postulados de Bakhtin,
pois se trata de um enunciado concreto, uma vez que faz uso
da linguagem em situação histórico-social. Além disso, é uma
palavra orientada, orquestrada pelos dizeres de uma sociedade
que desvaloriza o trabalho docente, enquanto dá todo espaço
ao trabalho futebolístico. As relações dialógicas também estão
presentes ao se fazer comparação entre os dois tipos de profis-

163
sionais: o professor e o técnico de futebol. Vejamos:
Meme 1:

Fonte: https://noticias.r7.com/educacao/fotos/hoje-e-dia-
-deles-veja-memes-hilarios-sobre-o-cotidiano-dos-professo-
res-15102014#!/foto/1

As relações dialógicas que se estabelecem nesse meme


vão além do espaço educacional, extrapolando para outras
esferas que não pertencem a esse âmbito, mas assumem um
novo discurso a partir de um novo lugar de reconfiguração do
professor. A figura do técnico é apresentada como professor
e visto pelo seu time e por seus torcedores como aquele que
ensina, instrui, passa informações, ajuda na formação; já o
professor, rebaixado à categoria de tio, é mostrado como aque-
le que está ali para praticamente cuidar do aluno em uma rela-
ção quase de parentesco.
A inversão de valores também é possível ser observada,

164
uma vez que quem deveria ser chamado de professor não o
é, perpassando, assim, uma concepção de ideologia marcada
por vozes que foram construídas historicamente, marcada pela
desvalorização do professor. Consequentemente, a educação
é rebaixada, deixada em segundo plano, enquanto o técnico e
futebol são elevados aos mais altos níveis, em um país que é
pentacampeão mundial de futebol, mas assumindo posições
baixíssimas no ranking da educação.
Os efeitos de sentidos construídos como os termos “tio” e
“professor” estão consolidados em uma vertente sócio-históri-
ca-cultural, remetendo à noção de que os enunciados podem
ser compreendidos como um conjunto de sentidos concretiza-
dos nas relações dialógicas, uma vez que há um diálogo entre
duas áreas da sociedade: educação e futebol, diálogo marcado
por dizeres de sujeitos/falantes que criticam a qualidade da edu-
cação brasileira, que é endossada por meio da expressão em
destaque “é osso”, assinalando para a complexidade do tema,
uma relação tensa.
O segundo meme aponta para várias concepções do ser pro-
fessor, trazendo seis visões sobre o fazer docente que dialogam
entre si, apresentando uma visão crítica e irônica das diversas
vozes, marcando a concepção de dialogismo estudada por Fio-
rin (2006), especificamente o segundo e o terceiro conceitos,
evocando o posicionamento bakhtiniano de que não há enun-
ciado monológico, mas a heterogeneidade discursiva.

165
Meme 2:

Fonte: https://fiorerouge.wordpress.com/wallpapers/animes/
mais animes/421887_246021588807236_100001981890771_5698
23_128192431_n/

No meme 2, podemos destacar que o próprio termo “pro-


fessor” é preenchido por apreciações valorativas, ou seja, por
um juízo de valor, implicando várias formulações de opiniões,
mostrando que não é possível falar em enunciado neutro, emi-
tindo um juízo de valor deturpado sobre a profissão de profes-
sor.
Lemos esse meme pensando a noção de enunciado desta-
cada por Fiorin (2006), pois determina a concepção do que é
ser professor, incorporando outros pontos de vista, por meio
de relações de aproximação ou distanciamento: A família, por
exemplo, que deduzimos compreender e vivenciar mais de per-
to da realidade do professor, enxerga-o como aquele que sem-

166
pre está pedindo algo, um verdadeiro mendigo, o que retoma
os dizeres sobre péssimas condições salariais, visão contrária
a dos pais dos alunos, que é representada por um homem com
várias notas nas mãos, marcando ideologicamente uma visão
de que o professor recebe muito bem. As concepções que dizem
respeito à sociedade e aos alunos se aproximam, pois enquanto
estes veem o professor como algo patético, assemelhando-se a
uma figura bizarra, a sociedade o vê como um louco, que está
amarrado e com expressão facial que remete a alguém que não
está em sã consciência.
As duas concepções que mais se distanciam são as do go-
verno e a do próprio professor, uma vez que este se conside-
ra um verdadeiro herói, que está sempre lutando em busca de
melhorarias para seus alunos, de fato tentando sempre salvar
o mundo por meio de seu trabalho. Já na visão do governo, o
professor é retratado como um cão que transmite informações,
que precisa ser também “adestrado” e que segue ordens.
Nesse meme, também podemos observar o terceiro con-
ceito de Fiorin (2006) que diz respeito à relação do sujeito com
os outros que o constituem, considerando o dialogismo como
princípio básico, pois a imagem que é construída do professor
é realizada por meio do encadeamento entre as outras concep-
ções apresentadas e arraigadas na cultura da sociedade.
Trata-se, pois, de um meme bastante rico no que diz respei-
to aos sentidos construídos e às vozes evocadas, levando-nos a
compreender as tensões desencadeadas que podem ecoar vo-
zes diversas, gerar polêmicas, aceitação ou recusa de tais con-
cepções. Assim, o meme pode ser considerado uma réplica que
abre possibilidades para novos sentidos que ocorre por meio da
interação e dos tons apreciativos e valorativos.
O último meme aborda, de uma forma irônica, o trabalho e
a aposentadoria do professor, partindo da imagem do Chapolin
Colorado, em conjunto com o enunciado verbal: “o lado bom
de dar aulas até os 65 anos é que estaremos surdos, surdos e
aquela “gritaria gostosa” não será incômodo”, como podemos

167
ver abaixo:

Meme 3:

Fonte: https://www.bol.uol.com.br/memes/album/2017/10/15/
memes-para-comemorar-o-dia-dos-professores.htm?mode=-
list

Observamos claramente uma crítica à Reforma da Pre-


vidência Social, de modo específico, as consequências dessa
reforma para o professor, indicando que desaprova tal medi-
da que retira direitos já adquiridos, sem levar em consideração
as condições estruturais, pedagógicas e políticas da escola, da
vida do profissional, com suas tarefas de sala de aula, marcan-
do um retrocesso social e histórico.
Sob a perspectiva bakhtiniana, lemos o meme 3 como uma
reação-resposta a um enunciado proferido anteriormente, ou
seja, é uma atitude responsiva às mudanças da Reforma da Pre-

168
vidência, de modo que podemos perceber um diálogo entre
o que dizem os textos da Reforma e o próprio meme, mas de
modo a não endossar o que é defendido, por exemplo, na PEC
287/16, mas como uma atividade de tensão, gerando um enun-
ciado-resposta que evoca vozes que criticam e ironizam um dis-
curso já proferido, configurando, assim, tensões dialógicas por
meio de vozes sociais que expressam entonações e valorações,
juízo de valor, de modo a configurar novas orientações ideoló-
gicas, que funcionam e se arquitetam em uma interação viva,
aberta e dialógica.
O meme 3 parte de um enunciado, de um acontecimento,
que é justamente a problemática da Reforma da Previdência,
criticando e ironizando tal situação, o que está marcante na fi-
gura do Chapolin Colorado com um riso meio irônico. Percebe-
mos também que o enunciado escrito faz uso das reticências, na
primeira parte, sugerindo a interrupção do pensamento, para,
em seguida, expressar que estando “surdos, surdos”, a palavra
“surdos” repetidas para marcar mais fortemente essa surdez, a
gritaria dos alunos não seria mais um problema, uma vez que o
professor, de tanto trabalhar, já estaria surdo.
Aqui retomamos a noção de função social do meme destacado
por Melo (2018), compreendendo que o meme 1 pode ser lido como
uma forma de protesto, de revolta contra o sistema educacional
brasileiro, especificamente no que concerne ao tratamento dado
ao professor; o meme 2 pode ser lido como uma crítica compara-
tiva sobre a figura do professor, configurando-se como resposta a
discursos e ideologias sobre o fazer docente, e o meme 3 apresen-
ta a função de crítica, realizada ironicamente, trazendo à tona um
enunciado concreto marcado por vozes sociais que se concreti-
zam em enunciado vivo, histórico e ideológico.
Diante disso, destacamos que as leituras dialógicas dos
memes nos permitem compreender que a construção de sen-
tidos não é estável, mas dialógica e interativa, apresentando-se
como possibilidades de releituras e renovação dos já ditos, de
discursos já proferidos e, na medida em que são construídos,

169
publicados e disseminados, reelaboram sentidos múltiplos que
são produzidos pela presença do outro, da intersubjetividade e
da interação social, de modo que o dialogismo e a interação se
conectam, trazendo à tona as relações dialógicas, o que aponta
para o uso da linguagem viva, concreta e situada em contextos
sócio-históricos de comunicação.

Palavras finais

Partindo da concepção de Bakhtin de que todo discurso é


orientado a uma resposta, compreendemos que os memes po-
dem ser vistos como respostas a enunciados já ditos, atuando
como meio de comunicação, mas, sobretudo, de iteração social
e dialógica, destacado seu caráter replicador. São, pois, enun-
ciados que têm por base as relações dialógicas que podem ser
construídas por meio da crítica, da paródia e da ironia, em uma
materialidade discursiva que vai além dos elementos linguís-
ticos, não ficando, apenas, na superfície textual, mas mergu-
lhando nos mares do dialogismo, das relações dialógicas e ideo-
lógicas, com atitudes responsivas.
Ao se propagar memes sobre o fazer docente, há uma pro-
dução de discursos heterogêneos que contribuem, de maneira
positiva ou não, para a identidade do professor. Assim, os me-
mes oportunizaram analisar as construções dos sentidos elabo-
rada e disseminada nas redes sociais sobre a figura do professor,
percebendo o gênero discursivo em estudo como possibilidade
de construções de relações dialógicas, por meio de valoração e
apreciação que se concretizam em enunciados concretos.
Tratam-se, pois, de enunciados verbo-visuais que se cons-
troem a partir das relações dialógicas de discursos que já foram
proferidos, tomando enunciados alheios, dando-lhes uma res-
posta e/ou uma replicação de tais enunciados.
Compreendemos que os memes podem ser lidos como verda-
deiras práticas de linguagem enquanto fenômenos linguísticos e
enquanto prática social e ideológica, pois é possível, por meio de-

170
les, perceber relações dialógicas, os atos responsivos e as relações
entre aspectos linguísticos e aspectos discursivos das práticas so-
ciais. Além disso, podem ser compreendidos como enunciados
concretos, visto que possuem uma materialidade não apenas
linguística, mas também social e ideológica. Configura-se
como gênero discursivo na medida em que está relacionado ao
uso da linguagem em um dado campo da atividade humana,
efetuando-se em forma de enunciados, em tipos relativamente
estáveis, com conteúdo, estilo e composição estrutural. Assim,
os memes possuem uma importante função social, como mar-
car uma revolta contra o sistema educacional brasileiro, por meio
da crítica, da ironia, evocando tons valorativos situados histórico e
ideologicamente.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Os gêneros do discurso. Tradução, posfácio e


notas de Paulo Bezerra. São Paulo: 34, 2016.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática,
2006.
MELO, Raniere Marques. A valoração em memes: um estudo dialógico no cam-
po da comunicação do discurso religioso. Dissertação de Mestrado apresen-
tada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística. Universidade Federal
da Paraíba. João Pessoa, 2018.
RECUERO, Raquel. Memes em weblogs: proposta de uma taxonomia. Conexões
nas Redes Midiáticas. Revista FAMECOS, Porto Alegre, n. 32, p. 23-31, 2007.
Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafa-
mecos/article/view/3411. Acesso em 17 de nov. 2019
RECUERO, Raquel. Redes sociais da internet. Porto Alegre: Sulina, 2009.
VOLÓCHINOV, Valentin Nikolaevich. Marxismo e filosofia da linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tra-
dução,
notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: 34,
2017.

171
XAVIER, Manassés Morais. Educomunicação em perspectiva dialógico-discur-
siva: leituras do jornalismo político no Ensino Médio. Tese de Doutorado
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística. Universidade
Federal da Paraíba. João Pessoa, 2018.

172
O DIALOGISMO EM CHARGES QUE
TEMATIZAM A TRANSPOSIÇÃO DO
RIO SÃO FRANCISCO

Ana Karla Alves Menezes


Maria de Fátima Almeida

173
174
N
a perspectiva bakhtiniana, o princípio dialógico é a
característica essencial da linguagem e, por isso, a lin-
guagem e as línguas têm uma natureza intrinsicamen-
te política, porque sujeitam os falantes a sua ordem. Portanto,
a relação dialógico-discursiva, que ocorre entre o sujeito que
enuncia e o seu interlocutor, constrói o significado do texto, le-
vando em consideração as suas condições de produção enun-
ciativa nas diversas esferas de comunicação.
A charge é um gênero constituído de um texto curto e pre-
ciso, com uma linguagem que pode variar de acordo com a in-
tenção comunicativa, sendo organizado por elementos verbais
e não-verbais e que tem como suporte de circulação, princi-
palmente, jornais, embora apareça também em revistas, sites
e outros meios. A charge tem por função provocar o humor, o
riso, com o objetivo de atrair o leitor para uma crítica. Porém,
de forma descontraída, mais leve que outros gêneros dentro da
mesma esfera ou suporte.
Este estudo configura-se como uma pesquisa na Teoria
Dialógica da Linguagem (TDL), especificamente sobre leituras
dialógicas de charges. A abordagem teórica metodológica utili-
zada no estudo foi a dialógica, comparando os textos no tempo
e nas respostas que uns dão aos outros e apresentando como os
enunciados se concretizam, ocupam o lugar na interação social
e suscitam respostas, uma vez que os textos não podem ser ana-
lisados sem considerar que são enunciados-respostas. Quanto
aos objetivos, esta é uma pesquisa explicativa, em que se busca
registrar e analisar os fenômenos estudados, no intuito de com-
preender suas causas através da interpretação possibilitada pe-
los métodos qualitativos.

175
A Transposição do Rio São Francisco é um projeto de des-
locamento de parte das águas do rio São Francisco, no Brasil,
nomeado pelo governo brasileiro como “Projeto de Integração
do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Se-
tentrional”.
Logo, o principal argumento da polêmica dá-se, sobretu-
do, pela destinação do uso da água: Os críticos do projeto ale-
gam que a água será retirada de regiões onde a demanda por
água para uso humano e dessedentação animal é maior que
a demanda na região de destino e que a finalidade última da
transposição é disponibilizar água para a agroindústria e a car-
cinicultura. Por outro lado, a corrente contra as obras de Trans-
posição do Rio São Francisco afirma que a obra é nada mais
que uma “transamazônica hídrica” e, além de demasiado cara,
a transposição do rio não será capaz de suprir a necessidade da
população da região, uma vez que o problema não seria o défi-
cit hídrico que não existe, o problema seria a má administração
dos recursos existentes.
Neste trabalho, optamos pelo estudo discursivo de um pro-
blema que afeta a população brasileira, em especial, a proble-
mática da Transposição do Rio São Francisco atrelada à crise
hídrica. A pesquisa se dá em função da relevância de ser um
assunto polêmico, bem como as críticas que são referendadas
a esse fenômeno atual. Pensando nisso, partimos da seguinte
questão-problema: Quais as representações dialógicas e jogo
de palavras da temática Transposição do Rio São Francisco são
convocadas em charges?
Orientados por esse questionamento, a pesquisa, em foco,
objetiva, de forma geral, analisar as relações dialógicas no gê-
nero discursivo charge que tem como tema a Transposição do
Rio São Francisco. Quanto aos objetivos específicos, destaca-
mos: a) estabelecer as relações dialógicas entre as vozes pre-
sentes nos discursos proferidos pela charge, b) compreender as
diferentes formas de representação da temática Transposição
do Rio São Francisco sob o ponto de vista do sujeito enunciador

176
da charge e c) comparar o jogo de palavras presente na charge
que se refere à Transposição do Rio São Francisco.

Um olhar sobre a Teoria Dialógica da Linguagem

Bakhtin e o Círculo formulam o conceito de dialogismo


considerado como o princípio constitutivo da linguagem. Se-
gundo eles, a linguagem, sendo em sua natureza concreta, viva,
em seu uso real, tem a característica de ser dialógica. Nessa
perspectiva, ao tratar da linguagem como natureza real/viva
considera-se que a língua não é um sistema abstrato de formas
linguísticas, mas a entende a partir desses elementos linguís-
ticos – em um contexto concreto preciso, compreender sua
significação em uma enunciação particular (BAKHTIN; VOLO-
CHINOV, 2009, p. 93).
O que destacamos ainda como relevante nessa teoria para a
compreensão da linguagem como fenômeno humano eminen-
temente dialógico é o relevo que se dá aos sujeitos, aos interlo-
cutores, pois estes, no fluxo da interação, não se tornam reféns
de uma estrutura – a língua –, mas apresentam uma autonomia
ao utilizar-se desta para a produção de sentidos que pretendem
gerar, o que Bakhtin chamará de “intuito discursivo do locutor”.
O que enfatizamos, portanto, é que esses sujeitos devem ser
vistos sempre em uma relação com um outro, com e para quem
eles adotam uma atitude responsiva ativa e no/para o qual eles
se constituem sujeitos. Em outras palavras, valoriza o aspecto
social da fala que está intimamente ligada à enunciação, sendo
assim, instaura a interação.
Bakhtin defende o princípio dialógico das enunciações, o
qual implica uma nova maneira de perceber os interlocutores
de uma atividade comunicativa. De acordo com a teoria bakh-
tiniana, o dialogismo reafirma a natureza sociocultural do
enunciado. O indivíduo, ao mesmo tempo que negocia com seu
interlocutor, recebe influências deste, as quais interferirão na
estrutura e na organização do enunciado. Os membros do Cír-

177
culo exploram a ideia de que a linguagem não é falada no vazio
e, sim, em uma situação histórica e social concreta. Para Bakh-
tin (1998), a linguagem é, por constituição, dialógica e a língua
não é ideologicamente neutra e sim complexa, pois, a partir do
uso e dos traços dos discursos que nela se imprimem, instalam-
-se choques e contradições.
O sujeito é concebido emaranhado em uma rede de (inter)
relações, cujos enunciados são produzidos em resposta a ou-
tros enunciados. Portanto, Bakhtin postula uma das faces de
sua teoria dialógica: a do dialogismo entre os enunciados. Esse
aspecto do dialogismo mostra que eles não surgem do acaso.
Todavia, emanam de outros enunciados que compõem uma ca-
deia grande e complexa da qual cada enunciado faz parte.

Todo discurso é orientado para a resposta e ele não pode es-


quivar-se à influência profunda do discurso da resposta an-
tecipada (...) Ao constituir-se na atmosfera da “já-dito”, o dis-
curso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta
que ainda não foi dito, discurso, porém, que foi solicitado a
surgir e que já era esperado. (BAKHTIN, 2009, p. 89).

Nesse sentido, o dialogismo é, justamente, essa relação de


significação que se estabelece entre dois (ou mais) enunciados.
Nesses termos, quando falamos em discurso, necessariamente
nos referimos às palavras, pois toda palavra dialoga com outras
palavras, constitui-se a partir de outras palavras, está rodeada
de outras palavras. Desse modo, não nos referimos à palavra no
sentido puramente linguístico, mas a de que o locutor faz uso
da língua para a utilização de suas necessidades enunciativas
concretas, visto que está voltada para a enunciação.

178
Gêneros do discurso: um olhar para a charge

Segundo Fiorin (2006), o conceito de gênero bakhtiniano é


marcado por unir o estável e o instável, o permanente e o mu-
tável, considerando, simultaneamente, as propriedades fixas e
contínuas das formas discursivas e, consequentemente, as al-
terações sofridas em conformidade com as mudanças das di-
ferentes esferas sociais, como aconteceu com a cultura digital
que não somente originou novos gêneros, mas também alterou
outros, atendendo às necessidades de comunicação virtual.
Bakhtin (2011) manifesta também que os gêneros do discur-
so são infinitos em sua diversidade, uma vez que há inúmeras
atividades humanas. Esses gêneros se multiplicam e alteram,
quando utilizados para atender às demandas da comunicação
humana. Deduzimos, embasados nesse teórico, que os estudio-
sos da linguagem – ou do discurso – não devem menosprezar
a heterogeneidade dos gêneros, nem tampouco a dificuldade
proveniente de definir a natureza do enunciado. Logo, é funda-
mental a realização de um estudo do enunciado pela distinção
entre duas modalidades de gêneros: os primários (simples) e os
secundários (complexos).
Segundo o dicionário Aurélio, a charge é uma “representa-
ção pictórica, de caráter burlesco e caricatural, em que se sa-
tiriza um fato específico, em geral de caráter político e que é
do conhecimento” (FERREIRA, 2004, p. 451). Bakhtin trata das
esferas sociais, ressaltando seu importante papel na criação
de gêneros. Dessa forma, é importante lembrar que a charge
é um gênero discursivo da esfera jornalística, organizado por
elementos verbais e não-verbais.
Tendo como suporte de circulação principalmente jornais
(impressos e online), embora apareça também em revistas, si-
tes e outros meios, a charge tem por função provocar o humor,
o riso, com o objetivo de atrair o leitor para uma crítica, porém
de forma descontraída, mais leve que outros gêneros dentro da
mesma esfera ou suporte.

179
O gênero charge mistura, geralmente, de forma harmonio-
sa as duas linguagens – a verbal e a não-verbal –, constituindo
textos sincréticos e efeitos de sentidos na oscilação entre o já-
-dito e o não-dito. Cada gênero possui função definida, sendo
utilizados em diferentes campos discursivos, isto é, em cada
campo existem e são empregados gêneros que correspondem
às condições específicas de dado campo. Uma determinada
função e determinadas condições de comunicação discursiva,
específicas de cada campo, geram determinados tipos de enun-
ciado (BAKHTIN, 2011, p. 266). Assim, percebemos, em gêne-
ros como a charge, características que agregam dois discursos
simultaneamente: o político e o humorístico.

O discurso de outrem na charge

No livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Volo-


chinov (2009) esclarecem que todo discurso é dialógico, sendo
o homem um sujeito inexistente fora da relação com o outro,
que se realiza através da linguagem. Eles asseveram que a cons-
trução do sentido se dá pela multiplicidade, pelo dialogismo e
pela polifonia, elementos constitutivos do discurso citado. Ain-
da de acordo com os autores, todo discurso é constituído pelo
discurso do outro, estando este sujeito à recriações e à reinter-
pretações.
Dessa forma, todo discurso concreto presente nos diferen-
tes contextos sociais nunca é completamente novo, pois con-
tém resquícios de outros discursos, ou seja, discursos de ou-
trem, reorganizados de forma dialógica nas falas dos sujeitos.

180
Vejamos a Figura 01.

Figura 01: Charge de Genildo

FONTE: http://www.genildo.com/2014/10/trans-posicao.html

A charge, publicada no blog do Genildo em 19 de outubro


de 2014, caracteriza-se por ser um texto visual humorístico e
opinativo, que critica uma personagem ou fato político especí-
fico. Sua construção baseia-se na remissão a um universo tex-
tual em que mantém relações intertextuais com texto verbal,
não-verbal e verbal não-verbal, simultaneamente. O que torna
singular é a demonstração perspicaz da propriedade carnava-
lesca da charge de congregar, em um jogo polifônico, o verso e
o reverso do que tematiza.
Dessa maneira, o chargista, através do desenho e da língua,
utiliza o humor para destronar os poderosos e buscar o que
está oculto em fatos, personagens e ações de cunho político.
Há uma arena de vozes que formam os discursos da sociedade a
partir do veículo de comunicação, ou seja, reforçam o discurso

181
de acordo com o aspecto ideológico. Sendo assim, a Figura 01
tem como conteúdo temático a problemática da Transposição do
Rio São Francisco, bem como as críticas referendadas ao projeto
em execução. O chargista, por meio do texto verbal e não-ver-
bal, busca trazer à tona reflexões para a sociedade que, por sua
vez, não está satisfeita com o evento em tramitação.
Nesse sentido, não podemos deixar de mencionar o posi-
cionamento ideológico que os chargistas defendem. Afinal,
todo texto carrega consigo a ideologia que o constitui. Esses ar-
tistas podem ser considerados cronistas de imagens, uma vez
que, partindo do humor, inscrevem-se como leitores do mun-
do e convidam seus interlocutores a partilharem suas leituras.
Por isso, podemos considerá-los como formadores de opiniões.
Eles jogam com aquilo que pode gerar risos e trazem ao palco
de seus textos as mazelas sociais, pois os personagens que ne-
les são retratados são celebridades que representam a vida em
sociedade.
Encontramos na charge dois personagens, sendo o primei-
ro representado pelo nordestino, que tem a ânsia incessante de
ver a obra concluída e os benefícios da mesma em sua região;
já o outro personagem é a figura do político, que se encontra
satisfeita com a ilusão de ter enganado a população acerca da
conclusão da obra e que tenha tudo ocorrido conforme foi pla-
nejado. Entretanto, não é isso que acontece, porque a imagem
retrata o rio com um filete de água que representa um rio seco
e cheio de pedras, demonstrando o esvaziamento ocasionado
pela demora no processo de transposição, e o canal que deve-
ria está sendo realizada a transposição das águas, este sim está
concluído, no entanto, contém uma espécie de “porta” que fe-
cha/proíbe a entrada da água.
Uma característica da Figura 01 que não podemos deixar
de citar é que seus enunciados verbais aparecem de modo con-
ciso, sintetizando várias ideias em frases curtas, a exemplo do
– TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO – que indica a pro-
blemática em evidência. Nesse caso, a interpretação é resulta-

182
do de um processo no qual um enunciado sempre deixa vestí-
gios no outro. Isto é, um enunciado é carregado de inúmeros
outros e estes deixam vestígios nele.
Na Figura 01, encontramos a heterogeneidade discursiva
nos enunciados verbais proferidos pelos personagens, a saber:
O político, caraterizado pela presença da imagem da mala na
mão, a imposição da mão direita perante o cidadão, vestimenta
formal, assim como o sorriso que expõe os dentes e um olhar
satisfatório perante a obra “concluída” e acompanhada do vocá-
bulo “ACABOU!”, permite-nos inferir que o mesmo transparece
felicidade. Portanto, o aspecto fácil e o contexto nos permite
relacionar dialogicamente a ironia presente na charge, o fato
de acreditar que a população está sendo enganada mais uma
vez com essas obras políticas e corruptas.
Porém, o enunciado do segundo personagem, caraterizado
pela vestimenta rural e típica do nordestino, apresenta um as-
pecto de desilusão, tristeza e perplexidade diante do que está
vendo, isto é, a obra acabou, mas, devido à demora e tantos
problemas ambientais por quais passam o rio São Francisco, a
água do mesmo, infelizmente, esvaziou. O humor está presen-
te nesse jogo de enunciados proferido pelos personagens, visto
que um se refere à conclusão da obra e o outro à evasão da água
do rio, mostrando com o dedo indicador da mão esquerda a ver-
dadeira realidade. Já com a mão direita, ele “complementa” a
fala do político, com o gesto da mão aberta (indicando o sinal
de “pare”) confirma que o que acabou, de fato, foi a água que
deveria está sendo transportada para a região Nordeste. É es-
tabelecido um diálogo entre esses enunciados verbais acima,
permitindo uma leitura interpretativa, dirigida pela articula-
ção de sentidos estabelecida entre eles. Sendo assim, nesses
enunciados tem-se a relação dialógica, pois, como nos aponta
Bakhtin (2009), os enunciados são dialógicos e, nesses termos,
o dialogismo constitui o diálogo.
Portanto, extraímos como elementos visuais a figura do
nordestino e do político, a placa – Transposição do Rio São

183
Francisco – indicando o conteúdo temático. E, ainda temos os
elementos contextuais, como o momento histórico que o Brasil
passa com esse projeto em vigor e a raiva do brasileiro por ter
descoberto mais uma obra inconclusa devido aos desvios polí-
ticos.
Com isso, podemos afirmar que a Figura 01 critica a gestão
política, uma vez que eleva uma crítica social e busca denun-
ciar para a sociedade o fato que está acontecendo no Brasil, o
desvio do evento Transposição do Rio São Francisco e denuncia
os problemas ambientais referendados ao rio. Portanto, através
da leitura dessa charge, a sociedade pode encarar o evento ob-
servando-o a partir de uma nova maneira de pensar e agir, bem
como estimular a participação popular frente a tais polêmicas.
Logo, convoca a sociedade a refletir criticamente. Ou seja, este
é o compromisso discursivo do gênero em função das práticas
sociais.

Palavras finais

As charges são um importante registro histórico, pois com


suas particularidades (e o humor é uma delas) criticam e fazem
o leitor pensar sobre um acontecimento importante o bastan-
te para se constituir como memória coletiva, assim como esse
gênero discursivo não pode ser interpretado longe de seu con-
texto histórico, político, social e ideológico. Nenhum gênero
deve ser analisado distanciado de seu contexto, mas no caso
da charge, e de alguns outros gêneros circunstanciais, os efei-
tos de sentidos variam de acordo com o tempo e com os dados
compartilhados entre autor/artista/cartunista e leitor.
No problema de pesquisa, foi levantada a questão de como,
na charge, as representações dialógicas e jogo de palavras da
temática Transposição do Rio São Francisco eram convocadas.
Essas possíveis conjeturas nos levam a perceber, na análise,
que as charges são gêneros discursivos que perpassam relações
dialógicas entre as vozes presentes nos discursos dos autores,

184
assim como os chargistas deixam em evidência o ponto de vista
que defendem. Portanto, a conclusão da charge analisada acer-
ca da Transposição do Rio São Francisco nos permitiu perceber
que o gênero discursivo charge foi veiculado de diversas manei-
ras, tendo muitas vezes as vozes silenciadas.
O que mais observamos na charge é o diálogo que ela man-
tém com outros gêneros do discurso e também com outros dis-
cursos. Não apenas os enunciados linguísticos como também
os elementos imagéticos que compõem o enunciado como um
todo modificam seus efeitos de sentidos. Uma representação de
uma outra ilustração existente ou de um enunciado já proferi-
do (intertextualidades) não só modificam sentidos como cons-
troem diversos outros.
Por fim, percebemos, a partir da análise empreendida, que
o gênero charge é carregado de enunciações que revelam ar-
gumentos persuasivos criados a partir de outros discursos em
determinado momento histórico, visando promover a intera-
ção entre locutor e interlocutor, por meio da linguagem verbal
e principalmente não verbal e, ainda, possui um caráter crítico
que é feito ao sistema de modo geral. Assim, percebemos,
por meio da análise, que a charge fez emergir diversos outros
discursos que circulam socialmente sobre a situação do evento
Transposição do Rio São Francisco. Apareceram, desse modo, vo-
zes sociais que acentuam negativamente o olhar perante este
projeto.
Com este trabalho, observamos o quanto é fértil um estudo
do discurso aliado à abordagem do gênero, uma vez que o gêne-
ro discursivo charge é um lugar móvel, no qual se encontram o
sujeito, a língua e a história para a atualização de enunciados e,
por sua vez, para construir efeitos de sentidos dialogicamente
situados.

