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Copyright © 2018 by Thiago Mazucato & Vera Cepêda

Copyright © Herbert Marcuse by Peter Marcuse

Copyright © Bryan S. Turner by SAGE

Thiago Mazucato
M476s A Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim - teoria, método e aplicação /
Amália Barboza {et al}; organizadores: Thiago Mazucato; Vera Alves Cepêda.
Penápolis, FUNEPE, 2018.
198 p.

Tradução do alemão, inglês e espanhol.
ISBN 97885-93683-046

Autores: Amália Barboza; Herbert Marcuse; Bryan S. Turner; Alejandro Blanco;
Thiago Mazucato; Vera Cepêda; Milton Lahuerta.

1. Teoria Social. 2. Sociologia do Conhecimento. 3. Karl Mannheim.
I. Barboza, Amália. II. Mazucato, Thiago (Org.). III. Cepêda, Vera (Org.).



CDD: 301
Fonte: Suely Maria Pereira - CRB 5704

1ª edição 2018

Editora FUNEPE

Avenida São José, 400 - Vila Martins - Penápolis-SP - www.funepe.edu.br


Sobre a problemática da verdade no método
sociológico — Karl Mannheim: “Ideologia e
Utopia”
Herbert Marcuse1

No livro “Ideologia e Utopia”, de Karl Mannheim, emerge toda a


problemática da nossa situação acadêmica contemporânea (que é a
problemática da própria existência humana atual) acerca do avanço e da
repercussão, que a própria abordagem do livro a situa, centrada na
historicidade universal da existência humana e a consequente incerteza da
separação tradicional do ser real e ideal. Encontra-se na concepção mais
antiga de que toda a existência humana regula-se pelas bases de sua
própria existência e pela situação histórica única da qual se originou, e que
é determinada em todos os seus modos de agir e de se organizar, e cuja

1 Trata-se de uma crítica escrita por Herbert Marcuse sobre o livro “Ideologia e Utopia” de
Karl Mannheim, publicada em 1931, dois anos após Mannheim ter publicado a primeira
versão de “Ideologia e Utopia”, na Alemanha. Foi originalmente publicado em Die
Gesellchaft. Internationale Reve für Sozialismus und Politik, 8, 1931. A tradução e publicação
deste texto de Herbert Marcuse foi permitida por seu filho, Peter Marcuse, que gentilmente
nos autorizou e solicitou que publicássemos a seguinte nota: “With permission of the
Literary Estate of Herbert Marcuse, Peter Marcuse, Executor, whose permission is required
for any further publication. Supplementary material from previously unpublished work of
Herbert Marcuse, much now in the Archives at the Library of the Goethe University in
Frankfurt/Main, has been published by Routledge Publishers, England, in a six-volume series
edited by Douglas Kellner, and in a German series edited by Peter-Erwin Jansen published
by zu Klampen Verlag, Germany. All rights to further publication are retained by the Estate”.
Sobre a problemática da verdade | Herbert Marcuse

existência é tomada e organizada como realidade a partir do fundamento


do ser somente enquanto é uma “realidade” absolutamente histórica.

Portanto, o pensamento também foi (em sentido amplo)


concebido como se fosse uma destas ações e, consequentemente, seus
resultados (o mundo “teórico”, “intelectual”) como obviamente uma destas
configurações em sua historicidade existencial. Não somente o conteúdo
individual do pensamento, das ideias, concepções, percepções, produtos
intelectuais de uma época, de uma nação, de uma comunidade social
revelar-se-iam em sua determinação histórica e político-social como
ideologias e utopias, mas também esta determinação seria necessária e
inevitável, tanto na estrutura da consciência quanto no “aparato
categórico” do próprio pensamento: “Quando se diz que uma época vive
num certo mundo de ideias e nós em outro, ou uma camada histórica
concreta pensa com categorias diferentes das nossas, considera-se
então, não somente um conteúdo de pensamento individual, mas todo um
sistema específico de pensamento, uma forma determinada de
experiência e interpretação. Funciona somente no nível noológico,
referindo-se frequentemente a conteúdos, aspectos e também à forma,
em última instância, ao aparato categórico numa situação social” (p. 10)2.

Esta vinculação histórico-social total (Mannheim evita-a aqui,


impondo-se o conceito de “relativismo”) de todas as verdades implica, na
esfera da existência concreta, na suspensão de todas as decisões,

2 Nota da Tradução: as menções de Marcuse às páginas específicas do livro Ideologia e


Utopia, de Karl Mannheim, referem-se à primeira edição de 1929, em alemão. Optamos por
manter estas referências — e não atualizar as marcações das páginas na obra acessível no
idioma português — para não se perder de vista os parâmetros históricos deste texto (sabe-
se que na edição deste livro, que circula atualmente, foram adicionados, em 1936, dois
novos capítulos, em particular o primeiro e o último capítulos da edição atual não estavam
presentes nesta edição original de 1929 a que Marcuse se refere). Neste sentido, todas as
referências e notas deste texto foram preservadas em sua redação original.

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A Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim | Thiago Mazucato & Vera Cepêda (Orgs.)

acompanha cada ação com a experiência de sua determinação e alcança,


portanto, as raízes da existência, que por si só exige a atualidade
constante das decisões, a incessante indeterminação das ações (que cada
determinação somente se sente como um aumento da indeterminação).
Então, Mannheim coloca já no início de sua investigação a questão
central: “Como pode o homem, numa época em que o problema da
ideologia e da utopia é pensado e torna-se cada vez mais radical, ainda
assim pensar e viver?” (p. 3).

Mesmo a partir deste esboço rústico da situação inicial do livro,


parece que a principal controvérsia com ele sobre o assunto da existência
necessita de um fundamento mais profundo do que se pode oferecer
neste texto. Tentaremos, então, perseguir apenas um único problema: a
verdade do ser histórico, o caminho em que de fato se encontra a
problemática fundamental.

A partir da experiência científica da historicidade universal surge


o método da interpretação “sociológica” das estruturas mentais, no qual a
interpretação se faz “de dentro para fora” e cada ideia “situa-se numa
existência anterior” e é considerada funcional3 para o respectivo “sujeito
coletivo” social e sua situação social (“Seinslage”). E esta interpretação
não possui sentido externo, apresentado de fora, pois não pode ser feita
sobre o verdadeiro sentido das estruturas por ela interpretadas anterior-
mente, contudo, pretende capturar justamente nesta reflexão interior sobre
o ser social o “sentido anterior” de seus objetos: “cada explicação
sociológica, por exemplo, enquanto sua estrutura mental funciona através
do ‘ser social’ de uma comunidade histórica, assenta este ser social como

3 Mannheim, Ideologische und soziologische Interpretation geistiger Gebilde. In: Jahrbuch


für Soziologie, ed. Salomon, II, 1926.

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Sobre a problemática da verdade | Herbert Marcuse

compreensível, quando armazena outra conexão de sentido, a partir da


qual, de fato, o sentido anterior pode ser compreendido” (p. 431). Desta
forma, agora o marxismo também pode ser interpretado sociologicamente,
isto é, visto e compreendido como “ideologia” de uma classe social
específica, o proletariado, numa situação histórica específica, o
capitalismo, e tal como ocorre com o caso da ideologia, esta interpretação
pode ser feita com outras formas históricas de ideologias ou utopias: o
quiliasma dos anabatistas, a ideia liberal-humanitária da burguesia, a ideia
conservadora (estas, apenas na forma dos tipos expostos por Mannheim, e
não como um levantamento histórico completo). Deixemos estas objeções
impertinentes de lado e questionemos o que esta interpretação do
marxismo proporciona de positivo.

Com isto, esta interpretação, ao conduzir a relação do marxismo


enquanto teoria para permanecer na “retaguarda” do ser social dos
proletários libera o fundamento originário para a compreensão do
marxismo, por um lado contra os protetores e sentinelas do revisionismo e,
por outro lado, da interpretação “sociológica transcendental” proveniente
de Kant (Max Adler). A teoria marxista permanece, a priori, como teoria
concreta da práxis proletária que, em sua ramificação numa ação revo-
lucionária, emerge como representante histórica necessária dos proletários
enquanto classe. A teoria direciona-se, também, para uma ação bem
específica e historicamente única e para uns portadores históricos únicos e
bem específicos destas ações: sua dimensão é a atualidade concreta. O
significado desta experiência aparentemente discreta é inicialmente
transparente quando se recorda do afastamento do marxismo de uma
sociologia científica de “validade geral” em que o revisionismo e o
marxismo neokantiano concordam. Isto resulta num marxismo enquanto
teoria científica desvinculada das leis da vida social, adequadamente em
conformidade com o nível epistemológico e com a práxis política que o

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A Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim | Thiago Mazucato & Vera Cepêda (Orgs.)

fundamenta ou refuta. Em Mannheim, as áreas centrais da teoria surgem


novamente em seus devidos lugares: a relação entre teoria e práxis, e o
materialismo histórico, que é concebido em seu verdadeiro significado
ontológico (ele permanece no contexto de surgimento ontológico entre ser
social e consciência, e não na relação factual, ambos em uma sociedade
factual, ou mesmo, sobretudo, nas relações da materialidade com a
idealidade).