185
REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes,


2011.
_____. O discurso no romance (1934-35). In.: Questões de Literatura e de Esté-
tica: a teoria do romance. Trad. Carlos Vogt e Eny Orlandi. 4. ed. São Paulo:
Unes, 1998.
______; VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 13. ed. São
Paulo: HUCITEC, 2009.
______. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. Trad. Aurora
F. Bernardini et al. 4. ed. São Paulo: HUCITEC, 1998.
BRAIT, B. Ironia: Em perspectiva polifônica. 2. ed. Campinas: Editora da Uni-
camp, 2008.
FARACO, C. A. Linguagem e Diálogos: As ideias linguísticas do Círculo de
Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2003.
FERREIRA, E. G. Charge: uma abordagem parodística da realidade. In.: Bi-
blioteca on-line de Universidade Vale do Rio Verde. 2004. Disponível em
<http://www.unirv.edu.br/paginas.php?id=124> Acesso em 20/05/2020.
FIORIN, J. L. Polifonia textual e discursiva. In: BARROS, D.; FIORIN, J. L. (Orgs.).
Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo:
EDUSP, 2006.
SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de
Bakhtin. Campinas: Mercado de Letras, 2009.

186
O CARÁTER SINGULAR DA
LINGUA(GEM) NA ANÁLISE DO
DISCURSO CRÍTICA: UM BREVE
PERCURSO TEÓRICO

Nilmara Milena da Silva Gomes


Alexandra Bittencourt de Carvalho

187
188
A
Análise do Discurso Crítica, de vertente britânica, apre-
senta um quadro teórico-metodológico constituído de
categorias advindas de outros campos teóricos. Isto se
deve às particularidades da formação de seu campo episte-
mológico que abrange a análise linguística, a crítica social e o
momento sócio-histórico do evento discursivo, cada um desses
campos teóricos com seus termos-chave correspondentes.
Nesse sentido, partindo do pensamento saussuriano como
impulsionador dos estudos e teorias linguísticas, como também
da importância de Bakhtin como precursor dos estudos discur-
sivos, nosso objetivo é contribuir com os estudos discursivos,
a fim de destacar o cuidado que o analista de discurso deve ter
ao empregar noções já teorizadas, como as de língua(gem), de
modo compatível ao quadro teórico presente na proposta da
Análise do Discurso Crítica cunhada por Fairclough, em Discur-
so e Mudança Social.
Para tanto, faremos uma breve explanação do que Saussure
preconizou em relação a seu objeto de estudo: a língua, consi-
derada como um sistema de signos. Em seguida, Bakhtin será
exposto como autor que, diferentemente de Saussure, apresen-
ta a língua como atividade social. Por fim, destacaremos as ca-
racterísticas e peculiaridades da língua(gem) como forma de
prática social.
Assim, a relevância deste capítulo pauta-se na necessidade
de reflexões acerca do movimento caleidoscópio dos estudos
sobre língua(gem) e, principalmente, na visão de língua(gem)
baseada no discurso, compreendida como forma de prática so-
cial, capaz de inserir as/os autores na tomada discursiva de posi-
cionamentos frente às mudanças na sociedade contemporânea.

189
A língua como sistema de signos: o leme na reflexão de Saus-
sure

O estudo sobre os fenômenos que cercam a linguagem sem-


pre interessou os homens desde os tempos imemoriais (LYONS,
1982; PETTER, 2007). Porém, é tautológico afirmar que a com-
plexidade do fenômeno linguístico há muito tempo desafia os
estudiosos. É no século XX, a partir dos estudos de Saussure
([1916] 2006), que a linguística passa a ser reconhecida como
ciência, deixando de depender da exigência de outras ciências
(lógica, filosofia, retórica, crítica literária) para ser estudada. A
partir de sua teoria, Saussure (op. cit.) comprovou que o estudo
da linguagem verbal humana tinha um objeto próprio e concre-
to: a língua. Surge, então, o estruturalismo, esforçando-se para
examinar as relações que unem os elementos no discurso e de-
terminar o valor funcional desses diferentes tipos de relações,
ou seja, a língua não passava de uma estrutura.
Saussure foi um pesquisador que não encontrou eco para
suas reflexões em sua época, como afirma Benveniste (1988, p.
40):

Saussure afastava-se da sua época na mesma medida em que


se tornava pouco a pouco senhor da sua própria verdade,
pois essa verdade o fazia rejeitar tudo o que então se ensi-
nava a respeito da linguagem. Mas ao mesmo tempo em que
hesitava diante dessa revisão radical que sentia necessária,
não podia resolver-se a publicar a menor nota antes de haver
assegurado, em primeiro lugar os fundamentos da teoria.

Saussure evidencia a dificuldade em expor seus pensa-


mentos, a princípio individuais, por não existir eco entre seus
contemporâneos, sentindo a necessidade de amadurecer suas
ideias para então torná-las públicas, construindo, assim, um
entendimento suficientemente fundamentado diante da com-
plexidade que a própria linguagem lhe apresentava. Importan-

190
te frisar que, ainda hoje, mais de um século depois, a lingua-
gem ainda apresenta, para a Linguística, imensos campos a
explorar.
Apesar de não haver referência ao termo dicotomia no Cur-
so de Linguística Geral ([1916] 2006), segundo Pietroforte (2007,
p. 77-78), “uma dicotomia em Saussure diz respeito a um par de
conceitos que devem ser definidos um em relação ao outro, de
modo que um só faz sentido em relação ao outro”. Assim, foram
denominados os pares de conceitos que sintetizam as propos-
tas de Saussure para a criação de um novo objeto teórico para
a Linguística.
A mais importante dicotomia gira em torno da linguagem,
constituída pela língua (langue) e pela fala (parole). Para Saus-
sure (2006), língua opõe-se à fala, porque a língua é coletiva e a
fala é particular, portanto, a língua é um dado social e a fala é
um dado individual. Além disso, a língua é sistemática e a fala
é assistemática. Pessoas que falam a mesma língua conseguem
se comunicar porque, apesar de diferentes falas, há o uso da
mesma língua.
Dessa forma, este estudioso da linguagem delimitou como
único objeto da linguística a língua, consolidando uma propos-
ta científica em pleno século XX. Ao excluir tudo que é exterior
a língua, Saussure ([1916] 2006) amplia o horizonte dos estudos
linguísticos de um ponto de vista estrutural, afinal, os estudos
linguísticos do século XIX não questionavam a linguagem nem
o seu funcionamento, apontando que cabe à Linguística ir além
do estudo diacrônico da linguagem.
A visão saussuriana de língua se dá a partir da noção de
sistema em um recorte sincrônico, concebendo-a como um fe-
nômeno social, analisando-a como um código e um sistema de
signos, apartada da fala. Ou seja, importava-lhe o sistema e não
o aspecto de sua realização na fala. Apesar de serem estuda-
das em separado, língua e fala estão estreitamente interligadas,
pois a língua é necessária para a fala inteligível, e a fala é ne-
cessária para o estudo da língua. A fala vem antes e faz a língua

191
evoluir. Sem dúvida, há interdependência entre elas. Mas, se-
gundo Saussure ([1916] 2006), não há como uni-las, já que am-
bas possuem características distintas.

A língua como atividade social: abordagem enunciativo-dis-


cursiva

O pensamento saussuriano impulsionou estudos e teorias


inéditas. A força das ideias de Saussure ([1916] 2006) volta à
tona sempre que surgem novas pesquisas que versam sobre
linguagem. Mikhail Bakhtin é o precursor dos princípios que
norteiam os estudos discursivos. Sua principal crítica refere-se
à teoria saussureana ([1916] 2006), caracterizada por um estudo
linguístico com leis específicas que fixa o signo da língua no
interior de um sistema fechado, desvinculado de valores ideo-
lógicos. A língua é apresentada por Bakhtin ([1992] 2003) não
como objeto abstrato, mas como atividade social, edificada nas
necessidades de comunicação. Assim, a natureza da língua se-
ria essencialmente dialógica, não podendo fazer, unicamente,
parte de um sistema estável, sincrônico e homogêneo.
Bakhtin ([1992] 2003) tece crítica ao estruturalismo afirman-
do que, no Curso de Linguística Geral ([1916] 2006), Saussure su-
gere com frequência representações esquemáticas da comuni-
cação em que o falante é colocado como ativo e o ouvinte como
passivo. Para Bakhtin, isto até pode ocorrer em alguma ocasião,
sendo esse um momento de abstração, mas quando observado
do ponto de vista da comunicação discursiva, transforma-se em
uma invenção fantasiosa, já que quando o ouvinte compreende
o significado do discurso, ou seja, passa do momento de abs-
tração, ele pode concordar ou discordar do que ouviu, o que
Bakhtin ([1992] 2003, p. 271) chama de “ativa posição responsi-
va”, que se forma ao longo do processo de interação discursiva.
Em outras palavras, o ouvinte passivo, ao compreender o enun-
ciado do outro, torna-se falante ativo dialeticamente.
Nesse sentido, o enunciado é construído a partir da alter-

192
nância dos sujeitos do discurso, o que faz emergir os limites do
enunciado de natureza diversificada e formas variadas, depen-
dendo do campo de atuação da atividade humana. Sob essa óti-
ca, não é possível analisar a fala, o discurso, do ponto de vista
das convenções concebidas pelas gramáticas que normatizam a
língua, posto que os limites discursivos para o seu início e para
o seu fim são pontuados mediante relações de “pergunta-res-
posta” (ativa posição responsiva), possíveis apenas entre enun-
ciações de diferentes sujeitos do discurso. Isto é, o discurso
pressupõe outros membros da comunicação discursiva, o que o
distingue da unidade da língua que não se correlaciona com o
contexto extraverbal da realidade nem com as enunciações de
outros falantes.
Os gêneros do discurso são enfocados pelo viés dinâmico da
produção, um vínculo orgânico entre a utilização da linguagem
e a atividade humana, em que “aprender a falar significa apren-
der a construir enunciados [...]. Nós aprendemos a moldar o
nosso discurso em formas de gênero [...]” (BAKHTIN, [1992]
2003, p. 283), que são diversos e determinados pela situação,
posição social e pelas relações pessoais entre os participantes
da comunicação.
Desse modo, para que o discurso se torne inteligível, é pre-
ciso que o falante conheça não apenas as formas da língua na-
cional obrigatórias, mas também os gêneros do discurso, tão
indispensáveis quanto às formas da língua, já que, como afirma
Bakhtin ([1992] 2003, p. 285), “os gêneros do discurso, se com-
parados às formas da língua são bem mais mutáveis, flexíveis
e plásticos”. No entanto, para os falantes, eles são normativos,
pois, apesar de livres, possuem limites que devem ser seguidos
para que haja mútua compreensão, ou seja, não são livres das
formas da língua, como propõe Saussure ([1916] 2006) ao afir-
mar que a parole, ou seja, o discurso é um ato individual desli-
gado da língua, que é um fenômeno social e obrigatório para o
indivíduo.
Por fim, cabe ressaltar que, em outros termos, Bakhtin

193
([1992] 2003) percebe que a fala está relacionada ao tipo de ati-
vidade que os falantes estão envolvidos, direcionando, a par-
tir do estudo sobre gêneros do discurso, uma organização das
experiências com a linguagem, regulamentando a ação de um
eu que usa a linguagem para um outro. Desse modo, o legado
bakhtiniano colocou a visão de língua sob a ótica de uma ativi-
dade interativa de caráter cognitivo, instauradora de diversas
ordens no contexto social.

Análise Crítica do Discurso: língua(gem) como forma de prá-


tica social

As contribuições de Bakhtin ([1992] 2003) foram significati-


vas para o surgimento de uma nova linha de pesquisa que tem
o discurso como objeto de estudo.
Na década de 90, surge a ADC, apresentando diferentes
abordagens de análises críticas da linguagem. Norman Fair-
clough é reconhecido como um dos principais expoentes da
ADC (RAMALHO; RESENDE, 2006). É possível definir a ADC
como uma disciplina que se ocupa, fundamentalmente, de aná-
lises críticas focalizadas no modo como se manifestam as rela-
ções de dominação, discriminação, poder e controle.
Fairclough (2001) propõe uma concepção de discurso
que considera a linguagem como uso, ou seja, o discurso como
prática social. Essa visão apresenta a relação entre o discurso e
a sociedade, pois, ao mesmo tempo, o primeiro é uma forma
de ação sobre o mundo e sobre outras pessoas e uma forma de
representação do mundo. Além disso, as formas de ação e de
representação são parcialmente constituídas por estruturas
exteriores a elas, de natureza social, e por isso os eventos sociais
variam de acordo com as estruturas sociais a que pertencem.
Assim, “implica uma relação dialética entre discurso e estrutura
social, existindo mais geralmente tal relação entre a prática
social e a estrutura social: a última é tanto uma condição como
um efeito da primeira” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). Ao emergir a

194
concepção de que o discurso tanto é constituído como constitui
a sociedade, o autor permite que a análise possa se debruçar
nas mudanças sociais, dado o caráter constitutivo do discurso.
Desse modo, o discurso pode contribuir para a

constituição de todas as dimensões da estrutura social que,


direta ou, indiretamente, o moldam e o restringem: suas
próprias normas e convenções, como também relações,
identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso
é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas
de significação do mundo, constituindo e construindo o
mundo em significado. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91).

O autor salienta, então, os três efeitos da dupla faceta


do discurso ao admitir que este contribua para a construção
de identidades sociais, de relações entre pessoas e de sistemas
de crenças e valores, o que corresponde às três funções
da linguagem (Cf. HALLIDAY, 1994): identitária – como as
identidades pessoais são estabelecidas; relacional – como as
relações sociais são negociadas; e ideacional – como os textos
significam o mundo (FAIRCLOUGH, 2001). Partindo da visão
multifuncional da linguagem, cria um modelo tridimensional
de análise do discurso, buscando associar a teoria à prática e
estabelece uma metodologia descritivo-interpretativa:

O quadro (...) tenta combinar três tradições analíticas,


cada uma delas indispensável para a análise do discurso:
a tradição de análise linguística e textual da linguística, a
tradição macrossociológica de análise da pratica social em
relação às estruturas sociais e a tradição interpretativa ou
microssociológica de análise da prática social enquanto
ativamente produzida e entendida pelas pessoas com
base de procedimentos compartilhados de senso comum.
(MAGALHÃES, 2001, p. 24).

195
O quadro tridimensional propõe uma análise em que as três
dimensões – a análise linguística, a análise discursiva e a aná-
lise social –, embora divididas didaticamente, relacionam-se
uma com as outras, cujas escolhas linguístico-textuais são par-
cialmente constrangidas por discursos moldados em práticas
ideológicas/excludentes/criativas compartilhadas entre gru-
pos. Nesses termos, a prática discursiva medeia a prática lin-
guística e a prática social e, por isso, é possível estabelecer uma
descrição, intepretação e explanação do fenômeno linguístico
como parte da sociedade, ou, em outras palavras, como prática
social.
O discurso como forma de prática social, ou a linguagem
em uso, inclui as estruturas sociais que são relacionadas aos
discursos materializados nos textos. Fairclough (2001 [1992]) se
baseia nos conceitos de ideologia e de hegemonia que confluem
na relação dialética do discurso e, para isso, é preciso discorrer
de onde vêm alguns conceitos importantes que permeiam essa
relação. A ideologia é discutida, principalmente, a partir de
Thompson, em Ideologia e Cultura Moderna (1995), e hegemonia
a partir de Gramsci, em Concepção Dialética da História (1995) e
revisto por Laclau e Mouffe, em Hegemonia, Estratégia Socialista
e Democracia Radical (2015).
O autor denomina ideologia como construções de
significados que assumem distintas formas dentro das práticas
discursivas, ou seja, a ideologia está presente nos discursos
dispersos na sociedade. Diferentes formas de discursos,
como, por exemplo, distintas formas de nomear o mesmo
elemento social, são materializações de diferentes ideologias.
Elas servem para criar, sustentar ou transformar relações
de dominação e, por essa razão, é importante a análise para
investigar como certos grupos conseguem, durante certo
tempo, estabelecer poder sobre outros (FAIRCLOUGH, 2001).
Desse modo, a ideologia é eficaz quando tácita, em um processo
de naturalização que faz com que pessoas iteram tais visões do
mundo, mesmo que estas possam, de certa maneira, prejudicá-

196
las. Entretanto, ao focalizar os estudos nas mudanças sociais,
Fairclough (2001) aponta para a necessidade de, além do senso
comum, observar a transformação das ideologias, ou seja,
investigar

a luta ideológica como dimensão da prática discursiva, uma


luta para remoldar as práticas discursivas e as ideologias
nelas construídas no contexto da reestruturação ou da
transformação das relações de dominação. Quando são
encontradas práticas discursivas contrastantes em um
domínio particular ou instituição, há probabilidade de que
parte desse contraste seja ideológica. (FAIRCLOUGH, 2001,
p. 117).

A ideologia está materializada nos eventos sociais, mas


também é propriedade das estruturas sociais e isso confirma
a concepção dialética do discurso, pois permite entender
que textos iteram ou transformam ideologias, mas ao mesmo
tempo são parcialmente moldados pelas circunstâncias sociais
a que se remete, uma vez que são situados e produtos de
eventos anteriores. Essa historicidade é tanto uma “orientação
acumulada e naturalizada que é construída nas normas e nas
convenções, como também um trabalho atual de naturalização
e desnaturalização de tais orientações nos eventos discursivos”
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 119). Dessa maneira, sujeitos podem
ser subjugados às ideologias e contribuir para a sustentação
de ideologias, mas podem agir de forma criativa sobre elas,
reestruturando e contribuindo para a mudança social. Quando
o primeiro acontece, é instrumento de hegemonia; quando o
segundo, instrumento de luta hegemônica.
Assim sendo, a hegemonia é compreendida como poder,
pois é dominação de uma classe (ou classes) admitida como
fundamental na sociedade através de alianças não pela força
e coação, mas sim pela concessão. Isso permite inferir que ela
se dá por estratégias implícitas, principalmente calcadas no

197
discurso, na dispersão de ideologias de grupos particulares.
No entanto, essa hegemonia existe senão parcialmente, já que
ela é foco de lutas constantes e esse ponto é convergente à
concepção dialética de discurso de Fairclough (2001), já que as
lutas hegemônicas abrem espaço para o caráter constitutivo do
discurso assim como a hegemonia abre espaços para o caráter
construído do mesmo.
A hegemonia como poder relativamente estável aponta para a
possibilidade de articulação, desarticulação e rearticulação das
ordens do discurso já que estas são consideradas “como a faceta
discursiva do equilíbrio contraditório e instável que constitui
uma hegemonia” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 123). Os discursos
hegemônicos carregam facetas discursivas implícitas, gerando
ideologias que circundam a sociedade, tacitamente, elaboradas
como senso comum, um instrumento eficiente de manutenção
de poder. A análise dessas ideologias e, por conseguinte, das
hegemonias, permite, pois, desnaturalizar o senso comum,
revelando as relações de poder – relações hegemônicas – nas
práticas sociais. Assim, a hegemonia

enfatiza a importância da ideologia no estabelecimento e


na manutenção da dominação, pois, se hegemonias são
relações de dominação baseadas mais no consenso que na
coerção, a naturalização de práticas e relações sociais é
fundamental para a permanência de articulações baseadas
no poder. (RESENDE e RAMALHO, 2006, p. 47).

O interesse de Fairclough (2001) está na observação e análise


das mudanças sociais pelo fato de admitir que os discursos
mantêm uma relação dialética com a sociedade, nas mudanças
discursivas. Dessa forma, o autor evidencia o caráter funcional
do discurso na contemporaneidade e aponta a necessidade de
analisarmos as mudanças nos eventos discursivos orientadas
para as mudanças sociais que permeiam tais eventos. Em
outras palavras, as mudanças discursivas devem ser sempre

198
relacionadas às mudanças nas estruturas sociais, tantos locais,
quanto globais.
O autor argumenta a importância de observarmos as
posições sociais que ocupam os produtores e intérpretes
nos eventos discursivos. Assim, escolhas lexicogramaticais
distintas apontam significados distintos, revelando posições
e negociações, sempre atrelados às estruturas sociais que
compõem o cenário da prática. Isso revela que mudanças
discursivas são produtos de rearticulação de ordens do
discurso, uma forma criativa de reestruturação social a partir
do discurso, inovando códigos hegemônicos, enfraquecendo
fronteiras em processos como a hibridização, ressignificando
representações e identidades parcialmente produzidas pelos
discursos (FAIRCLOUGH, 2001).
Para o autor, essas inovações dependem da natureza da
prática social, ou seja, os eventos discursivos inovadores estão
atrelados à rede de ordens discursivas e estruturas sociais que
permeiam a prática. Dessa forma, mudanças discursivas são
efeito e causa das mudanças sociais, reafirmando a concepção
de linguagem como forma de prática social e a relação intrínseca
entre discurso e sociedade.

Palavras finais

Nosso capítulo objetivou traçar um breve percurso históri-


co sobre o conceito de língua(gem) em três momentos teóricos
importantes: a concepção de língua em Saussure, como siste-
ma; a noção de língua como atividade social em Bakhtin, como
enunciação discursiva; e a língua(gem) como prática social em
Fairclough. Tal percurso demonstrou a evolução do conceito,
que parte de um modelo fixo, autônomo, passa para uma visão
na qual a comunicação e a relação ativa entre produtor e ouvin-
te revela o caráter dialógico da língua(gem) para desembocar
em um construto teórico-metodológico no qual a relação entre
lingua(gem) e sociedade é inerente e dialética.

199
É interessante notar que a recusa do caráter autônomo da
língua presente no estruturalismo saussureano propiciou a
investigação das relações (desiguais) de poder na sociedade,
que são produzidas, também, discursivamente, nos distintos
textos que circulam na cena contemporânea. Assim, além de
uma descrição linguística, é preciso também relacioná-la à
produções de sentido – às ideologias – e como elas operam para
a sustentação, ressignificação ou derrubada de hegemonias.
Em outras palavras, evidenciar o potencial construído
e constitutivo dos discursos na sociedade, emergindo a
agência dos atores sociais. Dessa forma, podemos discutir a
importância da Análise de Discursos para compreender as
mudanças sociais e diminuir as desigualdades da sociedade.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins


Fontes, [1992] 2003.
BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral I. São Paulo: Pontes,
1988.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Coordenação da tra-
dução, revisão técnica e prefácio de Izabel Magalhaes. Brasília: Editora Univer-
sidade de Brasília, 2001.
_____. A dialética do discurso. In: MAGALHÃES, Isabel (Org.). Discurso e
práticas de letramento: pesquisa etnográfica e formação de professores. Cam-
pinas: Mercado das Letras, 2012, p. 93-110.
LYONS, John. Introdução à linguística teórica. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1982.
PETTER, Margarida. Linguagem, língua, linguística. In: FIORIN, José Luiz
(org.). Introdução à linguística. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2007, p. 11-24.
PIETROFORTE, Antonio Vicente. A língua como objeto da linguística. In:
FIORIN, José Luiz. Introdução à linguística. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2007.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 27. ed., São Paulo:
Cultrix, [1916] 2006.

200
O DIALOGISMO EM NOTÍCIAS SOBRE
AS QUEIMADAS NA AMAZÔNIA

Alixandra Guedes R. de Medeiros e Oliveira


Maria de Fátima Almeida

201
202
R
efletir sobre o modo de organização da linguagem tem
sido uma atividade ininterrupta desde os tempos antigos.
No mundo moderno, os estudos de Ferdinand Saussure
constituem um marco para a definição do que é a linguagem, a
língua e a fala, visto que, para ele, a língua é abstrata e depende
da coletividade, enquanto a fala é concreta e individual (SAUS-
SURE, 2012). Em contrapartida a esse pensamento, Mikhail
Bakhtin defende que a linguagem está fortemente relacionada
ao aspecto social, sendo a sua compreensão realizada pela rela-
ção entre os sujeitos, posto que esta o determina e o empodera
em suas ações.
A linguagem é um fenômeno sócio-histórico e, por isso,
ideológico, empregado para reafirmar e estabelecer poderes.
Assim, é inviável pensar as relações humanas fora do âmbito
das relações sociais, visto que a vida é, essencialmente, dialó-
gica, polissêmica e polifônica. Desse modo, as práticas sociais
estão ligadas às práticas discursivas, pois “[só] o enunciado tem
relação imediata com a realidade e com a pessoa viva falante (o
sujeito) […]. Só o enunciado pode ser verdadeiro (ou não verda-
deiro), correto (falso), belo, justo, etc.” (BAKHTIN, 2011, p. 328,
grifo do autor).
Isto posto, organizamos nosso trabalho em quatro tópicos,
para além desta introdução: no primeiro, trazemos uma breve
discussão teórica sobre os conceitos de dialogismo, enunciado
e responsividade; no segundo, discorremos sobre o gênero no-
tícia e sua atualidade; no terceiro ponto, apresentamos a aná-
lise de quatro notícias que tratam dos incêndios ocorridos na
Amazônia, durante o ano de 2019, com o objetivo de identificar
a articulação de diferentes vozes e como o dialogismo vai sendo

203
construído no gênero notícia e, por fim, as considerações acer-
ca do trajeto da análise.

Dialogismo, enunciado e responsividade

A Análise Dialógica do Discurso (doravante, ADD) propõe o


entendimento da língua enquanto resultado, não acabado, da
vida verbal em determinados contextos de interação social. De
acordo com Sobral (2009, p. 35-37), existem três planos distintos
para que ocorra a compreensão sobre o conceito de dialogis-
mo: 1. a condição de ser e de agir dos sujeitos; 2. a possibilidade
do dizer e 3. o dialogismo em si, base que fomenta a produção
de enunciados e discursos.
Sendo assim, entendemos junto a Bakhtin (2011), que o dia-
logismo remete a um trio no qual além do autor/falante e do
leitor/ouvinte, há vozes que perpassam a palavra encontrada
anteriormente pelo autor. No curso da interação dialógica, o
enunciado apresenta como partes integrantes um projeto (a in-
tenção do dizer), um autor (o sujeito) e a execução (a realização
por parte do sujeito de sua própria intenção).
Nesse sentido, o enunciado configura-se como a real unida-
de da comunicação discursiva e pressupõe dois critérios: a al-
ternância dos sujeitos, que definem seus contornos, já que “num
dado momento, todo enunciado chega ao fim, e dá então lugar
à compreensão responsiva ativo do leitor” (SOBRAL, 2009, p.
92) e o acabamento do enunciado, que indica que o sujeito con-
clui seu projeto enunciativo dando espaço para a enunciação do
outro. Em ambos os aspectos, a presença do Outro é inevitável.
A partir disso, a natureza ativamente responsiva do enun-
ciado demanda de sua compreensão uma resposta. O conceito
de responsividade elaborado por Bakhtin (2010) nasce na exis-
tência dos sujeitos e na condição indissociável que existe entre
responder e responsabilizar-se por uma resposta, do lugar único
que ocupa, ele (o sujeito) confere acabamento e assinatura às
suas ações e é este assinar que fomenta às possibilidades de

204
resposta.
Para o autor, estamos em constante relação com o outro,
colocamo-nos em infinita interação, como um constructo. Esse
processo se dá numa (re)ação do sujeito quando ocorre a com-
preensão, já que

O ato responsável é, precisamente, o ato baseado no reco-


nhecimento desta obrigatória singularidade. É essa afirma-
ção do meu não-alibi no existir que constitui a base da exis-
tência sendo dada como sendo também real e forçosamente
projetada como algo ainda por ser alcançado. (BAKHTIN,
2010, p. 99, grifo do autor).

de maneira que, agir responsivamente, implica assumir


para si, e frente ao outro, uma postura de resposta e de res-
ponsabilidade ética, visto que o lugar que o eu ocupa é único e
singular, porque “ser realmente na vida significa agir, é não ser
indiferente ao todo na sua singularidade” (BAKHTIN, 2010. p.
99).

O sempre atual gênero notícia

Entendemos, junto a Bakhtin (2011), que se faz necessário


considerar o panorama extralinguístico dos enunciados para
que possamos compreendê-los. Sob esta perspectiva, o proje-
to discursivo do gênero notícia encontra-se determinado pelas
1. condições sociais da situação de interação (a relação entre
autor e leitor previsto); 2. pelo objeto do discurso (relevância
temática) e 3. pela esfera social e suas relações dialógicas com
outras esferas (campo de atividade).
Assim, o projeto discursivo da notícia pode ser considerado
o querer-dizer de seu autor, ou seja, é a intenção do falante me-
diada pelo discurso e clivada de posições ideológicas e orienta-
ções valorativas. Cabe, portanto, ao jornalista – pauteiro, repór-
ter ou editor – o crivo na definição do que será publicado dentre

205
as inúmeras informações que chegam à redação por meio de
fontes oficiais públicas ou privadas. Ineditismo, factualidade,
proximidade, verdade ou interesse público são algumas das
características que permitem transformar um acontecimento
social em notícia.
Erbolato (1991, p. 52) esclarece que “as notícias são comu-
nicações sobre fatos novos que surgem na luta pela existência
do indivíduo e da própria sociedade”. Já Lage (2001, p. 26) afir-
ma que “a notícia pode comover, motivar revolta ou conformis-
mo, agredir ou gratificar alguns de seus consumidores.”. Para o
autor, a notícia pode ser entendida “como o relato de uma série
de fatos a partir do fato mais importante, e este, de seu aspecto
mais importante” (LAGE, 2001, p. 54). Pontuamos o uso da pa-
lavra “importante” que é acompanhada de muita subjetividade,
assim como a seleção de qualquer fato, já que um acontecimen-
to pode receber importância de uma pessoa e de outra não.
Com o advento da internet, na década de 1990, o jornalismo
on-line surgiu no país colocando-se como forte concorrente ao
jornalismo impresso, garantindo maior velocidade às notícias.
Conforme explica Machado (2001, p. 09), em se tratando de gê-
nero digital, esse novo conceito dissemina-se com facilidade
nas redes de interação, visto que “Texto, imagem, movimento,
som, tudo pode ser digitalizado e ganhar estruturalidade de um
enunciado concreto, ainda que seja na realidade virtual”.
Desse maneira, ao partirmos do pressuposto de que a lin-
guagem é constituída na interação sócio-dialógica e de que
diferentes vozes atuam no dizer discursivo, o gênero notícia
exemplifica o quão profunda é a relação do eu com o outro,
de respostas dadas aos enunciados lidos/ouvidos, mesmo que
a interação não ocorra face a face, evocando concordâncias e
discordâncias, tornando evidente o dialogismo e a ideologia de
quem seleciona, escreve e divulga um determinado aconteci-
mento social.