A tarefa da interpretação sociológica se tornará mais evidente ao


examinarmos, agora, as objeções que contrariam esta interpretação, ao
que novamente nos referimos somente ao marxismo. Ou seja, deixaremos
de lado as objeções que se fazem à posição fundamental do método
sociológico e perguntaremos: quando o marxismo é considerado como
ideologia e, como tal, permanece como equivalente à ideia conservadora,
e, por exemplo, quando é democratizante, e, portanto, a sua pretensão de
validade não é, desta forma, anulada, tal como Marx pretendeu, de sua
parte, anular a pretensão de validade das ideias burguesas como sendo
ideologias? Uma vez que a teoria marxista não consiste na formação de
um aspecto determinado, em que uma determinada classe deve neces-
sariamente experimentar e interpretar a realidade, ainda pode fazer sentido
a reivindicação de uma teoria “verdadeira”? E, não seria, então, a análise
da sociedade capitalista, que se fundamenta em sua teoria da revolução
proletária, nada mais do que um fragmento de uma parcela da realidade,
nada mais do que somente uma perspectiva histórica? A burguesia
capitalista não estaria, também, a partir de sua posição, certa ou errada? E
um marxista poderia acrescentar: existe algo mais perigoso ou hostil para
a teoria marxista do que aqueles que destroem completamente a inde-
terminação absoluta da ação proletária, o que conduziria a um oportu-
nismo universal?

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Sobre a problemática da verdade | Herbert Marcuse

Neste sentido, em que procuramos a resposta, já é possível


indicar: pode-se demonstrar — infelizmente a demonstração desta po-
sição não pode ser dada com clareza suficiente — que todas estas ob-
jeções não estão se movendo no sentido de que poderia ser decidida a
verdade ou a validade de uma teoria histórica, ou seja, de uma teoria do
ser histórico. O condicionamento histórico concreto de uma teoria, e
também o condicionamento total no sentido esboçado inicialmente, que
diz respeito à verdade e à validade desta teoria, não demandariam menos
condicionamento do que exigir a verdade e a validade do ser histórico,
para que não seja, desde o início, considerada falsa e inválida. Uma ver-
dade histórica pode ser relativa para um grupo restrito numa curta situação
histórica, e pode ter uma indeterminação de validade, em torno da qual
todas as determinações se desencadeiam. A verdade e a validade de uma
teoria histórica encontram-se na esfera imanente dos seus conteúdos, ao
ser tratada enquanto ciência pura. Todos estes esforços exigem um
conceito bastante específico de verdade e de validade da ciência pura
enquanto sistema intemporal universal, a qual pode não alcançar total-
mente a historicidade diante de seus objetos. É um dos maiores méritos de
Mannheim ter focado a sua atenção numa esfera em que somente po-
deriam ser decididas a verdade e a validade de uma teoria histórica, de-
monstrando que ali não caberia o conceito tradicional de verdade, e que
seria necessário buscar uma dimensão mais profunda para identificar tal
problemática. Tentaremos refletir sobre esta questão, trazendo à tona,
novamente, nosso problema concreto a ser esclarecido.

A interpretação sociológica afirma: o socialismo — tal como


elaborado e fundamentado por Marx na teoria da sociedade capitalista e
da revolução proletária — consiste no modo que o proletário pode assumir
e realizar enquanto classe ao vivenciar a realidade em sua situação social.
Não é uma ciência universal neutra, mas sim uma função histórica da

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A Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim | Thiago Mazucato & Vera Cepêda (Orgs.)

situação social da classe proletária e o seu sentido somente pode ser


compreendido a partir desta sua função. Deixemos a problemática da
verdade de lado por mais um momento. A compreensão, a que chega a
Sociologia moderna, Marx já afirmara reiteradamente com uma clareza
inconfundível. Em mais de uma oportunidade o próprio Mannheim afirmou:
“o comunismo não é, para nós, um estado que precisa ser produzido, um
ideal através do qual a realidade deve se confrontar. Chamamos de co-
munismo o movimento real que suprime o estado atual. O condicio-
namento deste movimento se produz a partir das exigências atuais”
(Ideologia Alemã, Marx-Engels Archiv I, 252). Dificilmente se acreditaria que
o “desenvolvimento do socialismo, de utopia à ciência” poderia ser com-
preendido como se o socialismo pudesse se tornar uma ciência objetiva
universal, ou ainda como se pudesse se fundir com tal ciência, e ciência
possui, aqui, exclusivamente o sentido e a tarefa, através da análise
concreta, de relativizar toda objetividade neutra e universal, e de relacionar
a verdade de uma classe específica numa situação única! Eis, então, o
ponto em que a verdade da teoria e a verdade da ação podem ser esta-
belecidas na singularidade inevitável da situação histórica e em seus
portadores.

Retornemos, então, à problemática da verdade. A própria teoria


emerge como uma pretensão de verdade e de validade. A própria classe
vai apreender, na sua situação, uma verdade, e sua ação será uma ação
verdadeira. Ou seja, o que pode ser chamado de verdade, aqui, se a teoria,
tanto em seus conteúdos quanto na estrutura de suas categorias, é
somente uma função do ser social de uma classe numa situação espe-
cífica? Se esta teoria emerge de outras classes em suas situações, serão
necessárias também outras teorias contrárias — portanto, a verdade de
cada situação e de cada classe talvez pareça se modificar, mesmo os
grupos sendo cada vez menos diferenciados?

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Sobre a problemática da verdade | Herbert Marcuse

Vejamos como Mannheim tentou solucionar esta problemática.


Ele sugeriu dois caminhos: por um lado, na direção em que introduziu os
conceitos de “consciência verdadeira e falsa” e, por outro lado, na direção
em que se pode denominar como “totalidade dinâmica”. Vamos verificar
inicialmente o primeiro caminho.

“Falsa é (...) uma consciência quando se orienta por normas e,


desta forma, não consegue agir mesmo com as melhores intenções num
determinado nível do ser”, ou quando pensa em categorias, “vive no sen-
tido”, “e que desta forma não poderia encontrar-se no caminho de um
determinado nível do ser” (p. 50). E o que significa, então, nível do ser?
Uma “forma histórica concreta do ser social”, uma “força concreta, isto é,
que afeta o mundo da vida” (p. 170). Verdadeira também seria, por exem-
plo, uma teoria enquanto expressão de uma consciência de classe,
quando esta classe exigisse desta teoria conteúdos que pudessem se
realizar num determinado nível do ser, verdadeiro seria o socialismo quan-
do ele pudesse se colocar em prática a partir de uma força exterior ao
mundo da vida do capitalismo. Mesmo nesta formulação nota-se que já
emerge a dúvida. Onde está a decisão fundamental sobre a possibilidade
desta realização? Às vésperas da Revolução de Outubro parecia óbvio que
a teoria de Lênin era uma “consciência falsa” — e algum tempo após
tornou-se uma “consciência verdadeira”? Ainda pode fazer tanto sentido
ter-se falado sobre verdade, se o lugar da verdade é novamente procu-
rado no relacionamento totalmente opaco de uma consciência transcen-
dente do ser oposto, exceto que no lugar do tradicional e questionável
termo “concordância” ocorre também o tão questionável termo “corres-
pondência”?

Por meio deste seu esforço se resolve, então, a problemática da


verdade através de uma teoria da “correspondência” da consciência

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A Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim | Thiago Mazucato & Vera Cepêda (Orgs.)

(pensamento) com o ser (nível do ser histórico, do mundo da vida...), o que


seria aparentemente um defeito fundamental do método sociológico: a
falta de reflexão sobre a existência do próprio nível do ser histórico (uma
reflexão em que talvez a Sociologia deva voltar à Filosofia). Mannheim
também leva o nível do ser histórico às últimas consequências para o
método sociológico, irredutível aos dados: procedendo novamente à
destruição da realidade na historicidade! Uma reflexão mais atenta evi-
denciaria, contudo, que o próprio nível do ser histórico não transcende a si
próprio em sua historicidade. Trataremos apenas de duas características
do ser, nas quais há uma impossibilidade de que o nível do ser histórico
seja a instância para a decisão sobre a verdade, e ao mesmo tempo, isto
poderia significar claramente a necessidade de uma maior realocação da
problemática da verdade.