206
Quantas vozes encontramos ao ler uma notícia?

Em nosso artigo utilizamos o conceito de dialogismo, colo-


cado pelos estudos dialógicos, com vistas a identificar as diver-
sas vozes que se fazem presentes no gênero notícia, acerca dos
incêndios nas áreas da Floresta Amazônica Brasileira ocorridos
e que ganham repercussão mundial nos meses de agosto e se-
tembro de 2019. O desastre ambiental evidencia a concepção
de factualidade, ao ter gerado comoção internacional através
de mensagens de protesto nas redes sociais e nos demais veí-
culos de comunicação, tais como jornais, emissoras de rádio e
televisão e portais de notícias.
Selecionamos para a análise quatro notícias de portais na-
cionais de comunicação on-line, são eles: Folha Uol, Notícias
R7, Revista Veja e Revista Exame. Em nossa análise, são apre-
sentados os títulos e os subtítulos, referentes às notícias veicu-
ladas pelos portais supracitados. As notícias serão apresenta-
das de acordo com as datas de publicação e esta organização
se dá com o intuito de reconstruir a temporalidade discursiva.
Vejamos:

Notícia 017

Inferno na floresta: o que sabemos sobre os incêndios na


Amazônia
A Amazônia sempre sofreu com queimadas ligadas à explo-
ração de terra. Mas como isso chegou tão longe?
(Revista Exame, 22/Agosto/2019, grifos nossos)

O título utilizando a primeira pessoa do plural (nós) revela


uma aproximação com os leitores que se não configura como
uma das características do gênero notícia. O questionamento
indireto sobre o que é sabido sobre os incêndios na Amazônia
parece conduzir à reflexão sobre a verdade que subjaz ao acon-
7
A notícia está publicada em https://exame.abril.com.br/brasil/inferno-na-floresta-o-que-
-sabemos-sobre-os-incendios-na-amazonia/. Acesso em 10/09/2019.

207
tecimento que está sendo noticiado, o que comunga com a es-
colha pela substantivo “Inferno” para descrever o que está acon-
tecendo na floresta, evidenciando a voz do discurso religioso ao
estabelecer a caracterização do ocorrido.
A construção do subtítulo se dá a partir de uma afirmação,
seguida por um questionamento, ambos em terceira pessoa, o
que provoca um efeito de objetividade, uma vez que se tem a
impressão de que os acontecimentos são narrados por si mes-
mos, gerando no leitor certa curiosidade, a busca por mais de-
talhes (FIORIN, 2016). A esse respeito, Lage (1997, p. 38) aponta
que a comunicação na esfera jornalística aborda temas que são
extrínsecos ao emissor e ao receptor, de maneira que essa cir-
cunstância “impõe o uso quase obrigatório da terceira pessoa”.
Mesmo com o distanciamento pretendido, é possível identi-
ficar no primeiro período do enunciado uma afirmação – “sem-
pre sofreu com queimadas” – que nos faz perceber a voz cristaliza-
da na sociedade do desmatamento e da exploração irregular da
floresta. No segundo período, o questionamento direto – “Mas
como isso chegou tão longe?” – encontramos a reverberação da
voz da omissão frente às práticas ilegais realizadas na floresta.
Estas trazem para a construção do gênero notícia a responsivi-
dade do jornalista perante o desastre ambiental em andamento,
posto que a palavra só encontra sua concretização quando in-
serida no contexto histórico real (VOLOCHÍNOV, 2017, p. 192).

Notícia 028

Quatro fake news sobre o incêndio na Amazônia


Em chamas há três semanas, a floresta é um dos assuntos
mais comentados nas redes sociais, porém várias das infor-
mações compartilhadas não são corretas.
(Revista Veja, 23/08/2019, grifo nosso).

8
A notícia foi veiculada em https://veja.abril.com.br/blog/me-engana-que-eu-posto/quatro-fake-
-news-sobre-o-incendio-na-amazonia/. Acesso em 10/09/2019.

208
Nesse título, que também evidencia uma suposta neutra-
lidade pelo uso da terceira pessoa, constatamos o discurso in-
direto. Contudo, é possível reconhecer outras vozes, tais como
a voz da mídia e a voz da política, devido ao uso de uma ex-
pressão bastante utilizada durante a última campanha eleito-
ral para Presidente da República, em nosso país, ocorrida em
2018. A expressão “Fake news”, aliada ao substantivo “incêndio”,
faz despertar o interesse do leitor, uma vez que a mesma ainda
reverbera socialmente com uma forte carga negativa, pois “A
palavra está sempre repleta de conteúdo e de significação ideo-
lógica ou cotidiana. É apenas essa palavra que compreendemos
e respondemos, que nos atinge por meio da ideologia ou do co-
tidiano” (VOLOCHÍNOV, 2017, p. 181).
O uso de terceira pessoa também é característico do subtí-
tulo da notícia e, novamente, temos a presença do discurso indi-
reto. A escolha por afirmar que “a floresta é um dos assuntos mais
comentados...” revela a atitude responsiva do jornalista frente ao
acontecimento vivenciado nas matas brasileiras e sua postura
encontra apoio coral na voz das redes sociais que, atualmente,
tem funcionado como principal propagadora de informações.
Ao argumentar – “porém” – que várias das referências “não
são corretas” é possível perceber a voz da imparcialidade, as-
sociada aos veículos de informação, no entanto, é o agir res-
ponsivo do sujeito jornalista que reforça o papel educativo da
Comunicação, visto que uma palavra isolada não permite uma
resposta, entretanto, quando inserida em um enunciado admi-
te uma resposta. “As unidades da língua não são neutras, en-
quanto os enunciados carregam emoções, juízos de valor, pai-
xões [...]” (FIORIN, 2016, p. 26).

209
Notícia 031

Exército está neutralizando focos de incêndio na Amazô-


nia, diz Heleno
Sobre troca de farpas do presidente Jair Bolsonaro com
Emmanuel Macron, ministro disse que generalizar proble-
ma é “cretinice” e jogada política
(Portal R7, 29/08/2019, grifos nossos).

Observamos que neste outro portal de notícias o uso de ter-


ceira pessoa é utilizado igualmente para construir o distancia-
mento entre o jornal e os fatos. No entanto, ao mencionar que o
“Exército” é o responsável por realizar as ações de contenção do
desastre ambiental percebemos a voz da autoridade nacional,
reconhecida e evidenciada socialmente por meio de seu lema
Braço forte, mão amiga.
Outro aspecto que reforça essa voz de autoridade é o uso do
verbo neutralizar – “neutralizando” – para descrever as ações
realizadas pelo Exército, o que acaba por evocar o apoio coral
da sociedade por meio da memória coletiva construída ao re-
dor desta instituição federal. O tom de afastamento retoma ao
final do título da notícia quando o jornalista faz uso do verbo
dicendi dizer – “diz Heleno” – para informar ao leitor que as in-
formações passadas foram ditas pelo ministro-general Augusto
Heleno, Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presi-
dência da República.
O subtítulo da notícia é construído também em terceira
pessoa e volta-se para a querela política ocorrida em paralelo
à calamidade ambiental, uma vez que faz referência à “troca de
farpas” entre o atual presidente da República do Brasil, Jair Bol-
sonaro, e Emmanuel Macron, político, banqueiro e atual pre-
sidente da França. O jornalista mantem o tom de objetividade
através do verbo dicendi dizer e do uso de aspas para colocar a
voz do ministro-general e chamar a atenção dos leitores para a
1
Notícia retirada do site https://noticias.r7.com/brasil/exercito-esta-neutralizando-focos-
-de-incendio-na-amazonia-diz-heleno-29082019-1. Acesso em 10/09/2019.

210
opinião do mesmo de que “generalizar o problema” das queima-
das na Amazônia é “cretinice” e seria uma “jogada política” de
Emmanuel Macron para aumentar sua popularidade frente aos
líderes do G7, exemplo que ratifica a postura sobre a linguagem
de que “toda palavra é um pequeno palco em que as ênfases
sociais multidirecionadas se confrontam e entram em embate”
(VOLOCHÍNOV, 2017, p. 140).

Notícia 042

Incêndios na Amazônia estão concentrados em proprieda-


des privadas
Áreas privadas cobrem 18% do bioma e concentram 33% dos
focos de fogo
(Folha UOL, 14/08/2018, grifos nossos).

Observamos no título que a escolha pela voz passiva – “es-


tão concentrados” – evoca para o processo de leitura uma voz de
denúncia, uma vez que suscita o apoio coral da sociedade ao
evidenciar que a maioria dos incêndios encontra-se em “pro-
priedades privadas”. Os dados fornecidos pelo Ipam (Instituto de
Pesquisa Ambiental da Amazônia) e pelo Inpe (Instituto Nacio-
nal de Pesquisas Espaciais) colaboram para o reforço do tom de
denúncia por parte do jornalista, visto que traz para a notícia
o respaldo da voz da pesquisa científica, que carrega em si um
forte tom avaliativo, pois “todo enunciado é antes de tudo uma
orientação avaliativa” (VOLOCHÍNOV, 2017, p. 236. Grifo do au-
tor).
No subtítulo, temos a retomada da imparcialidade jornalís-
tica com o uso da terceira pessoa. Ao selecionar o percentual de
áreas privadas – “18% do bioma” – e a porcentagem das regiões
de queimada – “33% dos focos de incêndio” –, o jornalista reafir-
ma seu posicionamento de denúncia e parece cobrar do leitor
2
A notícia foi publicada no site https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/09/in-
cendios-na-amazonia-estao-concentrados-em-propriedades-privadas.shtm. Acesso em
10/09/2019.

211
uma atitude responsiva frente ao que está sendo exposto, sen-
do comunicado. A escolha pelos verbos “cobrir” e “concentram”
colaboram para o aparecimento de outras duas vozes sociais: a
voz do agronegócio, responsável em grande medida pelo des-
matamento ambiental, e a voz da preservação e sustentabili-
dade ambiental, representada por ONGs e movimentos sociais.

Palavras finais

A análise por nós empreendida sobre os incêndios que se


alastraram na Amazônia, durante o segundo semestre de 2019,
substancia a ideia de que a linguagem não é neutra e que as
escolhas realizadas revelam a dinamicidade e a mutabilidade
da língua, cujos sentidos são vários e ocorrem por meio do dia-
logismo.
Salientamos que as escolhas lexicais, linguísticas, tipoló-
gicas, e até tipográficas, estão sempre a serviço das relações
dialógicas, com o objetivo de ratificar os já-ditos, bem como
destacam os tons axiológicos dos jornalistas e suas atitudes
responsivas frente ao fato noticiado. Verificamos, ainda, que
o espaço on-line por sua agilidade funciona como um agente
propagador de acontecimentos, configurando-os em substrato
para a produção de notícias nos mais diversos canais de infor-
mação, de modo que fica evidenciado o seu caráter imanente-
mente dialógico, pois é revelada uma multiplicidade de vozes
interdependentes e que permite a interação com o leitor.
Sob o prisma da dialogia, nenhuma escolha é vã, uma vez
que os fios ideológicos entrelaçam-se nas tramas narrativas que
são lidas, reproduzidas e propagadas, diariamente. Mesmo com
a constante presença da impessoalidade, por meio do uso da
terceira pessoa verbal, foi possível identificar as diversas vozes
que permeiam a construção das notícias; também observamos
que, em medida equivalente, houve defesa e protesto no tocan-
te ao desastre ambiental que estava em curso, o que, para nós,
evidencia a responsividade ativa dos agentes envolvidos na pro-

212
dução do gênero notícia.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2011.
. Para uma filosofia do Ato Responsável. Trad. Valdemir Miotello e
Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
ERBOLATO, Mário L. Técnicas de codificação em jornalismo: redação, capta-
ção e edição no jornal diário. 5. ed. São Paulo: Ática, 1991.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 2. ed. São Paulo:
Contexto, 2016.
LAGE, Nilson. Linguagem jornalística. 5. ed. São Paulo: Ática, 1997.
LAGE, Nilson. Ideologia e técnica da notícia. 3. ed. Florianópolis: Insular,
2001.
MACHADO, Irene. Digitalização. Linguagem. Discurso. As mediações dialógi-
cas possíveis. Lumina. Juiz de Fora – Facom/UFJF. v. 4, n. 2. p. 19-48, jul/
dez 2001.
VOLOCHÍNOV. V.N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas funda-
mentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e
glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório
de Sheila Grillo. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2017.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Organização Charles
Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlinger; prefácio
à edição brasileira de: Isaac Nicolau Salum [tradução Antônio Chelini, José
Paulo Paes, Izidoro Blikstein]. 28. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.
SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de
Bakhtin. Campinas - SP: Mercado de Letras, 2009.

213
214
O EFEITO DO DISCURSO OBSCENO
NOS SONETOS LUXURIOSOS,
DE PIETRO ARETINO

Clara Mayara de Almeida Vasconcelos


Rafael Francisco Braz

215
216
A
o falar sobre a relação entre a literatura e o erotismo
nos faz rememorar escritores como Anaïs Nin, o Mar-
quês de Sade, Leopold von Sacher-Masoch, Hilda Hilst,
Nelson Rodrigues, Sannazaro, Ovídio, dentre outros. Por sua
vez, as obras desses autores também levam a uma discussão
comum acerca do que é erotismo/pornografia, haja vista que
ao longo do tempo muitas foram as formas de se representar
discurso íntimo.
Embora a sociedade contemporânea tenha diminuído as
barreiras impostas à exploração da sexualidade nos diversos
suportes midiáticos, sejam eles no âmbito da literatura com os
best sellers, como por exemplo, a trilogia Cinquenta tons de cinza,
ou seja, na cultura POP com Madonna em seu famoso álbum
Erotica (1992), entre outras, as manifestações sexuais sempre
fizeram parte da arte ao longo do tempo, como se pode encon-
trar na escultura de Herculano Pã e uma cabra.
Observa-se, assim, que o erotismo provocou, e ainda provo-
ca, sentimentos diversos nas pessoas, sejam de atração, curio-
sidade, êxtase, arroubo, medo, vergonha e/ou repulsa. Embora
cause sentimentos tão contraditórios nos sujeitos, é a forma de
organização sociocultural de determinada época que demarca-
rá os juízos de valores acerca do comportamento dos agentes
sociais diante desse tema, como se pode observar na socieda-
de vitoriana que renegava a exploração à sexualidade, mas que
não deixou de explorá-la em suas produções literárias.
Seja vista como algo pecaminoso ou esteticamente aprazí-
vel, a sexualidade e a sua representação sob uma perspectiva
erótica impacta no comportamento humano. Para tanto, este
breve artigo se propôs a realizar uma análise dos poemas 1, 2

217
e 5 da obra Sonetos Luxuriosos, de Pietro Aretino, que discutem
a representação da sexualidade e o seu impacto no comporta-
mento humano apresentado na obra3.
O eixo teórico norteador da nossa pesquisa circunscreve
às contribuições de Georges Bataille (1987), Francesco Albero-
ni (1988), Lucia Castelo Branco (2004), Michel Foucault (1988),
Octavio Paz (1994) e Serene Alexandrian (1993). Quanto à meto-
dologia da pesquisa, no que concerne à abordagem, esta clas-
sifica-se como de uma metodologia de pesquisa qualitativa e
descritiva, de cunho bibliográfico e documental.
Em termos estruturais, inicialmente, dividimos em três se-
ções. Na primeira seção, nomeada, Pietro Aretino: breves notas,
apresentamos uma concisa exposição de fatos acerca da vida
e obra do autor; na segunda seção, Literatura e erotismo: entre a
obscenidade e o esteticamente aprazível, é feita uma discussão so-
bre a relação entre a literatura e o erotismo, além da presença
da pornografia que lhe é inerente; e, por último, a seção tercei-
ra, O erotismo em Aretino, constitui-se como a parte dedicada à
análise dos poemas corpus dessas análises e as considerações
finais, bem como as referências usadas nesta investigação.

Pietro Aretino: breves notas bibliográficas

Pietro Aretino foi um poeta e dramaturgo italiano que pro-


duziu obras no século XVI, tendo recebido incentivo financeiro
do Papa Leão X. O autor ficou conhecido, a posteriori, por suas
obras Diálogo das Prostitutas e Sonetos Luxuriosos, este segundo
o fez abandonar a proteção papal devido ao escândalo causado
pela publicação deles.
Neste contexto, Paes (2000, p. 11) salienta que “toda época
histórica precisa, a posteriori, pelo menos, de um bode expia-
tório que lhe possa purgar as culpas e os crimes. A Renascença
italiana teve-o sob medida em Pietro Aretino”. Na Itália do sécu-
lo XVI, o bode expiatório foi Aretino, reconhecido apenas após
3
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoas de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

218
a sua morte sem a obscenidade ser vista como uma mácula à
sua produção.
Pietro Aretino representa, assim, o panorama da produção
literária do século XVI marcada pelas intensas manifestações
não apenas literárias, mas também sociais que reverberaram
nos textos produzidos. Esse eco de mudanças começa dois sé-
culos antes, mas no século XIV, com Giovanni Boccaccio e a sua
coleção de novelas Decameron, vê-se emergir a representação
de aspectos sexuais por meio da literatura.

A literatura erótica medieval procurou dominar a luxúria


transcendendo a sexualidade. Este foi o objetivo do amor
cortês, a partir do princípio de que dois seres não devem se
amar para simplesmente obedecer a uma inclinação natu-
ral, mas para melhorar um através do outro física e moral-
mente. Essa concepção, formada no sul da França, era uma
reação contra os costumes rudes e violentos da cavalaria. O
cavaleiro não se preocupava com o amor: era um militar que
valorizava a honra, a fidelidade ao suserano e aos compa-
nheiros de armas. (ALEXANDRIAN, 1993, p. 35).

O renascimento italiano constitui-se como precursor no


que concerne à produção de obras literárias de cunho erótico,
em que a técnica se aperfeiçoou e serviu de modelo para os de-
mais autores de outras nações. Acerca dessa questão, Alexan-
drian (1993) aponta que

No Renascimento, a Itália tornou-se o centro onde a


literatura erótica se requintou, onde se enriqueceu de temas
e formas que influenciaram os outros autores ocidentais.
O Decameron abrira o caminho por onde enveredaram
novelistas que ampliaram o repertório dos antigos contos
milésimos e neles introduziram uma graça particular.
(ALEXANDRIAN, 1993, p. 61).

219
É justamente nesse contexto, tendo a Itália como cen-
tro de produção literária erótica no século XVI, que Aretino es-
creveu. Contudo, o autor não recebeu o mesmo mérito que os
seus contemporâneos, tais como Ariosto e Sannazaro, embora
o mesmo tenha protagonizado diversos momentos de escânda-
lo pelo teor sexual de sua escrita.
Vê-se assim que Aretino é herdeiro de uma tradição em
que se consolidou a forma da literatura erótica por meio da re-
presentação das relações sexuais sem o véu da subjetividade,
rompimento com as convenções morais da sociedade que lhe é
contemporânea, descrição do comportamento de prostitutas e
o diálogo entre mulheres, conforme destaca Hunt (1999).
No percurso histórico da literatura erótica, pode-se obser-
var que ela sofre com altos e baixos, ao longo do seu desenvol-
vimento, de acordo com cada cultura e sociedade. Em alguns
momentos, as sociedades impulsionam o seu desenvolvimento;
em outros, ela é retraída e combatida, variando com os ideais
moralizantes de cada momento histórico, conforme ressalta
Paz (1994):

Em todas as sociedades há um conjunto de proibições e ta-


bus – também de estímulos e incentivos – destinados a regu-
lar e controlar o instinto sexual. Essas regras servem simul-
taneamente à sociedade (cultura) e à reprodução (natureza).
Sem elas a família se desintegraria, e com esta toda a socie-
dade. (PAZ, 1994, p. 18).

Pietro Aretino faz parte, assim, desse panorama de proibi-


ções e tabus que marcaram uma sociedade em efervescência
quando o teocentrismo era deixado de lado e o homem torna-
va-se protagonista de uma nova ordem na sociedade. Na busca
de se tentar controlar os instintos sexuais, Aretino traz para o
cenário literário italiano um olhar sobre a necessidade de se
desnudar os preconceitos acerca do sexo, em que a contempla-
ção dos atos e/ou dos órgãos sexuais não deve ser evitada, pois

220
não há nada errado com esta atitude.
A obra aretiniana representa a transgressão dos discursos
dos valores morais socialmente construídos. A falta de pudo-
res e as formas explícitas de representar os órgãos sexuais são
marcantes em sua obra Sonetos Luxuriosos, que apresenta ao
leitor, desde o primeiro poema, as maravilhas do sexo, deixan-
do transparecer que o mesmo se deleitará com a leitura que se
segue nos demais textos.

Literatura e erotismo: entre a obscenidade e o esteticamente


aprazível

Erotismo, pornografia, obscenidade e luxúria: eis alguns


termos comumente destinados à descrição das obras literárias
que exploram em sua composição a linguagem ou exposição
que representam as relações sexuais. A repressão às represen-
tações eróticas na literatura está relacionada aos tabus criados
acerca do sexo e o papel que ele ocupa nas sociedades, embora
esse gênero seja explorado há milhares de anos, tais como o
Kama Sutra, Vatsyayana que faz parte da literatura sânscrita, e
Satíricom, de Petrônio.
É comum buscar-se distinguir erotismo de pornografia,
que, geralmente, está associado à questões de valores, em que
se busca atribuir ao erotismo um valor estético no que concer-
ne às reproduções de cenas de sexo na literatura. Enquanto
isso, a pornografia seria relegada a um segundo plano, menos
valorizada que as cenas eróticas. Todavia, segue-se aqui uma
perspectiva em que o erotismo e a pornografia caminham pa-
ralelos, pois um elemento é inerente ao outro. De acordo com
Alexandrian (1993),

A pornografia é a descrição pura e simples dos prazeres car-


nais; o erotismo é essa mesma descrição revalorizada em
função de uma ideia do amor ou da vida social. Tudo o que
é erótico é necessariamente pornográfico, com alguma coi-

221
sa a mais. É muito mais importante estabelecer a diferença
entre o erótico e o obsceno. Neste caso, considera-se que o
erotismo é tudo o que torna a carne desejável, tudo o que a
mostra em seu brilho ou em seu desabrochar, tudo o que
desperta uma impressão de saúde, de beleza, de jogo delei-
tável; enquanto a obscenidade rebaixa a carne, associa a ela
à sujeira, às doenças, às brincadeiras escatológicas, às pala-
vras imundas. (ALEXANDRIAN, 1993, p. 63).

Esse conceito destacado por Alexandrian (1993) não é algo


que promova uma discussão frutífera de tentar distinguir ero-
tismo de pornografia, visto que o erotismo pressupõe a pre-
sença da pornografia em sua constituição. Contudo, há a ne-
cessidade de diferenciar o erotismo da obscenidade, pois ao
primeiro cabe a representação do que é aprazível, desejável,
belo e atraente, enquanto ao segundo pertence as representa-
ções luxuriosas abomináveis, indesejáveis e repulsivas.
Observa-se, desse modo, que o erotismo/pornografia cami-
nham paralelos e a representação dessas duas características
são indissociáveis, em que a luxúria transcende os limites da
sexualidade para a pura satisfação de necessidades fisiológi-
cas naturais ao ser, em que se explora o ato cerimonialístico
do sexo, em que o prazer é explorado além da pura sensação
evanescente da satisfação, pois “[...] o erotismo não é mera se-
xualidade animal – é cerimônia, representação. O erotismo é
sexualidade transfigurada: metáfora” (PAZ, 1994, p. 12).
Por sua vez, a obscenidade seria um comportamento des-
viante, desregrado e corrompido. Sendo assim, à literatura com
marcas obscenas “Designam-se textos e imagens que visam ex-
clusivamente a produzir uma excitação sexual, por meio de ter-
mos como: licencioso, obsceno, lascivo e lúbrico” (GOULEMOT,
2000, p. 23). Sendo assim, a obscenidade é a representação suja
e vulgar do prazer sexual sem o véu metafórico cerimonialísti-
co que o erotismo evoca.
Nessa linha interpretativa, a linguagem/discurso é um ele-

222
mento fundamental para a representação do êxtase do ato se-
xual. A forma como as ações são descritas para que a liberdade
sexual seja expressa sem pudores. Essa é uma das marcas da
poesia de Aretino, o qual tinha como marca de sua escrita a
ironia e sátira ao comportamento humano, em especial no que
concerne à vaidade (Cf. CARVALHO, 2008).
Associado aos tabus que a sociedade impõe ao que é repre-
sentado por meio da literatura erótica, encontram-se também
o lugar da figura feminina e as relações de poder que se estabe-
lecem nesse contexto em que a formação discursiva/ideológi-
ca4 simboliza a mulher como submissa ou não diante da figura
masculina.
Nesse contexto, observa-se que a sociedade patriarcal e
machista é pautada em preceitos cristãos de moral, que, mui-
tas vezes, buscou interditar o discurso sobre o sexo por meio
da censura. Contudo, quanto mais se buscou limitar a luxúria,
o erotismo, a obscenidade na literatura e o vocabulário que de-
nota essas características, mais se ampliou as possibilidades de
explorar o discurso no e sobre o sexo, como destaca Foucault
(1988):

Não somente foi ampliado o domínio do que se podia dizer


sobre o sexo e foram obrigados os homens a estendê-lo cada
vez mais; mas, sobretudo, focalizou-se o discurso no sexo,
através de um dispositivo completo e de efeitos variados que
não se pode esgotar na simples relação com uma lei de in-
terdição. Censura sobre o sexo? Pelo contrário, constituiu-se
uma aparelhagem para produzir discursos sobre o sexo, cada
vez mais discursos, susceptíveis de funcionar e de serem
efeito de sua própria economia. (FOUCAULT, 1988, p. 19).

Esse discurso construído ao longo do percurso da literatu-


ra erótica criou paradigmas que foram seguidos durante muito
4
Uma formação ideológica deve ser entendida como a visão de mundo de uma determi-
nada classe social, isto é, um conjunto de representações, de ideias que revelam a com-
preensão que uma dada classe tem do mundo (FIORIN, 2006, p. 32).

223
tempo por ser parte da formação cultural e histórica de uma
sociedade. As determinações sociais norteiam as formações
discursivas e isso leva o leitor a pensar nas escolhas feitas pelo
autor. No caso de Aretino, com a suas sátiras à vaidade da socie-
dade, a exposição das relações sexuais e descrição dos órgãos
pode ser considerada não apenas como erótica, mas também
como obscena, expressando, assim, como a escrita masculina
gozava (goza) de liberdade para descrever cenas que desnudam
o olhar sobre a sexualidade.
Tratando especificamente do contexto de produção de Are-
tino, o Renascimento é um período da literatura ocidental em
que o erotismo ficou conhecido pela falta de pudor na forma
como representa o sexo explicitamente. Dessa forma, pensar
na manifestação do erotismo em poemas de Pietro Aretino é
não desconectar dela a marca da obscenidade. Sendo assim,
erotismo, pornografia e obscenidade emergem como elemen-
tos constituintes de seus textos em que a marca do riso é um
elemento transgressor da ordem instaurada.
O Renascimento é um momento divisor de águas, em que
se prepara o terreno para a difusão de uma literatura com uma
linguagem mais obscena e libertina, pois ao mesmo tempo em
que são proibidas também se tornam populares. A obra areti-
niana desempenha um papel de destaque nesse contexto, pois
servirá como inspiração para outras produções, visto que po-
pulariza termos empregados às partes do corpo, os quais são
nomeados e renomeados de acordo com os diálogos; além de
utilizar em sua obra o diálogo entre mulheres, especialmente
prostitutas.

O erotismo em Aretino

Livre das restrições temáticas e das imposições estilísticas


dos humanistas, em consonância com a forte corrente an-
ticlassicista em voga no século XVI, o poeta italiano desta-
cou-se entre os pornógrafos renascentistas que pretendiam

224
expor ‘a coisa’ em si. (MORAES, 2003, p. 124).

Conforme Moraes (2003) destaca na epígrafe acima, Are-


tino se sobressaiu entre os escritores contemporâneos de sua
época pelo modo como tratou da temática erótica em seus poe-
mas ao “expor a ‘a coisa’ em si”. Livre das amarras que pode-
riam restringir a forma como representou o ato sexual em seus
textos, o poeta aguça os sentidos de quem lê os seus poemas.
A maneira como Aretino descreve as relações sexuais faz
com que o processo de fruição leve o público legende ao clímax
dos acontecimentos que se apresentam como um espetáculo
aos leitores. Vejamos o poema a seguir:

Mais que sonetos este livro aninha,


Mais que éclogas, capítulos, canções.
Tu, Bembo ou Sannazaro, aqui não pões
Nem líquidos cristais e nem florinhas.

Marignan madrigais não escrevinha


Aqui, onde há caralhos sem bridões,
Que em cu ou cona lépidos dispõem-se
Como confeitos dentro da caixinha.

Gente aqui há que fode e que é fodida,


De conas e caralhos há caudal
E pelo cu muita alma já perdida.

Fode-se aqui com graça sem igual,


Alhures nunca assaz reproduzida
Por toda a jerarquia putanal.

Enfim loucura tal


Que até dá nojo essa iguaria toda,
E Deus perdoe a quem no cu não foda.
(ARETINO, 2000, p. 51).

225
Esse poema apresenta as maravilhas do sexo, levando os
leitores a criarem um horizonte de expectativas acerca das pos-
sibilidades de prazer que o “livro aninha” ao explorar o prazer
em suas mais diversas formas. A escolha dos termos feita por
Aretino leva o leitor à cama a partir do primeiro verso, ao mos-
trar que a obra “aninha” mais do que sonetos.
Já na segunda estrofe, os limites do pudor são superados
e o eu-lírico chama a atenção para o deslumbre de sensações
que podem ser vivenciadas por meio do sexo em que caralhos
usam alegremente cus e conas (vulvas) sem limites. Esta festa
de prazeres é comparada a “confeitos dentro da caixinha” com
os quais se pode deliciar.
Nesta orgia, o eu-lírico estabelece uma relação entre o di-
vino e o profano ao relacionar o ato sexual ao pecado, quando
muitas pessoas já perderam a alma “pelo cu”. Percebe-se que a
ironia é marcante no poema, pois nesse primeiro momento há
essa advertência à maneira pouco nobre de perder a alma em
meio há abundância de conas e caralhos de pessoas que “fo-
dem e são fodidas”.
Embora as pessoas tenham “perdido a alma” por causa do
sexo anal, não se nega o prazer ou “a graça sem igual” do sexo
e a forma como o poeta a trata na obra, coisa que o leitor não
encontrará em outro trabalho, a qual nunca é suficientemente
reproduzida. Percebe-se, então, a necessidade de conhecimen-
to do corpo, seja o próprio ou o do outro. Na perspectiva de
Alberoni (1988),

O erotismo é uma forma de conhecimento do corpo. Do


nosso corpo, do corpo do outro, um conhecimento adqui-
rido através do corpo. Nosso corpo torna-se objeto erótico,
quando queremos agradar aos outros. É o desejo dos outros
que põe em movimento o nosso conhecimento. (ALBERONI,
1988, p. 219).

226
Seguindo o raciocínio de Alberoni (1988), podemos obser-
var como o corpo é colocado como objeto erótico e como o de-
sejo coloca em prática o conhecimento que se tem sobre o sexo
ao explorar o prazer sexual em suas diversas nuances ou, se-
guindo as descrições aretinianas, diversos orifícios.
Após refestelar-se nesse banquete, a ironia novamente en-
tra em cena quando o eu-lírico diz que “até dá nojo essa iguaria
toda”. Após excitar o apetite e satisfazer-se com as delícias do
sexo, a presença do “nojo” no poema é uma forma sarcástica de
criticar a falta de pudor das pessoas que se mascaram os seus
verdadeiros desejos por traz de convenções sociais, especial-
mente as religiosas. E, para finalizar o poema, o eu-lírico roga a
Deus para que perdoe as pessoas que não se permitem tal satis-
fação, principalmente a anal.
Os Sonetos Luxuriosos criticam a hipocrisia das pessoas que
negam deleitar-se com o sexo, assim como destaca a epígrafe5
do livro, ao mesmo tempo em que parece um manual de como
alcançar o clímax no ato sexual, sem nenhum pudor ao expli-
citar como as ações devem ocorrer. Observemos a seguir no se-
gundo soneto:

[...]
Caralho horrendo, cona resplendente,
Aqui vereis fazer alegremente
O seu ofício muita bela puta.

Na frente, atrás, em valerosa luta,


E a língua a ir de boca a boca, ardente
— Sucesso mais lendário certamente
Que os feitos de Morgante ou de Marguta.

5
“Divertime [...] escrevendo os sonetos que podeis ver [...] sob cada pintura. A indecente
memória deles, eu a dedico a todos os hipócritas, pois não tenho mais paciência para as
suas mesquinhas censuras, para o seu sujo costume de dizer aos olhos que não podem
ver o que mais os deleita. Aretino”. Epígrafe In.: ARETINO, Pietro. Sonetos Luxuriosos.
Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000 (Edição Bilingue).

227
Que notável prazer não tereis tido
De ver a cona ou o cu nessa apertura,
Em modos incomuns de ser fodido.
[...]
(ARETINO, 2000, p. 53).

No fragmento acima, observamos o eu-lírico se dirigir a


uma mulher, uma prostituta, a quem ele promete fazer com
que o seu ofício seja cumprido de forma satisfatória. Embora
o ofício seja desempenhado de forma corajosa pela mulher,
ele não deixa de demonstrar que é uma luta, mas que ao final
ela será recompensada pelo sucesso. Assim, o eu-lírico expõe
ao leitor como esse trabalho é realizado ao colocar na frente e
atrás, ao mesmo tempo que a língua percorre várias bocas e o
sexo é marcado por ações fora do comum de ser realizado.
Possivelmente, a caracterização do pênis como horrendo,
conforme ocorre no primeiro verso do fragmento, esteja rela-
cionada com o tamanho do órgão, o qual fará com que a geni-
tália feminina e o ânus sinta o prazer de se sentirem apertados.
Vemos nos sonetos de Aretino a realização da fantasia, em que
o privado torna-se público, a pornografia teatraliza a obsceni-
dade e a libertinagem que estão presentes nas cenas eróticas
que excitam a imaginação e compõem um quadro de proibições
que as sociedades impõem, conforme destaca Sontag (1987):

[...] o obsceno é uma convenção, a ficção imposta sobre a na-


tureza por uma sociedade convicta de que há algo de vil nas
funções sexuais e por extensão no prazer sexual [...] o obs-
ceno é uma noção primal do conhecimento humano, algo
de muito mais profundo que a repercussão de uma aversão
doentia da sociedade ao corpo. [...] Por mais domesticada
que possa ser, a sexualidade permanece como uma das for-
ças demoníacas na consciência do homem [...] (SONTAG,
1987, p. 61).

228
No quinto soneto de Aretino, podemos observar que é a
mulher quem ensina o homem como ele deve proceder, embo-
ra possamos encontrar um diálogo entre as duas personagens
– o que é característico dos poemas aqui apresentados. Anali-
semos a seguir:

Põe-me um dedo no cu, velho pimpão,


Mete-lhe dentro o pau, mas sem afogo;
Levanta bem a perna, faz bom jogo,
Depois mexe, mas sem repetição.
[...]
Na cona hei de foder-te boa data,
De vezes, pois em cona ou cu entrando,
O pau faz-me feliz e a ti beata.
[...]
(ARETINO, 2000, p. 61).

Diante do poema supracitado, vemos que a mulher inicia o


soneto ensinando ao homem a forma como deve iniciar o ato
sexual. Nesse soneto, a percepção da mulher sobre o sexo é
exposta, pois é ela quem está explorando o próprio corpo, por
meio do homem, para alcançar o ápice do prazer. Ela o conduz
para que ele seja capaz de satisfazê-la.
Observa-se que nessa cena o casal busca mutuamente por
prazer: produzir e receber. Este ato de satisfação recíproca é
enfatizado pelo eu-lírico ao mencionar que o seu “pau” o faz
feliz quanto à mulher, prometendo “fodê-la” várias vezes. Are-
tino, assim, faz-nos refletir acerca das relações eróticas e por-
nográficas vivenciadas por suas personagens, as quais perten-
cem ao domínio da fantasia, materializam-se num discurso por
meio de sua produção literária e revolve os sentidos e sensa-
ções, físicos e psicológicos, do público legende. Isso nos leva ao
encontro do que Susan Sontag (1987) destaca:

229
O erotismo vive sua plenitude no domínio da fantasia e se
realiza plenamente no terreno da ficção. O exagero porno-
gráfico, por vezes, prenuncia o erótico, e talvez seja melhor
compreendido se referido ao universo da imaginação, onde
o excesso pode se constituir na essência de sua mensagem.
(SONTAG, 1987, p. 62).

Seguindo as considerações de Sontag (1987), observamos


que os poemas de Aretino teatralizam a fantasia e o exagero do
espetáculo sexual ao desvelar a prática para o leitor, o qual atin-
ge o clímax, juntamente, com as personagens aretinianas por
meio da fruição resultante da leitura de seus Sonetos luxuriosos
em que o erotismo e a pornografia caminham paralelamente.

Palavras finais

Neste trabalho, pudemos observar que ao longo da história


as representações discursivas eróticas/pornográficas fizeram e,
ainda fazem, parte das variadas manifestações artísticas. Espe-
cificamente no que concerne à literatura, diversas foram as for-
mas estéticas de abordar essa temática por meio da linguagem
escrita.
Consideramos que a obra de Pietro Aretino, dentro do con-
texto de produção literária, traz contribuições relevantes para
o âmbito da literatura erótica/pornográfica, uma vez que esta é
considerada uma categoria inferior e até mesmo marginalizada
por causa da temática explorada.
A pesquisa assinalou como um dos resultados fundamen-
tais o fato de que a produção literária de Pietro Aretino, tam-
bém, promove uma crítica social por meio da ironia presente
em seus poemas, ao denunciar a hipocrisia da sociedade que
finge não gostar ou repudia a exploração do prazer nas mais
variadas possibilidades.
Os resultados obtidos apontam que as representações eró-
ticas por meio da literatura fazem parte do comportamento

230
humano e o erotismo tem a pornografia como uma marca in-
dissociável de sua constituição, pois caminham paralelas. Es-
peramos que esta proposta possa contribuir para novas indaga-
ções e, assim, servir de provocação para outras análises.

REFERÊNCIAS

ARETINO, Pietro. Sonetos Luxuriosos. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000 (Edição Bilingue).
ALBERONI, Francesco. O Erotismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
ALEXANDRIAN, Serene. História da Literatura Erótica. Rio de Janeiro, Rocco,
1993.
BATAILLE, George. O Erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.
BRANCO, Lúcia Castelo. O que é erotismo. 2. Ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.
CARVALHO, Renata Augusto de. Erotismo e a intertextualidade na narrativa
de Márcia Denser. São Paulo, 2008 91 f. 30 cm Dissertação (Mestrado em
Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2008.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução:
Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1988.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática,
2006.
GOULEMOT, Jean-Marie. Esses livros que se lêem com uma só mão. Leitura e
leitores de livros pornográficos no século XVIII. Tradução: Maria Aparecida
Corrêa. São Paulo: Discurso Editorial, 2000.
HUNT, Lynn. A invenção da pornografia. São Paulo: Hedra, 1999.
MORAES, Eliane Robert. O Efeito Obsceno. Cadernos Pagu (UNICAMP), Campi-
nas, v. 20, p. 122-130, 2003.
SONTAG, Susan. A imaginação pornográfica. In: ______. A vontade radical. Rio
de Janeiro: Companhia das Letras, 1987.

231
232
O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA
NA BASE NACIONAL COMUM
CURRICULAR: DAS DISPUTAS
IDEOLÓGICAS AO CONCEITO DE
GÊNERO E CAMPO DE ATUAÇÃO6

Patrícia Silva Rosade Araújo

6
Este trabalho faz parte da pesquisa de Estágio Pós-Doutoral no PPGLE (Programa
de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino), na Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG), sob a supervisão da professora Drª. Denise Lino de Araújo.

233
234
A
s discussões e disputas em relação à proposta da Base
Nacional Comum Curricular (doravante, BNCC) alas-
trou-se significativamente. Desde que foi divulgada a
primeira versão em 2015, multiplicaram-se os discursos em
torno do assunto. E a mídia tem exercido um papel preponde-
rante, servindo de articuladora entre o governo e os demais in-
terlocutores (professores, pesquisadores, alunos gestores etc.),
tentando “traduzir” para os “não-especialistas” os discursos a
favor e/ou contra o documento. No entanto, não faz isso de ma-
neira ingênua, neutra ou imparcial.
Assim, as impressões dos interlocutores sobre a BNCC são
elaboradas a partir dos vieses axiológicos carregados de posi-
cionamentos e julgamentos de valor veiculados pelas palavras
empregadas, projetados a partir da posição social, histórica e
ideológica de cada veículo de comunicação que publiciza infor-
mações sobre o documento, uma vez que a mídia, para instau-
rar acontecimentos, simula alguns eventos, omite discursos e
evidencia outros discursos que lhe convêm.
Nesse contexto, nossos objetivos nesse artigo são analisar
as disputas ideológicas em torno da BNCC e entender os funda-
mentos teóricos subjacentes ao conceito bakhtiniano de gêne-
ros de discurso e campo de atuação presentes no documento.

BNCC: das disputas ideológicas aos conceitos subjacentes

Apresentamos, a seguir, alguns posicionamentos favoráveis


e contrários à construção da BNCC a partir de algumas forças
institucionais e de autoridades sobre o assunto. Em seguida,
discutiremos o conceito de gênero e campo de atuação social

235
presente no documento.

A BNCC na arena de disputa

A BNCC foi apresentada pelo Ministério da Educação (MEC)


no mês de setembro do ano de 2015, sendo defendida como
projeto ancorado no Plano Nacional de Educação (PNE) - 2014-
2014. Foi disponibilizada para consulta pública e, segundo o
MEC, teve mais de 12 milhões de participações. Em maio de
2016, uma segunda versão foi publicada e novamente discu-
tida. A terceira versão (apenas Educação Infantil e Ensino
Fundamental) foi apresentada em abril/2017, rediscutida e
a última versão foi homologada pelo MEC em dezembro de
2017. É sobre essa versão final que queremos nos debruçar
neste momento.
Há várias iniciativas (públicas e privadas) que instauraram
o debate sobre a BNCC. Desde 2013, por exemplo, um movi-
mento nomeado de Movimento pela Base Nacional Comum
7
(MBNC) afirmou, em seu site , que se constituía de um grupo de
especialistas em Educação que se reuniu para discutir a adoção
de uma BNCC para o Brasil. Apresentou-se como um grupo não
governamental de profissionais e pesquisadores da educação
que atua para “facilitar a construção de uma Base de qualida-
de”.
No caso dos agentes privados, destacam-se algumas insti-
tuições ou fundações e institutos a exemplo de Fundação Le-
mann, principal apoiadora e articuladora da reforma curricu-
lar, Cenpec, Instituto Natura, Instituto Ayrton Senna, Instituto
Unibanco, Fundação SM, Insper e Instituto Fernando Henrique
Cardoso.
Segundo Geraldi (2015), a BNCC é produto de consultorias
universitárias, de comitês de especialistas, de técnicos compe-
tentes. É uma implantação vertical que só servirá de referência
para os sistemas de avaliação. Postura esta que se distancia da

7
Cf. http://movimentopelabase.org.br/. Acesso em 20/05/2018.

236
“experiência da escola”, da “realidade do professor” e das “ne-
cessidades do estudante brasileiro” (p. 381).
Rocha e Pereira (2016) nos lembram que a Associação Na-
cional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), no
ano de 2015, elencou nove motivos que justificaram o posicio-
namento contrário à BNCC. A Associação também lançou em
seu portal uma campanha em oposição à BNCC, que foi deno-
minada de Aqui já tem Currículo. A campanha considera que os
professores e professoras que já praticam currículos de varia-
das maneiras e com conteúdos plurais não foram devidamente
ouvidos/as.
Há ainda uma proliferação de websites, blog, textos, vídeos
no Youtube que também disseminam opiniões sobre a BNCC.
Especialistas, professores, organizações continuam comentan-
do, discutindo, opinando e analisando o documento. Já existem
até cursos de curta duração para “preparar” o professor para
receber a BNCC na escola. Nesse contexto, a mídia tem sido a
grande difusora sobre o assunto. Ela tem sido a ferramenta por
meio da qual todos têm se valido para se instrumentalizar sobre
o que é a BNCC, onde baixar, onde tirar dúvidas etc.. É comum
encontrarmos informações do tipo: “Tudo o que você precisa
saber sobre a BNCC”.
O grande problema é a dispersão de informações, de pon-
tos de vista, de valoração ideológica. Nesse sentido, recomen-
damos uma leitura crítica, desconfiada sobre o que se lê/ouve/
vê. Leitura crítica, segundo Sobral (2017, p. 1), é “interpretar e
duvidar sempre. Não aceitar nada como verdade parcial ou ab-
soluta”. É a partir desse ponto de vista que defendemos a leitura
da BNCC.

Os conceitos subjacentes: os gêneros do discurso

A nosso ver, a BNCC mantém um dos principais problemas


atribuídos aos PCN na década de 90, qual seja, no conjunto das
considerações teóricas, pouco espaço se reserva para a discus-

237
são de conceitos centrais à proposta, como língua, discurso,
texto, gênero, escuta e leitura, produção textual, dentre outros.
No documento, tais termos são conceituados marginalmente,
pressupondo-se, nesse caso, um professor com conhecimento
prévio das teorias implicadas. A BNCC se justifica dizendo:

Ao mesmo tempo que se fundamenta em concepções e con-


ceitos já disseminados em outros documentos e orienta-
ções curriculares e em contextos variados de formação de
professores, já relativamente conhecidos no ambiente esco-
lar – tais como práticas de linguagem, discurso e gêneros
discursivos/gêneros textuais, esferas/campos de circulação
dos discursos [...] (BRASIL 2017, 67, grifos nossos).

Segundo o documento, a seleção de gêneros relacionados


aos vários campos de atuação tem a proposta de organizar a
ideia de progressão (a progressão dar-se-á tanto no aprofunda-
mento das formas de mobilização dos diferentes recursos no
interior de cada um dos gêneros quanto na ampliação desses
gêneros), partindo dos mais simples aos mais complexos.
No entanto, consideramos a proposta do documento bastante
pretenciosa, haja vista a gama de gêneros propostos (ou impostos)
no Ensino Fundamental, a exemplo de tirinha, charge, meme, gif,
folheto, entrevista, carta do leitor, reportagem, palestra, debate,
resenha, comentário, sinopse, relatório, etc.). O documento ain-
da acrescenta: “outros gêneros, além daqueles cuja abordagem é
sugerida na BNCC, podem e devem ser incorporados aos currícu-
los das escolas e, assim como já salientado, os gêneros podem ser
contemplados em anos diferentes dos indicados” (BRASIL, 2017 p.
137).
Para alguns, essa profusão de gênero é louvável, mas a partir
de nossas experiências em salas de aula da educação básica há
mais de quinze anos e a partir de nossa experiência nas turmas de
estágio supervisionado, podemos dizer que um projeto discursivo,
a depender dos propósitos e da complexidade do gênero (por. ex.;

238
resenha crítica, artigo científico, artigo de opinião), leva tempo,
não se pode trabalhar de forma célere só paragarantir quantidade.
Nesse sentido, concordamos com Geraldi (2015) quando diz
que o excesso de carga exigido ano a ano na proposta da BNCC
impede que professores elaborem projetos de continuidade e de
profundidade num mesmo gênero (trabalhos com coletâneas de
resenhas etc.). Esses projetos demandam tempo na escola, mas
esse tempo estará ocupado pela passagem pelos inúmeros gêneros
ainda que de forma mais ou menos superficial. Embora o autor
esteja falando da primeira versão da BNCC, essa questão se apli-
ca inteiramente na versão final.
Ainda sobre o gênero, a BNCC prevê gêneros efetivamente
praticados pelos professores e alunos segundo suas faixas etá-
rias e de escolaridade e suas necessidades (tirinha, charge, folhe-
tos, entrevista, carta do leitor, reportagem, palestra, debate etc.),
bem como gêneros distantes de seus mundos, longe de seus
usos como aqueles próprios do campo jornalístico/midiático.
Há uma profusão dos gêneros multimidiáticos e multissemió-
ticos, treinando o aluno para agir como futuro influenciador
digital.

Figura 1: Gêneros textuais no contexto da BNCC (Anos iniciais)

Fonte: BNCC, 2017, p. 74

239
Ao apontar uma diversidade de gêneros multimidiáticos e
multissemióticos, a BNCC instiga a possibilidade de inserção das
Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação (TDIC)
no cotidiano escolar. No entanto, quando se propõe gameplay,
vidding, walkthrough, e-zines etc., realisticamente falando, as
escolas não dispõem tanto dos recursos necessários quanto de
pessoal especializado. Na maioria das vezes, os professores se
arriscam na cultura digital de forma amadora, sem terem rea-
lizado qualquer formação dentro ou fora do ambiente escolar.
Com isso, não estamos dizendo que nossos alunos não te-
nham potencial para aprender (e muitos já lidam muito bem
com esse mundo digital) e que os professores não sejam capa-
zes de mediar a aprendizagem (há professores expert em lidar
com as tecnologias). Muito menos que esses gêneros não de-
vam fazer parte do repertório da sala de aula. Mas reconhece-
mos que é preciso um trabalho interdisciplinar entre diversos
profissionais (web designer, redator web, programador, analis-
ta de mídia social, analista de marketing digital, desenvolve-
dor, designer gráfico, dentre outros) para auxiliar o trabalho do
professor com a abordagem desses e outros gêneros na área de
TDIC. Será que o professor terá esse apoio?
Há muitas décadas se discute o ensino de gênero no Brasil,
mas o professor ainda pergunta: o que é mesmo gênero? Qual
a diferença entre gênero e tipo textual? E suporte? O que devo
ensinar: gênero ou texto? Redação ou produção textual? E tudo
isso fica mais confuso quando o professor vai ler a BNCC e isso
não é esclarecido, pois o documento toma texto por gênero o
tempo todo. Vejamos um exemplo:

Figura 2- Texto ou gênero?

Fonte: BNCC, 2017, p. 141


240
A BNCC diz: revisar/editar o texto produzido..., mas dá como
exemplo os gêneros notícia, reportagem. O texto é tomado como
equivalente ao gênero, como se o gênero fosse a materializa-
ção do texto. No entanto, concordamos com Bezerra (2017, p.
36) quando diz que “[...] do gênero jamais se pode dizer que ‘se
materializa’. Apenas o texto pode ser descrito como tendo um
aspecto material, ou constituir uma materialidade linguística”.
Quanto ao gênero, numa concepção dialógica, “é uma categoria
discursiva, da ordem do enunciado, não do texto ou da frase”
(SOBRAL, 2009, p. 119). Portanto, não se pode confundir texto
com gênero.

Os Campos de atuação social

Toda atividade humana se entretece de discursos que cir-


culam nas esferas ou campos de atividade humana (BAKHTIN,
2011). Esses campos de atividade humana organizam toda a pro-
dução, circulação, recepção dos textos/enunciados em gêneros
de discurso específicos em nossa sociedade, que integram as
práticas sociais e são por elas concebidos e arranjados. Isso se
constitui a atividade comunicativa do sujeito nas práticas so-
ciais.
Segundo a BNCC, o conceito de campo já está disseminado
em outros documentos:

Ao mesmo tempo que se fundamenta em concepções e con-


ceitos já disseminados em outros documentos e orientações
curriculares e em contextos variados de formação de pro-
fessores, já relativamente conhecidos no ambiente escolar
– tais como práticas de linguagem, discurso e gêneros dis-
cursivos/gêneros textuais, esferas/campos de circulação dos
discursos –, considera as práticas contemporâneas de lingua-
gem, sem o que a participação nas esferas da vida pública,
do trabalho e pessoal pode se dar de forma desigual (BNCC,
p. 67, grifo nosso)

241
No entanto, cabe apresentarmos uma breve discussão sobre
esse conceito. Segundo Bourdieu (2004), o conceito de campo
está relacionado com a interação entre os agentes (indivíduos
ou instituições) e seu lugar de atuação na sociedade (família,
igreja, escola, clubes sociais, universidade etc.). No interior dos
campos, existem disputas por controle e legitimação dos bens
produzidos, assim como também são estabelecidas diferentes
relações e assumidas posturas pelos agentes que os compõem.
Seguimos com o exemplo do autor sobre o campo científi-
co, um dos objetos de seus estudos:

O campo científico é um mundo social e, como tal, faz impo-


sições, solicitações etc, que são, no entanto, relativamente
independentes das pressões do mundo social global que o
envolve. De fato, as pressões externas, sejam de que nature-
za forem, só se exercem por intermédio do campo, são me-
diatizadas pela lógica do campo (BOURDIEU, 2004, p. 21-22).
Nesse sentido, o campo sofre influências externas, mas
também determina seus modos de ser internamente. Assim,
um campo tem sua definição a partir “de disputas e dos inte-
resses específicos que são irredutíveis aos objetos de disputas
e aos interesses próprios de outros campos” (BOURDIEU, 1983,
p. 89).
Bakhtin/Volochinov (2010) também trazem uma discussão
pertinente sobre o conceito de campo, a partir de várias acep-
ções: esfera da comunicação discursiva, criatividade ideológi-
ca, atividade humana, comunicação social.

Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio


modo de orientação para a realidade e refrata a realidade
à sua própria maneira. Cada campo dispõe de sua própria
função no conjunto da vida social. É seu caráter semiótico
que coloca todos os fenômenos ideológicos sob a mesma
definição geral. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010, p. 33, grifo
dos autores).

242
Para Swales (1990), os gêneros são definidos essencialmen-
te em termos de uso da linguagem em contextos comunicativos
convencionados, dando origem a conjuntos específicos de pro-
pósitos comunicativos para grupos sociais disciplinares espe-
cializados.

Um gênero compreende uma classe de eventos comunica-


tivos, cujos exemplares compartilham os mesmos propósi-
tos comunicativos. Esses propósitos são reconhecidos pelos
membros mais experientes da comunidade discursiva ori-
ginal e constituem a razão do gênero. (SWALES, 1990 apud
HEMAIS E BIASI-RODRIGUES, 2005, p. 114).

Como se vê, em Swales (1990), gênero e comunidade dis-


cursiva (campo) são noções imbricadas de tal forma que é im-
possível entender um sem o outro. Para o autor, a comunidade
discursiva serve como um dispositivo ou mecanismo de ajuda
para o ingresso, a sobrevivência e o progresso dos novos mem-
bros. Assim, uma das características mais notáveis de qualquer
comunidade discursiva acadêmica ou profissional é a disponi-
bilidade e o uso típico de uma série de gêneros apropriados, que
os membros pensam servir aos objetivos daquela comunidade.
Para Bhatia (2009), a comunidade discursiva só está acessí-
vel para aqueles que detêm o conhecimento do modo como os
gêneros funcionam, e não para aqueles que estão de fora. Des-
sa forma, se por um lado o gênero pode ser usado para manter
os de fora longe da comunidade, por outro lado, a comunidade
discursiva procura levar o conhecimento de suas tradições aos
novatos. Mas Bhatia (op. cit., p. 188) lembra que a comunida-
de discursiva “capacita uns, os membros da comunidade, en-
quanto, ao mesmo tempo, silencia a outros, especialmente os
de fora”.
É por essa razão que Bakhtin (2011, p. 285) diz que as
pessoas podem dominar magnificamente a língua numa dada
esfera de comunicação (campo), mas pode sentir-se totalmente

243
impotente em outras esferas por não dominar na prática as
formas de gênero de dadas esferas.

Quanto mais dominamos os gêneros tanto mais livremente


os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobri-
mos nele a nossa individualidade (onde isso é possível e ne-
cessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação
singular da comunicação; em suma, realizamos de modo
mais acabado o nosso projeto de discurso.

Nesse contexto, é preciso dominar bem os gêneros para em-


pregá-los nas diversas situações de uso. E isso inclui, segundo
Devitt (2004 apud REINALDO, MARCUSCHI, DIONISIO, 2012),
uma consciência crítica sobre o gênero, ou seja, é necessário
que o usuário esteja imerso nos ambientes sociais/esferas/cam-
pos em que os gêneros circulam. Nesse sentido, ao observar
como o gênero funciona em seus contextos originais, o usuário
aprendê-lo-ia de forma explícita, sem simulação.
Na BNCC, os Campos de atuação social propostos para con-
textualizar as práticas de linguagem de Língua Portuguesa es-
tão organizadas da seguinte maneira:

Figura 3 – Organização dos campos de atuação da BNCC

Fonte: BNCC (2017, p. 493)


244
Segundo o próprio documento da BNCC (2017, p. 84): A
escolha por esses Campos, de um conjunto maior, deu-se
por se entender que eles contemplam dimensões formativas
importantes de uso da linguagem na escola e fora dela e criam
condições para uma formação para a atuação em atividades
do dia a dia, no espaço familiar e escolar, uma formação que
contempla a produção do conhecimento e a pesquisa; o exercício
da cidadania; uma formação estética, vinculada à experiência
de leitura e escrita do texto literário e à compreensão e produção
de textos artísticos multissemióticos.
Vale salientar que as fronteiras entre os campos de atuação
(campo da vida cotidiana, vida pública, artístico-literário etc.)
são tênues, ou seja, reconhece-se que alguns gêneros incluídos
em um determinado campo estão também referenciados a
outros, existindo trânsito entre esses campos. Desse modo, os
Campos se interseccionam de diferentes maneiras.
Vejamos, a seguir, como a BNCC define cada campo de
atuação:

Quadro 1 – Definição dos Campos de Atuação segundo a BNCC


CAMPO DA VIDA COTIDIANA
Campo de atuação relativo à participação em situações de leitura, próprias
de atividades vivenciadas cotidianamente por crianças, adolescentes, jovens
e adultos, no espaço doméstico e familiar, escolar, cultural e profissional.
Alguns gêneros textuais deste campo: agendas, listas, bilhetes, recados,
avisos, convites, cartas, cardápios, diários, receitas, regras de jogos e
brincadeiras. (p. 96)
CAMPO DA VIDA PESSOAL
O campo da vida pessoal organiza-se de modo a possibilitar uma reflexão
sobre as condições que cercam a vida contemporânea e a condição juvenil
no Brasil e no mundo e sobre temas e questões que afetam os jovens. As
vivências, experiências, análises críticas e aprendizagens propostas nesse
campo podem se constituir como suporte para os processos de construção
de identidade e de projetos de vida, por meio do mapeamento e do resgate
de trajetórias, interesses, afinidades, antipatias, angústias, temores etc., que
possibilitam uma ampliação de referências e experiências culturais diversas
e do conhecimento sobre si (p. 488).