O influente, aparentemente estável, persistente e inequívoco


nível do ser (feudalismo, mercantilismo, capitalismo) não pode ser tomado
como unidade última e fundamental para uma interpretação sociológica
porque tais unidades são fundadas nas diferenças entre pensar e ser,
teoria e realidade, ideologia e veracidade, que a Sociologia pretende rom-
per. Toma-se tal solução enquanto abordagem, a qual permanece mais ou
menos como uma abstração arbitrária. Ao se analisar, porém, as
características subjacentes da situação, que são dinâmicas, flutuantes e
ambíguas — desmantelam-se em “situações parciais” que correspondem
a “sujeitos coletivos” cada vez menores (nações, estados, casses, parti-
dos, associações, grupos econômicos e suas situações etc.). E o resul-
tado é que uma situação histórica está em constante modificação e em
ambiguidade: enquanto histórica esta situação ocorre numa concreção
estável constante e, de certa forma, é a consciência — a qual, para
Mannheim, “corresponde” ou deve ser compatível, e constitui a sua con-
cretização atual — que a distingue enquanto nível do ser correspondente!

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Sobre a problemática da verdade | Herbert Marcuse

A segunda característica do ser, que é ignorada pela interpre-


tação sociológica, consiste no momento intencional de todos os eventos.
Cada situação histórica realizou algo que ela própria possuía de especí-
fico, cada mundo da vida relacionou-se a algo, posicionou-se em relação a
algo que era transcendente em seu sentido, e em torno de comporta-
mentos, opiniões, configurações, pôde, enquanto própria situação e mun-
do da vida, ser verdadeira ou falsa. Ainda voltaremos a isto, porém, neste
ponto, deve-se notar que não faz muito tempo que o método sociológico
aceitava o nível do ser histórico enquanto fundamento completamente
determinado e que as decisões sobre a verdade deveriam ser tomadas em
instâncias concretas. Em seguida, no entanto, levantou-se uma objeção, e
tantas vezes utilizou-se incorretamente o fundamento do materialismo
histórico: afirmando que cada nível do ser social contém em si a “cons-
ciência” particular, e, de fato, a contém constitutivamente, ou seja, o nível
do ser social, no seu sentido histórico concreto, já era concebido, inicial-
mente, pela sua “consciência” viva e “real”. Mas ainda há outro perigo
grave, cujo significado específico no marxismo é difícil de subestimar.
Caso se esqueça que o próprio nível do ser político-social não é pretérito,
porém, pode e deve ser alterado enquanto historicamente necessário, e
para além de si mesmo pode ser “verdadeiro” ou “falso”, e que nem
mesmo pode ser o lugar original da verdade e a instância para a sua va-
lidade (sendo, neste sentido, dificilmente evitável o total oportunismo) para
que, por outro lado, se distancie de uma compreensão ruim da concepção
dialética do marxismo. A verdadeira dialética nunca se aplica a um de-
terminado nível do ser enquanto instância para a verdade ou falsidade de
uma teoria, e nem sobre os fundamentos de suas ações, e também não se
aplica para a possibilidade de verificação da verdade na práxis concreta,
mas sempre aplica-se enquanto instância para a qual a referida possibi-
lidade de verificação é tomada enquanto escolha.

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Resumindo: o primeiro caminho que Mannheim embarcou para


tentar solucionar as dificuldades da problemática da verdade não foi bem
sucedido. Não somente porque permanece nebulosa a exigida “corres-
pondência” entre “consciência” e “nível do ser”, retornando aos desen-
contros tradicionais, mas porque o referido nível do ser ainda dispõe,
enquanto histórico, da própria verdade ou falsidade, e não pode
abandonar o fundamento para a decisão sobre a verdade.

Mannheim aponta, ainda, um segundo caminho: aquele da “sín-


tese dinâmica”. Apesar de seu condicionamento historicamente necessá-
rio, a posição determinada e a sua teoria correspondente não são histo-
ricamente equivalentes. Embora possuam aspectos parciais da totalidade
da realidade, não escapam, desta forma, de um princípio adequado de
descoberta, mas se complementam em suas particularidades, cada qual
trazendo à luz uma pequena parte até então encoberta. “Justamente por
isso, porque todos estes aspectos da observação emergem no mesmo
fluxo do histórico e do social, e também porque a sua particularidade
constitui-se nos elementos de uma totalidade emergente, é dada a possi-
bilidade de sua sobreposição e, a síntese, para cumprir sua missão,
sempre volta-se para o novo” (p. 119). Uma tal síntese de toda posição
historicamente possível nunca pode, naturalmente, ser “absoluta, atem-
poral”, ela é sempre dinâmica, “refaz-se de tempos em tempos”, mas aqui
já existe uma distinção potencial entre posições e teorias verdadeiras e
não verdadeiras. A verdade teria se transformado em algo que a síntese
mais abrangente teria proposto e processado de seus aspectos parciais
anteriores, que também executa um optimum do ponto de vista total,
historicamente possível.