245
CAMPO ARTÍSTICO-LITERÁRIO
O campo artístico é o espaço de circulação das manifestações artísticas em
geral, contribuindo para a construção da apreciação estética, significativa
para a constituição de identidades, a vivência de processos criativos, o
reconhecimento da diversidade e da multiculturalidade e a expressão de
sentimentos e emoções. Possibilita aos estudantes, portanto, reconhecer,
valorizar, fruir e produzir tais manifestações, com base em critérios estéticos
e no exercício da sensibilidade (p. 489).
CAMPO DAS PRÁTICAS DE ESTUDO E PESQUISA
Abrange a pesquisa, recepção, apreciação, análise, aplicação e produção
de discursos/textos expositivos, analíticos e argumentativos, que circulam
tanto na esfera escolar como na acadêmica e de pesquisa, assim como no
jornalismo de divulgação científica. O domínio desse campo é fundamental
para ampliar a reflexão sobre as linguagens, contribuir para a construção do
conhecimento científico e para aprender a aprender (p. 488).
CAMPO JORNALÍSTICO-MIDIÁTICO
Caracteriza-se pela circulação dos discursos/textos da mídia informativa
(impressa, televisiva, radiofônica e digital) e pelo discurso publicitário. Sua
exploração permite construir uma consciência crítica e seletiva em relação
à produção e circulação de informações, posicionamentos e induções ao
consumo (p. 489).
CAMPO ATUAÇÃO NA VIDA PÚBLICA
O campo de atuação na vida pública contempla os discursos/textos
normativos, legais e jurídicos que regulam a convivência em sociedade,
assim como discursos/textos propositivos e reivindicatórios (petições,
manifestos etc.). Sua exploração permite aos estudantes refletir e participar
na vida pública, pautando-se pela ética (p. 489).

Fonte: BNCC (2017)

Entender o funcionamento social dos Campos de atuação é


importante, porque são eles que orientam a seleção de gêneros,
práticas, atividades e procedimentos em cada um deles.

Palavras finais

Não há dúvidas de que a BNCC norteará todas as diretrizes


para o ensino no Brasil. Infelizmente, a compreensão desse do-

246
cumento tem chegado por diversos canais até o professor, que
parece assitir os debates como se estivesse numa arena. Sua
participação no debate ainda é tímida e assistemática. No en-
tanto, acreditamos que sua participação será mais efetiva quan-
do o documento chegar de fato no chão da escola, na sala de
aula. Assim, o professor vai conseguir se desvencilhar das mui-
tas narrativas midiáticas (pontos de vista dispersos) e se apro-
priar do discurso ditático-teórico do documento, numa análise
mais apurada dos seus conceitos.
De antemão, acreditamos que pensar o conceito de gênero
discursivo numa perspectiva bakhtiniana é contrariar velhas
práticas (propostas teóricas e metodológicas que reduzem o gê-
nero a um produto pronto) e aliar-se ao projeto discursivo do
autor e seu ouvinte, a partir das interações dialógicas.
A BNCC não discute e nem aprofunda de modo geral seus
aportes teóricos, pressupondo que os professores já os conhe-
cem ou os dominam suficientemente bem. O professor não
encontrará no documento uma segurança teórica a seguir. Há
apontamentos e orientações vagas. Isso implica dizer que vai
ficar a critério do professor buscar formação para sanar suas
dúvidas e necessidades quanto à opção teórica mais adequada
para os seus objetivos, evitando, assim, misturar perspectivas,
conceitos etc.. Daí, a tão necessária formação docente, princi-
palmente em tempos de enxurrada de documentos parametri-
zadores direcionadas ao ensino.

REFERÊNCIAS

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. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2011, p. 261-306.
BAKHTIN, M. M.; VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da lingua-
gem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Trad.
Michel Lahud e Yara Fratexchi Vieira. 14.ed. São Paulo: Hucitec, 2010.

247
BHATIA, Vijay K. A análise de gêneros hoje. In: BEZERRA, B. G. et. al. (Orgs).
Gêneros e sequências textuais. Recife: Edupe, 2009, p. 159-196.
BOURDIEU, P. F. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do
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cias textuais. Recife: Edupe, 2009, p. 197-220.

248
PADRE ANTÔNIO VIEIRA E O
PERÍODO BARROCO: UMA ANÁLISE
SEMÂNTICO-DISCURSIVA DO
CAPÍTULO IV DO SERMÃO DA
SEXAGÉSIMA

Jeniffer de Oliveira Barbosa


Maria Estela Souto da Silva
Manassés Morais Xavier

249
250
O
movimento literário Barroco, aqui no Brasil, a priori tra-
tava-se de um movimento destinado apenas à catequiza-
ção. No entanto, no século XVII começa a ganhar força
e expandir-se para os grandes centros de produção do açúcar,
no estado da Bahia, por meio da igreja. Introduzido por missio-
nários católicos, especialmente jesuítas, esse período impactou
diretamente a escultura, a pintura, a arquitetura e a literatura
do nosso país.
Um fato saliente é que o período Barroco é marcado por
grandes conflitos religiosos, uma vez que tínhamos a Reforma
Protestante a todo vapor de um lado, questionando os dogmas
da igreja e afirmando que nela havia algumas irregularidades
e do lado oposto a Contrarreforma, movimento que surgiu na
própria igreja católica que tinha como intuito rebater a Refor-
ma Protestante. Defronte a esse embate, emerge o nome do Pa-
dre Antônio Vieira como uma figura de grande relevância para
esse período, pelo fato de não participar do movimento da Con-
trarreforma e, mesmo assim, apontar as negligências existen-
tes dentro da instituição religiosa.
Considerado imperador da Língua Portuguesa por Fernan-
do Pessoa, Vieira destaca-se também pelo fato de ser um mes-
tre da retórica e da argumentação, sendo reconhecido pela sua
produção literária de cunho religioso. Entre a vasta produção
de Vieira, destacamos O Sermão da Sexagésima como uma obra
interessante e de extrema relevância, uma vez que é escrito por
um padre que aponta defeitos na própria instituição religiosa: a
igreja. Além disso, nessa obra o autor faz perguntas que são res-
pondidas por ele mesmo, utilizando como base para enfatizar
seus argumentos, o intertexto com trechos bíblicos da parábola

251
do semeador, presente no livro de Matheus.
O sermão é concebido como um poderoso discurso que
permeia o âmbito religioso, isso porque propaga os preceitos
pregados pela igreja, na busca de converter e de instruir os fiéis
através da persuasão, sendo assim, um “exemplo de sedução e
argumentação, de um árduo e incessante trabalho com a lin-
guagem” (ALMEIDA, 2009, p. 09). Em vista disso, este estudo
objetiva analisar o discurso de Padre Antônio Vieira em uma
perspectiva semântico-discursiva, uma vez que o discurso de
Vieira é rico em teor argumentativo para a defesa de seu ponto
de vista.
Nesse contexto, o respaldo teórico utilizado é a Análise
do Discurso Francesa, trazendo a concepção de que o discur-
so seria a linguagem em um formato interativo, como defende
Orlandi (2007) e colaboradores. A outra corrente utilizada para
análise é a Teoria Argumentativa da Língua (TAL), a qual postu-
la que a argumentatividade está instaurada na própria língua.
Frente ao supracitado, a presente pesquisa consiste em
analisar o capítulo IV do Sermão da Sexagésima, volvendo um
olhar para a seguinte problemática: de que forma os aspectos
semântico-discursivos influenciam na construção discursiva?
Diante disso, temos como objetivos: 1) analisar como Vieira uti-
liza os aspectos semânticos e discursivos no sermão; e 2) ave-
riguar e compreender o discurso religioso em uma produção
barroca, mais especificamente, no capítulo IV do Sermão da
Sexagésima.
Do ponto de vista metodológico, ressaltamos ser esta uma
pesquisa que se encaixa em uma perspectiva analítica de cará-
ter qualitativo-interpretativista, uma vez que se preocupa em
buscar compreender o corpus, no caso, o capítulo IV do Sermão
da Sexagésima, devido ao seu alto teor argumentativo e discur-
sivo.
Realizada tais considerações iniciais, apontamos que a re-
visão teórica do nosso trabalho está dividida em dois momen-
tos. O primeiro, nomeado de O discurso na perspectiva francesa,

252
breve trajetória histórica, noções base e o discurso religioso, discor-
re sobre a Análise do Discurso de linha francesa, considerando
alguns conceitos bases, como interdiscurso e memória discur-
siva, salientando também sobre o discurso religioso. O segundo
tópico, por sua vez, intitulado de A Teoria da Argumentação da
Língua, comenta sobre a teoria da argumentação da língua.
Empreendidas tais discussões teóricas, passamos para
o momento em que será analisado o nosso corpus, no tópico
denominado de Análise do capítulo IV do Sermão da Sexagésima
em uma perspectiva semântico-discursiva. Por fim, salientamos
nossas considerações finais retomando algumas palavras-cha-
ve desse artigo.

O discurso na perspectiva francesa, breve trajetória históri-


ca, noções base e o discurso religioso

A Análise do Discurso de base francesa (ADF) surge no sé-


culo XX, no auge dos anos 60. Rompendo com os estudos vigo-
rados na época realizados pela Linguística, Filologia, entre ou-
tras correntes, a ADF se volta para o discurso como seu objeto
de estudo passando a considerar os fatores históricos, sociais e
ideológicos.
A ADF perpassa por três grandes fases históricas, cada uma
com suas peculiaridades, apresentando grande relevância para
os estudos discursivos. A primeira fase é marcada pela deno-
minada Máquina Discursiva, formas discursivas e idênticas e
totalmente fechadas entre si, voltando o olhar para discursos
mais estabilizados e menos polissêmicos. O sujeito nessa fase
é silenciado e assume papel de assujeitado, apenas o conteúdo
é relevante e espera-se uma análise do discurso automatizada,
como teoriza Santos (2013).
Na segunda fase, o conceito de Maquinaria Discursiva é dei-
xado um pouco de lado e o sujeito começa, agora, a ganhar seu
espaço, passando a ter relevância e influência sobre outro indi-
víduo no processo discursivo. A noção de Formação Discursiva

253
(FD) elaborado por Foucault generaliza profundas mudanças
para essa perspectiva analítica, pois tudo é colocado em uma
tríade: o social, o ideológico e o discurso. Nessa fase, o obje-
to analítico passa a considerar a relação estabelecida entres as
Máquinas Discursivas.
Na terceira fase, a Formação Discursiva começa a dominar
o Interdiscurso. Assim, ela torna-se capaz de produzir um assu-
jeitado do ideológico do sujeito. Tal fase é marcada pela presen-
ça do interdiscurso e a sua análise. O eu é colocado no centro de
tudo, pois, o conceito de sujeito é alterado, sendo enxergado de
modo distinto. Desse modo, o eu passa a colaborar como par-
te da identidade do outro, tendo assim condições de produção
heterogênea.
Para compreendemos a Análise do Discurso de base fran-
cesa, é preciso entender algumas noções básicas dessa teoria,
como: Interdiscurso e Memória Discursiva. A priori, a concep-
ção de discurso, nessa perspectiva, é para Orlandi (2007a, p.15)
“(...) palavra em movimento, prática de linguagem: com o es-
tudo do discurso observa-se o homem falando”, estando assim
diretamente interligado às atividades do indivíduo em seu con-
texto tanto histórico, quanto social.
Nesse sentido, o discurso é algo que acontece fora da língua,
ou seja, é exterior a ela e considera os fatores histórico-sociais
de cada indivíduo. Já o interdiscurso, para Santos (2013), seria
os fragmentos dos discursos já mencionados anteriormente e
que estão presentes na memória de cada sujeito, embora dei-
xem transparecer seus respectivos efeitos por meio do incons-
ciente e da ideologia dos sujeitos. Dessa forma, o autor pondera
que o interdiscurso está articulado às formações ideológicas,
referindo-se, então, ao movimento do discurso, como bem de-
fende Orlandi (2007a, p. 31):

A memória, por sua vez, tem suas características, quando


pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é
tratada como interdiscurso. Este é definido como aquilo que

254
fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o
que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo
que torna possível todo dizer e que retoma sob a forma do
pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, susten-
tando cada tomada de palavra.

Para a autora, podemos classificar como sendo Memória


Discursiva todo tipo de saber discursivo em que é possível re-
tomar o que já foi dito, baseado no dizível, o que implica na
sustentação de cada palavra que é tomada. Nesse âmbito dis-
cursivo, a Memória Discursiva seria as táticas discursivas res-
ponsáveis por construírem o Interdiscurso. Para o estabeleci-
mento do Interdiscurso, é preciso a retomada, no futuro, de um
discurso já dito no passado.
Nas palavras de Fernandes (2008), a sociedade influencia na
produção dos discursos e esses são constituídos em um espaço
de memória, tento o corpo sócio-histórico e sociocultural como
um lugar para o funcionamento discursivo. Esse discurso, para
o autor, pode sofrer modificações com o passar do tempo, ga-
nhando significados recentes. Desse modo, a Memória Discur-
siva refere-se a uma dada palavra que foi dita anteriormente, e,
com o decorrer do tempo, adquiriu uma nova significação. Esse
mesmo vocábulo poderá adquirir outro significado, ao qual é
de costume encontrar, isto é, trata-se de uma mesma palavra,
no entanto, com o emprego de uma nova materialidade linguís-
tica.
Nesse contexto, a coletividade tem papel relevante e, em
algumas situações, os sujeitos recorrem à memória para darem
um novo sentido à palavra no discurso. Fernandes (2008, p. 49)
pondera que “os discursos exprimem uma memória coletiva
na qual os sujeitos estão inscritos”, ou seja, ele refere-se aos
eventos exteriores e anteriores ao texto – a Interdiscursivida-
de – que acaba por refletir suas materialidades na construção
discursiva.
Nessa perspectiva, a Memória Discursiva participa e origi-

255
na novos sentidos, pois “é aquilo que fala antes, em outro lu-
gar” (ORLANDI, 2007, p. 31) que emerge a interdiscursividade
concebida a partir dos discursos e como eles são articulados
com os outros – um ou mais discursos. É através das várias ar-
ticulações das Formações Discursivas, construídas no contexto
social e coletivo, que a voz de determinado indivíduo destaca
sua posição na sociedade e ocupa uma Formação Discursiva.
Ademais, é um processo desafiador compreender como a inter-
discursividade implica nos efeitos de sentido do discurso e suas
respectivas relações com o que já foi dito anteriormente. Quais-
quer interpretações da ADF se baseiam nos meios de produção
e consideram aspectos históricos, sociais e políticos.
No que diz respeito aos tipos de discurso, Orlandi (2006)
afirma existir três tipos: o polêmico, o lúdico e o autoritário. No
polêmico, é concretizado por certas condições, como a dinami-
cidade da tomada da palavra. No lúdico, existem possibilidades
mais livres: de um lado, há o fático e o outro poético, isto é, uma
duplicidade que tende a ser exagerada, existindo uma espécie
de bate-papo. No discurso autoritário, o indivíduo passa a ser
instrumento de comando. Para a autora, todo texto religioso
possui caráter autoritário, trazendo a ideia de que algo deve ser
cumprido com base em valores religiosos e morais, tornando o
indivíduo sem liberdade de escolhas, conforme ressalta Orlan-
di (2006, p. 242):

No sujeito se tem, ao mesmo tempo, uma subjetividade livre


– um centro de iniciativa, autor e responsável por seus atos
– e um ser submetido – sujeito a uma autoridade superior,
portanto desprovido de toda liberdade, salvo a de aceitar li-
vremente a sua submissão.

Nesse contexto, a posse da palavra de quem prega o discur-


so religioso é tida como “porta voz de Deus”, sendo, na grande
maioria das vezes, inquestionável e tida como uma verdade ab-

256
soluta. Dessa forma, consegue manipular os sujeitos que pos-
suem uma crença religiosa e seguem tais preceitos através de
discursos com alto teor argumentativo e persuasivo.

A Teoria da Argumentação da Língua

A argumentação surge na Antiguidade Grega, com o adven-


to da Retórica Antiga em que a oratória encontrava-se em fun-
ção da persuasão. Nesse sentido, é com Aristóteles que a arte de
convencimento, de persuasão, faz com que emerja o ato argu-
mentativo. Partindo desse marco inicial da manifestação da ar-
gumentação e se deslocando do campo da retórica para a esfe-
ra linguística, voltaremos nosso olhar para as contribuições de
Oswald Ducrot (1981), instaurador da Teoria da Argumentação
na Língua (TAL).
Ducrot parte da premissa de que intrínseca à atividade lin-
guística encontra-se a ação argumentativa, desse modo, pres-
supondo que toda enunciação conduz um argumento. Logo, a
argumentação é compreendida a partir da aplicação de recur-
sos linguísticos, com finalidade a orientar o interlocutor a uma
conclusão pretendida. Nesse sentido, Ducrot (1981, p. 178) ates-
ta que a palavra tem o poder de “conduzir o destinatário em tal
ou qual direção”.
Corroborando essa perspectiva, Koch (2000) também de-
fende que todo ato discursivo detém mecanismos em sua cons-
trução que orientam a argumentação desse discurso. Para ela, a
linguagem é veículo de ideologias, dotada de intencionalidade,
é uma forma de agir sobre o mundo e sobre o outro, portanto,
caracterizada pela argumentatividade. A autora ainda ressalta
que:

A argumentatividade permeia todo o uso da linguagem hu-


mana, fazendo-se presente em qualquer tipo de texto e não
apenas naqueles tradicionalmente classificados como argu-
mentativos. Não há texto neutro, objetivo, imparcial: os ín-

257
dices de subjetividade se introjetam no discurso, permitin-
do que se capte a sua orientação argumentativa. A pretensa
neutralidade de alguns discursos (o científico, o didático,
entre outros) é apenas uma máscara, uma forma de repre-
sentação (teatral): o locutor se representa no texto “como
se” fosse neutro, “como se” não estivesse engajado, compro-
metido, “como se” não estivesse tentando orientar o outro
para determinadas conclusões, no sentido de obter dele de-
terminados comportamentos e reações. (KOCH, 2001, p. 60).

Mediante o exposto, é possível depreender que a argumen-


tação está inscrita na própria natureza da língua, e que a língua
tem seu sentido guiado por diversos procedimentos argumen-
tativos que, como bem ressaltou a autora, exaltam índices de
subjetividade de um discurso. Logo, é ressaltado um pressu-
posto de que imbricada à argumentatividade encontram-se as
ideologias.
Assim sendo, é possível inferir que em todo ato enunciativo
o locutor demarca indícios de sua posição ideológica e da rua
relação emotiva com o assunto abordado, revelados através de
marcadores argumentativos utilizados, como: intensificadores,
comparadores, sufixos, seleção referencial, entre outros.
Junior e Basso (2019), em consonância com Ducrot, afir-
mam que existem duas tipologias de relação, tidos como basi-
lares nos discursos, denominados de operadores argumentati-
vos. Os normativos que são articulados por conectores como
“portanto” e “por isso” etc., e os transgressivos como “no entan-
to” e “apesar de”, por exemplo. Sendo assim, esses conectivos
colocados no discurso acabam por aumentar o teor argumenta-
tivo já existente na língua.
Vê-se, assim, que a linguagem está atrelada ao aspecto ar-
gumentativo e, por conseguinte, expressa a posição ideológica,
a afetividade e, consequentemente, a tomada de um direciona-
mento argumentativo de quem enuncia. Nesse sentido, com-
preende-se que, ao pretender atingir determinado objetivo, o

258
produtor de um discurso atua com selecionadas palavras que o
levará a obter o propósito que lhes é conveniente, dessa manei-
ra, mostrando-nos que toda a interação subjaz um intuito.
Diante disso, depreende-se que a argumentação se faz pre-
sente em toda e qualquer interação humana, uma vez que ela
se configura como um fator inerente à língua. Todo discurso,
portanto, exerce forças argumentativas, na medida em que in-
tervém, conduzindo a concepção do outro no intuito de trans-
formar ou ampliar a adesão a determinados ideais.

Análise do capítulo IV do Sermão da Sexagésima em uma


perspectiva semântico-discursiva

Padre Antônio Vieira é um dos jesuítas mais famosos do


Brasil colônia, conhecido pela sua vasta obra literária. Sua pro-
dução representava fielmente a maneira de pensar daquela
época, que envolvia os índios da terra recém “descoberta” e os
planos do homem branco para colonizar essa terra.
O Sermão, no capítulo IV, mostra claramente o ponto de vis-
ta de um padre que apontava falhas graves dentro da instituição
religiosa em que ele mesmo poderia ser um provável culpado,
haja vista que a culpa atribuída pelo pouco efeito da palavra de
Deus na terra recai sobre os padres:

Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus,


pela circunstância da pessoa? Será porque antigamente os
pregadores eram santos, eram varões apostólicos e exem-
plares, e hoje os pregadores são eu e outros como eu? – Boa
razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo.
(VIEIRA, 2000, p. 10).

Nesse caso, para colocar a culpa nos pregadores que falam


uma coisa e agem diferente do que é proferido, Padre Antônio
Vieira utiliza o discurso religioso presente no livro da Bíblia,
mais precisamente no capítulo de Matheus que corresponde a

259
parábola do semeador, para enfatizar seus argumentos.
Assim como teoriza Orlandi (2006), o discurso religioso é
empregado e é compreendido como a voz de Deus e, proferido
por um porta voz do Senhor, ele é tido como uma verdade ab-
soluta e inquestionável. Dessa forma, Vieira conseguiu expres-
sar seu posicionamento frente à sociedade, culpabilizando sua
própria classe de pregadores tida como uma entidade perfeita
e sem defeitos. Para tanto, utiliza-se do interdiscurso, ou seja,
o discurso já dito anteriormente que é articulado pelas Forma-
ções Discursivas.
O interessante desse sermão é o fato de que o autor, Vieira,
apresenta-se como um mestre na retórica, haja vista a sua pre-
cisão em fazer uma pergunta e, ao mesmo tempo, respondê-la:

Sabem, Padres pregadores, porque fazem pouco abalo os


nossos sermões? – Porque não pregamos aos olhos, prega-
mos só aos ouvidos. Porque convertia o Baptista tantos pe-
cadores? – Porque assim como as suas palavras pregavam
aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras
do Baptista pregavam penitência: Agite poenitentiam. “Ho-
mens, fazei penitência” – e o exemplo clamava: Ecce Homo:
“eis aqui está o homem” que é o retrato da penitência e da
aspereza. (VIEIRA, 2000, p. 12).

Para responder aos questionamentos dele mesmo, Viei-


ra utiliza o que Ducrot chama de operadores argumentantivos,
que seria o sentido linguístico produzido não na própria língua,
mas no discurso, para fins de enfatizar ainda mais aquilo que
está sendo dito, como no trecho do sermão:

Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não


converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pen-
samentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Pala-
vras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem.
A funda de David derrubou o gigante, mas não o derrubou

260
com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte
ejus. As vozes da harpa de David lançavam fora os demónios
do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a
boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citha-
ram, et percutiebat manu sua. Por isso Cristo comparou o
pregador ao semeador. (VIEIRA, 2000, p. 15).

Nesse contexto, Vieira coloca em questão por que o fruto da


palavra de Deus no mundo não está surtindo efeito e não con-
segue fazer com que os indivíduos sejam convertidos. O autor,
para responder tal indagação, faz uma pergunta e ele mesmo
responde, utilizando o que Ducrot (1981) chama de operador
argumentativo transgressivo, pois todo ato discursivo contém
mecanismos em sua construção para orientar a argumentação
presente no discurso. O “Por que” e o “Por isso” que são bastan-
te empregados no discurso do padre, são operadores argumen-
tativos transgressivos que, além de estabelecer uma ligação en-
tre as orações e estabelecer coesão no texto, é um mecanismo
utilizado pela linguagem dotado de ideologia, pois acaba por di-
recionar o leitor a agir de acordo com o ponto de vista do padre.
O produtor do discurso, Vieira, seleciona bem seus argu-
mentos e os constrói com base em vocábulos que conduzem os
interlocutores a acreditar naquilo que está sendo dito, conse-
quentemente induzindo os indivíduos a crer no discurso viei-
riano, para comprovar que a palavra pregada pelo “porta voz”
da palavra de Deus não faz efeito nenhum nos indivíduos.
A interdiscursividade é outra ferramenta bem colocada e
articulada no Sermão. Trechos bíblicos referentes à parábola
do semeador, presente no livro de Matheus, se fazem presentes
para responder e argumentar, ativando o que Orlandi denomi-
na de Memória Discursiva dos indivíduos. Nesse âmbito discur-
sivo, o discurso religioso presente na Bíblia é tido como uma
verdade universal e inquestionável, acabando por convencer
as pessoas sobre seu propósito, nesse caso, da culpabilização
dos pregadores, uma vez que eles apregoam que os indivíduos

261
devem agir de tal forma, ao passo em que as atitudes dos “por-
tadores” da palavra de Deus são totalmente contrárias ao que é
proferido e preconizado.

Palavras finais

O discurso religioso, mais precisamente o sermão, apre-


senta-se com fins de induzir, preconizar, converter e instruir
os fiéis a determinadas condutas. Em vista disso, manifesta-se
como um discurso de alto teor argumentativo. O capítulo IV do
Sermão da Sexagésima é um grande exemplo que comprova tal
assertiva.
O capítulo supracitado do Sermão da Sexagésima, dotado
de intencionalidade persuasiva, utiliza-se do emprego de me-
canismos que orientam argumentativamente o interlocutor a
acatar as proposições dispostas, orientando-os a determinadas
direções pretendidas. Para tanto, emprega os operadores argu-
mentativos para enfatizar ainda mais seu poder persuasivo e,
assim, convencer os leitores sobre seu ponto de vista.
Apontando as falhas da instituição religiosa ao acusar os
pregadores por não proceder tal qual como proferem, o padre
Antônio Vieira projeta o seu discurso através do que Orlandi
chama de interdiscursividade. Nesse sentido, Vieira faz refe-
rência à passagem bíblica da parábola do semeador do livro de
Matheus, ativando uma Memória Discursiva.
Diante disso, depreende-se que o discurso vieiriano, ao
buscar o convencimento do público de que os preceitos divinos
não são efetivados por culpa dos pregadores, atua com uma alta
carga de argumentação, pondo em questão, através da interdis-
cursividade com a parábola do semeador, as práticas religiosas
e morais daqueles que estão à frente da instituição igreja: os
pregadores.

262
REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Marialda de Jesus. A persuasão nas crônicas de Lya Luft escritas


na coluna “Ponto de Vista” para a revista Veja. Santo André, SP: 2009.
DUCROT, Oswald. Provar e dizer: leis lógicas e leis argumentativas. São Paulo:
Global Ed., 1981.
FERRAREZI JUNIOR, C.; BASSO, R. Semântica, Semânticas: uma introdução.
São Paulo: Contexto, 2019.
FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do Discurso: Reflexões introdutórias.
2.ed. São Carlos: Claraluz, 2008.
KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e Linguagem. 6ª ed. São Paulo:
Cortez, 2000.
OLIVEIRA, Luciano Amaral (org.). Estudos do discurso: perspectivas teóricas.
São Paulo: Parábola, 2013.
ORLANDI, Eni P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso.
4.ed. Campinas, SP: Pontes, 2006., p.210-243.
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. 7.ed.São
Paulo, Pontes Editora, 2007 A, p. 15-50.
ORLANDI, Eni P. Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbóli-
co. 5.ed.São Paulo: Pontes Editores, 2007 B, p.25-175.
VIEIRA. A. (2000). Sermões patrióticos. (anotados por Pedro Calmon.). Rio de
Janeiro. Edições bíblicas.

263
264
RELAÇÕES DIALÓGICAS E
TONALIDADES VALORATIVAS
NO GÊNERO MEME

Raniere Marques de Melo

265
266
O
s textos que circulam no meio virtual, a partir das re-
des sociais, têm uma linguagem portadora de semioses,
pois sinalizam uma produtiva relação com a tecnologia,
unindo à palavra, imagens, links, hiperlinks, sons, cores e mo-
vimentos. Como fruto dessa articulação, nascem os GIF, hiper-
textos, as hipermídias, os infográficos, o meme virtual, doravan-
te meme. O gênero discursivo meme circula em algumas redes
sociais como Facebook, WhatsApp e Instagram e é, evidentemen-
te, caracterizado por uma linguagem curta e de leitura rápida,
bem como constituído por novas estéticas e por uma hibridiza-
ção feita com a palavra, a partir de uma junção de imagens, de
fotos, de frases e de emoticons.
Neste artigo, nosso olhar analítico está voltado ao fenôme-
no da valoração em meme que trata do discurso religioso. Tal
fenômeno corresponde a um modo particular através do qual
cada enunciador, em cada comunidade virtual do Facebook, tem
de nominalizar, de comparar/equiparar e de valorar, por meio
da linguagem.
Do ponto de vista dos estudos linguísticos, este trabalho se
orienta pelas contribuições da Análise Dialógica do Discurso
(doravante, ADD), à luz das contribuições de Bakhtin e de seu
Círculo, que concebem o discurso como fruto de uma enuncia-
ção, demarcado pelo contexto histórico, social e cultural; como
dialógico, porque está para o “outro” e pode ser concebido como
“tecido de muitas vozes”, isto é, a vida verbal em movimento.
No que se refere ao corpus, tomaremos um meme o qual cir-
culou no Facebook entre os anos 2016 e 2017, referindo-se ao um
dado sujeito pastor, um dos mais ricos do Brasil, conforme da-

267
dos da Revista Forbes1. A partir disso, guiamo-nos pelo seguinte
questionamento: que mecanismo enunciativo da expressivida-
de é mobilizado como estratégia discursiva pelos enunciadores
no meme, ao tratar do discurso religioso, especificamente ao se
reportar a esse pastor neopentecostal brasileiro? A fim de res-
ponder a essa questão, tomamos como objetivo: identificar e
analisar o mecanismo enunciativo e as estratégias discursivas
mobilizadas nesse gênero discursivo.
No que se refere à organização deste texto, construímos,
para além desta introdução e das considerações finais, dois
tópicos cujo escopo teórico-analítico se dá em dois movimen-
tos: breve reflexão sobre a incursão teórica da ADD e, em se-
gundo lugar, uma leitura discursiva do meme. A seguir, apre-
sentamos o tópico que trata dessa incursão teórica à luz dos
estudos dialógicos.