Deixemos em suspenso se tal “mudança dinâmica” pode apro-


ximar-se da verdade, se a verdade também não deve ser excluída de cada

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Sobre a problemática da verdade | Herbert Marcuse

mudança na esfera do ser histórico e seria possível somente na extensão


do ser total. Perguntemos: quais são os requisitos concretos de tal sín-
tese? — Mannheim deduziu de tal síntese a verdade do marxismo: o
“mérito” da teoria marxista residia, para ele, em ter processado em si a
“problemática precedente”, difundindo o intelectualismo extremo das
ideias liberal-burguesas e o irracionalismo completo das ideias
conservadoras, e os absorvera em si (p. 89). Pode-se, de imediato, ques-
tionar se o poder historicamente decisivo do marxismo nesta mediação
localiza-se, ou não mais, na imediaticidade historicamente estabelecida,
com a qual aqui seria decretado um princípio e um fim. Mesmo que acei-
tássemos esta concepção — o que significaria, neste caso, o fato da sín-
tese? Ela só poderia ocorrer em duas condições: a que seria precedida por
teorias mediadas historicamente ou aquela em que as novas posições
estariam historicamente armazenadas, a qual permitiria uma perspectiva
mais ampla. Ambas novamente recolocam o dado nível do ser, que re-
presenta a última instância de decisão, e assim, o segundo caminho de
Mannheim leva de volta ao primeiro. Somente na condição em que o res-
pectivo nível do ser histórico também seja, eo ipso, o “verdadeiro” nível do
ser histórico, pode tal síntese fornecer um optimum de verdade. Devido ao
caráter frágil da síntese, Mannheim não expressa de modo algum a sua
preferência por teorias mediadas — até mesmo porque tal mediação seria
completamente falsa —, já que se pode fazer uma síntese mais abrangen-
te, mesmo quando ela é simplesmente uma mera acumulação de aspectos
precedentes. A sociologia moderna ficou devedora do que emergiu da
historicidade universal da existência humana: somente na mediação se
encontra a salvação, e cada acesso imediato e cada decisão imediata já
foram, como tal, descartadas pela História!

Karl Mannheim não ouviu os sociólogos que se omitiram das


responsabilidades existenciais de suas investigações científicas e viram,

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então, sua missão cumprida ao negarem a todo conteúdo mental visível a


sua gênese social, relativizando-o, eliminando assim o discurso: esta é
novamente a nossa situação científica, da qual devemos falar; que se
converteu em nossa existência concreta atual e levantou uma outra in-
cógnita, não mais se referindo à ciência. Como se a ciência pura alguma
vez tivesse permanecido imóvel através da simples enunciação de seus
resultados! As palavras finais do livro [Ideologia e Utopia] abordam a
consciência de tal responsabilidade concreta — “É possível uma política
enquanto ciência?” — ao escrever: “Se em algum momento a política
puder, mesmo neste estágio, se transformar em ciência, em que, por um
lado o campo histórico que se tenta dominar ilumina-se, até aqui, e é
iluminado em sua construção e, por outro lado, não eleva a vontade sobre
a ética para o conhecimento contemplativo não inerte, mas significa auto-
esclarecimento e, neste sentido, preparação para a ação política” (p. 168).
Então, é sobretudo para coordenar o esforço que Mannheim volta a en-
contrar no conhecimento as últimas determinações históricas da situação
para a indeterminação da verdade e da imediaticidade da ação, sem a qual
nem mesmo um “político” seria possível, e tampouco uma ação. Então,
deve também “o pesquisador, que emprega estas análises históricas” não
“poder fugir da problemática da verdade em último sentido” e “se conten-
tar com uma decisão noológica” (p. 39). Isto não significou uma recaída na
irresponsabilidade neutra da “ciência pura” — aplicada a esta única
questão, tal “prolongamento da decisão” e tal “destruição da problemática
da verdade” significariam um perigo mortal para o marxismo, para o qual,
na situação da práxis concreta como qualquer teoria, nada seria menos
compatível do que a mediação e a antecipação daquelas tensões e res-
trições das decisões imediatas em que uma historicidade autêntica se
revelariam espontaneamente.