Alguns apontamentos teóricos

Sob o prisma da ADD, a linguagem é concebida como social,


ideológica e histórica, como forma de interação entre sujeitos.
Nesse sentido, apresentamos dois pontos que sumarizam essa
concepção: 1) a comunicação linguística não é linear, nem sim-
plista, tampouco mecanicista; 2) a linguagem, para essa abor-
dagem dialógica, é extrapolar a estrutura da língua, suas regras
de formulação, mas também é enxergar que a comunicação en-
tre os sujeitos é constituída por relações dialógicas, ideológicas
e de sentidos, em um dado contexto sóciohistórico específico.
Volóchinov (2013) defende que a linguagem é um fenôme-
no social, uma vez que esta é imprescindível para a organiza-
ção do trabalho humano e à consciência de cada homem. Desse
ponto teórico extraímos: é na/pela linguagem que há a consti-
tuição do sujeito e “[...] com a ajuda da linguagem se criam e se
formam os sistemas ideológicos.” (VOLÓCHINOV, 2013, p. 155).
Ora, se para esse filósofo russo não há consciência sem signo,
1
Para ler a matéria na íntegra, acesse: <https://www.forbes.com/sites/andersonantu-
nes/2013/01/17/the-richest-pastors-in-brazil/#267bcc9c5b1e>.

268
logo todo signo é ideológico. Não há, pois, ideologia sem estar
materializada em um signo.
O texto, nesse sentido, é uma materialidade linguística
orientada socialmente que reflete a interação verbal entre in-
terlocutores. Bakhtin (2011) define-o como o objeto dialógico
das Ciências Humanas, o espaço por meio do qual é possível
compreender e analisar a relação do homem com a linguagem,
haja vista que esse homem é entretecido na linguagem, com
mediação de textos. Em suma, o texto é definido como:

a) objeto significante ou de significação, isto é, o texto sig-


nifica;
b) produto da criação ideológica ou de um enunciação, com
tudo o que está aí subentendido: contexto histórico, social,
cultural etc. (em outras palavras, o texto não existe fora da
sociedade, só existe nela e não pode ser reproduzido à sua
materialidade linguística [empirismo objetivo] ou dissolvido
nos estados psíquicos daqueles que o produzem ou o inter-
pretam [empirismo subjetivo]);
c) dialógico: já como consequência das duas características
anteriores o texto é, para o autor, constitutivamente dialógi-
co; define-se pelo diálogo entre os interlocutores e pelo diá-
logo com outros textos;
d) único, não-reproduzível: os traços mencionados fazem do
texto um objeto único, não-reiterável ou repetível. (BARROS,
2005, p. 26-27).

Como se percebe, o texto assume uma significação muito


ligada ao conceito de enunciado, pois se ele significa, implica
dizer que é constituído de um “projeto discursivo” cujas condi-
ções de produção e de circulação estão ligadas aos contextos
social e ideológico e às interações.
Desse modo, verificamos que o texto, em seus atributos dis-
cursivos, é dialógico, visto que está prenhe de enunciados vi-
vos/concretos. Por dialogismo, entendemos como a capacidade

269
de o discurso dialogar com o já dito e se reportar ao que ainda
será dito. Partindo dessa ideia, a ADD concebe o sujeito enun-
ciador a partir da perspectiva histórico-sócio-cultural, já que
este é interpelado por uma réplica, em forma de ação, aprecia-
ção ou concordância a um discurso já dito.
Na visão do Círculo de Bakhtin, o enunciado não é só for-
mado pela palavra, mas também pela parte extraverbal, ou
seja, respectivamente, uma junção da forma composicional e
de uma forma arquitetônica, da situação social que o engendra.
A partir desse raciocínio, depreendemos que, em cada utiliza-
ção da linguagem, no instante das interações sociais, a palavra
é sempre endereçada para o outro, para um ouvinte – auditório
social – o qual tem sempre uma posição responsiva em relação
ao que lhe foi enunciado: pode discordar, concordar, completar,
polemizar e reutilizar. Ela é constituída por um jogo ideológico,
modelada por um projeto de dizer e matizada por tonalidades
dialógicas e discursivas.
Assim, é no entorno dessas reflexões teóricas iniciais que
situamos o nosso objeto de análise. O próximo tópico é desti-
nado à análise discursiva do meme, a partir da seguinte catego-
ria analítica: o tom valorativo. Para tanto, buscamos evidenciar
o mecanismo enunciativo pelo qual o enunciador expressa as
suas posições valorativas e as relações dialógicas emergentes.

Meme em análise: uma leitura sob a perspectiva enunciativa


da linguagem

Nesse momento, apresentamos o meme que trata do após-


tolo Valdemiro Santiago e do espírita brasileiro Chico Xavier e
que funcionou como corpus de análise deste artigo:

270
Figura 1 – Valdemiro Santiago versus Chico Xavier

Fonte: Facebook – Edir Macedo da Depressão

Acreditamos que, por meio da língua e das lentes da ADD, é


possível articularmos leituras dessa materialidade verbo-visual
que trazem para o cerne da discussão os modos de abordagens,
as escolhas lexicais, as apreciações, as comparações/ associa-
ções/equiparações, as entonações que colocam em cena o pro-
pósito comunicativo do enunciador. A partir disso, nosso olhar
se debruça sobre o meme, que trata, por meio de um jogo com-
parativo/equiparativo/associativo do enunciador, sobre temáti-
cas específicas do movimento religioso neopentecostal: ques-
tões econômicas, mais especificamente, as práticas de extorsão
e de charlatanismo. Correspondentemente, esses enunciados

271
se constroem em referência ao televangelista neopentecostal:
apóstolo Valdemiro Santiago.
Primeiramente, é necessário afirmar que o movimento
neopentencostal teve seu início no Brasil, na metade dos anos
1970, cuja base teológica abarca temas como: a teologia da
prosperidade, oração em línguas estranhas (angelicais), confis-
são positiva (ativada pelo poder da palavra), expulsão de demô-
nios, constituída pela “guerra espiritual” contra o diabo e seus
demônios.
Sob esse horizonte de compreensão acerca dessa teologia,
a prosperidade é um dos objetos mais frequentes de exposição
“bíblica” dos pastores dessas igrejas, pois parece funcionar
como um dispositivo da fé, por meio do qual as igrejas têm a
capacidade de se estruturar financeira e empresarialmente.
Para tanto, os seguidores – membros dessas igrejas – são en-
sinados “[...] que os que são verdadeiramente fieis a Deus de-
vem experimentar prosperidade financeira.” (VARGENS, 2017,
p. 22).
Essa construção socioideológica do movimento neopente-
costal fomenta, sobretudo, que “[...] a prosperidade está aberta
a todos, mas é preciso que se dê a maior quantia de dinheiro
para a igreja, pois só assim o fiel conseguirá a satisfação de seus
problemas terrenos.” (NUNES, 2006, p. 128).
No tocante a esta análise, encontramos dois sujeitos, postos
um ao lado do outro. À esquerda, o apóstolo Valdemiro Santia-
go; à direita, o espírita brasileiro Chico Xavier. Por ordem de
apresentação, o apóstolo é o fundador da Igreja Mundial do Po-
der de Deus (doravante, IMPD), a qual, socialmente, mantém
uma prática de doutrinamento da “prosperidade” e de “cura di-
vina”; funciona com um verdadeiro império de riqueza, totali-
zando mais de 900 mil seguidores e 4.000 templos distribuídos
em todo o país, segundo a Revista Forbes.
Gostaríamos de ressaltar que, apesar de uma performance
de frugalidade – chapéu de fazendeiro – acompanhada de cho-
ro e de uma fala espontânea e informal, o dissidente da Igreja

272
Universal do Reino de Deus, em janeiro de 2013, teve seu patri-
mônio avaliado pela Revista Forbes em aproximadamente 220
milhões de dólares (cerca de R$ 450 milhões). Ao sensibilizar os
fiéis nos cultos ou por meio dos programas de rádio e de televi-
são, através de um choro frequente, o referido apóstolo afirma
sofrer de perseguições da imprensa e de seus inimigos; ratifica,
também, ter sérias dificuldades quanto à falta de recursos para
pagamento das despesas eclesiásticas, bem como dos progra-
mas televisivos.
À direita desta figura, encontramos o espírita Chico Xavier.
Francisco Cândido Xavier foi um médium espírita brasileiro.
Pode ser descrito por alguns como: homem de fala mansa; fa-
zia uso de peruca; tinha acentuado estrabismo; era pessoa hu-
milde. Para alguns de seus seguidores, ele não configura o tipo
físico idealizado do líder religioso. Em suas atividades religio-
sas, psicografou mais de 400 livros, dos quais abnegou os direi-
tos autorais, concedendo-os às instituições beneficentes.
Vale destacar que, entre os anos de 1981 e 1982, o médium
Chico Xavier recebeu indicação ao prêmio Prêmio Nobel da
Paz, fruto de uma mobilização de cerca de dois milhões de pes-
soas que coletaram suas assinaturas em todo Brasil e em orga-
nizações de 29 países, requerendo o referido prêmio para ele.
No que concerne ao corpus de análise deste artigo, chama-
-nos a atenção, inicialmente, o meio de circulação desse meme:
em uma comunidade destinada, principalmente, às críticas
ao Bispo Edir Macedo – “Edir Macedo da Depressão”. Distan-
ciando-se da ordem de previsibilidade do tratamento temático,
conforme anunciado na intitulação da referida comunidade,
possivelmente, o que permite a sua circulação, nesse e em ou-
tros espaços virtuais, é o fato de este texto carregar um projeto
enunciativo de denúncia às práticas religiosas neopentecostais.
Segundamente, compreendemos que a dimensão valorati-
va emerge nesse meme a partir das escolhas desse enunciador:
dois sujeitos de funções sociais divergentes, inscritos em ordens
religiosas distintas, isto é, um pastor e um médium, correspon-

273
dentemente, um protestante e um espírita. Essa referenciação,
dada a partir da seleção de duas fotografias distintas, compon-
do um só enunciado, permite um movimento de leitura e de
intepretação por meio de um enfrentamento dialógico – ou de
acareação – de duas personalidades: o intitulado apóstolo evan-
gélico Valdemiro Santiago versus um espírita brasileiro, Chico
Xavier. Assim, está posta uma arena de interesses do sujeito
produtor quanto à seleção dessas imagens.
Do ponto de vista visual, a imagem de Chico Xavier repre-
senta, iconicamente, na tradição ocidental, uma performance
de carinho, de amabilidade e de respeito, ativada semiotica-
mente pelo gesto do beijo realizado com a mão direita. Talvez,
esse sinal seja argumentativamente mais persuasivo ao leitor
para se contrapor ao outro sujeito da imagem, o que justifica,
então, nosso movimento de leitura da direita à esquerda.
Em oposição ao espírita, o referido apóstolo aparece com
os olhos bem abertos, sem nenhum traço de sorriso no rosto,
com as linhas da fronte tensionadas e visivelmente marcadas,
sugerindo uma tensão facial. Nessa angulação capturada pela
câmera, o pastor, ao olhar de frente e de forma centralizada
para as lentes, sugestiona, diferentemente do segundo sujeito,
uma percepção de amendrontamento, de um “olho que tudo
vê”. Logo, essa formulação imagética é portadora de um produ-
tivo teor de argumentatividade, que se direciona, de forma fa-
vorável, a Chico Xavier, o que revela a nuance de uma estratégia
de contraposição argumentativa.
Somado a isso, a linguagem verbal, a partir de um jogo lin-
guístico de ordem comparativa e associativa, vai constituindo
sentidos, dadas as adjetivações destinadas a cada um desses
sujeitos religiosos representados. As tonalidades enunciativas
axiológicas emergem através do mecanismo contrastativo, por
meio do qual se coloca um sujeito em correspondência ao ou-
tro. Essas tonalidades de valor podem, também, ser evidencia-
das no plano verbal, marcado por diferentes letras, tamanhos
e formatos, a partir de uma dada recursividade de nominaliza-

274
ções e de definições.
Ora, se a palavra é signo ideológico por essência, os ad-
jetivos empregados a Valdemiro Santiago – “Santo, Apóstolo,
Enviado de Deus, Mão de Deus na terra, Verdade em pessoa”
– presumem uma dada posição entoacional ligada a um jogo
de ironia. Essa tonalidade sarcática está explicitada não só pela
referência cruzada às nominalizações destinadas ao médium
espírita – “Monstro, Bruxo, Demônio, Mentiroso, Aberração,
Estelionatário, Ladrão” – mas também, pelos fios condutores
de uma memória social que ligam o sujeito leitor aos eventos,
às práticas e às descrições empregadas, mesmo que estereoti-
padas, de cada um desses. Indaga-se, possivelmente, o leitor:
como concordar ser ladrão e estelionatário alguém que doou
seus direitos autorais às obras de caridade, a um sujeito que
“Morreu Pobre”? Certamente, a resposta será negativa, dada a
incoerência das informações.
Outro aspecto linguístico da apresentação desse enunciado
verbo-visual, que serve com contribuição dessa força irônica,
é o aparecimento do discurso econômico cruzado ao religioso.
A tarja preta com referências a valores em reais, usufruídos
ou não por cada um desses sujeitos, mais do que anunciar me-
ramente a quantia, exterioriza uma defesa, através de verbos.
Abaixo da imagem de Valdemiro, lê-se: “Usou 50 Milhões”; em
Chico Xavier, “NUNCA COBROU 1 centavo”. Do ponto de vis-
ta semântico, nesse jogo de comparação, o verbo “usar” tem
a acepção de “usurpar”, com o sentido de apoderar-se de algo
de forma desonesta, tomar posse de modo fraudulento, con-
trastando com nunca cobrar. Note-se que essa reacentuação da
palavra foi possibilitada pelo enunciado que lhe complementa
sintaticamente – “de seus fiéis que vão a igreja atrás de mila-
gres e esquecem até de Deus!”. Essa confrontação posta entre
esses sujeitos está declarada em jogo antitético, “Usou” e “NUN-
CA COBROU”, sendo esta construção em letras garrafais, a fim
de, forma explícita, justificar as práticas de benevolência de al-
guém que levou a “paz, alívio, esperança as pessoas e Morreu

275
Pobre!!!”. Observe-se, ainda, que a ênfase na pontuação, dada
pela repetibilidade das exclamações, somada às letras iniciais
maiúsculas em “Morreu Pobre”, integram esse reforço ao pro-
jeto enunciativo que, através de um paralelo ao apóstolo, coloca
Chico Xavier em posição distinta, elevada.
No plano da construção do enunciado, as nominalizações
atribuídas a Valdemiro Santiago a partir da ideia de que ele é
um homem santo, homem de “Deus”, “Mão de Deus”, é rejeita-
da/negada, inclusive, pelo próprio jogo semântico instaurado
dentro dessa construção. Ora, se o apóstolo possui vinculações
ao sagrado e a Deus, por que, então, seus fiéis “esquecem até
de Deus”, mas “vão a igreja somente atrás de milagres”? Com
efeito, a vinculação a Deus está associada, por meio de uma
formação discursiva religiosa, àquele que levou a “paz, alívio,
esperança as pessoas e Morreu Pobre!!!”.
Essas designações, por seu turno, põem em circulação es-
ses sentidos, inclusive ativam aqueles que foram materializa-
dos em uma reportagem da sucursal brasileira da revista nor-
teamericana Forbes, quando listou os cinco líderes evangélicos
com os maiores patrimônios, em janeiro de 2013, dentre ele,
Valdemiro. Observe-se, assim, que o meme está ligado a uma
enunciação, a um contexto social, a esse fato motivador tratado
no artigo da revista. Esse enunciador, ao dizer que Chico Xavier
não cobrou, ou melhor, “NUNCA COBROU 1 centavo” denuncia
a performance social de exploração do apóstolo aos fiéis, busca
deslegitimá-lo de sua função social.
Sendo assim, as nominalizações empreendidas nessa to-
nalidade discursiva atribuem valores a esses sujeitos, de modo
que, também, por meio dessa referência financeira, os adjeti-
vos se invertem de posição, há um deslocamento. Passam, a
partir de um exercício de aversão, a assumir novas posições no
enunciado. Dessa forma, a escolha estilística, pelo uso das pala-
vras “monstro, bruxo, demônio, mentiroso, aberração, estelio-
natário, ladrão” para se referir ao espírita, contraria duplamen-
te, logo em seguida, tais nomeações: 1- quando diz que Chico

276
Xavier levou a “paz, alívio, esperança às pessoas e Morreu Po-
bre!!!”; quando afirma que 2- Valdemiro gastou os milhões de
seus fiéis. Por sua ordem, são contraditórias às nominalizações
feitas ao apóstolo “santo, apostolo, enviado de Deus, Mão de
Deus na terra, Verdade em Pessoa”, uma vez que ele é carac-
terizado, por ordem de inversão/comparação ao espírita brasi-
leiro, como um explorador da fé das pessoas, com capacidade
de enganar os fiéis e de extorquir quantias exorbitantes deles.
As nominalizações só são possíveis de aparecer, pois elas estão
em diálogo com outros discursos, retoma, inclusive, a voz de
denúncia da Forbes.
É interessante, nesse sentido, ponderar que esses
enunciados são proferidos sob a condição da verdade, os quais,
ditos de modo frequente, tendem a tornar-se, quase sempre,
verdade inquestionável e absoluta. Essas nominalizações feitas
naturalizam as consagrações destinadas aos sujeitos envolvidos,
sem qualquer exceção ou modalização. Nessa arena de tensões,
bem versus mal assumem posições antagônicas, combatem-se
e se interrelacionam, acarretando, de forma estratégica, a ne-
gação de um líder religioso em detrimento do outro. Na esteira
desses enunciados, intriga-nos, do ponto de vista discursivo, a
forma como essas estratégias de convencimento são agressi-
vas, constituidoras de verdade e de estereótipos.
Como se percebe, as tonalidades de valoração envolvem os
dois sujeitos; mas, conforme descrição e análise realizada, Val-
demiro Santiago é valorado a partir de uma referência: Chico
Xavier. Essa referência, como se constata, não é parcial, antes
é amalgamada, sobretudo, pelo interesse de divulgar as boas
práticas do espírita, depreciando e reprovando socialmente o
referido apóstolo.

Palavras finais

Por fim, com o propósito de sintetizar as ideias aqui cons-


truídas, apresentamos as seguintes proposições:

277
1. A escolha de uma palavra já é, por natureza, uma apre-
ciação valorativa, discursivamente empregada com força
ideologicamente argumentativa. Além disso, é oportuno
entender que os memes, enquanto enunciados concretos, de
materialidade verbo-visual, são repletos de contornos en-
toacionais, isto é, de tonalidades apreciativas.
2. Os enunciados verbo-visuais analisados são repletos de to-
mada de posição, de tonalidades dialógicas e valorativas que
refletem e refratam o posicionamento do enunciador em re-
lação àquilo que anuncia. Em suma, o meme analisado tem
como traço marcante a valoração ao pastor Valdemiro San-
tiago a partir de um ponto de vista negativo, depreciativo.
3. A valoração, por meio das escolhas linguísticas – signos
linguísticos –, é geradora de força ideologicamente argu-
mentativa, que se direciona não só ao pastor, mas também
aos seus fiéis. Essa apreciação, supostamente, tenta conven-
cer, de forma humorística e irônica, o interlocutor, alertan-
do-o quanto às formas de exploração da fé usada por pasto-
res neopentecostais.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BARROS, D. L. P. de. Contribuições de Bakhtin às teorias do discurso. In: Brait,
B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. São Paulo, Editora
da Unicamp, 2005, p. 25- 36.
NUNES, T. D. O crescimento das igrejas neopentecostais no Brasil: um olhar
sobre a política da Igreja Universal. In: Cadernos de Pesquisa do CDHIS,
Uberlândia, v. 1, n. 35, p. 127-132, jul. 2006.
VARGENS, R. O evangelho da prosperidade. Campina Grande, PB: Visão Cristã,
2017.
VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamen-
tais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila
Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

278
SOBRE O ENUNCIADO CONCRETO:
AS BASES FILOSÓFICAS DA
CATEGORIA EM PARA UMA
FILOSOFIA DO ATO

Ludmila Kemiac

279
280
U
m dos conceitos chave, no constructo teórico de Bakhtin
e do Círculo, é o conceito de enunciado. Nele, conden-
sam-se as ideias de interação, eventicidade, concretude
e valoração. Através do enunciado, entende-se que a linguagem
nasce e se estrutura pela interação entre sujeitos, em uma si-
tuação sócio-histórica singular e concreta. Na linguagem – que
sempre se ordena em enunciados – são projetados valores se-
miotizados de um tempo, uma cultura.
As ideias acima expostas (interação, eventicidade, concre-
tude e valoração), que nos permitem compreender o enun-
ciado, estão presentes ao longo de várias obras do Círculo de
Bakhtin. Neste artigo, buscamos mostrar como essas ideias são
apresentadas e construídas no ensaio inacabado “Para uma fi-
losofia do ato” (BAKHTIN, 2012) – (PFA, doravante).
Considera-se que o ensaio citado não se deteve propria-
mente sobre a questão da linguagem – questão essa que passa
a ser central em textos posteriores. Evidenciamos, neste texto,
como, em dois momentos específicos, a linguagem é abordada
em PFA; em seguida, trilhamos nosso objetivo central de com-
preender a forma como ideias presentes em PFA fornecem sub-
sídios para a construção do conceito de enunciado.

Para uma filosofia do ato: a questão da linguagem

Nas obras do chamado “Círculo de Bakhtin”, há, conforme


assinala Faraco (2009, p. 16), “dois grandes projetos intelec-
tuais”, que assim podem ser resumidos: 1. “Da parte de Bakh-
tin, parece haver, de início, a intenção de construir uma ‘pri-
ma philosophia’” (FARACO, 2009, p. 16). Nos primeiros textos

281
– sobretudo “Para uma filosofia do ato responsável” (BAKHTIN,
2012 [1919-1921]) – encontram-se críticas ao teoreticismo, às
“objetificações da historicidade vivida” (FARACO, 2009, p. 16).
2. O segundo projeto, segundo Faraco (2009, p. 17), notório em
Volóchinov e Medviédev, “era contribuir para a construção de
uma teoria marxista da chamada criação ideológica, (...) uma
teoria das manifestações da superestrutura”. A linguagem – e as
diversas interlocuções com a linguística –, conforme assinala
Faraco, torna-se central nos textos posteriores a 1926.
Para uma filosofia do ato (BAKHTIN, 2012), ensaio inacaba-
do, escrito provavelmente no início da década de 1920 (FARA-
CO, 2012; AMORIM, 2016), insere-se no projeto inicial – a cons-
trução de uma filosofia primeira. O ensaio, segundo Amorim
(2016, p. 21), aborda uma questão “profunda e original”, assim
enunciada pela autora: “qual é a ética de um pensamento? Ou
ainda: em que condições um pensamento teórico pode ser éti-
co?”, entendendo-se que “A dimensão ética de um pensamento
teórico não pode ser apenas buscada no (ou deduzida do) seu
conteúdo” (AMORIM, 2016, p. 21).
Sobre a definição de “ato”, Amorim (2016, p. 22) afirma
que “O ato é o movimento do pensamento, é o seu vir a ser”, e
que, em PFA, Bakhtin “trata do ato de pensar ou de criar. Cria-
ção teórica e criação artística como unidades da cultura”. Com
efeito, percebe-se que Bakhtin, nesse ensaio, ao tratar das es-
pecificidades do ato ético, o contrapõe aos eventos estético e
cognitivo (e, também, de forma menos expressiva ao religio-
so), seguindo uma lógica de pensamento presente em outros
ensaios que datam do mesmo período, como: “O problema do
conteúdo, do material e da forma” (BAKHTIN, 2002), “O autor e
o herói na atividade estética” (BAKHTIN, 2003a), “Arte e respon-
sabilidade” (BAKHTIN, 2003b). Ao fazer essa contraposição, o
autor depara-se com a questão da linguagem em dois momen-
tos específicos.
Primeiramente, ao tratar do evento cognitivo, da abstração,
Bakhtin argumenta que a linguagem “desenvolveu-se a servi-

282
ço do pensamento participante e do ato, e somente nos tem-
pos recentes de sua história começou a servir ao pensamento
abstrato” (BAKHTIN, 2012, p. 84). O teórico problematiza, por-
tanto, a possibilidade de a linguagem servir a um pensamento
abstrato. Seria esse pensamento, segundo Bakhtin, algo “inefá-
vel” (BAKHTIN, 2012, p. 83). Para o teórico, a linguagem estaria
muito mais apta a expressar a verdade singular (pravda) de um
sujeito situado, que tem uma visão única do mundo, “do que
para revelar o aspecto lógico abstrato na sua pureza” (BAKH-
TIN, 2012, p. 83). Ora, a linguagem deixa-se marcar pela tempo-
ralidade, pelos aspectos da enunciação (Eu, aqui, agora); pare-
ce mais adaptada para enunciar o “evento” que para fazer uma
descrição “pura”, “lógica”.
Em outro momento do ensaio (PFA) em que Bakhtin debru-
ça-se sobre a linguagem, encontramos o teórico centrado na
expressão do ato. Vejamos:

A expressão do ato a partir do interior e a expressão do exis-


tir-evento único no qual se dá o ato exigem a inteira plenitu-
de da palavra: isto é, tanto o seu aspecto de conteúdo-sentido
(a palavra-conceito), quanto o emotivo-volitivo (a entonação
da palavra), na sua unidade. E em todos esses momentos a
palavra plena e única pode ser responsavelmente significa-
tiva: pode ser a verdade (pravda), e não somente qualquer
coisa de subjetivo e fortuito. Não é necessário, obviamente,
supervalorizar o poder da linguagem: o existir-evento irre-
petível é singular e o ato de que participa são, fundamen-
talmente, exprimíveis, mas de fato se trata de uma tarefa
muito difícil, e uma plena adequação está fora do alcance,
mesmo que ela permaneça sempre como um fim. (BAKH-
TIN, 2012, p. 84, destaques nossos).

A dificuldade de expressar o ato, parece-nos, reside em


seu caráter de processo em devir: o “ato” está no aqui e agora,
no evento mesmo de sua realização. Em determinado ponto de

283
PFA, Bakhtin questiona-se sobre como descrever, exemplificar
o “mundo da vida-ato singular do interior do ato” (BAKHTIN,
2012, p. 114), e afirma que essa descrição “seria uma espécie de
confissão” (BAKHTIN, 2012, p. 114) – confissão essa “entendi-
da no sentido de uma prestação de contas individual e única”
(BAKHTIN, 2012, p. 114). Não desenvolve, contudo, essa ideia.
Postula, adiante, que, a despeito da singularidade do ato, do seu
caráter único e irrepetível, há componentes comuns em todos
os atos de todos os sujeitos: trata-se da arquitetônica do mundo
real, cujos momentos fundamentais são: “eu-para-mim, o ou-
tro-para-mim e eu-para-o-outro” (BAKHTIN, 2012, p. 114).
Esses “momentos fundamentais” realizam-se como centros
valorativos concretos: o eu-para-mim é o valor projetado a par-
tir do meu Eu – Eu, que estou inteiramente “dentro de mim”,
que tenho uma visão fragmentada de mim mesmo, que vejo
meus braços, minhas pernas, mas não vejo minha cabeça, por
exemplo, ou o fundo às minhas costas. A partir do eu-para-mim
estabelecem-se coordenadas como “alto”, “baixo”, “antes”, “de-
pois”, “longe”, “perto”. O eu-para-mim, no entanto, só adquire
sentido, “valor”, se contraposto ao outro, e esse outro, por ser
um centro de valores concreto, deve estabelecer sua coorde-
nada: “eu” sou a coordenada; portanto, o outro é um outro-
-para-mim. O meu corpo fragmentado apresenta-se assim em
oposição à completude do outro: vejo o outro como um corpo
completo, disposto e integrado à paisagem. É essa completude
que permite a minha própria percepção de “ser fragmentado”.
Por fim, como o outro só é outro em relação a mim, também eu
devo ser “o outro do outro”: o eu-para-o-outro.
Em síntese, ao estabelecer o projeto de uma “filosofia pri-
meira”, Bakhtin, em PFA, formula ideias que serão a base para a
construção da categoria de enunciado concreto. Essas ideias são:
a eventicidade do ato: o ato como algo singular, irrepetível; a re-
lação necessária entre o eu e o outro; a valoração, advinda tanto
da singularidade (ao ocupar uma posição única no mundo, já
estabeleço meus valores, pois vejo algo que ninguém mais será

284
capaz de ver), quanto da relação entre o eu e meu outro.
A seguir, tratamos do enunciado, observando como es-
sas ideias estão imbricadas na categoria.

Sobre o enunciado concreto

A princípio, vejamos como Volóchinov aborda a categoria


“enunciado” em dois ensaios: “Estrutura do enunciado” e “dis-
curso na vida e discurso na arte”2. Aquele data de 1930; este, de
1926. Em seguida, analisemos a construção do conceito, feita
por Bakhtin, em “Os gêneros do discurso”.
Nos dois ensaios acima citados, de autoria de Volóchinov,
encontramos o autor definindo o enunciado como unidade real
de comunicação, enfatizando sua natureza social e o explo-
rando em sua “dupla estrutura” (verbal e não verbal / verbal e
subentendido). Em “Estrutura do enunciado” (1930), o filósofo
defende que o enunciado apresenta duas partes: uma verbal,
constituída pela entonação (expressão da avaliação social), pela
escolha lexical e pela disposição dessa escolha; uma extraver-
bal (subentendida), constituída pelo auditório e pela “situação”
– esta última englobando o espaço/tempo no qual se encontram
os interlocutores, o tema ou objeto, a posição desses perante o
objeto de discurso.
Para o autor, há uma codeterminação entre a parte ver-
bal e a extraverbal do enunciado. A parte extraverbal “determi-
na o sentido da sua primeira parte (verbal)” (p. 10). O verbal,
porém, “não reflete, como um espelho, o extraverbal” (p. 11),
antes, “constitui, de fato, sua resolução, ela completa a avalia-
ção, e ela apresenta, ao mesmo tempo, a condição necessária
ao seu posterior desenvolvimento ideológico” (p. 11).
Essa definição do enunciado evidencia como ele, de fato,
materializa a valoração social. Existe um “extraverbal”, um su-
bentendido, que sustenta o enunciado, confere-lhe sentido.
Nesse lado do enunciado, há a expressão dos valores sociais,

2
Neste ponto, retomamos e ampliamos discussões presentes em Kemiac (2017).

285
imbricados na posição social dos interlocutores perante o ob-
jeto. Esse “extraverbal” constitui uma espécie de “segunda di-
mensão”, ou dimensão mais profunda dos valores. Na primeira
dimensão, temos o verbal, aquilo que é visível no enunciado. A
entonação, as escolhas lexicais e a disposição dessas escolhas
nos são visíveis, possíveis, à primeira vista, de análise. Consi-
deremos, porém, que, segundo argumenta o autor, essa parte
“visível” não irá refletir a segunda parte, mas funcionar como
uma espécie de “interpretação”, “resolução” do que não se vê
de imediato. Os valores, portanto, expressos em recursos como
escolhas lexicais e entonação, não nos dão acesso imediato ao
extraverbal (e sim o completam).
Em “Discurso na vida e discurso na arte”, Volochínov (1926,
p. 06) objetiva “alcançar um entendimento do enunciado poé-
tico, como uma forma desta comunicação estética especial”.
Para tanto, julga necessário “antes analisar em detalhes certos
aspectos dos enunciados verbais fora do campo da arte” (VO-
LÓCHINOV, 1296, p. 06). Nesse ensaio, o autor mostra como o
discurso verbal não é auto-suficiente, pois este “nasce de uma
situação pragmática extraverbal e mantém a conexão mais pró-
xima possível com essa situação” (p. 06). Mais uma vez, temos,
aqui, a dicotomia presente em “Estrutura do enunciado” entre
o verbal e o extraverbal, que se apresentam como constitutivos
do enunciado, e indissociáveis um do outro. O autor argumenta
que o extraverbal faz emergir o verbal – ambos mantendo es-
treita conexão.
Chama-nos a atenção a ênfase conferida pelo filósofo aos
valores que atravessam o enunciado, denominados de “julga-
mentos”. Esses julgamentos referir-se-iam ao “todo” do enun-
ciado, isto é, “O discurso fundido com um evento da vida” (VO-
LÓCHINOV, 1296, p. 06). Mais uma vez, temos a ideia de que
esses julgamentos correspondem à resolução que a parte verbal
do enunciado faz do não verbal. Logo, reforçada está a ideia de
que o verbal de um enunciado não reflete o extraverbal, mas o
avalia, o “resolve”, confere-lhe um acabamento específico que

286
propicia um posterior desenvolvimento ideológico.
É perceptível, sobretudo em “Discurso na vida, discurso na
arte”, a ideia de valoração como uma espécie de sustentáculo
do enunciado e como elemento comum que vincula o enun-
ciado na vida ao enunciado na arte: em ambos temos os valo-
res presumidos. No discurso na vida, esses valores “vitais” não
são propriamente enunciados: estão na carne e no sangue do
enunciado, fazem parte da vida social de determinado grupo.
Apenas em momentos de crise, quando os valores começam a
ser questionados, é que, explicitamente, estes são expostos. Na
arte, os valores também ocorrem como algo substancial: não
se trata de algo “imposto de fora”, mas valores que “costuram”
o todo do discurso, e se revelam, na arte literária, por exemplo,
nas diversas alianças que o autor vai tecendo ao longo da obra
(com o seu ouvinte, com o herói).
“Valoração”, em Volóchinov, tem um caráter profunda-
mente sociológico, conforme destaca o teórico diversas vezes.
De fato, o autor constrói seu pensamento a partir do segundo
projeto citado em linhas iniciais do subtópico 2 deste artigo.
Assim, esse conceito estaria um pouco distante da ideia de va-
loração tecida em PFA.
Todavia, em linhas gerais, Volóchinov defende o caráter
situado, irrepetível do enunciado: seu “aqui e agora” dados de
uma vez por todas. Essa ideia, a nosso ver, remete às ideias filo-
sóficas tecidas em PFA.
Em “Os gêneros do discurso”, Bakhtin (2003c, p. 269) define
o enunciado como “unidade real da comunicação discursiva” em
oposição a unidades da língua – palavras e orações – pertencen-
tes ao sistema. O enunciado seria “concreto e único” (BAKH-
TIN, 2003c, p. 261), ao passo que a oração existiria como “abs-
tração”, passível de repetição.
Há uma constante tensão, em “Os gêneros do discurso”, en-
tre o “concreto”, o “real” – o enunciado –, e o “abstrato”, “possí-
vel” – a oração enquanto sistema da língua. Essa tensão remonta
a PFA – a constante insistência do teórico no aspecto concreto

287
do ato e a recusa à abstração – seja ela filosófica, estética ou
cognitiva – que elide o sujeito do ato, os valores projetados no
evento, a relação eu-outro como constitutiva da arquitetônica
do ato. Em PFA, a crítica à abstração materializa-se em dicoto-
mias como o “possível” e o “real”, o “concreto” e o “possível”, o
“universal” e o “vivido”, entendendo-se esse “possível” e “uni-
versal” como “abstrato”, não realizado, indiferente a mim. Ob-
servemos:

A arquitetônica concreta do mundo vivido será substituí-


da por uma unidade sistemática atemporal, a-espacial e
a-valorativa feita de momentos abstratamente universais.
No interior do sistema, cada componente dessa unidade é
logicamente necessário, mas o sistema em si, no seu todo,
é apenas algo relativamente possível; é somente em corre-
lação comigo, comigo enquanto penso ativamente, somen-
te em correlação com o ato do meu pensamento responsá-
vel, que tal sistema se incorpora na real arquitetônica do
mundo vivido, como seu momento, se enraíza na sua real
singularidade, significativa como valor. Tudo isso que é abs-
tratamente universal não é diretamente um momento do
mundo real vivido, como o é este ser humano aqui, como o
é este céu, esta árvore; mas o é indiretamente, como conteú-
do-sentido (eterno em sua validade de sentido) deste pensa-
mento singular real, deste livro real; somente nesta relação
o conteúdo-sentido pode ser realmente vivo e participan-
te, e não em si, na sua própria autossuficiência de sentido.
(BAKHTIN, 2012, p. 119-120, destaques nossos).

Embora o pensamento bakhtiniano, em seus textos ini-


ciais, não foque propriamente na linguagem, e, em PFA, en-
contremos apenas dois momentos centrados nela, conforme
apontamos anteriormente, a contraposição entre um “sistema
abstrato” (filosófico, teórico) e o real vivido, caracterizado pela
singularidade, pela inclusão do sujeito (eu, “enquanto penso

288
ativamente”) já se enraizava em PFA. E essa contraposição sus-
tenta a defesa da linguagem concretizada em enunciados – es-
tes realizados por sujeitos únicos, que se alternam na cadeia
comunicativa.
Destaquemos que Bakhtin não nega o “sistema” – seja o sis-
tema linguístico ou o sistema abstrato do pensamento –, mas
ressalta a importância da realização concreta desse sistema: a
teoria precisa ser pensada, e, ao sê-la, já passa ao domínio da
concretude de um sujeito singular; a linguagem tem um siste-
ma de regras que a suporta, mas esse sistema é atualizado em
cada uso, em cada enunciação.

Palavras finais

Neste artigo buscamos mostrar como a linguagem foi abor-


dada em dois momentos específicos de PFA. Em um deles,
Bakhtin discute a dificuldade de expressar/descrever o ato de
seu interior. Essa “dificuldade”, conforme argumentamos, de-
corre do caráter dinâmico, quase fugidio do ato, tão vinculado
ao “aqui” e “agora”. E, nesse dinamismo, entende-se o que mais
tarde será postulado como situação concreta e única, funda-
mento do enunciado.
Também, em PFA, há uma constante crítica aos sistemas
teóricos, filosóficos e estéticos abstratos, incapazes de abarcar
a existência em seu vir-a-ser. A dicotomia “concreto” x “abstra-
to” é abordada em textos posteriores de Bakhtin, como “Os gê-
neros do discurso”, no qual se define a categoria “enunciado
concreto”. Em Volóchinov (2017), essa dicotomia é dialetica-
mente discutida, especialmente no capítulo sobre tema e signi-
ficação na língua.
O conceito de “enunciado”, para Volóchinov, mobiliza o
que é da ordem do concreto (a situação sócio-histórica única, o
tema) e do abstrato (o sistema da língua, a significação). O abs-
trato, porém, precisa tornar-se “concreto”, precisa ser acionado
por um sujeito singular para realizar sua mera “potência de sig-

289
nificação”. Essa discussão, que não nega o abstrato, mas propõe
sua realização em uma situação concreta, remonta aos primei-
ros textos de Bakhtin, como PFA ou “Arte e responsabilidade”
(BAKHTIN, 2003b). Nesses textos, ainda com um pensamento
voltado a questões “primeiras”, as questões eminentemente
filosóficas, Bakhtin não nega a abstração do pensamento, a
abstração dos sistemas cognitivos, éticos ou estéticos, porém,
propõe uma “problemática”, ou, antes, uma “solução”, para in-
tegrar o que é do domínio do geral, do abstrato, ao domínio do
singular, do concreto: o sujeito – sujeito que pensa uma teoria,
vive a vida e desfruta da arte; e, nesse pensar, nesse viver, nesse
desfrute, transforma o “geral” em singular, em único, em irre-
petível.

REFERÊNCIAS

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rina Vólkova Américo. São Paulo: editora 34, 2017.

291
292
UMA ANÁLISE BIBLIOGRÁFICA
SOBRE OS EIXOS LINGUÍSTICOS E
O ENSINO DE LÍNGUA NAS REDES
SOCIAIS DIGITAIS

Fábio Alves Prado de Barros Lima


Manassés Morais Xavier

293
294
P
ensar no impacto das tecnologias em relação à sincronia
da língua requer diálogos sobre os usuários da língua, os
usos em conjunto e a maneira como os sujeitos, cientes
das reconfigurações de seus ecossistemas discursivos, permi-
tem a integração e a legitimação de novos fazeres linguísticos
em novos ambientes. Nesse sentido, o ensino de língua molda-
-se de acordo com as possibilidades tecnológicas e, principal-
mente, necessita adequar-se aos contextos de uso dos usuários
da língua, o que está intrinsecamente ligado, atualmente, às
redes sociais. Com isso, as redes sociais e o ensino de língua
desempenham funções que, embora aparentemente distantes,
coadunam sujeitos, ratificam discussões sobre o fenômeno de
interação discursiva e social e auxiliam na emancipação lin-
guística.
A pesquisa descrita neste artigo é derivada de um projeto
de iniciação científica realizado no período de agosto de 2019
até julho de 2020, cujo tema contemplou as concepções de lín-
gua e de ensino de língua presentes em artigos voltados para
discussões teóricas e propostas práticas de atividades didáticas
a partir da utilização das redes sociais digitais como interfaces
pedagógicas.
Devido ao gênero do discurso contemplado nesta obra ser
o artigo científico, optou-se por fazer um recorte da pesquisa
desenvolvida, de modo que será discutida apenas a perspecti-
va dos eixos/conhecimentos linguísticos vistos dentro da seara
das redes sociais e do ensino de língua.
Optar pelo estudo dos eixos linguísticos e seu ensino nas re-
des sociais digitais torna-se não apenas uma alternativa viável
para debate, como também mostra-se um exercício profícuo

295
para uma era em que os usuários da língua, apropriando-se de
novas plataformas, (re)conhecem os mecanismos linguístico-
-discursivos e legitimam novos usos segundo a realidade lin-
guística vigente nos planos físico e virtual. Por tal direciona-
mento, esta pesquisa embasou-se nas contribuições do Círculo
de Bakhtin, compreendendo a língua como fenômeno de inte-
ração social e discursiva e o ensino de língua como intervenção
pedagógica para a emancipação linguística.
Posto isso, este artigo propôs-se a compreender a aborda-
gem sobre a relação entre o ensino dos eixos linguísticos e as
redes sociais digitais em estudos publicados no Brasil entre os
anos de 2010 e de 2019, analisando as propostas dos trabalhos
contidos no corpus e interpretando os usos das redes sociais de
acordo com o que foi apresentado.
Metodologicamente, a pesquisa assumiu uma abordagem
qualitativa interpretativista, seguindo-se o método indutivo, tal
qual aponta Oliveira (2010). Além disso, a tipologia usada foi
a pesquisa bibliográfica, que, para Severino (2007), é o tipo de
pesquisa cujo cerne está na criação de uma nova análise por
meio de dados ou categorias trabalhados por demais pesquisa-
dores, atualizando, assim, os conhecimentos sobre o tema.
Por fim, o trabalho está estruturado da seguinte forma:
fundamentações teóricas, nas quais são discutidos os concei-
tos de redes sociais digitais, os eixos linguísticos e o ensino de
língua dialógico-reflexivo; análise dos dados, em que os oito
artigos contemplados foram interpretados de acordo com o ob-
jeto de estudo da pesquisa; considerações finais, em que há a
concatenação dos tópicos apresentados e uma avaliação do que
foi encontrado no corpus da pesquisa.

Redes sociais digitais e eixos linguísticos: diálogos pelo ensi-


no em perspectiva discursiva

Os conhecimentos a respeito da língua estão estruturados


da seguinte maneira: oralidade; leitura; escrita; análise linguís-

296
tica. A compreensão desses eixos da língua passou por altera-
ções ao longo dos anos, convergindo com as mudanças na con-
cepção de língua majoritária no âmbito científico. Por tal razão,
faz-se profícua uma discussão sobre cada conhecimento.
A oralidade, pouco explorada no objetivismo abstrato e no
subjetivismo idealista, passa a ser vista, em Volóchinov (2017),
como elemento fulcral da interação verbal, havendo uma mu-
dança paradigmática em torno da língua. Mais do que se opor ao
plano escrito, a oralidade efetiva a enunciação em seu caráter
plural em um movimento dialógico no qual os atos meramente
psicofisiológicos da fala ganham significados a partir dos diver-
sos usos baseados nos contextos de produção dos enunciados.
Sendo assim, a oralidade integra, de modo basilar, a realidade
fundamental da língua e merece, portanto, reconhecimento do
ponto de vista científico e educacional.
A leitura “compreende as práticas de linguagem que decor-
rem da interação ativa do leitor/ouvinte/espectador com os tex-
tos escritos, orais e multissemióticos e de sua interpretação”
(BRASIL, 2017, p. 71). Em tal perspectiva, não há de se consi-
derar os enunciados como fenômenos isolados, sendo necessá-
ria a interação da tríade autor-texto-leitor, a qual assume novos
formatos conforme as experiências de cada usuário da língua e
promove reconfigurações interpretativas e sociais. Com isso, a
leitura toma a posição ativa como atividade sociocognitiva es-
sencial no processo de interação discursiva e favorece discus-
sões sobre os enunciados lidos, de modo que a tríade apresenta
permite novas contribuições ao invés de uma perspectiva mo-
nológica.
A escrita, anteriormente tomada pelo foco na língua e,
ainda, no autor, é entendida pelo aspecto interativo. Assim, se-
gundo Koch e Elias (2009), o autor e o leitor tornam-se sujeitos
dialógicos em que a escrita atua como ponte de construção de
sentidos. Logo, entende-se que o ato de escrever é uma ativi-
dade direcionada a outrem, havendo um processo de reflexão
a respeito de aspectos estruturais, semânticos e pragmáticos.

297
A análise linguística possui um histórico anterior à exis-
tência da Linguística Moderna, retomando os antigos estudos
filológicos. A mudança paradigmática da concepção de língua,
porém, pressupõe estudos diferentes sobre o fenômeno lin-
guístico. Desse modo, a atual análise linguística, de acordo com
Perfeito (2007), é concebida como um processo epilinguístico
dos usuários da língua para interpretação de recursos lexicais,
gramaticais e composicionais, observando, portanto, as carac-
terísticas dos gêneros discursivos em relação aos contextos de
produção e de circulação, bem como vinculando tais questões
com os processos de leitura, construção e reescrita textual.
Esclarecidos os eixos linguísticos, o pensamento volta-se,
então, para o ensino de tais componentes. A prática educativa
com a língua na atualidade pode ser vista sob a ótica da Base
Nacional Comum Curricular, a qual, ao discorrer sobre o com-
ponente Língua Portuguesa, afirma que é fundamental “pro-
porcionar aos estudantes experiências que contribuam para
a ampliação dos letramentos, de forma a possibilitar a parti-
cipação significativa e crítica nas diversas práticas sociais per-
meadas/constituídas pela oralidade, pela escrita e por outras
linguagens” (BRASIL, 2017, p. 67-68). Nessa esteira, o ensino de
língua deve integrar os eixos linguísticos, de modo a fomentar
experiências reflexivas sobre a sincronia da língua nos diferen-
tes campos de interação verbal e discursiva.
Uma terminologia chama a atenção na Base Nacional Co-
mum Curricular ao tratar o assunto supracitado: letramentos.
Para The New London Group (1996), uma pedagogia que pri-
vilegie multiletramentos incorpora práticas situadas conforme
as diferenças linguísticas e culturais de cada contexto educa-
cional. Sendo assim, o ensino de língua, por tal perspectiva, ex-
plora as vivências de seus estudantes a fim de promover signi-
ficados pragmáticos e, por conseguinte, dialógicos na vida dos
sujeitos.
Uma questão é posta em xeque: com o aprimoramento
tecnológico das máquinas, a linguagem encontra espaços de

298
atuação anteriormente inexistentes, chegando, assim, ao cibe-
respaço. Em Lévy (2010), a globalização linguística impactou as
línguas, consolidando o inglês na hegemonia do ocidente e re-
forçando a necessidade de preservação das culturas regionais
e, consequentemente, das línguas. Nessa perspectiva, indaga-
-se: de que modo o ensino de língua, ao integrar as plataformas
digitais, pode gerar experiências significativas de ensino e de
aprendizagem no ciberespaço?
Sobre a problemática acima, Leffa (2016) aponta que há
uma relação simbiótica entre o ensino de língua e as tecnolo-
gias e o cerne da eficácia desse amálgama não está nas tecno-
logias, mas no uso desses mecanismos. Nesse sentido, Xavier e
Serafim (2020) complementam que as Tecnologias Digitais da
Informação e da Comunicação (doravante, TDIC), presentes no
ciberespaço e configuradas, de modo geral, pelas redes sociais
digitais, podem ser facilitadoras das interações humanas caso
haja a construção de significados conforme as ações executa-
das virtualmente. Sendo a prática educativa um fenômeno que
exige o diálogo para a formação dos saberes, as redes sociais
contribuem para o encontro dos envolvidos no processo educa-
cional e possibilitam, por meio de seus mecanismos estruturais
e discursivos, trabalhos com as TDIC, cujas reflexões incidam
sobre a sincronia dos eixos linguísticos, das tecnologias e da
vida social dos estudantes.
Ciente de tais apontamentos teóricos, parte-se para a aná-
lise de exemplares cujo foco está na relação entre redes sociais
digitais e o ensino dos eixos linguísticos.

O uso didático das redes sociais em função de conhecimentos


linguísticos

Os textos pertencentes ao corpus estão na tabela abaixo.


FORTUNATO, Geralda Cristina. Os adolescentes e o blog: a produção textual na
sala de aula e na internet. In.: RIBEIRO, Ana Elisa; NOVAIS, Ana Elisa Costa.
(Orgs.). Letramento digital em 15 cliques. Belo Horizonte: RHJ, 2012, p. 175-187.

299
GOMES, Luiz Fernando. Redes sociais e escola: o que temos de aprender?. In.:
ARAÚJO, Júlio; LEFFA, Vilson. (Orgs). Redes sociais e ensino de línguas: o que
temos de aprender?. São Paulo: Parábola, 2016, p. 81-92.

PORTO, Cristiane; OLIVEIRA, Kaio Eduardo; ALVES, André Luiz. Expansão e re-
configurações das práticas de leitura e escrita por meio do WhatsApp. In.: POR-
TO, Cristiane; OLIVEIRA, Kaio Eduardo; CHAGAS, Alexandre. (Orgs.). WhatsApp e
educação: entre mensagens, imagens e sons. Salvador: EDUFBA, 2017, p. 113-128.

SILVA, Zenilda Ribeiro da. O Facebook como ferramenta pedagógica no ensino


de Língua Portuguesa. Jundiaí: Paco, 2018.

SANTOS, Carlos Eduardo Barros dos; CRUZ, Silvânia Maria da Silva Amorim. A
argumentação no fórum de discussão virtual. In.: OLIVEIRA, Robson Santos de.
(Org.). Multimodalidade e tecnologias no ensino: abordagens práticas nas aulas
de Língua Portuguesa. São Paulo: Pá de Palavra, 2019, p. 69-84.

TENÓRIO, Maria Liliane de Lima. Práticas pedagógicas com WhatsApp no ensino


de língua portuguesa: experiências de multimodalidade. In.: OLIVEIRA, Robson
Santos de. (Org.). Multimodalidade e tecnologias no ensino: abordagens práticas
nas aulas de Língua Portuguesa. São Paulo: Pá de Palavra, 2019, p. 85-98.

SANTOS, Josefa Maria dos. O ensino de gênero mediado pela rede social Facebook.
In.: OLIVEIRA, Robson Santos de. (Org.). Multimodalidade e tecnologias no ensi-
no: abordagens práticas nas aulas de Língua Portuguesa. São Paulo: Pá de Palavra,
2019, p. 99-117.

SILVA, Paulo Rodrigo Pereira da. Micronarrativas multimodais de enigma policial:


um trabalho de leitura no ensino fundamental a partir do Facebook. In.: OLIVEI-
RA, Robson Santos de. (Org.). Multimodalidade e tecnologias no ensino: aborda-
gens práticas nas aulas de Língua Portuguesa. São Paulo: Pá de Palavra, 2019, p.
121-136.

No corpus analisado, os dados estão dispostos da seguinte


maneira: quatro ocorrências de leitura e escrita juntas; duas
ocorrências de leitura, escrita e análise linguística; uma ocor-
rência de leitura e análise linguística; uma ocorrência de es-
crita. Para analisar essas informações, far-se-á uma discussão
sobre leitura, a qual será seguida sobre escrita e, por fim, sobre
análise linguística, consolidando o que foi verificado nesta pes-
quisa.
A respeito do eixo leitura, esta pesquisa alinha seu posicio-

300
namento com a perspectiva dialógica e com as contribuições in-
teracionistas, compreendendo a leitura como um processo em
que leitor e autor interagem e formulam interpretações media-
das pelo texto. Desse modo, esse eixo “compreende as práticas
de linguagem que decorrem da interação ativa do leitor/ouvin-
te/espectador com os textos escritos, orais e multissemióticos
e de sua interpretação” (BRASIL, 2016, p. 71). Considerando tal
disposição, parte-se, então, para os exemplares cujo estudo uti-
lizou o eixo em questão.
Conforme exposto anteriormente, não há ocorrência do
eixo leitura sendo trabalhado isoladamente. Desse modo, a
leitura ora é trabalhada com a análise linguística, ora com a
escrita. O eixo em consonância com a análise linguística está
em Silva (2016). No texto, o autor escreve um tópico intitulado
“Leitura e letramento literário”, no qual define sua concepção
de leitura tal qual se vê no quadro abaixo.

[...] Nessa perspectiva, a leitura é atividade interativa altamente complexa de pro-


dução de sentidos que vai requerer do leitor o uso de estratégias voltadas à ante-
cipação, a inferência e a verificação que concebe o texto não apenas como um
produto do autor, mas como uma atividade complementada e recriada pelo leitor
(SILVA, 2016, p. 123).

Apesar de dedicar um tópico exclusivo para o eixo leitura,


Silva (2016), ao detalhar a sequência de atividades didáticas
(doravante, SAD)3 desenvolvida, apresenta o primeiro módulo,
no qual há nitidamente o estudo das estruturas gramaticais.
Contudo, ao observar que o autor utiliza aporte teórico dialógico
e interacionista e apresenta inicialmente uma proposta com
o uso do Facebook, a análise linguística parece desvincular-
se do propósito de compreensão da realidade linguística e do
fazer educacional, os quais, neste artigo, são construídos e
investigados por meio das redes sociais.
3
O uso da terminologia adotada é proveitoso devido a possíveis dificuldades de com-
preensão do termo “sequência didática” em seu sentido original empregado pela Escola
de Genebra. Assim, preferiu-se adotar SAD a fim de manter a ideia de progressão de ativi-
dades sem o comprometimento das contribuições originais.

301
Posto isso, pode-se interpretar que o trabalho com a análise
linguística, identificada no corpus em Silva (2016) e apenas ligada
à leitura, ocorre sem propósitos de utilizar o Facebook como
ecossistema comunicativo de aprendizagem, ao passo que a
leitura se efetua no ambiente virtual, porém sem a utilização
de elementos específicos da plataforma, o que é enfatizado pela
ideia exposta pelo autor de uso da rede como suporte.
Na interseção dos eixos leitura, escrita e análise linguística,
há apenas Santos (2019) e Tenório (2019). Ao contrário de Silva
(2016), Santos (2019) utiliza a rede social em foco, Facebook,
a fim de acionar os três elementos. Vale salientar que esse
procedimento foi feito em diferentes etapas, justificando a SAD
utilizada. Ademais, a autora levou em consideração a escrita
como forma de ampliação do conhecimento sobre o gênero
cartaz, o que parece ser uma atitude positiva para o trabalho e
se justifica por meio do seguinte trecho.

Embora nosso foco não residisse na produção textual, consideramos importante


observar como os estudantes poderiam externar a compreensão das estratégias
persuasivas estudadas, através da produção de discursos argumentativos, visando
claramente persuadir o interlocutor (SANTOS, 2019, p. 113).

Nessa perspectiva, a interseção dos eixos pode indicar uma


melhor compreensão dos fenômenos linguísticos no ambiente
virtual, especialmente com o letramento digital proposto por
Santos (2019) no início de sua SAD. A escrita compreendida
como “[...] práticas de linguagem relacionadas à interação e à
autoria (individual ou coletiva) do texto escrito, oral e multis-
semiótico, com diferentes finalidades e projetos enunciativos
[...]” (BRASIL, 2016, p. 76) passa a ser útil na proposta, não obs-
tante o fator interativo do ecossistema comunicativo de apren-
dizagem não fora completamente abarcado, questão cujo cerne
será discutido no próximo tópico.
Por outro lado, Tenório (2019) se dedica a explorar no Wha-
tsApp, juntamente com seus alunos, as competências de leitura
e escrita dos estudantes, de modo que a análise linguística, em-

302
bora presente, não foi desenvolvida de modo direto no grupo.
A presença dos eixos leitura e escrita, porém, aparenta êxito no
que tange à compreensão dos fenômenos linguísticos e intera-
tivos dentro da rede social digital, indicando possíveis resulta-
dos distintos entre a autora e Santos (2019).
O trabalho com a leitura e escrita de maneira simultânea,
por sua vez, teve maior produtividade no corpus selecionado,
o que é indicado pelas quatro ocorrências representadas por
Fortunato (2012), Gomes (2016), Porto, Oliveira e Alves (2017) e
Silva (2018). É válido observar que as duas pesquisas bibliográ-
ficas alinharam os eixos como possível demonstração de que,
na situação de ensino de língua por redes sociais digitais, os fe-
nômenos estão imbricados a ponto de necessitar de discussão
acerca de ambos. Tal argumento pode ser visto na considera-
ção feita no exemplo a seguir.

A escola, apesar das mudanças por que tem passado nos últimos anos, ainda é
marcadamente logocêntrica, voltada, no mais das vezes, para atividades de lei-
tura e produção de gêneros textuais de baixa ou nenhuma circulação na internet
que não levam em consideração, por exemplo, o conteúdo temático, o estilo e a
construção composicional de textos digitais e sua função pragmática na criação e
manutenção das redes sociais e seu papel na interação em comunidades de práti-
ca (GOMES, 2016, p. 87).

Esse apontamento feito por Gomes (2016), além de dar con-


ta de noções bakhtinianas sobre gêneros do discurso e intera-
ção, pode indicar que há uma tese similar entre os exemplares
na qual os autores concordam com os impasses na educação
formal e no tratamento com as questões linguísticas, de modo
que os pesquisadores buscam, em seus textos, discorrer e/ou
propor alternativas para alterar tal realidade. Na pesquisa bi-
bliográfica desenvolvida por Porto, Oliveira e Alves (2017), esse
argumento aparenta maior convergência com a visão interati-
va de leitor e escritor na conjuntura das redes sociais, o que
é benéfico e fundamental para uma compreensão holística do
ensino de língua na atualidade.

303
O pensamento norteador, no entanto, parece não ser o su-
ficiente para abarcar o ensino de línguas nas redes sociais di-
gitais, privilegiando um eixo em detrimento de outro. É o que
parece ocorrer em Silva (2018) e em Fortunato (2012). Sobre o
primeiro exemplar, tem-se o trecho a seguir para problemati-
zação.

Nesta sequência didática, apresentaremos uma proposta de atividades para o tra-


balho com as figuras de linguagem, tendo como gênero escolhido para ser traba-
lhado o comentário no Facebook, visando ao desenvolvimento da escrita por meio
desse gênero digital (SILVA, 2018, p. 77).