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Sobre a problemática da verdade | Herbert Marcuse

Desejamos, também, nos distanciar ainda mais da posição de


Mannheim sobre esta problemática — isto não seria uma solução, até
porque ela não está ali como algo para além do conhecimento, mas sim na
dimensão da dificuldade que, em nossa opinião, pode-se esforçar para se
alcançar uma solução para a problemática da verdade. Já conhecemos a
direção tomada por Mannheim: o nível do ser histórico não é considerado
enquanto fundamento último, mas comprova-se para além de si mesmo,
transcende-se a si próprio. Desejamos observar como ele se desloca desta
transcendência sobre a problemática da verdade de modo singular.

Disto resulta, primeiramente: verdadeira ou falsa não é, na esfera


da História, somente uma consciência, um pensamento, uma teoria, mas
também uma situação concreta e seu próprio mundo da vida. Apesar da
determinação historicamente necessária de todas as consciências e da
determinação necessária do próprio desenvolvimento histórico — que
parece excluir a pretensão de verdade para além da respectiva situação —
que surgem estas situações e os seus próprios portadores não são como
verdadeiros ou falsos, e nem podem ser considerados “equivalentes” em
termos de veracidade ou falsidade.

Espera-se isto desta afirmação fundamental. Da mera factici-


dade — e não importa quão historicamente necessária — não resulta a
equivalência do mundo da vida capitalista, de modo algum, em oposição
ao mundo da vida feudal ou socialista. Dissemos “equivalência” histórica:
ou seja, independentemente de qualquer coisa, a historicidade transcende
a classificação — sob toda consideração e reconhecimento de seu tornar-
se historicamente e de sua posição no lugar e no tempo do desenvolvi-
mento histórico, o mundo da vida capitalista fornece um dado comporta-
mento específico para a realidade concreta e um projeto de totalidade
desta realidade concreta, cuja expressão consiste justamente neste mun-

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A Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim | Thiago Mazucato & Vera Cepêda (Orgs.)

do da vida e que poderia ser considerada, enquanto ação e projeto feu-


dalista e socialista. Quando o cenário natural constantemente delimita tais
classificações, falando sobre ascensão e queda, progresso e retrocesso,
um passado melhor e um futuro pior etc., então tudo se torna questionável
na escala de valores — a qual deve permanecer provisoriamente suspensa
em toda sua questionabilidade — com base no conhecimento real, que
aqui é algo que nunca pode ser expressado completamente, não pode ser
verdadeiro ou falso, portanto, e que já não é mais o sempre presente mun-
do da vida histórico, e porque é histórico, também representa todas as
instâncias específicas de valor e de verdade, as quais sustentam-se a si
próprias e não se constituem numa finalidade!

Porém, admite-se isto, ao se dizer: a situação histórica prescre-


ve, desta forma, na necessidade incondicionada, a realização de um
determinado mundo da vida. Isto também poderia se opor a algo melhor
ou pior, verdadeiro ou falso — somente nesta fase do desenvolvimento
histórico pode o mundo da vida ser realizado, de modo que a valoração
pode realizar-se, contudo, permanece historicamente irrelevante, abordada
de fora da história — esta objeção inicialmente se esquece de que toda
determinação e necessidade dos fatos no ser da própria história não pode
cancelar a essência da lei que o fato é necessário em todo momento de
mudança, de que cada situação histórica é portadora da sua própria ne-
gação. Mas, deixemos isto de lado: a objeção não afirma nada contra a
possibilidade da diferença de valores e de seus portadores, ela afirma algo
sobre a possibilidade de alteração dos valores, na própria situação — fora
da qual e através da qual — a ordem é finalmente esquematizada. Neste
contexto surge uma nova luz para o fato de que a concepção marxista da
história traz uma diferenciação de valores entre o nível do ser histórico e
seus portadores. Não somente sobre a indiferenciação de valores do de-
senvolvimento histórico, mas sobre a realização da ação revolucionária

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Sobre a problemática da verdade | Herbert Marcuse

dos proletários sobre a “verdade”, culminando na derrubada da sociedade


capitalista e iniciando a construção da sociedade socialista — a evidente
superioridade do mundo da vida socialista contra o mundo da vida capi-
talista. A necessidade do desenvolvimento histórico não somente
determina a demanda do portador da ação, mas aponta os próprios por-
tadores e a ação enquanto necessários. Contudo, esta é apenas a metade
da verdade, bastante popular, mas que ainda prevalece — na melhor das
hipóteses, sob o feitiço de um falso conceito de uma ciência universal livre
de valores, que aparentemente ainda deve garantir o ideal de certeza — na
maioria das vezes, infelizmente, por motivos muito diferentes. Aplica-se
aqui, esta afirmação, somente aos marxistas, que finalmente se apropria-
ram da questão exposta por Mannheim. A outra metade da verdade
consiste no fato de que o desenvolvimento histórico necessário que de-
termina a ação e o seu portador (e a ação que também é realizada no
mundo da vida), seria: o nível de ser da própria sociedade socialista cons-
titui-se enquanto a “verdade” contra a “verdade” da sociedade capitalista.

Em geral, formula-se: no desenvolvimento historicamente ne-


cessário se constitui de modo completamente inexplicável uma “valora-
ção” específica da situação subjacente, de seu portador e de seu mundo
da vida, ou seja, um relacionamento específico com a mesma verdade ou
falsidade. E constitui-se somente na dimensão sobre a qual a respectiva
situação possua facticidade ao determinar o comportamento e a criação
para algo, cujo sentido não lhe seja imanente. A maneira dos comporta-
mentos e das ações estaria num mundo da vida verdadeiro ou falso, um
contra o outro, de tal forma que estas características — não importa como,
a valoração sempre falha — nunca admitem o mundo da vida enquanto
mera facticidade, mas nesta e através desta facticidade realizam as ações
e criações da existência humana e de seu mundo. No entanto, deparamo-

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A Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim | Thiago Mazucato & Vera Cepêda (Orgs.)

nos novamente com a inescapável pergunta sobre a instância e a escala


para tais valorações e verdades.

Já podemos fazer a negação, aqui, sobre o seguinte: a subordi-


nação de uma teoria e a determinação histórica de um mundo da vida não
significa que se tenha pretendido nesta teoria, e empreendido neste mun-
do da vida, as verdades de suas instâncias somente nos respectivos por-
tadores históricos, mas que a validade destas verdades está relacionada
aos portadores desta teoria e deste mundo da vida, e em nada mais. Esta
validade, por exemplo, pretende que na sociedade socialista a criação de
uma convivência dos povos fundamentada em valores internacionais
superiores (completamente à parte da sua possibilidade de realização) seja
tão realizável quanto na sociedade capitalista — aí está uma verdade, cuja
validade não permanece resolvida na esfera da “ideologia”, de onde se
originou. Ela talvez pudesse surgir somente enquanto uma ideologia e
somente numa ideologia ser descoberta, porém, enquanto descoberta ela
permanece numa esfera em cujo âmbito mantém-se enquanto ideologia. A
verdade é, enquanto descoberta da dimensão ideológica, transcendente a
partir desta dimensão na qual foi descoberta. Em que consiste, então, esta
dimensão intrigante?

Aqui, ela se constitui apenas em direções — para que futuras


pesquisas concretas busquem respostas numa área de problemas espe-
cíficos —, breves indícios foram dados, talvez um primeiro esclarecimento
seja suficiente, porque ainda nos encontramos intensamente nesta dimen-
são. Nesta peculiar transcendência dos fatos estão as relações visíveis em
que o nível do ser histórico questiona enquanto última possibilidade. Nem
a respectiva situação histórica enquanto facticidade, nem o contínuo de-
senvolvimento histórico enquanto cadeia causal contínua desta facticida-
de criam a completa realidade dos fatos, mas tal facticidade constitui-se,

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Sobre a problemática da verdade | Herbert Marcuse

ela própria, numa realidade, cujas estruturas básicas permanecem subja-


centes a todas as realizações factuais, apenas variações históricas destas
estruturas básicas, as quais são realizadas em cada mundo da vida de
modos diferentes. A maneira da realização da convivência humana — não
se trata de qualquer estrutura básica formal e abstrata, mas sim de
estruturas básicas altamente concretas. Verdade e falsidade permanecem,
então, na relação das realizações factuais de tais estruturas básicas: um
mundo da vida seria verdadeiro quando elas se manifestassem, e seria
falso quando estivessem ocultas ou deformadas.

A este respeito talvez possamos encontrar a resposta às ques-


tões colocadas por Mannheim. Mas isto somente é possível — e isto
Mannheim formulou com muita ênfase — se a problemática por ele apon-
tada não for concluída apressadamente ou até mesmo deixada de lado,
mas sim iniciada e conduzida até um grau máximo possível. A recuperação
do fundamento da verdadeira decisão, sem a qual nenhuma existência
humana poderia permanecer existindo, é apenas um esforço no caminho
interno da história e não externo a ela. Neste caminho, o livro de Karl
Mannheim é um primeiro marco histórico, precisamente porque não segue
o caminho tranquilizador de otimismos evidentes, mas tem a coragem de
apontar na direção de uma inquietação final.

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