De acordo com o excerto acima, a SAD propõe-se a


desenvolver a análise linguística com o uso dos comentários
no Facebook, salientando, ainda, o desenvolvimento da escrita
com tal escolha. Além de prometer uma melhoria que não é
garantida pela aprendizagem da análise linguística, a SAD
ainda entra em contradição ao passo que o objetivo geral da
proposta didática é para a análise dos gêneros textuais digitais e
os objetivos específicos retomam ideias de leitura e de escrita, a
exemplo de inferências de palavras e intenções comunicativas
e discussão sobre usos sociais da escrita. Nessa esteira, a
leitura e a escrita parecem tomar espaço, sobressaindo, ainda,
a escrita sobre a leitura, pois, embora haja a problemática na
compatibilidade entre a apresentação da sequência e a proposta
em si, a escrita é citada em ambas e é reforçada pelas atividades
no Facebook.
Em Fortunato (2012), a escrita também se sobrepõe. Contu-
do, a sobreposição é justificada a partir dos objetivos da autora,
a qual utiliza o eixo leitura para observação da prática leitora
dos alunos a fim de desenvolver uma proposta de ensino do
gênero resenha literária em blogs. Vale salientar que, embora
se proponha a ensinar por meio da rede social digital citada, a
leitura não foi vista no blog e a escrita só veio a desenvolver-se
no ambiente virtual em uma segunda etapa da pesquisa, indi-

304
cando possível uso da rede como pretexto.
Diante do exposto, observa-se a predominância do eixo
leitura sobre os demais no que tange ao ensino de língua nas
redes sociais digitais. Contudo, é salutar perceber que o eixo é
encontrado em todas as ocorrências, exceto por Santos e Cruz
(2019), pesquisa na qual a realização das oficinas esteve voltada,
exclusivamente, para o eixo da escrita, desenvolvendo o conhe-
cimento sobre o fórum como gênero e rede social, bem como a
argumentação dos estudantes. Sendo assim, conclui-se que há,
no corpus selecionado, uma produção frutífera de debates sobre
a leitura, cujo âmago é constantemente interseccionado fre-
quentemente pela escrita e, por vezes, pela análise linguística.
Faz-se necessário observar que o ensino de língua por meio
de redes sociais, de acordo com os exemplares analisados,
pouco deu espaço para a análise linguística, o que deve ser
revisto por parte dos pesquisadores e educadores tendo
em vista a necessidade da metalinguagem no processo de
amadurecimento dos conhecimentos linguísticos na vida dos
estudantes. Ademais, embora Gomes (2016) critique a escola
logocêntrica, pode-se constatar a predominância da leitura e da
escrita ligada ao estudo de fenômenos escritos, seja por meio
do papel ou pelas postagens nas redes sociais. Todavia, as redes
sociais, como ambientes virtuais nos quais os usuários da língua
significam e ressignificam a língua, não devem ser dissociadas
da oralidade para que se tenha uma percepção mais próxima da
realidade linguística sem desprezar um fator tão essencial para
pesquisadores cuja visão é teoricamente dialógica.
Por tais apontamentos, compreende-se que a análise lin-
guística precisa de maior produtividade no ensino de língua
nas redes sociais digitais e que a centralidade do texto escrito,
dentro do panorama dos eixos leitura e escrita deste corpus, ne-
cessita de revisão para abarcar as contribuições da oralidade
no ciberespaço. Por fim, caso haja a intenção de relacionar os
eixos no trabalho com as redes sociais digitais, o pesquisador
precisa definir com cuidado como será a abordagem para não

305
haver contradições, o que, do ponto de vista das escolhas dos
eixos, não aparenta ser uma problemática, com a exceção de
Silva (2018). Logo, a interseção das áreas de estudos linguísticos
e a definição da proposta a ser executada são basilares para um
progresso do ensino na era digital, podendo haver maior escla-
recimento por parte dos exemplares analisados.

Palavras finais

A pesquisa em questão buscou compreender a abordagem


sobre a relação entre o ensino dos eixos linguísticos e as redes
sociais digitais em estudos publicados no Brasil entre os anos
de 2010 e de 2019, analisando as propostas dos trabalhos conti-
dos no corpus e interpretando os usos das redes sociais citadas
de acordo com o que foi apresentado.
Dentre as possíveis problemáticas identificadas no corpus,
destacam-se a omissão da oralidade nas ocorrências, o que vai
de encontro ao que se espera de uma proposta dialógica, e a
presença da análise linguística centrada na leitura e na escrita.
A oralidade e a análise linguística apresentam idiossincrasias
necessárias para um processo efetivo de emancipação linguís-
tica do estudante, devendo-se trabalhar, sim, os conhecimentos
da língua em conjunto, bem como dar espaço para que todos
sejam identificáveis e distribuídos igualmente na prática edu-
cativa.
Esta análise reclama um trabalho com os eixos linguísti-
cos, que, nesta análise, denominam-se conhecimentos sobre a
língua, em sintonia com a utilização das redes sociais. Nessa
esteira, precisa-se de um trabalho didático que não pare, exclu-
sivamente, no tratamento dado à língua: nessas condições, as
redes funcionam como pretextos para o ensino de língua.
Convoca-se um ensino dos eixos empregados em efetivas
cenas enunciativas via redes sociais digitais: do ponto de vista
da oralidade – quais as diferenças entre a comunicação face a
face e os diálogos intermediados pelas redes?; quais as contri-

306
buições das comunidades virtuais na reflexão sobre as varieda-
des linguísticas e os sentidos dos enunciados?; sobre a leitura
– quais os propósitos comunicativos na circulação daquele post
e quais os efeitos de sentidos são requeridos por quem os leu?;
no que se refere ao trabalho com a escrita – quais as caracterís-
ticas composicionais do gênero comentário online?; o que o faz
ser considerado um gênero do discurso?; no que tange à análise
linguística – o que o uso de determinado termo linguístico acar-
retou ao sentido do texto circulado na rede?; como as escolhas
linguísticas (fonológicas, morfológicas e sintáticas) apresen-
tam as marcas de autoria dos sujeitos implicados ou das comu-
nidades em redes?
Parece que os dados analisados no corpus da pesquisa se
abstiveram de discussões dessa natureza, o que impulsiona a
repensar na utilização das redes sociais, de fato, funcionando
como interfaces pedagógicas, como possibilidades de constru-
ção de conhecimentos no contexto de ensino-aprendizagem de
Língua Portuguesa.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível


em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf.
Acesso em: 22 de jul. de 2020.
KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de
produção textual. São Paulo: Contexto, 2009.
LEFFA, Vilson. Redes sociais: ensinando línguas como antigamente. In: ARAÚJO,
Júlio; LEFFA, Vilson. Redes sociais e ensino de línguas: o que temos de
aprender?. São Paulo: Parábola Editorial, 2016.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Editora 34, 2010.
PERFEITO, Alba Maria. Concepções de linguagem e análise linguística:
diagnóstico para propostas de intervenção. In: I Congresso latino-americano
sobre formação de professores de línguas-CLAFPL. Anais. Florianópolis,
UFSC. 2007. p. 824-836.

307
THE NEW LONDON GROUP. A pedagogy of multiliteracies: Designing social
futures. Harvard educational review, v. 66, n. 1, p. 60-93, 1996.
VOLÓCHINOV, Valentin Nikolaevich. Marxismo e filosofia da linguagem. São
Paulo: Editora 34, 2017.
XAVIER, Manassés Morais; SERAFIM, Maria Lúcia. O whatsapp impactando
novas possibilidades de ensinar e de aprender no contexto acadêmico.
São Paulo: Mentes Abertas, 2020.

308
SOBRE OS AUTORES

309
310
Acir Mário Karwoski
Formação acadêmica: Licenciatura em Letras - Português e In-
glês na UNESPAR - União da Vitória. Mestrado em Linguística
Aplicada na UNITAU e Doutorado em Letras - Estudos Linguísti-
cos na UFPR. Realizou estágio de pós-doutorado com bolsa CA-
PES (Processo BEX 015/15-6) no Departamento de Educação da
Universidade da California Santa Bárbara (UCSB) sob a super-
visão do Professor Charles Bazerman. Cursou especializações
lato sensu em literaturas de língua portuguesa na UNICENTRO;
língua e literatura portuguesa na UNESPAR e Master Business
Administration (MBA) em gestão Universitária no UNISAL/
SEMESP. Desenvolve pesquisas nas áreas de letras e educação
numa visão multidisciplinar a respeito de linguagens, educa-
ção e novas tecnologias; letramento acadêmico, letramento
literário, cultura escrita digital. Professor associado do Depar-
tamento de Linguística e Língua Portuguesa. Atua no curso de
graduação em Letras e nos programas de pós-graduação Mes-
trado Profissional em Letras e no Programa de Pós-Graduação
em Educação (PPGE). Pesquisador do LabELFE - Laboratório
de Ensino de Leitura, Fala e Escrita (UFTM). Coordenador do
grupo de pesquisa GPELLP - Educação, Linguagens e língua
portuguesa, certificado pelo CNPq/UFTM. Membro titular da
cadeira n. 37 da Academia de Letras do Vale do Iguaçu (ALVI).
Editor-gerente da Revista Triângulo (ISSN 2175-1609). Membro
do Grupo de Trabalho Gêneros textuais / discursivos na Asso-
ciação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lin-
guística (ANPOLL). Integrante do BASIS - Avaliador de cursos
do INEP/MEC. E-mail: acir.karwoski@uftm.edu.br

Alexandra Bittencourt de Carvalho


Doutoranda em Estudos do Texto e do Discurso pela Universi-
dade Federal de Minas Gerais, mestra em Estudos Discursivos
pelo Departamento de Letras da Universidade Federal de Viço-
sa e licenciada em Letras - Habilitação em Língua Portugue-
sa e Literatura - pela Universidade Federal de Viçosa. Áreas de

311
interesse: Análise de Discurso Crítica; Linguística Sistêmico-
-Funcional aplicada ao ensino de Língua Portuguesa; Corpos
dissidentes, em especial corpos gordos; Gênero; Militância di-
gital; Interseccionalidades e perspectivas teóricas decoloniais.
E-mail: alexandraportugues@yahoo.com.br

Alixandra Guedes Rodrigues de Medeiros e Oliveira


Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação
em Linguística na Universidade Federal da Paraíba (PROLING/
UFPB - Em andamento). Mestra em Linguagem e Ensino pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras na Universidade Fe-
deral de Campina Grande (PPGLE/UFCG - 2011). Especialista
em Língua Portuguesa pela Universidade Estadual da Paraíba
(CELIP/UEPB - 2009). Graduada em Letras, habilitação Língua
Portuguesa, na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB - 2007).
Atuou no Ensino Básico como professora (2008 - 2017) e como
coordenadora pedagógica (2016-2017). Tem experiência na área
de Linguística e desenvolve pesquisas no campo da Análise do
Discurso e da Análise Dialógica do Discurso, que contemplem a
produção e a circulação dos diferentes discursos e suas influên-
cias no âmbito escolar. E-mail: alixandragm@gmail.com

Aloísio de Medeiros Dantas


Iniciou as atividades de pesquisador da área de linguagem, no
Programa de Pós-Graduação em Letras, área Língua Portugue-
sa, em nível de mestrado, na UFPB, Campus I, sede João Pessoa,
em 1988. Nesse Programa, desenvolveu sua dissertação sobre
discurso da democracia, no Campo de Estudos da Análise de
Discurso. Em 1991, ingressou como professor no Campus II da
UFPB, hoje UFCG, sede Campina Grande. Nessa universidade,
ministrou disciplinas de Língua Portuguesa e Linguística. Em
1994, esteve em Licença de Capacitação para o desenvolvimen-
to do Doutorado, no Programa de Pós-Graduação de Letras,
área Língua Portuguesa e Linguística, na UNESP, Campus de
Araraquara, estado de São Paulo. Nesse Programa, desenvolveu

312
a Tese sobre a invenção do mito, trabalhando o conceito de si-
lêncio, também no Campo de Estudos da Análise de Discurso.
Após o retorno às atividades em 1998, desenvolveu atividades
de orientação (PIBIC, TCC) e foi um dos membros participan-
tes da criação de uma área de Linguagem e Ensino, junto ao
Programa de Pós-Graduação em Letras. Atualmente, desenvol-
ve pesquisas no campo da Análise de Discurso e tem estudado
também o discurso científico instaurado nas teorias linguísti-
cas. E-mail: alodanta@yahoo.com.br

Ana Karla Alves de Menezes


Possui Mestrado em Linguística pela Universidade Federal da
Paraíba (2018); Licenciatura em Letras (2014) pela Universida-
de Federal de Campina Grande e Bacharelado em Serviço So-
cial (2014) pela Universidade Estadual da Paraíba. Atua como
professora de Língua Portuguesa na rede privada de ensino, na
cidade de Campina Grande. Participa do Grupo de Estudos em
Linguagem, Enunciação e Interação (GPLEI/CNPq/UFPB). De-
senvolve pesquisas tendo como referência teórico-metodológi-
ca estudos da Teoria Dialógica da Linguagem e do Marxismo.
Tem interesse por temas como formação continuada de profes-
sores de Língua Portuguesa, tecnologias digitais, leitura, escri-
ta e meios específicos de interação discursiva.
E-mail: anakarla.menezes@gmail.com

Clara Mayara de Almeida Vasconcelos


Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e
Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba (2018),
Campus I. Possui Mestrado em Letras pela Universidade Federal
da Paraíba (2016), Campus I, e Graduação em Letras, com ha-
bilitação em Língua Inglesa/Portuguesa, pela Universidade Es-
tadual da Paraíba (2014), Campus III. Atualmente, é professora
substituta do Departamento de Letras da Universidade Estadual
da Paraíba, atuando nas áreas de Língua Inglesa, Literatura In-
glesa, Literatura Norte-americana, Literatura Comparada, Teo-

313
ria e Prática da Leitura, Redação em Língua Inglesa, Estágio Su-
pervisionado, Prática de Ensino em Língua e literatura Inglesa e
Pesquisa Aplicada à Língua e Literatura. Atuou como professora
substituta no IFPB Campus João Pessoa na disciplina de inglês
instrumental no ensino médio, subsequente e superior; e, tam-
bém, nos Departamento de Engenharia Civil e Odontologia da
Universidade Estadual da Paraíba - Campus VIII, ministrando a
disciplina de Inglês Instrumental. Tem experiência na área de
Letras, com ênfase em Literaturas de Língua Inglesa, atuando,
principalmente, nos seguintes temas: literatura, Teoria Geral
dos Signos, metodologia de ensino, linguística aplicada e lingua-
gens audiovisuais. E-mail: claramayvasconcelos@gmail.com

Diana Barbosa de Freitas


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Linguagem e
Ensino da Universidade Federal de Campina Grande (PPGLE/
UFCG). Graduada em Letras-Língua Portuguesa (LIC) pela Uni-
versidade Federal de Campina Grande (UFCG). Possui capítulos
em livros, especificamente, na obra GRIOTS-Literaturas & Cul-
turas Africanas e na obra A infância em suas múltiplas faces.
Fez parte da equipe de revisão do livro Envelhecer é poético
nas Letras. Atualmente, faz parte do Comitê Técnico da Revista
Letras Raras e desenvolve pesquisas na área de Análise do Dis-
curso de linha francesa pecheutiana, discutindo questões que
envolvem mídia, redes sociais e política.
E-mail: dianabarbosa146@gmail.com

Ewerton Lucas de Mélo Marques


Mestrando em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal
de Campina Grande. Graduado em Letras - Língua Portuguesa
pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e estu-
dante do Curso de Especialização em Metodologia do Ensino
de Língua Portuguesa, Literatura e Língua Inglesa pela FAVE-
NI. Seus interesses de pesquisa estão voltados para o ensino de
Língua Portuguesa em uma vertente interdisciplinar, com con-

314
tribuições da Linguística Aplicada (LA) e as contribuições da
Análise Dialógica do Discurso (ADD). Na graduação participou,
como bolsista, do Projeto de Extensão (PROBEX/UFCG/2019) in-
titulado de A leitura de animações na sala de aula de Língua Portu-
guesa: aguçando a criticidade, sob orientação do Prof. Dr. Manas-
sés Morais Xavier. E-mail: ewertonlucas.marques@gmail.com

Fábio Alves Prado de Barros Lima


Graduando em Letras - Língua Portuguesa pela Universidade
Federal de Campina Grande. Bolsista do Programa Institucio-
nal de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/UFCG/CNPq) e vo-
luntário no Programa de Educação Tutorial (PET-Letras/UFCG).
Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Teoria
e Análise Linguística, bem como Redes Sociais e Ensino de Lín-
guas. E-mail: fabio.pradoblima@gmail.com

Jeniffer de Oliveira Barbosa


Graduada em Letras, Língua Portuguesa, pela Universidade Es-
tadual da Paraíba (UEPB). Atualmente, é mestranda do Progra-
ma de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino, da Universida-
de Federal de Campina Grande (UFCG). Vinculada à linha de
pesquisa Práticas Sociais, Históricas e Culturais de Linguagem,
filia-se aos estudos dos pressupostos teórico- metodológicos
do Círculo de Bakhtin, desenvolvendo pesquisas no campo da
Análise Dialógica do Discurso. E-mail: o.jeniffer@hotmail.com

José Luciano Marculino Leal


Doutorando e Mestre em Linguística pela Universidade Fede-
ral da Paraíba (UFPB). Especialista em Tecnologias Digitais na
Educação e graduado em Letras - Língua Inglesa pela Universi-
dade Estadual da Paraíba (UEPB). Professor Substituto no De-
partamento de Letras – Língua Inglesa, Universidade Federal
de Campina Grande-UFCG e Professor do Centro Universitário
Maurício de Nassau – UNINASSAU, vinculado aos Cursos de
Jornalismo e Pedagogia. Também é professor de Língua In-

315
glesa, no Ensino Médio, na rede privada em Campina Grande.
Atualmente, é membro do Grupo de Pesquisas em Linguagens,
Enunciação e Interação – GEPLEI-PROLING/UFPB. Desenvolve
trabalhos, estudos e pesquisas acerca dos seguintes temas: es-
tudos e práticas de letramentos, letramento docente, ensino-
-aprendizagem de Língua Inglesa, análise dialógica do discur-
so, cinema, discurso religioso, ciências da religião.
E-mail: luciano-leal@hotmail.com

Luciene Maria Patriota


Possui Graduação em Licenciatura Plena em Letras pela Uni-
versidade Federal da Paraíba (1993), Mestrado em Linguagem e
Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande (2006) e
doutorado em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba
(2011). Atualmente é professora adjunta II da Universidade Fe-
deral de Campina Grande. Tem experiência na área de Letras,
atuando, principalmente, nos seguintes temas: ensino, gíria,
livro didático, variação linguística, ensino e sala de aula.
E-mail: ene.patriota@yahoo.com.br

Ludmila Kemiac
Professora de Língua Portuguesa da Universidade Federal de
Campina grande (Centro de Educação e Saúde). Doutora em
Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística
(PROLING) da Universidade Federal da Paraíba.
E-mail: ludmila_kemiac@hotmail.com

Maria Dnalda Pereira da Silva


Especialista em Língua Portuguesa pela UEPB e licenciada em
Letras, com habilitação em Língua Portuguesa pela mesma Uni-
versidade. Possui experiência docente no ensino básico nas re-
des pública e privada e em orientações de trabalhos de conclusão
de curso pela UFPB Virtual. Tem interesse e desenvolve estudos
sobre redes sociais, tecnologias digitais e sua relação com o en-
sino de língua materna sob a perspectiva da Teoria Dialógica da

316
Linguagem. E-mail: mdnadi.letras@gmail.com

Maria Estela Souto da Silva


Graduada em Letras, Língua Portuguesa, pela Universidade Es-
tadual da Paraíba – UEPB. Atualmente, é docente da rede parti-
cular, atuando no ensino fundamental.
E-mail: estella.souto4@gmail.com

Michel Pratini Bernardo da Silva


Graduado em Letras, Língua Portuguesa, e mestre em Linguís-
tica pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da Uni-
versidade Federal da Paraíba – PROLING/UFPB. Atualmente, é
doutorando do programa de pós-graduação supracitado e de-
senvolve pesquisas no campo da Teoria Dialógica da Lingua-
gem, proveniente dos pressupostos teórico-metodológicos do
Círculo de Bakhtin, junto ao Grupo de Pesquisa em Linguagem,
Enunciação e Interação – GPLEI.
E-mail: mchel_pbs@hotmail.com

Nilmara Milena da Silva Gomes


Doutoranda em Linguística Aplicada pela Universidade Federal
de Minas Gerais; mestra em Letras pela Universidade Federal
de Roraima; especialista em Docência em Nível Superior pela
Universidade Estadual de Roraima; licenciada em Letras pela
Universidade Estadual da Paraíba; Professora efetiva do curso
de Letras da Universidade Estadual de Roraima; Professora efe-
tiva no Centro Estadual de Formação dos Profissionais da Edu-
cação de Roraima. Atuou como coordenadora da Especialização
em Ensino de línguas em contexto de diversidade linguística da
Universidade Estadual de Roraima e como coordenadora e pes-
quisadora do curso de extensão Ler e escrever: compromisso
de toda a escola, também na Universidade Estadual de Rorai-
ma Áreas de interesse: Análise de Discurso Crítica; Representa-
ções Sociais Formação de professores de português; Ensino de
Português como Língua de Acolhimento; Políticas Linguísticas.

317
E-mail: nilmara_milena@hotmail.com

Quezia Fideles Ferreira


Graduações em Licenciatura em Letras, com habilitação em
Língua Portuguesa, e Bacharelado em Direito, ambas pela
Universidade Estadual da Paraíba. Especialista em Linguística
Aplicada ao Ensino do Português, pelas Faculdades Integradas
de Patos. Mestra em Letras, Universidade Federal da Paraíba.
Atua na Educação Básica do Estado da Paraíba, na modalidade
integral, tendo como horizonte de pesquisa o estudo dos dis-
cursos que estão em circulação nas esferas social e jurídica, ali-
cerçado nos pressupostos da Análise do Discurso e dos estudos
culturais. E-mail: queziafideles@gmail.com

Rafael Francisco Braz


Atualmente, é Doutorando do Programa de Pós-Graduação em
Literatura e Interculturalidade - UEPB/PPGLI (2021) e, também,
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia -
UFRN/PPgPsi (2019). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal da Paraíba - UFPB/PPGL
(2014). Especialista em Língua Estrangeira Moderna: Inglês
e Espanhol - IFPB (2020) e, também, Língua Portuguesa pela
Universidade Estadual da Paraíba - UEPB (2013). Graduado em
Letras pela Universidade Estadual da Paraíba (2010). Tem vá-
rios capítulos de livros, artigos e ensaios publicados em anais
de eventos locais, regionais, nacionais e internacionais na área
de Língua e Literatura Espanhola e Portuguesa. Foi monitor da
graduação de Língua Espanhola (2008-2010). Pesquisador do
PIBIC-CAPS/CNPq na pesquisa do Imaginário simbólico da Ser-
pente na Literatura Brasileira. Atuou como Professor substituto
do Departamento de Letras - DL da Universidade Estadual da
Paraíba - Campus I e III e, também, do Departamento de Ciên-
cias Básica e Sociais - CCHSA na Universidade Federal da Paraí-
ba - UFPB - Campus III. Desenvolve pesquisas que contemplam
as temáticas ou áreas de interesse: a-) Psicologia analítica; b-)

318
Psicologia da Personalidade; c-) Neurociência do amor; d-) Li-
teratura e psicanálise; e-) Mitocrítica e Mitoanálise; f-) Antro-
pologia do Imaginário Simbólico; g-) Literatura comparada;
h-) Estudos Culturais; i-) semiótica; j-) Análise do Discurso; l-)
Ensino de língua espanhola, francesa e portuguesa com ênfase
maior na área de literatura e suas práticas simbólicas, do imagi-
nário e identidade cultural, discutindo a representação mítico-
-simbólica-metafórica associadas ao Feminino. Revisor Ad hoc
de alguns periódicos da área de Letras, Linguística, Literatura,
Educação e Psicologia. E-mail: rafaelbrazprof@gmail.com

Raniere Marques de Melo


Possui graduação em Letras (Português) pela Universidade Fe-
deral de Campina Grande. Possui especialização em Lingua-
gem e Ensino pela UFCG. É mestre e doutorando em Linguística
pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universi-
dade Federal da Paraíba. É membro do Grupo de Investigações
Funcionalistas (GIF). Atua como professor substituto no Depar-
tamento de Letras e Artes da Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB). Tem desenvolvido atividades de pesquisas e de ensino
nas seguintes áreas: funcionalismo, morfossintaxe, lexicologia
e análise do discurso. E-mail: prof.ranieremarques@gmail.com

Robéria Nádia Araújo Nascimento


Doutora em Educação pela Universidade Federal da Paraíba
(2007). Professora Associada do Departamento de Comunica-
ção Social (UEPB). Professora e Coordenadora Adjunta do Pro-
grama de Pós-Graduação em Formação de Professores (PPGFP/
UEPB), com atuação na Linha de Pesquisa Ciências, Tecnolo-
gias e Formação Docente. Integrante dos Grupos de Pesquisa:
TECLIN- Tecnologias, Culturas e Linguagens (PPGFP/UEPB),
Comunicação, Cultura e Desenvolvimento e Comunicação, Me-
mória e Cultura Popular (DECOM/UEPB). Orienta os eixos te-
máticos: Mídias na Educação; Estudos Culturais e Identidade
Docente; Formação Docente e Práticas Pedagógicas; Educação

319
Intercultural e Currículo Escolar. Tem interesse por Metodo-
logia da Pesquisa e pelas convergências entre teoria da com-
plexidade, gênero e subjetividades sociais, narrativas seriadas,
hibridismos midiático-religiosos, mediações literárias e suas
possíveis implicações para o campo da educação.
E-mail: rnadia@terra.com.br

Symone Nayara Calixto Bezerra Almeida


Possui graduação em Letras pela Universidade Federal da Pa-
raíba, Mestrado em Linguagem e Ensino pela Universidade
Federal de Campina Grande e Doutorado em Linguística pela
Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é professora do
Instituto Federal do Amapá (IFAP). Foi professora substituta na
Universidade Federal de Campina Grande e na Universidade
Estadual da Paraíba (UEPB): nesta instituição de ensino exer-
ceu a função de Coordenadora da Capacitação de Professores
do Governo do Estado, na cidade de Patos e integrou o corpo
docente do curso de Letras da e@d UEPB, exercendo atividade
de professora de várias disciplinas do curso e elaboradora de
material didático. Desenvolve pesquisas nas áreas da Análise
Dialógica do Discurso e da Linguística Aplicada. Tem interesse
por questões sobre formação inicial e/ou continuada de profes-
sores de Língua Portuguesa, gêneros discursivos, discurso polí-
tico, leitura, escrita, discurso(s) e ensino de Língua Portuguesa.
E-mail: symonebezerra@gmail.com

320
SOBRE OS ORGANIZADORES/
AUTORES

321
322
Fabíola Nóbrega Silva
Possui graduação em Licenciatura em Letras (Universidade
Federal de Campina Grande/2003), mestrado em Letras (Uni-
versidade Federal da Paraíba/2006) e doutorado em Linguística
(Programa de Pós-Graduação em Linguística na Universidade
Federal da Paraíba/2015). Foi professora substituta da Univer-
sidade Federal da Paraíba. Foi professora substituta na Uni-
versidade Estadual da Paraíba. Atualmente, é professora na
Faculdade UNINASSAU - João Pessoa. Tem experiência na área
de Linguística, com ênfase em Teoria da Enunciação, atuando,
principalmente, nos seguintes temas: aglutinação - sintaxe -
enunciação; discurso-gramática-sintaxe; leitura-produção tex-
tual-ensino. E-mail: fabiolanobrega27@gmail.com

Manassés Morais Xavier


Doutor em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba
(PROLING/UFPB); Mestre em Linguagem e Ensino pela Univer-
sidade Federal de Campina Grande (PPGLE/UFCG); Especialista
em Tecnologias Digitais na Educação, Bacharel em Comunica-
ção Social - Jornalismo e Licenciado em Letras - Língua Portu-
guesa pela Universidade Estadual da Paraíba. Realizou Estágio
de Pós-Doutorado em Linguística na Universidade Federal da
Paraíba (PROLING/UFPB). Atualmente, é Professor Adjunto II
de Língua Portuguesa e Linguística na Unidade Acadêmica de
Letras, Centro de Humanidades, da Universidade Federal de
Campina Grande (UAL/CH/UFCG) e Professor Permanente no
Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino da Uni-
versidade Federal de Campina Grande (PPGLE/UFCG). É mem-
bro dos Grupos de Pesquisa: Teorias da Linguagem e Ensino
(CNPq/UFCG), Linguagem, Enunciação e Interação (GPLEI/
CNPq/UFPB) e O Círculo de Bakhtin em Diálogo (CNPq/UEPB).
Desenvolve pesquisas tendo como referências teórico-metodo-
lógicas estudos da Teoria Dialógica da Linguagem, da Linguís-
tica Aplicada, da Educomunicação e das Teorias da Comunica-
ção e do Jornalismo. Tem interesse por temas como formações

323
inicial e continuada de professores de Língua Portuguesa e de
comunicadores sociais, discursos, tecnologias digitais e práti-
cas educativas/educomunicativas, leitura, escrita, análise lin-
guística, redes sociais e gêneros jornalísticos e/ou midiáticos
em contextos e meios específicos de circulação e de interação
discursiva. E-mail: manassesmxavier@yahoo.com.br

Maria de Fátima Almeida


Possui Graduação em Letras (1979), Graduação em Ciências
Jurídicas e Sociais (1983), Mestrado Em Letras (1988) pela Uni-
versidade Federal da Paraíba e Doutorado em Linguística pela
Universidade Federal de Pernambuco (2004). É Professora As-
sociada do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas,
é membro do Programa de Linguística / PROLING atuando
na área de Teoria Linguística, Linguagem e Ensino, na linha
Discurso e Sociedade, participando principalmente no campo
da: linguagem, discurso e leitura. É líder do Grupo de Estudos
em Linguagem, Enunciação e Interação/GPLEI. É Pós-Doutora
em Linguística pela Universidade de Brasília - UnB (2013). Par-
ticipa de pesquisas na área de formação docente e desenvol-
ve pesquisas na perspectiva da concepção dialógica da lingua-
gem. Atualmente, integra o Grupo de Estudos Bakhtinianos da
ANPOLL. E-mail: falmed@uol.com.br

Patrícia Silva Rosas de Araújo


Pós-Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Linguagem
e Ensino PPGLE/UFCG; Doutora em Linguística - PROLING/
UFPB, com Doutorado-Sanduíche na Universidade Federal de
Buenos Aires/UBA, Argentina; Mestre em Linguagem e Ensino
pela Universidade Federal de Campina Grande/UFCG; Especia-
lista em Língua Portuguesa e graduada em Letras (Português)
pela Universidade Estadual da Paraíba/UEPB; Professora da
Educação Básica desde 2003; Professora do Ensino Superior
desde 2009; Atua nas áreas de Língua Portuguesa e Linguística,
desenvolvendo estudos e pesquisas nas seguintes perspectivas

324
teórico-metodológicas: Análise Dialógica do Discurso, Teoria/
Análise de Gêneros Discursivos, Leitura e Produção Textual,
Formação de Professores. É idealizadora e coordenadora do
Projeto “Desengaveta meu texto” (www.desengavetameutexto.
org). Foi Finalista do Prêmio Educar para Transformar, promo-
vido pela MRV no ano de 2019; Vencedor em 2019 do Edital Os
anos finais do ensino fundamental: adolescências, qualidade e
equidade na escola, promovido pela Fundação Carlos Chagas
em parceria com o Itaú Social; Venceu o 24º Concurso FNLIJ:
Os Melhores Programas de Incentivo à Leitura junto a Crianças
e Jovens de todo o Brasil, promovido pela Fundação Nacional
do Livro Infanto e Juvenil em 2019; em 2020 recebeu o Prêmio
Cactus, oferecido pela ABES como Parceiro Amigo da Cultura.
E-mail: letrasrosas@hotmail.com

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